Revista da Abordagem Gestáltica Volume XVIII - N. 2

Transcrição

Revista da Abordagem Gestáltica Volume XVIII - N. 2
Revista da Abordagem Gestáltica
Instituto de Treinamento e Pesquisa em
Gestalt-Terapia de Goiânia – ITGT
Revista da Abordagem Gestáltica
Volume XVIII - N. 2
2012
Goiânia – Goiás
www.itgt.com.br
Ficha Catalográfica
Revista da Aborda-gem Gestáltica/ Instituto de
Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia –
Vol. 18, n. 2 (2012) – Goiânia: ITGT, 2012.
131p.: il.: 30 cm
Inclui normas de publicação
ISSN: 1809-6867
1. Psicologia. 2. Gestalt-Terapia. I. Instituto de
Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia.
CDD 616.891 43
Citação:
REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA. Goiânia, v. 18, n. 1, 2012. xxxp
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Revista da Abordagem Gestáltica
Volume XVIII - N. 2 – Jul/Dez, 2012
Expediente
Editor
Adriano Furtado Holanda
(Universidade Federal do Paraná)
Editores Associados
Celana Cardoso Andrade
(Universidade Federal de Goiás)
Danilo Suassuna Martins Costa
(Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Marta Carmo
(Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiás)
Conselho Editorial
Adelma Pimentel (Universidade Federal do Pará)
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Cláudia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)
Ênio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de São Paulo)
Gizele Elias Parreira (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paraná)
Jorge Ponciano Ribeiro (Universidade de Brasília)
Josemar de Campos Maciel (Universidade Católica Dom Bosco, MS)
Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)
Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de São Paulo)
Marcos Aurélio Fernandes (Universidade Católica de Brasília)
Marisete Malaguth Mendonça (Universidade Católica de Goiás)
Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
Patrícia Valle de Albuquerque Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Pedro M. S. Alves (Universidade de Lisboa, Portugal)
Sérgio Lízias (Universidade Federal de Goiás – Campus Catalão)
Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)
Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Suporte Técnico
Josiane Almeida
Marcos Janzen
Norma Susana Romero Martinovich
Capa
Franco Jr.
Diagramação e Arte Final
Franco Jr.
Bibliotecário
Arnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)
Financiamento
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (ITGT-GO)
Encaminhamento de Manuscritos
A remessa de manuscritos para publicação, bem como toda a correspondência
de seguimento que se fizer necessária, deve ser endereçada a:
Editor
Revista da Abordagem Gestáltica
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Rua 1.128, nº 165 - St. Marista - Goiânia-GO - CEP: 74.175-130
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Normas de Apresentação de Manuscritos
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apresentação de manuscritos, critérios de avaliação, modalidades de textos, etc.,
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Fontes de Indexação
- Clase
- Latindex
- Lilacs
- Index Psi Periódicos (BVS-Psi Brasil)
- ScopuS
As opiniões emitidas nos trabalhos aqui publicados, bem como a exatidão
e adequação das referências bibliográficas são de exclusiva responsabilidade
dos autores, portanto podem não expressar o pensamento dos editores.
A reprodução do conteúdo desta publicação poderá ocorrer desde que
citada a fonte.
Sumário
Editorial.................................................................................................................................................... ix
ARTIGOS
-- Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañeda........................................................................... 131
Ana Gabriela Rebelo dos Santos (Universidade Federal Fluminense) & Roberto Novaes de Sá (Universidade Federal
Fluminense)
-- Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas
Iniciantes................................................................................................................................................... 136
Jéssica Paula Silva Mendes (Universidade Paranaense/Unipar); Sionara Karina Alves de Brito Gressler (Universidade
Paranaense/Unipar) & Sylvia Mara Pires de Freitas (Universidade Estadual de Maringá/Universidade Paranaense)
-- Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica......................................................................... 144
Marta Helena de Freitas (Universidade Católica de Brasília); Rita de Cássia Araújo (Universidade Católica de
Brasília); Filipe Starling Loureiro Franca (Universidade Católica de Brasília); Ondina Pena Pereira (Universidade
Católica de Brasília) & Francisco Martins (Universidade Católica de Brasília)
-- A Força da Palavra em Nicolau de Cusa................................................................................................. 155
Sonia Lyra (Instituto Icthys de Psicologia e Religião, Paraná)
-- Tédio e Trabalho na Pós-Modernidade................................................................................................... 161
Karina Okajima Fukumitsu (Universidade Presbitariana Mackenzie), Júlia Yoriko Hayakawa (Universidade
Presbitariana Mackenzie), Suzan Emie Kuda (Universidade Presbitariana Mackenzie), Elisa Harumi Musha
(Universidade Presbitariana Mackenzie), Tauane Cristina do Nascimento (Universidade Presbitariana Mackenzie),
Bruna Bezerra Oliveira (Universidade Presbitariana Mackenzie), Elisabete Hara Garcia Rocha (Universidade
Presbitariana Mackenzie), Daiany Aparecida Alves dos Santos (Universidade Presbitariana Mackenzie), Karen Ueki,
(Universidade Presbitariana Mackenzie), Lucas Palhari Vasconcelos (Universidade Presbitariana Mackenzie)
-- Origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: O Caso da Abordagem Centrada
na Pessoa................................................................................................................................................... 168
Ana Maria Monte Coelho Frota (Universidade Federal do Ceará)
-- “Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia..................................... 179
João Vitor Moreira Maia (Universidade Federal do Ceará), José Célio Freire (Universidade Federal do Ceará) &
Mariana Alves de Oliveira (Universidade Federal do Ceará)
-- Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo...................................................................................... 188
Lauane Baroncelli (University College Cork)
-- A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial..................... 197
-- Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos
Campos de Concentração......................................................................................................................... 206
Thiago Antonio Avellar de Aquino (Universidade Federal da Paraíba)
vii
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): vii-viii, jul-dez, 2012
Sumário
Gustavo Alvarenga Oliveira Santos (Universidade Federal do Triângulo Mineiro)
Sumário
-- A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a
Partir de Gaston Bachelard..................................................................................................................... 216
Rafael Auler de Almeida Prado (Universidade Católica de Pernambuco); Marcus Tulio Caldas (Universidade Católica
de Pernambuco); Karl Heinz Efken (Universidade Católica de Pernambuco) & Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
(Universidade Católica de Pernambuco)
-- As Psicopatologias como Distúrbios das Funções do Self: Uma Construção Teórica na
Abordagem Gestáltica.............................................................................................................................. 224
Carlene Maria Dias Tenório (Centro Universitário de Brasília/UniCEUB)
TEXTOS CLÁSSICOS
-- Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940).................................................................. 235
Marvin Farber (University of Buffalo, New York)
DISSERTAÇÕES E TESES
-- Pesquisa Fenomenológica na Justiça do Trabalho – Proposta de Conciliação Humanista (2010)...... 249
Nayara Queiroz Mota de Sousa (Mestrado em Direito, Universidade Católica de Pernambuco)
-- “A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental” de Edmund Husserl:
uma apresentação (2011).......................................................................................................................... 251
Erico de Lima Azevedo (Mestrado em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
NORMAS
Sumário
-- Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica............................................................... 255
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): vii-viii, jul-dez, 2012
viii
Editorial
ao apoio do PePSIC; e de um veículo aberto e multidisciplinar (com a participação de variadas áreas de estudo e
pesquisa). Ganhamos recentemente o reconhecimento da
parte dos pesquisadores em História da Psicologia, por
nosso esforço em trazer ao público brasileiro traduções
de textos clássicos e fundamentais da Fenomenologia,
como pode ser atestado no Blog da Rede Iberoamericana
de Pesquisadores em História da Psicologia.
Nossa meta para o ano que se aproxima é agora a
consolidação da “fenomenologia” como nosso caminho
“natural”. E nada mais metafórico do que encerrar o ano
com a tradução de um brilhante texto de Marvin Farber,
de 1940, sobre os “fundamentos” da filosofia husserliana.
Ao todo, apresentamos ao leitor, um total de doze trabalhos, nos quais se reflete essa diversidade e multiplicidade, e onde se afirma o “lugar” da Fenomenologia como
interlocução, com o pensamento psicológico – com textos
de Gestalt Terapia, de Abordagem Centrada na Pessoa, de
fenomenologia-existencial e sobre Viktor Frankl – e com
outros campos do saber filosófico, social e psiquiátrico.
Boa leitura a todos
Adriano Furtado Holanda
- Editor -
Editorial
A Fenomenologia cada vez mais toma corpo no cenário
nacional e internacional, seja no tradicional contexto filosófico, seja em suas múltiplas aplicações. Recentemente
fomos brindados com novos estudos sobre seu pensamento, bem como a publicação – e algumas traduções, particularmente para o inglês e o francês – de textos inéditos de Husserl, onde temas complexos, como “intersubjetividade” ou “temporalidade” foram sendo desvelados.
Igualmente os desdobramentos e revisões que o pensamento fenomenológico foi conhecendo ao longo dos anos
desenvolvem-se a passos largos. Assim, questões existenciais ou mesmo reflexões no terreno das filosofias da
existência vem ganhando corpo igualmente.
A Revista da Abordagem Gestáltica, que desde o ano
de 2006 se propôs a ser um veículo de divulgação desse
conjunto de saberes – múltiplos, diversificados, abertos
e profundos – vem se consolidando no cumprimento da
sua missão, e vem cada vez mais se especializando no
amplo espectro das reflexões fenomenológicas, associadas às ciências humanas, sociais e da saúde.
Ao encerrarmos o ano de 2012 com este número, estamos não somente consolidando nossa posição de uma revista de qualidade – graças ao reconhecimento do QualisCapes – como também de acesso livre e gratuito, graças
ix
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): ix, jul-dez, 2012
Nominata 2011-2012
Listamos abaixo todos aqueles que contribuíram com a revista, na qualidade de pareceristas, entre os
anos de 2011 e 2012. Agradecemos a colaboração e esperamos contar novamente com sua participação.
Adão José Peixoto (Universidade Federal de Goiás)
Adelma Pimentel (Universidade Federal do Pará)
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Ângela Schillings (Universidade Federal de Santa Catarina)
Beatriz Helena Paranhos Cardella (Instituto de Gestalt Terapia de São Paulo)
Carlos Augusto Serbena (Universidade Federal do Paraná)
Carlos Diógenes Cortes Tourinho (Universidade Federal Fluminense)
Celana Cardoso Andrade (Universidade Federal de Goiás)
Cibele Mariano Vaz (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Cláudia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)
Daniela Schneider (Universidade Federal de Santa Catarina)
Danilo Suassuna (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia)
Elza Dutra (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Ênio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de São Paulo)
Gizele Elias Parreira (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Gustavo Gauer (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paraná)
Jorge Ponciano Ribeiro (Universidade de Brasília)
Josemar de Campos Maciel (Universidade Católica Dom Bosco, MS)
Josiane Almeida (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia)
Karina Okajima Fukumitsu (Universidade Presbitariana Mackenzie)
Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)
Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de São Paulo)
Lúcia Cecília da Silva (Universidade Estadual de Maringá)
Márcio Luiz Fernandes (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
Marcos Aurélio Fernandes (Universidade Católica de Brasília)
Marisete Malaguth Mendonça (Universidade Católica de Goiás)
Marta Carmo (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
Patrícia Valle de Albuquerque Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Roberto Novaes de Sá (Universidade Federal Fluminense)
Sandra Albernaz (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia)
Selma Ciornai (Instituto de Gestalt de São Paulo)
Sérgio Lízias (Universidade Federal de Goiás - Campus Catalão)
Sylvia Mara Pires de Freiras (Universidade Estadual de Maringá)
Thiago Gomes de Castro (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)
Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
A rtigos ...........................
Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañeda
ARTE E MUNDO: DIÁLOGOS ENTRE HEIDEGGER E CASTANEDA1
Art and World: Dialogues Between Heidegger and Castaneda
Arte y Mundo: Diálogos entre Heidegger y Castaneda
A na Gabriela R ebelo dos Santos
Roberto Novaes de Sá
Resumo: Propomos pensar possibilidades de experiência de mundo a partir da articulação entre obra de arte, na concepção do
filósofo Martin Heidegger em “A Origem da Obra de Arte”, e parar o mundo, idéia exposta pelo antropólogo Carlos Castaneda.
Segundo Heidegger, ser obra de arte é instalar um mundo, deixar em aberto o aberto do mundo: abertura de sentido. Para o filósofo, o homem é o ente cujo ser está sempre em jogo na sua existência. “Parar o mundo” é um ensinamento do índio Don Juan
a Castaneda. Ele precisa parar o mundo, desmoronar seu conceito de mundo para conseguir ver o mundo desprendido do consenso social. Os autores discorrem sobre realidades plásticas, mundos que existem a partir de experiências, formas de Ec-xistir
e transitar entre mundos se mantendo na abertura do ser. Não objetivamos equivaler idéias, buscamos abrir um espaço para
pensar acerca da existência do homem. Como recurso metodológico, destacamos passagens da obra de Castaneda e buscamos
caminhos junto às idéias de Heidegger que nos auxiliem a elaborar um horizonte de diálogo.
Palavras-chave: Fenomenologia; Heidegger; Castaneda; Realidade; Arte.
Abstract: We propose to consider possibilities of world experience from the relationship between work of art, an idea developed
by the philosopher Martin Heidegger in “The Origin of the Work of Art” and stop the world, an idea expounded by the anthropologist Carlos Castaneda. According to Heidegger, being a work of art is to install a world, leave open the opening of the world:
opening of sense. For the philosopher, man is the being whose being is always at stake in its existence. “Stop the world,” is what
speaks the Indian Don Juan to Castaneda. He needs to stop the world, collapsing his concept of world in order to see the world
detached from social consensus. The authors discuss plastic realities, worlds that are based on experiences, forms of Existence
and sometimes appearing to move between worlds and keeping the opening of Being. We do not aim to equate ideas, we open
a space to think about the existence of man. As a methodological resource, we discusses highlighted passages of Castaneda’s
work and seek ways to the ideas of Heidegger which help us to elaborate a common horizon of dialog.
Keywords: Phenomenology; Heidegger; Castaneda; Reality; Art.
Introdução
No verão de 1960, o até então estudante de antropologia Carlos Castaneda parte em viagem para o sudoeste
dos Estados Unidos em busca de maiores informações
sobre as plantas medicinais utilizadas pelos índios do
local. E é no estado do Arizona que acontece o primeiro
encontro com o índio yaqui Don Juan Matus. O primeiro
de muitos encontros que aconteceriam por mais 13 anos.
A presente pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, pela primeira
autora (Bolsista Capes), sob orientação do segundo autor.
1
131
A princípio, Castaneda pede que o índio lhe ensine sobre
as plantas, principalmente sobre o peiote, e de alguma
forma – que não sabe bem explicar –, se sente intrigado
e atraído por Don Juan. Esse primeiro encontro é descrito pelo autor como perturbador.
Depois disso, ainda sob o sentimento de inquietação,
Castaneda descobre onde mora Don Juan e passa então a
visitá-lo constantemente. Mas, nas longas horas que passavam juntos, durante um ano, não falaram sobre plantas.
Os acontecimentos estavam dirigidos para longe de seu
propósito original. Passado esse tempo, Don Juan diz a
Castaneda ter certos conhecimentos que lhe foram pas-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012
Artigo
Resumen: Nos proponemos estudiar las posibilidades de experiencia de mundo. Partindo de la relación entre obra de arte, una
idea desarrollada por el filósofo Martin Heidegger en “El origen de la obra de arte” y detener el mundo, una idea expuesta por el
antropólogo Carlos Castaneda. Según Heidegger, ser obra es la instalación de un mundo, mantener abierto el abierto del mundo: el sentido abierto. Para el filósofo, el hombre es el ser cuyo ser está siempre en juego en su existencia. “Detener el mundo,”
es lo que propone el indio Don Juan a Castaneda. Él tiene que detener el mundo, deshaciendo su concepto del mundo para que
pueda ver el mundo separado del consenso social. Los autores hablan de realidades plásticas, de mundos que se basan en las
experiéncias, de formas del Existir y permaneciendo en la apertura del ser. La intención no es lo apunte a igualar las ideas, pero
abrimos un espacio para pensar en la existencia del hombre. Como método, utilizamos fragmentos de la obra de Castaneda junto de las ideas de Heidegger.
Palabras-clave: Fenomenología; Heidegger; Castaneda; Realidad; Arte.
Artigo
Ana G. R. Santos & Roberto N. Sá
sados por seu benfeitor; conhecimentos relacionados ao
que ele chama de “caminho do guerreiro”. Por uma série
de circunstâncias, que não se encerram no desejo de nenhum dos dois, Castaneda fora escolhido como aprendiz
de Don Juan e, juntos, trilharam um caminho que abalou
definitivamente o mundo daquele.
Os primeiros cinco anos de aprendizado são relatados no seu livro mais famoso – A Erva do Diabo
(Castaneda, 1968) –, que foi sua dissertação de mestrado
pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Nele,
o autor descreve principalmente suas experiências com
plantas alucinógenas, o que foi bastante importante no
seu percurso. Cabe aqui lembrar que a visão dos feiticeiros sobre as plantas não se esgota em sua descrição botânica e a experiência de encontro com cada uma delas
deve ser vista como um fenômeno, de modo que a coisa
com a qual lidamos, nesse caso a planta, nunca é uma
coisa ideal e sim a coisa de que fazemos experiência.
Dessa forma, é possível manter um olhar de abertura à
experiência vivida e ao seu horizonte próprio de sentido.
Os feiticeiros podem se utilizar das plantas como
aliados, mas não é necessário que se use. Em passagem
de Porta para o infinito (Castaneda, 1974), podemos ver o
momento em que Don Juan diz a Castaneda que no caso
dele foi preciso fazer uso das plantas, porque ele era um
homem muito duro e essas experiências foram necessárias para sacudir seu mundo. Além dessas experiências
que incluíam o uso de determinadas plantas, o autor nos
fala, ao longo de seus doze livros, de inumeráveis acontecimentos de outros tipos. Aquilo que a princípio lhe
parecia mais improvável, foi o que mais lhe atormentou:
tudo que ele tomava como o mundo real estava abalado. Diz Castaneda (1972/2006): “O ponto crucial de meu
dilema naquele momento era minha falta de vontade de
aceitar o fato de que Dom Juan era bem capaz de demolir
todas as minhas concepções prévias de mundo...” (p. 39).
Em fins de 1965, Castaneda se retira do aprendizado e decide não mais ver Don Juan. Porém, em 1968, já
com seu primeiro livro em mãos, ele vai visitar o índio
e a relação mestre-aprendiz é restabelecida. Ao que vem
a se passar a partir de então, Castaneda chama de seu
segundo ciclo de aprendizado. É nesse segundo ciclo
que encontramos aquilo a que vamos dar maior relevância no nosso trabalho: a difícil tarefa de parar o mundo.
É preciso que Castaneda consiga “parar o mundo”. Mas o
que seria “parar o mundo”? Essa pergunta é feita muitas
e muitas vezes a seu mestre, que por sua vez, evita palavras e propõe de diversas formas que ele tenha – como
Castaneda fala – uma “experiência mais direta do mundo”. “Referia-me ao conhecimento acadêmico que transcende a experiência, enquanto ele falava do conhecimento direto do mundo”, diz Castaneda (1971/2009, p. 10).
Em outra passagem, quando perguntado sobre o
que seria exatamente um ente a que chamam “aliado”,
em Porta para o Infinito (Castaneda, 1974), Don Juan
responde:
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012
– Não há como dizer, precisamente, o que é um aliado,
assim como não há meio de dizer exatamente o que
é uma árvore.
– Uma árvore é um organismo vivo – disse eu.
– Isso não me diz muito – retrucou ele. Também posso
dizer que o aliado é uma força, uma tensão. Mas isso
não acrescenta muita coisa a respeito de um aliado.
Assim como no caso de uma árvore, o único meio de
saber o que é um aliado é experimentando-o (p. 78).
Essas e outras passagens nos fazem recordar os caminhos da fenomenologia, particularmente aqueles trilhados por Martin Heidegger. Propomos que, como o filósofo
nos diz em A Questão da Técnica (Heidegger, 1953/1997),
atentemos para o caminho sem permanecermos presos a
proposições e títulos particulares, e, assim, possamos refletir a partir de uma livre relação de pensamento. Como
diz Don Juan, em A Erva do Diabo (Castaneda, 1968), tenhamos em vista que um caminho é apenas um caminho.
Quando Heidegger nos fala de mundo, ele não está
falando de um objeto que está ante nós e que pode ser
sensorialmente percebido; não se trata de um espaço pré-existente a nós onde as coisas também já ali se encontram dadas e onde somos simplesmente inseridos como
bonecos numa caixa. Homem e mundo não pré-existem
um ao outro, homem e mundo co-emergem na experiência. Mundo para Heidegger é abertura de sentido.
Em A Origem da Obra de Arte, lemos:
Mundo nunca é um objeto, que está ante nós e que
pode ser intuído. O mundo é o sempre inobjetal a
que estamos submetidos enquanto os caminhos do
nascimento e da morte, da benção e da maldição
nos mantiverem lançados no Ser (Heidegger, 1950/
2007, p. 35).
Segundo Heidegger, o sentido está sempre em jogo na
existência. Em seu relacionar-se com as coisas enquanto coisas o homem habita o mundo, desvelando sentido.
Em nosso modo de ser cotidiano mais comum, tomamos
o mundo como algo simplesmente dado, e a nós mesmos
como sujeitos empíricos, cuja existência fosse ontologicamente separada do mundo. Quando Castaneda diz conhecer o mundo, ele se refere àquilo que sempre, desde
que ele nasceu, as pessoas vem lhe dizendo que é mundo. É importante destacar aquilo que Don Juan nos fala
ao longo de toda a obra de Castaneda e que parece ecoar
o que a fenomenologia sinaliza como fundamental: a dimensão de abertura da experiência, abertura constitutiva de sentido, porque é na própria relação de sentido que
as coisas vêm a ser. Parar o mundo significa desmoronar
todo o conceito prévio que se tem de mundo e, assim, o
guerreiro vê o mundo desprendido do que se convenciona previamente como mundo. O ver aqui difere do olhar,
diz respeito a uma apreensão que não se limita aos olhos,
tampouco se determina por um suposto mundo verdadei-
132
Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañeda
– Você tem de aprender a ver para saber disso. Não
posso lhe dizer.
– É um segredo que não posso saber?
– Não. Acontece que não posso descrevê-lo.
– Por quê?
– Não faria sentido pra você.
– Experimente Don Juan. Talvez faça sentido para
mim.
– Não. Tem de fazê-lo por si. Uma vez que aprenda,
poderá ver cada coisa no mundo de maneira diferente
(Castaneda, 1971/2009, p. 48).
Além deste privilégio dado à experiência como modo
de ser irredutível ao conhecimento representacional, é
pertinente observarmos, ainda, outra ressonância em
nossas leituras de Heidegger e Castaneda referente a essa
dimensão existencial do conhecimento: trata-se das noções de fazer e não-fazer, apresentadas por Don Juan a
Castaneda. Quando perguntamos, cotidianamente, o que
é algo, estamos questionando, na maioria, para que serve
a coisa em questão, qual sua função ou utilidade.
Em sua analítica da existência, Heidegger aponta que
o nosso modo predominante de ser é o estar absorvido
na ocupação com as coisas. Essa “ocupação” não é para
ele a mera lida objetiva com coisas previamente dadas,
mas uma relação intencional, no sentido fenomenológico, de constituição de sentido. Ocupar-se com as coisas
é participar de modo irrefletido da dinâmica de realização de um mundo. Nos deixamos absorver tão firmemente a essa lida ocupacional que deixamos escapar o
aberto do mundo. Em uma conferência muito posterior a
Ser e Tempo, intitulada A Questão da Técnica, Heidegger
(1953/1997) trata mais especificamente do modo moderno
e contemporâneo de acontecimento histórico do mundo.
Na “era da técnica”, como é denominada, por ele, a época
atual, o homem toma todos os entes como recursos para
os seus afazeres, como se toda a realidade se reduzisse a
mera reserva de energia disponível para sua exploração
e consumo (Novaes de Sá & Rodrigues, 2007). A experiência do pensamento se reduz, por sua vez, às operações
calculantes que visam à previsão e ao controle dos entes.
Heidegger diz que o mundo atual é pobre de pensamento,
querendo significar com isso que a presente era da técnica põe sob ameaça a possibilidade mais essencial do
133
homem: a meditação sobre o sentido das coisas, da existência e do mundo. Para que essa possibilidade seja preservada em meio ao nivelamento calculante promovido
pela técnica moderna, Heidegger (1966) propõe o exercício de uma disposição do espírito denominada como
serenidade (Gelassenheit). Inspirado no místico alemão
Mestre Eckhart, o filósofo entende essa disposição como
uma equanimidade da alma, uma atitude de suspensão
e desapego da vontade. A “serenidade” faz parte do pensamento que medita. Ao contrário do pensamento calculante, que reduz tudo à condição de disponibilidade, o
pensamento meditante nos solicita uma atenção livre de
qualquer violência subjetiva, isto é, de qualquer identificação a um aspecto exclusivo das coisas, preservando em
sua abertura compreensiva a diferença irredutível entre
as realidades que se apresentam e a dinâmica de realização dessas realidades. Em nossas leituras de Castaneda,
não pudemos evitar a evocação do “deixar-ser” da “serenidade” heideggeriana quando nos deparamos com a estranha proposta do “não-fazer” de Don Juan.
Antes de parar o mundo, um dos ensinamentos fundamentais que Don Juan apresenta a Castaneda em Viagem
a Ixtlan é o “não-fazer”. Segundo ele o guerreiro precisa
não fazer a fim de experimentar outras possibilidades de
ser de uma coisa ao relacionar-se com ela. Destacamos, a
seguir, um trecho da referida obra:
– Aquela pedra ali é uma pedra por causa de fazer
– disse ele.
...não havia entendido o que ele queria dizer.
– Aquilo é fazer! – exclamou.
– Como?
– Isso também é fazer.
– De que é que está falando, Don Juan?
– Fazer é o que torna aquela pedra uma pedra e um
arbusto um arbusto. Fazer é o que torna você, você
e eu, eu.
(...)
– Tome aquela pedra por exemplo. Olhar para ela é
fazer, mas vê-la é não fazer.
Tive de confessar que as palavras dele não estavam
fazendo sentido para mim.
– Ah, fazem, sim! – exclamou. – Mas você está convencido do contrário porque isso é você fazendo. É assim
que você age em relação a mim e ao mundo...
– O mundo é o mundo porque você conhece o fazer
necessário para torná-lo mundo – disse ele. – Se você
não soubesse o seu fazer, o mundo seria diferente
(Castaneda, 1972/2006, p. 237).
A fim de não-fazer, Castaneda precisava conseguir
parar seu diálogo interno, pois só de olhar uma pedra já
estamos fazendo-a pedra pelo nosso pensamento. O nosso
diálogo interno, a todo instante sustenta um mundo que
nos é mais familiar. A questão que trazemos é: que mundo
temos nós, ao longo dos últimos tempos, feito? Don Juan
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012
Artigo
ro. Quando se “vê”, tudo se torna igual e ao mesmo tempo
tudo é novo. Tudo se torna igual no sentido do valor, nada
é (em si mesmo) mais importante que nada, e ao mesmo
tempo tudo é novo por percebermos as coisas desprendidas dos preconceitos cotidianos.
Pensar o mundo como verdadeiro ou falso não faz
mais sentido, pois isso implicaria tomarmos como critério um mundo simplesmente dado. Ao longo de seu
aprendizado, Castaneda insiste diversas vezes que Don
Juan lhe fale o que é ver e o que se vê quando se vê. A isso
Don Juan responde:
Ana G. R. Santos & Roberto N. Sá
nos fala que todos nós fomos ensinados a concordar sobre
o fazer e que não temos idéia de como esse fazer é poderoso, mas felizmente, o não-fazer é igualmente poderoso.
Quando tentamos co-responder à leitura desses pensadores, buscamos abrir um espaço para pensar em novos modos de estar no mundo. Modos que privilegiem
as possibilidades de experiência do mundo enquanto
mundo. Pensar já é em si uma prática, pois pensamento
é uma forma de desvelar mundo. O termo desvelamento
(Unverborgenheit), utilizado por Heidegger para traduzir a palavra grega aletheia, indica que a verdade não é
a correspondência adequada a uma realidade em si, mas
a própria dinâmica de acontecimento/aparecimento das
realidades.
A obra de arte, na concepção de Heidegger, tem uma
articulação essencial com essas idéias, na medida em que
ser obra é instalar um mundo, e para instalar mundo é
preciso deixar em aberto o aberto do mundo. A obra coloca à luz o ser das coisas e a possibilidade de abertura
e transcendência no relacionar-se com elas. Na referida conferência do filósofo – A Origem da Obra de Arte
(Heidegger, 1950/2007) –, ele toma como exemplo algumas
telas do pintor holandês Vincent Van Gogh, onde ele pinta sapatos de camponeses. Pares de sapatos camponeses,
o que há de especial para se ver aí? Todos nós sabemos
de que matéria é feito um sapato, e também conhecemos
a serventia do apetrecho sapato.
Na lida cotidiana da camponesa com seus sapatos o
que vem ao encontro de modo mais imediato e irrefletido
é o caráter instrumental do apetrecho sapato. Seria ilusão pensar que foi a nossa descrição, enquanto atividade
subjetiva, que tudo figurou assim para depois projetar no
quadro. Essa seria mais uma forma de pensar homem e
mundo separados e independentes, com isso acabaríamos
fazendo uma gênese psicológica para a criação artística.
A seguir, vemos um trecho de Heidegger (1950/2007):
Artigo
Na escura abertura do interior gasto dos sapatos,
fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está
retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos
que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo,
sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, está a
umidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que
cai. No apetrecho para calçar impera o apelo calado
da terra, a sua muda oferta do trigo que amadurece
e a sua inexplicável recusa na desolada improdutividade do campo no inverno. Por este apetrecho passa
o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa
alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia
do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da
morte (p. 25).
Este apetrecho sapato está abrigado no mundo da
camponesa e é a partir mesmo desta abrigada pertença
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012
que ele surge para o seu repousar-em-si-mesmo. Mas é
quando os sapatos estão no quadro que os vemos como
possibilidade disso tudo. A obra coloca à luz o ser das
coisas e a possibilidade de abertura e transcendência no
relacionar-se com elas. É na relação da camponesa com
os sapatos que o ser sapato acontece. E esse é o sapato
dos longos caminhos pelo campo, do cansaço do trabalho, das horas de frio... É o sapato do qual se tem experiência, são esses sapatos que Vincent abre em suas telas.
Quando Castaneda para o mundo pela primeira vez,
ele conversa com um coiote que está andando pelo campo. Ademais, fala de uma série de experiências que diz
não poder descrever com palavras. Ao contar o ocorrido
ao índio Don Juan, este lhe diz que o coiote não falara da
mesma maneira como os homens falam e que Castaneda
não conseguiu reconhecer isso, mas seu corpo havia compreendido pela primeira vez.
– Seu corpo compreendeu pela primeira vez. Mas você
não conseguiu reconhecer que não era um coiote,
para começar, e que certamente não estava falando
da maneira que você ou eu falamos.
– Mas o coiote falou mesmo, Don Juan!
– Agora olhe quem está falando como um idiota.
Depois de todos esses anos de aprendizado, já devia
saber. Ontem você parou o mundo e podia até ter visto.
Um ser mágico lhe disse uma coisa e seu corpo foi capaz de entender, porque o mundo tinha desmoronado.
– O mundo estava como hoje, Don Juan.
– Não estava, não. Hoje os coiotes não lhe dizem nada,
e você não consegue ver as linhas do mundo. Ontem
fez tudo isso simplesmente porque alguma coisa tinha
parado dentro de você.
– O que foi que parou em mim?
– O que parou em você ontem foi aquilo que as pessoas têm dito que é o mundo. Entenda, as pessoas
nos dizem, desde o momento em que nascemos, que
o mundo é assim e assado, naturalmente não temos
outra escolha senão ver o mundo do jeito que as pessoas nos dizem que é (Castaneda, 1972/2006, p. 314).
Parar o mundo e ser obra de arte, falando dessas noções, os dois autores discorrem sobre realidades plásticas, sobre mundos que existem a partir de experiências,
sobre formas de ec-xistir e transitar entre mundos, mantendo-se na abertura do ente. Quando Van Gogh pinta os
sapatos, ele os traz à presença, e aqui entendemos presença como proximidade, a intensidade própria de sua
experiência. A arte não consiste em mera representação
de um mundo; da mesma forma quando o guerreiro vê,
ele faz uma experiência livre de suas idéias prévias de
um mundo simplesmente dado. “Parar o mundo”, em
Castaneda, e “ser obra de arte”, em Heidegger, podem
ser relecionados pelo fato de apontarem para uma abertura de possibilidades de sentido para além do mundo
que tomamos como dado.
134
Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañeda
135
Não devemos concluir desse esboço de um diálogo
insólito, que o mundo que convencionamos em sociedade não é importante. O que se põe em questão nesses
pensamentos é a cristalização da experiência cotidiana
de mundo como verdade absoluta, e, também, a cristalização dos nossos modos de ser medianos como únicas
possibilidades de estar no mundo. O nosso modo de ser
mais comum é tão próprio ao nosso existir, quanto o fato
de que ele não esgota nossas possibilidades existenciais
enquanto ser-no-mundo. Mais do que fazer experiências
exóticas de mundos, o que buscamos lembrar, através da
ressonância entre esses pensamentos tão distintos, seja
através da arte ou por outros caminhos, é a “brecha”, a
“abertura” que nos permite transitar entre mundos.
Referências
Castaneda, C. (1968). A Erva do Diabo. Rio de Janeiro: Record.
Castaneda, C. (1974). Porta para o infinito. Rio de Janeiro: Record.
Castaneda, C. (2006). Viagem a Ixtlan. Rio de Janeiro: Nova Era
(Original publicado em 1972).
Castaneda, C. (2009). Uma estranha realidade. Rio de Janeiro:
Nova Era (Original publicado em 1971).
Heidegger, M. (1997). A Questão da técnica. Cadernos de
Tradução, número 2. São Paulo: DF/USP (Original publicado em 1953).
Heidegger, M. (2007). A Origem da Obra de Arte. São Paulo:
Edições 70 (Original publicado em 1950).
Heidegger, M. (1966) “Sérénité”. Em Questions III, p. 159-181.
Paris: Gallimard.
Sá, R. N., de & Rodrigues, J. T. (2007). A questão do sujeito e
do intimismo em uma perspectiva fenomenológico hermenêutica. Em A. M. L. C. de Feijoo & R. N. de Sá (Orgs).
Interpretações fenomenológico-existenciais para o sofrimento psíquico na atualidade [pp. 35-54]. Rio de Janeiro:
GdN /IFEN.
Ana Gabriela Rebelo dos Santos - Graduada em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em Psicologia pelo Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense
/ Bolsista REUNI (UFF) e Arteterapeuta integrante da equipe da Clínica Pomar no Rio de Janeiro. Email: [email protected]
Roberto Novaes de Sá - Professor Associado da Universidade Federal
Fluminense, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da UFF. Endereço Institucional: Universidade Federal Fluminense,
Centro de Estudos Gerais, Departamento de Psicologia. Campus
Gragoatá, bl. O, sala 218 (São Domingos). CEP 24210-350, Niterói (RJ).
Email: [email protected]
Recebido em 01.06.2011
Aceito em 21.07.2012
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012
Artigo
Em Viagem a Ixtlan, após passar por uma determinada experiência, Castaneda se inquieta e diz não conseguir entender o que tinha se passado. Don Juan diz
a ele: “Insiste em explicar tudo como se o mundo inteiro fosse composto de coisas que podem ser explicadas.
(...) Já lhe ocorreu que há poucas coisas nesse mundo
que podem ser explicadas do seu jeito?” (Castaneda,
1972/2006, p. 160).
Quando Castaneda explica o mundo, ele simplesmente reafirma sua representação prévia do mundo e
assim o esgota enquanto abertura de possibilidades.
Em vários momentos de sua trajetória de aprendizado,
Castaneda se vê dividido entre dois mundos, o mundo
cotidiano dos homens e o mundo dos feiticeiros: qual
mundo seguir?
Certa vez ao ingerir uma das plantas de poder – botões
de peiote – ele pergunta qual o caminho certo a seguir,
qual o mundo certo. O espírito do peiote, Mescalito, o
conduz em experiências distintas. A princípio, Castaneda
tem visões e sensações agradáveis, que lhe trazem felicidade, mas logo depois ruídos começam a entrar nesse
mundo pleno de felicidade e a experiência começa a se
transformar de forma desagradável. Castaneda se vê em
uma situação de luta e todo o conforto desaparece. Diante
disso, ele não consegue interpretar sozinho o que foi que
Mescalito veio lhe dizer; confuso pede ajuda de Don Juan
que lhe diz que a lição de Mescalito foi lindamente clara.
Ele disse que Castaneda acredita existirem dois mundos
para ele, dois caminhos, enquanto na verdade só existe
um: o mundo dos homens.
O único mundo possível para um homem é o mundo
dos homens, porque somos homens e isso não podemos
resolver largar. Na primeira experiência, onde tudo é felicidade não há diferença entre as coisas porque não há
ninguém que indague pela diferença. Por isso Mescalito
sacode Castaneda e o tira novamente de uma posição
confortável, para lhe mostrar como o homem pensa e
luta. Trata-se de um horizonte de mistério fundamental
do ser homem: horizonte de abertura da própria existência. Don Juan diz que presumir que se vive em dois
mundos é vaidade, pois se sendo homem, se vive o mundo dos homens.
Aproximemos este pensamento com o que desenvolve Heidegger sobre o modo de ser do homem, o “ser-aí”.
O homem é o único ente cujo ser está sempre em jogo em
sua existência. Para a fenomenologia, não há uma essência a priori à própria experiência do existir. O homem é
ser-no-mundo. Don Juan diz que é preciso, de certa forma, entender que, essencialmente, não somos nada para,
assim, podermos ser tudo. Nenhum mundo é o mundo
certo ou verdadeiro. Mais adiante, em Viagem a Ixtlan,
Don Juan fala a Castaneda que após ver o mundo dos feiticeiros ele deverá perceber que a grande arte do guerreiro
é saber transitar entre os mundos, sabendo que nenhum
é mais verdadeiro que o outro, mas que todos são possibilidades de experiência.
Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas
Ser psicoterapeuta: reflexões existenciais sobre
vivências de ESTAGIÁRIOS-terapeutas iniciantes1
Be Psychotherapist: Existential Reflections on Experiences of Trainees-Therapists Beginners
Ser un Psicoterapeuta: Reflexiones Existenciales cerca de Vivéncias de Alumnos-Terapeutas
Principiantes
Jéssica Paula Silva Mendes
Sionara K arina A lves de Brito Gressler
Sylvia M ara Pires de Freitas
Resumo: Esta produção apresenta uma análise reflexiva, com base no existencialismo sartreano, sobre a idealização do estagiário-terapeuta iniciante sobre o Ser Terapeuta. Tal reflexão teve como ponto de partida algumas vivências das autoras, bem como
a observação das dos demais estagiários que se encontravam diante do início da prática da psicoterapia individual para adultos
e terceira idade, desenvolvida por meio da disciplina de Estágio Específico I, da ênfase de Psicologia e Processos Clínicos, do
4º ano do curso de Psicologia da Universidade Paranaense, Campus Umuarama/PR, no ano de 2010. Partindo dessas vivências,
propomos desconstruir o lugar de soberania onde muitas vezes é colocado o psicoterapeuta, lugar esse construído por ideologias que criaram o papel do profissional responsável pela cura, valorizando-o sobremaneira ao ponto de enfatizar verdades que
desconsideram a interdependência da relação terapeuta-cliente, proporcionando sentidos que levam o estagiário-terapeuta iniciante a criar expectativas frente suas atuações, as quais, ao abarcar toda a responsabilidade pela “cura” do Outro, nega-o como
artífice de sua existência. Diante disso, consideramos que projetos idealizados não abarcam frustrações, impossibilitando o reconhecimento dos limites do próprio projeto de Ser terapeuta.
Palavras-chave: Terapeuta iniciante; Ser psicoterapeuta; Idealização; Fenomenologia-existencial.
Abstract: This production presents a reflective analysis, based on Sartrean existentialism, on the idealization of the traineetherapist Being a beginner on the therapist. This reflection has as its starting point a few experiences of the authors and the observation of other trainees who were before the start of the practice of individual psychotherapy for adults and seniors, developed through the discipline of Stage-Specific I, the emphasis of Psychology Clinical and Processes, 4th year of Psychology at the
University of Parana, Campus Umuarama / PR, in 2010. Based on these experiences, we deconstruct the place where sovereignty
is often placed on the psychotherapist, this place built by ideologies that have created the role of the professional responsible for
healing, valuing it greatly to the point of value truths that ignore the interdependence of the therapist- client, providing directions that lead the trainee-therapist beginner to create expectations facing his performances, which, embracing all responsibility for the “cure” the Other, it denies its existence as a journeyman. Therefore, we believe that projects do not cover idealized
frustrations, making it impossible to recognize the limits of the project itself being a therapist.
Keywords: Beginning therapist; Being a psychotherapist; Idealization; Existential phenomenology.
Artigo
Resumen: Esta producción presenta un análisis reflexivo, basado sobre el existencialismo sartreano, en la idealización del
aprendiz-terapeuta ser un principiante en el terapeuta. Esta reflexión tiene como punto de partida algunas experiencias de los
autores y la observación de los alumnos que estaban antes del inicio de la práctica de la psicoterapia individual para adultos y
personas de edad avanzada, desarrollada a través de la disciplina de la Etapa I-específicas, el énfasis de la Psicología Clínica y
Procesos, 4 º año de Psicología en la Universidad de Paraná, Campus Umuarama / PR, en 2010. Con base en estas experiencias,
deconstruir el lugar donde la soberanía es a menudo puesto en el psicoterapeuta, este lugar construido por las ideologías que
han creado el papel del profesional responsable de la curación, lo que valora en gran medida hasta el punto de toma el valor
de las verdades que hacen caso omiso de la interdependencia del terapeuta- cliente, proporcionando indicaciones que llevan al
alumno principiante-terapeuta para crear las expectativas frente a sus actuaciones, que, abrazando toda responsabilidad por la
“cura” el otro, niega su existencia como un jornalero. Por lo tanto, creemos que los proyectos no cubren frustraciones idealizado, lo que hace imposible reconocer los límites del propio proyecto de ser un terapeuta.
Palabras-clave: Terapeuta principiante; Ser un psicoterapeuta; La idealización; La fenomenología existencial.
Comunicação oral apresentada no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná, realizado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, de 04 a 07 de junho de 2011.
1
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012
136
Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes
Ao pensar em psicoterapia, a idéia que instiga primeiramente é a de um tratamento cuja função principal
é a cura. Tal concepção de livrar o paciente de determinados sintomas passa pelo senso comum, configurando-se inclusive como expectativa do próprio estudante de
Psicologia frente à prática psicoterápica (Camon, 1999).
Para Zaro, Barach, Nedelman e Dreiblatt (1980), as
expectativas do estudante, quando inicia os atendimentos psicoterapêuticos, influenciam a maneira como compreendem as vivências de seus clientes e suas próprias.
Discutir sobre essas expectativas nos remete, necessariamente, a contextualizar algumas condições que levam a
escolha de Ser terapeuta. Sobre esse assunto, Zaro et al.
(1980) mencionam que, apesar de cada pessoa possuir
seus próprios motivos, de acordo com seus projetos, geralmente os estudantes de Psicologia tendem a compartilhar
de alguns deles tais como a preocupação com o bem-estar
das pessoas e o desejo em ajudá-las. Associada a isto está
a busca pelo reconhecimento de ser um terapeuta capaz
de melhorar a qualidade de vida dessas pessoas.
Chegamos, portanto, ao possível motivo para toda
ansiedade e angústia do estagiário-terapeuta iniciante,
que são vivenciadas antes mesmo do primeiro atendimento, ao imaginar sua atuação baseada no projeto de
terapeuta ideal.
Durante a formação do psicoterapeuta, ele geralmente é também habilitado para realizar o psicodiagnóstico
a partir do conhecimento de teorias que fundamentarão
sua prática. Entretanto, podemos dizer que aquilo o que
ele leva para a prática, antes de qualquer coisa, é a si próprio como pessoa. Sua relação com o cliente também será
construída de acordo com seu projeto de ser, podendo,
a princípio e pela falta de prática do método que deverá
embasar sua prática, analisar os sentimentos e comportamentos dos clientes com referência em suas próprias
experiências, expectativas e valores morais.
Sobre a psicoterapia enquanto vivência de diferentes
sensações experimentadas pelo estagiário-terapeuta iniciante, não se pode deixar de falar em como a supervisão,
tanto do acadêmico em atividades curriculares, quanto
dos recém formados, torna-se um recurso que viabiliza
o conhecimento básico e a experiência mínima para atuação enquanto prática clínica (Boris, 2008).
É sobre as principais expectativas e sentimentos diversos que acometem o estudante de Psicologia frente às
atividades práticas em psicoterapia, ou seja, as possíveis
vivências diante seu projeto em Ser terapeuta, que nos debruçaremos reflexivamente neste artigo. Sob os conceitos
da filosofia de Jean-Paul Sartre, um dos principais filósofos existencialista da modernidade, é que fundamentaremos nosso olhar, uma vez que, a respectiva abordagem difunde a idéia de uma educação progressista, que
coloca o estudante no centro de todo o processo, exórdio
de toda discussão apresentada nesta produção científica.
137
A concepção da Psicologia voltada à prática enquanto Clínica vem, ao longo do tempo, se adequando às demandas emergentes com exigências contemporâneas cada
vez mais peculiares, onde problemas das mais variadas
ordens se apresentam. Tal atuação que se difundiu no
meio acadêmico e social como a mais nobre, revelou a
figura do psicólogo que atua dentro de um contexto terapêutico tradicional.
Historicamente, a Psicologia Clínica dispõe de um
sujeito idealizado, que surge para atender a uma demanda de exaltação da subjetividade, característica do individualismo moderno. Há uma inversão na relação teoria
e prática, que se deve, segundo Portela (2008), à tentativa de encaixar os fenômenos em um conceito teórico que
acaba por engessar a historicidade e facticidade desses
eventos. Nesse sentido é que este autor cita o apego aos
modelos científicos como fator limitante da compreensão dos fenômenos, uma vez visto o método como forma
de um (falso) controle para sua ocorrência.
Para Pretto, Langaro e Santos (2009), a abordagem
Existencialista tem abarcado essa demanda da contemporaneidade por meio de seus vários instrumentos em
uma metodologia fundamentada historicamente, de forma concreta e atualizada, e segundo as relações que são
estabelecidas. Busca-se então uma clínica ampliada, não
limitada, desenvolvida nos mais diversos contextos nos
quais a Psicologia se insere, seja na saúde pública, no
meio organizacional, educação ou qualquer outra área,
com uma prática pautada na visão global desse cliente.
Não nos debruçaremos na caracterização desses variados contextos por acreditarmos que as expectativas do
estagiário-terapeuta iniciante se assemelham independente do local onde atue. Nosso foco se mantém então, em
levantarmos sucintamente algumas dessas expectativas,
destacando aspectos que nos parecem fundamentais sob
a perspectiva existencialista. Antes, porém, faz-se mister
definirmos alguns conceitos básicos que fundamentam
a Fenomenologia husserliana, na qual Sartre apoiou-se
no conceito de consciência intencional, para assim também podermos compreender em que Sartre transcende
Husserl em suas reflexões. Posteriormente, a partir dessa
breve contextualização, partiremos para a análise compreensiva a temática que nos propomos.
1. A Fenomenologia Husserliana
Fenomenologia nada mais é que um método que surge dentre os movimentos do pensamento do século XX.
Na concepção husserliana, essa definição restaura um “retorno às coisas mesmas” (Galeffi, 2000, p. 19), provocando
assim importantes mudanças no fazer filosófico deste século. Husserl se empenhou em diferenciar a consciência
do eu empírico. Para Husserl (1906/1990, p. 32) “o eu no seu
sentido habitual é um objeto empírico”, ou seja, ele não possui outra unidade senão aquela que lhe é dada pela própria
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012
Artigo
Introdução
Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas
consciência. Contudo, esta concepção do eu sofrerá uma
mudança radical a partir do momento em que Husserl encaminha a fenomenologia na direção de uma filosofia transcendental. Uma vez que perceber o objeto é intencioná-lo,
o ego transcendental passa a ser visto como a origem de
toda significação e a fenomenologia vem a partir daí, explicar esta constituição do ego transcendental (Santos, 2008).
Considerando o Eu transcendental, a individualidade
da consciência e esta, por sua vez caracterizada enquanto
intencional e vazia, Husserl enfatiza esse Eu como responsável por todo conhecimento, constituindo e dando
sentido ao mundo. Assim, a fenomenologia se desenvolve com o objetivo principal de descrição de vivências, a
partir das quais se constituem objetos intencionais da
consciência (Brandão, 2009). Nesse sentido, para Husserl,
o Eu Transcendental unifica as vivências. É ele que vai
ao mundo, capta e conhece a coisa (objeto).
A busca de Husserl então se fundamenta naquilo que
podemos chamar de uma consciência absoluta, revelada
pela redução fenomenológica. Seu caráter epistemológico
é o que define o significado de mundo para cada indivíduo, evidenciando o conteúdo concreto de vida de forma
autêntica. Posta a ação do mundo suspensa, se permite a
consciência tornar-se plenamente consciente de si mesma (Giles, 1989).
Artigo
2. O Existencialismo Sartreano
Diferente de Husserl, Sartre (1937/1994) compreende
que o Eu não pode ser visto como estrutura constituinte
da consciência. Desta maneira, a definição de uma consciência vazia seria aniquilada, contradizendo e comprometendo assim a teoria husserliana (Santos, 2008). Assim, o
Eu não pode estar presente na consciência irrefletida uma
vez que o “Eu penso” só surge por meio do ato reflexivo.
Ou seja, é a reflexão que constitui este objeto transcendente chamado Eu, que a partir deste momento passa a
existir no mundo como um Em-si. Sartre postula então um
Ego transcendido e não transcendental, haja vista ser este
conhecido e não o que conhece (Bocca & Freitas, 2011).
Apoiados no conceito de projeto da filosofia sartreana,
encontramos a caracterização do homem enquanto expressão de sua liberdade. Nesse sentido, o Existencialismo baseia-se em uma análise compreensiva da existência a partir do entendimento de uma liberdade de escolha situada,
não obstante, sem obrigatoriamente garantia de obtenção,
em que o homem opta por esse ou aquele projeto de acordo com sua valorização, que se respalda também em uma
moral vigente de seu contexto. Sob essa óptica o homem
passa a ser um existente separado de todos, uma vez que
consciente, se apresenta como algo distinto de si. Ao passo
que “transporta em mim os projetos do Outro e no Outro
os meus próprios projetos” (Sartre, 1960/2002, p. 212).
Vê-se então a contradição fundamental entre homem x mundo. Ao mesmo tempo em que o homem faz
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012
parte de uma totalidade, sendo o próprio todo, ele não é
o todo à medida que se coloca contraditório a ele. Para
Perdigão (1995), é o mundo que lhe dá o Ser ao afirmá-lo
não só como sujeito, mas enquanto totalidade acabada.
O Outro o objetiva, tornando-o um Em-si, coisa entre as
coisas. Entretanto, o homem particulariza-se no âmbito
de tal contradição. Enquanto tese, o homem se contrapõe
ao mundo que é antítese, e é a existência desse não-ser
em andamento entre a totalização constituinte e o todo
constituído que estabelece a existência dialética de um
nada ativo e, ao mesmo tempo passivo (Sartre, 1960/2002).
Inerente à construção do mundo pelo homem está a
constituição deste último enquanto produto desse mundo feito por ele. Necessário se faz, neste caso, estabelecer relações com outros homens para se tornar homem,
já que se constitui enquanto tal pela mediação de uma
realidade que ele próprio estabelece.
Assim, a cada escolha que transcende as contradições inerentes a existência humana, constitui o enfoque
daquilo que Sartre denominou de histórico-dialético. O
sujeito deve ser compreendido a partir de sua história
individual e, ainda, dos contextos social, cultural, econômico e político ao qual está inserido.
Com foco nesta concepção histórico-dialética de
Sartre (1960/2002), sua contribuição para a Psicologia diz
respeito ao estudo de um homem em situação, e principalmente, dos fenômenos que permeiam as relações no
decorrer de sua existência. Toda essa investigação proposta pela filosofia sartreana visa alcançar a compreensão dos diversos aspectos da existência em todo seu movimento e constituição do projeto de Ser.
Desse modo, a fenomenologia-existencial nos fornece
métodos para a prática clínica: do método fenomenológico, a partir da epoqué, abstraímos a base para uma atitude
compreensiva e pelo método progressivo-regressivo podemos entender o projeto de Ser a partir das escolhas realizadas pelos clientes, que se dão num movimento dialético
temporal. E é por este mesmo movimento que a Psicologia
clínica foi e continua sendo construída historicamente.
3. A Psicologia Clínica e o Sujeito Objetivado
Falar em atuação clínica nos remete inevitavelmente a uma discussão, mesmo que breve, do movimento da
Psicologia enquanto construção de um saber científico,
cuja prática foi moldada ao longo do tempo e influenciada pelas questões sociais e antropológicas que conferem
ao homem em suas variadas formas de ser, o objeto de
estudo do fazer psicológico.
Para concretizar-se enquanto ciência, a Psicologia,
no que diz respeito à prática clínica, é um campo marcado pela busca de um saber inquestionável. Propunha a
confiabilidade de um método que fosse capaz de prever
e controlar os fenômenos responsáveis pela construção
de um homem subjetivado. Seguindo o percurso de uma
138
Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes
Uma vez que partimos da dispersão dos organismos
humanos, vamos considerar indivíduos inteiramente
separados (pelas instituições, por sua condição social,
pelos acasos de sua vida) e tentaremos descobrir nessa
separação – isto é, em uma relação que tende para
a exterioridade absoluta – seu vínculo histórico e
concreto de interioridade (Sartre, 1960/2002, p. 213).
Por estarmos inseridos em uma estrutura social que
fora organizada pela práxis de outros que nos precederam
historicamente, torna a práxis individual uma reorganização de um setor de materialidade inerte, cuja função é atender as exigências de outro setor material, e não mais uma
livre organização do campo prático. Matéria, em um sentido mais amplo, seria não-consciência (Sartre, 1960/2002).
Entretanto, segundo Perdigão (1995), não somente as
práxis de nossos antecedentes, mas também as nossas
enquanto liberdade produzem o fenômeno da contra-finalidade da matéria. Para este autor, o homem intervém
na matéria influindo nela seu próprio projeto, disperso,
resultando em um fenômeno alheio que foge ao controle, e a matéria pode responder contrariamente aos efeitos que se buscava.
139
O isolamento dos sujeitos que se condenam a sofrer
a contra-finalidade aliena seus projetos livres e favorece
o estabelecimento de relações de domínio, devendo realizar projetos que não lhe são próprios, e sim determinados por outros (Perdigão, 1995). Assim, o homem também
escolhe e produz seus próprios condicionamentos, logo
a maneira de alienar-se.
Romagnoli (2006) define as relações contemporâneas
como intrínsecas, qualitativas e afetivas, por se desenvolverem nesse cenário globalizado de uma sociedade pretensiosamente autoritária que envolve aquilo que a autora
definiu como corpo social, por meio dos mais diversos
mecanismos de dominação. A alienação faz com que as
imposições dessa sociedade dominante sejam, ao mesmo
tempo, também desejadas pela subjetividade, produzindo
assim formas de vidas padronizadas.
Para Luczinski e Ancona-Lopez (2010), na prática clínica, a busca do psicólogo é pela compreensão do homem
no mundo, assim como uma forma de acompanhar esse
homem em suas necessidades de acordo com os objetivos terapêuticos. Entretanto, é certo que o homem pode
apresentar crescimentos e mudanças no que diz respeito
ao desenvolvimento pessoal, a partir das mais diversas
experiências vividas, sem que para isso seja necessária
qualquer intervenção psicológica.
Nesse aspecto é que a prática da Psicologia Clínica
imersa no contexto social, não visa uma política de atenção às camadas sociais mais favorecidas. Diz respeito
a uma proposta para uma “clínica de qualquer lugar”,
segundo Romagnoli (2006, p. 53). O objetivo primeiro,
neste caso, seria a aniquilação de produções em massa,
vinculada a uma apreensão da singularidade do cliente
não submisso a um modelo de estudo. Isso vale também
para o próprio terapeuta que não se atenha ao pensamento
narcísico de detentor do poder de modelar seus clientes.
Tendo em vista a fundamental importância do mundo
enquanto produto e produtor de subjetividades objetivadas, cabe ressaltar o processo de sociabilidade, como se dá
e o nível de influência que este exerce sobre a constituição
do homem. Em meio a esse processo encontra-se também a
construção do Ser terapeuta, que tende ir ao encontro das
expectativas da sociedade e as perspectivas dos estudantes que se dedicam a esta atuação profissional, como por
exemplo, a conciliação indubitável entre naturalidade e
critério, as quais serão foco de nossa reflexão mais adiante.
4. A Sociabilidade e o Social
Iniciaremos uma discussão a respeito da sociabilidade a partir da conceituação de Qualidade de Vida. Ao
pensar Qualidade de Vida há uma tendência a associar
tal conceito à saúde. Segundo definição da Organização
Mundial da Saúde (OMS), saúde não diz respeito somente
à ausência da doença, e sim a presença de um bem estar
físico, mental e social (Fleck, 2000).
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012
Artigo
subjetividade marginalizada pelo processo científico, à
medida que se opõe a objetividade proposta pela ciência,
ao terapeuta foi concedida a capacidade de transformar a
natureza de seu cliente, cujos fenômenos característicos
foram reduzidos apenas a um objeto de estudo.
Nesse sentido é que Neubern (2001) aponta o grande
dilema da Psicologia Clínica, pois à medida que se desenvolvem novas formas de atuação, ainda assim, esbarramos na limitação epistemológica que tende a excluir
a subjetividade.
Provavelmente o maior resultado dessa discrepância
para as relações terapêuticas está relacionado à dificuldade de aceitação das mais variadas formas possíveis de
compreensão de mundo, reduzindo as experiências a conceitos universalizados, logo generalizantes.
Pode-se dizer que o conhecimento foi associado a
uma hierarquia, uma relação de poder, onde as perspectivas do terapeuta, de maneira sutil, foram impostas,
substituindo ou influenciando assim as peculiaridades
do cliente. Concomitante a isto, a Psicologia foi tomando
como função oferecer explicações confiáveis, principalmente dos sujeitos que estavam à margem do conceito
de normalidade. O foco no patológico veio reafirmar a
condição desse homem enquanto dependente e submisso do processo terapêutico, uma vez que a Psicologia lhe
foi apresentada como uma, senão a única, capaz de promover soluções eficazes.
A avaliação das múltiplas e complexas dimensões
de um processo histórico é de fundamental importância
no sentido de estabelecer a prática de um conhecimento
vinculado, inclusive, às resistências impostas por ele enquanto obstáculo epistemológico (Neubern, 2001).
Artigo
Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas
Em um artigo apresentado por Campos e Rodrigues
Neto (2008), que trata de uma narrativa reflexiva sobre
Qualidade de Vida, os autores trazem um tópico intitulado “Instrumentos de Medida de Qualidade de Vida” (p.
235), onde descrevem construtos capazes de mensurar e
comparar os diversos níveis que caracterizam e determinam o bem-estar social.
O tema é abordado como se o fenômeno do bem-estar
fosse padronizado e a tal ponto generalizado que permitiria uma avaliação cabal de toda e qualquer subjetividade.
Nesse aspecto, ressaltamos a importante influência exercida pela ascensão do capitalismo no que diz respeito ao
entendimento de bem-estar contemporâneo. Os padrões
de beleza, padrões comportamentais, status social são
alguns dos predicativos que diariamente são impostos
pela mídia, por exemplo, e sobre os quais se fundamenta a condição de se ter ou não bem-estar. Podemos observar também que para se atingir tais projetos impostos
como necessários ao bem-estar, há a necessidade de se
consumir produtos para esses fins. A valorização do homem, então, diz respeito à capacidade de consumo que
ele apresenta, e não daquilo que o constitui enquanto Ser.
Nesse contexto e no senso comum, o psicólogo se insere como alguém capaz de modificar os comportamentos vistos como “não saudáveis”, proporcionando assim
o bem-estar ao seu cliente. Mais que isso, quiçá, por algumas pessoas, considerado como o único capaz de tal
mudança, pelo fato de possuir conhecimento relativo ao
homem enquanto processo e suas diferentes formas de
compreensão do mundo.
Em 2008, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná
(CRP 08) contemplou a edição n. 57 da revista Contato
com a temática Qualidade de Vida, enfocando as contribuições da Psicologia para se alcançar esse bem-estar tão
almejado pelo homem. Uma das reportagens foi direcionada à profissionais envolvidos com a prática da Psicologia
em um contexto ambiental, que denunciaram os resultados danosos das ações do homem sobre a natureza, que
afetam sobremaneira sua qualidade de vida. Diante o que
é construído por esta relação dialética homem-mundo,
por meio da qual o homem sente a contra-finalidade da
matéria, ou seja, o homem se vê controlado por sua criação, cabe aqui uma análise.
A expressão ‘Em-si’ na teoria sartreana se refere ao
Ser, ou seja, tudo aquilo que é, estanque, fechado. Dito
de outra forma: encontra-se fora da pessoa, não mantém
relação nem consigo nem com outro Ser, é o universo das
coisas materiais. Em contrapartida o ‘Para-si’ é o pleno
vazio, o nada. É a consciência (Para-si) que faz reconhecermo-nos como Ser (Em-si) (Perdigão, 1995).
A relação dialética ‘Para-si’ e ‘Em-si’ nada mais é que
a relação entre a consciência e o mundo. Já disse Sartre
(1943/1997, p. 131) que “o homem é um para-si-em-si”, uma
vez que ontologicamente o homem é o nada, o vazio que
será preenchido por algo, tornando-se momentaneamente um ‘Em-si’ na relação com o mundo (Para-si-Em-si).
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012
O único fundamento concreto da dialética histórica é
a estrutura dialética da ação individual. E, na medida
em que podemos abstrair, por um instante, essa ação
do meio social onde, de fato, está submersa, surpreendemos nela um desenvolvimento completo da inteligibilidade dialética como lógica da totalização prática
e da temporalização real (Sartre, 1960/2002, p. 328).
Portanto, a prática clínica nada mais é que um olhar
desse homem na sociabilidade (relações), limitado por
aquilo que é instituído por essas mesmas relações, ou
seja, o social será o produto dessas relações, como, por
exemplo, as normas, as leis, as teorias e as políticas. Sendo
produto, o social é a antítese do individuo e seu projeto de
Ser também será construído a partir desta relação, como
interioriza esse social e como age sobre ele.
Por ser falta e por estar inserida no mundo, a relação
com as coisas e com os outros se dá num movimento recíproco, que remete o homem ao reconhecimento de si
próprio enquanto meio, tal como vê o outro, que se move
em direção a um fim. Essa relação é, ao mesmo tempo,
mediadora e mediada pela materialidade. Um conjunto de
homens e de coisas, segundo Bettoni e Andrade (2001), em
meio a qual a práxis da individualidade atua para determinado fim a sobrevir sobre a realidade. A somatória das
ações de vários sujeitos constitui um grupo que, mais tarde, irá demarcar e, de certa forma, exercer controle sobre a
individualidade expressa em prol dos objetivos coletivos.
Podemos dizer que enquanto a realidade coletiva se
apresenta ao homem como algo imposto, esta é constituída também a partir de sua individualidade. Sob esta
lógica da dialética homem-mundo configura-se uma totalização-em-curso. Cabe então à consciência desvelar todo
esse movimento dialético e retirá-lo da inércia, fazendo
com que seja possível refletir sobre a trajetória das coisas
(Bettoni & Andrade, 2001).
5. Ser Terapeuta Ideal
No eixo da Fenomenologia-existencial, a construção
do projeto de Ser terapeuta é também produto dessa dialética ontológica. Inicialmente, ao pensar nos objetivos da
educação como sendo o de fundamentar uma identidade
ao homem, a formação acadêmica em Psicologia, assim
como em qualquer outra área do conhecimento, traria
em seu bojo uma atitude de má-fé ao tentar impor um
Ser psicólogo ao Não-ser, como resposta frente ao nada.
Segundo Danelon (2004), é como instituir uma essência antes da existência, a qual se constituirá mais tarde
como realidade interior do sujeito, servindo de referencial
para que este elabore e concretize seus projetos, contrapondo-se assim a premissa básica do Existencialismo de
que a existência precede a essência.
O Ser ontológico do homem, ao pensar, pensa sempre em algo que, a partir daí, torna-se objeto captado por
sua intencionalidade. Pensar em Ser psicoterapeuta im-
140
plicaria então, em projetar um Ser terapeuta, primeiramente idealizado.
Já impregnados com conceitos do senso comum sobre
o papel do terapeuta, o estudante inicia a graduação podendo ter alguns desses conceitos reforçados por paradigmas de uma formação que limitam a prática desse profissional somente ao contexto do consultório e que designam
à figura do terapeuta características utópicas, como, por
exemplo, a onipotência de detentor do poder de curar o
outro. E é nesse aspecto que a educação pode assumir um
caráter perverso ao propor um Ser para o homem que se
projeta a partir do que foi instituído. Compromete-se assim, o princípio de intencionalidade também, que desse
momento em diante impossibilita a abertura da consciência para o mundo, já que será parte de uma subjetividade que lhe foi instituída anteriormente (Danelon, 2004).
A formação, porém, tem o poder de caracterizar o sujeito. Concretizá-lo como um Ser-em-si, que poderia ser
definido como subjetividade individual, não fosse o fato
da consciência apresentar-se objetivada de conceitos que
foram pré-determinados (Danelon, 2004).
A possibilidade de livrar o cliente do sofrimento e
ser reconhecido como um bom profissional tende a incitar o terapeuta, pois esta possibilidade de ser lhe confere poder. Ideologicamente fixado em conceitos, como os
padrões de saúde mental, qualidade de vida, bem-estar,
e condições sociais, por exemplo, disseminados na sociedade capitalista, o terapeuta iniciante pode se deter a
uma pretensão de enquadrar o cliente em conceitos pré-estabelecidos, de modo que se sinta capaz de mudá-lo e
reinseri-lo tal como o meio exige.
Diante o exposto, fica evidente uma intensa preocupação do estagiário-terapeuta iniciante, com o desempenho
nos primeiros atendimentos psicoterapêuticos. Certo nível de ansiedade demonstra as incertezas do futuro com
o cliente e da habilidade para estar realmente com ele.
Sabido que o que se fizer pode causar um impacto no
outro, é possível aceitar tais ansiedades como normais,
embora uma ansiedade demasiada talvez acabe com toda
confiança que tenha em si próprio.
O estagiário-terapeuta iniciante se encontra imerso em um mar de dúvidas em relação ao que deverá ser
dito e de que forma, e, apreensivo pelas coisas que acredita não poder dizer, pode conformar-se com o silêncio
em alguns momentos ou mesmo quebra-lo inadequadamente para livrar-se da angústia diante do vazio que se
instaura na relação, que pensa poder se entendido pelo
outro como uma impotência de sua parte. Nesse aspecto,
a supervisão funciona como moderador dessa ansiedade
e angústia por meio da orientação dada por profissional
que tenha experiência.
A supervisão se dá com o uso de vivências, discussões, dramatização dos casos atendidos, estudo de material teórico e outras atividades com o objetivo de ajudar
e avaliar o desenvolvimento do estagiário-terapeuta iniciante na sua prática. Isso se torna possível por meio da
reflexão, neste instigada, sobre suas habilidades, assim
141
como suas limitações, que é levado a repensar a autoimagem, relações dentro do grupo e, paralelamente, seu
crescimento pessoal (Távora, 2002).
A prática idealizada da psicoterapia estaria vinculada
a conciliação de uma metodologia científica aplicada em
um contexto previsível, agindo de forma inquestionável
sobre a motilidade que caracteriza a vida humana. Como
se o estagiário-terapeuta iniciante fosse detentor de uma
receita que livrasse o cliente de todo seu sofrimento, levando-o a crer que a “cura” seria algo ofertado pelo primeiro,
ao invés de considerar o processo terapêutico como uma
caminhada para a conscientização e apropriação do projeto de Ser do e pelo cliente, que pode ser mantido ou não.
Estagiários-terapeutas iniciantes tendem a antever seu
encontro inicial com os clientes vivendo sentimentos ambivalentes. Aplicar na prática os conceitos teóricos-metodológicos aprendidos configura-se como uma das maiores
preocupações enquanto atuação. O anseio por intervir
no momento que considera ser o certo, e de maneira que
também acha ser a pertinente, acaba por vezes comprometendo a vivência daquilo que o cliente fala, no exato
momento em que ele traz. O terapeuta fica preso a um
modelo ideal de atuação e perde a singularidade do processo, em seu âmbito vivencial da relação com o cliente.
E por falar de singularidade e de relação, dois outros
aspectos podem também ser compreendidos de maneira
errônea pelo estagiário-terapeuta iniciante: (1) a questão
da individualidade do indivíduo ser compreendida de
maneira descontextualizada do social e (2) a não consideração da relação dialética no próprio setting terapêutico.
Sendo aspectos que se imbricam, a individualidade,
tanto do cliente quanto do terapeuta, não está dissociada
dos seus respectivos contextos coletivos. As vivências de
ambos vêm carregadas do que é instituído por um contexto
maior por meio de suas relações extra setting. Sendo assim, a maneira como superam as contradições das relações
fora do setting influenciará a relação que travarão dentro
deste, bem como transcenderão todas as demais. Logo, nenhuma delas pode deixar de ser apreendida e trabalhada.
Outro aspecto importante a ser pontuado refere-se às
atitudes de silêncio do cliente que, por vezes, são significadas pelos estagiários-terapeutas iniciantes como uma
barreira à intervenção psicoterápica. O silêncio do cliente
é vivenciado pelo estagiário-terapeuta iniciante com um
tempo interminável e não é incomum que este se sinta
ameaçado a ponto de buscar algo contraproducente com o
fim de quebrá-lo, livrando-se assim da angústia diante do
vazio. Por remetê-los ao vazio, o silêncio passa a ser associado a uma impotência do estagiário-terapeuta iniciante
que se sente na obrigatoriedade de interrompê-lo, dizendo
coisas, por vezes desnecessárias, ou lançando mão de um
inquérito com o único intuito de totalizar a lacuna que se
estabelece no momento em que o cliente se cala, como já
dissemos anteriormente. Entretanto, assim como qualquer
outro comportamento, o silêncio, quando trabalhado em
terapia, contribui para que o cliente obtenha consciência
de si, servindo inclusive como recurso de intervenção
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012
Artigo
Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes
Artigo
Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas
para o próprio psicoterapeuta, uma vez que pode assinalar ao cliente a maneira como escolhe lidar com o vazio.
No entanto, é mister identificar a intenção do cliente por meio de sua atitude de silenciar-se, haja vista que
o silêncio produtivo tem caráter reflexivo (Erthal, 1994).
Contudo, este tipo de silêncio é menos mobilizador de
angústia no estagiário-terapeuta iniciante, pelo fato de o
cliente, em sua atitude reflexiva, estar voltado para si e
não para o terapeuta. Diferente do silêncio estéril, que tem
seu significado na evitação de algum assunto em específico que tenha incomodado o cliente e/ou a dificuldade
de tomar a iniciativa de falar, neste, o cliente demonstra
com o comportamento de silenciar-se, outras atitudes geralmente não-verbais, que informam ao estagiário-terapeuta iniciante que este é quem deve quebrar o silêncio.
Neste caso, suportar o silêncio passa a ser uma vivência
um tanto ameaçadora, haja vista que, não responder ao
apelo do cliente é intervir com uma negativa, e como se
esta não fosse também uma intervenção.
Quase sempre as intervenções iniciais ocorrem de maneira intranquila para o estagiário-terapeuta iniciante. Há
uma tendência a sentir-se intimidado e receoso, como se
algo que pudesse dizer tivesse o poder de destruir o cliente de modo que ele nem retorne na sessão seguinte. Nesse
sentido, evita-se falar sobre o que supõe ser desagradável
para o cliente. Diante tal compreensão equivocada, a atuação fica restrita a uma prática amena, amigável, porém,
a real intenção é a de manter o controle da liberdade do
cliente. Esta tentativa de controle remete à expectativa
do estagiário-terapeuta iniciante em estar de acordo com
as expectativas que supõe que o cliente tenha. Em outras
palavras, a atuação fica vinculada à uma tentativa de não
frustrar o cliente para não frustrar a si próprio. Alienado
em sua liberdade, e em busca de retoma-la, o estagiário-terapeuta iniciante tende a abster-se de uma possível confrontação com o cliente, tentando também transformar a
liberdade deste último em algo alienável ao seu controle. Enfim, reverte o lugar de quem deve estar impotente.
Outro contexto relacional em que o estagiário-terapeuta iniciante pode mostrar o seu ideal de Ser terapeuta é na relação com seu orientador. Assim como receia
que sua atuação não seja reconhecida pelo cliente pelo
modelo idealizado, o olhar do orientador também poderá
ser percebido como uma ameaça ao seu projeto. Em ambas as relações que trava – com o cliente e com o orientador – o estagiário-terapeuta iniciante tenderá controlar
a liberdade da consciência alheia. Contudo, na segunda
relação, caberá ao orientador a ajudá-lo a conscientizar-se de seu projeto.
Nesta trama dialética das relações, para obter sucesso
com a psicoterapia fenomenológico-existencial e com a
orientação, todos – orientador, estagiário e cliente – devem
se comprometer com suas escolhas: o orientador, com a
de ensinar ao estagiário-terapeuta iniciante a desenvolver
habilidades e competências para a aplicação da teoria e
do método em questão, bem como encorajá-lo a desistir
de idealizações e assim a arriscar-se, com isso o orienta-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012
dor também precisa se expor-se na relação; o estagiário-terapeuta iniciante, com a sua escolha pela abordagem
e pelo tipo de prática, aprendendo na orientação pode
transpor a experiência para com o seu cliente, mas deve
arriscar-se em ambas as relações; e, finalmente, o cliente
com a decisão de fazer terapia pode engajar-se com sua
proposta, e assim apropriar-se de seu Projeto de Ser e com
possíveis transcendências ao seu modo de Ser. Tais engajamentos provocarão mudanças nas relações de todos.
Considerações Finais
Aquele que almeja ser psicoterapeuta geralmente se
enquadra em características tais como: o interesse pelas
pessoas, a estabilidade emocional, a capacidade de inspirar confiança nos outros, e principalmente, tolerância às
mais diversas formas e estilos de vida e crenças.
Na contemporaneidade, exige-se ainda que esse terapeuta-iniciante desenvolva a condição de compreender e
aceitar o seu Eu tanto quanto os outros. Assim, quando
vão à prática os estudantes de Psicologia são submetidos
à prova da sua capacidade de integração e aplicação de
tudo aquilo que aprenderam durante a formação acadêmica. Mesmo estando cientes da influência que os docentes exercem enquanto modelo de terapeuta, ignora-se
a singularidade do potencial individual ao tentar imitá-los. Os recursos podem e devem ser usados, mas buscando sempre caminhos que sejam peculiares a cada olhar.
Ao longo dessa discussão, onde alguns paradigmas
foram abordados e discutidos, ressaltamos que a formação científico-metodológica não é suficiente para garantir uma prática psicoterápica com êxito. A busca, não de
ser um produto acabado, mas de permanecer aberto no
sentido de vir-a-ser um profissional cada vez mais preparado, é, entre outras, uma das qualidades mais importantes para a experiência de tornar-se psicoterapeuta.
