lunaris - Carlos Ribeiro
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lunaris - Carlos Ribeiro
LUNARIS trilogia O CHAMADO DA NOITE NOITES BRANCAS LUNARIS Carlos Ribeiro O CHAMADO DA NOITE 2 Para: Aleilton Fonseca Antonio Brasileiro Elieser Cesar Luciano Rodrigues Lima e Ruy Espinheira Filho Para Guido Guerra (in memoriam) 3 SUMÁRIO A noite é um deserto De sonhos e solidão A menina no corredor Uma ilha no mar O homem na multidão 4 I. A noite é um deserto Eu a vi pela primeira vez, ao lado do Teatro Castro Alves, na entrada para o Garcia, naquela hora do crepúsculo em que toda a gente passa aflita com não-sei-o-quê, e ela passando no meio da multidão com a expressão suave de quem não sabia para onde estava indo. Havia muitas mulheres, hoje em dia há sempre um grande número de mulheres nas ruas, nos escritórios, nos hospitais, em toda parte, mas aquela mulher de repente se sobressaía, não sei por que, talvez porque tivesse os cabelos curtos e parecesse uma francesinha revolucionária dos anos 60 dos filmes de Godard, porque todas as francesas dos anos 60 dos filmes de Godard parecem revolucionárias por não saberem de onde vêm nem para onde vão, mas eu que sempre sei para onde estou indo (o que me torna às vezes triste) senti uma estranha e súbita afinidade com ela e o impulso de segui-la, de não deixá-la ir, de não deixá-la morrer, como tristemente ocorre a todas as mulheres que desaparecem, simplesmente, como um naufrágio, e se vão perdidas esquecidas, para um futuro melancólico, sem saber que eu poderia salvá-las se não fosse assim um homem ocupado, que tem sempre algum lugar para ir, alguma coisa para fazer, tantas coisas para fazer que em última instância se traduzem em milhões de coisas não feitas, e ela apareceu como uma mulher impossível porque não é concebível encontrar uma francesa dos filmes de Godard na esquina do Campo Grande com o Garcia, próximo ao TCA, numa tarde de janeiro, não é possível vê-la presente ali indo embora para desaparecer como sonho, como delírio de um homem que caminha também para desaparecer nesse deserto que chamam de Meia Idade, ou maturidade, e que nada mais é que um imenso desencanto, um pátio frio varrido para sempre de anjos e demônios, de mistério, e é nesse pátio que ela passa agora como uma única flor que resiste e vejo que perdê-la seria renunciar para sempre ao mistério, trocá-lo pelo bom senso que diz: veja, é muito infantil correr atrás de francesinhas improváveis na rua, porque você é um homem sério e sensato e homens sérios e sensatos devem saber o seu lugar; um homem sério e sensato sabe que deve fazer coisas sensatas, que deve escrever coisas sensatas, um homem que caminha para esse pátio de racionalidade e bom senso, para esse pátio cuja expressão exata está nas palavras estabilidade, segurança, conforto, esse pátio que exige um bom posicionamento na vida, papéis definidos, atitudes convencionais, enfim, eis o que me reserva o futuro se não sair por aí correndo atrás de mulheres que não existem porque aquela mulher não existe e se tiver paciência poderei vê-la desaparecer para sempre e para sempre me convencer de que realmente não seria bom para mim seguir um fantasma, pois os fantasmas são imprevisíveis, os fantasmas são imprevisíveis, lembre-se disso, e o mundo já é muito perigoso mesmo para os que planejam bem o futuro, para os que têm a segurança de um emprego e o abrigo do lar e da família e horários fixos e trabalho, enfim. Então eu pensava nisso enquanto a 5 via passando por trás de carros e ônibus, de um velho aleijado e são cada vez mais numerosos os velhos aleijados na rua, e só então vi que caminhava com os mesmos passos de uma namorada minha de juventude, que tinha o mesmo porte altivo, ela que muitas vezes quase me bateu com seus ciúmes alucinados, mas que amei ao meu modo; ela tinha algo da sua doçura e um jeito sério e ao mesmo tempo moleque de... oh, mas então ela era ao mesmo tempo todas as mulheres que amei e nenhuma delas porque era única, porque era única mesmo, única como Romy Schneider ou como Mônica Vitti e desafio qualquer um a achar uma mulher que se pareça com Mônica Vitti e ela era assim, única e o reflexo do sol de verão, esse mesmo sol poente que faz meus pensamentos vaguearem sem ordem e sem disciplina mas com imensa preguiça tropeçando nas árvores e nos carros e nas ruas e nas mulheres que passam e se vão sem sequer me olharem, pois acho que elas pensam que eu nem mais existo, que sou ninguém como o personagem de um filme que assisti há muitos anos no cine Guarani antes que mudassem o nome dele para Glauber Rocha o que acho muitíssimo errado isso de descobrir um santo para vestir outro, pois aquele nome era, como vocês devem saber, uma justa homenagem à ópera de Carlos Gomes e isso tinha a vantagem belíssima para mim de ainda criança ouvir na abertura do espetáculo com toda solenidade as cortinas se abrindo e aquela música linda linda tchan tchararan tchan tcharanran tchan tchan tchan tchan tchan tchan tchan tchan tchan tchan tchan tchan tchan tchanranran e eu lá, mas são justamente essas e outras coisas que desaparecem pouco a pouco da minha vida que se transforma naquele pátio frio e deserto sobre o qual falei há pouco e que estou aprendendo a chamar agora de Meia Idade, e acho que Meia Idade é algo assim como um elefante sem tromba como aquele da crônica de Rubem Braga; mas esse também não tem rabo e, creiam, não existe nada mais bonito num elefante do que aquele rabinho, pois é o rabinho que torna um elefante gente, é o rabinho que o faz ser aceito entre nós como nosso irmãozinho caçula ou como o garotinho mais novo da rua, aquele que quer ser grande, e o que ele tem de mais adorável é isso de querer ser grande, é isso que nos faz rir dele com ternura, pois sabemos (mas não dizemos para ele, claro, o que seria uma grosseria imperdoável) que ele é apenas uma criancinha; e sabemos que o elefante é um elefante, embora o recebamos em nossa casa e o convidemos para um chá; mas enfim ele vai se instalando se instalando e quando damos conta já não podemos mandá-lo embora pois ele não saberia o que fazer na rua e as ruas hoje são, como vocês devem saber, muito estranhas e perigosas e decididamente não são lugares adequados para um elefante, e no final das contas acharemos muito bom termos em casa conosco um elefante; mas um elefante sem tromba e sem rabo é uma deformação, ou melhor, uma aberração pois lhe falta a graça e a vitalidade, então Meia Idade é algo assim como um monstro, mas não um monstro de verdade como os monstros da Antiguidade, é um monstro marcado pela ausência, pela precariedade, pelo não, um monstro que não nos devora, que não nos ataca como devem todos os monstros fazer; e que se limita a 6 ficar parado diante de nós e aos poucos roer a nossa vida; e nós o deixamos roer a nossa vida quando achamos que não vale a pena fazer nada mais do que seguir a rotina, com segurança e comodidade pois não são esses os valores máximos da nossa civilização, a nossa suprema conquista? E enquanto a moça passava e desaparecia lentamente por detrás dos carros eu via Meia Idade ali parado, ao meu lado, rindo para mim, como se isso fosse possível. Hoje preferi ficar em casa. Há dias que realmente é preferível ficar em casa. Ficar em casa para pensar, ficar em casa para fazer alguma coisa interessante como, por exemplo, olhar portas. Aliás devo dizer que faz algum tempo que descobri a importância - para mim, pelo menos, não quero generalizar - de olhar portas, ou melhor, de olhar a porta do quarto, de um determinado ângulo, obliquamente, a uma certa hora do dia quando o sol costuma dar às coisas aquele sentido de eternidade, quero dizer, como se ela sempre estivesse estado ali, como se ela sempre vá estar ali, como se olhá-la nos fizesse compartilhar com ela essa eternidade; a porta poderia estar em qualquer lugar em qualquer tempo e ao vê-la é como se pudesse ver também florestas e dinossauros, aviões e bombas, chuvas ancestrais e pôres-de-sol, neblinas, nevoeiros, tiros e risos, bilhões de risos, oceanos, seios, lábios, dentes, pérolas e tubarões, gritos e abismos, anjos, labirintos e multidões, aranhas e computadores, estrelas, duendes e demônios, eu e a porta, e o meu olhar e a luz do sol incidindo sempre assim obliquamente desde o início dos tempos e uma grande solidão. A solidão de ser subitamente uma porta parada no tempo que se olha, uma porta que se olha. E ao olhá-la assim obliquamente em silêncio sinto uma doçura repentina, uma felicidade inesperada, uma alegria serena de poder ver que nela estão todas as coisas, e todos, e eu mesmo, posso ver-me saindo das suas profundezas e de lá de dentro de longe dizendo: você sabe que moro aqui, como me descobriste? Eu sempre vivi aqui e te vi nascer e agora vens aqui e me vês? E eu digo para mim/ele: leve-me. Mas ele não poderá nunca me levar porque ele não sabe como me levar e eu não sei como ir, de forma que nos resignamos olhando-nos até que a noite chegue e nos separe, como se eu acordasse de um sonho, ou como se mergulhasse nele. Às vezes penso que a porta é a minha única realidade, mas sempre que penso isso afasto rapidamente esse pensamento com medo e entendo que não devo mesmo ir com ele (comigo) na porta, que devo ficar, pois é muito perigoso ir, porque uma vez dentro da porta você sabe não há mais retorno, e quem iria comprar o pão na padaria, naquela última padaria antiga que restou no bairro, a única na qual ainda vou porque somente lá alguém sabe quem sou? Lembro-me das padarias da minha infância. Eram padarias com padeiros, e padeiros tinham família e filhos e empregados e alegria e raiva e, o melhor de tudo, eles sabiam meu nome, quem era, de quem era filho e todas essas bobagens que hoje não valem mais nada, porque nas padarias modernas somos bem tratados, somos muitíssimo bem tratados, nós, os clientes, e eles nos tratam bem porque é bom para eles que sejamos bem tratados, porque somos 7 O Cliente, e para eles ganharem mais dinheiro do que o concorrente, eles têm que tratar bem o cliente, mas isso é bobagem, pois insisto em comprar o meu pão na velha padaria e creio mesmo que sou um dos últimos clientes e que em breve eles também fecharão as portas e então terei que comprar pão nessas padarias que parecem mais um shopping center, e são muito limpas e asseadas, pelo menos aparentemente, porque já li no jornal que a limpeza pública algumas vezes encontrou baratas dentro de coxinhas saudáveis, de forma que essas padarias me lembram uma dessas mulheres belíssimas, malhadas, limpas e impecáveis que acreditamos piamente levar sem susto para a cama e dispensamos maiores cuidados pois seria uma ofensa colocar em dúvida a completa saúde dessas mulheres e que depois descobrimos, desolados, que era uma aidética, que ela sabia que era aidética, que nos contaminou intencionalmente e que vamos morrer porque acreditamos poxa que uma mulher daquela não podia ser uma filha da puta, mas que os filhos da puta mesmo somos nós que ainda sofremos desse complexo de inferioridade ou sei lá como queiram chamar; mas enfim, acho mesmo que estou condenado à modernosidade, logo eu que gosto de olhar os becos e ruelas sujos e sórdidos, daquele mundo underground povoado de fantasmas, de homens e mulheres drogados, anjos imundos que ousam fugir desses ambientes assépticos, que morrem inteiros, que morrem partidos, esfacelados, que morrem inteiramente esfacelados, que morrem em agonia, em inteira agonia, ou, pior, vivem assim nesse limbo, mas quem mandou eles saírem por aí se drogando, por que não fazem como eu que tenho apenas e tão somente uma experiência, digamos, estética, mas Deus me livre de me foder assim todo sem mais nem menos, pra quê? E você acho que nem sabe o que é esse inferno, meu irmãozinho, porque se você soubesse mesmo não se metia nessa boca que é quentíssima, mas a verdade é que amo vocês anjos drogados, anjos incompreendidos, amo vocês na sua fragilidade e no seu delírio, na sua marginalidade e tenho vontade mesmo de chamá-los todos para esse lado da normalidade. Mas o que é esse lado da normalidade? Quem sou eu? Eu sou aquele que habita a porta? Eu sou aquele que me chama? Ele também quer me levar para o outro lado, e acho que sempre existirá alguém querendo nos levar para um outro lado e são tantos os lados e tantos, como um corredor com portas que não acabam nunca, mas já estou divagando, e o que quero dizer mesmo é que gostaria de livrá-los desse inferno, tirá-los das garras desses vampiros, como senti vontade de salvar Cristopher Walken das garras do inescrupuloso vietnamita em The Deer Hunter, aquele que o viciou na roleta russa, e o mundo é cheio desses monstros, meu irmãozinho, não se engane, eles estão em toda parte, é preciso ser mais inteligente, isto é um conselho, está me ouvindo? Vocês que se acham tão espertos, tão diferentes, tão superiores, se deixam dominar pelos mais nefastos e medíocres dentre todos os seres, então é isso, desculpem meu desabafo, mas essas anotações servem é para isso mesmo, não é? E no mais porque sei que ninguém vai ler, pois escrevo para não ser lido e existe uma coisa mais triste do que escrever para não ser lido? Mas gostaria, pelo menos, que você 8 soubesse que lamento muito não ter podido salvá-lo, lamento muito não tê-lo trazido para o lado de cá, porque o lado de cá é, pelo menos, o lado do nosso afeto. O lado de cá é grande, como o mundo. Mas é preciso calma pra onda não embolar; eu sei. Sei que nesse caminho devo caminhar devagarinho, porque ele está cheio de valas e becos; e por detrás dos becos, aqueles homens que não são homens, se é que você me entende. Sento-me então na varanda e penso: quem sou eu? E penso que sou um homem que anda nas calçadas à noite, como aquele personagem do seriado Na Corda Bamba que tinha apenas e sempre diante de si a noite. Eu tenho diante de mim a noite e já não sei o que fazer com ela. Vejo todas essas janelas luminosas e essa turba que se espalha por toda parte procurando um lugar que seja o seu. Vejo a noite daqui desta varanda que se projeta para o caos – o caos ordenado que, como eu, procura a sua própria identidade; sim, porque é fácil talvez pensarmos que somos isto ou aquilo, até quando descobrimos – e isto geralmente acontece na meia idade – que somos muito mais coisas e quase nada. Fecho os olhos diante da noite perfumada – de onde vem este perfume? – e penso que vem de uma mulher que casualmente percorre as ruas; vejo-a diante de mim, e digo: por que demoraste tanto, meu amor? Mas ela não me vê, apenas olha através de mim, como a um fantasma, e desaparece novamente numa esquina, enquanto seu perfume permanece aqui, comigo. Penso que ela poderia ser a personagem de um sonho que tive quando menino, devia ter uns dos oito anos. Encontrava-a num banheiro – ela também, uma menina. Eu a olhava, admirado, discretamente, enquanto mijava, e me perguntava o que aquela garota linda estava fazendo ali, naquele banheiro sujo, fedido a mijo, ela tão pura; mas oh! que eu a olhava novamente e a via agora transformada numa aranha monstruosa – não por ser uma aranha, mas por conservar ainda o seu rosto angelical e infantil naquele corpo de inseto repugnante; e o que mais me horrorizava era perceber que havia em mim, simultaneamente, uma atração irresistível e uma completa ojeriza; e enquanto o rosto dela expunha a solidão e um pedido de socorro, suas patas avançavam como tenazes monstruosas para me agarrar; corri? Não lembro. Lembro-me apenas de despertar profundamente confuso com aquele sentimento dúbio e obscuro que, de repente, eu descobria em mim. E agora, tantos anos depois, sinto-me mais ou menos como aquele menino, diante de uma mulher que some na noite: sim, porque vi nela também a vulgaridade das prostitutas que percorrem a noite com seus olhos doces e suas vaginas devoradoras; e são muitas, e são tantas que pensamos ser impossível resistir a elas; e logo me vejo abordando uma que me oferece todos os prazeres, desde que, é claro, eu possa pagar por eles; e seguimos para quartos de motéis que são como covis, ou como um prédio bonito, luxuoso, no qual entramos para descobrirmos que, por detrás de todas aquelas camas, piscinas, living rooms e garagens existem seres disformes, anões, mulheres barbadas e psicopatas; 9 monstros que manipulam as cordas, e descobrimos que somos marionetes; e que, para onde quer que olhemos não haverá saída, pois os corredores se sucedem intermináveis; e a mulher linda se transforma então num inseto que se arrasta pelo quarto em nossa direção – não porque queira nos fazer mal, sejamos justos, mas porque precisa do nosso sangue, da nossa seiva, talvez, quem sabe, de amor, de tudo o que não queremos dar, porque ela é apenas uma prostituta, um objeto, oh! quem escreverá esse conto de fadas moderno no qual a princesa, a bruxa, o príncipe e o sapo são apenas um homem/mulher triste que se olha no espelho num quarto de motel? E você sabe que os quartos de motéis são talvez o símbolo maior do espaço neutro desse tempo que muitos chamam modernidade: o espaço no qual estamos sempre em trânsito – desse espelho vazio surgem os automóveis que passam sempre para lugar nenhum. E somos nós que passamos sempre para lugar nenhum. Mas veja: continuo aqui na varanda da minha casa, e o vento que me sopra o rosto desfaz essas nuvens cinzentas – sempre ele, o vento, com suas histórias de reis e magia, continua sendo meu único amigo; só ele é capaz de transformar esse mundo decadente em montanhas e vales, em savanas e campinas onde vagueiam mercadores árabes e princesas etíopes; onde tigres asiáticos devoram guerreiros medievais; onde elefantes correm em manadas sobre vulcões e geleiras; e nas alturas do Himalaia gênios medievais constroem naves que singrarão galáxias, como Simbad, o Marujo singrou, um dia, os meus sonhos de neve e algodão. Hoje a encontrei novamente; ela não era mais ela, a francesinha de Godard, mas isso não importa, porque no fundo elas são todas uma só: uma só mulher que anda à procura de um homem. Lamento não poder ser eu o homem de todas elas; digo, daquelas mais bonitas e inteligentes; daquelas menos bonitas e muito inteligentes ou daquelas um pouco menos inteligentes e muito bonitas; daquelas que gostam de poesia, que escrevem poemas e não sabem para quem recitá-los, porque não têm para quem recitá-los; aquelas que olham a lua, à noite, e só vêem o eclipse; para as que nunca conseguem ver o eclipse porque só vêem sempre a lua cheia, brilhando onipotente sobre as areias da praia dos anos 60; e vejo que só consigo amar as mulheres que conseguem ver as praias dos anos 60, porque foram elas as últimas de um tempo em que magia e poesia se encontravam lá, atrás das dunas, com a utopia; e tudo o que vem depois é o frio racionalismo, o calculismo de saber como posso conseguir isto e aquilo e com que meios posso conseguir isto e aquilo, e no mais pensar: por que sacrificar-me? por que morrer e sofrer? Oh lindas mulheres que morreram e sofreram naquelas praias desertas dos anos 60; oh mulheres que amei naquelas tardes em que as nuvens cantavam um futuro no qual encontrávamos o passado mais distante – porque, me desculpem os genealogistas, é nesse passado que encontro a força de ser eu mesmo; nele está o sonho, e é nele também que está a mulher que tenho (tive) agora em minhas mãos; é nela que derramo o meu sêmen e sinto prazer imenso em vê-la gritar de gozo, ela. Mas, como ia dizendo (desculpem-me, perco-me em tantas 10 elucubrações, mato a objetividade e a clareza que não posso matar no dia-a-dia dos jornais; objetividade fria assassina, a ti contraponho a loucura), enfim, encontrei-a ontem à tarde numa esquina da 2 de Julho, ali perto daqueles hotéis onde as prostitutas marcam encontros secretos com homens que não querem ser vistos e muito menos filmados, pois, veja só, até isto fazem hoje em dia nos quartos de hotéis e motéis, ninguém mais está seguro na sua privacidade, ninguém mais tem o direito de viver uma vida secreta, a vida da sombra que se passa em quartos de paredes sujas, em motéis luxuosos, em noites que se derramam sobre noites, ninguém mais está seguro – nem os patifes que estão por detrás das câmaras/olhos sórdidos do mercado negro do prazer e da luxúria, onde elas estão por detrás de mil nomes falsos: Helena, Vanessa, Ísis, Lilite, Morgana – todas prometendo tudo o que você sempre sonhou e desejou, num caleidoscópio onde aquelas cores e formas luminosas, multicoloridas, inocentes, dão lugar a uma infindável sucessão de peitos, coxas, lábios, olhos, vaginas e cabelos: loiros, morenos, crespos – ah, mas ela era diferente no que uma mulher pode ser diferente, pois toda ela parecia me dizer: eu sou tua por nada que me possas dar além de todo o teu eu, amor; e os passos dela mandavam que a seguisse, e os cabelos diziam: agarre-me! – como gosto de agarrá-la, estremecendo na noite de uma casinha aconchegante, na qual objetos derramam suas formas em sombras que nos diluem sem cobranças, sem hora marcada, sem dinheiro, sem cafetões, sem garçons, sem relógios, sem ameaças, só eu, ela e o amor, só eu, ela e a noite que é continuum, como um sonho – e sobre tudo pairando uma música suave e os ruídos do vento nos coqueiros, e o mar distante desfazendo-se em ondas sonoras, em cantos múltiplos, em canções de Vinícius ou Louis Armstrong, ou Caetano Veloso. Mas ela seguiu e atravessou a rua, enquanto eu quase a perdia pensando tudo isto e muito mais coisas que esqueci porque a minha memória não cabe tantas delícias de pensar; foi seguindo em passos firmes, porque lhe garanto que a graça da mulher não está apenas no bamboleio das mulatas de Caymmi e Carybé, mas também em passos leves, delicados, firmes, ágeis, modernos e antigos como uma chinesa saint-tropez, como uma francesa baiana, então a segui, observando-a no sim e no não de cada passo, até que ela deu a mão para um táxi, entrou e partiu deixando-me a ver navios, digo, carros barulhentos e sujos, prédios disformes e sujos e toda aquela sujeira vã e ignóbil que existe nas ruas do Centro – que se estende do Campo Grande à Praça da Sé, com toda aquela gente que fica por ali zanzando como se não existisse nada melhor para fazer, que merda, imagine se pudesse também, como Belmondo, acenar rapidamente para um táxi e dizer: siga aquele carro! Oh, mas não havia nenhum carro por perto, e também nenhuma disposição para sair por aí feito um alucinado, gastando dinheiro à toa, para quê? para vê-la saltar do carro nos braços de um executivozinho que não saberia certamente de onde ela estava vindo, enfim, dá o que pensar uma mulher daquela andando por aquelas redondezas, eu heim... 11 Na fria lâmina fina desta noite de sexta-feira lembro-me de quantos amores inexistentes vivi com fervor, naquelas tardes frias chuva fina ouvindo Ave Maria no Morro com Eduardo Araújo que eu achava incomparável, veja só que viagem, e você dirá: é a adolescência, meu amigo, vale tudo, mas eu tinha apenas doze anos, e como podia amar tanto com aquele jeito de adulto que nenhum adulto conseguia ver em mim; oh, acho que nunca fui tão infantilmente maduro quando no meu coração eu sentia a presença dela: Rosemar – e lhe garanto que esse nome não é inventado; ela se chamava mesmo Rosemar, de capricho pra me pegar pelo pé, e eu tão inocentemente desvalido, meu Deus, acho que o que lamento é nunca mais ter podido ter um sentimento assim de amor maduro – maduramente infantil, cheio de tantas rosas e mares que se derramavam sobre mim na imobilidade do meu corpo, no quarto escuro, enquanto ouvia no radiozinho de pilha do meu pai aquelas músicas que se gravavam na atmosfera cheia dela, cheia de ti, Rosemá que nunca me devolveu aquele amor, talvez porque nunca tive a coragem de cobrar, como aliás o fiz tantas vezes naquelas fantasias, ou na minha fantasia preferida: eu a esperava escondido atrás do muro da casa abandonada, na Ladeira da Cacimba, em Itapuã – devo dizer, num tempo em que as ladeiras eram de barro e desertas, portanto muito mais apropriadas a fantasias de amor –, e, finalmente, quando você passava, eu te segurava pela mão e, sem dizer nada, te beijava – e você nunca resistia, e você nunca dizia: o que é isso, você tá maluco, menino! Vou contar pra sua mãe!, o que seria uma vergonha mesmo muito vergonhosa, de matar, mas tudo o que você não fazia, na minha fantasia, era uma presença e uma ameaça, daí o fato de jamais ter ousado invadir o sinal, meu amor; mas sempre podia ver em mim sua pele clara de menina – você devia ter o quê? Treze anos? Já era moça, tinha peitos, e eu? O que eu tinha além daquele rádio de pilha, a cama e a escuridão do meu quarto? Rosemar você foi a primeira das minhas derrotas, monumento vivo da impossibilidade do prazer – este mesmo prazer que sempre escoa diante de quem teme perder algo. Mas o que eu poderia perder com sua recusa? O que não iria ganhar por não tentar? Você foi a primeira mulher de carne e osso que recusei ver, enquanto te envolvia de sedas flutuantes e fantasmagorias de amor que se furta ao real: você foi o eu que se dissolveu na paixão difusa: solidão. Sim, e havia ainda aquela música de um tal João Só que era eu mesmo cantando no rádio: menina que mora na ladeira - porque somente eu mesmo sabia onde te encontrar, e até hoje gosto do João Só – e penso: onde diabo foi parar esse homem? Será que abriu uma churrascaria? (acho que ele morreu). Mas João Só e Eduardo Araújo eram os poetas da minha paixão – e se você, caro leitor, não gosta deles, é porque não amou nunca Rosemar, aos 12 anos, em 1970. Ela, minha linda menina da ladeira que encontrei anos depois, com tantos e inesperados traços no rosto, bebendo além da conta numa noite de Natal: beijou-me ocultamente, na boca, na qual senti o gosto de bebida, cigarro e de um pecado confuso que não me dava vontade de pensar. Ela era uma mulher? E eu, era um homem? Então por que ficamos 12 tão distantes naquele beijo, e foi naquele beijo que ela se evaporou diante de mim; estranhou-se; materializou-se numa mulher que bebe e fuma e, quem sabe, talvez, por causa de mim e do meu medo de homem/criança que ainda está lá atrás sonhando com um fantasma. O beijo dela me fez levantar, tantos anos depois, agora, naquele dia, da cama para caminhar pelo deserto; oh, sim, foi ela mesma quem inaugurou o deserto no qual ainda ando, sem camelo, como um andarilho easy rider, como um ausente de mim. Rosemar, mesmo assim te amei, e só agora descubro que te amei muito mais como te vi, naquela noite de Natal, bêbada e solitária; te amei mais porque vejo o vazio no meio do qual nos encontramos e desencontramos cheirando ainda aquele ar litorâneo, aquele ar de mar que é todo seu. Mas você não foi a única, meu amor, pois atrás de ti vejo como uma legião de mal amadas e amadas: Jane, Augusta, Sandra (que tinha um cabelão liso e que eu achava a mulher mais bonita do mundo e que só depois de alguns anos foi que percebi que meus amigos tinham razão quando diziam que ela era feinha de doer, oh que diabo é a paixão) e, enfim, todas aquelas meninas do ginásio. Rosemar, perdida para sempre; e quem sabe o beijo dela, tantos anos depois, com seu gosto de fumo e álcool, não seja, pois, uma redenção? Mas eis que me vem agora num jato na minha mente, uma paixão anterior: Maria Monte Serrat – aquela garotinha de tranças loiras, filha de espanhóis, que tocava acordeão nas festinhas de fim de ano da Escola Santa Tereza, no Carmo, que eu olhava de longe, sempre achando que não era