Cinismo e falência da crítica

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Cinismo e falência da crítica
CINISMO E FALÊNCIA DA CRÍTICA
NOTA DA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Para aprimorar a experiência da leitura digital, optamos por extrair desta versão eletrônica as páginas em branco que intercalavam os capítulos, índices
etc. na versão impressa do livro. Por este motivo, é possível que o leitor perceba saltos na numeração das páginas. O conteúdo original do livro se mantém
integralmente reproduzido.
CINISMO E FALÊNCIA DA CRÍTICA
vLADIMIR SAFATLE
Sobre CINISMO E FALÊNCIA DA CRÍTICA
Durante algum tempo acreditou-se que o esgotamento de modos de pensar e de
formas de vida nos levaria, necessariamente, a realidades sociais renovadas. Como se
após a queda viesse a redenção. Mas o que dizer quando nenhum acontecimento vem
após a crise, quando certa estabilidade parece desenhar-se em meio à desagregação
de padrões normativos? O pior de todos os mundos não seria um mundo em decomposição que teria perdido a força de instaurar novas realidades?
Este livro visa compreender melhor tal fenômeno de “estabilização na decomposição”. Para tanto, procura retomar de maneira sistemática a idéia de que nossas
sociedades capitalistas avançadas conseguiram organizar-se a partir de uma racionalidade cínica. Aqui, “cinismo” não significa simplesmente um modo de distorção em
relação a princípios morais, mas descreve um impasse maior na maneira hegemônica
de compreender racionalidade como normatividade, ou seja, racionalidade como
processo de constituição de valores e critérios normativos de julgamento intersubjetivamente partilhados. As conseqüências desse impasse podem ser sentidas em dimensões da vida social aparentemente autônomas entre si, como política, sexualidade,
artes e processos de socialização. Para analisá-las, procurou-se construir uma perspectiva onde psicanálise lacaniana, teoria sociocultural adorniana e filosofia hegeliana pudessem fornecer um quadro conceitual renovado.
No entanto, se “cinismo” é o nome da decomposição de valores e critérios normativos que pareciam ser o saldo mais valioso de nossas expectativas modernas de racionalização social, então ele traz necessariamente consigo a falência de certa forma
de crítica. Pois quando vivemos sob o regime de racionalidade cínica, não é mais
possível pensar a crítica como indicação de déficits de adequação entre situações
sociais concretas e ideais normativos. Esta sempre foi, como dizia Deleuze, uma crítica de juizado de pequenas causas que se contenta em comparar normas e casos. E
talvez tenha chegado a hora de dizermos claramente: a crítica de juizado de pequenas
causas chegou ao fim.
“A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na
verdade regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a
essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é criar um verdadeiro
estado de emergência.”
– Walter Benjamin
Vladimir Safatle é professor do Departamento de Filosofi a da Universidade de São
Paulo e um dos coordenadores do Laboratório de Pesquisa em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip/ USP). Foi professor visitante das Universidades de
Paris VII e Paris VIII. É autor de A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp,
2006), Lacan (Publifolha, 2007), organizador de Um limite tenso: Lacan e a filosofia (Unesp, 2003), e coorganizador de O tempo, o objeto e o avesso: ensaios de
filosofia e psicanálise (Autêntica, 2004), Sobre arte e psicanálise (Escuta, 2005) e
Ensaios de música e filosofia (Humanitas, 2006).
Copyright desta edição © Boitempo Editorial, 2008
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Ivana Jinkings
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Vivian Miwa Matsushita
Guilherme Kroll, Livia Campos
Tavares
e MarianaEchalar
Mariana
MarianaBraun
Echalar
Leticia
Vivian Miwa
Matsushita
Guilherme
Xavier
de Barros Panzoldo
Silvana Panzoldo
(capa sobre projeto gráfico de Andrei Polessi;
Iha
Marcel
foto: Stockxpert)
Ana Lotufo Valverde e Marcel Iha
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
S134c
Safatle, Vladimir
Cinismo e falência da crítica / Vladimir Safatle. - São Paulo :
Boitempo, 2008.
216p.
(Estado de sítio)
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7559-118-5
1. Ideologia. 2. Capitalismo. I. Título. II. Série.
CDD: 140
08-1805. CDU: 140
É vedada, nos termos da leis, a reproduçao de qualquer
parte deste livro sem a expressa autorização da editora.
Este livro atende às normas do acordo ortográfico em virgor desde janeiro de 2009.
1a edição: agosto de 2008
1a edição revista: agosto de 2011
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Sumário
Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
I
Dialética, ironia, cinismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Was ist Zynismus?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
Sobre um riso que não reconcilia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
II
Por uma crítica da economia libidinal . . . . . . . . . . . . . . . 113
Sexo, simulacro e políticas da paródia. . . . . . . . . . . . . . . 147
O esgotamento da forma crítica como valor estético. . . . 179
Conclusão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
Sobre este livro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213
Quando a claridade diz: eu sou a escuridão, disse a verdade.
Quando a escuridão diz: eu sou a claridade, não mente.
Heiner Müller
A Bento Prado Júnior,
que me deu muito mais que um começo
Há várias pessoas a quem me sinto no dever de expressar gratidão por
partilhar comigo opiniões e análises importantes para a realização deste
livro. Em primeiro lugar, a Paulo Eduardo Arantes, que aceitou publicar
este volume em sua coleção, assim como acompanhou com comentários
sempre relevantes seu processo de feitura. A verdadeira influência é algo
que se impõe silenciosamente e só se revela a posteriori. Ao ver o livro
pronto, percebi o quanto devia a Paulo Arantes.
Agradecimentos devem ser expressos aos meus alunos da Universidade
de São Paulo e do Collège International de Philosophie, que seguiram
cursos nos quais pude desenvolver partes desta pesquisa. Devem ser
citados os membros do Cenedic, que tiveram a generosidade de discutir
comigo dois capítulos, os membros do Latesfip/USP, com os quais
desenvolvi pesquisas importantes para a elaboração deste livro, assim
como os amigos Bruno Haas, Pierre Magne, Filipe Marti, Barbara Formis, Jean-Paul Olive, Antonia Soulez, Monique David-Ménard, Alenka
Zupancic, Cristina Alvarez, Jorge de Almeida, Ruy Fausto, Maria Rita
Kehl, José Leon Crochik, Christian Dunker, Scarlett Marton, Isleide
Fontenelle, Philippe Van Haute e Douglas Barros. Todos eles colaboraram, cada um a sua maneira, para o encaminhamento de certas questões.
Da mesma forma, o CAEPM, instituição que subvencionou uma pesquisa sobre modificações na retórica de consumo aproveitada neste livro,
deve ser aqui lembrado. Por fim, dedico este trabalho a Sandra, minha
mulher, e a Valentina, que um dia talvez leia este livro e compreenda
por que, como ela mesmo diz, seu pai ri tão pouco.
Introdução
…quando não houver mais nada
para desmascarar...
Bertolt Brecht, A decisão
“A transparência como obstáculo.” Durante certo tempo, pareceu
plausível transformar tal boutade em título deste livro. Ela faria alusão,
principalmente, a uma afirmação de Adorno sobre o regime de funcionamento da ideologia na contemporaneidade: “Hoje, a sociedade,
injustamente censurada por sua complexidade, transformou-se em algo
demasiadamente transparente”1. Seria uma forma de insistir na peculiaridade de um certo modo de transparência e esclarecimento hegemônico
em nossas sociedades “pós-ideológicas”, sociedades que aparentemente
não fariam mais apelos à reificação de metanarrativas teleológicas enquanto fundamento para processos de legitimação de estruturas de
racionalização social. Seria uma forma de afirmar que essa transparência advinda depois de uma longa noite de desconhecimento ideológico teria se transformado no próprio cerne da opacidade constitutiva
de nossa realidade partilhada. Seria, enfim, uma forma de dizer que,
sim, devemos reconhecer o esgotamento do potencial analítico de
categorias como reificação, alienação da falsa consciência na dimensão
da aparência, mas não se segue daí que todo esforço de crítica da
ideologia esteja tacitamente condenado à obsolescência. Ao contrário,
o desafio consiste em compreender como a ideologia permanece mesmo cortada de sua rede classicamente definida de causas e efeitos.
1
Theodor Adorno, Soziologische Schriften I (Frankfurt, Suhrkamp, 1980), p. 467. As citações de Hegel, Adorno e Freud são geralmente o resultado do cotejamento dos originais
alemães com traduções em outras línguas (inglês, francês e, em alguns casos, espanhol e
português). Quando foram utilizadas as traduções disponíveis em português, as referências estão indicadas nas notas.
12 • Cinismo e falência da crítica
Assim, um subtítulo possível seria: “Teoria da ideologia em sociedades
pós-ideológicas”.
O título acabou sendo, no entanto: “Cinismo e falência da crítica”.
O objeto de análise não mudou, mas seu quadro de compreensão alargou-se; isso a ponto de o livro ver-se obrigado a girar em torno de uma
dessas categorias genéricas que, em uma primeira abordagem, parecem
ter o dom de nada explicar: cinismo. No entanto, o uso extensivo que
fazemos atualmente do termo “cinismo” para caracterizar certas distorções em relação a expectativas normativas indica, de maneira difusa,
uma percepção acertada. Este livro gostaria de mostrar de que modo o
cinismo deve ser compreendido como categoria maior para a análise das
dinâmicas de racionalização em operação nas múltiplas esferas de interação social no capitalismo contemporâneo. Trata-se ainda de mostrar
como tal compreensão implica, ao mesmo tempo, reconhecer um processo de esgotamento do que convencionamos chamar de “crítica” e
admitir a possibilidade de vislumbrar os fundamentos de uma forma
ainda embrionária de crítica renovada.
Quando definimos o cinismo como modo de racionalização das múltiplas esferas de interação social, devemos inicialmente lembrar que tal
multiplicidade pode ser unificada através de um conceito que se mostrará operacional no decorrer deste livro, a saber, a noção de “forma de vida”.
Chamamos de “forma de vida” um conjunto socialmente partilhado de
sistemas de ordenamento e justificação da conduta nos campos do trabalho, do desejo e da linguagem. Tais sistemas não são simplesmente resultados de imposições coercitivas, mas da aceitação advinda da crença de
eles operarem a partir de padrões desejados de racionalidade. Pois toda
forma de vida funda-se na partilha de um padrão de racionalidade que se
encarna em instituições, disposições de conduta valorativas e hábitos.
Nesse sentido, trata-se de demonstrar como “cinismo” é a categoria
adequada para expor a normatividade interna da forma de vida hegemônica no capitalismo contemporâneo. Falar de forma “hegemônica”
implica, nesse contexto, admitir que, mesmo não sendo aquela que
numericamente cobre a maior parte dos casos, ela tem a força de determinar a tendência de desenvolvimento de todas as demais. Tal hegemonia vem do fato de essa forma de vida implementar modos de conduta
e valoração que realizam a normatividade intrínseca ao processo de reprodução material da vida na fase atual do capitalismo.
Introdução • 13
Mas há momentos em que chamar de gato um gato não significa
muita coisa. A princípio, parece que ganhamos muito pouco ao afirmar
que “cinismo” é o nome correto para um certo modo de funcionamento de padrões de racionalidade em sociedades ditas pós-ideológicas. Até
porque não há nada evidente nesse uso relativamente peculiar do termo.
Normalmente, vemos o cinismo como um problema de ordem moral
vinculado à distorção de procedimentos de justificação da ação. O cínico seria aquele que distorceria procedimentos de justificação ao tentar
conformá-los a interesses que não podem ser revelados. Estaríamos,
assim, diante de uma entre várias tentativas da imoralidade de travestir-se de moralidade. Como uma entre outras máscaras da insinceridade, o
cinismo não deveria nos colocar dificuldades suplementares. Ele poderia ser isolado graças ao esclarecimento progressivo de critérios normativos de enunciação que teriam a força de transformar-se em instrumento privilegiado de encaminhamento da crítica.
Esse modo de compreensão, no entanto, passa ao largo das questões
realmente importantes. Ele é, no fundo, uma maneira de esvaziar problemas maiores que a reflexão sobre o cinismo pode nos revelar. Pois
devemos chamar de “cinismo” um problema geral referente à mutação
nas estruturas de racionalidade em operação na dimensão da práxis. Há
um modo cínico de funcionamento dessas estruturas que aparece normalmente em épocas e sociedades em processo de crise de legitimação,
de erosão da substancialidade normativa da vida social. Isso nos coloca
diante de uma hipótese maior: a partir de um certo momento histórico,
os regimes de racionalização das esferas de valores da vida social na
modernidade capitalista começaram a realizar-se (ou, ao menos, começaram a ser percebidos) a partir de uma racionalidade cínica. Este é o
ponto central, e ele foi bem salientado quando começamos a falar de
razão cínica (Sloterdijk). Ou seja, se há uma razão cínica é porque o
cinismo vê a si mesmo como uma figura da racionalidade. Para o cínico,
não é apenas racional ser cínico, só é possível ser racional sendo cínico. E,
enquanto processo de racionalização, o cinismo pode aparecer como
posição discursiva em várias esferas da vida social (e não apenas no
campo dos julgamentos morais).
É claro que isso nos deixa diante de uma tarefa fundamental: indicar as coordenadas históricas que produziram tal situação. Neste ponto,
uma ressalva deve ser feita. Não se trata apenas de indicar o momento
14 • Cinismo e falência da crítica
em que as sociedades capitalistas começaram a passar por uma crise geral
de legitimação, mas compreender como elas foram capazes de legitimar-se
através de uma racionalidade cínica, e com isso estabilizar uma situação
que, em outras circunstâncias, seria uma típica e insustentável situação de
crise e anomia. Como veremos, isso faz toda a diferença.
Que nosso momento histórico seja caracterizado por uma crise de
legitimidade, eis algo que certos diagnósticos de época não cessaram
de repetir. Por exemplo, foi tendo em vista tal situação que vários autores insistiram, a partir de problematizações referentes a tradições distintas de pesquisa, que o capitalismo contemporâneo se pautava por um
“modelo de desenvolvimento paradoxal”2 vinculado às consequências
da efetivação de um “novo espírito do capitalismo”3, distinto do ethos
descrito pelos estudos clássicos de Max Weber4.
A noção de “paradoxo”, usada para descrever a natureza da dinâmica
de organização das formas de vida sob os imperativos do capitalismo
contemporâneo, é precisa. Devemos entender por paradoxo “uma estrutura contraditória específica [...]. Uma contradição é paradoxal quando,
através da concretização almejada de uma intenção, reduz-se justamente
a probabilidade dessa intenção concretizar-se. Em casos bem específicos,
a tentativa de concretização de uma intenção produz condições que vão
de encontro a essa intenção inicial”5. O paradoxo deriva do fato de uma
concretização aparentemente contrária à intenção que a gerou poder ser
adequada a essa mesma intenção. O aspecto importante aqui é a identificação de um regime de contradição cuja denúncia não pode mais servir
para desqualificar a concretização (paradoxal) da intenção. Tal denúncia
deixa, assim, de ser o motor da crítica (como é o caso, por exemplo, em
Axel Honneth, La société du mépris (Paris, La Découverte, 2006), p. 276.
Ver Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme (Paris, Gallimard,
1998).
Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo (São Paulo, Companhia das
Letras, 2004).
Axel Honneth, La societé du mépris, cit., p. 286. Veremos que não é por acaso que uma
dinâmica relativamente convergente de compreensão do paradoxo é fornecida por
Gilles Deleuze em Logique du sens (Paris, Minuit, 1969). Mesmo que Deleuze não
compreenda o paradoxo como “estrutura contraditória específica”, é na desarticulação
dos modos de indexação entre intenção e concretização que ele se fundamenta. Que esse
fenômeno apareça no cerne do funcionamento das formas hegemônicas de vida no capitalismo não será a maior das ironias.
2
3
4
5
Introdução • 15
situações de contradição performativa), já que a realização paradoxal da
intenção é, de certa forma, realização legítima.
Gostaríamos de mostrar como esse desenvolvimento paradoxal está
ligado à proliferação do que devemos chamar de “estruturas normativas
duais”. Essa noção foi exaustivamente trabalhada por Slavoj ŽiŽek6 a fim de
descrever o impacto social da compreensão de Jacques Lacan a respeito da
maneira como os sujeitos eram socializados por meio da internalização
simultânea de duas estruturas normativas que, embora contrárias entre si,
articulavam-se em relação de profunda complementaridade. De um lado,
a lei simbólica que visa normatizar, de maneira relativamente explícita, os
modos de interação social e de constituição de ideais de autorregulação; de
outro, a lei do supereu que visa impor, de maneira implícita, imperativos
de conduta atualmente pautados por exigências de satisfação irrestrita.
ŽiŽek compreendeu, na peculiaridade desse processo de socialização a partir de normatividades contrárias, a chave para o funcionamento de uma
forma de vida que parece seguir sistemas de normas e valores que se
invertem no momento mesmo de sua aplicação, sistemas em que lei e
transgressão são enunciadas, ao mesmo tempo, como imperativos. Como
veremos, o nome mais adequado para esse fenômeno é cinismo.
Diagnósticos hegelianos
Usar o termo “cinismo” para descrever tais situações paradoxais é
adequado por remeter-nos necessariamente a um diagnóstico da modernidade esboçado pela primeira vez de maneira sistemática por Hegel.
Lembrar de Hegel neste contexto é fundamental para mostrar que as
discussões a respeito do cinismo não devem restringir-se a um diagnóstico sociológico relativo aos impasses do capitalismo contemporâneo,
pois suas raízes encontram-se na percepção do esgotamento de padrões
de racionalidade normativa e valoração que se confundem com uma
6
Por exemplo, em Slavoj ŽiŽek, Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia
(Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992). A noção de “estrutura normativa dual” é uma peça
maior do processo de autocompreensão do sistema de racionalização de países periféricos e teve sua descrição canônica fornecida por Roberto Schwarz, “As ideias fora de lugar”, em Ao vencedor as batatas (São Paulo, Duas Cidades, 1977), p. 13-28. As condições de sua generalização nas formas hegemônicas de vida no capitalismo avançado é,
no fundo, o problema que gostaríamos de estudar.
16 • Cinismo e falência da crítica
certa história da modernidade filosófica. Aqui, crítica social e crítica da
razão se entrelaçam.
Hegel foi o primeiro a compreender que a modernidade, por sua
força de erosão de formas tradicionais de vida, podia abrir espaço para a
indeterminação e para o esvaziamento de toda substancialidade normativa do social. Um esvaziamento cuja estetização mais perfeita seria a ironia
que nega toda possibilidade de a subjetividade autêntica pôr-se em uma
determinidade socialmente reconhecida. Para Hegel, a ironia não era um
mero tropo retórico, mas forma de vida ligada aos impasses da individua­
lidade romântica e resultante de distorções das exigências de autonomia,
autenticidade e desencantamento próprios à razão moderna7.
No entanto, Hegel compreendeu também que uma figura avançada da ironia poderia aparecer como ironização absoluta das condutas
e valores que procuram normatizar a vida social a partir de critérios de
justificação intersubjetivamente partilhados. Ironização que consistiria exatamente no movimento paradoxal de realizar um valor através
de sua aplicação a casos que normalmente lhe seriam contrários. E
Hegel, como veremos no primeiro capítulo deste livro, descreve tal
processo por meio do comentário de um texto que, a sua maneira,
inscreve-se no interior de um longo debate a respeito dos desdobramentos da absorção pelo Iluminismo do impulso crítico produzido
pelos móbiles do cinismo grego. Trata-se de seu comentário canônico
de O sobrinho de Rameau, de Diderot. Ou seja, tudo se passa como se
esse processo sistematizado por Hegel, que visava descrever os impasses de uma normatividade cuja dimensão procedural tendia a ser as
7
Podemos dizer que as dimensões estético-expressiva, prático-moral e cognitivo-instrumental da razão articulam-se com os três sistemas presentes em toda forma de vida
(trabalho, desejo e linguagem). Assim, uma forma de vida racional foi normalmente
compreendida como aquela que pauta o mundo do trabalho por exigências de autenticidade vindas do campo estético-expressivo e que procuram realizar-se como reconhecimento social da individualidade. Por sua vez, pauta o desejo por exigências de autonomia prático-moral normalmente pensadas a partir da dominação instrumental da natureza
(interna e externa), assim como pauta a linguagem por exigências de desencantamento
compreendidas como desvelamento de estruturas causais de implicação entre fenômenos. É claro que todos esses três aspectos foram objetos sistemáticos de críticas na filosofia contemporânea. Exigências de autenticidade foram compreendidas como internalização de práticas disciplinares, a autonomia apareceu como modo de entificar processos
de dominação da natureza e o desencantamento apareceu como projeção narcísica do
Eu sobre o mundo dos objetos.
Introdução • 17
sombrada pelo fantasma da indeterminação, fosse agora padrão hegemônico de normatização social.
A princípio, esse diagnóstico hegeliano parece convergir em larga
medida com descrições sociológicas que caracterizaram o risco maior da
modernidade como sendo a tendência à generalização de situações de
anomia e indeterminação em razão da consciência da impossibilidade
de garantir a substancialidade de formas tradicionais de vida8. Nesse
sentido, devemos entender por anomia “os efeitos de um enfraquecimento das normas e das convenções tácitas reguladoras de expectativas
mútuas que conduz a uma degradação dos vínculos sociais”9. Como se
as exigências modernas de reconhecimento da autonomia individual,
da autenticidade que critica hábitos e costumes tradicionais e de uma
linguagem desencantada só pudessem ser pagas com a moeda do crescimento angustiante da indeterminação e da anomia, produzindo assim
o que entendemos atualmente por crise de legitimidade. No entanto,
essa convergência é apenas parcial, pois Hegel é imune ao pathos conservador da crença na substancialidade ética de formas tradicionais de
vida. O que faz com que a regulação da anomia e da indeterminação
por estruturas institucionais seja, para ele, um problema maior por não
poder ser resolvido através de alguma dinâmica de retorno aos “tempos
carregados de sentido”.
O certo é que, partindo desse esquema hegeliano, podemos compreender o cinismo como disposição de conduta e de valoração capaz
de estabilizar e interagir em situações de anomia. Como se o cinismo
fosse capaz de transformar o “sofrimento de indeterminação”10 normativa em motivo de gozo. A sua maneira, o objetivo deste livro é compreender como tal gozo é possível.
O prazer da indeterminação
Desde o início dos anos 1970, teóricos do que hoje convencionamos
chamar de “pós-estruturalismo”, como Jean-François Lyotard e a dupla
Ver o clássico Émile Durkheim, Le suicide (Paris, PUF, 2003).
8
Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme, cit., p. 504.
9
10
Tal como Axel Honneth o descreve em Sofrimento de indeterminação (São Paulo, Esfera
Pública, 2006).
18 • Cinismo e falência da crítica
Gilles Deleuze e Félix Guattari, compreenderam que o capitalismo e suas
formas hegemônicas de vida tendiam a organizar-se de maneira cínica em
virtude de sua tendência interna de fragilizar continuamente as formas
e as normas que ele mesmo enunciava11. Um pouco como se um dos
aspectos fundamentais do diagnóstico hegeliano da modernidade voltasse pelas mãos dos antípodas do hegelianismo (uma ironia bem ao
gosto da dialética), mas agora na forma de teoria do capitalismo avançado. A sua maneira, Jacques Lacan também partilhava a perspectiva de
seus contemporâneos, basta atentarmos no sentido de suas notas sobre
o que ele chamava de “discurso do capitalista”.
Na verdade, essa teoria pós-estruturalista do capitalismo foi capaz
de tematizar uma etapa na qual o impacto do desenvolvimento da sociedade de consumo, com sua tendência a alargar de maneira cada vez
mais indefinida o fluxo contínuo de equivalências, levou os processos
de socialização do desejo no interior do capitalismo a não mais dependerem da repetição normatizadora de padrões positivos de conduta,
ideais e estereótipos.
Deleuze e Guattari diziam que a função do socius era codificar o
desejo. Maneira de insistir que todo vínculo social impõe um modo de
ser do desejo; que, por exemplo, não se deseja da mesma forma dentro
e fora do capitalismo; e que esses modos de ser do desejo estariam ligados a uma forma de inscrição, de codificação, de submissão a códigos
de inteligibilidade. No entanto, o desenvolvimento exponencial da
sociedade de consumo mostrou que “o capitalismo é a única máquina
social que se construiu como tal sobre fluxos descodificados, substituindo os códigos intrínsecos por uma axiomática de quantidades
abstratas em forma de moeda”12. O que pode ser entendido como afirmação de que o capitalismo não procurava mais impor conteúdos
normativos privilegiados, mas socializar o desejo através de sua desterritorialização violenta, da fragilização de seus próprios códigos, da
flexibilização das identidades que ele mesmo produz. Como se os códigos
Ver, por exemplo, Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-Oedipe (Paris, Seuil, 1971), p. 294,
e especialmente p. 298, em que se lê: “O capitalismo não necessita mais de crença alguma e é apenas da boca para fora que o capitalista se aflige com o fato de que atualmente
não se crê mais em nada”.
Ibidem, p. 163.
11
12
Introdução • 19
fossem enunciados para serem descodificados. Maneira de absorver, no
interior do próprio modo de funcionamento do capitalismo, a tendência de generalização de situações de anomia. Maneira ainda de dizer
que os códigos são enunciados para serem anulados, um pouco como
aquele que sempre ironiza as proposições que enuncia. Tanto Lyotard
quanto Deleuze e Guattari foram extremamente atentos para a maneira como essa desterritorialização do desejo operada pelo capitalismo e
pelo desenvolvimento exponencial da sociedade de consumo revelava
uma articulação profunda entre dinâmica pulsional e modos de reprodução econômica. Articulação que expunha, por sua vez, a importância de se refletir sobre o capitalismo a partir de uma economia libidinal
capaz de compreender a racionalidade econômica a partir do tipo de
promessa de satisfação libidinal que as formas de vida no capitalismo
eram capazes de realizar.
De uma maneira bastante peculiar, tais fatos não escaparam a alguém que pensava problemas relativamente próximos em outra chave:
Theodor Adorno. Anos antes, ele fornecera os fundamentos de uma
teoria da ideologia e das produções culturais no capitalismo tardio com
base na tendência das formas hegemônicas de vida de se organizarem
a partir da ironização de seus próprios valores e normas, como se o
diagnóstico hegeliano a respeito da ironia romântica acabasse por ser
reaproveitado no interior de uma teoria geral da ideologia na fase
terminal do capitalismo13. Maneira de compreender uma teoria da
ideologia não mais dependente dos móbiles clássicos da reificação e
da falsa consciência, e isso a fim de transformá-la em esquema de
análises de disposições de condutas, análise capaz de nos explicar como
sujeitos são levados a ver como racionais certos modos de subjetivação
de vínculos sociais.
Levando em conta essa caracterização, feita por Lyotard e pela
dupla Deleuze e Guattari, da natureza cínica do capitalismo contemporâneo enquanto espaço da desterritorialização contínua e da fragilização de códigos, podemos nos perguntar sobre o regime de ideologia
capaz de criar uma disposição de conduta adequada a tal situação.
Talvez a melhor maneira de responder a essa pergunta seja recuperando
13
A esse respeito, ver principalmente o texto de Theodor Adorno, “Beitrage zur Ideologielehre”, em Soziologische Schriften I, cit., p. 467.
20 • Cinismo e falência da crítica
algumas elaborações compatíveis com essas que podemos encontrar
em Adorno. É a partir daí que poderemos construir uma teoria renovada da ideologia.
Essa teoria tem duas fontes maiores. A primeira é a reflexão adorniana sobre a ideologia e seus produtos culturais. Ela é o objeto maior
do terceiro e do último capítulo. A segunda é uma teoria social psicanaliticamente orientada, mediada principalmente pelas reflexões sobre
processos de socialização e individuação presentes na obra de Jacques
Lacan. Como veremos, todos os dois se depararam com a centralidade
de fenômenos ligados à constituição hegemônica de uma racionalidade
cínica. Por tal razão, este trabalho gostaria de atualizar o impulso que
um dia animou o que foi chamado de freudo-marxismo, mesmo que, em
nosso caso, trate-se de um freudismo renovado por Lacan e de certa
tradição marxista mediada pela experiência intelectual adorniana. Em
vez de justificar a pertinência dessa aparente bricolagem intelectual, é
preferível deixar que o resultado fale por si.
Por outro lado, esse modo de análise permitiu a constituição de
hipóteses relativas às coordenadas históricas responsáveis pela tendência
à homogeneização de várias esferas de valores por meio de uma racionalidade cínica. Se não se tratou de recorrer diretamente a considerações
demoradas sobre a economia política, foi em razão da crença na necessidade de atualizar e reler o que um dia foi chamado de “economia libidinal”, ou seja, a maneira como o modo de socialização de categorias
aparentemente particularistas, como o desejo e a pulsão, pode nos
fornecer a chave para a compreensão da lógica de funcionamento das
dinâmicas de racionalização em operação nos múltiplos núcleos de
interação social. Veremos melhor, no capítulo “Por uma crítica da economia libidinal”, como tal perspectiva pode funcionar.
Formas de vida em mutação
Se voltarmos os olhos para a noção de forma de vida como conjunto
de sistemas de ordenamento e justificação nos campos do trabalho, do
desejo e da linguagem seremos obrigados a descrever como a estrutura
paradoxal da racionalidade cínica é atualmente capaz de organizar as disposições hegemônicas de cada um desses campos. De fato, tal objetivo foi
Introdução • 21
perseguido por este livro. O que nos leva a esperar que, ao final, seja
possível compreender melhor o que vincula modificações aparentemente
autônomas em nossos modos de agir, desejar e usar a linguagem.
A fim de fornecer um quadro esquemático das modificações em
questão, podemos afirmar que no campo do desejo nos interessa principalmente o impacto do esgotamento de um processo de socialização do
desejo e de constituição de sexualidades com base na repressão e no
recalcamento. A psicanálise lembra-nos como os sintomas resultantes
de operações de repressão e recalcamento eram sobretudo formações
que visavam construir compromissos a respeito de disposições afetivas
contraditórias referentes à mesma representação mental. Lembremos de
que maneira, para Freud, os sintomas apareciam geralmente como índices do que ele chamava de “conflito de ambivalência”, quer dizer, como
índices de uma contradição interna na determinação do valor de uma
representação. Por exemplo, a respeito do processo de produção dos
sintomas histéricos, ele dirá: “Um sintoma histérico só se origina quando duas realizações de desejos opostos [gengesätzliche Wunscherfüllungen], cada um tendo sua fonte em sistemas psíquicos diferentes, vêm
concorrer em uma mesma expressão”14.
Lacan percebeu a tendência de generalização de modos de socialização do desejo que não operavam mais a partir dessa forma clássica do
conflito, mas constituíam representações mentais “paradoxais”. Para tanto, ele partiu da reflexão sobre a maneira como perversos organizavam
sua relação com a lei social. Em razão das modificações profundas pelas
quais passou a função paterna e os processos de identificação social, tal
dinâmica perversa tendia a tornar-se hegemônica. Aqui, perversão não
deve ser compreendida simplesmente como estrutura nosográfica marcada pelo “desvio” em relação à norma sexual, maneira de conservar
traços fundamentais da polimorfia da sexualidade. Pois a incidência de
comportamentos ligados à polimorfia da sexualidade não é condição
suficiente para determinar um diagnóstico de perversão. Da mesma
forma, não há diferença entre fantasmas neuróticos e cenários perversos, já que não há fantasmas exclusivos dos perversos (o que Freud já
havia demonstrado em “Bate-se em uma criança”). “O fantasma perverso
14
Sigmund Freud, “Die Traumdeutung”, em Gesammelte Werke (Frankfurt, Fischer,
1999), v. II, p. 575.
22 • Cinismo e falência da crítica
não é a perversão.15”Mas se o acesso compreensivo aos fantasmas perversos não nos fornece a estrutura da perversão é porque esta é fundada
em uma relação particular do sujeito com a lei social. Relação peculiar
por basear-se em modos de seguir as injunções da lei sem, com isso,
produzir disposições de conduta normalmente conformes à lei. Podemos dizer que isso é possível porque a perversão se funda na consciência
da ausência de fundamentos substanciais para as expectativas normativas no campo da sexualidade e na estruturação do núcleo familiar.
Nesse nível, o cinismo seria solidário da transformação da perversão, e não mais da neurose, em saldo necessário de nossos processos de
socialização. Resultado necessário quando aceitamos que os processos
de socialização na contemporaneidade tendem a não passar mais pelo
agenciamento de contradições através da repressão e do recalcamento
com suas estruturas de denegação (Verneinung)16, mas por meio da aceitação de estruturas normativas duais. Veremos isso de maneira mais
sistemática sobretudo no quinto capítulo.
Já no campo do trabalho temos um processo estruturalmente similar através do esgotamento da ética do trabalho com suas noções de
ascetismo, repressão do prazer polimórfico e de estabilidade de funções, que produz uma fixidez identitária no interior do mundo do
trabalho. Tal esgotamento abriu espaço para o advento de um “novo
espírito do capitalismo” mais adaptado à dinâmica paradoxal de uma
racionalidade cínica.
Jacques Lacan, Séminaire VI, sessão de 24/6/1959.
Na verdade, foi a partir da ampliação de tal problemática que este volume nasceu. Em
meu primeiro livro, A paixão do negativo: Lacan e a dialética, foi questão de mostrar como
uma prática clínica importante na constituição do horizonte de reflexão do século XX era
obrigada a recorrer à ontologia a fim de orientar seus critérios de racionalidade. Esse recurso à ontologia não era feito mediante o ancoramento da práxis em uma teoria normativa
sobre os modos de ser, mas sim do reconhecimento da existência de formas de negação que
têm dignidade ontológica. Daí se tratar de uma “ontologia negativa”, que tinha relações
profundas com o que podemos encontrar na dialética hegeliana e na teoria estética
adorniana. Sendo assim, da mesma forma como a dialética hegeliana encontrava uma
relação complexa de proximidade e distância em relação a processos de ironização que
pareciam ser capazes de pôr uma “negatividade infinita absoluta” (para usar as palavras
de Kierkegaard sobre a ironia) que tendia a confundir-se com o movimento dialético, a
clínica lacaniana deparou-se com uma dinâmica de perversão que parecia aproximar-se
insidiosamente de aspectos reguladores do final de análise. Isso apenas demonstrava como
os dois haviam se deparado com processos fundamentais que demonstram a natureza e a
perenidade dos diagnósticos sociais próprios à dialética e a seus desdobramentos.
15
16
Introdução • 23
Sabemos como, em Max Weber, a ideia de espírito do capitalismo
remete ao conjunto de motivos éticos que inspiram ações favoráveis à
acumulação de capital e justificam, do ponto de vista subjetivo, a racionalidade econômica do processo insaciável de autovalorização do capital. No entanto, podemos dizer que cada fase do capitalismo exige um
ethos específico, que deve responder por sistemas de motivações dos
atores sociais. A última dessas mudanças de ethos foi sentida de maneira
evidente quando se tornaram claras as consequências do desenvolvimento da sociedade de consumo a partir dos anos 1970.
Tal modificação permitiu ao capitalismo anunciar o advento de uma
nova forma de trabalho aparentemente capaz de realizar aspirações de
autonomia, liberdade e criação. Adorno costumava dizer que “a identidade é a forma originária da ideologia”17, e isso a fim de salientar,
entre outras coisas, o caráter repressor das exigências de identidade e
conformação próprias aos processos de socialização no capitalismo. No
entanto, tudo se passou como se tal crítica à identidade fosse absorvida
pelo discurso a respeito do setor mais avançado do mundo do trabalho.
Noções como “flexibilização” e “maleabilidade” apareceram como chaves
para abrir um mundo em contínua reengenharia, em que as estruturas
hierárquicas e as funções fixas eram abandonadas em prol de estruturas em rede que exigiam trabalhadores aparentemente capazes de articular conhecimentos diversos, várias identidades, assim como absorver
exigências de mobilidade e contínua inovação18.
Theodor Adorno, Negative Dialektik (Frankfurt, Suhrkamp, 1975), p. 151.
Paulo Eduardo Arantes descreveu de maneira extensa o caráter ideológico desse novo discurso da flexibilização no artigo “A fratura brasileira do mundo”, publicado em Zero à esquerda (São Paulo, Conrad, 2004), mostrando seus vínculos orgânicos com uma certa
“brasilianização” do núcleo central do capitalismo. Por sua vez, Luc Boltanski e Eve Chiapello, ao analisarem a literatura para managers dos anos 1990, podem afirmar: “O manager
é o homem das redes. Ele tem por qualidade primeira a mobilidade, a capacidade de deslocar-se sem deixar-se aprisionar pelas fronteiras – sejam elas geográficas ou derivadas de
pertencimentos profissionais ou culturais –, pelas diferenças hierárquicas, pelas diferenças
de status, de papel, de origem, de grupo, assim como a capacidade de estabelecer um
contato pessoal com outros atores, normalmente muito distantes social ou espacialmente”
(Le nouvel esprit du capitalisme, cit., p. 123). Essa mobilidade e desterritorialização do
manager não deixa de mimetizar a mobilidade daqueles que não tinham lugar fixo no interior da estratificação social (como os malandros, a boêmia artista etc.). Basta lembrarmos
aqui a descrição canônica da “dialética da malandragem” fornecida por Antonio Candido.
No fundo, tal semelhança de família indica como o capitalismo conseguiu trazer para o
centro do mundo do trabalho a fragilização das identidades.
17
18
24 • Cinismo e falência da crítica
No entanto, foi necessário o desenvolvimento de processos de
controle capazes de se moldarem a esse crescimento aparente da autonomia de indivíduos e equipe no interior do “novo mundo do trabalho”. Gilles Deleuze compreendeu isso claramente ao reconhecer
que a verdadeira dinâmica do capitalismo levava à dissolução de estruturas disciplinares como o Estado, a família etc. Em seu lugar,
encontramos estruturas peculiares de controle: “Os controles são uma
modulação, como um molde autodeformante que muda continuamente de um instante a outro, ou como uma peneira cujas malhas
mudam de um ponto a outro”19. Ou seja, não mais instituições normativas próprias a uma sociedade disciplinar, mas dispositivos de
controle que absorvem, no interior de sua própria dinâmica, a multiplicidade e a flexibilização.
De nossa parte, diremos que esses processos de controle são decalcados do mundo do consumo. Um pouco como se a organização das
identidades no interior do mundo do trabalho derivasse atualmente da
dinâmica de “liberação” oferecida pelo mundo do consumo. Pois a aspiração à flexibilidade de identidade e à multiplicidade de atividades
acopla-se perfeitamente à plasticidade dos modos de ser disponibilizados pela forma-mercadoria. Precisaremos, pois, descrever de maneira
clara o modo de controle em operação no mundo do consumo, mostrar
como se articulam identidades flexíveis e práticas de controle. Esse movimento, que será feito sobretudo no quarto capítulo, visa descrever o
regime de funcionamento de estruturas normativas duais enquanto dispositivo social de controle. Como veremos, esse é um campo fundamental para a compreensão do que poderíamos chamar de ontogênese
das capacidades práticas dos sujeitos em formas de vida organizadas a
partir de uma racionalidade cínica. Desta forma, será possível mostrar
como a articulação contemporânea entre mundo do trabalho e mundo
do consumo visa à constituição disciplinar de sujeitos que orientam seu
modo de agir a partir de uma lógica de anulação paradoxal de contradições e de amaciamento de contrários exigida pela racionalidade das
sociedades capitalistas contemporâneas.
Por fim, no campo da linguagem encontramos o esgotamento de
um certo regime de crítica da ideologia ligado às temáticas da falsa
19
Gilles Deleuze, Pourparlers (Paris, Minuit, 2003), p. 242.
Introdução • 25
consciência e da reificação. Regime este que serviu de base para as aspirações da forma crítica na estética modernista.
Lembremos a esse respeito que a reflexão sobre a linguagem é indissociável da tematização de seus regimes de distorção. Em que condições a linguagem não preenche suas funções descritivas (em sua relação
com a referência), expressivas (em sua relação com a intencionalidade
do falante) e performativas (em sua relação com a criação ou modificação de situações partilhadas)? Essa questão é uma peça-chave para a
configuração do que entendemos por crítica da ideologia.
Por exemplo, chamamos de erro distorções da linguagem em sua
função descritiva. Descrever de maneira distorcida uma referência implica normalmente problemas de recognição ou confusão entre sentido
literal e indireto de uma proposição. Nos dois casos, não identifico de
maneira adequada, ou seja, erro ao tentar identificar palavras e coisas.
Por sua vez, chamamos de ilusões a distorção que consiste em estender
a potencialidade descritiva da linguagem para campos nos quais não
posso determinar objetos da experiência, como é o caso das ilusões
transcendentais kantianas.
Chamamos de insinceridade distorções da linguagem em sua relação com a intencionalidade. Pois aqui a linguagem aparece como máscara para a expressão da intencionalidade do falante, como, por exemplo, nos casos de hipocrisia e má-fé. Chamamos ainda de mal-entendido
situações nas quais a distorção entre intencionalidade e expressão é fruto da inabilidade do falante ou do ouvinte.
Esse quadro sumário serve para nos lembrar como a estrutura retórica
da crítica da ideologia esteve normalmente vinculada ao desvelamento
do erro, da ilusão ou da insinceridade. Ou seja, trata-se de revelar aquilo
que a consciência é incapaz de apreender sem abalar sua forma de vida,
aquilo que ela necessariamente reifica ou luta desesperadamente para
não saber.
Podemos dizer que esse modelo de crítica se orientou pela identificação de déficits de realização de critérios normativos referentes a valores
partilhados de maneira intersubjetiva. Assim, quando a crítica aparecia,
por exemplo, como denúncia da inautenticidade de nossas formas de
vida, da hipocrisia das justificativas para as ações do poder ou do caráter
repressivo de normas e leis desprovidas de legitimidade, ela procurava
normalmente identificar déficits de realização de critérios normativos
26 • Cinismo e falência da crítica
que deveriam regular nossos usos da linguagem. Déficits que apareceriam sob a forma do erro, da ilusão ou da insinceridade.
No entanto, esse modelo de crítica é impotente diante de um regime de distorção cada vez mais hegemônico, que poderíamos chamar de
distorções performativas. Nesse caso, a linguagem produz performances
que não deveria produzir, como no caso dos sintomas (que indicam a
existência de duas regras de conduta linguisticamente estruturadas contrárias que constituem uma mesma representação mental), ou não produz performances que deveria produzir, mesmo estando perfeitamente
adequada em relação aos critérios normativos partilhados de maneira intersubjetiva. Essa distorção performativa paradoxal ou esse bloqueio de
força perlocucionária deve ser chamado de cinismo. Maneira de insistir
que o cinismo só pode ser alçado à condição de lógica de racionalização
social quando a linguagem passou por um processo peculiar de desagregação. Como sempre, é no campo da estética que primeiramente sentimos as desagregações da linguagem. Por isso, este livro termina com
uma reflexão sobre o processo de interversão da forma crítica em forma
cínica no interior da estética musical do fim do século XX.
Diante da generalização de tais distorções performativas, resta à
crítica partir do esgotamento dos próprios critérios e padrões normativos. Desse modo, ela pode ganhar a forma da exposição da situação de
anomia, de indeterminação paradoxal que se tornou indissociável da
estrita aplicação de tais padrões. Pois a crítica não pode ser simplesmente guiada por exigências de realização de ideais normativos de justiça e
consenso que já estariam presentes em alguma dimensão da vida social.
A crítica não pode ser apenas a comparação entre situações concretas
determinadas e normas socialmente partilhadas. Esta é, no fundo, uma
crítica de juizado de pequenas causas que se contenta em comparar
normas e caso. Antes, a verdadeira crítica deve ter a força de voltar-se
contra nossos próprios critérios de justiça e consenso, já que ela se pergunta se nossa forma de vida não é mutilada a ponto de orientar-se por
valores resultantes de distorções patológicas.
No entanto, esse outro modelo de crítica encontrará um problema
suplementar de difícil equação a partir do momento em que os modos
de justificação social incorporarem situações de anomia. De fato, foi o
que ocorreu quando o sistema capitalista foi capaz de se justificar não
mais a partir da referência a padrões normativos de justiça (embora tais
Introdução • 27
padrões possam ainda funcionar de maneira regional, no mais das vezes
de maneira retórica), mas a partir da promessa de modos de satisfação
e gozo ligados à anomia, à indeterminação, à ironização. Nesse momento, só resta à crítica ser crítica dos modos de satisfação que legitimam
nossas formas de vida. Ou seja, ser clínica da economia libidinal do capitalismo avançado, embora ainda não esteja claro o que isso possa vir a
ser, afinal.
Desse modo, este livro procura analisar um dado social como o
cinismo a partir da articulação de uma tripla perspectiva que visa fazer
convergir crítica da razão, teoria da ideologia e análise das modificações
das dinâmicas de socialização e individuação nas sociedades capitalistas
contemporâneas. É possível que tal perspectiva tenha sido responsável
pelo movimento ziguezagueante que o texto é, por vezes, obrigado a
assumir. Mas talvez este seja o preço a pagar quando se acredita na
solidariedade profunda entre fenômenos próprios a esferas aparentemente autônomas entre si. Preço que aparece quando se acredita em
proposições “absurdas”, como a que pressupõe uma certa convergência
estrutural entre, por exemplo, nossos modos de constituir regimes de
sexualidade e problemas vinculados à organização formal de experiências hegemônicas no campo da música contemporânea. No entanto,
tais pressuposições foram aparecendo de maneira cada vez mais irrecusável. Elas levaram o livro a procurar constituir-se a partir da ideia de
que, no horizonte, não deve haver distinções entre crítica social, crítica
da razão e análise das produções culturais. Daí essa necessidade de procurar o ponto de indistinção entre filosofia, psicanálise, teoria social e
estética. De qualquer forma, não há como negar um certo desconforto,
já que poucas vezes o autor se sentiu de maneira tão visível na posição
pascalina de quem diz ter uma certeza que é incapaz tanto de provar
completamente quanto de simplesmente abandonar. Por isso, ele é o
primeiro a reconhecer a existência de lacunas no projeto aqui apresentado. Elas servirão como motor de desenvolvimentos futuros.
Dividir em categorias
Mas para que este livro possa começar, faz-se necessária uma precisão
semântica. A pragmática da linguagem cotidiana usa o termo “cinismo”
28 • Cinismo e falência da crítica
em acepções diversas e nem sempre convergentes. O banqueiro que
procura mascarar seus interesses particulares de classe invocando valores
universais é normalmente chamado de cínico, da mesma maneira que
o ex-diretor do Banco Central ao assumir abertamente que a universalização constitucional do acesso à saúde é legítima e desejável, mas infelizmente deveria ser cortada da Constituição por ser racionalmente
impraticável nos próximos decênios. No entanto, no primeiro caso, o
enunciado mascara a verdade presente no nível da enunciação, enquanto
no segundo não há operação alguma de mascaramento, nem precisaria,
pois o julgamento é absolutamente bem formado. Essas economias de
discurso, por sua vez, não participam, por exemplo, da lógica própria
àquele que age legitimando ironicamente sua conduta a partir de valores que ele mesmo julga falsos, porém “necessários”, ou àquele que
ostensivamente ridiculariza e ignora valores que consideramos fundamentais. Mas, novamente, o uso cotidiano da fala não deixa de caracterizar tais posturas como cínicas.
Isso nos leva a uma necessidade prévia de sistematização daquilo
que poderíamos chamar de atos de fala de duplo nível. Trata-se de atos
de fala que tiram sua força performativa da distinção entre a literalidade
do enunciado e o sentido presente no nível da enunciação ou, ainda, de
atos de fala que conservam sua força performativa apesar dessa distinção
entre letra e sentido. Podemos então propor, como exercício de esclarecimento semântico, a constituição de uma taxionomia de atos de fala de
duplo nível. Taxionomia que visa dar conta das relações entre literalidade
do enunciado e sentido da enunciação nos casos em que essas duas
instâncias são diferentes.
A princípio, parecem existir seis grandes categorias de atos de fala
de duplo nível: a má-fé, a hipocrisia, a metáfora, os atos de fala indiretos, a ironia e o cinismo. Cada uma dessas categorias pode admitir
subdivisões. Assim, ao falarmos de ironia em um sentido geral, pensamos em um ato de fala que coloque em evidência certa lógica estrutural
comum entre o chiste, o sarcasmo, a persiflage, a derrisão, a ironia melancólica, entre outros. Mesmo no caso do cinismo, seremos obrigados
a levar em conta ao menos dois casos relativamente distintos de cinismo.
De qualquer forma, dessas seis categorias propostas, duas têm um interesse apenas subsidiário em relação ao cerne de nossa discussão: os atos
de fala indiretos e a metáfora.
Introdução • 29
Feitas tais colocações, podemos organizar os atos de fala de duplo
nível a partir de uma polaridade entre má-fé e hipocrisia, de um lado,
e ironia e cinismo, de outro.
Má-fé e hipocrisia são atos de fala cujo sucesso depende de uma
operação de mascaramento, já que pressupõem que o Outro não é capaz
de desvelar a clivagem entre o valor ao qual o enunciado aspira e o interesse que anima a enunciação. Nesse sentido, tanto má-fé quanto hipocrisia devem aparecer como casos típicos de insinceridade. Elas são figuras
de um falar e de um agir que se organizam como arte da camuflagem de
clivagens. A exposição da clivagem anula a força perlocucionária do ato.
Exemplo clássico de hipocrisia é alguém que manda tropas para
invadir um país e justifica tal ação com valores universais, como democracia e liberdade, quando sua verdadeira intenção é animada por interesse geoeconômicos evidentes. Basta lembrarmos aqui do que Hegel
dizia a respeito da hipocrisia (Heuchelei): “[Ela] prova seu respeito pelo
dever e pela virtude tomando-lhes a aparência [Schein] e utilizando-os
como máscara [Maske] para sua própria consciência, assim como para
a consciência alheia”20. Ou seja, a hipocrisia é uma das múltiplas máscaras da insinceridade dos que escondem a particularidade do interesse por
meio da universalidade do dever; máscara que cai mediante uma crítica
capaz de desvelar os verdadeiros interesses por trás da aparência de universalidade, confrontando assim o “texto ideológico” com o “texto recalcado” ao pontuar os nós sintomais nos quais se lê a contradição
performativa entre os procedimentos de justificação e o domínio da
ação. Como vemos na citação hegeliana, esse mascaramento para o Outro pode ser acompanhado de um não querer saber que indica uma
certa forma de auto-hipocrisia ou de mentira para si.
Foi Sartre quem tematizou à exaustão, e de maneira mais adequada,
essa mentira para si, cujo nome correto é “má-fé”21. Lembremos, por
exemplo, do que ele diz a respeito de conteúdos mentais inconscientes
(como conteúdos latentes de sonhos, crenças não conscientes, acontecimentos traumáticos, lembranças denegadas, sentimentos latentes,
G. W. F. Hegel, Phänomenologie des Geistes (Hamburgo, Felix Meiner, 1988), p. 434.
Esse encaminhamento sartriano do problema da má-fé passa ao largo do uso corriqueiro do vocábulo. Pois ao falar: “Ele agiu de má-fé”, o senso comum refere-se a um ato de
fala que deve ser compreendido como hipocrisia (insinceridade em relação ao Outro).
20
21
30 • Cinismo e falência da crítica
lapsos etc.): eles são inicialmente o resultado de um não querer saber que
deve ser compreendido como figura da má-fé. Pois, como tais conteúdos mentais são produtos de um processo de recalcamento, chega-se
rapidamente a um certo paradoxo: para que exista recalcado, faz-se necessário um certo gênero de consciência do processo de recalcamento.
Como dirá Sartre:
Eu devo saber muito precisamente essa verdade [a verdade dos conteúdos
mentais conscientes] para escondê-la de mim mesmo de maneira cuidadosa – e isso não em dois momentos diferentes da temporalidade –,
o que a rigor permitiria restabelecer um semblante de dualidade – mas
na estrutura unitária de um mesmo projeto.22
Devemos nos perguntar: de que forma a consciência operacionaliza
tal divisão. Como Sartre nos lembra, a má-fé é, antes de mais nada, uma
fé, ou seja, trata-se de uma questão de crença: “O problema essencial da
má-fé é um problema de crença. Como podemos crer de má-fé em conceitos que forjamos expressamente para nos persuadir?”23. Mas lembremos que é da própria natureza da crença operar sobre o vazio da dúvida
que insiste diante da certeza subjetiva. Se dizemos, por exemplo: “Eu
creio que ela me ama”, escutamos, sob a afirmação, a certeza aterradora
de que se trata apenas de uma crença, de que nada me garante totalmente
que ela me ama. Assim, tomar consciência da crença é necessariamente destruir a imediaticidade da crença, já que toda verdadeira crença não
passa de uma aposta. Dessa forma, a má-fé apareceria como uma fuga
da consciência em direção à crença, fuga de quem usa a imediaticidade
a fim de mascarar para si mesmo o caráter frágil da aposta.
Tal característica permite a Sartre insistir no fato de que a má-fé não
pode ser confundida com o cinismo. Pois a má-fé é, acima de tudo,
estratégia de permanência na crença, enquanto o cinismo, como veremos, não pode ser compreendido exatamente como uma questão de
crença, porque pode pôr os dois momentos que a má-fé não é capaz de
articular, o saber e a negação do saber, sem que um anule necessariamente o outro.
Jean-Paul Sartre, L’être et le néant (Paris, Gallimard, 1943), p. 83.
Ibidem, p. 103.
22
23
Introdução • 31
Hipocrisia e má-fé foram caracterizadas como atos de fala baseados
no mascaramento da clivagem entre a literalidade do enunciado e o
sentido da enunciação. Elas apareceram como máscaras da insinceridade
que se sustentam por meio de regimes de desconhecimento da verdade
presente no nível da enunciação. Mas o que dizer de outros atos de fala
de duplo nível, como a ironia e o cinismo?