Esta experiência implica correr riscos, manifestar a coragem e a vontade de abandonar a segurança do conhecido
para mergulhar no desconhecido, de onde possa emergir
muitas possibilidades de Ser. Tais funções destinadas ao
ser terapeuta ocultam, por sua vez, a condição humana,
pois se precaver à manutenção das expectativas de um papel estereotipado superpõe o indivíduo enquanto pessoa.
Quando possível, deve-se questionar os conhecimentos adquiridos, uma vez que a vida acadêmica é construída por pessoas e estas não detêm saberes absolutos.
Teorias, métodos, instrumentos e recursos estão no mundo, logo passíveis de serem transcendidos. Seja qual foi
o grau de embasamento teórico acadêmico e prático, o
estagiário-terapeuta iniciante não deve sobrecarregar-se
da necessidade de ser perfeito. Os erros serão cometidos
tanto por principiantes quanto pelos mais experientes,
afinal, o cliente não é frágil a ponto de fadar vossas vidas aos nossos erros.
Projetos idealizados não toleram frustrações, logo
não abarcam limites, sendo assim, não colocar limites ao
142
Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes
cliente, ajudando-o a se conscientizar sobre seu Projeto
de Ser, é também não querer reconhecer os limites de seu
próprio projeto de Ser terapeuta.
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Jéssica Paula Silva Mendes - Discente do curso de Psicologia da Universidade Paranaense (UNIPAR). E-mail: [email protected]
Sionara Karina Alves de Brito Gressler - Discente do curso de Psicologia da Universidade Paranaense (UNIPAR). E-mail: sionaragressler@
hotmail.com
Sylvia Mara Pires de Freitas - Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e
da Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUC/RS). Especialista em Psicologia do Trabalho pelo Centro
Universitários Celso Lisboa (CEUCEL/RJ). Formação em Psicoterapia
Existencial pelo Núcleo de Psicoterapia Vivencial (NPV/RJ). Docente e
Orientadora de Estágio em Psicologia Clínica e de Grupo, na abordagem
Fenomenológico-Existencial e Co-coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia Fenomenológico-Existencial da Universidade
Paranaense - UNIPAR/Umuarama - Paraná. Docente-orientadora de
Estágio em Psicologia do Trabalho, na Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR). Endereço Institucional: Av. Mascarenhas de Moraes, s/n.
Universidade Paranaense, Campus sede Umuarama, Paraná - Colegiado
do curso de Psicologia. E-mail: [email protected].
Recebido em 03.07.11
Aceito em 12.03.12
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012
Artigo
Fleck, M. P. A. (2000). O instrumento de avaliação de qualidade
de vida da Organização Mundial de Saúde (WHOQOL-100):
características e perspectivas. Ciência & Saúde Coletiva,
5 (1), 33-38.
Marta H. Freitas; Rita C. Araújo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins
OS SENTIDOS DO SENTIDO: UMA LEITURA FENOMENOLÓGICA
Los Sentidos del Sentido: Una Lectura Fenomenologica
The Meanings of Meaning: A Phenomenological Reading
M arta Helena de Freitas
R ita de Cássia A raújo
Filipe Starling Loureiro Franca
Ondina Pena Pereira
Francisco M artins
Resumo: Neste artigo, procedemos a uma leitura fenomenológica da noção de sentido e suas múltiplas significações. Partindo
de uma primeira visada às definições apresentadas ao termo nos verbetes dos dicionários comuns, tal multiplicidade de significações é discutida à luz do conceito husserliano de “intencionalidade” e compreendida a partir da proposta merleau-pontyana
de “reabilitação do sensível”. Retomamos, então, o termo sentido desde suas acepções físicas e sensoriais até aquelas de cunho
idealizado, relacional e teleológico, considerando-as como um conjunto expresso num único termo e que aponta para uma vida
consciente baseada no campo da experiência corporal pré-predicativa desdobrando-se em experiência reflexiva, intersubjetiva
e transcendental. Desta forma, o vocábulo sentido mostra-se como uma espécie de multiplicidade unificada e, por isso, considerado como que paradigmático: pura “mostração” do processo perceptivo, diante do qual se tem a contradição-continuidade
da imanência (o dado imediatamente) e da transcendência (o que vai além do imediatamente dado). Discutimos as implicações
desse entendimento para uma psicologia que se queira eficaz no seu processo de compreender a experiência humana fundamental em sua inserção no mundo da vida.
Palavras-chave: Sentido; Fenomenologia; Intencionalidade; Husserl; Merleau-Ponty.
Abstract: In this article we carried out a phenomenological reading of the notion of meaning and its multiple meanings. Starting
from an initial target to the definitions provided in the dictionaries term, such a multiplicity of meanings is discussed in light
of the Husserlian concept of “intentionality” and understood from the Merleau-Ponty propose about “rehabilitation of the sensible.” Getting back the term direction from its physical and sensory meanings to those of idealized nature, relational and teleological, considering them as a whole expressed in a single term and points to a conscious life based in the field of body experience prepredicative unfolding in reflective experience, intersubjective and transcendental. Thus, the word order shows up as a
kind of multiplicity unified and, therefore, considered that paradigm: pure “showing” the perceptual process, before which one
has the contradiction-continuity of immanence (the immediately data) and transcendence (what goes beyond the immediately
given). We discuss the implications of this understanding to a psychology that is effective in the process of understanding the
fundamental human experience inserted in the living world.
Keywords: Meaning; Phenomenology; Intentionality; Husserl; Merleau-Ponty.
Artigo
Resumen: En este texto, llevamos a cabo una lectura fenomenológica del concepto sentido y sus múltiples significados. Partiendo
de un primero enfoque sobre las definiciones del término en los artículos de los diccionarios comunes, la multiplicidad de significados es examinada a la luz de la noción intencionalidad en Husserl y comprendida desde la propuesta de “rehabilitación de
lo sensible” de Merleau-Ponty. Tomamos entonces el sentido del término desde sus significados sensoriales y físicos a los de naturaleza idealizada, teleológico y relacional, considerándolos como un conjunto que se expresa en un solo término y que apunta
a una vida consciente fundada en el terreno de la experiencia pre-predicativa del cuerpo, con desdoblamientos en los terrenos
reflexivo, intersubjetivo y trascendental. De esta manera, el sentido de la palabra se muestra como una especie de multiplicidad
unificado y por lo tanto, lo consideramos paradigmático: es una demonstración del proceso perceptual, en lo cual tenemos la
contradicción-continuidad de la inmanencia (lo inmediatamente dado) y la trascendencia (que va más allá de lo que se da de
modo inmediato). Analizaremos las implicaciones de este entendimiento para una psicología que quisiera ser eficaz en su proceso de comprensión de la experiencia humana fundamental insertada en el mundo de la vida.
Palabras-clave: Dirección; Fenomenología; Intencionalidad; Husserl; Merleau-Ponty.
“De tudo o que vivo, enquanto o vivo,
tenho diante de mim o sentido,
sem o que não o viveria.”
Merleau-Ponty, A Fenomenologia da Percepção
(1945/1999, p. 41)
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012
“Porque o único sentido oculto das cousas
é elas não terem sentido oculto.”
Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro.
144
Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica
É no mínimo curioso como certas palavras nos soam
como feixes de nomes, tal a multiplicidade de sentidos a
que nos remetem. É este o caso do próprio vocábulo sentido. Qualquer bom dicionário o confirma. Mas, é no mundo da vida que o sentimos, cotidianamente. Falamos então
dos órgãos do sentido, do sentido de um rio, do sentido
desperto, do sentido tessitura, do sentido de uma palavra, frase ou texto, do olhar sentido, do amor sentido, da
dor sentida, do coração sentido (ou ressentido), do sexto
sentido, da fé sentida, do sentido da vida, do verbo sentir... E um novelo de sentidos se desfia.
Talvez sejam exatamente os sentidos intrínsecos à
polissemia do termo “sentido” que o façam tão caro e especial à psicologia, sobretudo quando esta toma como
seu objeto a experiência humana em sua plena vitalidade. Se tal vitalidade já foi muitas vezes evitada, negada
e marginalizada na história desta mesma ciência, em
nome de um certo tipo de rigor conceitual e metodológico que preferiu empregar vocábulos menos sujeitos a
tantas ambiguidades, ela tem sido frequentemente resgatada ultimamente, e de várias maneiras. De fato, talvez
o termo sentido nunca tenha estado tão em voga na psicologia, como em suas versões contemporâneas. Fala-se
em “sentido do sintoma”, “resgate de sentido”, “busca de
sentido”, “construção de sentido”, “núcleos de sentido”,
“representações do sentido”, “sistema de sentidos”, “vontade de sentido”, “necessidade de sentido”, “encontro (ou
reencontro) de sentido”, “versão de sentido”, “fenomenologia do sentido”, para falar dos mais frequentes.
Neste ensaio, porém, não pretendemos simplesmente
apresentar mais uma abordagem acerca do termo sentido.
Ao contrário, em vez de apresentar mais uma concepção
concorrente a tantas outras, nosso intuito é o de discutir
justamente essa multiplicidade natural do termo e suas
respectivas vinculações à riqueza da experiência fundamental em causa. Evidentemente que seria tarefa hercúlea e, sobretudo, pretensiosa, propormos uma abordagem integradora de todas as demais já desenvolvidas em
torno da concepção de sentido. Entretanto, podemos, ao
menos, dirigir um olhar mais integrador sobre a própria
experiência humana, tal como nos ensina, por exemplo,
a fenomenologia de Husserl (1859-1938) e de MerleauPonty (1908-1961). Esse, então, o propósito do qual buscamos nos aproximar aqui: um exercício de apreensão
fenomenológica dos sentidos do sentido e suas implicações para uma psicologia que se queira efetiva na abordagem ao mundo da vida.
1. Do Dicionário à Noção Fenomenológica de Intencionalidade da Consciência
Um dicionário comum da Língua Portuguesa que
apresenta, de modo exaustivo, a variedade de significa-
145
dos do termo sentido, pode relacionar até muito mais de
vinte itens. O dicionário eletrônico Priberan da Língua
Portuguesa (2010), por exemplo, apresenta 14 significados para o termo “sentido”, no singular, número que se
eleva para 18, quando o termo é empregado no plural –
“sentidos”, e para 28 (!) quando se refere à conjugação
do verbo “sentir”. Considerando-se nosso intuito de realizar aqui uma espécie de “exegese” fenomenológica do
termo, reproduziremos integralmente os três verbetes,
conforme a seguir:
“Sentido: adj. 1. Ressentido; melindrado; magoado.
2. Sensível; susceptível; que se ofende facilmente.
3. Contristado; pesaroso; triste. 4. Lamentoso; plangente. s. m. 5. Faculdade que têm o homem e os animais de receber as impressões dos objectos exteriores. 6. Razão, bom senso. 7. Intento, mira, pensamento.
8. Atenção, cuidado. 9. Memória, cabeça. 10. Lado de
uma coisa, direcção. 11. Significação. 12. Acepção.
13. Espírito, pensamento. 14. Modo, aspecto, ponto
de vista, maneira de considerar ou de distinguir.
Sentidos: s. m. pl. 15. Conjunto das faculdades para
a percepção dos objectos exteriores. 16. Conjunto
das faculdades intelectuais. = RACIOCÍNIO 17. Voluptuosidade, prazer, sensualidade, concupiscência.
interj. 18. Expressão usada para pedir concentração ou
cuidado em relação a algo. = ATENÇÃO, CUIDADO
com os cinco sentidos: com todo o cuidado, como é
devido. sentido proibido: sentido contrário ao sentido
normal de uma faixa de rodagem. = CONTRAMÃO.
Sexto sentido: intuição.
Sentir - Conjugar (latim sentio, -ire, perceber pelos
sentidos, perceber, pensar) v. tr. 1. Perceber por um dos
sentidos; ter como sensação. 2. Perceber o que se passa
em si; ter como sentimento. = EXPERIMENTAR.
3. Ser sensível a; ser impressionado por. 4. Estar convencido ou persuadido de. = ACHAR, CONSIDERAR,
JULGAR, PENSAR. 5. Ter determinada opinião ou
maneira de pensar sobre (algo ou alguém). = ACHAR,
CONSIDERAR, JULGAR, REPUTAR. 6. Conhecer,
notar, reconhecer. 7. Supor com certos fundamentos.
= CONJECTURAR =, PREVER. 8. Aperceber-se de,
dar fé ou notícia de. = PERCEBER. 9. Ter a consciência
de. = PERCEBER. 10. Compreender, certificar-se de.
11. Adivinhar, pressagiar, pressentir. 12. Conhecer por
certos indícios. = PRESSENTIR 13. Ouvir indistintamente. = ENTREOUVI. 14. Experimentar mudança
ou alteração física ou moral por causa de. = RESSENTIR. 15. Sofrer as consequências de. 16. Sentir
tristeza ou constrangimento em relação a; afligir-se
por. = LAMENTAR. 17. Ressentir-se, melindrar-se
ou ofender-se com (algo). 18. [Belas-artes] Ter o
sentimento estético. 19. [Belas-artes] Saber traduzir
por meio da arte. v. intr. 20. Ter a faculdade de sentir.
21. Ter sensibilidade; ter alma sensível. 22. Sofrer. v. pron.
23. Experimentar um sentimento ou uma sensação.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012
Artigo
Introdução
Marta H. Freitas; Rita C. Araújo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins
Artigo
24. Ter a consciência de algum fenómeno ou do que
se passa no interior de si mesmo. = RECONHECER-SE. 25. Apreciar o seu estado físico ou moral. =
CRER-SE, IMAGINAR-SE, JULGAR-SE, REPUTAR-SE. 26. Tomar algo como ofensa. = MELINDRAR-SE,
OFENDER-SE, RESSENTIR-SE s. m. 27. Sentimento,
sensibilidade. 28. Maneira de pensar ou de ver. =
OPINIÃO, ENTENDER, PARECER”.
Essa variedade ainda não esgota todos os significados possíveis do termo sentido, o que pode ser verificado
quando se compara com outro verbete correspondente ao
mesmo termo em outro dicionário, como por exemplo o
Dicionário On Line Michaelis – Moderno Dicionário da
Língua Portuguesa (1998/2009), que convidamos o leitor
a buscar, pois sua reprodução, como de tantos outros, tomaria muito espaço nos limites deste ensaio.
O que é interessante observar de saída é que, dentre
as diferentes acepções do termo, existem aquelas que remetem às funções biológicas, como os órgãos dos sentidos, por exemplo, mas também muitas outras – a maioria, inclusive – que nos remetem às chamadas “funções
psíquicas”, classicamente descritas pela psicologia em
seus diferentes níveis. Assim, podemos identificar, dentre os vários significados relacionados no verbete, desde aqueles que remetem às chamadas “funções básicas”,
mais diretamente vinculadas ao corpo – como a sensação e a percepção, passando pelas relacionadas às chamadas “funções intermediárias” – humor, afeto e sensibilidade, culminando nas que se associam às chamadas
“funções superiores” – memória, consciência, sentimento, linguagem, pensamento e juízo. Por outro lado, se a
maioria dos significados elencados nos verbetes podem
ser relacionados a estes diferentes níveis do psiquismo,
os quais, no seu conjunto, podemos chamar de “subjetividade”, notemos também que alguns deles remetem a algo
que a ultrapassa, seja por fazer referência à física (sentido enquanto lado de uma coisa, ou enquanto rumo ou
direção de uma linha, força ou movimento) ou à cultura
(sentido enquanto voz de comando e respectiva posição
da tropa no contexto militar).
Ora, se as definições dos dicionários comuns buscam
relacionar justamente os diferentes significados dos termos conforme o seu emprego cotidiano, num dado contexto linguístico e cultural, podemos compreender essa
multiplicidade de aspectos relacionados ao termo sentido como ilustrando justamente aquilo que ocorre com a
nossa consciência no mundo da vida (Lebenswelt). Sendo
assim, o termo sentido, no contexto das línguas latinas,
parece-nos paradigmático por evidenciar aquilo que
Husserl (1931/2001, p. 48), inspirado em Brentano (18381917), chamou de “intencionalidade” da consciência:
“particularidade intrínseca e geral que a consciência tem
de ser consciência de qualquer coisa, de trazer, na sua
qualidade de cogito, o seu cogitatum em si próprio” (grifo
nosso). Essa multiplicidade intrínseca ao termo sentido –
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012
que remete, simultaneamente, a concepções da física, da
fisiologia, do psiquismo e da cultura – confirma a já tão
denunciada falsa dicotomia estabelecida pelo pensamento moderno através das distinções entre cogito e cogitatum, entre mundo exterior e mundo interior, entre objetividade e subjetividade, entre natureza e sensibilidade.
Por outro lado, curiosamente, podemos verificar também que, em geral, os sentidos do termo sentido estão intrinsicamente relacionados à própria noção fenomenológica de intencionalidade. Senão, vejamos. Esta noção está
presente no conhecimento desde o neoplatonismo árabe,
passando por Santo Tomás e Ockhman, no mundo medieval, tendo sido recuperada modernamente por Brentano
(1838-1917), e posteriormente retomada por Husserl (18591938), justamente por reconhecerem que só tem sentido
falar de consciência enquanto consciência de algo, ou
seja: a intencionalidade representa justamente o direcionamento da consciência em relação ao objeto, e vice-versa,
o modo como tal objeto se apresenta à consciência. Como
tal, a intencionalidade remonta a um contíguo mental em
movimento ininterrupto em direção ao mundo. Por esse
motivo, não faz sentido pensá-la como instância de conteúdos mentais fechados e estagnados. Deste modo, toda
vez que se tenta descrever as propriedades restritas ao
objeto a que ela se dirige, às suas próprias propriedades
enquanto instância, estamos diante de um estado vivido
com certa duração, portanto como uma espécie de registro
temporal de determinado ponto onde o seu movimento,
constantemente pendular, se situa naquela ocasião. Nesta
sua contínua relação com o objeto, a consciência se realiza em intuições originárias, ou seja, ao modo como os
fenômenos lhe aparecem. Assim, embora os fenômenos
possuam uma multiplicidade de aspectos, eles aparecem
à consciência como uma unidade idêntica a ela mesma,
pois esta mesma consciência “tem a capacidade de ligar
os aspectos ou estados vividos a outros por meio da síntese” (Silva, 2009, p. 45). Poderíamos dizer, então, que
as diferentes noções de sentido são o testemunho desse
movimento, evidenciando que, no mundo da vida, o fenômeno só existe em ato: suas propriedades não são restritas ao objeto em si mesmo, mas só existem em função
daquele que o observa e, nessa visada, lhe atribui sentido.
Considerando-se o exposto, qualquer tentativa de encontrar uma possível “essência” (Wesenshau) da noção
de sentido só pode ser alcançada a partir e de dentro do
próprio mundo da vida (Lebenswelt). Conforme nos ensina Merleau-Ponty (1951/1973, p. 50), “é no curso de uma
história sedimentada que se dá uma “gênese de sentido”
(Sinngenesis). No intuito de aprofundarmos essa compreensão de uma espécie de fio ontológico que ata a diversidade na unidade – o sentido dos sentidos – procuraremos
explorar em mais detalhes, no próximo subitem deste
ensaio, as suas diversas nuanças, desde sua concepção
enquanto corporeidade, passando pela noção de sensibilidade e mentalidade, até sua concepção propriamente
teleológica. E, para tanto, caminharemos nas trilhas da
146
reabilitação do sensível, proposta por Merleau-Ponty, em
especial em sua Fenomenologia da Percepção (MerleauPonty, 1945/1999).
2. Da Corporeidade à Transcendência
Se considerarmos a noção de sentido segundo sua
acepção meramente fisiológica, em referência aos órgãos
receptores que nos trazem impressões sobre os objetos
externos, estes são “considerados responsáveis pelos diferentes tipos de sensação que percebemos” (Japiassu &
Marcondes, 1996, p. 245). Desta perspectiva, o conceito
de sentido relaciona-se, então, à função sensorial do corpo humano e é considerado porta aos estímulos do mundo externo: a sensação é considerada aqui a base para a
percepção e para o conhecimento. Sentido, aqui, seria então o fenômeno psicológico causado pela estimulação do
nosso organismo. Segundo esta mesma acepção de sentido, as sensações podem ser classificadas em externas
ou sensoriais (as que provêm dos órgãos dos sentidos) e
internas ou orgânicas (que provêm do interior do nosso
organismo e são conhecidas como sinestesia). Esta última,
então, remete à consciência corporal das próprias funções
orgânicas, ou consciência de corporeidade.
A fenomenologia de Merleau-Ponty veio demonstrar, entretanto, que a delimitação entre sentido externo e sentido interno é grosseira. Como afirma o
filósofo (Merleau-Ponty, 1945/1999), embora seja possível identificar funcionalmente cada órgão do sentido de
modo isolado, é impossível reduzir o corpo em partes independentes e de modo desconectado. Deste modo,
“os sentidos traduzem-se uns nos outros sem precisar de
um intérprete”, como diz Sokolowski (2010, p. 137):
Os vários sentidos efetivam identidades através da
sinestesia, do reconhecimento de um único objeto
dado pelos vários sentidos distribuídos em toda parte
de nosso corpo próprio. Essas variedades de partes
sensíveis, noéticas e noemáticas, servem como uma
multiplicidade através da qual objetos vêm a ser identificados de mais e mais perspectivas: a árvore é vista,
ouvida (no vento), tocada, cheirada; caminhamos em
volta e subimos nela; podamos seus ramos e rompemos pedaços de casca morta; e em tudo isso uma e a
mesma árvore é registrada em sua identidade e suas
muitas características.
Assim, em relação ao sentido enquanto sensação,
observa-se que ninguém diz que “sente” quando usa os
sentidos fisiológicos. Em vez disso, há uma apropriação das qualidades aos seres mais amplos e complexos
do que a sensação isolada de sua qualidade como parte
integrante. E então, ao invés de dizermos que sentimos
o frio, vemos o verde e engolimos o doce, dizemos que
a água está fria, a mata é verde e que a fruta está doce.
147
Da mesma forma, todos os seres humanos têm os órgãos
dos sentidos similares, mas o modo como suas capacidades são usadas e desenvolvidas tornam-se únicas. Cada
um de nós sentimos e percebemos o mundo de uma maneira peculiar, pois isso envolve a própria história, a própria cultura e as crenças que advêm da nossa experiência
subjetiva e intersubjetiva.
Por outro lado, é através do registro dos atos dos cinco sentidos que podemos dizer que temos um corpo. Para
Husserl (1935/2008, p. 42), “homens e bichos não são
simples corpos”, mas o corpo é por excelência o meio de
acesso ao mundo e de toda a experiência vivencial possível. Ou, para falarmos nos termos de Merleau-Ponty
(1945/1999), o corpo “dissolve-se” neste mundo: ele é reconhecido como fundamento último de todos os processos de vivência. E assim, quando, em fenomenologia, nos
referimos a corpo, não queremos fazer referência apenas à
matéria (Körper), mas ao corpo animado (Leib). Deste
modo, não é preciso refletir sobre os limites do próprio
corpo, a todo o momento, mas se tem consciência dele.
O corpo sintetiza a ambiguidade (imanência/transcendência) do ser no mundo. Na visão de Merleau-Ponty
(1945/1999, p. 207-208), a imanência e a transcendência são dois elementos estruturais de qualquer
ato perceptivo: “eu não estou diante de meu corpo, estou em meu corpo, ou antes, sou meu corpo”.
Ora, a concepção de uma corporeidade nos remete à
noção de sentido também enquanto faculdade para a percepção dos objetos exteriores e interiores. No modelo da
psicologia clássica, considera-se que a passagem do sentido-sensação para o sentido-percepção é realizada pela
capacidade intelectual do sujeito do conhecimento que
organiza e dá sentido às sensações. Mais uma vez, a fenomenologia leva à superação da dicotomia na concepção
do mundo sensível: não se pode estabelecer diferenças
entre sensação e percepção, pois nunca temos sensações
em partes ou de modo pontual, sendo impossível identificarmos sensações separadas de sua qualidade que, só
depois, a mente uniria e organizaria como percepção de
um objeto único. Na verdade, nós sentimos e percebemos
formas como totalidades estruturadas e dotadas de significação e sentido (Chauí, 2003).
Para a fenomenologia, então, a percepção constitui-se
uma fusão de sujeito-mundo, uma vivência verdadeira de
uma experiência simultaneamente imediata e anterior a
uma reflexão, num hipotético e espontâneo acordo sujeito e mundo. A percepção é sempre a percepção de algo, e
nesse ato tem-se não só o sujeito, mas também um objeto
para ele. Assim, o sentido definido como capacidade perceptiva é uma função cerebral que confere significado a
estímulos sensoriais a partir da experiência de vida ou
da memória. E é, também, simultaneamente, atividade
sensível, emotiva e cognitiva que organiza e interpreta
as impressões sensoriais, de modo intrínseco à própria
conexão cerebral de todas elas para formar a percepção,
utilizando-se da sinestesia, associação espontânea entre
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Artigo
Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica
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sensações de natureza diferente, mas que se mostram intimamente ligadas, variando segundo o sujeito da percepção. Deste modo, para Merleau-Ponty (1945/1999, p. 68),
“nenhuma análise da percepção poder ignorar a percepção como fenômeno original, sob pena de ignorar-se a si
mesma enquanto análise”. Afinal, ela é a configuração e
a organização de todos esses elementos que a mente integrou nas experiências passadas, ligando e unificando-as, escolhendo-as por meio dos fatores de significação
da linguagem e da cultura de cada um.
Nas definições de dicionários da Língua Portuguesa,
o termo sentido é também empregado para se referir ao
“sentir em ato” (feeling), ou ainda ao sentimento (feeling
of), como uma reação afetiva ao que já ocorreu e como
significado substantivado experimentado em relação a diversos fenômenos na vida, objetos, pessoas ou situações
intelectuais ou morais. Aqui o termo é geralmente empregado para referir-se ao sentimento que se viveu. Em
psicologia, é também considerado um estado afetivo geral, frequentemente relacionado por oposição ao conhecimento (Durozol, 1996) e como resultante de percepções
sensoriais ou representações mentais. Segundo outra acepção, também comum em psicologia, sentido-sentimento constitui-se numa espécie de emoção
mais delicada e de maior duração, representando
formas afetivas mais estáveis, e distinguindo-se da
emoção propriamente dita por ser revestido de um
número maior de elementos intelectuais (Sousa,
2006). Como veremos a seguir, de novo a fenomenologia vem mostrar ser artificial esta dicotomia.
Para Merleau-Ponty, os sentimentos constituem uma
linguagem, pois as formas de expressão dos sentimentos
não são naturalmente dadas. As manifestações dos sentimentos são variadas e mas passam necessariamente
pelo corpo. O próprio corpo é também o próprio ponto
de vista sobre o mundo, o mediador entre a consciência
e o mundo (Merleau-Ponty, 1945/1999). Portanto, todo
ato físico terá um sentido interior. Todo sentimento terá
sua contrapartida física e vice-versa: o homem considerado concretamente não é apenas um psiquismo unido a
um organismo, mas uma constante oscilação da existência que ora é corporal e ora se dirige aos atos pessoais.
Enfim, o corpo próprio não pode ser observado como a
um objeto, pois meu corpo existe comigo (Merleau-Ponty,
1945/1999). Sendo assim, o corpo próprio é, simultaneamente, o sujeito da sensação, da percepção, do sentimento e do pensamento.
E aqui, então, nos deparamos com outra acepção de
sentido comum nos dicionários: o sentido enquanto espírito, juízo e pensamento. Para Merleau-Ponty (1945/1999,
p. 241), sentido-pensamento não se dá de modo dissociado de sentido-percepção: “A visão é um pensamento
sujeito a um certo campo e é isso que chamamos
de um sentido” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 292).
Dito de outro modo, este pensamento está para esta
visão e “no final das contas, o cérebro e o olho talvez
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tenham uma relação contratual na qual o cérebro concorda em acreditar no que os olhos veem, mas, por sua
vez, o olho concorda em ver aquilo que o cérebro quer.”
(Gilbert, 2006, p. 154) Da mesma forma, o sentido, enquanto pensamento, não se realiza separado do
sentido-sentimento: “o sujeito pensante está ele próprio
numa espécie de ignorância de seus pensamentos enquanto não os formulou ainda para si, ou mesmo não os
disse ou escreveu.” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 241).
E não se pode separar o sujeito pensante do sujeito “sentinte”. O sujeito “sentinte” está também numa espécie de
ignorância ou inoperância de seus sentimentos, enquanto não os expressar. A expressão poderá ser pela fala e
esta será uma fala primária quando falar o próprio sentimento. Deste modo, ao sentido de felicidade que alguém
experimenta ao ouvir uma música, considera-se como
uma sensação, mas ao estado agradável e de prazer que
permanece nesta sensação é o que se torna sentimento.
A sensação que obtemos ao ouvir a música é passiva, pois
não passa por um processo ativo de apreensão. Já o sentimento depende da essência da música e da observação
da pessoa. A percepção do sentimento é um processo ativo e empírico de compreensão objetiva. Nas palavras de
Merleau-Ponty (1945/1999, p. 178): “Os sentidos, e em geral, o corpo próprio apresentam o mistério de um conjunto
que sem abandonar sua ecceidade e sua particularidade,
emite, para além de si mesmo, significações capazes de
fornecer sua armação a toda uma série de pensamentos
e de experiências.”
Assim, para o filósofo, o corpo é forma de expressão, pleno de intencionalidade e poder de significação.
Cada movimento, cada gesto produzido é também pleno
de sentidos, e o sentido dos gestos não é apenas dado,
mas sobretudo, compreendido: “O corpo próprio está no
mundo assim como o coração no organismo; ele mantém
o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e
alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema”
(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 273). O caminho proposto
é partir do corpo como mediador à via do sentido, que é
também o caminho da pessoa, do afeto, do pensamento,
da linguagem e da comunicação.
A linguagem e a comunicação remetem-nos à acepção
de sentido enquanto significado (meaning), termo também polissêmico, conforme se constata nos dicionários
e no mundo da vida. Assim, ele pode referir-se a uma
categoria linguística ou a uma interpretação específica,
neste caso como significação, com uma intenção ou um
fim determinado. É empregado também para se referir à
expressividade de uma palavra, sua aceitação, sua intenção, sua significação, seu conteúdo semântico ou lexical.
Refere-se, ainda, tanto ao objetivo subjacente ou destinado
pela ação, pela fala ou outro modo de expressão, enfim, ao
conteúdo válido, como também à interpretação interna,
simbólica ou real, o valor ou a mensagem do significado
de algo, como por exemplo, de um sonho. Por último, o
significado pode ser ainda a definição, a explicação,
148
a elucidação, a denotação discutindo sobre o significado exato da palavra, sua finalidade, seu objetivo
final, a ideia, o projeto, o objeto, a intenção (Collins
Thesaurus, 2003/2008). No campo específico da lexicologia e da linguística, entretanto, entende-se por sentido,
enquanto significado, “cada um dos significados de uma
palavra ou locução; acepção” (Dicionário Houaiss). Aqui
falamos do sentido como parte de um signo linguístico,
como um significado bem definido, denotativo, ao modo
de um conceito, já definido previamente, dicionarizado.
Se as definições anteriores parecem remeter a uma
desvinculação entre sentido enquanto sensorialidade/percepção e sentido linguístico, dando a impressão de que
a linguagem nos distancia do corpo próprio, ressalte-se
que a fenomenologia compreende-a como sendo ainda
uma extensão dele. Para Husserl (1901/2000), a intencionalidade linguística categorial simplesmente humaniza
a percepção, a recordação, a imaginação e as eleva a um
nível mais racional, no qual o objeto é desdobrado diante de nós. Como tal, ela está relacionada ao chamado ato
perceptivo categorial, ou ideal, um nível terciário do processo contínuo de percepção, que se nos revela como uma
fusão de atos parciais num único ato. Como esclarecem
Castro, Castro e Castro (2009, p. 96)
(...) no ato perceptivo categorial desdobramos o objeto
diante de nós, destacamos as partes, estabelecemos
relações entre estas partes destacadas, sejam relações
de uma com a outra, sejam relações das partes com o
todo, e por meio dessa percepção, dessa nova maneira de apreensão, os membros ligados e relacionados
ganham o caráter de “partes” ou, respectivamente,
de “todos”.
Deste modo, a intencionalidade categorial é um tipo
de identificação predicativa que vem suplementar e completar a que foi alcançada na experiência pré-predicativa.
Ela nos eleva a um nível humano de construção da verdade que envolve a linguagem e o raciocínio. O seu contexto é, portanto, tão amplo e extenso como a gramática
da linguagem humana. As categorias servem como princípio para a classificação onde os assuntos são integrados
numa estrutura que constitui o universo de conhecimento. Os objetos categoriais são modos nos quais as coisas
se apresentam. Aqui se evidencia a linguagem como um
instrumento usado para a concepção do mundo, mas sua
função de projetar esse mundo não se exaure no que pode
ser alcançado a partir de um exame dos significados de
palavras lexicais. De fato, o processo de significação extrapola o significado denotativo das palavras, incluindo
a intencionalidade de quem está atribuindo significação.
Podemos pensar aqui em termos do significado que uma
experiência tem para uma determinada pessoa. Por ser
intencional, a consciência humana sempre “faz o mundo
aparecer como significação” (Zilles, 2002, p. 30). Como
explica Merleau-Ponty (1945/1999, p. 576), “o sentido de
149
uma frase é seu propósito ou sua intenção, o que supõe
ainda um ponto de partida e um ponto de chegada, uma
visada, um ponto de vista.” Para o filósofo, a fala surge
como gesto do corpo que estabelece uma relação de sentido com o mundo, e “procurando descrever o fenômeno
da fala e o ato expresso de significação poderemos ultrapassar definitivamente a dicotomia clássica entre sujeito
e objeto” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 237).
Nessa compreensão de corporeidade, então, vê-se que
a noção de sentido se desloca para além da própria subjetividade, para incluir também a noção de espacialidade
e temporalidade. E, por consequência, da intersubjetividade. Ser corpo, então, é estar ligado ao mundo; e o corpo não está no espaço primeiramente: “ele é no espaço”
(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 205). Sendo assim, a percepção, em seus diferentes níveis, nos leva ao movimento em direção intencional ao mundo segundo as normas
vitais do organismo, manifestando a atitude de se orientar em direção ao mundo. Pelo movimento nos comunicamos e nos relacionamos com tudo o que está ao nosso
redor. Desde a mais tenra infância, é por meio da atividade motora que a criança se desenvolve e por adaptações
contínuas vai adquirindo informações mais complexas,
diversificadas e progressivamente mais elaboradas. A capacidade de nos movimentar permite respostas apropriadas ao ambiente, o que implica que a nossa orientação de
atenção se concentra mais nas ações que fazemos do que
nos movimentos propriamente ditos.
O exposto acima nos remete a outro conjunto de significados mormente dado ao termo sentido, qual seja, o
de direção. Mas, a palavra direção também é polissêmica.
Assim, numa primeira visada, ela pode se referir ao movimento físico – para frente, para trás, para o lado, para
cima, para baixo, o qual se relaciona às direções básicas de espaço: norte, sul, leste e oeste. O sentido
como direção é uma linha que conduz a um lugar
ou ponto. É o itinerário, a rota, o caminho – uma
linha estabelecida de viagens ou acesso: a direção
ou o caminho, a relação espacial, ao longo da qual
algo se move ou ao longo do qual se situa a tendência, as linhas gerais de orientação.
Por outro lado, no seu sentido ideativo, direção pode ser também um curso geral, no tempo,
ao longo do qual algo tem uma tendência a desenvolver. Refere-se, portanto, a uma inclinação, uma
tendência, uma disposição, uma atitude da mente.
Este sentido é também o que mostra se a pessoa tem um
plano de vida traçado, se ela está pensando no seu futuro e o construindo no presente. Simultaneamente, direção é algo que fornece direcionamento ou conselho a respeito de uma decisão ou curso de ação de
aconselhamento, orientação, conselhos, mapas de
estradas, um plano detalhado ou uma explicação
para orientá-lo no estabelecimento de normas ou
determinar um curso de ação (Collins Thesaurus,
2003/2008).
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012
Artigo
Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica
Marta H. Freitas; Rita C. Araújo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins
Artigo
Todos esses sentidos do termo “direção” possibilitam o direcionamento de um ato, tal como na noção
de intencionalidade: “A intencionalidade da consciência é tal que alcança o mundo exterior todo o tempo, até
quando tem por alvo coisas que não estão diante dela”
(Sokolowski, 2010, p. 107). Assim, a intencionalidade
do ato perceptivo, em seus diversos níveis, do orgânico ao ideativo, expressa-se através do corpo fenomenal
e configura-se no meio existencial. É dessa forma que
Merleau-Ponty (1945/1999) argumenta que espacialidade e esquema corporal convergem para o princípio ontológico do ser-no-mundo. E mais, o corpo como ser
físico está presente, mas sem desconsiderar sua
capacidade de transcendência. O corpo fenomenal é
compreendido como o lugar existencial do ser-no-mundo; seu ethos. Na fenomenologia, corporalidade é a relação indissolúvel do corpo com o tempo, com o espaço
e com o outro: a corporalidade não é apenas sinônima
de um “eu”, é também sinônimo de maneiras de viver
o tempo e o espaço.
O corpo é uma potência que nasce em conjunto com
um meio e se sincroniza com ele. Por isto também o tempo só existe como passado, presente e futuro na medida em que se relaciona com o ser. Para Merleau-Ponty,
portanto, o tempo não é apenas uma linha, mas antes,
uma rede de intencionalidades. No âmbito desta rede, a
consciência se volta para o mundo num modo de relação que não envolve uma compreensão racional a priori,
mas um movimento próprio de si mesma em direção ao
mundo, desde uma perspectiva pré-reflexiva. E é desta
maneira que se pode compreender a noção de sentido
também como intuição (Anschaunng), considerada em
fenomenologia fonte de autoridade para o conhecimento (Martins & Bicudo, 1989). De fato, a fenomenologia
de Husserl busca “uma intuição originária”, nos moldes
em que a descreve Dartigues (1973, p. 21): “se é verdade
que os fenômenos se dão a nós por intermédio dos sentidos, eles se dão sempre como dotados de um sentido
ou de uma “essência”. Eis por que, para além dos dados
dos sentidos, a intuição será uma intuição da essência
ou do sentido.”
Deste modo, infere-se que a intuição da essência se
distingue da percepção do fato. Ela é a própria visão do
sentido ideal que se atribui ao fato materialmente dado e,
ao mesmo tempo, o que se permite identificá-lo. MerleauPonty (1945/1999, p. 18) afirma que “porque estamos no
mundo, estamos condenados ao sentido” e, assim, leva-nos
a compreender o sentido também em termos de empatia,
que se realiza na experiência intersubjetiva:
O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o
sentido que transparece na intersecção de minhas
experiências, e na intersecção de minhas experiências
com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas
outras; ele é, portanto inseparável da subjetividade
e da intersubjetividade que formam sua unidade
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012
pela retomada de minhas experiências passadas em
minhas experiências presentes, da experiência do
outro na minha.
Podemos então compreender que as significações do
termo sentido – variando desde suas acepções físicas e
sensoriais até aquelas de cunho idealizado e relacional –
apontam para uma vida consciente baseada no campo da experiência corporal pré-predicativa e que se
desdobra em experiência reflexiva e intersubjetiva.
Deste modo, em toda percepção, tem-se também a
contradição entre a imanência e a transcendência,
que, na visão de Merleau-Ponty (1945/1999), são dois
elementos estruturais de qualquer ato perceptivo,
de modo que, sempre, objeto percebido é também
conhecido ao sujeito que o percebe (imanência).
Por outro lado, toda percepção de algo tem uma
não-percepção de alguma coisa que está para além
do dado imediato, e que a transcende. Em outras
palavras, toda vez que se tem consciência de algo,
abre-se a possibilidade de não conhecer outros aspectos relacionados ao objeto percebido. Deste modo,
quando estudamos um fenômeno temos apenas uma percepção parcial porque a experiência acompanha uma mistura de presença e ausência. “A percepção, então, envolve
camadas de sínteses, camadas de múltiplas presentações,
que são de dois tipos, atual e potencial” (Sokolowski, 2010,
p. 28). E a identidade de um objeto transcende suas múltiplas manifestações porque vai além delas.
Assim, o sentido como transcendência, na fenomenologia, é aquilo que ultrapassa a própria atividade e alcance da consciência. As noções de noese
e noema podem nos auxiliar aqui. Enquanto noese
é termo empregado para se referir à própria atividade da
consciência (sujeito intencionado), noema é usado em referência ao objeto (intuído) constituído por essa atividade, entendendo que há um mesmo campo de análise no
qual a consciência aparece como se projetando para fora
de si em direção a seu objeto e o objeto como fazendo referência aos atos da consciência (Dartigues, 1973). A noese e o noema ocorrem simultaneamente, em contínuo
movimento, porque não há objeto em si, verdade em si,
mas sempre em perspectivas e com sentido na esfera de
compreensão do sujeito. A transcendência seria, então, o
contínuo “pôr a descoberto” os diversos níveis que constituem o mundo da vida na busca de sentido.
Pode-se dizer, enfim, que a fenomenologia é um
método de transcendência em seu contínuo e progressivo desvelamento do ser, do mundo e do ser-no-mundo. É um constante conhecer-se e este conhecimento passa pelo corpo, pois este não pode
ser entendido como um simples organismo. Ele é
também cultura, transcendendo o aspecto físico e,
nas palavras de Merleau-Ponty (1945/1999, p. 257),
“o uso que um homem fará de seu corpo é transcendente com respeito a este corpo como ser simples-
150
mente biológico”. Então se o corpo não é somente
biológico, os comportamentos derivados dele também não o podem ser. Para ele o corpo sintetiza a ambiguidade (imanência/transcendência) do ser no mundo.
Ele não é, diretamente, a única forma de expressão, pois é
também um ser de linguagem, como expressão que modifica e transcende o fenômeno dado na percepção, ou seja,
transcende a si mesma, pois seu movimento vai sempre no
sentido de ir além das relações entre um mundo e outro.
A atitude fenomenológica e a redução fenomenológica são frequentemente denominadas transcendentais, tal como Husserl define o transcendental
e Sokolowski a descreve (2010, p. 67):
A palavra significa ir além, baseada na sua raiz latina,
transcendere, elevar-se sobre ou ir além, de trans e
scando. A consciência, mesmo na atitude natural, é
transcendental porque ela vai além de si mesma, até as
identidades e coisas que lhe são dadas. O ego pode ser
chamado transcendental à medida que é envolvido,
em cognição, no alcance das coisas. O ego transcendental é o ego ou o si mesmo como o agente da verdade.
A redução transcendental é o giro em direção ao ego
como o agente da verdade, e a atitude transcendental
é a instância que assumimos quando exercermos esse
ego e suas intencionalidades temáticas.
Vê-se, assim, que a transcendência está também relacionada ao sujeito. Para Bicudo (1999, p. 20), a transcendência, na fenomenologia, é “uma percepção retrospectiva do vivido, de modo que haja evidência dos fatos
geradores do noema.” Já Zilles (2001, p. 515) diz que “a
subjetividade realiza-se na medida em que se transcende a si mesma por opção da liberdade.” Este sujeito não
é apenas psicológico, um ser que vive no mundo,
mas um ser transcendente, aquele que vê o mundo como um conjunto de unidades de sentidos.
Poderíamos dizer, então, que a transcendência é o
sentido do sentido.
E é este mesmo sujeito que, em vendo – e vivendo – o
mundo como um conjunto de unidades de sentido, formula, a partir de sua experiência no mundo, os múltiplos
significados de um mesmo termo, os quais identificamos,
sob a forma de verbete, na composição dos dicionários
comuns. Podemos compreender, então, suas múltiplas
significações como um conjunto de modalidades expressivas que se configuram, no mundo da vida, da imanência à transcendência, como que condensadas num único
e mesmo termo: sentido.
3. Das Modalidades Expressivas ao Mundo da Vida
No mundo da vida, água não é apenas H2O. Ela é
muito mais: é agua que mata a sede, é agua refrescante,
é água solvente, é água da maré baixa ou alta, é água que
151
apaga o fogo, é água que afoga, é água que rega a planta,
é água purificadora, é água benta... Nenhum destes modos de ser água é menos verdadeiro que outro, embora se
saiba que, na ausência da água que mata a sede, a pessoa
morre. Daí a proposta husserliana de retorno às coisas
mesmas, tal como elas aparecem no mundo da vida, para
as pessoas de carne e osso. O mundo da vida apresenta
essa riqueza de possibilidades e a fenomenologia busca
estar alerta para captá-la em todas as suas facetas, e mais
ainda: entende que a ciência só tem valor se ela estiver
reconhecidamente comprometida com o mundo da vida.
Este, sim, é o que lhe oferece a fundamentação axiológica;
é dele, por ele e para ele que a ciência foi desenvolvida.
Nas palavras de Merleau-Ponty (1945/1999, p. 3): “Todo o
universo da ciência é construído sobre o mundo vivido,
e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos
primeiramente despertar essa experiência do mundo da
qual ela é expressão segunda.”
Desta perspectiva, então, qualquer formulação teórico-conceitual acerca de um objeto ou termo deve voltar-se inicialmente para os homens enquanto pessoas, para
suas vidas e realizações existenciais. E como o esclarecera Husserl (1935/2008, p. 12), vida aqui não é tomada
apenas no seu aspecto fisiológico, mas sim “vida ativa em
vista de fins, realizadora de formações espirituais – no
sentido mais lato, vida criadora de cultura na unidade
de uma historicidade”. Tal perspectiva implica em superar, pois, a dicotomia entre naturante e naturado, entre
verdade objetiva e verdade subjetiva, entre o ser real das
coisas e o seu parecer.
Ora, através do olhar fenomenológico, parece-nos que
o termo sentido e sua multiplicidade de significações é
uma ilustração de que a realidade não é única, estável ou
universal, como o quer o princípio da não-contradição.
Ao contrário, a realidade do mundo da vida é múltipla,
variante e relativa, dependendo do olhar que lancemos
sobre ela. E isso se dá não por uma falha conceitual ou
metodológica, mas pela própria natureza do mundo da
vida, que inclui tanto o ser como o parecer ser de qualquer coisa em que nele se apresente. Ou seja, a realidade
no mundo da vida se dá não apenas a partir do que dela
se mostra, mas também do que dela própria se transcende.
Esse modo de compreensão poderia ser apontado
como metafísico, no sentido mais tradicional do termo.
Mas, tal como o poeta homônimo de Fernando Pessoa,
Alberto Caeiro, nos mostra que há metafísica bastante em não pensar em nada, a fenomenologia criada por
Husserl vem mostrar que justamente a perspectiva positivista, que exige objetividade em lugar da expressividade, é que se caracterizaria como verdadeira metafísica.
Afinal, ela entende que podemos superar a suposta ilusão dos sentidos a partir de determinados procedimentos metodológicos. Ora, ao fazer isso, ela se funda sobre
um paradoxo: seria um determinado olhar, metodologicamente controlado, que nos levaria à verdade das coisas
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Artigo
Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica
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mesmas. Ou seja, sem se dar conta, a perspectiva positivista parte do princípio de que a objetividade não estaria no objeto em si, mas no olhar que ela mesma lança
para o objeto; a objetividade estaria no procedimento e
não na realidade; seria o olhar do cientista que atribuiria a objetividade à mesma. Ao qualificar o sentido, nas
suas mais variadas expressões, a fenomenologia assume
que a essência estaria na própria aparência das coisas,
compreendendo que faz parte das coisas parecerem diferentes sob diferentes olhares. Ou seja, é da natureza do
real mostrar-se e ocultar-se continuamente: as coisas se
mostram sob um determinado olhar, mas elas também
se escondem a esse mesmo olhar.
Do mesmo modo, se cada significado do termo sentido parece esconder o outro, ele também o mostra, não
apenas pela sonoridade ou grafia de uma mesma palavra
(sentido), mas pela dimensão de corporeidade e transcendência que se estendem desde sua concepção enquanto
sensorialidade, passando pelos campos da sensibilidade –
afeto e sentimento, da intersubjetividade – empatia e bom
senso, da racionalidade – pensamento, conceito e juízo,
mas realizando-se sempre no campo da espacialidade e
da temporalidade – direção, destino – e culminando no
campo da teleologia – propósito, finalidade.
Artigo
4. O Sentido dos Sentidos: entre o Buquê e o Jardim
Para compreendermos a noção de sentido em uma
perspectiva fenomenológica, podemos fazer uma analogia com o buquê de flores, tal como na semiologia de
Roland Barthes (1966/2008). Sabemos que o buquê é composto por várias flores individuais, mas o buquê é mais
que isso. Podemos dizer, acompanhando a Psicologia da
Gestalt, que o todo é maior que a soma de suas partes.
O mesmo vale para a questão do sentido. O sentido total
da experiência engloba todas as modalidades de sentido
apontadas no verbete de um dicionário, mas de modo integrado e interconectado. Assim, o que o corpo sente não
é separado do significado e da sensação, isto é, a experiência corporal só pode ser entendida como uma realidade subjetiva onde o corpo, a percepção dele e os significados a que remetem se unem numa experiência única
que vai além dos limites do corpo em si.
Se a ciência objetivista teve como consequência um
empobrecimento da rica realidade do mundo da vida, a
fenomenologia, ao resgatar a noção de sentido, vem propor
a compreensão da realidade humana na sua proposta de
retorno às coisas mesmas, de forma complexa, dinâmica,
com múltiplas possibilidades de significação. Diríamos
que o termo sentido é paradigmático em mostrar suas várias nuanças e, ao mesmo tempo, em superar a fragmentação da realidade. De alguma forma, a própria linguagem humana, através da polissemia do vocábulo sentido,
conseguiu apreender a polivalência e multiplicidade do
mundo perceptivo que não é o mundo meramente men-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012
surável. A palavra sentido se mostra como um símbolo
que contém múltiplos elementos, os quais, por sua vez,
remetem a tantos outros elementos simbólicos, ilustrando o modo como Amatuzzi (1996, p. 20), ao fundamentar
teoricamente o uso da versão de sentido, define símbolo:
aquilo “que em si mesmo “reúne”, põe junto uma série
de coisas que antes estavam separadas, e o faz intencionalmente”. Há, implícita nesta multiplicidade unificada
por meio de um mesmo símbolo, uma qualificação do
movimento perceptivo-intuitivo, nos moldes em que o
descreve Merleau-Ponty (1945/1999, p. 63):
(...) perceber no sentido pleno da palavra, que se
opõe a imaginar, não é julgar, é aprender com sentido imanente ao sensível antes de qualquer juízo.
O fenômeno da percepção verdadeira oferece, portanto, uma significação inerente aos signos, e do qual o
juízo é apenas a expressão facultativa.
Pensemos no beijo por exemplo. O beijo envolve o sentido do tato, do paladar, do olfato, mas também envolve
sentimento e um significado, que pode ser de paixão ou
de indiferença. Envolve também uma noção de direção,
podendo apontar para um desfecho da relação (um beijo
frio, por exemplo) ou para um aprofundamento da mesma
(um beijo apaixonado). E pode, ainda, conter elementos da
ordem do ideal – romântico, sagrado ou religioso – quando se realiza também na metáfora do beijar o sapo, no ato
de beijar a mão dos avós, ou no ritual de beijar o santo.
Esses sentidos não são vividos pelas pessoas de maneira
isolada, mas apreendidos como um todo. Portanto, um
conceito que se quer fiel e completo ao sentido deste verbo – beijar – há que se referir a todas essas significações
de modo intrinsecamente articulado.
Ao tentarmos descrever o buquê de sentidos, podemos falar dos diferentes aspectos separadamente, mas
apenas para fins didáticos, como fazem os dicionários
em cada item dos seus verbetes. Mas no mundo da vida
eles são experimentados sempre como um todo integrado. Não existe sensação pura quando se trata de experiência humana. O sentido enquanto percepção fisiológica
não existe separado do todo. Toda sensação é já imediatamente interpretação, significação. Um calafrio não é
só uma experiência fisiológica – contração involuntária
de músculos somáticos – mas pode ser significado como
medo ou quem sabe como a passagem de um espírito por
perto, como assim o interpretam alguns. Esta última forma de interpretar o calafrio não é menos verdade para
a fenomenologia do que aquela primeira, pois ela também emerge na interação dos humanos com as coisas.
O mundo, na perspectiva fenomenológica, é uma trama
de significação. O mundo é também o conjunto de significados que atribuímos a ele. Nós somos os agentes criadores da realidade e toda realidade só existe em função
de uma consciência que a apreende como tal. Qualquer
ponto de vista é apenas a vista de um ponto. Qualificar
152
Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica
(...) não é preciso perguntar-se se nós percebemos
verdadeiramente um mundo, é preciso dizer, ao
contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos. (...)
O mundo não é não aquilo que eu penso, mas aquilo
que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico
indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é
inesgotável.
Justamente por ser fugidio, o termo é paradigmático
do quanto é relevante ater-se à sintaxe enquanto tecido
conectivo dos juízes: todo significado é definido por relação. Um chapéu sobre a cabeça de um camponês é um
simples utilitário de proteção contra o sol; sobre a cabeça de uma dama de cerimônia, é um adorno; na fronte
de um cardeal, é um símbolo de poder; na mão estendida de um mendigo, significa um pedido de auxílio.
Do mesmo modo, um cachimbo na poltrona do escritório indica circunspecção e tranquilidade; no volante de
um veículo, extravagância; no interior de um quadro de
hospital, desrespeito e insensibilidade. (Fiorin & Platão,
1998). Ou seja, no mundo da vida, do mesmo modo como
no mundo mágico da ficção, o contexto – dimensão de
espaço e de tempo – interfere no significado das ações
dos personagens. Deste modo, sem o princípio metódico
da evidência no próprio mundo da vida, “a linguagem
comum é fugidia, equívoca, muito pouco exigente quanto à adequação dos termos”. É justamente por isso que,
nas situações onde seus meios de expressão são empregados “será preciso conferir às significações um novo
fundamento, orientá-los de modo original sobre esses
significados fundamentados em nova forma” (Husserl,
1931/2001, p. 31): a descrição da estrutura total da experiência vivida e seus respectivos significados para os
seres que a vivenciam.
Se cada item de um verbete de um dicionário comum,
ao remeter às diversas significações possíveis para o termo sentido, nos falam de rosas individuais, neste ensaio
o que buscamos alcançar foi o buquê. A fenomenologia
nos ajudou neste processo justamente por contrapor-se a
um determinado modo de fazer ciência psicológica que
privilegia os métodos meramente analíticos, de decomposição da realidade em partes, como se as partes fossem
mais importantes que o todo, ou como se apenas fosse
possível compreender o todo a partir da soma das partes. Ora, quando enviamos ou recebemos um buquê, se o
exame de cada rosa reduz-se à percepção da mesma como
pedúnculo, receptáculo, sépalas, estames, carpelos, antera, gineceu, etc, tal como faria o biólogo ao fragmentar
a flor em infinitas partes, o sentido do buquê, como um
todo, desaparece. Cadê a poesia que estava alí? Ora, no
mundo da vida, as rosas são vividas como beleza, como
romance, como amor, enfim, como significação. Podemos
153
fatiar a rosa inteira, mas nunca vamos encontrar toda a
beleza dela nas suas partes. E mesmo que as rosas não
falem, sua poesia só é apreendida no todo, como bem sabem os poetas.
Com isso, no entanto, não estamos afirmando que o
método analítico não sirva para nada e que deva, simplesmente, ser substituído. Propomos apenas a superação do
equívoco de acreditarmos na soberania de sua perspectiva. Estamos, portanto, chamando a atenção para a importância de se olhar também para o todo, pois é assim
que a realidade se apresenta em nossas vidas. A fragmentação da realidade obstrui a apreensão da multiplicidade
na unidade e respectiva amplidão do sentido das coisas,
posto que este só pode ser apreendido num movimento
de síntese, integrativo.
Se olharmos para o verbete-buquê – os sentidos do
sentido – apenas de modo analítico, estamos nos alienando do mundo da vida, justamente o jardim provedor de
todas as flores que o constituem. E ao fazemos isso, estamos condenando toda uma civilização ao padecimento
das duras consequências de uma perspectiva meramente
tecnicista, alienada do próprio solo que a fertiliza. É verdade que, ao nos voltarmos para o jardim – o sentido dos
sentidos, certamente que não encontramos aí apenas as
flores. Nele há ainda, dentre outras tantas coisas, os instrumentos do jardineiro, assim como também o estrume
que fertiliza o solo. Devemos reconhecer, no entanto, tal
como nos recomenda o poético Wittgenstein (1980/1996)
nos seus manuscritos, o que aí os distingue não é meramente o seu valor, mas – sobretudo – suas funções no jardim. Acreditamos que distinguir e reconhecer tais funções se torna absolutamente imprescindível tanto para a
ciência quanto para a prática psicológica que se queiram
realmente efetivas no mundo da vida.
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Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012
Artigo
o sentido dos sentidos, portanto, marca uma diferença
epistemológica, assim explicitada por Merleau-Ponty
(1945/1999, p. 13-14):
Marta H. Freitas; Rita C. Araújo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins
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Marta Helena de Freitas - Doutora em Psicologia pela Universidade de
Brasília (UnB), com Pós-Doutorado na University of Kent at Canterbury
(Inglaterra). Atualmente é Professora e Pesquisadora do Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica
de Brasília (UCB). Endereço Institucional: Universidade Católica de
Brasília, Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa, Mestrado em Psicologia. SGAN 916, Módulo B, W5 Norte (Asa Norte). CEP 70790-160,
Brasília, DF. Email: [email protected]
Rita de Cássia Araújo - Mestre em Psicologia pela Universidade
Católica de Brasília (UCB) e Psicoterapeuta na CLIMAI (Brasília).
Email: [email protected]
Filipe Starling Loureiro Franca - Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e Psicoterapeuta em Brasília.
Email: [email protected]
Ondina Pena Pereira - Doutora em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB), Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB).
Email: [email protected]
Francisco Martins - Doutor em Psicologia pela Universidade de
Louvain (Bélgica), Professor Titular da Universidade de Brasília,
Psiquiatra, Psicanalista, Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de
Brasília (UCB). Email: [email protected]
Recebido em 25.04.2012
Aceito em 26.09.2012
Artigo
Michaelis (1998/2009) – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. [Citado 22 abril 2012]. São Paulo: Melhoramentos. Disponível na World Wide Web: http://michelis.uol.
com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues
-portugues&palavra=sentido.
Sokolowski, R. (2010). Introdução à fenomenologia. (A. O.
Moraes, Trad.). São Paulo: Loyola.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012
154
A Força da Palavra em Nicolau de Cusa
A FORÇA DA PALAVRA EM NICOLAU DE CUSA
Power of the Word and According to Nicholas of Cusa
La Fuerza de la Palabra en Nicolás De Cusa
Sonia Lyra
Resumo: A partir do momento em que se transpõe a dialética dos símbolos, rumo à experiência mística, é a força da palavra
devidamente potencializada o que vai poder mover o ouvinte, uma vez que há uma força oculta por detrás de cada palavra.
A força das palavras aparece, como uma contracção da força da mente, que se ‘explica’ nas múltiplas palavras que são, no
mais fundo delas próprias, núcleos energéticos discursivos e que só podem ser entendidas nesse jogo dinâmico que se estabelece entre as coisas do mundo externo e seu referente interno, isto é, a mente. O discernimento é passado inicialmente,
como propõe Nicolau de Cusa, por imagens sensíveis, continuando a proposta de Jesus, que falou inicialmente por figuras,
mas disse também que chegaria a hora em que já não falaria por figuras, mas claramente, pois as palavras que de Deus recebeu, ele as deu aos homens cumprindo-se a profecia: no princípio era o Verbo (In principio erat verbum), no qual subjaz o
poder criador da palavra. A proposta do Cusano é que nesta teoria do conhecimento se reconheçam as limitações da palavra
e do discurso, inscrevendo-se a sua dialética no conhecimento intelectual da trindade, o qual, na unidade, ultrapassa tudo.
Palavras-chave: Nicolau de Cusa; Força da palavra; Dialética; Verbo.
Resumen: A partir del momento en que se transpone la dialéctica de los símbolos rumbo a la experiência mística, es la fuerza
de la palabra debidamente potencializada, lo que hará hacer estremecer al oyente, una vez que hay una fuerza oculta detrás
de cada palabra. La fuerza de las palabras aparece como una contracción de la fueza mental, que se ‘explica’ en las múltiples
palabras que son en lo más fondo de las mismas, núcleos energéticos discursivos y que solo pueden ser compreendidas en ese
juego dinámico, que se estabelece entre las cosas del mundo externo y su referente interno, esto es, la mente. El discernimiento
es pasado inicialmente como lo propone Nicolás de Cusa, por imágenes sensibles, dándole continuidad a la propuesta de Jesús;
que habla inicialmente por figuras, pero también disse que llegaría la hora en que no hablaría mas por médio de figuras, pero
claramente, pues las palabras que de Dios recibió, él se las dio a los hombres cumpliendo la profecia: En el pincipio era el verbo
(In principio erat verbum) en el cual subyace el poder crador de la palabra. La propuesta del Cusano es que en esta teoria de conocimiento sean reconocidas las de limitaciones de la palabra y del discurso, inscribiéndose en su propia dialéctica, en el conocimiento intelectual de la Trinidad, lo cual en la unidad lo ultra passa todo.
Palabras-clave: Nicolás de Cusa; Fuerza de la palabra; Dialéctica; Verbo.
Introdução
Um jornalista perguntou a Madre Tereza de Calcutá:
“Quando você reza, o que você diz a Deus?” E ela respondeu: “Não falo, escuto.” O jornalista então perguntou:
“O que Deus diz a você?” Madre Tereza respondeu: “Ele
não fala. Ele escuta. E se você não pode compreender isso,
não posso lhe explicar.” A epígrafe de meu livro: Nicolau
de Cusa: Visão de Deus e Teoria do Conhecimento (Lyra,
2012) aponta para essa “estranha” linguagem. Ela diz:
155
“Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra proferida pela boca de Deus.” Essa frase precisa ser entendida também no modo desse diálogo, assim como está
exposto por Madre Tereza para que nela se possa intuir
a força da palavra.
Sem a força da paixão presente na palavra, esta é apenas conceito, mas um conceito daquilo que já se conhece, ou assim se pensa conhecer, como esquematização
lógico-categorial ou conjectural que desemboca na assim
chamada ciência positiva.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012
Artigo
Abstract: From the moment in which the dialectics of symbols is transposed, toward the mystical experience, it is the power
of the word duly potentialized that will move the listener, once there is a hidden force behind each word. The power of the
words appears as a contraction of the strength of the mind that “explains” itself in multiple words that are, in their deeper selves, discoursive energetic cores and that can only be understood in this dynamic game that is established between the things
of the external world and its internal referent, that is, the mind. Discernment is passed initially, as Nicholas of Cusa proposed,
by sensitive images, continuing Jesus’ proposal that spoke at the beginning through images, however He also said that the time
would come when He would no longer speak through images, but clearly, for the words He received from God He[[he gave them
to men, thus fulfilling the prophecy: in the beginning was the Word (In principio erat verbum), in which lies the creative power
of the word. Nicholas of Cusa’s proposal is that in this theory of knowledge the limitations of the word and of the discourse are
acknowledged, registering its dialectics in the intellectual knowledge of Trinity which, in the unity, exceeds all.
Keywords: Nicholas of Cusa; Power of the Word; Dialectics; the Word.
Sonia Lyra
Jesus Cristo é o logos que, segundo ele mesmo, é “o pão
da vida” (Jo 6,35), o pão que, quem comer “viverá eternamente” (Jo 6,51). Este pão não é como aquele que os pais
comeram e pereceram, mas o pão da palavra. O mesmo
Cristo ainda disse: “Por que não reconheceis minha linguagem? É porque não podeis escutar minha palavra”
(Jo 8,43), e completa dizendo que “quem é de Deus ouve
as palavras de Deus” (Jo 8,47). Destas passagens, segue-se o porquê da vinda da palavra, pois disse ainda Jesus:
“para um discernimento é que vim a este mundo” (Jo 9,39).
O discernimento é passado inicialmente, como propõe
Nicolau de Cusa por imagens sensíveis. Continuando a
proposta de Jesus: “Disse-vos essas coisas por figuras.
Chega a hora em que já não vos falarei em figuras, mas
claramente vos falarei do Pai” (Jo 16,25). É quando Jesus
diz aos discípulos que a vida eterna está em que conheçam “o único Deus verdadeiro” (Jo 17,3), pois as palavras
que de Deus recebeu ele as deu aos homens cumprindo-se a profecia: no princípio era o Verbo (In principio erat
verbum) (André, 2006, p. 8), no qual subjaz o poder criador da palavra. A proposta do Cusano é que nesta teoria
do conhecimento se reconheçam as limitações da palavra e do discurso, inscrevendo-se a sua dialética no conhecimento intelectual da trindade, o qual, na unidade,
ultrapassa tudo.
O Verbo divino, ao se plurificar nas suas expressões,
que são o mundo das criaturas, em seus sinais e palavras sensíveis, é confirmado por Nicolau de Cusa quando ele afirma:
Artigo
De acordo com esta comparação, o nosso princípio
unitrino, pela sua bondade, criou o mundo sensível
como matéria e uma espécie de voz, na qual fez
resplandecer de modo vário o verbo mental, a fim
de que todas as coisas sensíveis sejam o discurso
de várias elocuções do Deus Pai, explicadas através
do Verbo, seu Filho, tendo como fim o espírito dos
universos, para que a doutrina do sumo magistério
transborde, através dos sinais sensíveis, para as
mentes humanas e as transforme perfeitamente num
magistério semelhante, de modo a que todo o mundo
sensível esteja em função do intelectual, o homem
seja o fim das criaturas sensíveis e Deus glorioso seja
o princípio, o meio e o fim de toda a sua actividade
(André, 2006, p. 9).
Segundo André (2006), no De filiatione Dei, o Cardeal
aponta o uno como o pai ou o gerador do Verbo, querendo dizer com isto que “tudo aquilo que é dito em qualquer palavra, significado em qualquer sinal e assim sucessivamente” (André, 2006, p. 9), exprime em forma de
palavra humana o verbo divino, sendo que na sua força
se fundamentam a força da palavra do homem e, simultaneamente, os seus limites. “A sua força, porque ela é a
expressão do verbo divino, os seus limites, porque é sempre uma expressão contraída e limitada pela finitude hu-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012
mana que dista infinitamente de plenitude de sentido da
infinitude divina” (André, 2006, p. 9).
Independente da possibilidade de morrer, devido à sua
natureza mortal, pode o homem chegar à experiência da
vida do espírito imortal em virtude do Verbo Encarnado
no homem Jesus Cristo, “in virtute verbi dei” (André, 2006,
p. 10). Nele a humanidade é o nexo de ligação entre a natureza inferior e a superior, isto é, da temporal e da eterna, e que se experimenta, em semelhança, pela fé e pelo
amor. É quando a sabedoria encarnada revela, com o seu
exemplo, o caminho para a vida, pelo qual ainda que se
morra se experimenta a ressurreição da vida, “que é tudo
o que se busca” (Vescovini, 1998, p. 132).
Tudo o que se busca, filosoficamente, é considerar a
força da palavra quase como se o nome fosse a representação precisa da coisa. Mas, se os nomes foram impostos
às coisas segundo a razão concebida pelo homem, então
os nomes não são precisos, pois uma coisa pode ser denominada com outros nomes talvez mais precisos. É por
isso que os desacordos não estão na razão que dá substância às coisas, mas nos vocábulos que são atribuídos
diferentemente às diversas razões das coisas. É em virtude da virtus ou força da palavra, cujo conceito coincide com sapientia, que se transfere o verbo divino para
os verbos humanos, sendo estes então “explicationes
da sapientia na sua unidade mais profunda e absoluta”
(André, 2006, p. 10).
Nicolau de Cusa desenvolve essa “dinâmica expressiva e manifestativa das palavras” (André, 2006, p. 13)
em várias de suas obras, entre elas no De pace fidei;
De principio; De mente e Compendium. O Cusano, da
mesma forma que Agostinho, afirma que a palavra que
soa exteriormente
é um sinal da palavra que brilha no interior, à qual
melhor convém o nome de verbo. Na verdade, a palavra
que os lábios pronunciam é a voz do verbo e chama-se também verbo porque aquele a assume para que
apareça exteriormente (André, 2006, p. 12).
Como falar é manifestar, o Cardeal quer traduzir em
teoria a palavra interior que, por si mesma, já é uma tradução no “nome preciso e indizível” (André, 2006, p. 13),
do qual a linguagem humana é a explicatio.
Da mesma forma, Platão diz que “a verdade é anterior
aos vocábulos, aos discursos, ou seja, às definições dos
vocábulos e às imagens sensíveis, e ele traz como exemplo, o desenho do círculo, do seu nome, da sua definição
verbal e do seu conceito” (Vescovini, 1998, p. 133), ainda que Dionísio Areopagita recomende que se dê “mais
atenção à intenção que à força da palavra” (Vescovini,
1998, p. 134). De qualquer modo, para Nicolau de Cusa,
tudo que pode ser dito é o verbo, é a manifestação de
um verbo único, que se constitui na arte da fala, “uma
arte infinita, não no seu resultado, mas no seu processo
e no seu dinamismo” (André, 2006, p. 13), quando então
156
A Força da Palavra em Nicolau de Cusa
157
‘hora’ – para então ajustar-se, ‘adequar-se’ com ele, isto
é, com as coisas” (Fogel, 2003, p. 53). Vê-se então que
ser simpático é ajustar-se, supondo-se que verdade seja
mesmo a adequação, a correspondência, a consonância
com as coisas.
No entanto, segundo Vescovini, na obra La Caccia
della sapienza (1998), o Cusano afirma que ninguém esteve mais atento a essa questão do que Aristóteles, para
quem “aquele que forjou todos os nomes sabia perfeitamente ter expresso isto que sabe nos seus nomes e, como
desenvolver esta ciência, fosse encontrar a perfeição do
saber” (Vescovini, 1998, p. 134). Mas, apesar de tudo isto,
chega o momento em que o buscador da sabedoria precisa negar todos os nomes que o homem impôs a Deus.
Negar os nomes é diferente de interpretá-los. A interpretação requer alguns princípios; assim como fez Nicolau
de Cusa em De genesi, ao partir da idéia de que todos os
que falaram da Gênese fizeram-no de modos diversos.
Usando o tema da Gênese como base a interpretação aponta inicialmente para “a necessidade de contextualizar o
discurso bíblico na capacidade humana de compreensão
e de apreensão” (Vescovini, 1998, p. 322); em seguida
aponta para “a transformação do movimento interpretativo num movimento de assimilação ao idem, ou seja, de
confluência para o idem indizível, por um processo de relativização das formas contraídas da expressão humana”
(Vescovini, 1998, p. 322), e finalmente entendendo que
“a percepção de que as interpretações dos sábios e Padres
da Igreja não são senão modos diversos de apreensão do
idem absoluto” (Vescovini, 1998, p. 322), que cada qual
procura representar de modo assimilativo.
É desse modo que a interpretação dos textos bíblicos,
filosóficos, teológicos ou místicos, funciona igualmente
para todos, segundo esses princípios. Mesmo as expressões religiosas, ainda que permeadas “pela força da sabedoria inefável” (Vescovini, 1998, p. 325), não sejam senão
conjecturas. Presente já no De intellectu et intelligibili de
Alberto Magno1, está a afirmação de que “o intelecto é o
ponto para o qual tendem todas as filosofias” (Vescovini,
1998, p. 134). É onde, para o teólogo Alberto, se articulam
a natureza do pensar com a natureza da graça, apontando para uma visão beatífica do intelecto divino que é a
partir de onde falam todos os filósofos, isto é, de uma teofania – manifestação ou revelação de Deus.
Na medida em que, para Alberto, as figuras do filósofo e do profeta tendem a se sobrepor, esse homem
pode se elevar pelo pensamento ao “intelectus divinus”
(Vescovini, 1998, p. 308). Citando Avicena, Hermes e
Homero, Alberto continua dizendo ousadamente que o filósofo é nexus dei et mundi, tendo uma função na liturgia
cósmica. Instrumento de uma espécie de palingenesia2,
Cf. A. Combes, Jean Gerson commentateur dionysien. Texte inédit.
Démonstration de son authenticité. Appendices historiques, Paris,
Vrin, 1940. [1973].
2
Renascimento, regeneração. Fil. Rel. O mesmo que metempsicose.
Fil. Entre os estoicos, retorno periódico e incessante dos mesmos
fenômenos; eterno retorno. Aulete Digital.
1
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012
Artigo
a sua limitação a transforma na busca pela palavra infinita, que, oculta no silêncio de sua plenitude, é a fonte
de todas as palavras. No entanto, no segundo capítulo do
De docta ignorantia, o Cusano chama a atenção num esclarecimento preliminar para o fato de que, aquele que
quer atingir o sentido do que está para ser dito deve elevar o intelecto “para lá da força das palavras, mais do
que insistir nas propriedades dos vocábulos que não podem adaptar-se convenientemente a tão elevados mistérios intelectuais” (Cusa, 2003). Os exemplos dados, ele os
utilizará como guias para a elevação do plano das coisas
sensíveis para o intelectual.
O uso das matemáticas, por exemplo, tem como finalidade confrontar as etapas metodológicas necessárias,
partindo de uma lógica conjectural, edificada, segundo
André, “sobre o princípio de não-contradição” (André,
2001, p. 321); seguindo para uma dialética coincidencial,
edificada “sobre o princípio da coincidência dos opostos” (André, 2001, p. 321) e finalmente desembocando
numa dialógica transsumptiva, edificada “sobre a consciência da distância, mas também sobre a natureza dialógica do movimento pelo qual nos sentimos chamados a
transpor essa distância” (André, 2001, p. 321), reflexão
esta que conduz para a experiência do infinito em que
já não há figuras.
Uma vez que se pode considerar a questão sobre a
nomeação de Deus ou de se saber o que Deus é e como é
possível experimentá-lo como o centro ou o princípio da
coincidência, como o lugar a partir do qual se pode compreender toda a filosofia de Nicolau de Cusa, pode-se também deduzir que essa teoria do conhecimento proposta
pelo Cusano surge na introdução do De docta ignorantia
como “uma hermenêutica dos nomes divinos, profundamente influenciada pela obra do Pseudo-Dionísio, como
já foi referido, e que só terminará com a última obra, o
De ápice theoriae” (Cusa, 2003, p. XXI).
No ápice da teoria, experiência (afeto, humor) e método (compreensão da realidade), próprios da dinâmica de
realização da realidade, co-incidem numa transsumptio
cusana, que, para Fogel (2003), “se constitui num pôr-se
no mesmo tônus, no mesmo “tom”, ou seja, na mesma experiência, na mesma origem; trata-se assim de um sintonizar-se, de um sincronizar-se com a “coisa” – assim se
é co-originário e co-partícipe” (Fogel, 2003, p. 49). O conhecimento torna-se então simpatia, paixão. É a experiência do logos, o sentido e a força da palavra nela contida
e por ela perpassada.