digno dela – e isso, pelo amor de Deus, é pensamento para uma criança de cinco anos ter? E dela só guardo isto: a lembrança daquele olhar comprido que nunca terminou; um olhar que permanece comigo, ainda hoje, ainda agora, quando me debruço sobre a balaustrada, diante do mar revolto. Eu: um homem de meia idade, conservo comigo ainda todos aqueles olhares de menino perdido de amor. E, mais do que nunca, percebo que aquele olhar é ainda o que tenho de verdadeiro: uma ausência que é presença, ou uma presença que é, apenas e tão-somente, uma ausência. Diante do mar, olho sobre as cabeças dos meus colegas para a menina distante – tão distante naquela época quanto é ainda hoje – que toca num acordeão tantas músicas de São João. Estas músicas, meu amor, é tudo o que resta àquele menino que ainda te lança este olhar comprido – sobre o tempo, sobre mim. 13 II. De sonhos e solidão Solidão: palavra noturna, como tudo que vejo em mim. Penso nela sempre que me encontro neste corredor que não me leva a lugar algum. Penso mesmo quando recebo raras e preciosas visitas. Outro dia mesmo, Rosa esteve aqui. Chegou alegre, como sempre; abraçoume, beijou-me, pude sentir os seus seios frescos e rijos por debaixo da blusa fina, que olhei de relance, sabendo que ela também via o meu olhar de relance, como se querendo confirmar que eu não tenha deixado de vê-la, porque, claro, que ela não vestiu à toa aquela blusa para vir visitar-me. Devo notar que Rosa é mulher de um amigo meu, um amigo de muitos anos, colega de ginásio, hoje um empresário bem sucedido, mas descuidado – e logo com quem: com uma mulher assim fogosa, que transpira sexo, que irradia vitalidade e prazer. Estávamos, pois, a sós e ambos sabíamos que nos queríamos, que nos desejávamos, que nada deveria impedir que nos amássemos ali; mas, na hora H, apareceu Jorge – não na casa, abrindo o portão da rua, mas em minha mente, diante (dentro) dos meus olhos, sorrindo e dizendo com aquele seu jeito mentiroso: porra cara, que prazer te ver aqui, eu ia passando e... – pensei interrompê-lo, dizer que ele era um mentiroso filho da puta, que não havia absolutamente nenhuma razão nem justificativa para ele aparecer ali, justo no momento em que eu e a mulher dele iríamos fazer amor, como, aliás, há muito tempo ela não faz; e que ela, enfim, merecia aquilo e muito mais, pelo simples fato de que ela é uma mulher, e as mulheres precisam amar gostoso para poderem se sentir mulheres, fêmeas, vivas, felizes. Ele ficou de repente triste, baixou os olhos (coisa que ele jamais faria na realidade, porque ele sempre se acha superior), e acho que foi isto que me fez também baixar os olhos, que me fez evitar o olhar dela e desconversar, dizer algo que não fazia sentido. Covardemente, reneguei-a naquele momento. Pensei que não saberia viver uma farsa, talvez porque não aprendi ainda a dissimular e mentir, porque é fácil mentir com palavras, mas mentir com os olhos é como uma arte; é um refinamento de desamor, de perversidade. Pensei que aquilo tudo não faria bem a mim e a ela, e no mais, não gostaria de me envolver numa briga, porque... talvez porque não goste de perder brigas, e que para ganhá-las teria que levá-las às últimas conseqüências, e as últimas conseqüências são um poço sem fundo, um nada mais a perder, uma dança de loucura, uma desmedida, um desvario, um rodopio, um Maelstron, uma paixão – e eu corro léguas da paixão. Então, desculpe-me, querida, sei que nada justifica esta minha covardia, esta minha incapacidade de auto-sacrifício, esta minha recusa de ser feliz e morrer por ti, quando a natureza grita nesses seios soltos sob a blusa quase transparente – e o que não é transparente aos meus olhos ávidos? – que tudo vale a pena neste amor que finda no limiar do começo: ponto final de um romance que não é nem nunca vai ser; quando tudo vira apenas um sonho que prolonga a sua inexistência, que tira da sua inexistência o seu ânimo, e se 14 enterra, enfim, com uma palavra qualquer de despedida, como epitáfio. Tudo bem, gostei de te ver, volte outro dia para me ver. Dá um abraço em Jorge. Até logo. (adeus, meu amor). Tenho pensado ultimamente que os ônibus desta cidade não são lugares apropriados para mim. Pensei isto pela primeira vez há cerca de uma semana, quando caminhava lentamente para o ponto e de repente senti como se a minha idade pesasse sobre os meus ombros. O que sempre me pareceu natural e até louvável – porque, afinal de contas, não é o automóvel um dos maiores vilões das metrópoles contemporâneas, um tirano que escraviza os homens, roubandolhes a tranqüilidade para devolver-lhe o quê? Fumaça, barulho e morte! Um deus insidioso com o qual trocamos nossas lentas horas sombreadas do Éden por extensões frias de asfalto e cimento, de marquises e calçadas invadidas, por corpos anônimos estendidos nas avenidas e semáforos que lutam diuturnamente com monstros esfumaçantes e o rumor frenético selvagem do futuro, então claro que todos deveríamos andar de ônibus ou metrô – e quando vão construir a droga do metrô desta cidade?! – e não de carro, porque o carro é o símbolo-mor do individualismo e do egoísmo, mas eis que de repente o simples fato de não ter um carro se apresentou para mim como uma carência, ou melhor, como um sinal de fracasso, porque andar de ônibus na minha idade é uma declaração pública de fracasso, veja bem, não estou me queixando, mas apenas constatando um fato, então pensei que andar de ônibus é o fim da picada para alguém com a minha idade, embora seja até divertido, como quando aparecem cegos e aleijados pedindo dinheiro. Eles entram no ônibus e soltam o pulmão sem dó nem piedade e é isso o que me faz admirá-los; claro que não me refiro aos que ficam gemendo e apelando para o sentimentalismo, esses são pedintes de terceira categoria. Falo daqueles que pedem como quem cobra o que lhes pertence de direito. E, o que é mais divertido, gozando os que lhes dão dinheiro, o seu justo pagamento. Outro dia chegou um aleijado e mal entrou no ônibus já foi gritando: “Cavalheiros e madames, metam a mão no bolso que aceito tudo, 10 centavos, vale transporte! Você aí, Príncipe Charles! Dá um dinheiro aqui pro aleijado! General Figueiredo! Cadê a esmolinha pr’eu comprar minha perna mecânica? Lêide Dái!” e foi por aí, soltando nomes aqui e ali, e eu me dando conta que me encontrava na companhia ilustre de uma multidão de celebridades: fernandenriques capengas, veras fischer subnutridas, jôs soares magérrimos e desdentados, todos de cara amarrada, nada contentes com as comparações do aleijado, como se ele de repente expusesse toda a sua feiúra, e não sei por que eu achava tudo aquilo engraçado, e dava sempre algumas moedas ao aleijado, e olhava bem para ele, até que o via sumir porta afora. Penso sempre com uma ponta de curiosidade sobre os lugares de onde vêm, diariamente, essa multidão de aleijados, camelôs, PMs, pastores, guardadores de carro, menores abandonados, pivetes, ladrões, enfim, toda essa gente que enche as ruas; penso em suas casas, empilhadas sobre os morros e em labirintos de barro e lama, vejo seus filhos, vejo sua 15 imensa carência, vejo tudo isso resumido naquele aleijado e o invejo; invejo o homem que afundado na miséria tem a ousadia de rir na cara dos que lhe dão o seu mísero ganha pão. E quando desço do ônibus deixo meu olhar deslizar pela rua buscando o conforto de um rosto bonito, de uma pele fresca e saudável, de qualquer coisa que arraste meu pensamento para longe daquele aleijado vil e imundo que invejo, para ruas limpas, perfumadas e lindas casas com vista para o mar. (Mas veja! Há também a doce perversão de meter-me anonimamente num velho ônibus – meu bergantim! – que percorre a noite da cidade, e esse prazer intenso de ser um alguém que se confunde com a própria cidade; ser, eu mesmo, a massa cinzenta que enche as avenidas, em frenesi, como um gozo de desespero incontido, oh! burgueses perversamente sadios que olham o mundo do alto das suas janelas fechadas, da sua segurança asséptica e cínica, da sua indiferença que é como uma sentença, eu vos digo que é muito bom estar aqui, também, nessas ruas em que ando com o prazer infindo de nada ser: pernas e olhos e um coração que comunga a dor e a beleza do mundo). Mas não devo ficar aqui divagando, pois, como dizia a minha avó, o pensamento ocioso é um celeiro para o demônio. Com preguiça, entretanto, de pensar coisas objetivas que invariavelmente nos levam a dificuldades de dinheiro, contas a pagar e a receios quanto ao futuro, lembrei-me de uma prática terapêutica que consiste basicamente em interagir com uma imagem que apareça na mente, sem subjugá-la pela razão, mas sem deixá-la ao sabor do acaso, ou seja, permitindo que ela adquira uma dinâmica própria, revelando conteúdos ocultos da consciência, como animais em uma floresta. Fechei então os meus olhos e... vejo uma mulher morena, olhos negros, traja um vestido preto, penso notar um brilho de inteligência nos seus olhos. Ela se aproxima andando na rua escura, é noite, a luz mortiça de um poste ilumina precariamente o ambiente. Estou num canto, próximo a um muro desbotado, velho, imundo. Espero que ela me diga algo. Preciso que ela me diga algo. Peço-lhe que me diga algo. Ela sorri. - Venha comigo – diz. Entramos num carro, com motorista, um homem discreto, acredito que posso confiar nele, mas como sou estúpido! Leva-nos a um bairro limpo, agradável, a um bairro nobre, no outro lado da cidade. Paramos em frente a um prédio cinza, o carro entra na garagem. O motorista desaparece, ela me leva até o quarto, tira a roupa, fica apenas vestida com uma calcinha e sutiã pretos; tira a calcinha e o sutiã, vejo-a nua; ela me beija, encosta seus peitos duros em mim, beija-me o pescoço e vejo que aquilo é tudo o que um homem precisa: que uma mulher o tire da rua deserta e suja, que o receba em sua casa, dentro de si. Mas logo aparece um homem no 16 quarto, ele me alerta para uma armadilha, diz que existe algo mais importante lá fora, que eu preciso sair rápido, rápido. Eu o expulso com violência. A mulher está de costas para mim, abraço-a, ela se volta e me morde o pescoço; sinto os dentes enfiarem-se profundamente na minha carne, nas minhas veias e sinto prazer, agradeço (a quem? não a Deus) por ter expulso o homem a tempo, impedindo-o de me salvar, desejo morrer/viver com ela, mas vejo que existem outras mulheres, outras vampiras no quarto, nuas, sedutoras, deliciosas, minhas, todas minhas, e me vejo afundando e desaparecendo entre seus corpos nus, numa orgia, como um náufrago... Estou assustado, respiro fundo, penso na minha não-leitora que certamente dirá: “O amor pode ser menos perigoso”, mas o que entende a minha querida não-leitora do amor? A minha nãoleitora, ela também poderia aparecer naquela rua escura e com palavras enérgicas e doces diria: “Venha, saiamos rápido daqui antes que ela apareça. Não deixarei que toque suas garras em ti, meu amor”, e me convidaria para tomar um sorvete e assistiríamos à sessão das dez – poderíamos ver A Filha de Ryan, porque ela saberia que aprecio os filmes do mestre David Lean, ou alguma coisa de Hitchcock, ou Terra Estrangeira, para prestigiarmos o cinema nacional – e em seguida iríamos ao seu apartamento onde conversaríamos sob os lençóis, amantes felizes, e riríamos, e faríamos amor enquanto lá fora a chuva caía e o vento soprava e podíamos ouvir o ruido das ondas do mar quebrando nas pedras, e eu encontraria tempo ainda para dizer-lhe do meu fascínio pelo mar, do meu medo das noites escuras, da minha profunda carência e do quanto é bom estarmos os dois ali, sozinhos na alta madrugada, e só então eu poderia saber que o homem estava certo quando disse que havia algo mais importante para fazer lá fora, porque só agora eu posso ver que lá fora é aqui, neste ninho, e lhe peço para não me deixar nunca, porque lá fora, no outro fora, você sabe, é muito perigoso. Existem hordas de vampiras andando na noite; elas são sedutoras e convincentes porque elas também sou eu; o monstro que se auto-devora; a grande baleia branca do mar revolto; e o único lugar seguro é o seu leito. Mergulhamos juntos no lago encantado colhendo pérolas e diamantes e chego mesmo a crer que você existe quando, aqui, nesse silêncio da minha casa, te evoco, como os magos evocavam espíritos na Antiguidade. Mostrei o meu exercício de imaginação ativa (que, claro, anotei devidamente, já que o exercício consiste exatamente nisso: anotar esses delírios para não esquecer depois que os tivemos e ver que temos aquelas coisas todas dentro de nós) para o meu amigo Máximo, doutor Máximo, psiquiatra renomado e um dos mais festejados da vanguarda médico-esotérica da cidade. Ele olhou com seriedade para minhas anotações e arriscou um palpite: “Você precisa aceitar a sua sombra”, sentenciou. Entendi, pois há muitos anos venho me familiarizando com a terminologia junguiana, que deveria olhar de frente o meu lado obscuro, aquele eu que 17 normalmente negamos e que expulsamos para as catacumbas por achá-lo perigosamente antisocial. - Você diz isto por causa delas? – perguntei. Ele sorriu. – Elas são você mesmo. São os seus desejos reprimidos. – Então você sugere que eu me entregue àquelas vampiras tresloucadas? Não. Sugiro que converse com elas. Que as ouça. Que saiba o que, exatamente, elas querem de você. É melhor, sempre, que enfrentemos aquilo que nos ameaça à luz do dia. À noite elas são sempre mais poderosas, e perigosas. – Você fala como se existissem de verdade. – Mas elas existem! Não se iluda: elas são reais, mais reais do que essa casa, do que essas paredes. São arquétipos, energias que têm uma existência independente, no nosso inconsciente. Voltei para casa matutando naquelas palavras. À noite, no pátio silencioso da minha casa, em Itapuã, olhando o mar ao longe, ouvindo o ruído do vento nas palhas dos coqueiros, resolvi arriscar mais uma sessão da imaginação ativa. Me vi de pé, no meio da sala, voltado para a porta. Ouvi passos: ela chegava. Abriu a porta, entrou. Estava linda, vestida de preto, os cabelos negros, a boca vermelha, o porte altivo, sabia o que queria e não tinha nenhum pudor em conseguir o que queria, e era isso o que eu mais admirava nela: a sua decisão – límpida, direta, tansparente, sem arrodeios. Disse que queria fazer amor. Eu disse: “Você quer me dominar, você quer me matar”. “Não”, ela disse. “Quero apenas tê-lo para mim”. “E a minha vontade?” “A sua vontade é ser meu, inteiramente; a sua vontade é não ter vontade. É não precisar mais decidir entre o certo e o errado. É apenas obedecer”. “Então deixarei de ser um homem”. “E que importa isso? Você terá a mim”. “Um escravo”. Ela sorriu. Vi mais uma vez os seus dentes de vampira e senti medo. Senti muito medo. – Você é um monstro. – E o que importa isso? Abraçou-me. Beijou o meu pescoço. Lambeu meu rosto, abriu a minha camisa, beijou meu peito, minha barriga, abriu o zíper da minha calça e... recuei, assustado. – Não vou mordê-lo – sorriu. Fechei o zíper, me recompus. Mas não sabia o que dizer. Não podia expulsá-la e me pareceu que a presença dela comigo era inevitável, para sempre, mas eu teria que me impor; teria que dominá-la, se não quisesse ser destruído. Contei a experiência no dia seguinte para Máximo. Senti-me ridículo em me expor daquela maneira, e ainda mais de dar credibilidade ao que me parecia ser uma grande mistificação. Como ele poderia ajudar-me em alguma coisa se a sua própria vida era um caos? Pensei que a vida dele era uma mostra do que pode acontecer a uma pessoa quando começa a imaginar vampiras e, pior, a conversar com elas como se fossem reais! Ele me olhou seriamente, ou melhor, com gravidade. – Você precisa dominá-la. Se não o fizer, se tornará seu escravo. Perderá sua autonomia, o domínio sobre si próprio. Será, você mesmo, também, um vampiro, vagando incessantemente pela noite em busca de um prazer que jamais será saciado. 18 Ele disse que eu preciso reagir, mas eu sei que eu preciso reagir a muitas coisas, a tudo que eu não reajo, porque logo aparece alguém para dizer: você é muito chato, e essas pessoas, não se engane, elas se escondem atrás dos mais variados disfarces; elas são a feminista avançada, que logo logo lhe convencerá que ter um pênis é uma doença incurável; ou aquela psicóloga, que acha você um idiota por não entender que Lacan é a última palavra; ou ainda aquela Comunicóloga, que fala com palavras empoladas o que poderia dizer simplesmente cagando e andando, e ainda acha que está falando de vanguarda (questões de gênero e outras americanices), e veja se eu ainda tenho saco para essas coisas, aos 38 anos, pelo amor de Deus, isto resseca o cérebro minha gente, isto é cocô da vaca louca solta no pasto da Modernidade; mas antes que fiquem falando mal de mim por aí, deixe-me dizer que eu não tenho nada contra essas modernas crendices, assim como não tenho nada, absolutamente nada contra vampiras, porque elas têm muito charme, e no final das contas elas são as únicas que aparecem para dar apoio moral na hora H em que você se arrasta para o túmulo com a garganta cortada espalhando suas vísceras pelo caminho, urrando e bufando como se tivesse num filme de Martin Scorcese, tomando paulada pra aprender que na Máfia só sobrevive quem tem culhões e inteligência, que o mundo é dos mais perversos, daqueles que atiram primeiro no meio do peito pra não errar, porque eles atiram assim pra só depois enfeitar com aquelas firulas de acertar no meio da testa, você sabe, primeiro tem que garantir que o cara não vai fazer o mesmo com você, e se for possível meta logo cinco balas na cara, antes dele poder dizer “ui”, então aí você vai ter a certeza que ganhou a parada, meu irmãozinho, e depois tudo mais é detalhe, porque o mais importante é ficar vivo, cobra comendo cobra, mas como eu ia dizendo, o Máximo, digo, o doutor Máximo tem toda razão quando diz, com aquela cara de sonso, que eu preciso reagir, e é isso mesmo que eu estou fazendo, porque essa história de enfrentar a sombra tem sua razão de ser, mas para enfrentá-la temos que acender um holofote em cima dela e chegar logo chutando que a bicha, desculpe a falta de delicadeza, não tem papas na língua nem um pouquinho só de moral, porque ela é mais que uma vampira, ela é uma vampira sonsa e sem vergonha que fica jogando charme assim pra você cair e aí, meu chapa, você tá é ferradinho, e Máximo, digo, doutor Máximo sabia disso quando disse que preciso enfrentá-la, mas não me disse como, porque esses psicólogos pensam que basta dizer que a bicha tá lá e a gente sabe o que vai fazer com ela, porque um médico não deve se envolver com o seu paciente, ou interferir; então me larga no meio da zona, na hora quente do samba do caralho que corre solto procurando um distraído pra ferrar. Mas eu tô de olho abertinho, meu chapa, eu tô de olho bem abertinho pra você não se meter a besta comigo. Mas o que me morde mesmo é essa vontade de ir e de não ir; de saltar no meio do carnaval e de ficar aqui na moita olhando a banda passar, porque você sabe que o demônio anda solto no mundo enrabando tudo quanto é cristão folgado que não sabe qual é o seu lugar; pois então vem esse cara dizer que eu preciso reagir e reagir é o quê? É me ver 19 rastejando e lambendo a merda, é chutar-me e reconhecer que eu também sou aquilo, que não sou esse santinho todo que você pensa que sou, e que ninguém é esse santinho, porque no fundo no fundo nós somos é uma floresta cheia de bicho de todo tipo que se entredevora? Eu sou a vampira? Mas você não sabe nada do que ela é capaz, e devo confessar que não tenho mesmo vontade de escrever aqui o que ela é capaz. Deixo-a, porém, vir, mais uma vez. Vejo-a agora numa praia deserta, nua; morde o próprio pulso e lambe o sangue que dali jorra, com volúpia, como se fosse aquela a única vez; aproximo-me e lambo também o sangue do seu pulso, que se espalha rapidamente sobre o seu corpo e sobre o meu; e ela me morde também enquanto... oh, que morte horrivelmente bela esta de dois seres que se bebem mutuamente até não restar-lhes nada mais que despojos que as ondas levam lançando sobre os arrecifes. E é o diabo agora que anda, vermelho como um cão danado, pela beira da praia, e ri satisfeito do seu poder, enquanto rezo e peço a Deus que nunca mais permita que alguém veja aquela visão monstruosa, e me arrasto pela areia, e fujo daqueles monstros, lembrando que existe um santuário doce que se chama O Lar, e ele está no outro lado daquela rua, e daquela outra, e de outra e outra, cruzando avenidas movimentadas, passando sob viadutos e pontes, e fontes, e trilhas, e largos, e jardins, atravessando rios e colinas, enquanto o meu coração serena, aos poucos, reconhecendo o que é verdadeiramente meu: a rua, o jardim, a casa, a porta que abro e lá dentro, na penumbra, o vulto da minha mãe que o tempo carregou para longe de mim; minha mãe, aqui dentro desta sala é tudo calmo e são, como os ruídos e o ambiente das tardes da minha infância. Ela está lá, quieta, e quando encosto a minha cabeça no seu colo, ela vê que estou sujo de sangue e suor e mijo e merda; vê que me arrastei como um degenerado pelos esgotos, deixando pedaços de pele aqui e ali, mordido, pisado, cuspido, ferido – mas que continuo sendo o menino puro que brincava à frente do seu olhar amoroso. Mário me deu seu novo livro para ler. Mário é um amigo muito querido, escreve com algum engenho, aliás, como convém aos escritores pós-modernos. Fui ao lançamento do livro dele, revi pessoas, colegas jornalistas, escritores cujas conversas giram ainda em torno do álcool. Trouxe o livro do meu amigo e, durante algumas semanas, censurei-me intimamente por não tê-lo lido, como, aliás, tenho feito, injustamente, talvez, com tantos outros: essa minha mania de só querer navegar em águas consagradas, como se nada mais valesse a pena além de kafka e borges; de guimarães e hemingway, de graciliano e dostoievski – sim, porque as livrarias estão sempre muito cheias de títulos e nomes, e estão sempre chegando outros e outros que se acumulam ao longo dos anos, e realmente, intimamente, penso que todos esses escritores não devem mesmo trazer algo melhor e mais atual, então por que não ir direto à fonte já que não posso lê-los todos? Oh, mas existem os amigos, e se os amigos recebem esse nome: escritores, é porque, afinal de contas, devem ter algo a dizer. Como estou sendo arrogante, meu Deus! 20 Perdoem-me, deve ser o clima ou aquele estranho ser que chamo de Meia Idade – esse ser rancoroso que traz consigo nenhuma generosidade, nenhuma afetividade. Mas eis, enfim, que num feriado prolongado da Semana Santa, por descuido ou mera força do dever, eis que lanço mão do livro de contos dele e, deitado na rede, da qual uma chuva repentina em lufadas de fim de verão me expulsa, então, agora, sentado numa cadeira desconfortável na sala, começo a lê-lo: começo devagarinho, e não falarei aqui do que li, mas do que me veio à mente durante todo o tempo em que li o primeiro conto: sim, ele escreve bem, sem originalidade, mas com certo desembaraço; faz o gênero literatura fantástica – mas esse gênero já está tão desgastado e anacrônico! Lembra-me Cem Anos de Solidão, claro que sem o vigor, a criatividade e a originalidade do Garcia Marquez. Falta fôlego, falta poesia. Sinto-me bem em ler esse trabalho do meu amigo. Mas há uma ausência nele que está também em mim: a ausência de personagens mais reais, de carne e osso; o universo dele é meio onírico; falta vida, talvez, mas não estou certo disso. O conto dele me deixa inquieto, me desagrada um pouco; mas talvez essa crítica não tenha fundamento. A literatura mais verdadeiramente realista não é necessariamente a que aborda personagens de carne e osso vivendo em mundos concretamente descritos, mas aquela que fala dos nossos sentimentos mais íntimos, mais profundos, mais contraditórios. Esse, certamente, não é o caso de Mário – as personagens dele são imprecisas, ficam no meio do caminho, são bem comportadas demais. Ele não se colocou inteiro, certamente porque não sabe fazê-lo. Gosto da leitura; olho a capa do livro: bonita, bem feita, bem melhor do que a do meu livro, lançado há alguns anos – um volumezinho pequeno que transitou direto das minhas mãos, pelas mãos de alguns poucos amigos, para o esquecimento. Gostei, aliás, que tenha sido assim: aquele não era o meu livro. Mas, deixemos de digressões, voltemos à leitura do conto de Mário: ele se desenvolve meio fantasioso, começa, estranhamente, a ganhar forma do meio para o fim; de repente vejo que todos aqueles elementos desconexos ganham sentido, ganham força, unidade – e até poesia, ausente nas partes, surge inesperadamente no conjunto. Vejo, com alguma hesitação, que ele possui um, como diria, um corpus. Cresce o desgraçado até o final surpreendente: melancólico, lírico, desconcertante. Sinto lágrimas virem-me aos olhos. Reinicio a leitura, confuso, e aonde antes via falhas e desajustes, vejo agora um tecido habilmente bordado; uma obra de escritor. Sinto-me triste, pesaroso: quem diria: Mário! Então o miserável é realmente um escritor! Penso que preciso ligar para ele e dar-lhe parabéns. Ligarei para ele, falarei com entusiasmo, com a felicidade de um amigo que vê, com alegria, o outro crescer. Mas ele é tão mais novo que eu! Medito profundamente sobre o livro de Mário, sobre a capacidade que ele tem de me surpreender; penso que a leitura deve ser precisamente isto: uma surpresa contínua, um arrebatamento, um desconcerto, mesmo que dissimulado numa forma despretensiosa, até 21 mesmo aparentemente burocrática, como em Kafka; ou destituída de paixão, como em Borges. Pode ter reentrâncias e esconderijos secretos, ocultos numa linguagem linear, ou perdida num vendaval de (re)invenções. No caso de Mário, a surpresa estava presente o tempo todo naquela ausência, tecida na narrativa monótona, como lobo em pele de cordeiro, para nos abocanhar ao final com seu lirismo. E eu? Onde está a minha surpresa? Percebi, com pesar, que tudo o que escrevera até então não passava de pensamentos convencionais derramados no papel, talvez pela impossibilidade que tenho de dizer algo, ou pela covarde ilusão de que um texto não pode ser contradito: ele é e ponto. Como leitor de mim mesmo, poderia acreditar que algo havia sido dito, que uma garrafa fora lançada ao mar. Agora, entretanto, percebi que a garrafa estava vazia, que sempre estivera vazia, boiando inutilmente sobre as águas. Dentro dela mora, não o silêncio, mas uma ausência; uma insignificância. Era isto que o texto de Mário me dizia? E por que me incomodava tanto, a ponto de quase detestá-lo pela sua despretensiosa beleza? Via-o como uma apropriação indébita, como uma traição. Diante de mim, o espelho refletia a minha ausência: vampiro de mim. Olhei as paredes dos edifícios com suas nuanças de cores sob o sol; com suas fraturas e fissuras; com seus ângulos previsíveis – sentia-os como a mim. Olhá-los não revelava nada da vida que ocupava seu interior; suas fachadas nada dizem dos sonhos das pessoas que lá estão; ao contrário, sua existência os esconde dos nossos olhos; os apagam, os negam. Mas existem as janelas e as varandas; como num computador, existem os arquivos que podem ser acessados, e outros e outros, como caixinhas de surpresas. Sinto-me assim: uma caixinha de surpresas que deve ser aberta e desvelada. Mas como? Passei todo o dia com esse pensamento, e o seguinte. Lembrei-me da francesinha de Godard perdendo-se na rua (para