De todos esses atos de fala, a discussão a respeito da ironia é aquela
que até hoje despertou maior interesse e diversidade de abordagem. Mas
devemos partir do problema da existência de uma lógica comum de
enunciação entre os regimes distintos de ironia, como o sarcasmo, a
persiflage, o chiste, a derrisão, a ironia melancólica, entre outros. A fim
de estabelecer um traçado geral, podemos tomar a definição clássica de
ironia fornecida pela retórica de Quintiliano: a ironia é questão de eironeuesthai, ou seja, de pensar outra coisa do que se diz. Três séculos depois, Aelius Donatus, em sua Ars Grammatica (que serviu de base para
os estudos retóricos até a Renascença), continua a formular a ironia
enquanto tropo no qual o sentido real é oposto ao sentido aparente
(tropos per contrarium quod conatur ostendens). Essa fórmula seguirá
inalterada até o romantismo e, mesmo após o romantismo, continuará
servindo de fundamento para uma reflexão mais ampla sobre as estruturas da ironia, na medida em que carrega atrás de si considerações
sobre o modo tangencial como o sujeito se vincula ao seu dizer.
No entanto, nota-se claramente que as definições clássicas privilegiam
a definição da ironia como uma figura da retórica. Trata-se de perceber a
ironia sobretudo como uma forma de alegoria: uma dentre as múltiplas maneiras de dizer algo e dar a entender outra coisa, desconectando a relação usual entre signo e sentido. Definição relativamente imprecisa por
fornecer, na verdade, uma qualificação genérica de todo uso figurado da
linguagem24. Não será apenas dessa maneira que os modernos compreenderão a ironia, para quem ela era, no fundo, a descrição de uma
forma de vida.
De qualquer forma, essa definição retórica da ironia nos coloca
diante de um peculiar ato de fala de duplo nível. Pois estamos em face de
um processo de erosão do enunciado que tira sua força do reconhecimento
24
Ver, a esse respeito, Paul de Man, Blindness and insight (Londres, Routledge, 1983),
p. 209.
32 • Cinismo e falência da crítica
de uma inadequação entre as dimensões da literalidade do enunciado e
da intenção presente no nível da enunciação. Se colocarmos a questão
sobre o que diz a ironia em sua construção formal, veremos que se trata
de dizer que as descrições de objetos presentes no nível do enunciado são
inadequadas, donde se segue a necessidade de erodir o enunciado falando de maneira irônica. A ironia diz, pois, que para apreender o real do
objeto visado pelo enunciado, faz-se necessário torcer a língua, produzindo enunciações que se autoanulam.
Mas lembremos que, contrariamente à hipocrisia e à má-fé, a ironia
não procura esconder tal inadequação. Para funcionar, a ironia deve
mostrar que o sujeito nunca está lá para onde o seu dizer aponta. Dessa
forma, ela pode afirmar-se não exatamente como uma operação de mascaramento, mas como uma sutil operação de revelação da inadequação
entre enunciado e enunciação. Sem essa possibilidade de revelação da
inadequação para o Outro, a ironia seria um mero mal-entendido. Nesse
sentido, se a hipocrisia e a má-fé expulsam o Outro, a ironia pede o reconhecimento deste. Ou seja, a ironia é um modo muito particular de
abertura ao reconhecimento intersubjetivo, tal como veremos com o
cinismo. Pois, para além do vínculo social que dá corpo à ordem jurídica,
o riso irônico funda e fornece as coordenadas do espaço comum destes que
partilham olhares que dizem tudo que as palavras não afirmam.
Esse ponto foi insistentemente lembrado em discussões contemporâneas a respeito da ironia. Embora a ironia apareça como ato de fala
que anula a imediaticidade do contexto partilhado no uso ordinário da
linguagem, ela não implicaria uma abolição completa da pressuposição
de contextos de orientação para a determinação do sentido. Se assim
fosse, estaríamos diante de uma perpétua indeterminação dos processos
de significação, o que pode explicar por que a ironia foi recuperada
como posição subjetiva maior por teóricos da pós-modernidade. Contra tal risco, temos posições como as de John Searle, para quem “a ironia, como a metáfora, não requer nenhuma convenção, extralinguística
ou de qualquer outra espécie. Os princípios de conversação e as regras
gerais de realização dos atos de fala são suficientes para prover os princípios básicos da ironia”25. Ou seja, a possibilidade de compreensão da
25
John Searle, Expressão e significado (São Paulo, Martins Fontes, 1995), p. 176. Lembremos também aqui do que fala Simon Critchley a respeito do riso como estrutura inter-
Introdução • 33
ironia já indicaria, assim, a realização de um espaço comum pressuposto por sua própria dinâmica de ato de fala. Possibilidade que indicaria
a partilha de um background e, principalmente, a literalidade essencial
do sentido, ou seja, esse princípio de expressibilidade que demonstraria
como toda significação poderia ter uma expressão exata na linguagem
ordinária. Como se a posição irônica fosse uma mera posição parasitária
em relação aos usos comuns da linguagem. Mas veremos de que forma
o cinismo tende a problematizar exatamente esse modo de fundamentação do sentido. Para compreender melhor esse ponto, teremos de dar
dois passos para trás.
subjetiva de reconhecimento e pressuposição de contextos partilhados: “Essas minúsculas explosões de humor que chamados de ‘piadas’ nos colocam diante de um mundo
comum, familiar, de práticas partilhadas, de um background de sentidos implícitos em
uma cultura” (On humour, Londres, Routledge, 2002, p. 16).
I
Dialética, ironia, cinismo
Mas nessa vertigem na qual a verdade do mundo só se manifesta
no interior de um vazio absoluto, o homem encontra também
a irônica perversão da sua própria verdade...
Michel Foucault, História da loucura
Um campo de batalha
O tamanho da virulência indica o tamanho do combate. Essa frase
vale sobretudo para a natureza do que está em jogo no combate entre a
dialética hegeliana e a ironia romântica. No fundo, Hegel sente a ironia
como uma sombra sempre pronta a se deixar confundir com o corpo da
dialética. E lá onde a proximidade é grande, a violência da crítica deve
ser ainda maior.
De fato, há um movimento complexo de proximidade e distanciamento entre dialética e ironia. A análise desse movimento fornece uma
perspectiva privilegiada de compreensão de certos problemas, estratégias e riscos que a dialética deve abordar a fim de assegurar um conceito
positivo de razão.
Por um lado, dialética e ironia partilham a consciência a respeito
do advento de uma modernidade disposta a problematizar tudo aquilo
que poderia apresentar-se como fundamento substancialmente enraizado.
Espírito de época para o qual “não somente está perdida [verloren] para
ele sua vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude
que é seu conteúdo”1. Tal como no caso da recuperação hegeliana da
dialética, a ironia, enquanto modo privilegiado de estetização de sujeitos
não substanciais, volta normalmente à cena quando nos confrontamos
com realidades históricas em crise de legitimação, incapazes de responder
1
G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito (Petrópolis, Vozes, 1992, 2 v.), par. 7; Phänomenologie des Geistes (Hamburgo, Felix Meiner, 1988), p. 7. Modificamos a tradução
da Fenomenologia do Espírito quando julgamos necessário.
38 • Cinismo e falência da crítica
às expectativas de validade com aspirações universalizantes, mas que não
têm a sua disposição uma nova legalidade: “Para o sujeito irônico a
realidade perdeu toda a sua validade; ela se tornou para ele uma forma
incompleta que incomoda ou constrange por toda parte. O novo, por
outro lado, ele não possui. Apenas sabe que o presente não corresponde
à ideia”2. Diante de uma realidade que não responde mais a expectativas
de validade, abre-se sempre, para o sujeito, a negatividade da ironização
absoluta das condutas ou, para falar com Hegel, da Vereitelung consciente-de-si de tudo que é objetivo. Abre-se ao sujeito a possibilidade de
mostrar que essa realidade não pode ser tomada a sério, devendo a todo
momento ser invertida e pervertida (sério no sentido de adequação entre expectativas de validade e determinidades efetivas).
É por essa razão que mesmo Hegel (principalmente em seus comentários sobre Solger, já que as críticas a Schlegel sempre serão bastante
contundentes) reconhece que a ironia pode aparecer como uma espécie
de figura “larvar” da dialética. Sendo um processo de internalização de
clivagens, de inversão de determinações fixas e de formalização de experiências de negatividade, a dialética partilha com a ironia certos traços
estruturais. Dialética e ironia são modos de enunciar e apresentar a contradição entre efetividade e conceito (daí por que o conceito parece sempre ser invertido pela efetividade), entre caso e condições normativas de
justificação. Comentadores como Ernst Behler chegaram mesmo a ver-se
autorizados, a partir daí, a afirmar que, por exemplo:
A proximidade da ironia de Schlegel com a própria posição de Hegel
parece estar vinculada à estrutura da dialética hegeliana, que aparece
animada também por um constante sim e não, uma construção e uma
suspensão permanentes [resultantes dos usos da contradição], um alternar entre autocriação e autodestruição, uma “negatividade” inerente.3
Quando fez tal afirmação, Behler certamente tinha em vista a presença, tanto na dialética quanto na ironia, da Verkehrung (inversão)
como modo de manifestação do esgotamento de determinações fixas e
Sören Kierkegaard, O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates (Petrópolis,
Vozes, 1991), p. 226.
Ernst Behler, Irony and the discourse of modernity (Seattle, University of Washington
Press, 1991), p. 88.
2
3
Dialética, ironia, cinismo • 39
aparentemente substanciais. O uso da Verkehrung com suas passagens
incessantes no oposto configura o primeiro nível da negatividade dialética. Tais passagens também animam o culto romântico ao paradoxo e
à contradição que estão no cerne da recuperação da ironia, assim como
no recurso ao Witz enquanto figura privilegiada da ironia4. É nesse
sentido que há, na ironia, certa estetização da inadequação às determinações fenomenais que a aproxima necessariamente da dialética.
Por outro lado, dialética e ironia reconhecem certa transcendência
negativa como modo de posição de sujeitos não substanciais. Em Hegel,
a primeira posição da subjetividade é a transcendência do para-si em
relação a toda e qualquer determinidade empírica. Não se trata aqui de
compreender a transcendência simplesmente como essa ilusão própria
ao uso da razão e sempre presente quando procura aplicar um princípio
efetivo para além dos limites da experiência possível. Hegel quer, na
verdade, insistir na solidariedade entre a subjetividade e um ato de
transcender que deve ser compreendido como negação capaz de pôr a
não adequação entre o ser do sujeito e os objetos da dimensão do empírico, como apresentação de uma não saturação do ser do sujeito no
interior do campo fenomenal. Tal transcendência não estabelece princípio efetivo algum para além da experiência possível. O que explica por
que devemos compreendê-la como transcendência negativa 5.
A esse respeito, lembremos que, principalmente a partir do romantismo alemão, a ironia será compreendida não apenas como um
tropo da retórica, mas como manifestação privilegiada da força de
autorreflexão própria ao sujeito moderno, ou seja, dessa capacidade
dos sujeitos de tomarem a si mesmos como objeto de reflexão e, com
isso, transcender, colocar-se para além de todo contexto determinado.
De certa forma, isso estaria presente na capacidade do sujeito irônico
de nunca estar lá para onde seu dizer aponta, nessa clivagem necessária ao ato de fala irônico entre o sujeito do enunciado e a posição do
sujeito da enunciação.
Lembremos do que diz Friedrich Schlegel: “Uma ideia é um conceito perfeito e acabado
até a ironia, uma síntese absoluta de antíteses absolutas, alternância de dois pensamentos conflitantes que engendra continuamente a si mesmo” (O dialeto dos fragmentos, São
Paulo, Iluminuras, 1997, p. 66).
Essa questão foi abordada de maneira mais adequada em Vladimir Safatle, O amor é mais
frio que a morte: reconhecimento e indeterminação na fenomenologia hegeliana (no prelo).
4
5
40 • Cinismo e falência da crítica
Nesse sentido, podemos lembrar aqui como Schlegel já definia a
ironia romântica: “bufonaria realmente transcendental”6. Transcendental
é usado aqui em um sentido “não constitutivo”, já que o termo indicaria essa disposição que tudo supervisiona e se eleva infinitamente acima
de todo condicionado. Tal necessidade de elevação acima de todo condicionado da qual fala Schlegel pode explicar por que: “Para poder escrever bem sobre um objeto, é preciso já não se interessar por ele; o
pensamento que deve exprimir com lucidez já tem de estar totalmente
afastado, já não ocupar propriamente alguém”7. Escrever bem, ou seja,
escrever de forma irônica, pressupõe um desinteresse construído por
meio da desafecção dos objetos. Desafecção que demonstra como o
sujeito não reconhece nenhuma resistência vinda do objeto. Ao contrário, se toda descrição de objeto pode ser ironizada é porque o objeto
como polo de resistência se dissolveu. Daí Hegel, pensando em Schlegel, poder falar da “dissolução [Auflösung] irônica do determinado e do
que é em si substancial”8.
No entanto, apesar dessas proximidades aparentes, Hegel não cansa de insistir, com toda virulência, nas diferenças estruturais entre dialética e ironia. Até porque, para ele, a ironia e suas figuras não seriam
mais do que a estetização de um impasse maior nos processos de racionalização da dimensão prática. Em suma, podemos dizer que, para Hegel,
a problematização irônica do fundamento das expectativas de validade
só pode produzir certa ironização geral das condutas, que é figura da
perpetuação da crise de legitimidade, maneira de conservar sub specie
ironiae o que não tem mais legitimidade no interior das esferas sociais
de valores, reduzindo a dimensão dos fenômenos a um jogo negativo de
Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos, cit., p. 27. Mesmo teóricos contemporâneos
da ironia insistem nessa compreensão. “Ironia é transcendental”, dirá Claire Colebrook,
“ela apresenta o sujeito como fundamento ausente que nos permite pensar ou representar qualquer história ou natureza” (Irony, Londres, Routledge, 2003, p. 141).
Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos, cit., p. 25. Essa frase deve ser compreendida
juntamente com a afirmação de Paul de Man sobre a ironia: “A linguagem irônica divide o sujeito em um eu empírico que existe em um estado de inautenticidade e um eu
que existe apenas na forma de uma linguagem que afirma o conhecimento dessa inautenticidade. Isso não é necessariamente feito em uma linguagem autêntica; conhecer a
inautenticidade não é a mesma coisa que conhecer a autenticidade” (Blindness and insight,
Londres, Routledge, 1983, p. 214).
G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik (Frankfurt, Suhrkamp, 1986), v. I, p. 99.
6
7
8
Dialética, ironia, cinismo • 41
aparências. Não seria por outra razão que “Hegel erige o momento
inexpressivo da seriedade em princípio de estilização”9.
Por sua vez, a negatividade irônica é vista por Hegel como um bloqueio por não poder passar ao segundo nível da negatividade dialética
(Aufhebung); esse nível que, em vez de acomodar-se com o jogo infinito
de paradoxos e de passagens, no contrário próprias à Verkehrung, procura
produzir um modo de negação que conserva o objeto negado. Ou seja, a
ironia seria, ao menos segundo Hegel, uma “dialética bloqueada”10.
Por fim, a bufonaria transcendental própria à subjetividade irônica
indica, para Hegel, uma impossibilidade de reconhecimento de si na
efetividade, um “jogo infinitamente leve com o nada”11, como dirá mais
tarde Kierkegaard, mas não sem deixar de lembrar que haveria três tipos
de nada: o nada especulativo (esforço criador do concreto), o nada místico (um nada para a representação, mas rico em conteúdo para um
pensar não representativo) e o nada irônico (que parece almejar o niilismo da repetição indefinida do indeterminado). Podemos mesmo dizer que esse jogo infinitamente leve da subjetividade irônica prenuncia
o advento de uma subjetividade “flexível”, pensada fundamentalmente
como jogo de máscaras e fragilização de identidades fixas.
Neste ponto, vale a pena salientar que tais discussões sobre a relação
complexa entre dialética e ironia têm uma estranha atualidade. Pois é
possível que Hegel tenha percebido, através dos móbiles que levaram à
recuperação da ironia pelo romantismo alemão, a estetização de um
processo geral de interversão das aspirações normativas da modernidade, fracasso que só atualmente se mostrou em toda a sua extensão através das discussões a respeito do que chamamos de racionalidade cínica.
Nesse sentido, trata-se aqui de insistir no fato de que certa compreensão
dialética dos processos de ironização presentes em determinados momentos da recuperação filosófica da ironia tende a se colocar no ponto
de indistinção entre ironia e cinismo.
Paulo Eduardo Arantes, Ressentimento da dialética (São Paulo, Paz e Terra, 1996), p. 33.
9
Neste livro, utilizamos tanto inversão (Verkehrung) como interversão (umschlagen) como
termos que descrevem movimentos, em larga medida, simétricos, caracterizados principalmente pela passagem incessante dos opostos devido ao vínculo, necessário para o
entendimento, entre determinação de identidades e posição de relações de oposição.
Sören Kierkegaard, O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates, cit., p. 233.
10
11
42 • Cinismo e falência da crítica
É certo que a hipótese de Hegel como crítico da razão cínica pode
parecer o mais profundo contrassenso. No entanto, ela ganha plausibilidade se formos capazes de mostrar que o modo pelo qual Hegel compreende a dinâmica de ironização geral das condutas já prefigura os
debates da contemporaneidade a respeito do cinismo como figura do
esclarecimento. Não se trata absolutamente de, com isso, afirmar a solidariedade entre o que compreendemos hoje por cinismo e o que estava em jogo na recuperação romântica da ironia. Trata-se de afirmar tal
solidariedade no interior do texto hegeliano. Isso explica muito sobre a
maneira como Hegel compreende os impasses possíveis da racionalização da dimensão prática na modernidade, mas não necessariamente
serve como análise interna da extensão dos problemas relativos à ironia
romântica a partir das expectativas de seus teóricos.
De qualquer forma, o quiasma entre ironia e cinismo pode ser
derivado do texto hegeliano. Para tanto, devemos adotar uma estratégia que não passa exatamente pelo comentário das posições explícitas
de Hegel a respeito da ironia romântica. Pois uma leitura atenta da
Fenomenologia do Espírito mostra um momento instrutivo a respeito
da relação crítica entre dialética e processos de ironização da efetividade. Faz-se necessário, pois, levar às últimas consequências o fato
de que um dos momentos mais significativos a respeito dessa relação
crítica é dado pelo comentário hegeliano, presente na Fenomenologia
do Espírito, sobre O sobrinho de Rameau12: estetização desse momento
em que o Iluminismo se depara, em sua aurora, com um processo
geral de interversão de suas expectativas normativas por meio da
ironização cínica de condutas e valores que aspiram à validade incondicional, racional e universal. Interversão capaz de abrir a anomia
de uma “profundeza sem fundo onde desvanece toda a firmeza e
12
Este trabalho reconhece sua dependência em relação aos comentários sobre o recurso
hegeliano ao Sobrinho de Rameau, tais como encontramos principalmente em Paulo
Eduardo Arantes, Ressentimento da dialética, mas também em Rubens Torres Filho,
Ensaios de filosofia ilustrada (São Paulo, Iluminuras, 2005). Como seria supérfluo e
tedioso indicar todos os momentos em que este trabalho se apoiou nas elaborações
dos dois autores, já que tal recurso é uma constante, optou-se por indicar logo de
início essa relação fundamental de dependência que perpassa as ideias aqui apresentadas. Dependência que, no caso de Paulo Eduardo Arantes, é resultado natural de uma
velha relação de admiração.
Dialética, ironia, cinismo • 43
substância”13. Devemos, assim, mostrar como o comentário de O sobrinho de Rameau cristaliza um movimento de crítica (partilhado
também pela dialética hegeliana) a certos modos de realização de expectativas normativas da razão moderna.
Essa operação não é impossível se lembrarmos que o texto de Diderot é, a sua maneira, um momento inaugural do advento da consciência das interversões das aspirações do Esclarecimento. Como dirá Foucault, o texto de Diderot marca o retorno de uma desrazão que habita
o cerne da razão; o que, no nosso caso, pode ser compreendido como
resultado de um movimento de suspensão dos processos de racionalização da dimensão prática, que é, ao mesmo tempo, resultado da afirmação desses mesmos processos. Podemos mesmo dizer que O sobrinho de
Rameau ocupa uma função que, posteriormente, a tradição dialética
(Adorno, Lacan) irá procurar em Sade: expor os mecanismos de interversão da moralidade esclarecida. O uso de dois textos literários da
aurora do Esclarecimento não é um mero acaso. Trata-se de insistir que
problemas identificados no despertar do intrincado processo de autocertificação da sociedade burguesa ainda ressoam (ou talvez seja melhor
dizer: só agora ressoam em toda a sua extensão).
O momento cínico do Espírito
Se reconstituirmos a economia do texto hegeliano, veremos que seu
comentário a respeito da peça de Diderot na Fenomenologia do Espírito
se encontra em um lugar bastante sintomático. Primeiro, ele aparece no
interior da seção “Espírito”. Durante a redação da Fenomenologia, essa
seção foi paulatinamente se transformando no centro de gravidade do
livro. Uma transformação bem ilustrada pela própria modificação do
título: de Ciência da experiência da consciência para Fenomenologia do
Espírito. De fato, podemos dizer que apenas aqui, nessa que é a seção
mais extensa do livro, Hegel apresentará algo como um conceito positivo de razão capaz de realizar o projeto da consciência de ter a certeza
de ser toda a realidade. Esse conceito positivo está vinculado a uma
racionalidade fundada na descrição do movimento de rememoração
13
G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 519.
44 • Cinismo e falência da crítica
histórica dos processos de formação das estruturas de orientação do
julgamento e da ação da consciência14. Rememoração capaz de internalizar a luta da consciência para realizar a razão por meio da racionalização
de estruturas de práticas sociais adequadas a aspirações universalizantes.
Daí as figuras da seção “Espírito” serem figuras de um mundo, ou seja,
claramente articuladas com momentos sócio-históricos e pensadas no
interior de uma progressão histórica em direção à tematização do processo de constituição da modernidade.
Grosso modo, podemos dizer que tal rememoração conhece três
grandes movimentos. O primeiro diz respeito à tentativa de recuperação do mundo grego como alternativa para os impasses e cisões da
modernidade. Tentativa de recuperação de uma “razão ética”, para usarmos uma expressão de Robert Pippin, que terminará na impossibilidade trágica de sua realização (tal é o sentido do comentário hegeliano de
Antígona). Lembremos, a esse respeito, como foi particularmente forte
para a geração de Hegel, principalmente após a crítica rousseaunianista
à inautenticidade das formas modernas de vida, a tentativa de construir
uma alternativa à modernidade através do recurso a formas de vida e
modos de socialização próprios a uma Grécia antiga idealizada e paradigmática. Nesse sentido, não é estranho que a reflexão hegeliana sobre
a eticidade comece a partir de uma discussão a respeito da pólis grega,
ou melhor, a respeito da maneira como os modernos compreendiam o
poder absoluto de unificação que imperava na pólis. Pois a questão
fundamental aqui “não está vinculada aos detalhes históricos da vida
grega per se, mas diz respeito a saber se a vida grega idealizada por muitos
14
Nesse sentido, devemos admitir o Espírito hegeliano a partir de uma leitura desinflacionada do ponto de vista metafísico. Vale a pena, neste ponto, seguir a definição de um
comentador de Hegel que viu claramente isso: “Espírito é uma forma de vida autoconsciente, ou seja, uma forma de vida que desenvolveu várias práticas sociais a fim de refletir a respeito do que ela toma por legítimo/válido [authoritative] para si mesma no sentido de saber se essas práticas podem dar conta de suas próprias aspirações e realizar os
objetivos que elas colocaram para si mesmas [...]. Espírito não denota, para Hegel, uma
entidade metafísica, mas uma relação fundamental entre pessoas que mediam suas consciências-de-si, um meio pelo qual pessoas refletem sobre o que elas tomaram como válido para si mesmas” (Thomas Pinkard, Hegel’s phenomenology: the sociality of reason,
Cambridge, Cambridge University Press, 1996, p. 9). Na verdade, a leitura adorniana
do conceito hegeliano de Espírito já aponta para esse ponto (ver, por exemplo, o capítulo “Weltgeist und Naturgeschichte. Exkurz zu Hegel”, em Theodor Adorno, Negative
Dialektik, Frankfurt, Suhrkamp, 1975).
Dialética, ironia, cinismo • 45
de seus contemporâneos [de Hegel] pode, em seus próprios termos,
contar como alternativa genuína para a vida moderna”15. Daí Heidegger
compreender claramente que, para Hegel, “a filosofia dos gregos [e suas
formas de vida] é a instância de um ‘ainda não’. Ela não é ainda a consumação, mas, contudo, é unicamente concebida do ponto de vista
desta consumação que se definiu como o sistema do idealismo
especulativo”16.
O segundo grande movimento no interior desse processo de rememoração histórica, que visa fundamentar reflexivamente um conceito
positivo de razão enraizado em práticas sociais, diz respeito à aquisição
moderna da certeza do absoluto dilaceramento da consciência, devido
exatamente à impossibilidade de realização da eticidade, ou seja, à impossibilidade de indexação não problemática entre estruturas normativas de validade e disposições intencionais singulares. É a partir desse
problema de fundo que devemos compreender o sentido desse longo
trajeto, presente em toda a subseção “O mundo do espírito alienado de
si”, que parte da análise da ética aristocrática da honra e passa pelas
relações da aristocracia com a monarquia absoluta a fim de demonstrar
como a modernidade adquire a consciência do absoluto dilaceramento
da consciência e da absoluta ruína da eticidade nas relações sociais de
lisonja e cortesia que marcaram a vida aristocrática pré-Revolução Francesa, donde se segue a importância, dada por Hegel, do comentário do
texto de Diderot, O sobrinho de Rameau. As duas últimas subseções
desta parte, “O iluminismo” e “A liberdade absoluta e o terror” visam
dar conta da tentativa e do desdobramento do esforço revolucionário
moderno de recuperação de uma “razão ética”.
Por fim, temos a tematização da recompreensão da estrutura da
subjetividade por meio do advento do idealismo alemão. Dessa forma,
Hegel tenta colocar em marcha a ideia de que as expectativas e aspirações de autonomia, autenticidade e autocertificação da modernidade
depositadas na Revolução Francesa seriam realizadas pelo idealismo alemão. Pois a guinada em direção à moralidade presente na última subseção da seção “Espírito” não significa simplesmente um recolhimento
em direção à interioridade da subjetividade enquanto espaço possível
Thomas Pinkard, Hegel’s phenomenology, cit., p. 137.
Martin Heidegger, Hegel e os gregos (São Paulo, Duas Cidades, 1971), p. 50.
15
16
46 • Cinismo e falência da crítica
de reforma moral. Trata-se, na verdade, de insistir que, através da problematização da moralidade, o idealismo alemão teria aberto as portas
para a compreensão de que o fundamento das práticas e dos processos
de racionalização que queiram realizar as aspirações modernas está na
cons­ciên­cia-de-si, no sentido de que apenas uma problematização do
conceito de consciência-de-si pode fornecer a reformulação dos princípios lógicos que guiam a ação dos sujeitos na realização de instituições
e práticas sociais à altura das expectativas próprias à modernidade. A
guinada em direção à moralidade permitirá a Hegel demonstrar a ausência de vínculos entre subjetividade e princípio de identidade, abrindo caminho, com isso, para a realização de um conceito de eticidade
capaz de dar conta das aspirações de reconhecimento de sujeitos não
substanciais.
No entanto, é no interior do segundo momento, ou seja, no interior dessa reflexão sobre o dilaceramento absoluto da consciência em
relação a estruturas normativas que aspiram à validade universal que
Hegel introduz considerações importantes sobre a linguagem em sua
função expressiva. Pela primeira vez em toda a Fenomenologia do Espírito, Hegel apresenta claramente a linguagem como elemento de reconhecimento. São tais considerações que servirão de preâmbulo para o
comentário de O sobrinho de Rameau, com sua estetização das relações
de lisonja. Diz Hegel:
Com efeito, a linguagem é o Dasein do puro Si como Si [das Dasein
des reinen Selbsts, als Selbsts], pela linguagem entra na existência a singularidade sendo para si da consciência-de-si, de forma que ela é para
os outros [...]. Mas a linguagem contém o Eu em sua pureza, só expressa o Eu, o Eu mesmo. Esse seu Dasein é, como Dasein, uma objetividade que contém sua verdadeira natureza. O Eu é esse Eu, mas é
igualmente universal. Seu aparecer é ao mesmo tempo sua exteriorização [Entäusserung] e desaparecer e, por isso, seu permanecer na universalidade [...], seu desaparecer é, imediatamente, seu permanecer.17
Após ter afirmado, na seção anterior da Fenomenologia, que a linguagem era uma exteriorização na qual o indivíduo não se conservava
17
G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 508; Phänomenologie des Geistes, cit.,
p. 335.
Dialética, ironia, cinismo • 47
mais, abandonando seu interior a Outro, Hegel afirma agora o inverso,
ou seja, que a linguagem é o Dasein do Si como Si. No entanto, essa
contradição é apenas aparente, pois a linguagem perde seu caráter de
pura alienação quando compreendemos o Eu não como interioridade,
mas como aquilo que tem sua essência no que se autodissolve. Ao falar
do Eu que acede à linguagem como um universal, Hegel serve-se do
caráter de dêitico de termos como Eu, isto, agora etc., tal como fora o
caso na seção dedicada à certeza sensível. “Eu” é uma função genérica
de indicação a qual os sujeitos se submetem de maneira uniforme. Ao
tentar dizer esse Eu particular, a consciência diz apenas a estrutura de
significante puro do Eu, essa mesma estrutura que o filósofo alemão
chama de “nome como nome”. Uma estrutura que transforma toda
tentativa de referência-a-si em referência a si “para os outros” (referência
através do universal social da linguagem) e como um Outro (já que
implica alienação da particularidade). Por isso, o Eu enquanto individualidade só pode manifestar-se como o que está desaparecendo em um
Eu universal. Essa era a maneira hegeliana de introduzir uma temática
fundamental a respeito da necessidade da despossessão de si, do sacrifício das representações naturais do si mesmo enquanto condição para a
formação da consciência-de-si. Alienação formadora que já fora tematizada por ocasião das considerações hegelianas sobre o trabalho. A esse
respeito, Hegel chega a afirmar que o verdadeiro processo de formação
é o sacrifício que “só é completo quando chega até a morte”, sacrifício
no qual a consciência se abandona “tão completamente quanto na morte, porém mantendo-se igualmente nessa exteriorização”18. Uma morte
cuja melhor formalização é essa linguagem formadora da despossessão
de si, linguagem da morte das “ilusões do imediato”.
O ponto determinante consiste no fato de Hegel reconhecer em O
sobrinho de Rameau, e em sua ironia que tudo dilacera, uma das figurações possíveis de força formadora da linguagem. Reconhecimento inusitado, pois obriga-nos a afirmar que a experiência do sobrinho de Rameau tem um conteúdo de verdade. Como se seu cinismo fosse, no final
das contas, momento fundamental no interior do processo doloroso de
formação da consciência-de-si. Mas esse conteúdo, como veremos, não
18
Ibidem, par. 507; ibidem, p. 333.
48 • Cinismo e falência da crítica
é fiel a sua forma (irônica). Por isso, tal experiência deverá nos levar para
além dela mesma.
A configuração dessa experiência estetizada por O sobrinho de Rameau ficará mais clara se levarmos em conta que o texto de Diderot
funciona, a seu modo, como momento inaugural do advento da consciência das interversões das aspirações modernizadoras do Esclarecimento. Como dissemos anteriormente, foi Foucault quem compreendeu
isso claramente. Em História da loucura, ele não teme afirmar que o
texto de Diderot cortava um longo movimento de exclusão ao mostrar
a desrazão a aparecer no coração mesmo das operações da razão, ao
mostrar uma certa maneira de ser irracional por seguir a razão até o
ponto em que ela confessa seu contrário, em que ela se desfaz na “pantomima do não-ser”. Daí uma afirmação como “a aventura de O sobrinho
de Rameau conta a instabilidade necessária e a reviravolta [retournement]
irônica de toda forma de julgamento que denuncia a desrazão como lhe
sendo algo exterior e não essencial”19. Mas o que seria essa desrazão que
é, ao mesmo tempo, o mundo racional e “este mesmo mundo separado
de si apenas pela tênue superfície da pantomima”20?
Certamente, Foucault compreende O sobrinho de Rameau como
um caso privilegiado do que ele chamará posteriormente de “transgressão” da linguagem. Uma transgressão cuja figuração possível poderá ser
descrita como o ato de “submeter uma palavra, aparentemente conforme
ao código reconhecido, a um outro código cuja chave é dada nessa
própria palavra; de maneira que esta se desdobra no interior de si
mesma”21. Uma palavra que, ao mesmo tempo, segue o código e o transgride, anulando com isso toda possibilidade de submeter, de maneira
segura, a mensagem ao código. A enunciação, ao mesmo tempo, preenche
e não preenche exigências normativas de validade. No entanto, o que
isso poderia querer dizer exatamente? Esse ponto ficará claro se voltarmos nossos olhos para o eixo da peça de Diderot, a saber, o movimento
especular entre os dois protagonistas da peça, movimento marcado pela
partilha problemática a respeito da determinação do sentido da experiência cínica.
Michel Foucault, Histoire de la folie (Paris, Gallimard, 1972), p. 434.
Ibidem, p. 439.
Idem, Dits et écrits I (Paris, Gallimard, 1994), p. 444.
19
20
21
Dialética, ironia, cinismo • 49
Dois cinismos
Há uma complexa história que envolve a recuperação dos motivos
do cinismo antigo pelo Iluminismo francês. Uma recuperação que se
inscreve no interior do movimento de confrontações a respeito do legado e das múltiplas recepções do cinismo. Essa recuperação do cinismo
pelo Iluminismo, que chegou a transformar Diógenes em herói popular
na iconografia da Revolução Francesa, deve ser compreendida no quadro de constituição dos móbiles da crítica iluminista. A parresia cínica,
palavra autêntica com seu sarcasmo em relação aos preconceitos sexuais,
religiosos, morais, políticos e à autoridade, aparecerá como ponto de
orientação da crítica no Iluminismo. Por outro lado, a autarkeia, figura
privilegiada da crença na autonomia do indivíduo, assim como o cosmopolitismo cínico e um certo naturalismo, funcionarão como horizontes
reguladores para a ação iluminista em suas aspirações críticas.
Se voltarmos à Grécia, veremos o cinismo como uma filosofia
eudemonista, fundada na crítica ao convencionalismo da moral que
guia o nomos e na tentativa de recuperação de uma autenticidade do agir
que apela para o recurso à physis. Ou seja, o cinismo visava fornecer a
figura privilegiada de uma crítica ao nomos e à cultura por meio do
programa de retorno à uma moral naturalista que toma a animalidade
como padrão regulador da conduta. Conhecemos, por exemplo, a anedota
que diz: “Tendo visto um dia um rato que corria sem se preocupar em
encontrar uma morada, sem temer a obscuridade e sem desejo algum
de tudo que transforma a vida em algo agradável, Diógenes tomou-o
como modelo e encontrou remédio em seu despo­ja­mento”22. Isso permite ao cínico fundar a ideia de virtude na simplicidade dos costumes,
na limitação das necessidades e, principalmente, na negação direta do
vínculo aos objetos sensíveis. Para o cinismo, a virtude era uma questão
de apatia e desafecção, ou seja, indiferença absoluta em relação aos
objetos. Indiferença que encontramos, por exemplo, na afirmação de
Antístenes presente no Banquete, de Xenofonte: “E se, por acaso, meu
corpo sentir a necessidade dos prazeres do amor (αϕροδισιασαι), a
primeira que vier será suficiente, a tal ponto que as mulheres das quais
22
Diógenes Laércio, Vie, doctrine et sentences des philosophes illustres (Paris, Flammarion,
1965), v. II, p. 14.
50 • Cinismo e falência da crítica
me aproximo acolhem-me com transporte pela simples razão de que
ninguém consente em ter comércio com elas”23. Dessa forma, o retorno
à physis pode fundamentar a autarkeia dos que se reconciliam com o
curso de um mundo estabelecido para além das exigências da polis 24.
No entanto, essa crítica cínica a uma cultura compreendida como degradação da natureza foi percebida, em várias ocasiões, como entificação de
um discurso amoralista. Isso fez com que os próprios cínicos, principalmente por ocasião da recuperação romana, se dedicassem à separação entre um
“falso” e um “verdadeiro” cinismo (basta lembrar o combate de Luciano
contra os falsos cínicos). Uma explicação possível para essa duplicidade na
recepção do cinismo pode ser fornecida se atentarmos em certos problemas
na fundamentação de toda moral naturalista.
Nesse sentido, lembremo-nos do significado de fundar a autarkeia
cínica pela posição da apatia. Fundar a dominação de si na negação
direta dos vínculos privilegiados a objetos sensíveis equivale a recorrer
a um conceito negativo de liberdade. Digamos que a liberdade cínica
não é “liberdade de fazer determinadas ações”, mas principalmente “libertação em relação a certos objetos e paixões”. Esse conceito negativo
de liberdade nos mostra como a physis, enquanto plano de imanência
que permite a orientação da ação virtuosa, aparece principalmente
como a negação do nomos. Para que a physis fornecesse um princípio
positivo e autônomo de orientação da ação, seria necessário algo como
uma filosofia da natureza como base para a filosofia moral, mas isso
Xenofonte, The banquet (Cambridge, MA, Harvard University Press, 1997), cap. IV, 38.
Lembremos aqui que falar do cinismo grego é um exercício mais complexo do que pode
parecer, pois falta um acesso direto aos textos. Os textos canônicos de contato com o
pensamento cínico são recensões feitas por terceiros, à parte os textos de um cínico
menor, Teles. Nesse sentido, o sexto livro de Vie, doctrine et sentences des philosophes illustres, de Diógenes Laércio, ainda é a grande referência; mas ele, por sua vez, é uma
recensão de anedotas de domínio público e fragmentos de textos cínicos. Na verdade, os
textos cínicos a que temos acesso hoje são principalmente da fase romana do cinismo,
que se inicia a partir do século I d.C., como, por exemplo, os escritos de um sofista,
Dion Crisostomos, de Favorinus, além das sátiras de Luciano (nas quais Menipo e Diógenes aparecem frequentemente como protagonistas) e dos discursos do imperador
Juliano. Esse estado das fontes impede um estabelecimento mais preciso dos contornos
da filosofia cínica. Por outro lado, ele faz com que: “O estudo do cinismo, contrariamente ao estudo do platonismo, seja inseparável do estudo de sua recepção” (R. Bracht
Branham e Marie-Odile Goulet-Cazé (org.), The cynics: the cynic movement in Antiquity
and its legacy, Berkeley, University of California Press, 1996, p. 14).
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24
Dialética, ironia, cinismo • 51
falta ao cinismo. Várias anedotas dão conta dessa orientação moral
como negação simples do nomos. Lembremo-nos, por exemplo, da declaração de Diógenes a respeito de seu hábito de sempre entrar no teatro
pela porta de saída: “Eu me esforço para fazer na minha vida o contrário
de todo mundo”25. Mas, se a physis é apenas o Outro da vida social,
então ela será apenas uma abstração capaz de englobar disposições muitas vezes contraditórias entre si, pois variáveis de acordo com a modificação subjetiva da perspectiva de avaliação do que pode se pôr como
negação simples do nomos. Impasse que Hegel tinha em vista ao lembrar
que: “Diógenes no seu tonel está condicionado pelo mundo que procura
negar”26, ou seja, a verdadeira essencialidade de sua conduta é fornecida
por aquilo que aparece como limite à sua dominação de si. Essa variabilidade das perspectivas de avaliação implica instabilidade na determinação dos preceitos morais. O que abre as portas para uma infinita e
inútil discussão entre “falso” e “verdadeiro” cinismo.
O fato é que essa discussão a respeito de um falso e de um verdadeiro cinismo atravessou a recepção medieval e renascentista do legado
cínico. O elogio da pobreza, da autarkeia, e a crítica ao caráter heterônomo das obrigações morais da vida social foram motivos para a recuperação do cinismo pela filosofia moral do cristianismo medieval (Erasmo, Morus). No entanto, não foram poucos os teólogos cristãos que
compreenderam como simples figura do amoralismo a crítica cínica
com sua ausência de vergonha (verecundia) e seu desprezo pelas regras
sociais. A possibilidade de aproximação entre a moralidade cristã e o
cinismo chegou mesmo a ser determinada, em alguns casos, como
heresia (vide o caso dos Turlupins). Não deixa de ser desprovido de
interesse recordar ainda que tal dicotomia na recepção do cinismo chegou até a contemporaneidade. Basta nos lembrarmos do projeto de
Peter Sloterdijk de recuperar o pretenso potencial disruptivo da crítica
cínica aos costumes e à moral, a fim de contrapô-lo ao cinismo próprio
à ideologia do capitalismo contemporâneo. No entanto, essa contraposição simples talvez passe ao largo da verdadeira questão.
Diógenes Laércio, Vie, doctrine et sentences des philosophes illustres, cit., p. 30.
G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 524; Phänomonologie des Geistes, cit.,
p. 345.
25
26
52 • Cinismo e falência da crítica
Diógenes e a lanterna de Diderot
Como não poderia deixar de ser, essa clivagem continuou como
pano de fundo para a recuperação do cinismo pelo Iluminismo francês.
No entanto, nas mãos de Diderot, ela será usada de maneira bastante
específica, ou seja, para tematizar uma possibilidade sempre aberta de
interversão do trabalho crítico do Esclarecimento em seu contrário,
interversão da crítica em preservação do que deveria ser descartado.
Foi dito anteriormente que a recuperação do cinismo fora importante para a constituição dos móbiles da crítica iluminista. No entanto,
essa aproximação entre Iluminismo e cinismo não foi um processo simples, já que também se inscrevia em uma economia de desqualificação
das Luzes pelos anti-iluministas. Nesse sentido, a posição ambígua de
Voltaire e de Rousseau (que chegou a ser chamado por Kant de Diógenes
sutil em razão de sua moral de forte inspiração naturalista e por Frederico da Prússia de membro da seita de Diógenes em razão de seu modo
de criticar a cultura) em relação ao cinismo pode ser explicada. Já
D’Alembert tinha uma preferência bem conhecida pelo cinismo, no
qual ele reconhecia o ideal de autonomia. “Todo século”, dirá ele, “e
sobretudo o nosso, precisa de um Diógenes.27”
No entanto, é Diderot quem ocupa um lugar especial nessa discussão, não apenas pelas afinidades evidentes de sua escrita com a sátira
menipeia, mas sobretudo por sua reflexão a respeito da herança cínica
nas aspirações críticas do Iluminismo. De fato, o sarcasmo cínico diante das imposturas do poder aparece para Diderot como método e a moral naturalista aparece como um certo horizonte de reconciliação. O que
pode explicar por que o artigo da Enciclopédia dedicado aos cínicos
termina com um elogio a esses “entusiastas da virtude”, capazes de
“transportar para o meio da sociedade os costumes do estado de
natureza”28. Mas Diderot compreendeu, na aurora das Luzes, que uma
crítica inspirada nos móbiles do cinismo grego poderia nos levar a um
impasse. Nesse sentido, O sobrinho de Rameau é, sem dúvida, um
Citado por Jean D’Alembert em Essai sur la societé des gens de lettres et des grands, disponível em <http://membres.lycos.fr/almasty/dalessai.htm>.
Denis Diderot e Jean D’Alembert, Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des
arts et des métiers (Paris, Veyrier, 1965), v. IV, p. 198.
27
28
Dialética, ironia, cinismo • 53
documento central. Pois podemos lê-lo como o exemplo mais claro da
afirmação de Niehues-Pröbsting:
No cinismo, o Iluminismo descobre o perigo de uma razão pervertida,
razão a transformar-se em irracionalidade, razão a frustrar-se por suas
expectativas muito exaltadas. O Iluminismo conscientiza-se dessa ameaça
por sua afinidade com o cinismo. A reflexão sobre o cinismo providencia uma peça necessária de autorreconhecimento e autocrítica.29
Notemos, no entanto, que a peculiaridade de Diderot é não organizar o embate entre falso cinismo e crítica inspirada no “verdadeiro”
cinismo a partir da figura da exterioridade indiferente. Diderot procura
criar uma situação na qual nos deparamos não apenas com uma perversão da crítica, mas com uma interversão da crítica através de sua própria
realização. Ou seja, não se trata apenas de mostrar a inefetividade de
uma moralidade que procura orientar-se a partir da aplicação de critérios
normativos abstratos, expondo assim o caráter formal dos valores que
guiam a crítica ilustrada. Trata-se de mostrar que o fundamento de tal
moralidade pode acomodar-se a disposições absolutamente contrárias
umas às outras, sem que isso seja alguma forma de “contradição performativa”. Atentemos para a peça a fim de compreendermos do que trata
esse modo de interversão.
A estrutura da peça é bem conhecida. Dois personagens encontram-se no Café Regence, perto do Palais Royal: um (eu) é honnête
homme e filósofo esclarecido com aspirações moralizantes; outro (ele) é
Jean-François Rameau, músico medíocre, inconstante, amoral, sobrinho do grande Jean-Phillipe Rameau e figura sempre presente nos salões
da nobreza em razão de seu infinito poder de bajulação. A peça inteira
é um grande diálogo entre os dois, no qual é questão da vida dos salões
parisienses, das querelas musicais da época e, principalmente, do modo
como o sobrinho realiza de maneira invertida todos os argumentos
29
Heinrich Niehues-Pröbsting, The modern reception of cynicism, em R. Bracht Branham
e Marie-Odile Goulet-Cazé (org.), The cynics, cit., p. 333. Como dirá também Torres
Filho a respeito da peça de Diderot: “A Ilustração morde sua própria cauda e gera seu
Outro, mas sem que esse Outro, por ser gerado por ela, lhe seja necessariamente dócil”
(Ensaios de filosofia ilustrada, cit., p. 69).
54 • Cinismo e falência da crítica
morais do filósofo esclarecido30. Daí o texto da peça ser todo construído
a partir da dinâmica de espelhamento contínuo.
Esse espelhamento indica um confronto perpétuo articulado em
solo comum, já que tanto a posição do sobrinho quanto a posição do
filósofo são articuladas sob a égide do cinismo. O sobrinho chega a
dizer, no início da peça, que “estaria melhor entre Diógenes e Frinéia,
pois sou atrevido como o primeiro e frequento com gosto a casa dos
outros”31. No fim da peça, o filósofo procura inverter a direção e convocar o cinismo para servir de base de crítica ao amoralismo cínico do
sobrinho: “Há um ser dispensado da pantomima. É o filósofo [cínico]
que nada tem e nada demanda”32. Como se, novamente, um falso e um
verdadeiro cinismo estivessem postos em rota de confrontação. O que
corrobora aquilo que havia sido escrito no capítulo da Enciclopédia dedicado ao cinismo: “Os falsos cínicos foram um populacho de bandidos
travestidos de filósofos, e os cínicos antigos, pessoas muito honestas que
não merecem senão uma censura à qual geralmente não se encoraja: é a
de terem sido entusiastas da virtude”33.
No entanto, não é apenas sobre a compreensão do cinismo que se
funda tal espelhamento. Vários outros pontos aparecem na peça a fim
de reforçar a noção do sobrinho como certa imagem invertida do filósofo. Ele tem a mesma formação que o filósofo esclarecido (lê Teofrasto,
La Bruyère e Molière). Os dois partilham o mesmo ceticismo em relação
aos valores estabelecidos da vida social. “Defender a pátria?”, pergunta,
por exemplo, o filósofo. “Vaidade. Não há mais pátria. De um polo a
outro, eu só vejo tiranos e escravos”34, responde Rameau. Acrescente-se
a essa lista o mesmo desprezo em relação à moral sexual e aos valores
religiosos. Proximidades ainda mais acentuadas se lembrarmos que várias afirmações e posições de Rameau são partilhadas pelo próprio
Até porque, como nos lembra Peter Bürger, o problema central do livro consiste em
saber “se há realmente uma fundamentação racional da moralidade que não entre em
conflito com os interesses do agente individual” (The decline of modernism, University
Park, PA, Pennsylvania State University Press, 1992, p. 78).
Denis Diderot, Le neveu de Rameau (Paris, Flammarion, 1983), p. 49.
Ibidem, p. 129.
Denis Diderot e Jean D’Alembert, Encyclopédie..., cit., v. IV, p. 198.
Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 75-6.
30
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Dialética, ironia, cinismo • 55
Diderot em outros escritos, como é o caso dos julgamentos musicais de
Rameau contra seu tio. É tal espelhamento que leva Diderot a afirmar:
“Ó louco, arquilouco, como é possível que na sua cabeça ruim se encontrem ideias tão justas misturadas com tanta extravagância”35.
De maneira esquemática, podemos dizer que a peça começa a partir da defesa, feita por Rameau, de exigências de autenticidade através
da procura pela satisfação irrestrita e da consequente crítica à tentativa
de avaliar a existência a partir de valores morais. O filósofo procura
contrapor-se, tentando fundamentar valores morais de aspiração universalizante. Rameau passa à crítica ao filósofo fazendo profissão de fé
realista e afirmando que a consciência imersa nas condições cotidianas
de interação social não regula a ação a partir de tais valores. O filósofo
reconhece a excepcionalidade da conduta virtuosa. Coisa de gente
bizarra, chega a dizer. Isso abre as portas para que Rameau lembre:
“Você crê que a mesma felicidade é feita para todos. Que visão
estranha!”36. Em vez de tentativas de universalização de uma moralidade
que, ao ser aplicada à vida social, só serve como máscara para interesses
particulares, melhor seria zombar dessas determinações normativas que
a razão procura enunciar. O filósofo tenta salvar o fundamento de
valores morais ao insistir na existência de uma hierarquia entre prazeres
sensíveis e prazeres da virtude. Ao que Rameau replica novamente, mostrando que os prazeres sensíveis não implicam perda da autonomia e da
autenticidade. Não se é mais autônomo guiando a conduta a partir da
virtude e rebaixando os prazeres sensíveis.
Dessa forma, o filósofo é obrigado a afirmar: “Havia em tudo isso
muita coisa que se pensa, pelas quais se conduz, mas que não se diz. Ele
reconhecia vícios que outros têm, mas não era hipócrita. Não era nem
mais nem menos abominável que eles, mas apenas mais franco e mais
consequente, e algumas vezes profundo em sua depravação”37. Ou seja,
não se tratava de hipocrisia no caso de Rameau. O que não deve nos
surpreender. Afinal, a hipocrisia é uma das múltiplas máscaras da insinceridade dos que escondem a particularidade do interesse por meio da
universalidade do dever; máscara que cai mediante uma crítica capaz de
Ibidem, p. 69.
Ibidem, p. 75.
Ibidem, p. 119.
35
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56 • Cinismo e falência da crítica
desvelar os verdadeiros interesses por trás da aparência de universalidade.
No entanto, isso não pode dar conta da posição de Rameau, fundada toda
ela na franqueza da enunciação da verdade, nessa “franqueza fora do
comum”38 que faz tremer o filósofo por não ver seguir-se dessa enunciação
a reorientação da conduta que normalmente poderíamos esperar.
Nada pode dizer-lhe [a consciência simples e honesta do filósofo] que
ele mesmo [Rameau] não saiba e não diga [...], essa consciência [o filósofo], enquanto supõe contradizer o conteúdo do discurso do espírito, apenas o resumiu de uma maneira trivial, carente de pensamento
[gedankenlos].39
Como nos lembra Rubens Torres Filho: “O cínico adere a seu discurso a tal ponto que não mente: não fala contra a verdade, pois não fala
em nome dela; não é moral nem imoral, pois não opera sobre o pressuposto dessa distinção, não é hipócrita: não esconde seu ser verdadeiro,
pois não é nada, ‘no fundo’, não tem nenhuma essência”40. À sua
maneira, Diderot já nos coloca, na aurora das Luzes, diante de uma
“falsa consciência esclarecida”, alguém que fala como um aufklärer e age
como uma falsa consciência, clivagem que levou Hegel a ver aqui o
exemplo supremo de uma “consciência dilacerada”, mas sem a tragédia
de uma consciência infeliz.
Devemos insistir na ideia de que essas confrontações entre Rameau
e o filósofo não são meras contraposições. Podemos falar, nesse caso, em
interversão, porque as duas posições, longe de serem simplesmente contrárias, fundamentam seus critérios de julgamento e crítica no mesmo
solo. De certa forma, os dois partilham a temática cínica da crítica ao
nomos em nome da recuperação da physis. Eles falam em nome do mesmo
fundamento, embora a partir de leituras conflitantes. “O que é uma boa
Ibidem, p. 62.
G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 523; Phänomenologie des Geistes, cit.,
p. 346.
Rubens Torres Filho, Ensaios de filosofia ilustrada, cit., p. 58. Donde se segue também o
diagnóstico de Paulo Eduardo Arantes: “O vazio, a vaidade tantas vezes salientada por
Hegel, da consciência dilacerada do sobrinho, que carece da experiência perversa – a nos
fiarmos na tradução de Verkehrung por perversão, proposta por Hyppolite – da vacuidade
de todas as coisas para forrar sua própria consciência, espelha-se no formalismo discursivo, bem falante da raciocinação” (Ressentimento da dialética, cit., p. 35).