É o momento em que a força da palavra se torna conhecimento, em que o problema do conhecimento e da
palavra é o mesmo que o problema do real. “É nessa
hora, nesse contexto de intensidade máxima do pensamento, nessa hora de radical concretização da essência
do homem, que é preciso ouvir aquela afirmação: viver,
existir, ser homem, no modo mais radical ou essencial
possível, é conhecer” (Fogel, 2003, p. 52). É transpor-se
para este ou aquele humor “o necessário da ocasião, da
Sonia Lyra
o filósofo aparece em Scotus Erigena e Mestre Eckhart
numa imensa lista de citações, operando como que uma
fusão da “abstractio filosófica e da ablatio místico-teológica” (Vescovini, 1998, p. 312). Naturalmente surgem críticos, como Gerson, que preferem a visão de Agostinho,
Dionísio e São Boaventura, que, a seus olhos, por não
serem filósofos, têm mais direito de falar da ablatio por
serem cristãos. O conteúdo de toda essa busca filosófico-teológica e mística é definido por al-Farabi como “a união
do filósofo com o intelecto absoluto [séparés]” (Vescovini,
1998, p. 329), em outras palavras, como uma via que se
adquire, objeto de um trabalho que se supõe seja progressivo. Mestre Eckhart denominou esse homem da busca de
“homem nobre”, “homem pobre” ou “homem desapegado”
(Vescovini, 1998, p. 330). Discípulo de Alberto, Eckhart
“continuou em teologia a obra compilada por seu mestre
na filosofia” (Vescovini, 1998, p. 333).
O modelo do homem desprendido (l´home détaché)
é Jesus Cristo, que na exegese de Lucas (19,12) aparece
como um homem de nobre origem que parte para uma
região distante a fim de ser investido da realeza e então
voltar. Essa metáfora aponta para a necessidade de superação, de “ultrapassamento do saber em direção ao Verbo”
(Vescovini, 1998, p. 336), quando então o modelo da vida
bem-aventurada é cristológico. Encontrar esse fundo sem
imagens, onde a ética e a filosofia estão para lá de todos
os nomes de Deus, é a verdadeira pobreza, é quando filosofar e contemplar
Artigo
consiste em “reentrar” em seu próprio fundo e, estando lá, “agir” “sem porque”, “nem por Deus, nem
por sua própria felicidade, nem por quem esteja fora
de si, mas unicamente em consideração disto que é
em si seu ser próprio e sua própria vida (Vescovini,
1998, p. 341).
No fundo, afirma De Libera, “Eckhart não diz nada
além do que disse Orígenes: toda a filosofia já está
na Escritura” (Vescovini, 1998, p. 350), especialmente no Novo Testamento, mais especialmente ainda, no
Evangelho segundo São João.
A partir do momento em que se transpõe a dialética
dos símbolos, rumo à experiência mística, é a força da palavra devidamente potencializada o que vai poder mover
o ouvinte, uma vez que há uma força oculta por detrás de
cada palavra. A força das palavras aparece, diz André:
“Assim como uma contracção da força da mente, que se
‘explica’ nas múltiplas palavras que são, no mais fundo
delas próprias, núcleos energéticos discursivos e que só
podem ser entendidas nesse jogo dinâmico” (André, 2006,
p. 18), que se estabelece entre as coisas do mundo externo e seu referente interno, isto é, a mente.
É assim que em seu desdobramento, o Verbo, Jesus
Cristo, “não sendo cognoscível neste mundo onde, no âmbito da razão, da opinião, da doutrina, somos conduzidos,
através de símbolos, pelas coisas desconhecidas ao des-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012
conhecido, só é apreendido onde cessam as persuasões e
começa a fé” (Cusa, 2003, p. 173). Uma vez que o conhecimento intelectual é dirigido pela fé, visto ser uma explicatio da fé, onde a fé não for sã, aí também não é possível um conhecimento intelectual verdadeiro, conduzindo nesse caso à debilidade dos princípios e fundamentos.
Esta fé é o próprio Jesus Cristo, uma vez que como diz São
João, é a própria encarnação do Verbo, a douta ignorância.
E o Cusano finaliza dizendo que, “quando nos esforçamos por olhar com os olhos intelectuais, caímos na escuridão, sabendo que dentro dessa escuridão está o monte
no qual só é permitido habitar àqueles que são dotados
de intelecto” (Cusa, 2003, p. 173). São estes os capazes de
compreender incompreensivelmente que “toda palavra
corporal é sinal do verbo mental” (Cusa, 2003, p. 174) e
que todas as coisas criadas são, da mesma forma, “sinais
do Verbo de Deus” (Cusa, 2003, p. 174).
Esse conhecimento se manifesta gradualmente através da fé, pela qual se ascende a Cristo, isto é, Cristo é a
causa de todo verbo mental corruptível, pois ele é a razão, o verbo incorruptível. Cristo é a própria razão encarnada de todas as razões, porque “o verbo se fez carne”
(Cusa, 2003, p. 175).
1. A Definição que Tudo Define
De acordo com Nicolau de Cusa, todo conceito humano é “conceito de algo uno” (Cusa, 2008, p. 197), isto é,
toda definição que tudo define é não outro que o definido.
É a definição que, acima de tudo, nos faz saber. Em outras palavras, “a razão é a definição” (Cusa, 2008, p. 29).
O Cusano diz que, talvez, seja Dionísio quem mais se
aproximou desse entendimento, quando, ao chegar ao
fim da Teologia Mística, afirma que “o criador nem é algo
que possa ter nome nem é algo outro” (Cusa, 2008, p. 35).
Sendo Deus princípio de todos os nomes assim como das
coisas, e ainda que o próprio princípio possa receber muitos nomes, nenhum nome lhe pode ser adequado. Não se
podendo constatar que nenhum outro vocábulo dirige melhor a visão humana até o primeiro princípio, é denominado, por isso, “li no-otro” (Cusa, 2008, p. 37). É quando
se pode ver que “Deus é não-outro que Deus e que algo
é não-outro que algo, e que nada é não-outro que nada,
e que não-ente é não outro que não-ente” (Cusa, 2008, p.
39). É quando se vê então que não-outro é a definição que
antecede toda definição, sendo, pois, o significado de li
o que mais se aproxima do inominável nome de Deus.
Experimenta-se assim que o olhar sensível, sem a
luz, nada pode ver, e que a cor não é senão a determinação ou a definição da luz sensível, sendo então que “a
luz sensível é o princípio do ser e do conhecer o visível
sensível” (Cusa, 2008, p. 43); da mesma forma, o som é
o princípio do ser e do conhecer o audível. Suprimido o
não-outro, segundo o Cardeal, nada resta da realidade
nem do conhecimento.
158
A Força da Palavra em Nicolau de Cusa
é a razão mais adequada e o discernimento e a medida
de tudo o que é, para que seja; e o que não é para que
não seja; e o que pode ser para que possa ser; e o que
é assim para que assim seja; e o que é movido, para
que se mova; e o que está em pé, para que permaneça
em pé; e o que vive, para que viva; e o que entende,
para que entenda; e do mesmo modo, tudo (Cusa,
2008, p. 59).
É, pois, necessário que o não-outro defina a si mesmo como, da mesma forma, conceituando e nomeando
tudo aquilo que pode ser nomeado. Antes do conceito
está portanto o não-outro, o que significa que o conceito
é “não-outro que conceito” (Cusa, 2008, p. 197). Em consequência disso, o não-outro é denominado de conceito
absoluto, o qual pode somente ser visto com a mente, ainda que não possa ser conceituado. O não-outro, não conceituável, no entanto, ao definir-se a si mesmo, se mostra
trino. Denominar a trindade como “unidade”, “igualdade”
e “nexo” é um modo de aceder ao uno, pois são esses os
termos nos quais “reluz o não-outro” (Cusa, 2008, p. 65)
de modo mais claro. Tratando-se de definições, os termos
“isto”, “isso” e “o mesmo”, segundo o Cusano, “imitam de
modo mais brilhante e mais preciso o não-outro” (Cusa,
2008, p. 66, 67), embora sejam termos menos usados.
É quando, ao definir-se a si mesmo, o primeiro princípio, significado por meio do não-outro, “nesse movimento
definido a partir do não-outro, se origina do não-outro e
também a partir do não-outro e é originado o não-outro,
no não-outro termina a definição” (Cusa, 2008, p. 67).
Qualquer apreensão somente poderá ser intuída para
além da capacidade humana, através da contemplação,
pois de outro modo não seria possível dizê-la.
Sendo, portanto, outro que o não-outro, Deus “é em
tudo, ainda que nada de tudo” (Cusa, 2008, p. 71), o que
significa um cessar de tudo que é e que não é, caso cesse o não-outro. A proposta de Nicolau de Cusa é que se
veja no inominável não a privação do nome, mas, antes,
o “antes de todo nome” (Cusa, 2008, p. 73). É este o modo
como o desconhecido reluz no conhecido cognoscitivamente, do mesmo modo que a claridade do sol reluz sensivelmente e que com a visão da mente se alcança por
sobre ou fora de toda compreensão.
159
Tratando-se, porém, do fato de que não se pode explicar nada sem a palavra e só podendo fazê-lo através
do termo “ser”, deve-se assim proceder para que os que
ouvem compreendam. Convém, diz o Cusano, que aquele que especula opere
como o que vê a neve através de um vidro vermelho, o
qual vê a neve e atribui a aparência do vermelho não à
neve, mas ao vidro; da mesma maneira opera a mente;
por meio da forma vê a não-forma (Cusa, 2008, p. 93).
O não-outro é, então, tanto princípio do ser, “através do qual a alma tem o ser, como princípio do conhecer, pelo qual conhece e, como princípio do desejar, pelo
qual não somente tem o querer, senão que, especulando
seu princípio unitrino naqueles princípios, ascende à sua
glória” (Cusa, 2008, p. 95). Pode-se ver então que toda
criatura é manifestação do mesmo criador, que se define a si mesmo, ou
da luz que é Deus, que se manifesta a si mesma; como
se fosse a exibição da mente que se define a si mesma;
que para os presentes se faz pela elocução viva e para
os distantes por meio da mensagem ou da escrita
(Cusa, 2008, p. 233).
Dialogar é a metáfora mais precisa para designar o
projeto filosófico de Nicolau de Cusa. Os nomes impostos
pela razão são sempre passíveis de um excedente, de um
mais e de um menos, ou seja, de proporção e de comparação e, consequentemente, partem das oposições relativas entre os contrários.
A preferência de Nicolau de Cusa pela teologia negativa ocorre para que possa negar a adequação de todo
nome criatural para com Deus e com isso evitar a idolatria, empurrando, por assim dizer, o intelecto no sentido de situá-lo para além da afirmação e da negação,
tentando captar formulações “que expressem a captação de Deus como coincidência dos opostos” (Cusa, 2008,
p. 251). O Cusano propõe ainda, através da negação e pelo
conceito de não-outro, a negação da disjunção comparativa, bem como a negação da própria conjunção. Nega
não só que o primeiro princípio seja ou não seja, como
se poderia fazer por meio da linguagem intelectual da
coincidência, mas chega ao ponto de negar essa mesma
linguagem que afirma que o primeiro princípio é e não
é. Isso faz com que eleve o intelecto, que é a raiz da razão, e dos termos intelectuais que são a raiz dos racionais, para a busca do primeiro princípio que é anterior à
coincidência dos opostos.
Conclui que, nessa teoria do conhecimento, os nomes
intelectuais onde os contrários coincidem, são menos
inadequados, uma vez que uma linguagem divinal que
supere tanto a razão quanto o intelecto pode ser apenas
reconhecível, não, porém, praticável.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012
Artigo
Tal conhecimento somente pode ser entendido por
meio de si mesmo, não podendo ser expresso de outra
maneira. Não pode ser afirmação nem negação, e só pode
ser percebido pela coincidência dos opostos, sendo visto “antes de todo acréscimo e de toda supressão” (Cusa,
2008, p. 53), isto é, o não-outro de modo nenhum pode
ser alterado ou mudado pelo que quer que seja.
Nessa teoria do conhecimento, que, por assim dizer, desemboca no conceito de não-outro, o não-outro,
ele mesmo,
Sonia Lyra
Referências
André, J. M. (2001). Coincidência dos opostos e concórdia:
caminhos do pensamento em Nicolau de Cusa. Actas do
Congresso Internacional realizado em Coimbra e Salamanca
nos dias 5 a 9 de Novembro de 2001, pp. 213 a 243. Separata,
Coimbra: Faculdade de Letras.
Fogel, G. (2003). Conhecer é criar. Um ensaio a partir de F.
Nietzsche. São Paulo: Editora UNIJUI, Discurso Editorial.
Lyra, S. R. (2012). Nicolau de Cusa: Visão de Deus e teoria do
conhecimento. Curitiba: Biblioteca Ichthys.
Vescovini, G. F. (1998). Il pensiero di Nicolau Cusano. Turim:
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André, J. M. (2006). Nicolau de Cusa e a força da palavra. Revista
filosófica de Coimbra, n. 29, (pp. 03 a 31).
Cusa, N. de (2003). A douta ignorância. (J. M. André, Trad.).
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (Original publicado em 1440).
Recebido em 17.05.11
Aceito em 25.03.12
Artigo
Cusa, N. de. (2008). Acerca de lo no otro, o de la definición que
todo define. Introducción, J. M. Machetta y K. Reinhardt,
p. 197 (J. M. Machetta, Trad.). Buenos Aires: Editorial Biblos.
(Edición bilíngüe)
Sonia Regina Lyra é Psicóloga - Analista Junguiana, Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Doutora em
Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
e Pós-Doutoranda em Humanidades e Saúde pela Universidade Federal
de São Paulo. É Diretora do Ichthys – Instituto de Psicologia e Religião
(www.ichthysinstituto.com.br). Email: [email protected]
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012
160
Tédio e Trabalho na Pós-Modernidade
TÉDIO E TRABALHO NA PÓS-MODERNIDADE
Boredom and work in the post-modernity
Apatia existencial y trabajo en la pos modernidad
K arina Okajima Fukumitsu
Júlia Yoriko Hayakawa, Suzan Emie Kuda, Elisa Harumi Musha, Tauane Cristina do Nascimento, Bruna Bezerra Oliveira,
Elisabete H ara Garcia Rocha, Daiany A parecida A lves dos Santos, K aren Ueki, Lucas Palhari Vasconcelos
Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar as relações entre tédio existencial, tempo e trabalho na pós-modernidade. O trabalho considera duas perspectivas: a primeira, o caráter que impede o trabalhador de se apropriar do tempo tornando-se entediado; a segunda, a dimensão facilitadora para o serviço que faz sentido ao trabalhador. Na sociedade pós-moderna,
percebe-se um esvaziamento de significados devido à demanda de produção técnica que, associada ao tédio, resulta na perda
de sentido para o trabalhador. Nesse contexto, o homem que busca preencher seu tempo por meio das inúmeras ocupações não
se permite entrar em contato com seu projeto existencial. Entretanto, a vantagem da constatação do tédio existencial favorece a
autenticidade e permite possibilidades de ressignificações para a compreensão do tempo vivido.
Palavras-chave: Tédio existencial; Trabalho; Tempo.
Abstract: This present article there is how objective show the established relation between the existential boredom, time and
work in the post-modernity. The work is seen from two perspectives: the first is about a one negative character; and the second,
a positive dimension. In the post-modernity society, there is one emptying of your positive mean that associate with boredom
can result in lose sense. In this context, the man to fill search your time through everyday occupations and as soon as the work
to show like central factor in your life, can create to mount up activities that don´t permit enter in contact with your existential
project. However, the existential boredom can open to way to new possibilities of the meet with future reframes.
Keywords: Existential boredom; Work; Time.
Resumen: El siguiente artículo tiene como objetivo presentar las relaciones entre la existencia y el burrimiento, tiempo y trabajo en la pos modernidad. El trabajo considera dos perspectivas: la primera, el carácter que impide al trabajador de apropiarse del tiempo volviéndose tedioso; la segunda, la dimensión facilitadora para el servicio que da sentido al trabajador. En la sociedad post-moderna, se percibe una carencia de significados debido a la demanda de producción técnica que, asociada a la
monotonía, resulta en la perdida del sentido para el trabajador. En este contexto el hombre que busca satisfacer su tiempo por
medio de las innumerables ocupaciones no se permite entrar en contacto con su proyecto esencial. Entretanto, la ventaja de
la constancia de apatía existencial favorece a la autenticidad y permite posibilidades de re significación para la comprensión
del tiempo vivido.
Palabras-clave: Apatía existencial; Trabajo; Tiempo.
A ação e ocupação humana estão intrinsicamente relacionadas ao tempo. Apesar de o trabalho ser reconhecido
como uma atividade central, que ocupa quase totalmente o tempo e espaço do cotidiano humano, torna-se crescente o número de trabalhadores que não reconhecem o
ambiente profissional como um espaço de realização e
possibilidades.
No contexto pós-moderno, as informações sobre bens
de consumo podem provocar no homem a falsa percepção de que ele é o que produz, tornando-o refém de um
status quo e de uma exigência para produzir cada vez
mais. Assim, o dilema entre ser, ter e parecer se instala.
O presente artigo tem o objetivo de estabelecer relações entre tédio e trabalho na pós-modernidade, segun-
161
do a concepção fenomenológico-existencial que além de
ser uma visão preocupada com as questões existenciais,
está também comprometida com o modo de o ser humano apoderar-se de sua existência.
O mundo moderno é demarcado por dois tempos: o
cronológico e o vivencial. Sendo assim, o trabalho é apresentado no estudo como uma ocupação do ser humano
associada ao tempo.
Chauí (1995, p. 241) nos ensina que:
Somos seres temporais – nascemos e temos consciência da morte. Somos seres intersubjetivos – vivemos na
companhia dos outros. Somos seres culturais – criamos a linguagem, o trabalho, a sociedade, a religião,
a política, a ética, as artes e as técnicas, a filosofia e
as ciências.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012
Artigo
Introdução
Karina O. Fukumitsu; Júlia Y. Hayakawa; Suzan E. Kuda; Elisa H. Musha; Tauane C. Nascimento; Bruna B. Oliveira;
Elisabete H. G. Rocha; Daiany A. A. Santos; Karen Ueki & Lucas P. Vasconcelos
Reflete, portanto, sobre o tempo quando vivenciado
pelo esvaziamento de significados e, concomitantemente,
sobre a voracidade que impele o ser a buscar novidades
para evitar a constatação do vazio existencial.
Considera-se também nesse estudo o tédio e a falta de
sentido no trabalho, e a fuga do tédio por meio do trabalho, contemplando a compreensão das pessoas que trabalham demasiadamente, os workaholics.
O tempo permite tanto compreender o existente humano em seu ser, quanto qualquer modo de ser possível e, por esse motivo, nas duas modalidades de tempo
supracitadas, o tédio emerge e pode ser compreendido
como uma das manifestações da angústia do indivíduo
moderno que projeta sua inautenticidade provocada pelo
esquecimento do ser.
Artigo
1. O Homem e o Tempo na Pós-Modernidade
O homem é possibilidade de ser e se relaciona com
o tempo não apenas objetiva e mensuravelmente, mas o
experiencia de maneira singular e própria. Logo, o tempo não é, mas se temporaliza, porque produz a si mesmo
de diferentes modos: temporalidade originária, tempo do
mundo e tempo comum (Reis, 2005).
O tempo comum tem origem na databilidade do tempo
cronológico (kronos), o que resulta uma série de instantes
idênticos e não relacionados entre si. Em geral, o ser humano não se relaciona com o tempo de outro jeito a não
ser aquele mensurável que remete ao tempo do relógio, ao
aqui e agora, ao ontem e ao amanhã (Josgrilberg, 2007).
Em contrapartida, apresentar o tempo somente como uma
somatória de eventos do presente reduz outras possibilidades de compreensões. Desse modo, Kirchner (2007,
p. 187) questiona: “Será que, quanto mais o tempo é exclusivamente mensurado e cronometrado, menos experiências as pessoas fazem com o tempo junto à ocupação
do mundo e como tempo da temporalidade da presença?”
O autor se baseia na consideração de que responder
a tal questão seria um equívoco e ainda reflete sobre o
fato de que mensurar e cronometrar o tempo só se torna viável pela possibilidade de a contagem já ser sempre
acessível ao próprio ser.
Josgrilberg (2007) aponta também para a interpretação
ontológica de Heidegger sobre a experiência do tempo que
constitui o próprio Dasein, o existente humano. Na mesma direção, Bilibio (2005, p. 78) tenta “(...) compreender
a experiência do tempo de modo fenomenológico a partir da própria existência humana e de sua finitude (...)”.
De acordo com Minkowski (2011), tanto a ideia de
tempo mensurável quanto a noção de desorientação no
tempo não esgotariam o fenômeno do tempo vivido e,
dessa forma, é possível desorientar-se no tempo em alguns momentos. A monotonia gerada por essa desorientação leva ao tédio que, por sua vez, gera sofrimento nas
pessoas que lutam contra esse fenômeno essencialmen-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012
te temporal. Para o autor, o tempo apresenta um excesso
de imagens dinâmicas e artificiais que aparecem constantemente e se relacionam a eventos do mundo exterior
e/ou da vida íntima do ser. Sendo assim, a vida segue
um curso violento, levando a uma sucessão de imagens e
acontecimentos que não oferecem nenhum apoio à necessidade de refletir, tornando-a um turbilhão de episódios.
2. O Ser-no-Mundo na Pós-Modernidade
É o homem que precisa se adequar ao lugar e ao tempo? Ou deve-se pensar o contrário: é o lugar e o tempo
que precisam ser adequados ao homem? Para elucidar
tais questões, pode-se compreender o tempo e o espaço por meio da mitologia grega em torno dos mitos de
Kronos e Kairós.
Kronos, de acordo com a mitologia, era um dos deuses
que receava a realização da profecia de que seria destronado por um de seus filhos, motivo pelo qual os devorava. Zeus, um desses filhos, foi poupado da morte e escondido por sua mãe, retornando para reivindicar o trono e
exigindo que Kronos libertasse seus irmãos Ades, Hera,
Possêidon, Héstia e Deméter. Zeus expulsou então Kronos
do Olimpo e se tornou imortal, poder concedido também
aos irmãos, enquanto seu pai foi jogado ao limbo. Kairós,
segundo a lenda, demarca o tempo vivido.
A sociedade contemporânea, igualmente, pauta-se no
tempo cronológico, ou seja, em Kronos, sendo este o útil,
o sequencial, que se contrapõe ao tempo vivenciado e
representado por Kairós. Nesse sentido, o trabalho pode
se embasar nas concepções de Kronos e não permitem
que o indivíduo se aproprie de seu projeto existencial.
Em contrapartida, o apropriar-se do tempo relaciona-se
à concepção pertencente ao tempo vivenciado, isto é,
Kairós, que possibilita a reflexão sobre a ação e se aproxima do vazio fértil.
Vazio e solidão fazem parte da condição de singularização. Ao contrário, o anonimato é o esforço da evitação
do contato com a angústia. É pela manutenção do anonimato que o ser humano encontra lugar para devolver
a aparência de que tudo está bem e que nada precisa ser
alterado. É pela constatação da angústia e vivência de
acolhimento do vazio existencial que o homem desperta
de sua condição de ser-no-mundo. Nesse sentido, a diferença entre estar-no-mundo dos homens e ser-no-mundo
é apontada, pois estar-no-mundo dos homens significa
seguir determinismos e a justificativa causal de que o
homem é produto do meio, restando-lhe apenas o quietismo e o anonimato. Em contrapartida, o ser-no-mundo
significa habitar, atuar sobre e no mundo de modo que
possa interferir, modificar, inventar, criar e sobretudo,
engajar-se e exercitar sua transcendência. E assim como
Sartre (2010) ensina “O quietismo é a atitude daqueles que
dizem: ‘Os outros podem fazer aquilo que eu nao posso’
(...) só existe realidade na ação.’” (pp. 41-42)
162
Tédio e Trabalho na Pós-Modernidade
3. A Satisfação é Encontrada no Ser, Ter ou no Parecer?
O homem busca a satisfação das necessidades e a expressão das próprias emoções. E, por muitas vezes, acredita que, se for considerado bem-sucedido profissionalmente ou se ganhar muito dinheiro, garantirá seu lugar
de pertencimento. Adota então, várias estratégias para
manter o status quo, tornando-se aprisionado pela ideia
de que para ser visto e reconhecido, precisa dedicar seu
tempo somente ao trabalho. Ou quando sua competência é testada e a insegurança se instala, o olhar do outro
é perseguido como um pedido de aprovação, e o ser humano sente necessidade de ser visto e confirmado não
por quem é, mas pelo que conquistou. Dessa maneira, o
ter e o parecer se tornam mais importantes do que o ser.
Sabe-se que tudo depende do grau e, em caso de pessoas que trabalham demasiadamente, o excesso causa a
falta, pois ao mergulhar em seu trabalho, o workaholic não
precisa se submeter ao olhar profundo do próprio vazio
existencial e, em contrapartida, dar-se-á um luto de significados do tempo e do espaço que ocupa. O tédio será
mantido. O vazio perdurará e a solidão se manifestará,
independentemente do que fizer ou produzir.
Nesse ponto, o ocupar-se pode ser vivido própria ou
impropriamente, mas “(...) tanto em um quanto o outro
há a possibilidade de autenticidade” (Seibt, 2008, p. 501).
Assim, a inautenticidade surge quando o ser não se apodera de seu projeto existencial, quando procura nos entes o significado de sua existência, quando não se conscientiza da finitude e quando enfatiza o ter e o parecer.
O eu é dito pelo impessoal, que foge de si, e se percebe
por meio de suas ocupações, ou seja, o ser se dilui nas
ocupações diárias e desvela seu jeito inautêntico de ser,
manifestando-se em três constituições fundamentais:
a facticidade, a existencialidade e a ruína, que diz respeito a se lançar na cotidianidade e no anonimato, isto
é, “(...) ele [Dasein] vegeta na banalidade das ocupações
corriqueiras, desviando-se de si mesmo e do projeto ontológico” (Costa, 2010, p. 156).
163
Nesse caso, Costa (2010) aponta que a ocupação ocorre
por uma aproximação de acordo com o Dasein, que necessita de um sentido para sua vida, e a maneira como
absorve ou não o tempo orienta também a forma de existir no mundo. O autor ainda acrescenta que:
O homem contemporâneo é dominado pelo processo
técnico, no sentido de enxergar nele o único meio
de sobrevivência e consequentemente de se adequar
no mundo moderno, se diluindo em meio aos outros
entes, se deixando arrastar pela vida inautêntica em
meio aos objetos que manipula (p. 155).
O trabalho não é um fim em si mesmo, mas unicamente um meio para alcançar outra finalidade (Ribeiro
& Leda, 2004). É no contexto em que o sentido é depositado nos objetos e não na finalidade da vida que podemos compreender a perda de significação que Giovanetti
(2002, p. 99) descreve como “(...) a ausência de rumo que
dê significado ao ato”. Portanto, para o mesmo autor,
o sentido é expresso na direção que se imprime ao viver algo e, colocar sentido nas coisas é, então, falsear o
problema. De acordo com Ribeiro e Leda (2004, p. 77):
“Ao longo dos tempos, identificam-se duas visões contraditórias do trabalho que convivem nos mesmos espaços,
e, por vezes, um mesmo indivíduo revela sentimentos ambíguos em relação a sua vida profissional.”
Por muito tempo o significado de trabalho foi associado ao fardo e sacrifício, e sua concepção como fonte
de identidade e autorrealização humana foi constituída
a partir do Renascimento. Então, “constata-se (...) que o
trabalho apresenta duas perspectivas distintas. A primeira referente a um caráter negativo; e a segunda a uma dimensão positiva” (Ribeiro & Leda, 2004, p. 77).
No entanto, na pós-modernidade, percebe-se a retirada do valor positivo do trabalho e vive-se um momento histórico de esvaziamento de seu significado, ou, nas
palavras de Ribeiro e Leda (2004, p. 80): “há um desconforto que, conforme as circunstâncias a serem vividas,
vai desencadeando adoecimento psíquico e somático nos
indivíduos”.
4. O Esvaziamento do Significado e o Tédio
O esvaziamento do significado de trabalho associa-se
diretamente ao tédio, pois abrange tanto a perda de definições pessoais quanto o esgotamento de sentido na vida
e na relação com o mundo. Albom (1998, p. 48) aponta a
lição de seu professor Morrie:
Tanta gente anda de um lado para outro levando vidas sem sentido. Parecem semi-adormecidas, mesmo
quando ocupadas em coisas que julgam importantes.
Isso acontece porque estão correndo atrás do objetivo
errado. Só podemos dar sentido à vida dedicando-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012
Artigo
Porém, a possibilidade de despertar do anonimato revela a possibilidade de refletir sobre a ampliação das possibilidades existenciais, quer dizer, para ser visto é necessário ser preciso no tempo e no espaço. Para ser visto, o
ser humano precisa se ver e se reconhecer, sem depender
do reconhecimento externo do que faz, de quem é e do lugar a que pertence. No entanto, há de se considerar, nesse
momento, os casos de pessoas que trabalham apenas pela
necessidade financeira e que trocariam prontamente de
atividade profissional se recebessem mais. Por isso faz-se
importante a reflexão do tédio existencial no contexto do
trabalho, pois “não somos mais capazes de nos situar no
mundo porque nossa própria relação com ele [mundo] foi
praticamente perdida” (Svendsen, 2006, p. 20).
Karina O. Fukumitsu; Júlia Y. Hayakawa; Suzan E. Kuda; Elisa H. Musha; Tauane C. Nascimento; Bruna B. Oliveira;
Elisabete H. G. Rocha; Daiany A. A. Santos; Karen Ueki & Lucas P. Vasconcelos
-nos a nossos semelhantes e à comunidade e nos
empenhando na criação de alguma coisa que tenha
alcance e sentido.
O tédio é compreendido como restrição da liberdade existencial pela qual há evidência na dificuldade de
ação, ou seja, torna-se subjacente à maioria das ações humanas corriqueiras, com um caráter positivo e negativo.
Por conseguinte,
Artigo
O tédio está associado a uma maneira de passar o
tempo, em que o tempo, em vez de ser um horizonte
para oportunidades, é algo que precisa ser consumido.
[...] Não sabemos o que fazer com o tempo quando estamos entediados, pois é precisamente então que nossas
capacidades ficam inertes e nenhuma oportunidade
real se apresenta (Svendsen, 2006, p. 24).
Além disso, cabe salientar a diferença entre o tédio
do senso comum – o situacional – e o tédio existencial.
O primeiro é o estado de ficar entediado e responsabilizar outrem pela dificuldade da ação. O segundo é ser entediado e relacionar-se ao vazio existencial. Em geral, o
tédio situacional manifesta-se quando não se pode fazer
o que se quer ou em situações em que o indivíduo precisa fazer o que não quer e, consequentemente, surge a
necessidade de passatempos. Para Kirchner (2007), passatempos têm o objetivo de aniquilar o tempo do mundo
e são resultados de um tempo que não é pensado, sendo
possível inferir que o homem não pode compensar o tempo em suas ocupações.
Para Svendsen (2006), o tédio se caracteriza por uma
condição de desorientação que se apresenta no estado
de tédio profundo. O tédio se faz entediante, porque parece algo infinito. É capaz também de revelar a própria
finitude da existência. O tédio, em comparação à morte,
assemelha-se a uma espécie de antecipação fúnebre, pois
tédio tem relações com a finitude e com o nada. “É uma
morte em vida, uma não vida” (p. 43).
Como dito anteriormente, reflete-se sobre indivíduos
que procuram se ocupar, porque a ocupação se torna um
jeito de evitar o vazio provocado pelo tédio. Desse modo,
o que mais importa não é a atividade com a qual se ocupam, e, sim, como a ocupação em si acontece. Portanto, o
passar o tempo pode ser considerado uma tentativa de se
evitar o tédio, ao se procurar qualquer coisa com a qual se
possa consumir o tempo. O ser humano preenche o tempo
com a apropriação cotidiana e a prática dos entes, o que
caracteriza o papel de cada pessoa na contemporaneidade
(Costa, 2010), porém, confunde a ocupação com evitação
e, nas palavras de Feijoo (2000, p. 113), “(...) o eu se perde
quando se paralisa uma tentativa de resolver o inevitável, isto é, a situação paradoxal da existência humana”.
No tédio, o Dasein é aprisionado no tempo, em um vazio que parece ser impossível de ser preenchido. Svendsen
(1970, p. 32) menciona que:
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012
O tédio pode ser compreendido como um desconforto
que comunica que a necessidade de significado não
está sendo satisfeita. Para eliminar esse desconforto,
atacam-se os sintomas, em vez de atacar a própria
doença, e procuramos todas as espécies de significados substitutos.
O ficar entediado ocorre porque falta um significado
e um propósito, e a tarefa do tédio é atrair a atenção exatamente para essa situação. Portanto, o trabalho é percebido como a fonte de supressão temporária dos problemas
do cotidiano, da existência inautêntica que se ocupa dos
entes presentes no mundo, mas não reflete sobre a existência destes. Assim, conforme nos afirma Costa (2010,
p. 153): “A cotidianidade do ser-aí caracteriza em certo
sentido a ocupação que se torna deficitária, ao passo que,
o que está em jogo não é um intento ontológico, mas sim
a manualidade do instrumento em si mesmo.”
Em casos daqueles que trabalham demasiadamente,
os workaholics, pode-se inferir que, no discurso de “não
ter tempo para nada”, privam-se de tempo para tudo o que
não está relacionado ao trabalho e denunciam que suas
escolhas direcionam-se à dedicação profissional em detrimento a outros afazeres que poderiam agregar em seu
projeto existencial.
Para Spanoudis (1976), a razão pela qual o modo de
viver, hoje, vivencia e propaga o tédio pode ser compreendida pela alienação com que a vida é levada. Dessa
maneira, trabalhando demasiadamente ou abusando de
passatempos é que o homem busca a libertação de sua
vida monótona e estagnada – justamente para preencher
seu vazio existencial. Esse vazio sem significado é chamado por Matos (2007) de tempo patológico, que considera o estresse como ideal, uma vez que, na monotonia,
o tempo não passa, pois o ser está alienado na perda do
sentido das ações.
A ilusão de promoção da felicidade divulgada pelos
meios de consumo, pela qual se percebe um consumo ilimitado, impede a reflexão. Assim, a relação do ser com o
trabalho deixa de ser de produtividade e ação e torna-se
reprodução, uma inatividade na qual se observa a falta
de sentido, gerando um mal-estar que conduz ao tédio,
o que leva a uma desvalorização de si, das relações e do
próprio trabalho (Matos, 2007). Falta tempo para se vivenciar o tédio e nada pode preencher totalmente o vazio
existencial que o ser humano deve assumir com responsabilidade. Falta tempo para ser.
De acordo com Giovanetti (2002), o contexto atual é
marcado também pela transformação de uma consciência
política a uma consciência narcísica, em que a centralidade sobre o eu passa a definir a orientação de todas as
ações do indivíduo moderno, ao ponto de excluir o outro de sua vida. Consequentemente, na pós-modernidade,
as desordens neuróticas – tratadas pelos terapeutas do
início até os meados do século XX – foram substituídas
pelas desordens narcísicas, que se caracterizam por um
164
Tédio e Trabalho na Pós-Modernidade
5. O Valor do Vazio Fértil
Van Dusen (1977) apresenta comparações entre a cultura ocidental e oriental, afirmando que, no Oriente, o
vazio é confortável e familiar, podendo ter um valor máximo em si mesmo e possibilitando a produtividade, ao
contrário do mundo ocidental em que espaço vazio significa desperdício – a não ser que seja preenchido com
ações, uma vez que é muito comum, na sociedade ocidental, preencherem-se esses espaços também com objetos
ou até mesmo deixar que as ações dos objetos preencham
os espaços dos indivíduos. E o autor continua: “O vazio
é o centro, e o coração da mudança terapêutica” (p. 125).
Assim, trabalhar na sociedade pós-moderna parece
algo indiscutível. A criança, desde pequena, é questionada sobre o que quer “ser” quando crescer, sendo que “ser”
tem o sentido de executar uma tarefa que deve, necessariamente, contribuir para a sociedade – direta ou indiretamente. Questionar uma criança sobre qual profissão
executará no futuro também lhe mostra a importância de
preparar o seu devir, no aqui e agora, com estudo, experiências, em prol dessa parte do tempo chamado futuro.
Porém, na maioria das vezes, não é possível ser astronauta, jogador de futebol, atriz de novela, como aquela criança
previa e, para sobreviver em uma sociedade capitalista, o
adulto tem a necessidade de trabalhar em cargos que não
são aquele em que de fato esperava trabalhar. Com isso,
frustra-se e, obrigado a trabalhar para sobreviver, passa
a enxergar o trabalho como uma ocupação e o tempo do
aqui-e-agora como algo a ser consumido ao seu máximo,
visando a um vivenciar projetado para um futuro previamente estabelecido.
Quando o trabalho é satisfatório, pode-se pensar na
combinação entre diversos fatores, tais como valores,
experiências e objetivos que variam de acordo com cada
um e com cada etapa da vida. Isso não significa que, necessariamente, a satisfação leve à estagnação, mas pode
ser também um motivador para busca de novas experiências que gerem significados. Porém, para que isso realmente se torne eficaz é necessário participar de todo o
processo, entrar em contato com a angústia, reformular
as questões existenciais e dar vida a novos significados
ou ressignificá-los. Entretanto, não são muitos os que concluem o processo sem passar pela obscuridade do tédio.
A maioria dos indivíduos que se percebem entediados
não se permite vivenciar e desfrutar o tempo de maneira
mais prazerosa e consomem o tempo do mundo como se
fosse o mesmo. O trabalho torna-se o mesmo, bem como
a falta de sentido é a mesma. O significado do trabalho
165
é vazio, e o homem se automatiza sem encontrar sentido
para suas ações. O trabalho é comumente associado a um
meio de sobrevivência, no qual nem sempre é possível
questionar as demandas. Dessa forma, aquele se conforma
de que no futuro poderá mudar essa situação e acredita
ou deseja acreditar que eliminará o tédio com o passar
do tempo. Concebe como um dever continuar aceitando
as coisas como estão, ainda que esteja insatisfeito.
6. O Homem e a Transcendência
Sentir-se angustiado e cansado são os primeiros sinais para entrar em contato com o tédio existencial, e
não se reconhecer naquilo que se faz automaticamente
é essencial, pois, uma vez que o homem se questiona e
reflete sobre o sentimento de esvaziamento e de existência inautêntica no mundo e por meio da transcendência,
encontra a possibilidade de refletir sobre sua existência no aqui-e-agora. Isto é, o que está sendo feito dele e
como está se apoderando de sua existência pode provocar
transformações, bem como descobertas dentre inúmeras
possibilidades de ser e estar no mundo. E como Perdigão
(1995, p. 115) cita: “somos livres, resta-nos descobrir o que
devemos fazer com essa assombrosa liberdade”.
Sabe-se que a tônica existencial é a crença de que o
homem é angústia. Desse modo, faz-se necessário ficar
atento à sua condição existencial para que encontre cada
vez mais sentido nas atividades, a fim de ressignificá-las.
E como aponta Kundtz (1999), é possível criar no cotidiano alguns momentos especiais de pequenas pausas que
permitam a ressignificação. Mas nem sempre a reflexão é
possível diante das necessidades do dia a dia. No mundo
pós-moderno, há uma grande exigência de que as pessoas
estejam em constante atividade, ainda que para exercê-la
se abra mão de muitas outras coisas. Mas será que seria
necessário parar dias ou semanas para refletir? Às vezes,
parar por apenas alguns minutos pode permitir que a reflexão ocorra ou se apoderar do vazio existencial como
Perls (1979, p. 231) preconiza: “Vazio fértil, fale através
de mim. Em estado de graça quero ver. Benção e verdade
sobre mim. Face a face com você”.
Para entender o vazio, faz-se necessário verificar dois
componentes: o antropológico e o social. O componente antropológico é a perda de sentido, ou seja, as coisas
que preenchiam o cotidiano dos indivíduos vão se esfacelando, e a vida começa a desmoronar. O componente
sociológico do problema do vazio da vida humana, por
sua vez, é expresso pelo esvaziamento das relações interpessoais, o que provoca um desaparecimento de laços
pessoais entre os homens. Esse esvaziamento provoca a
exclusão do outro e exacerba mais o individualismo pregado pela sociedade contemporânea (Giovanetti, 2002).
Para Giovanetti (2002), pensar na superação do vazio
é tentar ressignificar esses dois componentes que o caracterizam. No plano antropológico, torna-se necessário
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012
Artigo
mal-estar longo e indefinido e, naturalmente, o esvaziamento dos significados da existência e da vida cotidiana.
Ainda segundo o autor, o grande sintoma, na vida moderna, pode ser bem-representado pela dificuldade de se
assumir o vazio existencial.
Karina O. Fukumitsu; Júlia Y. Hayakawa; Suzan E. Kuda; Elisa H. Musha; Tauane C. Nascimento; Bruna B. Oliveira;
Elisabete H. G. Rocha; Daiany A. A. Santos; Karen Ueki & Lucas P. Vasconcelos
construir um projeto de vida; no plano sociológico, ressignificar as relações interpessoais e buscar a sedimentação da intimidade. Por isso, para o autor, “(...) os relacionamentos pessoais estão na base de um redimensionamento da sociedade individualista para uma sociedade
solidária” (p. 100).
Ao se sentir ameaçado pelo vazio, o Dasein tenta se
abster, retirando-se do contexto ameaçador, ou busca
preenchê-lo por meio do trabalho; o vazio então cresce e
atenua a vontade. No entanto, quando o indivíduo aceita
que o vazio é fértil, pode descobrir coisas surpreendentemente novas dentro de si. Assim, o vazio emerge na psicoterapia para que o indivíduo possa refletir sobre seu
feitio de existir, já que “o vazio nem é nada, nem é algo.
É o vazio fértil” (Van Dusen, 1977, p. 129).
O indivíduo que vive constantemente o enfadonho
tédio e que não consegue refletir sobre como vivencia o
tempo, ocupando-se sobremaneira com diversas tarefas,
evita o encontro consigo e com o vazio existente.
No geral, o tédio representa a realidade subjetiva que
desordena o mundo e coloca o homem frente a um
tipo de morte, a morte da significação. Significação
esta necessária à vida humana e à qual corremos em
direção, na contramão do tempo, por meio das novidades da modernidade como via de solução (Pinheiro,
2007, p. 162).
O tédio existencial significa a morte de possibilidades, pela qual surge a perda de significados na vida. Para
transcendê-lo, o homem tem de ressignificar o sentido de
sua vida e não estruturar sua vida somente na má-fé. Cabe
enfatizar que é possível ser inautêntico e agir sem má-fé,
pois a má-fé é a manifestação da coisificação. Sendo assim, como não há uma atitude humana sem intencionalidade, o grande problema é a usura e quando o homem
age como se não soubesse da própria intenção. Quando
o ser humano perde a ética, perde também o respeito por
si e a discriminação de suas necessidades. Dessa maneira, torna-se imprescindível que compreenda que a ética
é a própria condição humana que permite a dignidade
de ser livre e de assumir suas escolhas.
Artigo
A vida é uma série de puxões para a frente e para
trás. Queremos fazer uma coisa, mas somos forçados
a fazer outra. Algumas coisas nos machucam, apesar
de sabermos que não deviam. Aceitamos certas coisas como inquestionáveis, mesmo sabendo que não
devemos aceitar nada como absoluto (Albom, 1998,
pp. 44-5).
Além disso, em concordância com a proposta heideggeriana, faz-se necessário recuperar o sentido esquecido do ser, reconhecendo-se o tédio como um paradoxo
que contém tanto o problema quanto a solução para vida
moderna, uma vez que o tédio é também um potencial
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012
para futuras ressignificações. O tédio e a angústia do
vazio fértil permitem a revisão do projeto existencial,
pois o ser humano recebe o convite para que possa refletir sobre a necessidade de reconhecimento, aceitação
e pertencimento. O significado é próprio; portanto, é
preciso notar que não é o tempo que deve ser refém do
trabalho; ao contrário, o trabalho existe somente porque existe um tempo que deve ser vivido e vívido para
que o ser não seja esquecido.
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Karina Okajima Fukumitsu - Psicóloga, psicoterapeuta, professora
da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora convidada
pelo departamento de Gestalt-terapia do Instituto Sedes Sapientiae.
Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano
(Universidade São Paulo-USP/SP). Mestre em Psicologia Clínica
(Michigan School of Professional Psychology-Center for Humanistic Studies - EUA). Especialista em Psicopedagogia (PUC-SP) e em
Gestalt-terapia (Sedes Sapientiae-SP). Endereço para correspondência:
Avenida Fagundes Filho, 145 - sala 96 (Edifício Austin Office Center)
Vila Monte Alegre. São Paulo-SP - Brasil - CEP: 04304-010. E-mail:
[email protected]
Júlia Yoriko Hayakawa, Suzan Emie Kuda, Elisa Harumi Musha,
Tauane Cristina do Nascimento, Bruna Bezerra Oliveira, Elisabete
Hara Garcia Rocha, Daiany Aparecida Alves dos Santos, Karen Ueki,
Lucas Palhari Vasconcelos - Alunos do 8º semestre de graduação do
Curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São
Paulo, Brasil.
Recebido em 23.05.2012
Aceito em 19.11.2012
Artigo
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167
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012
Ana M. M. C. Frota
ORIGENS E DESTINOS DA ABORDAGEM CENTRADA NA
PESSOA NO CENÁRIO BRASILEIRO CONTEMPORÃNEO:
REFLEXÕES PRELIMINARES
Origins and Destinations of the The Person-Centered Approach in the Brazilian
Contemporary Scenario: Introductory reflections
Orígenes y Destinaciones de lo Enfoque Centrado en la Persona en escenario
brasileño contemporáneo: Reflexiones Preliminares
A na M aria Monte Coelho Frota
Resumo: Este artigo trata de reflexões introdutórias acerca das origens e dos destinos que vêm se delineando para a Abordagem
Centrada na Pessoa (ACP). Para tanto, discute os paradigmas que sustentaram o surgimento da teoria rogeriana, a partir de um
contexto histórico determinado pelo projeto modernista. Analisa o surgimento da Psicologia Humanista como a terceira força,
contrapondo-a ao Behaviorismo e Psicanálise. A seguir, passeia sobre a teoria rogeriana, discutindo seus conceitos fundamentais, que atravessam pelas diferentes fases do trabalho de Rogers. Finalmente, faz um apanhado teórico das aproximações possíveis entre a ACP e alguns filósofos fenomenólogos, sendo escolhidos Husserl, Merleau-Ponty e Heidegger, tal como têm sido
trabalhados por alguns estudiosos brasileiros. O artigo procura clarificar as possibilidades de continuação da ACP a partir destes encontros, colocando o problema de se estar construindo algo tão novo, que não se possa colocar alinhado com a Abordagem Centrada na Pessoa.
Palavras-chave: Abordagem centrada na pessoa; Psicologia humanista; Fenomenologia.
Abstract: This article brings the introductory reflection on the origins and destinations that are being constructed for the
Person Centered Approach (PCA) in the brazilian scenario. This paper discusses the paradigms that supported the emergence
of the Rogerian theory from the historical context of the modernist project. It makes the analysis of the emergence of humanistic psychology as a third force as opposed to Behaviorism and Psychoanalysis. It presents Rogers’ theory and its fundamental
concepts in the different stages of the work of Rogers. Finally, it presents some possible approaches between the Person Centered
Study and some phenomenological philosophers, been chosen Husserl, Merleau-Ponty and Heidegger, as they have been presented by some brazilian scholars. The work search to clarify the possibilities of continuing the Person Centered Approach by
those relations, pointing to the direction of the construction of something so new that it cannot be aligned with the Person
Centered Study.
Keywords: Person centered approach; Humanistic psychology; Phenomenology.
Resumen: En este artículo se trata de reflexiones introductorias sobre los orígenes y destinos que han sido delineados para el
Enfoque Centrado persona (PCA). Los paradigmas de discusión que apoyaron el surgimiento de la teoría de Rogers, a partir de
un contexto histórico determinado por el proyecto modernista. Analiza el surgimiento de la psicología humanista como una
tercera fuerza, oponiéndose al conductismo y el psicoanálisis. A continuación, dar un paseo en la teoría de Rogers, discutir los
conceptos fundamentales que atraviesan las diferentes fases de la obra de Rogers. Por último, se ofrece una visión general de
las similitudes teóricas posibles entre los países ACP y algunos filósofos fenomenólogos, siendo elegido Husserl, Merleau-Ponty
y Heidegger, como se ha trabajado por algunos estudiosos brasileños. El artículo trata de aclarar las posibilidades de continuación de ACP a partir de estas reuniones, poner el asunto a la construcción de algo tan nuevo, que no se pueden poner de acuerdo con el Enfoque Centrado en Persona.
Palabras-clave: Enfoque centrado en la persona; Psicología humanística; Fenomenología.
Artigo
1. A Ciência Moderna e a Psicologia
Os paradigmas clássicos do método científico influenciam fortemente as idéias e práticas de uma época.
Oferecem ao mundo uma certeza extremamente ansiada de progresso, respostas objetivas, ordem, liberdade e
justiça social. Segundo Dahlberg, Moss e Pence (2003),
o projeto sustentado e defendido pela modernidade, berRevista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012
ço do surgimento da ciência clássica, compreende o ser
humano totalmente realizado, maduro, independente,
autônomo, livre e racional. Ressaltam que: “(...) o projeto
da modernidade tinha objetivos ambiciosos: progresso, linear e contínuo; verdade, como a revelação de um mundo
‘conhecível’, emancipação e liberdade para o indivíduo –
social, política e culturalmente” (p. 33).
168
Nesta direção, a busca da razão constitui-se no caminho da busca da essência humana e das verdades da natureza. Assim, o progresso e a tecnologia caminham de
mãos dadas em direção à prometida felicidade. A partir
destas reflexões torna-se muito clara a grande aceitação
e difusão do projeto da ciência moderna, uma vez que
trazia embutida no seu paradigma, uma promessa de desenvolvimento, ordem e progresso social.
Com a modernidade, incrementada que foi pela invenção da imprensa, pelas conquistas das grandes navegações, pela revolução industrial, pela transformação
social e familiar, pelas mudanças do sistema econômico
mundial, dentre outras, ofereceu-se ao mundo a promessa da produção de um saber construído a partir de uma
metodologia objetiva, quantificável, infalível. Ora, esta
promessa encheu os olhos e aqueceu o coração de todos
aqueles que desejavam respostas para suas questões.
A sociedade sonhava com o dia em que pudesse resolver seus problemas mais urgentes como a cura de doenças, a produção de alimentos suficiente para todos, a
busca de uma justiça social e, principalmente, a superação das crenças religiosas que, por muito tempo dominaram as mentes humanas, impedindo-as ou dificultando
na produção de um saber que se sustentasse em si mesmo. A criação de um método científico foi extremamente
bem-vindo na sociedade da época, sendo profundamente marcada pela filosofia de Descartes, pela metodologia
científica de Bacon e pela teoria matemática de Newton
(Feijoo, 2000).
A partir da análise de Feijoo (2000), para Descartes,
o mundo material deveria ser estudado com absoluta objetividade, constituindo, a partir de então, a necessidade de neutralidade do pesquisador. Além disso, criou-se
um método de busca de saber, ou seja, de produção de
conhecimento, que seguisse uma metodologia objetiva,
passível de ser repetida, testada e generalizada, crível
e infalível. Como resultado, a ciência foi aceita como
a única via de acesso a todo e qualquer conhecimento,
passando a desvalorizar qualquer saber produzido por
outros caminhos. A crença existente era a de que o método científico descrevia corretamente a realidade, sendo adotada como modelo pelos saberes que se pretendessem científicos.
Assim, a racionalidade deveria superar qualquer paixão na busca dos saberes científicos a partir dos paradigmas clássicos da ciência moderna. Além disso, perseguindo a herança newtoniana, o mundo deveria ser compreendido como um grande complexo, formado por partes
contínuas que, somadas, resultariam numa totalidade.
Para atingir uma compreensão e posterior domínio do
todo, seria necessário desmembrá-lo em partes, cognoscíveis através de um método objetivo, seguido por cientistas neutros e racionais. Tal busca seria possível uma
vez que as leis do universo seguiriam uma causalidade
mecanicista, e seriam regidas por uma temporalidade
linear – com presente, passado e futuro bem marcados
169
– autônoma e independente do observador; assim como
por um espaço constante e em repouso. Uma figura metafórica seria “a imagem do universo (...) comparada a um
grande relógio gigantesco, inteiramente determinístico”
(Feijoo, 2000, p. 19).
A busca de verdades pela ciência moderna é marcada pelo estatuto de cientificidade, sendo garantida pela
construção de conceitos logicamente parametrados e pela
ausência de intimidade entre homens e mundo. O modo
técnico pelo qual o homem moderno habita o mundo tem
estreita relação, denuncia Critelli (1996), com sua necessidade de superar a insegurança do seu ser ou, senão,
esconder esta condição. Porém, não é porque os homens
criaram métodos, técnicas e processos que nos permitem
controlar alguns fenômenos e criar outros, que se alterou
a condição ontológica de inospitalidade no mundo e de
liberdade humana.
O modelo de pensamento e produção de conhecimentos da ciência moderna marcou profundamente a
sociedade ocidental desde o século XVIII até meados do
século XX. A partir daí, o projeto da modernidade vem
sofrendo grandes abalos na sua tão propagada pretensão
da busca de verdades universais. Aos poucos, a humanidade foi se dando conta de que a ciência moderna não
seria capaz de compreender e acomodar a diversidade e
a complexidade da experiência humana concreta. Na verdade, “o projeto da modernidade de controle através do
conhecimento, a avidez por certeza, implodiu” (Dahlberg
et al., 2003, p. 36).
Chamou-se de saber pós-moderno aquele estado da
cultura construído após as transformações que afetaram as regras do jogo da ciência, da literatura e das artes a partir do século XIX (Lyotard, 1989). Seu saber não
se propunha ser um instrumentalizador de poderes.
Ele refina a sensibilidade para o diferente e para suportar o incomensurável. Sob uma perspectiva pós-moderna,
não existe conhecimento absoluto, realidade cristalizada
esperando pra ser conhecida e domada; um ensinamento universal, que se faça fora da história ou da sociedade
(Frota, 2007). No lugar disso, seu projeto propõe que o
mundo e o conhecimento sejam vistos como socialmente
construídos. Isso significa pensar que todos nós estamos
engajados na construção de significados, em vez de engajados na descoberta de verdades. Torna-se possível afirmar, deste modo, que não existe somente uma realidade,
mas várias. O conhecimento não é único, e sim múltiplo,
variável, fragmentado e mutável, inscrito nas relações de
poder, que determinam o que deve ser considerado como
verdade e falsidade (Lipovetsky, 2004; Goergen, 2005).
A verdade é compreendida como uma correspondência
da verdade, uma representação falseada, mas que, como
tal deve ser tomada.
Na origem das psicologias existe uma tendência a atuar como se os saberes psicológicos fossem “grandes narrativas”, e, como tal, representassem o modelo essencialista da natureza humana. As grandes teorias psicológicas,
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012
Artigo
Origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: O Caso da Abordagem Centrada na Pessoa
Artigo
Ana M. M. C. Frota
encarnadas por seus seguidores, assumem seus saberes
como se eles fossem “os verdadeiros” e representassem
“o modelo correto” da realidade. Contudo como alertam
Dahlberg et al. (2003), “em vez de serem vistas como representações socialmente construídas de uma realidade
complexa, uma maneira selecionada de como descrever
o mundo, essas teorias parecem se tornar o próprio território” (p. 54). O risco daí advindo é esquecermos a contextualização histórica do saber ou, ainda, perdermos de
vista a subjetividade concreta do humano. Perderíamos de
vista o homem, ficando dele somente sua re-presentação,
falseada, que é, via teoria. Além deste risco, não podemos
esquecer que as grandes narrativas contam as histórias
dos saberes como se fossem únicos e universais, já repudiadas pelo estatuto pós-modernista, por representarem
perspectivas teóricas descoladas da realidade e empecilhos para a compreensão dos sujeitos reais em situações
históricas concretas.
Vivendo numa condição pós-moderna, o conhecimento e os diversos saberes solicitam que abandonemos
as grandes narrativas teóricas e nos contentemos com
objetivos locais e mais práticos. Para Heywood (2004),
isso significa abandonar as esperanças mais profundas
do pensamento iluminista: que o que está para ser descoberto seria, de fato, um mundo ordeiro e sistemático,
idêntico para cada um de nós, sendo possível estabelecer um acordo universal com a natureza. O que fica,
então, é a busca de conhecer verdades, multiplicidades
de narrativas, saberes construídos na e pela realidade
social concreta.
A partir destas reflexões, pensemos no que isso
interfere nos nossos pensares e fazeres psicológicos,
para nos achegarmos na nossa questão maior: origens
e destinos da Abordagem Centrada na Pessoa, no cenário do Brasil.
Também para a Psicologia foi importante o método
científico, como possibilidade de se fazer aceita e receber o estatuto de ciência, como afirma Capra (1983). Deste
modo, a adaptação do objeto de estudo da psicologia, o
psiquismo humano, aos princípios da mecânica clássica de Newton fez-se no sentido de busca de cientificidade. É assim que a Psicanálise de Freud e o Behaviorismo
de Skinner se enquadram no mecanicismo da ciência
positivista.
Capra (1983) tem razão ao dizer que a primeira tópica de Freud seguia um modelo mecanicista. Como o
próprio Freud afirma no seu Projeto de uma psicologia
científica, sua intenção era representar os processos psíquicos como estados, quantitativamente determinados.
Deste modo, pelo menos de princípio, é lícito afirmar que
Freud parece respeitar e seguir os princípios apregoados
pela ciência moderna, os quais, certamente, lhe garantiriam respeitabilidade e divulgação. Coelho Jr. (1995)
também aponta a origem mecanicista dos trabalhos de
Freud, frisando o contexto histórico deste início. Deixa
clara a evolução histórica da metapsicologia e da psica-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012
nálise, e seu distanciamento, cada vez mais nítido, da
herança cientificista.
Também o behaviorismo skinneriano segue o modelo
científico. Aliás, para Skinner, seu objeto de estudo era
o comportamento, aquele que poderia ser observado e
quantificado. A mente existia somente enquanto expressa pelo comportamento. Na verdade, o behaviorismo de
Skinner se adequa completamente ao método experimental: a relação causa-efeito é inquestionável, as causas dos
fenômenos psíquicos encontram-se no mundo externo, o
tempo é linear, a força é sempre externa (Skinner, 1985).
Para os behavioristas, a objetividade é imprescindível e
deve ser garantida pelo controle das condições que regem
as relações sujeito-objeto. Por sua vez, as técnicas comportamentais clássicas “possuem um status físico para o
qual as técnicas usuais da ciência são adequadas e permitem uma explicação dos comportamentos nos moldes
da de outros objetos explicados pelas respectivas ciências” (Skinner, 1985, p. 42).
A Psicanálise e o Behaviorismo formaram as duas
primeiras forças dentro da psicologia. A terceira força –
a Psicologia Humanista – surgiu como reação ao panorama da psicologia norte-americana, dominado pela leitura
mecanicista e determinística dominantes (Boainain Jr,
1998). Maslow (2007) foi um dos principais responsáveis
pela criação da Psicologia Humanista, que pretendia, de
início, unir tendências que se opusessem ao behaviorismo e psicanálise.
Deste modo, ao contrário do Behaviorismo e da
Psicanálise, a Psicologia Humanista não se identificou
com o pensamento de determinado autor ou escola, especificamente. Consistia, na verdade, de um discurso
congregado de diversas tendências, unidas especialmente pela oposição às abordagens citadas, assim como pela
convergência em torno de algumas propostas comuns,
tais como um compromisso inalienável com uma visão
de homem orientada para a saúde e desenvolvimento
pessoal.
A partir daí, torna-se clara a negação da perspectiva
pessimista e psicopatologizante da metapsicologia freudiana. Além disso, a terceira força assume a perspectiva holística e organísmica do ser humano e adota uma
visão fenomenológica e existencial para a compreensão
do homem.
Assim, a volta ao humano como objeto de estudo é
uma das bandeiras do movimento, importante a ponto
de fornecer-lhe o título designativo. Qualidades, e capacidades humanas por excelência, tais como valores,
criatividade, sentimentos, identidade, vontade, coragem, liberdade, responsabilidade, auto-realização,
etc., fornecem temas de estudo típicos das abordagens
humanistas (Boainain Jr, 1998, p. 31).
A Psicologia Humanista defende uma visão globalizante do ser humano, enfatizando a vivência das emo-
170
Origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: O Caso da Abordagem Centrada na Pessoa
2.Abordagem Centrada na Pessoa: Da Noção de
Homem Planetário à de Homem Mundano – De
Rogers a seus Discípulos Contemporâneos
A obra de um autor tem muito das influências que
ele sofre durante sua formação pessoal e profissional.
Rogers teve grande influência de uma tendência biológica de saber, justificando um pouco o que ele chama
de tendência formativa. Acaba, por esta vertente, enfatizando mais a natureza do que a cultura e a história do
homem. Já a influência religiosa, que recebeu de sua família protestante, pode ser percebida na crença otimista
da natureza humana, que sempre acompanhou seu tra-
171
balho. Além da Teologia, também se dedicou ao estudo
da Psicologia, fazendo atendimento clínico e orientação
psicopedagógica.
Para Rogers e Kinget (1977), existe no homem uma
tendência atualizante, que o concebe como naturalmente livre e bom, sendo essencialmente dotado de uma
capacidade para desenvolver-se positivamente. Assim,
para Rogers, são as condições externas desfavoráveis que
corrompem e adoecem o homem. Por ser o que existe de
mais importante na sua teoria e prática psicoterápica,
pressupõe, fundamentalmente, um respeito maior ao ser
humano, por concebê-lo como um “organismo digno de
confiança” (Rogers, 1976, p. 16). Afirma ainda Rogers e
Kinget (1977, p. 52):
Quando a tendência atualizante pode se exercer sob
condições favoráveis, isto é, sem entraves psicológicos graves, o indivíduo se desenvolverá no sentido
da maturidade. Sua percepção de si mesmo e de
seu ambiente, e o comportamento que se articula de
acordo com estas percepções, se modificarão constantemente num sentido de uma diferenciação e de
uma autonomia crescentes, típicas do progresso em
direção à idade adulta. A personalidade representará,
portanto, a atualização máxima das potencialidades
do organismo.
A compreensão empática, congruência e consideração positiva incondicional também são princípios fundantes da ACP, assim como a tendência atualizante.
A capacidade de o psicoterapeuta colocar-se no lugar
do outro, sem deixar de ser quem é, facilita o encontro
entre pessoas. Já a congruência, ela significa a capacidade do psicoterapeuta ser autêntico em relação a seus
sentimentos, referindo-se à pessoa que busca ajuda. Ser
congruente, é ser genuíno, é ser fluido. “Quando somos
congruentes conosco mesmo, nossas necessidades, nossos
desejos e nosso curso de ação são uma coisa só”, afirma
Bowen (1987, p. 65). Finalmente, a consideração positiva incondicional, é caracterizada como a capacidade de
aceitar o outro como ele é, não significando concordar
com ele. Deste modo, “quando o terapeuta estima o cliente, de uma maneira total, em vez de uma maneira condicional, então o movimento para a frente pode ocorrer”
(Rogers, 1987, p. 68).
A influência do contexto sócio-cultural para a origem
da teoria rogeriana é claramente descrita por Fonseca (1983):
A Abordagem Centrada na Pessoa surgiu e cresceu
no seio daqueles para cujas mesas, carros e casas vai
muito do que é expropriado do corpo e do ser, da casa
e dos pratos daqueles em cujo seio nasceu a Pedagogia
do Oprimido (p. 46).
A teoria de Rogers constrói-se a partir de uma dimensão individual da pessoa, deixando-se perceber
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012
Artigo
ções, a subjetividade, a intuição e as potencialidades.
Provavelmente como resultado da exacerbação do sentimento, da vivência e da experienciação, adotadas como
métodos de trabalho, ela foi duramente acusada de irresponsável, de teoricamente vazia (Fonseca, 1998, 2011;
Moreira, 2009b). Segundo Fonseca (1998), tais críticas
acabaram sendo positivas, uma vez que geraram estudos
dentro do movimento humanista brasileiro, buscando
esclarecer e fortalecer sua fundamentação, assim como
possíveis distorções.
O movimento humanista teve forte influência das filosofias existenciais e da fenomenologia. Assim, “assume e propõe a inevitabilidade da adoção de um modelo
de homem, ou seja, uma concepção filosófica da natureza
humana, como ponto de partida e princípio norteador de
qualquer projeto de construção de psicologia” (Boainain
Jr, 1998, p. 31). Além disso, prioriza o fenômeno, em detrimento das técnicas e teorias, centrando-se na “relação fenomenativa existencial atual entre seus agentes”
(Fonseca, 1998, p. 12).
A prática humanista parece ter sido desvirtuada pelo
laisser faire, pelo fetiche da vivência pura, caindo em descrédito na academia. Embora não concorde de todo com a
crítica que Figueiredo (1991) faz à Psicologia Humanista,
assim como a generalização que faz da prática dos psicoterapeutas de base humanista, ele tem razão ao inserir
a psicologia humanista na matriz vitalista e naturista.
Sua crítica dirige-se à ausência de um construto teórico
epistemológico, contrabalançando razão e sentimento.
Como resposta a esta falta, muitos profissionais com formação humanista (Amatuzzi, 1989; Moreira, 1990, 2007,
2009a, 2009b; Advíncula, 1991; Holanda, 1998; Messias
& Cury, 2006; Dutra, 2008) iniciaram um período muito
fértil de produção teórica, capaz de dar suporte à prática
psicoterápica, através de pesquisas com base fenomenológica e existencial.
Tentando nos aproximar dos sentidos das psicologias humanistas/fenomenológicas-existencias, passaremos a discutir a Abordagem Centrada na Pessoa, uma
das abordagens psicológicas que teve seu berço nas origens humanistas.
Artigo
Ana M. M. C. Frota
através da noção de “desenvolvimento do eu” (Rogers,
1961), enfatizando a polaridade individual em detrimento da social. Também em seu livro Um Jeito de Ser,
Rogers (1983) enfatiza a dimensão individual e subjetiva da pessoa. Para Rogers (1961) a natureza humana é
moralmente positiva. Segue acreditando que a pessoa
plena seria aquela que conseguisse se deixar guiar pelo
organismo, já que ele é mais sábio que a razão. Valoriza
a influência social, enxergando, no entanto, uma oposição entre indivíduo–sociedade, interior-exterior, objetividade-subjetividade, deixando claro seu limite epistemológico de compreender a indissociabilidade entre os
pólos. Resumidamente, podemos afirmar que a noção de
pessoa rogeriana pressupõe uma pessoa centrada, autônoma, livre, individualizada.
O trabalho de Rogers vem sendo dividido em fases, a
partir de características centrais, criando vertentes também distintas. Assim, múltiplas teorizações contemporâneas vêm sendo tecidas e novos caminhos sendo trilhados (Boris, 1987; Boainain Jr. 1998; Belém, 2004; Moreira,
2010). Deste modo, a partir do delineamento de seus pressupostos, Rogers divulgou uma terapia que tinha a pessoa
como centro do processo terapêutico, caracterizando sua
primeira fase de trabalho, a fase não diretiva (1940-1950).
Desde sempre enfatizou o respeito pelo outro, a importância da relação com o cliente para além de sua sintomatologia, a expressão emocional através, não somente
do conteúdo verbal, mas do próprio corpo. O terapeuta
deveria buscar uma relação genuína, empática, isenta de
interpretações e julgamentos e, principalmente, adotando uma postura de consideração positiva incondicional
dirigida ao cliente. A fase seguinte, reflexiva (1950-1957),
ainda se centrava no cliente, colocando como única possibilidade expressiva do terapeuta, respostas de apoio e
compreensão ao que fosse apresentado.
Com o tempo, a postura do terapeuta rogeriano deixa
de enfatizar a pessoa, como centro da relação, estabelecendo um campo interativo entre a dupla. Esta postura
caracteriza a posição experiencial da terapia rogeriana
(1957-1970). Nesta nova postura, terapeuta e cliente fazem
parte do processo. Como afirma Boainain Jr (1998): “Este
novo centrar-se, focalizando a experiência do terapeuta,
alternativo à anterior unilateralidade do centrar-se no
cliente, descortinou toda uma ampla gama de possibilidades expressivas para o terapeuta e veio tornar a terapia
rogeriana muito mais bicentrada” (p. 85). Finalmente, na
quarta fase da terapia rogeriana, o movimento dos grandes grupos, fase coletiva (1970-1985), revelou um Rogers
profundamente envolvido na formação de novos terapeutas e enriquecendo a prática da abordagem humanista.
Para Carrenho, Tassinari e Pinto (2010), o percurso
da ACP no Brasil passou por fases: Pré-história (19451976), caracterizada pela pouca presença de trabalhos
nesta abordagem; Fertilização (1977-1986), marcada pela
presença de Rogers e sua equipe no Brasil, assim como a
formação de profissionais, tais como Rachel Rosenberg,
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012
que se dedicaram a promover eventos de treinamento
profissional e workshops; Declínio (1978-1989), atravessado pelo luto trazido pela morte de Rogers e Rosenberg;
Renascimento (90 até hoje), trazendo consigo um aumento
significativo de profissionais que têm contribuído criativamente para a construção da ACP.
Conforme estudos de Carrenho et al. (2010), é visível um movimento de expansão da ACP no Brasil. Cada
um desses movimentos traz uma sustentação filosófica
que caminha ao lado dos princípios básicos rogerianos.
Porém, alguns estudos trazem também contribuições que,
ao invés de caminharem bem ao lado da teoria da abordagem centrada na pessoa, introduzem novas teorias e metodologias de prática psicoterápica e de pesquisa clínica.
Encontramos seguidores de Rogers que têm ampliado sua
perspectiva, criando uma nova metodologia de trabalho e
pesquisa a partir de Husserl, Merleau Ponty e Heidegger,
dentre outros. Nossas reflexões conduzem-nos, então, a
pensar o limite existente entre uma aliança da ACP e
esses filósofos referidos e uma necessária ruptura entre
ambos, por um distanciamento de paradigmas.
Sabemos que Rogers leu Kiekegaard, adotando dele
sua crença na experiência pessoal. De Buber, adotou a
filosofia do diálogo. Porém, de acordo com a história da
psicologia rogeriana – contada por autores contemporâneos brasileiros, como Belém (2000), Cury (1987), Fonseca
(1998), Moreira (1990, 1997, 2009a, 2009b) –, não se pode
afirmar que o pensamento de Rogers tenha sido fenomenológico. Rogers sempre valorizou a relação cliente-terapeuta, contudo sua visão de homem era a de um homem
individual. Moreira (2009b) é clara ao afirmar:
Parece possível buscar afinidades entre as bases
filosóficas fenomenológicas e/ou existenciais e o
pensamento rogeriano como é desenvolvido na
atualidade, mas não devemos nos iludir de que tais
filósofos tenham influenciado a teoria rogeriana
original. Afirmar que a fenomenologia influenciou
a Abordagem Centrada na Pessoa (...) é um engano.
No entanto, é possível considerar que as fenomenologias existenciais passaram a ter um papel fundamental em muitas das vertentes atuais da Abordagem
Centrada na Pessoa (p. 10).
Aqui começa um novo capítulo nos estudos e derivações da ACP: os movimentos dos seus discípulos nas
suas aproximações com a fenomenologia. Mas não existe somente uma fenomenologia, ela também é múltipla.
3. A Abordagem Centrada na Pessoa Marca Encontro
com a Fenomenologia – um Processo em Processo
A Fenomenologia surgiu no final do século XIX, rompendo com o modelo cartesiano e a perspectiva metafísica, que afirmava a existência de uma verdade universal,
172
Origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: O Caso da Abordagem Centrada na Pessoa
173
lhas através de um método racional e objetivo. O método fenomenológico vai buscar o sentido do ser do modo
como este se dá. Deste modo, abandonando-se o método
positivista, assim como a noção de causalidade, adota-se o
método fenomenológico, que tem como objetivo alcançar
o fenômeno em sua totalidade, tentando compreendê-lo
a partir de um olhar específico.
Porém, ao se falar de um método fenomenológico de
compreensão de um fenômeno, vemos que não existe
uma única forma de se investigar. Como afirma Holanda
(2001):
Não podemos falar simplesmente de pesquisa fenomenológica como se esta fosse um conjunto único de
modos de ação. Há de se destacar que existem tantas
diferenças em termos de ação metodológica na fenomenologia quantas compreensões existem da própria
fenomenologia (p. 42).
Para Fonseca (2011), existiu no Brasil, e em toda a
América Latina, um grande movimento de reconstrução
da ACP após a morte de Rogers, provavelmente facilitado pela ocorrência dos grandes fóruns de debates e encontros Latinos e Brasileiros. Nestes encontros firmou-se
uma crítica vigorosa à concepção de pessoa “planetária”,
evidenciando a indissociabilidade indivíduo-mundo.
Afirma: “assumir esta concepção de pessoa na América
Latina é alienar das possibilidades da abordagem amplos
segmentos da população, e colaborar com o processo de
sua aniquilação já a um nível conceitual” (Fonseca, 2011,
p. 15). Tal crítica tem proporcionado estudos e pesquisas
que tentam uma aproximação da ACP com as fenomenologias, por acreditarem que tanto enquanto epistemologia, método e filosofia, ela pode potencializar uma psicologia que integre o homem ao seu mundo.
No Brasil, o movimento de discípulos de Rogers que
constroem uma interlocução teórica entre os fundamentos
da Abordagem Centrada na Pessoa e as Fenomenologias
tem se revelado um terreno fértil e produtivo. Neste percurso, alguns se aliam a Husserl e sua ontologia transcendental (Holanda, 2001, 2009; Amatuzzi, 2009, 2010);
enquanto outros caminham ao lado de Heidegger, tentando uma hermêutica ontológica (Frota, 1997; Feijoo,
2000; Barreto & Morato, 2009); outros ainda buscam
Merleau-Ponty, e a possibilidade de uma fenomenologia
encarnada (Moreira, 2007, 2009a). Vejamos alguns destes percursos, ainda em construção, numa visada superficial e panorâmica.
Amatuzzi (2010) compreende que o percurso que
Husserl faz, ao aprofundar a redução no contexto da filosofia, foi semelhante ao de Rogers, no contexto da psicoterapia. Para ele, Husserl parte de uma colocação entre parênteses da realidade do mundo e de uma concentração no próprio ato de conhecimento. Enquanto isso,
Rogers fala de deixar de lado tanto as teorias da pessoa
que fala, quanto às do próprio sujeito. Assim, caminha
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012
Artigo
pura e imutável, possível de ser alcançada pelo homem
através da razão. Segundo Frota (1997), a fenomenologia
aponta a “impossibilidade de se produzir um conhecimento
científico universal, uma vez que a universalidade se reduz a generalidades abstratas e a necessidade à freqüência e repetição dos eventos observados” (p. 28).
A Fenomenologia surge em oposição ao Positivismo,
em que o conhecimento é considerado válido apenas
quando os conceitos são construídos a partir de parâmetros lógicos e com a garantia de privação da intimidade
entre os homens e o mundo. A Fenomenologia acredita que o conhecimento é possibilitado, exatamente, por
meio da aceitação desta intimidade e envolvimento entre
homem e mundo. Pensar, para a Fenomenologia, significa indagar, questionar, tentar compreender. Algo processual, parcial, relativo. Muito diferente do conhecer
metafísico, que pretende “dominar” o conteúdo de uma
matéria ou disciplina.
Para a metafísica, há a distinção entre o ser das coisas e a aparência destas. Sendo a aparência, para tal
corrente, falaciosa, como se escondesse a verdadeira essência dos fenômenos. Já para a Fenomenologia, o que
se mostra, ou seja, a aparência é o próprio fenômeno
sujeito à produção de sentidos dados pelo telespectador. Na sua aparição, o fenômeno mostra-se carregado
de todos os sentidos a ele atribuído, que se interliga à
história, cultura, sociedade, da qual faz parte. Em resumo, Fenomenologia refere-se ao estudo do fenômeno.