sempre?); lembrei-me das vampiras e do bêbado no ônibus. Pensei neles como personagens de um delírio no qual me insiro: o eu de muitas faces que esconde o seu riso, com medo de se ver. Levantei-me de noite da cama, insone e apreensivo. Andei pela sala e pelo corredor; cheguei à varanda, olhei as estrelas lá fora e, estranhamente, pensei que alguém queria se apresentar, saindo do fundo escuro daquela noite. Alguém queria ser revelado por mim – e ele seria o meu personagem, o herói cuja história será lançada, dentro de uma garrafa, através da noite e das ondas. É sobre ele que escreverei um dia, iniciando uma narrativa, ou, dizendo melhor, anunciando uma história que não é minha. Para escrever sobre ele, terei, antes, que conter o meu próprio discurso, domar minhas palavras, dar sentido, conformar uma idéia. Primeiro: quem é ele? De onde vem? O que quer? Qual a sua aparência? Qual o seu nome? Um dia escreverei sobre ele. Mário não perde por esperar. Escreverei, sim, mas não neste domingo, porque domingo pra mim é dia santo, de preguiça. Não de descanso, de preguiça mesmo, de não pensar. E como é um dia de não pensar? É ler o jornal por ler, é ver tv por ver, é ir à praia, apenas e tão somente, por ir. É não esperar 22 nada de nada. Mas os domingos nem sempre foram assim. Lembro-me da minha adolescência – oh, que coisa mais pedregosa – quando era justamente nos domingos que eu esperava tudo: esperava, sobretudo, que aquelas mulheres maravilhosas na praia me dessem seus corpos, suas lágrimas, fantasias e fantasmagorias; seus risos, peitos e xoxotinhas que me perturbavam, principalmente, claro, nas noites de domingo, quando tudo se amansa no mundo dos velhos – neste mundo que entro agora achando que não se deve esperar nada dos domingos. Naquele tempo, meu pai gostava de assistir Flávio Cavalcante na TV, e eu achava que havia algo de muito importante e solene em se assistir Flávio Cavalcante na TV. Mas, em mim, ali, no lardoce-lar de cafés com leite, pães, bolachas e ovos fritos, com minha mãe cuidando disso e daquilo enquanto meu pai assistia “Um Instante, Maestro!”, eu me abrasava nas imagens do dia: daquela garota, como era mesmo o nome dela? Sônia!, que ficava no meio do samba, de biquíni, um biquinizinho de deixar qualquer rapaz maluco; e digo samba, deixe-me explicar, porque Itapuã, pra quem não sabe, é um bairro à beira-mar, inundado de sol e de ondas, e nesse lugar muitas pessoas acham que o domingo é um dia pra beber cerveja e bater naqueles timbaus, e eu achava muito importante também aqueles caras suados e bêbados que ficavam dizendo palavrões, de sunga, se esfregando na maior promiscuidade – e intimamente me censurava porque não podia ser como eles, porque no fundo achava tudo aquilo muito grosseiro e vulgar, mas dizer isso era como passar um atestado de veadice ou coisa que o valha, porque, afinal de contas, aquelas mulheres todas, com suas coxas e barrigas suadas, metidas em roupas sumaríssimas, pareciam gostar mesmo era da tromba do machão – e do machão que batesse mais forte no tambor e que gritasse mais alto, e que mostrasse mais enfaticamente que estava se divertindo à beça, porque, naquela época, eu não podia admitir que alguém se divertisse caladamente, em silêncio e sossego. Sofria com isso, porque dentro de mim, o que gritava mesmo era aquele silêncio ausente; aquela vontade de me deitar na praia e ouvir – apenas ouvir – as ondas macias quebrando. Mas não podia dispensar, claro, a presença de Sônia, que chegaria devagarinho, com o seu biquíni – indispensável, diga-se de passagem –, que logo tiraria pra ficar nuazinha em pelo, comigo, sem machões e tambores, sem cachaça e aquela obrigação de mostrar que era macho e isso e aquilo pra depois ficar passando a língua no asfalto e tomando banho com água de passarinho, tropeçando em pedras e raízes e dizendo besteiras sem fim, porque, você sabe, performance de bêbado é um papelão só. Ah, como seria bom tê-la, e a outras, muitas outras, sem ter que passar por tantas aporrinhações, porque, no fundo no fundo, era só aquilo que eu queria. E era o que eu tinha, como consolo, nas noites quentes daqueles verões de adolescência: mulheres nuas saltitando pela casa como fadinhas safadas, pulando em toda parte como macaquinhas peraltas, espalhando-se pela sala diante da figura austera do meu pai que assistia Flávio Cavalcante e da minha mãe que me olhava, de vez em quando, com seu olhar terno, imaginando, talvez, o que passava na cabecinha do seu filhinho 23 (coleguinhas, estudos, brincadeiras?), oh, minha mãezinha, você nem sabia que diabas me atentavam e tomavam conta do nosso pacato e venerado lar. E, como lilites endemoniadas, só me deixavam em paz depois que derramasse no banheiro a minha oferenda dominical – para só então partirem, pelos ares – mulheres de mil rostos e multicorpos: morenas, loiras, negras, ruivas; angelicais e matreiras. Como eram difíceis aqueles domingos. E, aliás, pensando bem, prefiro essa maré mansa dos meus domingos de Meia Idade, em que Sócrates e Aristóteles, com suas figuras enigmáticas, visitam-me para uma conversa sobre idéias e poesia; e a estes se juntando o venerável Ésquilo e o formalíssimo Kant – habitantes de penumbras e solidão. E vamos caminhando, todos, nos interstícios da memória que se estende para o passado longínquo no qual gigantes se entrechocam com suas espadas e filosofias; com palavras de fogo e fugacidades; com arroubos e violência; com desespero e o divino fogo da [inquietude]: Nietzsche, Poe, Baudelaire, Eliot, Borges, o que fazem aqui, nesse domingo do qual nada espero e nada penso, e nada sou? Meus passos neste domingo nada mais têm de mar e de horizontes; eles se fecham num círculo de ausência e quietude – onde descubro que todos os poetas e filósofos se encontram, justamente, onde não há pensar. Nesta janela que se abre para edifícios luminosos, pois já é noite, e as praias movimentadas são agora, para mim, como a multidão da Mesopotâmia e de Jericó. A noite me engole, na varanda, enquanto ouço ao longe a estranha algaravia da cidade: vozes, crianças, cães, programas de TV. O fantástico show da vida que não termina, nem jamais terminará, mesmo quando não houver mais ninguém para ver e ouvir e sentir – porque a vida está, mesmo, é na ausência, no silêncio. A vida é o silêncio. A vida é o vazio sem fim do tempo que engole tudo e todos; a vida é aquele grão de areia na praia e o mar que o lambe como cachorro, como gato, como eu e tu, meu amor. Eu e tu: únicas personagens desta obra que se constrói também com palavras que não foram escritas, ou que somente foram sussurradas alhures, em algum lugar que nem eu mesmo sei o que é. Procuro clarear com palavras um mundo de obscuridade, mas estou mergulhado nesse mundo de obscuridade e, aliás, devo pensar mesmo que poucos sabem de onde vêm realmente as palavras – palavras que surgem como por encanto, do nada. Escrever é retransmitir mensagens, na linguagem do seu tempo, ou na linguagem do porvir. Idéias: o que são? O mais espantoso é que as utilizemos com tanto desembaraço, sem saber o que são; o que sou. Um exemplo: fecho os olhos, o que me vem à mente? Um pássaro canta sobre um fio numa tarde que finda. Dele nasce um rosto humano. Ele quer expressar algo, mas ainda não sabe fazê-lo. Emite ruídos indistintos, e como se aos poucos se humanizasse, diz: - Sou uma canção enviada a ti. - De quem? 24 - Da noite. - E o que ela diz? - Que tudo passará, rápido, rápido... O pássaro continua falando coisas que não fazem sentido. O sentido é o pássaro? O sentido sou eu, o não-sabente, o pássaro-mor, que fala consigo mesmo pensando que é outro, e ainda é capaz de sair pulando por aí, conversando com pedras, chutando nuvens, cantando. Veja você aonde chegamos: eu falava do quê? Eu falava de mim. Aliás, descobri hoje que sempre falei de mim, que sempre falo de mim, porque o outro de quem falo é esse eu disfarçado que penetra nas festas de Natal para comer peru de graça, sendo ele o próprio peru, veja, meu Deus, se isso faz algum sentido? Mas pra que alguma coisa precisa fazer sentido? Qual o sentido de um poste? Sustentar a lâmpada que vai iluminar a sua cara de imbecil? Eu posso dizer também que o sentido do poste é servir de mijador de cachorro, ou de destino de carro de bêbado, ou ainda de encostador de namorados, mas eu continuo insistindo que um poste tem tanto sentido quanto uma galinha, cujo único sentido é não saber se vai pra esquerda ou pra direita, ou seja, não tem sentido nenhum aquela maluquete: ela me lembra aquele conjunto de mulheres que fez muito sucesso nos anos 70, como é mesmo? As Frenéticas – você já viu coisa mais disparatada? Mas elas também, como as galinhas, fazem parte dessa minha bem-querença malemolente de alguém que escreve com absoluta liberdade para não ser lido. Trabalhar, não existe coisa me dê mais vontade de ficar estátua, pau, pedra, gaveta, ou seja, qualquer coisa que não se mexa, que nem respire, que nem diga ai, porque um movimentozinho qualquer e vão perceber que somos gente e gente precisa pegar no batente, você já viu só que maldição? E então eu fico pensando o que faria se não precisasse trabalhar, e sabe o que concluí? Que iria escrever um livro daqueles que o Norman Mailer escreve – como A Canção do Carrasco, que temos de buscar na livraria com um carrinho de mão, e que levamos 365 dias para ler e concluir no final que não devíamos tê-lo lido, pois ele não é pesado apenas no peso material, a história é de lascar – e cadê os brasileiros que não escrevem um livro assim desse tipo sobre a vida de um homem, que se estrepava desde menino, para então entendermos por que ele matou e foi parar na cadeia, e foi condenado à morte etc e tal. Em suma: precisamos de um escritor mundo cão, e sei que você logo dirá: e José Louzeiro, e João Antonio, e Rubem Fonseca; mas eu estou falando de escritores que escrevam obras de peso, como o Mailer, que com certeza não gira bem da bola; pois lhe garanto que para um escritor escrever sobre tanta coisa ruim, não deveria ultrapassar um determinado número de páginas, por exemplo, 150 páginas, além do qual ele pira mesmo! Você já pensou: ficar 24 horas durante anos e anos com um psicopata maluco doentio assassino sádico na cabeça? Dormir com ele, 25 acordar com ele, trepar com ele (quero dizer, trepar com uma mulher, mas com o outro na cabeça), e até na hora de gozar ficar vendo aquele sangue todo jorrando, pessoas gritando, e o cara pá pá pá, porra até eu já tô ficando maluco só de pensar nisto; e é por isso que eu digo de mim pra mim: ser escritor é uma desgraça, rapaz, melhor mesmo é trabalhar com informática, onde tudo é soft, porque hard mesmo é esse mundo vasto mundo lá fora. Mas não sei por que esse mundo cão me fascina, ao ponto de eu ficar lendo as páginas policiais, observando bandidos e mulheres, prostitutas, traficantes etc, e ficar muito curioso sobre o que se passa na cabeça deles; e será que não é isso que todo mundo pensa quando vai assistir filmes policiais, digo policiais de verdade, nos quais psicopatas malucos ficam humilhando a polícia até que na hora H eles se ferram e então podemos respirar aliviados, porque o bandido morreu, mas sem saber que o bandido está vivinho da silva dentro de cada um, por isso eu digo: se cuide, meu irmãozinho, nunca pense que você é um santo, primeiro porque esses hagiológios da Igreja Católica Apostólica Romana mentem pra chuchu, pois a grande maioria dos grandes homens da história das religiões eram mesmo uns pinéis que não tinham coisas mais importantes a fazer do que ficar inventando teorias esdrúxulas para infernizar a vida dos pecadores por centenas de anos afora. Mas voltando aos criminosos – que, por sua vez, não são tão maus quanto parecem, são piores! – penso que nos faltam escritores jornalistas machos pra registrar as coisas que acontecem nesse submundo. Vejam, por exemplo, essas histórias de tráficos de crianças crianças que foram ali comprar uma coisa na farmácia, ou que estavam esperando o papai e a mamãe na frente da casa, e de repente, puft, desaparecem como por encanto – desaparecem para o desespero, para o inferno dos pais, irmãos e amigos, e ninguém nunca mais ouve sequer falar delas. E em vez delas, aparecem boatos os mais escabrosos sobre tráfico de órgãos, rituais de magia negra, escravidão (estamos quase no século XXI!), mas fica tudo por isso mesmo, e nenhuma autoridade fala nada sobre o assunto, e ninguém investiga mesmo seriamente essas coisas, e o exército não sai dos quartéis, pois crianças que desaparecem não são tão importantes quanto terroristas que aparecem, nem grevistas, nem agitadores sociais. Você veja: estão matando as nossas crianças, e o presidente da República não diz nada sobre o assunto, porque, claro, ele está muito ocupado conosco, com o nosso bem-estar, com a nossa economia, com a democracia, com os mercados internos e externos, com as taxas de juros, o déficit público e as reformas, preocupado, enfim, com tantas coisas importantes que não sobra tempo pra dizer: chega! eles não podem fazer isso com as nossas crianças! – porque o presidente, acho eu, pode fazer alguma coisa, mas eu mesmo é que não sei até que ponto posso sair por aí desvendando coisas, sem pegar, no mínimo, uma paranóia braba, achar que alguém no outro lado da rua tá de olho em mim e que vai soltar uma mandinga braba pra desandar minha vida como, aliás, dizem que fizeram com um delegado muito sério que havia nessa cidade e que se meteu a investigar um sacrifício ritual – coisa das mais macabras – ocorrida num matagal, e aí... mas não vale a 26 pena esticar muito esse fio, porque pra esticar esse fio é preciso ter muito peito, e por detrás um pelotão de rapazes parrudos com fuzis e escopetas, além de muita inteligência; mas vejam que a cidade está cheia de histórias mal contadas, crimes encobertos, e, claro, aqueles patos que entraram de gaiatos no navio e amargam o opróbrio sem nem poderem dizer que não têm nada com isso nem com aquilo. Então, cadê o Norman Mailer? Cadê Truman Capote? Cadê o nosso grande romance policial? Quem vai contar a história dos nossos cadáveres? Oh, mas eles são tantos e ainda estão insepultos; os corpos estão aí meio escondidos e meio à vista de todos, e por detrás de cada um deles estão esses caras esquisitos que vivem nas sombras. E eles não estão apenas nas circunscrições policiais. Muitos estão aí com os pés afundados no lodo dos cemitérios e a cabeça pairando na sociedade fina flor do desejo, e até, por que não? fazendo tantas benfeitorias e, claro, recebendo homenagens disso e daquilo, sempre uma boa desculpa para a boca livre. É preciso, pois, alguém que pegue na ponta desse fio, de baixo até em cima, e sabe de uma coisa? Esse fio conta a nossa história: 500 anos de história da planície ao planalto, dos porões ao sótão com seus esqueletos. O Brasil guarda o seu esqueleto no armário e o mais engraçado é que ele está à vista sem estar, podemos olhá-lo sem vê-lo, podemos apontar para ele e dizer: veja, ele está ali, mas não podemos pegá-lo, nem nomeá-lo, porque nomear é possuir, é desvendar, é transformar - e esse esqueleto, meus senhores, está muito cheio de pelancas e podridão; ele é sempre um ser semi-insepulto, um zumbi, um não-coisa; é o nosso maior patrimônio semovente: o fantasma-mor da nossa identidade, um monstro cheio de tentáculos que se estende pra todos os lados: seus dedos são políticos, policiais, esquadrões, madames, funcionários públicos, taxistas, porteiros de hotéis, donos de motéis, traficantes, prostitutas, donas de bordéis, jornalistas, boêmios (se é que ainda existem boêmios; talvez fosse melhor dizer: bêbados), estudantes universitárias, comerciantes etc. etc. etc. Mas você pode dizer que estou falando tanto sem dizer nada e que todo esse blábláblá certamente não nos levará a lugar nenhum – e você terá toda razão, porque o que eu quero mesmo é ficar sossegado aqui no meu cantinho. 27 III. A menina no corredor Sábado, é tarde da noite, chove muito e estou aqui diante do computador sentindo aquela melancoliazinha que me bate de vez em quando sem eu mesmo saber por que. Penso que seria melhor conversar com um ser de outro planeta, um homenzinho verde ou azul. Poderia dizer para ele: Eu existo. - Sim - diria ele. - Eu sei. - E isto faz alguma diferença para você? Sim, porque você é estranho, e tudo que é estranho é permanente, inesquecível, fascinante. Oh, meu Deus, acho que bateu de novo aquela malquerença que já me atingiu outras vezes, duramente, como, por exemplo, naquela viagem à Amazônia, quando me senti um peixe-boi muito feio, desengonçado e insignificante. Acho que é por isso que esses caras solitários saem pelas ruas matando gente, é porque eles se sentem assim: insignificantes. Matar gente é a forma que encontram de existir, de existir mesmo, de uma forma que não deixe dúvidas. Matar gente na rua, atoamente, é uma afirmação (uma desesperada tentativa de afirmar a vida, que é, no entanto, apenas uma profunda afirmação de morte). É triste isso, meu irmãozinho, mas olha, não devemos ficar com idéias assim obscuras. Podemos encontrar um amigo para conversar. Como é ele? Deixe-me ver: moreno, alto, um pouco tímido, mas muito inteligente e discreto, muito sensato e tranquilo. Ele pede que eu me sente na balaustrada – estamos diante do mar. Digo para ele que me sinto assim porque não tenho todas aquelas qualidades que acho importantes num escritor: o estilo conciso de Graciliano, por exemplo; a capacidade de exprimir, com palavras, a passagem do tempo e a brevidade dos homens, como Érico Veríssimo. Ou a sutileza perversa de Machado. Enfim, desculpe-me o nhen nhen nhen, mas o que posso fazer se me descubro assim, sem aviso, um escritor emergente, um emergente que nunca emerge - um nautilus enferrujado no fundo do mar? O que você gostaria de fazer?, ele me pergunta. Oh, pelo menos eu poderia andar num iate pelo mundo, visitando países e escrevendo histórias de espionagem B, ganhando muito dinheiro, encontrando mulheres exóticas e fascinantes. Mas deixe-me ir – seguirei meu caminho, arrastando-me sobre esses cacos de vidro, o que restou da festa que também acabou. Mas para que servirá a alguém saber desses destroços? Chove, é noite, é sábado e estou aqui, só – porque quero, porque preciso? Lembrome de outros tempos, quando tinha amigos, e é deles que sinto, no meio dessa solidão, um afeto: daquelas noites vadias, daquelas noites cheias de riso, mesmo que falsos, mesmo que tristes, mas de qualquer forma risos, cheias de solidão compartilhada, de solidão que é como uma multidão solitária. Engraçado isso: todos nós somos uma multidão solitária, e é por isso que inventaram esse negócio de televisão, satélites, Internet, porque nós somos uma imensa multidão solitária de homens e mulheres que quer falar consigo mesma, mas que não consegue sequer ver a sua própria face no espelho. Vazio de possibilidades. Possibilidade? Não é isto. 28 Aliás, nada do que escrevo é o que quero dizer, simplesmente porque para dizer o que quero dizer precisaria de novas palavras: algo asssim como iluminescências para exprimir aquela alegriazinha que sentimos, por exemplo, quando crianças, quando numa festa uma garota – aquela garota que gostávamos muito e sonhávamos – nos olha e sorri. Mas devo confessar que sou muito pobre nessas invencionices, e que sinto inveja mesmo desses poetas que são poetas em tudo que dizem e fazem, que inventam palavras e, assim, renovam o mundo, vivendo em constante mutação. Escrever não é apenas derramar palavras no papel, mas desconstruir e reconstruir, ao mesmo tempo, a realidade e a nossa maneira de vê-la. Sim, eu sei que a reação mais normal seria a de nos deleitarmos com eles e aplaudi-los, mas você sabe que não é assim que nos sentimos com a glória alheia. Mas já nem sei por que esses pensamentos bestas, e se eu escrevo isto é apenas porque chove, porque é noite, porque é sábado e estou aqui, só. Lembrome de outros tempos, quando tinha amigos. É deles que sinto, no meio desta solidão, uma doce saudade: aquelas noites cálidas, quando comentávamos nosso livro favorito: O Encontro Marcado e acreditávamos que um dia também escreveríamos algo definitivo sobre a nossa geração, sobre todos aqueles momentos que tristemente, agora, deixamos cair no esquecimento. Nós somos culpados por isso, porque, de repente, algo nos convenceu de que não valia a pena mais catarmos nossos destroços na praia, juntá-los e darmos um sentido a eles; precisamos dar um sentido aos nossos destroços, simplesmente porque nossos destroços sou eu; e quem sou eu? Sou aquele que fez um discurso, bêbado, numa festa de largo e foi aplaudido pela multidão; sou aquele que dançou com a prostituta barregã num prostíbulo em Terezina; sou aquele que foi levado inocentemente a um motel por uma loura safada, uma ninfomaníaca muito engraçada que ria de sua própria tara e fazia as coisas parecerem muito naturais. Mas diante dos meus olhos só vejo mesmo é uma mulher que são muitas e intermináveis. E se estendo minhas lembranças para o passado longínquo, já as encontro lá, habitando as minhas fantasias de menino. Mas eu não sabia nada de mulheres quando, ainda criança, ficava pensando que devia haver algo mais para se fazer com uma menina do que simplesmente beijá-la, que um beijo não satisfaria nunca aquele desejo que eu mesmo não sabia o que era. O que quería, realmente, era algo que ainda não tínha condições de entender, pois o que todos nós queremos mesmo é nos bebermos inteiramente, entornar nossos mares e oceanos dentro de nós. Sou, portanto, aquele que, sedento desses mares, vagueia pelos desertos de carências nesta noite que hesita em se derramar. Posso parar na frente de uma banca de revistas e ficar lendo todas aquelas notícias de artistas de cinema, de políticos e escândalos, de festas memoráveis e festivais. Leio e prossigo andando até desaparecer na escuridão. Mas eu não posso desaparecer de mim; talvez nunca possa – eis aí a grande promessa da vida eterna. O decreto inexorável de que jamais poderemos nos perder de nós mesmos. Estaremos sempre caminhando, caminhando, diuturnamente até o Grande Dia, ou a Grande Noite – quem sabe? Quem sabe verdadeiramente? Por isto continuo 29 caminhando, caminhando nessa noite, e enquanto ninguém aparece para conversar – como nos velhos tempos, nos velhos bons tempos da minha infância, quando todas as noites meu pai proseava com o nosso vizinho que, como ele, gostava de criar passarinhos e pombos, e tudo era muito simples naquele tempo, e eu mesmo, criança, ficava observando aquela prosa recheada de risadas e silêncio e de gestos largos e de uma imensa tranqüilidade. A tranqüilidade de quem sempre pode deixar as portas abertas porque não há quem possa roubar, nem por que roubar, a não ser claro aqueles ladrões de galinha que sempre existiram mas que não mais existirão simplesmente porque galinhas você só as encontrará hoje em dia nos supermercados, mas acabaram-se os ladrões de galinhas e os bicho-papões e as mulas sem cabeça e os labizones, como dizia minha velha tia Zuzu que me contava histórias de arrepiar os cabelos, que me deixavam apavorado nem sei por que, porque é normal que a gente fique assustado com vampiros horripilantes, mas quem pode dizer por que ficávamos tão amedrontados com uma velha que se chamava “a flecha” ou com um pássaro encantado que, sob a mira do caçador cantava: Não me mate ainda não pobre homem. Sou o pássaro rei dos pássaros pobre homem e mais algumas coisas que não me lembro, e o pior de tudo é isto, estou me esquecendo do meu passado, estou me esquecendo de todas aquelas histórias que ouvia naquelas noites remotas, e isto não é apenas uma figura de linguagem, mas uma realidade: noites verdadeiramente remotas, antigas como o mundo, noites que se afundam na preteridade irreversível, noites que não têm apenas trinta e poucos anos, mas milhões de anos, e hoje eu começo a entender por que me assombravam aquelas histórias contadas tão inadvertidamente pelas minhas tias: é porque elas eram como uma porta para o abismo, para um abismo muito fundo, de onde vinham, não aqueles símbolos (a velha, a ave, o caçador), mas algo arcaico e misterioso que se apresentava disfarçado naquelas imagens. E eu, uma criança inocente e pura, ouvia aquelas coisas misteriosas revestidas com sons/palavras que eram, na realidade, encantamentos. Oh tias bruxas que tanto amo, ainda, mesmo quando nada mais sou que um homem parado, na noite, diante de uma banca de revistas, diante de sinais luminosos, diante de igrejas e catedrais que nada mais dizem, sim, porque também elas perderam a capacidade de, como minhas tias, serem uma porta para o abismo profundo do Pretérito Inenarrável, da Grande Noite, do Grande Dizer para o qual fechamos nossas portas que são hoje meras portinholas afetadas e estéreis de imagens sem potência. Mas o que me entristece, hoje, nesta noite que se confunde com muitas outras, com todas as noites do mundo, é que ninguém mais poderá entender o que significava para mim ouvir aquelas histórias contadas num quarto mal iluminado, sentado numa esteira, ouvindo ao 30 longe o ruído do mar quebrando na praia, numa casa cercada de mato e areia e tantos casos estranhos, como a da Cavala, um bicho hediondo que habitava algum ponto remoto das dunas do Abaeté e que, de tempos em tempos saía, nas noites de sexta-feira 13, voando sobre o povoado, dando gritos pavorosos e que, segundo diziam, era uma mulher muito perversa que bateu na mãe numa sexta-feira santa e foi amaldiçoada, passando a viver para sempre sozinha, transformada num ser que era meio gente meio bicho, com os olhos de fogo e enormes asas que encobriam a lua, e esta história particularmente me deixava muito apavorado, talvez não tanto pelo bicho em si, mas pela coisa horrível que era ser amaldiçoado pela própria mãe, aquela solidão de ser anormal, uma aberração, um maldito. E acho que o que me assustava verdadeiramente era isto: essa anormalidade, essa condição de ser diferente, essa solidão tremenda, esse abismo. Aliás, lembro-me de uma visão que me perturbou muito, quando, por volta dos meus nove anos de idade, ao atravessar uma rua tranqüila, deserta, em Itapuã, me deparei com uma garota, na janela de uma casa velha. Ela era magra, muito magra e muito branca, tinha as maçãs do rosto salientes, a boca grande e um riso de alguém que se sentia muito só e que via em mim talvez um amigo, não sei. Senti ao mesmo tempo o impulso de fugir, como de uma assombração, e um sentimento de piedade e vergonha por ver que eu não poderia corresponder jamais àquele sentimento de amizade. Eu não podia ser diferente das pessoas normais, eu não queria ser diferente das pessoas normais, eu precisava ser igual a todas as pessoas saudáveis, a todas as crianças que pensam em coisas sãs, como brincar, estudar e ser como todo mundo é. Aquela casa velha, cercada de grades que pareciam querer conter ela, a louca, no seu mundo, mostrava-se insuficiente: seria preciso, então, encerrá-la em quartos vedados dos quais não pudesse sair para nos perturbar? Oh, mas isso era ainda mais terrível! Eu não conseguia resolver dentro de mim o conflito do meu desejo: o de negar a existência daquela garota e o de reconhecê-la. Mas reconhecê-la implicaria em acolhê-la, e isto era insuportável. Isto era demais para mim. Eu não deveria pensar nisto. E assim evitei andar naquela rua. Uma noite ainda, por descuido, encontrava-me nela, quando ouvi gritos vindos de dentro da casa – ecoavam nas paredes daquele lar que mais parecia um sepulcro, tão diferente do meu lar no qual as portas e janelas estavam sempre abertas, no qual tudo era sempre tão puro e bom. Pensei muito naquela garota que vi, há tantos anos, na janela da casa. Pensei no porque dela me suscitar sentimentos tão diversos. Descobri, com surpresa, que a imagem dela continuava viva, ainda, dentro de mim. Resolvi então conversar com ela, utilizando a técnica junguiana sobre a qual me referi páginas atrás e que me colocou sei lá por que no meio de vampiras tão luxuriantes e irresistíveis, como se eu ouvisse, sem o saber, não o apelo da selva, de London, mas o chamado da noite, no que ela tem de perversão e loucura. Não é bom escrever essas coisas, as palavras, você sabe, são forças espirituais, mas também não é possível 31 trapacear o texto, se queremos que ele seja o mais fiel possível aos movimentos da alma. Mas, deixando de lado essas justificativas, vamos ao diálogo. Eu a vejo de pé, encostada à parede de uma casa. Parece que sempre esteve alí, desde toda a vida, sempre ali, sozinha, esperando, esperando algo que nunca chegará, porque é perigoso ir aonde ela está, está me ouvindo? É muito perigoso ir aonde ela está. Mas preciso ir, porque esse texto exige que eu vá, porque esse texto existe, porque esse texto, como a garota, sempre existiu. Aproximo-me e digo: – Resolvi falar-te, após tanto tempo. Preciso saber quem és. E ela, com indiferença: – Ah, sim, eu sou o que mais temes. – Não, tu não és o que eu mais temo, porque o que eu mais temo tem uma aparência encantadora e tu és feia, tu és horrível. Tu és tudo o que, em mim, não quer se ver. Eu sei que concordas comigo. – Sim – disse ela. – Mas isto são apenas palavras. Queres que eu diga o que sou? - Diga. Ela se aproximou de mim, e cochichou no meu ouvido. Recuei, desconcertado. - Tolice. Ela sorriu, com sarcasmo. - Decepciona-me – disse eu. – Não sabes o que és. Acho que precisarei ir mais fundo. Talvez precise juntar outras imagens. Ela sentou-se numa cadeira que havia no fundo da sala, que estava mergulhada numa silenciosa penumbra. Acenou para que me aproximasse, e disse: - Faça-o, então. Achei-a engraçada naquela postura de psicanalista freudiana, mas resolvi falar, como se o fizesse única e exclusivamente para mim. - Um dia, ainda menino, tive um pressentimento estranho. De repente, deitado na minha cama, no quarto, pressenti que o perigo – aquele terror vago e indefinido que persegue as crianças -, não vinha, como pensara até então, de alguma coisa que estava lá fora, se é que você me entende. Ali, na solidão dos meus pensamentos, eu começava a perceber que o perigo estava, ali mesmo, perigosamente próximo, muito próximo, eu diria... Assustei-me com a idéia de que tudo de ruim e de bom que estava fora, tinha uma correspondência misteriosa, íntima e indissolúvel com algo que estava dentro de mim. A partir daquele dia, achei que era inútil chamar meus pais quando sentia medo; ou melhor, que era desnecessário chamá-los; que somente eu mesmo poderia lutar e vencer os meus fantasmas. Sorri. Ela continuava me olhando, séria, quase imóvel na penumbra. - Aliás – tornei a falar, após alguns segundos em silêncio – é interessante observar que as imagens mais aterrorizantes, nos meus pesadelos, nunca foram de monstros, mas de pessoas aparentemente inofensivas... - Por exemplo... 