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Dialética, ironia, cinismo • 57
educação”, diz Rameau, “a não ser aquela que conduz a todas as formas de gozo, sem perigo e sem inconveniente”41. Nesse caso, a physis
aparece como espaço de retorno a um gozo dos sentidos impossibilitado pela moralidade: “Beber bom vinho, engalfinhar-se com belas
mulheres, dormir em leitos bem macios: o resto é vaidade”42. Como
se o sobrinho apenas atualizasse esta crítica ao nomos que Cálicles faz,
diante de Sócrates:
Aquele que quiser viver corretamente sua vida deve, de um lado, deixar suas paixões serem as maiores possíveis e não mutilá-las; ser capaz,
por outro lado, de pôr a serviço dessas paixões as forças de sua energia
e inteligência. Em suma, dar a cada desejo a plenitude da satisfação
[...]. Sensualidade, licença, liberdade sem reservas: eis a virtude e a
felicidade! Quanto ao resto, quanto a essas belas convenções humanas
que estão em oposição com a natureza, isso é apenas falatório e não
tem valor algum.43
Contra essa physis que legitima uma ética do excesso e do gozo, o
filósofo procura retomar a moral naturalista cínica articulada a partir da
apatia e da dominação de si. E, de fato, esse cinismo, o sobrinho parece
desconhecer. O filósofo dirá: “Há um ser dispensado da pantomima [e
da lisonja]. É o filósofo [cínico] que nada tem e nada demanda [...].
Diógenes zombava das necessidades”44. Pois, como sabemos, o recurso
cínico à physis significa “restrição”, restringir o desejo àquilo que é prescrito pela natureza. Mas o filósofo ver-se-á obrigado a entrar continuamente em contradição em razão do caráter absolutamente abstrato, a
respeito do qual já falamos anteriormente, dessa natureza negativa. Isso
o leva, em vários momentos, a abraçar as posições do próprio Rameau:
“Eu não desprezo os prazeres dos sentidos”, dirá o filósofo.
Tenho também um palácio e ele é embelezado por iguarias delicadas e
um vinho delicioso. Tenho um coração e olhos, e amo ver uma bela
Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 121.
Ibidem, p. 75.
Platão, “Gorgias”, em Oeuvres complètes (Paris, Gallimard, 1950), Bibliothèque de la
Pléiade, 492C.
Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 130.
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58 • Cinismo e falência da crítica
mulher. Amo sentir em minhas mãos a harmonia e a delicadeza de sua
garganta, pressionar seus lábios contra os meus, alimentar a volúpia
em seus olhos e esgotá-la entre meus braços.45
Como se o filósofo ilustrado mostrasse com isso a consciência de
que a fundamentação da crítica em uma moral naturalista só pode nos
levar a uma constante interversão. É nesse sentido que devemos compreender a colocação de Hegel:
Esse espírito [próprio ao sobrinho de Rameau] é essa absoluta e universal inversão e alienação [Verkehrung und Entfremdung] da efetividade
e do pensamento; a pura cultura. O que neste mundo se experimenta
é que não tem verdade nem as essências efetivas do poder e da riqueza,
nem seus conceitos determinados, bem e mal, ou a consciência do
bem e a consciência do mal, a consciência nobre e a consciência vil;
senão que todos esses momentos se invertem, antes, um no outro, e
cada um é o contrário de si.46
Essa absoluta e universal inversão e alienação da efetividade é fruto
de um certo descompasso do fundamento consigo mesmo, formalismo
do fundamento que faz com que toda tentativa de articulação entre
Ideia e efetividade seja, por sua vez, marcada pela experiência da inadequação e da indeterminação. Como se os problemas nos modos de indexação entre fundamento e efetividade fossem figuras da instabilidade
do próprio fundamento. É o reconhecimento e a implementação dessa
instabilidade do fundamento que produz a passagem da ironia, pensada
como exercício regional de estilização do bloqueio na efetivação da
Ideia, para o puro e simples cinismo.
Em virtude dessa indeterminação no próprio fundamento, Diderot
pode estetizar, através de O sobrinho de Rameau, um movimento de
ironização resultante da inversão de nossos modos de indexação entre
critérios normativos e consequências da ação, sem que isso implique
Ibidem, p. 77.
G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 521; Phänomenologia des Geistes,
cit., p. 343. Ou ainda: “O conteúdo do discurso que o espírito profere de si mesmo e
sobre si mesmo é, assim, a inversão de todos os conceitos e realidades, o engano universal de si mesmo e dos outros. Justamente por isso, o descaramento de enunciar essa
impostura é a maior verdade” (ibidem, par. 522; ibidem, p. 344).
45
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Dialética, ironia, cinismo • 59
necessariamente uma contradição performativa, ou seja, uma contradição
entre aquilo que faço e que aquilo que digo. Ironização significa, assim,
ruptura entre expectativas de validade e determinações fenomenais, ruptura
que é uma contradição posta que visa aparecer como contradição resolvida. Contradição resolvida no realismo cínico de quem diz: “Estive um
dia à mesa de um ministro espirituoso do rei de França, bem, ele nos
demonstrou, claro como um e um são dois, que nada era mais útil ao
povo que a mentira, nada mais nocivo que a verdade”47. Essa inversão
dos modos de indexação entre critérios normativos e consequências da
ação é uma perspectiva privilegiada de abordagem do problema contemporâneo que definimos como “cinismo”.
Mas, dito tudo isso, qual será exatamente a crítica de Hegel? Ela
está sintetizada da seguinte forma:
Enquanto conhece o espiritual pelo lado da desunião e do conflito
[Widerstreits] – que o Si unifica em si –, mas não o conhece pelo lado
dessa união, sabe muito bem julgar o substancial, mas perdeu a capacidade de apreendê-lo [zu fassen]. Essa vaidade necessita, pois, da vaidade de todas as coisas para proporcionar-se, a partir delas, a consciência
do Si: ela mesma, portanto, produz essa vaidade e é a alma que a
sustém [...]. Esse Si é a natureza dilacerada em si mesma [die sich selbst
zerreissende Natur] de todas as relações e o dilacerar consciente delas [...].
Naquela vaidade todo conteúdo se torna um Negativo, que não se
pode mais apreender [gefasst] positivamente. O objeto positivo é só
o puro eu mesmo, e a consciência dilacerada é, em si, essa pura igualdade-consigo-mesma [selbstgleichheit] dessa consciência-de-si que a
si retornou.48
Há dois elementos importantes aqui. Por um lado, Hegel afirma
que a consciência conhece a efetividade como espaço de desunião e
inversão constante de determinidades. Ela se vê diante de uma realidade
incapaz de responder a expectativas de validade com aspirações universalizantes e por isso passa à “dissolução irônica do determinado e do que
Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 50.
G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 526; Phänomenologie des Geistes, cit.,
p. 347-8.
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60 • Cinismo e falência da crítica
é em si substancial”49. No entanto, essa consciência não apreende o que
conhece, pois não vê o conflito, que permite a inversão de tudo em seu
contrário, como o resultado de uma desarticulação dos princípios de
orientação do pensar da própria consciência. De certa forma, como nas
críticas hegelianas ao ceticismo, a consciência não leva tal enunciação
da contradição e do conflito suficientemente longe. Pois ela continua a
julgar a efetividade a partir de critérios “naturalizados” de determinação
do sentido de operações como a contradição, a identificação e a identidade. A dissolução da determinidade é feita em nome de uma noção de
identidade que só tem realidade reguladora. Tal como no ceticismo, o
cinismo é continuação do princípio de identidade por outros meios. E,
neste ponto, Hegel recorre novamente a sua crítica padrão contra a
ironia. Crítica que consiste em afirmar que a negatividade da dissolução
irônica das determinidades é feita graças à posição do Eu como único
objeto positivo.
Uma das maneiras de compreendermos o que Hegel tem em vista
poderia ser lembrando que a crítica à inautenticidade de toda determinação social exige a entificação de um conceito não problematizado de
autenticidade. De qual posição de exterioridade a crítica pode denunciar a inautenticidade da totalidade do existente? Resposta hegeliana: de
uma posição que conserve o Eu como subjetividade autêntica, como
unidade imediata e autoidêntica.
No entanto, tais colocações soam aparentemente estranhas. Pois
não é certo que o sujeito irônico conserve certa autoidentidade própria
ao Eu para além da dissolução de toda substancialidade. Ao contrário,
se voltarmos os olhos mais uma vez para o cinismo grego, já veremos aí
uma aparente problematização da noção de autoidentidade. Sabemos
que a parresia cínica enquanto prática de formação daquele a quem o
falar da verdade se endereça estava absolutamente indissociada do riso.
Pois o falar franco cínico é solidário dos usos corrosivos do sarcasmo,
do escárnio, da sátira, da paródia e da diatribe. O humor aparecia como
a maneira correta de dizer aquilo que é da ordem da verdade, humor
que inverte designações e esvazia significações. O que explica por que
as formas da transmissão filosófica dos cínicos estavam todas vinculadas
49
Idem, Vorlesungen über die Ästhetik, cit., v. I, p. 99.
Dialética, ironia, cinismo • 61
a modos humorísticos. Sabemos, por exemplo, que Crates e Menipo
deram à sátira (a ponto de falarmos de sátira menipéia como gênero)
uma função central como modo de escrita filosófica. Podemos dizer que
Diógenes eleva o chiste e os jogos de palavras a regimes privilegiados de
enunciação da verdade. Assim, se é certo, como diz Foucault, que a
parresia é indissociável de uma prática de formação daquele a quem o
falar da verdade se endereça, então devemos tirar as consequências do
fato desse processo de formação dar-se pelas vias do riso.
Nesse sentido, Bakhtin chega a ver, na forma humorística dos
filósofos cínicos, as primeiras marcas do humor popular contra as
instaurações do gênero épico: “É precisamente o humorista que destrói o gênero épico, e geralmente destrói toda distância hierárquica”50.
No entanto, nesse processo de destruição, até mesmo a fixidez da
imagem de si, imagem construída no gênero épico por meio da identificação com uma missão simbólica que deve ser assumida pelo sujeito, é abalada. Isso permite que o sujeito “adquira a iniciativa ideológica e linguística necessária para mudar a natureza de sua própria
imagem”51 continuamente.
Esse é um dado que encontramos no próprio sobrinho de Rameau.
“Nada é mais dessemelhante dele mesmo do que ele mesmo”, dirá o
filósofo. “Trata-se de um composto de altivez e baixeza, de bom-senso
e desrazão. É necessário que as noções de honesto e desonesto estejam
estranhamente embaralhadas em sua cabeça.52” Ou seja, Rameau fornece uma imagem dilacerada de si, imagem irônica que não se acomoda a
nenhum princípio de identidade. O próprio Hegel verá aqui as marcas
de uma ironização absoluta que não é outra coisa que uma linguagem
do dilaceramento de si, na qual:
uma só e mesma personalidade [Persönlichkeit] é tanto sujeito quanto
predicado. Mas esse juízo idêntico é, ao mesmo tempo, o juízo infinito; pois essa personalidade está absolutamente cindida, e o sujeito e o
predicado são pura e simplesmente entes indiferentes que nada têm a
Mikhail Bakhtin, The dialogical imagination: four essays (Austin, University of Texas
Press, 1980), p. 23.
Ibidem, p. 38.
Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 46.
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62 • Cinismo e falência da crítica
ver um com o outro, a ponto de cada um ser a potência de uma personalidade própria.53
Maneira hegeliana de afirmar que as determinações atributivas do
predicado estão cindidas em relação à ideia que se aloja na posição de
sujeito. É isso que Hegel tem em vista ao afirmar que o ser para-si se
põe como objeto enquanto Outro. Em um contexto diverso, isso poderia ser a própria realização do conceito de Espírito, até porque essa
cisão é consciente-de-si, ela não se dá mais às costas da consciência. A
infinitude da distância entre sujeito e predicado poderia ser manifestação de uma “negatividade infinita absoluta”, que encontra enfim
uma determinidade. No entanto, de uma forma muito peculiar, Hegel
age como quem diz que essa cisão absoluta é apenas nostalgia de uma
unidade bloqueada; unidade que continua a orientar os julgamentos
da consciência.
Natureza e música
Neste ponto, podemos retornar ao texto de Diderot pela última
vez. Pois o texto desenvolve-se em direção a uma certa reconciliação
inusitada que pode dizer muito a respeito do problema que Hegel tem
em mente. Depois de uma longa série de confrontações, Rameau e o
filósofo encontram, quase no fim da peça, um terreno de concórdia.
Ele está presente no campo dos julgamentos estéticos. Trata-se da discussão a respeito da música. Isso a ponto de o filósofo afirmar: “Como
é possível que com um tato tão fino, uma sensibilidade tão grande
para as belezas da arte musical, você seja tão cego para as belas coisas
em moral, tão insensível aos charmes da virtude?”54. Podemos mesmo
dizer que as digressões sobre música não são extemporâneas ao embate central do texto, mas revelam um fundamento não problemático
presente no solo estético. No entanto, esse terreno da crítica estética
fica como promessa não realizada na efetividade da vida social. O filósofo gostaria de fundar julgamentos morais a partir da natureza,
G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 526; Phänomenologie des Geistes, cit.,
p. 345.
Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 116.
53
54
Dialética, ironia, cinismo • 63
recorrendo, com isso, à transformação de julgamentos estéticos em base
para a racionalização de julgamentos morais. Pois, através da estética, a
ordem natural aparece como conceito normativo.
Lembremos como, ao falar da música italiana, o sobrinho dirá:
“Que verdade! Que expressão!”55. Mais à frente, ele advertirá: “Creia em
tudo o que disse, pois é a verdade”56. E ainda: “O verdadeiro, o bom, o
belo têm seus direitos”57. Que o vocabulário da expressividade da verdade saia da boca deste antifilósofo cínico, eis algo que deve surpreender.
Ainda mais que, durante toda a digressão sobre a música, os polos se
invertem no interior da peça. Ao perguntar: “Qual é o modelo do
músico quando ele faz um canto?”, o filósofo reconhece sua inabilidade
para responder à questão e ouve atentamente a intervenção segura do
sobrinho, que dará uma aula sobre “a verdade em música”, pois é do
“canto verdadeiro”, do “sublime” que será questão em sua intervenção.
E o que diz o sobrinho? Diderot serve-se dele aqui para dar vazão a
sua posição a respeito da querela que contrapunha Jean-Phillipe Rameau
e os defensores da ópera italiana, como Rousseau e Grimm. Grosso
modo, trata-se de uma contraposição entre, de um lado, uma noção de
modernidade musical vinculada ao primado da harmonia e das regras
estritas de uma progressão harmônica derivada da teoria fisicalista do
som – harmonia que abria as portas para uma polifonia contrapontística
controlada pelo centro harmônico e para uma definição de estruturação
da forma musical absolutamente autônoma em relação a tudo que seria
extramusical – e, de outro, uma reação que insistia no primado da
melodia e da simplicidade monofônica inspirada no canto. Posição
rousseaunianista que Dahlhaus caracterizou bem:
Um sentimentalismo que ama ver-se estimulado pela música, um
racionalismo que quer programas, uma pintura musical na música
instrumental e a nostalgia de uma antiguidade que opõe, à polifonia
moderna, confusa e savant, uma simplicidade tocante da monofonia
grega – eis os compostos da estética musical de Rousseau.58
Ibidem, p. 106.
Ibidem, p. 107.
Ibidem, p. 109.
Carl Dahlhaus, L’idée de la musique absolue (Genebra, Contrechamps, 1997), p. 49.
55
56
57
58
64 • Cinismo e falência da crítica
Para Rousseau, tratava-se de, pela defesa da centralidade da melodia,
sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo entre música e expressão natural da linguagem com suas entonações e
acentos. Isso lhe permitia vincular a música a uma pedagogia da arte capaz
de servir de veículo de formação moral por recuperar o elo entre natureza
e cultura59. De maneira surpreendente, é a esta vertente que o sobrinho
de Rameau se vinculará (neste sentido, contra seu tio): a verdade da
procura da autenticidade que se perdeu no interior das práticas sociais.
Lembremos por exemplo o que diz Rameau sobrinho a respeito da questão “qual é o modelo da música e do canto?”: “É a declamação [...],
quanto mais essa declamação for forte e verdadeira, quanto mais o canto
que a ela se conforma cortá-la em um maior número de pontos, mais o
canto será verdadeiro e belo”60.
Estas não parecem palavras de um cínico desencantado. Mas elas nos
revelam que o impulso cínico de ironização absoluta das condutas pode
conviver com uma nostalgia da verdade e da identidade como expressão
imanente que se guarda na arte. Talvez isso nos permita ver no cinismo
não exatamente um amoralismo, mas uma espécie de hipermoralismo
que reconhece sua impossibilidade de realizar-se no campo da convivência social e que, com isso, pode voltar-se, por exemplo, para uma
hipermoralização da arte. O rousseaunianismo musical do sobrinho de
Rameau, aliado ao seu “naturalismo” moral (resultante, na verdade, da
Lembremos o que diz Rousseau: “Quando pensamos que, de todos os povos da terra, de
todos que têm uma música e um canto, os europeus são os únicos que têm uma harmonia, acordes, achando essa mistura agradável; quando pensamos que o modo durou
tantos séculos sem que, em todas as nações que cultivaram as belas-artes, nenhuma tenha conhecido essa harmonia, que nenhum animal ou pássaro, nenhum ser na natureza
produziu outro acorde que o uníssono ou outra música que a melodia; que as línguas
orientais, tão sonoras, tão musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram esses povos
voluptuosos e apaixonados em direção a nossa harmonia; que sem ela suas músicas tiveram
efeitos tão prodigiosos; que com ela a nossa tenha efeitos tão fracos; que, enfím, estava
reservado aos povos do Norte, cujos órgãos duros e grosseiros são mais tocados pelos
ruídos e explosões de vozes do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexões,
fazerem essa grande descoberta e defini-la como princípio de todas as regras da arte;
quando, digo eu, levamos tudo isso em consideração, é muito difícil não desconfiar que
toda a nossa harmonia é uma invenção gótica e bárbara a respeito da qual nunca seríamos
avisados se fôssemos mais sensíveis às verdadeiras belezas da arte e à música realmente
natural” (Dictionnaire de musique, Paris, Actes Sud, 2008, p. 54).
Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 106.
59
60
Dialética, ironia, cinismo • 65
transformação das relações do capitalismo em “história natural”), expõe,
na dissociação de polos, o caráter contraditório do recurso à natureza
positiva enquanto fundamento da norma social. É essa contradição que
impulsiona a negatividade de Rameau. Uma negatividade que, por
formalizar-se como ironização, tende a realizar-se apenas como estetização da impossibilidade de identidade.
Essa hipóstase de exigências de autenticidade do agir individual em
uma época marcada pela consciência da desagregação da substância
normativa social leva ao impasse de uma indeterminação constante
estetizada sob a forma da ironização. Tal situação se torna explosiva em
uma sociedade, como a nossa, em que “o individualismo romântico se
tornou projeto generalizado e em que as coerções morais foram amplamente decompostas”61. No entanto, como veremos no próximo capítulo, de nada adianta procurar substituir o apelo à autenticidade do agir
individual pela crença no potencial conciliador de critérios normativos
assegurados intersubjetivamente.
61
Axel Honneth, “Patologias da liberdade individual”, Novos Estudos, n. 66, jul. 2003, p. 87.
Was ist Zynismus?
Não é quando é perigoso dizer a verdade
que ela raramente encontra defensores,
mas sim quando é enfadonho.
Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano
Sobre a noção de razão cínica
Uma discussão sobre as configurações contemporâneas do cinismo não tem como deixar de levar em consideração certos modos de
encaminhamento que nortearam o projeto deste livro, que, para o
bem ou para o mal, funcionou como catalizador do debate: Crítica
da razão cínica, de Peter Sloterdijk. Nele, o autor parte da famosa
frase usada por Marx a fim de traçar os contornos do desconhecimento ideológico: “Eles não sabem, mas o fazem”. Uma certa leitura da afirmação nos levaria à ideia de que se trataria do desconhecimento da consciência em relação à estrutura social de significação
que determina o significado objetivo da ação. Ela não sabe o que
realmente faz, e isso em virtude de sua posição de suporte (Träger)
de determinações estruturais de reprodução da vida material que a
ultrapassam. Ela erra em uma errância que indica a distância entre
o que lhe aparece e o que determina os modos do aparecer. Conhecemos todos essa temática da alienação da falsa consciência no domínio das relações reificadas e da aparência socialmente necessária.
Alienação que indicaria, entre outras coisas, a incapacidade de compreensão da totalidade das estruturas causais historicamente determinadas que suportam a reprodução das relações sociais em todas as
suas esferas de valores.
No interior dessa leitura, o papel da crítica seria abrir espaço para
a apropriação autorreflexiva dos pressupostos determinantes da ação.
Apropriação que, por sua vez, pressuporia a possibilidade, mesmo que
utópica, de processos de interpretação capazes de instaurar um regime
68 • Cinismo e falência da crítica
de relações não reificadas que garantam a transparência da totalidade dos
mecanismos de produção de sentido. A crítica vira “descrição das estruturas que, em última instância, definem o campo de toda significação
possível”1. Uma das figuras dessa crítica poderia ser, por exemplo, uma
certa Erinnerung capaz de desvelar a história do desenvolvimento do
processo real de produção que deveria ser interiorizada pela consciência
de classe. Pensemos, por exemplo, em Lukács quando este afirma que
“a existência da burguesia pressupõe sua incapacidade de chegar à compreensão clara de seus próprios pressupostos sociais”2. Ou seja, a autocrítica da burguesia seria Erinnerung, rememoração e interiorização de
seus pressupostos; o que permitiria o estabelecimento das condições
para a ultrapassagem das ilusões burguesas e a reorientação da ação a
partir de um processo de historização reflexiva.
Levando tal esquema em conta, Sloterdijk pode afirmar ser o cinismo algo como uma ideologia reflexiva ou, ainda, uma falsa consciência
esclarecida. Posições resultantes de um tempo que conhece muito bem
os pressupostos ideológicos da ação, mas não encontra muita razão para
reorientar, a partir daí, a conduta. A noção de ideologia reflexiva, ou seja,
de ideologia que absorve o processo de apropriação reflexiva de seus
próprios pressupostos é astuta por descrever a possibilidade de uma
posição ideológica que porta em si mesma sua própria negação ou, de
certa forma, sua própria crítica. Já o termo aparentemente contraditório
falsa consciência esclarecida nos remete, como vimos no capítulo anterior, à figura de uma consciência que desvelou reflexivamente os móbiles que determinam sua ação “alienada”, mas mesmo assim é capaz de
justificar racionalmente a necessidade de tal ação. A crítica, por não
poder fazer apelo à dimensão de uma verdade recalcada pela construção
ideológica (já que tudo é posto pela consciência), perde sua eficácia para
modificar predisposições de conduta. Daí a noção de que o cinismo “é
a consciência infeliz modernizada sobre a qual a Aufklärung agiu ao
mesmo tempo com sucesso e em pura perda”3. É nesse sentido que
Bento Prado Jr., Alguns ensaios (São Paulo, Paz e Terra, 2000), p. 210.
Georg Lukács, História e consciência de classe (São Paulo, Martins Fontes, 2003), p. 417.
Peter Sloterdijk, Critique de la raison cynique (Paris, Christian Bourgois, 1987), p. 28.
Por sinal, essa é uma boa definição da consciência dilascerada que encontramos no capítulo anterior.
1
2
3
Was ist Zynismus? • 69
Sloterdijk pode dizer que, no cinismo, “eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo”. Como se houvesse uma profunda distorção performativa no cerne dos usos cínicos da linguagem.
O cinismo aparece assim como elemento maior do diagnóstico de
uma época na qual o poder não teme a crítica que desvela o mecanismo
ideológico. Até porque, como veremos, neste ínterim, o poder aprendeu
a rir de si mesmo, o que lhe permitiu “revelar o segredo de seu funcionamento e continuar a funcionar como tal”4. Tais colocações demonstram como a problemática referente ao cinismo nos leva ao cerne de
uma reflexão sobre os modos de funcionamento da ideologia em sociedades ditas “pós-ideológicas”, ou seja, sociedades que aparentemente
não fariam mais apelos à reificação de metanarrativas teleológicas enquanto fundamento para processos de legitimação e validade de estruturas da ação racional.
A obsolescência do mascaramento ideológico é um fenômeno mais
complexo do que a simples aceitação tácita de que a força prescinde de
toda necessidade real de justificação. O recurso constante, em situações
contemporâneas de afirmação da força, a critérios normativos e a valores
partilhados, mesmo que feitos de maneira meramente retórica, demonstra como as aspirações de legalidade continuam sendo peças fundamentais da lógica interna do poder. A obsolescência do mascaramento
ideológico apenas indica que, de uma certa forma, talvez da única forma
“realmente” possível, as promessas de racionalização e de modernização da
realidade social já foram realizadas pela dinâmica do capitalismo. Foram
realizadas de maneira cínica; o que significa que, de uma forma ou de
outra, elas foram realizadas.
Nesse sentido, não devemos perder de vista que o estudo do que
poderíamos chamar de razão cínica é um setor privilegiado dos modos
de articulação das expectativas emancipatórias da razão com uma teoria
do poder. Pois o cinismo é fundamentalmente um regime peculiar de
funcionamento do poder e da ação social que procura dar conta de
exigências partilhadas de legitimidade intersubjetivamente fundamentadas. Um regime que, na aurora do capitalismo, podia ainda aparecer
4
Slavoj ŽiŽek, “Fétichisme et subjectivation interpassive”, Actuel Marx, Paris, PUF, n. 34,
2003, p. 100.
70 • Cinismo e falência da crítica
como modo restrito de relação às expectativas normativas da razão apenas
em classes “ociosas” e “desterritorializadas”5, como vimos no capítulo
anterior a respeito do sobrinho de Rameau. No entanto, esse mesmo
regime foi capaz de, na fase atual do capitalismo, transformar-se, de
maneira cada vez mais visível, em modo hegemônico de relação à norma. Há uma história do cinismo marcada pela passagem de uma economia restrita a uma economia generalizada. Essa história ainda precisa
ser contada.
De qualquer forma, quando falamos que o cinismo é um regime
peculiar de relação à norma, devemos lembrar do sentido maior do que
está em jogo na noção de “relação”. Foucault, ao insistir na existência
de uma problemática vinculada aos modos de subjetivação, problemática necessariamente presente em todas as análises dos modos de sujeição a normas, códigos, leis e valores, abriu um campo profícuo de reflexão. Lembremos, por exemplo, sua insistência no fato de que:
Dado um código de ações e para um tipo determinado de ações (que
podemos definir por seus graus de conformidade e divergência em
relação a esse código), há diferentes maneiras de “conduzir-se” moralmente, diferentes maneiras de o indivíduo agente operar não apenas
como agente, mas como sujeito moral dessa ação.6
De fato, toda ação (e não apenas as ações que visam ser validadas
no campo moral) comporta uma relação significante aos critérios normativos aos quais ela se refere, mas há várias formas de posicionar-se
em relação a uma regra que seguimos. Em certos casos, alguns desses
posicionamentos podem ser contrários entre si, sem que isso implique
contradição em relação aos critérios tacitamente aceitos. Ou seja, a dimensão procedural da lei não condiz com uma visão unívoca de sua
dimensão semântica. Até porque não podemos retirar a ambiguidade
da dimensão semântica (principalmente em seu nível referencial) apenas por meio de procedimentos hermenêuticos. Como veremos, esse é
um fenômeno absolutamente relevante para nossa discussão a respeito
do cinismo.
A esse respeito, ver sobretudo Paulo Eduardo Arantes, “Paradoxo do intelectual”, em
Ressentimento da dialética (São Paulo, Paz e Terra, 1996).
Michel Foucault, Histoire de la sexualité II (Paris, Gallimard, 2000), p. 37.
5
6
Was ist Zynismus? • 71
Um problema de sinceridade?
Levando em conta tais discussões a respeito do desconhecimento
ideológico na dimensão do saber e dos problemas de consistência em
relação à regulação entre ação e critérios normativos, é possível apresentar
uma primeira definição operacional do cinismo – definição que guiará
nossos primeiros passos. Pois a ausência de desconhecimento implica,
entre outras coisas, a crença na possibilidade de um certo “dizer sobre a
verdade”, uma certa enunciação de valores e critérios que não exige
reorientação posterior do sistema de condutas. Dessa forma, o cinismo
pode ser visto como uma certa enunciação da verdade, mas uma enunciação que anula a força perlocucionária que poderíamos esperar desse
ato de fala. Na verdade, o desafio do cinismo consistiria em compreender atos de fala nos quais a enunciação da verdade anula a força perlocucionária da própria enunciação.
Nós nos sentimos normalmente reconfortados com a promessa de
que a verdade nos libertará, ou seja, de que a luz advinda com a enunciação da verdade será capaz de portar um acontecimento que reconfigura o campo da efetividade. No entanto, o cinismo coloca-nos diante
do estranho fenômeno da usura da verdade 7, de uma verdade que não
só é desprovida de força performativa, mas também bloqueia temporariamente toda nova força performativa. Em uma formulação feliz, Sloterdijk nos lembra que “há uma nudez que não desmascara mais e não
faz aparecer nenhum ‘fato bruto’ sobre o terreno no qual poderíamos
nos sustentar com um realismo sereno”8. Ela é importante por nos lembrar que não há, no cinismo, operação alguma de mascaramento das
intenções no nível da enunciação. Não se trata de um caso de insinceridade ou de hipocrisia. Ao contrário, mesmo que haja clivagens entre
a literalidade do enunciado e a posição da enunciação, essa clivagem é,
tal como na ironia, claramente posta diante do Outro. Assim como na
ironia, no cinismo o Outro percebe que o sujeito não está lá para onde
seu dito aponta.
Mas poderíamos afirmar que, se o cinismo é o que assim aparece,
então não se trata de um problema tão relevante. Pois a figura de uma
Tomo emprestada essa expressão de Bruno Hass.
Peter Sloterdijk, Critique de la raison cynique, cit., p. 30.
7
8
72 • Cinismo e falência da crítica
enunciação da verdade que anula a força perlocucionária da própria enunciação é uma velha conhecida, que tem a idade dos cretenses mentirosos. Pensemos, por exemplo, em uma antiga piada judia contada por
Freud: “Em uma estação ferroviária da Galícia, dois judeus se encontram em um trem. ‘Aonde você vai?’, pergunta um. ‘A Cracóvia’, é a
resposta. ‘Vejam só que mentiroso’, levanta-se o primeiro. ‘Se diz que
vai a Cracóvia, é porque quer me fazer acreditar que vai a Lemberg. Só
que sei bem que você vai realmente a Cracóvia. Então, por que mente?”9.
Estamos aí diante de um caso claro de enunciação da verdade que produz um efeito de mentira, invertendo, com isso, o próprio valor da verdade e retirando, assim, sua força perlocucionária. Esse efeito inverte o
valor da verdade ao sustentá-la.
No entanto, todo o problema vem do fato de o segundo judeu, este
que diz ir a Cracóvia, não ser um enunciador legítimo. Se quisermos
utilizar um conceito aristotélico maior para a retórica, diremos que seu
ethos não é adequado à enunciação da verdade, já que ele é reconhecidamente um mentiroso. É por saber-se reconhecido como um mentiroso que o segundo judeu pode ser cínico e inverter o valor da enunciação da verdade. Ele sabe que o outro levará em conta a distinção entre
o que é dito e a maneira disjuntiva com que o enunciador se vincula ao
dizer. Assim, ele pode mentir ao dizer a verdade, como poderia também dizer a verdade ao mentir. Nesse sentido, casos como esse nos
lembram que a verdade não é simplesmente um problema de descrição
adequada de estados de coisas, mas é também um problema de respeito
a critérios normativos de enunciação. Pois poderíamos ler esse exemplo
freudiano como um caso clássico de transgressão de um critério fundamental de enunciação, levantado há muito por John Austin, ou seja,
“é apropriado que a pessoa que profere a promessa [ou a justificação]
tenha uma determinada intenção, a saber, a intenção de cumprir com a
palavra”10. Como o próprio Freud nos lembra, a respeito de sua piada:
“Trata-se de verdade quando se descrevem coisas tais como elas são, sem
preocupar-se em saber como o auditor compreenderá o que é dito?”11.
Sigmund Freud, “Der Witz und seine beziehung zum Unbewussten”, em Gesammelte
Werke (Frankfurt, Fischer, 1999), v. VI, p. 127.
9
John Austin, Quando dizer é fazer (Porto Alegre, Artes Médicas, 1983), p. 38.
Sigmund Freud, “Der Witz und seine beziehung zum Unbewussten”, cit., v. VI, p. 128.
10
11
Was ist Zynismus? • 73
A resposta é trivialmente negativa, já que a enunciação da verdade não
é simplesmente um problema de adequação semântica ou de correção
sintática, mas fundamentalmente um problema de consistência de contextos de enunciação.
No entanto, vale a pena notar que essa noção de insinceridade como
estado intencional prévio ao ato traz alguns problemas. Pois ela só é acessível por meio do estabelecimento de contradições performativas, ou seja,
ela só aparece como efeito de um ato de fala. Como o próprio Habermas
nos lembra: “Que alguém pense sinceramente o que diz é algo a que só
se pode dar credibilidade pela consequência de suas ações, não pela indicação de razões”12, ou pela certeza de intenções, diremos nós. Isso nos leva
a colocar a questão de saber se não deveríamos simplesmente abandonar
o vínculo entre estado intencional e sinceridade em prol de uma noção
de sinceridade como efeito de discurso. Pois o recurso à sinceridade parte
do pressuposto de uma identidade imediatamente acessível entre a intencionalidade e a forma geral do ato, como se, em última instância, a consciência pudesse ter a convicção legítima de possuir a representação da
efetividade adequada à intenção de sinceridade.
Na verdade, a noção de sinceridade como condição fundamental
de produção do sentido está necessariamente vinculada àquilo que os
teóricos dos atos de fala chamam de “princípio de expressibilidade”13,
com sua definição de que sempre haverá um conjunto de proposições
intersubjetivamente partilhadas capaz de ser a exata formulação de um
determinado estado intencional. Essa sólida identidade é resultado de
uma certa pressuposição. No momento em que se engaja em um ato
de fala intencionalmente orientado, o sujeito sempre pode, de direito
mas nem sempre de fato, partir da pressuposição prévia de saber o que
quer dizer e como deve agir socialmente para fazer o que quer dizer. Em
situações de performatividade, o sujeito teria assim uma representação
Jürgen Habermas, Consciência moral e agir comunicativo (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989), p. 79.
Por “princípio de expressibilidade” entende-se que “para qualquer sentido X e qualquer
falante S, não importa o que S queira dizer (intenções a expor, desejos de comunicação
em uma sentença etc.) com X, é possível haver alguma expressão E, de maneira que E
seja a exata expressão ou formulação de X. Simbolicamente: (S) (X) (S significa X → P
[∃ E] [E é a expressão exata de X])” (John Searle, Speech acts, Cambridge, Cambridge
University Press, 1969, p. 20).
12
13
74 • Cinismo e falência da crítica
prévia e fundamentada não apenas do conteúdo intencional de seu ato
de fala, mas também das condições de satisfação de tal conteúdo. Esse
último ponto é o mais complexo. Por ser a fala, antes de mais nada, um
modo de comportamento governado por regras e por meu conhecimento
sobre o falar uma língua envolver necessariamente o domínio de um sistema de regras de ação social, seguiria daí que o sujeito que fala teria
sempre, de direito e previamente, a possibilidade de saber como tal
sistema de regras determina a produção do sentido da ação em geral e
dos atos de fala em particular.
No entanto, podemos lembrar que isso já demonstra como o estado
intencional de sinceridade é indissociável da repetição de um sistema de
disposição de conduta. Partindo desse reconhecimento, podemos dar um
passo a mais e ver, naquilo que chamamos de “sinceridade”, simplesmente o modo de repetição de tal sistema socialmente codificado. Sistema
naturalizado na forma de “background”, o que levaria para outro campo
o sentido de proposições que veem o background como:
um alicerce de capacidades mentais que, em si mesmas, não constituem estados intencionais (representações), mas, não obstante, formam as precondições para o funcionamento dos estados intencionais.
O Background é “pré-intencional” no sentido de que, embora não seja
uma forma ou formas de Intencionalidade, é, não obstante, uma precondição ou um conjunto de precondições de Intencionalidade.14
É verdade que, contra a tentativa de restringir a sinceridade à
mera repetição de sistemas socialmente codificados de significação de
disposições de conduta, teríamos defesas astutas de um conceito intencional de sinceridade como a apresentada por Austin. Segundo ele,
sem o recurso aos estados intencionais para a definição da significação
do ato, nunca poderíamos estabelecer com segurança uma diferença
entre “estar em um certo estado” e “fingir estar em um certo estado”.
Por exemplo, dois ladrões são surpreendidos tentando serrar uma grade e, para disfarçar, fingem estar serrando uma árvore. Mas para que
a simulação fique mais convincente, eles começam realmente a serrar
uma árvore. Por que podemos dizer que, mesmo serrando a árvore,
14
John Searle, Intencionalidade (São Paulo, Martins Fontes, 2002), p. 198.
Was ist Zynismus? • 75
eles estão fingindo serrar uma árvore? De certa forma, porque a sinceridade é uma questão de estado intencional. Daí Austin poder dizer
que “a essência do fingimento é que meu comportamento público
tenciona esconder [disguise] alguma realidade, geralmente algum
comportamento real”15. Ou seja, reencontramos aqui, novamente, um
conceito intencional de sinceridade.
Mas podemos também insistir em outro ponto: só sei que estou
diante de um caso de insinceridade porque posso estabelecer contradições entre um comportamento público e algo que Austin chama de
“comportamento real”, e que nada mais é que uma forma de comportamento socialmente pressuposta como índice de um estado intencional
determinado. Ou seja, dessa contradição entre consequências do ato e
expectativas socialmente naturalizadas nasce o julgamento sobre a sinceridade. Não há aqui nenhum recurso a algo para além de expectativas
de comportamento socialmente naturalizadas.
Por exemplo, se estivéssemos diante de ladrões que passam anos
serrando as árvores em volta da casa sem nunca tentar novamente serrarlhe a grade, poderíamos começar a nos perguntar se estamos realmente
diante de um caso de fingimento, já que nossas expectativas sociais não
aceitam como plausível que alguém passe anos fingindo para roubar
uma simples casa. Na verdade, poderíamos nos perguntar se os ladrões
austinianos realmente “sabem o que fazem”, até porque o fingimento
poderia ser apenas uma crença que funcionaria para encobrir, para o
próprio sujeito, um outro “estado intencional” (algo como: “creio que
estou fingindo à espera do melhor momento para o roubo, mas estou
na verdade usando o fingimento para adiar indefinidamente uma ação
que não quero fazer”). Há situações em que aquilo que me aparece
como meu estado intencional é tão opaco para mim quanto aquilo que
me aparece como estado intencional de um outro.
Isso poderia nos levar a afirmar que a intenção de sinceridade no
sentido psicológico do termo só pode ser dada se obedecer a condições
externas de adequação. Trata-se de uma questão de comportar-se de
certa maneira, já que o próprio estado intencional seria fundamentalmente uma disposição de comportamento. Dessa forma, para fazer a
15
John Austin, Philosophical papers (Oxford, Oxford University Press, 1961), p. 210-1.
76 • Cinismo e falência da crítica
partilha entre sinceridade e fingimento, deveríamos poder apelar para
um experimentum crucis 16, ou seja, uma ação não problemática no
que diz respeito ao estabelecimento de seu sentido. Mas não é certo que
ações dessa natureza existam em situações de julgamento de modos de
aplicação de valores complexos, como veremos a seguir.
Modelos de colônias internas
Aqui devemos lembrar que, mesmo que alguns casos de cinismo
sejam similares ao problema descrito através do exemplo freudiano,
há uma classe de situações realmente determinantes que não servem como
exemplo de desrespeito a critérios normativos de enunciação. E são
tais exemplos que realmente nos interessam. Para que o cinismo seja
um problema realmente relevante (e não apenas um problema vinculado à análise do comportamento social dos sujeitos em certas realidades em crise de legitimação), devemos mostrar a recorrência de
casos de enunciação da verdade que anulam a força perlocucionária
da própria enunciação sem, contudo, transgredir os critérios normativos
de enunciação e justificação.
Nesse sentido, em vez de tentar afastar o cinismo por alguma forma
de apelo à dimensão da intencionalidade, devemos compreender o cinismo como um problema de indexação. Trata-se fundamentalmente de
mostrar como valores e critérios normativos que aspiram à validade
universal podem indexar situações e casos concretos que pareceriam não
se submeter a tais valores e critérios. Trata-se, pois, de problematizar os
sistemas pressupostos de aplicação entre Lei normativa, valores e casos,
de mostrar que a indexação entre a significação da Lei e a designação do
caso não passa pelo esclarecimento semântico da Lei. Como se pudéssemos produzir uma espécie de “torção da Lei pelo aprofundamento de
suas consequências”17. Por isso, perderemos o foco da questão trazida
pelo cinismo se insistirmos em compreendê-lo como um simples caso
de contradição performativa. Ao contrário, o cinismo nasce da tentativa de mostrar que condições transcendentais normativas de julgamento
Ver Gilbert Ryle, The concept of mind (Londres, Penguin Books, 2000), p. 166.
Ver Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch (Paris, Minuit, 1969), p. 77.
16
17
Was ist Zynismus? • 77
podem ser seguidas, mas suas designações “normais” podem ser invertidas sem contradição entre ato e julgamento.
Podemos fornecer um modelo para essa maneira de encaminhar o
problema do cinismo. Podemos partir das exigências de validade de uma
norma moral com expectativas universais de validade como o princípio
de tolerância. Podemos também afirmar que, na significação do princípio, já encontramos, aparentemente, a designação de um modo de ação:
o respeito ao outro em sua singularidade. Ou seja, o princípio e sua prática procedural já portariam em si algo como uma validade semântica.
Mas “em certas situações especiais”, para defender o princípio de
tolerância, eu posso ser levado a ser intolerante com aqueles que são
contra o princípio de tolerância. Em defesa da tolerância, eu posso ser
levado a expulsar os intolerantes da minha comunidade. Dessa forma,
posso continuar sendo tolerante na dimensão dos critérios normativos,
mesmo sendo intolerante na dimensão da ação.
Por sinal, esse foi o caso da extrema direita holandesa encarnada por
Pim Fortuyn, morto dias antes da eleição que o levaria ao poder neste
que é o país formalmente mais tolerante do mundo. Sua própria figura
era um exemplo maior do que procuramos apreender. Tratava-se de um
populista de direita cujas características pessoais e opiniões eram em
grande parte politicamente corretas: era homossexual assumido, tinha
boas relações com imigrantes, um senso inato para a ironia etc. No
entanto, o núcleo de seu discurso era: “Os Países Baixos alcançaram um
alto grau de tolerância e liberdade. Não podemos perder tudo isso deixando que árabes intolerantes venham para cá. Em nome da tolerância,
devemos então ser intolerantes com os intolerantes. Nós já fomos muito
tolerantes com a intolerância”. Exemplo didático desse cinismo que
problematiza ao extremo a indexação entre significação da Lei e designação do caso.
Seria reconfortante imaginar que tais formas de inversão seriam obra
apenas de esquizofrênicos sociais que se travestem em radicais de extrema direta. No entanto, isso está longe de ser o caso. Poderíamos continuar arrolando exemplos estruturalmente semelhantes, como as declarações do ex-primeiro-ministro trabalhista e atualmente consultor do
JPMorgan, Tony Blair, a respeito do “dever de integração” que recai
sobre os ombros de todo muçulmano que resolveu emigrar para a Grã-Bretanha – uma discussão sobre a integração motivada pela eterna
78 • Cinismo e falência da crítica
querela sobre o uso de véus em lugares públicos. “Nossa tolerância”, dirá
Blair, “é parte do que faz da Grã-Bretanha a Grã-Bretanha. Conforme-se a isso ou não venha para cá. Nós não queremos os ‘hate-mongers’,
independentemente de sua raça, religião ou credo.18” “Conforme-se a
isso ou não venha para cá” é, de fato, e como todos podem ver, um
exemplo muito ilustrativo de tolerância.
Que nossos dois exemplos sejam estruturalmente semelhantes por
dizerem respeito à tolerância intolerante de nossas sociedades multiculturais com as massas de imigrantes, eis algo que não é um acaso. Lembremos de início que há algo extremamente instrutivo a respeito desses
exemplos. Conhecemos várias análises sobre a pretensa especificidade
dos modos de racionalização de países periféricos em relação aos centros
hegemônicos do capitalismo mundial. Nesses países e regiões, a regra
teria sido a importação de valores modernizadores no interior de realidades sociais refratárias e arcaicas. No entanto, ao invés de um “choque
de modernização”, produziu-se o mais das vezes um desenvolvimento
desigual e combinado no interior do qual as ideias parecem estar sempre
em descompasso em relação a seus destinatários e à efetividade. Descompasso cuja estetização perfeita seria a ironização que denuncia o
formalismo de um sistema de ideias que acaba por adaptar-se a uma
realidade social que lhe seria naturalmente contrária.
Todos conhecemos esse instrutivo esquema próprio a uma reflexão
sobre o caráter “fora de lugar” das ideias em sociedades periféricas e
como tais esquemas foram importantes para a construção do contexto
de recuperação hegeliana da dialética. Um caráter que também pode dar
conta de situações coloniais nas quais valores modernizadores metropolitanos são mobilizados para legitimar ações que normalmente lhe seriam contrárias – situações que acabam por consolidar estruturas sociais
duais que indicam a coexistência e a determinação recíproca do Centro
e da Periferia no mesmo espaço social. Tal determinação recíproca serviu para indicar como a racionalização de países periféricos teria produzido uma espécie de estrutura normativa dual em que a lei enunciada é
sempre acompanhada por um outro sistemas de regras, implícito, que
regula os processos efetivos de interação no campo social. Assim: “Sem
prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis
18
The Guardian, 9/12/2006.
Was ist Zynismus? • 79
saem de mãos dadas”19. Como se essa situação periférica desvelasse a
verdade do formalismo de uma civilização liberal capitalista capaz de
forjar valores produzidos para serem conjugados apenas no interior
de estruturas normativas duais.
Mas o que significa encontrarmos tais estruturas duais a regular os
processos de interação social em países ditos “centrais”, como se agora
a lógica das relações coloniais das antigas metrópoles aparecesse como
o modo hegemônico de funcionamento social nessas próprias metrópoles? Seria um caso de esvaziamento gradativo da substância normativa
da ordem constitucional ou estaríamos diante de algo mais essencial, algo
que diz respeito à própria dinâmica dos modos de racionalização e modernização no capitalismo avançado? Algo que indica certa patologia
social no interior de nossas formas de vida ligada à generalização de
estruturas normativas duais.
“Algo mais essencial” não está aqui por acaso. Podemos nos perguntar
se esse fenômeno que encontramos hoje de maneira cada vez mais hegemônica não seria o destino inelutável de um certo modo de compreender
processos de racionalização como processos de normatização e de constituição de quadros normativos tacitamente partilhados. Talvez estejamos
tão acostumados a compreender racionalidade como normatividade que nos
espantamos com situações nas quais o acordo intersubjetivo em relação a critérios e valores não nos leve a um acordo em relação aos modos de aplicá-los
ou, ao menos, a maneiras de retirar a ambiguidade de sua aplicação.
Por outro lado, vale sempre a pena lembrar que essas estruturas
duais nunca foram situações específicas de colônias, mas diziam respeito à natureza da relação orgânica entre metrópole e colônia. Ou seja, a
consciência “metropolitana” sempre foi afetada pela existência de tais
estruturas duais, mesmo que essa existência se revelasse de maneira mais
clara em localidades geográficas distantes. De qualquer forma, essa é
uma maneira de lembrar que a Lei nunca funcionou de acordo com seu
conceito. O que temos agora é o simples desdobramento de consequências de um fato posto há muito.
19
Roberto Schwarz, “As ideias fora de lugar”, em Ao vencedor as batatas (São Paulo, Duas
Cidades, 1977), p. 17. De fato, o tempo encarregou-se de mostrar que o esquema de
Schwarz não era adequado apenas para descrever o sistema de ideias em países periféricos, onde o liberalismo se combinava a práticas de que normalmente seria a crítica.
80 • Cinismo e falência da crítica
Indexar a Lei é uma questão de soberania
É verdade que, a princípio, afirmações dessa natureza parecem absolutamente inconsistentes. Pois é sempre possível contra-argumentar,
dizendo que a simples definição de uma enunciação como “cínica” já
pressupõe a identificação de contradições entre as condições normativas
de julgamento de um enunciado (ou “condições ideais de fala intersubjetivamente partilhadas”, se quisermos falar como Habermas) e seus modos
regulares de aplicação. Dizer que um ato de fala é cínico já implica o
reconhecimento da contradição entre fato e Lei. Nossa própria definição do cinismo como indexação de valores e critérios normativos a casos
que invertem a significação normalmente pressuposta parece falha. Pois
falar em “significação normalmente pressuposta” implica necessariamente
aceitar a existência de coordenadas gerais e seguras de indexação entre
enunciados, intenções, estrutura da ação e estados de coisas.
Essa aceitação da existência de coordenadas gerais e seguras de indexação é normalmente defendida relembrando discussões a respeito da
centralidade de noções similares ou convergentes com o conceito de
background na compreensão dos processos de produção do sentido. Ou
seja, podemos lembrar da pressuposição, em todo ato de fala, de um
“sistema de expectativas” fundamentado na existência de um saber prático cultural e de um conjunto de pressupostos que define, de modo
pré-intencional, o contexto de significação.
No entanto, devemos insistir que isso não pode servir como elemento para impedir a compreensão dos processos de interversões de indexações característicos do cinismo como exposição de problemas estruturais
em nossos modos de racionalização da dimensão prática. Primeiramente,
faz-se necessário lembrar que o background fundamenta princípios de
conversação cooperativa em operação nos usos ordinários da linguagem.
De fato, ele pode fornecer coordenadas gerais e seguras de indexação
entre enunciados, intenções, estrutura da ação e estados de coisas. Mas
tais coordenadas funcionam de maneira segura apenas nos limites dos
usos ordinários da linguagem e é um erro maior acreditar que a definição
do modo de aplicação de valores e critérios de racionalização segue a
lógica presente no uso ordinário da linguagem. Tanto é assim que, volto
a este ponto, podemos estar de acordo a respeito de critérios e valores
intersubjetivamente partilhados sem necessariamente estar de acordo a
Was ist Zynismus? • 81
respeito de seus modos de aplicação e dos casos corretos que por eles
podem ser indexados. Ou seja, estar de acordo a respeito de critérios e
valores não implica estar de acordo a respeito das estruturas de aplicação
entre normas de aspiração universalizante e casos concretos. Podemos
muito bem aceitar que as ordenações da sociedade “não são constituídas
independentemente de toda validez, como as ordenações da natureza, em
face das quais só adotamos uma atitude objetivante”20. Mas não se segue
daí que a existência de atores e ações capazes de seguir ou satisfazer as
normas possa garantir seus modos de indexação.
Na verdade, nada nos permite pressupor a existência de algo parecido a um background capaz de orientar nossos julgamentos em situações
complexas, que envolvem significação de valores e modos de aplicação
de critérios normativos de aspiração universalizante 21. Situações desse
tipo não podem ser desproblematizadas por meio do recurso ao esclarecimento de contextos, já que não estamos de acordo sequer a respeito
da extensão e da determinação de tais contextos. Há um erro que consiste em generalizar uma Weltbild que só funciona em operações elementares limitadas pelo senso comum. Mas, como dizia Bento Prado Jr.,
uma vez fora do senso comum, a ele não mais se retorna22.
Sempre haverá os que contra-argumentarão que valores e critérios
normativos não têm apenas realidade sintática, mas realidade semântica, sua significação aparece como largamente não problemática.
Mas, novamente poderíamos insistir que o fato de o sentido de um
conjunto de valores ser intersubjetivamente partilhado não implica
uma partilha de significado, ou seja, de relação à referência, de relação
Jürgen Habermas, Consciência moral e agir comunitário, cit., p. 81.
Com essa afirmação, não se trata de desqualificar certa leitura que vê, no Geist hegeliano, exatamente algo como a posição de um processo de apropriação autorreflexiva daquilo que nos aparece como background capaz, entre outros, de orientar nosso julgamento
em situações complexas. Pois, no caso do Geist, ele só poderá ser posto de maneira reflexiva quando os sujeitos forem capazes de conceitualizar a racionalidade da “necessidade
lógica” do trajeto que constitui o que entendemos por Espírito. E essa necessidade só
será visível a partir do momento em que o sujeito apreender a especificidade da forma
estrutural de relações tecidas pelo Espírito. Pois o Espírito só se manifesta a partir do momento em que os sujeitos se desesperam dos modos de estruturar relações baseados em
noções não dialéticas de identidade e diferença. O que está longe de ser o caso que tratamos neste capítulo.
Bento Prado Jr., Erro, ilusão, loucura (São Paulo, Editora 34, 2004), p. 77-108.
20
21
22
82 • Cinismo e falência da crítica
ao caso. As distinções clássicas entre sentido (Sinn) e significado (Bedeutung) podem ser úteis nesse contexto. Saber o sentido não implica
necessariamente saber a referência, quais referências são adequadas e
quais não o são.
Poderíamos ainda contra-argumentar que problemas de indexação
entre critérios, valores e fatos podem ser normalmente resolvidos a partir de procedimentos similares à noção jurídica de “criar jurisprudência”, ou seja, decisões anteriores aparecem como campo de constituição
de um núcleo de experiências que tendem a direcionar decisões posteriores, criando assim um processo, no sentido forte do termo23. Essa
tendência não implica ignorar toda possibilidade posterior de redirecionar, através do “uso público da razão”, tal processo de determinação dos
modos de indexação de critérios, valores e fatos.