Fenômeno, por sua vez, segundo Karwowski (2005), pode
ser entendido no seu sentido estrito, como aparecer, ou
aquilo que se mostra por si mesmo, partindo do grego
phainestai. Deste modo, não existe um fenômeno puro,
visto que a forma como o apreendo está diretamente ligado aos meus valores, à minha história, o que colabora
com a negação da neutralidade.
Segundo Critelli (1996), o pensar fenomenológico não
é privilégio somente dos filósofos. A partir dos anos 50
do século passado, houve um grande desenvolvimento do
enfoque fenomenológico para a Psicologia. O método fenomenológico passou a fazer parte do campo da Psicologia
tendo como objetivo capturar o sentido ou mesmo o significado da vivência da pessoa, tal qual experimentadas
na sua existência concreta. Contrária à idéia de verdade
como veritas, a fenomenologia existencial busca conhecer a verdade como aletheia, como desvelamento. Desse
modo, acredita que a verdade é sempre precária, incompleta, parcial. Seu método também não é o mesmo da
ciência positivista, constituindo-se num interrogar-se
constante. Na verdade, a fenomenologia surge como um
contraponto à ciência mecanicista, acenando para um
novo modo de se produzir conhecimento e, principalmente, de ver o mundo.
Esta perspectiva surge rompendo com o modelo de
ciência cartesiana e metafísica, que afirmava, conforme
já dissemos, que a verdade é universal e imutável, que o
conhecimento científico poderia ser apreendido sem fa-
Ana M. M. C. Frota
em direção ao puro vivido. Nesta perspectiva, assumida
por Amatuzzi (2010),
Rogers e Husserl se aproximam muito: eles usam o
mesmo método da redução, embora com finalidades
diferentes. Um para clarear o problema do conhecimento e outro para abrir caminho para a experiência
vivida numa relação facilitadora de crescimento. Husserl chega na necessidade de um eu transcendental,
e Rogers formula as reduções necessárias para um
contato humano profundo e criativo. Husserl acredita
que a redução desvenda uma face do humano que
tinha ficado escondida (o eu como sujeito) e cria a
necessidade de um novo conceito (o eu transcendental, que é afinal o eu sujeito). Rogers, um americano
pragmático, acredita que essa tríplice redução é que
abre o caminho para os dinamismos da pessoa em
pleno funcionamento e é isso que lhe interessa (p. 9).
Além disso, para Amatuzzi (2009), a atitude empática de Rogers leva a entrar em contato não somente com
o sentimento puro, mas com seu significado, captando o
movimento intencional da experiência, que, nesta perspectiva, seria muito mais verdadeiro.
Defendendo a perspectiva de que “toda Psicologia é
e deve ser fenomenológica”, Holanda (2009, p. 1) afirma
que para Husserl o fenômeno subjetivo é, antes de qualquer outra coisa, um fenômeno intersubjetivo, o que significa afirmar que o mundo não existe sem meu olhar.
Assim, não existe um mundo a ser visto e sim um intermundo. Evidencia-se aqui o conceito de mundo vivido:
mundo que nos é dado antes de elaborarmos conceitos
sobre ele. Deste modo,
Não se trata da natureza enquanto realidade objetiva
(estudada pela ciência positivista), mas do mundo que
se dá na relação, que se mostra como fenômeno primeiro e que pode ser depois elaborado no pensamento.
Conhecer este mundo é, então, conhecer nosso estar
nele, conhecer nossas relações (Amatuzzi, 2009, p. 5).
Artigo
Contudo, apesar da compreensão de que a Psicologia
não pode deixar de ver o fenômeno como uma fusão de
mundos, Rogers não parece ter se dedicado a esta premissa, é o que denunciam alguns seguidores da ACP. Senão
como compreender as críticas que se seguem?
A partir da perspectiva de Moreira (2007) o objetivo
maior da proposta rogeriana é dar importância à pessoa,
referindo-se a qualquer pessoa. Como consequência, perde de vista a estrutura social que constitui o indivíduo.
Na verdade, parece que Rogers segue
(...) falando de um homem subjetivo, que não se insere
na realidade concreta, objetiva. Fala de um homem
planetário, um homem do planeta Terra, ignorando
todas as diferenças existentes entre homens que vivem
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012
em contextos tão diversos e ignorando a realidade
concreta em função de uma visão subjetiva (Moreira,
2007 p. 57).
Para a autora, Rogers não consegue ultrapassar o individualismo, centrando-se no homem abstrato, descontextualizado sócio-historicamente, o que dificulta a emergência dos diferentes sentidos dos fenômenos. Moreira
(1990) afirma, que no primeiro momento do trabalho de
Rogers, não existia nem mesmo a tentativa da busca de
articulações de sentidos emergentes na relação terapeuta-cliente, uma vez que o cliente era mantido como centro. O mesmo acontecia na fase reflexiva, já que as interferências do terapeuta costumavam se dar a partir do
que era trazido pelo cliente e pelo que surgia na relação
terapeuta-cliente. As fases posteriores iniciam a exploração dos mundos fenomenais da dupla terapêutica, viabilizando uma fenomenologia da relação intersubjetiva
e não mais somente do cliente. Porém, ainda se mantém
numa concepção de “centrado na pessoa”, mesmo que
seja bi-centrado, como afirma Cury (1987). Isso acaba por
inviabilizar o processo terapêutico experienciado como
inter-subjetivo, uma vez que continua existindo amarras
de uma concepção centrada na pessoa.
Para Moreira (2009a), é a crítica à visão antropocêntrica de homem que se constitui no principal fundamento
epistemológico da psicologia humanista-fenomenológica,
no qual ela vem trabalhando. O postulado que Rogers
tinha da pessoa humana, considerando-a como centro,
com um externo e um interno, como uma dicotomia entre subjetivo e objetivo, impede que ele tenha uma prática
efetivamente fenomenológica. Assim: “Rogers desenvolveu uma teoria da psicoterapia centrada na pessoa e não
uma teoria psicoterapêutica fenomenológica mundana”
(Moreira, 2009a, p. 38). Como consequência, Moreira vem
desenvolvendo um trabalho de assimilação psicológica da
teoria filosófica, ou seja, da fenomenologia de MerleauPonty, adotando-a como suporte para a construção de
uma psicoterapia humanista fenomenológica.
Husserl foi duramente criticado por ser considerado
idealista, buscando uma filosofia transcendental, acreditando que nada mais existe que o pensamento, e que a
realidade estaria nele. A crítica à intencionalidade e à redução fenomenológica também foi grande (Critelli, 1996;
Frota, 1997). Contudo, Merleau-Ponty não aceitou estas
críticas a seu mestre, assegura Amatuzzi (2010). Para
ele, Husserl não era um idealista, pois o mundo já está
dado como pressuposto do próprio pensamento. Afirma:
Se nos instalarmos no interior do pensamento e
tentarmos deduzir daí o mundo como realidade
externa, jamais o conseguiremos. Se nos fecharmos
no pensamento, nada nos fará sair dele. Só há um
meio: compreender que o mundo já está dado como
um pressuposto, algo que podemos ver no próprio
pensamento, ou na consciência, desde que tenhamos
174
Origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: O Caso da Abordagem Centrada na Pessoa
Para os profissionais que tentam um caminho merleau-pontyano, a proposta da visão de homem antropocêntrica de Rogers é substituída pela visão de homem mundano, criando condições de se construir uma psicoterapia
humanista fenomenológica. Deste modo, partindo de um
novo fundamento epistemológico e filosófico, a fenomenologia antropológica de Merleau-Ponty apresenta a noção de homem como encarnado no mundo, um homem
enquanto um ser-no-mundo, um fenômeno em constante
interação com o mundo.
Resta-nos indagar, até que ponto não se vem criando
algo novo, tão novo, que rompe com a abordagem centrada, por caminhar por paradigmas outros que Rogers se
apoiou na construção de sua teoria? Será possível ainda
falarmos de uma aproximação com a ACP, ou falamos de
uma construção que trilha outras veredas des-encontradas das de Rogers?
Já na perspectiva da fenomenologia heideggeriana,
da fenomenologia ontológica de Heidegger como método
e base epistemológica para fazer uma articulação com a
psicoterapia, temos que a noção que se oferece como base
para a prática psicoterápica é a noção de homem como
dasein, como ser-aí. Nesta perspectiva, o que importa é o
ontológico e não o ôntico, embora saibamos que somente pela via do ôntico chegamos ao ontológico. Para saber
do ser do homem é necessário voltar-se a uma reflexão
ontológica, perguntar pelo ser do ente. Neste caminho,
o método hermenêutico é a via por meio da qual se pode
acessar ao sentido do existir em uma existência particular, única, e, ao mesmo tempo, tão imprópria.
Para Heidegger, o homem é um ser de cuidado e perguntar pelo ser, remete ao ente e seu modo de cuidar de
si. Como o ser não se mostra como é, e sim como representação ôntica, deve-se partir do que se mostra para
chegar ao que se é. Ou seja, do impróprio para o próprio,
do inautêntico para o autêntico.
O método hermenêutico é o modo de acesso à compreensão do ser, via fala. Para Heidegger, os seres humanos falam enquanto escutam e a escuta já é uma fala.
Assim, a fala é a casa do homem. Diz também que uma
visita de casa em casa é quase impossível. É no quase
que transitamos, na psicoterapia, para compreender o
ser, já que abre uma possibilidade de diálogo, de visita à
casa do outro. Visito a casa do outro a partir da minha
casa (Feijoo, 2000).
Heidegger e sua perspectiva de fenomenologia sugerem uma possibilidade de pensar a questão do ser. Está
completamente entranhada na sua filosofia ontológica.
O homem, dasein, é um ser lançado no mundo, cuja pré-sença é a abertura de possibilidades completa e total de
existência. É um ser incompleto, somente se completando com a morte. Assim, quando o Dasein é, não é mais.
175
A angústia e o temor são os modos de abertura do ser.
Do mesmo modo, a propriedade e a impropriedade também são características constitutivas do ente, que tem seu
ser em jogo. No modo próprio, o ser flui mais facilmente,
relacionando-se melhor com o ente. No impróprio, o ente
vive convenções, falatórios, regras sociais.
Enfim, a fenomenologia ontológica de Heidegger abre
uma possibilidade de, através da hermenêutica, chegar a
um sentido do ser.
Neste aspecto, cabe ao psicoterapeuta reconhecer a
inautenticidade, a impessoalidade e o esquecimento
das possibilidades do cliente, como também seu poder ser mais próprio e pessoal na revelação de suas
experiências para que, então, possa atuar como tal no
espaço psicoterapêutico do outro (Feijoo, 2000, p. 16).
Feijoo (2000) analisa a possibilidade de se fazer uma
clínica fenomenológico-existencial partindo de Heidegger
e de sua hermenêutica. Porém, não faz nenhuma aproximação com Rogers e a ACP. Para Lessa (2009), a clínica
existencialista, inspirada nas idéias de Heidegger, tem
características bem específicas:
(...) problematiza a vida enquanto processo de experimentação e não como uma representação daquilo
que foi experimentado. Nosso objetivo principal é
pensar o modo como o clínico lida com as diferentes
concepções do ato de pensar que atravessam o plano
da clínica existencial, visando dar visibilidade tanto
a sua concepção teórica quanto ao exercício efetivo de
sua prática. Especificamente pretendemos identificar
em que a clínica existencial se diferencia da clínica
que se restringe à representação, destacando, assim,
os elementos que propriamente constituem o modo
existencial de pensar a clínica (p. 15).
Barreto e Morato (2009) são categóricas ao negar a
possibilidade da ACP se constituir numa abordagem fenomenológico-existencial. Afirmam: “a abordagem fenomenológica existencial, tão acriteriosamente confundida
com a Psicologia Humanista, com a Abordagem Centrada
na Pessoa e a Gestalt-Terapia (...)” (p. 41-42). Nesta perspectiva, os saberes e práticas baseadas na compreensão
do sujeito separado do mundo, o sujeito em si, não dá
conta de compreender o homem, Dasein e, muito menos, de “proporcionar ao sujeito a compreensão do seu
modo de ser no mundo, abrindo-lhe possibilidades para
novas formas de existir, e devolver-lhe a capacidade de
dispor das possibilidades próprias e mais autênticas”
(p. 45), que seria o objetivo da psicoterapia fenomenológica existencial.
A partir de uma visada crítica, Barreto (2006) acredita que Rogers desenvolveu a “teoria da Terapia Centrada
no Cliente, na qual manteve a idéia de desenvolvimento
autocentrado, hipervalorizando a pessoa-indivíduo e as-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012
Artigo
uma atitude fenomenológica. É a intencionalidade que
nos restitui o mundo. Através dela percebemos que
ele sempre esteve lá (Amatuzzi, 2010, p. 6).
Ana M. M. C. Frota
sumindo a perspectiva do humanismo romântico presente
no pensamento moderno” (p. 117). Acredita que Rogers
concebe sua teoria numa “estrita ideologia individualista, centrada na possibilidade inesgotável do potencial
humano que se realiza a si mesmo, transformando o resto do mundo em meros intermediários, os quais funcionam como forças facilitadoras ou dificultadoras” (p. 117).
A autora desacredita que a Abordagem Centrada na
Pessoa, tal como postulou Rogers, reconheça a possibilidade do acontecer humano em um mundo adverso, uma
vez que assume a intenção de expurgar a dimensão do trágico da existência humana. Desse modo, afirma, “Rogers
não estaria apontando para possibilidades de compreender a existência humana como ser-no-mundo-com-outros,
porque ainda se baseava em uma compreensão de ação
clínica fundamentada na liberação da força vital de auto-realização do indivíduo” (p. 123). Assim, parece claro que declara uma cisão entre a ACP e a Hermenêutica
heidegeriana.
Para uma aproximação de uma clínica fenomenológica existencial, na compreensão de Barreto e Morato
(2009), a ação deve ser
(...) repensada como um espaço aberto, condição de
possibilidade para a emergência de uma transformação não produzida, mas emergente em forma de
reflexão, aqui compreendida como quebra do estabelecido e condição necessária para um novo olhar poder
emergir. Esse novo olhar, ao desalojar o homem da sua
habitual relação com o mundo e a consciência, abre
um espaço que só aparece quando o habitual é desconstruído e o homem (Dasein) se descobre entregue
à tarefa inexorável de ter-que-ser (p. 50).
Há, no entanto, pensamentos divergentes. Para
Bezerra (2007), por exemplo, é possível uma articulação
entre a ACP e Heidegger. Apresentando alguns conceitos
utilizados por psicólogos que adotam o modelo fenomenológico-existencial, Bezerra (2007) destaca o conceito de
angústia como possibilidade de revelação de um projeto
existencial inserido em um contexto situacional, e não
como um sintoma psicopatológico a ser extinto. Acredita
a autora que
Artigo
(...) na psicoterapia centrada na pessoa, a articulação
entre as perspectivas rogeriana e heideggeriana aponta para a necessidade de se abrir espaço, na teoria e
método da ACP, ao estranho, à falta, como condição
de possibilidade da existência. Esta perspectiva
des-centrada consiste em um olhar que vá além da
pessoa-indivíduo (Bezerra, 2007, p. 115).
Resta indagar: será oportuno se pensar em diálogos
entre a ACP e a filosofia heideggeriana que se tornem capazes de possibilitar a construção de algo novo, que se afine à Abordagem Centrada na Pessoa proposta por Rogers?
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012
Concluindo... se é que se pode concluir algo
Apesar da crítica ao trabalho de Rogers – talvez até
um pouco imerecida, já que ele nunca se disse fenomenólogo – muito das contribuições da ACP fazem parte da
prática clínica da psicoterapia humanista fenomenológica. A consideração positiva incondicional, por exemplo,
quando compreendida como respeito ao outro, respeito à
alteridade, à particularidade, permite reconhecê-la como
a confirmação do outro como um outro que mantém um
diálogo comigo. Tomando a mesma linha de pensamento,
a relação empática deixa de ser criticada por seu romantismo, para ser valorizada como a inauguração de uma parceria da dupla cliente-terapeuta, pressupondo uma compreensão e aceitação efetiva do outro, enquanto diferente.
Muitos caminhos vêm sendo desvendados. Muitas trilhas ainda a serem abertas. Rogers vem sendo discutido,
re-inventado, por muitos de seus seguidores que, ávidos
por ampliar seus campos de compreensão, perscrutam
diferentes possibilidades. Fica o desejo de conhecer novos horizontes investigados, sem preconceito, com a mente aberta para o novo e o diferente. Atentos, no entanto,
para o cuidado de não nos perdermos numa construção
na qual a tessitura se esgarce, se rompa, se parta em pedaços frankensteinianos, por total falta de coerência paradigmática e prática.
Rogers não se voltou a construir uma teoria fenomenológica. Tal movimento é mais uma característica contemporânea, feita por pesquisadores que têm se voltado
a estudar filosofia fenomenológica. Assim, a busca por
aproximar Rogers de Husserl, Heidegger e Merleau Ponty,
por exemplo, é muito mais uma preocupação atual, do
que a que foi assumida por Rogers.
Os destinos da Abordagem Centrada na Pessoa, como
Terapia Humanista Existencial estão se deixando descobrir/construir. A obra de Rogers está viva e, como tal, em
processo. Talvez nesta fase pós-rogeriana, tal como referendada por Segrera (2002), se construa algo não novo
que ganhe nomes e existência própria. Estaremos falando ainda da Abordagem Centrada na Pessoa?
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Ana Maria Monte Coelho Frota - Graduada em Psicologia, Mestre em
Educação pela Universidade Federal do Ceará e Doutora em Psicologia
Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo.
Atualmente é Professora Associada da Universidade Federal do Ceará
(UFC). Endereço Institucional: Universidade Federal do Ceará, Centro
de Ciências Agrárias (Departamento de Economia Doméstica) - Campus
do Pici, s/n, CEP 60455-760 (Fortaleza/CE). E-mail: [email protected]
Rogers, C. R. (1983). Um Jeito de Ser. São Paulo: EPU.
Recebido em 12.02.2012
Primeira Decisão Editorial em 03.07.2012
Segunda Decisão Editorial em 11.09.2012
Aceito em 30.11.12
Artigo
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Abordagem Centrada na Pessoa. Em C. Rogers, A. M. Santos,
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Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012
178
“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia
“VERSANDO SENTIDOS” SOBRE O PROCESSO DE
APRENDIZAGEM EM GESTALT-TERAPIA
“Traversing Meanings” About the Learning Process in Gestalt Therapy
“Ejercitando Sentidos “ Sobre el Proceso de Aprendizaje en Terapia Gestalt
João Vitor Moreira M aia
José Célio Freire
M ariana A lves de Oliveira
Resumo: Propomo-nos, a partir de um estudo exploratório, questionar: como se dá o processo de facilitação da aprendizagem em
Gestalt-terapia no ambiente acadêmico? Fez-se necessário compreender como a Gestalt-terapia, em seus referenciais teóricos,
entende o processo de facilitação da aprendizagem. Nesse sentido, nos detivemos em estudos sobre Gestaltpedagogia, e sobre a
formação do psicoterapeuta na Abordagem Gestáltica. Ampliamos nossos referenciais a partir das ideias de Martin Buber sobre
Educação e sobre a Filosofia Dialógica, estabelecendo também o diálogo com a Filosofia da Alteridade de Emmanuel Lévinas,
especificamente no que diz respeito ao conceito de ensino. Partindo do pressuposto que tais referenciais teóricos orientam nossa prática docente, intencionamos ilustrar nosso entendimento e vivência sobre a temática utilizando-nos das versões de sentido
realizadas por uma aluna que participou do Curso de Capacitação na Abordagem Gestáltica, oferecido aos estudantes de graduação do Curso de Psicologia na Universidade Federal do Ceará. Propomos uma prática docente que possibilite afetação, em
que se experiencie o abandono das referências, das seguranças do conhecido, e que proponha um conhecimento a partir desta
afetação provocada pela exposição ao outro do professor, dos livros e pelas experiências vividas a partir da experiência concreta em sala de aula.
Palavras-chave: Processo de aprendizagem; Gestalt-Terapia; Dialogicidade; Alteridade; Versão de sentido.
Abstract: Starting from an exploratory study, we are questioning How the process of learning facilitation in Gestalt therapy
works in the academic environment? It was necessary to understand how Gestalt Therapy views the process of learning facilitation in its theoretical references. Accordingly, we focus our readings in the Gestaltpedagogy studies, and on the training of psychotherapists in the Gestalt approach. We expanded our references from the ideas of Martin Buber on Education and Dialogical
Philosophy as well, thus establishing a dialogue with Emmanuel Levinas’s Otherness Philosophy, specifically regarding the
concept of Teaching. Assuming that such theoretical references guide our teaching practice, we intend to illustrate our understanding and experience on the subject using the versions of meanings performed by a student who participated in the Training
Course in the Gestalt Approach, offered to Psychology Course graduating students at the Federal University Federal of Ceará.
We propose a teaching practice that enables affectation, the experiences of references` abandonment, the security of the known.
We are proposing a knowledge from this affectation caused by exposure to the otherness of the teacher, of the books and the experiences from the concrete experience in the classroom.
Keywords: Learning process; Gestalt Therapy; Dialogicality; Otherness; Versions of meanings.
Artigo
Resumen: Se propone como un estudio exploratorio interrogar: ¿cómo es el proceso de facilitar el aprendizaje en la terapia
Gestalt en el ámbito académico? Se hizo necesario entender cómo la terapia Gestalt en sus referencias teóricas entiende el proceso de facilitar el aprendizaje. Con ello, nos detuvimos en estudios sobre Gestaltpedagogía, y sobre la formación del psicoterapeuta el Abordaje Gestáltica. Hemos ampliado nuestras referencias a partir de las ideas de Martin Buber sobre Educación
y sobre Filosofía Dialógica, estableciendo asimismo el diálogo con la Filosofía de la Alteridad de Emmanuel Levinas, en particular con respecto al concepto de la enseñanza. Suponiendo que tales referenciales teóricos orientan nuestra práctica docente, tenemos la intención de ilustrar nuestro conocimiento y la experiencia sobre el tema utilizándonos de las versiones de
sentido realizadas por una estudiante que participó del Curso de Capacitación en el enfoque de la Gestalt, que se ofrece a los
estudiantes del Curso de Psicología de la Universidad Federal de Ceará. Proponemos una práctica docente que permite la afectación, como lo experimenta el abandono de los referenciales, la seguridad del conocido, y proponer un conocimiento desde
esta afectación causada por la exposición al otro del profesor, de los libros y de las experiencias vividas en la experiencia concreta en las clases.
Palabras-clave: Proceso de aprendizaje; La terapia gestalt; Dialogicidad; Alteridad; Versión de sentidos.
179
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012
João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira
Artigo
Introdução
Este trabalho tem por objetivo apresentar os relatos
iniciais das experiências vividas e as reflexões construídas a partir do Curso de Capacitação na Abordagem
Gestáltica, oferecido aos alunos de graduação do Curso
de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, em
Fortaleza, como projeto específico do PROPAG/UFC, no
qual propomos uma atividade essencialmente relacionada ao processo de ensino/aprendizagem da Gestalt-terapia
como abordagem psicológica e atuação clínica. Buscou-se
ao longo do curso proporcionar uma melhor fundamentação epistemológica e teórica, colaborando com a formação do psicoterapeuta iniciante, no sentido também de
proporcionar um maior embasamento teórico-vivencial
na Abordagem Gestáltica.
Ao longo do curso referido, intencionamos examinar
as temáticas relativas às bases históricas e epistemológicas da Gestalt-terapia, em sua implicação na teoria e
nos fundamentos da prática clínica nesta abordagem.
Destaca-se que, por compreender as psicologias como
construções sócio-históricas, propomos uma reflexão
crítica acerca dos conhecimentos e práticas produzidas
pelas Psicologias, e mais especificamente pela Gestaltterapia, buscando entender as circunstâncias históricas,
sociais, econômicas e políticas em que as abordagens psicológicas foram construídas e legitimadas socialmente,
sabendo que este processo de construção persiste e se
renova constantemente.
Observamos que, na condição de abordagem psicológica, a Gestalt-terapia vem, em sua história recente,
se aproximando do espaço acadêmico, com gestalt-terapeutas ocupando cada vez mais o lugar na docência
e na elaboração de trabalhos acadêmicos – trabalhos de
conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de
doutoramento – que trazem como temáticas questões teóricas e práticas relacionadas à Abordagem Gestáltica.
Contudo, ainda nos parecem escassos os trabalhos que
se propõem a versar sobre o processo de ensino/aprendizagem na Gestalt-terapia no âmbito acadêmico, que em
nosso entendimento traz desafios diferentes dos normalmente encontrados nos cursos de formação/especialização
nesta abordagem. Intencionamos, ao longo do presente
trabalho, apresentar e discutir os desafios encontrados
em nossa experiência, fazendo também provocações sobre
a pertinência desta temática e a necessidade de estudos
que venham a alargar tais questionamentos, entendendo
que os temas aqui refletidos necessitam de um esforço
mais árduo do que o espaço de um artigo nos possibilita.
Destacamos a importância de discutirmos o processo
de aprendizagem da Gestalt-terapia no campo acadêmico, também pela forma que historicamente as abordagens
humanistas são apresentadas e discutidas nos cursos de
graduação. Neste sentido, Moreira (2007) nos fala que as
abordagens psicológicas humanistas, muitas vezes a partir da preocupação prioritária com a experiência, teriam
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012
colocado a teorização em segundo plano, o que viria a
possibilitar a concepção de que “a formação do psicoterapeuta humanista é mais fácil e que o aluno teria que
estudar menos, uma vez que o que vale é a vivência das
emoções” (p. 97). Moreira (2007) ressalta a necessidade
da fundamentação teórico-filosófica dos enfoques psicoterápicos humanistas, enfatizando a importância da pesquisa fenomenológica mundana, na elaboração de uma
“prática clínica competente, comprometida com o homem
e com o mundo” (p. 108).
Ao analisarmos a história da Gestalt-terapia como
abordagem psicoterápica, nos deparamos com o fato de
que ela “(...) esteve tradicionalmente avessa à teorização e
aos ‘sobreísmos’, intencionando com isso jamais desprender-se da realidade última e insuperável que é a vivência” (Karwowski, 2005, pp. 9-10). Tal compreensão gerou
um distanciamento de seus teóricos, em suas primeiras
décadas de história, do desafio e disciplina na construção de uma fundamentação teórico-epistemológica consistente e coerente, ressaltando que, desde a década de
oitenta, percebe-se um esforço por parte dos maiores expoentes da comunidade gestáltica na construção desse
alicerce teórico.
Neste sentido, Holanda (2005) ressalta que “a teoria e
a prática de uma abordagem não podem estar dissociadas de uma construção coerente e de uma fundamentação
sólida, bem como devem estar situadas num determinado
contexto” (p. 24). Assim, tomamos como compromisso em
nossa prática docente o ensino da Gestalt-terapia pautado em um rigor teórico-epistemológico, no entanto, sem
esquecermos do aspecto vivencial, tão enfatizado pelas
abordagens fenomenológico-existenciais.
Na medida em que as abordagens psicológicas, “devem
estar situadas num determinado contexto”, como aponta
Holanda (2005, p. 24), tomamos também como desafio as
colocações de Figueiredo (2009), quando afirma sobre a
urgência em estabelecermos em nossas teorizações “(...)
uma discussão histórica, sociológica e filosófica acerca do
mundo em que vivemos, das formas dominantes de existir neste mundo e de como as psicologias contemporâneas
são modos de tomar partido em relação aos problemas da
contemporaneidade” (p. 30).
Assim, a partir desta proposta de atividade docente e
das experiências vivenciadas ao longo do processo, surgiu
a necessidade de questionar: como se dá o processo de facilitação da aprendizagem em Gestalt-terapia no ambiente
acadêmico? Na tentativa de responder esta interrogação,
primeiramente, fez-se necessário compreender como a
Gestalt-terapia em seus referenciais teóricos entende o
processo de ensino/aprendizagem. Neste sentido, recorremos aos trabalhos de Burow e Scherpp (1985) sobre a
Gestaltpedagogia, e de Cardella (2002) sobre a formação
do psicoterapeuta. Ampliamos nossos referenciais para
os trabalhos de Martin Buber sobre Educação e sobre a
filosofia dialógica, e propomo-nos também o diálogo com
a filosofia da alteridade radical de Emmanuel Lévinas.
180
“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia
Burow e Scherpp (1985) entendem a Gestaltpedagogia
como um termo abrangente para conceitos pedagógicos
que se orientam pelas ideias teóricas e práticas da Gestaltterapia e da Psicologia da Gestalt. Ressaltam que antes
que se inicie qualquer prática pedagógica faz-se necessário que se tenham claros os objetivos, antes mesmo que
se busquem os métodos e conteúdos com os quais eles
possam ser melhor alcançados. Toma-se também como
premissa que os objetivos, os meios e conteúdos de ensino se encontram em dependência recíproca, afirmando-se assim, a necessidade de harmonizá-los.
Burow e Scherpp (1985) ao retratar o trabalho de
Besems, um gestaltpedagogo que formula explicitamente
seus objetivos a partir de uma perspectiva político-social
– em sua concepção de um ensino intersubjetivo – citam
quatro objetivos amplos:
(1) A autoconscientização e a ampliação das próprias
possibilidades, dos modelos de comunicação e do
comportamento frente aos outros e às coisas, e das
possibilidades de mudança direta do meio social [...]
(2) Proporcionar discernimento sobre o próprio funcionamento e sobre as relações históricas e sociais
desse funcionamento nos contextos interpessoal e social [...] (3) A ampliação das possibilidades de escolha
do indivíduo quanto a si próprio, quanto aos outros e
em relação ao mundo [...] (4) Criar premissas a fim de
racionalizar o discernimento da interdependência de
funções e, assim, possibilitar a representação ativa de
interesses (pp. 109-110).
Podemos entender que, em uma prática orientada gestaltpedagogicamente, o objetivo central é o de possibilitar
ao indivíduo o desenvolvimento de suas potencialidades
e de uma consciência sócio-política. Para tanto, segundo a visão da gestaltpedagogia, é preciso apenas que se
criem as condições necessárias.
Outro objetivo central da gestaltpedagogia é do levar
em conta, de forma adequada, o aspecto emocional no
processo de aprendizagem. Compreende-se que tomar o
aspecto emocional também como um objetivo central é
de fundamental importância para o processo de aprendizagem de uma abordagem psicológica, proposta em um
espaço universitário, haja vista que, tradicionalmente, o
ambiente acadêmico privilegia os conhecimentos cognitivos, em detrimento das outras formas de conhecimento.
Burow e Scherpp (1985) nos esclarecem que a modificação da relação interpessoal entre aluno e professor
é de fundamental importância para a gestaltpedagogia.
Pretende-se que o professor veja e aceite o aluno em sua
existência como ser humano, como premissa para o desenvolvimento de um clima de confiança mútua, franqueza e autenticidade de comunicação na sala de aula.
A relação intersubjetiva entre aluno e professor significa
181
que este compreende e trata aquele como ser humano total, não sendo percebido somente em sua função de aluno.
Entende-se que na concretização da influência da gestaltpedagogia em práticas educacionais, dá-se ênfase aos
aspectos experienciais dos afetos e emoções, de auto-conhecimento e das relações interpessoais da situação de
aprendizagem. Sobre isso, parece-nos interessante e cabível estabelecermos um paralelo da proposta da gestaltpedagogia com algumas das críticas que Moreira (2007)
tece à proposta educacional defendida por Carl Rogers.
Dentre outras críticas que Moreira (2007) formula
sobre a abordagem centrada no aluno, proposta por Carl
Rogers, destacamos uma que nos parece particularmente importante para revermos a influência da gestaltpedagogia nas práticas educacionais. Para Moreira (2007),
Rogers na medida em que privilegia a experiência vivida
pelo aluno enquanto pessoa desvaloriza a transmissão de
conhecimentos no ensino, e nos adverte:
O ensino não somente inclui elementos que se relacionam com aspectos pessoais e sociais (objetivos
da psicoterapia), mas também incorpora matérias
mais específicas, relacionadas com a transmissão do
saber. Uma sala de aula é o lugar onde se relacionam
dialeticamente ser e saber, inseridos numa realidade
institucional e, por conseguinte, social (p. 75).
Friedman (2002) quando nos fala sobre a perspectiva educacional em Martin Buber, refere-se a esta questão suscitada por Moreira (2007), apontando um conflito
entre as perspectivas filosóficas modernas da educação,
sugerindo que este segue até os dias atuais. De um lado,
temos aqueles que enfatizam a importância de os objetivos educacionais serem obtidos a partir dos grandes livros, da tradição clássica, ou do conhecimento técnico.
Do outro lado, estão aqueles que enfatizam o aspecto subjetivo do conhecimento e olham para a educação como
o desenvolvimento do poder criativo ou como a assimilação das experiências pedagógicas a partir dos interesses e necessidades subjetivas do aluno. Friedman (2002)
nos adverte que, dentro das reflexões de Buber sobre o
processo educacional, estas duas propostas teóricas representam aspectos parciais de um todo, e afirma que a
educação se dá quando:
(...) o aluno cresce através do encontro com a pessoa
do professor e o Tu do escritor. Neste encontro, a
realidade que o professor e o escritor lhe apresentam
se torna viva para o aluno: ela é transformada de potencial, abstrata, e sem relação para uma forma atual,
concreta, e como presença imediata da pessoa e ainda,
em certo sentido, como uma relação de reciprocidade.
Isso significa que, nenhuma verdadeira aprendizagem
ocorre a menos que o aluno participe, mas também
significa que o aluno deve encontrar algo realmente
“outro” do que ele antes que possa aprender (p. 209).
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012
Artigo
1. A Influência da Gestaltpedagogia
João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira
Tomamos como fundamento de nossa prática docente esta perspectiva, de que o processo educacional
se dá pelo encontro do estudante com a pessoa do professor e com livro, na medida em que o aluno se vê implicado por este encontro com algo que lhe é diferente,
outro. Temos aqui uma primeira sinalização do aprendizado pela alteridade, dos outros e dos livros, sem
que possamos em nossas práticas de ensino prescindir
dos aspectos pessoais e sociais, bem como dos objetivos mais específicos relacionados com a transmissão/
construção do saber.
2. A Filosofia Dialógica de Martin Buber e suas Contribuições à Educação
Artigo
Outro referencial teórico que tomamos, e a partir do
qual estabelecemos relações com o processo de ensino/
aprendizagem da Gestalt-terapia, é o pensamento filosófico de Martin Buber, a partir da antropologia filosófica. Dentre as contribuições de Buber para a reflexão
sobre Educação, destacamos neste estudo as ideias de
Inclusão e de Vereda Estreita, e suas reflexões sobre os
modos como se dá o conhecimento, que nos possibilitam pensar o processo educacional menos pela via da
construção metodológica, e mais por meio de uma perspectiva filosófica.
Por Inclusão, podemos entender a capacidade de o indivíduo, engajado no encontro dialógico, manter duplo
sentimento, tendo consciência de si próprio e, ao mesmo tempo, percebendo o outro na sua alteridade singular. Para Buber (conforme citado por Hycner, 1997), a
atitude de inclusão é fundamental para que se estabeleça uma relação dialógica genuína, traduzindo o conceito de inclusão como “(...) um salto audacioso – exigindo
a mais intensa mobilização do próprio ser – na vida do
outro” (p. 42).
Na perspectiva buberiana sobre educação, o mais
importante no encontro do professor com o estudante é
que ele experiencie o aluno do outro lado, sendo que se
este processo é vivido de maneira real e concreta é removido o perigo de que o ensino se dê de maneira arbitrária, e se dê a partir do reconhecimento das necessidades
dos alunos na relação destes com o mundo (Friedman,
2002). Outro conceito que pretendemos trabalhar neste
estudo é o de Vereda Estreita. Por ele, Buber (1942/1963)
desejava expressar que, como humanidade, não estamos
situados sobre
(...) o amplo planalto de um sistema que compreende
uma série de proposições seguras sobre o Absoluto,
mas que me sustentava em uma vereda estreita que
se erguía sobre o abismo, sem ter segurança alguma
de um saber expressável em proposições, mas sim,
tendo a certeza do encontro com o que permanece
oculto (p. 126).
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012
Essa metáfora, da Vereda Estreita, rejeita uma solução
tranquila para as questões humanas, afirmando ainda a
existência de paradoxos e contradições, presentes em cada
situação da condição humana. Buber (1942/1963) formula
esta perspectiva, se contrapondo às perspectivas filosóficas que buscam estabelecer uma condição de segurança
a experiência humana, destacando dentre elas o pensamento hegeliano. Para Buber (1942/1963),
Hegel tenta dotar o homem com uma nova segurança (...) O sistema de Hegel representa, no
pensamento ocidental, a terceira grande tentativa
de segurança: depois da cosmologia de Aristóteles
e a teologia de São Tomás, temos a logológica de
Hegel. Ela subjuga qualquer insegurança, toda
inquietude sobre o sentido, todo o medo pela decisão, toda problemática abissal (p. 48).
Buber (1942/1963) entende que Hegel exerceu uma
influência decisiva tanto sobre a maneira de pensar de
uma época, como também nas atitudes sociais e políticas. Influência que teria favorecido o distanciamento da
pessoa humana concreta e da sociedade humana concreta em favor de uma experiência racionalizada do mundo,
de processos dialéticos e formações objetivas. Criticando
esta perspectiva racionalizada da experiência humana e
do mundo, ele nos fala:
se o homem é o lugar e o meio onde a razão do mundo
se conhece a si mesma, então não há limite algum para
o que o homem pode saber. De acordo com a ideia, ele
realiza tudo, tudo o que há na razão (p. 48).
Buber, em toda sua antropologia filosófica, contrapõe-se a esta perspectiva de segurança na experiência humana, e afirma que “a grandeza do homem surge de sua
miséria”, da “da atitude da pessoa que se encontra, sem
morada, na intempérie do infinito” (Buber, 1942/1963,
p. 35). Sobre o homem, Buber (1942/1963) entende que,
(...) este se encontra no mundo como um estrangeiro
e um solitário. Quando se dissipa uma imagem de
mundo, prontamente surge uma nova pergunta por
parte deste homem que se sente inseguro, sem-teto,
que se questiona sobre si mesmo (...) Uma vez que
se tenha levado a sério o conceito de infinito, não é
possível transformar o mundo em uma mansão para
o homem (p. 36-37).
Podemos entender que, no que diz respeito ao mundo humano, delimitado pelo problema do homem, não
existe nenhuma segurança sobre o futuro, sobre o desconhecido. A partir destas concepções e entendendo o
processo educacional como uma experiência do mundo
humano, caminhar pela Vereda Estreita nos sinaliza que
não temos nenhuma garantia; há suporte, mas nenhum
182
“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia
(...) inteiramente concentrado em gravar na sua mente
o homem que observa, em ‘anotá-lo’. Ele o perscruta e
o desenha. E na verdade ele se empenha em desenhar
tantos ‘traços’ quanto possível. Ele os vigia para que
nenhum lhe escape (Buber, 1982/2009, p. 41).
Para Buber (1982/2009), outra forma se dá a partir da
contemplação, quando não se está absolutamente concentrado, e é possível para o contemplador se colocar numa
atitude que lhe permita ver o objeto livremente e esperar
despreocupado aquilo que a ele se apresentará. Destaca
que a atitude do contemplador só de início pode ser governada pela intenção, sendo que logo em seguida tudo
que se segue é involuntário.
Apesar das atitudes de observação e de contemplação se caracterizarem por uma diferença significativa,
Buber nos esclarece que o observador e o contemplador
estão na mesma posição, justamente o desejo de perceber
o homem, tomando este homem como objeto, que assim
não lhes exige “nenhuma ação e nem lhes impõe destino
algum; pelo contrário, tudo se passa nos campos distantes da estesia” (Buber, 1982/2009, p. 42).
Para Buber (1982/2009), existe uma percepção que é
de uma espécie decididamente diferente, a qual chama
de tomada de conhecimento íntimo, na qual em um dado
momento receptivo de nossa vida pessoal, encontra-nos
um homem em que há alguma coisa, que não conseguimos captar de uma forma objetiva, que nos ‘diz algo’, não
significando que isto que nos foi dito fale como este homem é ou o que se passa nele, não sendo possível retratar nem descrever o homem no qual, pelo qual, algo nos
foi dito, nada podemos contar sobre ele; se tentássemos
fazê-lo, já seria o fim do dizer. Buber (1982/2009) ressalta
que este homem não é nosso objeto, e na verdade, “o que
importa agora é unicamente que eu me encarregue deste responder. Mas em cada instância aconteceu-me uma
palavra que exige uma resposta” (p. 43).
183
Diante da exigência desta forma de tomada de conhecimento, que se mostra na necessidade de abertura para
entrar em contato com a palavra que me é dirigida e da
exigência de uma resposta, nos questionamos sobre a
forma de podermos facilitar em nossos alunos a consciência destes três modos de conhecer, e facilitar com que
nas relações com os outros em psicoterapia, seja possível
uma atitude que lhes permita também uma tomada de
conhecimento íntimo.
3.A Alteridade nas Abordagens Psicológicas e na
Aprendizagem das Mesmas
Neste momento, recorremos ao trabalho de Freire
(2002), onde o autor nos provoca ao questionamento sobre de que forma as abordagens psicológicas possibilitam
o encontro do sujeito com a alteridade do outro e de si,
com o desconhecido, o diferente, o desafiante; usando as
teorias como dispositivos de “descentramento”, possibilitando a dissolução das ilusões de unidade e identidade do sujeito moderno, reconhecendo a fragmentação e
a multiplicidade do indivíduo. A partir destas provocações, propomo-nos a refletir sobre a necessidade de estabelecermos algumas proposições para o ensino destas
psicologias, que para Freire devem possibilitar o encontro
do sujeito com a alteridade do outro e de si. Parece-nos
que as formas tradicionais de ensino e aprendizagem não
dão conta de facilitar nos alunos a construção e a prática
destas psicologias, às quais estamos sendo convocados.
Na direção das ideias de Freire (2002), Cardella (2002)
no livro A construção do psicoterapeuta refere-se ao “trabalho do psicoterapeuta como confronto com a alteridade” (p. 87). A autora compreende como condição para o
trabalho do psicólogo uma atitude de abertura para que
a alteridade do outro ressoe em sua própria alteridade.
Seria, assim, “no confronto com as alteridades do outro
e de nós mesmos que este trabalho se realiza” (Cardella,
2002, p. 89).
Na tentativa de compreender e construir uma proposta
de ensino que possibilite ao professor de psicologia e psicoterapia o aprendizado do aluno nesta abertura à alteridade, Cardella (2002) apoiando-se na filosofia mestiça de
Michel Serres, entende o processo de aprendizagem como
exposição e estranhamento. Nesta perspectiva, o processo
de aprendizagem “se dá quando ocorre o ‘estranhamento’,
a experiência de olhar de diversos ângulos ou perspectivas, de sair do lugar conhecido e familiar, de partir para
o desconhecido, de desbravar” (Cardella, 2002, p. 92).
A mesma autora (2002) afirma ainda que se faz necessário que o processo de aprendizagem possibilite ao
aprendiz passar pela experiência de abandono das referências, no qual se experimenta a exposição, a solidão,
a errância, sendo função do educador facilitar o processo pelo qual o aluno possa viver o risco de conhecer,
deslocando-o de sua estabilidade, ou seja, provocá-lo e
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012
Artigo
substituto para o envolvimento na experiência imediata.
Lança-se assim o desafio: como utilizar a segurança das
teorias e, ainda assim, não utilizá-las como uma defesa
contra o desconhecido?
Outra reflexão que intencionamos estabelecer tem relação com as formas como Buber entende que se dá o conhecimento do homem. Devido à especificidade do processo educacional ao qual nos propomos, o de facilitar a
formação de futuros terapeutas, entendemos que o conhecimento de que tratamos não se dá simplesmente por uma
via cognitiva ou racional, mas trata-se de um conhecimento sobre o humano, conhecimento por parte do aluno de
sua condição humana e da forma como ele percebe e se
relaciona com os outros humanos. Neste sentido, Buber
(1982/2009) nos fala de três maneiras pelas quais podemos
perceber um homem que vive diante dos nossos olhos.
Uma destas formas se dá pela observação, quando
se está:
João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira
facilitar sua exposição ao outro, provocando estranhamentos, o que possibilitaria que todos os sentidos possam ser vertidos.
Educar é, portanto, levar o aprendiz a compreender
que é outro para si mesmo e, assim, reconhecer a existência do diferente em si e no outro. Isso possibilita
um deslocamento, e a experiência da complexidade
que possibilita o aprender. O aprendiz deve experimentar o conhecido e o enigmático, o esperado e a surpresa, o estranho e o familiar (Cardella, 2002, p. 93).
A partir desta perspectiva de Educação, Cardella
(2002) afirma que o professor de psicoterapeutas deve promover a experiência de perda de referências, de errância,
de suspensão, para que o aluno possa se deparar com o
outro em si mesmo. A autora destaca ainda:
Artigo
Na formação de psicoterapeutas é importante que
haja oportunidade para que o aluno seja mobilizado,
perturbado, sob pena de deixar a universidade sem
aprender, num nível básico, a fazer uso de sua própria
experiência, o instrumento terapêutico por excelência, e colocá-la a serviço do outro (p. 94).
Cardella (2002) sintetiza que a tarefa da formação
de psicoterapeutas seria a de contribuir para que o aluno desenvolva alguma familiaridade e, talvez, muita estranheza, perante si mesmo: suas crenças, seus valores,
seus afetos, suas emoções, suas concepções, seus desejos,
suas necessidades, seus pontos cegos e suas dificuldades.
A partir destas colocações acerca do familiar e da alteridade, recorremos ao pensamento de Emmanuel Lévinas.
Propomo-nos, assim, o diálogo com a filosofia da alteridade de Lévinas, especificamente no que diz respeito ao
conceito de ensino que se dá pela epifania do rosto.
Destacamos que o pensamento de Lévinas parte de
uma crítica à filosofia tradicional, em especial a ontologia, que em seu entendimento estabelece o primado do
Mesmo, usurpando de suas teorizações o lugar do Outro,
para Lévinas anterior a questão do Eu. Assim, Lévinas
constrói seu pensamento ético-filosófico rompendo com
as tradições filosóficas ocidentais, que se caracterizam
pelo pensamento totalizador e pela primazia do Mesmo.
Com relação à primazia do Mesmo, para Lévinas
(1980/1988) a Teoria, a Razão, e a Representação – conceitos tradicionalmente privilegiados nos processos educacionais – se traduzem como uma redução do Outro ao
Mesmo, buscando assegurar a “inteligência – logos do
ser – ou seja, uma maneira tal de abordar o ser conhecido que a sua alteridade em relação ao ser cognoscente se
desvanece” (p. 30). Lévinas (1980/1988) estabelece uma
crítica ao método socrático – a maiêutica – e afirma que
o primado do Mesmo foi a lição de Sócrates: “nada receber de Outrem a não ser o que já está em mim, como se,
desde toda a eternidade, eu já possuísse o que me vem
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012
de fora” (p. 31). Para Lévinas a perspectiva maiêutica,
em seu sentido último, tem a ver com a permanência no
Mesmo. Nestes termos, “conhecer equivale a captar o ser
a partir de nada ou a reduzi-lo a nada, arrebatar-lhe a
sua alteridade” (Lévinas, 1980/1988, p. 31).
Neste momento, aproximamos a concepção de Buber
de tomada de conhecimento íntimo, que se dá pela condição de abertura para entrar em contato com a palavra que
me é dirigida e da exigência de uma resposta, com a perspectiva levinasiana de Discurso, que se dá pela condição
de abertura e resposta ao outro, logo ética. Permitimo-nos
utilizar uma extensa citação de Lévinas (1980/1988) que
nos esclarece as questões aqui discutidas:
O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a
ideia do Outro em mim, chamamo-lo, de facto, rosto.
Esta maneira não em figurar como tema sob meu
olhar, em expor-se como um conjunto de qualidades
que formam uma imagem. O rosto de Outrem destrói
em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que
ele deixa, a ideia à minha medida e à medida do seu
ideatum – a ideia adequada [...] Exprime-se. O rosto,
contra a ontologia contemporânea, traz uma noção de
verdade que não é o desvendar de um Neutro impessoal, mas uma expressão [...] Abordar Outrem no discurso é acolher a sua expressão onde ele ultrapassa em
cada instante a ideia que dele tiraria um pensamento.
É, pois, receber de Outrem para além da capacidade do
Eu; o que significa exatamente: ter a ideia do infinito.
Mas isso significa também ser ensinado. A relação
com Outrem ou o Discurso é uma relação não-alérgica,
uma relação ética, mas o discurso acolhido é um
ensinamento. O ensinamento não se reduz, porém, à
maiêutica. Vem do exterior e traz-me mais do que eu
contenho. Na sua transitividade não-violenta, produz-se a própria epifania do rosto (p. 37-38).
Dentro desta perspectiva ética de ensinamento, como
acolhimento ao discurso, o saber significa “(...) uma relação tal com o ser que o ser cognoscente deixa o ser conhecido manifestar-se, respeitando a sua alteridade e sem o
marcar, seja no que for, pela relação de conhecimento”
(Lévinas, 1980/1988, p. 29). Sabedoria ensinada pelo rosto do outro homem, na medida em que abrimos mão dos
saberes totalizantes que se dão pela primazia do Mesmo.
Ensinamento ético a partir do qual “(...) o Mesmo só pode
juntar-se ao Outro nas vicissitudes e nos riscos da procura da verdade, em vez de descansar em si em toda a segurança” (Lévinas, 1980/1988, p. 48).
Por fim, para Lévinas (1980/1988) “afirmar a verdade
como modalidade da relação entre o Mesmo e o Outro não
equivale a opor-se ao intelectualismo, mas a assegurar a
sua aspiração fundamental, o respeito do ser que ilumina o intelecto” (p. 51), mas destaca que “a experiência do
Outro a partir de um Eu separado continua a ser uma
fonte de sentido para a compreensão das totalidades, tal
184
“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia
4. Versando Sentidos sobre a Aprendizagem em
Gestalt-Terapia
Retomando neste momento nosso questionamento
inicial – Como se dá o processo de facilitação da aprendizagem em Gestalt-terapia no ambiente acadêmico? – e
na tentativa de respondê-lo não mais apenas a partir dos
referenciais teóricos da Gestalt-terapia, mas também a
partir das experiências vividas no Curso de Capacitação
na Abordagem Gestáltica, propomos a utilização do recurso metodológico da Versão de Sentido proposta por
Mauro Martins Amattuzi, e que vem sendo utilizada em
pesquisas fenomenológicas e nos processos de supervisão clínica na formação de psicoterapeutas.
Amatuzzi (2002) entende por Versão de Sentido (VS)
um relato livre, escrito ou falado, que não tem a pretensão
de ser um registro objetivo do que aconteceu, mas sim de
ser uma reação viva a isso, como uma palavra primeira.
Consiste numa fala expressiva da experiência imediata
de seu autor, face a um encontro recém-terminado.
Entendemos a pertinência desta proposta metodológica aos objetivos deste estudo exploratório, por entender que o mesmo nos possibilita compreender os sentidos
das experiências vividas no processo de aprendizagem
da Gestalt-terapia, bem como de ilustrar nossa proposta de ensino/aprendizagem ao longo da experiência aqui
retratada. Propomos assim, apresentar e discutir alguns
recortes das Versões de Sentido realizadas por uma aluna do referido curso, que foram realizadas ao término de
quatro encontros, com duração média de três horas cada
um, e que se deram por volta do meio do curso.
Tomamos como proposta didática norteadora de nosso trabalho docente uma metodologia teórico-vivencial,
que privilegiasse a leitura e discussão de textos filosóficos e teóricos que fundamentam epistemologicamente a
Gestalt-terapia. A partir da leitura dos textos era solicitado aos alunos que entrassem em contato com a forma
como aqueles os tocavam. Tal proposta pode ser ilustrada
a partir da fala da aluna: “O João Vitor sempre faz perguntas pra saber qual a relação que estabelecemos entre o que
estudamos e o que fazemos da nossa vida, e a maioria de-
185
las são bem inquietantes”. Tal fala nos sinaliza a riqueza
desta proposta de explicitar o diálogo entre o aluno e o
texto no processo de aprendizagem, promovendo também
ao longo das discussões questionamentos sobre a forma
como as temáticas trazidas pelo texto os afetaram e que
respostas são formuladas a partir dos questionamentos,
interpelações, exigências que as obras nos trazem.
Entendemos que ao tomarmos a discussão a partir do
campo existencial dos alunos, diminuindo assim o distanciamento entre a teoria e suas experiências concretas,
possibilitamos que os mesmos entrem em contato com os
fundamentos da Abordagem Gestáltica a partir de suas
referências existenciais, o que possibilita também que
estas possam ser confrontadas com as concepções éticas e estéticas da Abordagem Gestáltica. Neste sentido
a aluna nos fala:
Achei a dinâmica do dia bem interessante, pois refletimos e conversamos sobre categorias como desespero,
sofrimento, solidão, impotência, segurança, liberdade... Mais uma vez o facilitador solicitou que o grupo
se colocasse diante dessas categorias de forma pessoal
e compartilhassem o modo como somos afetados e o
significado daquilo na vida de cada um, de forma a
perceber quais crenças nos guiam e como isso pode
se refletir na nossa atitude como psicoterapeuta.
Entendemos que o diálogo entre a teoria e as experiências concretas dos alunos possibilita-os darem-se conta
de suas crenças, seus valores, seus afetos, suas emoções,
suas necessidades, seus pontos cegos e suas dificuldades,
processo de conscientização tão importante para a formação do psicoterapeuta. Permite ainda aos alunos darem-se conta do que muitas vezes é vivenciado de maneira
conflitiva e angustiante, o que pode ser percebido a partir da seguinte fala: “Em vários momentos me questionei
sobre como eu serei psicoterapeuta se eu tenho tanta dificuldade em acolher algumas falas de algumas pessoas”.
Entendemos que este processo de conscientização de si e
do outro, possibilita aos alunos entrarem em contato com
a diferença em si e no outro, consciência da alteridade.
Assim o processo do grupo, mesmo em se tratando de
um grupo didático-vivencial, como em nossa experiência no curso de capacitação, nos possibilita a experiência
de olhar de diversos ângulos ou perspectivas, de sair do
lugar conhecido e familiar. A partir da experiência imediata grupal se dá a facilitação de uma vivência compreensiva sobre a experiência de si e do outro, o que reforça a herança fenomenológica da Abordagem Gestáltica.
O desafio desta vivência grupal compreensiva no contexto do curso nos sinaliza a importância do processo de
construção de um clima de acolhimento das experiências e das alteridades percebidas no grupo, o que ultrapassa a perspectiva de estabelecimento de um clima de
confiança mútua, franqueza e autenticidade na relação
inter-humana professor-aluno, e instaura o desafio des-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012
Artigo
como a percepção concreta continua a ser determinante
para a significação dos universos científicos” (p. 45). Se
tomarmos a afirmação de Lévinas no âmbito dos discursos e práticas psicológicas, ressalta-se a necessidade de
um processo de aprendizagem que possibilite o encontro
e o acolhimento do Outro, da diferença, do estranho, em
oposição aos discursos teóricos e práticas de ensino totalizantes, que se fundamentam em verdades absolutas
e redutoras de toda alteridade ao primado do Mesmo, do
Saber, da Teoria, haja vista que são muitas as escolas e
abordagens psicológicas que se propõem em seus projetos
epistemológicos uma aproximação com o quadro das ciências naturais, gozando assim, de um status de verdade.
João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira
te clima nas relações grupais como um todo, que passa a
ser entendido e vivido como um dos principais aspectos
na mediação do processo de aprendizagem em Gestaltterapia. “Ainda é difícil para o grupo se expor e realmente
se implicar nas vivências propostas, mas acho que nesse
encontro caminhamos para uma maior cumplicidade e
intimidade”.
Interessante percebermos o que nos é revelado pela
aluna quando fala do grupo, que apesar de não se configurar como uma proposta de grupo terapêutico, possui intencionalmente elementos deste1. Sobre o grupo
nos é dito:
Artigo
É engraçado que pra mim o curso às vezes parece
um grupo terapêutico, em que eu vou ampliando
minha consciência e minha percepção sobre o fazer
do psicoterapeuta. Acho que isso também se dá principalmente devido as pontuação e interrogações que
o João Victor faz, que são geralmente bem pessoais e
profundas. Como o grupo não é terapêutico e ainda
não há tanta cumplicidade, algumas questões não
podem ser aprofundadas e por isso ficam em aberto e
continuam ressoando depois.
O trabalho com o grupo e o compartilhar de experiências em nosso entendimento possibilitam o questionamento e o possível abandono das teorias totalizantes,
na medida em que é permitido aos alunos expressarem
as mais diversas experiências sobre os temas suscitados
pelos textos e discussões, afirmando os diversos sentidos possíveis para a experiência humana. A forma como
os alunos são afetados e respondem a cada experiência
concreta em sala de aula atestam a impossibilidade de
esgotar os sentidos da experiência humana, apontando
assim para além do Mesmo.
Compreendemos assim, que o espaço didático-vivencial do grupo nos permite acessar aquilo que Buber denomina de tomada de conhecimento íntimo, ou a perspectiva de ensino proposta por Lévinas, na medida em
que possibilita a partir de uma condição de abertura ao
outro a experiência de ser provocado, afetação que exige
uma resposta. Afetação esta que nos damos conta pela inquietação, desconforto e sensação de sair mexido expressa pelos alunos, como descrita na fala anterior da aluna.
Na intenção de promover um espaço mais fértil possível para esta condição de afetação e resposta, propomo-nos também a utilização de outros recursos tais como
contos, poesias e filmes que buscam permitir no processo
educacional o conhecimento não apenas pela via da racionalidade, mas também pela sensibilidade. Em um dado
encontro, propomos o filme O Escafandro e a Borboleta
dirigido por Julian Schnalbe, novamente solicitando aos
alunos que buscassem darem-se conta de como eram afetados pelo filme. Neste sentido, a aluna nos fala
Enquanto facilitadores têm-se consciência dos limites éticos e das
possibilidades terapêuticas do espaço proposto.
1
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012
[...] fiquei observando como cada cena me afetava e
quais partes me chamavam mais atenção [...] Fiquei
emocionada com a cena em que o pai liga pra ele, e não
sei explicar porque, mas acho que ali mostra mais uma
vez a sensação de impotência dos dois diante da vida.
A fala da aluna nos remete ao conceito de Inclusão, que
trabalhamos anteriormente, e que se faz presente como
um dos conceitos básicos da clínica gestáltica, entendido como a condição de entrar em contato, tanto quanto
possível, com a experiência vivida pelo outro.
Uma última fala da aluna nos parece bastante interessante para evidenciarmos nosso esforço para a superação da histórica dicotomização teoria e vivência nos
processos de formação dos gestalt-terapeutas:
Fiquei muito feliz por conseguir enxergar distúrbios de
contato como a confluência e a retroflexão em casos
reais que eu conheço, o que me transmitiu momentaneamente uma sensação de segurança em relação
a minha atuação na clínica no próximo semestre [...]
Já aconteceu, mais de uma vez, de eu ‘fechar algumas
gestalten’ teóricas no grupo [...].
Propomo-nos assim, uma perspectiva integrativa destes aspectos do processo de aprendizagem, da experiência humana, o que intencionamos evidenciar em nossa
proposta de diálogo dos alunos com os textos a partir de
suas experiências concretas. Uma proposta didática que
enfatiza os aspectos experienciais dos afetos e emoções,
de autoconhecimento e das relações interpessoais da situação de aprendizagem sem, no entanto, desvalorizar a
transmissão de conhecimentos no ensino.
Considerações Finais
Intencionamos, a partir deste estudo exploratório,
compreender como se dá o processo de facilitação da
aprendizagem em Gestalt-terapia no ambiente acadêmico,
e, neste intento, caminhamos pelos referenciais teóricos
da abordagem, bem como pelas experiências vividas no
Curso de Capacitação na Abordagem Gestáltica, a partir
das Versões de Sentido.
Ao entendermos a Gestalt-terapia como construção
sócio-histórica, temos consciência de seu próprio contínuo processo de (re)construção, da mesma forma, das respostas que a abordagem dá a sociedade contemporânea,
afirmando a importância do sentido ético dos discursos
e práticas psicológicas. Compreendemos também que na
tentativa de melhor se organizar em seus fundamentos
epistemológicos e teóricos, a Gestalt-terapia se apresenta
hoje de maneira cada vez mais presente no âmbito acadêmico, o que afirma a necessidade de pensarmos como
se dá o processo de aprendizagem da Gestalt-terapia nestes espaços.
186
“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia
Destaca-se que na tentativa de superação de antigas dicotomias presentes nos primeiros momentos do
desenvolvimento da Abordagem Gestáltica, propomos
uma prática docente compromissada e pautada no rigor teórico-epistemológico, no entanto, sem esquecer
o aspecto vivencial, tão enfatizado pelas abordagens
fenomenológico-existenciais.
Ao entendermos a Gestalt-terapia como uma abordagem que propõe uma perspectiva compreensiva do outro,
em que se toma como fundamento de sua prática clínica
a abertura à consciência, o diálogo e o confronto com a
alteridade, defendemos uma prática docente que possibilite aos alunos a consciência da alteridade em si e do
outro. Prática docente que possibilite afetação, em que se
experiencie momentaneamente o abandono das referências, das seguranças do conhecido, e que proponha um
conhecimento a partir desta afetação provocada pela exposição ao outro do professor, dos livros e das experiências vividas a partir da experiência concreta em sala de
aula. Experiência que promova estranhamento e uma certa familiaridade, mas que tenha como intenção provocar
respostas por parte dos alunos e do professor, respostas às
exigências de cada situação vivida, cada texto, cada face
que se apresente e que exija esta implicação responsiva.
Entendemos a necessidade de investimento em estudos mais profundos que tomem esta temática, haja vista
que ainda nos parecem reduzidos os trabalhos que se propõem a versar sobre o processo de ensino/aprendizagem
no âmbito acadêmico. Esperamos que a partir do contato dos leitores com a presente obra novas inquietações
possam ser vivenciadas; questionamentos, divergências,
mobilização que sinalizem afetação e que possibilitem o
responder. Que os leitores, alunos e mestres, se conscientizem desta palavra que lhes é dirigida como texto, e que
nos digam: “e o que me importa agora é unicamente que
eu me encarregue deste responder. Mas em cada instância aconteceu-me uma palavra que exige uma resposta”
(Buber, 1982/2009, p. 43).
Referências
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Editora Alínea.
Buber, M. (1963). ¿Qué es el hombre?. México, DF: Fondo de
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São Paulo: Annablume.
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Hycner, R. (1997). Relação e cura em Gestalt-terapia. São Paulo:
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Lévinas, E. (1988). Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70
(Original publicado em 1980).
Moreira, V. (2007). De Carl Rogers a Merleau-Ponty: a pessoa
mundana em psicoterapia. São Paulo: Annablume.
João Vitor Moreira Maia - Mestrando em Psicologia pelo Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará
(Bolsista Capes/Propag); Gestalt-terapeuta e Coordenador Pedagógico
do Instituto Gestalt do Ceará. Endereço Institucional: Instituto Gestalt
do Ceará, Rua João Regino, 474 (Parque Manibura). CEP 60821-780,
Fortaleza/CE, Brasil. E-mail: [email protected].
José Célio Freire - Professor Associado do Departamento de Psicologia e
do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Endereço
Institucional: Departamento de Psicologia. Av. da Universidade, 2762
(Campus do Benfica), CEP 60020-180, Fortaleza/CE, Brasil. E-mail:
[email protected].
Mariana Alves de Oliveira - Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará e Aluna do Curso de Capacitação na Abordagem
Gestáltica. E-mail: [email protected].
Recebido em 10.05.2012
Primeira Decisão Editorial em 25.09.2012
Aceito em 12.12.2012
Artigo
Buber, M. (2009). Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Debates
(Original publicado em 1982).
Burow, O. A., & Scherpp, K. (1985). Gestaltpedagogia: um caminho para a escola e a educação. São Paulo: Summus.
187
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012
Lauane Baroncelli
ADOLESCÊNCIA: FENÔMENO SINGULAR E DE CAMPO
Adolescence: a singular and field-related phenomena
La adolescencia: un fenómeno único y producidos en el campo
Lauane Baroncelli
Resumo: O período do desenvolvimento humano denominado adolescência vem sendo frequentemente concebido, tanto na literatura científica sobre o tema, quanto no imaginário do homem comum, de forma estereotipada e generalizante. Condições de
caráter histórico e concreto são, nesta ótica, naturalizadas, e a adolescência é tomada como uma série previsível de características comuns a todos aqueles que vivenciam o período. Neste artigo, analiso como e por que a Abordagem Gestáltica questiona e
refuta tal perspectiva. Na literatura sobre adolescência, tais questões vêm sendo tradicionalmente discutidas na perspectiva da
Psicologia Sócio-Histórica. Por isso, e considerando também a afinidade teórica desta perspectiva com a Gestalt-terapia no que
tange à relação indivíduo/contexto, o artigo inicia com uma breve discussão sobre a ótica sócio-histórica acerca da adolescência.
Em seguida, analisa-se como a Gestalt-terapia, por meio de seus pressupostos teóricos mais elementares – destacando-se, entre
eles, a Teoria de Campo de Kurt Lewin – ressoa e oferece novas nuances à crítica sócio-histórica, concebendo a adolescência
como um fenômeno singular e de campo.
Palavras-chave: Adolescência; Gestalt-Terapia; Psicologia sócio-histórica; Teoria de campo.
Abstract: The developmental period called adolescence has been often conceived, both in the scientific literature about the
subject as well as in common sense, from a stereotyped and generalizing point of view. Historical and concrete conditions are,
in this perspective, conceived as natural features of adolescence and the period is taken as a set of predictable characteristics
common to all adolescents. In this paper, I analyze why and how the Gestalt Approach refutes this perspective. In the literature
on adolescence, these issues have been analyzed on the perspective of the Socio-historical Psychology. As such, and also because of the affinities between this perspective with Gestalt-therapy in regard to the relationship between individual and context, the paper begins with a brief discussion about the socio-historical outlook on adolescence. Following, it is analyzed how
Gestalt-therapy, according to its most elementary theoretical premises – foremost among them, the Kurt Lewin’s Field theory
– resonates and, at the same time, provides new nuances to the socio-historical critique, conceiving adolescence as a singular
and field-related phenomenon.
Keywords: Adolescence; Gestalt-Therapy; Socio-historical psychology; Field theory.
Resumen: El período de desarrollo llamado adolescencia a menudo se ha concebido, tanto en la literatura científica sobre el
tema, así como en el sentido común, desde un punto de vista estereotipado y generalizado. Condiciones generales de uso histórico y concreto son, en este punto de vista, naturalizada, y en la adolescencia se toma como una serie predecible de características comunes a todos los que experimentan el período. En este artículo se analiza cómo y porqué el enfoque Gestáltico refuta
esta perspectiva. en las teorias sobre la adolescencia, estas cuestiones han sido analizadas desde la perspectiva de la Psicología
socio-histórica. Como tal, y también debido a las afinidades entre esta perspectiva con la Gestalt-terapia en cuanto a la relación
entre el individuo y el contexto, el artículo comienza con una breve discusión sobre el panorama socio-histórico en la adolescencia. A continuación, se analiza cómo la Gestalt-terapia, de acuerdo con sus supuestos teóricos más básicos – entre los que
destaca la Teoría del Campo de Kurt lewin – resuena y, al mismo tiempo, ofrece nuevos matices a la crítica histórico-social, concibiendo la adolescencia como un fenómeno singular y de campo.
Palabras-clave: Adolescencia; Gestalt-Terapia; Psicología socio-histórica; Teoría de campo.
Artigo
Introdução
O presente artigo pretende discutir a adolescência sob
a perspectiva da Gestalt-terapia, entendendo-a como um
fenômeno singular e de campo. Nesta direção, questionamos a concepção naturalizante presente em diversos
estudos sobre a adolescência em que características de
caráter supostamente universal são tomadas como condição natural deste período.
Para desenvolver tal argumento, o artigo estabelece
uma articulação entre algumas leituras sobre a adolesRevista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012
cência na ótica da psicologia sócio-histórica e o embasamento teórico da Gestalt-terapia. A escolha de tal rota
teórica se justifica pela coerência entre tais abordagens
no que tange à relação indivíduo-contexto.
A Psicologia Histórico-Cultural ou Sócio-Histórica
fundada por Liev S. Vygotski na década de 1920 e desenvolvida por autores como Luria e Leontiev entende o
indivíduo como um ser constituído nas condições concretas de sua existência. Sob inspiração do materialismo
histórico dialético de Karl Marx, o indivíduo é concebido
nesta abordagem como um ser ativo e histórico. Em outras
188
Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo
189
Muitas outras diferenças poderiam ser discutidas,
mas como dito, não é este o espaço para tal. Nosso objetivo é, portanto, e tão somente, explorar e desenvolver a
compreensão da adolescência na Abordagem Gestáltica
como um fenômeno singular e de campo partindo de um
diálogo com algumas leituras da abordagem sócio-histórica acerca do tema.
A afinidade de posicionamento teórico no que concerne, como mencionado anteriormente, à relação indivíduo-contexto torna tal articulação teórica não só possível como também bastante inspiradora para o entendimento do fenômeno da adolescência numa ótica gestáltica. Assim, se por um lado, a ênfase nas determinações
sócio-históricas é rejeitada pela Gestalt-terapia, por outro
lado, a ênfase oposta, nos aspectos biográficos do ser em
contraposição aos aspectos mais amplos da pertença ao
mundo social, cultural e econômico é outra maneira de
também negligenciar partes e, portanto, de perder a visão
de todo tão valorizada nesta abordagem. Como psicólogos e psicoterapeutas, sabemos que, na prática, o risco na
direção de uma compreensão psicologizante do humano é sempre presente, embora também acreditemos que
a fundamentação teórica da Gestalt-terapia nos protege
disso. Assim, não só no sentido teórico, mas também no
sentido pragmático, o diálogo com uma abordagem que
sublinha o olhar sócio-histórico parece relevante.
1. A Leitura Sócio-Histórica da Adolescência
Conforme os estudos de Aguiar, Bock e Ozella (2001)
a idéia hoje hegemônica sobre a adolescência é contemporânea ao surgimento da sociedade moderna industrial.
Segundo os autores, é por meio da maior permanência
dos jovens nas escolas e do correlato retardamento da
profissionalização dos mesmos no interior de um determinado sistema sócio-cultural e econômico que se
conforma a adolescência com as características que conhecemos hoje.
Discutindo a adolescência sob o ponto de vista da
Psicologia Sócio-histórica, Facci e Tomio (2009) sugerem
que uma indicação clara da conformação histórica da
adolescência se revela no discurso das gerações anteriores. As autoras observam que pessoas nascidas por volta
da década de 1940 e anteriormente, costumam declarar
que “no seu tempo não havia adolescência”, no sentido
de um período intermediário entre a infância e a idade
adulta. Tais discursos sugerem que há cerca de 80 anos,
as pessoas passavam da condição de criança diretamente para a de adulto, processo este fortemente vinculado
à presença do trabalho, principalmente no caso dos homens. No caso das mulheres, apontam as autoras, uma
vez que estas eram chamadas a cuidar da casa ou mesmo de uma nova família (na medida em que se casavam
bem mais cedo), este “período de latência” entre infância
e vida adulta também não fazia sentido. Somente a partir
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012
Artigo
palavras, como determinado e determinante da própria
condição no interior de um dado contexto.
Similarmente, a Gestalt-terapia – refletindo dentre outros aspectos teóricos, a assimilação de certos pressupostos-chave da Teoria de Campo fundada por Kurt Lewin
– vê o ser humano como um existente impossível de ser
compreendido fora do contexto de suas relações, desde as
mais elementares, com as pessoas de seu convívio, até as
mais amplas, com a sociedade, a história, e o universo.
Em um artigo esclarecedor acerca das fontes epistemológicas do pensamento vigotskiano, Toassa e Souza (2010)
sublinham algumas importantes afinidades teóricas entre
Vigotski e Kurt Lewin. Dentre tais afinidades, as autoras
destacam os conceitos de espaço vital e campo psicológico
de Lewin de um lado, e o conceito vigotskiano de vivência, de outro. Segundo elas, a imersão do indivíduo em
seu meio é destacada em ambos, superando concepções
dualistas de outras psicologias nas quais uma cisão artificial entre meio e indivíduo é estabelecida.
Desde Lewin e Vigotski, portanto, pode-se dizer que
a abordagem sócio-histórica e a Abordagem Gestáltica
convergem no que tange a consideração dos fenômenos
em sua totalidade, superando dualidades como interno/
externo, biológico/social, ontogênese/filogênese, psíquico/orgânico, homem/sociedade, dentre outras.
Reconhecendo tais ressonâncias, é necessário ressaltar, entretanto, que o presente estudo não almeja desenvolver uma articulação da ótica Sócio-Historica sobre a
adolescência com a visão da Gestalt-terapia. Além de não
ser o foco do artigo, tal proposta ultrapassaria em muito
o espaço disponível.
É importante esclarecer ainda que acreditar na possibilidade de diálogo entre tais abordagens não implica
sugerir que estas são congruentes em todos os seus aspectos teóricos e filosóficos. A própria afinidade teórica entre Lewin e Vigotski, por exemplo, não exclui a
existência de diferenças importantes entre as suas teorias, o que se revela, por exemplo, na forte inspiração
histórico-cultural, marxista, presente no pensamento
de Vigotski e ausente nas idéias do primeiro. A inspiração marxista dota a ótica sócio-histórica de uma ênfase
particular na idéia de dominação econômico-ideológica
e política no interior da sociedade capitalista e de crítica a este sistema, ênfase esta que não faz sentido na
Gestalt-terapia.
Além disso, embora afirmem o homem como multidimensional, determinado e determinante de sua condição, em algumas análises, a dimensão de determinação se sobrepõe ao reconhecimento e devida valorização da liberdade e singularidade humanas como entende a Gestalt-terapia. Ainda, o caráter fenomenológico da
Gestalt-terapia a diferencia da perspectiva sócio-histórica
que, numa inspiração vigotskiana, postula que a compreensão dos fenômenos só é possível a partir de uma explicação (e não “meramente” uma descrição) das relações
que o determinam.
Artigo
Lauane Baroncelli
da necessidade de prolongar o tempo de formação dos jovens – a fim de prepará-los para as novas as demandas de
trabalho geradas pela industrialização emergente – que a
idéia, os discursos e, em muitos sentidos, a própria experiência da adolescência começa a se constituir.
Um estudo de Clímaco (1991, conforme citado por
Bock, 2007) ressalta que outro aspecto relevante na construção histórica da adolescência foi o impacto gerado pelo
desenvolvimento científico sobre a prolongação da vida
e o consequente aumento de adultos jovens em idade
de trabalho. A partir disso, mais uma razão se colocava
para aumentar o tempo de permanência nas escolas, pois,
além da já citada demanda de formação mais sofisticada, a escolarização prolongada ajudaria a regular a alta
taxa de desemprego dos estágios iniciais do desenvolvimento industrial.
Neste processo, os filhos passam a viver mais tempo
sob a tutela dos pais, sem ingressar no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que surgem as oportunidades
para que encontrem, na escola, os chamados “grupos de
iguais”. Com isso, apesar de ser possível assumir um papel diverso na sociedade (como acontecia no passado), o
jovem se distancia do mundo do trabalho e das possibilidades de obter autonomia e condições de sustento. Estão
lançadas, assim, as condições sociais que “convidam” os
jovens a desenvolver uma série de características que,
nos dias de hoje, são frequentemente concebidas como
naturais (Bock, 2007).