32 - Lembro-me de uma garota magrinha, vestida de branco, que me visitou uma vez os sonhos. - Como foi? - Eu devia ter uns 10 anos. Naquele tempo eu gostava imensamente de assistir filmes na televisão até tarde da noite. Às vezes o meu pai reclamava, dizia que eu precisava dormir cedo, e outras vezes nada falava, deixando-me sozinho, mergulhado na madrugada diante do televisor. Devo dizer que, naquele tempo, deixar de assistir a um filme era, para mim, um sofrimento dos maiores, porque a TV era uma coisa mágica, como uma droga que me transportava para um outro mundo, de beleza, aventura e encantamento, então não era pouca coisa quando eu tinha que deixar um filme pela metade para ir dormir, daí que, quando meu pai mandava desligar a televisão, eu me levantava da poltrona e ía caminhando bem devagar, como um condenado vai para a cadeira elétrica, e antes de desligar eu baixava devagarzinho o volume, adiando o máximo possível a despedida, até quando não era mais possível, e então eu girava o botão que era amarelo e preto, lembro-me bem, amarelo e preto, como a TV que era grande e muito bonita, era uma TV arcaica, e é como me lembro dela, e finalmente ouvia o clic que dissolvia todas as minhas expectativas. - Mas do que eu estava falando mesmo? - A menina – disse ela. Parecia um pouco ansiosa. - Sim, claro. – observei o fundo do quarto, os objetos imóveis pareciam também, como a garota, expectantes, como se aquela narrativa fosse revelar algo sobre eles mesmos, como se as minhas lembranças fossem também as suas próprias lembranças. - A menina. Lembro-me bem dela. Encontrei-a no fundo do corredor quando, uma noite, após desligar a TV, dirigia-me para o meu quarto. Ela estava lá, no fundo do corredor, foi ali mesmo que me deparei com ela: uma garota branca, completamente branca, como se não existisse um pingo de sangue no rosto. Tinha cabelos loiros, quase alvos, e um vestido branco, como um fantasma saído de não-sei-onde. Ela estava parada na minha frente, a uma distância de uns dois metros e me olhava, como se estivesse me esperando. Fiquei paralisado, horrorizado sem conseguir me mexer. Ela se aproximou lentamente de mim, eu queria recuar, mas não conseguia, queria chamar o meu pai, até que, de repente, ela estendeu as mãos para me abraçar. Acordei apavorado, e assim fiquei por muito tempo, até que os galos começaram a cantar, sim, porque havia muitos galos e jegues e passarinhos naquele tempo, mas isto já é outra história. Mas, ainda hoje, quando me lembro daquela garota parada no fundo do corredor, fico assustado. Por quê? A louca se levantou da cadeira, no fundo da sala, e, andando em círculos, disse para si mesma, como se resolvesse um grave problema. 33 - Os gerânios emitem a luz radiosa do mundo e meu caminho se bifurca como uma locomotiva que atravessa a noite. Fez uma pausa, e continuou: - A inveja é uma flecha fria. Nunca se esqueça disto. E a noite? Ela se abre numa galáxia de metal. É preciso transmutar o metal para conseguir dissonâncias. Olhei a noite. Olhei a lona translúcida e a palavra que se contorcia como uma serpente ferida. Mariana (este é o nome da louca?) andou até o fundo da sala. Estendeu-se como em Marte. Sua pele é um álamo. As paredes se confrangeram. Desculpe-me, tenho que ir, mas, agora. de(mais)tarde a! A inveja é uma flecha fria. Lembre-se. Canto. Mar. Coqueiros. Um hotel abandonado. Uma infância. O mar-a :trans. Oh! mas o objetivo deste texto não é ficar explorando essas pirações. Eu quero mesmo é falar de mim, da minha vida real. Isto seria um desvio. Portanto, vou dar uma parada nessa conversa mole. Vá embora, por favor. Coloco a louca para fora da minha casa. Outra hora falaremos, outra hora. 34 IV. Uma ilha no mar Ah, que alívio! Graças ao bom Deus não precisarei mais tolerar figuras tão esquisitas, eu heim?, como aquelas, pois se o meu texto, que ninguém precisa ler, é um espaço de liberdade, não precisa ser um espaço de anarquia. E se o Máximo, com aquela cara de sabidinho, fica aí dizendo que eu sou convencional, pouco me importa o que ele pense, aliás, estou sentindo necessidade é de organizar melhor o meu estilo, colocar mais pontos e vírgulas e pontos parágrafos, porque existem coisas que não podemos dizer assim num simples derramar de palavras. Se eu preciso comunicar algo, acho que será útil – como disse um amigo meu – que eu me exprima de forma limpa, clara e organizada. Mas, oh meu Deus, pra que eu fui falar nesse meu amigo?, pois se escrevo desta forma caótica é justamente para me livrar do fantasma estilístico que ele me impôs com seus conceitos tão definitivos sobre o que é escrever bem. Sim, preciso matar o meu estilo! Mas como, se ele é o próprio diabo dançando no redemoinho, e quanto mais quero exterminá-lo mais ele se diverte e cresce e fica mais forte e gordo e parrudo; quanto mais o mato mais ele se torna eu: o eu do avesso, o eu do espelho que se olha, e do qual, numa estranha magia, torno-me reflexo. E assim, claro, é muito perigoso, porque sou capaz de me matar pensando que estou matando ele, pois todo mundo sabe que o Cão tem artes e manhas. Então, vou colocando minhas barbas de molho, pois já estou muito cansado de ficar lidando com esses monstrengos de sombras: vampiras, loucas, taradas e demônios. Pego então meu boné e abro a porta da frente e saio para a rua e vou andando na tarde calma olhando os carros que passam lentamente, ou carroças, ou lambretas, ou carruagens, porque no meu texto eu escolho o tempo que quero viver e a rua que quero andar: e em que rua quero andar, em que rua preciso andar agora? Não as ruas de hoje, cheias de buracos, esgotos e carros pestilentos derramando fumaça no ar. Em nome do meu poder de escritor reconstruo a rua da Itapuã da minha infância que é assim: Uma estrada de asfalto, linha sinuosa; uma avenida deserta, cercada por caminhos de barro que se cruzam pontilhados por amendoeiras, coqueiros e cajueiros. No ar um cheiro de mangaba, o som de marulhantes marolas e a imagem de casebres e morros de areia alva. Crianças soltas e mulheres malemolentes. Cães e jegues. Vejo-me, criança dos meus dez anos, com minha bicicleta, procurando algo para fazer, porque o meu único problema era justamente este: encontrar algo para fazer. E ainda hoje caminho – não naquelas ruas de barro e areia, mas na noite desta cidade – procurando algo: uma declaração de carinho? Talvez. Sim, porque uma declaração de carinho, bem sincera e verdadeira, é tudo o que precisamos. Amor. Amor. E vou pensando nisto enquanto as imagens da minha infância se desvanecem diante dos meus olhos, e me vejo mais uma vez andando sozinho na noite dessa metrópole. Encho meus olhos com as ruas da noite da cidade que são para mim uma declaração de amor: talvez uma declaração falsa? 35 Talvez uma declaração cheia de armadilhas? Talvez uma declaração violenta? Talvez uma declaração de perdição? Talvez tudo isto, sim, mas veja: eu amo também a cidade e a noite. Existe uma poesia estranha nessas avenidas cortadas por carros que passam sem nunca irem para lugar nenhum, pois todos são iguais, talvez sejam os mesmos que vêm e voltam infinitamente levando sempre aquelas mesmas pessoas tristes/alegres que sou eu e não sou eu; que és tu. E quem és tu? Você pode ser aquela garota que está agora parada junto a uma farmácia. Ela me olha sem interesse. Imagino um diálogo: - Tudo bem? Podemos conversar um pouco? - Não temos nada para conversar. - Bem... isto já é um bom começo. - Por quê? - Eu que pergunto: por que você diz que não temos nada para conversar? - Porque eu não existo. E se não existo, naturalmente, você também não existe. - Mas podemos conversar como pessoas não-existentes, como, aliás, estamos fazendo agora. - Isto é o que você pensa. Sorrio, vejo que uma conversa dessa naturalmente não chegará a lugar nenhum. Então resolvo aproximar-me dela e abordá-la, de verdade. - Tudo bem? Podemos conversar um pouco? Ela sorri. - Para quê? - Veja: eu tenho uma mania estranha: quando vejo uma garota assim como você... - Assim, como? - Uma garota assim, atraente. Bem, quando vejo uma garota assim, costumo ficar imaginando como seria conversar com ela, e imagino com tanta intensidade que acabo me perdendo dentro dos meus pensamentos, e quando vou ver, a garota já se foi, e fico muito triste, porque, você sabe, as pessoas não foram feitas para ficarem por aí imaginando conversas. Ela sorriu mais uma vez, agora com uma expressão de desconfiança fingida. - Acho que você é meio doido, não é? - Sim, claro. Por isso sou uma pessoa normal, porque só é verdadeiramente normal quem é meio doido. Ela me olhou agora com uma expressão de incredulidade, também fingida. Claro que ela achava que aquela conversa maluca era apenas uma forma um pouco menos convencional de conquistá-la. Mas eu estava falando sério! - Sim, observe as pessoas totalmente normais, como elas são estranhas, terrivelmente estranhas. Essas pessoas, em tempo de guerra, costumam mostrar que as suas aparências são, na 36 realidade, o avesso delas. Um filósofo judeu, não lembro o nome dele agora, sobrevivente de um campo de concentração, disse que os maiores criminosos de guerra nazistas não foram apenas os membros da Gestapo e da SS, mas também, e sobretudo, aqueles pacatos vizinhos: o farmacêutico simpático da esquina, o padeiro educado, o bom pai de família, enfim, toda aquela comunidade de homens que, em tempos normais, poderiam passar a vida em brancas nuvens como cidadãos cumpridores dos seus deveres. Mas, oh, desculpe-me, sei que essa conversa não é bem adequada para um despretensioso bate-papo aqui na rua, a esta hora, com uma garota tão, tão... Ela me olhou agora séria, e pela primeira vez pensei que ela poderia ser alguém especial. Olhei em volta. Estávamos próximo a um mercado de frutas e de verduras que existe na entrada do Politeama. Um lugar, certamente, pouco provável para encontrar uma moça de fino trato. - Posso perguntar-lhe uma coisa? - Sim e não. - Não entendi. - Sim, se realmente fizer alguma diferença. Não devemos fazer perguntas só por fazer. Perguntar é buscar um abrigo. Não saber é ficar meio solto. Mas, veja, eu estou aqui parada buscando um abrigo no não-saber. Acho que isso tem a ver com aquilo que você falou sobre a normalidade. - Acho que sim – disse eu, e pensei que já não valia a pena perguntar mais nada, embora mais do que nunca eu tivesse, agora, vontade de fazê-lo. - E que importância tem ficar aqui parado num lugar assim? Dei de ombros. Olhei em volta. - É um lugar como outro qualquer – disse ela. – Mas eu tenho um apartamento aqui próximo. Se quiser, podemos continuar a nossa conversa lá. Pensei um momento. - Tudo bem – falei. – Desde que... - Desde que... - ... você não seja uma vampira. Sei o que você dirá: que um encontro assim não é possível na realidade, que é absolutamente inverossímil (mas a realidade não é a coisa mais inverossímil?). - Você não poderia encontrar uma mulher daquele tipo, àquela hora da noite, naquele lugar, e muito menos ter um diálogo daquele com ela – afirmou Máximo, sentado no sofá da minha casa. Ele parecia realmente muito aborrecido com a minha narrativa. Achava que eu 37 estava extrapolando. Alertava-me para o perigo de ser inundado por conteúdos inconscientes, o que ocorre, raras vezes, mas ocorre, quando se pratica a imaginação ativa. - Tudo bem que o diálogo tenha ocorrido. O que não está certo é você afirmar que ele aconteceu na realidade, ou melhor, na realidade objetiva. Mas aconteceu. Eu juro! E não terminou ali. Fomos juntos, conversando como velhos amigos, até o Campo Grande. Ela fez ainda um comentário sarcástico sobre o monumento ao 2 de Julho que, segundo ela, simbolizava bem a farsa que é a suposta preservação dos nossos valores. Primeiro, disse ela, porque nunca, na verdade, preservamos nada. Não preservamos sequer as pessoas! - Veja – continuou ela, como se me participasse um segredo. – Existe uma história desta cidade que precisa ser contada: uma história marginal, maldita, esquecida; a história, por exemplo, dessas famílias que dormem nas calçadas, e de muitas outras pessoas que simplesmente desapareceram dos nossos registros e permanecem esquecidas, em nome do desenvolvimento. Refugos de um mundo arcaico que se encontra à margem do nosso processo de modernização. São pessoas que não têm nome, e que vegetam por aí, com seus destinos entregues às maquinações desses tecnocratazinhos bem falantes e perfumados, e esquecidas inclusive pelos intelectuais desta terra que já viveu tempos melhores. Acho que o ânimo dos nossos intelectuais se esvaziou com a queda do muro de Berlim. E os artistas do momento, eu entendo, preferem ficar sob os holofotes, ao lado das autoridades. É sempre mais conveniente gozar a hospitalidade de Nero a arriscar-se na arena com os cristãos. Esta é uma história muito antiga. Acompanhei-a em silêncio até que chegamos ao apartamento: bem mobiliado, limpo, elegante, de muito bom gosto. O apartamento era a resposta dela à minha inconveniência. Era um discurso feito de silêncio e nobreza. Calei-me e sentei-me no chão da sala, olhando meu rosto refletido no vidro e além dele os edifícios, a noite, sempre a noite. Por que será que gosto tanto assim da noite? - A noite é um mistério. Como o dia. A noite é o dia de cabeça para baixo. Aproximei-me dela, mais animado. - Você me perdoa? - Não. Sim. Senti-me um menino muito besta. Falei o que estava pensando para ela: a verdade era que eu não sabia o que dizer. Ela disse que precisávamos construir uma nova linguagem, a linguagem da poesia pura. Lembreime de Guimarães Rosa. Sim, precisamos de uma linguagem que inaugure o mundo. Que nos permita ver o mundo novo, como no início da criação. - Isto é muito difícil – disse eu, sentindo-me melancólico. 38 - Isto é o mais difícil – disse ela. - Acho que não podemos ter diálogos desse tipo com pessoas normais, quero dizer, com pessoas verossímeis – falei. Comentei sobre o que o Máximo dissera. Ele não acreditava que ela existisse. (Expliquei que ele ainda não me dissera aquilo, mas que certamente o diria, no futuro, quando lhe falasse daquele encontro.) Ela se vingou não acreditando na existência dele. - Um homem que diz uma coisa dessa não pode existir de verdade. Quero dizer: ele não pode ter uma existência subjetiva. E isso é muito grave. Ela me ofereceu um sanduíche de salmão com limonada. Olhei para o relógio. Era muito tarde. Expliquei-lhe que no dia seguinte, cedo, precisaria trabalhar, e que não poderia, portanto, ficar ali muito tempo conversando nada. Ela achou que eu estava insinuando alguma coisa? Mas eu estava insinuando alguma coisa? Eu não tinha certeza de que pudesse fazer alguma coisa com ela, mas pensando bem, por que não? - Nós somos irmãos – disse ela. Fiquei matutando naquilo. Que diabo, ela me esfriou. - Irmãos, você quer dizer, descendentes de Adão e Eva – tentei uma saída. - Não, irmãos, mesmo, quero dizer, irmãos de pensar. Irmãos de sentir. Irmãos de ser. Irmãos de ver. Irmãos de sorrir. - Olha, eu venho há muito tempo falando de mim. Que tal falar um pouco de você? - O que você quer saber? - Vamos ver: qual é o seu ator preferido? - Eu só gosto de mim. E de você. Você é o meu ator preferido. - Mas eu nunca participei de filme nenhum! - Então diga-me – perguntou ela – qual é o seu personagem favorito? - Deixe-me ver, hum... – pensei em mil filmes num segundo. Ficaram algumas imagens: Shane ferido, desaparecendo na noite, na pradaria, montado no cavalo; Earp (Fonda) olhando o bêbado recitando Shakespeare em Tombstone; os meninos de Amarcord caminhando pelas ruas da cidade com Nino Rota ao fundo; o soldado ferido sendo envenenado pelas mulheres que o amavam durante a Guerra da Secessão; o oficial orgulhoso defendendo a ponte que construíra para o inimigo sobre o rio Kwai; o acrofóbico (Stewart) seguindo a loira enigmática pelas ruas: a loucura; Corisco girando em desespero girando girando na caatinga desolada e Manuel com Rosa fugindo apavorados: o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão; dois homens perdidos na noite de New York; Quasímodo (Laughton) sobre a catedral de Notre Dame, abraçado à estátua e dizendo: “Por que eu não sou de pedra como ele?”; o velho professor sueco reencontrando seus familiares, há muito tempo mortos, numa casa à beira de um lago; Dersu... - Não sei, são muitos... mas acho que gostaria ser Dersu, imóvel por trás do fogo que crepita, na floresta. E você? 39 - Um daqueles pássaros que atacam as pessoas no filme de Hitchcock. Estranhei. - Por quê? Um pássaro? - É o que sou. Não percebeste? Sou um pássaro que voa em mim. Sou o pássaro que canta em ti. Sou o pássaro que morre em pleno vôo e continua voando assim para o Nunca Mais. Mas deixe-me dizer uma coisa: você já assistiu um filme japonês chamado Mulher de Areia? - Claro! Eu o assisti durante um curso de cinema, em 1974, na Escola de Comunicação. Ele me impressionou muito. Até hoje penso em escrever uma história com aquele tema: um homem caminha por uma região primitiva, encontra uma estranha comunidade que vive isolada num deserto onde o vento sopra areia o tempo todo sobre as pessoas e as casas. Ele é muito bem recebido até que percebe que caiu numa armadilha, sendo obrigado a viver dentro de um buraco, com uma mulher. Passa anos maldizendo aquela prisão, tentando fugir, tentando fugir inutilmente, até que muitos anos depois, finalmente, ele consegue escapar e... percebe então que é tarde demais, que a vida dele não é mais lá fora, que a vida dele é ali, com a mulher, naquele lugar. Ele então volta para o povoado, para o seu buraco, para o seu lar... e fica lá, até o fim dos seus dias. Fiquei um tempo em silêncio. Senti-me triste, não sei por que. - Por que você me lembrou esse filme? Ela não respondeu, mas ouvi o que ela não disse. Sim, eu sempre soube que aquele homem sou eu – pensei me dirigindo até a janela e olhando a noite, a noite, a noite, lá fora. - Por que você me lembrou...? Eu precisava dar um nome para ela, mesmo que ela não quisesse dizê-lo. Chamei-a Palomita. - E você? Ela não me respondeu. Acho que não queria mais falar comigo. Pedi que colocasse um disco para celebrar a nossa tristeza, ou a minha tristeza. - Engraçado, mas é esta tristeza que me faz feliz. Negá-la seria uma dor. Minha tristeza não é uma dor, é apenas uma forma de ser vivo, de navegar, de olhar. A minha tristeza é a minha poesia: um poema sem versos, um poema de intenções, um poema de ar. Olhei mais uma vez para a noite lá fora, dentro de mim. - Minha tristeza é a única forma que tenho de dizer que sei. O quê? Que importa? Quem importa? - Minha tristeza é uma infância, é uma casa com cactus no telhado, é um retrato amarelado, é um álbum de família, é uma revista de Tarzan, é o meu primeiro caderno escolar, é o meu primeiro cachorro: um pequinês branquinho chamado King, é uma madrugada, é o olhar 40 da minha mãe que morreu preocupada conosco, seus filhos, é um anúncio luminoso, é uma nave espacial, é um trem noturno, é a janela do trem noturno por onde olho, é o meu olho, é um beijo com gosto de cuspe, é um Noturno de Chopin, é um lanche às cinco, é o país que nunca visitarei, é a mulher que nunca beijarei, é a minha primeira bicicleta, é um bom professor, é um bom amigo, é um mau amigo, é uma bebedeira, são os meus livros imóveis na estante, é o ruído do ar condicionado em um quarto de hotel em São Paulo, é a Guerra do Golfo, é a Guerra na Libéria, é a Guerra em Canudos, é a guerra, é a lição de casa que não fiz porque não tinha ninguém para me ensinar, é uma ilusão, é uma desilusão, é a minha suprema ignorância, é alguem com raiva de mim, é uma música andina, é um forró de Marinês, é uma noite de São João, são os meus amigos de infância, é um livro de Borges com seus labirintos, sou eu. - Por que você foi me lembrar aquele filme? Pedi mais uma vez que ela colocasse um disco. O que eu quero ouvir? Uma música triste. Tao of Love, de Vângelis, o 1o. Movimento do Concerto para Piano e Orquestra, No. 21, de Mozart, ou a Pavane pour un Infante Defunte, de Ravel. Essas músicas, desculpe-me a imodéstia, essas músicas sou eu. Ela colocou as músicas e permaneceu em silêncio, imóvel, na penumbra. Quando saí do apartamento dela, me vi saindo de uma casinha de palha em Itapuã – mais uma vez Itapuã, por que sempre tenho que ficar me vendo em Itapuã? Itapuã é um eu de mim. Então continuei andando sozinho, na noite, pensando em Palomita. Ela não quis me maltratar. Palomita jamais iria querer me fazer mal. Ela me ama. Palomita. Continuei triste no outro dia, e no outro, e no outro. Continuei triste no ônibus e no alto de um edifício onde fui ver o pôr-do-sol no Farol da Barra. Lembrei-me de uma pessoa muito doce que conheci: um escritor que falava justamente daquela terra que é a minha terra e que não existe mais. Eu o via, agora, recebendo-me na sua casa, ali mesmo na Avenida Oceânica, com simplicidade. Por que ele, um escritor tão conceituado, me tratava, a mim, um mero estudante de Comunicação, naquele ano de 1977, com tanta deferência? - Vasconcelos Maia – disse eu. – Vasconcelos é uma palavra nobre que ganhou um cheiro de mar. Vasconcelos faz parte da minha tristeza feliz, da minha tristeza grávida de afeto, da minha tristeza amorosa. Você sabe quem foi Vasconcelos Maia? Foi um homem que viveu com gosto e escreveu histórias de pescadores, de mistério e de mar. Escreveu todas aquelas histórias que eu nunca escreverei. As histórias de Vasconcelos são também a minha tristeza. Oh, Palomita, gostaria de tê-la novamente comigo, para conversarmos sobre qualquer coisa. Eu poderia trazê-la de novo para esse discurso, mas isto seria uma transgressão, porque você não quer (ou não pode) vir. É uma ilusão muito grande essa de pensar que o escritor pode escrever sobre o que quiser. Alguém disse que o escritor não narra; que ele é narrado. Acho que 41 é isso mesmo. Um escritor de verdade é a sua própria criação; ele é escrito. Por isso não posso trazê-la agora de novo para mim, Palomita, não porque eu seja um escritor de verdade, mas porque eu sou. Não sei mais sobre o que escrever. Aquela história do homem do filme japonês mexeu muito comigo. Por quê? Por que Palomita meteu o dedo na minha ferida oculta? Por que aquele filme me faz ficar assim sem palavras? Perdi o rumo. Perdi o rumo dessa narrativa. Tudo porque uma mulher que não existe (segundo Máximo, mas que diabo, foi ele mesmo quem disse antes que esses símbolos imaginários são mais reais do que uma pedra, ou uma mesa) me disse algo que eu não queria ouvir. Eu sou um homem que não quer mais escapar da sua própria prisão. Eu sou o homem que assumiu a prisão como o lar. - Essa tristeza é a minha prisão? – sorri. Eu não preciso ser triste. Eu não preciso ser só. Eu não preciso ser um deserto. Eu não preciso ser a minha dor. Eu não preciso ser uma idéia fixa. Eu não preciso ser uma obsessão. Eu não preciso ser uma onda que nunca quebra na praia. Eu não preciso ser um ponto solitário numa folha em branco. Eu não preciso ser uma folha em branco. Eu não preciso ser uma sombra. Eu não preciso. Estou cansado. Preciso dormir. Desculpe-me. Eu. Eu... Palomita não apareceu mais, nem a procurei. Preferi ligar para Jô. Convidei-a para sair à noite. Fomos ao restaurante chinês ali no Campo da Pólvora. Oh, aquele restaurante também é parte de um tempo que não é mais. Percebi isto quando entrei nele e vi que aquele restaurante já não tinha magia nenhuma. Mas a culpa é minha. Acostumei-me a querer ver as coisas sempre com os olhos de ontem. Mas não posso mais ver as coisas com os olhos de ontem. Mudaram as coisas? Mudou o meu olhar? Penso nisto sempre que saio na cidade à noite. Veja por exemplo a Avenida Joana Angélica. Ela, claro, não pode mais ser aquela avenida que tinha para mim a cara de Heloísa, uma mulher que me ocupou muito o pensamento naqueles 79, 80, quando, aos 21 anos, me vi de repente com aquele monumento de sensibilidade e erotismo nas mãos sem saber o que fazer, porque bastava tocar nela, veja bem, tocar nela para ela se arrepiar toda e se negar, e