Contra esse modo de tentar resolver a questão, devemos mostrar que
o campo pressuposto por decisões passadas não tem estruturalmente a
força de retirar a indeterminação de decisões futuras, porque as indeterminações não foram resolvidas sequer nas decisões passadas. Para que tais indeterminações estivessem ausentes seria necessário aceitar que decisões
passadas, além de terem sido produzidas em contexto de partilha intersubjetiva, no sentido de terem sido vistas como modos bem-sucedidos de
aplicação de regras, construíram procedimentos e critérios não problemáticos de inferência e universalização, a não ser que estejamos dispostos a
“naturalizar” tais critérios, como se tivéssemos uma gramática natural dos
modos de relação. Ou seja, para que a noção de “criar jurisprudência” seja
operativa, é necessário afirmar que um caso é análogo a outro caso, paradigmático. Ficamos, assim, dependentes de raciocínios analógicos. No
entanto, tais raciocínios são marcados por fragilidades e inseguranças
epistêmicas profundas, pois, de uma certa perspectiva, qualquer coisa
pode tecer relações de analogia com qualquer outra coisa.
No fundo, tais situações apenas servem para nos lembrar que tomar
uma decisão reconhecidamente legítima é um processo ligado a um princípio
de soberania, e não a um princípio de adequação normativa. Soberania não
23
Como se valesse aqui o que Robert Brandom disse a respeito do modo de funcionamento da normatividade no interior da filosofia hegeliana: “A autoridade das aplicações
passadas, que instituíram a norma conceitual, é administrada em seu nome por aplicações futuras, que incluem, por sua vez, apreciações sobre tais aplicações passadas” (Tales
of the mighty dead, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2002, p. 230).
Was ist Zynismus? • 83
é apenas uma questão de força, mas de reconhecimento de autoridade.
Procedimento de reconhecimento que implica mecanismos complexos
de identificação, retórica e investimento libidinal. Com isso, deslocamos o problema para outro campo que não é mais o da adequação
normativa, mas o campo dos processos de investimento libidinal que
constituem o vínculo à autoridade. Passamos a um problema que pode
ser mais bem compreendido a partir de uma economia libidinal.
Nesse sentido, podemos dizer que o cinismo é um modo de exposição de certos impasses maiores na compreensão da racionalidade
como normatividade, impasses claramente visíveis no interior da tradição hegeliana de crítica da modernidade. Digamos que, a partir do
momento em que se pressupõe uma transparência entre significação e
práticas procedurais de aplicação de critérios e valores, o cinismo transforma-se em um problema insolúvel. Pois tudo se passa como se o ato
cínico afirmasse que tal transparência existe, mas foi mal compreendida,
ou foi compreendida de maneira muito “rápida”, muito “ingênua”. Faz-se
necessário desdobrar as mediações, desdobrar as inferências. A Lei é clara,
diz o cínico, e se seguirmos seu espírito, veremos que ela pode justificar
casos que lhe pareciam opostos. Como dizia Sade, é possível fundar até
mesmo um Estado de libertinos a partir de valores universais republicanos
intersubjetivamente partilhados. Basta apenas encore un effort.
Poderíamos aqui concordar com Slavoj ŽiŽek e afirmar que tudo
isso só demonstra como a fórmula cínica “Eles sabem o que fazem, e
continuam a fazê-lo” ignora que o desconhecimento ideológico não está
na dimensão do “saber” da consciência, mas na estruturação das condições de significação da práxis, ou seja, na dimensão do “fazer”24. Pois,
como dizia Althusser, a ideologia não é uma questão de falsa consciência, mas uma questão de repetição de rituais materiais.
No entanto, devemos completar tal raciocínio com um elemento
fundamental: essa fantasia ideológica que estrutura as configurações
da ação só pode ganhar consistência se não entrar em contradição
24
O que o próprio Marx já sabia claramente ao afirmar: “É verdade, a descoberta tardia
pela ciência de que os produtos do trabalho, na medida em que são valores, apenas exprimem sob forma de coisas um trabalho humano dispensado na produção, é uma
descoberta que fez data na história do desenvolvimento da humanidade, mas ela não
dissipou em nada a aparência de objeto que tem as características sociais do trabalho” (Karl
Marx, Le capital, Paris, Puf, 1993, p. 85).
84 • Cinismo e falência da crítica
performativa com os critérios normativos de julgamento intersubjetivamente partilhados e presentes no saber da consciência. Assim, se é
verdade que “o cínico vive da discordância entre os princípios proclamados e a prática – toda a sua sabedoria consiste em legitimar a distância entre eles”25, então devemos levar às últimas consequências a
ideia de que o cinismo é uma contradição posta que é, ao mesmo tempo,
contradição resolvida ou, antes, aproveitando a formulação de ŽiŽek,
uma estranha “discordância legitimada”. Este é o ponto realmente
central: compreender como é possível ao cinismo sustentar-se como
essa paradoxal discordância legitimada.
Kant com Kojève e o imperador Juliano
Antes de avançarmos neste ponto, vale a pena retornar ao problema
da ironização, ou seja, essa compreensão de que estamos diante de uma
realidade que, por não se adequar a seus próprios critérios de justificação, não pode ser levada a sério, devendo a todo momento ser invertida
e pervertida. Podemos aproximar tal problemática da definição do cinismo como um problema de indexação entre Lei normativa, valores e
caso concreto. Tal aproximação serve para mostrar como a ironização
própria ao cinismo vem da compreensão de que realidades e ações que
pareciam não se conformar a expectativas normativas podem, ao contrário, aparecer como realização última de tais expectativas. Nesse sentido, o cinismo, a sua maneira, realiza ao inverter nossos modos de
indexação entre critérios normativos e consequências da ação. Completando o que foi dito anteriormente, ironização significa não apenas ruptura entre expectativas de validade e determinações fenomenais, mas também reconstrução de tal relação.
Alexandre Kojève nos fornece um exemplo precioso a respeito dessa noção de cinismo como ironização de condutas e inversão de modos
de indexação. Trata-se de seu comentário sobre a arte de escrever do
imperador Juliano26, comentário que, a sua maneira, funciona como
mais um capítulo de uma polêmica maior que envolve Kojève e Leo
Slavoj ŽiŽek, Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia (Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1992), p. 60.
Alexandre Kojève, L’empereur Julien et son art d’écrire (Paris, Fourbis, 2000).
25
26
Was ist Zynismus? • 85
Strauss. Em Perseguição e a arte de escrever, Leo Strauss sublinhava que
não devíamos tomar ao pé da letra tudo que haviam escrito os grandes
autores do passado, nem acreditar que haviam explicitado em seus escritos tudo que queriam dizer. A arte antiga redescoberta por Leo Strauss
consistia em escrever o contrário do que se pensa, tal como na ironia.
Tal estratégia obedecia a uma dupla função: escapar da censura e, sobretudo, formar uma elite.
Kojève vê o exemplo perfeito dessa arte de escrever nos textos do
imperador Juliano. Juliano é um imperador que se encontra diante
do seguinte paradoxo: ateu convicto e esclarecido, ele, como imperador,
deve ser chefe da religião pagã de Estado. Conservar essa religião popular é ainda, segundo ele, um modo de preservar a unidade do Estado
contra a sedição cristã. A solução será mostrar a uma elite capaz de “bem
entender” que ele não escreve tudo que pensa nem pensa tudo que escreve. Pois, como dirá o próprio Juliano: “Não devemos tudo dizer; e
mesmo sobre aquilo que podemos dizer, faz-se necessário esconder algumas coisas da grande massa”27. Seus escritos sobre a religião serão
assim paródias que, em razão do caráter contraditório de suas construções e mitos, denunciam, para uma elite esclarecida, que o próprio
poder critica ironicamente as ideias que divulga. Nesse sentido, Juliano
não oculta a verdade, ao contrário, ele mostra que a maneira correta de
enunciá-la é por meio da ironização absoluta do que então fundamenta
as esferas sociais de valores, ou seja, a religião.
Há algo de profundamente astuto nesse exemplo e que certamente
não passou despercebido a Kojève. Pois, de certa forma, poderíamos
compreender o aparente paradoxo próprio ao imperador Juliano como
uma versão inesperada da distinção entre uso público e uso privado da
razão que marca Was ist Aufklärung?, de Kant. Conhecemos todos o
exemplo clássico de Kant nesse pequeno texto. Diante dos membros de
sua paróquia, o religioso deve contentar-se com um uso privado da razão que o obriga a obedecer, mesmo sem acreditar, às injunções e normas próprias ao papel que ele desempenha como membro da instituição. Mas diante da “totalidade do público do mundo leitor”, diante
desse público esclarecido para o qual posso aparecer como cientista
27
Juliano, Discurso contra Heráclios, 239 ab, apud Alexandre Kojève, ibidem.
86 • Cinismo e falência da crítica
(Gelehrte), como membro da humanidade racional, tenho todo o direito de fazer uso público da razão com seu potencial crítico. Um uso que,
no seu horizonte, poderá produzir o consenso intersubjetivo necessário
para chegar à posterior modificação das normas que guiam o funcionamento social das instituições. Maneira de garantir o poder de racionalização da reflexão sem colocar em risco o fundamento institucional dos
processos de interação social. Ou poderíamos dizer, juntamente com
Foucault: maneira de passar ao largo da relação complexa entre crescimento da autonomia e intensificação de relações de poder 28.
E o que faz Juliano? Mesmo sem acreditar, ele desempenha o papel
que lhe cabe de chefe da religião de Estado. Nesse contexto, ele obedece à injunção iluminista de contentar-se com um uso privado da razão.
O que não o impede de endereçar-se à “totalidade do público do mundo leitor” através de seus escritos, fazendo um uso público da razão e
procurando, com isso, criar um consenso intersubjetivo sobre a precariedade, sobre o déficit de legitimidade das injunções e normas obrigatórias para o funcionamento das instituições sociais. O resultado aqui é
um regime peculiar de Sapere aude!
Não é difícil perceber que a peculiaridade de tal exigência de saber
vem do fato de o trabalho de esclarecimento pressuposto pela capacidade
de ironizar os mitos religiosos não produzir, como poderíamos esperar,
a queda do poder da religião em razão do esforço de racionalização. Ao
contrário, a posição dos mitos religiosos como aparência perpetua a
necessidade funcional da partilha desses mitos no interior da vida social.
Notemos que, dessa forma, realidades e ações que pareciam não se conformar a expectativas normativas de racionalidade esclarecida podem,
ao contrário, aparecer como realização última de tais expectativas.
Nesse sentido, chegaríamos a uma situação tipicamente cínica se pensássemos, por exemplo, em um momento histórico no qual a elite esclarecida seria do tamanho exato da população do Império. Ou seja, momento que já disseminou o esclarecimento. Nessa situação, a paródia do
poder nunca terminaria, em primeiro lugar, porque haveria sempre um
sujeito-suposto-crer, alguém que sempre crê no meu lugar, legitimando a
necessidade da ideologia; em segundo lugar, porque os conteúdos ideoló
28
Ver Michel Foucault, “What is enlightment?”, em Dits et écrits II (Paris, Gallimard,
1998).
Was ist Zynismus? • 87
gicos seriam ironizados e postos como aparência que não seria nada mais
do que aparência, e por isso já marcados pela crítica. Assim, todos os sujeitos seriam esclarecidos, mas agiriam como se não soubessem, todos seriam
ateus, mas continuariam objetivamente a dobrar os joelhos, mesmo que
tal ato não fosse motivado por nenhuma crença nos mitos socialmente
partilhados. Ou antes, continuariam a dobrar os joelhos exatamente pelo
fato de o ato não exigir mais crença alguma. Nesse sentido, chegaríamos
facilmente a uma das definições clássicas do cinismo: falsa consciência esclarecida ou, ainda, ideologia reflexiva.
Quando romper a norma é seguir a norma
Uma discussão rica em consequências para tais problemas vinculados às estruturas da racionalidade cínica foi levada a cabo por Giorgio
Agamben por ocasião do problema do estado de exceção. Se definirmos
o cinismo como uma enunciação da verdade que anula a força perlocucionária da própria enunciação ou (o que é um caso simétrico) como
uma indexação de valores e critérios normativos a casos que invertem a
significação normalmente pressuposta, então já podemos compreender
como o problema da exceção é um elemento maior no interior de uma
reflexão sobre a razão cínica. Pois a discussão de Agamben a respeito do
estado de exceção leva-nos a uma lógica na qual o ordenamento jurídico legaliza sua própria suspensão.
Essa lógica quer ser vista como constitutiva do quadro mesmo de
fundamentação do ordenamento jurídico na modernidade ocidental.
Criada em 1791 pela tradição democrático-revolucionária da Assembleia Constituinte francesa sob o nome de “estado de sítio”, a figura
de um quadro legal para a suspensão da ordem jurídica em “casos
extremos” aplicava-se inicialmente apenas às praças-fortes e aos portos
militares. Mas, já em 1811, com Napoleão, o estado de sítio podia ser
declarado pelo imperador a despeito da situação efetiva de uma cidade estar sitiada ou ameaçada militarmente. A partir de então, vemos
um progressivo desenvolvimento de dispositivos jurídicos semelhantes na Alemanha, na Suíça, na Itália, no Reino Unido e nos Estados
Unidos, que serão aplicados, durante os séculos XIX e XX, em situações
variadas de emergência política ou econômica. O caso mais recente
dessa lógica de generalização do estado de exceção foi obra do governo
88 • Cinismo e falência da crítica
francês que, em 2005, como resposta às manifestações de descontentamento social nas periferias das grandes cidades, colocou o país sob
situação de emergência.
Giorgio Agamben compreende tal desenvolvimento como a manifestação de um processo de generalização dos dispositivos governamentais
de exceção. O que explicaria por que “a declaração do estado de exceção
é progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes
do paradigma da segurança como técnica normal de governo”29. Processo
este que teria sido o motor invisível das democracias ocidentais. Daí ele
insistir que a exceção não é uma lógica exclusiva de Estados totalitários,
mas criação da tradição democrático-revolucionária ocidental.
No entanto, se é fato que estaríamos aí diante de um paradigma
constitutivo da ordem jurídica, então devemos ver, no problema posto
pela exceção, a exposição de uma estrutura “sintomática” própria a modos
privilegiados de racionalização das esferas sociais de valores na modernidade. Pois a compreensão de que a ordem jurídica pode incluir sua própria exceção, sem, no entanto, deixar de estar em vigor, remete-nos necessariamente a modos de racionalização através da posição de estruturas
normativas capazes de indexar casos que suspendem o próprio funcionamento de tais estruturas, sem que isso seja uma contradição. Assim, “um
dos paradoxos do estado de exceção quer que, nele, seja impossível distinguir a transgressão da lei e a sua execução”30. E se a norma pode ser suspensa, sem, no entanto, deixar de estar em vigor, é porque sua significação
não reconhece um campo seguro de designações. Como se a anomia
fosse interna ao próprio funcionamento normal da Lei.
Já foi dito que costumamos aceitar que a meta da Razão consistiria
em fornecer condições para a racionalização das esferas de valores através do estabelecimento de estruturas normativas capazes de determinar
condições ideais reguladoras e, no horizonte, realizar a promessa de um
ordenamento jurídico justo. A compreensão de que o estado de exceção
é cada vez mais a regra do funcionamento do poder legal é apenas uma
das figuras da falência desse modo de compreender racionalização ideal­
mente como constituição de normatividades – falência cujo nome correto é cinismo. O mesmo cinismo que anima afirmações paradigmáticas
Giorgio Agamben, Estado de exceção (São Paulo, Boitempo, 2005), p. 27-8.
Idem, Homo sacer (Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2002), p. 65.
29
30
Was ist Zynismus? • 89
e cada vez mais usuais, como: “Nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande, menos ainda o sacrifício temporário da própria
democracia”31. Não me parece necessário arrolar aqui uma sequência
interminável de exemplos que parecem realizar tal lógica. Todos eles
apenas mostrarão que “o conceito de aplicabilidade é certamente uma
das categorias mais problemáticas da teoria jurídica”, já que “a relação
entre norma e realidade implica a suspensão da norma, assim como, na
ontologia, a relação entre linguagem e mundo implica a suspensão da
denotação sob a forma de uma langue”32.
De fato, a relação entre o geral da norma e o particular do caso não
pode ser pensado como uma subsunção lógica. No entanto, se passarmos ao domínio da práxis, veremos que essa relação, por sua vez, não
pode apelar para sistemas partilhados e não problemáticos de expectativas de indexação entre estados de coisas, intenções e critérios normativos. Como havia dito, nada nos permite pressupor a existência de um
background capaz de orientar nossos julgamentos em situações complexas que envolvem significação de valores e modos de aplicação de critérios normativos de aspiração universalizante. Pode parecer, com isso,
que entramos em uma aporia incapaz de definir como podemos afinal
nos orientar racionalmente no agir. No entanto, apenas chegamos à
conclusão de existir uma problematização para a qual convergem críticas às dinâmicas de racionalização pensadas a partir de exigências de
legitimidade dependentes da garantia transcendental de estruturas normativas e teoria da ideologia não mais vinculada a noções como reificação
e falsa consciência. Essa problematização se organiza a partir da temática do cinismo. Falta ainda explorar de maneira mais sistemática os
contornos dessa teoria da ideologia. Uma teoria apta a pensar os modos
de legitimação da ação em sociedades “pós-ideológicas”.
Clinton Lawrence Rossiter, Constitutional dictatorship: crisis government in the modern
democracies, p. 314, citado por Giorgio Agamben, Estado de exceção, cit., p. 22.
Giorgio Agamben, Estado de exceção, cit., p. 93. Nesse sentido, parece-nos que o problema
do estado de exceção é um contraponto a ideias como: “A história dos direitos fundamentais nos Estados constitucionais modernos dá uma quantidade de exemplos do fato de que
as aplicações de princípios, desde que sejam reconhecidos, de modo nenhum oscilam de
situação para situação, mas seguem, sim, um curso orientado. É o próprio conteúdo universal dessas normas que traz à consciência dos concernidos, no espelho de faixas de interesses
cambiantes, a parcialidade e a seletividade das aplicações” (Jürgen Habermas, Consciência
moral e agir comunitário, cit., p. 128).
31
32
Sobre um riso que não reconcilia
O que há de diabólico no riso que soa falso
é que ele parodia aquilo que há de melhor:
a reconciliação.
Theodor Adorno, Minima moralia
Na aurora da pós-modernidade, e em meio a uma polêmica a respeito da filosofia adorniana da música, Jean-François Lyotard afirmava:
Nós temos, em relação a Adorno, a vantagem de viver em um kapitalismo mais energético, mais cínico, menos trágico. Ele coloca tudo em
representação, a representação reduplica-se (como em Brecht), logo
apresenta-se. O trágico dá lugar ao paródico [...].1
Sem entrar diretamente na questão a respeito da pretensa obsolescência do pensamento adorniano devida a esse novo diagnóstico histórico, digamos que a afirmação de Lyotard ao menos tinha o mérito de
apresentar uma mutação maior nas formas de vida e nos seus processos
de legitimação, que já se fazia sentir desde então. Ela estava figurada
nessa estranha passagem de um capitalismo “trágico” para um capitalismo “cínico”. Passagem que nos leva a perguntar o que esses dois termos
poderiam querer dizer nesse contexto.
Uma resposta programática seria: ao invés da tragédia de um sistema socioeconômico que a todo momento funcionava através do ocultamento do caráter fetichista de seus processos de determinação de valor
em todas as esferas da vida social, tragédia de um sistema que não pode
assumir aquilo que ele realmente é ao fundar-se no recalcamento ideológico de seus pressupostos, teríamos o cinismo de práticas capazes de
reduplicar seu próprio sistema de representações, tomando a todo
1
Jean-François Lyotard, Des dispositifs pulsionnels (Paris, Galilée, 1994), p. 121.
92 • Cinismo e falência da crítica
momento uma distância brechtiana em relação àquilo que elas próprias
enunciam, tal como em uma eterna paródia. Lyotard era ainda mais
claro a esse respeito quando afirmava, no mesmo texto:
Ao mesmo tempo em que o Kapital mantém, na vida e na arte, a lei
do valor como separação, poupança, corte, seleção, proteção, privatização, ele mina, simultaneamente e por todos os lados, o valor da lei,
obriga-nos a vê-la como arbitrária, impede-nos de crer nela. Ele é bufão [...]. A crítica não pode ir além dessa bufonaria.2
Daí a razão por que “o capitalismo nada oferece a crer, o cinismo é
sua moralidade”3.
A colocação não poderia ser mais direta. A força do capitalismo viria
do fato de ele não se levar mais a sério, já que minaria a todo momento o
valor da lei que ele próprio enuncia. O capitalismo não exigiria mais espécie alguma de crença cega nos conteúdos normativos que ele próprio
apresenta. Crença que deveria ser compreendida como defesa de um princípio seguro de indexação entre critérios de validade de aspirações universalizantes e situações da dimensão prática. Ou seja, poderíamos todos
tomar distância dos conteúdos normativos do universo ideológico capitalista porque o próprio discurso do poder já ri de si mesmo. No entanto,
e este ponto é o mais importante, essa aparente ausência de legitimidade
seria o verdadeiro núcleo de sua força. Isso a ponto de podermos dizer que
sua crise de legitimidade seria seu núcleo motor.
Assim, Lyotard apontava não apenas para o momento em que as
sociedades capitalistas começaram a passar por uma crise geral de legitimação, mas para o momento em que elas foram capazes de legitimar-se através de uma certa “racionalidade cínica”, e com isso estabilizar uma situação que, em outras circunstâncias, seria uma típica e
insustentável situação de crise. Como já havia dito, isso faz toda a
diferença, ainda mais se levarmos a sério o diagnóstico de que “a crítica se torna impotente para ir além dessa bufonaria”. Pois a impotência da crítica seria resultado da capacidade do capitalismo de – de uma
certa forma – realizar cinicamente a crítica.
Ibidem, p. 130.
Ibidem, p. 16.
2
3
Sobre um riso que não reconcilia • 93
Antes de compreendermos melhor a estrutura desse processo de inversão, não deixa de ser irônico encontrar exatamente em Adorno a consciência desse cinismo constitutivo do regime contemporâneo de funcionamento do capitalismo e de sua estrutura ideológica. Prova maior do
descompasso nos processos mútuos de recepção entre o pensamento francês
e o pensamento alemão contemporâneos. Vale então a pena iniciarmos
insistindo em alguns aspectos fundamentais da discussão adorniana a
respeito da ideologia.
Adorno e o riso que vem do poder
Um primeiro ponto deve aqui ser claramente salientado. A leitura
atenta de alguns textos centrais de Adorno nos demonstra seu esforço
em pensar, para a configuração dos móbiles da ideologia, a obsolescência
de categorias como: falsa consciência, reificação, desconhecimento, erro
e ilusão. Resultado da exigência de pensar o impacto das modificações
históricas na configuração do conceito de ideologia. Nesse ponto,
Adorno é claro:
A ideologia em sentido estrito se dá lá onde o que rege são relações de
poder [Machtvehältnisse] não transparentes em si mesmas, mediadas e,
nesse sentido, até atenuadas. Hoje, a sociedade, injustamente censurada por sua complexidade, transformou-se em algo demasiadamente
transparente [durchsichtig].4
Ou seja, de certa forma, o desafio atual consistiria em pensar o
conceito de ideologia a partir de relações de poder que se dão no solo
da posição da transparência.
Essa exigência nos coloca diante de uma tarefa complexa. Pois, quando o que impera são relações imediatas de poder postas enquanto tais, não
há necessidade de falar em “ideologia” em sentido estrito, já que “ideologia é justificação (Rechtfertigung)”5, é operação de conformação de situações empíricas determinadas às expectativas de validade exigidas pelas
aspirações universalizantes da razão. Ela exige, assim, que o poder seja
Theodor Adorno, Soziologische Schriften I (Frankfurt, Suhrkamp, 1980), p. 467.
Ibidem, p. 465.
4
5
94 • Cinismo e falência da crítica
mediado pela reflexão acerca de sua legitimidade, mediação que levaria o
poder a, por exemplo, mascarar seus verdadeiros pressupostos lá onde eles
não podem ser colocados sem contradição. É ainda o reconhecimento de
tais expectativas de validade em toda construção ideológica que leva
Adorno a insistir na existência de um elemento racional sempre presente
na ideologia. Dessa forma, a crítica da ideologia poderia operar nesses
interstícios onde se evidenciam os nós sintomais nos quais se leem a contradição entre os procedimentos de justificação e o domínio das situações
na efetividade. A crítica não faria outra coisa que mostrar como a construção ideológica, de certa forma, não realiza seu próprio conceito.
No entanto, o que dizer de uma situação na qual a própria transparência parece ser o motor central para a sustentação da ideologia, ou
seja, situação na qual os pressupostos do poder estão claramente postos
em sua contradição, mas nem por isso se segue uma reorientação das
condutas dos sujeitos? Não se trata de pensar simplesmente relações de
poder sustentadas na dessimetria da força. Trata-se, ao contrário (e novamente devemos insistir neste ponto), de compreender como o regime
contemporâneo de transparência do poder é capaz de preencher exigências de validade e legitimação, transformando a contradição posta em
contradição resolvida. Para tanto, o primeiro passo consiste em perceber
que essa “nudez que não desmascara” só pode ser compreendida ao identificarmos, atuando em seu cerne, uma certa ironia que lhe é constitutiva.
Como se o regime contemporâneo de funcionamento da ideologia só
pudesse ser descrito através de uma reflexão prévia sobre a ironia.
Esse é, a princípio, um ponto que parece inconsistente porque todos conhecemos as múltiplas figuras da ironia como arma suprema do
esclarecimento na constituição retórica da crítica. Um dos móbiles mais
usados pela crítica esclarecida foi o riso como modo de desmascaramento das imposturas do poder. Ele já está claramente presente nos cínicos
da Grécia antiga, que, radicalizando a ironia socrática, transformaram
o riso em peça central da crítica. Pensemos, por exemplo, no sarcasmo
de Diógenes contra o que haveria de hipócrita na lógica que guiaria as
superstições, a moral e a política. Vemos aqui, entre outras coisas, a noção
do riso como uma figura da crítica que procura desqualificar e desmascarar a aparência sustentada por aquele que é ironizado. Essa teoria clássica do riso como desmascaramento da aparência pode explicar por que
os vícios que, nesse contexto, aparecem risíveis são principalmente a
Sobre um riso que não reconcilia • 95
hipocrisia e a vanglória, e não a perversidade. Pois hipocrisia e vanglória
exprimem a inadequação entre as dimensões da aparência e das determinações essenciais, o que não é exatamente o caso da perversidade,
cuja ausência de naturalidade é posta enquanto tal6.
Mas essa noção da ironia vinculada à eficácia retórica da crítica não
encontra ressonâncias em Adorno. Ilustrativo nesse sentido é o parágrafo
134 da Minima moralia, intitulado “O erro de Juvenal”, o mesmo Juvenal
que afirmava: difficile est satyras non scribere. No parágrafo de Adorno, a
ironia, em especial aquela que aparece sob a forma da sátira, é compreendida como reação do poder aos imperativos de mudança, e isso em razão de
o alvo privilegiado da sátira ser normalmente a “decadência dos costumes”.
A crítica que se serve da ironia seria vinculada à lógica da conservação porque seu critério de orientação “é sempre o critério ameaçado pelo progresso;
este permanece pressuposto como ideologia imperante, a tal ponto que o
fenômeno que foge à regra é rejeitado, sem que se lhe faça a justiça de uma
discussão racional”7. Ela se orientaria, assim, através de um “acordo transcendental imanente”, de um senso comum nunca colocado em causa.
Adorno parece aqui não estar fazendo outra coisa que recuperar um
tema constante na teoria clássica do riso a respeito do caráter normativo
do humor no interior dos métodos de defesa próprios à lógica da conservação8. Um pouco como se a visão de Adorno devesse ser compreendida
na continuação de afirmações como aquela proposta por Hobbes segundo a qual o riso seria sanção contra o “desvio”, reação provocada pela
“percepção de alguma coisa deformada em outra pessoa com a qual, ao
nos compararmos, subitamente aplaudimos a nós mesmos”9.
De certa forma, essa noção do cômico vinculado à inadequação da aparência está presente ainda em Henri Bergson, quando este afirma que normalmente encontramos no
risível uma certa “rigidez mecânica [própria àquilo que mascara] quando seria de se esperar a maleabilidade atenta e a flexibilidade vívida de uma pessoa” (O riso, São Paulo,
Martins Fontes, 2000, p. 8).
Theodor Adorno, Minima moralia (São Paulo, Ática, 2003), p. 184.
A esse respeito, ver Quentin Skinner, Hobbes e a teoria clássica do riso (São Leopoldo,
Unisinos, 2002). Podemos ainda lembrar a afirmação de Simon Critchley: “Boa parte
do humor, em especial a comédia do reconhecimento – e a maior parte do humor consiste em comédia do reconhecimento –, simplesmente procura reforçar o consenso e de
maneira alguma procura criticar a ordem estabelecida ou mudar a situação na qual nos
encontramos” (On humor, Londres, Routledge, 2002, p. 11).
Thomas Hobbes, Leviatã (São Paulo, Martins Fontes, 2003), p. 53.
6
7
8
9
96 • Cinismo e falência da crítica
No entanto, Adorno está fazendo mais do que isso. Se ele não procura insistir nos vínculos claramente presentes entre ironia e crítica esclarecida é para passar à constatação de que continua havendo uma
ironia em funcionamento no cerne do poder, mas ela não aparece mais
como apelo a uma espécie de acordo intersubjetivo transcendental “que
não admite contestação” sobre normas e valores e, por isso, desqualifica
tudo que lhe seria exterior. Na verdade, ela aparece como “acordo universal sobre conteúdos” (inhaltlich universalen Einverständnis), ou seja,
como uma estranha impossibilidade de ultrapassar aquilo que se coloca
na efetividade (Wirklichkeit). Assim, não se trata mais de pensar a ironia
como modo de apelo a uma verdade intersubjetivamente partilhada,
mas transcendente à situação ironizada. Ao contrário, trata-se de pensar
uma estranha ironia que sustentaria a efetividade ao zombar daqueles
que procuram zombá-la.
É nesse sentido que devemos compreender a afirmação central de
Adorno segundo a qual “a diferença entre ideologia e realidade [Wirk­
lichkeit] desapareceu”. Tal desaparecimento não diz respeito apenas ao
fato de as contradições que a ideologia procura justificar serem processos
constitutivos da própria posição da efetividade, ao invés de serem resultantes do descompasso entre ideia e efetividade. Se assim fosse, Adorno
não estaria fazendo outra coisa que repetir as elaborações do Marx da
maturidade – como, por exemplo, a ideia marxista de que o fetichismo
não seria exatamente uma ilusão da falsa consciência, mas uma espécie de
“contradição objetiva”, ou seja, contradição vinda do próprio objeto.
Na verdade, ao afirmar que a diferença entre ideologia e realidade
desapareceu, Adorno procura lembrar que, na contemporaneidade, a
ideologia transparece e afirma-se enquanto tal na própria efetividade,
sem que isso modifique o engajamento dos sujeitos em seu campo. Ele
insiste na existência de certa relação de duplicação (Verdoppelung) entre
ideologia e realidade, a fim de lembrar que “a ideologia não é mais uma
capa [Hülle], mas a ameaçadora aceitação [Antlitz] do mundo”10.
Lembremos ainda que essa transparência não deve ser compreendida como realização direta, na efetividade, das expectativas de justificação
presentes na ideologia. Ela apenas indica que os sujeitos agem aqui
como falsas consciências esclarecidas, ou seja, como consciências que
10
Theodor Adorno, Soziologische Schriften I, cit., p. 477.
Sobre um riso que não reconcilia • 97
desvelaram reflexivamente os pressupostos que determinam suas ações
“alienadas” (pois sabem claramente o que é a efetividade), mas mesmo
assim são capazes de justificar racionalmente a necessidade de tais ações.
Daí eles poderem ter uma “crença desprovida de crença”11 (glaubenslosen
Glauben) na mera existência. Algo resultante de uma efetividade que já
traz em si mesma sua própria crítica.
Do fascismo ao casamento de Beatriz da Holanda
Essa estranha crença desprovida de crença só pode ser compreendida se levarmos em conta o modo como a ideologia é capaz de, atualmente, pôr em marcha um processo de ironização da efetividade que
responde, de maneira peculiar, às exigências de justificação que seriam
constitutivas de seu próprio conceito. Isso nos permitirá perceber que a
questão posta por Lyotard ao falar de um capitalismo bufão já havia sido
levantada por Adorno, mas por ocasião de seus estudos sobre o fascismo. Para ele, o fascismo era, de certa forma, o riso que vem do poder.
Podemos dizer isso porque o caráter “carnavalesco” da ideologia
fascista, caráter de paródia que absorve, ao mesmo tempo, conteúdos
ideológicos aparentemente contraditórios, como, por exemplo, o vínculo camponês à terra e o culto futurista à indústria, seria, segundo
Adorno, o segredo de sua força. Tudo era aparência posta como aparência
e, fato de suma importância, sabia-se disso. Adorno insiste que ninguém
acreditava na mitologia do fascismo, nem sequer seus porta-vozes, mas
cria-se – ou seja, a responsabilidade da crença era sempre enviada a um
Outro, a uma espécie de “sujeito-suposto-crer”, um pouco como a radicalização da descrição kojèveana de Juliano que vimos no capítulo
anterior. O fascismo seria assim a realização da distância irônica a agir
de maneira reflexiva no cerne do poder.
Aqui, é impossível resistir à ideia de citar, integralmente, o trecho
de Adorno dedicado a tal análise:
Da mesma forma como as pessoas não acreditam, no fundo de seus
corações, que os judeus sejam o demônio, elas não acreditam completamente no líder. Não se identificam realmente com ele, mas atuam
11
Ibidem, p. 476.
98 • Cinismo e falência da crítica
essa identificação [act this identification], representam [perform] seu
próprio entusiasmo e desse modo participam da performance do líder.
É através dessa representação que encontram uma balança entre seus
impulsos instintuais [instinctual urges] continuamente mobilizados e o
estágio histórico de esclarecimento que alcançaram e não pode ser arbitrariamente revogado. É provavelmente a desconfiança da ficção de
sua própria “psicologia de grupo” que torna as massas fascistas tão
impiedosas e inabaláveis. Se parassem para raciocinar [to reason] por
um segundo, toda a performance iria pelos ares e elas seriam deixados
em estado de pânico.12
Ou seja, o fascismo não teria passado de um grande jogo de máscaras ou, ainda, de uma grande paródia carnavalesca. Como se ele realizasse o célebre dito de Saint-Just: “Celui qui plaisante à la tête du
gouvernement tend à la tyrannie”13.
Neste ponto, podemos compreender melhor afirmações de Adorno
aparentemente estranhas, como: “A dita psicologia do fascismo é largamente engendrada por manipulação”14. Uma “manipulação” do inconsciente, “expropriação” do inconsciente pelo controle social ou mesmo
“apropriação da psicologia das massas pelo líder”, dirá em “Freudian
theory and the patterns of fascist propaganda”. Tais termos, tomados
fora de contexto, podem induzir-nos a pensar que Adorno opera no
interior de uma lógica do mascaramento ideológico, ou mesmo da ideologia, como uma espécie de ilusão da falsa consciência resultante dos
móbiles de ocultamento dos pressupostos de atuação de um poder que,
Theodor Adorno, “Freudian theory and the patterns of fascist propaganda”, em Soziologische Schriften I, cit., p. 418.
Essa leitura adorniana do fascismo como paródia pode servir-se, como argumento suplementar, do fato de nem Hitler nem Mussolini poderem ser tecnicamente definidos
como ditadores. Mussolini era o chefe legal do governo e Hitler, o chanceler legal do
Reich. Como nos lembra Agamben: “O que caracteriza tanto o regime fascista quanto
o nazista é o fato de terem deixado subsistir as constituições vigentes [...], fazendo acompanhar – segundo um paradigma que foi sutilmente definido como ‘Estado dual’ – a
constituição legal de uma segunda estrutura, amiúde não formalizada juridicamente,
que podia existir ao lado da outra graças ao estado de exceção” (Estado de exceção, São
Paulo, Boitempo, 2005, p. 75-6). Acaso não teríamos aqui um estranho caso de estrutura bakhtiniana da norma, que é sempre acompanha de seu duplo paródico? Como
compreender a posição subjetiva de sujeitos que suportam um poder, que segue ao
mesmo tempo a Lei e sua negação, a não ser através do cinismo?
Theodor Adorno, “Freudian theory and the patterns of fascist propaganda”, cit., p. 430.
12
13
14
Sobre um riso que não reconcilia • 99
contrariamente ao que nos mostrou Foucault, parece ter um centro
muito claro.
No entanto, nada mais equivocado no que concerne a Adorno. Não
é por outra razão que o conceito central para compreender a “manipulação” fascista no texto em questão é phonyness, termo que indica a
posição de uma falsidade que se afirma ironicamente enquanto tal. Isso
é absolutamente central: para Adorno, os líderes autoritários fascistas
não são hipócritas, eles são phonies. Nesse sentido, o regime de manipulação só ficará claro se respondermos à questão: como e por que o
sujeito investe em vínculos sociais assumidamente phonies? Questão que
obedece ao imperativo adorniano de criticar a ideologia não através da
refutação de teses a partir de uma análise sistêmica da coerência dos
enunciados ou da identificação de contradições performativas, mas
através da análise das disposições (Dispositionen) de conduta que a ideologia pretende produzir nos sujeitos. Ou seja, devemos compreender
que forma de vida esse discurso ideológico pressupõe.
No entanto, antes de tentar responder a essa questão, não poderíamos dizer que essa análise da ideologia fascista parece estranhamente
próxima de algo fundamental em nossas sociedades “pós-ideológicas”
pretensamente marcadas pelo desengajamento em relação a todo projeto utópico? Se assim for, a semelhança de família entre o capitalismo
bufão pós-ideológico de Lyotard e o fascismo em sua versão adorniana
não seria mero acaso. Pois, nos dois casos, estaríamos diante de mecanismos de poder fundados em ideologias da ironização. Fato que não
seria estranho a Adorno.
Para se ter certeza de que o mesmo esquema de ironização serve a
Adorno na análise do mecanismo de funcionamento da ideologia na contemporaneidade capitalista em seu sentido mais amplo, lembremos como
termina um texto seu consagrado à análise da televisão como ideologia:
Dentre os scripts analisados, numerosos são aqueles que jogam com a
consciência de ser kitsch e dão uma piscadela de olhos em direção ao
espectador [Betrachter] não ingênuo, como quem diz que eles mesmos
não acreditam no que mostram, que não são assim tão idiotas.15
15
Idem, “Fernsehen als ideologie”, em Kulturkritik und Gesellschaft II (Frankfurt,
Suhrkamp, 2003), p. 530. Lembremos ainda uma afirmação adorniana complementar
100 • Cinismo e falência da crítica
Exemplo supremo de ideologia que pode funcionar exatamente por
não se tomar a sério, diríamos nós.
Uma colocação dessa natureza é central se lembrarmos que, para
Adorno, a indústria cultural e as estruturas de comunicação de massa
que as suporta respondem, de maneira hegemônica, pelo estabelecimento das dinâmicas dos processos de socialização. Nesse sentido, a
verdadeira questão posta por Adorno não diz respeito a processos unívocos de “manipulação” que desconsiderariam a multiplicidade possível dos modos de recepção e de ressignificação. Ela diz respeito às
consequências de processos de socialização mediados por conteúdos
previamente ironizados. As reflexões de Adorno apontam para essa direção, principalmente em um texto tardio como Tempo livre (1969),
no qual, ao final, é questão de uma certa revisão no quadro geral do
conceito de indústria cultural tal como ele fora apresentado na Dialética do Esclarecimento.
Partindo de um estudo empírico desenvolvido pelo Instituto de
Pesquisas Sociais sobre os modos de recepção da veiculação midiática
alemã do casamento da princesa Beatriz da Holanda, Adorno percebe a
necessidade de abandonar um esquema clássico de ilusão ideológica em
prol da análise de “sintomas de uma consciência duplicada” (Symptome
eines gedoppelten Bewusstseins). A respeito de tais sintomas, ele dirá:
Verificamos que muitos [espectadores] se portavam de modo bem realista e avaliavam com sentido crítico a importância política e social de
um acontecimento cuja singularidade bem propagada os havia mantido
em suspenso ante a tela do televisor. Em consequência, se minha conclusão não é muito apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a
indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de
reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo os mais ingênuos
não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema.
Talvez ainda mais: não se acredita inteiramente neles.16
a essa: “Se se quisesse resumir em uma frase o que realmente nos leva à ideologia da
cultura de massa, dever-se-ia apresentá-lo como paródia da frase ‘torna-te o que tu és’,
enquanto duplicação e justificação de todo estado existente (bestehenden Zustandes),
incluindo toda transcendência e toda crítica” (Soziologische Schriften I, cit., p. 476).
16
Idem, “Tempo livre”, em Indústria cultural e sociedade (São Paulo, Paz e Terra, 2002),
p. 127.
Sobre um riso que não reconcilia • 101
Se Adorno ainda via uma possibilidade de emancipação nessa distância em relação à crença nos conteúdos ideológicos disponibilizados
pela indústria cultural, podemos dizer que tal “crença desprovida de
crença” é exatamente a mola de funcionamento da ideologia na contemporaneidade e a garantia de sua perenidade. Os conteúdos já são previamente ironizados e é isso que lhes permite continuar circulando.
Podemos ver no diagnóstico dessa autoironia da indústria cultural
um caminho frutífero aberto por Adorno na análise das formações contemporâneas da ideologia. De fato, uma análise empírica dos produtos
recentes da indústria cultural mostra a prevalência desse esquema. Personagens de contos de fadas que não mais se reconhecem e criticam seus
próprios papéis, propagandas que zombam da linguagem publicitária,
celebridades e representantes políticos que se autoironizam em programas televisivos: todos esses fatos são apenas figuras de um processo geral
de ironização das formas de vida que nos coloca diante daquilo que
Peter Sloterdijk chamou um dia de ideologia reflexiva, posição ideológica
que porta em si mesma a negação dos conteúdos que apresenta. Maneira astuta de perpetuá-los mesmo em situações históricas nas quais eles
não podem mais esperar enraizamento substancial algum.
Nesse sentido, a conservação da temática da ideologia pode mostrar
sua atualidade. Nossas sociedades “pós-ideológicas” não são exatamente
marcadas pela ausência de construções ideológicas usadas de maneira
recorrente na justificação de práticas e valores sociais. Ao contrário, elas
são marcadas pela perpetuação de tais construções sob a forma da ironia.
Pois mesmo que tais construções sejam ironizadas, elas continuam
fornecendo o quadro narrativo estável e socialmente partilhado para a
descrição de práticas e valores. Isso apenas evidencia como, atualmente,
uma crítica da ideologia que vise dar conta dos modos de funcionamento
do poder a partir de uma racionalidade cínica deve ser, antes de mais
nada, uma crítica da ironia.
Capitalismo carnavalesco
Essa exigência de pensar os moldes da crítica da ideologia a partir
da crítica da ironia tem uma justificação suplementar. Pois tudo se passa como se o capitalismo contemporâneo e suas formações maiores funcionassem a partir de uma certa lógica da “carnavalização”.
102 • Cinismo e falência da crítica
O termo não está aqui de maneira gratuita. Ele visa sobretudo a
descrição fornecida por Mikhail Bakhtin a respeito dos modos de suspensão da Lei em festas anômicas da Idade Média. Por mais improvável
que isso possa parecer, tais modos de suspensão da Lei podem nos indicar como a ideologia do capitalismo contemporâneo é capaz de, como
dizia Lyotard, manter a lei do valor ao mesmo tempo em que mina o
valor da lei. Ou seja, perpetuar a lei simultaneamente à proclamação da
fragilidade de sua legitimidade. Isso talvez possa explicar por que certa
leitura de Bakhtin se transformou em pilar de sustentação para cultural
studies de inspiração pós-moderna.
Bakhtin tem um interesse especial pelas festas anômicas da Idade
Média, em especial o carnaval, por ver nelas a entificação do caráter
subversivo do riso popular contra as imposturas do poder. Ele insiste no
fato de nenhuma festa cívica desenrolar-se na Idade Média sem que
intervenham elementos de uma organização cômica. Fato que deveria
ser lido no interior de um dado antropológico mais amplo exposto na
seguinte afirmação:
Encontramos, no folclore dos povos primitivos, paralelamente aos
cultos sérios (em virtude de sua organização e tom) os cultos cômicos
que se transformavam em derrisão e blasfemavam as divindades (“riso
ritual”); paralelamente aos mitos sérios, os mitos cômicos e injuriosos;
paralelamente aos heróis, seus sósias paródicos.17
No entanto, devemos nos perguntar sobre o significado de tal duplicação irônica de estruturas gerais de socialização presente nas festas
cívicas e nos mitos. Bakhtin compreende isso como exposição de tendências de subversão e ressignificação popular da lei social, tendências
estas que ganharão forma mais acabada em festas anômicas, como o
carnaval. Daí afirmações como: “O carnaval era o triunfo de uma forma
de liberação provisória em relação à verdade dominante e o regime
existente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus”18. Mundo de aproximação dos contrários que
marca a utopia da flexibilização das normas prometendo “um modo
Mikhail Bakhtin, L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous
la Renaissance (Paris, Gallimard, 1970), p. 14.
Ibidem, p. 18.
17
18
Sobre um riso que não reconcilia • 103
particular de existência [...] baseado no princípio do riso”19. Riso que
dissolve toda e qualquer determinidade e inverte todo e qualquer princípio normativo em prol da vida como fluxo contínuo de formas.
A adequação histórica de tal compreensão das festas anômicas exigiria uma análise empírica minuciosa. No entanto, é impossível não
problematizar essa oposição estrita entre transgressão e respeito à Lei que
guia a interpretação de Bakhtin. À primeira vista, a redução da vida a
um fluxo contínuo de formas em momentos de anomia não parece
opor-se ao ordenamento jurídico. Se a relação fosse realmente de oposição, seria difícil explicar como o ordenamento jurídico é capaz de reconfigurar-se imediatamente após o período de anomia, sem que tal
período implique em necessidade de reorientação dos processos de normatização. Ou seja, eles retornam tal como eram antes. Assim, para
além da tentativa bakhtiniana de entificação de um certo caráter subversivo do riso popular que teria no carnaval seu espaço social privilegiado, riso popular que seria uma das raízes do cinismo grego, devemos
insistir na complementaridade entre posição da norma e sua ironização
paródica. Ou seja, devemos ver os mitos cômicos como parte constitutiva dos mitos sérios, como seu desdobramento interno, como o que
permite ao sério internalizar sua própria crítica.
Georges Bataille compreendeu isso claramente em seus estudos no
interior do Colégio de Sociologia a respeito da festa, do sagrado e do
erotismo. Grosso modo, Bataille procurava pensar certa solidariedade
entre transgressão e interdito enunciado pela Lei que encontramos em
estruturas sociais marcadas por experiências estranhas para o mundo
“desencantado” da modernidade. Tais estruturas sociais se fundam em
uma normatividade que aceita e regula sua própria suspensão temporária: “Não há interdito que não possa ser transgredido. Muitas vezes a
transgressão é admitida, muitas vezes ela chega mesmo a ser prescrita”20.
Ou seja, a transgressão é modo de funcionamento do vínculo social, e
isso na medida em que a transgressão não é um retorno à natureza, ela
é uma forma da norma internalizar momentos de anomia, sem com isso
destruir-se. Daí Bataille poder afirmar que “a transgressão suspende o
interdito sem suprimi-lo”.
Ibidem, p. 16.
Georges Bataille, L’érotisme (Paris, Minuit, 1960), p. 71.
19
20
104 • Cinismo e falência da crítica
Giorgio Agamben, que não deixa de ter as elaborações de Bataille
em vista, chegou a uma conclusão similar ao apoiar-se nos estudos de
Karl Meuli para afirmar que as festas anômicas devem ser relacionadas
com “o estado de suspensão da lei que caracteriza alguns institutos jurídicos arcaicos, como a Friedlosigkeit alemã ou a perseguição do vargus
no antigo direito inglês”21. Colocação astuta por lembrar que suspensão
irônica da Lei não significaria necessariamente sua abolição e a zona de
anomia por ela instaurada não é desprovida de relações com a ordem
jurídica. Como se um certo ordenamento jurídico “socialmente pressuposto” reconhecesse que a suspensão da lei é fenômeno interno ao próprio processo de efetivação da lei e que a alternância entre ordem e
desordem não põe em xeque a coesão de formas de vida. Tal como se a
lei ironizasse sua própria aplicabilidade. O fato relevante aqui é como o
que anteriormente estava restrito a momentos de anomia tende, na
dinâmica ideológica do capitalismo contemporâneo, a colocar-se como
modo hegemônico de funcionamento da Lei.
Identificações irônicas
Talvez só seja possível compreender melhor a necessidade dessa autoironia que atua no cerne do modo de funcionamento da ideologia se
relevarmos o advento de um modo peculiar de identificação dos sujeitos
com os vínculos sociais. Notemos, por exemplo, como atualmente os
sujeitos não são mais chamados a identificar-se com tipos ideais construídos a partir de identidades fixas e determinadas, o que exigiria engajamentos e certa ética da convicção. Na verdade, eles são cada vez
mais chamados a sustentar identificações irônicas, ou seja, identificações
nas quais, a todo momento, os sujeitos afirmam sua distância em relação àquilo que estão representando ou, ainda, em relação a suas próprias
ações. Como se Adorno, ao perceber que os sujeitos atuavam suas identificações com o líder fascista e tomavam, a todo momento, uma distância reflexiva dos conteúdos da comunicação de massa, tocasse em um
ponto central a respeito do modo de individuação e socialização das
sociedades capitalistas contemporâneas.
21
Giorgio Agamben, Estado de exceção, cit., p. 109.
Sobre um riso que não reconcilia • 105
A psicanálise, em especial a de orientação lacaniana, insistiu no
papel das identificações como processos centrais na socialização e sustentação dos vínculos sociais. Socializar é fundamentalmente “fazer
como”, atuar a partir de tipos ideais que servem de modelo. No entanto, a fim de dar conta de dois modos distintos de “fazer como”, a psicanálise lacaniana viu-se obrigada a estabelecer uma distinção estrita entre
identificação imaginária, fundada na introjeção constitutiva e especular
da imagem de um outro que tem o valor de tipo ideal, e identificação
simbólica, que indica o reconhecimento de si em um traço unário vindo
de um Outro (normalmente aquele que sustenta a função paterna) na
posição de Ideal do eu. Essa forma de identificação é modo de reconhecimento que, por operar através de traços unários, ao invés de operar
por imagens estáticas, não impõe ao sujeito a partilha de uma identidade
fixa, mas leva-o a reconhecer-se e a reconhecer seu desejo naquilo que
não tem objetivação previamente determinada.
Através dessa duplicidade nos mecanismos de identificação, Lacan
procurava explicar como os processos de socialização baseados em identificações podiam dar conta do fato de os sujeitos serem capazes de reconhecer-se em funções simbólicas que não se esgotam nas figuras contingentes daqueles que as portam. No entanto, tudo se passa como se
transformássemos essa ausência de objetivação previamente determinada própria às funções simbólicas em ironia.
Tal como as identificações simbólicas, as identificações irônicas não
estão vinculadas à introjeção de imagens privilegiadas colocadas em
posição de ideal. Desde há muito, a dissolução irônica da determinidade foi compreendida também como dissolução da fixidez da imagem de
si. Ao expor continuamente a distância entre enunciado e enunciação,
o ironista aparece como aquele que nunca está presente em seu dizer,
aquele que nunca fornece uma imagem de si. Como dizia Schlegel a
propósito de Sócrates: “Nele, tudo deve ser gracejo e tudo deve ser sério:
tudo sinceramente aberto e tudo profundamente dissimulado”22.
Dessa forma, a destruição da pregnância das imagens de si pode
redundar simplesmente na implementação contínua de uma certa distância irônica em relação a toda determinidade empírica, ou seja, em
relação a todo papel identitário que determina um fazer social. Um
22
Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 37.
106 • Cinismo e falência da crítica
distanciamento que pode estabilizar-se a partir do momento em que os
sujeitos tratam suas identidades sociais como simples semblantes, para
usar um termo de Lacan, ou ainda como aparências postas enquanto
tal. Assim, eles se aferram a identidades sociais que não têm realidade
substancial em virtude exatamente do fato de elas não terem realidade
substancial alguma. Tal lógica da ironização pode realizar-se, por exemplo, através da “flexibilidade” de uma subjetividade plástica que pode
afirmar-se enquanto puro jogo de máscaras não mais submetido a princípio unificador algum. Como se o presente tivesse realizado o diagnóstico preciso de Nietzsche:
Há épocas nas quais o indivíduo está convencido de poder quase tudo
fazer, estar a altura de quase todos os papéis, nos quais cada um tenta,
improvisa, tenta novamente [...]. Os gregos, uma vez engajados nessa
crença nos papéis [...], realmente se transformaram em atores [...].
Mas o que temo é que nós, homens modernos, já estejamos plenamente engajados no mesmo caminho, e cada vez que o homem começa a
descobrir em que medida ele desempenha um papel e até que ponto
ele pode ser um ator, ele se transforma em ator.23
Notemos ainda que esse regime de identificação ganha importância
se lembrarmos como tal distância irônica é atualmente condição necessária para o funcionamento da ideologia. Lembremos essa afirmação central
de Althusser (ao menos nesse ponto próximo a Adorno), segundo a qual
a ideologia não é uma questão de falsa consciência ou de crença cega, mas
uma questão de repetição de rituais materiais 24. Repetição que pode muito bem prescindir de todo e qualquer engajamento subjetivo. Na verdade,
é até melhor que o sujeito tome distância crítica em relação ao seu fazer,
que não se confunda com seus papéis e rituais sociais. Dessa forma, a
inércia na modificação do agir será ainda maior, pois o sujeito se dessolidariza de seu próprio ato, que ganha a força do automatismo. Repetir
sem acreditar, ou seguir o famoso dito pascaliano que inverte a relação
entre ato e crença: “Ajoelhai-vos, orai e acreditareis” serve para nos lembrar que a crença ideológica não é exatamente um conceito ligado a estados
Friedrich Nietzsche, A gaia ciência (São Paulo, Companhia das Letras, 1999), par. 356.