Segundo a crítica sócio-histórica, com a qual concordamos, os discursos de caráter naturalizado sobre a adolescência devem ser revisitados. No domínio da Psicologia, sob influência da Psicanálise e da
Epistemologia genética principalmente, uma visão naturalizante da adolescência é desenvolvida e se propaga por todo o ambiente cultural. Nesta ótica, a adolescência é decorrente, sobretudo, de um acelerado processo de mudanças biológicas e ‘pulsionais’ (por meio
do despertar da sexualidade no nível da maturidade
genital) que, por si só, acarretam as mudanças supostamente inerentes ao desenvolvimento adolescente (Facci
& Tomio, 2009).
Ao alienar a participação da cultura na conformação das visões e experiências da adolescência, tal perspectiva naturalizante subestima não apenas as raízes
históricas do período como também os interesses subjacentes de mercado que se beneficiam de uma delimitação precisa de características, hábitos e interesses nesta
época da vida.
Num artigo que trata da historicidade dos conceitos
de infância e de adolescência, Frota (2007) cita diversos
autores que analisam a interrelação entre adolescência
e mercado. Abramo (1994, conforme citado por Frota,
2007), por exemplo, analisa que por volta da década de
1960, período em que os chamados movimentos estudantis e, portanto, os jovens, ganham grande projeção cultural, surge uma grande variedade de signos associados
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012
à cultura juvenil. Estes, sendo incorporados pelo mercado (em rápida evolução na época) e espetacularizados
na lógica própria do marketing e dos meios de comunicação, ajudam a produzir novos traços para a identidade juvenil. Marcadas por imagens produzidas de “ser
jovem” – muitas vezes associadas à rebeldia, contestação de regras e à busca do prazer – e pelo consumo de
determinados bens e serviços, as identidades adolescentes vão então se constituindo. Nesse processo, em alguns
níveis, a adolescência se torna um discurso de mercado
que simultaneamente revela e produz visões e experiências de ser adolescente.
Tais raízes históricas são raramente levadas em consideração nos estudos clássicos sobre o tema. Ao invés
disso, a adolescência tem sido tradicionalmente descrita
como um período inerentemente problemático em que
a irresponsabilidade, a rebeldia gratuita e as identificações massificadas com grupos e tribos predominam não
como conseqüência de tais forças, mas como um efeito
previsível numa adolescência dita normal.
Aguiar et al. (2001) sublinham o papel central da
Psicanálise na construção desta perspectiva, em que a
adolescência é tomada como uma fase inerentemente problemática a ser ultrapassada em direção à maturidade.
Particularmente, afirmam os autores, diante da influência exercida pelo psicólogo Stanley Hall (introdutor da
psicanálise nos Estados Unidos) a adolescência passa a
ser concebida como uma etapa marcada por conturbações
vinculadas à emergência da sexualidade.
Mais recentemente, Aberastury e Knobel (1992) reproduzem e disseminam tal concepção naturalizante. Na leitura dos autores, após tornar-se biologicamente capaz de
exercer a sua genitalidade para a procriação, e vivenciar
mudanças “incontroláveis” em seu corpo, instauram-se
conflito referentes à diferença entre o corpo real e o corpo
ideal e ainda quanto à própria definição da sexualidade,
que não ocorre de imediato. Tal conflito fomenta reações
de instabilidade afetiva, crises, conduta turbulenta ou de
indiferença, angústias e ansiedades, configurando uma
espécie de “patologia normal da adolescência”.
Outro aspecto problemático das visões sobre a adolescência que vem sendo denunciadas pela perspectiva
sócio-histórica diz respeito à postulação de características supostamente universais do período baseadas, na
realidade, nas condições de adolescentes oriundos das
classes médias e altas da sociedade.
Tais características e experiências, tomadas em análises pouco cuidadosas como generalizáveis, são, entretanto, plenamente situadas. Neste sentido, a singularidade
das contradições e incertezas de adolescentes oriundos
das classes populares, que pra começar, experimentaram infâncias bastante diversas, raramente é levada em
consideração. Eles são adolescentes e isso parece dizer
tudo. Será?
As pesquisas de Aguiar e Ozella (2008) sugerem que
a resposta a esta pergunta deve ser um sonoro “não”.
190
Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo
2.Perspectivas Gestálticas: Adolescência-no-Campo
Ao investigar tais circunstâncias sobre o ponto de vista da Gestalt-terapia, constata-se, em primeiro lugar, que
o questionamento acerca dos condicionantes contextuais
da adolescência realizado pelos autores da abordagem
sócio-histórica é bastante coerente com a perspectiva de
relacional abraçada pela abordagem.
Como desenvolveremos a seguir, a Gestalt-terapia entende ser a concretude da existência do ser-no-mundo que
se manifesta em cada adolescente. Tal concretude inclui,
mas não se limita, nem se organiza a partir do aspecto
fisiológico das mudanças corporais, como diversas abordagens teóricas pressupõem. Ser adolescente é, portanto,
sê-lo num determinado corpo, mas também numa determinada sociedade, etnia, classe social, cultura, família
e para determinada pessoa que vai significar todos estes
aspectos de formas sempre únicas.
Desta maneira, a perspectiva evolucionista em que o
desenvolvimento psicológico ocorre de maneira progressiva por meio de estágios fixos e invariáveis – adotada
pelas teorias tradicionais sobre adolescência – deve ser
contestada. Ao conceberem seres abstratos que atravessam os mesmos estágios, na mesma sequência, em direção à maturidade, tais teorias alienam pelo menos dois
aspectos fundamentais da Abordagem Gestáltica: a concretude existencial dos existentes e sua singularidade.
Concordamos então com as idéias de Antony (2006) e
Soares (2005) quando sustentam que a compreensão do
desenvolvimento segundo a Gestalt-terapia supera a visão
reducionista e determinista do existir humano que compartimenta, fixa e normaliza as fases da vida
Na Gestalt-terapia, a idéia de seres concretos e situados
é revelada desde a noção de campo-organismo-ambiente
apresentada por Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997)
no livro inaugural da Gestalt-terapia:
191
Em toda e qualquer investigação biológica, psicológica
ou sociológica temos de partir da interação organismo-ambiente. Não tem sentido falar, por exemplo, de um
animal que respirar sem considerar o ar e o oxigênio
como parte da definição deste, ou falar de comer sem
mencionar a comida (...). Não há uma única função, de
animal algum, que se complete sem objetos e ambiente
(...). Denominemos esse interagir entre organismo e
ambiente em qualquer função o ‘campo organismo/
ambiente’ e lembremo-nos de que qualquer que seja a
maneira pela qual teorizamos sobre impulsos, instintos, etc., estamos nos referindo sempre a este campo
interacional e não a um animal isolado (p. 42-43).
A Teoria de Campo de Kurt Lewin, embutida na definição gestáltica de campo-organismo-ambiente, introduz a idéia de que, psicologicamente, diversas forças e
influências agem umas sobre as outras produzindo um
resultado que é sempre único dentro de um tempo igualmente específico.
Em “Principles of Topological Psychology” (1936),
Kurt Lewin explicita sua perspectiva acerca do papel
do ambiente na vida individual, esclarecendo que este
não deve ser tomado como uma força exterior que serve meramente para facilitar ou para inibir tendências
prévias e definitivamente estabelecidas na natureza
da pessoa.
Ora, é justamente essa a perspectiva tradicionalmente
assumida pelas teorias psicológicas do desenvolvimento
ao abordarem a adolescência. De acordo com tais teorias,
o homem é dotado de uma natureza e suas relações com
o meio apenas permitem (ou dificultam) a atualização de
tais traços naturalmente dados.
Segundo o estudo de Muuss (1996), Kurt Lewin apresenta sua teoria da adolescência em trabalho intitulado
“Teoria de campo e experimento na psicologia social”
(Lewin, 1939, citado por Muuss, 1996), fornecendo alguns elementos importantes para pensar a adolescência
na perspectiva gestáltica.
Um aspecto fundamental do pensamento lewiniano
nesta área é sua crítica de conceitos psicológicos baseados na frequência com que ocorrem numa população
dada. Segundo Lewin (1939, conforme citado por Muuss,
1996) na medida em que leis psicológicas são abstraídas
a partir do comportamento de muitos s, elas só podem
ser verdadeiras em termos de probabilidade. A análise
de Kurt Lewin sobre adolescência se propõe, portanto, a
explicar e a descrever a dinâmica de comportamento de
quem vivencia o período sem apostar numa generalização
possível para a adolescência enquanto grupo.
Tal observação é muito oportuna e bastante congruente com a perspectiva teórica e filosófica da Abordagem
Gestáltica bem como com o argumento principal do presente artigo. Assim, embora as teorias psicológicas se refiram a comportamentos e sentimentos possíveis e por
vezes freqüentes, estes são equivocadamente transfor-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012
Artigo
Segundo os autores, muitos adolescentes das classes mais
pobres da sociedade, contrariando a cartilha dos manuais
de psicologia, não sofrem tanto com os tradicionalmente
mencionados conflitos familiares na luta pela diferenciação e construção de si ou com as dúvidas quanto à
escolha da carreira. Frequentemente, observam as autoras, suas dores se revelam, principalmente, em sua falta
de perspectivas, no medo de ficarem desempregados e,
mais do que pensar em escolher uma profissão, duvidam
se poderão conseguir um trabalho.
Desse modo, se o adolescente vivencia um lugar social
em que projetos de vida e até mesmo de sobrevivência
estão em cheque, definir ‘quem eu sou’ pode ser mais do
que uma manobra de discriminação em relação aos pais
e outros adultos significativos. Em alguns casos, o campo
em que se constituem impõe a necessidade de discriminar-se de um não-lugar na sociedade a fim de que outro
lugar, possível, possa ser projetado.
Artigo
Lauane Baroncelli
mados em leis psicológicas gerais e, portanto, naturais e
intrínsecas ao desenvolvimento humano.
Lewin chama atenção para a dificuldade de nomear
a interação indivíduo-ambiente sem isolar cada elemento
do par. Para dar conta deste problema, o autor introduz
o termo “espaço de vida psicológico” que indica, segundo ele, a totalidade dos fatos que afeta o comportamento
de uma pessoa num certo momento (Lewin, 1936). Essa
totalidade dos fatos cria um campo dinâmico, o que significa que uma mudança numa das partes afeta todas as
demais partes e o campo como um todo.
Embora na visão de Kurt Lewin a adolescência seja
vista como um fenômeno sempre diferenciado para cada
pessoa, algumas regularidades são apontadas por ele no
que concerne às transformações que ocorrem no espaço
de vida do jovem. No período da adolescência, observa
Lewin (1939, citado por Muuss, 1996), este se torna mais
extenso e mais diferenciado em comparação ao espaço
de vida mais restrito e pouco diferenciado da criança. O
adolescente conhece mais pessoas, torna-se familiar com
mais áreas geográficas, informações, ou seja, têm maiores
recursos cognitivos, sociais, físicos e de linguagem para
contatar o ambiente e a si mesmo. Muuss (1996) ressalta,
entretanto, que na proposta lewiniana, uma compreensão
acurada de tais novidades precisa levar em consideração
o caráter dinâmico e sempre particular do ambiente no
qual as mudanças ocorrem e, ainda, as diferentes formas
de sensibilidade e modos de ação.
Isso significa que pra Lewin o ambiente não é somente a totalidade dos fatos presentes, mas inclui, também, o
ambiente tal como é percebido e interpretado pela pessoa,
de acordo com suas próprias necessidades do momento.
Como analisa Evangelista (2010), o “meio” na Teoria de
Campo é o “meio fenomenológico”, isto é, o ambiente tal
como a pessoa o experimenta e não como uma presença
objetiva. Neste sentido, verifica-se que a concepção gestáltica de indivíduo relacional e singular ressoa desde as
idéias lewinianas, perspectiva esta que reconhecidamente influenciou a constituição da Gestalt-terapia.
Vale sublinhar, ainda, que a idéia de campo na
Gestalt-terapia vai além das definições propostas por
Lewin. Como colocado acima, a Teoria de Campo é apenas uma das fontes na qual a Gestalt-terapia foi “beber” para construir a formulação própria desta abordagem. Deste modo, além de elementos da Teoria do
Campo, esta integra (e transforma) elementos da Teoria
Organísmica, da Psicologia da Gestalt e das concepções filosóficas do Humanismo, Existencialismo e da
Fenomenologia.
Inclusive, algumas análises (por exemplo, Evangelista,
2010) sugerem que ao recorrer ao modelo da física, a
Teoria de Campo tende a objetificar o ser humano entendendo-o a partir das mesmas leis que regem objetos
físicos. Tal concepção, segundo o autor, se choca com a
ótica fenomenológica, baseada na idéia de que as pessoas
devem aparecer para a compreensão do psicólogo a partir
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012
de sua humanidade e não a partir de leis objetivas mecânicas como postula a teoria de Lewin.
Embora não caiba aqui uma análise mais amiúde de
tal posicionamento critico, vale destacar que não apenas a
teoria lewiniana, mas diversos outros elementos – filosofias ou teorias que fundamentam a Abordagem Gestáltica
– compõem a visão gestáltica da noção de campo. Deste
modo, uma compreensão “de campo” que supera as mencionadas dicotomias entre indivíduo/sociedade e outras
marca a Gestalt-terapia para além da influência de Lewin,
pautando-se na própria natureza holística da abordagem.
É isso que leva Antony e Ribeiro (2005) a afirmarem que
de acordo com as suas teorias de base, “a Gestalt-terapia
fundou uma visão holística calcada no conceito todo-parte, onde somente a totalidade contém o significado a
partir das múltiplas interações existentes entre as partes
e os campos (...)” (p. 193).
Isso sugere uma visão de adolescência como um fenômeno global que integra “num todo singular” as diversas forças do ser-no-campo e não como mera latência em
direção à maturidade. Como resume Almeida (2010, p.
19), “estamos, a todo instante, imersos em uma complexidade infindável de estímulos, vivências, experiências
que não podem ser restritas a uma linha do tempo” dotando a visão de desenvolvimento na Gestalt-terapia de
uma perspectiva oposta à idéia de amadurecimento tão
comumente adotada pelas abordagens de desenvolvimento. Aguiar (2005) também aborda a questão, destacando
que ao conceber o homem como um todo singular em
constante transformação na busca de equilíbrio (equilíbrio este ora perturbado, ora recuperado numa articulação entre necessidades e possibilidades no campo) a
Gestalt-terapia não pode pensar o ser – na lógica da universalidade – como um projeto inacabado ou imperfeito
que viria a se concretizar na fase adulta.
Neste ponto, alguém poderia argumentar que um
aspecto universalmente presente na adolescência são
as transformações físicas sofridas pelo corpo neste período da vida. De fato, as mudanças físicas são marcas
concretas desta fase. No entanto, o corpo não é entendido, na Gestalt-terapia, em relação de exterioridade em
relação aos domínios subjetivos e relacionais. Assim
sendo, embora as mudanças físicas sofridas pelo adolescente tenham um caráter objetivo enquanto “marcas”
no corpo, estas são necessariamente significadas pelo
ser-no-campo.
Nesta direção, Perls (1988) observa que a partir
da perspectiva de campo que marca a Gestalt-terapia,
não faz qualquer sentido entender as ações mentais e
físicas de forma cindida. Portanto, a tentativa de encontrar um padrão geral nos supostos “fatos objetivos”
do corpo (o que contrariaria a concepção de adolescência como fenômeno sempre singular e de campo)
não se sustenta.
O Gestalt-terapeuta norte-americano McConville
(2001), apoiando-se nos estudos de Kurt Lewin, conce-
192
be a adolescência como uma desestruturação da unidade da infância por meio da expansão do espaço de vida
e da transformação dos processos de contato que organizam o campo.
Para entender esta afirmação, é necessário fazer, neste ponto, uma breve introdução ao conceito de contato
na Gestalt-terapia. Contato envolve tanto a noção de self
quanto a de campo, referidas anteriormente. Segundo
Perls et al. (1951/1997): “Primordialmente o contato é a
awareness da novidade assimilável e o comportamento
em relação a esta e rejeição da novidade inassimilável.
O que é difuso, sempre o mesmo, ou indiferente, não é
objeto de contato” (p. 44). Mais adiante, continuam os
autores: “Todo contato é ajustamento criativo do organismo e ambiente. Resposta consciente no campo (como
orientação e como manipulação) é o instrumento de crescimento no campo” (p. 45).
A presença da novidade na adolescência é, em muitos aspectos, notável. Neste período, o adolescente começa a se defrontar com a necessidade de definir a sua
vida diante das novas questões existenciais como as
que se depara – concernentes a sua sexualidade, os seus
estudos, relacionamentos de amizade, escolha da carreira e tantas outras, que demandam decisões íntimas
(McConville,1995). Por consequência, este é um período
do desenvolvimento no qual a capacidade de contato, que
se desenvolve durante toda a vida, é vivida de maneira
intensa e significativa.
Neste sentido, conforme McConville (1995), a fronteira
de contato do adolescente – limite que contém e protege
o organismo ao mesmo tempo em que contata o ambiente (Perls et al., 1951/1957) – está se constituindo, amadurecendo e sendo burilada diante dos novos desafios.
Em termos concretos, ainda segundo McConville
(1995), quando criança, vivencia-se uma relação de dependência vinculante com os adultos no qual boa parte
de seu espaço de vida é indiferenciado do espaço de vida
adulto. Cabe aos adultos, por exemplo, a maior parte –
senão todas – as decisões a respeito de suas atividades,
como por exemplo, a escolha de sua escola, métodos pedagógicos, aceitação de professores, tipo de alimentação,
de diversão e programas culturais, atividades educativas
extra-escolares etc. O padrão relacional estabelecido na
infância é, fundamentalmente, jogar, obedecer, aprender
e depender enquanto na adolescência, o caminho é em
direção à independência.
Problematizando a descrição de McConville e, ao
mesmo tempo, ressaltando a dimensão de campo deste processo, é interessante observar que sua análise faz
sentido no interior de um contexto cultural dado – o das
sociedades ocidentais contemporâneas1 – e, de forma privilegiada, melhor se ajustam a determinados segmentos
Ressaltamos que o próprio contorno do termo “sociedades ocidentais
contemporâneas” como uma unidade evidente e indiferenciada é
bastante contestável, o que se revela, no campo sociológico, por
meio da noção de “múltiplas modernidades” (Eisenstadt, 2000).
1
193
sócio-culturais no interior dessa. De fato, na tentativa de
aplicar tal descrição à realidade de crianças oriundas de
segmentos pobres de nossa sociedade, contradições significativas emergem. Assim, embora uma criança não
vá, por exemplo, escolher uma escola discernindo sobre
os métodos pedagógicos, muitas crianças, assumindo a
tarefa de cuidarem dos irmãos mais novos precisam se
responsabilizar e tomar decisões desde muito cedo. Desse
modo, sua experiência de depender, embora não seja nula,
é certamente diferenciada para este público.
Além disso, embora seja possível dizer que, na infância, a criança está mais disposta a receber informações
de maneira passiva ela definitivamente não é um mero
receptor de princípios adultos. A depender das condições
gerais do campo (incluindo aspectos familiares, culturais,
históricos, educacionais e outros) e da singularidade de
cada criança, o questionamento e a escolha farão parte
de suas interações na vida. Nesta linha de argumentação, Aguiar (2005) ressalta o surgimento da capacidade
de diferenciação ainda na infância, quando a criança é
capaz de rejeitar ou digerir determinada introjeção familiar, iniciando o processo de constituição de sua fronteira
de contato, processo esse que continuará a se aperfeiçoar
ao longo do tempo.
Ainda, levando em conta o campo sócio-cultural que
caracteriza as sociedades contemporâneas – em que as
antigas autoridades tradicionais têm seu poder diluído
e, dentre outros aspectos, o antigo abismo de poder entre
as gerações é questionado – as crianças dos dias de hoje
também “são outras”. Cada vez mais, elas perguntam,
questionam e por vezes “colocam os pais em cheque”,
apontando-lhes contradições e até mesmo questionando
seus valores (comportamento anteriormente tipicamente
esperado apenas com a chegada da adolescência). Assim,
diante das complexidades do mundo contemporâneo, em
que a antiga força e rigidez da palavra dos pais são diluídas diante da coexistência de múltiplos referenciais
de sentido (Berger & Luckmann, 1995) é cada vez mais
freqüente que os pais / responsáveis se sintam perdidos
e fragilizados diante da necessidade de impor limites e
mesmo diante da necessidade de se diferenciar, em termos de papel, das crianças.
Quanto à adolescência, jovens das classes populares
se depararam com questões por vezes bastante diversas
das de um jovem típico da classe média.
Isso não significa, entretanto, que a condição sócio-econômica determina a adolescência de uma forma totalizante estabelecendo uma espécie de “classificação”
de características da adolescência de acordo com as condições materiais. Na ótica gestáltica, o que muda são as
forças presentes no campo, o que certamente afeta, mas
de modo algum determina o comportamento e as experiências dos jovens.
No que diz respeito à dimensão tempo, (que precisa
ser sempre levada em consideração numa abordagem “de
campo” como a Gestalt-terapia) a época contemporânea
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012
Artigo
Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo
Lauane Baroncelli
introduz diversas transformações na experiência de ser
adolescente.
Como diversas análises têm ressaltado (ver por ex.:
Lira, 2010; Garcia & Rocha, 2008; Calligaris, 2000), o antigo anseio de se tornar adulto, escolher uma profissão,
assumir responsabilidades, constituir família etc. vêm
sendo permeado por aspectos contraditórios.
Se por um lado é provável que tais anseios ainda
existam, por outro, eles convivem com a valorização da
adolescência como ideal cultural (Garcia & Rocha, 2008).
Isso se revela em circunstâncias nas quais a antiga e tradicional versão cultural em que adolescentes querem parecer e ter os direitos e liberdades dos adultos aparece
de forma invertida. Atualmente, numa cultura em que
a liberdade, o prazer e a juventude (de corpo e espírito)
são propagados como instrumentos de valor pessoal ou
até mesmo como imperativos sociais é cada vez mais comum encontramos adultos querendo ter direitos e liberdades de adolescentes.
Deste modo, falar em conflitos de gerações, ou mesmo descrever a adolescência como uma transição para o
mundo adulto, pode significar cair no vazio. O vazio é
gerado pela falta de sensitividade para os elementos de-um-campo que como analisamos anteriormente, é sempre mutante no tempo e no espaço.
Artigo
3. “Liberdade” e “Campo”: Facetas Inextrincáveis no
Conceito de Ajustamento Criativo
O conceito gestáltico de ajustamento criativo, absolutamente conectado ao conceito de contato e de campo
referidos anteriormente, constitui um elemento central
da visão gestáltica sobre processos de saúde e doença,
sendo, portanto, fundamental para a compreensão do
desenvolvimento humano nesta abordagem.
Por meio da capacidade humana de ajustar-se criativamente ao meio, ao mesmo tempo em que o ser se constitui nas facticidades do desenvolvimento biológico, da
cultura, da classe social e da época em que vivemos, pode
lidar criativamente com isso, escolhendo e criando a si
mesmo continuamente.
O ajustamento criativo pode ser definido como o processo pelo qual o existente se relaciona com o meio criativamente na busca de equilíbrio através dos recursos
disponíveis no campo (Ribeiro, 2006). Ou ainda, como
define Moreira (2010, p. 24): “Ajustamento criativo significa auto-regulação, abertura ao novo, contato vivo e
vitalizante, referindo-se à formação de novas configurações pessoais (ou gestalten) a partir da entrada de novos
elementos através da experiência de contato”. Portanto,
tal processo configura-se como uma expressão do ser-no-campo, no qual as facetas humanas de liberdade
(revelado na palavra criativo) e contextualidade (sentido presente na palavra ajustamento) atualizam-se de
maneira integrada.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012
No caso particular do adolescente, este fará então o
possível para equilibrar-se diante da circunstância em
que se encontra num balanço entre possibilidades presentes de si mesmo e do contexto. Alguns ajustamentos
podem, portanto, revelar respostas fluidas e espontâneas
às suas novas necessidades. Por outro lado, alguns ajustamentos podem indicar um modo rígido e pouco respondente às mudanças enfrentadas.
Assim, se o trânsito entre a vivência do “campo infantil” para o “campo adolescente” pode, por um lado,
constituir uma experiência de crise, por outro, a busca
pelo projeto de si mesmo pode assemelhar-se mais a uma
progressiva exploração de papéis e potenciais escolhas
(que pode inclusive ter começado paulatinamente desde
a infância) do que uma repentina busca sofrida e angustiada por si mesmo.
Tradicionalmente, enquanto o aspecto de regularidade das tormentas emocionais e crises adolescentes é, repetidamente, objeto de análise em diversas teorias sobre
o desenvolvimento, outros aspectos, como a visão crítica,
a amizade, a sinceridade e até a lucidez adolescente que
a chamada maturidade frequentemente amortece são raramente mencionados. Sendo a Gestalt-terapia uma abordagem que concebe o indivíduo como um ser relacional,
transformador e único, a generalização ou universalização de supostas características da adolescência, bem
como a exclusão de outras formas possíveis de se ajustar
criativamente devem ser evitadas.
Para finalizar, vale destacar um elemento fundamental do contexto do adolescente que afetará de modo importante seu processo de ajustamento criativo: seu relacionamento com os “outros significativos” (pais, responsáveis, professores, familiares, amigos etc.).
Se na criança o relacionamento com os familiares e
adultos se caracteriza, predominantemente, por uma dependência vinculante, a partir das diversas mudanças no
espaço de vida dos jovens, estes tendem a sentir a necessidade de serem tratados como indivíduos separados e
independentes. Consequentemente, se perceberem ser necessário, podem se ajustar criativamente à nova situação
materializando um jogo de oposições com seus responsáveis, contrariando opiniões, idéias e valores dos mesmos
a fim de construir sua própria forma de ser.
Em algumas experiências, é possível que os responsáveis e familiares rivalizem com os adolescentes, ou sigam tratando-os como crianças para, desta forma, negar
a passagem do tempo e a finitude de seu poder e primazia sobre eles. Nestes casos, o campo como um todo está
impregnado de elementos de conflito, e não apenas o adolescente, como se este existisse isolado em uma suposta
interioridade conflituosa.
Por outro lado, tais padrões de relacionamento com a
família também não devem ser naturalizados. Relações
conflituosas com pais e responsáveis têm sido tão amplamente generalizadas nas leituras acadêmicas e no imaginário social sobre adolescência que algumas famílias
194
Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo
Considerações Finais
Como pretendemos ter deixado claro ao longo do
artigo, a Gestalt-terapia compartilha o questionamento
– que vem sendo explorado na literatura sobre o tema,
sobretudo, pela perspectiva sócio-histórica – acerca da
naturalização da adolescência como um fenômeno abstrato e universal.
Tal naturalização entra em choque com elementos
fundamentais da concepção gestáltica de indivíduo, notadamente a consideração deste como um ser contextualizado (ser-no-campo) e singular e, portanto, como um
existente que só pode ser compreendido no interior de
suas relações sempre complexas e únicas com o mundo.
Sendo assim, podemos resumir dizendo que a leitura
sobre a adolescência na ótica da Gestalt-terapia precisa ser
flexível e complexa o suficiente para evitar os seguintes
“engodos” teóricos: a naturalização do desenvolvimento
adolescente, alienando aspectos históricos e contextuais
inerentes a este; a correlata generalização e universalização de características que alienam a singularidade de
cada experiência no mundo concreto; e, finalmente (aspecto esse que inclui os dois últimos), faz-se fundamental
evitar a cegueira conceitual que reproduz entendimentos
teóricos sobre a adolescência que se tornaram hegemônicos tanto na academia como no imaginário social, ignorando os aspectos reducionistas e estáticos embutidos
em tais entendimentos que contrariam os pressupostos
elementares da Gestalt-terapia.
195
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Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012
Artigo
desconfiam que algo possa estar errado caso o adolescente
mantenha-se responsável, lúcido e uma companhia agradável. No entanto, a diferença humana ainda resiste às
generalizações teóricas e alguns adolescentes efetivam
ajustamentos criativos num campo em que a proximidade e o diálogo com a família podem se desenvolver sem
afetar sua necessidade de discriminação.
De qualquer modo, o comportamento do adolescente
revela o que vive na escola, na família, na sociedade e
na cultura. Em vários níveis, insistimos, ele não é adolescente sozinho. Na perspectiva de campo adotada pela
Gestalt-terapia, cada existente co-existe numa realidade
compartilhada em que todos estão implicados (Parlett,
2005). Entretanto, se é verdade que o adolescente não
vivencia seus possíveis conflitos de modo interno, mas
num campo, por outro lado, a família, a escola ou a sociedade também não são as causadoras por excelência de
problemas na adolescência.
O existente (e, consequentemente, o adolescente) é
para a Gestalt-terapia, produto e produtor de sua condição. Revelando a noção de causalidade circular da Gestaltterapia, a escola, a família, o mundo e o adolescente livre se
influenciam mutuamente de modo a se tornar basicamente
impossível detectar relações mecânicas de causa e efeito em
suas interações (Brafman, citado por Toman e Bauer, 2005).
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Lauane Baroncelli - Psicóloga; Mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ); Doutoranda em Sociologia pela University College
Cork e Membro do corpo docente do Dialógico Núcleo de Gestalt-terapia (Rio de Janeiro). Endereço Institucional: O’Donovan’s Road,
Department of Sociology, University College Cork, Cork, Ireland.
Email: [email protected]
Recebido em 14.03.12
Primeira Decisão Editorial em 26.09.12
Aceito em 10.11.12
Artigo
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Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012
196
A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial
A ESPACIALIDADE NA COMPREENSÃO DO TRANSTORNO
DO PÂNICO: UMA ANÁLISE EXISTENCIAL
The spaciality in the understanding of the panic disorder: an existential analysis
La Espacialidad en la compreensión del transtorno de panico: una análisis existencial
Gustavo A lvarenga Oliveira Santos
Resumo: O texto apresenta um caso clínico sob a luz da análise existencial de Ludwig Binswanger. Elege-se a espacialidade como
categoria central na compreensão clínica aqui apresentada. Em um primeiro momento, será apresentado ao leitor o conceito de
espacialidade segundo a ontologia fundamental de Heidegger, em Ser e Tempo. Feito isso, o artigo traz à luz o conceito de pânico, de acordo com a análise existencial. O relato do caso clínico, bem como sua análise, conforme os conceitos apresentados,
desvelará de que forma o pânico pode ser entendido como um transtorno no modo de espacializar. Essa compreensão nos dará
subsídios para um entendimento existencial do transtorno do pânico, bem como nos possibilita pensar em formas de condução
do tratamento, diferente das tradicionais.
Palavras-chave: Transtorno do pânico; Análise existencial; Espacialidade; Binswanger.
Abstract: This text presents a clinical case under the light of the existential analysis of Ludwig Binswanger. It is chosen spaciality as central category in the clinical understanding presented here. At a first moment, basic on the essential ontology of
Heidegger in Being and Time, will be presented to the reader the concept of spaciality. Made this, the article brings to the light
the concept of panic, in accordance with the existential analysis. The story of the clinical case, as well as its analysis, will reveal of that it forms the panic can be understood as a disorder in the way of to space of the individual. This understanding in
will give us subsidies for an existential agreement of the panic disorder, as well as in makes possible to think about forms of
conduction of the treatment, differently of the traditional ones.
Keywords: Panic disorder; Existential analysis; Spaciality; Binswanger.
Resumen: Este trabajo presenta un estudio de caso a la luz del análises existencial de Ludwig Binswanger. Elige a la espacialidad como uma categoria central en la comprensión del caso. En un primer momento, el lector se introducirá el concepto de
espacialidad de acuerdo a la ontología fundamental de Heidegger, en Ser y Tiempo. A continuación, el artículo saca a la luz el
concepto de pánico, de acuerdo con el análisis existencial. El caso clínico y su análisis dará a conocer como el pánico se puede
compreender como un transtorno en el modo de espacializar. Esa comprensión subsidiará para un entendimento existencial del
transtorno de pânico, mientras possibilitará piensar en modos de conducción del trataimiento, diferente de los tradicionales.
Palabras-clave: Transtorno de pánico; Analísis existencial; Espacialidad; Binswanger.
Este texto se propõe a discutir um tema recorrente na
clínica psicológica e psiquiátrica: o transtorno do pânico. Para tanto, utilizaremos a categoria da espacialidade,
tal como entendida pela Antropologia Fenomenológica
de Ludwig Binswanger, na análise de um caso clínico.
Em um primeiro momento, será esclarecido o significado do termo alemão Da-sein, em acordo com a ontologia fundamental de Martin Heidegger, presente em
Ser e Tempo. Esse conceito é base, e é a partir dele que
entenderemos a categoria da espacialidade conforme a
Analítica do Dasein.
O médico suíço Ludwig Binswanger foi um dos psiquiatras inspirados pela nova perspectiva em que o ser do
homem era concebido por Heidegger. A compreensão do
homem como Dasein permitia possibilidades de compreensão das patologias mentais, embasados nos modos de
197
relação homem-mundo. Destacaremos nesse texto aspectos do ser do homem como Dasein, no sentido de elucidar
um caso clínico, em especial no que tange à questão da
espacialidade, já abordada por Heidegger e aplicada por
Binswanger em sua psicopatologia.
Binswanger elucida essa relação da compreensão
do homem como Dasein nos casos clínicos reunidos
no livro Schizophrenie, publicado em 1957 (e inédito em português), onde aparecem os casos: Ellen West
(1944-1945), Use (1945), Jürg Zund (1946-1947), Lola
Voss (1949) e Suzan Urban (1952-1953). Nessa mesma época é também publicada a obra: Três Formas de
Existência Malograda: Extravagância, Excentricidade,
Amaneiramento (Binswanger, 1956/1972)1 em que são
evidenciadas a partir da compreensão do Dasein, al Título original: Drei Formen missglückten Daseins. Verstiegenheit,
Verschrobenheit, Manieriertheit.
1
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012
Artigo
Introdução
Gustavo A. O. Santos
guns modos de ser que aparecem na esquizofrenia.
Após essa fase, segundo Giovanetti (1990), o autor se
utilizará da fenomenología transcendental de Edmund
Husserl na análise de algumas patologias. Essa nova fase
do pensamento de Binswanger se expressa, por exemplo, em Melancolia e Mania. Estudos Fenomenológicos2
(Binswanger, 1960/1987), publicado em 1960, aparecerá
nas considerações finais quando justificaremos por que
o caso relatado não se trata de uma psicose.
Descreveremos brevemente o caso “Suzanne Urban”,
último estudo clínico do autor, em uma perspectiva
Daseinsanalítica, onde nos interessa a noção do Terror,
que na aproximação de Pereira (1997), serve-nos para a
compreensão do hoje chamado Transtorno do Pânico.
Alguns apontamentos teóricos, relevantes da análise existencial, empreendida por Binswanger nesse caso, servirão como subsídio para a discussão de um caso clínico
de transtorno do pânico atendido pelo autor deste texto.
A descrição desse caso e sua análise, sob um ponto
de vista analítico-existencial, alicerçado à categoria da
espacialidade, contribui para um entendimento desse
transtorno, tanto do ponto de vista teórico, como do ponto de vista da condução do tratamento.
1. O Modo de Ser-em Espaço: A Espacialidade do
Da-sein como Dis-tanciamento
Devemos esclarecer de antemão a que nos referimos
quando nos utilizamos do termo Da-sein. Traduzido comumente por pre-sença, graças à edição atual de Ser e
Tempo em português, o conceito tem gerado uma série
de equívocos e mal entendidos quando utilizado à revelia da genuinidade que ele traz na concepção de homem
atual. Preferimos neste texto, assim como tem sido utilizado por estudiosos da analítica existencial, utilizar o
termo em alemão: Da-sein, para preservarmos o seu sentido original e nos livrarmos das ambiguidades presentes na tradução latina, alvo de muitas discussões entre
os especialistas da área.
Longe de querermos alongar muito no tema e nos debatermos em questões filosóficas de ordem ontológica,
cabe-nos, para o que nos interessa neste artigo, demonstrar o pano de fundo sobre o qual foi concebido o conceito, de forma que se torne claro a espacialidade implícita
na sua própria concepção.
Da-sein foi o termo utilizado por Heidegger em Ser e
Tempo, na busca de um ente em que poderia se colocar
a questão sobre o Ser3. O Ser, segundo o autor, havia caído no esquecimento em um mundo cada vez mais dominado pelo tecnicismo científico que o transformou em
Título original: Melancholie und Manie. Phänomenologische Studien
(inédito em português).
3
Para distinguirmos o Ser (Sein) em geral e o ser em particular, utilizaremos o primeiro com maiúscula e o segundo com minúscula. O
Ser em geral é ontológico, pois se refere à questão sobre aquilo que é,
já o ser do Da-sein é particular, pois se singulariza no ente Da-sein.
um ente. A palavra Da- é pronome demonstrativo, significa “Aí”; sein, “ser”; logo Ser-aí, é sua tradução literal.
Da-sein é o ente através do qual o Ser é em relação,
tornando assim possível a pergunta sobre ele mesmo.
Da-sein é o homem enquanto existente, ou seja, imbuído da tarefa primordial de ter que constituir seu próprio
ser, e nesse processo ser o ente através do qual é possível
uma pergunta sobre o Ser em geral.
Interessa-nos, para este trabalho, apreendermos no
Da-sein seu caráter eminentemente espacial. Destaca-se,
que o modo pelo qual esse aparece, pressupõe de antemão uma relação intrinsecamente espacial já denotada
em sua nomeação. O “Aí” é uma relação direta com o espaço: sendo em relação, o homem não é aqui, junto com
as coisas, mas tem que existir orientado para elas.
Enquanto um existente, que se orienta para algo, o
homem tem entre si e o mundo um distanciamento, segundo Heidegger (1927/1997, p. 157): “(...) o que se acha
à mão no mundo circundante, pode vir ao encontro em
sua espacialidade”. Desse modo o Da-sein estabelece o
seu ser-no-mundo, espacializando, e seu espacializar
desvela que a relação com as coisas não é dada de antemão, mas se dá enquanto ultrapassa o distanciamento
inerente à sua condição.
O modo como um indivíduo particular espacializa,
é, para Binswanger, uma categoria importante na compreensão das patologias mentais. O autor destaca no entendimento nos casos clínicos “Lola Voss” e “Suzanne
Urban” essa categoria como elemento central para o entendimento das consequências da experiência que ele
denomina como Terror.
O Terror se dá na vivência direta do abismo, no distanciamento que há entre o Si e as coisas. A existência4
é uma condição abissal, pois no seu espacializar, ela se
faz sobre o nada. Ela não é fundamentada, não é com o
mundo, mas no mundo, ou seja, em relação a ele. O Terror
é uma forma de Angústia, e essa última é o sentimento
privilegiado que revela ao Da-sein seu modo de ser sobre
o nada. No domínio da inautenticidade, o Da-sein se crê
fundamentado no próprio solo que ele criou para habitar, alienando-se. Quando esse solo se revela inautêntico através da vivência da angústia, o existente se vê sob
o domínio de “ter-que-ser-si-mesmo” – que é a expressão
utilizada por Binswanger na análise do caso Suzanne
Urban, e que se refere à dimensão própria do existir que
se caracteriza em ser irremediavelmente responsável por
seu próprio ser-no-mundo – e o solo aparece como abissal. Chamond (2011) ao propor um estudo sobre a psicopatologia do espaço vivido de acordo com Binswanger
destaca que para o autor:
A imagem da queda expressa uma possibilidade concreta da espacialidade vivida, do corpo habitando o
espaço: ela é uma estrutura antropológica do mundo,
Artigo
2
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012
Ex-sistere significa ebulência, emergência, salto além de si. Segundo
Heidegger é a tradução latina mais próxima ao conceito de Da-sein.
4
198
uma forma de habitá-lo, aquela da perda do apoio e da
harmonia, da ruptura em uma corporeidade tranqüila.
Mas além do corpo que cai realmente, a imagem da
queda traduz a essência mesma da perda do escoramento e do vivido de terror que lhe é consubstancial.
A queda descreve uma possibilidade fundamental
de ser no mundo: a perda do equilíbrio, o colapso, o
terror (p. 5).
O “ter-que-ser-si-mesmo”, dá-se, no entendimento
heideggeriano, como projeto (Entwurf). Entendendo o ser
como projeto em acordo com a categoria da espacialidade, podemos dizer que o primeiro é como um elo que nos
conecta às coisas que nos circundam. Quando esses elos
que construímos com o mundo perdem seu fundamento, o nada sobre o qual eles foram construídos torna-se
evidente, e a angústia torna-se o sentimento prevalente.
Ou seja, se os projetos de determinado sujeito quedam
ameaçados, é a existência mesma que perde seu fundamento, como se já não tivesse laços que a una às coisas
do mundo; em termos binswangerianos, essa existência
torna-se malograda.
Boss (1977) relata o caso de um paciente esquizofrênico que percebia da janela um mundo próximo, bidimensional e ameaçador que o comprimia. Esse paciente
também apresentava os chamados sintomas negativos
da esquizofrenia: embotamento afetivo, lentificação do
pensamento e autismo. Ou seja, o modo como se comprimia e se limitava na forma de Ser aí, também era o modo
como espacializava, trazendo para a proximidade os entes
enquanto algo que o comprimia. Da mesma forma, um
outro paciente pode perceber o espaço como profundo
e desafiador, luminoso e amplificado, nesse estado ele
aparece como que tomado por uma sensação de êxtase,
como se o mundo fosse dotado de infinitas possibilidades de existência.
Cabe-nos nesse artigo demonstrar em um caso clínico
específico a forma como se dá a espacialização no chamamos, atualmente, de “Transtorno do Pânico”. Antes disso,
porém, veremos como Binswanger (1957/1988) evidencia
o pânico no caso “Suzanne Urban”. Esse se revelará para
ela como experiência do Terror, que a paciente vivenciará
como evidência não mediada do abismo, o que ameaça
sua existência como um todo.
2.O Caso Suzanne Urban: Terror e Pânico como
Perturbação da Dimensão Espacial
Sobre a experiência da angústia do abismo, Binswanger (1957/1988) propõe a noção de Terror. O Terror é
a constatação do Da-sein de sua facticidade5. Enquanto
A facticidade (Geworfenheit) refere-se à condição do Da-sein enquanto ser lançado no mundo, “num abandono no meio do ente que o
põe frente à única possibilidade de constituir-se ele mesmo o seu
ser” (Pereira, 1997, p. 37).
5
199
vivência, ele vem como algo que lhe toma de fora e que
aparece como que estando o Da-sein presa de uma potência superior.
O abismo traz-lhe a possibilidade sempre presente de
não ser ele mesmo e, paradoxalmente, o mantém à vista
as múltiplas possibilidades de ser como projeto. Essa experiência, segundo Binswanger (1957/1988), é típica da
psicose em que o próprio modo de constituição do ser-aí se perde na noção mesma de se orientar no espaço.
Binswanger (1956/1972) estabelece três formas de
“existência malograda” como modos de ser típicos da esquizofrenia, são elas: o maneirismo, a excentricidade e
a extravagância. Na extravagância, o abismo é encarado
pelo Da-sein como algo a ser transposto, o salto que se
dá para o seu atravessamento, porém, queda desproporcional com a possibilidade mesma do projeto, ficando o
indivíduo preso em sua própria forma de espacialização.
Sem referências para as quais se orientar, o extravagante
torna-se como um alpinista que, ao escalar uma montanha, perde a noção de fundo que lhe abriria a possibilidade do próximo passo ou do possível retorno. O terror
é vivenciado diretamente, pois ele paira sobre o abismo
e o nada lhe aparece evidente.
Já no caso Suzanne Urban, a experiência do abismo
se dá de outro modo e o aterrorizante vem como algo de
fora. Suzanne é descrita por Binswanger (1957/1988) como
uma mulher extremamente cuidadosa com relação aos
seus cuidados pessoais e os dos outros, principalmente nos aspectos ligados à saúde dos seus entes queridos.
O seu processo psicopatológico começa quando acompanha seu marido em uma consulta rotineira a um urologista para tratar de um possível problema urinário. Qual
não foi a surpresa quando o médico diagnostica nele um
câncer de vesícula praticamente inoperável.
A cena do médico proferindo o diagnóstico retém-se na memória de Suzanne. Ela passa a se ocupar do
tema, o que repercute no sentido de sua orientação espacial, onde irá prevalecer o mundo enquanto perigo.
A cena do diagnóstico de câncer é deslocada para todas
as suas formas de relação com o mundo e, em seu modo
de espacialização, passa a predominar o que Binswanger
(1957/1988) chama de “atmosferização do tema”. Assim
a ameaça não se refere ao medo pela morte do marido,
como poderia se supor, mas toma toda a forma de mundo no espaço que a paciente habita. Temos aqui então a
“atmosfera do terror”.
Na “atmosfera do terror”, o modo como Suzanne espacializa não se ancora mais nas relações possíveis que
lhe são dadas; pelo contrário, ela cerceia seus modos de
relação e as coisas trazem a sempre iminente possibilidade de seu aniquilamento. Daqui podemos deduzir o pânico, como modo de experiência de um terror atmosférico que ameaça o ser de fora, sem se mostrar em nenhum
ente específico, mas no espaço como um todo. Daí que
as crises de pânico quando muito recorrentes podem desenvolver o que em psiquiatria chama-se agorafobia, ou
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012
Artigo
A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial
Artigo
Gustavo A. O. Santos
seja, em um pavor inespecífico a espaços amplos e vagos,
como apontado por Pereira (1997).
No caso Suzanne Urban, ao lidar com a experiência do Terror, ela passa a criar o que denomina “teatro
do horror”: imagina forças demoníacas que lhe estão à
espreita, fantasia perigos imaginários e sente-se constantemente ameaçada pelos outros. Ou seja, do pânico geral que ameaça seu ser como um todo e é inespecífico, passa a eleger os objetos do perigo, de onde
Binswanger (1957/1988) conclui ser a base de evolução
de seu delírio.
Na experiência do Terror de Suzanne, não há possibilidade que se elabore qualquer discurso ou entendimento verbal sobre o que a atormenta. Ao criar o
“Teatro do Horror”, ela já se familiariza com seus perseguidores, e na personificação do Terror fabula um
mundo fantástico onde o perigo se personifica nas pessoas ao seu redor.
Pereira (1997) considera o relato do caso Suzanne
Urban como uma possibilidade de entendimento para
a experiência do pânico; com a diferença de que no
Transtorno do Pânico, o Dasein elege o corpo como lugar de anteparo ao terrífico da experiência do abismo.
Segundo Pereira (1997, p. 239): “(...) no pânico, o terrível
ancora-se de forma hipocondríaca no real do corpo. Dessa
forma, o pânico não pode ser considerado como um inominável inteiramente experimentado como tal”. O corpo,
assim como no “Teatro do Horror” de Suzanne Urban, serve frente ao abismo do inominável e do nada. Enquanto
ainda se é possível uma querela sobre um modo de relação real, o indivíduo se mantém em algum chão, mesmo
que à beira do precipício.
Os sintomas do transtorno do pânico aparecem, em
geral, como um pavor inespecífico, acompanhados ou
não de uma sensação iminente de morte. O pavor, como
dito, manifesta-se no corpo por alguns sintomas, segundo o DSM-IV (American Psychiatric Association, 1995):
“1 - palpitações ou ritmo cardíaco acelerado; 2 - sudorese; 3 - tremores ou abalos; 4 - sensações de falta de ar
ou sufocamento; 5 - desconforto torácico; 6 - náusea ou
desconforto abdominal” (p. 193). Os ataques se dão, em
geral, quando o indivíduo encontra-se só ou em aglomerações, como congestionamentos e lugares públicos.
A ocorrência de um ou dois ataques esparsos não significa, no entanto, que a pessoa desenvolveu o chamado transtorno do pânico. Para que esse se caracterize
enquanto tal é necessário, segundo o DSM-IV, que o indivíduo apresente uma preocupação acerca das consequências dos ataques de pânico: ideias de morte, medo
de perder o controle, ficar louco ou morrer por parada
cardíaca são comuns.
O transtorno surge como uma tentativa do indivíduo defender-se contra o abismo do nada, no corpo ou
nas ideações que podem vir a se tornar delírio, como
no caso Suzanne Urban. Assim compreendemos o motivo por que as ideações de morte, o medo de perder o
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012
controle e ficar louco são comuns; o transtorno desvela um modo de espacializar que se rompeu, deixando
vaga a distância que separa o ser de seu mundo, daí as
idéias de aniquilamento, ou seja, da perda de sua dimensão existencial.
Vejamos como isso se deu em um caso clínico.
3. Das Crises de Pânico às Passarelas da Vida: o Caso
Lucas
O atendimento que será relatado ocorreu em um
Serviço de Psicologia vinculado a uma Faculdade de
Psicologia. O contrato de atendimento, estipulado em um
termo de consentimento assinado pelo paciente e seu responsável legal, previa que, por se tratar de um serviço de
psicologia universitário, os casos ali atendidos poderiam
ser utilizados para pesquisas, bem como material didático para o ensino de psicologia, garantindo o sigilo das
informações (em caso de relato), por meio de omissão de
elementos que identifiquem o paciente e uso de nomes
fictícios. O autor do artigo atendeu o caso, na qualidade
de docente e pesquisador da referida faculdade, interessado por questões relativas aos transtornos de ansiedade.
Chega-me para atendimento clínico um adolescente
de 14 anos, encaminhado pela mãe e indicado por um
cardiologista. A queixa principal, relatada pela responsável, era que Lucas (nome fictício) estava sofrendo, nos
últimos meses, recorrentes crises de arritmia cardíaca,
que, segundo o médico da família eram de fundo psicológico, não tendo sido encontrado nenhum problema orgânico que as justificasse.
A mãe foi recebida em particular antes de Lucas ser
convidado a ser atendido individualmente. Foi perguntado se ele consentia em participar de um processo psicoterápico. Ele consentiu, mas disse que necessitava do
atendimento não pelo motivo exposto pela mãe, qual seja,
a arritmia cardíaca. Desse sintoma, ele daria conta, já não
o sentia tanto quanto antes, mas o verdadeiro motivo seria conseguir se concentrar melhor nos estudos, dada a
necessidade em ser aprovado em um concurso para estudar em uma importante escola técnica federal.
Assim começaram as entrevistas, e Lucas, a princípio, mostrava-se em uma postura distante, desconfiado,
ora gaguejando, ora falando muito baixo. Indagava sempre por onde começar e, sentindo no terapeuta, alguém
disposto a escutar o que tinha a dizer, foi aos poucos discorrendo sobre suas preocupações cotidianas, bastante
típicas para um garoto de sua idade. Vídeo games, computadores, patins, bicicleta, o futebol que praticava, eram
temas recorrentes nas entrevistas iniciais. Aos poucos fui
me aproximando dele, de seu linguajar próprio, de seus
interesses, mostrei-me como parceiro e como quem comungava, na sua idade, dos mesmos interesses.
Lucas era o filho mais velho, tinha mais um irmão de
13 anos, de uma pequena família de classe média. Seu
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pai havia-se aposentado do serviço público, ficando boa
parte do seu tempo livre, em casa, a mãe tinha o ensino
médio e era dona de casa. Do pai se referia como um homem a quem devia muito sua formação e boa educação.
Afinal, estudava em um bom colégio e tinha privilégios
como aulas de informática e futebol. Devia também a ele
sua possível aprovação no concurso da escola técnica,
coisa pela qual era sempre cobrado. O pai dizia que já
na idade de Lucas, ele trabalhava e nem podia se dar ao
luxo de só estudar, assim ser aprovado no concurso era
nada mais que uma obrigação para o filho.
O discurso do pai dominava as sessões. Lucas falava
comumente sobre suas queixas: dizia que o pai o chamava
de “vagabundo”, que ele não daria em nada na vida, que
nenhuma mulher o desejaria. Lucas demonstrava certa
ambiguidade em relação a isso. Ora considerava essas cobranças pertinentes, o que o inferiorizava diante do pai;
ora já se enfastiava de tantas obrigações por ele exigidas,
queixando a mim sobre a falta de tempo suficiente para
o seu lazer e para ficar à toa como gostaria. Lucas via a
mãe como quem apaziguava as cobranças paternas em
relação a ele, tentando desviar sua atenção do fato dos
adolescentes da casa não estarem atendendo às suas expectativas. O paciente, no entanto, insistia em ter seus
momentos de lazer, o que irritava ainda mais o pai, tornando suas reclamações recorrentes.
Com o quadro de sua situação já apresentado e os relatos se voltando a esses temas, ora ao lazer e aos jogos
de futebol, ora aos estudos e a cobrança excessiva do
pai, Lucas começou a dizer sobre sua preocupação com
a morte. Quando indagado se já tivera alguma perda significativa em sua vida, de pronto se lembrou da morte
repentina de seu avô, com quem tinha um vínculo muito significativo.
Lucas descreve o avô em contraposição ao pai, como
sendo mais relaxado e menos exigente, e que desbancava, sempre que tinha oportunidade, a postura parcial e
autoritária do seu genitor. O avô, segundo ele, dizia que
seu pai não era nada disso que ele tentava se mostrar e
que havia tido condições para estudar, fazer seu curso
superior e depois poder exercê-lo como funcionário público, sendo que suas exigências não faziam sentido, não
era um exemplo sobre aquilo que ele próprio dizia. O avô
também era alguém com quem se podia jogar sinuca, totó,
xadrez; pessoa festiva e tranqüila, Lucas se assustou com
sua morte. Ao falar desse fato, ocorrido há aproximados
três anos, ele fez questão de salientar que não tinha relação com seus sintomas; aliás, os sintomas há muito não
lhe incomodavam, mas foram reaparecendo logo após a
sessão em que se falou sobre essa morte.
Os “sintomas”, como o próprio Lucas a eles se referia,
apareciam como pontadas no peito que sentia quando jogava bola, dormia ou devido a esforço físico razoável; sentia uma palpitação diferente no coração. Em algumas situações, chegou a pedir à família que contatasse o Serviço
de Atendimento Municipal de Urgência (SAMU) que lhe
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atendeu em pelo menos três ocasiões, em que sendo levado para o serviço de cardiologia do pronto-socorro, nada
se constatou de anormal.
Fora os “sintomas”, eram recorrentes as ideias de morte e de ameaça constante. O prédio onde estudava, por
exemplo, podia desabar a qualquer momento. Segundo
seu relato a engenharia ainda não atingira seu grau de
perfeição, assim todas as construções guardavam uma
ameaça latente de desabamento. As escadas também
guardavam a morte em potencial, um deslize, um degrau
a menos ou a mais no cambiar das pernas, poderia lhe
provocar uma queda súbita. A morte de um humorista
famoso na televisão, repentina por um ataque cardíaco,
foi um dos desencadeadores de um ataque: ora se era assim, como acontece a qualquer um, isso poderia ocorrer
com ele também. Sabia da irracionalidade de seus medos,
confiava em parte no diagnóstico dos médicos, mas não
conseguia se livrar, segundo ele, dessa sensação iminente de morrer que lhe rondava.
Aos poucos foi se recolhendo mais em casa, e, embora
as pressões do pai lhe incomodassem, sabia que ali, pelo
menos, era um lugar razoavelmente seguro, sentindo-se
um tanto livre das ameaças constantes da rua. Nesse
tempo largou o futebol e reduziu ao máximo suas atividades, inclusive faltou a várias sessões de psicoterapia.
Ia à escola sempre acompanhado do irmão e sentia sempre as palpitações ao atravessar a rua, ou subir as escadas.
As queixas do pai se atenuaram e os recorrentes ataques passaram a ser tematizados em nossos encontros.
Nesse tempo Lucas já estava há seis meses em psicoterapia, interrompidos por vinte dias de férias, quando outras
crises mais severas haviam lhe acometido.
Retornado das férias apressou-se em dar seu diagnóstico: síndrome do pânico. E pedia incessantemente um
encaminhamento a um psiquiatra ou que lhe propusesse
uma técnica que o livrasse logo daquilo. Respondi que na
nossa proposta deveríamos nos atentar ao significado que
“os sintomas” tinham para ele, e não em simplesmente
expulsá-lo da sua vida; que era algo que deveríamos descobrir juntos e que, com certeza fazia parte da totalidade
de sua existência. Confiou. As sessões pareceram mais
produtivas, principalmente em verbalizações e as crises
foram-se reduzindo até o momento em que ele tratou do
tema das passarelas. As passarelas segundo ele, traziam
um desafio ainda maior, pois se tratavam de construções,
vulneráveis como quaisquer outras, mas que pairam nos
abismos, rios e avenidas movimentadas da cidade.
Citou os diversos tipos de passarelas existentes, das
estreitas às mais largas, das precárias de estrutura metálica construídas às pressas sob interesses políticos, às
antigas de cimento, já velhas e com pouca ou nenhuma
inspeção de engenheiros. Sempre se debatera com elas,
lembrou. Isso desde sua infância, seu pai uma vez o forçou a atravessar uma, puxando-o violentamente pelas
mãos até ele ser arrastado, chorando e se debatendo, pavoroso. Na medida em que os sintomas se acalmavam e
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Artigo
A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial
Artigo
Gustavo A. O. Santos
ele se interessava cada vez mais pelas construções arquitetônicas, contou-me sobre um feito recente.
Uma passarela suspeita, estreita, dessas antigas, havia o desafiado a uma travessia. Ele precisava atravessá-la para verificar um possível estágio numa empresa especializada em recrutamento. O desafio o emocionou, a
ponto de chorar; sentia, paradoxalmente, uma ânsia em
chegar e certa vontade de ficar, enfim resolveu que iria
enfrentar seu medo e atravessar a passarela. Essa era estreita, e para ele, das mais temíveis, pois se angustiava
mais com as estreitas e menos com as largas e ocupadas
por corrimões. Segundo imaginava, alguém em direção
contrária poderia lhe empurrar para o fundo do rio sobre
o qual a passarela passava. Fez-se de destemido (segundo
suas próprias palavras). Passou tremendo e sentindo as
mesmas palpitações, mas resolveu, no entanto, não prestar atenção a elas; seria um estado normal, mais fruto de
seu psicológico do que de um real problema cardíaco.
Quando findou a travessia, sentiu-se tomado de uma
intensa alegria, como se houvesse reconciliado algo dentro de si que não suspeitava. Respondi que a sensação poderia ser análoga a ele ter passado no concurso, ele disse
que sim. Constatou que suas dificuldades remeteram às
passarelas que ele tinha que enfrentar e aos desafios que
tinha ainda pela frente.
Nos encontros seguintes Lucas passou a questionar
a viabilidade do projeto do pai para que ele aprovasse
no concurso. Justificava esse projeto como algo que poderia lhe garantir um emprego mais seguro já em sua
idade, podendo se tornar independente do pai e de suas
frequentes cobranças. Indiquei-lhe outras possibilidades, investigando seus interesses na escola. Era bom aluno, obtinha as melhores notas, sobretudo em matemática, discutimos juntos outros projetos possíveis para sua
vida profissional.
Pensou em estudar Mecatrônica na universidade e
viu na escola técnica como uma via para o cumprimento
dessa meta. A elaboração de outros possíveis foi-se dando sem muita angústia, mas já numa relação segura com
o terapeuta. Várias possibilidades para seu futuro foram
elaboradas e projetadas. Nesse tempo – que durou aproximadamente um mês e meio –, as crises não voltaram e
ele percebeu que as alterações em seus batimentos cardíacos eram devidas às suas atividades físicas; não voltou mais ao futebol, mas lhe apetecia ainda a prática de
alguns exercícios. Começou a vir às sessões de bicicleta,
e relatava um certo cansaço quando chegava, além de
apontar alguns traços da arquitetura da cidade que antes lhe passava despercebido, como o topo dos prédios e
a elevação das construções.
As crises não voltaram, viu-se reconciliado com seus
projetos e por decisão própria quis encerrar o tratamento. Sentia-se agora mais dono de si, segundo suas palavras, e gostaria de exercer uma independência maior em
relação às suas próprias escolhas, o que o fazia se sentir,
de alguma forma, preso às nossas sessões. Alertei-lhe
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012
sobre a necessidade em avaliarmos juntos alguns aspectos determinantes das crises que sofrera e as vantagens
de um tratamento que não se finda apenas com o alívio
dos sintomas.
Disse-lhe que os sintomas eram apenas uma “ponta
de um iceberg” que indicava que deveríamos aprofundar
mais em direção a seus problemas. No entanto, Lucas
estava decidido; findas as crises e tendo-se reconciliado com o seu corpo, segundo o que disse, poderia caminhar sozinho. Nada valeu minha insistência e o paciente deu por encerrado o processo, agradecendo-me muito
pela ajuda e se dizendo totalmente curado do transtorno
que sofria. Após três meses do fim de nossas consultas
liguei-lhe para ter notícias; disse que se curara de vez
dos sintomas e que havia sido aprovado no concurso e se
preparava para o curso técnico; o que fosse fazer depois
decidiria mais tarde.
4. O Caso Lucas à Vista da Fenomenologia Existencial
Lucas revela desde o primeiro encontro, uma postura
distante, tímida. Falava por gaguejos e se corrigia constantemente. Os sintomas não são, a princípio, o que o
abriria ao processo psicoterápico, antes fazem um apelo
àquilo que o mantém enlaçado ao mundo: a necessidade
em atravessar a ponte que o ligaria a uma vida profissional digna, tal qual fora a de seu pai. Aproximar-se das
palpitações, do descontrole, do medo iminente da morte
é também se aproximar das experiências advindas disso,
é estar com aquilo que é o núcleo de seu adoecimento.
Prefere de início se relatar como de “fora” do processo,
apresenta-se como quem cabe suplantar a dura missão
de lidar com um estudo focado, concentrado, tal qual se
apresentava no projeto do pai.
O mundo exigente do pai apareceu-lhe como pré-determinado e ameaçador à sua existência. A solicitação
de que era dele a responsabilidade por seu futuro e que
esse estava atrelado à aprovação no concurso, cerceava
suas possibilidades de ser, o que de certa forma o sufocava, ao mesmo tempo em que, ao não se posicionar sobre
isso, não conseguia empreender-se nos estudos necessários à sua aprovação.
O Terror do pânico se lhe revela quando as possibilidades de espacialização vão se reduzindo a ponto dele
vislumbrar a possibilidade terrífica do abismo lhe invadir. Por um lado, temos que o núcleo do terror vivenciado por Lucas bem poderia se encontrar na morte do avô.
O fato da sintomatologia do pânico ocorrer logo após o
falar sobre essa morte, não garante que os ataques estejam simplesmente associados a essa. O que vale destacar
na forma como Lucas compreende essa morte é que ela
inaugura um abismo de continuidade, interferindo em
seu modo de espacializar.
O concurso aparece sempre como um inatingível
idealizado, sua posição perante a ele, confunde-se como
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A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial
203
A arquitetura já não vista como um desabamento,
mas como elos que se ligam em travessias possíveis por
bicicleta. Os blocos dos prédios, as pontes, os viadutos
que atravessava, denotavam já a possibilidade de ser aí
como projeto para alguma coisa.
Considerações Finais
Para o que nos interessa em uma análise existencial,
o caso nos apresenta um exemplo de como uma categoria própria ao Dasein – a espacialidade – aparece como
elemento a ser compreendido dentro do quadro de uma
sintomatologia específica. Não se trata aqui de símbolo
ou metáfora de algo mais profundo que se encontraria no
pano de fundo da visão e significação do paciente, mas
do próprio modo como ele configura um mundo específico em seu modo de espacialização.
As passarelas diziam de suas possibilidades de ser
diante ao mundo, pois traziam à sua presença os desafios que lhe apareciam em sua existência. Algo que une
um solo a outro, mas que paira no abismo faz relação de
sentido com aquilo que Lucas vivenciava na dimensão
profissional e afetiva. O Terror é esse elemento que o invadia no “entre os solos”, guardando uma potência aniquiladora, pois o confrontava diretamente com a morte.
Interessante notar que a morte aqui diz da possibilidade de Lucas não existir como projeto em relação a algo.
A morte no humano não é simples ausência de vida, mas
falta de sentido em relação a que se direcionar.
Nesse trabalho, ao falarmos sobre o terror, resgatamos uma experiência comum nos quadros de psicoses
e a entendemos no contexto específico do transtorno do
pânico. A diferença diagnóstica entre essas patologias –
devemos ter claro –, não está propriamente na experiência em si, mas na biografia do indivíduo e na história da
evolução de sua patologia.
Lucas não desenvolve um processo psicótico por ter
em sua biografia alguma base sobre a qual pudesse ainda se manter. Essa base é chamada por Laing (1961/1972)
de “segurança ontológica” e se dá na medida em que o
indivíduo sente, desde a infância, a confirmação de sua
existência por parte de um outro significativo, podendo
ser o pai, a mãe ou alguém com quem o indivíduo mantenha um vínculo especial e contínuo no processo de seu
desenvolvimento.
Na fase em que Binswanger (1960/1987) se dedica à obra de Husserl, utilizando-se da Fenomenologia
Transcendental, o autor se refere à psicose como uma
descontinuidade no plano da experiência. O sujeito perderia a possibilidade de se atualizar diante do fluxo de
suas experiências existenciais. Assim, há por parte do
psicótico, diante de determinada experiência, a predominância de um tema único em sua existência, do qual
ele não pode escapar por sua própria vontade.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012
Artigo
uma posição diante ao pai. Posicionar-se, nesse sentido,
requereria confrontar o seu projeto com o do Pai o do
dele e se estabelecer em uma relação em que ele pudesse
compor seu próprio futuro e seu modo de espacialização,
mas isso não se deu.
Lucas se retrai frente à ameaça paterna e o desconsolo do avô morto. O abismo o ameaça, pois lhe aponta a
possibilidade iminente de fracasso no concurso que ele
mesmo passa a traçar na atitude relapsa para o seu preparo. Passar ou não passar no concurso seria a afirmação
do seu próprio ser, desafio esse que ele prefere não ter
que suportar. Como fuga a esse possível aniquilamento,
Lucas reduz seu modo de espacialização, a ponto de reduzir seu espaço a seu quarto e às pequenas caminhadas
que fazia no trajeto entre sua casa e a escola. No entanto,
o mundo de fora parecia invadi-lo, a ponto de o aniquilar.
A sensação de morte iminente, comum nos ataques de
pânico, desvela que o nada aparece como algo que vem
de encontro ao mundo do indivíduo. Algo de fora, incontrolável, ameaça sua existência como um todo.
As crises de pânico vão se tornando severas na medida em que a data do concurso vai se aproximando e
Lucas vai se sentindo engalfinhado. Sua atenção, voltada
às construções, mostra-nos o caráter plenamente reificado
do mundo que ele estava a habitar, sem se construir, elas
o chamam ao desabamento, já que como elas, ele é apenas facticidade e a queda é iminente. Nesse se desmontar Lucas não se apropria do seu modo próprio e se percebe como um “ente-intramundano” no meio dos outros.
Interessante notar que a vivência do terror da morte
vai aos poucos se atenuando após a experiência com a
passarela; passarela esta que ele atravessou destemidamente à procura de um estágio que lhe traria maior independência financeira em relação ao pai. Atravessar a
passarela significa recuperar um modo de espacialização que fora rompido desde a morte do avô. Ao desafiá-la, novas formas de relações existenciais lhe abriram.
Lucas pode vislumbrar possibilidades que antes não lhe
apareciam, posto que se afundavam no abismo do terror da morte.
A possibilidade de não passar no concurso foi a primeira menção que ele fez, já como posição frente ao projeto do pai sobre ele. A possibilidade de continuar estudando no ensino médio sem a especialização técnica visando
um melhor preparo para o vestibular foi outra. Existia
ainda uma terceira forma de se posicionar como projeto,
aprovar-se no concurso federal como meio de se realizar
mais à frente um curso universitário de Mecatrônica, o
que reuniria seus interesses aos do pai. Essa aproximação
paulatina com seu projeto e seu modo de espacialização
coincide com o fim das sintomatologias e alívio para o
seu sofrimento. O espaço de Lucas amplia-se de tal forma que ele passa a vir às sessões de bicicleta, e sempre
me trazendo detalhes novos sobre as edificações entre as
ruas que ele ainda não havia notado, pois estava cego às
construções e suas possibilidades.
Artigo
Gustavo A. O. Santos
Assim, o fato de Lucas vivenciar a angústia, significá-la em seu contexto existencial, e se abrir às novas possibilidades existenciais – graças, em parte, a um encontro
significativo com seu terapeuta – demonstra que em seu
caso o transtorno do pânico não foi prenúncio de uma
experiência da qual ele se tornaria refém, como é o surto
psicótico6. A relação de parceiro existencial vivenciada
no processo psicoterápico permitiu a Lucas uma abertura
para o seu ser além do mundo, em termos binswangerianos, ou seja, a possibilidade de se projetar para além daquela situação imediata e desesperadora que vivenciara.
A relação do desenvolvimento do transtorno associado
à morte do avô e às pressões paternas para que ele fosse
aprovado no concurso, desvela como a perda de um outro
significativo repercutiu de forma drástica em sua existência como um todo. Ainda assim, a figura reparadora
do terapeuta como alguém a quem pudesse confiar suas
angústias e temores, bem como a participação dedicada
da mãe a quem confiava dava a ele algum subsídio para
a realização de seus projetos. A perda de uma relação significativa como a que tinha com o avô, não significou a
perda de sua própria existência, como no caso Suzanne
Urban na relação com o diagnóstico do esposo, mas uma
angústia intensa que lhe desvelou o nada de sua condição
existencial e que possibilitou, concomitantemente, uma
abertura a novas possibilidades e revisão de seu projeto.
Binswanger (1960/1987) diz ainda que, na psicose, o
binômio “angústia e confiança”, como modo de abertura
do Da-sein, se desfaz. Assim, na neurose, angústia e confiança, embora possam estar comprometidas em algum
aspecto, aparecem interconectadas na relação que o indivíduo tece com seu mundo. O mesmo não se dá na psicose, em que uma das dimensões sobrepõe à outra. Ora o
sujeito confia sem se angustiar, como nos casos da mania,
ora se angustia sem exercer nenhuma confiança, como
nos delírios persecutórios presentes na esquizofrenia.
No caso Suzanne Urban, o nada se sobrepôs às suas
possibilidades e sua existência se paralisou em um único tema, o mundo não lhe apareceu digno de confiança,
haja vista que todos eram vistos por ela, como potências
aniquiladoras de sua própria existência. Lucas foi capaz
de confiar, mesmo que ainda angustiado, em uma relação significativa com seu terapeuta e nas suas próprias
capacidades e possibilidades de realização.
O transtorno do pânico tem sido alvo de intensos debates entre psiquiatras, psicoterapeutas e psicanalistas,
tanto do ponto de vista explicativo quanto nos modelos
de tratamento. Este trabalho teve como intuito demonstrar como uma relação que se estabeleceu entre psicoterapeuta e cliente pode elucidar alguns pontos presentes
na patologia e promover alívio para os sintomas em um
caso específico, pelo menos por um período de seis meses.
Faltam-nos elementos para saber se os chamados
“sintomas”, nos dizeres do paciente, reaparecerão ul Cabe lembrar que os estados de pânico, tal como os vivenciados por
Lucas, costumam prenunciar um surto psicótico.
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Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012
teriormente em uma nova situação, desencadeados por
novos impasses nas relações interpessoais. A idade com
que eles apareceram e foram tratados, podem nos deixar
otimistas quanto a isso; antes de Lucas se solidificar em
um modo de fuga da angústia essa foi por ele enfrentada em uma situação específica, permitindo a abertura a
possíveis dentro de sua estrutura existencial.
A adolescência já é por si só um abismo a se transpor
e essa ponte, muitas das vezes, dá-se como um projeto
profissional, algo com que Lucas se debateu prematuramente graças às exigências do pai. Não é comum que
adolescentes de 15 anos sejam postos dessa forma diante da uma escolha de um futuro tão relevante para sua
vida, o que ameaçou, sem sombra de dúvida, sua frágil
estrutura existencial, ainda imatura para se posicionar
diante de projetos desse tipo.
O pai não foi chamado para as sessões, justamente
pelo terapeuta prever que o mesmo poderia ameaçar o tratamento. A mãe confirmava a aversão que o mesmo tinha
por psicólogos e “frescuras” do tipo. As exigências dele
acabariam por reforçar a sintomatologia de Lucas que,
quando em ataques agudos, assustava o pai que recuava
diante das exigências. Paradoxalmente, foram as próprias
crises que o sensibilizaram, atenuando suas cobranças e
possibilitando a Lucas um novo posicionamento.
O caso se encerra por própria iniciativa do paciente,
que se sentia agora mais seguro em relação a seus próprios caminhos e que via no terapeuta um apoio fútil
para esse momento. A extravagância do ato pode também nos apontar de que modo Lucas traçava para si um
modo de ser sobre o abismo que depois poderia não suportar. O seu retraimento em relação a seus sentimentos
e anseios, desvelado na primeira sessão, aponta-nos para
a possibilidade do paciente ter-se comprometido com os
projetos do pai, como meio de respondê-lo sem, no entanto, estar consciente de sua própria base existencial
para a realização desses.
O cliente sai esperançoso na construção de um projeto próprio que lhe fosse viável e autônomo. E o texto
aqui se cumpre ao mostrar, de uma perspectiva analítico-existencial, de que forma podemos compreender e tratar
o transtorno do pânico tendo como existenciário básico
a espacialidade.
Referências
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e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-IV. Porto Alegre:
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Binswanger, L. (1972) Tres formas de la existencia frustrada: exaltación, excentricidad, manerismo. Buenos Aires:
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Binswanger, L. (1988). Le Cas Suzanne Urban – Étude sur la
schizophrénie. Saint-Pierre-de-Salerme: Gérard Monfort
(Original publicado em 1957).
204
A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial
Binswanger, L. (1987). Melancolie et manie. Études phénoménologiques. Paris: Presses Universitaires de France (Original
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Boss, M. (1977). O modo-de-ser esquizofrênico à luz de uma
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Brasileira de Daseinsanalyse, 3, 5-28.
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Giovanetti, J. (1990). O existir humano na obra de Ludwig
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Heidegger, M. (1997). Ser e Tempo I. Petrópolis: Vozes (Original
publicado em 1927).
Pereira, M. E. C. (1997). Pânico: contribuição à psicopatologia
dos ataques de pânico. São Paulo: Lemos Editorial.
Gustavo Alvarenga Oliveira Santos - Psicólogo, Mestre em Psicologia
Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Docente
na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Endereço
Institucional: Rua Getúlio Guaritá, 159 (Bairro Nossa Senhora da
Abadia). CEP 38025-440. Uberaba/MG. Email: gustavo.alvarenga@
psicologia.uftm.edu.br
Recebido em 06.07.2012
Primeira Decisão Editorial em 15.10.2012
Aceito em 14.12.12
Artigo
Laing, R. D. (1972). O eu e os outros. Petrópolis: Vozes (Original
publicado em 1961).
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Thiago A. A. Aquino
Análise da narrativa de Viktor Frankl
acerca da experiência dos prisioneiros nos
campos de concentração
Analysis of Viktor Frankl’s Narrative on the Experience of Prisoners in Concentration Camps
Análisis de la Narrativa de Viktor Frankl sobre la Experiencia de los Presos en Campos
de Concentración
Thiago A ntonio Avellar de Aquino
Resumo: O objetivo do presente artigo foi identificar a estrutura lexical mais significativa na obra de Viktor Frankl Em busca de
sentido: um psicólogo no campo de concentração. O corpus do texto foi analisado por meio do software ALCESTE (Análise Lexical Contextual de um Conjunto de Segmentos de Texto), um método computacional que se propõe a decompor um texto a fim de
obter as estruturas mais significativas. Os significados encontrados foram divididos em três classes subdivididas em dois eixos:
Facticidade e Posicionamento Psicoexistencial dos Prisioneiros. Por meio dessa análise foi possível identificar as palavras mais
características utilizadas por Frankl na sua narrativa acerca da vivência do prisioneiro no campo de concentração. Os resultados foram discutidos com base nos direitos humanos e na logoterapia e análise existencial.