o que era mais arrasador para o meu desejo era aquele jeito dela se negar me chamando, de negar se dando, e eu tocava e ela saía, rindo e pedindo mais e mais, de forma que nosso namoro sempre precisava de muito espaço, era um namoro largo que se espalhava da sala pro quarto, e pro banheiro, e pra cozinha, de forma que a mulher me levava sempre para onde 42 ela queria, e eu ia, porque, você sabe, uma mulher que dá se negando é como um vício – era assim que eu me sentia: um viciado em Heloísa, veja bem, ela não era uma mulher qualquer, ela era uma mulher de 32 anos – e uma mulher de 32 anos para um rapaz de 21 era um acontecimento, uma promessa constante, um desenrolamento múltiplo de beijos e carícias que não cabiam muito bem num apartamentozinho que ela dividia com os filhos pequenos, e devo acrescentar ainda que, para o completo transbordamento da minha fantasia, ela era viúva, e isso era quase demais para a minha cabeça, pois eu não podia nunca acreditar que uma viúva pudesse se entregar para um jovem rapaz daquela maneira arrojada e ainda por cima costurando intervalos amorosos com conversas sobre Lacan, Gestalt, Contracultura e experiências lisérgicas. Uma vez lhe disse que me incomodava estar transando com ela na sala, daquele jeito que parecia mais um terremoto, um fenômeno da natureza, sabendo que os filhos dela estavam dormindo ali perto, no quarto. Ela pareceu refletir um pouco, e respondeu que não via nada demais, a não ser que olhássemos aquilo do ponto de vista da Gestalt. Não sei por que a resposta dela me impressionou muito, pois eu nem sabia o que era Gestalt, mas a palavra tinha uma certa solenidade que não me deixava dúvidas: sim, eu também concordava que o único problema que havia em transarmos na sala do apartamento, com ela dando gritos que me deixavam entre surpreso, intimidado e magnetizado era a tal da Gestalt. E a tal da Gestalt passou a nos acompanhar como uma terceira pessoa, nos passeios que dávamos, nos barzinhos que freqüentávamos, e, sobretudo, naquelas noites molhadas de erotismo, em tudo e por tudo estávamos os três: eu, ela e Gestalt, que a princípio me pareceu um cara muito sisudo, uma espécie de filósofo alemão muito cheio de si, mas que com o tempo foi se suavizando e suavizando ao ponto de virar quase que uma outra mulher. Mas então, como dizia, a Avenida Joana Angélica tinha assim um jeito de mulher que não era outra senão ela, minha doce diva sedutora que aproveitei tão pouco, com tantos empecilhos que coloquei entre nós, nem sei por que, mas a verdade é que aproveitei pouco, muito pouco aquela dádiva da natureza, e acho até que muito desse desencantamento das ruas, praças, becos e pátios da nossa cidade se deve a mim, àquele rapaz que via em tudo um obstáculo, uma dificuldade, que bebia do mel com parcimônia quando o mel pedia que se lambuzasse – e foi assim que vim tropeçando aqui e ali com tantas ternuras partidas, com tantas afetividades estilhaçadas, como uma manada de búfalos numa pradaria de cristais. Penso nisto agora, aqui, nesta noite, em pé, numa esquina, enquanto espero Jô que logo virá com um jeito meio dengoso de andar, e penso em quantas vezes estivemos juntos sozinhos no apartamento dela sem que nunca acontecesse nada! Mas esses encontros na noite são sempre muito estimulantes, a gente esperando o que vai acontecer, desenrolando cada segundo, esperando uma chance que nem sempre vem, como, aliás, aconteceu também naquela noite com Jô. Esta, ao contrário de Heloísa, mais jovem, e a diferença de idade era quase a mesma, só que eu agora na posição do mais experiente, mas isto 43 de uma maneira bem teórica, porque a verdade é que continuo ainda sendo aquele jovem rapaz que perseguia Heloísa por salas e quartos e banheiros e até na cama que, vejam só, um dia desabou – e já dá para imaginar como era aquela mulher, eu heim?, às vezes penso até que foi muito bom nos separarmos ou eu iria ficar assim chupado feito um caju velho, porque ela tinha energia pra dar e vender, isto eu garanto e dou fé com firma passada em cartório, ela era San Francisco em dia de terremoto, ou o Vesúvio vesuviando pelo espaço afora, ou o Maracanã em dia de Fla-Flu, de forma que, quando chegava na hora do vamos ver mesmo, eu até parava pra ficar olhando, pra ficar assistindo, sempre meio preocupado com a possibilidade bastante provável dos filhos dela saírem do quarto apavorados pensando que havia um incêndio ou coisa parecida, mas aqueles meninos tinham um sono de pedra, ou o quarto era revestido com chumbo ou sei lá o quê – mas, a verdade é que nada demais aconteceu e a coisa foi esfriando, esfriando, esfriando até que terminou, e isso é engraçado, esse jeito como as relações acabam nesse nosso tempo, sem a gente nem saber direito o porquê, mas acho que o porquê é que, no fundo no fundo, está todo mundo muito escaldado com esses sofrimentos de amor: os próprios, os dos pais, os dos tios, os dos avós e por aí vai – todo mundo tem medo de um dia dar com a cara na parede, além do mais, no meu caso específico, com aquele mulher que parecia um redemoinho. Mas Heloísa era, antes de tudo, uma mulher muito doce, afetiva, amorosa, alegre, espirituosa, dengosa, esportiva, eficiente, dinâmica, carinhosa, receptiva e, também, como eu, triste. Ela também tinha os seus fantasmas – e quem não os têm? – mas os dela eram vestidos de dores muito agudas, e tudo aquilo ela dividia comigo, com um amigo/amante que só fazia escutar. Heloísa também é uma parte importante do meu baú de afetividades – este baú que abro para compartilhar com você, meu leitor inexistente. Mas são tantas coisas, não é? Penso no mundo com uma imagem: eu sentado numa pedra na beira da praia, lembrando aquele documentário do Jacques Cousteau que me deixou muitíssimo impressionado: Clipperton, a Ilha que o Mundo Esqueceu. E veja só: posso pensar que o mundo é como aquela ilha solitária perdida no meio do oceano/cosmos, palco de dramas, mas também dessa doce esperança que me acompanha como um cachorrinho. Esperança de quê? se percebo, de repente, que a história que conto não é a que vivi? Talvez seja esta a razão da minha tristeza: não poder contar o que vivi, todos os momentos, todas as imagens e visões que se perdem no tempo, como lágrimas na chuva. É verdade que não vi naves espaciais lançando raios nos céus de Tanhauser, mas posso me ver ainda descendo a rua, debaixo da chuva, descalço, caminhando por dentro das valas, das corredeiras, feliz, feliz, depois do jogo de futebol; posso ver a lontra escorregando sobre o tronco da samaúma, até mergulhar nas águas barrentas do Amazonas, no lago do Mamirauá; aquelas ondas quebrando quebrando quebrando como miríades de gotas d’água envolvendo-me sobre a prancha de surf, na praia, naquelas 44 tardes de 1968, quando meu pai me levava no DKW e voltávamos a tempo de assistir A Pequena Órfã, na TV; o galinheiro do meu pai, as galinhas e, entre elas, metidas a gente grande, as minhas codorninhas que todas as noites eu ia ver e pegar aqueles ovinhos que pareciam coisas do outro mundo e que eu adorava comer assistindo Os Três Patetas; e, mais longe ainda, num apartamento no Taboão, aquelas noites misteriosas, nas quais a tela da TV derramava no meu quarto uma voz assustadora anunciando A Quinta Dimensão, uma série da qual me lembro apenas vagamente de uma história na qual um homem, numa região deserta, encontrava sobre um morro, um cilindro do qual saíam uns insetos horríveis, acho que pareciam aranhas ou formigas, que se espalhavam pelo mundo matando as pessoas; ou uma outra em que o Arrepio, uma espécie de lagarta pavorosa, atacava as pessoas, e no final ficávamos sabendo que ela era um produto do medo. E é engraçado como essas coisas todas que faladas assim não têm grande significação, como eram extraordinárias aos olhos de uma criança. É verdade, devo admitir que sou, talvez, membro de uma geração de videofanáticos, que os mais velhos devem achar muitíssimo alienada, mas que posso fazer? Aquelas séries americanas são também, e muito, parte da minha afetividade – são peças raras desse meu baú, embora saiba que não deva, talvez, nem mais revê-las, para não ficar ainda mais triste – como aconteceu, aliás, há pouco tempo, quando revi National Kid – um dos meus heróis preferidos – que agora se apresentou como um completo abestalhado, o que é agravado pelo fato de ser um abestalhado japonês, mas não me entendam mal, não sou preconceituoso com os japoneses, Deus me livre de uma coisa dessa, muito pelo contrário, eu os admiro muito, mas como é que eles fazem umas caras tão idiotas? Enfim, isso me parece uma espécie de condenação: a de ter um passado irrecuperável, um passado que nem as imagens gravadas dos meus objetos de afeto me podem devolver, embora deva admitir que existem também aqueles filmes que parecem ter melhorado com o tempo, mas mesmo esses terão que sofrer uma releitura – eles serão sempre outros filmes, outros, como vocês, minhas doces namoradas serão, sempre, outras. Enfim, esse capítulo dessa minha história sem história é dedicado a toda a minha geração de videomaníacos, na qual me incluo com muito prazer, sim senhor, mas sem aquele exagero de ficar gravando abobrinhas, como: “como era o nome do inimigo do Maxwell Smart, no vigésimo-nono capítulo de O Agente 86”; ou como se chamava a atriz que contracenou com Chuck Connors no décimo-primeiro capítulo de O Homem do Rifle; ou qual era o nome da rodovia americana na qual se desenrolavam as aventuras de Martin Milner e George Maharis em Rota 66 (essa é ainda mais idiota, não é?)”, pois não vamos exagerar, minha gente, existem coisas mais importantes para pensar: vejam este país que temos para construir: esse monumento que nós, por inconsciência ou omissão, estamos deixando se dissolver em miséria, em corrupção, na degradação completa. Mas, calma, não precisa chamar o Che, porque esse sonho, pelo menos esse, acabou. 45 Acabou?... Saio, agora, ao ar livre para respirar o ar a todos os pulmões e olhar o mar que se estende até a terra do Prestes João. Mas onde fica a Terra do Prestes João? Acho que a vi muitas vezes ao longo da minha vida sem reconhecê-la, pois a Terra do Prestes João é um anjo disfarçado que fica ao nosso lado, como quem não quer nada, nos olhando com seus olhos enigmáticos. A terra do Prestes João era aquele apartamentozinho apertado no Taboão onde nas manhãs de domingo eu me reunia com minha mãe e o meu irmão mais velho, e as minhas tias, para comer feijoada e beber mirinda. E o que mais me fascinavam eram aqueles líquidos mágicos com seus nomes estranhos: mirinda, crush, grapetti, fratelli vitta, enfim, que comprávamos no armazém que existe até hoje, na bola verde, em frente àquele edifício velho, caindo aos pedaços, com vista para lugar nenhum ou para uma rua suja e decadente que eu não via naquele tempo, porque tudo o que eu via em volta de mim era o mistério. De forma que da janela eu podia enxergar ao longe os desertos do Congo e as savanas do Sudão; o Pacífico furioso; a imensa noite pré-histórica onde Turok enfrentava com o inseparável arco e flecha os monstros abissais; a paisagem misteriosa de Opar, na qual Tarzan chegava, capturado por uma aranha voadora gigante ao palácio da rainha má que lhe oferecia o reinado em troca da sua alma; as ruas de Patópolis, onde tio Patinhas se perdeu com amnésia após ter sofrido uma pancada no lócus pócus, e todas essas bobagens que para mim era tudo: aquele sentimento mágico no qual a energia numinosa do sempre me inundava com sua beatitude. Mas tinha mais: as pradarias americanas com suas manadas de búfalo e seus heróis solitários; Jerônimo, o Herói do Sertão e aquela música que eu ouvia com imenso prazer no rádio – “Filho de Maria-Homem nasceu, Serro Belo foi seu berço natal (...) Com o moleque Saci pra ajudar, ele faz qualquer valente tremer”. Que lindo!, e era com Jerônimo que eu cavalgava nas noites de lua cheia para encontrar o outro saci – Pererê – com seus braços abertos que me diziam: veja: o mundo é grande e bom, o mundo sou eu que estou sempre assim de braços abertos para te receber, meu amigo, e o que eu, um homem solitário que caminha na noite, posso dizer para os artistas que nos ofertaram coisas assim tão belas? Que poderia dizer? Que o Saci Pererê foi um amigo de verdade, que me recebeu, como uma casa de portas abertas, para me mostrar pela primeira vez este país, que muitas vezes mais tarde percorreria com espanto sempre renovado? Não tenha dúvida: o Brasil é o País do Prestes João que precisamos descobrir, que precisamos amar mais do que a tudo. O Brasil é o Saci alegre, que, sem nenhum complexo de inferioridade, percorre célere as estradas do tempo. O Saci sou eu, também, o eu que caminhou sobre os arrecifes tendo nos olhos miríades de formas de vida: pinaúnas, caramurus, pacus, algas verdes e vermelhas, camarões, siris, piabas e águas-vivas. O Saci é o passado afetivo que precisamos encontrar no 46 futuro eletrônico, na realidade virtual. O Saci é a nossa alma. É o caminho que eu percorria com minha bicicleta, quando, em Itapuã, descobri que os encantos estavam em algum lugar, além de mim: e ainda hoje me vejo cruzando caminhos, em busca de algo que está sempre além. Esse algo é como uma fênix que voa sobre os telhados das cidades industriais, dos prédios cinzentos com suas antenas enferrujadas, por entre a fuligem que paira diante dos meus olhos, como num bairro londrino. E vejam só, como é também nessa paisagem que encontro o meu Saci, sentado, fumando o seu cachimbo, com seu gorrinho vermelho e seu sorriso imperecível. Ele está sempre em algum lugar à minha frente, chamando-me, chamando-me. E enquanto ando pelas calçadas, à noite, posso ouvir ao longe outros ruídos familiares, e uma música qualquer. Sinto-me como se estivesse em um filme noir, e penso: por que esses filmes me imprimem essa melancolia da qual não quero abrir mão? O que há na atmosfera de um Falcão Maltês, de um Terceiro Homem, ou de um Blade Runner que me chama, como o amavio de uma sereia, para o fundo da minha desesperança? Se o Saci me oferece uma generosidade desinteressada, Spade, Lime e Decker nada me dão, e nada prometem. Mas acho que é isso que me agrada nessa atmosfera: uma amoralidade na qual mergulho como alguém que está além do bem e do mal. É uma atmosfera espiritual, esta: como uma tarde que não acaba, numa dimensão paralela, na qual todos os nossos conceitos de certo e errado não podem entrar. Lá só existe o prazer, mas um prazer que não nos completa, um prazer no qual nos deixamos, simplesmente, ficar, numa vida vegetativa. É nessa dimensão que me sinto penetrar quando ouço Vângelis ou quando assisto Cronemberg. É um mundo estranho que se abre, em mim, e no qual receio entrar. Prefiro entrevê-lo pela porta entreaberta, porque, de alguma maneira, sinto que o meu afeto verdadeiro está do lado de cá. Vejo, porém, uma mulher que vive dentro dessa dimensão, que me chama – como uma parte de mim, uma parte exilada de mim. Eu a vejo ao longe, desde a minha infância, embora nunca compreendesse o que estava vendo. Agora, porém, me vejo em pé, no limiar – e vejo-a aproximando-se. Vejo-a como sempre imaginei que fosse: uma mulher bonita, mas de uma beleza descuidada. Ela é todas as minhas fantasias esquecidas, e os meus desejos irrealizados. Lembra-me um espectro de Solaris. Tenho medo, porque sei que ela tem poder absoluto sobre mim. Penso que isso não tem importância, desde que ela me ame, desde que ela sempre queira o meu bem, desde que ela seja sempre fiel a mim. Mas ela sorri, e estremeço, pois vejo que a sua força vem justamente da sua indiferença. Ela fará sempre o que quiser. Percebo então que ela vive dentro de todas as mulheres, oculta num recesso. Em algum lugar ela vive, como uma deusa esquecida: a deusa do mistério e do abismo. E quando olhamos para ela, no interior de uma mulher, descobrimos que ela está também em nós. Podemos chamá-la Vênus ou Lilite, mas não importa o nome. Penso, com imenso deleite, que poderei entregar-me a ela, completamente, como um pescador que atende ao chamado das nereidas. Me entregaria a ela, como o poeta Ruy Espinheira Filho também um dia desejou entregar-se a “Maria, que é 47 uma ilha, que me chama na brisa noturna que vem do mar”. Mas a ilha Maria é outra mulher; uma mulher afetiva, que me chama com um amavio “pleno de sereias e corais, algas e anêmonas, praias longas e mulheres de pele de ébano dançando à roda do fogo”. Eu escuto o chamado e me dou ao sortilégio. “Abro amplamente minha janela, meu coração”. “Mas hoje”, diz o poeta, “na brisa noturna que vem do mar, a ilha Maria me chama. E eu estremeço a esse chamado, e há em mim um confuso e quase imperceptível movimento de memórias ancestrais. Memórias ancestrais: estarei me expressando corretamente? Talvez. Talvez eu tenha sido, em abissal pretérito, um nativo da ilha Maria. Memórias ancestrais! Tantos mistérios, tantos...” – e vou eu, também, como um náufrago da ilha Maria, adentrando o oceano noturno num barco; um barco solitário singrando o mar imenso – palco de jornadas heróicas, tantas, perdendo-se no passado mitológico dos nórdicos, dos gregos, dos fenícios, e de todos os sonhadores que, como eu, buscam um Eldorado. Ele, para mim, agora, tem o nome de Maria. E é por ele se chamar Maria, que digo: “adeus, vou viajar até o outro lado da brisa. Perdão, amigos, mas não pode ser de outra forma. A ilha Maria me chama. Já não sou mais daqui. Vocês não precisam mais de mim. Liguem a televisão, ou o rádio, ou o toca-fitas. Se preferirem não liguem nada. Abram um jornal e peçam um chope. Ou vão se beijar no ar viciado das boates. Não tenho culpa se a ilha Maria não chamou vocês. Não tenho culpa nenhuma. O que sei é que vou partir. Estou cansado, muito cansado mesmo. Cansado de ficar”. “Como é para a minha própria felicidade, digam ao povo que parto. A ilha Maria é a mais bela de todas. A mulher Maria é a mais bela de todas. Nas areias da primeira e nos braços da segunda, quero estar ainda esta noite. Amando e ouvindo histórias que vocês jamais conhecerão - como aquela do monstro do mar, cujo nome não se pronuncia, que se autodevorou na inverossimilhança roaz da sua própria lenda”. Sim, como nos livros de Jack London, eu também ouço o apelo da selva, ou o chamado do mar: com suas terras lendárias e seus monstros abissais. Sempre ouvi esse chamado, mas só hoje começo a pensar que esse chamado não vem d’além mar; ele vem d’além mim. Ele vem de um ponto misterioso que está além do eu: ou pelo menos desse eu que tem um nome e uma carteira de identidade, que tem tantas coisas pra fazer e que nada faz. E naquele ponto está o Eu, que apenas olha, e vê. O Eu que nem olha, que sente, apenas, e é. É esse Eu que sussurra o seu chamado, um sopro que no espaço nenhum se reveste de imagens e evocações. Eu preciso ouvir o seu chamado; a finalidade da minha vida é simplesmente ouvir e atender a esse chamado. Mas como é difícil ouvi-lo depois que crescemos, depois que nos deixamos envolver por tantas crostas, por tantas máscaras. Esse mundo encantado está aqui, em volta de nós: mas já não podemos vê-lo. Estamos sempre muito ocupados com coisas importantes; e terminamos nos perdendo do essencial, como um piloto que se ocupa tanto com os controles da sua nave, que se 48 esquece para onde está indo – e prossegue, navegando, na noite escura, pra lugar nenhum. E de tanto navegar, se torna um expert em navegação, mas o seu objetivo é vazio e falso. Eu preciso me lembrar que em algum lugar está o Eu que é – somente ele é. Mas como chegar a um ser que é, porque não é? Por que é nada? Por que nada é? Mas, pelo menos, tenho essas imagens que enchem o meu espírito de beleza: imagens em ação que se apresentam como uma bruma onde vivem tantos seres maravilhosos. Preciso ser novamente criança – porque somente as criancinhas herdarão o reino dos céus. Preciso mais uma vez inaugurar o mundo. Esse homem que anda na noite é apenas um homem que procura ver o mundo, com os olhos de uma criança, para encontrar o Eu – e é porque não consegue fazê-lo que é triste, e só. Mas, do que me adianta dizer isto a vocês?, se também nada podem fazer por mim? Somente, e isto já é um existir. Não preciso de mais nada além deste só que ilumina meu espírito com sua luz. Somente eu posso encontrar esse caminho que é único porque é eu. Somente eu posso pescar aquele sentimento miúdo, oculto e inibido diante de tantas imponências, mas que é belo porque é único. Eu sou esse sentimentozinho esquecido de mim. Mas eu não posso esquecer de mim! Eu sou algo que precisa de um alguém; sou um algo que se aninha num ninho. Eu sou algo que é como uma brisa, como uma aragem – algo que é sem nunca ser, e que por isto é sempre. Eu sou... o que posso mais dizer de quem já não reconhece seu próprio lar? Porque isto de reconhecer, meu amigo, é algo muito sério – reconhecer. Isto é nossa guarda. Você acredita em anjos da guarda? Você acredita em anjos? O meu anjo sou Eu – o Eu que me traz com seus laços de encanto, para este lado da vida. Mas eu estou cansado de ficar falando assim como se tivesse alguma coisa importante para dizer, mesmo porque o meu amor derramado nessas páginas é feito de cavilosidades e reentrâncias, porque também as minhas esperanças, nestas páginas, se tornam geladas como o olhar de um morto, e posso dizer aliás que os nossos mortos não devem ser enterrados, mas expostos em praça pública, sem nenhum pudor – e esta é a forma que encontro para me manter vivo; expondo as entranhas dos meus mortos que despejo sobre você, por não mais tolerá-los comigo. E assim vivo, oscilando entre sentimentos tão diversos: e se ali pude transmitir-lhes alguma coisa boa, aqui já lhes exponho as minhas vísceras com o que nelas há de mais asqueroso e nauseabundo: os podres poderes, sim, porque todos nós, mesmo os mais miseráveis, temos os nossos podres poderezinhos que exercemos sempre que encontramos uma possibilidade, mínima que seja, de exercê-los; e isto me faz lembrar muito bem essas 49 repartições públicas nas quais os seus chefetes exercem seus cargozinhos com toda a pompa, como se fossem o próprio Idi Amin Dada, lembram-se dele?, aquele ditador-bufa africano que se tornou notoriamente famoso em todo o mundo com suas opulentas exibições de mau gosto temperadas com abominações, e acho mesmo que cada um de nós é como um desses reizinhos provincianos, de forma que ninguém deve dizer “dessa água não beberei”, porque já vi até uma pessoa muito tranquila e sensata transformar-se radicalmente num ditador apenas porque foi eleito delegado do Clube de Observadores de Aves, e se você não sabe, o COA é apenas e tãosomente uma organização amadora, sem fins lucrativos, que congrega pessoas interessadas em ir para o mato, e, utilizando binóculos, observar aves – nada mais singelo, mas imagine que alguém possa se sentir o presidente do Brasil apenas porque foi eleito delegado do Clube de Observadores de Aves, ou pior, que alguém possa se sentir um ditador, O Imperador, um imperador muito sem graça, aliás, que logo foi destituído num golpe de Estado, por outro rapaz muito sensato, que subiu ao poder em seguida, tratando de colocar seus irmãos nos postoschaves, como um fidelho da puta, só que menos eficiente, de forma que também este foi destituído ficando o nosso singelo clube ao Deus dará etc. e tal – e fico pensando: porra, será que eu me sentirei também o George W. Bush no dia em que for eleito delegado do COA? Mas isto é apenas uma divagação besta de quem não tem assunto mais sério para tratar, como, por exemplo, falar de mulheres, e acho que este, afinal de contas, é o único assunto sério: o amor. Mas a verdade é que não estou me sentindo inspirado hoje para falar de amor – ou de amores. Acho que porque hoje é uma segunda-feira, e eu pensei que já tinha superado para sempre aquelas crises periódicas, ou, melhor dizendo, semanais, de baixo-astral, porque houve uma época em que todas as segundas-feiras eu achava que o mundo ia se acabar, e era fatal: era segunda-feira? O mundo ia se acabar! Não que achasse que o mundo iria se acabar naquela segunda-feira, mas que iria acabar, com certeza, até o Ano 2000, e esse tal de Ano 2000 era não um futuro –, mas a completa extinção do futuro. O Ano 2000 era um zero redondo formado de montanhas de civilizações fumegantes; e o pior era que isto – essa imagem apocalíptica – não me assustava, primeiro porque eu achava que a vida era uma merda mesmo, e segundo porque pior seria sobreviver à hecatombe, virar um zumbi vagando entre ruínas, monstros como os daquele filme com Charlton Heston, mas o ruim mesmo era aquele sentimento de completo desânimo e, sobretudo, uma vontade de ser acolhido nos braços por uma garota muito bonita e gostosa que nunca aparecia, porque aquele era um tempo muito chato para um adolescente tímido e orgulhoso que não sabia como ir direto no que interessa e que, portanto, ficava encobrindo sua imensa frustração com imagens fumegantes, imagens que eram alimentadas com aquelas histórias de bomba atômica, você sabe, aquela imagem simplista de um americano e um russo, cada um deles em um lado do mundo, com o dedo apontado para um botão – uns caras realmente muito nojentos que não tinham nada mais interessante para fazer do que ficar 50 ali, dia e noite, com o dedo apontado para o botão, com os olhos abertos e os ouvidos atentos esperando a ordem para apertar a porra daquele botão, e disparar os mísseis que iriam acabar com o mundo, e nada me parecia mais inevitável, mais inexorável do que o fato de que mais dia menos dia aqueles porras iriam apertar a merda daqueles botões pra mandar todo mundo pra puta-que-pariu, porque eu não podia conceber que uns burocratazinhos daqueles iriam dedicar a sua vida toda para fazer alguma coisa que não seria feita, de forma que decretei que não tinha jeito mesmo, que era melhor tirar o cavalinho da chuva porque o mundo ia se acabar, e era capaz até de sair na porrada com quem dissesse o contrário, afinal de contas não era possível que eu continuasse ali daquela forma amargando aquela solidão desgraçada sem acontecer nada de muito estrondante, o que seria aliás uma afronta me deixar ali minguando naquele marasmo, mas devo dizer, contudo, que isto só acontecia nas segundas-feiras, e acho que isso acontecia nas segundas-feiras porque todos os sábados e domingos eu caía na farra com a turma que era uma turma mesmo muito da pesada, e tinha aquelas coisas da gente amargar umas gozações brabas, e o fato é que era justamente na segunda-feira que vinha aquela ressaca do fim-desemana, e acho que no fundo no fundo o mundo explodia mesmo era na minha cabeça, de maneira que na terça-feira inevitavelmente as coisas mudavam, o tempo se abria em nuvens radiantes, os burocratas tiravam seus dedos dos botões, e aquelas duas potências sombrias de repente davam lugar a um futuro próspero e o Brasil voltava a ser um país que vai pra frente, porque a verdade, desculpem a minha monstruosa alienação, mas a verdade é que passei muitos anos achando que este é mesmo um país que vai pra frente, ô, ô, ô, ô, ô, e até hoje me lembro daquela musiquinha e fico vendo noventa milhões de patetas em ação pra frente Brasil, do meu coração, e acreditem, meus prezados não-leitores que só ouvi falar alguma coisa sobre os Negros Tempos da Ditadura quando, no primeiro ano colegial, em 1974, no Colégio Central, eu e o meu caríssimo amigo Geraldo, dando margem aos nossos nascentes pendores