Ver Louis Althusser, Aparelhos ideológicos de Estado (6. ed., Rio de Janeiro, Graal, 1992),
p. 91.
23
24
Sobre um riso que não reconcilia • 107
intencionais, mas a estruturas da práxis. É tendo em vista fenômenos similares que Adorno podia falar em “crença desprovida de crença”. Um
belo exemplo desse tipo de posição subjetiva nos é dado por Richard
Rorty em seu livro Contingência, ironia e solidariedade.
Rorty pensa a ironia fundamentalmente como forma de vida própria às sociedades democráticas liberais e fundada sobre uma posição
global em face de valores que aspiram a fundamentar critérios não revogáveis de avaliação de condutas e instituições. Dirá ele:
Chamo essas pessoas de “ironistas” porque sua compreensão de que podemos fazer qualquer coisa parecer boa ou má por meio de redescrições
e sua renúncia à tentativa de formular critérios de escolha entre vocabulários finais [ou seja, determinações com peso de necessidade ontológica] coloca-os na posição que Sartre chamou de “metaestável”: nunca
prontos a tomarem a si mesmos a sério porque sempre conscientes de
que os termos nos quais eles se descrevem a si mesmos estão sujeitos a
mudanças, sempre conscientes da contingência e da fragilidade de seus
vocabulários finais e, consequentemente, de seus Eus [selves].25
Ou seja, valores socialmente partilhados, que Rorty chama de
“vocabulário final” para salientar sua aspiração de estar dotado
de dignidade metafísica, seriam radical e continuamente postos em
dúvida pelo ironista. Ironia que viria da consciência da contingência
histórico-cultural de todo vocabulário de descrição de critérios normativos de justificação. Um saudável relativismo próprio àqueles que
sabem que os termos com os quais descrevemos nossas expectativas de
justificação estão sempre sujeitos a mudanças animaria essa recuperação
rortyana da ironia. Pois critérios de justificação não seriam mais do
25
Richard Rorty, Contingence, irony and solidarity (Cambridge, Cambridge University
Press, 1989), p. 74. Não deixa de ser extremamente sintomático que Rorty compreenda essa fragilização de “vocabulários finais” como resultado de uma “dialética” que
estaria em operação no pensamento hegeliano – uma dialética baseada no jogo contínuo de interversões e inversões. Daí a definição: “O dito método dialético de Hegel
não é um procedimento argumentativo ou uma maneira de unificar sujeito e objeto,
mas simplesmente uma habilidade literária – habilidade de produzir mudanças surpreendentes de figura (gestalt) através de transições rápidas, fluidas de uma terminologia a outra” (p. 78). Essa redução da dialética a uma literary skill que gira em falso
já fora, no entanto, criticada pelo próprio Hegel por ocasião de suas considerações
sobre a ironia romântica.
108 • Cinismo e falência da crítica
que “a platitude que define contextualmente termos de um vocabulário final em uso corrente”26.
Segundo Rorty, por exemplo, o ironista não investe os processos de
socialização com uma convicção segura (já que opera por identificações
irônicas, diríamos nós). No entanto, ele não pode fornecer um critério
positivo para transformar tal insegurança em abertura para a produção
de uma determinidade efetiva e estável de si mesmo. Tal como na ironia
romântica, a ironia está vinculada a um movimento de redescrição contínua de si que coloca a subjetividade para além de toda e qualquer
determinação concreta.
No entanto, e este é o ponto mais importante, Rorty reconhece que
tal conceito de ironia exige uma distinção estrita entre espaço privado e
esfera pública. Pois, se a ironia diz respeito a uma certa maneira de implicar-se em valores que sustentam a esfera pública, não se trata de afirmar
que a retórica pública deva ser ironista. De fato, “o ironista toma as palavras que são o fundamento da metafísica e, em particular, para a retórica
pública das democracias liberais, como apenas mais um texto”27. No entanto, ele age como se levasse as palavras da retórica pública das democracias liberais a sério. Rorty não pode pensar que os valores das democracias
liberais são enunciados de maneira irônica. Como ele mesmo dirá: “Eu
não posso imaginar uma cultura que socializa sua juventude de tal maneira que a faça duvidar continuamente de seu próprio processo de
socialização”28. Mas, como veremos no próximo capítulo, nós podemos.
Sabemos que, para Rorty, trata-se de insistir em uma distância necessária em relação à absolutização de valores que são usados pelos sujeitos para regular e justificar ações cotidianas, algo que, de uma forma
ou de outra, não deixa de nos remeter ao Kant de Was ist Aufklärung?,
com suas distinções entre uso público e privado da razão. Essa distância
deixaria os sujeitos imunes à tentação metafísica de acreditar que nossos
valores podem dar conta da descrição correta de crenças, ações e sistemas de outros que partilham valores distintos. O que abriria o espaço
necessário para a tolerância liberal ao outro (uma tolerância que, como
vimos, não é imune à autodefesa intolerante). Entretanto, como a ironia
Ibidem, p. 75.
Ibidem, p. 99.
Ibidem, p. 87.
26
27
28
Sobre um riso que não reconcilia • 109
seria basicamente un affaire privé, a retórica das democracias liberais
continuaria aceita exatamente por não exigir convicção absoluta dos sujeitos; até porque o problema da justificação foi desvinculado do problema
da verdade. Talvez essa seja mesmo a condição sine qua non para a perpetuação das formas de vida hegemônicas nas democracias liberais. Um
preço alto demais?
II
Por uma crítica da economia libidinal
Eu não posso imaginar uma cultura que
socialize sua juventude de tal maneira que
a faça duvidar continuamente de seu próprio
processo de socialização.
Richard Rorty, Contingence, irony and solidarity
Da necessidade de uma economia libidinal
“No lugar da questão sociológica a respeito dos modos de integração social e de conflito social, aparece a questão referente à influência
recíproca entre pulsões individuais e reprodução econômica, ou seja, a
aproximação possível entre psicanálise e análise do sistema econômico.1”
Essa frase é, na verdade, o núcleo de uma certa crítica de Axel Honneth
a Theodor Adorno. Ela consiste em afirmar que o projeto adorniano
seria acometido por algo como um déficit sociológico visível na pretensa
impossibilidade do filósofo de Frankfurt em fornecer uma verdadeira
reflexão sobre o sentido e a dinâmica propriamente social dos processos
de racionalização. Impossibilidade que cresceria de maneira proporcionalmente inversa a uma espécie de superávit psicanalítico. Como se a
psicanálise tivesse impedido Adorno de levar em conta a autonomia
sistêmica das múltiplas esferas de valores que compõem a vida social
com suas expectativas próprias.
No entanto, a decisão adorniana em sustentar a relevância dessa “influência recíproca entre pulsões individuais e reprodução econômica”
talvez nos indique algo mais do que um mero déficit sociológico. Talvez esse
seja o resultado natural da fidelidade a uma intuição já presente em momentos centrais dos ditos “textos sociológicos” de Freud, a saber, a compreensão de que a análise dos processos de racionalização social deve,
necessariamente, submeter-se a considerações mais amplas sobre a ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos. Ontogênese esta
1
Axel Honneth, Critique of power (Cambridge, MA, MIT Press, 1991), p. 101.
114 • Cinismo e falência da crítica
que é, por sua vez, indissociável da descrição da dinâmica conflitual dos
processos de socialização do desejo no interior de esferas de interação,
como a família, as instituições sociais, os aparatos midiáticos de massa e
o Estado. Ou seja, em última instância, trata-se de propor a compreensão
do fundamento dos processos de racionalização social a partir de problemas ligados à socialização do desejo. É tendo tal submissão em vista que
Freud pode fazer afirmações arriscadas como “mesmo a sociologia,
que trata do comportamento dos homens em sociedade, não pode ser
nada mais que psicologia aplicada. Em última instância, só há duas ciências, a psicologia, pura e aplicada, e o estudo da natureza (Naturkunde)”2.
De fato, uma afirmação dessa natureza é temerária por parecer tributária de alguma forma de psicologismo selvagem que nos levaria a um
certo imperialismo psicanalítico que sempre interpreta a multiplicidade
dos fatos culturais à luz da repetição modular dos complexos de Édipo
e das teorias sobre a sexualidade infantil. Psicologismo ainda mais temerário por parecer induzir-nos a tratar o campo social de maneira
atomizada por meio da hipóstase de funções intencionais particularistas
como chave compreensiva de processos sociais complexos.
No entanto, devemos procurar melhor o que está em jogo nessa
tendência psicanalítica, presente desde Freud, de operar no ponto exato de contato entre estruturas da subjetividade e modos de interação
social. Pois, a seu modo, a psicanálise acaba por realizar a intuição
weberiana a respeito da necessidade de explicar como a racionalidade
dos vínculos sociais em geral e dos papéis econômicos em particular
depende fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta. O mesmo espírito levou Adorno a insistir que a
teoria da ideologia deveria necessariamente submeter-se a uma análise das disposições subjetivas. Não se trata nesses casos de incorrer em
alguma espécie de déficit sociológico, mas insistir que nenhuma perspectiva sociológica pode abrir mão de compreender a maneira como
os sujeitos investem libidinalmente os vínculos sociais, mobilizando
com isso representações imaginárias e expectativas de satisfação que
muitas vezes acabam por inverter o sentido de determinações normativas que visam racionalizar tais vínculos.
2
Sigmund Freud, “Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse”, em
Gesammelte Werke (Frankfurt, Fischer, 1999), v. XV, p. 194.
Por uma crítica da economia libidinal • 115
Pode parecer que fazer afirmações dessa natureza implica tentar
submeter o quadro compreensivo das estruturas de interação social,
com suas exigências de legitimidade e aspirações de validade, a um cálculo de interesses baseado na lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer. De fato, todo leitor de Freud sabe
como ele procura constituir os protocolos de uma verdadeira econômica.
Desde o momento em que procura derivar a dinâmica geral dos processos de julgamento de exigências gerais de maximização de prazer e de
afastamento do desprazer3, Freud parece mostrar como está disposto a
submeter expectativas prático-cognitivas a um cálculo econômico de
interesses no interior do qual um raciocínio meramente utilitarista desempenharia o papel de fundamento.
Mas há algumas precisões importantes a serem feitas a respeito
dessa econômica. A primeira é que a psicanálise trouxe uma noção
absolutamente particular de cálculo de interesse, uma noção profundamente não utilitarista. É tendo isso em vista que psicanalistas como
Jacques Lacan insistiram que a inteligibilidade da dinâmica pulsional
dos sujeitos não está vinculada à lógica polar do prazer–desprazer. Tal
inteligibilidade exige a introdução de outro campo conceitual com
sua lógica própria, um campo que desarticula as distinções estritas
entre prazer e desprazer. Esse campo se organiza a partir de uma noção
bastante peculiar de “gozo”. Nesse contexto, “gozo” não significa o
usufruto dos bens dos quais sou proprietário, mas algo totalmente
contrário, uma perspectiva de satisfação que não leva mais em conta
os sistemas de defesa e controle do Eu, perspectiva que flerta continuamente com experiências disruptivas, ou ao menos com a “retórica”
da transgressão (o que não deve nos estranhar, já que uma das fontes
dessa teoria do gozo vem exatamente da teoria da festa como fato
social total em Bataille, Roger Caillois e no Colégio de Sociologia4).
Como veremos, isso talvez explique certa tendência contemporânea
em utilizar o gozo como conceito-chave para compreender a economia libidinal própria à sociedade de consumo.
Ver, por exemplo, a segunda parte de Sigmund Freud, “Die Verneinung”, em Gesammelte Werke, cit., v. XIV.
Ver, por exemplo, Roger Caillois, “Le sacré de transgression: théorie de la fête”, em
L’homme et le sacré (Paris, Gallimard, 1950).
3
4
116 • Cinismo e falência da crítica
Há, no entanto, um problema de fundo que subsiste. Pois, através
da transformação de estruturas pulsionais e funções intencionais como
o desejo em solo privilegiado de inteligibilidade de processos sociais,
continuamos assumindo o risco de construir uma visão atomizada das
estruturas de interação social. Perspectiva de transformação de uma teoria pulsional em campo de inteligibilidade de processos sociais que causava repulsa a pensadores como, por exemplo, Claude Lévi-Strauss, para
quem: “Na verdade, as pulsões e as emoções não explicam nada; elas
sempre resultam seja da potência do corpo, seja da impotência do espírito. Consequências, nos dois casos; elas nunca são causas”5. Mas uma
afirmação como essa de Lévi-Strauss não leva em conta que podemos
aceitar sem problemas, e ao mesmo tempo, que pulsões e desejos não
são sistemas causais irredutivelmente individuais e que, através da socialização de tais pulsões e desejos, internalizamos processos gerais de
orientação do julgamento e da ação. Ou seja, por meio de tais processos
de socialização, internalizamos padrões gerais de racionalidade que tendem a guiar o comportamento social. Nesse sentido, é incorreto afirmar
que pulsões e emoções não explicam nada.
É fato que Lévi-Strauss e vários outros gostariam de simplesmente
dizer, por exemplo, que o desejo é um efeito do universo simbólico
social, uma disposição produzida integralmente por ele, e não sua causa. Assim, eles podem contentar-se com explicações sistêmicas e estruturais que não precisam levar em conta a maneira com que os sujeitos
fornecem uma perspectiva distinta daquela meramente estrutural de
significação de fenômenos sociais. Nesse sentido, podemos afirmar que
o encaminhamento freudiano é de fato radicalmente “psicologicista”,
mas, por isso, ele é mais “materialista” do que o de seus críticos. Pois ao
colocar como tarefa fundamental a possibilidade de considerações sobre
a ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos, ao afirmar
que há uma ontogênese social de tais capacidades que se revela na compreensão das dinâmicas de socialização, ele afirma o caráter empírico
(no sentido de absolutamente não transcendental) das estruturas gerais
daquilo que estamos dispostos a contar como racional. Há uma gênese
empírica das estruturas de orientação do que aspira ser visto como ação
5
Claude Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui (Paris, PUF, 2002), p. 105.
Por uma crítica da economia libidinal • 117
racional. A questão freudiana consiste em saber quais são os protocolos
fundamentais de determinação de tal gênese.
A natureza dessa empiricidade fica mais evidente se lembrarmos
que, para Freud e para grande parte da posteridade psicanalítica, os
dispositivos de formação e de individuação presentes nas dinâmicas de
socialização são legíveis a partir daquilo que compreendemos como sendo processos de identificação e de investimento libidinal. Até porque
socializar é, fundamentalmente, “fazer como”, atuar a partir de tipos
ideais que servem de modelos de identificação e de polo de orientação
para os modos de desejar, julgar e agir. No entanto, essa identificação
com tipos ideais não pode ser descrita simplesmente a partir de considerações sobre as pressões de coerção presentes em núcleos elementares
de interação social (família, instituições sociais, mídias). Freud compreendeu que as estruturas elementares que orientam o que está em jogo
nesses núcleos de interação são figuras privilegiadas da razão. As exigências de racionalidade presentes nesses núcleos são necessariamente
manifestações privilegiadas do que estamos dispostos a contar como
racional. No entanto, Freud nunca deixará de colocar a questão: “O que
é necessário perder para conformar-se a exigências de racionalidade presentes em processos hegemônicos de socialização e de individuação?”,
ou ainda: “qual é o preço a pagar, qual é o cálculo econômico necessário
para viabilizar tais exigências?”. Pois devemos nos perguntar o que deve
acontecer ao sujeito para que ele possa se pautar por um regime de racionalidade que impõe padrões de ordenamento, modos de organização
e estruturas institucionais de legitimidade. Neste ponto, vale a pena
voltarmos a algumas elaborações fundamentais presentes no texto freudiano a fim de encaminhar melhor qual pode ser uma economia libidinal à altura dos problemas da sociedade contemporânea.
Pressupostos sociais do supereu freudiano
Um dos principais conceitos criados por Freud para a análise de
fatos sociais foi o de supereu. Ao tentar explicar, através do mesmo
dispositivo, a gênese da consciência moral, do sentimento de culpa, dos
ideais sociais do eu e da internalização da lei simbólica, Freud deparou-se com um processo no qual socialização e repressão convergiam em
larga medida. Hoje, as páginas do Mal-estar na civilização que tratam
118 • Cinismo e falência da crítica
de tal imbricação são arquiconhecidas. “Toda cultura deve necessariamente edificar-se sobre a repressão e a renúncia pulsional” é uma frase
que ressoou como programa crítico durante todo o século XX.
Grosso modo, a frase de Freud indicava os resultados sociais de uma
relação ambivalente que se dá inicialmente no interior da família burguesa – relação marcada pela sobreposição entre rivalidade e identificação que aparece de maneira mais visível no conflito entre o filho e
aquele que sustenta a lei paterna. Para ser reconhecido como sujeito
e como objeto de amor no interior da esfera familiar, ou seja, para sair
de uma situação de desamparo e ver-se garantido em sua posição subjetiva enquanto objeto de amor, faz-se necessário que o sujeito se identifique exatamente com aquele que sustenta uma lei repressora em relação às exigências pulsionais. O resultado é a internalização psíquica de
uma “instância moral de observação”, no caso, o supereu resultante dessa
identificação parental. Isso faria com que toda afirmação do gozo ligado
à satisfação pulsional provocasse, necessariamente, um sentimento de culpa advindo da pressão sádica do supereu sobre o Eu. Sentimento de culpa
que não deixa de provocar, como benefício secundário, um modo neurótico de gozo.
Sabemos que a psicanálise freudiana normalmente opera com uma
perspectiva unívoca na compreensão da multiplicidade das ordens simbólicas. Há, por exemplo, a pressuposição de uma espécie de princípio de
articulação estrutural entre a autoridade familiar e as autoridades que
suportam outros vínculos sociais, como os vínculos religiosos ou políticos6. Tal articulação entre esferas aparentemente autônomas de valores
(família, religião, Estado) permite a Freud insistir que aquele que suporta
6
Isso levará Freud, por exemplo, a afirmar que “a exploração psicanalítica do indivíduo
ensina com uma insistência particular que o deus de cada homem é à imagem do pai, que
a relação pessoal a Deus depende da relação ao pai carnal, que ela oscila e se transforma a
partir desta última, e que Deus não é outra coisa que um pai elevado ao nível superior”
(“Totem und Tabu”, em Gesammelte Werke, cit., v. IX, p. 177). Ou ainda, a respeito do
comportamento social das massas: “Há nas massas humanas uma forte necessidade de
uma autoridade que se possa admirar [...]. A psicologia do indivíduo nos ensinou de onde
vem tal necessidade das massas. Trata-se da nostalgia do pai” (“Der Mann Moses und die
monotheistische Religion”, em Gesammelte Werke, cit., v. XVI, p. 217). Daí a fórmula
canônica a respeito da formação das massas: “Uma massa psicológica é a reunião de indivíduos que introduziram a mesma pessoa no supereu e que, na base dessa comunhão,
identificaram-se uns aos outros no eu” (“Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in
die Psychoanalyse”, em Gesammelte Werke, cit., v. XV, p. 74).
Por uma crítica da economia libidinal • 119
a função paterna não é apenas representante da lei da família, mas de uma
Lei que determina o princípio geral de estruturação do universo simbólico. Não se trata de tentar derivar as ordens simbólicas a partir do núcleo
familiar, mas de insistir no fato de que problemas de socialização do desejo no interior do primeiro campo de experiências do sujeito, ou seja, o
núcleo familiar, trazem necessariamente tensões de socialização em esferas
mais amplas. Isso abre caminho para Freud afirmar que o sentimento de
culpa “seria o mais importante problema no desenvolvimento da
civilização”7, e não simplesmente no desenvolvimento da família burguesa. Por outro lado, note-se que Freud não ignora a dependência das configurações familiares para com estruturas sociais mais amplas. No entanto, quem diz dependência não diz subsunção simples.
De fato, tudo isso é praticamente um lugar-comum atualmente.
Mas algumas modificações substanciais ocorreram em certos processos
de socialização e elas fazem com que o problema do supereu ganhe hoje
novas configurações. Esse ponto não deve provocar estranhamento pois,
se o supereu tem sua gênese exatamente a partir dos processos de socialização, se ele é “uma manifestação individual ligada às condições sociais
do edipismo”8, então ele necessariamente se modificará na medida em
que tais processos se reconfigurarem. Fato que, como veremos, Jacques
Lacan e a Escola de Frankfurt perceberam claramente ao pensar as incidências clínicas de uma modificação histórica maior bem definida por
críticos conservadores da modernidade: o advento de uma espécie de
“sociedade não repressiva”, vinculada à universalização das práticas de
consumo. Isso terá implicações na configuração dos modos de identificação social com suas consequências. Para entender o significado e o
alcance de tais elaborações, valeria a pena darmos um passo para trás.
Muito há ainda a se dizer, por exemplo, a respeito de certas articulações possíveis entre Freud e Max Weber como teóricos da modernização,
dos processos de racionalização e de suas consequências. Não deixa de ser
Sigmund Freud, “Das Unbehagen in der Kultur”, em Gesammelte Werke, cit., v. XIV,
p. 494.
Jacques Lacan, Écrits (Paris, Seuil, 1966), p. 136. O que fica muito claro quando Freud
afirma que “o supereu adota também as influências de pessoas que tomaram o lugar dos
pais, como educadores, mestres, modelos ideais. Ele normalmente se distancia cada vez
mais dos indivíduos paternos originários e torna-se mais impessoal” (“Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse”, em Gesammelte Werke, cit., v. XV, p. 70).
7
8
120 • Cinismo e falência da crítica
tentador lembrar como esse supereu que articula uma consciência moral
fundada na repressão de moções pulsionais teve, por exemplo, uma função social preciosa no desenvolvimento do capitalismo como sociedade de
produção. Isso nos permite afirmar que a economia libidinal da sociedade
de produção teria alimentado uma instância psíquica como o supereu
repressor, o que pode explicar certos motores de sua permanência.
Weber, ao insistir que a racionalidade econômica dependia fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de
conduta, lembrava que nunca haveria capitalismo sem a internalização psíquica de uma ética protestante do trabalho e da convicção,
estranha ao cálculo utilitarista e cuja gênese deve ser procurada no
calvinismo. Ética esta que Weber encontrou no ethos protestante da
acumulação de capital e do afastamento de todo gozo espontâneo
da vida. O trabalho que marcava o capitalismo como sociedade de
produção era uma atividade que não visava exatamente o gozo do
serviço dos bens, mas a acumulação obsessiva daqueles que “de sua
riqueza ‘nada tem’ para si mesmo, a não ser a irracional sensação de ‘cumprimento do dever profissional’”9. Weber chega a falar em um “estímulo
psicológico”10 produzido pela pressão ética e satisfeito pela realização de
um trabalho como fim em si, ascético e marcado pela renúncia ao gozo.
O que o leva a insistir que
esse é o summum bonum dessa “ética”: ganhar dinheiro e sempre mais
dinheiro, no mais rigoroso resguardo de todo gozo imediato do dinheiro
ganho, algo tão completamente despido de todos os pontos de vista
eudemonistas ou mesmo hedonistas e pensado tão exclusivamente como
fim em si mesmo que, em comparação com a “felicidade” do indivíduo ou sua “utilidade”, aparece em todo caso como inteiramente
transcendente e simplesmente irracional.11
A irracionalidade desse processo de racionalização do trabalho, ao
menos a partir de uma lógica eudemonista ou hedonista, pode indicar-nos seu caráter superegoico.
Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo (São Paulo, Companhia das
Letras, 2004), p. 62.
9
Ibidem, p. 116.
Ibidem, p. 46.
10
11
Por uma crítica da economia libidinal • 121
Weber indica-nos claramente vários traços superegoicos dessa Lei
da ética protestante do trabalho: a transformação do Pai celestial que
suportava a Lei no Novo Testamento em um Pai severo superegoico
(“ser transcendente que escapa à compreensão humana”12), um trabalho
feito como vocação que é resposta à voz do Outro (no caso, o chamado
de Deus13), a culpabilização de todo prazer sensível (rebaixamento do
sensível que Freud compreendeu como figura maior da renúncia pulsional) e a entificação obsessiva de um “autocontrole sereno” como ideal
de conduta14, um autocontrole que se traduz na repressão ao prazer
polimórfico em prol da fixidez identitária no mundo do trabalho – fixidez já presente na ideia de “vocação”.
Sendo assim, se a lei moral que sustenta a disposição dos sujeitos
em adotar certos tipos de conduta econômica é uma figura do supereu15,
então a economia libidinal do capitalismo como sociedade de produção
seria impensável sem o desenvolvimento de uma civilização neurótica
que só poderia pensar seus processos de socialização através da instrumentalização repressiva do sentimento de culpa. E Freud não teme falar
nesse caso de “patologias das comunidades culturais”16 (Pathologie der
kulturellen Gemeinschaften). O que não significa que todos os sujeitos
de uma determinada sociedade serão neuróticos, mas que os ideais
socioculturais responsáveis por processos de socialização baseados em
identificações tendem a produzir estruturas libidinais neuróticas.
Tais considerações demonstram a função do recurso à psicanálise
no interior de uma teoria dos processos de modernização e racionalização. Costumamos aceitar tacitamente que agir e julgar racionalmente
Ibidem, p. 95.
Lembremos como Lacan insiste que a voz e o olhar são objetos parciais os quais indicam a
redução da Lei à dimensão do supereu. Esse caráter superegoico da vocação fica claro em
afirmações como: “Contra todas as tentações sexuais, do mesmo modo que contra as dúvidas religiosas e os escrúpulos torturantes, além de uma dieta sóbria à base de refeições vegetarianas e banhos frios, receita-se ‘trabalho duro na [tua] profissão’” (ibidem, p. 144).
Ibidem, p. 95.
Proposição que não seria absolutamente estranha a Freud, para quem a gênese da consciência moral (Gewissen) era necessariamente derivada de um fato empírico. Donde se
segue que, para o materialista Freud, a moralidade é fruto de um processo ligado aos
modos de reprodução material da vida social. Neste ponto, remeto ao meu “O ato para
além da Lei”, em Um limite tenso (São Paulo, Unesp, 2003).
Sigmund Freud, “Das Unbehagen in der Kultur”, em Gesammelte Werke, cit., v. XIV, p. 505.
12
13
14
15
16
122 • Cinismo e falência da crítica
significa, entre outras coisas, determinar a conduta a partir de práticas
e instituições que aspiram a uma validade legitimada. A ação racional
pressupõe, mesmo que como horizonte regulador, a possibilidade de
institucionalização de critérios de justificação legitimados pelo assentimento não coercivo. No entanto, tal possibilidade já deve estar atualmente em operação, mesmo que de maneira imperfeita (ou, ainda, ambivalente), através de instituições e práticas que socializam sujeitos cujas
ações e julgamentos aspiram a racionalidade.
As colaborações maiores de Freud consistiriam, nesse caso, em insistir que tais processos de socialização se dão inicialmente no interior da
família e, por isso, são marcados pelos conflitos e representações imaginárias próprios ao universo familiar; um universo no qual demanda de amor
e exigências de submissão estão absolutamente imbricadas. Eles são, ao
mesmo tempo, a realização de aspirações racionais e a produção de instâncias repressivas que agem individualmente nos sujeitos através da culpabilização de exigências pulsionais. Toda socialização é normativa, ela é
normatividade que se impõe à vida com suas exigências de satisfação
pulsional. Max Weber não havia mostrado outra coisa ao insistir que a
gênese da ética protestante do trabalho na constituição da racionalidade
do capitalismo era solidária do ascetismo e da restrição ao gozo.
No entanto, conhecemos várias críticas à plausibilidade dessa “hipótese repressiva”, e uma das principais vem de Michel Foucault. Em
História da sexualidade, ele não deixa de criticar esse vínculo entre ascetismo e consolidação da sociedade capitalista de produção. Insiste que
as tecnologias de si, próprias ao mundo burguês moderno, não podem
ser compreendidas como simples dispositivos repressivos montados
contra um corpo libidinal metafisicamente pressuposto, substrato natural que apareceria como base para as operações do poder. Ao contrário,
deveríamos “abandonar o energitismo difuso que sustenta o tema de
uma sexualidade reprimida por razões econômicas”17. Só assim poderíamos compreender que a modernidade foi um longo processo de
constituição (e não de repressão) da sexualidade, implementação de
um poder disciplinar que constituiu tanto mecanismos de incitação a
modos de investimento libidinal reconhecidos socialmente quanto
figuras de resistência; já que o verdadeiro poder não se funda apenas
17
Michel Foucault, Histoire de la sexualité I (Paris, Gallimard, 1976), p. 151.
Por uma crítica da economia libidinal • 123
em operações de gestão coerciva de padrões normativos de conformação, mas principalmente na produção dos próprios modos de resistência à “dominação”. Foucault quer liberar a reflexão do poder de temáticas vinculadas à opressão, a fim de permitir a melhor compreensão
do caráter criador de um poder que engendra, um biopoder que incita modos de investimento libidinal, assim como modos de conflito.
Tendo isso em vista, Foucault pode dizer, por exemplo, que os processos de entificação do ascetismo e da desqualificação da carne analisados por Max Weber eram inicialmente, na verdade, técnicas de “intensificação do corpo, de problematização da saúde e de suas condições
de funcionamento”18. Maneira, por exemplo, de assegurar a longevidade e a não corrupção da descendência. Contra essas práticas disciplinares que constituem a sexualidade, não se trataria de consolidar críticas
aos processos de interversão das expectativas de racionalidade em regimes de dominação de si. A verdadeira crítica consistiria em, de uma
forma ou de outra, “desativar” os dispositivos de sexualidade, cortando
o vínculo tacitamente aceito entre sexo e lugar da verdade, suspendendo
a economia libidinal alimentada por processos disciplinares.
No entanto, há duas considerações a fazer a respeito dessa perspectiva de Foucault. Primeiro, uma análise psicanaliticamente orientada
não teria maiores dificuldades em aceitar a temática de um biopoder
que engendra dispositivos de sexualidade. Lembremos que o problema
maior levantado por Freud a respeito dos modos de internalização da
Lei através do supereu consiste exatamente em mostrar como dinâmicas
de repressão se transformam em modo neurótico de satisfação, em mostrar como aquilo que nos adoece é fonte de gozo. Nesse sentido, a hipótese repressiva é apenas a descrição de um modo de internalização de
práticas disciplinares.
Mas é fato que a temática da “repressão” nos leva à pressuposição
de um corpo libidinal “naturalizado”, no sentido de não ser totalmente
redutível à condição de efeito da ordem do discurso. Não há por que
negar esse ponto, assim como não há por que negar sua importância em
temáticas, como a adorniana, de interversão da razão em procedimento
de dominação da “natureza interna”. Melhor seria mostrar como o próprio Foucault é muitas vezes obrigado a retomar um substrato corporal
18
Ibidem, p. 162.
124 • Cinismo e falência da crítica
para além da esfera da ordem do discurso a fim de sustentar procedimentos de crítica ao poder 19. Ou seja, melhor seria mostrar que não é
fácil livrar-se da “hipótese repressiva”.
Da produção ao consumo
De qualquer forma, não há como esquecer que a contemporaneidade do diagnóstico social de bloqueio dos processos de modernização
devido a uma socialização construída a partir da repressão pulsional
superegoica foi paulatinamente revista pela posteridade dos leitores de
Freud. Muito já se falou, por exemplo, a respeito das incidências do
declínio da imago paterna na reconfiguração dos processos de socialização e sua posterior consequência na formação de ideais sociais repressivos. Mas vale a pena insistir aqui em um outro ponto. Se é fato que a
incidência social da figura do supereu estaria vinculada (embora não se
trate necessariamente de uma relação de causalidade simples) a uma
certa “dinâmica libidinal” da sociedade de produção através da entificação da ética do trabalho, então devemos pensar as consequências libidinais do esgotamento da sociedade de produção, ao menos tal como ela
aparecia no início do século para Freud e Weber. Podemos seguir aqui
aqueles que insistem na temática do declínio da sociedade do trabalho
e da obsolescência do paradigma da produção20. Ao invés da sociedade
da produção, devemos compreender a contemporaneidade e seus traços
a partir da temática da sociedade do consumo, no sentido em que problemas vinculados ao consumo acabam por direcionar a racionalidade do
processos de interação social e de desenvolvimento subjetivo, assim
como é o incentivo ao consumo que aparece como problema econômico central. Ou seja, podemos nos perguntar se a obsolescência do paradigma da produção não implica na queda do trabalho como processo
Judith Butler percebeu claramente essa ambiguidade de Foucault, principalmente em
um pequeno texto dedicado ao caso de uma hermafrodita, Herculine Barbin, que é
descrita como alguém que vive no “limbo feliz da não identidade” (ver “Foucault,
Herculine, and the politics of sexual discontinuity”, em Gender trouble, Nova York,
Routledge, 1999).
Ver, por exemplo, o clássico Joachim Matthes (org.), Krise der Arbeitsgesellschaft (Frankfurt, Campus, 1983) ou ainda os trabalhos de André Gorz, como Misérias do presente,
riqueza do possível (São Paulo, Annablume, 2004).
19
20
Por uma crítica da economia libidinal • 125
fundamental de socialização e de constituição de padrões de racionalidade social.
Lembremos inicialmente que, em virtude do desenvolvimento tecnológico exponencial e do aumento da produtividade, cada vez menos
sujeitos precisam estar envolvidos diretamente nos processos de produção21. Mesmo na esfera do trabalho, modificações estruturais ocorreram. “Desde os anos 1940”, lembra-nos Claus Offe, “é recorrente a
hipótese genérica de que, a partir de certo grau de industrialização,
a tendência de desenvolvimento da sociedade industrial se alteraria no
sentido da expansão do setor terciário, e não mais do industrial.22” Tal
crescimento do setor terciário indica, entre outras coisas, que boa parte
dos novos empregos está fundamentalmente envolvida em processos de
ampliação do consumo, de manuseio da retórica do consumo (vendas,
publicidade, marketing, design, administração), de “manipulação de
símbolos”23 ou, ainda, de manutenção da produção em sua forma social
(saúde, educação, segurança). Se pensarmos principalmente no primeiro e segundo grupos, veremos que no interior mesmo da esfera de trabalho os sujeitos se deparam com imperativos conflitantes, pois seu
trabalho visa a disponibilização de serviços que não se submetem à reprodução da ética do trabalho.
No entanto, a modificação principal talvez diga respeito à figura
que permite ao trabalho aparecer como horizonte ideal de reconhecimento no interior das formas hegemônicas de vida no capitalismo contemporâneo, figura esta que não possui mais relações com o espírito do
Isso gera, entre outras coisas, uma realidade social da flexibilização do trabalho com o
consequente aumento das horas de trabalho em empregos múltiplos e precários. No
entanto, essa nova realidade do trabalho produz uma situação extremamente relevante
para a nossa hipótese: uma sociedade do trabalho sem ética do trabalho. Ou seja, uma sociedade que exige cada vez mais a disponibilização desesperada dos sujeitos para o trabalho, mas, por outro lado, não procura mais legitimar tais exigências por meio de uma
ética do trabalho. O que não impede que os trabalhadores empregados pelas grandes
empresas possam ter uma percepção de si como uma elite, “não porque tenham aptidões
superiores, mas porque foram selecionados dentre uma massa de indivíduos tão aptos
quanto eles de modo a perpetuar a ética do trabalho em um contexto econômico em
que o trabalho perde objetivamente sua ‘centralidade’” (André Gorz, Misérias do presente, riqueza do possível, cit., p. 57).
Claus Offe, Trabalho e sociedade (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1991), p. 12.
Ver Robert Reich, L’économie mondialisée (Paris, Dunod, 1993).
21
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23
126 • Cinismo e falência da crítica
capitalismo marcado pela ética protestante do trabalho. Estudos sobre
o “novo espírito do capitalismo”24 insistem que os imperativos de flexibilização, mobilidade e multiplicidade de atividades ligados ao mundo
do trabalho tiveram um impacto decisivo na economia libidinal dos
sujeitos, pois permitiram a aproximação do ideal do trabalho com um
certo ideal de gozo em operação no mundo do consumo. Maneira de
salientar que os dispositivos de controle no mundo do trabalho são agora
decalcados das dinâmicas em operação nas práticas de consumo.
Compreenderemos melhor esse ponto se lembrarmos que a mudança de paradigma da sociedade industrial da produção para a sociedade
pós-industrial do consumo traz uma série de consequências fundamentais, a começar pelo fato de que os modos de alienação necessários para
entrarmos no mundo da produção não são totalmente simétricos aos
modos de alienação que fazem parte do mundo do consumo. De maneira esquemática, podemos afirmar que o mundo capitalista da produção estava vinculado à ética do ascetismo, da acumulação (“o prazer que
submete todos os prazeres”) e pela fixidez identitária que se manifesta
como vocação para funções específicas e especializadas. O mundo do
consumo pede, por sua vez, uma ética do direito ao gozo. Pois o que o
discurso do capitalismo contemporâneo precisa é da procura do gozo que
impulsiona a plasticidade infinita da produção das possibilidades de
escolha no universo do consumo. Ele precisa da regulação do gozo no
interior de um universo mercantil estruturado. Para sermos mais precisos, ele precisa da instauração daquilo que Jacques Lacan chama de um
“mercado do gozo”25, gozo disponibilizado através da infinitude plástica
da forma-mercadoria.
Essa ética do direito ao gozo se manifesta, preferencialmente, como
“liberação” propiciada pela plasticidade da forma-mercadoria. Liberação em relação às amarras de identidades fixas, já que a circulação no
mundo do consumo absorve a desconstrução da noção de autenticidade pensada como autoidentidade e exigência de conformação a um
ideal. A autoidentidade aparece, tanto no mundo do consumo quanto
no mundo do trabalho, como rigidez, assim como a conformação a um
Principalmente, Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme (Paris,
Gallimard, 1998).
Jacques Lacan, Séminaire XVI, sessão de 13/11/1968.
24
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Por uma crítica da economia libidinal • 127
ideal aparece como desconhecimento da variabilidade infinita dos seres
e da diferença. Por isso, trata-se de uma liberação em direção à flexibilidade, à leveza do que não tem mais contas a acertar com o peso metafísico da identidade.
A consciência dessa passagem da ética protestante do trabalho
ascético para a ética do direito ao gozo aparece, por exemplo, na crítica conservadora de Daniel Bell à dissociação entre os imperativos
tecnoeconômicos de produção e os imperativos culturais na modernidade ligados ao desenvolvimento do Eu e ao princípio do prazer: “O
novo capitalismo (o uso dessa palavra data dos anos 1920) continua
exigindo as regras da moral protestante no domínio da produção – ou
seja, no domínio do trabalho –, mas estimula ao mesmo tempo o direito ao prazer e ao entretenimento”26. Essa contradição de imperativos
marca a tensão que encontramos na passagem de uma sociedade da
produção para a sociedade do consumo. Tensão que o próprio Bell reconhece muito bem ao lembrar que “o maior instrumento de destruição
da ética protestante foi a invenção do crédito. Antes, para comprar, era
necessário primeiro economizar. Mas, com um cartão de crédito, nós
podemos satisfazer imediatamente nossos desejos”27.
Dessublimação repressiva e a função social do supereu
O que nos interessa aqui são certas consequências psíquicas dessa
passagem da sociedade da produção para a sociedade do consumo. Jacques Lacan identificou talvez a maior delas ao insistir que a figura social
dominante do supereu na contemporaneidade não estava mais vinculada à repressão das moções pulsionais, mas à obrigação da assunção dos
Daniel Bell, The cultural contradiction of the capitalism (Nova York, Basic Books, 1978),
p. 85. Ou, como nos lembra Thomas Frank: “Desde a década de 1920, pelo menos, o
consumismo vem sendo uma forma de revolta contra valores mais antigos, ligados à produção. Enfatizou o prazer e a gratificação, em oposição à restrição e à repressão da tradição
puritana” (“O marketing da libertação do capital”, Cadernos Le Monde Diplomatique, n. 5,
2003, p. 43). Max Weber já havia percebido essa mudança inexorável na moralidade
econômica do capitalismo ao afirmar: “No setor de seu mais alto desenvolvimento, nos
Estados Unidos, a procura da riqueza, despida de roupagem ético-religiosa, tende cada vez
mais a associar-se com paixões puramente mundanas que frequentemente lhe dão o caráter de esporte” (A ética protestante e o espírito do capitalismo, cit., p. 143).
Daniel Bell, The cultural contradiction of the capitalism, cit., p. 31.
26
27
128 • Cinismo e falência da crítica
fantasmas. Não mais a repressão ao gozo, mas o gozo como imperativo. Daí
ele nos lembrar que o verdadeiro imperativo do supereu na contemporaneidade é “Goze!”, ou seja, o gozo transformado em uma obrigação28.
Já há muito não vemos mais a hegemonia de discursos sociais que
pregam a repressão. Hoje, o verdadeiro discurso que sustenta os vínculos
socioculturais da contemporaneidade é, digamos, mais maternal. Trata-se, por exemplo, do “cada um tem direito a sua forma de gozo” (ou,
ainda, “cada um deve encontrar sua forma de gozo”) que podemos encontrar na liberação multicultural da multiplicidade das formas possíveis de
sexualidade em nossas democracias liberais29. Devemos pensar aqui na
tese de que a incitação e a administração do gozo se transformaram
na verdadeira mola propulsora da economia libidinal da sociedade de
consumo, ao invés da repressão própria à sociedade da produção.
De fato, a Escola de Frankfurt já oferecia um aparato para pensar
tal situação através do conceito de “dessublimação repressiva”, utilizado inicialmente para a compreensão de certas características das sociedades totalitárias. Sabemos como a noção de dessublimação repressiva
aparece no edifício frankfurtiano, entre outras coisas, como possibilidade de instrumentalização social direta das moções pulsionais sem
recalcamento, fruto de uma época na qual o Eu não seria mais capaz
de impor-se como instância de mediação entre as exigências pulsionais
do isso e o princípio de realidade. Adorno, por exemplo, chega a falar
em “expropriação do inconsciente pelo controle social”30, que se imporia em razão da fraqueza do Eu. Em paragens distintas, Lacan, ao falar
da “assimilação social do indivíduo levada ao extremo”31, não pensava
Jacques Lacan, Séminaire XX (Paris, Seuil, 1975), p. 10.
O adjetivo “maternal” não funciona aqui como simples metáfora. Ele faz alusão à noção
psicanalítica (presente desde os trabalhos de Melanie Klein) a respeito da existência de um
supereu materno resultante da introjeção do investimento libidinal da figura materna. Processo este anterior à consolidação de um supereu através da introjeção da identificação
paterna como saldo da saída do complexo de Édipo. Ele responde também pelo problema
referente ao princípio de investimento libidinal em vínculos sociais no interior de uma
sociedade marcada pelo “declínio da imago paterna”, para falar como Lacan.
Theodor Adorno, “Freudian theory and the patterns of fascist propaganda”, em Soziologische Schriften I (Frankfurt, Suhrkamp, 1980), p. 431.
Jacques Lacan, Écrits, cit., p. 146. Ou ainda, quando ele escreve sobre “o desenvolvimento que crescerá, neste século, dos meios de agir sobre o psiquismo, um manejo
concertado das imagens e paixões do qual já se fez uso com sucesso” (Autres écrits, Paris,
Seuil, 2001, p. 120).
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Por uma crítica da economia libidinal • 129
em outra coisa, à exceção de que, para o psicanalista parisiense, o Eu
não é exatamente uma instância de mediação, mas já é desde sempre
construção reificada de imagens socialmente ideais. Daí a falta de sentido em procurar evitar a expropriação social do inconsciente através de
alguma espécie de “fortalecimento” do Eu (de que Adorno tampouco
estava à procura).
Mas no interior desse debate, devemos lembrar como Marcuse configura corretamente tal expropriação do inconsciente como neutralização social do conflito entre princípio de prazer e princípio de realidade
através de uma satisfação administrada, ou seja, “uma liberalização controlada que realça a satisfação obtida com aquilo que a sociedade oferece”, pois, “com a integração da esfera da sexualidade ao campo dos
negócios e dos divertimentos, a própria repressão é recalcada”32. Ou
seja, abre-se a todos esses autores a consciência de uma modificação
substancial nos processos de socialização. Eles compreendem a tendência das imagens sociais ideais não estarem mais vinculadas a representações do “autocontrole sereno” da renúncia pulsional como princípio de
conduta. Com a “integração da esfera da sexualidade ao campo dos
negócios”, ou seja, com a incitação ao gozo como elemento central na
lógica de reprodução mercantil do capitalismo, o que proliferam são
imagens ideais daqueles que instrumentalizam seus fantasmas e pautam
sua conduta pela exigência irredutível de gozo.
Para compreendermos melhor esse aspecto, devemos lembrar que
falta à construção frankfurtiana a compreensão de que tal expropriação
do inconsciente se dá, na contemporaneidade, através de novas figuras
sociais do supereu33. Não se trata de uma correção sem maiores consequências. Suas implicações ficam visíveis se seguirmos o problema do
supereu na experiência intelectual lacaniana.
Herbert Marcuse, Cultura e sociedade II (São Paulo, Paz e Terra, 1996), p. 106.
O que Slavoj ŽiŽek já havia indicado ao afirmar: “A dessublimação repressiva é apenas
uma maneira, a única maneira possível, no contexto teórico da Teoria crítica da Sociedade, de dizer que, no totalitarismo, a Lei social começa a funcionar como supereu,
assume os traços de um imperativo do supereu” (Eles não sabem o que fazem: o sublime
objeto da ideologia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992, p. 31).
32
33
130 • Cinismo e falência da crítica
A inversão lacaniana do supereu
A longa elaboração lacaniana a respeito do supereu terminou na
definição do “Goze!” como o verdadeiro imperativo superegoico. Vale
sempre a pena salientar como essa elaboração é inversa àquilo que normalmente encontramos em Freud. Sabemos que em Freud o supereu é
resultado de um processo no qual socialização e repressão convergem por
causa da exigência cada vez mais inconsistente de renúncia pulsional.
Como vemos na reflexão freudiana sobre a neurose obsessiva, é a culpabilização do gozo que aparece como resultado da ação do supereu.
Lacan, no entanto, tem clara consciência da modificação dos processos de socialização na contemporaneidade e de seu impacto na configuração da figura do supereu. Em um diagnóstico de época simétrico
àquele fornecido por Horkheimer em 1936, ele insiste no “grande número de efeitos psicológicos derivados do declínio social da imago paterna. Declínio condicionado pelo retorno sobre o indivíduo de efeitos
extremos do progresso social” como a “concentração econômica e as
catástrofes políticas”34. Podemos pensar que Lacan tem em mente, entre
outras coisas, o problema horkheimeano do enfraquecimento da autoridade paterna devido ao impacto, no interior da família, do desenvolvimento impessoal da grande corporação burocrática. Impacto que faz
com que a figura paterna (o que não quer dizer a função paterna, tal
distinção será utilizada a exaustão por Lacan) seja cada vez mais “ausente, humilhada, carente ou postiça”35.
No entanto, o declínio da figura ideal paterna não significa em
absoluto decréscimo da pressão do supereu e de suas consequências.
Lacan trabalhará por trinta anos até chegar à explicação de que o declínio
da imago paterna abria espaço para o advento de figuras fantasmáticas
de autoridade que se assemelhavam ao pai primevo do mito freudiano
de Totem e tabu, ou seja, ao pai-senhor do gozo, que pauta suas ações pela
procura incessante da satisfação imediata. Figura perversa, feroz e obscena, como dizia Lacan, que pouco tem a ver com a figura tradicional
de um pai que faz convergir imperativos de repressão e de sublimação.
Isso fará Lacan afirmar, por exemplo, que a verdadeira versão do pai é
Jacques Lacan, Autres écrits, cit., p. 60.
Ibidem, p. 61.
34
35
Por uma crítica da economia libidinal • 131
uma père-version. A esse respeito, e em outras paragens, Christopher
Lasch dirá corretamente que o declínio da figura paterna é um dado
fundamental, “não tanto porque ele priva a criança do modelo de papel
a representar, mas por permitir que fantasias primitivas com o pai dominem o desenvolvimento subsequente do superego”36.
A questão de Lacan torna-se, então: o que significa pensar processos
de socialização a partir de “tipos ideais” que pautam suas ações pela procura incessante de satisfação imediata? Fundamentalmente, significa dizer
que a identificação do sujeito com tais tipos será introjetada através de um
supereu não mais vinculado à repressão, mas ao imperativo do gozo. Daí
Lacan poder afirmar que “o supereu se origina desse pai original mais do
que mítico, desse apelo como tal ao gozo puro, ou seja, apelo também a
não castração: Goze!”37. Os processos de socialização tendem assim a não
estar mais vinculados ao mecanismo de repressão, mas a mecanismos que
cobram um modo muito peculiar de gratificação irrestrita.
No entanto, poderíamos perguntar: qual é o problema com tal supereu? A princípio, nada melhor do que uma instância psíquica capaz
de impulsionar exigências de gratificação do gozo e que marcaria todos
os discursos repressivos com o selo da obsolescência. Ela seria a realização
perfeita dessa moralidade libidinal necessária à multiplicidade plástica
da sociedade de consumo. No entanto, “tal ordem [Goze!] é impossível
de ser satisfeita”38, e devemos nos perguntar de onde vem tal impossibilidade estrutural.
Lacan sempre insistiu que a lei do supereu era uma “lei insensata”39,
que funciona como um significante desprovido de significado. Tal caráter insensato indica, entre outras coisas, que o supereu não tem nenhum conteúdo normativo, ele nada diz sobre como gozar ou qual é o
objeto adequado ao gozo. Diz apenas um “Goze!” sem predicações, um
Christopher Lasch, A cultura do narcisismo (São Paulo, Brasilisense, 1986), p. 215. Ou
ainda: “À medida que as figuras de autoridade na sociedade moderna perdem sua ‘credibilidade’, o supereu individual cada vez mais tem origem nas primitivas fantasias infantis sobre seus pais – fantasias carregadas de ódio sádico – e não em ideais do eu interiorizados, formados pela experiência posterior com modelos amados e respeitados de
conduta social” (p. 33).
Jacques Lacan, Séminaire XIX, sessão de 16/6/1971.
Ibidem.
Idem, Séminaire I (Paris, Seuil, 1975), p. 119.
36
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132 • Cinismo e falência da crítica
puro “não ceda em seu desejo”. O caráter insensato desse puro gozo fica
evidente se pensarmos que toda escolha empírica de objeto é inadequada a um gozo que procura afirmar-se em sua pureza de determinações,
em sua independência em relação a toda e qualquer fixação privilegiada
de objetos. Ele só pode realizar-se no “infinito ruim” do consumo e da
destruição incessante dos objetos, que nada mais faz do que atualizar
um excedente de gozo40. Ou seja, estamos diante de um supereu perfeito para uma sociedade que deve alimentar o fluxo contínuo de equivalências em campos sociais cada vez mais alargados.
Nesse sentido, esse supereu lacaniano representa um passo além de
ideias como, por exemplo, as que animam a compreensão de Michel
Foucault a respeito da mudança nas táticas dos processos disciplinares a
partir, sobretudo, dos anos 1960. Mudança retratada em afirmações do
tipo: “Como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: ‘Fique nu... mas seja magro, bonito, bronzeado!’”41. Ou
seja, apresente sua sexualidade... mas no interior de formas socialmente
fornecidas e codificadas pelo mercado. No entanto, o que o conceito
lacaniano de supereu nos indica é a desvinculação geral entre imperativo
de gozo e conteúdos normativos privilegiados. Volto a insistir, a lei do supereu é vazia, sem determinações privilegiadas. Dessa forma, ela pode
nos ajudar a compreender porque, na sociedade contemporânea de consumo, “magro, bonito e bronzeado” pode facilmente ser trocado, por
exemplo, por “doente, anoréxico e mortífero” sem prejuízos para sua
capacidade momentânea de mobilização de desejos.
O próprio uso de “gozo” como conceito privilegiado para a compreensão da economia libidinal da sociedade de consumo nos diz muito. Como foi dito anteriormente, o conceito de gozo permite a Lacan
desenvolver explicações de orientação da conduta com base na procura
de satisfação pulsional, mas sem, com isso, apelar para os cálculos
utilitaristas de maximização do prazer-afastamento do desprazer. Apelo
Lacan compreendeu esse caráter “puro” da Lei superegoica ao analisar a função da Lei
no interior do universo fantasmático do marquês de Sade. A Lei sadiana, que ordena a
todos os sujeitos o “direito de gozo”, funda-se exatamente na rejeição de toda fixação
privilegiada de objeto. Esse princípio de equivalência geral entre objetos leva à negação
destrutiva de todo objeto.
Michel Foucault, Microfísica do poder (Rio de Janeiro, Graal, 1981), p. 147.
40
41
Por uma crítica da economia libidinal • 133
que acabaria por levar a crítica da sociedade de consumo ao campo da
denúncia de certo hedonismo como padrão geral de racionalidade.
Não é sem interesse neste contexto lembrar que o conceito de gozo,
ao menos tal como Lacan inicialmente o utiliza, vem de uma certa
teoria social que procura explicar fenômenos como o sacrifício, a festa, o sagrado e práticas de consumo de objetos (como o potlatch) que
não se submetem à lógica utilitária dos bens. Fenômenos sociais em
que suspensão transgressora da norma e conservação da norma ordenadora se confundiriam.
Ao ser utilizado para a compreensão das dinâmicas próprias aos
processos de socialização e à economia libidinal da sociedade de consumo, tudo se passa como se Lacan afirmasse que o modo de satisfação
próprio às sociedades de consumo não está vinculado à simples repetição normatizada de padrões e estereótipos. Ao contrário, seu modo
de satisfação só pode ser compreendido se aceitarmos a existência de
um processo no qual posição de padrões e transgressão estão absolutamente imbricados.