Palavras-chave: Existencialismo; Prisioneiros; Historicidade; Léxico.
Abstract: The aim of this paper was to identify the lexical structure more significant in the work of Viktor Frankl’s Man’s Search
for Meaning. The text corpus was analyzed by the software ALCESTE (Lexical analysis by context of a set of text segments), a
computational method that aims to decompose a text in order to obtain the most significant structures. The meanings found
were divided into three classes subdivided into two axes: Facticity and Psycho-existential Positioning of Prisoners. By this analysis it was possible to identify the most typical words used by Frankl in his narrative about the experience of the prisoner in a
concentration camp. The results were discussed based on human rights and logotherapy and existential analysis.
Keywords: Existentialism; Prisoners; Historicity; Lexicon.
Resumen: El objetivo de este trabajo fue identificar la estructura léxica más importante en la labor de búsqueda de Viktor
Frankl en busca de sentido: un psicólogo en el campo de concentración. La recopilación del texto fue analizado por el software
ALCESTE (Análisis léxico por el contexto de un conjunto de segmentos de texto), un método computacional que tiene como objetivo descomponer un texto con el fin de obtener las estructuras más importantes. Los significados que se encuentran divididos en tres categorías, subdivididas en dos ejes: facticidad y posicionamiento psico-existencial de los reclusos. Mediante este
análisis se pudo identificar las palabras más típicas utilizadas por Frankl en su relato sobre la experiencia de los prisioneros
en un campo de concentración. Los resultados fueron discutidos con base en los derechos humanos y en la logoterapia y análisis existencial.
Palabras-clave: Existencialismo; Reclusos; Historicidad; Lexico.
“Nossa geração é realista porque chegamos a conhecer o
ser humano como ele de fato é. Afinal, ele é aquele ser que
inventou as câmaras de gás de Auschwitz; mas ele é também
aquele ser que entrou naquelas câmaras de gás de cabeça
erguida, tendo nos lábios o Pai Nosso ou o Shemá Yisrael”
(Frankl, 2010)
Artigo
Introdução
Viktor Frankl (1905-1997) é considerado como o fundador da Logoterapia e Análise Existencial, abordagem psicoterápica desenvolvida em Viena, posterior à
Psicanálise de Freud e à Psicologia Individual de Adler
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012
(Lukas, 1989). Por um lado, trata da busca de significado
para a vida como motivador primário do ser humano; por
outro, as possibilidades de decaimento psíquico por ocasião da frustração existencial. Sua teoria foi constituída
na primeira metade do século XX, com sólidas bases filosóficas e mediante as experiências clínicas com jovem em
situação de risco (Frankl, 2006). Mas, inequivocamente,
suas ideias foram corroboradas com suas vivências como
prisioneiro comum em quatro campos de concentração
nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Após a sua soltura, Frankl ditou em nove dias o livro
Ein Psycholog erlebt das Konzentrationslage (“Um psicólogo no campo de concentração”), que trata da sua vivência
como prisioneiro comum, sob o número 119.104, e da des-
206
crição dos aspectos psicológicos e existenciais dos demais
encarcerados. Esse livro foi considerado por Karl Jaspers
como “um dos poucos grandes livros da humanidade”
(Garcia Pintos, 2007). Gordon Allport, por ocasião do prefácio da edição americana do referido livro, concebe que
“(...) é uma obra-prima de narrativa dramática focalizada
nos mais profundos problemas humanos” (Frankl, 2010).
Já Caldas e Calheiros (2012), tecendo comentários sobre esse autor, afirmam que:
sua experiência como prisioneiro de campos de
concentração serviria, assim, para comprovar que o
ser humano é portador – além das dimensões física
e psíquica –, de uma dimensão mais abrangente que
pode dotá-lo de uma surpreendente força de resistência (p. 93).
Dessa forma, considerando a relevância desse livro
no âmbito da psicologia humanista-existencial, o objetivo do presente artigo foi o de realizar uma análise lexical com o intuito de identificar as estruturas mais significativas desse texto. Antes de apresentar o material,
que foi objeto de análise, torna-se relevante tecer alguns
comentários acerca de alguns aspectos teóricos desenvolvidos pelo autor em foco, o que será apresentado no
tópico que se segue.
1. Logoterapia e Análise Existencial
A Logoterapia é definida como uma psicoterapia centrada no sentido da existência, já que a palavra grega logos corresponde a sentido e direção e therapeía deriva-se do verbo therapeúo, prestar cuidados médicos, tratar
(Liddell & Scott, 1983). Dessa forma, constitui-se em uma
forma de tratar por meio do sentido. Essa primeira acepção refere-se a um sistema de cura, mas de forma geral
sua fundamentação constitui-se de três eixos básicos: a
liberdade da vontade, a vontade de sentido e o sentido
da vida (Lukas, 1989). A liberdade da vontade constitui o
eixo antropológico, que pressupõe uma liberdade de escolha apesar dos condicionamentos externos e internos.
Dessa maneira, o ser humano não seria livre dos condicionamentos, mas em última instância poderia decidir o que
irá ser no próximo instante (Frankl, 1978, 1989a, 1989b).
O segundo eixo corresponde à vontade de sentido.
Segundo essa concepção teórica, o ser humano seria motivado por um desejo de configurar sentidos e valores
em sua existência, isto é, em todas as suas experiências
no mundo. Para Frankl (1989a, 2010), essa motivação se
constitui como um fenômeno primário e como o principal fator de proteção da saúde mental. Por fim, o terceiro eixo é aquele que corresponde ao sentido da vida, ou
seja, a visão filosófica do mundo. Para essa perspectiva,
ao contrário da visão niilista, na vida há sempre um sentido a ser desvelado, latente nas situações, e nessa busca
207
a consciência intuitiva (Gewissen) seria o órgão que rastreia as possibilidades de sentido.
A outra característica da teoria de Frankl (1989a, 1990)
é a análise existencial, que se constitui como um método
antropológico de pesquisa. Segundo o autor, não há nenhuma explicação ou síntese da existência, já que “(...) a
pessoa também se explica a si mesma: se explica, se desdobra se desenvolve no transcurso da vida” (Frankl, 1990,
p. 63). Dessa maneira, o próprio ser humano em última
instância lê na vida, ou seja, explica-se a si mesmo, sendo
o papel da análise existencial compreender a existência
em suas possibilidades de ser no mundo bem como em
seus desdobramentos.
Destarte, a logoterapia como uma modalidade de
análise existencial pode ser classificada como uma
Geisteswissenschaft, ou seja, uma ciência do espírito
(Dilthey, 1989), por esse motivo preocupa-se com os fenômenos especificamente humanos. Nesse sentido, em sua
ontologia dimensional, atém-se em compreender quem é
o homem, advogando que o ser humano é muito mais do
que a sua dimensão psicofísica, constituído também por
uma dimensão dos fenômenos especificamente humanos,
denominada de noológica. Essa dimensão define a sua
verdadeira humanidade, correspondendo à preocupação
com valores (a ética e a estética), os atos intencionais, a
criatividade, o humor, o senso religioso, a preocupação
com o sentido e todos os atos que diferenciam os homens
dos animais (Lukas, 1989).
Frankl (1989a) compreende que o principal fenômeno humano é a vontade de configurar um sentido para a
vida, que se constitui como um desejo de realizar valores durante a sua existência finita e limitada no tempo e
no espaço, tornando-se responsável por algo ou alguém.
Destarte, esse autor apregoa que o ser humano quando
frustrado na sua busca de sentido, pode ocorrer uma sensação de vazio existencial, resultante da carência de valores existenciais. Essa sensação constitui-se como uma
neurose coletiva nas sociedades industriais, por esse
motivo, o homem atual necessita extrair sentido na sua
relação com o mundo, posto que não receberia mais os
valores por meio da tradição.
Para a logoterapia o homem comum, por meio de sua
“autocompreensão ontológica pré-reflexiva”, concebe três
vias de encontro de sentido na vida: os valores vivenciais,
criativos e atitudinais. O primeiro é caracterizado como
as vivências com a natureza e/ou com um tu, o segundo é a qualidade de criar algo para o mundo, como uma
obra artística ou científica e está, em geral, relacionado
com a capacidade de trabalhar. O terceiro vincula-se à
postura perante uma situação imutável, ou seja, aquela
característica humana de transformar um sofrimento em
uma realização ou conquista, que geralmente está associada com a capacidade de suportar o sofrimento inevitável (Frankl, 1989a).
Para esse autor o mundo é constituído por valores,
sendo esses considerados como objetos dignos de inten-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012
Artigo
Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração
Thiago A. A. Aquino
cionalidade, ou seja, os valores transcendem a própria
esfera do ser humano. Por esse motivo, “a logoterapia se
baseia em afirmações sobre valores tomados como fatos,
não em julgamentos sobre fatos tomados como valores”
(Frankl, 2011, p. 92). Nessa perspectiva, a realização
dos valores decorre da concepção de que a pessoa é um
ente aberto para o mundo, que é sempre um ser em relação a algo. A essa capacidade de sair de sua própria
esfera para se lançar para o mundo, Frankl denominou de autotranscendência, ou seja, aquela capacidade de voltar-se para algo ou alguém além de si mesmo
(Frankl, 1989a, 1978).
Outra característica antropológica é o autodistanciamento que se constitui como uma capacidade humana
de se afastar dos condicionamentos internos ou externos. Segundo o próprio autor, “as autênticas faculdades
humanas ancestrais da autotranscendência e do autodistânciamento, tal como afirmo nos últimos anos, foram verificadas e convalidadas de forma existencial no campo
de concentração” (Frankl, 2006, p. 86).
Frankl (2010) considera que suas concepções foram
validadas de forma vivencial durante a Segunda Guerra
Mundial. Para tanto, utiliza-se da perspectiva fenomenológica a qual define da seguinte maneira:
a fenomenologia é uma tentativa de descrição do modo
como o ser humano entende a si próprio, do modo
como ele próprio interpreta a própria existência, longe
de padrões preconcebidos de explicação, tais como
os forjados no seio das hipóteses psicodinâmicas ou
socioeconômicas (Frankl, 2011, p. 16).
Destarte, o relato sobre suas vivências como prisioneiro nos campos de concentração constitui uma forma
de validação existencial das suas próprias concepções
acerca do ser humano. Torna-se pertinente nesse momento apresentar, de forma sucinta, o conteúdo do seu
manuscrito autobiográfico, o que será descrito a seguir.
Artigo
2. O Campo de Concentração
Viktor Frankl, por ser de origem judaica, foi deportado para o gueto de Theresienstadt junto com a sua família
(os pais e sua esposa). Esse local era considerado a porta
de entrada para os campos de extermínio e nele permaneceu durante vinte e cinco meses até ser transferido, em
outubro de 1944, para Auschwitz-Birkenau na Polônia
onde recebeu o número 119.104. O lema desse campo era:
Arbeit macht frei, o trabalho liberta (Herrera, 2007), o que
não se constituía apenas como uma medida disciplinar,
mas como uma tortura psicológica. Outros campos nos
quais esse autor esteve interno foram as dependências de
Dachau: Kaufering e Turkhein, onde permaneceu até o
dia 27 de abril de 1945, quando foi libertado por ocasião
do término da guerra (Garcia Pintos, 2007).
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012
Pode-se constatar que a narrativa de Viktor Frankl
(2010) decorre da sua vivência nos campos de Auschwitz,
Dachau e Theresienstadt como prisioneiro comum, já que
o mesmo foi torturado e sobreviveu à custa do trabalho
forçado em escavações e construções de ferrovias. O autor, em sua narrativa, propõe-se a responder à seguinte
questão: “de que modo se refletia na mente do prisioneiro
a vida cotidiana no campo de concentração?” (Frankl,
2010, p. 15). Dessa forma, objetivou compreender as atitudes dos cárceres mediante os fatos que causaram uma
experiência psicológica (Frankl, 2010).
Por ocasião da sua reclusão e por meio de uma autoobservação e da observação dos seus companheiros de
reclusão, pôde identificar três fases distintas pelas quais
os internos estruturaram suas experiências: Choque de
entrada, fase de adaptação e fase da soltura (Frankl, 1990,
2010). A primeira fase, o choque da entrada, se caracteriza pelo contato intersubjetivo dos prisioneiros novatos
com os antigos bem como com os guardas e os comandantes do campo. A recepção não é amistosa e logo os
prisioneiros abandonam possíveis ilusões, que no caso
de Frankl seria o de conservar um manuscrito científico.
Decorre daí que o prisioneiro muda de sua situação existencial pregressa para se deparar com uma perspectiva
caracterizada como “sem saída”, próximo da sua morte e
da morte de outros companheiros. Entretanto, nesse estágio o prisioneiro não teme a morte e a câmara de gás,
tornando o suicídio um ato desnecessário.
Enquanto a primeira fase é caracterizada pelo pânico, a segunda é marcada pela indiferença. Na fase de
adaptação, o prisioneiro se torna apático, os sentimentos
tornam-se embutidos, como um mecanismo de defesa
daquela situação de extremo sofrimento. Por essa razão,
não chegam a manifestar emoções tais como amarguras,
indignações e desesperanças.
Nesta fase de adaptação, a vida afetiva vai se reduzindo e a aspiração primordial é a sobrevivência, regredindo
à vida instintiva mais primitiva. Além da apatia, o prisioneiro é acometido por uma irritabilidade expressa por
certo nível de agressão, o que Frankl (2010) atribui não
apenas a uma origem psicológica, mas também à ausência de cafeína e nicotina. Mediante a situação sociológica
em que se encontravam, não era incomum o sentimento
de inferioridade nos prisioneiros comuns, aqueles que
não tinham privilégios.
Embora tenham regredido ao estágio da luta pela sobrevivência, duas áreas de interesse se sobressaíam: a
política e a religião. A primeira temática está vinculada
à esperança do fim da guerra, que nem sempre era verossímil; já a segunda surpreendia os prisioneiros recémchegados pela vitalidade das preces e orações em lugares improvisados.
Gradativamente os internos progrediam para um tipo
de experiência da existência provisória, pois “o fato de
que não exista um término da forma de existir no campo
de concentração conduz à experiência de um futuro ine-
208
Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração
1. A vida onírica, como expressão das aspirações e
desejos dos presos;
2. O silêncio do impulso e desejo sexual;
3. A depreciação de tudo aquilo que não serve para
conservar a vida, que se expressou na falta, quase
absoluta, de sentimentalidade ou falta de reação
emotiva (p. 43).
Para o recluso que perde a noção dos fins e de uma
meta em sua existência, sucumbe à própria apatia, ou
seja, não se preocupam mais com a higiene e com a alimentação, recusando-se a encarar o trabalho forçado e
suportando com indiferença o castigo imposto. Sobre isso
Frankl (1990) observa que:
(...) A orientação a um ‘fim’ e a uma meta posta no
futuro representa aquele apoio espiritual que tanto
necessita o detento no campo de concentração, porque
apenas esse apoio espiritual é capaz de preservar o
homem para que não caia em mãos dos poderes do
entorno social que imprimem caráter e que formam
tipos, ou seja, para que não se deixe cair (p. 208).
Frankl (2010) observa que em última instância o prisioneiro decidia que tipo de pessoa gostaria de se tornar, um recluso típico ou tomar uma postura alternativa.
A essa atitude espiritual denominou de força de obstinação do espírito. O autor narra exemplos de prisioneiros
que conseguiram, apesar da irritabilidade e apatia, uma
superação das condições internas e externas e passavam
pelos barracões proferindo algumas palavras de conforto
e oferecendo um pedaço de pão. Nesses casos, pode-se
afirmar que alguns dos prisioneiros ainda permaneceram humanos apesar das condições desumanas, embora esse fato tenha ocorrido de forma escassa. Entretanto,
para aqueles que conseguiram se posicionar com uma
atitude livre, os campos lhes proporcionaram uma progressão moral e religiosa (Frankl, 1990). Para esse tipo
de prisioneiro “nunca tinha considerado a vida no campo
de concentração como um mero episódio – para eles era
mais, e se converteu, no auge de sua existência” (Frankl,
1990, pp. 211-212).
Por fim a terceira fase foi o da soltura, nela os prisioneiros ainda estão tomados pelo sentimento de despersonalização e tudo lhes parece um sonho, um simulacro de
liberdade. Eles passam de um estado de tensão elevada
para o de distensão, ou seja, ocorre uma descompressão
repentina, o que seria prejudicial para a saúde mental
(Frankl, 2010). Dois sentimentos atormentam os recém-
209
libertos: a amargura e a decepção. Quando retornam para
os antigos ambientes, as pessoas, de forma geral, reagem
de maneira vaga ou superficial com relação ao sofrimento que tinham vivenciado, o que leva o sobrevivente ao
seguinte questionamento: “para que serviu tanto sofrimento?”. Já a decepção estava relacionada à sensação de
desamparo quando não mais encontra o ente querido que
tanto esperava reencontrar quando estava nos campos de
concentração e que lhe dava esperanças, como expressou
o ex-recluso: “Ai daquele em quem não existe mais a razão
de suas forças no campo de concentração” (Frankl, 2010,
p. 118). Torna-se fundamental um acompanhamento psicoterápico para os ex-detentos.
Tendo em vista a narrativa do prisioneiro 119.104,
torna-se relevante analisar essa obra de uma forma mais
detalhada, tanto para a compreensão da experiência dos
prisioneiros do campo de concentração, como para a compreensão dos aspectos teóricos da logoterapia e análise
existencial. Sendo assim, o objetivo do presente trabalho
foi identificar os campos lexicais ou contextos semânticos que organizam a narrativa de Viktor Frankl acerca
de suas vivências e análises do prisioneiro nos Campos
de Concentração Nazistas.
2.Método
2.1Material
O corpus analisado foi a primeira parte do livro
Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração, extraído da vigésima nona edição da versão em
português editado pela Sinodal e Vozes. Esse manuscrito
foi produzido por Viktor Frankl após a guerra, além de se
constituir como uma narrativa autobiográfica que descreve a psicologia do prisioneiro nos campos de concentração por ocasião da Segunda Guerra Mundial. Para efetuar a análise do corpus, este foi transcrito para um documento do Word for windows e salvo no formato texto-txt.
2.2Procedimentos
Com o objetivo de realizar uma análise de dados textuais do corpus escolhido, foi utilizado o programa computacional Alceste (Analyse de lexémes coocurrent dans
les ennoncés simples d’un texte), versão 4.7, que se constitui como uma via para uma análise textual, identificando as classes de palavras emergentes de um discurso
(Reinert, 1990). Dentre outras finalidades, esse programa se presta também a analisar obras literárias em seus
contextos semânticos. Para tanto, parte-se do princípio
de que as pessoas se expressam por meio de um universo
lexical que representa suas estruturas mentais.
De forma específica, o programa agrupa as palavras
por radicais calculando a sua frequência no corpus do
texto para, em seguida, prover as unidades de contex-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012
Artigo
xistente” (Frankl, 1990, p. 207). Ocorre, portanto, uma
perda da estrutura temporal, levando o prisioneiro a uma
experiência de um futuro inexistente, o que, por conseguinte, o conduz a viver no imediatismo.
Herrera (2007), ao comentar o relato de Frankl, resume
em três aspectos a vida anímica do prisioneiro:
Thiago A. A. Aquino
to elementares (UCE). Dessa forma, “é a partir do pertencimento das palavras de um texto a uma UCE, que o
programa Alceste vai estabelecer as matrizes a partir das quais será efetuado o trabalho de classificação”
(Reinert, 1998, p. 17). Para tanto, o programa utiliza-se
do cálculo do qui-quadrado para identificar tanto os vocábulos mais característicos que compõem uma classe
com a força de associação entre as palavras e a classe.
Nesse sentido, foi realizada uma classificação hierárquica descendente.
2.3Resultados
Artigo
Segundo Kronberger e Wagner (2002), a análise com
Alceste tem por objetivo distinguir classes de palavras
que representam diferentes formas de pensar acerca de
uma temática específica. No caso da presente pesquisa,
a temática foi a narrativa de Viktor Frankl acerca da experiência dos prisioneiros nos campos de concentração.
A análise dos resultados foi obtida por meio do corpus
de uma unidade de contexto inicial (UCI), constituída pela vivência de Frankl descrita no livro Em busca
de sentido. Quando processado pelo software Alceste
apresentou uma divisão do corpus em 2101 unidades
de contexto elementar (UCE) contendo 8989 palavras,
formas ou vocábulos distintos e 74% das UCE foram
analisadas, o que se considera satisfatório visto que a
solução aceitável requer no mínimo 70% (Kronberguer
& Wagner, 2002). O Alceste organizou as ideias mais
relevantes da obra analisada em três classes, dispostas
em dois eixos principais.
A Figura 1 apresenta o Dendograma que representa as classes que emergiram após a análise lexical. Ele
proporciona a visualização, de forma decrescente, das
palavras mais significativas em função das classes, que
são concebidas como contextos semânticos. Tendo em
vista que a força de associação entre o vocábulo e a classe é representada por meio do cálculo do qui-quadrado,
consideraram-se apenas as palavras que apresentaram
χ2 ≥ 3,84 (p = 0,05).
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012
210
Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração
(...) cansaço, o prato de sopa na mão, quando entrou
um companheiro correndo (...) aconteceu? A passos
lentos os companheiros se arrastam em direção ao
(...) repente saio do barracão rumo à enfermaria para
avisar o meu colega (...) frente ao pequeno fogão do
barracão, cuidando do fogo naquelas horas (...) parar
meu colega e amigo P. ele foi mandado para o outro
lado? Sim (...) dia seguinte o capo me contrabandeou
para outro comando de trabalho (...) fui acordado pelo
companheiro que dormia ao meu lado a gemer e (...)
amontoavam cerca de cinquenta companheiros com
febre alta, delirantes (...) galpão a me mandar para
a enfermaria central a fim de receber (...) enfermos.
Os destinados para o transporte, aqueles corpos consumidos (...) tentaria arranjar algum pedaço de pão
para comermos nos dias seguintes (...) dois doentes
de tifo exantemático, dois enfermeiros, um medico. E
já (...) pedaço de pão no bolso da capa, com os dedos
desprovidos de luvas e (...) no chão, enquanto os demais
eram forçados a ficar de pá horas a fio (...) uma voz
de comando: grupo de trabalho weingut, marchar! esquerda, 2 (...) gola da capa o companheiro que marcha
ao meu lado murmura de repente (...) quem trabalhei
lado a lado, por semanas a fio, no local da construção
(...) solta sua língua, e começa a contar coisas, horas e
horas a fio (...) campos menores, sentados, acocorados
ou de pé, no chão de terra (...)
Já o segundo eixo foi composto por duas classes, que
concentraram 35,3% do conteúdo, referindo-se ao posicionamento psico-existencial dos prisioneiros. Na classe 2
predomina a referência às reações e posicionamentos dos
prisioneiros e abarcou palavras no intervalo de χ2 = 96,5
[sofri+(sofrimento, sofrimentos)] a χ2 =18,5 [fat+(fatais,
fatal, fato, fator)]; já a classe 3 agrupa ideias sobre as reações psíquicas dos mesmos. Essa última abrange os vocábulos de χ2 = 169,7 [psicolog+(psicologia, psicológica,
psicológicas, psicológico, psicológicos, psicólogo)] a χ2 =
22,9 [higien+ (higiene, higiênicas); condic+(condição,
condições)]. Para ilustrar o contexto do discurso referente à classe 2, são apresentados os seguintes fragmentos
do texto analisado:
211
(...) justamente uma situação exterior extremamente
difícil que da à pessoa (...) somente uma vida ativa
tem sentido, em dando a pessoa a oportunidade (...)
uma chance de se realizar criativamente e em termos
de experiência (...) falando em termos filosóficos, se
poderia dizer que se trata de fazer (...) uma única resposta correta à pergunta contida na situação concreta
(...) gozo da vida, que permite à pessoa a realização
na experiência do que (...) caracteriza cada pessoa
humana e dá sentido à existência do individuo (...)
entorpece em semelhante situação interior e exterior?
para não falar (...) espiritual dotado de liberdade interior e valor pessoal. Ela (...) concentração se pode
privar a pessoa de tudo, menos da liberdade não se
pode perder. Sem duvida, elas poderiam dizer que
foram dignas (...) e belo, na experiência da arte ou da
natureza. Também há sentido (...) como testemunho
para o fato de que a pessoa interiormente pode ser
(...) existência também não consegue viver em função
de um alvo. ela também (...) esquecidas as possibilidades de influência criativa sobre a realidade (...)
que ele somente pode existir propriamente com uma
perspectiva futura (...) exigência, e com ela o sentido
da existência, altera-se de pessoa para (...) cumprir
uma tarefa. Havia muito sofrimento esperando ser
resgatado por (...) concentração foram de natureza
individual e coletiva. As tentativas (...)
Por sua vez a classe 3, Reações Psicológicas, pode
ser ilustrada por meio dos seguintes extratos do texto de
Viktor Frankl:
(...) importa na medida em que tem um número de
prisioneiro, representando (...) novo a alegrar-se. Sob
o ponto de vista psicológico, pode-se chamar de (...)
segunda fase dentro das reações anímicas do recluso
no (...) terceira fase de reações anímicas do recluso, ou
seja, a psicologia de (...) natural e, conforme ainda se
mostrara, típica naquelas circunstancias (...) necessidades mais primitivas fá-lo experimentar a satisfação
das (...) campo de concentração naturalmente apresentava muitos aspectos (...) seja, de enfrentar decisões.
A apatia tem ainda outras causas e não (...) psicológica
e explicação psicopatológica dos traços típicos com que
a (...) sobre a capacidade de resistência dos prisioneiros
se manifestou (...) apatia dos outros, e mais ainda diante do perigo em que ela coloca a (...) queremos detalhar
a seguir. A observação psicológica dos reclusos, no
(...) ex-prisioneiro 119104 tenta descrever agora o que
vivenciou como (...) nós, prisioneiros, já atingíramos
este ponto no curso dos eventos (...) segundo estágio de
suas reações psíquicas, não mais tenta ignorar a (...)
quantidades de calorias. O alivio psíquico e produzido
por ilusões que (...) preponderância dos instintos primitivos e a peremptória necessidade de (...) aquilo que
não serve a este interesse exclusivo. Assim se explica
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012
Artigo
Como se pode observar, o primeiro eixo é composto
por 64,4 % do conteúdo analisado e está relacionado com
a facticidade dos prisioneiros no campo de concentração,
ou seja, as condições em que os prisioneiros se encontravam imersos e sem a participação da vontade dos mesmos.
A classe 1, que compõe esse eixo, foi composta por palavras e radicais no intervalo de χ2 = 27 [barrac+(barraca,
barracão, barracas, barracões)] a χ2 = 7,7 [pão; fri+(fria,
frieza, frio)]. Pode-se atribuir a essa classe a denominação
de destino, o que se constitui por condições externas e
internas as quais não são passíveis de escolha por parte
do prisioneiro. A seguir são apresentadas algumas UCE
representativas dessa classe:
Thiago A. A. Aquino
a (...) das circunstâncias e a despeito de sua delicada
sensibilidade (...)
Em síntese, da análise da estrutura lexical da narrativa de Frankl emergiram dois polos: por um lado, a condição cotidiana que se configurou como o destino, e, por
outro, as reações psíquicas e a mobilização da dimensão
noológica dos prisioneiros.
3.Discussão
Artigo
Viktor Frankl reconhece que a sua descrição como
um observador participante poderia ter o viés subjetivo
por se tratar de uma experiência pessoal (Frankl, 2010).
Por esse motivo, faz a seguinte consideração: “(...) deixarei
que outros destilem mais uma vez o que está sendo apresentado, tirando do estrato dessas experiências subjetivas
suas conclusões impessoais em forma de teorias objetivas”
(Frankl, 2010, p. 21). Seguindo essa recomendação, realizou-se uma análise textual do seu relato autobiográfico.
Considerou-se que o objetivo foi atingido tendo em vista
que, por meio de uma análise lexical, encontrou-se uma
estrutura da narrativa desse autor.
Diferentemente de outros autores como Levi (1990),
que se preocuparam em descrever os horrores dos campos de concentração, Frankl coloca os acontecimentos
nos campos como o pano de fundo para compreender
o vivido dos cárceres, posto que o seu foco foi a experiência psicológica dos prisioneiros comuns. Para tanto,
o autor utiliza-se de um método que supera a dualidade sujeito-objeto, ou seja, é o de um observador participante utilizando-se de uma postura fenomenológica ao
analisar o vivido de sua própria consciência. Cabe agora
analisar os eixos e as classes que emergiram; o que será
desenvolvido a seguir.
Eixo I - Facticidade dos prisioneiros
O eixo I foi composto por uma classe, a qual se constituiu como o maior poder explicativo desse dendograma
(64,7% do total). As palavras de maior associação dessa
classe referem-se ao destino sociológico dos prisioneiros, ou seja, o contexto ambiental que não é passível de
mudança. A estrutura revela-se de forma coerente com
a proposta do narrador do texto, em suas próprias palavras ele faz a seguinte consideração: “apresentaremos os
fatos apenas na medida em que eles desencadeavam uma
experiência na própria pessoa (...)” (Frankl, 2010, p. 19).
Os “fatos” representam no dendograma o primeiro eixo,
ou seja, o cotidiano, que se associou com o segundo eixo
Posicionamento Psicoexistencial dos Prisioneiros. Frankl
(1989a) considerou que em última instância a liberdade
seria a escolha das potencialidades do vir-a-ser, como
por exemplo, uma atitude pessoal perante a conjuntura
de condicionamentos. Assim, haveria duas possibilidades de posicionar-se perante a facticidade do campo de
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012
concentração, uma é a de ser um prisioneiro típico e a
outra é a de tomar uma atitude livre perante as condições impostas.
Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(ONU, 1948) tenha sido proclamada posterior à Segunda
Guerra, considera-se pertinente analisar o primeiro eixo
da estrutura léxica, Facticidade dos Prisioneiros, a ótica
dos artigos mais violados durante a permanência dos reclusos nos campos de concentração. Por exemplo, o Artigo
I reza que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência
e devem agir em relação umas às outras com espírito de
fraternidade”. O direito à liberdade foi cerceado tendo em
vista que os prisioneiros se encontravam destituídos de
escolha e se consideravam joguetes do próprio destino.
Já o Artigo II prescreve que
Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos
e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem
distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião política ou de outra natureza,
origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição.
No campo de concentração as pessoas eram julgadas
de acordo com a sua raça. A esse respeito Frankl (2010)
concebeu que existem apenas duas raças, a das pessoas
decentes e a das indecentes, independente do grupo em
que as pessoas se encontrem. Apesar da perseguição étnico-religiosa os prisioneiros puderam expressar o sentimento religioso em lugares improvisados:
O interesse religioso dos prisioneiros, na medida em
que surgia, era o mais ardente que se possa imaginar. Não era sem um certo abalo que os prisioneiros
recém-chegados se surpreendiam pela vitalidade e
profundidade do sentimento religioso. O mais impressionante neste sentido devem ter sido as reações aos
cultos improvisados, no canto de algum barracão ou
num vagão de gado escuro e fechado, no qual éramos
trazidos de volta após o trabalho em uma obra mais
distante, cansados, famintos e passando frio em nossos trapos molhados (Frankl, 2010, p. 51).
No Artigo III reza que “Toda pessoa tem direito à vida,
à liberdade e à segurança pessoal.” Os prisioneiros que
não serviam mais para o trabalho não tiveram direito a
uma vida digna, sendo encaminhados para a câmara de
gás aqueles que não estavam aptos ao trabalho. Frankl
(1989a) apregoa a dignidade e o valor incondicional da
pessoa humana e não os condicionam a sua capacidade
de produzir para a sociedade. O próprio Frankl (2006),
por ocasião da autorização da eutanásia em pacientes
psicóticos, alterou os laudos médicos com a intenção
de salvar seus pacientes quando ainda podia atuar no
Hospital Judeu.
212
Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração
Eixo II - Posicionamento psicoexistencial
Esse eixo é composto por duas classes: atitude singular dos prisioneiros e reações psicológicas. Enquanto a
segunda classe explicou 23,7% do total, a terceira apresentou o menor poder explicativo do dendograma (11,6%
do total). Percebe-se que na classe 2 predominaram conteúdos concernentes à dimensão noológica, enquanto na
classe 3 prevaleceram as palavras que referenciam o estado anímico dos prisioneiros. Frankl (2010) destaca, por
um lado, algumas características psíquicas, tais como a
perda da sensibilidade (embotamento afetivo), a irritabilidade e o sentimento de inferioridade do prisioneiro. Além
da apatia, foi observado também o temor em tomar decisões, pois as consequências poderiam ser imprevisíveis.
Por outro lado, o referido autor concebeu que há uma
estranha relação dialética entre existência e facticidade,
advogando que são “(...) dois momentos que se interdependem e se exigem reciprocamente. Estão sempre incrustados um no outro, razão pela qual só a força é que se pode
separá-los” (Frankl, 1990, p. 96). Essa perspectiva corroborada por meio do significado do termo Ex-sistir, ou seja,
sair de si mesmo e confrontar-se (Frankl, 1990).
Para comprender a narrativa de Frankl, torna-se necessário compreendê-la no conjunto de sua obra científica. Destarte, pode-se considerar que esse manuscrito
seja complementar ao livro que Frankl publica em 1946:
Ärztliche Seelsorge, cura médica de almas, o qual estava escrevendo antes da sua internação nos campos e
tentou reconstruí-lo no final da guerra quando contraiu
213
tifo exantemático. Nesse livro, o autor trata das grandes
temáticas de sua análise existencial, dentre elas a do sofrimento humano e as possíveis posturas perante a sua
facticidade.
A narrativa de Frankl sobre os campos de concentração torna-se uma validação dos pressupostos filosóficos
da logoterapia onde demonstra a capacidade do espírito
humano em resistir ao sofrimento quando se depara com
uma situação limite. Nessa perspectiva, Frankl (1989a)
conclui que sofrimento destituído de sentido pode levar
ao desespero. Destarte, o papel do médico e também do
psicoterapeuta seria aquele de consolar o homo patiens, ou
seja, seguir o imperativo colocado no portal do Hospital
Geral de Viena por seu fundador, o imperador José II: “salus et solatio aegrorum”, ou seja, “não só a cura, mas também a consolação dos doentes” (Frankl, 1990).
Nesse sentido, o projeto fundante da análise existencial desse autor foi o de reumanizar a medicina e a psicoterapia, pois quando o profissional tornar-se um técnico,
perde de vista o caráter especificamente humano do seu
paciente. Dessa maneira, o psicólogo deveria confrontar
a capacidade do paciente de se posicionar perante o seu
psicofísico (facticidade), instância na qual a pessoa não
pode eleger ou realizar escolhas. Isso significa que quando o ser humano se encontra com um sofrimento inevitável, pode escolher uma atitude perante a sua própria
dor, encontrando um sentido por meio dos “valores atitudinais” (Frankl, 1990).
Para tanto, o autor em foco acentua a capacidade
prospectiva do ser humano no campo de concentração,
pois a experiência de três anos em Auschwitz e Dachau
lhe ensinou que o mais relevante para a sobrevivência
naquela situação era estar orientado para o futuro, para
uma pessoa a ser encontrada ou um sentido a realizar
após a guerra (Frankl, 1989b). Nessa perspectiva, o segundo eixo da análise apresentou uma associação entre
as reações psíquicas e a atitude singular do prisioneiro.
Frankl (1989b) apresenta o seguinte exemplo do que
ocorrera no gueto de Theresienstadt:
Foi publicada uma lista de com o nome dos cerca de
mil jovens que na manhã seguinte seriam retirados do
gueto. Quando amanheceu o dia, era do conhecimento
geral que a livraria do gueto fora esvaziada. Cada um
daqueles rapazes – que estavam condenados a morrer
no campo de concentração de Auschwitz – pegara um
par de livros do poeta, do romancista ou pensador
preferido e o escondera na mochila (p. 27).
Nesse sentido, demonstra a capacidade dos prisioneiros de se posicionarem perante as suas últimas áreas de liberdade até o encontro com a morte. Em outros
momentos, os prisioneiros expressaram os valores vivenciais quando contemplam o pôr do sol ou uma música do violino (Frankl, 2010). Nessa perspectiva, a
análise semântica das palavras que se associaram em
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012
Artigo
No que se refere ao Artigo IV, “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico
de escravos serão proibidos em todas as suas formas”, os
prisioneiros foram tratados como escravos, já que eram
obrigados a trabalhos forçados a fim de sobreviverem,
restritos a uma alimentação com poucas calorias. Por
fim, no Artigo V encontra-se escrito que “Ninguém será
submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante”. Segundo o relato de Frankl
(2010), ao chegar ao campo os prisioneiros tinham todos
os pertences subtraídos, raspado todo pelo do corpo e
chicoteados sem nenhuma razão.
Frankl (1990) compreendeu em sua análise existencial que o ser humano não é livre de condições. O autor
em foco considera que o ser humano não está no vácuo,
mas se encontra sempre em relação a algo que o condiciona. De fato, o homem como ser-no-mundo está enraizado na existência, sempre está em relação a algo ou alguém. Entretanto, a forma de se relacionar com o mundo no campo de concentração foi desumanizante, pois
os prisioneiros eram tratados como coisas. O Eixo I, de
forma geral, enfatiza a vivência cotidiana do prisioneiro
comum ao ser inserido em um processo de despersonalização. Apesar da perda da sensibilidade, os prisioneiros
ainda se indignavam com as injustiças acometidas sem
nenhuma razão, o que remete ao segundo eixo.
Thiago A. A. Aquino
torno da classe 2 sugere as posturas e atitudes singulares dos prisioneiros, o que se torna possível mediante a força de resistência do espírito humano. Sobre isso
comenta Frankl (1989b): “as pessoas acentuavam suas
diferenças individuais. Vinha à luz a natureza animal
do homem, mas acontecia o mesmo para a santidade.
A fome era a mesma, mas as pessoas eram diferentes”
(p. 42). Herrera (2007) salienta que essa liberdade interior do prisioneiro não era uma liberdade-de (livre dos
condicionamentos), mas uma liberdade-para (tomada
de posição apesar dos condicionamentos). Destarte, ao
descrever a existência desnuda dos prisioneiros, segundo a narrativa do autor, pôde-se contatar que eles
não eram apenas um joguete do próprio destino, mas
que foi possível naquela situação tomar uma postura
pessoal perante o psicofísico do prisioneiro, o que na
análise se constituiu como a classe 2.
Artigo
Considerações Finais
O objetivo do presente artigo foi identificar a estrutura lexical mais significativa do livro Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração, o que foi
considerado plenamente alcançado. No entanto, faz-se
necessário nesse momento elencar algumas limitações do
estudo. Inicialmente considera-se que a análise foi feita
por meio de uma tradução do alemão para o português.
Assim, questiona-se se o significado semântico pode ter
sido modificado ou mesmo que a tradução tenha sido
um viés no presente estudo. Dessa forma, recomenda-se
fortemente que outros estudos, ao utilizarem dessa mesma metodologia, possam se ater ao texto original em sua
versão germânica.
Outra questão a ser ressaltada é que o autor da narrativa tanto foi observador quanto objeto de observação, já
que o mesmo não poderia se distanciar do contexto em
que estava inserido. Considera-se que ele foi um observador participante, narrando também as próprias vivências no campo. Entretanto, sabe-se que ele já vinha desenvolvendo a sua perspectiva teórica antes de ingressar
como recluso nos campos de concentração. Dessa forma,
a sua visão de homem e de mundo poderia ter facilitado
na constatação dos fenômenos especificamente humanos. Embora tenha feito uma análise fenomenológica da
vivência do prisioneiro, não é possível saber até que ponto ele suspendeu o seu olhar teórico para realizar tal observação. Nesse caso, sugere-se que outros manuscritos,
de outros autores que passaram por essa mesma experiência, possam ser analisados para efeito de comparação
com a descrição de Viktor Frankl.
Sobre a intenção de escrever o seu relato sobre a sua
vivência nos campos, o próprio autor esclarece que “havia querido simplesmente transmitir ao leitor, através de
um exemplo concreto, que a vida tem um sentido potencial
sob quaisquer circunstâncias, mesmo as mais miseráveis”
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012
(Frankl, 2010, p. 10). Nesse sentido a obra poderia ter um
efeito terapêutico ou biblioterapêutico sobre o leitor, entretanto não se conhecia até então a estrutura lexical que
estaria latente ao manuscrito que pudesse mobilizar os
recursos internos da pessoa humana.
Outro ponto relevante da sua narrativa refere-se a
questões éticas acerca das posturas das pessoas que sofrem injustiça. Apesar dos relatos dos pequenos atos heróicos dos prisioneiros, Frankl (1989b) considera que os
‘homens humanos’ se constituem como minoria. Para
esse autor, o prisioneiro que tomou uma postura ética
ou humana, diante dos condicionamentos impostos nos
campos, o fez de forma facultativa. A esse respeito ele
tece o seguinte argumento: “contudo é exatamente esse
fato que deve estimular a cada um de nós a unir-se à minoria: as coisas vão mal, mas se não fizermos o melhor
que pudermos para fazê-las progredir, tudo será ainda
pior” (Frankl, 1989b, p. 24). Nessa perspectiva, torna-se
compreensível que ao sair da reclusão, Frankl (2010)
apregoa que quem sofreu injustiça não teria o direito de
cometer injustiça.
Considera-se que tanto a vivência de Frankl (1989a)
quanto a sua visão teórica são complementares, ou seja,
constituem dois momentos distintos que resultam na
visão de homem e de mundo. A Logoterapia e Análise
Existencial se opõe a concepção reducionista, aquela em
que o ser humano é completamente condicionado e sem
qualquer possibilidade de escolha (pandeterminismo),
pois não considera a pessoa como um joguete do destino. Como pode ser constatado por meio da análise da
narrativa de Frankl, a pessoa é compreendida como um
ser que responde às demandas do mundo. Na totalidade
da obra de Frankl, o autor substitui a expressão “nada
mais que”, típica do reducionismo, por “mais que”, o
que resulta em uma compreensão de homem como um
ser que é sempre “mais que” as suas condições internas e externas.
A estada de Frankl nos campos de concentração proporcionou a validação vivencial dos princípios que esse
autor adota em sua visão antropológica, ressaltando, sobretudo, a “liberdade da vontade” e a “vontade de sentido”. De forma geral, a técnica estatística textual aqui
aplicada permitiu o mapeamento do mundo lexical da
primeira parte da obra Em busca de Sentido, o que permitiu revelar a estrutura da sua narrativa. Essa análise,
realizada por meio do ALCESTE, identificou três classes:
por um lado, a classe 1, Facticidade dos prisioneiros, por
outro as classes 2 e 3, Posicionamento psicoexistencial,
corroborando a concepção desse autor segundo a qual o
ser humano poderia se posicionar perante as condições
psicossociais, escolhendo sua forma de ser-no-mundo
por meio de sua dimensão noológica. Assim, considerou-se relevante analisar esse corpus tendo em vista que o
mesmo desvela a essência do pensamento originário do
autor em tela, tornando tangíveis os conceitos teóricos e
filosóficos dessa abordagem.
214
Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração
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Thiago Antonio Avellar de Aquino é Graduado em Psicologia pela
Universidade Federal da Paraíba, Mestre e Doutor em Psicologia Social
pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Professor Adjunto da
Universidade Federal da Paraíba no Departamento de Ciências das
Religiões; Professor credenciado do Programa de Pós-Graduação em
Ciências das Religiões; é líder do grupo Nous: Espiritualidade & Sentido (CNPq). Endereço Institucional: Universidade Federal da Paraíba,
Centro de Educação - Campus I. Cidade Universitária. 58059-900 - João
Pessoa, PB – Brasil. Email: [email protected]
Recebido em 15.10.12
Primeira Decisão Editorial em 21.11.12
Aceito em 21.12.12
Artigo
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Paz e Terra
215
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012
Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto
LINGUAGEM POÉTICA E CLÍNICA FENOMENOLÓGICA EXISTENCIAL:
APROXIMAÇÕES A PARTIR DE GASTON BACHELARD*
Poetic Language and Existential Phenomenological Clinic: Rapprochements with Gaston Bachelard
El Lenguaje Poético y la Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximaciones a Partir de Gaston Bachelard
R afael Auler de A lmeida Prado
M arcus Tulio Caldas
K arl Heinz Efken
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
Resumo: A clínica fenomenológica existencial posiciona-se criticamente a uma modalidade de linguagem concebida por critérios, categorias ou conceitos. Este artigo consiste numa reflexão teórica, com o objetivo de apresentar a imaginação poética como
via de linguagem articulada com a dimensão compreensiva, própria desta abordagem psicológica. Compreendemos a linguagem
como gesto significador, de acordo com Merleau-Ponty e em oposição às concepções intelectualistas ou empiristas. A “imaginação criadora” de Bachelard distingue-se da referência usual de imaginação como subproduto da memória. A imaginação poética, segundo a concepção de Bachelard é uma possibilidade de linguagem por meio da qual se vive plenamente o sentido de algo
que vem ao nosso encontro. Sua vivência permite que nós nos apropriemos de significados extremamente ricos e que dizem respeito ao mundo que está ao nosso redor.
Palavras-chave: Linguagem; Significação; Imaginação poética; Clínica fenomenológica existencial.
Resumen: La clínica fenomenológica existencial toma de modo crítico a una modalidad de lenguaje concebido por criterios,
categorías o conceptos. Este artículo se propone una investigación teórica, con el objetivo de presentar la imaginación poética
como una posibilidad de lenguaje articulado con la dimensión comprensiva, típico de este enfoque psicológico. Comprendemos
el lenguaje como gesto significante de acuerdo con Merleau-Ponty y en oposición a los conceptos empiristas o intelectualistas.
La “imaginación creativa” de Bachelard se distingue de la referencia corriente que considera a la imaginación como un subproducto de la memoria. La imaginación poética de acuerdo con la concepción de Bachelard es una posibilidad del lenguaje
por el cual es posible vivir en plenitud el sentido de nuestra existencia con las cosas del mundo. En resumen la experiencia de
la imaginación poética nos permite apoderarse de significados muy profundos que se relacionan con el mundo que nos rodea.
Palabras-clave: Lenguaje; Significado; Imaginación poética; Clínica fenomenológica existencial.
Artigo
Abstract: Existential phenomenological psychology criticizes a conception of language defined by criterions, categories or concepts. This article consists of theoretical reflection, with the aim of presenting poetic imagination as a conception of language
articulated to comprehension. We understand language as a signifier gesture, according to Merleau-Ponty and in opposition to
empiricist or intellectualist conceptions. Bachelard´s “creative imagination” distinguishes itself from the imagination´s usual
reference – memory´s byproduct. The poetic imagination, according to Bachelard’s conception, consists of a type of language by
which we can fully experience the sense of something. This experience allows us to take hold of multiple meanings that relate
to the world that surrounds us.
Keywords: Language; Meaning; Poetic imagination; Phenomenological existential psychology.
O presente artigo procura realizar uma aproximação
entre a imaginação poética, entendida como modalidade
de “imaginação criadora”, e expressão do sonhar, segundo
o pensamento de Gaston Bachelard e a clínica fenomenológica existencial. Esta aproximação tentará mostrar que
a reflexão filosófica sobre a imaginação poética feita por
Bachelard pode abrir novas modalidades de compreensão
para uma prática clínica fenomenológica e existencial.
A poética se apresenta como possibilidade para o ser humano estabelecer uma relação viva consigo e com os outros, a partir de sua linguagem própria, e de seu peculiar
modo de se expressar. Merleau-Ponty (1945/1999) toma a
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
linguagem de modo igualmente fundamental, como gesto
criador e significador de um mundo. Este tipo de relação,
também almejado pela clínica fenomenológica existencial, só pode ser estabelecida quando a linguagem deixa
de ser “usada” como meio de expressão ou “instrumento”
e passa a manifestar e revelar nosso modo de ser situado
no mundo com os outros. É nesse sentido de manifestação e revelação daquilo que mais propriamente nos diz
respeito que a poética é compreendida por Bachelard, o
que justifica nosso interesse pelo tema em questão.
A clínica fenomenológica existencial não se restringe
a conceitos e categorias, construtos de uma linguagem
216
A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard
217
essa importante noção. Escolhemos essa concepção por
ela não entender a linguagem como um processo associativo ou representacional, mas como gesto significador.
Esta compreensão de linguagem norteia nossa reflexão
sobre a imaginação poética.
Num terceiro momento, falaremos sobre a especificidade da imaginação poética, aproximando considerações
de Merleau-Ponty e de Bachelard. Procuraremos mostrar
o que de específico tem a imaginação poética a partir da
concepção de linguagem adotada. A imaginação poética
não é, para Bachelard, um processo de representação ou
expressão de uma idéia. A poética é uma modalidade de
linguagem pela qual significamos e criamos nosso mundo a partir de nossa capacidade de sonhar.
Dando continuidade às reflexões anteriores, apresentamos e discutimos algumas imagens poéticas trabalhadas por Bachelard. Concluímos o artigo pensando sobre
possíveis contribuições da imaginação poética para a
psicologia fenomenológica existencial.
1. O Pensamento de Descartes, Ciências Psicológicas
e Linguagem
Partimos da ideia de que há uma limitação quanto
à adoção metodológica de inspiração cartesiana, no que
diz respeito à fundamentação das ciências humanas, inclusive a psicologia. Embora o pensamento de Descartes
seja de inestimável importância para a história da filosofia e tenha contribuído para o desenvolvimento das chamadas ciências naturais, a crítica aqui é dirigida ao uso
dogmático e acrítico do método cartesiano no campo do
conhecimento sobre o ser humano.
As concepções filosóficas que orientam as práticas
psicológicas existentes são fundamentadas numa tradição de conhecimento predominante, em que há uma divisão epistemológica fundamental entre sujeito e objeto,
que se desdobra nas dicotomias entre homem e mundo,
e corpo e mente – ou psique – entre outras. Medard Boss
ressalta que o termo psique deriva do grego antigo e tem
o significado original de “(...) uma determinada maneira
de existir, ou seja, aquele modo-de-ser que distingue os
seres vivos” (Boss, 1972/1981, p. 53).
Psique foi assumindo, no entanto, no pensamento europeu, o significado de “(...) uma coisa substancial, a qual
se encontra em algum lugar no espaço” (Boss, 1972/1981,
p. 53), colocando-se dessa forma em oposição à corporeidade. No pensamento de Descartes, psique assume o
significado de Res Cogitans, entendida como o espírito
humano, o sub-iectum que “(...) quer dizer aquilo no que
algo se baseia, que está como fundamento de todo o restante.” (Boss, 1972/1981, p. 53). Por sub-iectum também
se entende a base para que as realidades do mundo existam, sendo tomadas por objetos. A psicologia assimilou
o conceito de Res Cogitans como “aparelho psíquico” na
teoria freudiana.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
Artigo
categorial, mas se apresenta vinculada a modalidades de
compreensão humana. A psicoterapia não é apenas uma
construção teórica, mas encontra a sua efetivação na prática clínica. Como prática, pode ser fecundada por uma
determinada concepção filosófica. O psicólogo é o profissional cuja fala e escuta se prestam a uma compreensão. Em sua formação acadêmica, procura desenvolver e
aperfeiçoar sua capacidade de compreensão. É para atender essa necessidade de qualificar seu compreender que
fundamenta sua prática em uma teoria. O suporte teórico
vigente fundamenta-se no método científico, concebido
a partir de premissas filosóficas. Em consonância com
tal fato, teorias psicológicas se desenvolveram a partir
da preocupação de fornecer ao psicólogo uma melhor
capacidade de compreensão. É inquestionável que, com
o desenvolvimento de teorias psicológicas, como a psicanálise, a psicologia comportamental e a psicossociologia,
a prática do psicólogo tem se tornado mais qualificada.
Seria por isso uma exclusividade do método científico a possibilidade de fornecer referenciais que possam
servir de guia para o psicólogo compreender o outro?
Por que haveriam de ser menos válidas para uma prática clínica as referências sobre o humano fornecidas
pela poética e pela filosofia? Seriam desprezíveis? Não
se pretende defender a fundação de uma nova proposta
psicoterápica, muito menos desvalorizar aquelas fundamentadas por métodos científicos, mas somente refletir
sobre a possibilidade da poética ser uma modalidade de
linguagem útil para a prática psicoterápica fenomenológica existencial.
Sá (2009) nos lembra que sempre haverá uma condição histórica fundada em uma comunidade humana que
a partir de uma linguagem que pareceria natural, nos
permite uma experiência do mundo cotidiano. Portanto,
os procedimentos técnicos e científicos, ou mesmo qualquer teorização, por mais que alcance uma linguagem
técnica altamente especializada, depende desta determinação histórica. Esta reflexão nos indica o cuidado que
devemos ter ao tomar a verdade em seu caráter absoluto.
A partir daí, acreditamos que a verdade sempre será uma
construção, não por isso menos verdadeira que qualquer
verdade técnico-científica.
Para cumprir seus propósitos, este artigo iniciará
com uma reflexão sobre o pensamento de Descartes, sua
influência para a fundamentação das ciências psicológicas e para uma determinada concepção de linguagem.
Mostraremos como o método de conhecimento proposto por este filósofo foi, por um lado, de fundamental importância para o desenvolvimento das ciências; porém,
por outro lado, caso utilizado como única forma de se
atingir “a verdade”, limita a compreensão do ser humano, que é fundamental para a proposição de uma prática
psicológica adequada.
Em seguida, apresentaremos a linguagem compreendida como gesto que significa e cria um mundo no pensamento de Merleau-Ponty; com o intuito de explicitar
Artigo
Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto
No campo da psicoterapia, Boss considera indispensável ao terapeuta ter conhecimento da origem de sua
fundamentação filosófica. Como a maioria das ciências
atualmente se fundamentam na filosofia de Descartes,
inclusive as ciências humanas, ele alerta para a importância do psicólogo refletir sobre seus pressupostos teóricos examinando criticamente a filosofia cartesiana:
“[É] (...) indispensável ao atual psicoterapeuta que – caso
ele queira saber o que faz – que ele reflita, pelo menos um
pouco, sobre o que aprontou a seu tempo, este matemático-filósofo, com o nosso mundo e com o mundo dos posteriores psicoterapeutas” (Boss, 1972/1981, p. 55). O autor
chama a atenção para o fato de que, na filosofia cartesiana, verdade e realidade são entendidas como o aquilo que
é mensurável, calculável e exato. Essas características,
por serem controláveis, foram eleitas para estabelecer o
que é verdade, permitindo que o homem exerça controle
sobre a natureza.
Nossa sociedade contemporânea é capitalista e consumista. O capitalismo, por um lado, se estrutura no
controle de condições e no processo de produção industrial, o que estimula, por exemplo, pesquisas científicas
para fabricação de novos produtos ou criação de novas
máquinas que aceleram e intensificam a produção. Por
outro lado, no controle de condições também se oferece
a possibilidade de se manipular e de se ter poder.
Nietzsche afirma (conforme citado por Boss,
1972/1981, p. 54) que o “(...) século XIX não trouxe a vitória da ciência, mas a vitória do método (método de pensar científico) sobre a ciência”. Para Boss, a colocação de
Nietzsche é válida ainda hoje. O método científico, que é
um método de controle sobre o mundo, tornou-se o modo
de pensar e de ser de uma sociedade. Com isso, as qualidades de mensurabilidade, calculabilidade e exatidão,
exigidos para que a ciência estabeleça controle sobre o
mundo, tornaram-se sinônimos de verdade e realidade
no plano das ideias.
As práticas psicológicas, portanto, fundamentam-se
numa filosofia que tem como objetivo o controle da natureza e apresenta caráter possessivo. Boss (1972/1981)
ressalta o risco que as psicoterapias correm de “(...) servir para um aumento de poder do sujeito em relação a
todos os objetos do mundo externo – inclusive de seus semelhantes” (Boss, 1972/1981, p. 55). Segundo o autor, as
psicoterapias atuais “(...) correm este perigo de serem elas
também como todas as ciências naturais que tentam obter
o domínio sobre a natureza inanimada, filhas desta mentalidade extremamente possessiva, subjetivista da filosofia cartesiana” (Boss, 1972/1981, p. 55). O autor aponta
ainda para a necessidade de a proposta psicoterápica fenomenológica existencial estabelecer novos referenciais
humanos não-conceituais ou categoriais, mas que possam
servir para expressar melhor o domínio da compreensão.
Merleau-Ponty (1945/1999), ao formular sua concepção
de corpo, tenta superar a dicotomia entre sujeito e objeto
proposta por Descartes. Para o autor, não existe a sepa-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
ração entre um corpo físico e uma alma ou mente, e nem
o corpo é compreendido como ideia ou objeto. O “corpo-próprio” para Merleau-Ponty é um “corpo sujeito”, um
modo paradoxal desse sujeito “estar” no mundo, posto que
o mundo o permeia de modo que o corpo é visível e se vê,
é sensível e se sente, é tocável e se toca. O ser humano é
seu próprio corpo e nada além, ou fora dele.
O pensamento de Merleau-Ponty caracteriza-se por
uma alternativa às limitações colocadas pelo pensamento cartesiano e busca ir além dele, fazendo uma releitura da condição do ser humano, de modo que mundo e
homem não são mais compreendidos como separados,
mas o homem, através de sua corporeidade, é um ser no
mundo, sendo o mundo o que o cerca e lhe diz respeito.
Esta concepção devolve o homem ao seu pertencimento
ao mundo, e permite que os fenômenos humanos sejam
reinterpretados. A linguagem, a partir da corporeidade
proposta por Merleau-Ponty é, desse modo, compreendida de uma outra forma.
2.Linguagem como Gesto que Significa e Cria um
Mundo
A dicotomia sujeito-objeto, proposta pelo modelo cartesiano, deu origem a duas correntes de pensamento: o
intelectualismo, que privilegia o subjetivismo, e o mecanicismo, que privilegia o objetivismo. No âmbito da
concepção da linguagem, ambas as correntes consideram
uma separação entre pensamento e fala em que ou um é
causa do outro, ou um representa o que outro expressa.
Para Merleau-Ponty (1945/1999), a fala e o pensamento
são dois momentos de um mesmo gesto, um gesto que só
pode se dar através do corpo. É por isso que o autor afirma que “(...) para poder exprimi-lo em última análise o
corpo precisa tornar-se o pensamento ou a intenção que
ele nos significa. É ele que mostra, ele que fala.” (MerleauPonty, 1945/1999, p. 267).
A linguagem – fenômeno do corpo – é uma modalidade de gesto. Como todo gesto, a fala só acontece a partir das possibilidades expressivas do corpo como vociferar e soltar ar silibante, e, ao mesmo tempo constitui um
mundo de significados que expressam suas intenções e
sua disposição emocional. Este mundo de significados é
constituído pela fala e se refere a uma rede significativa
“intersubjetiva” já adquirida, a qual permite que a fala
seja compreendida pelo outro. No entanto, a fala não se
relaciona a esta rede “intersubjetiva” a partir de um processo causal, nem por um acesso intelectual a representações mentais pré-existentes. A fala do outro habita meu
corpo, há uma reciprocidade entre minhas intenções e
desejos e a fala do outro e vice e versa e, só por isso, há
fala. A rede intersubjetiva é apenas o meio (linguístico)
possibilitador da fala.
A fala não pressupõe o pensamento. Falar não é unir-se ao objeto através de uma representação nem por uma
218
A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard
(...) a fala não é o signo do pensamento, se entendemos
por isso um fenômeno que anuncia outro, como a fumaça anuncia o fogo. A fala e o pensamento só admitiriam
essa relação exterior se um e outro fossem tematicamente dados; na realidade, eles estão envolvidos um no outro, o sentido está enraizado na fala, e a fala é a essência
exterior do sentido (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 247).
Compreendemos para além do que pensamos espontaneamente. Isso mostra que o pensamento não se relaciona com a fala a partir de um processo associativo, como
é defendido pelo intelectualismo. O sentido de uma obra
literária, por exemplo, mais contribui para modificar o
sentido comum das palavras do que é por ele constituído.
Há um “pensamento que fala” (Merleau-Ponty, 1945/1999)
tanto no escutar e ler, como no falar e escrever. Isso é desconsiderado pelo intelectualismo.
Pronunciar uma palavra é o único modo de representá-la para mim. Assim como outras modalidades da
consciência corporal, a imagem verbal é uma das modalidades de gesticulação fonética. Fala e pensamento estão
arraigados um ao outro e não são dados separadamente. A fala é a “essência exterior do sentido” que, por sua
vez, está fundado na fala. A duplicação e a vociferação
que revestem o pensamento trazem e contêm em si o seu
sentido. A fala tem uma “potência de significação” que
lhe é própria. A operação expressiva realiza a significação da fala, ela não a traduz. A fala é um gesto, e como
(todo) gesto contém seu sentido, o que permite a comunicação. A comunicação acontece de mim para um outro
“sujeito falante”, que tem um determinado modo de ser
e com “um mundo que ele visa”. Não nos comunicamos
com pensamentos nem com representações, assim como
é proposto pelo intelectualismo.
A fala é um gesto cuja origem é o “silêncio primordial”. Ela é o gesto que rompe este silêncio. A significação da fala é um mundo. A comunicação acontece não
através da apreensão de um sentido dado, mas pela compreensão do gesto do outro. A compreensão só é possível
porque existe uma reciprocidade entre minhas intenções
e os gestos dos outros. Assim, minhas intenções podem
habitar o corpo do outro, assim como as intenções do outro podem habitar meu corpo.
Tanto a compreensão do outro como a percepção das
coisas se dão pelo corpo. O sentido do gesto está na sua
expressão e não é dado separada ou anteriormente a ele
numa representação. O sentido do gesto estrutura um
mundo de significações. A gesticulação verbal se serve de
significações já disponíveis, estabelecidas por expressões
anteriores, que são comuns aos falantes. O sentido da fala
é o modo como ela articula essas significações adquiridas.
A fala é uma das possibilidades da “potência irracional” humana que cria significações e as comunica. Sua
219
singularidade entre as operações expressivas é a possibilidade de criar um “saber intersubjetivo” a partir de sua
sedimentação. Por isso, só a metalinguagem – ou falar sobre a fala – é possível, e algo semelhante não é possível
em outras modalidades expressivas, como pintar sobre a
pintura e cantar sobre a música. A “atividade categorial”
ou nossa possibilidade de estabelecer categorias é apenas um modo de nos relacionarmos com, ou de estarmos
no mundo, ou mesmo um modo de configurarmos nossa
experiência. O pensamento cartesiano e as ciências que
nele se fundamentam elegem esta possibilidade como a
mais verdadeira ou confiável e invalidam as outras.
3.A Especificidade da Linguagem Poética - Aproximando Considerações de Merleau-Ponty e de
Bachelard
Em 1938, Gaston Bachelard, a convite do poeta
Jean Lescure, escreve um artigo sobre poesia chamado
“O instante poético e o instante metafísico”. Este texto marca profundamente o rumo de suas reflexões filosóficas, antes mais preocupadas com a epistemologia.
Segundo Pessanha (1994),
(...) o que Bachelard conquista a partir desta época
para ele e para nós – são os fundamentos da legitimidade do devaneio, os motivos que tornam o sonho
imprescindível à arte e à vida. Conquista o direito de
sonhar. E, aqui também pedagogo, ensina as riquezas
e benefícios do devaneio (pp. 10-11).
O devaneio é compreendido por Bachelard como uma
função de um sonhar ativo, vivificador e não pelo seu
sentido divagativo. A imaginação poética é uma modalidade de devaneio que diz respeito à expressão poética
sobre o que se sonha e vive.
As concepções de imaginação e de devaneio poéticos
estão fundamentadas numa concepção de linguagem.
Para compreender como Bachelard nos apresenta estes
fenômenos humanos, vamos adotar como referência a
concepção de linguagem de Merleau-Ponty. Ela nos oferece uma compreensão sobre este fenômeno que difere
das concepções tradicionais e que tem compatibilidade
com as proposições bachelardianas. Merleau-Ponty defende que a linguagem é um gesto do corpo, que na sua
expressão revela seu sentido. Não existe uma cisão entre
um pensamento, em que as ideias estariam representadas,
e a fala que apenas expressaria ideias previamente dadas, disponíveis para uma expressão. Ele acredita numa
unidade “ambígua” entre pensamento e fala, na qual a
fala é o próprio pensamento consumado, dando-se junto
com este e não de forma exterior. Isso rompe com noções
mecanicistas e idealistas da linguagem que a veem como
efeito de uma causa exterior ou como expressão de uma
representação mental prévia.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
Artigo
intenção de conhecimento. A denominação dos objetos é
seu próprio reconhecimento, e não anterior a ele.
Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto
Bachelard (1957/2000) afirma que para estudar os problemas propostos pela imaginação poética, um filósofo
que costuma fundamentar seus estudos no racionalismo ativo deve romper com suas linhas de pensamento e
seus hábitos de pesquisa. Essa posição converge para a
de Merleau-Ponty, no sentido de não se limitar às noções
causais e dicotômicas que configuram as correntes idealistas ou empiristas para se estudar um fenômeno da ordem da linguagem como a imaginação poética.
A proposição de Bachelard é convergente à concepção de linguagem para Merleau-Ponty. Quando o primeiro afirma que é: “(...) necessário estar presente, presente à
imagem: se há uma filosofia da poesia ela deve nascer e
renascer por ocasião de um verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, muito precisamente no próprio
êxtase da novidade da imagem” (Bachelard, 1957/2000, p.
1), o autor encontra um modo específico possível de falar que, de certa forma, contempla a posição de MerleauPonty sobre linguagem. Este afirma que: “O elo entre a
palavra e seu sentido vivo não é um elo exterior de associação; o sentido habita a palavra, e a linguagem ‘não é
um acompanhamento exterior dos processos intelectuais’”
(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 262).
A imaginação e o devaneio poético são modos privilegiados de conhecer uma dimensão humana ainda
pouco explorada pela psicologia: o potencial do imaginário compreendido como “imaginação criadora”, nossa
capacidade de sonhar com olhos abertos (que difere do
sonhar noturno). Segundo o autor, a psicologia vem tradicionalmente tratando a imaginação como subproduto
da memória, não lhe dando grande importância.
Bachelard elege a imaginação poética como forma de
estudar a imaginação. Esta modalidade se encontra no
domínio da linguagem escrita, o que facilita a reflexão e
permite ao leitor, através da leitura de imagens poéticas,
servir-se de referenciais humanos sempre novos, contribuindo para ampliar seu mundo e suas significações.
Estas, segundo Merleau-Ponty, são o meio pelo qual a linguagem humana se dá.
Artigo
Ela [a linguagem] apresenta, ou antes ela é tomada de
posição do sujeito no mundo de suas significações.
O termo ‘mundo’ não é aqui uma maneira de falar:
ele significa que a vida ‘mental’ ou cultural toma de
empréstimo à vida natural as suas estruturas, e que
o sujeito pensante deve ser fundado no sujeito encarnado (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 262).
Para Merleau-Ponty, a linguagem categorial é apenas uma das possibilidades da linguagem, mas segundo
uma perspectiva idealista é a única forma de se conseguir conhecimento verdadeiro ou absoluto. “Mas, se nos
reportamos às descrições concretas, percebemos que a
atividade categorial, antes de ser um pensamento ou um
conhecimento, é uma certa maneira de relacionar-se ao
mundo e, correlativamente, um estilo ou uma configura-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
ção da experiência” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 259).
Para o autor, se a fala é autêntica, “faz nascer algo novo”
(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 263). O estudo sobre a imaginação poética, realizado por Bachelard, visa justamente
ao nascer desta novidade, deste mundo de significações e
sentidos singulares e únicos que as imagens nos trazem.
A linguagem poética, segundo Bachelard (1957/2000),
é a linguagem pela qual o ser humano expressa mais direta e nitidamente o modo como é tocado pelo mundo.
O mundo, constructo permanente e mutável da pluralidade do ser humano, são as redes de significações que
se estabelecem nas relações dos homens com as coisas.
A poética é uma possibilidade do homem se reconhecer
na sua singularidade e de dar sentido à sua vida.
Na perspectiva colocada por Bachelard, o imaginário, estudado pelo autor, na forma de imaginação poética,
tem um lugar central na existência humana no que diz
respeito à relação do ser humano consigo mesmo, com
os outros e na significação de seu mundo. Essa posição é
consonante com a posição de Merleau-Ponty (1945/1999)
sobre linguagem:
A partir do momento que o homem faz uso da linguagem para estabelecer uma relação viva consigo mesmo
ou com seus semelhantes, a linguagem não é mais um
instrumento, não é mais um meio, ela é uma manifestação, uma revelação do ser íntimo e do elo psíquico
que nos une ao mundo e aos nossos semelhantes
(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 266) (Grifos do autor).
A própria elaboração que a pessoa faz sobre si mesma é poética, no sentido de que é única e que fala dela, e
porque busca o sentido do que se vive e não causas e explicações. Na prática psicoterápica podemos propor que
o terapeuta promove, através de uma escuta cuidadosa
e interessada, o aprofundamento da elaboração poética
que a própria pessoa faz a respeito de suas experiências
vividas. O psicólogo, também, assume uma atitude poética em relação ao que o paciente lhe conta, quando ele
se coloca em sua posição e encontra palavras que esclarecem o sentido que se apresenta na fala do paciente. Isso
difere de uma postura em que o terapeuta atribui explicações e causas para as vivências relatadas pelo paciente, o que é próprio das abordagens teóricas psicológicas
fundamentadas no pensamento cartesiano.
4. Algumas Imagens Poéticas Trabalhadas por Gaston
Bachelard
A título de ilustração, apresentaremos neste item
a análise de três imagens poéticas trabalhadas por
Bachelard, para que possamos ter uma ideia do tipo de
contribuição que estas podem oferecer para a psicologia
clínica fenomenológica existencial e foram escolhidas
com o propósito de mostrar um pouco da variabilidade
220
A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard
221
lho que inspira a imagem poética. Não se trata nem de
um trabalho sob sua contextualização capitalista, nem
de um trabalho num cenário de luta de classes. É um
trabalho corporal na sua corporeidade mais radical; um
trabalho braçal que pouco inspiraria, à primeira vista,
nossas forças devaneadoras. Mas o trabalho, nesta imagem, é apresentado como luta que nos fortalece como seres humanos felizes.
A terceira imagem, de Bachelard, nos convida para o
interior da nossa floresta interna. Encaramo-nos com os
mistérios de nossa origem. A floresta como um “antes-de-nós” parece-nos testemunhar silenciosamente nossa
ancestralidade.
A floresta é um antes-de-nós (...). Quando se abranda
a dialética do eu e do não-eu, sinto as pradarias e os
campos comigo, no comigo, no conosco. Mas a floresta reina no antecedente. Em determinado bosque
que conheço meu avô se perdeu. Contaram-me isso,
não o esqueci. Foi num outrora em que eu não vivia.
Minhas lembranças mais antigas têm cem anos ou
pouco mais. Essa é a minha floresta ancestral. Tudo
o mais é literatura (Bachelard, 1957/2000, p. 194).
Esta imagem expressa “nosso estarmos” limitados em
relação à compreensão de nós mesmos e de nossa origem.
Por meio dela, nos sentimos assistidos por um mundo que
nos conhece mais que a nós mesmos. A floresta ancestral,
ambiguamente, também mobiliza em nós um sentimento
de familiaridade com o mundo.
A imagem poética, conforme queremos sugerir, é uma
forma de linguagem como significação de mundo, e como
forma de estabelecer uma relação viva conosco mesmos e
com o outro. Ela é direta na sua singularidade. Ela é assim, o que há de mais sincero, de mais espontâneo. Ela é
pura imediaticidade. A confiança passa aqui do que está
mais atrás (como na adoção de causalidade como referência explicativa de um fenômeno), para o que vem mais à
frente, o que se mostra, mais nítido, mais visível. Segundo
Bachelard: “(...) a imagem em sua simplicidade, não precisa de um saber. É dádiva de uma consciência ingênua.
Em sua expressão, é uma linguagem jovem. O poeta na
novidade de suas imagens é sempre origem de linguagem”
(Bachelard conforme citado por Pessanha, 1994, p. 28).
5.Aproximações entre Clínica Fenomenológica e
Imaginação Poética
Que contribuições a noção de imaginação poética –
apresentada através desta reflexão – pode trazer para a
psicologia? A busca pela imaginação poética, da qual o
devaneio é expressão, como fonte de referenciais humanos para a psicologia é uma busca por um modo alternativo aos estabelecidos segundo concepções cartesianas.
O devaneio poético é uma possibilidade humana em que
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
Artigo
dos temas e dimensões humanas que podem ser expressas através dessa modalidade de linguagem. A elaboração poética é linguística e, portanto, tem a função de dar
sentido ao mundo. A primeira imagem apresentada aqui é
do domínio dos sentimentos; a segunda diz respeito a um
devaneio em que o elemento terra é mais fortemente presente; e a terceira é uma imagem da “imensidão íntima”.
Jules Supervielle (conforme citado por Bachelard,
1957/2000, p. 206), na seguinte imagem poética, nos traz
uma nuance do sentimento de tristeza que encontrou
seu lugar, e de alguém que se permite triste pela própria
necessidade que a tristeza apresenta e não tenta evitá-la,
não a sente de forma insuportável: “Conheço uma tristeza que tem cheiro de abacaxi. Sou menos triste, sou mais
docemente triste”.
A leitura de uma imagem poética, quando repercute
no íntimo de uma pessoa, ‘empresta’ ao sentimento dela
um meio de se expressar. Ele é, assim, reconhecido, não
é mais estranho, mas familiar e pode ser incorporado.
Sobre a imagem poética, acima citada, o autor afirma:
“Qualquer que seja a afetividade que matize um espaço, mesmo que seja triste ou pesada, assim que é expressa, a tristeza se modera, o peso se alivia” (Bachelard,
1957/2000, p. 206). As imagens poéticas não encerram o
significado de uma vivência humana, mas detalham-no
ao máximo, permitindo que na especificidade de sua significação, falem algo genuíno e vivo, capaz de sensibilizar o leitor, que se reconhece na imagem.
Bachelard dedica-se, num primeiro momento de suas
obras a tratar das imagens materiais. Ele escreve cinco
obras, sendo cada uma inspirada em um elemento da
natureza ou matiz material (fogo, ar, água e duas obras
destinadas aos devaneios da terra). O autor diferencia a
imaginação formal da imaginação material, situando no
universo da segunda suas obras sobre a poética e o devaneio. A primeira modalidade de imaginação, formadora de conceitos, é própria da ocularidade, própria de
um filósofo “que vê o trabalhador trabalhar” (Bachelard
conforme citado por Pessanha, 1994, p. 14). A imaginação material já é fruto da mão que trabalha a matéria, de
uma experiência corporal de criação. Como exemplo do
tipo de imaginação que Bachelard chama de imaginação
“da mão feliz”, apresentamos a seguinte imagem: “’A matéria estava vencida, a natureza não era tão forte como
ele’” (Phillipe conforme citado por Bachelard, 1948/2001,
p. 49). Por meio do seu trabalho o trabalhador vence a
matéria, unindo o seu devaneio à sua vontade de poder.
Esta imagem se refere a um operário que termina um
tamanco, mas fala de “(...) um sentimento de vitória consumada proporcionada pela matéria domada no trabalho” (Bachelard, 1948/2001, p. 49). Ela também mostra
que o devaneio está subjacente a qualquer atividade humana. Neste trabalho de fabricação manual do tamanco,
o orgulho de realização acontece através do devaneio da
luta; a vitória da realização acontece através da vitória
contra a adversidade da matéria. Esta é a forma de traba-
Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto
se vive plenamente o sentido de algo que vem ao nosso
encontro. Sua vivência permite que nós nos apropriemos
de significados extremamente ricos e que dizem respeito
ao mundo que está ao nosso redor. Por imaginação, neste
estudo, entende-se “imaginação criadora” no sentido do
termo atribuído por Bachelard, e não pelo que se costuma chamar de imaginação, segundo a referência usual
que a considera um subproduto da memória.