jornalísticos, resolvemos editar um jornalzinho escolar – o Pesquisa. O nosso brilhante jornal, tão candidamente muitíssimo bem comportado, nos trazia a grande vantagem do prestígio perante a direção do Colégio, que nos acolheu, como um Bom Pai, para nos orientar pelas sendas do Bem – e isto, como viríamos a descobrir depois, era necessário, porque havia, em algum lugar daquele Sagrado Templo do Saber, o Mal. O Bem tinha a cara de professores sorridentes, diretores envolventes, salas limpas, cafezinhos e uma agradável sensação de conforto e segurança. O Mal, por sua vez, se apresentou na figura de um aluno barbudo, com uma cara suspeitíssima, que, juntamente, com os seus sombrios companheiros, nos atalhou em algum dos inúmeros corredores da escola, com intenções malignas, querendo nos convencer a incluir no jornal informações estranhas sobre manifestações contra a tal da Ditadura – e foi aí, caro leitor, que ouvi pela primeira vez, com um misto de perplexidade e espanto, essa palavra que trazia consigo uma sombra e uma dúvida. Mas como acreditar que aqueles sujeitos tão mal encarados 51 pudessem estar falando a verdade? Não estariam, ao contrário, querendo nos envolver em negócios excusos? Aliás, eu já vinha suspeitando que aquele cara era um... desculpe-me a palavra: um maconheiro (falo baixo pra ninguém nos ouvir). E, devo dizer, que não existia nada de mais terrivelmente demoníaco naqueles tempos do que os tais dos hippies maconheiros (aliás, estas duas palavras eram indissociáveis, pois todo maconheiro tinha que ser hippie, e todo hippie tinha que ser maconheiro, e como a palavra hippie tinha um significado assim meio vago, nada impedia que aquele barbudo pudesse ser também um hippie maconheiro, ou seja, um diabo chifrudo muito feio), e essas impressões acho que vêm da minha infância quando vi o nosso paraíso encantado de Itapuã ser invadido por aquela horda de homens e mulheres sujos e maltrapilhos, aos quais minhas tias e primas se referiam como a uma espécie de amigos do Canhoto, e o Canhoto, você deve saber, é um bicho muito do melequento, um malajambrado, um mosquento, um cafuçu, caneco virado, um canheta, um tinhoso, um coisa-à-toa, coisa-ruim, excomungado, exu, inimigo, malino, sarnento, um nem-sei-que-diga, e o hippie maconheiro era tudo isso e muito mais, mas tudo isso era cercado por um fascínio, por um mistério, e de vez em quando eu gostava de me deixar ficar pensando na hipas, pois ouvira dizer que elas faziam aquilo com qualquer um, até com menino, e nem preciso dizer como isso mexia com a minha imaginação, pois só mais tarde descobri que dentro de mim havia também um hippie que se amarrava num barato, mas essa é uma outra história, e o que eu quero dizer é que o barbudo que depois vim a saber que, horror dos horrores, era também comunista, e além de hippie maconheiro, comunista, aí já era demais pra minha cabeça, pois o bicho era, então, o próprio Satanás em pessoa querendo me tirar do Caminho – Xô! E então comecei a querer evitá-lo, mas o diabo é que Geraldo deu pra ficar lá de ti-ti-ti com o cara, e eu já muito preocupado, e ele deu pra querer fazer a minha cabeça, me esculhambando com umas palavras muito ofensivas mesmo, como aquela tal de alienado, que eu não entendia muito bem, mas que achava que alienado mesmo era a puta que o pariu, ou burguês, idem, e foi assim que o nosso primeiro empreendimento jornalístico fracassou, pois não era possível, você sabe, dirigir um órgão de imprensa com diferenças ideológicas tão sérias, e esta era outra palavra que ficou em minha cabeça durante anos a fio, e mesmo na Universidade fiquei um tempão me sentindo um jerico por não entender direito o que era aquela tal de ideologia, e até hoje me detenho para refletir sem ainda ter chegado a uma conclusão muito convincente, afinal de contas, é bom ou não é bom se ter uma ideologia? Qual é a ideologia deste texto? Qual é a minha ideologia? Será que continuo sendo um burguês de merda, como dizia Geraldo, e ele dizia isto de uma maneira que até parecia que o Satanás era eu e não aquela malta, e, meus amigos, o fato é que continuamos aquela briga por muitos anos, anos a fio, e se a nossa amizade não degenerou numa guerra civil foi porque, afinal de contas, nós éramos os nossos próprios melhores amigos. E de batalhas em batalhas, fomos percebendo que, afinal de contas, nem ele era comunista, nem eu um capitalista 52 burguês, e chegamos até a compartilhar alguns carreirões da polícia, juntos, nos velhos bons tempos de faculdade, 1977, 1978, como naquela passeata que saímos do Campo Grande e, muito burristicamente (quem eram os estrategistas daquelas passeatas, pelo amor de Deus?) entramos na rua João das Botas, que é um corredorzinho muito besta, que foi fechado nas duas extremidades pela polícia que só teve o trabalho de baixar o cacete de um lado e do outro, mas eu encontrei uma passagem, pela residência universitária, para a Araújo Pinho, que fica paralela à outra, no que fui seguido por um monte de estudantes que, como eu, se safaram, e até hoje nem me agradeceram, e acho que muitos deles hoje estão por aí nas agências de publicidade, nas câmaras de vereadores, nas assembléias estaduais e federais e nas universidades sem saberem que escaparam de tomar cacete graças a mim; mas pior mesmo foi aquela outra passeata que começou também no Campo Grande, seguindo pelo Vale do Canela, onde passou a ser engrossada por um monte de gente, aquele povão das favelas, que acho eu pensaram que se tratava de um bloco de carnaval ou coisa parecida, pois me lembro muito bem que a gente ía gritando, todos sérios e graves, “Abaixo a ditadura! “Abaixo a ditadura!”, e eles repetiam, numa alegria de só ver: “Abaixo a pica dura! Abaixo a pica dura!”, e eu até achei aquilo muito curioso, mas curiosa mesmo foi a surpresinha que eles tiveram quando de repente, ao chegarmos numa ladeira que dá acesso ao Tororó, apareceu aquela barbaridade de soldados da PM que já foram soltando os cachorros (no sentido literal e figurado) e as bombas de gás lacrimogêneo, e foi aquele massacre, e, rapaz, eu senti foi um medo danado, porque eu era um dos primeiros, e quando todo mundo se virou pra correr, passei a ser um dos últimos, e você sabe que, em se tratando de passeata, os últimos a correr serão os primeiros a apanhar, mas o meu anjo-da-guarda me ajudou, e quando virei uma esquina me meti debaixo de um fusca, no que fui acompanhado por um matusquela que seguiu meu exemplo, mas achou de querer ficar levantando a cabeça pra ver a cena, e eu senti foi uma raiva danada daquele imbecil, vê se pode, quando a gente devia se esconder todinho todinho sem deixar nem um fio de cabelo de fora, ele ficava levantando aquela cabeça de bagre pra ficar espiando, e se um soldado, bastava um, o visse, adivinha só quem iria apanhar junto, e então, claro, puxei o pateta pelo pescoço, e ficamos os dois ali debaixo do fusquinha, vendo as botas dos soldados pisando a dois palmos dos nossos narizes, e aquela confusão, gritos, latidos, bombas e o diabo a quatro, até que as coisas foram se aquietando, se aquietando, se aquietando, até que a gente só podia ouvir vozes distantes, e enfim, silêncio. E foi aquela, acho eu, a última grande passeata, antes do processo de Abertura, e de um novo tempo no qual já não precisávamos ficar sussurrando coisas que, afinal de contas, todo mundo sabia e não ameaçavam ninguém. Saí do meu esconderijo estupefato com tudo aquilo e, mais do que nunca, consciente de que um mundo de inocência havia ficado para trás. O diabo agora tinha outro nome... 53 ...e o paraíso também, porque o meu paraíso, até então, tinha um nome só: infância – e dentro desse nome, os meus afetos, os meus muitíssimos afetos que orbitavam numa terra, a minha terra que tinha coqueiros onde cantavam sabiás, bem-te-vis, curiós, caga-sebos, garrinchas, sofrês, cardeais e tantos outros pássaros. Minha terra tinha matos e dunas e praias e lavadeiras e pescadores e caminhos desconhecidos que explorava com a minha bicicleta, que acho eu foi o melhor presente que recebi na minha infância, pois ela não era apenas uma bicicleta, se é que você me entende, ela era uma bicicleta, mas ela era também a lambreta daquele herói de quadrinhos que ninguém conhece, o Couro de Cobra; era o cavalo do Zorro (não aquele americano chato que tinha um amigo tonto), mas o Zorro de verdade, de capa-eespada, que fazia Zs na barriga do Sargento Garcia, e que era interpretado pelo Guy Williams, o Capitão John Robinson, de Perdidos no Espaço, o qual só veria em mais um filme, Simbad, o Marujo, muitos anos depois, no cine Jandaia, e que era também um filme de capa e espada, enfim não dá para entender que justamente o meu ídolo tenha ido assim sem mais nem menos para o esquecimento, mas acho que ele deve ter ganhado muito dinheiro com aqueles filmes, muito mais que o babaquara aqui, que dá um duro danado e ainda nem sequer sonha em ter capital para abrir um hotel em Praia do Forte, para concorrer com aquele alemão que fica lá dando as ordens, se achando o dono de tudo, só porque aqui é o Brasil? E ela, a minha bicicleta, era também uma nave espacial e um foguete, no qual eu podia ir a todos os lugares do universo, mas o universo tinha um nome: Itapuã, e ele me bastava, porque Itapuã existe até hoje, mas não naquele lugar que leva esse nome; Itapuã é um sentimento e uma lembrança; Itapuã é dona Francisquinha, uma senhora muito bonita e bela, que sabe muito mais coisas daquele lugar que eu, que cheguei ali quando o bairro já passava por transformações, quando sua poesia começava a se perder, e ela vem se perdendo até hoje, quando nivelamos nossa cidade, cortando seus morros, aplainando suas ruas, mutilando suas árvores, empurrando sua população para a periferia, transformando nossas praias límpidas em esgotos a céu aberto, enfim, tantas coisas que, naquele tempo, eu sequer sonhava imaginar, quando, com a minha bicicleta, percorria aquele mundo de sonhos – e devo dizer que os caminhos desertos do Km. 17, nos quais eu sentia com tanta intensidade aquele cheiro de mato, e onde bebíamos água de coco roubado (e vale dizer que uma das nossas atividades mais excitantes era justamente essa de roubar cocos, mesmo que os coqueiros estivessem lá à disposição de quem quisesse, e nenhum dono aparecesse para reclamar, só tinha graça mesmo pegá-los se nos convencêssemos de que os estávamos roubando, daí poder afirmar que fui um grande ladrão de cocos) e comíamos aqueles coquinhos licuris, além de tantas outras frutas, sendo as principais o caju, a pitanga (azedinha e muito enjoadinha para se comer) e as mangabas que havia de monte e que hoje já não tem mais nem sombra, mas a zebra mesmo era quando entrávamos no mato para pegá-las e nos queimávamos no cansanção, e se queimar o dedo mindinho já era uma aporrinhação danada, 54 imagine só quando caí de cima do cajueiro em cima de uma moita de cansanção, ah, que agonia, que sofrimento, e o pior era que nem sequer podia amenizá-lo, porque o único remédio que eu conhecia para passar o ardor e a coceira do cansanção era mijar sobre a parte afetada, agora veja só se eu deixaria que ficassem mijando em cima de mim? E acho que pra resolver aquele caso precisaria de bem umas cinco pessoas mijando na minha cara, nas minhas costas, na minha barriga, que trauma seria, e então não tive outra alternativa senão tomar um banho e ficar ali queimando queimando pacientemente até que passasse a agonia, e hoje em dia eu posso até pensar: pior seria se fosse napalm, mas de que adianta pensar isto, se esses pensamentos só me trazem mesmo é muita tristeza, pois é difícil entender como alguém pode ter coragem de jogar uma coisa daquela em cima de mulheres e crianças, Deus do céu, e isto me faz lembrar aquele documentário sobre a guerra do Vietnã, Corações e Mentes, que, ao lado de Johnny vai à Guerra, foi o filme mais chocante que já assisti, eu devia ter uns 21 anos, e estava passeando em Belém do Pará, e aquilo lá é filme pra se assistir quando se está passeando num lugar gostoso cheio de tucupis e tacacás? Mas lá fui eu todo intelectual assistir ao documentário sobre a guerra do Vietnã, sem nem imaginar que aquelas imagens iriam cair sobre o meu coração e mente como uma bomba sobre uma aldeia vietnamita, destroçando tudo sem mais nem menos, mas apenas duas imagens ficaram gravadas em minha memória: a de um soldado americano que friamente, sem nenhuma razão ou justificativa, encostou o cano da sua arma na cabeça de um vietnamita civil e pum! disparou, e o cara caiu na frente dele, o sangue jorrando e jorrando, e ninguém fez nada, porque morrer ali um vietnamita era como morrer – o quê? Um mosquito? Uma pulga? Não, acho que nada no mundo poderia ter uma morte mais insignificante; o cara simplesmente deixou de existir e pronto, mas o que posso dizer sobre isto sem cair num sentimentalismo estéril? Enfim, esta indiferença completa, acho que foi ela que me deixou mais perplexo; mas o que me revoltou mesmo – e esta é a segunda imagem que guardo do filme – foi ver aqueles americanos orgulhosos, os homens brancos, individuais, ocidentais, naquelas cerimônias patrióticas, todos se achando muito importantes porque estavam exercendo seu dever de salvaguardas da Democracia, salvadores da humanidade – pobres simulacros de benfeitores, mas acho que muitos deles nem sequer imaginavam sobre que tristes feitos repousavam o seu orgulho, porque é a propaganda, meu irmãozinho, que faz essas pessoas ficarem na história como espantalhos, horríveis espantalhos, patéticos heróis de barro que precisam sempre de alguma nação rebelde para exercerem seus podres poderes, mas que, aqui pra nós, ficaram realmente numa situação muito vexatória fugindo do Vietnã daquela maneira desastrosa, com helicóptero despencando sobre um edifício, ah, os fantasmas do século XX, fantasmas de muitos disfarces, porque a história completa do terror não dá muito lugar para heróis e mocinhos, e você deve saber também que o mal não tem um só nome e uma só bandeira (as ditaduras comunistas que o digam, e a de Pol Pot, no Camboja, por exemplo, é sem 55 dúvida uma das imagens mais bem acabadas do Horror) – e, talvez aqui possamos tomar de Conrad as suas palavras para compor a epígrafe do século XX: O horror! O horror! A verdade, meus caros leitores, é que já não consigo manter o ritmo desses escritos. As imagens, que antes vinham aos borbotões, à minha mente, já não respondem ao meu chamado. Sinto-me um deserto. Sinto-me um deserto vasto, como o deserto de Tanganica, que o explorador inglês Richard Burton atravessou em uma das suas inúmeras aventuras. Richard Burton é um dos personagens históricos que mais me fascina: não apenas pelas suas aventuras exteriores, mas sobretudo pela coragem que teve de enfrentar as regiões mais obscuras e tenebrosas do seu espírito. Aliás, é esta descida aos infernos que é a verdadeira – e mais perigosa – aventura. Talvez esta obra me exija esta aventura. Mas não quero realizá-la. Bastame uma tristeza fria. Essa tristeza. Não sei nem se posso descrevê-la, embora viva procurando fazê-lo. Ao descrevê-la poderei olhá-la e, talvez, compreendê-la. Saber o que é esse eu. Me pergunto: o que és? - Minha tristeza é como um álbum de fotografia esquecido numa casa em ruínas. Eu chego nessa casa e me sinto tentado a mexer nos papéis velhos que vejo ali jogados. São cartas de amor, restos de diários e fotos de alguém que já não tem rosto. O seu rosto foi comido pelas traças. - A minha tristeza é saber que um dia o meu rosto numa fotografia será comido pelas traças. Minha tristeza é saber que o meu rosto na fotografia já foi comido pelas traças. Minha tristeza é esta efemeridade. Ando na noite procurando um amor que me eternize. Mas esse amor ainda não tem nome, nem rosto, nem corpo, nem voz. Esse amor nem sequer pode me escutar. Penso então que nem isso adianta: andar na noite é um ato vazio. Andar na noite é ser apenas uma sombra: uma sombra triste como a do poeta Augusto dos Anjos sobre uma ponte no Recife. Como um castelo gótico sem fantasmas, porque é preciso que existam fantasmas num castelo gótico, mas o meu é um castelo gótico sem fantasmas. É um vento soprando sobre uma sepultura vazia, sobre uma ilha no mar, o mar. Uma ilha no mar é uma imagem de mim. Gosto de ver-me assim: uma ilha habitada por aves pelágicas e memórias ancestrais. Estarei me expressando corretamente? Memórias ancestrais. Sou também, quem sabe?, aquele pterodáctilo pousado sobre o rochedo; e na minha antiguidade só existe isto: um ser medonho pousado sobre um rochedo; ou nem isto: apenas um urro – um urro inumano ecoando ecoando sobre as pedras, entre os vulcões. Esta é uma paisagem sem amor. É um cenário de desolação, de não-vida, de nem-ser. E é este, pois, meu caro leitor, o dia que se abre como uma garganta sedenta diante de mim: este dia tem um nome: noite – o seu inverso, o meu reverso. E é ele que grita por uma 56 presença, porque tudo nele é uma ausência. Duelente mis dolencias, si algun dia me hás querido. Enseña-me a ser feliz, porque infeliz yo he nacido. Então, meu amor, eu sou esse trem noturno que corta as cidades – as cidades do mundo. E sou também o rosto que olha pela janela. O rosto refletido na janela. Veja, o rosto desse rapaz, que é muito sério, esse rapaz é muito sério e seus olhos são flamas que se consomem: como somem na noite esses olhos que palmilham cada pedra do caminho, cada árvore na floresta, cada estrela, cada sonho; e ele segue noite após noite investigando todos os sonhos do mundo, do antes e do depois, procurando-te, pois que me disse uma velha bruxa medieval que as feiticeiras assim vivem, de sonho em sonho, de nuvem em nuvem, de flor em flor, mas são muitas as flores desta floresta – são infinitas! E como te reconhecerei se nem sei ainda qual é o teu perfume? Se nem sei, aliás, se a bruxa tinha razão; se não era apenas uma louca demente esquecida no pátio frio de um hospício; se nem sei... Mas você poderia ser tantas! Tantas que ficaram pra trás, como Jacira, a garota de cabelos castanhos e pele alva, que além de tudo era inteligente, e eu, mesmo criança, mesmo criança sabia que isto é essencial: suas palavras eram como diamantes, tinham um brilho musical. Jacira que me tratava como um bom amigo, e seu afeto doía. Porque somente seu amor justificaria o querer ser daquele menino, porque tudo em mim era só essa promessa – mas as noites daqueles tempos – por que sempre a noite? – eram como um parque de diversões que estava para abrir: podíamos ver a roda-gigante, o pipoqueiro, as montanhas russas, os carrinhos – e ficávamos ali, e eu ficava ali. Mas o parque nunca abriu. Você recuou dos meus olhos e perdeu-se como tantas outras coisas numa lembrança – tornou-se ar. E hoje já nem lembro do seu rosto, Jacira. Aliás, já nem me lembro de você. Minha tristeza é uma coisa sem importância: um simulacro. Por isso continuo andando nessas ruas que, agora, são limpas, muito limpas e seus becos já não escondem demônios. Um homem insuspeito passa por mim e perde-se em passos – que passam, que passam. E tudo passa. Eu preciso de espaço para ver tantas coisa virem e irem: meu sentimento precisa de espaço: preciso de espaço para me ver criança de mãos dadas com minha madrinha América cantando Alegria Alegria; ela é uma lembrança de coqueiros e mar, a certeza de que Vinícius continuaria cantando aquela música, de que iríamos sempre passar uma tarde em Itapuã, porque não passar uma tarde em Itapuã é uma traição. Não passar a tarde em Itapuã é não ouvir o ruído familiar do DKW do meu pai, chegando – e nós podíamos ouvi-lo de muito longe, desde o momento em que ele ligava o carro, no Ginásio Lomanto Júnior, e vinha com seu sorriso largo e sua incomensurável generosidade. Meu pai, eu não posso acreditar que você não venha mais para este lar que nem mais existe, e eu preciso de muito espaço para sentir, porque meu sentimento tem muitos quartos e salas e pátios – meu sentimento é uma casa grande, é um quarto escuro, é um quarto iluminado, meu sentimento é um quarto onde vejo o desenho de uma menina pelo qual me apaixono – e é possível uma coisa dessa, meu Deus, apaixonar-me perdidamente por um desenho!? Mas eu achava que ela existia – não como menina de carne e 57 osso, mas como desenho mesmo. E eu achava que ela tinha vida e vivia em algum lugar – só não consegui descobrir onde. Porque, meus amigos, as histórias em quadrinhos para mim eram uma coisa muito séria; suas personagens tinham existência real – e acho que só assim eu poderia amá-las como amei: minhas revistas, e lembro-me quando meu pai proibiu-me de lê-las, talvez porque eu exagerasse, ou porque ele ouviu dizer que revistas em quadrinhos eram muito nocivas para jovens em formação, mas ele não sabia que para mim seria uma morte, porque os quadrinhos eram reais; eles eram eu: porque em tudo o que eu lia, eu via apenas eu – e eu era tantos: Tarzan matando uma cobra gigante sobre uma árvore; Bolinha enfrentando a turma da zona norte; Huguinho, Zezinho e Luizinho usando suas táticas de escoteiros; Mickey vencendo o Mancha Negra; os Sobrinhos do Capitão. Coisas de criança. Criança? Mas as pessoas subestimam tanto esses pequeninos! Talvez o meu amor às crianças seja apenas um resto do amor de mim; do menino que se foi – e se um gênio me concedesse um desejo, gostaria de me ver uma vez, de ver em mim os meus pensamentos e sentir apenas uma vez os sentimentos do menino que quis crescer. E se eu pudesse dar-lhe um conselho daria apenas um: mas agora vejo que tal coisa seria uma inutilidade, que seria um absurdo interferir, seria uma violência estar lá, porque o meu único lugar é aqui. Aqui tem muitos nomes. Aqui tem um nome só. Aqui tem muitos eus. Aqui tem um eu só. Aqui tem o eu que sorri, que se sente feliz. Sim, porque ouço ainda os latidos de Sultão e Diana, nossos cães valentes que enchiam com seus passos vigorosos minhas manhãs: seus ruídos chegavam com aqueles primeiros raios de sol filtrados nas telhas ou com aquelas gotinhas de chuva tamborilando no telhado, com o ruído da minha mãe preparando o mingau na cozinha – e aquilo era tudo o que me bastava. Eu nunca pensei que o ruído da minha mãe preparando mingau pudesse acabar. Porque, para mim, ela era mais, muito mais, do que o Superman, ela era invencível, imortal. Hoje a vejo de costas para mim, andando num corredor que escurece. E cada dia ela anda mais uns passos e seu vulto perde lentamente seus contornos – e com ele todos aqueles momentos eternos que não são mais. Porque, meu querido leitor, a presença dela eram braços que me envolviam e confortavam – e todo mundo precisa de braços que envolvam e confortem. Mas ela era também uma voz que cantava lindas cantigas nordestinas que aprendeu nos confins de Sergipe, nos confins de um tempo ainda mais remoto – um tempo que está além do que essas páginas podem alcançar. O Grande Pretérito. Minha mãe, seu dotô, era a própria voz do sertão que se sobrepunha à superfície do Brasil: ao Brasil que aparecia todas as noites no Repórter Esso. Tan-tan-ran, ta-ra-ra tan-tan-ran, tan tan tan tan taaan! E aquilo era muito bonito para mim, não porque tivesse um homem gordo que falava coisas incompreensíveis, mas porque existia um aparelho, um homem e uma voz. Porque também o som para mim era uma coisa muito real: ele tinha forma, consistência, durabilidade. Eu quase podia pegá-lo. Quase. E, pois, era assim a vida daquele menino - mas nem todos os livros do mundo seriam suficientes para eu contar a sua história. 58 E agora? Já não sinto mais nenhuma motivação para escrever. Aliás, sempre acontece isto comigo: penso que vou bem, deslizo com meu texto, feliz da vida, porque tenho certeza de que vou ganhar o Prêmio Nobel, ou, pelo menos, que vou vender horrores, que vou ser aclamado pelo público e pela crítica, que vou ficar rico e famoso, até que, de repente, me encontro diante daquele vazio desagradável e ouço aquela vozinha que me diz, com desdém, que esse texto é “um tanto precário”, oh, meu Deus, acho que a minha felicidade hoje está condicionada ao que escrevo, de forma que ou sou realmente um escritor, ou sou um nada de nada, um coisanenhuma, um lesma; e fico escrevendo e pensando: e aí? Quando vai realmente acontecer alguma coisa interessante nessas páginas? As páginas me pedem A Obra, e só consigo derramar lamúrias? Sempre que me sinto assim saio na noite, pela cidade, você já notou isto, meu caro não-leitor? Sempre que me sinto desamparado, me vejo caminhando nas ruas da cidade, à noite, anônimo no meio da multidão, perdido na noite, acho que é por isso que gosto tanto do filme do John Schlesinger, porque é assim que me sinto, mas sem aquele ar desamparado do Jon Voight, na realidade me identifico mais com a personagem d’O Homem na Multidão, de Poe, porque mesmo assim triste, sinto aquela curiosidade mórbida, aquele fascínio do mal que parece ser a marca dos solitários do século XIX, e acho que sou também um daqueles homens que andam à noite nas ruas de Londres, algo assim como Dr. Jekyll e Mr. Hyde, mas as cidades, as grandes cidades deste final de século já não têm o fascínio dos cenários que abrigaram as visões de Stevenson, Poe e Baudelaire, talvez porque tenham apenas um refinamento estéril de um mundo massificado, mas penso que por detrás de toda a vulgaridade dos homens e mulheres que se espalham na noite das metrópoles contemporâneas, existem seres assim, ávidos de revelações, de significados. A solidão pode ser um lobo que caça na floresta, querendo satisfazer sua intensa fome, esta fome de conhecimento que é uma dor, que é um ressuscitamento contínuo, e, portanto, também uma morte contínua – uma caixa que sai de outra e outra e outra, por isso escrevo, para poder seguir assim, abrindo essas caixas em cujo interior reside apenas um outro eu, porque é sempre um novo eu que sai de cada caixa, com tantas faces e sentimentos: um eu terno, um eu violento, um eu esquecido, um eu heróico, um eu adormecido, um eu que grita, um eu que mata sem piedade, um eu que morre, um eu que se contradiz, um eu que lê histórias de terror, um eu que vai ao cinema porque não há mais nada a fazer senão caminhar assim noite adentro, como faço agora, esperando encontrar um alívio, um alívio para o fato de que o eu que encontro na caixa é um eu vazio, e assim o que me resta fazer? Posso conversar contigo? Você que me lê (o não-eu?)