A sociedade da insatisfação administrada
e seus dispositivos disciplinares
Vale a pena insistirmos nesse ponto. Como, em última instância,
toda determinação se mostrará provisória e inadequada diante de um
imperativo superegoico que exige o puro gozo, faz-se necessário que o
sistema de mercadorias disponibilize determinações de maneira cada
vez mais descartável e rápida, importando-se cada vez menos com o
pretenso conteúdo de tais determinações. Em última instância, isso nos
faz passar de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da insatisfação administrada, na qual ninguém realmente acredita
nas promessas de gozo veiculadas pelo sistema de mercadorias (já que
são postas para serem descartadas), a começar pelo próprio sistema, que
as apresenta de maneira cada vez mais autoirônica e “crítica”42. Ou seja,
42
O que já havia sido claramente compreendido por Guy Debord. Lembremo-nos de sua
afirmação: “À aceitação dócil do que existe pode juntar-se a revolta puramente espetacular: isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em
que a abundância econômica foi capaz de estender sua produção até o tratamento dessa
134 • Cinismo e falência da crítica
estamos diante de uma sociedade na qual os vínculos com os objetos
(incluindo aqui os vínculos com a imagem de si) são frágeis, mas que,
ao mesmo tempo, é capaz de alimentar-se dessa fragilidade. Até porque
não se trata de disponibilizar exatamente conteúdos determinados de
representações sociais através do mercado. Trata-se de disponibilizar a
pura forma da reconfiguração incessante que passa por e anula todo
conteúdo determinado.
O segredo dessa sociedade na qual os vínculos com os objetos são
frágeis, mas que é capaz de alimentar-se dessa fragilidade mesma está
naquilo que chamamos de “ironização absoluta dos modos de vida”.
Pois, em uma sociedade da insatisfação administrada, os sujeitos não
são mais chamados a identificar-se com tipos ideais construídos a partir
de identidades fixas e determinadas, o que exigiria engajamentos e certa ética da convicção, fato impossível em uma situação de crise de legitimidade como a nossa. Na verdade, eles são cada vez mais chamados a
sustentar identificações irônicas, ou seja, identificações nas quais, a todo
momento, o sujeito afirma sua distância em relação àquilo que ele está
representando ou, ainda, em relação a suas próprias ações. Pois uma
exigência irrestrita de gozo que procura realizar-se através da anulação
de toda determinidade “restritiva” encontra sua forma perfeita na ironia
absoluta que reenvia todo vínculo com a determinidade ao campo do
inefetivo. Assim, essa ironização absoluta dos modos de vida com sua
lógica de autonomização da aparência nada mais é do que posição
subjetiva que internalizou a desvinculação geral entre imperativo de gozo
e conteúdos normativos privilegiados própria a essa nova figura social do
supereu. Ela ganha relevância em uma situação histórica, como a nossa,
na qual a ideologia no capitalismo pode livrar-se de todo e qualquer
vínculo privilegiado a conteúdos substantivos, pois:
Da mesma forma que o sujeito irônico pode adotar qualquer discurso
ou persona, o capitalismo pode colocar no mercado qualquer discurso ou
valor [...]. Ironia representa, ao mesmo tempo, uma tendência e um
problema do capitalismo. Ela sempre pôs algum ponto para além de
matéria-prima” (A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto, 2002, p. 40).
Ou seja, nada impede que a frustração com o universo fetichizado da forma-mercadoria
e de suas imagens ideais possa transformar-se também em uma mercadoria.
Por uma crítica da economia libidinal • 135
todo conteúdo ou valor particular. Nesse sentido, ela antecipou a tendência do capitalismo em atravessar contextos e produzir um ponto
universal a partir do qual todos valores podem ser intercambiados.43
Há muito nossos dispositivos disciplinares não procuram mais produzir subjetividades através da internalização de sistemas unificados de
condutas e regras. Até porque nossa época desenvolveu dispositivos disciplinares que são subjetivados “de maneira paródica” por procurar levar
sujeitos a constituírem sexualidades e economias libidinais que absorvem, ao mesmo tempo, o código e sua negação. Nesse sentido, a paródia
parece ser a lógica mesma de funcionamento dos dispositivos disciplinares da biopolítica contemporânea, o que nos leva a encontrá-la no
seio da retórica midiática de consumo. Pois a “administração dos corpos
e a gestão calculista da vida” a respeito da qual fala Michel Foucault
quando se refere ao poder disciplinar é atualmente possível não por
meio do vínculo a mandatos simbólicos coesos, mas apenas através da
internalização de tipos ideais e práticas que transgridem suas próprias
disposições de conduta, tipos ideais próprios a situações de anomia. Ou
seja, essa maneira de funcionamento do setor mais avançado da retórica
de consumo é apenas uma forma de gestão disciplinar dos processos de
subjetivação em situações sociais de anomia.
A esse respeito, pensemos em algumas mudanças maiores ocorridas
na retórica do consumo nas últimas décadas. Em 2006 foi realizada
uma pesquisa a respeito das noções de corpo e sexualidade presentes
em certas campanhas publicitárias de marcas globais, como Calvin
Klein e Versace44. Campanhas de larga influência em outros setores da
cultura de consumo, elas apresentavam principalmente, como ideais de
identificação, a ambivalência sexual e o desconforto com imagens ideais
e saudáveis de corpo. Nesse sentido, elas se alimentavam do desconforto com as próprias imagens ideais hegemônicas na retórica de consumo.
Por outro lado, tais campanhas pareciam corroborar certa forma cada
vez mais global de afirmar a obsolescência de lógicas próprias a uma
Claire Colebrook, Irony (Londres, Routledge, 2003), p. 150.
Ver os resultados da pesquisa, financiada pelo CAEPM, em Vladimir Safatle, “Identidades flexíveis como dispositivos disciplinares: algumas hipóteses sobre publicidade e
ideologia em sociedades ‘pós-ideológicas’”, Revista Antropolítica, 2007.
43
44
136 • Cinismo e falência da crítica
sociedade repressiva, e isso em prol do advento de uma época de flexibilização e “construção performativa” de papéis sexuais e disposições corporais. Poderíamos assim esperar que os consumidores de Calvin Klein e
Versace tivessem, de uma forma ou outra, esse ideal de conduta. Essa
hipótese, no entanto, não se confirmou nas entrevistas qualitativas realizadas com consumidores brasileiros e europeus.
Sobre as campanhas da Calvin Klein, com modelos no limiar da
anorexia e com corpos desvitalizados, a maioria das afirmações de
entrevistados foi surpreendentemente no sentido de não se reconhecerem nos padrões de corpo e sexualidade da própria marca. Muitas
vezes tais consumidores nem sequer reconheciam tais padrões como
tipos ideais. O que nos deixa com a questão de saber o que então
sustentava o processo de identificação entre consumidor e padrões de
conduta oferecido pelas mercadorias. A chave para o problema consistia em uma aparente contradição. Na mesma época em que a Calvin
Klein colocava em circulação suas campanhas heroine chic e suas representações de corpo doente, mortificado e sexualmente ambivalente (em campanhas, por exemplo, para os perfumes CK One, CK Be e
Obsession), ela disponibilizava campanhas (como as criadas para
Eternity) com valores exatamente opostos, valores que exaltavam a
família moderna e “classicamente definida”, o retorno à natureza, o
equilíbrio. E tratava-se de campanhas que alcançavam o mesmo público por serem veiculadas nas mesmas revistas (Details, Vanity Fair,
Vogue, GQ, Rolling Stone etc.).
A resposta para tal contradição paradoxal consiste em insistir que o
posicionamento dessas marcas não é um posicionamento de valores
“exclusivos”, mas uma espécie de posicionamento “bipolar”. Ou seja,
ele é assentado em valores contrários. O que aparentemente seria um
erro crasso de posicionamento revela-se uma astúcia. Por um lado, isso
permite ao consumidor identificar-se com a marca sem, necessariamente, identificar-se com um de seus polos. Mas, principalmente, esse posicionamento bipolar pode funcionar porque os próprios consumidores
são incitados a não se identificarem mais com situações estáticas.
A publicidade contemporânea e a cultura de massa estão repletas
de padrões de condutas construídos através de figuras para as quais
convergem disposições aparentemente contrárias. Mulheres ao mesmo
tempo lascivas e puras, crianças ao mesmo tempo adultas e infantis,
Por uma crítica da economia libidinal • 137
marcas tradicionais e modernas. Essa lógica foi bem sintetizada no teaser
de uma campanha da própria Calvin Klein: “Be bad, be good, just be”.
Ou seja, um modo de ser próprio a uma era de flexibilização de padrões
de identificação. Uma época como esta permite marcas que tragam, ao
mesmo tempo, a enunciação da transgressão e da norma. Até porque os
sujeitos estão presos a essa lógica de simultaneamente aceitar a norma e
desejar sua transgressão.
Se este for realmente o caso, então teríamos uma tendência a repensar a dinâmica própria à cultura de consumo e seu álibi maior: a indústria cultural. Práticas comerciais e dispositivos de incitação ao consumo
pressupõem, necessariamente, uma certa teoria a respeito da maneira
como sujeitos orientam seus desejos e sustentam processos de identificação. Digamos que, grosso modo, na noção “clássica” de posicionamento de marcas, trabalhamos com sujeitos pensados como tipos ideais
(para usar um termo weberiano), que parecem procurar, nos produtos,
certos valores de significação bem definida (“segurança”, “modernidade”, “retorno à natureza” etc.). É possível, todavia, que tal maneira de
pensar a relação entre consumidor e marca não dê mais conta de certas
tendências contemporâneas. Tendências que levam os consumidores a
se identificar com o ponto de indistinção entre valores contrários, compondo com isso um ideal de personalidade não mais vinculado à coerência de condutas submetidas a um padrão de unidade.
O que vem depois do ocaso da culpabilidade?
Tal configuração econômico-cultural talvez nos ajude a compreender por que os grandes sintomas da contemporaneidade não são mais o
sentimento obsessivo de culpa ou a “conversão” histérica, que pressupunham, cada um à sua maneira, a crença em desejos recalcados em sua
própria enunciação. Desejos que habitariam a Outra cena de um corpo
erógeno – que nunca pode tomar diretamente a palavra – e seriam liberados através de procedimentos hermenêuticos de interpretação de resistências. Se alguns dos sintomas mais correntes na atualidade são a
ansiedade e a depressão, eles talvez nos indiquem resultados da pressão
desse supereu vinculado ao puro imperativo de gozo. Pois tanto a ansiedade
quanto a depressão pressupõem a consciência tácita da incapacidade de
sustentar escolhas de objeto. Enquanto a ansiedade é exigência do
138 • Cinismo e falência da crítica
desejo de atravessar de maneira cada vez mais rápida escolhas de objeto,
a depressão é exatamente a impossibilidade de vincular-se a uma relação
de objeto. Os dois casos podem ser vistos como sintomas diretamente
resultantes da introjeção de um supereu que ordena uma injunção de
gozo tão forte e incondicional que toda tentativa de realização efetiva
será necessariamente um fracasso. No caso da depressão, lembremos a
ideia central de Pierre Fédida de que “a depressão é uma doença da
forma – o psíquico sendo aquilo que dá forma ao vivente. ‘Sinto-me
desfeita em minha aparência humana’, diz uma mulher no momento
em que começa a se descrever”45. Lá onde uma escolha de objeto não
pode se estruturar, é a própria imagem de si que se desfaz.
No entanto, devemos acrescentar aqui outro sintoma dos processos
contemporâneos de socialização. Ao lado da ansiedade e da depressão,
devemos pensar principalmente no cinismo como sintoma de “um mundo sem culpa”46. Pois “cinismo” é o nome correto dessa posição subjetiva
que é capaz de sustentar identificações socialmente disponibilizadas, ao
mesmo tempo em que ironiza toda e qualquer determinidade (por reconhecer seu caráter descartável). Ela nega reflexivamente aquilo ao qual se
vincula, criando assim um universo social “carnavalesco” de aparências
reflexivas, ou seja, aparências postas como aparências.
Mas, mais importante do que isso, vemos que o cinismo pode ser
compreendido como a posição subjetiva possível para um sujeito que
internalizou a Lei sob a figura de um supereu que exige que as condutas
sejam pautadas a partir da lógica do gozo puro. Pois essa procura incessante de satisfação imediata não pode simplesmente passar por cima dos
critérios normativos de racionalização da dimensão prática, que no estágio atual de esclarecimento seriam intersubjetivamente partilhados e
consensuais. Para tanto, será necessário aprender a gozar através das
normas partilhadas, ou seja, respeitando o formalismo das normas com
suas expectativas de modernização das condutas sociais. O que fazer,
pois, quando, por exemplo, o particularismo do gozo choca-se com as
aspirações universalizantes dos critérios normativos? A resposta na era
do supereu repressor era clara: abrir mão do gozo através do apelo à
Pierre Fédida, Dos benefícios da depressão (São Paulo, Escuta, 2002), p. 12.
Ver Paulo Eduardo Arantes, “A fratura brasileira do mundo”, em Zero à esquerda (São
Paulo, Conrad, 2004).
45
46
Por uma crítica da economia libidinal • 139
culpabilidade, ou seja, como dizia Max Weber, “tomar banhos frios e
trabalhar em sua vocação”. Mas, em um momento histórico no qual o
supereu se funda no imperativo de gozo, somos incitados a operar um
“modo de ser muito peculiar de suspensão de conflitos”47. Pois basta que
as normas possam ser “flexibilizadas” em seus regimes de indexação da
efetividade para que o conflito seja suspenso. Em outras palavras, basta
que sejam seguidas de maneira cínica, fazendo com que justifiquem o
contrário do que pareciam indexar. Dessa forma, o “sofrimento de indeterminação” normativa capaz de provocar sintomas como a ansiedade e a
depressão pode aparecer, no interior do cinismo, como motivo de gozo.
Essa relação cínica com critérios normativos é um fenômeno que
merece nossa atenção. Ela tende a tornar-se hegemônica em situações
históricas nas quais imperativos de satisfação irrestrita precisam conviver
com expectativas normativas que aspiram à validade universal. Ela tende a constituir estruturas normativas duais nas quais, como bem demonstra ŽiŽek, a lei sócio-simbólica é sempre complementada por uma
espécie de duplo, uma segunda lei superegoica. A síntese paradoxal entre as duas só pode ser feita através do cinismo.
Se voltarmos ao mundo do trabalho ligado ao novo espírito do
capitalismo, podemos dizer que os imperativos de maleabilidade e de
flexibilização de funções vindos da crítica da especialização e do advento hegemônico do trabalho em rede são fundamentais não apenas por
permitirem aos sujeitos desenvolverem disposições de conduta em situações de instabilidade normativa, de fluidez entre ordem e desordem e
de contínua reengenharia. Situações estas cada vez mais presentes no
mundo do trabalho. Eles são importantes também por permitirem a
incorporação, no interior da esfera da produção, de uma dinâmica de
investimento libidinal marcada pela fragilização de vínculos, pela indeterminação e pela transgressão de regras.
Tal dinâmica pode, à primeira vista, parecer a implementação de
expectativas de autenticidade na relação dos sujeitos ao trabalho. Por isso,
em vez de um trabalho ascético que exige a repressão ao prazer sensível e
à fixidez identitária presente na ideia de “vocação”, o discurso atual do
trabalho procura legitimá-lo como modo de acesso a um gozo onde
47
Ibidem, p. 61.
140 • Cinismo e falência da crítica
flexibilização de vínculos e prazer da indeterminação são características
maiores. No entanto, este é, no fundo, um modo de socialização que visa
acostumar sujeitos a se submeter a regimes de controle que não fazem
mais apelo a identidades fixas, mandatos vocacionais coesos. Regimes de
controle mais adaptados ao “novo espírito do capitalismo”48.
Prolegômenos a toda crítica futura da economia libidinal
Aqui, vale a pena colocar uma questão final. Que a economia libidinal do capitalismo tende a organizar-se a partir de uma racionalidade
cínica, eis uma proposição que não teremos dificuldade de encontrar
naquele que primeiro forjou o próprio termo “economia libidinal”, ou
seja, Jean-François Lyotard. Basta lembrarmos sua afirmação sobre a
impossibilidade do capitalismo de fornecer um sistema de crenças, sobre sua tendência funcional ao cinismo. Com precisão, Lyotard insiste
que o capitalismo tardio havia chegado à situação de ser “uma fuga
violenta, uma viagem aleatória de libido, uma errância que se marca no
‘não importa o quê’ do Kapital”49. Maneira de insistir que seu fluxo
contínuo de trocas, metamorfoses e equivalência que tudo abarca tenderia a constituir-se enquanto característica maior de um sistema que
“impõe a predominância do ponto de vista da circulação sobre este da
produção”50 – sistema que tem em seu próprio interior a força de desarticulação de seus limites e de subversão de seus modelos. O único axioma
intocável seria o processo de autovalorização do próprio capital. Axioma, e não código que determina o sentido dos fluxos que os processos
de equivalência produzem. Axioma que permite a disponibilização dessa pura forma da reconfiguração incessante que passa por e anula todo
conteúdo determinado.
Esse diagnóstico de Lyotard convergia, em larga medida, com a
teoria do capitalismo que Deleuze e Guattari forneceram em L’antiOedipe. Um dos pilares dessa teoria do capitalismo consitia em subli
Um espírito de flexibilização que seria, em última instância: “uma estilização cínica das
qualidades de sobrevivência durante os períodos prolongados de precariedade, ou simplesmente de pré-trabalho” (Paulo Arantes, “A fratura brasileira do mundo”, cit., p. 67).
Jean-François Lyotard, Des dispositifs pulsionnels (Paris, Galilée, 1994), p. 19.
Ibidem, p. 20.
48
49
50
Por uma crítica da economia libidinal • 141
nhar a maneira como o próprio desenvolvimento da circulação do
capital parece continuamente forçar os processos de territorialização e
de determinação produzidos por estruturas normatizadoras como o Estado e o complexo de Édipo. Até porque “capitalismo e seu corte não
se definem simplesmente pelos fluxos descodificados, mas pela descodificação geral de fluxos, a nova desterritorialização maciça, a conjunção
de fluxos desterritorializados”51. Deleuze e Guattari pensam aqui no
que significa o aparecimento do capital como dinheiro que engendra
dinheiro, como valor que se autovaloriza. Com isso, não só um equivalente geral é posto, mas instaura-se um processo ilimitado de desterritorialização de todo objeto em relação a si mesmo (valor de uso). Nenhum objeto é idêntico a si mesmo, já que é apenas a ocasião para a
passagem do fluxo ilimitado do capital que perverte todos os códigos e
identidades, anula todo conteúdo privilegiado a fim de instaurar a repetição modular da pura forma. No capitalismo, como dirá Giorgio
Agamben, todo objeto está separado de si mesmo52. Assim, a desterritorialização é elevada a princípio de funcionamento do sistema.
Essa realidade econômica instaurada pelos fluxos ilimitados, pela
“viagem aleatória da libido”53 produzida pelo capital não tem apenas
realidade no campo dos processos de trocas econômicas. Na verdade,
ela tende a colonizar todos os processos de relação social e de relação ao
desejo. Até porque, não nos esqueçamos, para Deleuze e Guattari, a
verdadeira função do socius não consiste em estabelecer sistemas de trocas, mas em “codificar o desejo”, estabelecer um modo de ser do desejo
que funcionará como princípio de hegemonia social.
Isso implica, entre outras coisas, afirmar que a desterritorialização
a qual os objetos estão submetidos no processo de valoração econômica
do capital será imposta também aos sujeitos. Suas identidades serão
cada vez mais flexibilizadas, cada vez menos dependentes de padrões de
conformação de condutas. Partamos, por exemplo, da descoberta da
“plasticidade” do corpo e do esvaziamento de suas pretensas disposições
naturais ligadas à sexualidade, à identidade de si. Essa plasticidade está
organicamente vinculada ao discurso da dissolução do Eu como unidade
Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-Oedipe (Paris, Seuil, 1971), p. 266.
Giorgio Agamben, Profanações (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 76.
Jean-François Lyotard, Des dispositifs pulsionnels, cit., p. 31.
51
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142 • Cinismo e falência da crítica
sintética. Sabemos como o Eu está profundamente vinculado à imagem
do corpo próprio, ao ponto de desarticulações na imagem do corpo próprio afetarem necessariamente a capacidade de síntese do Eu. Mas, se
voltarmos os olhos para a retórica do consumo e da indústria cultural,
veremos como elas passaram por mutações profundas que afetaram o
regime de disponibilização das imagens ideais de corpo. Ao invés de
locus da identidade estável, o corpo fornecido pela indústria cultural e
pela retórica do consumo aparece cada vez mais como matéria plástica,
como espaço de afirmação da multiplicidade. O que não poderia ser
diferente, já que “o capitalismo atual ultrapassa a lógica da totalização
normalizadora e adota a lógica do excesso errático”54.
Inicialmente, Deleuze e Guattari procuraram afirmar que o processo
de descodificação próprio ao capitalismo é por ele mesmo bloqueado:
Do capitalismo, diremos que ele não tem limite exterior e ao mesmo
tempo tem um; ele tem um que é a esquizofrenia, ou seja, a descodificação absoluta de fluxos, mas ele só funciona ao repelir e conjurar esse
limite. E também tem limites interiores e não tem; ele tem nas condições específicas de produção e circulação capitalistas, ou seja, no próprio capital, mas o capitalismo só funciona ao reproduzir e alargar tais
limites para uma escala cada vez mais vasta.55
Ou seja, o capitalismo é o espaço de uma contradição paradoxal
(embora Deleuze e Guattari não aceitassem o termo) entre impacto do
processo de circulação do capital e mecanismos de controle e disciplina
normalmente vinculados ao Estado, à família, às instituições etc.
No entanto, ao fazer sua crítica a L’anti-Oedipe, Lyotard lembra que
é da lógica interna do capitalismo a obsolescência de padrões de socialização baseados na regulagem de identidades própria ao complexo de Édipo, com seus esquemas de constituição de unidades identitárias através
da culpabilização de exigências pulsionais polimórficas. Pois a verdade do
capitalismo consistiria em ser uma economia libidinal que tende a aproximar-se do caráter polimórfico (ou melhor, amórfico) dos processos pulsionais primários descritos por Freud. Longe de ser uma mera metáfora
Slavoj ŽiŽek, Organs without bodies: on Deleuze and consequences (Nova York, Routledge,
2004), p. 184.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-Oedipe, cit., p. 297.
54
55
Por uma crítica da economia libidinal • 143
que visa dar conta do caráter de desterritorialização e de flexibilização
contínua dos processos de circulação do capital, essa aproximação com a
dinâmica pulsional freudiana visava instaurar um horizonte de “reconciliação” entre estrutura social e aspirações subjetivas patrocinado pelas
promessas de gozo do último estágio do capitalismo avançado.
Tais perspectivas trouxeram riscos maiores. Primeiro, elas retiravam
toda possibilidade de estabelecer outro princípio para a crítica social, já
que a crítica tende a ser apenas a afirmação de que as condições atuais
do capitalismo pós-industrial são providas de forte potencial emancipador56. Como quem diz que, de certa forma, todas as condições de liberação já estão dadas no capitalismo avançado, sua racionalidade cínica
já nos livrou das amarras de um pensamento da representação, bastando
apenas uma espécie de afirmação de potencialidades que, no fim das
contas, é a própria mola de desenvolvimento socioeconômico do capitalismo. Isso pode explicar afirmações como:
Nunca houve luta contra a sociedade de consumo, essa noção imbecil.
Nós dizemos, ao contrário, que ainda não temos consumo suficiente, o
artifício, nós ainda não o temos suficiente. Nunca os interesses passarão
para o lado da revolução se as linhas do desejo não alcançarem o ponto
em que desejo e máquina se fundem, desejo e artifício, e isso a ponto de
ele voltar-se contra os dados ditos naturais da sociedade capitalista.57
Pensemos ainda nesta colocação de Lyotard: “A dissolução das formas e dos indivíduos na sociedade dita ‘de consumo’ deve ser afirmada”58.
Um pouco como se estivéssemos diante de uma versão pós-moderna da
celebração marxista do revolucionário poder de desterritorialização do
Basta ser fiel a afirmações como: “O capitalismo tende em direção a um limiar de descodificação que desfaz o socius em prol de um corpo sem órgãos e, sobre esse corpo, libera o
fluxo do desejo em um fluxo desterritorializado [...]. A descodificação dos fluxos, a desterritorialização do socius formam assim a tendência mais essencial do capitalismo. Ele não
cessa de apropriar-se de seu limite, que é um limite propriamente esquizofrênico. Ele
tende com todas as suas forças a produzir o esquizo como o sujeito dos fluxos descodificados sobre o corpo sem órgãos [...]. O capitalismo, em seu processo de produção, produz
uma formidável carga esquizofrênica sobre a qual ele deve impor todo o peso de sua repressão, mas ele não cessa de reproduzi-la como limite do processo” (ibidem, p. 42).
Félix Guattari, “Entretien sur Mille Plateaux”, em Gilles Deleuze, Pourparlers (Paris,
Minuit, 2003), p. 32.
Jean-François Lyotard, Des dispositifs pulsionnels, cit., p. 315.
56
57
58
144 • Cinismo e falência da crítica
capitalismo. Assim, tudo se passa como se a crítica da economia política
saísse de cena em prol de uma afirmação da economia libidinal do capitalismo avançado.
No entanto, e se desejo e artifício, desejo e máquina se fundirem
sem que, com isso, os dados ditos naturais da sociedade capitalista sejam
abalados? Não poderíamos dizer que Deleuze e Guattari acreditam nesse
potencial revolucionário da afirmação do desejo por serem dependentes
de uma ontologização da diferença que pode ter potencial disruptivo
em sociedades disciplinares marcadas por uma forma de ideologia ligada à entificação do princípio de identidade, mas que perdem toda a
força quando confrontadas com sociedades cuja reprodução material
depende da produção da diferença? Teria mesmo a diferença um forte
potencial disruptivo? A afirmação da “polimorfia criativa” do desejo
teria realmente a força de quebrar o gelo do capitalismo?
Isso foi compreendido posteriormente pelo próprio Deleuze ao reconhecer que a verdadeira dinâmica do capitalismo levava à dissolução de
estruturas disciplinares (como o Estado, a família etc.). Por isso, ele deverá insistir que passamos de uma sociedade disciplinar para uma sociedade
de controle: “Os controles são uma modulação, como um molde autodeformante que muda continuamente de um instante a outro, ou como
uma peneira cujas malhas mudam de um ponto a outro”59. Ou seja, não
mais instituições normativas próprias a uma sociedade disciplinar, mas
dispositivos de controle que absorvem, no interior de sua própria dinâmica, a multiplicidade, a flexibilização e a diferença.
Tal guinada deixou em aberto uma série de problemas cuja extensão
só começamos a medir agora. Pois, se como Adorno dissera: “A identidade é a forma originária da ideologia”60, devemos hoje complementar
essa frase dizendo que há uma diferença que é a forma desenvolvida da
ideologia. A ideologia do capitalismo contemporâneo convive bem com
imperativos de desarticulação de unidades, flexibilização de identidades
e de internalização da diferença. Uma internalização que pode até mesmo chegar à anomia enquanto impossibilidade de pensar a relação entre
fundamento e determinação a partir da subsunção simples da norma ao
caso. A diferença parece ter perdido seu poder disruptivo. Por sua vez,
Gilles Deleuze, “Post-scriptum sur les sociétés de contrôle”, em Pourparlers, cit., p. 242.
Theodor Adorno, Negative Dialektik (Frankfurt, Suhrkamp, 1975), p. 151.
59
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Por uma crítica da economia libidinal • 145
a estratégia de distinguir entre falsa e verdadeira diferença exige critérios
claramente fundamentados de valoração. Pois ela não pode ter apenas
um critério negativo (“a verdadeira diferença é aquela que não se deixa
pensar no interior das dinâmicas sociais colonizadas pela forma-equivalente do capital”), já que um critério simplesmente negativo acaba por
reconhecer a essencialidade daquilo que ele nega. De qualquer forma, em
nome do que dizemos que uma diferença é falsa? Em nome de uma certa
potência renovadora do acontecimento? Em nome de uma certa forma
de satisfação vinda da assunção da indeterminação? Todas essas respostas
precisam ser mais bem desdobradas.
Terminemos apenas lembrando um aspecto conservador que parece animar essas teorias pós-estruturalistas do capitalismo. Pois elas parecem aceitar tacitamente a ideia clássica de que o totalitarismo está
necessariamente vinculado à imagens de harmonia social, da unidade e
da completude. Claude Lefort, companheiro de rota de Lyotard no
grupo Socialismo ou barbárie, insistia, em um ensaio maior de teoria
política psicanaliticamente orientada, que todo sistema totalitário fazia
apelo à fantasia de um corpo social orgânico61. Corpo harmônico, unificado e egocrata, no qual um órgão é, ao mesmo tempo, o todo e a
parte destacada que faz o todo. Dissolver a corporeidade fantasmática
do social, afirmar a perda da substância do corpo político seria a condição
para a verdadeira invenção democrática. E o que seriam esses fluxos libidinais polimórficos e sem telos do Capital a não ser a maneira que encontrou o pós-estruturalismo de atravessar a fantasia social do corpo uno?
Mas fica aqui uma questão: e se a fantasmagoria do capitalismo não
precisasse mais fazer apelo a imagens de completude e unidade? É bem
provável que estejamos em uma época na qual somos assombrados por
uma outra fantasia ideológica: a fantasia do corpo inconsistente do Capital. Fantasia que nos leva a uma forma ainda mais astuta de totalitarismo, já que nos cega para o que permanece idêntico no interior dessa
disseminação de multiplicidade. Pois a inconsistência pode servir para
sustentar uma Ordem que vigora através de sua própria descrença.
61
Claude Lefort, “A imagem do corpo e o totalitarismo”, em A invenção democrática (São
Paulo, Brasiliense, 1983).
Sexo, simulacro e políticas da paródia
Uma rebelião simbólica em uma cidade simbólica,
apenas as torturas eram verdadeiras.
Sartre, Paris sous l’occupation
Sexo e reconciliação
Em 3 de março de 1794, diante das possibilidades abertas pela
Revolução Francesa, Saint-Just afirmava na tribuna da Convenção: “A
felicidade é uma ideia nova na Europa”. Declaração importante por
indicar uma consciência clara da transformação da felicidade em fator
central da ação social. Estávamos longe da compreensão da felicidade
como simples “cuidado de si” resultante de práticas e experiências que
não tomam por referência uma Lei geral reconhecida universalmente.
Para Saint-Just, a felicidade era uma ideia nova na Europa porque,
pela primeira vez, ela poderia guiar a racionalidade das esferas que
compõem o político. Nesse sentido, o primeiro parágrafo da declaração que precede a Constituição de 1793 não poderia ser mais claro:
“O objetivo da sociedade é a felicidade geral [bonheur commun] e o
governo é seu defensor”.
Que a promessa de realização de uma política da felicidade apareça
em um momento histórico fundador da modernidade política, isso é algo
que não nos surpreende. A escatologia própria a toda política revolucionária moderna depende da promessa utópica da efetivação possível de
uma realidade jurídica na qual Lei social e satisfação subjetiva, dimensão
pública e espaço privado, possam enfim aparecer reconciliados.
É por levar em conta as aspirações do princípio de subjetividade
no interior da esfera do político que podemos dizer que estamos diante de uma noção de felicidade como fenômeno eminentemente moderno. Notemos a tensão interna à felicidade em sua versão moderna.
Ela deve englobar, ao mesmo tempo, imperativos de reconhecimento
148 • Cinismo e falência da crítica
da singularidade e imperativos de integração da multiplicidade na
unidade do corpo social e de suas representações. Devemos assim falar
em tensão interna à felicidade porque ela deve dar conta de dois imperativos aparentemente antagônicos. Há, na aurora do projeto moderno, uma articulação fundamental entre felicidade e universalidade
que explica, entre outras coisas, por que todos os grandes projetos de
teoria política na modernidade estão de acordo em pelo menos um
ponto: a ação política que visa a felicidade subjetiva deve produzir a
reconciliação objetiva com o ordenamento jurídico de uma figura institucionalizada do Universal (de preferência, com a realidade jurídica
do Estado justo).
Sabemos que uma das estratégias maiores de certa tradição crítica
do pensamento do século XX consistiu em insistir que a possibilidade
dessa reconciliação dependeu de uma preparação do campo das singularidades dos sujeitos – preparação que tocava profundamente aquilo que
é da ordem do sexual. O que não deve causar estranhamento, já que o
campo do sexual foi paulatinamente sendo compreendido como espaço
fundamental de desdobramento dos processos de socialização e reconhecimento, no sentido de que processos de constituição de posições
subjetivas em relação ao que é da ordem do sexo (movimentos que um
dia Lacan chamou de sexuação) são dispositivos centrais para a produção
de subjetividades socialmente reconhecidas. Nesse sentido, lembremos
a tese foucauldiana, hoje amplamente conhecida: a contrapartida da
hipótese da realização objetiva da felicidade no interior da realidade
jurídica do Estado justo foi posta às custas de uma metamorfose maior
naquilo que diz respeito ao sexo.
Não se trata de dizer que esse ideal de felicidade foi fundado sobre
a simples repressão da realidade sexual. Ao contrário, “o que é próprio
das sociedades modernas não é ter-se condenado o sexo a permanecer
na obscuridade, mas sim ter-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo”1. Pois se há alguma forma de repressão, ela é
exatamente o contrário do ato de silenciar o que é da ordem do sexo.
Encontra-se nos processos de normatização do sexo na ordem social
através de uma biopolítica assentada na proliferação de discursos médicos, jurídicos e morais sobre a conduta sexual.
1
Michel Foucault, Histoire de la sexualité I (Paris, Gallimard, 1976), p. 36.
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 149
De fato, a introdução da satisfação subjetiva como índice da política não poderia resultar simplesmente na repressão de tudo o que é da
ordem do sexual. O verdadeiro trabalho consistiu em definir coordenadas para o advento de um discurso de aspirações universalizantes sobre
o sexual e sobre a normatização de seus prazeres. Nesse sentido, o verdadeiro imperativo da felicidade moderna não é e nunca foi o ascetismo
ou a abstinência, mas o sexo sadio, ou seja, o sexo submetido ao universal da Lei e que normalmente, mas não necessariamente, realiza-se no
amor conjugal com seus protocolos de reprodução da espécie. Como se
o dizer da verdade do sexo naturalmente conciliasse com alguma forma
de universal da Lei.
A esse respeito, relembremos a problematização trazida pela psicanálise. Pois se partirmos de Freud, veremos que o problema maior da análise freudiana do social toca a questão das expectativas de reconciliação:
Uma boa parte das lutas da humanidade concentra-se em torno de uma
tarefa: encontrar uma acomodação [zweckmässigen], isto é, um compromisso [Ausgleich] feliz entre reivindicações individuais e culturais; e
trata-se de um problema de destino [Schicksalsprobleme] da humanidade
saber se esse compromisso pode ser alcançado por meio de uma formação determinada da cultura ou se o conflito é irreconciliável.2
A resposta freudiana é conhecida: só há compromisso social através
da internalização da repressão externa às moções pulsionais devida ao
desenvolvimento de uma consciência moral fundamentalmente vinculada à experiência da culpabilidade. A sua maneira, Freud marcaria assim um ponto de inflexão das promessas de uma política da felicidade
própria à modernidade. Ele não vê como tarefa sua pensar modos possíveis de reconciliação no interior da esfera do político. Pós-freudianos
como Lacan sabiam disso ao afirmar, a respeito da felicidade, que Freud
reconhece “não haver absolutamente nada de preparado, nem no macrocosmo, nem no microcosmo”3. Mas quais seriam as consequências
políticas desse despreparo, isso se não quisermos entrar na simples defesa do particularismo?
Sigmund Freud, “Das Unbehagen in der Kultur”, em Gesammelte Werke (Frankfurt,
Fischer, 1999), v. XIV, p. 455.
Jacques Lacan, Séminaire VII (Paris, Seuil, 1986), p. 22.
2
3
150 • Cinismo e falência da crítica
Transcendência e superfície
No interior dessa discussão sobre o sexual e a dimensão normativa
da Lei social, Deleuze representa, a sua maneira, uma inflexão peculiar.
Podemos dizer que, para ele, continua válida a noção do sexual como
campo de enunciação da verdade do singular; mas à condição de levarmos em conta uma modificação maior na lexis que enuncia o sexual em
sua verdade. De certa forma, a palavra que revela a verdade sobre o
campo do sexual deve estar necessariamente marcada pela paródia e pelo
humor. Ela não promete a reconciliação com o universal da Lei, nem a
insistência no particularismo do desejo sexual. Ela promete a desarticulação do campo do universal através do humor e, com isso, a suspensão
do poder organizador da Lei.
De fato, como veremos, essa é uma consequência necessária da
compreensão deleuzeana a respeito da centralidade da noção de simulacro. O humor próprio ao dizer da verdade do sexo deve instaurar
uma espécie de simulacro das aspirações da Lei, maneira de apresentar uma
sexualidade que não terá mais necessidade de estruturar-se a partir de
mecanismos repressivos. Um modo de sexuação (e, por consequência,
de socialização) que tenderia a ser cada vez mais hegemônico. Mas, por
outro lado, devemos insistir nas consequências políticas dessa decisão,
pois ela tende a fornecer a antecâmara para uma reflexão de larga escala
sobre uma certa renovação da ação política.
Veremos isso mais adiante. Por enquanto, devemos expor a maneira
com que Deleuze procura enquadrar a relação ao sexual no interior de
uma teoria do humor, assim como a maneira como tal teoria do humor
fornecerá o regime de imanência em relação à positividade do desejo.
Deleuze parte de uma distinção estrita entre ironia, humor e sarcasmo que será construída principalmente em dois livros: Logique du sens
e Présentation de Sacher-Masoch. Neles, ele afirma que conhecemos principalmente dois modos de subverter a Lei. Um é a ironia enquanto
operação que procura regionalizar a Lei ao insistir na posição de uma
Lei ainda mais elevada e incondicional. Ou seja, seguindo a tradição
romântica que vê na ironia uma “bufonaria transcendental”, Deleuze
compreende a ironia como um modo privilegiado de recurso à transcendentalidade da Ideia. Donde se segue a definição: “Sempre chamamos de ironia o movimento que consiste em ultrapassar a lei em direção
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 151
a um princípio mais alto, e isso a fim de reconhecer na lei apenas um
poder segundo”4.
A sua maneira, Deleuze compõe um grande e heteróclito quadro de
relações de família que começa na ironia socrático-platônica, com suas
estratégias de autentificação da Ideia. Ironia que Deleuze lembra ao
dizer: “Platão ria daqueles que se contentavam em fornecer exemplos,
de mostrar, de designar, ao invés de apreender as essências: Eu não te
pergunto, dizia ele, o que é justo, mas o que é o justo etc.”5. Para Deleuze, algo desse riso que zomba das expectativas de determinações empíricas de fundamentar o advento do sentido poderá ser ouvido em um
autor que nada teria de platônico: Sade. O mesmo Sade cuja ironia
consiste em regionalizar as aspirações universalizantes da Lei moral a
fim de insistir na imanência de uma Lei mais alta fundada na natureza
com suas injunções de gozo:
Partindo da ideia de que a lei não pode ser fundada pelo Bem, mas
deve repousar em sua forma, o herói sádico inventa uma nova maneira
de ascender da lei para um princípio superior; mas tal princípio é o
elemento informal de uma natureza primeira destrutora de leis.6
Ou seja, da ironia socrática à ironia moderna (Sade), passa-se da
regionalização da Lei pela substancialidade do Bem supremo para a regionalização da Lei por um princípio que é apenas a posição da pura
forma, mesmo que essa pura forma ganhe a figura de uma natureza
primeira caracterizada pelo impulso de destruição de todo e qualquer
conteúdo sensível. Por trás dessas aproximações inusitadas, Deleuze procura insistir nos impasses de uma estratégia de constituição da experiência do sentido a partir de motivos da transcendência. Por outro lado, ele
enxerga em Sade a realização mais bem acabada de uma estratégia que
insiste na inadequação radical do desejo aos objetos empíricos: o resultado só poderá ser o impulso de destruição serial de tudo que se colocar
como objeto do desejo para que o vazio da pura forma possa ser posto7.
Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch (Paris, Minuit, 1969), p. 75.
Idem, Logique du sens (Paris, Minuit, 1969), p. 160.
Idem, Présentation de Sacher-Masoch, cit., p. 79.
Lembremos que Sade partilha da crença iluminista na possibilidade de encontrar uma
conciliação entre as exigências de felicidade individual (ligadas à dimensão da afirmação
4
5
6
7
152 • Cinismo e falência da crítica
O outro modo de subverter a Lei é o humor. “Nós chamaremos de
humor não mais o movimento que ascende da lei para um princípio
mais alto, mas aquele que desce da lei em direção às consequências.8”
Ou seja, não se trata de regionalizar o ordenamento produzido pela Lei
através da posição de um princípio que a transcende, mas de “torcer” a
Lei pelo aprofundamento de suas consequências. Seguiremos a Lei ao
pé da letra, respeitaremos os critérios normativos que aspiram a fundamentar a orientação no julgamento, mas faremos de maneira tal que
eles justifiquem consequências que pareciam inicialmente contraditórias em relação à Lei. O humor é essa capacidade de fazer a Lei justificar disposições performativas que lhe pareceriam contraditórias. Se
Deleuze pode afirmar que o humor é a coextensividade entre o sentido e o não sentido, é porque quer demonstrar que a significação da Lei
pode ser consistente com uma pragmática que normalmente lhe seria
estranha. Encontramos novamente essa figura da problematização das
estratégias de indexação entre a significação da Lei e a designação ostensiva do caso. O que o leva a dizer que o humor é a transformação da
questão: “O que significa para algo responder a seu nome?”9 em paradoxo.
Não deixa de ser ilustrativo que esse humor, Deleuze o encontre
inicialmente na crítica ao platonismo operada pelos cínicos, pelos estoicos e pelos megáricos:
O humor é essa arte de superfície contra a velha ironia, arte de profundezas e alturas. Os sofistas e os cínicos já haviam transformado o humor em uma arma filosófica contra a ironia socrática, mas com os
estoicos o humor encontra sua dialética, seu princípio dialético e seu
lugar natural, seu conceito filosófico puro.10
O que nos interessa aqui é, para além da adequação ou não dessa
leitura da história da filosofia que coloca, lado a lado, sofistas e cínicos,
a maneira deleuzeana de recuperar o legado cínico no interior de uma
da sexualidade) e o universal da Lei social. Basta termos em mente o sentido do panfleto: Franceses, só mais um esforço se quiserem ser republicanos.
Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch, cit., p. 77.
Idem, Logique du sens, cit., p. 28.
8
9
10
Ibidem, p. 18.
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 153
teoria do humor. Séculos depois de Diderot, a reflexão filosófica recorre ao cinismo como paradigma de articulação dos potenciais disruptivos
da razão. Mas, agora, algo da capacidade de problematizar a ambiguidade perversa do cinismo se perdeu.
Deleuze insiste que os cínicos gregos, assim como os estoicos, teriam trazido um logos animado por paradoxos, valores e significações
filosóficas novas. Esse novo logos deveria ser atualmente recuperado
para nos libertar da diferença ontológica entre essência e aparência e das
dicotomias do pensamento representativo que irão estruturar a experiência da modernidade. Daí Deleuze dizer que o humor cínico teria
trazido um dizer capaz de pôr:
um puro devir sem medidas, verdadeiro devir-louco que nunca para [...].
O paradoxo desse devir puro é a identidade infinita: identidade entre
os dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, do amanhecer e do entardecer, do mais e do menos, do muito e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do efeito.11
Ou seja, através de um peculiar retorno à critica ao platonismo e ao
culto do paradoxo, Deleuze procura, no cinismo e no estoicismo, a lógica
de uma linguagem que desconheça dualidades e possa ser capaz de conjugar a imanência daquilo que o filósofo francês chama de “Grande
Mélange”12, plano de multiplicidades não estruturadas no qual operações
de diferenciações e identificações nunca podem estabilizar-se.
Para tanto, Deleuze precisa mostrar como o cinismo indicaria uma
crítica à Ideia platônica, mas uma crítica que não seria simples inversão do
locus do sentido, da significação da Ideia à designação ostensiva. A crítica
cínica deve aparecer como impossibilidade de fundar o sentido, seja através
do universal da significação, seja através do particular da designação ostensiva. Pois o humor cínico seria uma operação capaz de desarticular, ao
mesmo tempo, a ideia de transcendência (há um sentido que nunca se
Ibidem, p. 16.
A partir desse projeto, Deleuze procura dar importância a colocações sobre Diógenes,
como: “Ele não achava odiento comer carne humana, como fazem povos estrangeiros,
dizendo que, em sã razão, tudo é em tudo e em todos os lugares. Há carne no pão e pão
nas ervas; tais corpos e tantos outros entram em todos os corpos por condutos escondidos” (Diógenes Laércio, Vie, doctrines et sentences des philosophes illustres, Paris, Flammarion, 1965, v. II, p. 33).
11
12
154 • Cinismo e falência da crítica
encarna completamente) e de profundidade (encontro com o real bruto do
objeto). Ao invés dos dois, o humor traria a noção de simulacro, ou seja,
não exatamente aquilo que se coloca de maneira equivocada como representação da Ideia, mas aquilo que desarticula tanto a noção de representação
(o caso é uma representação da Ideia) quanto de apresentação.
Deleuze insiste na necessidade de reabilitar o simulacro e sua desarticulação das noções de cópia e de modelo, a fim de fornecer um dispositivo
de crítica ao pensamento da representação. O simulacro coloca-se como se
fosse o que se modela a partir da Ideia. No entanto, esse “como se” é uma
estratégia para mostrar que a Ideia não tem a força de assegurar um campo
fundamentado de aplicação. Pois o simulacro é aquilo que se coloca como
realização da Ideia, mas tem deliberadamente apenas um “efeito de semelhança exterior e improdutivo obtido por astúcia e subversão”13. Daí Deleuze poder afirmar que “a cópia é uma imagem dotada de semelhança”,
enquanto “o simulacro é uma imagem sem semelhança”14. Dessa forma, o
simulacro desautoriza a partilha entre verdadeiro e falso a partir da aplicação
da Ideia e bloqueia a lógica da representação como subsunção da imagem
à determinação do objeto. Ele será “a mais alta potência do falso”15, dirá
Deleuze, parafraseando Nietzsche. Uma certa realização da Ideia que inverte suas expectativas performativas.
Jogos de perspectiva
No entanto, devemos insistir aqui em uma precisão histórica. A
tentativa deleuzeana de transformar o cinismo grego em primeiro exemplo do humor de simulacros, movimento libertador das dicotomias
entre essência e aparência, exige torções profundas e reveladoras no que
poderíamos compreender como sendo a “teoria cínica da linguagem”.
Pois tal estratégia demonstra como o que está em jogo é, na verdade,
uma operação que procura definir as possibilidades do presente com
suas situações específicas, e não uma recuperação de uma experiência
filosófica mal compreendida no passado. Tudo se passa como se Deleuze
Gilles Deleuze, Logique du sens, cit., p. 298.
Ibidem, p. 297.
Ibidem, p. 303.
13
14
15
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 155
projetasse, no cinismo grego, coordenadas e problemáticas que só podem orientar uma compreensão contemporânea do cinismo.
Podemos insistir nessa inadequação da leitura de Deleuze porque
uma análise do que aparece como teoria cínica da linguagem nos mostra que ela se encontra sumarizada na afirmação canônica de Antístenes
contra a filosofia platônica: “Eu vejo bem um cavalo, mas não vejo a
cavalidade”. Afirmação repetida por Diógenes ao encontro do próprio
Platão: “Eu vejo a taça e a mesa, mas não vejo a ideia de taça e a ideia
de mesa”16. No entanto, essa negação da realidade substancial do genérico
do conceito é resultado da crença cínica na possibilidade de uma indexação direta do ser individual, o único que teria realidade objetiva.
A esse respeito, conhecemos, por exemplo, a afirmação presente na
Metafísica, de Aristóteles, a respeito da “ingenuidade” da doutrina de
Antístenes, “que acreditava nada poder ser atribuído a um ser a não ser
sua noção própria [λογοζ οικειοζ]”17. No caso de Antístenes, tratava-se
na verdade de afirmar a impossibilidade da predicação como modo de
acesso à essência, já que as atribuições predicativas apenas estabeleceriam
analogias entre coisas e nunca determinariam a essência do sujeito proposicional. Se lembrarmos da distinção fregeana entre predicação e identidade (dois modos de uso do verbo ser), podemos dizer que Antístenes
procura restringir o uso do verbo ser apenas à determinação da identidade (como se o verbo ser no interior de uma proposição fosse necessariamente idêntico ao signo “=”). Daí as únicas proposições legítimas serem
proposições tautológicas do tipo “homem é homem” e “Cavalo é cavalo”,
pois atribuir a um sujeito vários predicados significa atribuir ao uno a
multiplicidade, o que seria uma contradição. Cada coisa tem um nome
que lhe é próprio. Afirmar, por exemplo, que “o cavalo é um animal”
implicaria a afirmação da identidade entre dois termos, e não em uma
relação de submissão a um conjunto. Como a animalidade não tem mais
realidade empírica do que o particular, a proposição deixa de ter valor
cognitivo. É isso que pode explicar, por exemplo, por que Diógenes pôde
afirmar que a música, a geometria, a astrologia e outras ciências que não
se baseiam no cálculo das empirias seriam inúteis18.
Diógenes Laércio, Vie, doctrines et sentences des philosophes illustres, cit., p. 26.
Aristóteles, Métaphysique (Paris, Vrin, 2003), 1024b, p. 32-4.
Ver Diógenes Laércio, Vie, doctrines et sentences des philosophes illustres, cit., p. 34.
16
17
18
156 • Cinismo e falência da crítica
Como bem perceberam certos comentadores, essa teoria da linguagem é fundamentalmente naturalista por naturalizar a relação entre
palavras e essências:
Defensores da opinião naturalista argumentam que há, ou deve haver,
uma conexão entre nomes e coisas de forma que os nomes denominam
seus nominatas em virtude de afinidade ou de propriedades partilhadas.
Antístenes deve certamente ser colocado no campo dos naturalistas; ele
nega a possibilidade de contradição na medida em que apenas uma noção, o logos próprio, pode ser estritamente aplicada a cada coisa.19
Mas devemos insistir em um ponto. Como a indexação direta não
pode passar pelo universal da linguagem, é o mostrar, ou seja, a designação que recebe a tarefa de pôr na efetividade o que é da ordem do ser,
o que Deleuze procura negar a todo custo em sua leitura do cinismo
grego. Conhecemos, por exemplo, a história de Antístenes que, a fim
de provar a existência do movimento contra Zenão, levanta-se da sala
e começa a andar 20. Ou, ainda, sua maneira de responder ao silogismo:
“Você não perdeu o que tem/ Você não perdeu chifres/ Logo você tem
chifres” – “Eu não os vejo”. Esses exemplos demonstram que toda significação de determinações essenciais estaria atrelada a modos de designação ostensiva. Dessa forma, a ambiguidade das significações poderia
ser corrigida através das designações. Daí Epicuro lembrar que, para
Antístenes, o começo da verdadeira educação estaria no aprendizado
dos nomes. Isso explica também por que “algumas das práticas linguísticas de Diógenes o mostra a inverter nomes que são primariamente descritivos em nomes que pertencem apenas àqueles que merecem a
descrição”21. Ou seja, trata-se de submeter o uso descritivo dos nomes
a um uso que vise apenas a determinação da essencialidade. O que
significa esvaziar a função cognitiva da linguagem em prol de uma
Anthony A. Long, “The socratic tradition: Crates, Diogenes and hellenistic ethics”, em
R. Bracht Branham e Marie-Odile Goulet-Cazé (org.), The cynics: the cynic movement in
Antiquity and its legacy (Berkeley, University of California Press, 1996), p. 36.
“Um dos cínicos recebeu uma objeção à existência do movimento; sem nada responder,
ele levantou-se e pôs-se a andar, mostrando assim pelos fatos e pela evidência que o
movimento pode existir” (Sexto Empírico, Hypotyposes, III, p. 66, citado em Anthony
A. Long, “The socratic tradition”, cit.).
Anthony A. Long, ibidem, p. 37.
19
20
21
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 157
compreensão da linguagem como espaço de manifestação de julgamentos éticos. Talvez o exemplo mais célebre dessa estratégia crítica seja a
anedota na qual Diógenes sai à luz do dia, com uma lanterna na mão,
gritando: “Procuro um homem”. Ou seja, Diógenes aceita a conotação
ordinária das palavras (o que significa um homem), mas insiste que sua
denotação deve ser invertida (o que cai sob a extensão do termo “homem”). Tais considerações demonstram que o cinismo grego é muito
mais próximo de uma teoria “naturalista” da linguagem do que de algo
parecido a uma teoria do simulacro.
Na verdade, tudo indica que é Nietzsche quem guia Deleuze em sua
leitura do cinismo grego como momento inicial de advento da potência
do simulacro. Pois, com Nietzsche, o cinismo adquire claramente o estatuto de um problema ontológico na medida em que aparece como resultado direto da dissolução das distinções entre essência e aparência. Isso
talvez explique a natureza da filiação nietzscheana ao cinismo. Filiação
que fica evidente se nos lembrarmos, por exemplo, desta afirmação em
Ecce homo, sobre seus escritos: “Não há no mundo nenhuma espécie de
livros mais orgulhosos e ao mesmo tempo tão refinados – eles alcançam
aquilo que há de mais elevado a alcançar na terra, o cinismo [Cynismus, e
não Kynismus, termo normalmente usado para indicar a escola grega]”22.