A imaginação e o devaneio poéticos permitem uma
ampliação de novas considerações sobre a imaginação e o
sonhar de forma geral. Grafado na forma de imagem poética, o devaneio é preservado e pode assim ser compartilhado por outras pessoas. A imagem poética tem sentido
ontológico e é apreendida pelo leitor acompanhada pelo
sentimento de pertencimento. “Essa imagem que a leitura
do poema nos oferece torna-se realmente nossa. Enraízase em nós mesmos. Nós a recebemos, mas sentimos a impressão de que teríamos podido criá-la, de que deveríamos
tê-la criado” (Bachelard, 1957/2000, p. 7).
A leitura de um poema se dá pelas dinâmicas de repercussão, entendidas pelo modo como somos sensibilizados pela imagem poética e de ressonância, elaboração
intelectual posterior que dá sentido ao poema. A ressonância é uma vivência superficial que contextualiza o poema. Na repercussão, o indivíduo se apropria do poema,
sentindo que seus significados lhe dizem respeito. A repercussão serve para o leitor como desvelamento de sentido de sua própria existência, enquanto as ressonâncias,
como próprias da intelectualidade “(...) dispersam-se nos
diferentes planos da nossa vida no mundo” (Bachelard,
1957/2000, p. 7) e produzem documentos psicológicos.
Se considerarmos a fala escrita – na forma de imagem
poética – como gesto do outro, poderemos aproximar o
fenômeno da repercussão e da ressonância na compreensão de uma imagem poética da noção de Merleau-Ponty,
o qual considera que a compreensão do gesto do outro
acontece a partir da reciprocidade entre as intenções dos
outros e as minhas. Segundo Merleau-Ponty:
Artigo
Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse
meu corpo ou se minhas intenções habitassem o
seu. O gesto que testemunho desenha em pontilhado
um objeto intencional. Esse objeto torna-se atual e é
plenamente compreendido quando os poderes de meu
corpo se ajustam a ele e o recobrem (Merleau-Ponty,
1945/1999, p. 251).
Bachelard ressalta que a psicologia limita-se a estudar a ressonância poética, buscando contextualizar o poema socioculturalmente e a partir da história de vida do
poeta. O autor defende que falta à psicologia um estudo
sobre a repercussão poética e volta parte de sua obra às
imagens poéticas que repercutem no leitor. Um estudo
fenomenológico sobre a imaginação e sobre o devaneio
poético é importante, pois o devaneio, através da vivência
de repercussão de uma imagem, pode devolver o indiví-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
duo para si mesmo e fazer com que este se aproprie de seu
próprio mundo, libertando-o do que não lhe diz respeito.
De um modo mais geral, compreende-se também todo
o interesse que há, acreditamos nós, em determinar
uma fenomenologia do imaginário onde a imaginação
é colocada no seu lugar, como princípio de excitação
direta do devir psíquico. A imaginação tenta um futuro. A princípio ela é um fator de imprudência que
nos afasta das pesadas estabilidades. Veremos que
certos devaneios poéticos são hipóteses de vida que
alargam nossa vida dando confiança no universo (...).
Um mundo se forma no nosso devaneio, um mundo que
é o nosso mundo. E esse mundo sonhado ensina-nos
possibilidades de engrandecimento de nosso ser nesse
universo que é o nosso. (Bachelard, 1960/1996, p. 8).
Um estudo sobre a imaginação e o devaneio poéticos
poderá contribuir para o modo de estar na relação com
o cliente, acompanhando-o na apropriação de si mesmo, através da apropriação da sua capacidade de sonhar.
O interesse em refletir sobre a imaginação poética como
referência para o sonhar e a imaginação criadora se deu
também pelo fato de a poética ser uma linguagem possível na psicoterapia fenomenológica existencial, segundo
Pompéia e Sapienza (2004). A reflexão sobre a imaginação poética apresentada por Gaston Bachelard possibilita a compreensão teórica sobre a imaginação e o sonhar,
e pode contribuir para ampliar a comunicação do psicólogo que, ao se familiarizar com a linguagem poética,
familiariza-se com uma linguagem compreensiva, própria da psicoterapia.
Na terapia, o que fazemos é reencontrar a expressão do
nosso modo de sentir, o re-cordado, principalmente daquelas coisas que já nos foram caras, que já foram coisas
do coração, mas que perderam esse vínculo em função
de dificuldades de comunicação, tornando-se desgastadas. Foram esquecidas, mas num esforço de procura
através da linguagem poética, podemos reencontrá-las.
Quando isto acontece, encontramos uma verdade (Pompéia & Sapienza, 2004, p. 161) (Grifo do autor).
Segundo apontamento de Pompéia e Sapienza (2004), a
linguagem poética conduz o paciente a se encontrar consigo mesmo, a conseguir significar, validando e dando
sentido à sua vida. Boss ressalta que os pacientes libertos
para si mesmos têm suas possibilidades de ser e sua liberdade recuperadas através do conhecimento de si mesmo,
possibilitado e alimentado pela psicoterapia. As verdades
encontradas durante a procura psicoterapêutica, que se
dá através da linguagem poética, são compreensões libertadoras. O paciente esclarece e conta com novas possibilidades de ser e pode, a partir delas, fazer suas escolhas
de modo mais apropriado. A libertação do paciente para
suas próprias possibilidades de ser é a que a psicoterapia fenomenológica existencial se propõe, segundo Boss:
222
A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard
A imaginação poética pode contribuir para a prática
psicológica por oferecer imagens de rico significado humano para o psicólogo, e por deixá-lo mais sensível para
compreender e legitimar os devaneios de seus pacientes.
Estes, embora não escrevam sobre seus devaneios tornando-os poemas escritos, devaneiam, por exemplo, ao lembrar de sua infância e revivê-la, ou mesmo ao se entregarem a um momento contemplativo ou terem um insight.
No plano de contribuições para pensar uma clínica
numa perspectiva fenomenológica existencial, as imagens poéticas podem ampliar as possibilidades compreensivas do discurso do cliente. A poética é a linguagem
que mais possibilita e amplia a capacidade de compreensão, e por isso, é uma modalidade de linguagem possível
na clínica fenomenológica existencial. Boss (1972/1981)
defende que as contribuições verdadeiramente importantes da abordagem existencial para a prática clínica
fundamentam-se na compreensão mais aprofundada da
existência humana e não em técnicas psicoterápicas.
As imagens poéticas, por serem do âmbito da compreensão, diferentemente dos conceitos que são do âmbito da
explicação, podem ser referências importantes para um
terapeuta existencial.
O gesto humano de se comunicar, de buscar significados de criar e alimentar seu mundo está plenamente
contemplado pela leitura de uma imagem poética. Este
modo de se relacionar com a linguagem – a imaginação
poética – nos volta para o sentido fundamental da linguagem, que é criar e significar o mundo, estabelecendo
uma relação viva consigo e com os outros. É prestando a
esta finalidade que a linguagem deixa de ser objeto revelar-se como um modo de estar no mundo com os outros.
Um estudo sobre a imagem poética nos provoca, no
entanto, uma sensação de insegurança que atribuímos
ao seu caráter de não encerrar questões em conceitos,
não permitindo, por exemplo, o estabelecimento de saberes fundamentais. Mas são os saberes infinitos sobre
o ser humano e sua condição que são ditos pela imagem
poética. É preciso aceitar a inesgotável possibilidade de
saberes como condição humana de inconclusividade.
O tipo de estudo que a imagem poética exige, apresenta
contribuições para pensar uma clínica fenomenológica
existencial que não se apoia em conceitos estabelecidos
ou em categorias.
223
* Agradecemos ao Fundo de Amparo à Ciência e à Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE) pela concessão de bolsa de Doutorado
que nos permitiu a realização do presente artigo.
Referências
Bachelard, G. (1996). A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins
Fontes (Original publicado em 1960).
Bachelard, G. (2000). A Poética do Espaço. São Paulo: Martins
Fontes (Original publicado em 1957).
Bachelard, G. (2001). A Terra e os Devaneios da Vontade. São
Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1948).
Boss, M. (1981). Angústia, culpa e libertação (ensaios de psicanálise existencial). São Paulo: Livraria Duas Cidades
(Original publicado em 1972).
Merleau-Ponty, M (1999). Fenomenologia da Percepção. São
Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1945).
Pessanha, J. A. M. (1994). Introdução à coletânea póstuma de
artigos de Gaston Bachelard. Em G. Bachelard, O Direito de
Sonhar (pp. 5-31). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Pompéia, J. A., & Sapienza, B. T. (2004). Na Presença do Sentido.
São Paulo: Paulus.
Sá, R. N. (2009). Psicoterapia, cientificidade e interdisciplinaridade: a propósito de uma discussão sobre a suposta necessidade de uma regulamentação das práticas psicológicas clínicas, Portal do Conselho Regional de Psicologia de
São Paulo [online]. Disponível na World Wide Web: http://
www.crpsp.org.br/psicoterapia/textos_6.aspx
Rafael Auler de Almeida Prado - Mestre e Doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
Email: [email protected]
Marcus Tulio Caldas - Doutor em Psicologia pela Universidade de
Deusto-Espanha; Professor da Graduação e Pós-Graduação do Curso
de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
Email: [email protected]
Karl Heinz Efken - Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul; Professor e Coordenador do Curso
de Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
Email: [email protected]
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto - Doutora em Psicologia Clínica
pela Universidade de São Paulo (USP). Professora e Coordenadora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade
Católica de Pernambuco (Unicap). Coordenadora do Laboratório em
Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial- LACLIFE. Endereço
Institucional: Universidade Católica de Pernambuco, Centro de Ciências Biológicas e Saúde. Rua do Príncipe, 526 - Bloco B (Boa Vista).
CEP 50050-410 - Recife/PE. Email: [email protected]
Recebido em 16.10.12
Primeira Decisão Editorial em 07.12.12
Aceito em 26.12.12
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
Artigo
Como psicoterapeutas queremos, no fundo, libertar
nossos pacientes para si mesmos (...). Por isso, com
a libertação psicoterápica, queremos levar nossos
pacientes ‘apenas’ a aceitar suas possibilidades de
vida como próprias e a dispor delas livremente e com
responsabilidade. Isto quer dizer também, que nós
queremos que eles criem coragem de levar a termo
suas possibilidades de relacionamento co-humanos
e sociais de acordo com sua consciência intrínseca
e não como uma pseudo-consciência imposta por
qualquer um (Boss, 1972/1981, p. 61).
Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto
AS PSICOPATOLOGIAS COMO DISTÚRBIOS DAS
FUNÇÕES DO SELF: UMA CONSTRUÇÃO TEÓRICA
NA ABORDAGEM GESTÁLTICA
Psychopathologies as Disorders of the Self Functions:
A Theoretical Construction in Gestalt Approach
Las Psicopatologías como Disturbios de las Funciones del Self:
Una Construcción Teorética en el Abordaje Gestáltica
Carlene M aria Dias Tenório
Resumo: Com o objetivo de compreender as psicopatologias com base no DSM-IV e na teoria de F. Perls, o processo de estruturação dos padrões neuróticos, psicóticos e antissociais é descrito a partir dos impasses existenciais, introjeções tóxicas e conflito interno dominador-dominado, que favorecem os distúrbios das fronteiras e funções do self responsáveis pelas dificuldades
do sujeito para se diferenciar dos outros, fazer contato pleno com estes, discriminar as demandas internas e externas e agir de
modo adequado ao atendimento das mesmas. Nesta perspectiva, supõe-se que, enquanto as psicoses são produzidas pela falência total das fronteiras e funções do self, as neuroses são geradas pelo distúrbio dessas fronteiras e funções, caracterizado pela
repetição crônica de interrupções do contato e comportamentos mal adaptativos, que constituem os transtornos de personalidade descritos pelo DSM-IV. Como resultado da articulação entre conceitos, pressupostos, critérios diagnósticos e evidências clínicas são construídas proposições teóricas nas quais os transtornos de personalidade, com exceção do transtorno antissocial,
são entendidos como padrões neuróticos de funcionamento desencadeados por distorções primárias e secundárias, negativas e
positivas da percepção de “si mesmo” e do “outro”, podendo evoluir para transtornos psicóticos em situações de extremo estresse e vulnerabilidade das fronteiras e funções do self.
Palavras-chave: Psicopatologia; Distúrbio; Self; Abordagem gestáltica.
Artigo
Abstract: In order to understand the psychopathology based on DSM-IV and the theory of F. Perls, the process of structuring
neurotic, psychotic and antisocial patterns is described from the existential dilemmas, toxic introjections and a dominator/
dominated internal conflict that favors boundaries disturbances and the functions of the “self” responsible for the difficulties
of the subject to differentiate itself from others; making full contact with them; discriminating between internal and external
demands and acting appropriately to meet them. From this perspective, it is assumed that, while psychoses are produced by the
total failure of boundaries and functions of the “self’, the neuroses are generated by the disturbance of these boundaries and
“self” functions, characterized by the chronic repetition of interruptions of contact and maladaptive behaviors, which constitute personality disorders described by DSM-IV. As a result of the articulation between concepts, premises, diagnostic criteria
and clinical evidence, theoretical propositions are constructed in which personality disorders, except for the antisocial disorder, are perceived as neurotic patterns of functioning triggered by primary and secondary distortions, negative and positive of
perception of the “self” and the “other”, sometimes progressing to psychotic disorders in situations of extreme stress and vulnerability of boundaries and functions of the “self”.
Keywords: Psychopathology; Disorder; Self; Gestalt approach.
Resumen: Con el objetivo de comprender las psicopatologías con base en el DSM-IV y en la teoría de F. Perls, el proceso de estructuración de los padrones neuróticos, psicóticos y antisociales es descrito a partir de los impasses existenciales, introyecciones tóxicas y conflicto interno dominador/dominado, que favorecen los disturbios de las fronteras y funciones del self responsables por las dificultades del sujeto para diferenciarse de otros; hacer contacto pleno con estos; discriminar las demandas
internas y externas y actuar de modo adecuado al atendimiento de las mismas. En esta perspectiva, se supone que, mientras
las psicosis son producidas por la falencia total de las fronteras y funciones del self, las neurosis son generadas por el disturbio de esas fronteras y funciones, caracterizado por la repetición crónica de interrupciones del contacto y comportamientos
mal adaptativos, que constituyen los trastornos de personalidad descritos por el DSM-IV. Como resultado de la articulación
entre conceptos, presupuestos, criterios diagnósticos y evidencias clínicas son construidas proposiciones teóricas en las cuales los trastornos de personalidad, con excepción del trastorno antisocial, son entendidos como padrones neuróticos de funcionamiento desencadenados por distorsiones primarias y secundarias, negativas y positivas de la percepción de “sí mismo” y
del “otro”, pudiendo evolucionar para trastornos psicóticos en situaciones de extremo estrés y vulnerabilidad de las fronteras
y funciones del self.
Palabras-claves: Psicopatología; Disturbio; Self; Abordaje gestáltica.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
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A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard
Para Perls (1973/1981), todas as neuroses surgem da
incapacidade do indivíduo para encontrar e manter o
equilíbrio adequado entre ele e o resto do mundo, e todas
têm em comum o sentimento de que os limites do meio
se estendem demais sobre si mesmo. O neurótico é o indivíduo sobre quem a sociedade influi demasiadamente
e suas interrupções de contato são manobras defensivas
para protegê-lo contra a ameaça de ser barrado por um
mundo esmagador; são estratégias criadas para manter
seu equilíbrio em situações nas quais se vê impotente e
dominado pelo “outro”, acreditando que as probabilidades estão todas contra ele.
De acordo com o DSM-IV, os transtornos de personalidade se caracterizam por traços de personalidade inflexíveis e mal adaptativos, que causam sofrimento subjetivo e prejuízo funcional significativo para o sujeito.
O transtorno de personalidade antissocial é marcado
pelo desrespeito e violação das normas sociais e dos direitos alheios, sem sentimento de culpa ou remorso por
parte do sujeito, por acreditar que não deve submeter-se a ninguém, para não correr o risco de ser dominado.
Nos transtornos psicóticos, os pacientes evidenciam confusão mental, pensamento e comportamento desorganizados, com prejuízo no teste de realidade, manifestando
delírios e alucinações.
A hipótese que se defende neste trabalho é de que
os sintomas neuróticos ou psicóticos referentes aos
Transtornos Clínicos classificados no Eixo I do DSMIV emergem como figura de um fundo constituído pelos
transtornos de personalidade apresentados no Eixo II,
caracterizados por padrões rígidos de comportamento
mantidos pelos distúrbios das funções do self.
1. Conceituação e Constituição do Self e da Personalidade
Com base nas elaborações de Perls sobre self e personalidade, compreende-se que o desenvolvimento e o
funcionamento saudável dos referidos sistemas dependem, essencialmente, da qualidade da relação, do contato que se estabelece com o “outro”, desde os primórdios
da existência do indivíduo, uma vez que, para esse teórico, self e personalidade se constituem na fronteira entre organismo e meio.
Sobre isto, Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997)
esclarecem que self é o sistema de contatos e de respostas
em qualquer momento, diminuindo com o sono, quando
há menos necessidade de reagir. Sua atividade é formar
figuras e fundos e fazer ajustamentos criativos. Sendo
assim, onde há mais conflito, contato e figura/fundo, há
mais self; onde há mais confluência, isolamento ou equilíbrio, há um self diminuído. Desse modo, o self não tem
consciência de si próprio abstratamente, mas quando está
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em contato com alguma coisa, uma vez que o mesmo é
considerado como sendo a fronteira de contato organismo-meio em funcionamento.
Nessa linha de raciocínio, pode-se dizer que o self se
constitui na proporção em que existem diferenciação e
interação de limites organismo-meio, sendo, portanto, o
“si mesmo”, cuja vivência e manifestação se dão na fronteira de contato. Por isso, quanto maior e mais clara for
a diferenciação e a delimitação de fronteiras entre o “eu”
e o “outro”, que normalmente acontece em situações de
tensão e conflito, mais claramente o self se fará presente, atuando no meio de forma mais consciente, determinada e agressiva, no sentido de recuperar seu equilíbrio.
Em síntese, na abordagem de Perls, o self é o “si mesmo”, tal como é vivido e percebido pelo sujeito no contato com o “outro” e consigo mesmo, sendo, portanto,
um “eu” relacional, processual e consciente, que se forma e se transforma por meio de ajustamentos criativos,
enquanto pensa, sente e age na busca pela satisfação de
suas necessidades e atualização de suas potencialidades
no campo organismo–meio.
O ajustamento criativo como função essencial do self,
pode ser definido como sendo o processo pelo qual o self
promove sua autorregulação, criando formas de satisfazer
suas necessidades de acordo com as condições do meio,
ou transformando essas condições para adequá-las às
próprias demandas e capacidades. “Dada a novidade e a
variedade indefinida do ambiente, nenhum ajustamento
seria possível somente por meio da autorregulação herdada e conservativa; o contato tem de ser uma transformação criativa” (Perls et al., 1951/1997, p. 211).
Considerando que a transformação criativa do campo só acontece se o contato entre organismo e meio for
pleno, o ajustamento, quando é feito através de contatos
interrompidos, deixa de ser criativo para se tornar conservativo, uma vez que, na interrupção do contato, as
necessidades do organismo não são plenamente satisfeitas, as condições do meio não são transformadas, dificultando, assim, a autorrealização e o crescimento do
self, embora a preservação de sua estrutura seja garantida. Desse modo, o ajustamento conservativo acontece
sempre que o self, na impossibilidade de transformar as
circunstâncias do meio, no sentido de promover sua autorrealização, atua basicamente com o objetivo de garantir sua sobrevivência e manter seu equilíbrio no nível em
que o ambiente permite, o que implica em abrir mão de
seus verdadeiros objetivos e interesses, para adequar-se
às exigências externas.
Perls et al. (1951/1997) definem personalidade co-mo sendo o sistema de atitudes adotado nas relações
interpessoais:
(...) é a admissão do que somos, que serve de fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, caso nos fosse pedida uma explicação.
Quando o comportamento interpessoal é neurótico, a
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Artigo
Introdução
Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto
Artigo
personalidade consiste em alguns conceitos errôneos
a respeito de nós próprios, introjetos, ideais de ego,
máscaras, etc. (...) a Personalidade é uma espécie de
estrutura de atitudes por nós compreendidas, que podem ser empregadas em todo tipo de comportamento
interpessoal (pp. 187-188).
Sendo um sistema de atitudes adotado pelo sujeito,
que fundamenta a explicação deste sobre o próprio comportamento, a personalidade corresponde à maneira particular de cada um ser no mundo, influenciando e sendo
influenciada pela percepção que se tem de “si mesmo”,
que é construída pela “função personalidade” do self,
através da seleção e integração de experiências que se
harmonizam com o autoconceito até então assumido pelo
sujeito, fazendo com que as demais experiências sejam
distorcidas, excluídas da consciência, ou colocadas fora
das fronteiras do self.
Além da “função personalidade”, Perls et al. (1951/
1997) afirmam que o self possui outras duas funções, “id”
e “ego” que, juntamente com a “personalidade”, correspondem às etapas do processo de ajustamento criativo:
pré-contato, contato e pós-contato.
Enquanto “id” e “ego” são funções de autorregulação,
nas quais o self interage com o meio, em busca da satisfação de suas necessidades, possibilitando uma consciência vivenciada de “si mesmo”, a “personalidade” é
uma função de seleção, integração, organização e síntese de experiências vivenciadas na fronteira de contato,
propiciando o desenvolvimento de uma consciência representada de self. É como se cada experiência de contato – vivenciada em determinadas circunstâncias, nas
quais o sujeito assume atitudes, enquanto desempenha
um papel (pai, filho, chefe, subordinado, salvador, vítima, vilão, etc.) – fosse gerada e, ao mesmo tempo, gerasse
uma representação de “si mesmo”, ou seja, um “eu parcial”, que após ser integrado aos demais, irá fazer parte
de um “Eu total”, resultante da organização e síntese de
vários “eus parciais”. É o “Eu total” que vai permanecer
no fundo, influenciando e sendo influenciado pelas atitudes do sujeito em cada situação e pelas representações
parciais de “si mesmo”.
Enquanto no funcionamento saudável, o “Eu total”
está constantemente se reorganizando, a partir da integração de novos “eus parciais” referentes às novas experiências vivenciadas em circunstâncias diferentes,
no funcionamento neurótico, onde acontece o distúrbio
da “função personalidade”, o “Eu total” tende a permanecer da mesma forma, pois, muitas experiências, que
não se harmonizam com sua configuração atual, são
negadas ou distorcidas, para que a integridade de sua
estrutura seja preservada. Além disso, as representações parciais de self são construídas, principalmente,
a partir de mensagens bionegativas introjetadas, como
por exemplo: sou covarde e deveria ser mais corajoso;
sou acomodado e deveria ser mais esforçado, sou de-
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sastrado e deveria ser mais cuidadoso, etc. (Tenório,
2003a; 2005).
Nestas condições, a personalidade se caracteriza por
padrões rígidos de comportamento determinados por dois
tipos de autoconceito, ambos introjetados e distorcidos,
um deles referente a um “eu” vivenciado como real (covarde, acomodado e desastrado) e o outro vinculado a
um “eu” encarado como ideal (corajoso, esforçado e cuidadoso). Por terem sido originados pela internalização do
“outro dominador”, tanto o “eu real” quanto o “eu ideal”
introjetados irão dominar e sabotar o “eu real” e o “eu
ideal” não introjetados construídos a partir de experiências, cujas significações e representações se basearam em
avaliações organísmicas. (Tenório, 2003b; 2005)
A “função id”, mesmo em sua plena atividade, é caracterizada por uma percepção vaga do meio ambiente,
prevalecendo as sensações proprioceptivas, que emergem
como figura e produzem reações instantâneas, descomprometidas com as demandas externas. No pré-contato,
onde o self funciona através do “id”, suas fronteiras ainda não foram totalmente reconstruídas, após serem dissolvidas na experiência recente de pleno envolvimento
e troca com o “outro”, na fase final do contato com este.
Nestas circunstâncias, o self assume características de
um “eu” frágil e incipiente, que se comporta de modo irracional e irresponsável, incapaz de fazer ajustamentos
criativos, dada a impossibilidade de perceber com clareza, avaliar, enfrentar e transformar deliberadamente seu
campo existencial, semelhante ao que acontece no distúrbio da “função ego”.
Com base nesse pressuposto, supõe-se que, nas neuroses, o “id” seja a função mais preservada, garantindo
a satisfação mínima das necessidades indispensáveis à
sobrevivência do self, uma vez que, nessa função, a prioridade do self é garantir seu equilíbrio e sua integridade,
através de uma autorregulação herdada e conservativa,
mantida por comportamentos reativos, automáticos e impulsivos, nos quais é empregado o menor esforço possível,
no sentido de reduzir as tensões vivenciadas no campo
organismo-meio. No entanto, nas psicoses, a “função id”,
como as demais funções do self, encontra-se totalmente
anulada, pois, devido ao rompimento das fronteiras, desintegração e fragmentação do “Eu total” em seus diversos “eus parciais”, fica impossível manter o equilíbrio
mínimo no mundo interno e externo, como também minimizar o sofrimento causado pela desorganização, contradição e incoerência dos pensamentos, sentimentos e
comportamentos.
No exercício pleno da “função ego”, o self é vivenciado
e se manifesta como um “eu” racional, ativo, determinado e consciente, com capacidade para fazer ajustamentos criativos, na medida em que estabelece claramente
suas fronteiras, percebe as demandas do campo, escolhe
comportamentos mais apropriados para atendê-las, discriminando o que pertence a “si” e ao “outro”, o que é tóxico e nutritivo ao seu organismo, para, em seguida, abrir
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A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard
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Com relação ao processo de desenvolvimento da personalidade, Perls (1947/2002) entende que suas bases se
formam ao longo dos dois primeiros anos de vida, através de estágios que se correlacionam com as etapas de
nascimento dos dentes, uma vez que, para esse teórico, o
desenvolvimento da capacidade para morder, mastigar e
digerir o alimento, ou seja, para desestruturar, transformar e assimilar o que é oferecido pelo meio, é de fundamental importância para a constituição saudável do self
e da personalidade.
Quero dizer que o alimento psicológico que nos oferece o mundo externo – o alimento de fatos e atitudes
sobre o qual se constroem as personalidades – tem que
ser assimilado exatamente da mesma forma que nosso
alimento real. Tem que ser desestruturado, analisado,
separado e, de novo, reunido sob a forma que nos será
mais valiosa. Se for meramente engolido inteiro não
contribui para o desenvolvimento de nossas personalidades (Perls, 1973/1981, p. 47)
Neste sentido, o self e a personalidade se desenvolvem
no contato com o “outro”, através de processos de ajustamentos criativos, nos quais a criança assume, gradativamente, uma postura mais consciente, ativa e independente, na busca pela satisfação de suas necessidades e
recuperação de seu equilíbrio no campo organismo-meio.
No entanto, para que isto aconteça, é imprescindível
que os contatos mantidos com a criança sejam suficientemente saudáveis, para que ela possa se diferenciar do
“outro”, percebendo-se como ser único, que tem características, necessidades e limites próprios, com capacidade
para autorrealizar-se, transformando ou adaptando-se às
condições do ambiente que lhe cerca.
O contato saudável é compreendido aqui como um
contato pleno e dialógico, que proporciona ao sujeito a
experiência de ser respeitado e valorizado pelo “outro”
em sua singularidade, semelhante ao que é descrito por
Hycner (1995) como “diálogo genuíno” inspirado na filosofia de Buber. Do ponto de vista dialógico, todo “eu” é
posterior à relação, pois é no diálogo com o “tu”, diferente
e separado do “eu”, que se constrói a noção de “si mesmo”
e do “outro”. Nesta perspectiva, a psicopatologia acontece
quando o sujeito, em seus relacionamentos interpessoais,
não vivenciou, de modo suficiente, a experiência de ser
confirmado pelo “outro” em sua alteridade.
Na descrição de Perls (1947/2002) sobre o desenvolvimento da personalidade, fica implícita a necessidade
de se estabelecer contatos satisfatórios com a criança,
para que as fronteiras e as funções do self se constituam
de forma plena. Isto não quer dizer que a criança, para
se desenvolver de forma saudável, deva crescer em um
ambiente totalmente permissivo, no entanto, é necessário que, na relação com o “outro” mais significativo,
prevaleça o contato pleno e dialógico, onde ambos se
coloquem de forma inteira e espontânea, respeitando-se
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
Artigo
ou fechar suas fronteiras, aceitar (identificar) ou recusar
(alienar) o que vem de fora, com o objetivo de promover
seu equilíbrio, sua autorrealização e seu crescimento.
Esse é o funcionamento saudável, caracterizado pelo fortalecimento das fronteiras e da “função ego” do self, pelo
ajustamento criativo, pelo contato não interrompido com
o “outro” e consigo mesmo.
Apesar da afirmação de Perls et al. (1951/1997) de que
as neuroses resultam da perda da “função ego” do self, o
que se pretende mostrar aqui é que tal perda gera as psicoses, enquanto o enfraquecimento ou o distúrbio dessa
função gera as neuroses, embora estas, em determinados casos e circunstâncias, possam evoluir para as psicoses. Nesta perspectiva, supõe-se que os sintomas psicóticos podem ser desencadeados por intensos conflitos
responsáveis pela completa falência das fronteiras e das
funções do self, que já se encontravam debilitadas pelas
introjeções tóxicas e consequente luta entre “eu dominador” e “eu dominado”. Sendo assim, todo psicótico seria,
no fundo, um neurótico, mas nem todo neurótico seria
um psicótico, uma vez que a passagem do primeiro para
o segundo tipo de transtorno iria depender do nível de
vulnerabilidade das funções e das fronteiras do self, bem
como da intensidade dos conflitos vivenciados tanto no
mundo interno quanto externo.
No distúrbio da “função ego”, que acontece nas neuroses, e na perda dessa função, que se dá nas psicoses,
as fronteiras do “eu” estão enfraquecidas (neurose), ou
rompidas (psicose), desse modo, a consciência das diferenças e a capacidade para discriminar figura e fundo,
“eu” e “outro” ficam diminuídas (neurose) ou ausentes
(psicose), dificultando (neurose) ou impossibilitando (psicose) a formação e destruição de novas figuras. Com isto,
nas neuroses e nas psicoses, a mobilização do organismo é bloqueada ou desfocada, a ação e a interação com
o meio são inadequadas ou obsoletas, e o contato final é
abortado, impossibilitando a satisfação da necessidade,
o fechamento da figura e a recuperação do equilíbrio no
campo organismo-meio.
Desse modo, as figuras que ficam em aberto contaminam o campo perceptivo e fazem com que a situação do
momento seja avaliada de modo incoerente com a realidade, uma vez que a significação da experiência vivida
no aqui e agora é influenciada pelos impasses existenciais do passado, que permanecem mal resolvidos como
“microcampos” introjetados. Essa é a explicação para a
percepção da realidade parcialmente distorcida nas neuroses, que favorece a repetição de mecanismos de interrupção do contato, a fixação das fronteiras na abertura
ou no fechamento e a manutenção de padrões rígidos de
comportamentos, que caracterizam os Transtornos da
Personalidade. Também é a explicação para a percepção
da realidade totalmente distorcida nas psicoses, responsável pela formação dos delírios e alucinações, através
da projeção no meio e nos outros dos introjetos tóxicos e
dos aspectos alienados do self.
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mutuamente em suas diferenças, o que torna impossível
uma relação sem renúncias, desafios, conflitos e ajustamentos criativos. Por outro lado, todo contato pressupõe
diferenciação e troca entre “eu” e “não eu”, que implica
numa consciência ampla de “si mesmo” e do “outro”,
mobilização em busca da satisfação mútua, através da
criação de estratégias, pelas quais ambos se modificam,
adequando-se um ao outro.
(...) quando duas pessoas se encontram, inicia-se o
jogo do encontro (...). Assim, elas estão à procura de
um interesse comum, ou de um mundo em comum,
onde passam repentinamente do eu e você para o nós.
Desta forma, surge um novo fenômeno, o nós, que é
diferente do eu e você. (...) E quando nos encontramos,
então eu mudo e você muda, através do processo de
um encontro mútuo (Perls, 1969/1977, p. 21).
Se a criança vivenciar, com frequência, a experiência de ser aceita e confirmada pelo “outro”, mais tarde ela poderá estabelecer um diálogo consigo mesma,
mantendo contato com todos os aspectos do self, inclusive com aqueles que, aparentemente, são ameaçadores, favorecendo, assim, seu funcionamento saudável.
Se ela tiver que ser como os “outros” desejam que ela
seja, tendo que negar suas diferenças, para não entrar
em conflito com eles, ao invés de uma diferenciação,
haverá uma confluência com os mesmos, comprometendo a constituição plena das fronteiras e das funções
do self. “Todo indivíduo, toda planta, todo animal tem
apenas um objetivo inato – realizar-se naquilo que é”
(Perls, 1969/1977, p. 52).
Artigo
2. Constituição e Caracterização das Psicopatologias
O contato interrompido e não dialógico, ao contrário
do contato pleno e dialógico, se caracteriza por um tipo de
relação dominador-dominado, onde as pessoas assumem
atitudes impositivas ou subservientes diante da outra.
Nesse contexto, existe uma grande diferenciação e separação mantidas por fronteiras impermeáveis ou fechadas
do lado impositivo e dominante, e uma indiferenciação
e confluência mantidas por fronteiras muito permeáveis
ou abertas do lado subserviente e dominado, dificultando o encontro e a troca entre os dois e favorecendo o desenvolvimento das psicopatologias.
Na relação entre pais e filhos é comum acontecer
contatos interrompidos e não dialógicos, principalmente quando os pais são demasiadamente rígidos e autoritários. Nesses casos, os pais não conseguem perceber as
reais capacidades e necessidades dos filhos, assumindo atitudes extremamente dominadoras, caracterizadas
pela imposição arbitrária de regras e limites, motivados
pela necessidade de criarem indivíduos perfeitos, como
eles mesmos gostariam, mas não conseguiram ser. Isto
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
faz com que os filhos sejam excessivamente cobrados,
controlados e tolhidos completamente em sua liberdade
e individualidade.
No entanto, esses contatos interrompidos e não dialógicos também acontecem quando os pais são extremamente permissivos e indulgentes, com dificuldades
para impor limites, submetendo-se aos filhos, por medo
de frustrá-los e magoá-los. Nesse contexto, os filhos não
conseguem crescer emocionalmente, permanecendo com
baixa tolerância às frustrações e com medo de enfrentar
as adversidades do dia a dia. Esses pais, por serem extremamente imaturos ou problemáticos, não conseguem
desempenhar suas funções adequadamente, tornando-se
reféns dos próprios filhos. A fragilidade e a submissão
dos pais em relação aos filhos faz com que estes tenham
uma visão deturpada da realidade, interrompendo o contato com aspectos do self e do ambiente que entram em
contradição com suas fantasias e idealizações a respeito
de si e do mundo.
No processo de crescimento existem duas escolhas.
A criança pode crescer e aprender a superar frustrações, ou pode ser mimada de forma a receber tudo
o que quiser, porque a criança deve ter tudo o que o
papai nunca teve, ou porque os pais não sabem como
frustrar os filhos. (...) Sem frustração não existe necessidade, não existe razão para mobilizar os próprios
recursos, para descobrir a própria capacidade para
fazer alguma coisa e, a fim de não se frustrar, que é
uma experiência muito dolorosa, a criança aprende
a manipular o ambiente. (Perls, 1969/1977, pp. 54-55)
Nos relacionamentos em que os pais frustram, reprimem e controlam excessivamente os filhos, a vulnerabilidade das fronteiras da criança, que ainda estão em
formação, favorece a introjeção de mensagens nocivas e
irrealistas a respeito de “si mesma”, responsável por uma
distorção “negativa” da autoimagem, na qual ela passa a
se perceber como culpada, má e inadequada. Essa distorção “negativa” também acontece quando a criança é extremamente protegida. A superproteção dos pais reforça
a fragilidade e a inferioridade do filho, fazendo com que
ele, apesar do avanço de sua idade, continue se percebendo como incapaz de conduzir a própria vida. É essa distorção “negativa” da autoimagem que vai gerar os sentimentos crônicos de impotência e menos valia típicos do
funcionamento neurótico.
No contexto familiar em que os filhos são supervalorizados, a imaturidade das fronteiras do self favorece
a introjeção de mensagens de engrandecimento irreal,
responsável por uma distorção “positiva” da autoimagem, na qual a criança passa a se perceber como alguém
especial, dificultando suas relações interpessoais, uma
vez que, como defesa, procura se manter fechada, por
medo de ser desmascarada pelo “outro” e confrontada
com as próprias limitações, ou por não ter interesse em
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aprofundar a relação com esse “outro”, por considerá-lo
desagradável, insignificante ou inferior.
Diante das reflexões feitas até o momento, percebe-se que, enquanto o funcionamento saudável é promovido pela vivência de contatos plenos e dialógicos com o
“outro”, o adoecimento psicológico tem como base a experiência intensa e frequente de contatos interrompidos
e não dialógicos, nos quais são introjetados conceitos, valores, normas e exigências impostas arbitrariamente pelo
“outro” de grande significação afetiva para o indivíduo,
propiciando a internalização do conflito “dominador-dominado”, como explica Perls (1975/1977):
O potencial humano é diminuído tanto pelas ordens
não apropriadas da sociedade, como pelo conflito
interno. A parábola de Freud sobre as duas serventes
brigando, resultando em ineficiência é, na minha
opinião, novamente uma meia verdade. Realmente são
os patrões que brigam. (...) Na minha linguagem, eu
chamo os patrões que brigam de dominador (topdog)
e dominado (underdog). A batalha entre os dois é
tanto interna quanto externa. O dominador pode ser
descrito como exigente, punitivo, autoritário e primitivo. (...) Integração e cura só podem ser conseguidas
quando a necessidade de controle entre dominador e
dominado cessa (pp. 24-25).
Conforme foi abordado anteriormente, é no contexto
familiar autoritário e controlador, que a criança vivencia o conflito “dominador–dominado”, que ao ser internalizado, irá produzir as neuroses. Esse conflito é, para
criança, um verdadeiro impasse existencial, no qual ela
vivencia uma situação que é, ao mesmo tempo, intolerável
e inevitável. Sentindo-se totalmente dependente e impotente diante de seu “dominador”, a criança se vê obrigada
a fazer o que é exigido por este, embora seja incompatível
com seus interesses, para evitar a possibilidade de ser punida, ou abandonada por ele. Nesta situação, ela não encontra outra saída a não ser submeter-se completamente
às vontades do “dominador”, abrindo mão daquilo que é
essencial à sua autorrealização, o que favorece a introjeção de mensagens bionegativas, tais como: eu não sou
boa o suficiente; eu faço tudo errado; eu sou culpada (real
introjetado); “eu tenho que ser melhor, mais obediente,
controlada e cuidadosa” (ideal introjetado), que irão favorecer o desenvolvimento das neuroses caracterizadas
por comportamentos dependentes, tímidos, retraídos,
exigentes, perfeccionistas e ansiosos.
No contexto indulgente e permissivo, o conflito e o
impasse existencial é vivenciado pela criança, na medida em que ela precisa ser protegida, orientada e contida
pelo “outro”, mas percebe que esse “outro” não é forte,
seguro, ou maduro o suficiente para lhe dar proteção e
orientação, deixando de colocar os limites indispensáveis
à sua segurança e crescimento. Ao se sentir totalmente
insegura e desamparada, a criança introjeta as mensa-
229
gens induzidas pela fragilidade e impotência do adulto:
eu tenho que ser forte; eu tenho que me controlar; eu não
posso falhar; eu tenho que me virar sozinha (ideal introjetado, que vai funcionar como dominador no neurótico
com traços obsessivo-compulsivos). Ela também pode introjetar mensagens como essas: eu sou especial; eu sou
melhor que os outros; eu mereço ter tudo que quero (real
introjetado, que vai atuar como dominador no neurótico
com traços narcisistas).
São esses “eus introjetados” (real e ideal) que irão
funcionar como “eu dominador”. Na tentativa de minimizar o conflito interno gerado pelas incoerências entre as experiências vividas (“eu dominado”) e as representações deturpadas de si mesmo (“eu dominador”), o
neurótico interrompe o contato com o “outro” e consigo mesmo de forma crônica e obsoleta. Ao interromper
o contato como o “outro”, ele perde a oportunidade de
assimilar o novo e transformar o campo, bloqueando,
assim, sua autorrealização e seu crescimento. Na interrupção do contato consigo mesmo, o neurótico desconhece, nega ou distorce algumas de suas experiências
e características que, embora sejam inerentes a “si mesmo” (eu dominado), são incompatíveis com os introjetos
tóxicos (eu dominador).
O “eu dominador” é um tirano implacável e exigente,
cujas imposições, quase sempre, emergem como figura,
sobrepondo-se às demandas do “eu dominado”, as quais
permanecem no fundo. No entanto, podem existir momentos de extrema tensão, em que as necessidades do
“eu dominado” se tornam urgentes e atingem o primeiro plano da consciência fazendo com que este se rebele
contra seu “dominador” e, apesar de sua timidez e fragilidade, consiga assumir o poder, satisfazendo seus desejos, através de atitudes ousadas, impulsivas e inconsequentes, que são, muitas vezes, incoerentes com os valores e normas da sociedade, como acontece com algumas
pessoas que manifestam comportamentos extremamente descontrolados, imaturos, ou caracteristicamente antissociais. É assim que, no processo de autorregulação
organísmica, a “função ego” enfraquecida pelo conflito
“dominador-dominado”, perde sua capacidade de fazer
ajustamentos criativos, cedendo espaço para a “função
id”, que em casos de emergência assume, naturalmente,
o controle da situação.
No processo de constituição das psicoses, como foi
explicado antes, a extrema fragilidade das fronteiras e
da “função ego” do self, causada pelo intenso conflito
dominador-dominado vivenciado no mundo tanto externo, quanto interno, faz com que o “Eu total” perca sua
unidade, fragmentando-se em vários “eus” desconectados um do outro e em constante luta entre si, produzindo pensamentos e sentimentos opostos, que se alternam
e mudam rapidamente. Isto faz com que as figuras, referentes às prioridades do self, não se destaquem inteiramente do fundo, nem permaneçam o tempo suficiente
para que sejam completadas. Sendo o fundo constituído
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
Artigo
A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard
Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto
Artigo
por figuras inacabadas, conflitos mal resolvidos e introjetos tóxicos desintegrados da totalidade do self, as novas
figuras são contaminadas pelas experiências vivenciadas anteriormente e pelas polaridades alienadas de “si
mesmo”, fazendo com que a percepção do campo atual
seja completamente distorcida, desencadeando delírios
e alucinações.
Quanto ao processo de constituição das neuroses, é
importante enfatizar que o enfraquecimento das fronteiras e da função “ego” do self faz com que as interrupções
do contato se tornem padrões rígidos de funcionamento, ou ajustamentos conservativos, caracterizados pelas
tendências para fixação das fronteiras na abertura ou no
fechamento. Nessas duas formas de fixação, os sentimentos de “menos valia” e impotência, sejam como figura ou
fundo, favorecem a aproximação, confiança e aceitação
do “outro”, ou o afastamento, desconfiança e rejeição
deste. Sendo assim, enquanto no funcionamento fixado
na abertura o “outro” é visto como sendo essencialmente
bom e confiável, representando a possibilidade de equilíbrio, satisfação, vantagem e bem estar, no fechamento
crônico das fronteiras do self, o “outro” é encarado como
sendo essencialmente mau e traiçoeiro, com grande probabilidade de lhe proporcionar desequilíbrio, frustração,
desvantagem e mal estar.
Os neuróticos com fixação de suas fronteiras na abertura, portanto, acreditam que podem ter uma vida mais
tranquila e prazerosa, na medida em que conseguirem
conquistar a confiança, o respeito e o apoio dos outros,
procurando, compulsivamente, atender às expectativas
destes. Devido ao sentimento de menos valia, fragilidade e impotência em relação à maioria das pessoas, esse
tipo de neurótico costuma desenvolver estratégias de
sedução e manipulação, desempenhando papéis (bonzinho, coitadinho, certinho, etc.), que facilitem o reconhecimento e o acolhimento por parte daqueles com os
quais convive diariamente. Essas características neuróticas correspondem à descrição feita pelo DSM-IV dos
Transtornos da Personalidade Dependente, Borderline
e Histriônica.
A característica essencial do Transtorno da Personalidade Dependente é uma necessidade invasiva de
ser cuidado, que leva a um comportamento submisso
e aderente e ao medo da separação. (...) Os comportamentos dependentes e submissos visam a obter
atenção e cuidados e surgem de uma percepção de si
mesmo como incapaz de funcionar adequadamente
sem o auxílio de outras pessoas. (...) Como temem
perder o apoio ou aprovação, muitas vezes têm dificuldade em expressar discordância de outras pessoas,
especialmente aquelas das quais dependem. (...) Eles
não ficam zangados, quando seria adequado, com as
pessoas cujo apoio e atenção necessitam, por medo
de afastá-las (American Psychiatric Association,
1995, p. 627).
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
Conforme descrição do DSM-IV, no Transtorno da
Personalidade Borderline também é marcante o sentimento de vazio crônico e de dependência em relação ao
“outro”, produzido por uma percepção de “si mesmo”
como alguém sem valor e incapaz de sobreviver por conta própria. A diferença é que no Borderline existe uma
grande instabilidade e impulsividade emocional, na qual
o sujeito valoriza e ama intensamente o “outro”, mas, de
uma hora para outra, o despreza e o odeia com a mesma
intensidade. Essa instabilidade está relacionada à alternância de fortes sentimentos de satisfação e frustração,
acolhimento e abandono, vivenciados na relação com o
“outro”, com quem mantém ligação afetiva. Outro aspecto desse tipo de transtorno é a automutilação recorrente,
utilizada como forma de manipulação, e a fragilidade
acentuada do sentimento de self.
Tanto no Transtorno Borderline quanto no Transtorno
Dependente, o indivíduo manifesta medo do abandono,
mas o “borderline” reage a esse abandono com raiva e exigências, ao passo que o “dependente” reage com crescente humildade e submissão, buscando urgentemente um
novo relacionamento que lhe dê a segurança e o apoio
que ele tanto necessita. Os indivíduos com Transtorno
da Personalidade Histriônica, como no Transtorno da
Personalidade Dependente têm uma forte necessidade de
amparo e aprovação, podendo parecer infantis e demasiadamente apegados. Entretanto, enquanto o “dependente”
se caracteriza por uma autoanulação e comportamento
dócil, o “histriônico” se caracteriza pela exuberância,
com exigência ativa de atenção.
Com relação aos padrões fixados no fechamento das
fronteiras do self, é necessário esclarecer que eles se caracterizam por três tipos de funcionamento gerados por
três formas de distorção da autoimagem: negativa, positiva primária e positiva secundária, associadas à percepção do “outro” como alguém que é potencialmente mau
e traiçoeiro, ou essencialmente insignificante e culpado,
por isso, merece sofrer.
O primeiro tipo de fixação no fechamento se correlaciona com o Transtorno de Personalidade Esquiva e tem
como base uma distorção “negativa” da autoimagem, na
qual a pessoa se sente frágil, inferior e impotente em relação aos outros, os quais são percebidos como ameaçadores, precisando, portanto, se proteger ou evitar o contato
com eles. O segundo tipo de fixação no fechamento das
fronteiras do self se desenvolve a partir de uma distorção
“positiva primária” da autoimagem, correspondendo ao
“padrão egotista” de comportamento, tal como é definido e descrito pela abordagem gestáltica, que se correlaciona com os Transtornos da Personalidade Narcisista e
Antissocial nos aspectos referentes à tendência do indivíduo para ser egocêntrico, volúvel, superficial, explorador,
arrogante, prepotente, insensível e destituído de empatia.
Segundo Dias (1994), o “egotista” tem uma autoconsciência exacerbada, isto é, ele costuma vigiar excessivamente suas fronteiras, selecionando criteriosamente tudo
230
A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard
Os indivíduos com este transtorno não se conformam
às normas pertinentes (...) (...) desrespeitam os desejos,
direitos ou sentimentos alheios. (...) As decisões são
231
tomadas ao sabor do momento, de maneira impensada,
sem considerar as consequências para si mesmos ou
para outros. (...) tendem a ser irritáveis ou agressivos
e podem repetidamente entrar em lutas corporais ou
cometer atos de agressão física (...) tendem a ser consistente e extremamente irresponsáveis. (...) demonstram
pouco remorso pela consequência de seus atos. (...)
podem acreditar que todo mundo está aí para “ajudar
o número um” e que não se deve respeitar nada nem
ninguém para não ser dominado (American Psychiatric Association, 1995, pp. 656-657).
O medo de ser dominado confirma a hipótese de que
o Transtorno Antissocial se constitui em um contexto
familiar autoritário, controlador e frustrador, propiciando a distorção “positiva secundária” da autoimagem como forma de defesa contra os sentimentos de
inferioridade, vulnerabilidade e impotência produzidos por situações de impasses existenciais e de conflito “dominador-dominado”, que favorecem a introjeção
de mensagens bionegativas e a fixação das fronteiras
do self na abertura.
Embora em alguns casos, o “antissocial”, ou o “perverso”, no fundo, possa se sentir inferior, vulnerável e
impotente, o que emerge como figura são sentimentos de
superioridade, força e poder gerados pela identificação
com seu “dominador”. A suposição é de que, apesar desse indivíduo, durante uma parte de sua infância, ter alimentado a ilusão de que sua segurança e seu bem-estar
poderiam ser alcançados através do contato afetivo com
o “outro dominador”, a partir de uma determinada fase
de sua vida, devido às várias experiências de abuso e vitimização produzidas por esse “outro”, ele desiste dessa
ideia e começa a lutar pelo completo afastamento emocional em relação aos “outros” em geral, para não correr
o risco de ser abusado novamente.
Por esse motivo, é coerente dizer que o “antissocial”
pode ser, no fundo, um neurótico que encontrou um jeito de não permanecer no papel humilhante e sofrido de
“dominado”, identificando-se com seu “dominador” e
reproduzindo o comportamento deste em suas relações
interpessoais. Por outro lado, certos neuróticos, podem
ser encarados como “perversos” disfarçados de “coitadinhos”, “bonzinhos” ou “certinhos”, pois, embora, muitas
vezes, sinta inveja e raiva dos outros, não têm coragem
suficiente para enfrentá-los, desenvolvendo formas indiretas e camufladas de obter vantagens sobre eles.
A distorção “positiva secundária” da autoimagem, no
entanto, também pode ser responsável pelo desenvolvimento de outros padrões de funcionamento fixados no fechamento, como aqueles que evidenciam um sentimento
de desconfiança e suspeita em relação aos outros, apontado como um dos critérios diagnósticos para o Transtorno
da Personalidade Paranóide e aqueles que se caracterizam
pela extrema necessidade de controle e perfeição encontrada no Transtorno Obsessivo-compulsivo.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
Artigo
que entra e sai de seu sistema, com medo de se entregar
afetivamente ao “outro” e ser dominado ou sufocado por
este. Nestas circunstâncias, como forma de defesa, ele
mantém suas fronteiras fixadas no fechamento, interrompendo seus contatos, através de mecanismos como a
retroflexão e a projeção, permanecendo emocionalmente
isolado em relação à maioria das pessoas, uma vez que
sempre conta com a possibilidade de ser traído, invadido ou abusado em seus relacionamentos. Além disso, o
“egotista” constrói e se mantém fixado a uma imagem
idealizada de “si mesmo”, alimentando um falso desprezo pelo “outro”, enquanto o “eu” é ilusoriamente enaltecido pela aquisição de características irreais de extremo
valor, capacidade e poder.
Dessa maneira, tanto os “narcisistas”, quanto os “antissociais” podem ser considerados pessoas “egotistas”, na
medida em que funcionam como crianças egocêntricas,
mimadas e sem limites, que só se preocupam com a satisfação de seus próprios desejos, sem levar em consideração as condições e as demandas do meio. No Transtorno
Narcisista da Personalidade, embora o sujeito dependa
do “outro” para ter a confirmação de seu próprio valor,
promovendo, assim, sua satisfação e seu equilíbrio, essa
dependência é frequentemente negada. O narcisista, como
todo neurótico, no fundo, se sente menor e menos capaz
que o “outro”, mas, por conta da desconfiança, medo ou
desprezo em relação a este, ele controla a aproximação e
o envolvimento com a maioria das pessoas, para não correr o risco de revelar e encarar suas próprias limitações,
ameaçando seu “eu idealizado” construído por uma distorção “positiva primária” da autoimagem.
No terceiro tipo de fixação no fechamento, desenvolvido através de uma distorção “positiva secundária” da
autoimagem, o indivíduo “egotista”, além de manifestar
os traços que caracterizam o segundo tipo, que é essencialmente narcisista, sua personalidade também evidencia aspectos que, provavelmente, foram desencadeados
pelas experiências de abuso e vitimização vivenciadas
na infância ou adolescência, os quais correspondem aos
critérios para o diagnóstico diferencial do Transtorno
da Personalidade Antissocial em relação ao Transtorno
Narcisista: dificuldade para adequar-se às normas sociais, propensão para enganar ou ludibriar os outros para
obter vantagens pessoais, impulsividade, agressividade,
irresponsabilidade consistente e ausência de remorso.
Como se pode perceber, a personalidade antissocial,
psicopata ou perversa, embora compartilhe alguns aspectos com a personalidade “narcisista”, o indivíduo
“antissocial” se diferencia basicamente pela autoestima
fortalecida, pela raiva e agressividade, com necessidade
de controlar e dominar os outros, para não correr o risco
de ser controlado e dominado por eles.
Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto
Considerações finais
Neste trabalho foi descrito o processo de formação das
psicopatologias numa perspectiva gestáltica, concluindo-se que os funcionamentos neurótico, psicótico e antissocial se desenvolvem a partir da vulnerabilidade ou desintegração do “eu”, favorecida pela vivência de impasses
existenciais e pela internalização de mensagens bionegativas, que propiciam a distorção da percepção interna e
externa, a utilização crônica de interrupções do contato
e a fixação das fronteiras na abertura ou no fechamento,
como forma de ajustamento conservativo.
Em síntese, nas psicoses, a grande tensão gerada pelo
conflito “dominador-dominado” gera a desintegração do
self, como consequência da falência total de suas fronteiras e funções, impossibilitando a diferenciação entre
figura e fundo, fantasia e realidade, “eu” e “tu”. No neurótico, essa tensão acontece em grau menor, produzindo
o enfraquecimento das fronteiras e o distúrbio das funções do self, responsável pela criação e cristalização de
interrupções de contato, na tentativa de minimizar o sofrimento imposto pelo “dominador” nos mundos interno
e externo. No antissocial, a mesma tensão gera a explosão, ou a revanche do “dominado” contra seu “dominador”, na qual ele, enquanto vítima, se identifica com seu
agressor, tornando os outros reféns de seu egoísmo, frieza, arrogância, prepotência e raiva.
Referências
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Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (4ª ed.
Revisada). Porto Alegre: Artes Médicas.
Dias, C. M. A. (1994). Os distúrbios da fronteira de contato: Um
estudo teórico em Gestalt-Terapia. Dissertação de Mestrado,
Universidade de Brasília, Brasília.
Perls, F. S. (1977). Gestalt-Terapia Explicada. São Paulo: Summus
(Original publicado em 1969).
Perls, F. S. (1981). Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular
da Terapia. Rio de Janeiro: Zahar Editores (Original publicado em 1973).
Perls, F. S. (2002). Ego, Fome e Agressão: uma revisão da teoria
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Perls, F. S., Hefferline, R., & Goodman, P. (1997). Gestalt-Terapia.
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Tenório, C. M. D. (2003a). Os Transtornos da Personalidade
Histriônica e Obsessivo-Compulsiva na Perspectiva da
Gestalt-Terapia e da Teoria de Fairbairn. Tese de Doutorado,
Universidade de Brasília, Brasília.
Tenório, C. M. D. (2003b). O Conceito de Neurose em GestaltTerapia. Revista Universitas Ciências da Saúde, 1(2),
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Tenório, C. M. D. (2005). O Self eu o Eu nos Transtornos
Histriônico e Obsessivo-Compulsivo da Personalidade.
Anais do XI Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica,
pp. 187-199.
Carlene Maria Dias Tenório - Psicóloga graduada pela Universidade
Federal do Ceará (UFC), Especialista em Gestalt-Terapia, Mestre
e Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília
(UnB), Professora do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB)
e membro efetivo do corpo docente do Instituto de Gestalt-Terapia
de Brasília (IGTB). Endereço Institucional: SEPN 707/907, Campus
do UniCEUB, 70790-075, Brasília-DF - Fone: (61) 3340.1046 E-mail:
[email protected]
Recebido em 18.09.11
Primeira Decisão Editorial em 03.01.12
Segunda Decisão Editorial em 14.12.12
Artigo
Hycner, R. (1995). De Pessoa a Pessoa: psicoterapia dialógica.
São Paulo: Summus.
Perls, F. S. (1977). Gestalt-Terapia e Potencialidades Humanas.
Em John O. Stevens (Org.), Isto é Gestalt (pp. 19-27). São
Paulo: Summus (Original publicado em 1975).
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012
232
Textos
clássicos ................
Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)
TEXTOS CLÁSSICOS
EDMUND HUSSERL E OS FUNDAMENTOS DE SUA FILOSOFIA1
Marvin Farber
(1940)
Título original: “Edmund Husserl and the Background of his Philosophy”, publicado na revista Philosophy and Phenomenological
Research, Vol. 1, Nr.1, p. 1-20 (1940), editada pela International
Phenomenological Society. As notas do autor foram aqui mantidas,
na mesma ordem e numeração do texto original. As notas explicativas acrescidas pelo Editor estão em formato alfabético, para não
interferir no texto original.
2
Cf. E. Fink. “Was will die Phanomenologie Edmund Husserls?” Die
Tatwelt, 1934, p. 15.
3
É importante assinalar que, desde a publicação original desse texto, muitos manuscritos husserlianos foram publicados na coleção
conhecida como Husserliana: Edmund Husserl Gesammelte Werke
1
235
to valioso que, sem dúvida, enriquecerá e modificará o
entendimento sobre o método fenomenológico. Assim, a
recente publicação de Husserl, Erfahrung und Urteil4 tornou-se reveladora, acrescentando muito ao entendimento
sobre a sua filosofia da lógica. Por essa razão, é correto
afirmar que Husserl publicou o suficiente para favorecer
uma justa apreciação de sua filosofia, estabelecendo um
ponto de partida para trabalhos futuros bastante frutíferos em conjunto com linhas fenomenológicas.
Para tanto, é necessário analisar sua filosofia de maneira objetiva, sem um pensamento restrito ou vínculos
teóricos pessoais. Isso significa que é preciso estar preparado para reconhecer avanços positivos feitos por Husserl
na filosofia e em ciências distantes como a psicologia,
além de empenhar-se para apurar se todos os elementos
do seu pensamento são coerentes com seus preceitos declarados. Um interesse especial é a forma final do idealismo representado pelo último sistema de fenomenologia transcendental, o qual revela os limites, bem como os
méritos, do modo subjetivo do procedimento filosófico.
A atenção renovada ao método na filosofia torna a análise da fenomenologia bastante pertinente; sendo assim
o grande desenvolvimento da teoria lógica é necessária
para colocar a fenomenologia em conexão com esta, prevendo possíveis reações mútuas. Atenção especial deve
ser dada às contribuições lógicas de Husserl, por serem
muito significativas considerando-se as dúvidas e dificuldades análogas aos problemas existentes na época das
Investigações Lógicas5.
ou simplesmente Husserliana, que contém a série principal de
suas obras, manuscritos e inéditos, constantes na Husserl-Archives
Leuven. Atualmente, a coleção conta com 41 volumes já editados
(N. do. E.).
4
Erfahrung und Urteil. Untersuchungen zur Genealogie der Logik, ou
Experiência e Juízo. Estudos sobre a Genealogia da Lógica, inédita
em português. A primeira impressão desse texto se deu logo após a
morte de Husserl, em 1938, tendo sido editada em Praga. Contudo,
com a anexação da Tchecoslováquia à Alemanha Nazista, houve
significativo prejuízo na divulgação dessa obra. Foi organizada
finalmente em 1948, por Ludwig Landgrebe (Nota do Editor).
5
Logische Untersuchungen. Zweite Teil: Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis, publicado originalmente em
1901 (Primeiro Volume.). O segundo volume foi publicado posteriormente (Ver Nota 8 desse texto). No Brasil, a primeira tradução
desse texto se deu em 1976, na forma da “Sexta Investigação”, e
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012
TextosClássicos
Nenhum assunto na filosofia recente alcança a confiança suprema com a qual Husserl anunciou o começo
triunfante de uma nova ciência da filosofia, uma disciplina “absoluta” alcançada através de um método cuidadosamente elaborado. Essa ciência era muito avançada, assim
como os resultados realmente positivos dos esforços filosóficos da época. De fato, os filósofos que o antecederam
foram classificados por Husserl como não correspondentes aos ideais da fenomenologia. Reside aí algo de admirável e heroico sobre o tom de Husserl e sua opinião não
precipitadamente avançada. Mais de cinquenta anos de
reflexões consecutivas e trabalho incessante, que resultaram em numerosos exemplos de análises descritivas,
justificam a necessidade de saudar suas reivindicações,
ouvindo com atenção seus argumentos. O pensamento
e as contribuições de um dos mais argutos e completos
filósofos do último século merecem uma atenção bem
maior do que a que tem recebido. Considerar seu trabalho
é necessário em razão da insistência de Husserl de que
sua filosofia ainda é desconhecida2 e de seus repetidos
protestos por ser mal interpretado. O fato de que Husserl
raramente responde seus críticos tem dificultado ainda
mais a compreensão do público filosófico em geral sobre
a relevância de seu trabalho. Para muitos ele era firme
demais, não importando críticas a favor ou contra, o que
acabou gerando interpretações errôneas. Publicações importantes feitas nos últimos anos de sua vida incluíram
duas respostas a esses críticos, sendo que foram as únicas
mais elaboradas desde sua resposta a Palagyi em 1903.
Agora é possível analisar e apreciar a filosofia fenomenológica mesmo que muitos manuscritos nunca tenham
sido publicados3. Estes textos contêm um material mui-
Marvin Farber
Assim como o enigma proposto pelo pensamento de
Husserl, e que pode ser melhor solucionado aproximando-se do seu desenvolvimento, este artigo enfatiza algumas das influências que antecederam seu pensamento
e pontua as fases de seu trabalho. Não será possível fazer jus a todas essas influências: Husserl deriva de uma
história inteira da filosofia e, sem dúvida, deve muito e
indiretamente a todos os pensadores que nunca foram
mencionados explicitamente em suas obras. Portanto,
é suficiente para os nossos propósitos, chamar atenção
para a controvérsia da qual Husserl é famoso – a questão
da relação entre psicologia e filosofia (em especial a lógica) e indicar, mesmo que apenas mencionando nomes,
as influências mais importantes sobre o seu pensamento
conforme admitido pelo próprio Husserl.
TextosClássicos
1.Psicologismo e Filosofia na Década de 1880
Proeminente na filosofia do final do século XIX era
um ponto de vista conhecido por “psicologismo”. A filosofia de uma época é sempre condicionada e influenciada
pelas concepções científicas mais destacadas, especialmente as novas; exemplo disso é o racionalismo, na filosofia moderna, que refletiu os avanços da matemática e
da física. No período em questão a ciência emergente era
a psicologia que detinha dupla importância para a filosofia alemã: sugeria um caminho seguro para a solução
de problemas difíceis da lógica e da teoria do conhecimento, além de oferecer um substituto e um acréscimo
para a perspectiva idealista em filosofia. O psicologismo
já era relevante na filosofia inglesa, cujo representante
maior foi J.S.Mill. Na Alemanha, Wundt e Lipps servem
de exemplos. Natorp, Brentano, Stumpf e posteriormente Frege são de particular importância, por fornecerem
significativa influência para Husserl. A reação contra o
psicologismo foi claramente ilustrada nos primeiros escritos de Natorp; e Schuppe e Volkelt antecederam Husserl
na teoria do conhecimento, embora não tenham exercido influência direta sobre ele. Isso, porém, não afeta a
originalidade de Husserl, visto que o uso sistemático imposto por ele às mesmas causas, resultaram na sua radical reformulação.
O Psicologismo foi uma perspectiva extremada, e uma
reação a isto era inevitável. A revisão de Natorp, do livro
de Theodor Lipps Basic Facts of Mental Life6 é uma indicação precoce de tal reação. Lipps considerava a psicologia
como constitutiva da base filosófica, mas Natorp duvidava
da possibilidade de a psicologia “fundamentar” a lógica
e a teoria do conhecimento. Lipps, por outro lado, considerava esses temas como a base psicológica do princípio
publicada na coleção Os Pensadores. Atualmente contamos com uma
tradução portuguesa dos dois volumes (Universidade de Lisboa) e
uma brasileira do primeiro volume e do II Tomo (N.do E.)
6
Cf. Paul Natorp, revisão da obra da obra de Lipps Grundthatsachen
des Seelenlebens, Bonn, 1883, publicado no Göttingische gelehrte
Anzeigen, 1885, pp. 190-232.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012
da contradição e função geral das concepções sobre o conhecimento. De acordo com Lipps, a derivação genética
das leis básicas do conhecimento depreendida dos fatos
originais da vida física eram idênticas às suas fundações
“epistemológicas”, em outras palavras, a teoria do conhecimento seria uma ramificação da psicologia. Há que se
reconhecer, assinala Natorp, que fatos psíquicos são representados nas leis do conhecimento, e esses fatos, por
serem psíquicos, constituem também objeto de investigação para a psicologia; porém, não é uma questão de indiferença se são fatos psíquicos ou se a psicologia uma
pressuposição da teoria do conhecimento. Conhecimento
é admitido como sendo um processo psíquico apenas na
forma de conceitos e teorias, ou de modo geral, como consciência. Mesmo a verdade sobre o conhecimento, assim
como a lei que rege essa verdade como algo objetivamente válido, devem ser investigadas através da consciência
que seres pensantes possam ter sobre ela.
Nesse sentido, conceitos e verdades sobre a geometria seriam fatos psíquicos, e mesmo assim, os axiomas
de Euclides não são considerados como sendo leis psicológicas por ninguém, nem se supõe que seu objetivo
depende do entendimento psicológico de apresentações
geométricas. Natorp, portanto, apenas ressaltou o fato de
que a consciência da verdade independe de toda explicação genética por meio de conexões psicológicas e chamou
atenção para a independência da base objetiva dos princípios do conhecimento. Assim, para Natorp, a crítica e
a psicologia do conhecimento se exigem e se condicionam uma a outra. Um indicativo de seu ponto de vista
é dado por sua asserção que uma lei de conhecimento é
a priori, assim como toda lei é a priori para aquilo que
é sujeito à lei.
As primeiras reações de Natorp contra o psicologismo
estão expressas também num artigo sobre os fundamentos
objetivos e subjetivos do conhecimento7, no qual o autor
argumenta que não existiria nenhuma lógica, ou ela deveria ser inteiramente construída sobre suas próprias bases,
sem a necessidade de se fundamentar em qualquer outra
ciência. Aqueles que fazem da lógica uma ramificação da
psicologia afirmam que esta é a ciência de base e que a
lógica é, na melhor das hipóteses, apenas uma aplicação
da psicologia. Natorp afirmou que não apenas o significado da lógica, mas também o significado de toda ciência objetiva é ignorado e quase pervertido em seu oposto, quando a verdade objetiva do conhecimento se torna
dependente de uma experiência subjetiva. Fundamentar
a lógica sobre bases subjetivas seria anulá-la como teoria independente da validade objetiva do conhecimento.
Por essa razão, Natorp não estava somente defendendo os
direitos da lógica no sentido comum do termo, mas também chamando atenção para a validade objetiva da qual
P. Natorp, “Uber objektive und subjektive Begründung der Erkenntnis” (Erster Aufsatz), Philosophische Monatshefte, vol. XXIII, 1887,
pp. 257-286. Husserl refere-se à página 265 f. desse artigo nas Investigações Lógicas como reforço para seu debate sobre o psicologismo.
7
236
Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)
Cf. P. Natorp, “Quantität und Qualität in Begriff, Urteil und gegenständlicher Erkenntnis”, Philosophiache Monatshefte, vol. XXVII,
1891, pp. 1-32, 129-160. No seu Einleitung in die Psychologie nach
kritischer Methode (Freiburg f. B., 1888), Natorp se colocou a tarefa
de tornar seguras as bases da psicologia através de uma investigação
preliminar do seu objeto de estudo e método.
8
237
buscou compreender qual procedimento matemático é
objetivo, além de mostrar que a lógica formal deve ser
fundamentada na lógica do conhecimento objetivo ou
na lógica transcendental.
Outra ideia importante na época foi o ideal da ausência de pressuposições no procedimento filosófico. Esse
ideal foi tomado por Husserl nas Investigações Lógicas
como uma exigência óbvia a ser imposta sobre toda investigação epistemológica.
Assim, é possível apontar as influências diretas sobre Husserl no início do seu percurso, derivadas de algumas poucas fontes embora, posteriormente, abordasse
filósofos que, num primeiro momento, tinham sido negados ou rejeitados. Natorp, Volkelt, Schuppe e Rehmke
podem ser considerados representantes únicos de uma
geração emergente de idealistas, cujos trabalhos seriam
relevantes na literatura filosófica das décadas subsequentes. Suas publicações foram lidas, caso de Natorp, e também consideradas como trabalhos paralelos por Husserl.
A orientação à filosofia de Kant, sempre proeminente na Alemanha viria a ser de grande significância para
Husserl. Brentano, que não é facilmente classificado,
combinou o escolasticismo e a filosofia de Aristóteles
com o empirismo, inaugurando um período frutífero de
desenvolvimento da psicologia, tendo Stumpf como um
dos seus primeiros discípulos mais produtivos. O desenvolvimento moderno da lógica simbólica, que teve seu
início na Inglaterra através de Boole, foi conduzido na
Alemanha por Schröder e Frege. Esses estudiosos podem
ser citados como constituindo a cena filosófica em que
Husserl entrou quando ele se juntou ao corpo docente da
Universidade de Halle em 1887. Todos representam uma
fase especial do contexto da filosofia Alemã na época.
2. O Discípulo de Brentano
“Brentano, meu professor” era uma expressão frequentemente ouvida nas aulas de Husserl. Sua dívida
intelectual com Brentano era considerável no início de
seus estudos, mas foi o elemento moral e o exemplo pessoal de Brentano que o levou a escolher a filosofia como
objetivo de vida e que constitui sua última influência.
Husserl foi um aluno agradecido a Brentano acompanhando-o, juntamente com Stumpf, durante viagens de férias.
Entretanto, Husserl não estava preparado na época para
aproveitar esse contato. A eficácia de Brentano como professor é justificada pelo número de teóricos notáveis que
devem o começo de seus estudos a ele, tais como Stumpf,
Husserl, Meinong, Höfler e Marty.
Husserl deixou um tributo revelador a Brentano dedicando uma obra inteira ao mestre9. Husserl participou
Cf. Husserl “Erinnerungen an Franz Brentano”, Supplement II, pp.
153-167, no livro de Oskar Kraus, Franz Brentano, Zur Kenntnis
seines Lebens und seiner Lehre (O Supplement I é de autoria de Carl
Stumpf), München, 1919.
9
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012
TextosClássicos
é feita toda ciência, ao sustentar que a validade objetiva
deve ser também sustentada objetivamente. Como pressuposição da ciência objetiva, Natorp formulou o preceito de que o verdadeiro conhecimento científico somente pode depender de leis que gerem a certeza no âmago
da ciência e que sejam desenvolvidas de maneira lógica,
independente de quaisquer pressuposições que possam
ser vinculadas a elas. Assim, todo recurso ao sujeito cognoscente e sua capacidade de ciência objetiva é marcado
como algo estranho.
Natorp foi muito claro ao afirmar que a objetividade
da ciência requer a superação da subjetividade. Nesse
sentido, sua concepção sobre a verdade científica é compatível com o ideal posterior de Husserl de uma ciência
rigorosa para a filosofia, mas não a ponto de sugerir a
ideia de uma ciência universal ou de uma filosofia “cientificamente enraizada”. O objeto da crítica de Natorp era,
de fato, o psicologismo e ele foi bem-sucedido ao formular claramente essa questão. Natorp afirmou que a verdade científica, conforme ilustrada na ciência natural
matemática, torna-se uma certeza quando fundamentada em pressuposições objetivas, ressaltando sua autonomia como ciência. Logo, o matemático e o físico não
deveriam buscar na psicologia a essência da verdade de
seus conhecimentos.
A expressão “validade objetiva” foi, assim, utilizada
para indicar a independência do aspecto subjetivo do saber. Seu significado positivo era bem menos claro para
Natorp. A ideia de que existem objetos fora e independentes de toda subjetividade seria uma possível resposta,
mas Natorp acreditava que o “ser em si mesmo” do objeto
já era em si um enigma, em razão do seu kantismo não
resolvido. Natorp argumentava que a independência do
objeto da subjetividade do saber somente poderia ser entendida por meio da abstração, visto que os objetos nos
são dados somente através do conhecimento de que temos
deles. Sendo assim, seria necessário abstraí-los a partir do
conteúdo da experiência subjetiva. De acordo com Natorp
os verdadeiros princípios e bases do conhecimento são
as unidades objetivas finais. Na matemática, não são os
fenômenos que são básicos, mas sim as abstrações fundamentais que são expressões da unidade de determinação
de possíveis fenômenos tais como ponto, linha, retidão e
igualdade de magnitude. Tudo isto envolve a função fundamental de objetivação e a “unidade da multiplicação”
de Kant e Platão. Somente assim os “fenômenos” únicos
da ciência se tornam possíveis. Natorp argumentou que
deve haver uma função determinante e “firme”, a fim de
tornar essa positividade uma realidade possível. Numa
discussão posterior8 Natorp buscou verificar como o tipo
de argumentação que tinha usado era objetivo, ou seja,
TextosClássicos
Marvin Farber
de seus cursos durante dois anos, de 1884 a 1886, depois
de ter completado formalmente seus estudos universitários, nos quais a filosofia era um objeto menor. Brentano
proferia conferências sobre a filosofia prática, lógica elementar e suas reformas necessárias e também falava sobre questões psicológicas e estéticas específicas. Husserl
estava em dúvida, então, se deveria dedicar-se à filosofia
ou à matemática e foram as conferências de Brentano que
o ajudaram a tecer sua escolha. Embora tenha sido constantemente advertido por seu amigo Masaryk a estudar
com Brentano, Husserl comenta que participou das conferências apenas por curiosidade, pois na época Brentano
era muito discutido em Viena, sendo admirado por muitos
e insultado por outros que o comparavam a um jesuíta
disfarçado. Husserl ficara impressionado desde o início
por seus gestos leves e seu rosto expressivo, com rugas
que evidenciavam não apenas um mero trabalho mental,
mas profundas batalhas intelectuais. Brentano o impressionou como alguém que estava sempre consciente de ter
uma grande missão. A linguagem de suas conferências
era livre de toda artificialidade, revelando sua perspicácia, uma inteligência viva através de um tom de voz bastante peculiar, velado, suave, acompanhado de gestos
quase sacerdotais que faziam-no parecer um profeta de
verdades eternas e um locutor de outro mundo. Husserl
comentou mais tarde que sucumbiu à força daquela personalidade, apesar de todos os seus preconceitos. E, foi a
partir dessas conferências que ganhou convicção de que
a filosofia é um campo de trabalho intenso, vigoroso e
que pode ser tratado no âmago da ciência mais rigorosa, e
isso o levou a tomar a filosofia como um projeto de vida.