? Mas como, se você não está aqui no momento exato que preciso? Podemos ter um diálogo imaginário. Posso dizer: – Veja, como os meus passos são tortos, como o meu caminhar é claudicante. E você dirá: – Não importa. Existir não exige tanto quanto você. – Mas o que posso fazer quando quero, quando preciso 59 dizer algo que não é dito? As palavras voam ao meu redor, como morcegos, como anjos. – Elas virão. – Não. Nem o silêncio. E isto, acho eu, é o pior. Nem o silêncio. Paro sobre o viaduto, olho para baixo, imagino-me caindo lá de cima. Talvez elas viessem no último instante, quando não mais poderia transmiti-las. Elas viriam e ficariam comigo, para sempre. Elas seriam enfim o eu que cala, o eu que não é mais. E até você deixaria de existir. Não é engraçado isto? O mundo também morre. Choro. Não tenho coragem de não-ser. Lembro-me do filme de Capra, no qual James Stewart é salvo do suicídio por um anjo que lhe mostra como seria o seu mundo sem ele, se ele tivesse morrido. E ele vê que o mundo seria muito pior. Como seria o mundo sem mim? Como estaria você, meu amigo, se eu não existisse? Sinto-me, mais do que nunca, sentimental. Será assim que se sentem todos os que se encontram, como eu, diante da possibilidade de não mais ser? Acho que não, porque, veja, sentir-me assim é ver-me novamente integrado na terra dos homens. Penso em Exupèry: nas imagens que lhe chegavam aos olhos na sua primeira noite de vôo, na Argentina – “uma noite escura onde apenas cintilavam, como estrelas, pequenas luzes perdidas na planície”. E cada uma daquelas luzes, dizia ele, “marcava, no oceano da escuridão, o milagre de uma consciência. Sob aquele teto alguém lia, ou meditava, ou fazia confidências. Naquela outra casa alguém sondava o espaço ou se consumia em cálculos sobre a nebulosa de Andrômeda. Mais além seria, talvez, a hora do amor. De longe em longe brilhavam esses fogos no campo, como que pedindo sustento. Até os mais discretos: o do poeta, o do professor, o do carpinteiro. Mas entre essas estrelas vivas, tantas janelas fechadas, tantas estrelas extintas, tantos homens adormecidos...” “É preciso a gente tentar se reunir. É preciso a gente fazer um esforço para se comunicar com algumas dessas luzes que brilham, de longe em longe, ao longo da planura”. Os poetas nos salvam. A poesia é a nossa salvação. Ter uma luz brilhando na planura é como voar sobre as alturas dos Andes, porque naquela luz que brilha lá em baixo existe um eu que voa. 60 V. O homem na multidão Mas em qual espaço posso voar? Aonde posso chegar? Posso chegar a muitos lugares (este texto me permite isto; ele é mais que uma varinha mágica; mais que as asas de Ícaro; mais que o gênio da garrafa, pelo menos ele me permite pensar assim, embora eu saiba intimamente que a minha liberdade não é tão grande, ou que não tenho nenhuma liberdade, porque esse texto é como o fio de uma navalha, um caminho muito estreito, um caminho perigoso). Mas posso dizer para mim que sou livre o suficiente para incluir Gilda nesta narrativa. Posso mesmo dar-lhe voz e me questionar se ela representa alguma coisa para mim. Posso fazer o mesmo com Carmen, Dalila e Salomé. Posso incluí-las, todas, neste mísero espaço de liberdade: o último que me resta. Posso mais o quê? Veja, estou de volta ao apartamento de uma mulher que representou para mim aquela dimensão à qual me referi: a dimensão da pura amoralidade. O eu suspenso. O eu liberto. Mas o que posso fazer em um lugar onde continuo sozinho, diante de uma janela, à noite, claro, porque tudo comigo sempre acontece à noite, porque a noite está sempre comigo, porque eu mesmo sou a noite. Alguma mulher se materializará agora ao meu lado. Ela me escolherá. - Quem é você? – pergunto. A mulher: - Eu sou aquela que continua esperando por ti, além da porta. Lembra-se? Eu me referia àquele espaço neutro, àquele lugar “além do bem e do mal”. Penso que esse lugar existe, como uma ilusão; como uma ilusão que é como um sorvedouro; esse lugar é o fascínio da loucura; esse lugar é um lugar de mim. - Mas o que você está fazendo aqui? – pergunto. – Quem é você? Lembro-me que mesmo criança eu já sabia deste lugar. Mas naquele tempo não havia ainda o perigo; naquele tempo este lugar era a continuação de um outro espaço mágico de poesia e inocência; não havia ainda um limite preciso entre a inocência e a perversão; por isso eu podia olhá-lo e deixar-me estar nele, como numa paisagem de neblina e sombra. Mas havia uma nitidez estranha: um presente que permanecia sempre enquanto a neblina se dissipava. Então eu posso ver agora que existe em mim uma nostalgia deste lugar. Mas tenho medo. O meu medo é parte do meu fascínio, digo para mim mesmo, desejando que ela ouça. Desejo intimamente que ela ouça todos os meus pensamentos, que saiba de todas as minhas estratégias; que conheça todas as minhas armas. Desejo que me vença, que me domine, que feche todas as portas, todas as saídas – porque sei que tentarei lutar, que tentarei fugir, que tentarei vencer; mas a minha vitória seria a minha derrota. Ela sorri, plena na sua ausência de amor, na sua perversa ausência de maldade. Na sua negação. Penso se ela tem existência real, quero dizer, se existe fora de mim. Mas como posso 61 saber? Movimentamo-nos agora num espaço neutro que pode ser qualquer lugar, justamente porque não é lugar nenhum. Nos vejo agora dentro de um navio – um navio antigo, abandonado numa praia deserta, semi-enterrado numa praia deserta; pode ser também uma nave espacial cortando o espaço frio, gelado; ou uma cidade submersa, uma Atlântida sem passado, sem história. Estamos sós: eu e ela. Preciso dar-lhe um nome. Preciso possuí-la, antes que ela me possua. - Acho que sempre te amei. Ela me estende a mão. Entrega-me uma seringa. Diz que devo injetá-la no braço, na veia. Ela traja um vestido branco, transparente, seus cabelos agora são pretos com mechas brancas. Tem os olhos negros; negros... - Eu não quero morrer – digo. Ela sorri e me beija. Morde os meus lábios, morde-me o pescoço. Estamos na praia, em pé na areia, diante do navio que parece um monstro marinho encalhado, um monstro. Lanço a seringa na água. Penso que estou salvo, mas vejo que já havia sido picado. Percebo que todo o meu mundo naufraga, diante de mim, no mar – como uma Atlântida, mas é o meu mundo. Ela voa agora à minha volta, como um fantasma, suas vestes claras esvoaçantes, sua pele branca; ela é três mulheres: uma negra, princesa africana; uma oriental, japonesa e ela mesma. Subdividem-se em outras mulheres que continuam voando e rindo. Onde estou? Olho em volta: uma cama velha de solteiro com o colchão rasgado, uma mesa e uma cadeira: sobre a mesa um volume antigo dos contos e poemas de Poe. Crescemos... e conosco o amor crescia... vagueando na floresta e nos desertos. Na tormenta meu peito a protegia e quando, amiga, a luz do sol sorria. E se ela contemplava os céus abertos, somente em seu olhar os céus eu via. Meu coração é invadido por uma estranha melancolia, como se um corvo se instalasse em mim; como se me visse subitamente condenado a vagar, sobre o meu cavalo, pelas charnecas de Usher. Olho para a porta, que se abre. Ela aparece, com aquele seu sorriso. Estendo o braço, dócil e obediente. Ela o morde, inocula-me o seu veneno: uma droga que me faz mergulhar, mais e mais, em mim. O que vejo, agora? Uma escada antiga, negra, em espiral. Subimos, ela me guia para cima, e a escada continua como se não fosse nunca acabar. Mas chegamos enfim, a uma abertura: um alçapão. Uma claridade forte, do outro lado, atravessa o alçapão. Vejo que o lado de fora é o lado de dentro. O centro da terra onde, como no livro de Júlio Verne, podemos ver uma paisagem pré-histórica: uma praia cercada de escarpas sobre as quais voam monstros ancestrais. Olho para ela que veste uma túnica feita de peles. Os seus cabelos soltos, agora ainda mais negros, se espalham sobre o rosto, os ombros, as costas. A um 62 sinal dela, entramos num barco a vela que corta o mar tempestuoso em cujas profundezas pressinto a presença de grandes serpentes e dragões. Vem-me à mente a serpente de Bradbury – a serpente melancólica e triste que sai das profundezas do oceano, ao ouvir de longe, de muito longe, a sirene no nevoeiro. O mar cinzento encapelado agita-se como um ser vivo; o barco sobe e desce; fecho os olhos, penso na minha companheira: a mulher que está agora sentada em silêncio diante de mim. Continuamos parados, imóveis, diante da porta. Ela sorri. Aspira profundamente a fumaça de um cigarro e sorri. Oferece-me. Recuso. Ela me beija e sopra a fumaça para dentro dos meus pulmões. Vejo seus olhos como um outro oceano – um oceano azul, límpido que envolve uma ilha do Pacífico Sul. Estamos mais uma vez num barco, mas não há mais ondas nem montanhas nem monstros; apenas um fio no horizonte e uma lâmina d’água, um espelho. - O que você deseja de mim? – pergunto. - A tua voz – diz ela, como se dissesse alguma coisa banal. Está nua. Saboreio com os olhos a sua pele bronzeada, os seios pequenos, as coxas fortes e rijas, delicadas. Sinto dores nas costas e penso que será muito desconfortável fazermos amor ali, no barco. Golfinhos passeiam em volta de nós. Fecho os olhos e os abro, mais uma vez, e mais uma vez a vejo sentada, quase imóvel, diante de mim, próxima à porta. Tira lentamente a saia e a blusa. A penugem escura sobre o sexo me excita. Está de joelhos, sentada sobre os calcanhares, as mãos levemente pousadas sobre as coxas. Tiro também a minha roupa. Beijo-a suavemente nos lábios. - O que você quer dizer com a minha voz? Ela não responde. Insisto que fale. - Quero ser o eu – diz. - O eu? Não entendo. - É simples – diz ela. – Nada precisas fazer. Escuta, apenas: - Estou aqui, diante de ti. Tu és ele. Ele está me olhando, como se não compreendesse uma coisa tão simples. Ele quer que eu bote a casa em ordem. Mas não há nenhuma ordem deste lado da porta. Aqui eu sou apenas o meu corpo: e ele me basta. Ele parece estar interessado sobre o meu passado. Ele precisa saber quem sou, ou melhor, quer saber a minha história. Ele pensa que eu tenho uma história. - Onde você nasceu? Quem são seus pais? – ele pergunta. Bobo. Ele não pode entender que eu sempre tenha existido. Parece desesperado. Ele me vê nua à sua frente; ele quer falar, mas vejo-o agora como se estivesse envolvido numa bolha – uma imensa bolha de ar que engole todas as suas palavras. Ele tem medo, muito medo de não poder falar, de não poder falar nunca, nunca mais. 63 A liberdade! Ele não pode entender isto nunca enquanto pensar a vida como uma eterna dualidade. Poderíamos ficar aqui, para sempre, e claro ele faria tudo o que eu quisesse, porque o meu desejo é mais forte. Sempre foi. Por isso ele tem tanto medo. Parece uma criança. Vejo-o agora correndo para um lado e outro, procura a porta que o levaria de volta ao seu mundinho. Laço-o pelo pescoço, como a um cavalo e arrasto-o comigo. Ele não tem mais força para resistir. Ele não tem mais voz. Poderia matá-lo por isso, ou nem precisaria isto. Bastaria esquecê-lo. Isto seria suficiente para lançá-lo ao limbo. Estamos agora num salão de espelhos. As imagens dele se multiplicam ao infinito. Eu continuo sendo apenas uma só – eu sou a singularidade: o eu. Ele pede que o deixe falar. Deixo. - Você não pode ser o eu – diz ele. Nada digo. Perguntar alguma coisa seria fortalecê-lo. Ele aguarda um momento, e continua. - Você não tem história. Para ser o eu, você precisa contar a sua história. Puxo-o pela coleira. Tento fazê-lo entender que uma mulher como eu não precisa ter história. Piso no pescoço dele. Monto nele e saímos galopando, galopando; tento fazê-lo entender que ele é agora apenas o meu cavalo. Ele sai tateando, como um cego. Diz que a minha narrativa é fria. Uma narrativa sem história é uma narrativa sem humanidade – diz. Diz que eu sou gelada como uma montanha do Pólo Sul, como a nevasca que matou Scott na sua expedição fracassada. Ele quer introduzir calor na minha narrativa com suas imagens de neve? Ele quer introduzir calor na minha narrativa procurando-me irritar? Oh, como ele é ridículo, meu cachorrinho. Ordeno-lhe que tire a roupa; ordeno-lhe que fique com o membro rijo; ordeno-lhe que goze em mim. Ele não sabe que sou fértil como a superfície de Vênus. Eu sou gelada como a atmosfera de Plutão. Eu sou o ponto final. Mas não tema. O ponto final é sempre um começo. Só que eu sou o começo do nada. Ele quer me arrastar para o seu mundo. Ele morre de medo que essa narrativa se acabe, porque ele acha que nada pode acabar antes de chegar ao fim. Mas ele não sabe que depois do fim, pode haver uma outra maneira de dizer. Como? Ele se esforça para gritar. Acho que ele está empalidecendo, como se fosse sair do ar. Rio. Acho interessante olhar para ele como para uma imagem numa tela. Posso diminuir o contraste, e ele vai ficando branco, branco, quase desaparecendo – o seu rosto desesperadamente engraçado, ou, melhor dizendo, engraçadamente desesperado, debatendo-se na tela: rogando que não o desligue. Poderia apenas resetá-lo. Ele quer que o salve. Acho engraçado me ver sentada diante do computador, escrevendo essa narrativa, enquanto ele se debate na fronteira do ser e do não ser. To be or not to be, acho que ele nunca pensou que esta questão fosse assim tão crucial. Mas não vou resetá-lo. Vou salvá-lo e lançá-lo para um arquivo que será agora o seu lar. Pronto. Agora, desligo o computador, cubro-o com a capa, para protegê-lo da maresia. Adoto uma identidade: sou uma mulher de 35 64 anos, cabelos castanhos claros, não, prefiro negros, como os meus olhos. Tenho uma profissão? Sou professora de geografia: gosto muito de conversar sobre falésias e estatísticas populacionais. Moro num apartamento em Ondina. Tenho um Tempra azul-metálico. Moro só, como convém a uma mulher pós-moderna. O meu nome? Beatriz. Então, vejamos o que posso fazer nesta manhã... Gosto do dia. Este é um dos meus paradoxos. Sou uma noite que se alimenta da luz diurna. O dia tem algo de maléfico, mas só para quem sabe ver. É no dia que se engendra amorte: sua dupla face de luz e escuridão. Gosto de passear assim pela orla, senhora do meu desejo. Vejo todos esses homens que passam, concentrados no seu próprio umbigo. Delicio-me com a idéia inocente de que posso destruí-los. O meu amor tem lâminas afiadas. O meu amor é uma sentença. Olham-me como se apenas aqueles olhares pudessem revelar-me suas intenções tolas. O olhar deles é uma invasão: como pedintes imundos numa praia limpa. Acho que jamais entenderão que a minha praia é um papel em branco no qual somente eu mesma posso deixar as minhas marcas. Eu sou a pena que me escreve – a pena das escritoras que se escreveram nos séculos passados. Eu sou a história da penumbra. E é dessa penumbra ancestral que surge agora esse batalhão de mulheres que recupera a sua voz em mim. Mas a minha voz é apenas a minha voz. É apenas uma forma de deliciar-me. É uma voz sem bandeiras, sem palavras de ordem. É um desfrute. Veja o sol: ele se expressa sendo apenas. A minha voz é a minha maneira de ser. Onde a minha voz termina começa o outro eu: a face exilada de mim, a minha noite. Gosto de ficar assim passeando pela orla, olhando as pessoas. Gosto de estender a minha visão até a fina lâmina d’água do dia que escorre como um fluxo menstrual. Eu, ao contrário da maioria das mulheres, gosto de menstruar, sinto mesmo vontade de expelir esse sangue vermelho/negro, sujo, escarrado das entranhas. Poderia vomitá-lo na cara dos homens que correm na praia como se seus músculos fossem a única coisa que importa. Esses homens não merecem o sangue que vomito sobre o mundo; o eu de dentro, um eu, sim, porque também há o eu das minhas tripas, e acho muito engraçado isso das pessoas acharem que são apenas um conjunto de olhos e nariz e boca e pernas e barriga e mãos, esquecem que o eu é tanto esses olhos verdes, quanto aquele estômago que se contorce dia e noite e o coração que bombeia sangue e esse profundo mistério de carne e sangue e vísceras e o outro lado do olho que existe apenas para não ser visto jamais, isto sem falar nos excrementos que se formam diuturnamente dentro de nós e que escorrem por dentro de tubos emanando gazes e é tudo isto que sou, conscientemente, plena, eu, essa mulher que os homens olham desejando-me como se eu fosse uma bonequinha de gozar, mas é essa consciência que me impede de ficar vazia e estúpida diante do espelho me achando a coisa mais linda do mundo e sei que sou a coisa mais linda do mundo, porque sou toda no meu claro/escuro, e é desse claro/escuro que alimento o gato e o leão; o mágico e a bruxa; a menina 65 e a velha; a virtuosa assassina: aquela que pode dizer a bênção e a maldição; tenho em mim essa alegria pervertida de saber que posso destruí-lo, meu amor, mesmo que jamais o faça. A minha maldade é uma flor que guardo no meu jardim secreto; que cultivo em silêncio na minha solidão. Você tem coragem de olhar a minha flor? Acho que só poderei amar alguém que, por algum artifício do bem ou do mal, puder entrar neste jardim e olhar, apenas olhar, esta flor. E sobreviver. Mas esse alguém teria que ter também um jardim e uma flor, pois do contrário ele jamais seria capaz de reconhecê-la e sentir o seu perfume: o perfume do que já não existe. Meu amor, eu sou essa mulher, essa Lilite que sempre povoou os seus sonhos, a senhora das suas poluções noturnas, a senhora dos sortilégios, e é assim que vagueio pelos séculos, de sonho em sonho, como uma nuvem, como um rosto de deusa que se forma na névoa. Só assim posso montar sobre você, imobilizando-o com minhas coxas, lambendo seu corpo, seu peito de herói, seus lábios de poeta, seu membro de animal, meu doce centauro, e é assim como meio gente meio bicho que podemos cavalgar pelas estradas de terra – aquelas estradas que se perderam no meio desses arranha-céus, dessa floresta de antenas, dessas torres enegrecidas pela fuligem. O meu mundo é cinzento como Venice – aquele lugar onde, “em tempos que já vão longe, tinha muitas coisas que a recomendavam às pessoas que gostam de ser tristes, onde ouviam-se a maquinaria pesada dos poços de petróleo, o barulho das águas escuras dos canais e o silvo da areia das janelas das casas, e cujo cais caía aos pedaços, morria no mar e lá se podia ver a ossada de um enorme dinossauro – a montanha-russa – sendo coberta pelas marés cambiantes”. Este lugar sou eu. Sim, talvez o meu amigo, que salvei no computador, esteja certo ao dizer que é impossível narrar alguma coisa quando o narrador não tem história. Mas eu posso construir a minha história com uma narrativa. Então passarei a existir nela: serei ela. Enquanto isto não acontece, continuo aqui, uma mulher-fantasma caminhando pela orla da cidade, olhando os olhos que me olham, e pensando que esses olhos não conseguirão jamais ver verdadeiramente o que sou. Será esta a minha tragédia? Saber que um homem pode derramar-se em mim – e nunca saber quem realmente sou? Pobres anjos solitários que vivem com tantas certezas. Ouçam: fazer amor é como ter uma senha secreta, uma senha que só podemos proferir sozinhos, diante da rocha solitária, no deserto das Arábias. O amor é um segredo que deve ficar guardado no centro do labirinto. Fazer amor é refazer o percurso até esse centro e voltar, guiado pelo fio de Ariadne que somente as mulheres sabem tecer. Como é possível falar qualquer coisa sobre esse segredo? Quem realmente faz amor com uma mulher, nada tem a dizer. Mas esse tecido de silêncio e delicadeza, quem pode bordá-lo dentro de si? Amar é uma forma de olhar para o tempo que desenrola seus tapetes. Você jamais entenderá isto enquanto estiver aí, com seus amigos, falando vulgarmente de conquistas que são apenas resíduos de uma perda, uma mutilação. E pena que ainda hoje insista em empunhar suas clavas como enormes falos, eloqüentes. Por que tão raramente te vejo de mãos limpas? O teu medo é maior que o meu. O meu medo é um 66 cachorrinho, um poodle micro-toy que me segue com seus passinhos de neném. Acho que posso conviver bem com ele. Mas o teu, querido, é uma espécie de Godzila, um ridículo monstro japonês. O meu medo deita comigo à noite, na minha cama, e me faz companhia nessas madrugadas chuvarentas. O teu, fica sempre do lado de fora, colado na porta, insatisfeito, inconveniente, bizarro, assombrando a vizinhança. O meu, alimento com rosquinhas de cereais com leite; o teu recebe apenas restos de carne e pelancas. Acho que é por isso que ele faz tanto barulho. O meu ouve Mozart; o teu, Xitãozinho e Chororó. Ah, mas antes que apareça alguém para esculhambar com meus argumentozinhos, devo dizer que tudo isto é um mero divagar, um soltar de pensamentos ao léu, pensamentos que me ocorrem enquanto vejo esses macho macho man correndo correndo de sunga com seus walk-man colados no ouvido, meu Deus que mau gosto horrível, mas por favor não tome isto como uma análise sociológica, o que não me atrevo, mesmo porque não devo esquecer que nada mais sou que um simulacro. Um fantasma liberto do seu exílio. Agora percebo que preciso falar para alguém sobre o meu exílio. Preciso falar a um homem sobre o meu exílio. Mas, por quê a um homem? Não sei. Oh, mas não sei como abordálo. Não sei como fazê-lo ver que sou uma mulher, que existo. Ando pela cidade, dia e noite, e todos parecem não perceber que sou – o quê? O que eu sou? Será que tenho realmente um apartamento, um nome, uma profissão? Chamo-me Beatriz? Ou será que quem não existe realmente são todas essas pessoas? Não serão elas os fantasmas? Acho que o meu discurso está minguando pela simples impossibilidade de ser ouvido, de ser sequer percebido, de sequer existir. As minhas palavras são apenas cinzas e pó. É ilusão minha pensar que posso destruílos? Os homens não podem me ouvir. E as mulheres? Estou parada sob a lâmpada de um poste, próximo ao Farol da Barra, quando a vejo. É uma mulher bonita e séria. Gosto muito das mulheres bonitas e sérias. Ela tem os cabelos curtos e um brilho de ironia nos olhos. Nunca a vi antes nas minhas andanças pela cidade. Nunca me interessei tanto por alguém. Aproxima-se. Veste calça jeans e uma blusa sem mangas, branca e azul. Tem olhos graúdos, vivos, um nariz fino um pouco arrebitado. Fala comigo como a uma velha amiga. - Gosto de olhar o mar à noite. Ver o que não posso ver quando o olho de dia – disse ela, como se já nos conhecêssemos, como se já estivéssemos conversando há muito tempo. - Acho-o triste – falei. – Lembra-me um pouco o lugar de onde vim. O lugar onde nada acontece. Não sei se deveria ter falado isso para ela. Acho que não. Ela não sabe nada do lugar de onde vim. O lugar de onde fugi com um estratagema. O lugar onde ele está, agora. Um país onde só acontece algo quando um desses viajantes imprudentes vai dar com seus barcos na praia daquele lugar. Eu vivi lá muito tempo, solitária, ou melhor, eu nem sei se vivi, porque 67 nem o tempo existe lá. Lá é uma ausência. Uma ausência que se estende até aqui, até aqui diante de você. - Você não entende – disse ela. – Eu também vivo naquele lugar: no outro lado da porta. Apenas achei um jeito de passar para o lado de cá, para vir todas as noites passear nas ruas desta cidade. Eu estudo esta cidade como uma menina: com sentimento e amor. De vez em quando, muito raramente, encontro alguém interessante. Alguém que valha a pena – voltou seu olhar para mim. - Engraçado... Olhei em volta, para as pessoas que passavam para um lado e outro, sem nos ver. - Estou aqui há duas semanas e não consegui ainda me fazer percebida. Eles não me vêem – disse para ela. – Acho que é assim também com você, não é? Ela ficou um tempo em silêncio. Parecia muito tranqüila. - Muito raramente alguém me vê, mas acontece. Há um mês, mais ou menos, encontrei um rapaz muito interessante, ali próximo à entrada do Politeama. Logo que o vi, pensei que fosse um de nós. Havia nele uma espécie de transparência, um medo que trazia atrás de si, como um cachorrinho. Levei-o até o meu apartamento. Apartamento?! Então, você tem realmente um apartamento? Isto é muito engraçado! Eu também tenho um apartamento! Eu quero conhecer o seu apartamento! Subimos a ladeira da Barra. Chegamos ao apartamento dela: um espaço muito agradável, acolhedor, no Corredor da Vitória, com vista para a noite. - Eu prefiro o dia – falei, olhando pela vidraça. – É engraçado que só a tenha encontrado à noite. - A noite é um mistério. Como o dia. A noite é o dia de cabeça para baixo. Achei engraçadas aquelas palavras. - Fale-me mais um pouco sobre o rapaz. - Qual? - Aquele que você encontrou, na entrada do Politeama. Ela me serviu um chá. Deitou-se sobre as almofadas. Saboreou o chá. Falou sobre o chá que experimentou na China, aonde vai de vez em quando. Sim, porque quando saímos do outro lado da porta, podemos sair onde quisermos – uma vantagem pequena para quem não consegue ser vista em nenhum lugar do mundo. - E ele? - Quem? - O rapaz? - Ah, não sei aonde foi parar. Nunca mais voltou. Às vezes fico parada ali, próximo ao mercadinho, esperando vê-lo. Acho que ele entendeu. 68 - O quê? - Que é inútil nos vermos de novo. Gostei muito de tê-lo visto. Pensei até que poderíamos fazer amor aqui, sobre essas almofadas, mas acho que ele teve medo. Tomei mais um gole do chá, que pareceu avivar meus sentidos. Podia ouvir agora, com nitidez, o ruído da cidade, lá fora: murmúrios, frases soltas, buzinas, latidos, os carros, o tilintar de talheres nos apartamentos, vozes de crianças... Olhei para ela. Não sabia ainda o seu nome. - Você acha mesmo que poderia... fazer amor com ele? Ela sorriu. Tinha a pele viva, brilhante, uma mecha de cabelo sobre a testa. O sorriso dela me lembrou um outro sorriso, de alguém, de alguém distante, muito distante, de alguém que não pude identificar. - Não – disse, por fim, levantando-se, colocando-se de costas para mim, diante da janela. – Não – repetiu. – A verdade é que nunca poderemos fazer amor com ninguém, não aqui. Falei, incisivamente, que não era verdade. Não, pelo menos, no que dizia respeito a mim. Disse, com convicção, que sou uma mulher, uma mulher que pensa, que sente, que menstrua, que ama, que pode parir; uma mulher que tem carne, sangue e nervos. Uma mulher... Ela continuou de costas para mim, por mais alguns minutos. Eu podia ouvir um homem sussurrando no ouvido de uma garota, sentado num banco no Campo Grande. Eu podia ouvir todas as vozes da cidade: bilhões de vozes, gritos e murmúrios, do Pelourinho até Mangue Seco. E, no entanto, tudo estava em silêncio. Então, ela voltou-se e sorriu. - Não é verdade – disse. – Sinto muito. - Prove – disse eu com um fio de voz. Ela andou lentamente até a cozinha. Voltou com uma faca na mão esquerda. Uma faca de cozinha, grande, afiada. Sem hesitação, enfiou-a, num golpe preciso, no meu coração. Olhei para a faca cravada no meu peito. - Isto é horrível – falei com perplexidade. - Isto não significa nada – disse ela com indiferença. Fiquei ali, parada, diante dela, desejando morrer. Percebi que, para estar viva, eu precisava morrer. Mas ela tinha razão. Aquilo não significava nada. Ficamos as duas olhando a cidade, lá fora. - O que somos? – perguntei. - Acho que somos algo assim como vampiros... ou apenas simulacros de vampiros. Vampiros virtuais, se preferir. Sorrimos. Achei curiosa essa definição. Notei que o mundo se tornava semelhante a nós, a cada dia mais semelhante. Os seres humanos cada dia mais se assemelhavam a nós. Pensei que em breve teríamos todos conosco do outro lado da porta, no nosso mundo. Mas não faríamos companhia uns aos outros, seríamos apenas uma multidão de 69 sombras solitárias. Alguns deles já nos podem ver. Alguns deles já transitam entre esses dois mundos. A porta está se alargando: ela é uma síntese de imaginação, desencanto, chips e hologramas. Senti-me uma tola. Então pensei realmente que era uma mulher? Uma femme fatale, uma vamp? Engraçado. A ilusão para nós é esta realidade: esta cidade, essa gente, essa multidão. Pensei que poderia construir-me pela linguagem, mas essa linguagem não é minha. Nada posso fazer com ela, simplesmente porque não tenho uma história. - Ele tinha razão. - Quem? - Um homem que capturei, um desses viajantes imprudentes. - Onde ele está, agora? - Está preso. Eu ocupei o lugar dele. Ela riu. - Mas isto é uma maldade. Expliquei que o havia salvado em um arquivo do meu computador. Ele achou que havia encontrado em mim uma determinada mulher que vinha procurando. É sempre esse o motivo que leva homens para o lado de lá – disse ela. Fale-me um pouco mais sobre ele. Não. Não acho que valha a pena. Ele está melhor lá, distante de tudo isto. Despedi-me dela e saí para a rua. Não cheguei a perguntar qual o seu nome, mas resolvi chamá-la Natividade. Ela me revelara algo que eu já devia saber: que sou ninguém; que sou imortal. Nadei até o meio da Baía de Todos os Santos e me deixei afundar. Andei de noite pelas ruas desertas da Avenida Suburbana; testemunhei a desova de cadáveres por policiais militares atrás do Superbox: tomei um banho de hiperrealidade e nada aconteceu. Voltei para o meu apartamento, liguei o computador, hesitei em acessar o arquivo, mas terminei por fazê-lo, simplesmente porque não havia outra alternativa. Pude vê-lo diante de mim, na tela. - Quanto tempo se passou? – perguntou. - Não sei. Um dia, dois dias, três no máximo. Mas o que importa? - Eu tenho compromissos – disse ele. Eu tenho a minha vida para viver. - Por favor – disse ele. – Deixe-me sair. - Diga eu. - Eu... -Continue... - Eu estou aqui, diante da tela do computador, pensando em você, meu amor, te vendo partir, e sinto uma dor grande no coração porque agora sei que não podes mais triunfar sobre mim. És um fantasma, uma aparição onírica, como a mulher do livro de Stanislav Lem, e acho que sou algo assim como aquele cientista isolado numa nave espacial, num planeta estranho, desconhecido, num planeta onde tudo ganha esse ar de irrealidade, inclusive eu. Isto é como 70 uma declaração. Acho que será impossível para mim escrever um livro, um romance realista, onde as personagens se tornem quase tão reais como nós mesmos. Neste romance, meu amor, acontece justamente o contrário: neste romance é o autor que se torna irreal. Naqueles, autor e personagens se encontram do lado de cá da porta; neste, nos encontramos do lado de lá, porque você mesma viu que é inútil querer ser um de nós, isto só leva a uma decepção, algo assim com uma faca cravada no peito, a dor de não sentir dor é mais profunda, então eis que me vejo mais uma vez caminhando sozinho na noite, e sinto uma vontade enorme de ver novamente minha querida Palomita, aquela que por um breve momento fez-me sentir vivo e real, porque ela é real, ou esta solidão seria insuportável, mas não a encontro aqui em frente à entrada do Politeama, aqui só vejo essa gente que passa para um lado e outro, e me sinto mais uma vez como a personagem de Poe, nas ruas de Londres, seguindo o homem na multidão; mas não serei eu o homem na multidão? não aquele pavoroso, não o Mal, mas apenas um fantasma, um fantasma, um fantasma, um fantasma... 