De um lado, esse gesto se inscreve no interior dessa tradição que
vem das Luzes e que vê, nos filósofos cínicos, o cosmopolitismo, a crítica sarcástica da autoridade, a moral livre de preconceitos e a autonomia do indivíduo. Mas, por outro, no cinismo de Nietzsche, apresenta-se
uma relação modificada com o dizer da verdade. Trata-se de uma relação
de “estratégia e de tática”, segundo Peter Sloterdijk. É nesse sentido que
devemos compreender a afirmação de Heinrich Niehues-Pröbsting:
“Nietzsche descobriu o cinismo como uma posição para além do bem
e do mal, como um jogo didático do espírito livre”23. Pois, ao menos
segundo Nietzsche, a parresia cínica desconheceria fundamento na
imanência entre o dizer da verdade e a coisa em sua acessibilidade à
experiência empírica para se fundamentar, sobretudo, em um duplo
Friedrich Nietzsche, “Por que escrevo livros tão bons”, em Ecce homo (São Paulo, Companhia das Letras, 2005), par. 3.
Heinrich Niehues-Pröbsting, “The modern reception of cynicism”, em R. Bracht Branham
e Marie-Odile Goulet-Cazé (org.), The cynics, cit., p. 359.
22
23
158 • Cinismo e falência da crítica
movimento que demonstraria a irrealidade tanto do Universal quanto
dos protocolos realistas de descrição de objetos. Restaria, assim, um
certo amor pela superfície em seu ponto de mascarada.
Essa relação de estratégia e tática com o dizer da verdade é uma
relação humorística, no sentido deleuzeano24. A esse respeito, lembremos
principalmente o parágrafo 294 de Além do bem e do mal. Nele, Nietzsche
sugere uma hierarquia dos filósofos conforme a qualidade de seu riso,
colocando no topo aqueles capazes de uma risada de ouro. Esta indica
aqueles que sabem rir “de maneira nova e sobre-humana – e à custa de
todas as coisas sérias”25 (como as distinções ontológicas entre essência e
aparência, Um e múltiplo, conceito e metáfora etc.). Ou seja, o filósofo
superior é capaz de adotar uma escrita necessariamente humorística.
Pois só tal escrita é capaz de afirmar, sem com isso petrificar as afirmações em explicações sobre a positividade do estado do mundo. Só ela
coloca o mundo como uma ficção que se afirma como ficção criadora.
O riso aparece assim como nova aliança estética com um mundo liberado das dicotomias ontológicas de um pensamento da representação e
compreendido como jogo de forças em contínua reconfiguração, em contínua “flexibilização” que dissolve toda determinidade.
O riso reconcilia o pensamento filosófico com o plano de imanência
da vida como jogo de forças, já que ele indica a distância que o enunciador toma em relação ao enunciado, mostrando assim que a enunciação não aspira a naturalização alguma. “Tudo que é profundo ama a
máscara”26, dirá Nietzsche. Mas é o riso que melhor expressa esse amor
pelo jogo de máscaras, único jogo capaz de desvelar a força plástica da
De fato, como bem lembra Ernst Behler: “Nietzsche evita o termo ironia, que, para seu
gosto, guarda muito romantismo, e prefere a clássica noção de dissimulação, que é
traduzida por ‘máscara’” (Irony and the discourse of modernity, Seattle, University of
Washington Press, 1991, p. 93). O próprio Nietzsche lembra que “a ironia só é adequada como instrumento pedagógico”, mas fora da relação de formação entre mestre e
discípulos ela é um: “mau comportamento, um afeto vulgar” (Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, par. 372). Ou seja,
nas mãos de um mestre que, através da ironia, produz a formação em direção ao amor
fati, a ironia é adequada. Mas nas mãos de um desencantamento niilista, a ironia nos
tornará “iguais a um cão mordaz que aprendeu a rir, mas se esqueceu de morder”.
Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal (São Paulo, Companhia das Letras, 2004),
par. 294.
Ibidem, par. 40.
24
25
26
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 159
vida e de afirmar a temporalidade radical de um mundo onde nenhuma
configuração deve subsistir de maneira perene.
Lembremos como o cinismo grego pode ter fornecido a Nietzsche
a figura desse riso que se afirma como força criadora através da dissolução de toda determinidade. Ao falar do cinismo como forma literária,
Nietzsche lembra:
Se a tragédia havia absorvido em si todos os gêneros de arte anteriores,
cabe dizer o mesmo, por sua vez, do diálogo platônico, o qual, nascido
por mistura de todos os estilos e formas precedentes, paira no meio,
entre narrativa, lírica e drama, entre prosa e poesia [Nietzsche parece
falar de si mesmo], e com isso infringe igualmente a severa lei antiga
da unidade da forma linguística; caminho este por onde os escritores
cínicos foram ainda mais longe, atingindo, na máxima variegação do
estilo, na constante variação entre formas métricas e prosaicas, também a figura literária do “Sócrates furioso” que eles costumavam representar em vida.27
Ou seja, essa escrita que desarticula as distinções literárias é fruto
da ironização do gênero trágico colocada em marcha pelos cínicos. No
entanto, não estamos apenas diante de uma mera questão estilística,
mas de um dizer que vincula a verdade à ironização absoluta das formas
e das determinidades.
Se Nietzsche é mais sensível a tais temas advindos do cinismo, abandonando, assim como Deleuze, o que poderíamos chamar de teoria
cínica da linguagem, é porque os dois procuram, no fundo, esquemas
que permitam pensar um processo social o qual Nietzsche talvez tenha
sido o primeiro a perceber. Podemos chamar esse processo de “ironização”. Nietzsche chamou-o simplesmente de décadence europeia28. Em
seu limite, tal décadence teria produzido essa perda de substancialidade
unificadora, essa desintegração do fundamento substancialmente enraizado da estrutura social que leva os sujeitos a não encontrarem mais seus
Idem, O nascimento da tragédia (São Paulo, Companhia das Letras, 2003), p. 88.
Sabemos como o conceito de décadence, em Nietzsche, é um conceito advindo de Paul
Bourget, em Essais de psychologie contemporaine (Paris, Plon, 1919). Nele, Bourget procurava explicar processos de desagregação nos quais se tornam independentes e autônomas partes subordinadas de um organismo. Esse processo produz uma certa anarquia
que se traduz pela perda da unidade funcional na qual “o todo já não é mais o todo”.
27
28
160 • Cinismo e falência da crítica
“lugares”, transformando-se em atores que encenam seus próprios papéis sem se vincularem realmente a eles e instaurando, com isso, um
jogo de máscaras sem original.
Nesse sentido, talvez não haja texto mais ilustrativo do que o aforismo 223 de Além do bem e do mal:
Somos a primeira época estudiosa em matéria de “fantasias”, quero dizer
morais, artigos de fé, gostos artísticos e religiões, preparada, como nenhuma época anterior, para o Carnaval de grande estilo, para a mais
espiritual gargalhada e exuberância momesca, para a altura transcendental da suprema folia e derrisão aristofânica do mundo. Talvez descubramos precisamente aqui o domínio da nossa invenção, esse domínio em
que também nós ainda podemos ser originais, como parodistas da história universal e bufões do Senhor, quem sabe. Talvez, se nada do presente existir no futuro, justamente a nossa risada tenha futuro.29
Essa risada de ouro, que afirma a paródia da história universal e a
bufonaria da suprema folia que destrói toda forma fixa, que inverte toda
relação entre norma e caso (supremo ato de criminalidade) e que afirma
o mundo como um deslizar constante entre máscaras, pode acabar se
transformando em modo de privilegiado de relação com uma realidade
que perdeu toda a sua substancialidade.
O humor de Sacher-Masoch, segundo Deleuze
Mas voltemos a Deleuze. Assim como Deleuze vê, em Sade, um
exemplo privilegiado da transcendentalidade da ironia em ação no campo
da organização da sexualidade, ele verá em Sacher-Masoch o exemplo de
uma sexuação pensada a partir da teoria do humor. Há um largo movimento em Deleuze que consiste em recorrer ao masoquismo e à perversão
a fim de tentar transformá-los em exemplos desse humor capaz de instaurar uma relação de imanência com um plano de simulacros. É através
desses exemplos que Deleuze procura mostrar como o dizer da verdade
do sexo deve necessariamente obedecer à dinâmica do humor.
Vimos como Deleuze instaurava uma dicotomia entre ironia e humor a fim de dizer que, se a ironia consiste em ultrapassar a Lei “pelo
29
Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal, cit., par. 223.
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 161
alto”, o humor visaria torcer a Lei através do aprofundamento de suas
consequências. Não colocamos nenhum princípio de significação para
além da Lei moral. Mas os efeitos da Lei são invertidos em razão da
possibilidade de torções nas designações: “A mais estrita aplicação da lei
tem o efeito oposto àquele que normalmente esperávamos (por exemplo, os golpes de chicote, longe de punir ou prevenir uma ereção, provocam-na, asseguram-na)”30. Isso é Deleuze falando de Sacher-Masoch,
esse mesmo Sacher-Masoch em quem Deleuze vê uma insolência por
obsequiosidade, uma revolta por submissão. Mas perderemos toda a
especificidade da relação do masoquista à Lei se virmos aqui apenas um
caso de hipocrisia, ou seja, de ação conforme a Lei que esconde, sob a
conformação à universalidade do princípio, interesses particulares de
gozo. O verdadeiro desafio do masoquismo consiste em mostrar que a
Lei pode sustentar consequências que lhe são normalmente contrárias,
sem que isso implique necessariamente contradição performativa.
Por exemplo, seguir a Lei é inicialmente regular sua conduta a
partir de um imperativo categórico, universal e incondicional capaz de
pôr um princípio de racionalidade na dimensão prática e afastar o
determinismo próprio à causalidade natural. Isso nos revela tanto a
existência de uma vontade livre e purificada de todo vínculo privilegiado aos objetos empíricos quanto um horizonte regulador da conduta.
Horizonte capaz de fundar um espaço transcendental de reconhecimento intersubjetivo da autonomia e da dignidade dos sujeitos, espaço
no qual eles nunca serão tratados como simples meios ou instrumentos
do gozo do outro.
Nesse sentido, uma das inversões maiores do masoquismo consiste
em mostrar que uma vontade livre de toda fixação em objetos empíricos
pode ser fetichista e que um horizonte de reconhecimento intersubjetivo
da autonomia e da dignidade dos sujeitos pode comportar a submissão e a
humilhação. É neste ponto que devemos analisar dois procedimentos centrais em todo cenário masoquista: o contrato e a fetichização.
De um lado, o contrato é necessariamente reconhecimento do desejo entre iguais que se reconhecem mutuamente como sujeitos. Reflexividade intersubjetiva que Deleuze identificou claramente ao afirmar
que, no cenário masoquista:
30
Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch, cit., p. 78.
162 • Cinismo e falência da crítica
Nós estamos diante de uma vítima que procura um carrasco e necessita formá-lo, persuadi-lo e fazer uma aliança com ele para a empresa
mais estranha [...], é o masoquista que a forma [a dominadora], a
traveste e lhe sussurra as palavras duras que ela lhe endereça.31
Essa figura da vítima que forma um carrasco nos lembra que transformar-se em puro objeto do gozo do outro por contrato, ser Senhor e
escravo por contrato é uma forma absolutamente paródica de reconhecer
a autonomia dos sujeitos. Pois a figura do contrato pressupõe previamente o
reconhecimento da dignidade dos sujeitos que deixam de lado sua dignidade
a fim de sustentar uma encenação limitada no tempo e no espaço. Podemos dizer que a realização suprema do ideal de autonomia presente na Lei
moral consistiria em poder gozar de maneira paródica do papel da heteronomia e da submissão32. O contrato masoquista aparece então como ato
supremo de humor. Através desse humor, o cenário de submissão masoquista aparece como construção de um espaço de simulacros.
Essa questão do contrato masoquista nos leva a um ponto central
da estratégia deleuzeana. Lembremos o motivo freudiano da subordinação da “autonomia” da Lei moral à experiência de culpabilidade proveniente da pressão sádica do supereu contra o eu. Para Freud, tudo se
passa como se a faticidade da Lei moral fosse indissociável de uma experiência de culpabilidade objetiva que apareceria como saldo de processos de socialização do desejo sexual nas sociedades modernas dependentes de mecanismos de repressão.
No entanto, já vimos como é possível atualmente falar em uma
obsolescência da culpabilidade enquanto saldo das experiências de
socialização e de internalização da Lei moral, isso em prol de certa
“flexibilização” da Lei que pode ser compreendida a partir da lógica da
paródia. Esse é o contexto adequado para a compreensão da leitura
deleuzeana do masoquismo. Pois devemos lembrar que, para Deleuze,
o masoquismo não seria simplesmente a encenação da indissolubilidade
Ibidem, p. 22.
Donde se segue, por exemplo, a afirmação de Lacan, que em larga medida concorda
com Deleuze a respeito do problema do masoquismo: “Enquanto [Sacher-Masoch] desempenha o papel do servo que corre atrás de sua dama, ele tem todas as dificuldades do
mundo para não explodir de rir, ainda que tenha o ar mais triste possível. Ele só retém
o riso com muita dificuldade” (Séminaire XIV, sessão de 14/6/1967).
31
32
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 163
entre a afirmação do primado da Lei e a experiência de culpabilidade e
humilhação do eu. Na verdade, ele seria um surpreendente movimento
de anulação da culpabilidade através da “parodização” da Lei. Movimento de subversão da Lei com sua experiência subjetiva de culpabilidade, o
masoquismo conservaria os motivos da Lei apenas para destruir sua
força performativa. Para tanto, Deleuze insiste que, no masoquismo, a
culpabilidade vinda da pressão sádica do supereu repressivo seria encenada de maneira paródica através da externalização do supereu na figura da dominadora. Nessa chave interpretativa, o que é humilhado no
masoquismo pela figura feminina é aquilo que, no sujeito, moldou-se à
semelhança da identificação paterna, é aquilo que, no sujeito, assemelha-se à imagem desse pai em “crise de investidura”. Ou seja, ao invés
da repressão do supereu paterno como resultado da internalização da
identificação paterna, teríamos, no masoquismo, a sua destruição. Ao
insistir na recorrência do tema “você não é um homem, eu transformo
você em um” que sai da boca das dominadoras dos romances de Sacher-Masoch, Deleuze lembra que “ser um homem”, aqui, “não significa em
absoluto fazer como o pai, nem ocupar seu lugar. É, ao contrário, suprimir seu lugar e a semelhança com ele a fim de permitir o nascimento de
um homem novo”33.
Mas podemos insistir que esse declínio da figura paterna permite
que fantasias primitivas dominem o desenvolvimento subsequente do
supereu. Nesse caso, essas fantasias primitivas masoquistas (e aqui podemos seguir Deleuze) dizem respeito principalmente à mãe fálica e a
um certo supereu constituído a partir de figuras femininas. Sua lógica
de “paródia” da repressão apenas permite o advento de uma figura possível de um supereu “materno” não mais vinculado a mecanismos repressivos, mas ao imperativo do gozo. Dessa forma, através do masoquismo, Deleuze parece nos fornecer uma lógica da ação organizada a
partir de uma certa possibilidade de “interversão paródica” da Lei que
aparece como modo de conciliação entre exigências de satisfação irrestrita e reconhecimento da Lei. Tal lógica teria um conteúdo subversivo
em situações sociais nas quais a Lei procura legitimação a partir da
fundamentação de seus modos de aplicação concreta.
33
Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch, cit., p. 86.
164 • Cinismo e falência da crítica
Fetiches, semblantes e simulacros
Há ainda outro ponto fundamental na recompreensão dos modos
de sexuação que aparece no bojo da leitura deleuzeana do masoquismo. Trata-se da centralidade do fetichismo na organização da economia libidinal do masoquismo. É o próprio Deleuze que insiste nesse
ponto ao lembrar como as operações de suspensão, de congelamento
e de idealização próprias ao fetichismo são fundamentais para a composição do cenário masoquista e, em especial, para a composição daquela que encarnará a paródia da Lei: a dominadora. Como se o fetichismo fosse a realização mais bem acabada do que vimos até agora sob
o nome de simulacro.
Esse problema do fetichismo é elemento central não apenas em nossa discussão sobre modos de sexuação que parecem seguir uma lógica de
“racionalização cínica da dimensão prática”. De fato, por um lado, podemos afirmar que o fetichismo tende a ser um dos modos hegemônicos de
escolha de objeto em uma sociedade na qual os vínculos com os objetos
são frágeis, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de alimentar-se dessa
fragilidade. Sociedade que tenderia a disponibilizar, através de seus processos de socialização, dois modos gerais de vínculos com os objetos: o
infinito ruim do consumo e da destruição incessante (com seus desdobramentos em ansiedade e depressão) e a fixação fetichista. Veremos, mais à
frente, como o fetichismo implica uma noção muito peculiar de “fixação”
de objeto por não pressupor nenhum desconhecimento em relação à fragilidade da adequação do objeto escolhido ao desejo.
Por outro lado, essa discussão sobre o problema psicanalítico do
fetichismo nos permite compreender modelos de alienação que viabilizam uma crítica do fetichismo social não mais dependente das temáticas
da reificação e da falsa consciência. Da mesma forma como o problema
psicanalítico do fetichismo visa dar conta de economias libidinais que
não se organizam mais a partir de processos de repressão que instauram
uma Outra cena, na qual se alojaria a verdade recalcada do desejo, é
possível que a compreensão do fetichismo social nos exija um abandono
da temática da reificação da essência na dimensão da aparência fantasmática do processo de determinação de valor; um abandono que permite insistir no vínculo entre fetichismo e temáticas sobre modos de
autonomização reflexiva da aparência.
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 165
Primeiro, podemos dizer que o fetiche é um exemplo privilegiado de
noções como simulacro, porque ele não é aquilo que procura colocar-se
como representação adequada do objeto do desejo. Essa inadequação fundamental entre um desejo que não pode ser compreendido no interior de
uma moral naturalista e os objetos empíricos, inadequação radical entre
desejo e empiria que a psicanálise de orientação lacaniana chama de castração, é um elemento fundamental na constituição do fetiche. No entanto, através do fetiche, é possível produzir um objeto que permite ao
sujeito agir como se nada soubesse a respeito da verdade da castração.
Compreender como um objeto tal qual o fetiche é possível significa compreender o modo de negação que o suporta. Nesse sentido, faz-se
necessária uma análise da negação perversa própria àquilo que Freud
chama de Verleugnung.
A especificidade dessa forma perversa de negação vem do fato de
que, contrariamente aos outros modos de negação presentes na clínica
analítica que fundamentam estruturas nosográficas como a neurose
(Verneinung) e a psicose (Verwerfung), não há nenhum não saber sobre
a castração na Verleugnung. Não se trata aqui de recalcar ou expulsar o
saber sobre a castração e o vazio de objeto que ela impõe. Nós estamos
diante de um movimento duplo no qual saber e não saber podem coexistir conjuntamente. Ao invés do saber marcado pelo esquecimento
próprio ao recalcamento, a Verleugnung é uma contradição paradoxal.
Dois julgamentos contraditórios estão presentes no eu, mas sem que o
resultado de tal contradição seja um nada. Há, na verdade, produção de
um objeto a partir de determinações contraditórias. Esse objeto terá a
consistência de um simulacro.
Freud estrutura sua teoria do fetichismo a partir da temática da
defesa contra a percepção da castração feminina e do reconhecimento
da diferença sexual que tal percepção implica. De fato, “percepção” é
um termo que sempre colocou problemas no interior dessa teoria do
fetichismo, já que, de certa forma, a castração feminina, como ausência
do pênis, é um fantasma, e não uma realidade que poderia ser percebida. Podemos conservar essa temática da castração apenas se admitirmos
o valor simbólico da castração enquanto nome do reconhecimento da
inadequação entre o desejo e os objetos empíricos.
Mas sigamos inicialmente o esquema freudiano. Sabemos que, para
Freud, não se trata simplesmente de expulsar ou recalcar a castração.
166 • Cinismo e falência da crítica
Notemos que o fetichista tem um saber sobre a castração. Como dirá
Freud:
Não é exato dizer que a criança, após sua observação da mulher, tenha
salvo sem modificações sua crença [Glauben] no falo da mulher. Ela a
conservou, mas igualmente a abandonou; no conflito entre o peso da
percepção não desejada e a força do desejo oposto [Gegenwunsches], ela
encontrou um compromisso.34
O mesmo objeto pode então negar a experiência da diferença sexual
e da castração, funcionando como um substituto do pênis ausente da
mulher, e afirmar o que ele nega. Freud é claro a respeito da ideia de que
o fetiche seria uma contradição encarnada, já que ele “concilia duas
afirmações incompatíveis: a mulher conservou seu pênis e o pai castrou
a mulher”35. Toda a complexidade do fetiche vem do fato de ele ser
suporte de uma construção fantasmática (a mulher fálica), ao mesmo
tempo em que reconhece o real da castração.
Qual é o processo que permite ao fetichista conciliar duas afirmações aparentemente tão incompatíveis? Em 1938, Freud falará de um
deslocamento de valor (Wertverschiebung) que transfere a significação
do pênis (Penisbedeutung) para outra parte do corpo (ou outro objeto:
látex, peles etc.)36. Mas devemos notar que tal deslocamento é inscrito
como marca suportada pelo objeto. Para compreender a Verleugnung
faz-se necessário lembrar que o objeto substituto (Ersatz) é posto como
sendo apenas um substituto. Em todo fetiche há a insistência no caráter
factício do objeto (que não é estranho à origem portuguesa da palavra:
feitiço, factício, fetiche).
Graças a isso, a Verleugnung pode aparecer como uma surpreendente negação da negação. O sujeito nega a castração através do deslocamento
de valor e da produção de um objeto fetiche, mas, ao mesmo tempo,
nega essa negação ao apresentar o fetiche como um simples substituto ou,
ainda, se quisermos, como um semblante. Nesse sentido, podemos dizer
que o fetichista já faz a crítica do fetichismo, tal como um intelectual
aufklärer. Ele já assumiu a “Lei da castração”, sem para isso precisar
Sigmund Freud, “Fetichismus”, em Gesammelte Werke, cit., v. XIV, p. 313.
Ibidem, p. 317.
Idem, “Die Ichspaltung im Abwhervorgang”, em Gesammelte Werke, cit., v. XVII, p. 61.
34
35
36
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 167
reorientar sua conduta. Como dizia Octave Manonni em um texto
célebre sobre a estrutura da crença fetichista, a proposição por excelência de um pensamento fetichista obedece sempre à forma: “eu sei bem,
mas mesmo assim...”37. Eu sei bem que a mulher é castrada, mas posso
gozar da aparência de sua não castração, tal como em um cenário masoquista construído por meio de um contrato de simulações. Proposição que, não por acaso, remete-nos novamente à fórmula do cinismo
fornecida por Sloterdjik: “Eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo”. Assim, se no interior da discussão sobre o fetichismo Manonni
percebe que “tudo se passa como se vivêssemos em um meio no qual
flutuam crenças que aparentemente ninguém assume”38, é porque o
fetichismo nos lembra, mais uma vez, que a crença não é um problema
de estados intencionais, mas de estrutura da práxis.
Lembremos ainda que, ao contrário do que poderia inicialmente
parecer, essa discussão sobre o fetichismo não está restrita simplesmente
a quadros clínicos específicos da perversão, já que (ao menos segundo
Lacan) o fetichismo será o modo por excelência de escolha perversa de
objeto. Como estudos psicanalíticos recentes insistem, a tentativa de repensar a centralidade dos mecanismos de recalcamento em prol de uma
teoria baseada na Verleugnung e na clivagem do eu aparece atualmente
como saída para a compreensão de quadros mais amplos de constituição
da sexualidade 39. Se aceitarmos, com Lacan, que a perversão é fundamentalmente um modo de relação à Lei da castração, modo de organização de sexualidades não mais dependente de processos repressivos e de
recalcamento, então podemos dizer que a perversão, longe de desaparecer
Octave Manonni, Clefs pour l’imaginaire ou L’Autre scène (Paris, Seuil, 1969), p. 9-33.
Nesse sentido, podemos seguir também as considerações de Migeot sobre o desmentido
perverso na figura dos libertinos de Laclos: “Trata-se de um discurso astuto no qual o
sujeito nunca adere ao seu dito, já que ele nunca está totalmente lá onde ele fala, já
que ele só está pela metade naquilo que diz. Trata-se ainda de um discurso da derrisão,
já que nenhuma asserção pode ser assumida sem ser rapidamente combinada com outra,
que se torna seu duplo. O discurso transforma-se em um jogo, uma arte ou mesmo um
domínio colocado sob o signo da onipotência aspirada pelo perverso” (François Migeot,
“(Dé)négation, déni; névrose et perversion dans Les liaisons dangereuses (Laclos)”, Négation, dénégation, Annales Littéraires de l’Université de Besançon, v. 22, 1993, p. 55).
Octave Manonni, Clefs pour l’imaginaire ou L’Autre scène, cit., p. 19.
Nesse sentido, ver principalmente Allan Bass, Difference and disavowal: the trauma of
Eros (Palo Alto, CA, Stanford University Press, 2000).
37
38
39
168 • Cinismo e falência da crítica
do quadro clínico, tende a transformar-se em horizonte hegemônico de
identificação e de constituição de tipos ideais em processos de socialização. A lógica perversa de relação à Lei, muito mais do que a proliferação de fantasias sexuais que saem do espaço da interioridade culpada
para circular livremente no espaço social, é um fato convergente com o
modo anômico e desterritorializado de funcionamento do capitalismo
contemporâneo. Lacan compreendeu essa hegemonia social da perversão ao afirmar que socialização através da identificação com a lei paterna falocêntrica tendia, cada vez mais, a funcionar como identificação
com uma père-version 40.
Judith Butler e os limites da política da paródia
Algo desse movimento deleuzeano de torção da Lei presente no masoquismo e no fetichismo funciona como base de certas considerações
maiores sobre a estrutura da ação política. Podemos recorrer a dois casos:
Judith Butler e Giorgio Agamben. Ambos, tal como Deleuze, compreendem como tarefa política maior a possibilidade de pensar uma ação humana que se situe fora da relação à norma. No entanto, mais do que
exatamente criticá-la em moldes clássicos, eles querem desativar o potencial normativo da norma através de certos usos políticos da paródia.
Reconhecida como uma das teóricas mais importantes dos estudos
de gênero, Butler tem o interesse de tentar ver as práticas de gênero
como espaço privilegiado para a reflexão sobre o político e a revitalização de suas categorias. Novamente, veremos a aceitação da noção contemporânea de sexo como lugar de enunciação da verdade e, novamente, a lexis que suporta tal enunciação deve passar pela paródia e pela
40
O que só pode nos levar a aceitar sem reservas a afirmação: “A perversão, e não a
neurose, é o modo dominante, invisível, de organização do laço social” (Maria Rita
Kehl e Eugênio Bucci, Videologias, São Paulo, Boitempo, 2005, p. 74). Até porque
esse modo perverso de operar a subjetivação da falta mostra que o fetiche opera de
maneira idêntica ao conceito lacaniano de falo. Podemos mesmo dizer que ele se coloca como realização cínica e paródica da exigência de sexuação e de subjetivação do
desejo através da identificação simbólica ao falo. Pois se a subjetivação da falta por
meio do falo coloca a inadequação de todo objeto empírico ao desejo, então nada
impede o sujeito de gozar de um objeto que, de certa maneira, faz deliberadamente
semblant de ser adequado, um objeto que é uma máscara. Em suma, nada impede o
sujeito de usar o falo como um fetiche.
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 169
afirmação de algo muito próximo ao que Deleuze compreende como
simulacro e Lacan, como semblante (embora Butler não esteja disposta
a aceitar tais proximidades, em especial a segunda).
Podemos dizer que a base da perspectiva de Judith Butler se encontra na tentativa de fornecer uma teoria antirrepresentativa do sexual.
Identidades sexuais não devem ser pensadas como representações suportadas pela estrutura binária de sexos. Trata-se, ao contrário, de tentar
escapar da própria noção de representação através de uma teoria performativa do sexual. Teoria que sustenta a possibilidade de realização de
atos subjetivos capazes de fragilizar o caráter reificado das normas, produzindo novos modos de gozo que subvertam as interdições postas pelo
sistema binário de gêneros.
Tal teoria nasce de uma tomada de posição que procura levar às últimas consequências a distinção entre sexo (configuração determinada biologicamente) e gênero (construção culturalmente determinada). No seu
caso, não se trata de fornecer uma nova versão da distinção clássica entre
natureza e cultura, até porque gênero, segundo Butler, “é o aparato discursivo–cultural através do qual ‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são
produzidos e estabelecidos como ‘pré-discursivos’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual a cultura age”41. Essa
noção de gênero como antecâmara de produção da “natureza sexual”
permite a Butler primeiramente defender o caráter ideológico de uma
noção binária de gênero (masculino–feminino), já que “a pressuposição
de um sistema binário de gênero depende da crença em uma relação
mimética entre gênero e sexo, na qual gênero espelha sexo ou é, por outro
lado, restringido por ele”42. Posteriormente, ela insistirá que a tarefa política central consistiria na crítica das categorias identitárias engendradas e
naturalizadas pelo ordenamento jurídico – donde se deduz a função política de uma teoria performativa do sexual. Ou seja, não mais as estratégias de reconciliação com o universal da Lei, mas novamente a realização
de aspirações do político como desarticulação da Lei.
O que nos interessa aqui é a anatomia dessa crítica. Pois ela não
deve levar à naturalização de outras categorias identitárias, mas à posição
de identidades sexuais que sejam a própria encarnação da desestruturação
Judith Butler, Gender trouble (Nova York, Routledge, 1999), p. 11.
Ibidem, p. 10.
41
42
170 • Cinismo e falência da crítica
da noção de representação, identidades que seriam a apresentação da
desestabilização das identidades. Daí essa crítica das categorias identitárias ser performativamente implantada através, por exemplo, de práticas paródicas de gênero, como aquelas levadas a cabo por drag queens
e as práticas de cross-dressing. Pois ao operar uma “dupla inversão” que
consistiria em embaralhar as distinções essência–aparência para afirmar,
ao mesmo tempo, “minha aparência exterior é feminina, mas minha
essência interior (o corpo) é masculina” e “minha aparência exterior é
masculina (meu corpo), mas minha essência interior é feminina”, as
drags fariam uma espécie de “crítica da reificação dos gêneros”. Butler
poderá afirmar assim que elas revelariam “esses aspectos da experiência
de gênero que são falsamente naturalizados como uma unidade através
da ficção regulatória da coerência heterossexual”43. Crítica paródica
que, por inaugurar um deslocamento perpétuo de identidades, teria a
força de sugerir a abertura para processos de ressignificação capazes de
se disseminarem na malha social.
Essa crítica articulada através do embaralhamento da diferença ontológica entre essência e aparência só é possível porque a aparência é
elevada aqui à condição de simulacro ou, ainda, de fetiche que desorienta a própria noção de identidade e representação fixa por, ao mesmo
tempo, adequar-se e não adequar-se à diferença sexual e aos modos de
sexuação tais como seriam postos pela Lei. Assim, tudo se passa aqui
como se:
ao agir [performing] e ao chamar a atenção para a estrutura do gênero
como performance, nós pudéssemos ser liberados de uma política dogmática ou de uma política que aspira a saber o real de maneira segura.
Não podemos escapar do sistema de identidade ou da ilusão de que há
um sujeito que fala. Mas podemos agir, repetir ou parodiar todos esses
gestos que criam um sujeito.44
De fato, Butler reconhece bem as dificuldades de sua aposta. Ao
definir performatividade como uma estrutura de citação e repetição contínua de determinações normativas, de um conjunto a priori de práticas,
Ibidem, p. 175.
Claire Colebrook, Irony (Londres, Routledge, 2003), p. 125.
43
44
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 171
Butler insiste que a necessidade da repetição indica como o processo de
determinação é sempre frágil. Práticas de subversão seriam capazes de
expor o estatuto reificado do quadro heterossexual que sustenta práticas
de gênero. No entanto, ela é a primeira a reconhecer que:
Não há garantia de que a exposição do caráter naturalizado da heterossexualidade nos levará à subversão. A heterossexualidade pode aumentar sua hegemonia através da desnaturalização, tal como vemos paródias desnaturalizadoras que reidealizam normas heterossexuais sem
colocá-las realmente em questão.45
Isso nos deixa com a questão de saber como diferenciar críticas à
reificação que tenham força perlocucionária de outras que não tem. Mas
talvez Butler não possa nos fornecer um critério claro a esse respeito.
Butler não abandona a crença na força subversiva de uma citação
teatral das normas, citação que mimetiza e toma de maneira hiperbólica a convenção discursiva que ela subverte. No entanto, ela desenvolve
tal posição de maneira astuta ao afirmar que esse ato seria capaz, na
verdade, de alegorizar uma perda própria a todo processo de incorporação da norma e de regulação das paixões, perda esta que produz:
o campo dos objetos heterossexuais ao mesmo tempo que produz um
domínio daqueles aos quais seria impossível amar [por não se submeterem ao processo de constituição de objetos do amor heterossexual].
Assim, a drag alegoriza a melancolia heterossexual, melancolia que indica como o gênero masculino é formado a partir da recusa em perder
o masculino como possibilidade de amor, como o gênero feminino é
formado (assumido) pela fantasia incorporativa através da qual o feminino é excluído como possível objeto de amor.46
Dessa forma, as práticas críticas poderiam expor a fraqueza da normatividade heterossexual através da alegorização de sua melancolia.
Como se uma certa recuperação da ironia melancólica tivesse a força de
desarticular matrizes de socialização e modos de indexação entre normas, modos de escolhas de objeto e determinações identitárias.
Judith Butler, Bodies that matter (Nova York, Routledge, 1993), p. 231.
Ibidem, p. 235.
45
46
172 • Cinismo e falência da crítica
Giorgio Agamben e a paródia como profanação
Se agora voltarmos nossos olhos para Giorgio Agamben e sua teoria
da ação política como “profanação”, encontraremos algumas opções
estratégicas relativamente convergentes com o que vimos. Tais estratégias
consistem em não tentar mais transgredir ou fornecer novas normas,
mas simplesmente mimetizar a norma de maneira tal, agir “normalmente” de forma tal que ela perca sua capacidade organizadora. Nesse
sentido, um pequeno ensaio de Profanações, intitulado “Paródia”, é extremamente significativo.
Agamben lembra que há dois traços canônicos na paródia: a dependência em relação a um modelo existente e a conservação de elementos
formais de tal modelo em meio a conteúdos ou contextos incongruentes. Ou seja, trata-se de um modo de seguir um modelo, assumir uma
norma, mas de forma tal que a força ordenadora do modelo e da norma
são “desativados” pelo fato de eles serem repetidos de maneira irônica.
Ele lembra como o termo paródia era usado inicialmente para designar
uma separação entre canto e palavra, entre melos e logos, que produzia
situações nas quais se cantava para ten oden, a contracanto ou fora do
canto. Maneira de desativar o logos em razão da inadequação do melos
que o acompanhava. Daí esta definição da paródia:
separação entre canto e palavra, entre melos e logos. Na música grega,
de fato, originalmente a melodia tinha que corresponder ao ritmo da
palavra. Quando, na recitação dos poemas homéricos, tal nexo acaba
desfeito e os rapsodos começam a introduzir melodias que são percebidas como discordantes, diz-se que eles cantam para ten oden, contra
o canto (ou ao lado do canto).47
Esse esquema da paródia é o que Agamben procura implementar
através de sua noção de profanação. Usando a ideia de que profanar é
restituir as coisas (outrora separadas na dimensão do sagrado) ao livre
uso dos homens, trata-se de pensar uma ação que instaure esse livre uso
através da ironização do que antes estava separado, sacralizado, perdido
em sua identidade imediata. Um uso irônico que, ao mimetizar o sacralizado, anula o vínculo seguro entre coisas, regras e sentido que toda
noção de sagrado visa garantir. Como dirá Agamben:
47
Giorgio Agamben, Profanações (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 38-9.
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 173
O comportamento libertado dessa forma reproduz e ainda expressa
gestualmente as formas da atividade de que se emancipou, esvaziando-as, porém, de seu sentido e da relação imposta com uma finalidade,
abrindo-as e dispondo-as para um novo uso.48
Um uso próprio àquilo que Agamben, seguindo as pegadas de Benjamin, chama de “meios sem fim”. Uso mais próximo da gratuidade do
jogo que da instrumentalidade daquilo que só é por causa de seu vínculo a uma função. No fundo, com esse conceito de profanação, Agamben não parece muito distante de Deleuze com sua noção de humor
enquanto repetição mimética que impede a indexação segura entre norma e caso, como o que inverte o uso da norma ao fazê-la adequar-se a
casos e contextos nos quais ela, normalmente, não poderia ser aplicada.
Como exemplo privilegiado aqui, o filósofo italiano vai, não por
acaso, ao campo do sexual para falar de uma atriz pornô francesa, Chloë
des Lysses, uma espécie de Cindy Sherman hardcore, famosa por seus livros de porn art, nos quais ela se deixa fotografar nas cenas pornográficas
mais tórridas com um rosto de leve enfado que nos remete a uma gramática hiperestilizada de gestos e feições que podemos encontrar em toda top
model de revista feminina49. O interesse desse exemplo também está ligado à discussão, que será desenvolvida no próximo capítulo, sobre os usos
de materiais hiperfetichizados na arte contemporânea.
Agamben vê nessa gramática o rosto mesmo da inexpressividade e
da indiferença estoica lá onde deveríamos encontrar a representação
codificada do gozo. Esta seria uma forma de desativar o dispositivo
fascinante da pornografia através de uma ação que mimetiza as formas
próprias à linguagem pornográfica, mas de uma maneira tal que certo
“distanciamento irônico”, certa autoderrisão é encenada, provocando
com isso o estranhamento lá onde esperávamos apenas a repetição fantasmática. Ao encenar fantasmas “clássicos” de filmes pornográficos,
como a secretária, a executiva, a empregada, a garota mignon currada
por um negro, a garota rica e devassa, ela age como se estivesse totalmente presa aos códigos da pornografia barata. Mas, ao fazer com que
Ibidem, p. 74.
Ver principalmente Dahmane e Chloë des Lysses, Porn art (Paris, Alixe, 1996) e Chloë
des Lysses, Sade revu et corrigé pour les filles: traité d’education et punitions, si méritoires
(Paris, Scali, 2006).
48
49
174 • Cinismo e falência da crítica
seus olhares, suas feições, suas roupas fashion nos remetam a um outro
código, o das revistas internacionais de moda, com seu “glamour” feminino desafetado, Chloë des Lysses produz uma duplicidade de códigos
que nos lembra que ela não está totalmente absorta no que faz. Daí a
noção de profanação como agir paródico, agir daqueles que fazem o
que, no fundo, procuram destruir. Agir que desativa a potência ordenadora e identitária do código no momento mesmo em que tal ordenação
parece ser aplicada. Contrariamente, por exemplo, aos trabalhos de Jeff
Koons e Cicciolina (como Made in Heaven), em que os mesmos códigos
da pornografia eram encenados de maneira absolutamente “imanente”
e sem distâncias, produzindo assim uma subjetivação que literaliza os
sujeitos em uma cena fetichizada, o trabalho de Chloë des Lysses seria
a apresentação de uma potência profanadora capaz de desativar o fetichismo social ao levar o impessoal ao seu extremo autorreflexivo, esse
impessoal que ela traz em seu rosto ao fazê-lo portar as marcas da indiferença em relação àquilo que o resto de seu corpo faz50.
Que tal estrutura da ação tenha uma força política explosiva, como
parece indicar Agamben, eis algo que, infelizmente, não é totalmente
seguro. É fato que Agamben compreende esse e outros exemplos a partir de um regime de recuperação do impessoal enquanto estratégia de
desarticulação de dispositivos de subjetivação e estratégia de crítica a
um poder vinculado exatamente à potência de subjetivação. Anteriormente, em outro artigo de seu livro, ele havia citado um pequeno texto
de Foucault a fim de falar sobre um certo modo de encenação da vida
que seria capaz de romper a força identitária das imagens de si no ato
mesmo em que assume tais imagens. Até porque “a subjetividade se
mostra e resiste com mais força no ponto em que os dispositivos a capturam e põem em jogo”51. Mas há alguns problemas que decorrem disso.
Primeiro, poderíamos partir do exemplo fornecido pelo próprio
Agamben e compreender as experiências de Chloë des Lysses de uma
Talvez seja pensando nela que Agamben escreve: “A pornografia, que mantém intangível
o próprio fantasma no mesmo gesto com que se aproxima dele de um jeito incapaz de
ser olhado, é a forma escatológica da paródia” (Profanações, cit., p. 45). Ou seja, a literalidade “intangível” da pornografia seria uma espécie de estranha contraprova da impossibilidade da linguagem de alcançar as coisas e da impossibilidade da coisa de encontrar seu nome próprio. Impossibilidade que seria a essência mesma da paródia.
Giorgio Agamben, Profanações, cit., p. 63.
50
51
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 175
maneira distinta. O caráter de estranhamento de suas fotos vem do fato
de ela estar absorta em dois códigos que apenas em aparência são contrários e excludentes. Mas esse estranhamento é a revelação de uma
verdade própria aos modos atuais de reprodução social. No fundo, ela
acaba por revelar a solidariedade profunda entre dois polos hiperfetichizados da economia libidinal contemporânea (a indústria da moda e a
indústria da pornografia), que, conjuntamente, funcionam como duas
peças de um dispositivo disciplinar fundamental da biopolítica contemporânea. No desvelamento dessa solidariedade fundada em passagens
no oposto, a fascinação fetichista, longe de ser desativada, perpetua-se.
Tal perpetuação da fascinação pode ser explicada.
Lembremos como nossa época desenvolveu dispositivos disciplinares que são subjetivados “de maneira paródica” por procurarem levar
sujeitos a constituírem sexualidades e economias libidinais que absorvem,
ao mesmo tempo, o código e sua negação, a norma e sua transgressão.
Nesse sentido, a paródia, longe de ter uma força profanadora, parece
ser, na verdade, a lógica mesma de funcionamento dos dispositivos disciplinares da biopolítica contemporânea.
Com isso em mente, vale a pena notar que as expectativas políticas
depositadas por Agamben em práticas profanadoras só podem colocar-se como dotadas de forte potencial renovador por pressuporem uma
Lei normativa que talvez não exista mais. Isso vale também, por diferentes razões, para Judith Butler e Deleuze. A paródia orienta a crítica
ao operar por meio da corrosão da legitimidade do sistema de justificação de crenças da instância hegemônica de poder. Ela pressupõe, assim,
uma Lei que precisa garantir a legitimidade de seus enunciados ao esconder suas contradições e seus interesses. Uma Lei que precisa organizar e naturalizar processos de separação entre sagrado e profano, Lei
que, por sua vez, teria como correlato a posição de falsas consciências
marcadas pelo desconhecimento ideológico. Como se estivéssemos ainda
às voltas com figuras da ideologia dependentes das temáticas da reificação,
da falsa consciência e da alienação na dimensão da aparência.
No entanto, nada disso é certo atualmente. E bem provável que a
contemporaneidade esteja diante de uma situação histórica na qual a
própria Lei normativa tende a funcionar de maneira paródica e autoderrisória. Se esse for realmente o caso, o que dizer então de práticas
políticas que procuram tirar sua força subversiva da paródia em contextos
176 • Cinismo e falência da crítica
socioculturais nos quais o poder já ri de suas próprias injunções? Não
seria o próprio Agamben quem melhor nos mostrou essa autoderrisão
do poder através da compreensão da centralidade da lógica da exceção
enquanto suspensão legal da Lei, como se esta já trouxesse em si mesma
o embaralhamento de seus modos de aplicação? E não seria seus exemplos profanadores a melhor exposição da estrutura disciplinar de uma
lógica da soberania que ele mesmo nos ensinou a ver? O próprio Agamben parece compreender o caráter arriscado de sua aposta ao reconhecer
que “todo dispositivo de poder sempre é duplo: por um lado, isso resulta de um comportamento individual de subjetivação e, por outro, da
sua captura numa esfera separada”52.
No entanto, o que fazer quando os dispositivos de poder parecem
mimetizar nossas próprias ações profanadoras? Agamben é o primeiro a
reconhecer que, em sua fase terminal, o capitalismo não é outra coisa
que um dispositivo gigantesco para capturar comportamentos profanadores. O que o deixa ao menos com a tarefa de fornecer critérios seguros
de distinção entre uma profanação de real conteúdo disruptivo e seu
simulacro, essa secularização operada pela lógica contemporânea do
capitalismo. Agamben chega a indicar modos de realizar tal tarefa ao
defender distinções entre uso profanador e consumo pensado como
submissão dos objetos ao gozo advindo do direito de propriedade,
objetos submetidos à lógica utilitária do serviço dos bens. Mas não é
certo que os exemplos por ele escolhidos desempenhem bem essa função de partilha. Pois talvez tais exemplos apenas demonstrem como “a
anomia mais desenfreada mostra sua paródica conexão com o nomos”,
evidenciando “sob a forma de paródia, a anomia interna ao direito, o
estado de emergência como pulsão anômica contida no próprio coração
do nomos” 53. Da mesma maneira, não seria sintomático que todas as
práticas subversivas tematizadas por Deleuze (masoquismo, fetichismo)
e por Butler (processos de desorientação da diferença binária de sexos)
apareçam atualmente como motivos maiores das representações disponibilizadas pelo universo mercantil do consumo?
Aqui, não se trata apenas de afirmar, na melhor tradição da ideia
frankfurtiana de “dessublimação repressiva”, que o discurso do capita
Ibidem, p. 79.
Idem, Estado de exceção (São Paulo, Boitempo, 2005), p. 110.
52
53
Sexo, simulacro e políticas da paródia • 177
lismo tardio precisa do gozo administrado que impulsiona a plasticidade
infinita do universo do consumo, ou seja, da regulação do gozo no interior de um universo mercantil estruturado e controlável. Pois devemos lembrar que uma reflexão sobre a anatomia das ações políticas deve
atualmente dar conta do fato de que o poder não funciona mais por
“administração reguladora do gozo”, mas por uma certa “administração
da insatisfação” que faz com que a própria ruptura do ordenamento
social seja movimento estimulado e interno à sua própria perpetuação.
O pior equívoco político é imaginar que nos contrapomos a uma lógica
que, simplesmente, talvez não exista mais.
Por fim, talvez a forma com que Deleuze, Butler e Agamben, cada
um a sua maneira, apelam para o poder disruptivo do desejo a partir da
ressignificação dos fantasmas que o aprisionam impeça o campo político de ter a força de romper exatamente com a estrutura fantasmática
que o coloniza. Talvez eles demonstrem que precisamos, não de uma
política do desejo, mas de uma política ascética, ou seja, que não passe
mais pela politização do sexo e do corpo. Pois em uma situação histórica na qual as formas hegemônicas de vida no capitalismo se fundamentam em uma economia libidinal capaz de absorver a indeterminação
anômica da pulsão, a desarticulação das estruturas identitárias, talvez só
reste à política retirar o corpo e o sexo do centro do poder. Não para mais
uma vez reprimi-los, mas para liberá-los de dispositivos de controle
capazes de absorver até mesmo a diferença. Retirar o corpo e o sexo do
centro do poder significa afirmar que o poder nada pode dizer sobre
eles, que a política nada pode dizer sobre eles. Uma ausência de palavras
que mostra como sexo e o corpo são liberados quando eles são postos
em um regime de indiferença em relação à diferença54. Quando essa
indiferença for alcançada, a economia libidinal que hoje é a mola da
política poderá ser desativada.
54
A respeito de uma política da indiferença em relação à diferença, ver principalmente
Alain Badiou, Saint Paul ou la fondation de l’universalisme (Paris, PUF, 1997).
O esgotamento da forma crítica
como valor estético
Nada é fornecido por esse método,
mas muito é tirado.
Arnold Schoenberg, Style and idea
O carteiro nunca assobiará Schoenberg.
Steve Reich, Writings about music
Insensatos os que lamentam o declínio da crítica. Pois sua hora há muito tempo já passou. Crítica é uma questão de correto distanciamento.
Ela está em casa em um mundo em que perspectivas e prospectos vêm
ao caso e ainda é possível adotar um ponto de vista. As coisas neste
meio tempo caíram de maneira demasiado abrasante no corpo da sociedade humana.1
Podemos partir dessa frase de Walter Benjamin a fim de tentar dar
conta de certos processos hegemônicos em marcha na constituição da
forma estética atualmente. Eles dizem respeito àquilo que críticos de
artes visuais, como Hal Foster 2, chamam de “esgotamento da forma
crítica como valor estético”. Esgotamento que estaria exposto de maneira mais clara nas transformações da relação crítica entre arte e domínios
hiperfetichizados da cultura (publicidade, moda, música tonal, quadrinhos, pornografia etc.) em relações de “cumplicidade desafiadora”, como
diria o simulacionista Ashley Bickerton. Relações nas quais a crítica como
“distância correta” a respeito da fascinação fetichista parece entrar definitivamente em colapso em prol da elevação da mera repetição de conteúdos hiperfetichizados a esquema geral da produção artística. Tal
colapso tem como resultado maior o advento de certa estetização da
razão cínica. Nesse sentido, vale a pena retornarmos à análise do esquema
hegemônico de determinação da forma crítica que foi uma das marcas
Walter Benjamin, Rua de mão única (São Paulo, Brasiliense, 1995), p. 54.
Ver Hal Foster, The return of real (Cambridge, MA, MIT Press, 1996).
1
2
180 • Cinismo e falência da crítica
maiores do modernismo, a fim de melhor avaliarmos as causas de seus
impasses, assim como a natureza das figuras que lhe sucederam.
Forma crítica e desvelamento dos
mecanismos estruturais de produção
Conhecemos, por exemplo, um dos impulsos hegemônicos de crítica à aparência estética no modernismo. Ele está sintetizado em uma
noção de crítica como dispositivo de distanciamento em relação a conteúdos miméticos. Pois se trata de definir a obra de arte moderna como
aquela capaz de se estruturar através da estetização da distância que
devemos tomar em relação às organizações, aos processos, às representações e aos valores que aparecem de maneira naturalizada na realidade
social. Dessa forma, ela deve impor a autonomia de seus processos construtivos, negando com isso qualquer semelhança fundamental com organizações funcionais vistas como naturais no interior de realidades
sociais historicamente determinadas. A crítica a mímesis aparece, assim,
como peça maior da definição da racionalidade das obras. Por outro
lado, essa negação da afinidade mimética é figura da crítica por insistir que
os modos de organização funcional naturalizados são locais em que a ideologia se afirma em toda a sua violência – isso se compreendermos a
ideologia fundamentalmente enquanto reificação de modos de disposição dos entes. Trata-se, assim, de pensar a racionalidade estética como
setor privilegiado da crítica social da ideologia.
Esse tema clássico é o que levou, por exemplo, Clement Greenberg a compreender o impulso crítico da obra de arte moderna a
partir da abstração da pura forma que se afirma contra tendências figurativas. Sabemos, por exemplo, o que animava afirmações como:
“O fato é que, até agora, o modernismo na arte, se não na literatura,
se sustentou ou fracassou por seu ‘formalismo’”3. Por trás dessa noção
de “formalismo” estava a crença de que a arte deve saber afirmar o
primado da autonomia de seus processos construtivos a despeito de
toda e qualquer afinidade mimética que a realidade social oferece
como aparência.
3
Clement Greenberg, “A necessidade do formalismo”, em Glória Ferreira e Cecília
Cotrim (org.), Clement Greenberg e o debate crítico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1997), p. 127.
O esgotamento da forma crítica como valor estético • 181
Tal afirmação do primado da autonomia da forma poderia ganhar
a figura de obras capazes de tematizar seus próprios modos de produção,
seus próprios processos construtivos. Lembremo-nos novamente de
Greenberg, quando este afirma:
O não figurativo ou o “abstrato”, se deve ter validade estética, não
pode ser arbitrário e acidental, mas deve derivar da obediência a alguma injunção ou princípio de valor. Essa injunção, uma vez que se renunciou ao mundo da experiência comum, extrovertida, só pode ser
encontrada nos próprios processos ou disciplinas pelos quais a arte e a
literatura já haviam imitado a natureza. Esses meios tornam-se, eles
próprios, o tema da arte e da literatura.4
Dessa maneira, a forma crítica deveria ser forma que expõe, em
uma “distância correta”, seus próprios processos construtivos, forma
que já traz em si a negação da naturalização de sua aparência como totalidade funcional. Esta ideia é central: as obras fiéis à forma crítica seriam capazes de organizar-se a partir de protocolos de desvelamento de
seu processo de produção. As obras que se organizam a partir desse impulso crítico têm, como dizia Hegel, os intestinos fora do corpo.
Notemos, no entanto, que a racionalidade dessa noção de forma depende de um conceito de crítica como passagem da aparência para a essência, como movimento de desvelamento. Trata-se de expor, através de uma
passagem para a essência, os modos de produção que determinam a configuração da aparência. Na verdade, tudo funciona como se a estruturação
da forma crítica seguisse os moldes “clássicos” de uma certa crítica marxista do fetichismo e uma arqueologia psicanalítica do sentido latente5.
Sabemos que um dos processos fundamentais presentes no fetichismo da mercadoria diz respeito à impossibilidade do sujeito de apreender a estrutura social de determinação do valor dos objetos em virtude
de um regime de fascinação pela “objetividade fantasmática” (gespenstige
Gegenständlichkeit) daquilo que aparece – fascinação vinculada à naturalização de significações socialmente determinadas. Uma certa crítica
Idem, “Vanguarda e kitsch”, em Glória Ferreira e Cecília Cotrim (org.), Clement Greenberg e o debate crítico, cit., p. 30.
Ver a respeito desta última, por exemplo, Jacques Rancière, L’inconscient esthétique (Paris, Galilée, 2001).
4
5
182 • Cinismo e falência da crítica
do fetichismo se organizaria a partir daí através da temática da alienação
da consciência no domínio da falsa objetividade da aparência e das relações reificadas. Alienação que indicaria a incapacidade de compreensão
da totalidade das relações estruturalmente determinantes do sentido.