Brentano era mais eficiente nos seus seminários, nos
quais estudou os seguintes textos: Enquiry Concerning
Human Understanding e Principles of Morals, de Hume;
a fala de Helmholtz sobre “The Facts of Perception”, e de
Du Bois-Reymond, “Limits of Natural Logic”. Na época,
Brentano estava particularmente interessado em questões de psicologia descritiva, que discutiu com Husserl.
Nas conferências sobre lógica elementar Brentano tratou a psicologia descritiva considerando o trabalho de
Bolzano “Paradoxos do Infinito” além das diferenças entre as ideias de “intuitivo e não-intuitivo”; “claro e obscuro”; “distinto e não distinto”; “real e irreal” e “concreto e
abstrato”. Outros temas incluíram a investigação do julgamento e também problemas descritivos da fantasia. O
alcance da influência de Brentano é demonstrado nos primeiros escritos de Husserl, bem como nas investigações
subsequentes sobre a lógica e a teoria do conhecimento.
Sua dívida com Brentano foi reconhecida explicitamente e de bom grado por Husserl. É interessante notar que
Brentano sentiu-se como o criador de uma philosophia
pereniss, embora não tenha se fixado em suas perspectivas nem ficado parado no tempo. Brentano exigia clareza
e a distinção de conceitos fundamentais, considerando
as ciências naturais exatas como representantes do ideal
de uma ciência exata da filosofia. Este ideal se opunha à
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012
tradição do idealismo alemão que, na sua opinião, degeneravam a filosofia.
Husserl trocou poucas correspondências com
Brentano. Em resposta a uma carta, solicitando que
aceitasse uma dedicatória feita a ele na obra Filosofia
da Aritmética10, Brentano expressou cordiais agradecimentos, posicionando-se contra, temendo que Husserl
angariasse a animosidade de seus inimigos. Husserl, entretanto, não recebeu nenhuma resposta quando enviou
a Brentano uma cópia dessa obra com sua dedicatória.
Brentano só foi notar que o trabalho de Husserl tinha sido
dedicado a ele quatorze anos depois tendo, então expresso calorosos agradecimentos. Husserl aceitou os agradecimentos e compreendeu seu mestre o suficiente para se
sensibilizar com este incidente. O desenvolvimento independente desses dois teóricos deve-se a essa pequena
quantidade de cartas trocadas entre eles.
Husserl viu Brentano em 1908 em Florença, quando
o último estava quase cego. Novamente sentiu-se como
um iniciante tímido, mais propenso a ouvir do que falar.
Uma vez foi chamado a se manifestar e foi ouvido por
Brentano sem interrupção. Seu relato acerca do significado do método fenomenológico de investigação, bem
como do seu conflito anterior com o psicologismo, não
os levaram a nenhum acordo. Husserl afirmou que talvez a culpa fosse parcialmente sua. Ele tinha ficado inibido pela sua íntima convicção de que Brentano, em razão de sua firme postura de conceitos e argumentos, já
não era mais suficientemente adaptável para entender a
necessidade de transformação de suas ideias fundamentais, o que Husserl acreditava que ele estava compelido
a fazer. Brentano vivia continuamente no seu mundo de
ideias e na completude de sua filosofia que dizia tinha
sido submetida a um grande desenvolvimento ao longo
de décadas. Pairava sobre ele uma aura de transfiguração,
embora ele não pertencesse mais a este mundo e vivesse
metade de sua vida naquele mundo maior no qual acreditava tão firmemente. Esta última imagem calou fundo
na mente de Husserl.
Este tributo de um grande pensador a outro revela o
grau de influência exercido por Brentano sobre Husserl.
A semelhança entre os dois é notável. O reconhecimento
de que Brentano foi uma influência determinante para
Husserl deve ser entendido literalmente, pois Husserl
compartilhou no mais alto grau a seriedade dos modos
suaves de Brentano, e também o desdém do humor e outras estratégias utilizadas pelo mestre em suas conferências que tanto o impressionaram. Outra grande característica entre ambos era a crença declarada de Husserl de
que tinha fundado a única filosofia válida. Ele também
nunca ficou parado e acreditava que seus avanços, mesmo nos últimos anos de sua vida, foram notáveis e profundos. O espírito de “escola”, no qual os discípulos do
mestre seriam treinados mais tarde, foi ilustrado também
No original, Philosophie der Arithmetik. Psychologische und logische
Untersuchungen, publicado em 1891 (N.do E.).
10
238
no movimento fenomenológico, embora, para ser sincero,
o método cuidadosamente elaborado por Husserl colocou-o acima dos confinamentos de uma escola no sentido comum do termo. O retrato de Brentano é estranhamente
familiar àqueles que conheceram Husserl pessoalmente; ao descrever seu professor, Husserl se auto revelou.
3. O Julgamento Final de Brentano, por Husserl
Brentanto é mais conhecido por sua obra Psychologie
vom empirischen Standpunkt11 (1874). As publicações recentes de seus trabalhos, feitas por Kraus e Kastil12, tem
esclarecido melhor as razões da influência extraordinária exercida sobre Husserl por Brentano. Husserl estava
em débito com Brentano, pelo seu interesse no conceito de intencionalidade e pela investigação descritiva da
percepção interna, e sem dúvida, aprendeu a se tornar
um investigador filosófico ao ser exposto a exemplos concretos de análise descritiva e a como reconhecer problemas. Era inevitável que seu desenvolvimento acontecesse de forma paralela e se sobrepusesse a alguns esforços
de Brentano. Embora também fosse fácil para Husserl se
livrar da quantidade de dívidas com Brentano, deve ser
dito que o estudo dos principais elementos do pensamento do mestre é indispensável para a compreensão genética da fenomenologia.
A crítica de Brentano sobre o trabalho de Husserl alguns anos depois da publicação das Investigações Lógicas
foi disponibilizada através da publicação de duas cartas escritas para Husserl em 190513, nas quais expressou
suas objeções e receios em relação ao trabalho de Husserl.
Brentano concordava com as críticas ao psicologismo, o
qual considerava essencialmente Protagoreano, isto é,
perspectiva na qual o homem é a medida de todas as coisas. Enquanto admitia que o empreendimento de Husserl
com a lógica pura não era suficientemente claro para ele
[Brentano], julgava impossível congregar todas as verdades, caminhando intuitivamente do nível dos conceitos
para uma ciência teórica da lógica; e ele não estava disposto a aprovar os esforços para delimitar uma ciência
teórica das verdades que excluísse quaisquer dados empíricos. Os comentários de Brentano, embora interessantes
em si mesmos, indicavam uma interpretação completamente equivocada do objetivo e do trabalho de Husserl.
Na opinião do editor, professor O. Kraus, Husserl
falhou ao responder os “argumentos conclusivos” de
Brentano, enquanto a esperança do mestre de afastá-lo
dos erros era completamente ilusória. Kraus estava particularmente interessado em enfraquecer a reivindicação
Psicologia do Ponto de Vista Empírico, inédita em português (N. do E.).
Brentanos Gesammelte Philosophiche Schriften, editada por O. Kraus
e A. Kastil, Leipzig, 1922-1980, 10 volumes.
13
Cf. Brentano, Wahrheit und Evidenz, editado por O. Kraus, Leipzig,
1930. As cartas encontram-se no apêndice sob o título de: “Sobre a
Generalização da Verdade e o Erro Fundamental da então chamada
Fenomenologia”.
11
de Husserl pela originalidade de seu trabalho. Desafiando
a crença de que a refutação do psicologismo foi devido
às Investigações Lógicas, Kraus referiu-se a evidências no
artigo de Brentano, que teria incorporado no texto do volume sobre Verdade e Evidência14. Brentano também se
opôs à concepção de evidência como sentimento, um aspecto antipsicologista que tinha sido creditado a Husserl.
Através de alguns trechos da obra de Brentano, The Origin
of the Knowledge of Right and Wrong (Ursprung sittlicher
Erkenntnis, 1889), Kraus tentou estabelecer a prioridade
deste na oposição ao psicologismo. Os objetos ideais de
Husserl e os “objetivos” de Meinong foram rastreados por
ele na introdução de Brentano sobre as pressuposições dos
“fatos” irreais (Sachverhalte, existentes e não existentes).
Tudo isso prova que Brentano fora um pensador estimulante, que deu início a diversas ideias desenvolvidas
posteriormente por alunos muito talentosos. É possível
rastrear numerosas ideias da fenomenologia inspiradas
nas sugestões dadas pelo pensamento de Brentano, mas
seria um absurdo superestimar esse débito ao ponto de
exigir a reivindicação de prioridade. Partindo da perspectiva de Kraus, a ideia de fatos irreais dificilmente é creditada a Brentano, visto que este afirmava que somente
as coisas concretas, realia, ou as essências reais podem
ser pensadas, enquanto as irrealia como o ser, o não-ser,
fato e verdade são meras ficções.
Nas Investigações Lógicas, Husserl chamou atenção
para os defeitos na teoria do conhecimento de Brentano
enfatizando a ambiguidade de expressões como “em consciência” e “imanente na consciência”15. Não há dúvidas
sobre seu débito para com Brentano pelo conceito de intencionalidade e pelo campo da análise descritiva que se
desvelou a partir disso, mas era de Husserl a crença de
que, apesar disso, Brentano falhou ao buscar sua real natureza e colocá-la para uso filosófico. Como Husserl fez
essa afirmação somente nos seus últimos anos de vida,
já era tarde para que pudesse caracterizar corretamente,
e de forma cuidadosa, a radicalidade dos novos tipos de
problemas que advinham da intencionalidade, descobertos nas Investigações Lógicas, no seu significado universal
para uma psicologia genuína e uma filosofia transcendental. Husserl tinha finalmente alcançado a compreensão
do que Brentano buscava: uma psicologia dos fenômenos
da consciência (experiências intencionais) da qual não
tinha noção sobre o significado real, nem tampouco do
método que deveria utilizar para sua realização.
As críticas de Kraus não impressionaram e nem detiveram Husserl. Voltando o olhar para o início de seus
estudos, a partir da perspectiva de sua maturidade, e
em meio a um profundo sentimento de decepção difícil de entender, Husserl vangloriou-se de seu vínculo
com Brentano por anos, acreditando ser um colaborador
12
239
Aqui refere-se o autor à obra brentaniana Wahrheit und Evidenz,
Hamburg, Felix Meiner, 1930 (N. do E.).
15
Logische Untersuchungen, vol. II, parte 1, p. 375. Cf. L.Landgrebe,
“Husserls Phänomenologie und die Motive zu ihrer Umbildung”,
Revue Internationale de Philosophie, I, 2 (1939), pp. 280 ff.
14
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012
TextosClássicos
Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)
Marvin Farber
de sua filosofia, especialmente de sua psicologia. Mas,
como Husserl observou em seu primeiro trabalho (a tese
de 1887, parte dela desenvolvida em sua Filosofia da
Aritmética), todo o seu modo de pensar era inteiramente diferente daquele de Brentano. Formalmente falando,
Brentano buscava uma psicologia cujo tema fossem “os
fenômenos psíquicos” os quais, entre outras coisas, eram
definidos como consciência “de” alguma coisa. Mesmo
assim, sua psicologia não era nada além de uma ciência
da intencionalidade; os problemas reais da intencionalidade nunca foram revelados para ele; Brentano sequer
notou que nenhuma experiência dada de consciência
deve ser descrita sem a afirmação do objeto intencional
pertinente “como tal” (ex.: a percepção dessa mesa somente deve ser descrita, de modo exato, se eu a descrever como tal e tal como é percebida). Ademais ele não
fazia ideia sobre implicação intencional, modificações
intencionais, problemas de evidência ou de constituição, etc. Embora Brentano tenha se empenhado para ir
além do Neo-escolasticismo, ele não foi bem sucedido;
seus escritos de idade avançada foram tidos por Husserl
como um “escolasticismo destilado”. Não era possível
que Husserl pudesse “emprestar” ideias de uma fonte
na qual não estavam presentes. Numa resposta simples
a um Brentanista radical como Kraus, é possível aceitar
como verdadeira cada reivindicação significativa às prioridades de Brentano sem diminuir a estatura de Husserl.
Uma controvérsia infeliz seria assim reduzida a sua própria insignificância.
TextosClássicos
4. O Desenvolvimento de Husserl
A preparação inicial de Husserl incluiu as matemáticas e a psicologia. Sua tese de doutorado foi em matemática e seus estudos sob a tutela de Weierstrass conferiram-lhe uma base sólida para seus trabalhos posteriores com a
lógica. Em psicologia, interessou-se preliminarmente por
uma investigação puramente descritiva ou “empírica” no
sentido de Brentano. A fusão dessas duas áreas aparentemente diversas determinou o cenário de sua carreira.
As principais mudanças no seu percurso são explicadas,
em grande parte, pelas dificuldades encontradas na tentativa de integrar esses dois elementos. Seus sentimentos mais íntimos de incerteza, muitas vezes de proporções lastimosas, refletiram o conflito existente entre um
ponto de vista formal, “realista”, segundo o qual todas
as proposições lógicas são determinadas em si mesmas,
e o método psicologista, que considerava formas lógicas
e princípios por meio do processo da experiência. Pouco
tempo antes de sua morte, Husserl comentou ter passado
por um período de abatimento, semelhante às experiências vividas periodicamente nos primeiros anos de sua
vida, durante os quais foi incapaz de desenvolver qualquer estudo. Tais períodos foram seguidos por pesquisas
e produtividade intensas.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012
É possível distinguir diferentes períodos no desenvolvimento do pensamento de Husserl no que diz respeito a determinar elementos nos primeiros estágios do
seu treinamento. De modo geral, referem-se ao período
do psicologismo, da simples fenomenologia descritiva
(fenomenologia num sentido estrito) e a fenomenologia transcendental16. Do ponto de vista desta última,
a fenomenologia transcendental, os dois primeiros
são simplesmente estágios do processo em direção a
um reino da filosofia, acessível somente através da redução fenomenológica. Sendo assim, as Investigações
Lógicas foram caracterizadas como um trabalho de
“Durchbruch”17 por Husserl. Por essa razão, pode-se
dizer que os dois maiores períodos de sua carreira seriam o pré-transcendental e a filosofia transcendental.
O grande progresso registrado nas Investigações Lógicas
foi reconhecido logo após a publicação daquele trabalho, quando Husserl afirmou ser a fenomenologia uma
disciplina autônoma. Estando plenamente consciente
do progresso significativo que tinha feito, Husserl estava apto para conceber o passo seguinte a ser dado – a
redução fenomenológica – que, sozinha, podia oferecer
técnica apropriada para uma análise descritiva reflexiva exigida para fins de uma teoria do conhecimento e
da filosofia de um modo geral.
O próprio Husserl acreditava que o seu desenvolvimento mostrava uma consistência interna apesar da
ocorrência de mudanças provocadas pelas épocas, o que
gerou muita dificuldade para seus seguidores em vários
momentos. Aqueles que falharam ao alcançar ou endossar
essas mudanças falharam ao participar desse “desenvolvimento”. As mudanças ocorridas relembram a filosofia
de Schelling. A diferença entre os estágios iniciais e finais é surpreendente, mas mesmo assim Husserl ressaltou a unidade fundamental na sua carreira. O período
inicial viu o talento e experiência de um jovem teórico
com uma predileção para os problemas mais elementares. A extensão do seu psicologismo pode ser questionada, embora tenha de fato defendido a tese psicologista
em relação aos conceitos fundamentais da matemática e
da lógica. Mas em lógica Husserl sabia muito bem como
aplicar o método formal, como se observa no artigo sobre “Calculus of Inference” (1891). Embora tenha reagido
contra sua posição inicial e mudado contínua e periodicamente, os resultados importantes de cada estágio fo E.Fink, na sua introdução à obra, até agora, não publicada de Husserl, “Entwurf einer ‘Vorrede’ zu den ‘Logischen Untersuchungen’”
(1913), Uit Tijdschrift Voor Philosophie, I, 1 (1939), p. 107. Fink divide
o desenvolvimento da fenomenologia de Husserl – tomada externamente – em três fases, correspondendo aproximadamente aos
períodos em que Husserl lecionou em Halle, Göttingen, e Freiburg.
De acordo com Fink, as Investigações Lógicas e as Ideias são os
trabalhos centrais dos dois primeiros períodos. Essa classificação
é útil para ressaltar as tendências de cada período em direção às
conquistas de um nível de análise mais geral e profundo. Olhando
para trás, é possível discernir a unidade interna de cada fase.
17
Durchbruch é “rompimento”, “ruptura”, referindo-se ao momento
no qual se coloca sua publicação (Nota do Editor).
16
240
ram sempre retomados nos trabalhos subsequentes. Pode
até ser que a perspectiva do seu desenvolvimento seja
distorcida, de alguma maneira, pela ênfase dada sobre a
questão do psicologismo ao ponto em que se subestime
o elemento da continuidade. Deve-se notar, por exemplo,
que as Investigações Lógicas utilizaram os “Psychological
Studies of Elementary Logic”, pertencentes ao seu período inicial. Além disso, embora Frege tenha recebido
os créditos pela derrocada da Filosofia da Aritmética e
pelo fato de afastar Husserl de sua posição inicial, esse
vínculo não pode ser sustentado pelos fatos. Frege foi de
fato bem sucedido ao apontar as inadequações naquele
trabalho, mas ele não provocou o seu descrédito; e o fato
de a confiança de Husserl em seu trabalho não ter sido
necessariamente abalada, pode ser comprovada pelas
referências constantes a ele em escritos posteriores. De
fato, um estudo pontual sobre a Filosofia da Aritmética
ressalta alguns dos interesses descritivos fundamentais
de Husserl e apresenta, de maneira simples, tipos de problemas, revelados por algumas das suas últimas técnicas
descritivas mais desenvolvidas, nas suas próprias complexidades. Quando se lê toda a obra de Husserl consecutivamente, fica-se impressionado pela continuidade do
seu desenvolvimento. Mas seria absurdo negligenciar as
grandes mudanças na sua perspectiva (assim, por exemplo, a “redução fenomenológica” foi apresentada somente
em 1913, na obra Ideias18, embora tenha sido elaborada
e formulada alguns anos antes), ou rebaixar suas repetidas afirmações referentes às importantes mudanças nas
suas opiniões.
Husserl teceu os seguintes comentários sobre seu período inicial: “Com respeito à conexão interna de todos
os meus escritos, e consequentemente em relação ao meu
desenvolvimento interno, a nova edição do Philosophen
Lexikon trará a explicação correta, sob o meu nome, no
caso do material preparado pelo Dr. Fink ser aceito sem
alterações. ‘Influências’ externas não têm relevância.
Como um teórico iniciante eu naturalmente leio muito,
incluindo clássicos e literatura contemporânea das décadas de 1870 a 1890. Gostei muito do ponto de vista cético-crítico, visto que eu mesmo não vislumbrei nenhuma base sólida em momento algum. Sempre me vi longe
do idealismo Alemão e Kantiano. Somente Natorp me
interessou, mais por razões pessoais, por isso li toda a
primeira edição da sua obra Introduction to Psychology19,
mas não fiz o mesmo com a segunda edição. Li com entusiasmo (especialmente como aluno) a obra de Stuart Mill,
Logic, e posteriormente a obra filosófica de Hamilton.
Tenho continuamente estudado os empiristas ingleses e
as principais obras de Leibniz (ed. por J. E. Erdmann), es Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen
Philosophie, publicado em 1913, no Jahrbuch für Philosophie und
phänomenologische Forschung, Halle. A primeira parte desta obra
possui traduções para o português (N. do E.).
19
Einleitung in die Psychologie nach kritischer Methode (“Introdução à
Psicologia de acordo com o Método Crítico”), publicado em Freiburg,
1888 (N. do E.).
18
241
pecialmente seus escritos matemático-filosóficos. Vim a
conhecer Schuppe somente após as Investigações Lógicas
(1900-1901), quando ele já não podia me oferecer nada de
novo. Nunca estudei Rehmke seriamente. De fato, meu
curso foi pontuado pela Filosofia da Aritmética (1891) e
não pude fazer nada a não ser continuar a avançar”. Esta
declaração não é de forma alguma completa, entretanto. Husserl frequentemente falava de James, cuja obra
Principles of Psychology tinha um valor inestimável para
ele. Lotze e Bolzano também tiveram grande importância
para Husserl. Sua gratidão para Lotze foi por sua interpretação da teoria das ideias de Platão, a qual determinou todos os seus estudos posteriores. Também foi grato
a Bolzano pela obra Wissenschaftslehre, que lhe rendeu
o primeiro rascunho da “lógica pura” num momento bastante crítico do seu desenvolvimento. Além disso, nenhuma explicação sobre suas relações intelectuais deve
omitir Twardowski, Marty e outros Brentanistas, além
de Avenarius e Dilthey.
Olhando para seu desenvolvimento próximo de seus
últimos dias de vida20, Husserl enfatizou a importância do “modo de procedimento correlativo” ilustrado
nas Investigações Lógicas. Isso ele rastreou na Filosofia
da Aritmética, com sua “duplicidade peculiar de análises psicológicas e lógicas”, que agora eram vistas como
tendo íntima relação. A unidade dos Prolegomena e das
seis investigações, esquecidas pelos críticos contemporâneos, resultou da realização da natureza correlativa
da análise descritiva. Primeiramente, foi necessário defender a objetividade das estruturas lógicas contra todos os esforços subjetivistas, antes de proceder à preparação epistemológica da ciência da lógica pura. Embora
grandes avanços sobre a Filosofia da Aritmética tenham
sido alcançados, a análise da consciência foi principalmente “noética”, o que significa que estava muito mais
preocupada com a vivência do que com os estratos de
sentidos “noemáticos” pertencentes a cada experiência.
A necessidade e técnica para uma análise profunda dos
dois lados da consciência foi feita, pela primeira vez de
forma clara, nas Idéias.
A “fenomenologia” representada nas Investigações
Lógicas utiliza somente a intuição imanente, sem ir além
da esfera da auto-doação intuitiva. Este é o significado
do preceito “voltar às coisas mesmas”; em outras palavras, um apelo à própria doação intuitiva. O segundo
volume da obra ilustra esse princípio metodológico por
meio de uma extensa análise concreta. Todos os insights
dessa obra são insigths apodíticos por essência. O reino
das ideias que é assim revelado é finalmente referido de
volta à subjetividade da consciência, entendida como “o
campo primeiro de todo a priori”. De importância determinante na investigação universal da consciência é
a percepção de que a esfera imanente é governado por
leis essenciais.
20
Cf. Philosophen Lexikon, by E. Hauer, W. Ziegenfuss, and G. Jung,
Berlin, 1937, pp. 447ff.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012
TextosClássicos
Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)
Marvin Farber
Até pode ser que nenhuma posição anteriormente
sustentada estivesse completamente errada, tanto que
os resultados “corretos” de suas investigações sempre
encontraram seu lugar em cada período sucessivo. A explicação genética do pensamento de Husserl é, portanto,
o melhor caminho para explicar o papel das várias divisões e aspectos de sua filosofia. Durante toda sua vida
intelectual, os principais estímulos de sua filosofia podem ser verificados, até sua última fase, quando foi sustentado que somente o meio “difícil” da redução fenomenológica, agora intrinsecamente elaborado, poderia
revelar as bases “desmotivadas” e não condicionadas de
toda filosofia e ciência.
Tendo em mente o elemento da continuidade, é útil
distinguir diversos grupos de escritos, que irão descrever
de modo mais exato os três maiores períodos já mencionados. A organização não é inteiramente cronológica, a
fim de distinguir os escritos psicológico-epistemológicos do formal. O conteúdo e o método desses trabalhos
estão em questão nesta classificação. Assim, embora
Erfahrung und Urteil resulte de um período anterior, conforme mencionado por Landgrebe, também deriva de um
período posterior, em questão. Por essa razão, pertence
aos últimos escritos lógicos. (1) Temos a obra resultante
do primeiro período de seu treinamento matemático, a
dissertação sobre o cálculo das variações, “Beiträge zur
Variationsrechnung”21. (2) O esforço de estabelecer uma
fundação psicológica para a lógica e a matemática podem
ser entendidas como estágios distintos no início da década de 1890, embora sejam paralelas às investigações
de natureza estritamente lógica. Os estudos de Husserl,
de 1886 a 1895, focaram preliminarmente no campo da
matemática e da lógica formal. Este foi o período dedicado ao psicologismo como uma posição metodológica.
Husserl acreditava que a filosofia da matemática estava
relacionada com a origem psicológica dos conceitos fundamentais da matemática. Ao longo da obra Filosofia da
Aritmética, Husserl dedicou atenção ao que chamou de
fatores “quase-qualitativos” ou “figurativos” chamados
de “qualidades da Gestalt” por von Ehrenfels22. (3) As
Investigações Lógicas consistem nos resultados mais significativos dos esforços intelectuais de Husserl nos anos
1890. Suas várias partes foram escritas em épocas diferentes e, portanto, tiveram que ser revisadas por inteiro
Cp. Illemann, Husserls vor-phänomenologische Philosophie, p. 70.
Illemann está correto ao ressaltar os três períodos em matemática
pura, pré-fenomenologia e pura ou “fenomenologia da epoche”
[“epochistic” phenomenology], embora fizesse mais sentido manter
a própria terminologia de Husserl ao falar de fenomenologia em
dois sentidos – o descritivo simples e o transcendental. Illemann
comete o erro de apresentar o criticismo, do ponto de vista da escola
de Driesch-Schingnitz, enquanto ao mesmo tempo reconhece a
incompletude dos períodos anteriores. Cf. revisão de Becker sobre
o livro de Illemann na Deutsche Literaturzeitung, Feb. 4, 1934, no
qual Becker sugere o título de “fenomenologia perspectivista” para
o quarto período.
22
Refere-se à Gestaltquälitat ou “qualidade da forma”, proposta por
Christian von Ehrenfels (N. do E.).
TextosClássicos
21
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012
a fim de dar a elas uma certa coerência. A parte crítica do primeiro volume, que tem sido mais amplamente
lida, consiste de uma crítica e repúdio ao psicologismo,
já apresentada em seus cursos no ano de 1895. O último capítulo deste volume, sobre “A Ideia de uma Lógica
Pura” foi adicionado posteriormente; este resultou dos
estudos matemático-lógicos precedentes conduzidos por
Husserl, interrompidos depois de 1894, mas que avançaram na ideia de uma ontologia formal. É importante
observar que as Investigações Lógicas registram um distintivo avanço na compreensão da ciência formal, bem
como um marco no desenvolvimento de uma teoria do
conhecimento, assunto que predomina em seu trabalho.
Nesta, a fenomenologia é caracterizada como uma psicologia descritiva estruturada para oferecer os esclarecimentos das ideias de base do pensamento formal. Isto
foi especialmente infeliz na medida em que foi um fator
impeditivo para o correto entendimento das investigações. Entretanto, ficou evidente ao leitor cuidadoso que
tais esclarecimentos apresentavam análises essenciais.
Na correção subsequente a esse erro, Husserl enfatizou
o fato de que toda apercepção psicológica é excluída, de
que experiências pertencentes a seres pensantes reais
não estão em questão. Em outras palavras, a “psicologia
descritiva” não foi feita para ser entendida no seu sentido
comum, mas como foi claramente apontado na primeira
edição da sua obra, o método de investigação foi concebido para ser livre de todos os pressupostos da psicologia e da metafísica. (4) Os escritos publicados após a primeira edição das Investigações Lógicas e até a publicação
das Ideias em 1913 podem ser incluídos em um grupo,
abrangendo todos os escritos conhecidos até a primeira
formulação publicada sobre a redução fenomenológica.
A segunda obra “Logical Survey” (uma discussão crítica
das publicações alemãs sobre lógica no final do século)
continha um grande material pertencente ao período
precedente, além da correção da concepção de fenomenologia como uma psicologia descritiva. As Lectures on
the Consciousness of Inner Time (1905-1910)23 e o ensaio
publicado na revista Logos, “Philosophy as a Rigorous
Science” (1910)24 ilustram, respectivamente, a natureza
da descrição fenomenológica e o ideal programático da
fenomenologia como a mais rigorosa de todas as ciências.
Nesse período, a função esclarecedora da fenomenologia
é atribuída a uma disciplina autônoma que serve de prelúdio para todo o tipo de conhecimento. Embora a análise
Vorlesungen zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins, ou as
“Lições para uma Fenomenologia da Consciência Interna do Tempo”,
cursos proferidos por Husserl entre 1905-1907, e compilados inicialmente por Edith Stein. Foram publicadas pela primeira vez em 1928,
sob organização de Martin Heidegger, no Jahrbuch für Philosophie
und phänomenologische Forschung, 9. Halle a.d.S: Max Niemeyer,
1928, 367-498. Em 1966, tem nova edição, por Rudolf Boehm, e sua
publicação em 1969, nas Husserliana 10. A edição para o português
foi traduzida por Pedro Alves, da Universidade de Lisboa (N. do E.).
24
Philosophie als strenge Wissenschaft, publicado na revista Logos 1.
Tübingen. (1910-11), 289-341. A tradução portuguesa data de 1965,
como A Filosofia como Ciência de Rigor (N. do. E.).
23
242
Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)
No orginal, “epochistic”. Optamos por manter a palavra original
epoche, utilizada na fenomenologia, para não criar outro neologismo
(N.d. E.).
26
Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge, publicados nas
Husserliana 1, sob edição de S.Strasser. Referem-se às conferências
de Husserl em Paris (entre 23 e 24 de fevereiro de 1929), a convite
do “Institut d’Études Germaniques” e da “Societé Française de
Philosphie”, na Sorbonne. Em português esses textos foram traduzidos em dois volumes distintos: Conferências de Paris e Meditações
Cartesianas (N. do E.).
25
243
trata do problema da vivência de outras mentes através
da empatia e introduz o conceito de intersubjetividade
transcendental, necessária para uma completa fenomenologia constitutiva. (6) Embora venham sob o título
apropriado de fenomenologia transcendental, é desejável
listar os últimos escritos lógicos separadamente. A obra
Formal and Transcendental Logic (1929)27 é importante
não somente em vista de sua notável excelência como um
clássico da lógica, mas também porque é o ponto culminante das linhas de desenvolvimento da fenomenologia
lógica e transcendental. O termo “perspectivista” chama
atenção para o esforço de uma síntese dos dois campos
de interesse tradicionalmente divergentes com os quais
a atividade filosófica de Husserl começou, ou seja, sua
proposição-problema original, a qual envolvia a psicologia e a epistemologia bem como o pensamento formal.
A análise detalhada desse trabalho permite ao leitor julgar o sucesso daquela síntese. Incluso nisto está uma reinterpretação e avaliação das Investigações Lógicas como
um nível avançado da fenomenologia transcendental.
A preparação e a publicação dos últimos estudos lógicos de Husserl, chamados de Experience and Judgment
(1939)28, finalmente permite a compreensão da base fenomenológica da lógica. Husserl apresenta grande parte do material necessário para a análise da experiência,
acrescentando mais argumentos para suas investigações
e resultados já alcançados. Isso se aplica particularmente
à análise da “experiência pré-predicativa” e à “análise de
origens” dos conceitos e lógicas da forma29. Assim como
a Formal and Transcendental Logic, este é um trabalho
de grande importância para a lógica, para a teoria do
conhecimento e para a psicologia. É importante lembrar
que a oposição de Husserl ao psicologismo jamais impli No original, Formale and transzendentale Logik: Versuch einer Kritik
der logischen Vernunft (N. do Ed.).
28
No original, Erfahrung und Urteil. Untersuchungen zur Genealogie
der Logik, organizado por Ludwig Landgrebe e publicado logo
após o falecimento de Husserl. Permanece inédito em português
(N. do E.).
29
Cf. Erfahrung und Urteil, §§ 5, 11, e 12 para o significado do conceito
de “origem” ou de “gênese” como concebido pelo método fenomenológico. A afirmação “genética” de Husserl sobre os problemas da
origem, como relacionados à lógica, não é psicológica no sentido
comum. O termo “genético” refere-se à produção pelo qual surge o
conhecimento na sua “forma originária” de auto-doação, um processo que repetidamente requer uma mesma forma de cognição. O
processo factual, histórico, dos significados que surgem a partir de
uma subjetividade definidamente histórica não está em questão.
Nosso mundo se torna um exemplo para nós por meio dos quais
estudamos a estrutura e a origem de um mundo possível em geral.
O esclarecimento da origem do julgamento predicativo é uma tarefa
fundamental para a genealogia da lógica num sentido transcendental. O objetivo é investigar as contribuições do conhecimento para
a construção do mundo. A fim de se ater às experiências últimas
e originais, é necessário voltar às unidades simples e considerar
o mundo como um mundo puramente perceptivo, de abstrações
de tudo o que é existente. Desse modo, o reino da natureza como
percebido por mim é alcançado primeiramente. Assim, podemos
chegar à construção das pedras mais primitivas da contribuição
lógica, da qual o nosso mundo é construído. A linha sistemática
das interrogações “transcendentais” desses estudos lógicos ilustra
tais “análises de origem”.
27
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012
TextosClássicos
descritiva da consciência do tempo inclua elementos de
um caráter genético e constitutivo, e expanda o campo
de análise, a redução de todo o conhecimento à consciência pura não é definida sistematicamente tanto na obra
quanto no ensaio de Logos. A fenomenologia é agora, em
resumo, uma região autônoma de investigação livre de
toda pressuposição da psicologia, mantendo a exigência
de uma filosofia livre de pressuposições. (5) As Ideias
inauguram o período da fenomenologia transcendental,
e o método da redução fenomenológica se torna o caminho para a filosofia. Este trabalho fornece a apresentação sistemática da nova fenomenologia. Neste contexto,
o fenomenológico é distinguido da “atitude” natural. Esta
pressupõe a existência do mundo, em conjunto com outras pressuposições normalmente feitas. A atitude fenomenológica exige a suspensão de todas as pressuposições.
A existência do mundo e de tudo que é “posto”, é colocada
“entre parênteses”. Os fenômenos que permanecem são
o assunto principal da fenomenologia, definida como a
ciência da consciência pura transcendental. A discussão
sobre noesis e noema é particularmente importante para
trazer à luz algumas estruturas fundamentais da experiência e também por indicar um campo frutífero para
pesquisas. A “redução” abre um campo universal para a
investigação filosófica livre de quaisquer prejulgamentos
e pressuposições, em razão da sua importância metodológica crucial. Husserl é cuidadoso ao distinguir a redução
eidética (procedente do fato para a essência) da redução
transcendental, de acordo com a qual os fenômenos são
caracterizados como sendo “irreais” e não são ordenados
no “mundo atual”. O método da redução fenomenológica
é aplicado a fim de alcançar o campo filosófico livre de
pressuposições na consciência de um ego individual para
começar, que envolve a suspensão de todas as crenças nas
realidades transcendentes. A fenomenologia tornava-se
agora a ciência mais fundamental e a base absoluta de
todo o conhecimento. O objetivo de Husserl ao trazer as
Investigações Lógicas até o nível das Ideias numa edição
revisada (1913-1921) não foi concretizada plenamente,
embora algumas partes dela tenham sido radicalmente alteradas em conformidade com uma clareza maior
que ele tinha desenvolvido. O termo “epoché”25 nomeia
apropriadamente esse período. Não existe necessidade
de ambiguidade no uso desse termo. Outros significados de “epoché” além daqueles das Idéias devem ser colocados explicitamente. Isso significa o caminho para a
esfera transcendental e sua elaboração mais detalhada é
oferecida pelas Meditações Cartesianas26. Este trabalho
TextosClássicos
Marvin Farber
cou uma oposição à psicologia. Ao contrário, não menos
importantes de suas contribuições foram feitas no campo da psicologia. (7) As últimas publicações a aparecer,
uma antes de sua morte e outra póstuma, revelam seu
interesse em expandir o método fenomenológico para um
escopo ainda maior do que tinha sido alcançado, para
incluir referência à história da ciência e da filosofia, e
para dar conta do problema da história confrontando esse
método por meios do conceito de “história intencional”.
Os sete grupos listados acima abrangem as seguintes publicações: (1) Matemática. Tese de doutorado,
“Beiträge zur Variationsrechnung” que não foi publicada. (2) Psicologismo. Filosofia da Aritmética (1891),
somente o volume I foi publicado; “Psychologische
Studien zur elementaren Logik” (1894). A tese de habilitação submetida à Universidade de Halle para fins
de qualificação docente, “Ueber den Begriff der Zahl”
(1887) foi impressa, mas não colocada à venda. Foi incorporada na Filosofia da Aritmética. (3) Formal Logic
and Phenomenology as Descriptive Psychology. Revisão
do trabalho de Schröder intitulado “Vorlesungen über
die Algebra der Logik” (1891); “Der Folgerungscalcül
und die Inhaltslogik” (1891); controvérsia com Voigt
(1893); a primeira pesquisa lógica, “Bericht über deutsche Schriften zur Logik aus dem Jahre 1894” (1897);
Logische Untersuchungen, primeira edição (1900-1901).
(4) Fenomenologia Pré-Transcendental. Segunda pesquisa
lógica, “Bericht über deutsche Schriften zur Logik in den
Jahren 1895-99” (1903-1904); revisão da obra de Palagyi
Der Streit der Psychologisten und Formalisten in der modernen Logik (1903); conferências sobre consciência do
tempo, Vorlesungen zur Phänomenologie des inneren
Zeitbewusstseins (publicadas em 1928, mas escritas entre
1905-1910); o ensaio publicado na revista Logos sobre a
filosofia como ciência rigorosa, “Philosophie als strenge
Wissenschaft” (1910). (5) Fenomenologia Transcendental.
A edição revisada das Logische Untersuchungen, juntamente com o prefácio recentemente publicado de
1913, no qual Husserl responde aos críticos (19131921); Ideen zu einer reinen Phänomenologie (1913); o
prefácio do autor à tradução para o inglês das “Ideen”
(1931); o artigo sobre fenomenologia na Encyclopaedia
Britannica, 14ª edição (1929); Méditations Cartésiennes
(1931); o ensaio de Fink nos Kant-Studien, “Die phänomenologische Philosophie Edmund Husserls in der
gegenwärtigen Kritik”, no qual Husserl endossava ao
expressar suas próprias opiniões (1933). (6) Síntese
da Logica Formal e da Fenomenologia Transcendental.
Formale und Transzendentale Logik (1929); Erfahrung
und Urteil (1939). Husserl afirmou que ele mesmo se
deparou com dificuldades antigas, mas que esse foi
sem dúvida seu trabalho mais maduro, à parte a quinta
edição das Meditações Cartesianas. (7) Fenomenologia
e História. Na época de seu falecimento ele estava trabalhando em seu último livro, “A Crise das Ciências
Européias e a Filosofia: Uma Introdução à Fenomenologia
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012
Transcendental”; a parte introdutória desse texto foi
publicada no primeiro volume de Philosophia (1936)30.
Este trabalho foi estruturado para apresentar ao aluno
as “dimensões radicalmente novas do conhecimento”
da fenomenologia transcendental. O manuscrito sobre a
origem da geometria, “Die Frage nach dem Ursprung der
Geometrie als intentional-historisches Problem”, foi publicado por Fink na Revue Internationale de Philosophie
(1939). Os vestígios literários de Husserl incluem uma
grande quantidade de material descritivo sobre fenomenologia constitutiva e revela seus muitos interesses no
campo da filosofia como um todo.
5. Rumo ao Futuro
Husserl acreditava que estivesse fazendo grandes progressos até o final, e que tinha finalmente alcançado a
clareza completa sobre a compreensão. Rebaixado pela
Alemanha oficial e ignorado por muitos dos renomados
teóricos “Arianos” na Alemanha, os quais tinha influenciado, Husserl encarou o futuro com um apelo para o julgamento da eternidade, com a percepção serena de quem
tinha alcançado muito do que é permanente. Ele escreveu: “E nós, velhas pessoas, permanecemos aqui. Uma
virada singular dos tempos: isso dá aos filósofos – se não
nos tirar o fôlego – muito para pensar. Mas agora: cogito
ergo sum, ou seja, submeto sub specie aeterni meu direito de viver. E isso, as aeternitas em geral, não podem ser
tocadas por nenhuma força terrestre”.
Para ser sincero, Husserl teve poucos “seguidores”
no final de sua vida, do ponto de vista da aceitação sem
reservas dos seus últimos esforços filosóficos. Mas seria
um erro restringir o número de representantes sinceros
da filosofia fenomenológica a uns poucos seguidores.
A alma do trabalho de Husserl era uma completude única; seus problemas tinham um horizonte sempre aberto.
Se alguns poucos estudantes de filosofia podiam manter seu progresso atualizado, isso era devido à escassez
de suas publicações em relação a sua produção completa. Mas não era só isso; deve-se se admitir que muitos
alunos de filosofia não dedicaram o tempo necessário
ao estudo da fenomenologia. Esta era plenamente compreendida por alguns poucos, embora fosse discutida
por muitos. Husserl não poderia se sentir sozinho nessas circunstâncias e isto foi acentuado pelo seu status
na nova Alemanha.
O período do alcance internacional de Husserl em
larga escala agora que começou, consoante o interesse
sistematicamente organizado de estudiosos do mundo
todo sobre o entendimento e desenvolvimento da sua filosofia. Husserl está destinado a ser objeto de discussão
por um bom tempo. Esta é a intenção dos membros da
International Phenomenological Society, de fazer feno30
“Die Krisis der europäischen Wissenchaften und die transzendentale
Phanomenologie”.
244
Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)
da filosofia em si mesma e em sua relação com outras
áreas de aprendizagem.
Marvin Farber (University of Buffalo)
Nota Biográfica
Marvin Farber (1901-1980) foi um filósofo americano (nascido em
Buffalo, New York). Graduado summa cum laude em Filosofia pela
Harvard University, estudou em Berlim, Freiburg e Heidelberg, entre
1922-1924, período em que entrou em contato com Husserl. Em 1925,
obteve seu Doutorado em Harvard com a tese Phenomenology as a
Method and as a Philosophical Discipline. Ao lado de Dorion Cairns foi
um dos pioneiros na introdução da Fenomenologia nos Estados Unidos.
Professor Emérito na Universidade de Buffalo, entre 1937-1961, fundou
– em 1940 – a revista Philosophy and Phenomenological Research, um
dos mais respeitados journals de sua área, sendo seu Editor até 1980.
Anteriormente, em 1939, fundou a International Phenomenological
Society. Publicou Phenomenology as a Method (1928), The Foundation
of Phenomenology (1940), Naturalism and Subjectivism (1959) e The
Search for an Alternative: Philosophical Perspectives of Subjectivism
and Marxism (1984, póstuma).
Tradução: Profa. Dra. Silvana Ayub Polchlopek
(Universidade Tecnológica Federal do Paraná)
Revisão Técnica: Adriano Furtado Holanda
(Universidade Federal do Paraná)
TextosClássicos
menologia efetivamente para progressos fenomenológicos futuros.
O método fenomenológico proíbe quaisquer prejulgamentos e dogmas. Seu ideal é a elaboração de uma
filosofia descritiva através de um método radical, procedendo com a maior liberdade possível das pressuposições. Essa é uma tendência científica na filosofia e
seu programa construtivo prevê resultados muito positivos. Assim, o método fenomenológico tem se mostrado de aplicabilidade, através de muitas pesquisas, em
diversas áreas do conhecimento como arte, matemáticas, direito, ciências sociais, psicologia e psiquiatria.
É certo que apenas o início foi feito. Por outro lado, a
adoção nominal e o uso inadequado do método fenomenológico já ilustraram os perigos de um misticismo, de
uma descrição unilateral e distorcida, do dogmatismo
e do agnosticismo. Um domínio crítico e competente
deveria manter o método livre de tais erros, oferecendo uma base para todos os estudiosos interessados no
programa construtivo da filosofia como ciência rigorosa. O novo periódico, Philosophy and Phenomenological
Research, está dedicado à promoção desse ideal. O trabalho de Edmund Husserl constitui seu ponto de partida. Olhando para o futuro, ele convida a uma participação ativa de todos os estudiosos capazes de contribuir
para a compreensão e desenvolvimento da fenomenologia no seu sentido clássico e com o futuro progresso
245
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012
Dissertações
e
Teses ...........
Pesquisa Fenomenológica na Justiça do Trabalho – Proposta de Conciliação Humanista (2010)
Título:
Pesquisa Fenomenológica na Justiça do Trabalho – Proposta de Conciliação Humanista
Autor:
Nayara Queiroz Mota de Sousa
Instituição:
Universidade Católica de Pernambuco
Programa:
Mestrado em Direito
Banca:
Sergio Torres Teixeira (Orientador)
Sandra Souza da Silva Chaves (UFPB) (Co-Orientadora)
Virginia Colares Soares Figueiredo Alves (Unicap)
Marcelo Labanca Correia de Araújo (Unicap)
Luciana Grassano de Gouveia Melo (UFPE)
Defesa:
17 de fevereiro de 2010
Resumo:
O Poder Judiciário exerceu uma grande influência na formação do Estado brasileiro,
o que ressaltou o papel da classe jurídica dentro da sociedade. Como juristas, os
magistrados tiveram uma grande influência na elaboração da estrutura e organização
estatal o que lhes renderam um enorme prestígio e poder dentro do meio social. Esta
característica associada à luta pela independência e profissionalização da categoria gerou
um distanciamento dos juízes com os cidadãos, sendo que a formação da magistratura
baseada no método cartesiano de fazer ciência, que não acompanhou as transformações
sociais trazidas pela modernidade, aprofundou ainda mais este afastamento, gerando
uma insatisfação com a atuação do Poder Judiciário, inclusive no ramo trabalhista.
O aumento da conflituosidade provocado pelas modificações implantadas no mundo
moderno exige respostas rápidas e efetivas do Poder Judiciário, como pacificador
social. Neste panorama, os meios de solução de conflitos devem ser privilegiados,
que além de desafogarem a máquina judiciária, resolvem a contenda no seio social.
A conciliação vem sendo estimulada como melhor e mais rápida solução para as ações
judiciais, portanto precisa ser aprimorada. A humanização da atuação jurisdicional se
apresenta como alternativa para aproximar o Poder Judiciário do cidadão e auxiliar na
missão de pacificação dos conflitos, pois promete o aperfeiçoamento da pessoa para
melhor conviver em sociedade, em um momento em que o isolamento e as contradições
parecem atingir o homem moderno. O presente trabalho objetivou identificar o sentido
da relação estabelecida em audiência entre o magistrado e as partes, através de uma
pesquisa fenomenológica existencial, utilizando como instrumento metodológico, a
versão de sentido, para a coleta de dados. Os resultados e discussão demonstram que
das falas dos magistrados e dos jurisdicionados emergiram eixos de significados que
revelam o sentimento de cada pesquisado, inclusive com tematizações específicas dos
Juízes; eixos que se comunicavam nas vivências dos reclamantes e dos reclamados e
outros que são peculiares a cada parte em específico. Analisando estas unidades de
significações se podem traçar conexões com a revisão da literatura que evidenciaram a
necessidade de aperfeiçoar a atividade jurisdicional e promoveram uma reflexão sobre
as posturas adotadas na atuação do Poder Judiciário Trabalhista da Paraíba. Concluise com a sugestão de uma nova perspectiva para humanizar a tentativa conciliatória,
adotando os fundamentos da Abordagem Centrada na Pessoa para qualificar este ato
jurisdicional e implantar dentro da Justiça do Trabalho uma conciliação humanista.
Palavras-chave:Conciliação Humanista. Justiça do Trabalho. Pesquisa Fenomenológica. Versão de
Sentido. Abordagem Centrada na Pessoa.
Abstract:
249
The Judiciary has exercised a great influence on the formation of the Brazilian state,
which emphasized the role of the judicial profession in society. As jurists, the judges
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 249-250, jul-dez, 2012
DissertaçõeseTeses
DISSERTAÇÕES E TESES
Nayara Q. M. Sousa
had a great influence in developing the structure and the state organization that
earned them enormous prestige and power within the social environment. This feature
associated with the struggle for independence and professionalism of the category
generated a distance of judges with the public, and training for the judges based on
the Cartesian method of doing science, which not accompanied the social changes
brought by modernity, has enlarged this distance, generating a dissatisfaction with the
performance of the Judiciary, including the labor sector. The increased conflictuality
that caused by the changes implemented in the modern world requires rapid and
effective responses of the judiciary, social as peacemaker. In this scenario, the means
of conflict resolution should be privileged, that beyond the Judiciary of relief, resolve
the dispute within society. Reconciliation has been promoted as the best and quickest
solution to the lawsuits, so they need to be improved. Humanizing is an alternative
approach to the judiciary of the citizen and helping in the mission of pacifying the
conflict, for it promises the improvement of the person to cope better in society, in a time
when the isolation and the contradictions seem to reach the modern man. This study
aimed to identify the direction of the relationship between the judge and the parties,
through an existential phenomenological research, using as a methodological tool, the
version of meaning, to collect data. Results and discussion show that the speech of
judges and parties of the axes of meanings emerged that reveal the feelings of each
search, including specific thematizations Judges; axes that are communicated in the
experiences of the parties and others axes which are peculiar to each part in particular.
Analyzing these units of meaning they can trace connections to the literature review,
highlighting the need to improve the judicial activity and promote a reflection on the
postures adopted in the Judiciary of the Paraiba. This Search concluded by suggesting a
new perspective to humanize the conciliatory attempt, taking the fundamentals of the
Person Centered Approach to qualify and deploy the conciliation within the Judiciary
proposing the conciliation a humanist.
Keywords:
Reconciliation Humanist. Judiciary. Phenomenological Research. Version of Sense.
Person Centered-Approach.
DissertaçõeseTeses
Texto completo: http://www.unicap.br/tede/tde_arquivos/4/TDE-2011-06-07T155431Z-395/Publico/
dissertacao_nayara_queiroz.pdf
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 249-250, jul-dez, 2012
250
“A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental” de Edmund Husserl: uma apresentação (2011)
Título:
“A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental” de Edmund
Husserl: uma apresentação
Autor:
Erico de Lima Azevedo
Instituição:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa:
Mestrado em Filosofia
Banca:
Mário Ariel González Porta (Orientador)
Defesa:
20 de maio de 2011
Resumo:
Este trabalho tem por objetivo apresentar uma das mais importantes e intricadas obras
do filósofo alemão Edmund Husserl: “A crise das ciências européias e a fenomenologia
transcendental”, de 1936. Trata-se de uma obra significativa no desenvolvimento
de Husserl por causa da elaboração do conceito de “mundo-da-vida” (Lebenswelt),
mas, além disso, o texto contém uma dimensão adicional, igualmente inovadora: é
a primeira publicação na qual Husserl toma expressamente uma posição sobre a
história e na qual trata o problema da historicidade da filosofia, empreendendo longas
análises “histórico-teleológicas”. Porém, antes de compreender porque é possível falar
de uma crise das ciências, porque, para Husserl, a lógica, a matemática e a física ainda
precisassem de um fundamento último, e, finalmente, porque, para ele, a filosofia
seja a ciência capaz de prover este fundamento, o primeiro passo é compreender a
sua noção de “ciência”. As análises histórico-teleológicas ocupam uma posição de
destaque na última grande obra de Husserl, correspondendo ao próximo passo “lógico”:
demonstrar “como”, historicamente, tenham-se construído os equívocos da filosofia
e da ciência. Husserl analisa a teleologia ínsita no percurso histórico da filosofia na
busca de um fundamento definitivo, o qual, não fora corretamente capturado pelas
duas principais posições da filosofia moderna: o objetivismo fisicalista e o subjetivismo
transcendental. Tal percurso conduz a filosofia à necessidade de uma tarefa específica,
que é a fenomenologia. Esta é chamada a realizar o empreendimento de uma análise
intencional da consciência constitutiva do mundo, a qual desvelará pela primeira vez
como tema filosófico o “mundo-davida”, o qual surge como fundamento de todas as
ciências: filosofia, lógica, matemática, ciências naturais etc. O trabalho faz então uma
revisão de parte da vasta literatura acerca da noção de “mundo-da-vida”, seguindo as
minuciosas considerações de alguns autores: segundo a perspectiva da evolução da
idéia de “mundo” na obra de Husserl, segundo a constituição intersubjetiva do mundo
e o relativismo histórico, mas também segundo a consideração do problema filosófico
do “mundo-da-vida” enquanto um universo de ser e de verdade, apresentando, por fim,
uma análise segundo a perspectiva da totalidade da vida intencional. No que se refere
ao problema das “vias” para a redução fenomenológica transcendental, que ocupa a
terceira parte da obra, analisamos apenas a via por meio da reconsideração do “mundoda-vida” já dado, deixando a via da “psicologia” para uma investigação futura.
Palavras-chave: Husserl. Mundo da Vida. Crise das Ciências. Fenomenologia Transcendental.
Abstract:
251
The present study aims to present one of the most important and difficult works of
the German philosopher Edmund Husserl “The crisis of European sciences and
transcendental phenomenology”, 1936. It is a significant work in Husserl’s development
because he evolves the concept of “life-world” (Lebenswelt), but, besides, the text also
reveals another novelty dimension: this is the first work in which Husserl takes expressly
a position about history and deals with the problem of historicity of philosophy,
doing long “historical-teleological” analysis. However, before understanding why it
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 251-252, jul-dez, 2012
DissertaçõeseTeses
DISSERTAÇÕES E TESES
Erico L. Azevedo
is possible to declare a “crisis of sciences”, why, for Husserl, logic, mathematics and
physics were still in need of a last grounding and, finally, why philosophy is the
science capable of providing such grounding, it is necessary to pay special attention to
his notion of science. The historical-teleological analysis play, indeed, an outstanding
role in the last great work of Husserl, corresponding to the next logic step: to show
“how”, historically, the mistakes of philosophy and science have been possible. Husserl
analyses the intrinsic teleology of the history of philosophy in the search for its own
grounding, which was not correctly captured by both of main positions of modern
philosophy: physicalistic objectivism and transcendental subjectivism. Such path
leads philosophy to the need of a specific task, which is phenomenology. This is called
to accomplish an authentic and consistent intentional analysis of the consciousness
that constitutes the world, revealing for the first time as a philosophical theme the
“life-world”, which appears then as the grounding soil for all sciences: philosophy,
logic, mathematics, natural sciences etc. The study then performs a revision of part of
the literature regarding the concept of “life-world”, following detailed considerations
of a few important critics: in the perspective of the evolution of the idea of “world”
in Husserl’s texts, in the perspective of intersubjective constitution of the world and
historical relativism, but also in the perspective of a “universum of being and truth”,
and finally, in the perspective of the totality of intentional life. Regarding the problems
of the “ways” into transcendental philosophy, corresponding to the third part of the
text, we have analysed in this study only the way by inquiring back from the pregiven
life-world, while the way from psychology was left for a future investigation
Keywords:
Husserl. Life-world. Crisis of sciences. Transcendental Phenomenology.
DissertaçõeseTeses
Texto completo: http://www.ontopsicologia.org.br//arquivos/download/a_crise_das_ciencias_eurpeias_
e_a_fenomenologia_transcendental_de_edmund_husserl__uma_apresentacao.pdf
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 251-252, jul-dez, 2012
252
Normas
para
Publicação ......
Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
Normas de Publicação da Revista
da Abordagem Gestáltica
1. Informações Gerais
Os manuscritos serão submetidos à apreciação do
Conselho Editorial para realização de parecer técnico
(em número mínimo de dois pareceres por proposta, ou
mais, quando necessário). A editoria da revista lançará
mão (caso necessário) de especialistas convidados – na
qualidade de consultores ad hoc – que poderão sugerir
modificações antes de sua publicação.
A editoração da Revista da Abordagem Gestáltica assegura o anonimato dos autores e dos consultores durante
o processo de avaliação. Serão consideradas a atualidade
e a relevância do tema, bem como a originalidade, a consistência científica e o atendimento às normas éticas.
Os trabalhos deverão ser originais, relacionados à
psicologia, filosofia, educação, ciências da saúde e sócio-antropológicas, e se enquadrarem nas categorias que
se seguem:
Relato de pesquisa – relato de investigação concluída
ou em andamento, com uso de dados empíricos, meto-
255
dologia, resultados e discussão dos dados. O manuscrito
deve ter entre 12 e 20 laudas.
Estudo teórico – análise de fatos e idéias publicados sobre um determinado tema. Busca achados controvertidos
para crítica e apresenta sua própria interpretação das informações. O manuscrito deve ter entre 12 e 20 laudas.
Relato de experiência – estudo de caso, contendo
análise de implicações conceituais ou descrição de procedimentos ou estratégias de intervenção, incluindo evidência metodologicamente apropriada de avaliação de eficácia, de interesse para a atuação de psicólogos em diferentes áreas. O manuscrito deve ter entre 12 e 20 laudas.
Estudo monográfico – apresenta trabalho desenvolvido em atividade acadêmica pelo autor, como especialização, mestrado ou doutorado. Limitado a 10 laudas.
Ensaio – interpretação original de algum tema que
contribua criticamente para o aprofundamento do conhecimento. Limitado a 5 laudas.
Resenha – análise de obra recentemente publicada
(no máximo há dois anos). Limitada a 5 laudas.
Resenha (textos clássicos) – análise de obra considerada relevante para a abordagem, publicada há mais de
dez anos. Limitada a 5 laudas.
Ressonância – comentários e/ou réplicas de publicações de números anteriores deste periódico. Limitada
a 5 laudas.
Perfil – breve biografia de pessoa que tenha contribuído para o desenvolvimento da abordagem gestáltica,
humanista, existencial ou fenomenológica. Limitado a
5 laudas.
Notícias – registro de fatos ou eventos relacionados à
comunidade gestáltica. Limitada a 3 laudas.
Resumo de tese e dissertação – conforme apresentado na tese/dissertação defendida. Limitado a uma
lauda.
2. Instruções para publicação
Os manuscritos submetidos à publicação devem ser
inéditos e destinarem-se exclusivamente a esta revista,
não sendo permitida a sua apresentação simultânea em
outro periódico. Todos os trabalhos serão submetidos a
uma avaliação “cega”, por – no mínimo – dois pareceristas, pares especialistas na temática proposta.
Os manuscritos deverão ser enviados via e-mail ([email protected]), conforme especificações disponíveis
no site da revista (www.revistagestalt.com.br). Deverá ser
encaminhado também um mini-currículo contendo as seguintes informações: nome completo do(s) autor(es), afi-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 255-259, jul-dez, 2012
Normas
A REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA, editada pelo Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestaltterapia de Goiânia (ITGT), foi criada com o objetivo
de ser um veículo de publicação preferencialmente da
Abordagem Gestáltica, bem como daquelas abordagens
que se fundamentam em bases teórico-científicas e filosóficas dentro das perspectivas humanistas e existenciais,
além das pautadas na Fenomenologia. As suas diretrizes
são definidas pela Editoria e pelo Conselho Editorial, dos
quais participam psicólogos, filósofos e profissionais das
áreas da saúde e educação.
Assim, sua linha editorial procura privilegiar reflexões – numa perspectiva multiprofissional e interdisciplinar – em torno dos seguintes temas: a) Gestalt-terapia
e Abordagem Gestáltica; b) Psicologia Humanista e
Existencial; c) Psicologias e Psicoterapias de orientação
Fenomenológica e Existencial; d) Fenomenologia pura e
aplicada; e) Pesquisa Qualitativa e Fenomenológica.
Serão aceitos para apreciação artigos centrados na
pesquisa e na produção do conhecimento relativos às
abordagens citadas, que remetam à reflexão crítica da
atuação do psicólogo ou de outros profissionais que as
utilizam no seu exercício profissional. Poderão ser artigos teóricos ou empíricos, que envolvam temáticas relacionadas à saúde, educação, humanidades, filosofia ou
ciências sócio-antropológicas, refletindo assim a perspectiva holística da abordagem gestáltica.
Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
liação institucional, títulos e/ou cargos atuais, endereço
eletrônico e endereço para correspondência.
Não serão admitidos acréscimos ou alterações após o
envio dos manuscritos para o Conselho Editorial, salvo
os sugeridos por este.
As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exatidão e adequação das Referências Bibliográficas são de
exclusiva responsabilidade dos autores.
A publicação dos trabalhos dependerá da observância das normas da Revista da Abordagem Gestáltica e
da apreciação do Conselho Editorial, que dispõe de plena autoridade para decidir sobre a conveniência da sua
aceitação, podendo, inclusive, apresentar sugestões aos
autores para as alterações necessárias.
Quando a investigação envolver sujeitos humanos, os
autores deverão apresentar no corpo do trabalho uma declaração de que foi obtido o consentimento dos sujeitos
por escrito (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido)
e/ou da instituição em que o trabalho foi realizado
(Comissão de Ética em Pesquisa). Trabalhos sem o cumprimento de tais exigências não serão publicados.
Os autores serão notificados sobre a aceitação ou a recusa de seus artigos, os quais, mesmo quando não forem
aproveitados, não serão devolvidos.
Normas
3. Formas de apresentação dos manuscritos
A Revista da Abordagem Gestáltica adota normas
de publicação baseadas no Publication Manual of the
American Psychological Association (APA) – 5ª edição,
2001.
Os manuscritos deverão ser preferencialmente redigidos em português. A critério do Conselho Editorial,
também serão aceitos manuscritos redigidos em inglês,
francês ou espanhol.
Os trabalhos deverão ser digitados em Programa
Word for Windows, em letra Times New Roman, tamanho 12, espaçamento interlinear de 1,5 e margens de
2,5 cm, em papel formato A4, perfazendo o total máximo de laudas, de acordo com o tipo de publicação desejada (ver Informações gerais), observadas as seguintes
especificações:
a) Cabeçalho - é recomendado que o título do artigo
seja escrito em até doze palavras, refletindo as principais
questões de que trata o manuscrito. O título deverá ser
redigido em caixa alta, fonte 14, centralizado e em negrito. A seguir, devem vir, em itálico, centralizados e em
fonte 12, os títulos em inglês e espanhol.
b)Os nomes completos dos autores deverão aparecer abaixo do título, em fonte 12, letra versalete, com
alinhamento à direita, indicando, após as Referências
Bibliográficas, em nota explicativa, a titulação dos autores, local de atividade e e-mail (se houver).
c) Epígrafe - deverá ser apresentada em letra normal,
em espaçamento interlinear simples, fonte 10, com ali-
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 255-259, jul-dez, 2012
nhamento à direita. O nome do autor da epígrafe deverá
aparecer em itálico, seguido da referência da obra.
d) Resumo e Palavras-chave - deverão ser redigidos
em português, inglês e espanhol, em parágrafo único,
espaçamento interlinear simples, fonte 10, com até 200
palavras. As palavras-chave (descritores), de três a cinco
termos significativos, deverão remeter ao conteúdo fundamental do trabalho. Para a sua determinação, consultar
a lista de Descritores em Ciências da Saúde – elaborada
pela Bireme e/ou Medical subject heading – comprehensive medline. Todas as palavras deverão ser escritas com
iniciais maiúsculas e separadas por ponto e vírgula.
Incluir também descritores em inglês (keywords) e espanhol (Palabras-clave).
e) Estrutura do manuscrito - os trabalhos referentes a pesquisas e relatos de experiência deverão conter
introdução, objetivos, metodologia, resultados e conclusão. O trabalho deverá ser redigido em linguagem clara
e objetiva. As palavras estrangeiras e os grifos do autor
deverão vir em itálico.
f) Adotar a seguinte padronização de palavras
- Gestalt-terapia ou Gestalt-terapia, gestalt-terapeuta, Abordagem Gestáltica, Psicologia da Gestalt ou
Gestalt-Psychologie. Verificar excesso de espaço entre as
palavras.
g) Subtítulos - deverão ser colocados sempre no alinhamento da margem esquerda do manuscrito, em negrito, apenas com as letras iniciais de cada palavra em
maiúsculas.
h) Ilustrações - figuras, quadros, tabelas, desenhos
e gráficos deverão ser indicados em números arábicos,
com legenda em letras maiúsculas, título em minúsculas, sem grifo.
i) Nomenclaturas e Abreviaturas - usar somente as
oficiais. O uso de abreviaturas e de siglas específicas ao
conteúdo do manuscrito deverá ser feito com sua indicação entre parênteses na primeira vez em que aparecem
no manuscrito, precedida da forma por extenso.
j) Notas de rodapé - deverão ser numeradas em ordem crescente e restritas ao mínimo indispensável.
l) Citações - deverão ser feitas de acordo com as normas da APA (5ª edição, 2001). Em caso de transcrição integral de um texto com número inferior a quarenta palavras, a citação deverá ser incorporada ao texto entre aspas
duplas, em itálico, com indicação, após o sobrenome do
autor e a data, da(s) página(s) de onde foi retirado. Uma
citação literal com quarenta ou mais palavras deverá ser
destacada em bloco próprio, começando em nova linha,
sem aspas e sem itálico, com o recuo do parágrafo alinhado com a primeira linha do parágrafo normal. O tamanho da fonte deve ser 12, e o espaçamento interlinear
1,5, como no restante do manuscrito. A citação destacada
deve ser formatada de modo a deixar uma linha acima e
outra abaixo da mesma
m)Referências Bibliográficas - denominação a ser
utilizada. Não use Bibliografia. O subtítulo Referências
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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
4. Tipos comuns de citação no manuscrito
Citação de artigo de autoria múltipla
a) dois autores
O sobrenome dos autores é explicitado em todas as
citações, usando “e” ou “&” conforme a seguir: “O método
proposto por Siqueland e Delucia (1969)” ou “o método foi
inicialmente proposto para o estudo da visão (Siqueland
& Delucia, 1969)”
b) de três a cinco autores
O sobrenome de todos os autores é explicitado na primeira citação: “Spielberger, Gorsuch e Lushene (1994)
verificaram que”. Da segunda citação em diante, só o sobrenome do primeiro autor é explicitado, seguido de “et
al.” e o ano: “Spielberger et al. (1994) verificaram que”. Se
houver uma terceira citação no mesmo parágrafo, omita
o ano: “Spielberg et al. verificaram”
Caso as Referências e a forma abreviada produzam
aparente identidade de dois trabalhos em que os co-autores diferem, esses são explicitados até que a ambigüidade
seja eliminada. Os trabalhos de Hayes, S. C., Brownstein,
A. J., Haas, J. R. & Greenway, D. E. (1986) e Hayes, S. C.,
Brownstein, A. J., Zettle, R. D., Rosenfarb, I. & Korn, Z.
(1986) são assim citados: “Hayes, Brownstein, Haas et al.
(1986) e Hayes, Brownstein, Zettle et al. (1986).
Na seção de Referências Bibliográficas, os nomes de
todos os autores devem ser relacionados.
c) de seis ou mais autores
Desde a primeira citação, só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, seguido de “et al.”, exceto se esse
formato gerar ambiguidade, caso em que a mesma solução
indicada no item anterior deve ser utilizada: “Rodrigues
et al. (1988).”
Mais uma vez, na seção de Referências Bibliográficas
todos os nomes são relacionados.
257
Citações de trabalho discutido em uma fonte secundária
Caso se utilize como fonte um trabalho discutido em
outro, sem que o texto original tenha sido lido (por exemplo, um estudo de Flavell, citado por Shore, 1982), deverá
ser usada a seguinte citação: “Flavell (conforme citado por
Shore, 1982) acrescenta que estes estudantes...”
Na seção de Referências Bibliográficas, informar apenas a fonte secundária (no caso Shore, 1982), com o formato apropriado.
Citações de obras antigas reeditadas
a) Quando a data do trabalho é desconhecida ou muito antiga, citar o nome do autor seguido de “sem data”:
“Piaget (sem data) mostrou que...” ou (Piaget, sem data).
b) Em obra cuja data original é desconhecida, mas
a data do trabalho lido é conhecida, citar o nome do autor seguido de “tradução” ou “versão” e data da tradução
ou da versão: “Conforme Aristóteles (tradução 1931)” ou
(Aristóteles, versão 1931).
c) Quando a data original e a consultada são diferentes, mas conhecidas, citar autor, data do original e data
da versão consultada: “Já mostrava Pavlov (1904/1980)”
ou (Pavlov, 1904/1980).
Citação de comunicação pessoal
Este tipo de citação deve ser evitada, por não oferecer informação recuperável por meios convencionais.
Se inevitável, deverá aparecer no texto, mas não na seção de Referências Bibliográficas, com a indicação de
“comunicação pessoal”, seguida de dia, mês e ano. Ex.:
“C. M. Zannon (comunicação pessoal, 30 de outubro de
1994).”
5. Seção de Referências Bibliográficas
Organize por ordem alfabética dos sobrenomes dos
autores. Em casos de referência a múltiplos estudos do
mesmo autor, organize pela data de publicação, em ordem
cronológica, ou seja, do estudo mais antigo ao mais recente. Referências com o mesmo primeiro autor, mas com diferentes segundos ou terceiros autores, devem ser organizadas por ordem alfabética dos segundos ou terceiros autores (ou quartos ou quintos...). Os exemplos abaixo auxiliam na organização do manuscrito, mas certamente não
esgotam as possibilidades de citação. Utilize o Publication
Manual of the American Psychological Association (2001,
5ª edição) para suprir possíveis lacunas.
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 255-259, jul-dez, 2012
Normas
Bibliográficas deverá estar alinhado à esquerda. As referências deverão seguir normas da APA (5ª edição, 2001).
A fonte deverá ser formatada em tamanho 12, espaçamento interlinear 1,5, sempre em ordem alfabética Deixe um
espaço extra entre uma citação e a próxima. Utilize o recuo “deslocamento”. Verificar se todas as citações feitas
no corpo do manuscrito e nas notas de rodapé aparecem
nas Referências Bibliográficas e se o ano da citação no
corpo do manuscrito confere com o indicado na lista
final.
n) Anexos - usados somente quando indispensáveis
à compreensão do trabalho, devendo conter um mínimo
de páginas (serão computadas como parte do manuscrito) e localizados após Referências Bibliográficas.
Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
Exemplos de tipos comuns de referência
Relatório técnico
Birney, A. J. & Hall, M. M. (1981). Early identification of children with written language disabilities (relatório n. 81-1502).
Washington, DC: National Education Association.
Trabalho apresentado em congresso, mas não
publicado
Haidt, J., Dias, M. G. & Koller, S. (1991, fevereiro). Disgust, disrespect and culture: moral judgement of victimless violations
in the USA and Brazil. Trabalho apresentado em Reunião
Anual (Annual Meeting) da Society for Cross-Cultural
Research, Isla Verde, Puerto Rico.
Trabalho apresentado em congresso com resumo
publicado em publicação seriada regular
Tratar como publicação em periódico, acrescentando logo após o título a indicação de que se trata de
resumo.
Silva, A. A. & Engelmann, A. (1988). Teste de eficácia de um
curso para melhorar a capacidade de julgamentos corretos de expressões faciais de emoções [Resumo]. Ciência e
Cultura, 40 (7, Suplemento), 927.
Trabalho apresentado em congresso com resumo
publicado em número especial
Tratar como publicação em livro, informando sobre
o evento de acordo com as informações disponíveis em
capa.
Todorov, J. C., Souza, D. G. & Bori, C. M. (1992). Escolha e decisão: A teoria da maximização momentânea [Resumo]. Em
Sociedade Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas, XXII Reunião Anual de Psicologia
(p. 66). Ribeirão Preto: SBP.
Teses ou dissertações não-publicadas
Costa, L. (1989). A família descasada: interação, competência e estilo. Estudo de caso. Dissertação de Mestrado,
Universidade de Brasília, Brasília.
Livros
a) primeira edição:
Normas
Féres-Carneiro, T. (1983). Família: diagnóstico e terapia. Rio
de Janeiro: Zahar.
b) obra reeditada:
Franco, F. de M. (1946). Tratado de educação física dos meninos.
Rio de Janeiro: Agir (originalmente publicado em 1790).
Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 255-259, jul-dez, 2012
Vasconcelos, L. A. (1983). Brincando com histórias infantis:
uma contribuição da Análise do Comportamento para o desenvolvimento de crianças e jovens (2ª ed.). Santo André:
ESETec.
Capítulo de livro
Blough, D. S. & Blough, P. (1977). Animal psychophysics. Em W.
K. Honig & J. E. Staddon (Orgs.), Handbook of operant behavior (p. 514-539). Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall.
Livro traduzido em língua portuguesa
Se a tradução em língua portuguesa de um trabalho em
outra língua é usada como fonte, citar a tradução em português e indicar ano de publicação do trabalho original.
Salvador, C. C. (1994). Aprendizagem escolar e construção de conhecimento. (E. O. Dihel, Trad.) Porto Alegre: Artes Médicas
(Trabalho original publicado em 1990).
No texto, citar o ano da publicação original e o ano
da tradução: (Salvador, 1990/1994).
Artigo em periódico científico
Informar volume do periódico, em seguida, o número
entre parêntesis, sobretudo quando a paginação é reiniciada a cada número.
Doise, W. (2003). Human rights: common meaning and differences in positioning. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 19(3),
201-210.
Obra no prelo
Não deverão ser indicados ano, volume ou número de
páginas até que o artigo esteja publicado. Respeitada a
ordem de nomes, é a ultima referência do autor.
Conceição, M. I. G. & Silva, M. C. R. (no prelo). Mitos sobre
a sexualidade do lesado medular. Revista Brasileira de
Sexualidade Humana.
Autoria institucional
American Psychiatric Association (1988). DSM-III-R,
Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3a
ed. revisada). Washington, DC: Autor.
Artigos consultados na mídia eletrônica
Sanches, M. & Jorge, M.R. (2004). Transtorno Afetivo
Bipolar: Um enfoque transcultural, Revista Brasileira
de Psiqu iat r ia [on l i ne]. Vol. 26, supl.3, p. 54 56. Acesso em 05 de julho de 2006, em http://www.
scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151644462004000700013&lng=pt&nrm=iso.
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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica
6. Direitos autorais
Artigos publicados na Revista da Abordagem Gestáltica
Os direitos autorais dos artigos publicados pertencem
à Revista da Abordagem Gestáltica. A reprodução total
dos artigos dessa revista em outras publicações, ou para
quaisquer outros fins, está condicionada à autorização
escrita do Editor da Revista da Abordagem Gestáltica.
Pessoas interessadas em reproduzir parcialmente os artigos por ela publicados (partes do texto que excederem
500 palavras, tabelas, figuras e outras ilustrações) deverão obter permissão escrita dos autores.
acompanhado de permissão escrita do detentor do direito autoral do trabalho original, para reprodução especificada na Revista da Abordagem Gestáltica. Tal permissão deve ser endereçada ao autor do trabalho submetido
à apreciação.
Em nenhuma circunstância, a Revista da Abordagem
Gestáltica e os autores dos trabalhos publicados poderão
repassar a outrem os direitos assim obtidos.
7. Endereço para encaminhamento
Toda correspondência para a revista deve ser endereçada para:
Editor
Reprodução parcial de outras publicações
Revista da Abordagem Gestáltica
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Goiânia-GO CEP: 74.175-130
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por telefone (62) 3941.9798 ou fax (62) 3942.9798 – ou pelo
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Normas
Manuscritos submetidos à apreciação que contiverem
partes de texto extraídas de outras publicações deverão
obedecer aos limites especificados para garantir a originalidade do trabalho submetido. Recomenda-se evitar a
reprodução de figuras, tabelas e desenhos extraídos de
outras publicações.
O manuscrito que contiver reprodução de uma ou
mais figuras, tabelas e desenhos extraídos de outras
publicações só será encaminhado para análise, se vier
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Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 255-259, jul-dez, 2012

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