Vimos no segundo capítulo como a tomada de consciência resultante do trabalho da crítica pressuporia a possibilidade, mesmo que
utópica, de processos de interpretação capazes de instaurar um regime
de relações não reificadas que garantam a transparência da totalidade dos
mecanismos de produção do sentido. O que vale para a crítica social vale
também para a arte. Pois, da mesma maneira, haveria uma totalidade
de relações que poderia, de direito, ser revelada em sua estrutura através
das obras de arte. As obras apareceriam como locus de manifestação de uma
verdade que é clarificação progressiva do material em razão da possibilidade de posição integral de processos construtivos. Processos muitas
vezes recalcados, marcados pelo véu do esquecimento, mas que poderiam vir à luz através de mecanismos de interpretação e rememoração
inscritos no próprio cerne da obra. Lembremos ainda que o impulso em
direção ao que está fora da cena da aparência pode também transformar-se em exposição do que é ob-sceno, do que estaria por baixo da
cena enquanto arcaico ou informe. Por mais que isso possa parecer estranho, os programas de retorno ao arcaico e de desvelamento estrutural
mostram-se unificados em certas estratégias comuns de crítica.
Michael Fried é um caso exemplar de como tal regime de reflexão
sobre a forma estética pode funcionar. Para ele, o valor estético na modernidade é fundamentalmente vinculado à possibilidade da obra de
servir de palco para a posição do processo de clarificação progressiva dos
mecanismos de produção do sentido. Lembremos, por exemplo, do
sentido de sua afirmação de que “o teatro é a negação da arte”6. O teatro
aqui não é o teatro brechtiano, que transforma a cena em locus de manifestação de operações de distanciamento capazes de desvelar os modos
de produção da aparência. Teatro é, para Fried, o nome de uma imanência com a literalidade que impede o sujeito de transcender a coisidade (objecthood) em direção a uma Outra cena, na qual os processos
construtivos poderiam ser revelados. Daí Fried poder afirmar que “a
6
Michael Fried, “Art and objecthood”, em Gregory Battcock, Minimal art: a critical anthology (Berkeley, University of California Press, 1968), p. 125.
O esgotamento da forma crítica como valor estético • 183
pintura modernista chegou a perceber como imperativa a suspensão de
sua própria coisidade”7.
Racionalização serial
Não deixa de ser sintomático encontrar, na música, o espaço originário para o desenvolvimento das potencialidades dessa forma crítica
hegemônica no modernismo. Colocação menos insuspeita por vir de
um crítico das artes visuais, no caso, o próprio Clement Greenberg:
Em razão de sua natureza “absoluta”, da distância que a separa da
imitação, de sua absorção quase completa na própria qualidade física
de seu meio, bem como em razão de seus recursos de sugestão, a
música passou a substituir a poesia como arte-modelo [...]. Norteando-se, quer conscientemente, quer inconscientemente, por uma noção de pureza derivada do exemplo da música, as artes de vanguarda
nos últimos cinquenta anos alcançaram uma pureza e uma delimitação radical de seus campos de atividade sem exemplo anterior na
história da cultura.8
A afirmação não poderia ser mais clara: a música teria imposto, às
outras artes, uma noção de modernidade e de racionalização do material
vinculada à autonomização da forma e de suas expectativas construtivas. Autonomia que teria se afirmado contra qualquer afinidade mimética com processos e elementos extramusicais9.
O que Greenberg tem em mente é um longo e heteróclito movimento de constituição da racionalidade da forma musical, movimento
fundamental para a definição das expectativas críticas da forma musical,
a partir principalmente de Arnold Schoenberg, e que herda motivos
próprios ao debate em torno da “música absoluta” no romantismo ale-
Ibidem, p. 119.
Clement Greenberg, “Rumo a um mais novo Locoonte”, em Glória Ferreira e Cecília
Cotrim (org.), Clement Greenberg e o debate crítico, cit., p. 52-3.
Na verdade, Max Weber foi o primeiro a perceber que a música fornecia o padrão de
racionalização que deveria vigorar no campo das artes. A respeito desse processo de
constituição da legalidade própria da esfera musical, ver, por exemplo, Max Weber,
Fundamentos racionais e sociológicos da música (São Paulo, Edusp, 1996).
7
8
9
184 • Cinismo e falência da crítica
mão. É a isso que Greenberg alude ao falar da “natureza absoluta” da
música em sua “pureza”.
Grosso modo, podemos chamar de “música absoluta” certa noção
que via na música instrumental, desligada de textos, de programas, de
funções rituais e “pedagógicas” específicas, o veículo privilegiado para a
expressão ou pressentimento do “absoluto” em sua sublimidade e o estágio de realização natural da racionalidade musical. É a proximidade
com tal temática que permitirá a Schopenhauer, cuja filosofia da música influenciou bastante Schoenberg, afirmar: “Não podemos encontrar
na música a cópia, a reprodução da ideia do ser tal como se manifesta
no mundo”; ela é “cópia de um modelo que não pode, ele mesmo, ser
representado diretamente”, pois “a música, que vai para além das ideias,
é completamente independente do mundo fenomenal”10.
Esse impulso de autonomização da forma musical será fundamental para que teóricos posteriores, como Eduard Hanslick, insistam em
levar tal processo ao extremo. Ao afirmar que a música nada mais era
do que “formas sonoras em movimento”, Hanslick demonstrava plena
consciência de estar adentrando em um estágio histórico de racionalização do material musical que permitia a consolidação da esfera musical
em sua legalidade própria. Legalidade própria que o leva a afirmar:
Se se perguntar o que se há de expressar com esse material sonoro, a
resposta reza assim: ideias musicais. Mas uma ideia musical trazida inteiramente à manifestação é já um belo autônomo, é fim em si mesmo,
e de nenhum modo apenas meio ou material para a representação de
sentimento e pensamentos.11
O impulso de Schoenberg na constituição de uma forma crítica perde muito de seu solo natural se não tivermos tais balizas em vista12. Quando Schoenberg afirma: “Faz-se música a partir de conceitos”, a fim de
Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e representação (São Paulo, Unesp, 2005),
par. 59.
Eduard Hanslick, Do belo musical (Lisboa, Dom Quixote, 1986), p. 42.
Não é por outra razão que Dahlhaus nos lembra: “Os trabalhos pelos quais Schoenberg
se aproxima e finalmente atravessa a fronteira da tonalidade pertencem a gêneros como
a sinfonia, o quarteto de cordas e as peças líricas de piano, ou seja, gêneros típicos da
música absoluta” (Carl Dahlhaus, Schoenberg and the new music, Cambridge, Cambridge
University Press, 1987, p. 99).
10
11
12
O esgotamento da forma crítica como valor estético • 185
lembrar que o objetivo maior da forma é a inteligibilidade de “ideias
musicais” compostas pela unidade funcional e expressiva de ritmo, melodia e harmonia, sabemos claramente que é Hanslick e sua noção de autonomia da forma que serve aqui de guia13. Essa exigência de visibilidade
da ideia ordenadora das disposições formais do material leva Schoenberg
a pensar a verdade na música como uma questão de possibilidade de
posição dos procedimentos de construção responsáveis pela determinação
de relações racionais entre elementos musicais. Há, assim, uma exigência
fundamental de transparência das obras. Visibilidade que leva o compositor à procura da “clarificação progressiva do material natural da
música”14, através, por exemplo, de um conhecido combate contra tudo
que é ornamento. Combate este que é figura da recusa a estabelecer distinções hierárquicas entre notas ornamentais “não harmônicas” e notas
essenciais, já que a forma musical só deve dar lugar àquilo que contribui
para a visibilidade integral da ideia musical. A esse respeito, muito já se
disse sobre o sentido das similitudes estratégicas entre as “construções
racionais” de Schoenberg e de arquitetos como Adolf Loos.
Mas essa noção schoenberguiana de ideia musical se torna incompreensível se partirmos de uma perspectiva meramente “formalista”, no sentido mais restritivo do termo. Essa é uma questão importante, já que o
projeto musical de Schoenberg nos lembra que “formalismo” não é a
marca de alguma forma de abandono de expectativas expressivas. Tal
como já em Hanslick, a ideia musical é o que permite a realização construtiva de exigências expressivas, ou seja, ela é o que deve unificar construção racional e expressão subjetiva. É a fidelidade a exigências expressivas
que leva Schoenberg a afirmar, de maneira surpreendente, que “a arte é,
em seu estágio mais elementar, uma simples imitação da natureza. Mas
logo se torna imitação em um sentido mais amplo do conceito, isto é, não
mera imitação da natureza exterior, mas também da interior”15.
O recurso ao vocabulário da imitação poderia parecer nos recolocar
nas vias de uma racionalidade mimética como protocolo de constituição
Ver, por exemplo, Arnold Schoenberg, Style and Idea (Berkeley, University of California
Press, 1984), p. 121.
Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, em Gesammelte Schriften XII (Digitale
Bibliothek Band, 1999), p. 69.
Arnold Schoenberg, Tratado de harmonia (São Paulo, Unesp, 2000), p. 55.
13
14
15
186 • Cinismo e falência da crítica
da aparência estética. No entanto, ao contrário, a expressão dessa “natureza interior” só poderá ser posta através da crítica à aparência funcional
das obras. A natureza dessa crítica à aparência como motor da racionalidade de obras que aspiram à modernidade foi claramente identificada por Adorno ao afirmar que “nele [em Schoenberg] o momento
realmente revolucionário é a mudança de função da expressão musical”16.
Essa frase é mais decisiva do que parece, já que normalmente aceitamos
que o aspecto realmente novo da experiência musical de Schoenberg
estaria presente em sua maneira de criar totalidades funcionais sem recorrer ao sistema tonal.
A mudança de função a que alude Adorno consiste em romper com
o fato de que “desde Monteverdi e até Verdi, a música dramática, como
verdadeira musica ficta, apresentava a expressão como expressão estilizada,
mediada, ou seja, como aparência de paixões”17. Segundo essa leitura, a
expressão esteve paulatinamente subordinada a uma gramática das paixões e dos afetos, gramática que faria com que a particularidade dos momentos expressivos fosse sempre fetichizada e submetida à generalidade
conciliadora, que constitui o primeiro princípio da aparência estética. O
esgotamento do sistema tonal é também esgotamento de uma gramática
de expressões que se naturaliza no uso reiterado de cadências e elementos
que desempenham sempre a função de um “sistema de representações”.
A “emancipação da dissonância” em relação ao esquema antecipação–resolução, emancipação a respeito da qual fala constantemente Schoenberg,
não seria outra coisa que a possibilidade de construir ideias musicais capazes de desvelar uma expressão recalcada pela gramática do sistema tonal. Recalque produzido por uma aparência que submete a expressão
singular aos ditames de uma linguagem sedimentada.
Nesse sentido, não deixa de ser ilustrativo que Schoenberg se interesse por Freud e por sua noção de interpretação das formações do inconsciente como revelação do que se aloja em uma Outra cena18. Ao
Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, cit., p. 44.
Idem.
Lembremos, nesse sentido, o que Schoenberg diz a respeito de Erwartung : “É impossível
ao homem sentir apenas uma coisa por vez. Sentimos milhares de coisas ao mesmo
tempo. E essas milhares de coisas não se adicionam, da mesma maneira como uma maçã
e uma pera não se adicionam. Elas divergem. É essa multiplicidade de cores, de formas,
esse alogicismo próprio a nossas sensações, alogicismo inerente às associações de ideias, a
16
17
18
O esgotamento da forma crítica como valor estético • 187
interpretar obras estéticas, Freud parte do princípio de que a verdade da
obra não coincide com sua letra, já que a aparência estética oblitera uma
dinâmica pulsional que só pode aparecer a partir de operações arqueológicas de procura do sentido. “Eu percebi constantemente”, dirá Freud,
“que o conteúdo [Inhalt] de uma obra de arte me apreende mais que suas
qualidades formais e técnicas.19” Esse comentário inocente é, na verdade,
a exposição de todo um programa estético. Trata-se de revelar o pensamento presente na forma estética (pensamento cuja fonte, segundo Freud,
é a “intenção do artista” [Absicht des Künstlers], ou seja, seus desejos
inconscientes e suas moções pulsionais) através do ato de “descobrir
[herausfinden] o sentido e o conteúdo do que é representado [Dargestellten]
na obra de arte”20. Dessa maneira, o entrelaçamento entre estética e pulsional
serve para Freud desdobrar um horizonte de visibilidade integral das obras.
Por outro lado, com sua teoria das pulsões, Freud permitiu a reconfiguração de uma categoria estética fundamental como a expressão.
Para Schoenberg, tal exigência de visibilidade afirma-se como resgate do que não se apresenta através da linguagem reificada de um
tonalismo que aparece como bloqueio às aspirações da “pressão pela
verdade por trás das mediações e das máscaras burguesas da violência”21.
Tal aspiração à plena visibilidade chega a fazer com que Schoenberg
afirme, a respeito de Pierrot lunaire: “A expressão sonora dos movimentos dos sentidos e da alma são de uma imediatez quase animal.
Como se tudo fosse diretamente transposto [Fast als ob alles direkt
übertragen wäre]”22.
Procurar uma forma capaz de ser a transposição direta da ideia
musical na dimensão do que aparece, ideia que procura realizar exigências expressivas que não se reconhecem na gramática dos sentimentos
reificada pelo tonalismo, é o que leva Schoenberg ao dodecafonismo.
Aqui, vemos como ele realiza, enfim, um impulso partilhado pelo mo-
não importa qual reação dos sentidos e dos nervos que quero em minha música” (Arnold Schoenberg, Carta a Ferrucio Busoni, agosto de 1909).
Sigmund Freud, “Der Moses des Michelangelo”, em Gesammelte Werke (Frankfurt, Fischer, 1999), v. X, p. 172.
Ibidem, p. 173.
Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, cit., p. 137.
Arnold Schoenberg, Berliner Tagebuch (Frankfurt, Propyläen, 1984), p. 34.
19
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21
22
188 • Cinismo e falência da crítica
dernismo de “crítica da reificação e do fetichismo através da reconstrução de um pensamento estrutural”.
Adorno sempre insistiu no fato do uso schoenberguiano da série
procurar convergir a tentativa de conservar exigências de expressão do
que não se reconhece na imagem naturalizada do mundo e um princípio construtivo e transparente de relação. A esse respeito, Schoenberg
não cansava de afirmar, com uma ponta de orgulho: “Ainda posso assegurar coerência e unidade, mesmo que existam vários elementos construtivos da forma importantes, assim como auxílios à compreensibilidade,
que não uso”23. Orgulho de quem podia, ao mesmo tempo, oferecer um
protocolo de crítica à aparência reificada e assegurar um princípio autônomo de racionalização e legibilidade das obras.
De fato, ao racionalizar todas as incidências do material musical
através do primado da série, primado que faz com que cada evento seja
automaticamente reportado a esse padrão transcendental de justificação
que é a série, a música poderia liberar-se da aparência costurada pela
naturalização do sistema tonal. Ao mesmo tempo, graças à onipresença
da série, seu tema é seu próprio processo de construção. Ela é o que realiza
exigências de “obediência a alguma injunção ou princípio de valor”24 a
respeito das quais falava Greenberg. Dessa forma, Schoenberg mostrava
como a forma crítica deveria ser forma que expõe, em uma “distância
correta”, seu próprio processo de construção (a série), forma que já traz
em si a negação da naturalização de sua aparência como totalidade funcional. Lembremos, por exemplo, este momento em que afirma: “Minha música não parte da visão de um todo, mas é construída de cima
para baixo de acordo com um plano e esquema preconcebido, mas sem
uma verdadeira ideia visualizada do todo”25. Trata-se de insistir que sua
música não naturaliza totalidades funcionais (como no caso da música
tonal), mas expõe claramente seu processo de construção através da posição do plano e do esquema. Tal afirmação é feita na expectativa de levar
o sujeito à necessidade de ouvir a estrutura e o plano construtivo. Esse é
o sentido fundamental da “audição estrutural” exigida por Schoenberg.
Arnold Schoenberg, Style and Idea, cit., p. 107.
Clement Greenberg, “Vanguarda e kitsch”, em Glória Ferreira e Cecília Cotrim (org.),
Clement Greenberg e o debate crítico, cit.
Ibidem, p. 107.
23
24
25
O esgotamento da forma crítica como valor estético • 189
Pois, para o Schoenberg do período dodecafônico, a verdade era uma
questão de construção formal coerente, e não de adequação a regras naturalizadas de disposição do sonoro. Nesse sentido, podemos seguir a afirmação feliz de Antonia Soulez: “Segundo Schoenberg, que toma do
lógico esse ideal sintático do verdadeiro, a música pensa na mesma medida em que, por e através dela, articulam-se leis do verdadeiro segundo
uma certa gramática”26.
A racionalização e seu extremo
Sabemos como algo dessa noção de forma crítica capaz de desvelar
a aparência estética servirá de guia para boa parte da vanguarda musical
da última metade do século XX. É pensando no advento de tal forma
que Pierre Boulez, por exemplo, falará de uma “necessidade incontornável da linguagem musical”, que deve obedecer a “leis absolutas da
história”. Boulez quer, com isso, levar ao extremo a “desnaturalização”
da racionalidade musical do tonalismo. “A era de Rameau e seus princípios naturais está definitivamente abolida”, diz Boulez, a fim de insistir que nenhum resquício da linguagem musical deve ficar imune a uma
crítica da reificação. “Àqueles que irão me objetar que, partindo do fenômeno concreto, obedecem à natureza, às leis da natureza, eu responderei, sempre segundo Rougier: ‘damos o nome de leis da natureza a
fórmulas que simbolizam a rotina da experiência’.27”
Tal crítica à reificação da linguagem musical não irá poupar nem
sequer Schoenberg. Ao contrário, o dodecafonismo de Schoenberg
aparece para Boulez como um fracasso histórico, como um “romantismo-classicismo deformado”. Para Boulez, se a música serial de
Schoenberg estava destinada ao fracasso, era porque “a exploração do
domínio serial foi feito de maneira unilateral; falta o plano rítmico, e
mesmo o plano sonoro propriamente dito, as intensidades e os ataques”. Ou seja, “a série intervém, em Schoenberg, como um mínimo
denominador comum para assegurar a unidade semântica da obra;
Antonia Soulez, “Schönberg: penseur de la forme”, em Makis Solomos, Antonia Soulez
e Horacio Vaggione, Formel/informel (Paris, L’Harmattan, 2003), p. 120.
Pierre Boulez, Penser la musique aujourd’hui (Paris, Gallimard, 1975), p. 31.
26
27
190 • Cinismo e falência da crítica
mas os elementos da linguagem assim obtidos são organizados por
uma retórica preexistente”28.
O que Boulez afirma é: o dodecafonismo não realizou seu próprio
programa crítico de nos liberar de toda aderência natural aos materiais
através da posição de um conteúdo de verdade construtivo. Isso, só um
serialismo integral, procedimento que submeta todos os parâmetros
sonoros (intensidade, duração, altura e timbre) a um pensamento serial,
poderá realizar. Assim, Boulez afirmará: “As funções harmônicas, por
exemplo, não saberiam colocar-se agora como funções permanentes; os
fenômenos de tensão-distensão não se colocam em absoluto nos mesmos termos que outrora e, sobretudo, não mais de maneira fixa e pe­
remp­tória”29. O que está em jogo, pois, é o aprofundamento de um
mesmo programa de constituição da forma crítica através da autonomização absoluta de seus processos construtivos.
Boulez leva assim o ideal construtivo do pensamento serial dodecafônico ao extremo. Esse ideal enquanto verdade da forma musical não
teme seguir uma tendência várias vezes presente no modernismo: a reconstrução da racionalidade da forma musical a partir de parâmetros
fornecidos pela racionalização científica. “Quando se estuda o pensamento dos matemáticos ou dos físicos de nossa época sobre as estruturas (do pensamento lógico, das matemáticas, da teoria física...), percebe-se, claramente, o imenso caminho que os músicos ainda devem
percorrer antes de chegar à coesão de uma síntese geral.30” A afirmação
não podia ser mais clara: o ideal da razão musical deve ser procurado no
pensamento estrutural que anima as matemáticas e a ciência. Fato que
não escapou a Adorno:
Podemos dizer que os serialistas não inventaram arbitrariamente a matematização da música, mas confirmaram um desenvolvimento que
Max Weber, em sua sociologia da música, identificou como a tendência
dominante da mais recente história musical – a progressiva racionalização da música. Ela alcança sua realização na construção integral.31
Idem, Apontamentos de aprendiz (São Paulo, Perspectiva, 1983), p. 244.
Idem, Penser la musique aujourd’hui, cit., p. 25.
Ibidem, p. 28.
Theodor Adorno, Swierigkeiten, em Gesammelte Schriften XVII (Digitale Bibliothek,
1999), p. 269.
28
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31
O esgotamento da forma crítica como valor estético • 191
Mas sigamos ainda o jovem Boulez. O termo “estrutura” não é aqui
aleatório. De fato, há certo estruturalismo musical em Boulez que é
claramente assumido pelo próprio. O material musical vale integralmente em razão das relações que ele estabelece. Boulez, citando Rougier,
define seu programa:
“O método axiomático permite construir teorias puramente formais
que são redes de relações, deduções totalmente prontas. Desde então,
uma mesma forma pode ser aplicada a diversas matérias, a conjuntos
de objetos de natureza diferente, com a única condição que esses objetos respeitem entre eles as mesmas relações que aquelas enunciadas
entre os símbolos não definidos da teoria.” Parece-me que tal enunciado é fundamental para o pensamento musical atual; notemos principalmente a última parte.32
Isso apenas mostra claramente como, para Boulez, e agora seguindo
textualmente Lévi-Strauss, não haveria oposição alguma entre forma
e conteúdo (entendido aqui como o material musical), entre estrutura e
aparência, pois a forma já organiza previamente as possibilidades de
significação da matéria a ser formada, isso mesmo quando ela admite
o acaso33.
Pierre Boulez, Penser la musique aujourd’hui, cit., p. 29.
Essa racionalidade musical é capaz até mesmo de englobar a irracionalidade do acaso
como elemento estruturador de seus procedimentos. É isso que vemos no texto “Alea”.
Pensando principalmente na “musica da indeterminação” própria à John Cage e em seu
impulso de “perda total do sentido global da obra”, Boulez procura transformar o acaso
em elemento construtivo previamente codificado. “Busca-se desesperadamente dominar
um material por meio de esforço árduo, tenso, vigilante e por desespero o acaso subsiste e
se introduz por mil frestas impossíveis de calafetar... ‘E está bom assim!’. Não obstante, o
último ardil do compositor não seria absorver esse acaso? Por que não domesticar esse
potencial e forçá-lo a dar-se conta e a prestar contas? Introduzir o acaso na composição?
Será loucura ou, ainda, uma tentativa vã? Pode ser loucura, mas uma loucura útil. De
qualquer modo, adotar o acaso por fraqueza, por facilidade, entregar-se a ele, é uma forma
de renúncia que se subscreve sem negar todas as prerrogativas e hierarquias envolvidas na
obra criada. Como conciliar então composição e acaso?” (Pierre Boulez, Apontamentos de
aprendiz, cit., p. 47). É a respeito dessa luta entre o determinado e o indeterminado no
interior da forma musical, dessa “organização do delírio”, para falar como Boulez, que
Foucault dirá, sobre o compositor francês: “Trata-se de dar a força de romper as regras no
ato mesmo que as implementa” (Michel Foucault, Dits et écrits II, Paris, Gallimard, 1998,
p. 1040). No limite, isso levará a forma bouleziana a uma situação de abertura constitutiva. Lembremos a esse respeito que, a partir dos anos 1970, a maior parte do trabalho
composicional de Boulez será uma recomposição contínua de suas próprias peças.
32
33
192 • Cinismo e falência da crítica
Ideologia transparente e retorno à mímesis
No entanto, sabemos como, principalmente a partir dos anos 1960,
a arte abandona progressivamente esse programa de subtração da fascinação fetichista pela aparência através da posição de uma forma capaz de
tematizar, de maneira integral, seus próprios processos construtivos. Ao
contrário, as obras foram pensadas cada vez mais como espaços de repetição mimética da realidade social fetichizada. Tendência que pode ser
encontrada através de um longo movimento de retorno ao tonalismo, ela
nos forneceu, em seus melhores momentos, o padrão de uma crítica da
crítica. Adorno, por exemplo, percebeu claramente que recorrer novamente à mímesis com a realidade social mutilada, realidade cuja representação musical mais bem acabada seria o tonalismo, era o único modo de
impedir que o formalismo serial de um programa estético de tematização
autorreflexiva dos processos construtivos das obras não se transformasse
em hipóstase de totalidades funcionais que não são mais capazes de levar
em conta a resistência dos materiais às operações de sentido. Uma das
funções maiores de sua Filosofia da nova música consistia exatamente em
fornecer os protocolos de inversão da racionalidade dodecafônica
em modo puro e simples de dominação do material, e isso a fim de compreender tal inversão no interior da crítica à racionalidade instrumental
com seus múltiplos processos de dominação da natureza.
Por essa razão, Adorno está disposto até mesmo a insistir que a arte
não deveria mais procurar o absoluto de sua subtração integral ao fetiche
através da autonomização integral de sua esfera e da consolidação de um
sistema estrutural fechado de produção de significações. Na verdade, ela
deveria repetir mimeticamente a realidade fetichizada, já que “a arte é
obrigada [a confrontar-se com o fetiche] em virtude da realidade social.
Ao mesmo tempo em que se opõe à sociedade, ela não é, no entanto,
capaz de adotar um ponto de vista que seja exterior à sociedade”34.
No entanto, essa exigência de retorno à realidade social fetichizada
foi muitas vezes compreendida no interior de um quadro de deposição
da forma crítica. Se voltarmos nossos olhos para as artes visuais, veremos
críticos como Pierre Restany (que escreve na mesma época em que
Adorno pensava uma Teoria estética baseada no resgate da mímesis)
34
Theodor Adorno, Ästhetische Theorie (Frankfurt, Suhrkamp, 1973), p. 201.
O esgotamento da forma crítica como valor estético • 193
chegar a afirmar que “a arte abstrata recusava por definição todo apelo da
realidade exterior: arte de evasão e de recusa do mundo, correspondeu
à manifestação extrema de uma visão pessimista da condição humana”35,
mas as vanguardas pós-1960 seriam realistas por terem superado esse
“mito negativo”. Daí esta definição peculiar de realismo: “O realismo
não discute nem o contexto nem o cenário de sua vida: identifica-se
com o real [que, em uma situação social de integração de todas as esferas de valores à dinâmica do fetichismo da mercadoria, só pode significar real da forma-mercadoria, ou seja, posição da forma-mercadoria
como dispositivo fundamental de constituição de nossa experiência da
realidade – o que a pop art compreendeu de maneira absolutamente
clara], nele se insere, se integra”36. Ao tematizar essa adesão da arte à
realidade social, Restany chega mesmo a prever uma mudança radical
da função social da arte que só será sentida de maneira decisiva a partir
dos anos 1980: a transformação do potencial disruptivo da arte de vanguarda em glamour disponibilizado para os setores de consumo conspícuo, como a moda e o design.
No mundo automatizado de amanhã, o problema capital será a utilização do tempo livre. O artista aparecerá então, não mais como um
pária ou um revoltado, mas como o engenheiro e o poeta de nossos
lazeres. Seu papel na sociedade será central e determinante, ele se verá
promovido aos mais altos níveis da hierarquia tecnocrata.37
Podemos tentar entender tal esgotamento da forma crítica levando
em conta problemas internos à racionalidade da forma estética no século XX38. Mas devemos também estar atentos para uma dimensão “exterior” do problema que é normalmente negligenciada.
Grosso modo, é possível afirmar que a concepção de forma crítica
que vigorou de maneira hegemônica no modernismo tem força em situações históricas nas quais a ideologia pode ser pensada como recalcamento de seus pressupostos, como bloqueio da passagem da aparência
Pierre Restany, Os novos realistas (São Paulo, Perspectiva, 1979), p. 111.
Ibidem, p. 140.
Ibidem, p. 150.
Tomo a liberdade de remeter ao meu artigo “Fetichismo e mímesis na filosofia adorniana da música”, Revista Discurso, São Paulo, Alameda, n. 37, no prelo.
35
36
37
38
194 • Cinismo e falência da crítica
para a essência. A obra de arte se estrutura a partir da dinâmica disponível à crítica social com suas temáticas da alienação da consciência no
domínio da reificação da aparência. A ideia benjaminiana de crítica
como “distância correta” só pode ser operativa diante de mecanismos
ideológicos dessa natureza. No entanto, ela será marcada com o selo da
obsolescência ao deparar-se com uma realidade social na qual a ideologia não responde a tais coordenadas.
Nesse sentido, devemos insistir neste diagnóstico, já comentado em
capítulos anteriores, sobre a ideologia ser, atualmente, autoirônica. Dessa
forma, a crítica como “correta distância” seria impossível porque a ideo­
logia já opera, a todo momento, uma distância reflexiva em relação
àquilo que ela própria enuncia. Ou seja, a forma crítica esgotou-se porque a realidade internalizou as estratégias da crítica.
De Stravinsky ao novo tonalismo:
uma arqueologia da forma cínica
Esse é o quadro social de análise do que poderíamos chamar de
“novo tonalismo”, ou seja, dessa tendência cada vez mais hegemônica
na contemporaneidade de retornar à noções como centro tonal e pulsação regular. Tendência maior no contexto musical anglo-saxão (Steve
Reich, John Adams, Terry Riley, Phillip Glass, Thomas Adès, Howard
Skeptom, entre outros) e eslavo (Arvo Pärt, Schnittke, Penderecki).
Primeiro, devemos salientar que o retorno ao uso de materiais
tonais na composição musical traz problemas simétricos àqueles postos pelo retorno à mímesis nas artes visuais da segunda metade do século XX. Nos dois casos, materiais e procedimentos alvos de críticas
estéticas virulentas retornam, mas normalmente sem força para preencher as funções outrora desempenhadas e sem a capacidade de operar
no interior de uma lógica da naturalização. Depois da emancipação da
dissonância, não há como se servir do sistema tonal enquanto princípio
organizador de totalidades funcionais e de progressão harmônica fundamentado de maneira segura. O que nos deixa com a questão de saber
o que pode significar retornar a um material que traz as marcas de sua
impotência e de seu esgotamento sócio-histórico, material em crise de
legitimidade. Posição de esgotamento e crise nem sempre partilhada.
Basta lembrarmos aqui o que afirma Steve Reich: “Para mim, princípios
O esgotamento da forma crítica como valor estético • 195
naturais de ressonância e da percepção musical humana não são limitações; são fatos da vida”39, e isso a fim de insistir que a realidade de um
centro modal é realidade tanto em músicas ocidentais como não ocidentais. No entanto, mesmo no caso de Reich não há exatamente um
uso do tonalismo enquanto sistema funcional de progressão, mas como
princípio de encadeamento de repetições e de gravitação unificadora
dos momentos.
Mas da mesma forma que a música forneceu às artes do século XX
um padrão de racionalidade da forma crítica através dos protocolos de
autonomização reflexiva da forma, ela talvez tenha sido a primeira arte
a fornecer uma figura de esgotamento de tal racionalidade através de
um tratamento paródico do que se coloca como aparência estética. Forma paródica que ganha paulatinamente centralidade à medida que a
ideologia vai se revelando como ideologia da ironização. Essa forma, ao
invés de organizar-se como uma crítica da aparência por meio da visibilidade integral da estrutura, organiza-se como a submissão integral do
material a um “princípio de estilização”. O material aparece normalmente como o representante de um estilo codificado, elemento congelado
como uma imagem-clichê. A obra torna-se “jogo” com materiais fetichizados. Caminho que poderia nos levar, simplesmente, à composição
de obras “regressivas”, se tais materiais fetichizados não fossem tratados
como aparências postas como aparência. Dessa maneira, a forma paródica
realiza cinicamente o programa que a forma crítica, na modernidade,
colocou para si: portar em si mesma sua própria negação, já ser, em si
mesma, a performance de uma distância correta em relação a sistemas
naturalizados de representações (como é o caso do sistema tonal).
Novamente, é Adorno quem compreendeu essa estranha complementaridade entre crítica e paródia ou, ainda, entre crítica e cinismo.
Nesse quadro, sua confrontação entre Schoenberg e Stravinsky tende a
ganhar outro contorno. Essa discussão me parece atual, já que Stravinsky,
de maneira sintomática, pode nos oferecer o quadro de compreensão
para a racionalidade dos dispositivos formais que estruturam vários programas-chave no interior do novo tonalismo. Há, por exemplo, uma linha reta que vai de Stravinsky até John Adams e Thomas Adès.
39
Steve Reich, Writings about music (Oxford, Oxford University Press, 2002), p. 159.
196 • Cinismo e falência da crítica
Da multitude de questões que Adorno endereça à obra de Stravinsky, guardemos principalmente sua maneira de vê-la como um jogo
infinito de máscaras. Jogo que se torna mais visível através da passagem
de Stravinsky em direção ao neoclacissismo.
Normalmente, a crítica indica o neoclassicismo do balé Pulcinella, de
1920, como o momento de uma virada nos procedimentos composicionais
de Stravinsky, mas Adorno insiste que A história do soldado, de 1918, já é
composta a partir de procedimentos que determinarão a forma musical,
em Stravinsky, de maneira cada vez mais hegemônica. Isso porque, a
partir de A história do soldado, o único material de composição será o
material mutilado vindo de formas gastas do sistema tonal, materiais pobres, convenções deterioradas que se mostram enquanto tais. Adorno já
indicara algo dessa tendência ao perceber que, em virtude do princípio
artístico da recusa e de certo anti-humanismo, os momentos de inflexões
expressivas em Stravinsky eram, normalmente, sucessões sonoras elementares. Desde Petrushka, a expressão torna-se grotesca, risível e conjugada
apenas a uma gramática claramente posta como ultrapassada, como se “a
imago do deteriorado e decrépito devesse transformar-se no remédio contra a desintegração [Zerfalls]”40. Esse remédio contra a decadência do tonalismo sintetizado com imagens de elementos deteriorados do próprio
sistema será, não apenas o motor da fase neoclássica de Stravinsky, mas
também procedimento composicional maior para a compreensão do que
está em jogo no resgate contemporâneo do tonalismo.
A esse respeito, devemos levar a sério a afirmação adorniana de que
o compositor que segue a lógica em operação nas obras de Stravinsky
compõe com “ruínas de mercadorias [Warentrümmern]”, no sentido de
assumir formas e elementos fetichizados que se afirmam enquanto tal,
como se esse material já estivesse previamente criticado, como se trouxesse em si sua própria negação e afirmasse sua própria impossibilidade de
desempenhar suas “funções naturais”. É isso que Adorno tem em mente
ao dizer que Stravinsky compõe como quem “ritualiza a liquidação”41
(Ausverkauf, “liquidação”, no sentido de proposições como “uma loja
em liquidação”). Daí a ideia adorniana de afirmar que isso nada mais é
do que uma forma musical paródica, forma que apresenta todos os seus
Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, cit., p. 135.
Ibidem, p. 166.
40
41
O esgotamento da forma crítica como valor estético • 197
materiais entre parênteses, como se estivéssemos diante de uma “música
feita a partir da música”, ou de uma montagem de músicas mortas,
música feita contra a música.
Tudo se passa como se o fazer tomasse consciência de si através da
ironia e se afirmasse abertamente enquanto tal. Música que, de maneira
cínica, zomba da norma com o mesmo fôlego que a afirma, ou seja,
forma estética capaz de suspender a norma exatamente ao segui-la.
Maneira astuta de conservar e repetir materiais esgotados do ponto de
vista de situação sócio-histórica. É por causa desse ponto que Adorno
pôde afirmar, em 1962:
Stravinsky continua sendo um escândalo porque, prestidigitador durante toda a vida, ele fez aparecer (Erscheinung) a inautenticidade da
objetividade através de uma feição caricata. O que afastou sua música
de todo provincianismo é que ela nunca deixou de mostrar seus truques, como apenas os mágicos inimitáveis podem se permitir.42
Sua consciência de que apenas uma “linguagem orgânica em decomposição” era possível à música que aspira a afirmar-se como forma
crítica nos leva a indicá-lo como exemplo privilegiado de alguém que
procura expor o colapso da distinção entre arte e fetichismo, mas no
interior de estruturas claramente fetichizadas.
É claro que sempre se pode dizer que “a música de Stravinsky é mais
do que meramente idêntica à consciência reificada. Ela a ultrapassa
(hinausreiche) na medida em que a contempla em silêncio e silenciosamente a deixa falar”43. No entanto, ela é a forma do paradoxo de uma
consciência reificada autorreflexiva ou de uma falsa consciência esclarecida. Forma de uma consciência cínica que repete os gestos musicais de
uma consciência reificada, mas que demonstra a todo momento, seja
pela excessiva força, seja pelos cortes e pelas justaposições, tomar distância de seu próprio gestual.
Se pensarmos em compositores contemporâneos como John Adams
(“o maior compositor da América”) e Thomas Adès, veremos que tais
processos composicionais continuaram, mas levados ao paroxismo.
Idem, Quasi una fantasia, em Gesammelte Schriften XVI (Digitale Bibliothek Band,
1999), p. 383.
Ibidem, p. 385.
42
43
198 • Cinismo e falência da crítica
Entre Adès e Adams passa o mesmo discurso de disponibilização integral dos materiais musicais de todas as tradições possíveis e de mobilização de tais materiais em uma organização musical que visa o grande
público. O mesmo Adams que teve a sagacidade de afirmar: “Minha
música é como uma grande lixeira. Eu não recuso nada”44. É verdade.
Em Harmonielehre, de 1984-85, por exemplo, há espaço para harmonias
de jazz, orquestrações de música de filme dos anos 1950, pulsação de rock
e insinuações dodecafônicas. A princípio, nada fica fora de seus processos
de justaposição e colagem. O título já é uma paródia do Tratado de harmonia, de Schoenberg, último dos grandes tratados de harmonia da história da música e editado no momento em que o próprio Schoenberg já
demonstrava que os caminhos estavam abertos para o abandono do tonalismo. Tudo se passa como se Adams se colocasse no limiar desse momento histórico, mas para fornecer sua própria versão a respeito do que
se abre a partir do esgotamento das funções construtivas do sistema harmônico tonal. Abre-se uma era da disponibilização integral do material e
livre uso de formas. Livre uso perfeitamente ilustrado pelo próprio Adams
a respeito de outra de suas peças, Grand pianolla music, de 1982: “Pense
em Beethoven e em Rachmaninoff tomando banho no mesmo box com
Liberace, Wagner, The Supremes, Ives e John Philip Sousa”45.
No entanto, para que sequências pianísticas de glissandos e arpeggios
dignos de Liberace convivam de maneira relativamente “harmônica”
com desenvolvimentos cromáticos wagnerianos é necessária uma grande dose de indiferença em relação à resistência dos materiais através da
redução destes a um gênero de imagem sonora submetida a princípios
gerais de estilização, ou seja, à condição de clichês. Só dessa forma, Adams
pode trabalhar seus materiais sonoros de forma tal que, ao final, eles
pareçam construir uma totalidade orgânica incapaz de ferir os ouvidos
acostumados à forma-sonata e digna dos momentos áureos do tonalismo. Em um incrível passe de mágica, a multiplicidade de materiais parece transformar-se em um grande contínuo, em que tudo pode entrar e
sair sem abalar o solo seguro de um desenvolvimento que esconde suas
justaposições. Passe de mágica possível porque a composição virou um
Stéphane Lelong, Nouvelle musique (Paris, Ballard, 1996), p. 21.
Andrew Clements, Unity from diversity, disponível em <http://www.earbox.com/inter009.
html>.
44
45
O esgotamento da forma crítica como valor estético • 199
“jogo de máscaras”, no sentido de um jogo musical sobre a própria
música – palavras usadas por Adams a fim de caracterizar seu próprio
trabalho e que, não por acaso, repetem o diagnóstico adorniano sobre
Stravinsky. Nada mais exemplar aqui do que o segundo movimento de
Century Rolls, de 1996: uma paródia das Gymnopédies, de Satie, que já está
indicada no próprio título do movimento, Manny’s gym. Paródia feita
da articulação entre as modulações de Satie e arranjos de piano-bar.
Adams teria certamente outra versão para tal ecletismo pressuposto
pelo discurso da disponibilização integral do material. Em um tom
claramente afirmativo, ele falaria da multiplicidade que compõe a
“América” enquanto espaço livre das hierarquias e distinções que marcaram a “velha Europa”. O ecletismo de sua música seria apenas o
resultado de um “retorno à experiência ordinária”, que na era da urbanidade tudo mistura, e às formas musicais enraizadas em práticas
comunais de interação social. Esse tom afirmativo da “entificação” da
vida cotidiana seria, ainda, acompanhado pelo espiritualismo de Emerson
e Thoureau. É dessa forma que Adams pode afirmar ter percebido que
a música dodecafônica estava divorciada da experiência comunal, sem
problematizar o fato de que esse divórcio era o resultado do esvaziamento da própria noção de “experiência comunal” na era da universalização
da forma-mercadoria.
No entanto, não deixa de ser sintomático que essa “estetização
musical de um plano de imanência” vinculado à multiplicidade pura
disposta no campo de experiências comunais seja conjugada através de
fortes doses de ironização dos materiais com os quais as obras são
compostas. Na verdade, as obras só podem realizar suas promessas de imanência através da ironização, exatamente como era o caso das exigências
de “autenticidade” que animavam o programa estético de Stravinsky.
No fundo, tratava-se de uma autenticidade que só podia realizar-se
de forma irônica. Cinismo adequado para a estetização dos modos
contemporâneos de funcionamento da ideologia. Dessa forma, valores
que deveriam produzir obras capazes de criticar materiais e processos de
produção reificados acabam por permitir a conservação desses mesmos
materiais e processos através de sua ironização, produzindo com isso
uma paradoxal “distorção performativa”.
Nesse sentido, a obra de Thomas Adès representa um problema
suplementar. A herança minimalista de Adams ainda marca sua música
200 • Cinismo e falência da crítica
com exigências de clareza na escrita, exigências derivadas do pulso regular e do máximo uso de recursos muitas vezes reduzidos. É verdade
que não se trata mais de recursos minimais como os que caracterizam
Phrygian Gates ou Light over Water (embora obras tardias como Lollapalooza, de 1995, ainda devam ser compreendidas nessa chave), mas
mesmo em peças de construção complexa como Chamber Symphony, de
1992, nota-se claramente o esforço de Adams para dar visibilidade a um
conjunto reduzido de ideias norteadoras da forma. Algumas obras
de Adès, ao contrário, tendem a partir do que poderíamos chamar de
“ambientes desetruturados”, que tendem à informidade. Os primeiros
compassos de Concerto conciso, de 1997-98, são muito claros nesse sentido. As estruturas que se organizam de maneira frágil e instantânea são
baseadas, é claro, em clichês musicais que subsistem em contextos que
não lhe são próprios. Clichês que remetem a inflexões da gramática musical convencional ou da própria tradição modernista (reduzida ela também à “imagem musical”). De fato, os únicos elementos organizadores
são “fetiches em ruínas” ou formas que são destruídas da mesma maneira
que uma criança destrói brinquedos e depois tenta remontá-los à força
(os casos exemplares aqui são o tango de Arcadiana e o “tecno” de Asyla,
movimento chamado ironicamente de Ecstasio). Essa forma consegue
absorver sua própria desestruturação, sem com isso colocar em questão
a noção de que só há ordem através de materiais fetichizados. Dessa
maneira, ela flerta com o informe sem abandonar a sustentação de um
princípio de organização a respeito do qual ela faz toda questão de enfatizar sua descrença. Como já foi dito, mesmo o informe pode servir para
sustentar uma Ordem que vigora por meio de sua própria descrença.
Conclusão
A intenção última é a de introduzir um mínimo de
negatividade no debate acadêmico, revelando o que há de frágil na
segurança moral-ideológica que está em sua base mais funda.
Bento Prado Jr., Erro, ilusão, loucura
Até aqui foi questão de expor o cinismo como categoria adequada
para dar conta da dinâmica própria a processos de racionalização social
que parecem constituir o fundamento de formas hegemônicas de vida
na fase atual do capitalismo. Partindo da noção de forma de vida como
conjunto de sistemas de ordenamento e justificação de processos de
interação social nas esferas do trabalho, do desejo e da linguagem, este
livro procurou insistir na convergência de mutações profundas que
ocorrem nos modos de socialização do desejo, assim como nos modos
de reprodução material da vida e de constituição de critérios de funcionamento e crítica da linguagem. A constituição de sexualidades por
meio de relações paródicas com identidades, o advento de um novo
espírito do capitalismo através do jogo flexível com estruturas normativas duais, em que Lei social e imperativos de satisfação irrestrita se
adaptam em uma nova economia libidinal própria ao mundo do consumo e do trabalho, uma linguagem marcada pela produção reiterada
de distorções performativas paradoxais que se fazem sentir mesmo em
campos avançados da produção estética, todos esses casos foram lidos
como sintomas maiores de mudanças profundas nos processos de racionalização social organizadas a partir da temática do cinismo.
Tais mutações, por sua vez, foram inseridas em um quadro que não
é limitado apenas pelos objetos de uma crítica social, mas aspira a desdobrar-se como espaço de determinação de setores importante para a crítica
da razão, já que se tratou de mostrar a solidariedade entre os impasses de
racionalização social e um conceito de racionalidade pensado fundamental como normatividade intersubjetivamente reconhecida.
202 • Cinismo e falência da crítica
No interior desse processo, desenhou-se uma espécie de diagnóstico de nossa época como era da ironização absoluta das condutas, de
flexibilização das identidades e de constituição de modos de operação
em situação de generalização de anomia e indeterminação. No entanto,
um crítica poderia ser levantada, pois tal diagnóstico não parece dar
conta das levas de tentativas de reconstrução conservadora de vínculos
sociais substancialmente fundamentados que nos submergem de tempos em tempos. “Fomos longe demais com a liberalização” é um tipo
de frase que se ouve constantemente e logo vem acompanhada de um
destacamento policial nas fronteiras e um grito de respeito ao hino
nacional e às nossas tradições comunitaristas travestidas de universalismo. Ou seja, a indeterminação não parece ser algo que nos provoca um
gozo cínico, mas que nos leva a correr em direção à recuperação de
vínculos substanciais em tradições aparentemente arruinadas.
O fato é que não podemos perder de vista a solidariedade profunda
entre opostos aparentes: ironização das formas de vida e paz social armada. Trata-se, no fundo, de impor uma escolha forçada. Ou um modo
de experiência social da diferença que se realiza em formas que trazem
em si mesmas sua própria negação e nos prometem o prazer da indeterminação, o gozo da anomia, ou a procura pela reconstituição social de
vínculos substanciais patrocinada pela polícia e pelas estruturas disciplinares de sempre (Igreja, Nação, família etc.). Diante dessa situação,
devemos lembrar que a verdadeira mola do poder não é a imposição de
uma norma de conduta, mas a organização das possibilidades de escolha. Trata-se de operar uma redução da escolha que transforma o movimento no circuito limitado de um pêndulo que vai necessariamente de
um polo a outro. E, como todo pêndulo, o mover-se é apenas uma forma
de conservar o mesmo centro. Ir de um polo a outro é apenas uma maneira mais complicada de não andar. Nossas formas hegemônicas de vida
podem muito bem conviver, ao mesmo tempo, com a geografia mental
da liberalização e da restrição. Afinal, não há dificuldade alguma em desejar a plasticidade infinita da “viagem aleatória da libido” e amar ouvir
de vez em quando a voz firme do ministro da Justiça.
A esse respeito, vale a pena lembrar que sabemos, ao menos desde
Hegel, que a ironização resultante da crítica à inautenticidade de nossas
formas de vida pode muito bem interverter-se e dar lugar à tentativa de
realização forçada de retornos a vínculos sociais substanciais através
Conclusão • 203
de formas de reformismo conservador1. Ou podemos muito bem pensar
em situações de interversão constante e organicamente articulada, como
nos indica com precisão Deleuze e Guattari:
As sociedades modernas civilizadas definem-se por processos de descodificação e desterritorialização. Mas o que desterritorializam de um
lado, elas reterritorializam de outro. Essas neoterritorialidades são geralmente artificiais, residuais, arcaicas [pois já foram marcadas pelo
trabalho de séculos de desencantamento]; no entanto, são arcaísmos
com funções absolutamente atuais, são nossa maneira de “bricolar”, de
esquadrinhar, de reintroduzir fragmentos de código, ressuscitar códigos antigos, inventar pseudocódigos e jargões.2
A descrição não poderia ser mais precisa. A estrutura bipolar de
nossas formas de vida é uma maneira astuta de controle, já que o verdadeiro controle ocorre quando se impõe a nós a chantagem de uma
escolha forçada.
* * *
Por fim, gostaria de responder a uma questão constantemente levantada por ocasião da apresentação de capítulos deste livro em forma
de conferências. Pois pode parecer que o saldo dessa forma de pensar o
cinismo como modo de racionalização social, com a consequente falência de um modelo hegemônico de crítica social, só parece nos levar a
alguma forma mais rebuscada de aporia. Situação própria àqueles que
percebem o desgaste da força mobilizadora da crítica sem, no entanto,
fornecer de maneira clara os móbiles de processos renovados de reconstrução de vínculos sociais. Situação de quem percebe a urgência de um
Nesse sentido, só podemos estar de acordo com Honneth quando este afirma que, “no
individualismo romântico [que teria se tornado projeto generalizado em nossas sociedades], o vazio interior e a pobreza de ação são compensados por um retorno à voz da
própria natureza; e porque essa orientação pelas disposições internas e pelos estados
emotivos também acaba impelindo cada vez mais profundamente a um processo de
autorreflexão infinita, busca por fim um apoio nos poderes tradicionais da fé e de uma
religião pré-crítica” (Axel Honneth, “Patologias da liberdade individual”, Novos Estudos,
n. 66, jul. 2003, p. 85).
Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-Oedipe (Paris, Seuil, 1971), p. 306.
1
2
204 • Cinismo e falência da crítica
sofrimento que nos leva à recusa de modos de pensar e formas de vida
que nos parecem arruinados, mas tem dificuldades em indicar o padrão
de normalidade que poderia curá-lo.
De fato, se este livro se contentou em conservar-se, em larga medida,
nessa posição “negativa”, é por acreditar que a função urgente do pensamento é nos levar a um desespero conceitual. A tarefa filosófica atual pede
o demorar-se diante do esgotamento dos esquemas conceituais que visam
orientar a ação e o julgamento. A todo momento, o pensamento encontra-se diante da pressão de questões como: “Que fazer?”. Questões dessa
natureza não devem e não podem ser respondidas.
Não devem porque a resposta é apenas uma defesa contra o trabalho
de desarticulação, que só pode ser efetuado pela pulsação demorada da
questão. Esse trabalho, se realmente realizado, é o trabalho mais urgente.
Devemos dizer isso porque todo programa filosófico relevante é solidário de um acontecimento histórico que força o pensamento a reconstruir quadros conceituais. A filosofia hegeliana era solidária da Revolução
Francesa; a filosofia de Adorno, do caminho aberto pela Segunda Escola de Viena. Nessa articulação entre reflexão filosófica e confrontação
com o campo dos acontecimentos encontra-se o motor de toda elaboração conceitual. É sempre o espanto diante do acontecimento que nos
leva a pensar. Mas há acontecimentos que se manifestam apenas quando fechamos os olhos. Anteriormente, quando se voltava para si, encontravam-se os pontos cardeais de uma teologia travestida de natureza
interior. Agora, temos essa inquietude sem rosto, essa colisão sem avenida que vemos, como dizia Hegel, todas as vezes que encaramos um
homem nos olhos. Toda a peculiaridade de nossa época talvez venha do
fato de não encontrarmos um fato que esteja à altura desse acontecimento. Daí talvez a estranha sensação de que nossa primeira tarefa consiste em acelerar o desabamento. Mesmo que estejamos em uma situação histórica que se sustenta exatamente por ser um desabamento em
forma de mercadoria.
Talvez isso apenas nos lembre que questões como “Que fazer?” não
podem ser respondidas. Não podem porque só são respondidas através
de sua dissolução. O verdadeiro desespero conceitual produz uma ação
que satisfaz à urgência. Se ainda não há ação que satisfaça a urgência é
porque não fomos suficientemente longe com nosso desespero. Por isso,
toda acusação de niilismo diante desse tipo de perspectiva é apenas uma
Conclusão • 205
injúria, não uma análise. A acusação de niilismo é apenas a última arma
daqueles que têm medo de a crítica ir “longe demais”, pôr em questão
o que não deveria ser questionado; medo de a crítica deixar de ser comparação entre valores e caso para voltar-se contra nossos próprios valores
fundamentais. Pois é da essência do pensamento voltar-se contra si mesmo para ser fiel a si mesmo. É da essência do pensamento a força aterradora da dissolução. Nada prometer, para poder tudo cumprir.
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qui ne réconcilie pas) em Mark Alizart (Org.), Fresh Théorie III (Paris,
Léo Scheer, 2007).
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um artigo que primeiro apareceu com o título “Um supereu para a sociedade de consumo” em José Luiz Aidar e Christian Dunker, Žižek
crítico (São Paulo, Hacker Editores, 2004). Uma segunda versão, incompleta, foi publicada na revista Ide, São Paulo, n. 37, 2008.
“Sexo, simulacro e políticas da paródia” é o desenvolvimento de um
artigo com o mesmo título publicado na Revista do Departamento de
Psicologia – UFF, Niterói, n. 18.1, 2006.
“O esgotamento da forma crítica como valor estético” foi publicado, com o título “Le nouveau tonalisme et l’épuisement de la forme
critique” na Revue Filigrane, Paris, n. 3, 2006, e em Vladimir Safatle e
Rodrigo Duarte (Org.), Ensaios de música e filosofia (São Paulo, Humanitas, 2007).
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