71 NOITES BRANCAS 72 Para James Amado 73 “É noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes. E também a minha alma é uma fonte borbulhante”. Nietszche Zaratustra 74 SUMÁRIO Noite branca Sisina Anos 70 Imagens urbanas Diante do farol Ruas desertas O quarto da infância Condenados ao futuro Charnecas de Yorkshire 75 NOITE BRANCA Vivo nesta cidade como um homem comum, embora tenha, às vezes, reconheço, acessos de um humanismo ultrapassado. Moro em Salvador como um daqueles personagens do século 19, para os quais só existia uma coisa verdadeiramente trágica: existir. Mas sou também um romântico, ainda que proliferem, no meu espírito, labirintos sombrios, cujos ângulos só encontram sua razão de ser nos filmes do Orson Welles. Na vida real, como são perigosos e desagradáveis. Eu já sonhara diversas vezes metido num daqueles filmes insólitos do Mestre Welles. Sempre que despertava trazia do sonho uma vaga sensação de mórbida saudade dos seus perseguidores: homens riquíssimos que de magníficos castelos lançam assassinos e mulheres fatais ao meu encalço. A todos driblava, em peripécias mirabolantes às quais se acresciam labirintos e espelhos, leopardos e punhais. Meus sonhos são, portanto, algo assim como um quadro pendurado na parede diante do qual me posto sempre que fecho os olhos, vendo nele, a depender do ângulo pelo qual o olho, também aquelas esquinas rosadas que me parecem, de todo modo, sempre perdidas. Por isso deixo-me ficar pensativo. Muito mais do que seria recomendável a um homem que gozasse da minha reputação. Em outras palavras: um homem normal. Ainda que tivesse tantos amigos, ainda que conhecesse tantas pessoas, ainda que freqüentasse sociedades beneficentes e associações disto e daquilo, o que me resta é sempre um sonho nebuloso no qual me infiltro cada dia mais. Acharias talvez, querido leitor (chamar-te-ei assim, se me permitires, como uma homenagem ao grande escritor russo que iniciou suas Noites Brancas dizendo: “Era uma noite prodigiosa, uma noite como só vemos quando somos jovens, leitor querido”, e eu, que desejara um dia escrever também assim uma história emprenhada de tão doce e triste melancolia, penso que posso tomar essa intimidade para contar esta história que padece, entretanto, de nenhum sentido – mesmo que triste, mesmo que alegre, esta história em que sonho, todas as noites, o mesmo sonho, que nunca é igual, mas que transmite apenas este vazio) que fosse talvez inútil contar a história de um personagem que não tem mesmo porque existir, e eu até concordaria contigo, mas veja que não tenho outra saída, pois jamais poderia negar a ele a possibilidade de realizar a sua tragédia, mesmo que fictícia, mas quem pode afirmar o que é, de fato, a realidade? Posso vê-lo caminhando sobre a calçada, na orla marítima. Vê o mar à sua direita: saveiros há muito desaparecidos. À esquerda o Parque do Costa Azul, construído recentemente 76 pelo governo do Estado, no lugar de um prédio abandonado que durante muitos anos foi habitado por famílias de miseráveis, na beira de um rio poluído por dejetos que estão sendo tratados, e tudo está tão colorido hoje (estamos em 2002): ciclovias, parques infantis, esculturas, restaurantes. Então, ele bebe água de coco no Jardim de Alah. Olha para todos à sua volta. Não reconhece ninguém. Lembra-se da sua juventude, quando corria todos os dias 10 quilômetros na praia, jogava vôlei, praticava hapkido, salto em altura e corrida de 100 metros. Agora, entretanto, tem os dois joelhos avariados. Não pode mais correr, e agora? O sonho acabou, a noite chegou. Sonha com uma casa que parece não existir mais. É uma casa como aquela da receita de casa do Rubem Braga. Ela tem porão “com entrada pela frente e saída pelos fundos”; amontoado de móveis antigos, quebrados, objetos desprezados e baús esquecidos: cemitério das coisas. Tem um certo grau de umidade e um alçapão que o liga à sala de jantar. A casa tem varanda, caramanchão, horta e jardim. Tem o piso de tábuas largas, jamais enceradas. Mas, oh, falta-lhe o essencial: não há nela nenhuma criança que lave o piso em festa, ou que penetre no porão, com fascínio e terror; nem mulheres que vejam, à janela, os bois passarem na rua em frente. Não há bois, nem a rua em frente; apenas a casa, suspensa no tempo, como lembrança viva de um cadáver. Há apenas ele percorrendo silenciosamente salões empoeirados. Por que estás triste? Ele não diz. Não porque não saiba dizer; mas porque acha que não vale a pena, ou porque não o entenderão, ou pior, porque o entenderão mal. Ele não gosta de polêmica. Ele jamais fará parte da história do Brasil. Nenhuma criança no futuro saberá coisa alguma dele e da sua casa e dos seus sonhos; nenhum livro escolar registrará sua vida. Ninguém se inspirará nos seus feitos. Ele é um homem olhando para sombras do fundo da caverna. Ele não quer sair da caverna: suas sombras lhe bastam. Ele se afeiçoou a elas. Pode até conversar com elas. Assim: - Ouviste? Alguém diz que somos espectros que habitam algum ponto entre ser e o nada. Não lhe parece tolice? - Sim. Alguém sonha sonhos estranhos. Alguém delira. - Mas ele parece tão convencido dessa verdade! - Verdade? Oh, se alguém te convence que existe de fato num impraticável fora, algo mais verdadeiro que eu e tu, que posso dizer? A todos é dado sonhar. Mas a idade já me convenceu que a verdade é sempre o que as minhas mãos podem tocar e os meus olhos verem. Nada mais. Nada mais. O homem acorda ainda vendo diante de si a figura austera do velho – uma sombra entre outras sombras no fundo de uma caverna. Lava o rosto na pia. Está perturbado. Aquele velho obscuro era tão sereno, parecia mesmo um sábio, mas não era horrível aquilo? Acostumar-se a 77 viver naquele sepulcro e ainda sentia-se realizado? Ele não entenderia que fora é dentro, mais do que qualquer outra coisa? Mas também ele já esgotara suas reservas de entusiasmo? Seu sagrado fogo da busca do saber? O homem caminha lentamente para o fundo sombrio da sala, do seu apartamento e ali fica imóvel. Pega o controle da TV. Liga. Imagens se sucedem na tela enquanto ele aperta o botão do controle: Zap (Zapata (Brando) morto), Zap (Hyde (March) fugindo), Zap (John Doe (Cooper) sonhando), Zap (o velho (Mayer) destruído): Duília, Duília, teus seios cresceram e caíram, como um elefante decrépito que vem tombando através das eras, Duília, não mais existes e isto é insuportável, porque os teus seios eram tudo o que me restava de bom. Mas para que servem estas imagens? Desliga. As sombras o envolvem mais uma vez. Ele é agora pouco mais que um inseto arrastando-se no piso frio da sala: Gregório Sansa: lagarta ferida com coração de homem – você pode imaginar algo mais cruel? Ah, o terror! Mas, veja: a noite terminou, e os fogos ainda espoucam no ar – e podes ver todas aquelas luzes refletidas no aquário onde vivem os dois peixinhos amarelos com suas caudas de véu. O aquário é antigo como o mundo. E posso dizer-te agora que também me sinto assim, antigo, escrevendo esta tua história sem fio e sem prumo. Desvio o rumo desta narrativa, e o que fazes, que não me corriges? Ainda te vejo imerso na escuridão do quarto, diante da TV agora apagada, inerte. Pensas ainda no sonho e perguntas a ti mesmo se vale a pena sair para muito além de Rangun, ou se se deixa estar aqui neste espaço que, apesar de tudo, é o mais seguro, por que lá fora ronda o Mal. O homem abre a janela e olha para a cidade mergulhada na madrugada solene. Triste madrugada foi aquela que eu perdi meu violão – mas, onde está o teu violão? Ele nunca teve um violão! Será possível que nunca tenha se aproximado da janela da sua amada e tocado canções medievais de amores impossíveis, e empunhado uma espada e lutado com elegância e firmeza como só Errol Flyn sabia lutar – e enfrentado vilões encastelados, opressores do povo, avante Che Guevara, que el hombre no está muerto! E, sim, pensa o homem diante do televisor, eu preciso subir a Sierra Maestra, mas já não existe a Sierra Maestra, e todos seus jovens guerrilheiros morreram, ou pior, transformaram-se simplesmente em estátuas de sal que o vento sopra, sopra numa ilha deserta. Por isto estou aqui, pensa, nesta sala diante de um televisor, com imagens na cabeça de sombras que já não encontram razões suficientes para saírem à luz. E a verdade, querido leitor, a verdade é que eu não quero mesmo sair à luz. Prefiro deixar-me ficar nesse canto, como num pátio deserto no qual me vejo ainda menino brincando com amigos imaginários. Cá estou, nesta posição confortável de observador, diante do televisor apagado – pensa ele. Aqui estou, sozinho, esquecido – e daqui posso observar o mundo. Isto ficou ainda mais fácil com todas as possibilidades que os canais de TV por assinatura me proporcionam. Aqui, mergulhado na escuridão, sou invulnerável, invencível. Com o controle na mão manipulo o 78 universo – pensa. O homem olha para a cidade lá fora e sente um estranho alívio em pensar que pode também descer as escadas, sair às ruas e, em alguns segundos, integrar-se à maré humana que se derrama naquela noite. Veja: homens conversam num boteco da Carlos Gomes, à noite. Serão traficantes de prostitutas para a Alemanha? Ou de crianças para a Itália? Ou de dólares para a Suiça? ou da nossa alma para o States? Sim, ele também irá a Miami comprar eletrodomésticos para revender – mas para revender a quem? E se tiver chance, pedirei que me traga o novo disco de MacCartney. Pedirei também composições andinas, um computador de última geração, equipamento de camping, um forno microondas e um pônei da Califórnia. O homem poderá também acessar pela internet o acervo do Louvre e se deliciar com imagens digitadas (perversos clones) de Van Gogh (oh! mas ele nunca acessará Van Gogh!), por isso o aconselho a botar o pé na estrada antes que seja tarde demais, mas ele tem medo. É tarde amor, e o dia cedo começa. Listen to what the man said: no more lonely nights. Oh, darling, porque não mais apareces neste coração cheio de pó? Que trabalho me dá varrê-lo! Meu coração, veja bem, é como o casebre do eremita entre os lençóis de areia, que o vento sopra dia e noite – e que ele nunca se cansa de varrer. E eu, aqui estou, diante da janela, diante da rua, na noite vazia quando meu coração se enche de violinos, como numa ópera de Verdi; e sou eu mesmo que estou lá, no camarim de um teatro do século XIX, pensando que esse momento de beleza jamais terá fim; e se a minha alma se enche de lirismo, é porque acredito mesmo que o eu existe. Ou melhor: que só existe o eu. 79 SISINA Estou de pé, de frente para o sol que cai pouco a pouco por detrás dos morros a Oeste. Esta paisagem me lembra a gravura da enciclopédia do meu pai, que me fascinava muito, quando eu, ainda criança, enchia os olhos com as montanhas, com as montanhas que jamais tornei a ver novamente, mas que as vejo agora refletidas nessas nuvens. Eram desenhos sobre os continentes, lembro-me bem: a África com seus leopardos e crocodilos que me olhavam e me desafiavam do fundo sombrio e negro; a América e seus índios e suas florestas e suas geladas paisagens da Patagônia e aquele mar diante do qual tudo terminava para dar lugar ao desconhecido gelo do Sul; a Europa e suas cortesãs e seus exércitos e sua história que se impôs sobre o mundo e que trago aqui comigo; a Ásia e seus tigres e dragões e suas misteriosas serpentes e odaliscas e suas danças-do-ventre e seus pecados e suas tribos de beduínos e seus camelos e desertos e oásis; a Oceania com seus pigmeus e cangurus, com seus arrecifes e guerras desconhecidas. Tudo isto está aqui, diante de um velho para o qual custa erguer os olhos cansados, da mesma forma que estavam para o menino que, no apartamento ilimitado de um sonho atravessava o corredor perseguido pelos watusis e cherokees e do alto do guarda-roupa lançava suas flechas envenenadas. Veja, meu amor, a claridade doce e luminosa desta tarde. Ela também está no final desta história, ou melhor dizendo, no final deste capítulo. Dê-me sua mão... venha... devagar. O futuro também é nosso... - Mas o que digo agora, eu, parado no fundo do quarto, próximo ao guarda-roupa negro e sombrio que parece guardar ainda aquelas minhas roupas da infância, aquele pijama com bolinhas azuis, você lembra? A minha infância tem dessas coisas assim delicadas, pijamas e lagartas de fogo e lagartixas e fogueiras que acendia como acendiam também os patagões para se manterem aquecidos nas longas noites de inverno, ou nos longos dias de inverno, como se pudesse manter mesmo acesas eternamente aquelas fogueiras, aquelas fogueiras, meu amor, que são como esses seus olhos que mantém acesa essa ternura, agora partida, moída, rompida, completamente destruída mas ainda assim viva, como se dependesse de ti esse poeta francês que só consegue murmurar este teu nome: Sisina. Veja, pois tal é a Sisina, amiga noturna que encontro sob folhagens, Sisina, guerreira destemida que em sua couraça ousa desafiar a verdade. Vem, amor, que de mim despenca ao abismo a doce voragem de saber que não serás minha, enquanto sobre ti exercer este jugo; vem... Mas, tal como o poeta maldito, também sei ultrapassar os umbrais, e diante do corvo enrijecido, na floresta petrificada, diante do castelo sombrio e triste, te evoco como a uma pomba que voa sobre os telhados enegrecidos da fuligem 80 das fábricas de Yorkshire. Vem, Sisina, que meu amor é como o mar largo, como mar que transporta heróis e monstros e mitos; e, como o cavaleiro negro do conto de Kleist, também cruzarei os ares no meu alazão, mergulhado em pensamentos tristes, em pensamentos de distâncias. Sisina, Sisina, que posso pensar que nem mais existes, porque o mundo lhe diz não quando fecha suas portas ao passado, àquele passado que me visitava no antigamente que hoje se reduz a um improvável sonho. Sisina, doce combatente, de alma feroz e indulgente, que se mostra e chora ante quem o merece, amor, por que jamais te vejo sem que em mim alguma coisa se cale? Diante de ti, sou um menino, apenas, que como o poeta, lhe tece loas – doce leoa, guardiã do futuro que jamais acontecerá, diva, amiga, irmã, algoz, desembainhe sua espada e corte esta dor que me corta e me fere sem que eu mesmo saiba por que, oh maga jubilosa, rainha dos temporais, lance-me, lace-me, mate-me, que sem ti essa vida é uma ausência, capitã das naus destemidas, linda dama das cortes do meu coração, Sisina, Sisina, e eu nem sabia que sequer existias, e para que me foste revelada se já nem posso mais viver sem ti? Heróica senhora da França, de uma França que só existe em mim, de uma França que lança raízes nessa tristeza, duelos e rimas e homens gentis, és a Senhora da minha Civilização que agora decai e tomba como um gigante que atravessa as eras para cair aos teus pés, Sisina, Sisina, sei que nem posso mais cantar-te, porque me falta essa doce flauta que é apanágio de todos os poetas que como eu se calam pela simples impossibilidade de dizer. - O que fazes aí neste canto, menino? A mulher aparece na porta do quarto. Ela tem uma voz enérgica e posso jurar mesmo que se trata de alguém que me ama, e que por isso mesmo faz essa pergunta com palavras que cortam o ar fino da tarde, dessa tarde remota, dessa tarde longínqua na qual me estiro no chão para ler aquela história do cão invisível, do menino invisível, e que por ser invisível me parecia tão triste, oh meu Deus, que poderei dizer àquela mulher sem fazê-la ver que não existo? Mas ela também parece ser um fantasma que me olha com irônica compreensão e que parece achar mesmo que não vale a pena penetrar nessa fantasia, nessa fantasia desse sonho que, entretanto, me parece tão real! - Mãe? – consigo dizer finalmente, mas ela já não me ouve, deu meia volta e saiu do quarto, do quarto mês do ano de 1962, quando o Brasil ainda tinha aquele ar de coisa antiga, um país em preto-e-branco de homens vestidos com camisas e calças claras que pegam o bonde e vão pelas ruas, pelas calçadas, ouvindo notícias e jogos de futebol nos seus radiozinhos de pilha, e posso ver o meu pai assim caminhando pelas ruas com sua camisa meio pra dentro e meio pra fora da calça e seus cabelos desarrumados pelo vento que sopra naquela tarde em que os coqueiros se agitam na orla marítima onde uma antiga casa na forma de um barco tem um ar cansado, um ar de encalhe, e a cidade de Salvador tem ainda aquele ar de mistério que caía bem, muito bem, nas histórias de Vasconcelos Maia, aquele escritor que morreu sem ter conhecido a 81 glória, e seus livros estão sendo esquecidos hoje em dia pelas gerações mais novas, e andar pela avenida sinuosa à beira mar é como uma espécie de evocação, me estás ouvindo? Evocação de remotas marés cambiantes: e aqui ainda não sopra aquele vento do norte que virá trazendo homens e mulheres maltrapilhos com seus violões amando amando nas praias, sobre as dunas, e aqui me divido entre esses dois tempos, meu Deus como sou ao mesmo tempo conservador e libertário, eu sou aquele que condena rigorosamente a maconha enquanto a fuma sobre as colinas diante do sol que se põe, e que enquanto volta todas as noites para o seu lar cristão, onde o espera uma mulher e uma filha pequena, tão querida e amada, e que tem os cabelos curtos e um ar cansado de quem trabalha um pouco demais, também se lança com suas barbas e cabelos longos On the Road pelos caminhos do interior do país e quem sabe também lá, naquela casinha do campo se verá novamente diante de um filho e de uma mulher, uma garota tímida, que entretanto não quis casar contigo, meu amigo, forçando-te a abandoná-la, logo tu que tanto a amava. Aquela casinha da música do Taiguara e aquele portão de madeira da capa do disco de Taiguara parecem-me agora tão distantes, embora possa e ainda degustar um pouco daquele sonho, enquanto sinto a força do Tempo e todos aqueles sonhos que tive e tenho de um mundo de Paz. Veja, lá estou eu consertando o portão de madeira do Serenita, enquanto construo a fogueira que me parece verdadeiramente uma obra de arte na sua rústica simetria. 82 ANOS 70 Esta história (se é que se pode chamar assim a este indisciplinado fio de memórias entrelaçadas) começa num dia qualquer dos anos 70, que tem hoje para mim uma atmosfera lírica, em tons pastéis, onde vejo imagens fragmentadas: saveiros no mar, coqueiros sacudidos pelo vento (eram tão freqüentes os temporais naquele tempo) e ruídos distantes de ondas nos arrecifes e de gritos ou gemidos que ainda não sabíamos distinguir; filmes catástrofes de naufrágios e incêndios com seus heróis infalíveis e tristes; músicas românticas de Taiguara, McCartney, Mancini, Vinícius, Aznavour e aquela estrada que nos levava nos finais de semana a uma roça no interior, onde eu ouvia no rádio todas as tardes de sábado histórias de terror que me deixavam sempre um pouco inquieto, como se uma sombra de repente me atravessasse a frente e dissesse: veja, rapaz, você não é imortal, você também pode morrer e sofrer – e quando eu olhava aquele caminho de barro que levava para não sei onde os sertanejos montados nos seus cavalos e burricos, e toda aquela gente simples que nunca parecia, como eu, temerosa de dores ou de amores; que simplesmente vivia, e ia, e eu mesmo ia também pela estrada com o meu pai, olhando pela janela do carro e vendo todas as aquelas pastagens e sentindo o cheiro do mato e lembrando com infinita tristeza a música do menino, da porteira, do berrante e da ausência, que o homem cantava com sua viola sem peias – e ali ficava, com meu olhar de menino que se espalhava entre os arbustos e os canaviais e o gado; mas também naquelas ruas da cidade que mais tarde, ainda nos anos 70, eu começava a descobrir: Posso ver-me ainda, indo pela primeira vez, sozinho, ao cine Jandaia, onde assistia com imenso deleite à sessão dupla de heróis mitológicos e westerns spaghetti – e vibrava com o mocinho que matava um exército de bandidos com a força das suas mãos nuas, ou com o revólver em que nunca faltavam balas, que cuspia fogo sobre o mundo, sobre a iniqüidade do mundo, até que se calava e, finalmente, vingado, o mocinho partia, solitário, no seu cavalo – e saía do cinema com um sentimento de vaga insatisfação, talvez porque fosse incompreensível a solidão daquele homem, e inúteis todas aquelas mortes, e absurdas todas aquelas lutas; e você, meu jovem rapaz, caminhava também sozinho pelas ruas da cidade suja e triste dos anos 70, a sua adorável cidade; e nem sabia sequer que aquele cinema estranhamente fascinante era um pardieiro freqüentado por velhos devassos, tarados, ladrões, assassinos e prostitutas, e por não saber, e por ser tão inadmissivelmente inocente, nunca te molestaram, mas já começava a perceber que as ruelas sombrias entre a Baixa dos Sapateiros e a Praça da Sé escondiam também prazeres proibidos, e um dia ousaste até entrar num daqueles prostíbulos, e, com uma timidez que conseguiu muito bem disfarçar com um ar de altaneira insolência, comprar de uma mulher alguns minutos de confuso gozo, num quarto minúsculo, feio e sujo, e que ao voltar para casa 83 com o teu segredo, sentaste no batente, à porta, e te deixaste ficar ali a olhar estrelas em cujas luzes já não mais te encontravas inteiramente, porque uma parte de ti continuava lá com a mulher, no quarto obscuro. Mas veja, o teu caso com ela parece não ter terminado, porque ainda não sonhas este sonho insano de lavar-lhe a alma com vosso líquido sagrado, purificandoa e a ti próprio com teus humores? A cidade: tu a amas também nesses labirintos de pecado e crime: tu, que jamais cometestes um crime sequer. Mas os anos 70 tinham sempre aquela atmosfera de filme policial americano nos quais já podíamos encontrar imigrantes latinos de cambulhada com sobreviventes nazistas e a atmosfera sufocante de Nova Iorque, como naquele filme que lhe impressionou muitíssimo: Maratona da Morte; ou ainda com aquelas espetaculares perseguições e cenas abertas nas ruas, como em Operação França, ou Bullit, ou Serpico – sim, os anos 70 tinham a cara de Gene Hackman, Steve McQueen e Al Pacino; mas vejo ali também os canaviais molhados e as casas coloniais amplas e aqueles alpendres e o homem irascível de São Bernardo (Othon Bastos), e Glauber brigando nas escadarias do Museu de Arte Sacra com o professor Valentim Calderon, e o Poseidon virando virando; e os filmes das noites de domingo na TV; e a estrada que te levava a Arembepe no corcel azul do seu irmão, que era também um herói, e, lembra, ainda podemos ouvir Philadelphia Freedom, ainda podemos sentir o gosto do peixe e das coxas morenas de Heloísa, linda sereia mulata de olhos doces, que preparava pititingas torradas, como se já não fosse suficiente ouvir o mar quebrando nas pedras e todos aqueles coqueiros cantando como beatniks pacificados, rebels without cause, e se fosse hoje, ou melhor, se hoje fosse aquele dia, também não deixaria para trás todos esses valores decadentes da Civilização para ser também um arauto da paz e do amor? Ah, meu velho, mas eras tão jovem ainda e nem sequer sabia o que seria viver numa daquelas palhoças com mulheres que estariam sempre partindo e chegando; e poderia mergulhar nas águas do rio Jacuípe, que corre a cavaleiro do mar e das tuas lembranças. Então, hoje, já velho e desencantado, poderia contar a história daquele lugar. Ou, poderia lembrar outros momentos da adolescência, quando saía com amigos para beber cerveja e caçar amores nos bares da orla marítima, ouvindo baladas no carro enquanto o mundo passava rápido pela janela a 120 Km/h, e aqueles outros filmes, que assistia no Cine Liceu, sozinho, à noite, e aquele prazer de sair ruminando tantos personagens e diálogos e lutas e dramas, e tudo era muito simples, como um soco de Humphrey Bogart, como aquelas paisagens remotas do Kafiristão, em que os aventureiros de Kipling/Huston encontrariam o seu reinado de morte... Oh, o que lhe resta fazer senão abrir mais uma vez a porta deste apartamento, como se só fizesse este gesto, repetindo-o eternamente, e sabes de uma coisa? Tu amas viver sozinho apenas para ter esse prazer gratuito de abrir a porta do apartamento, e te veres assim, no corredor deserto do prédio, porque sempre amaste esses corredores e pátios desertos, por quê? Por quê? Eu pergunto, e tu dirás: “porque sinto como se colocassem o tempo diante de mim”, 84 ou “porque sozinho me sinto um observador de coisa alguma”, ou “porque há algo de eterno e inevitavelmente melancólico num espaço de ausências”, ou “porque sinto como se alguém invisível estivesse ali, como se estivesse estado sempre ali e só assim posso pressentir a sua presença e lançar sobre ele um pensamento que me é devolvido, e é como se eu estivesse me vendo num espelho”, ou porque aqui, amigo, ninguém poderá te ver e julgar, porque aqui e somente aqui és verdadeiramente livre, e triste, e só: quatro paredes, um corredor, uma escada, a lâmpada, as campainhas, a janela e o mundo lá fora: posso vê-lo. A noite passa como um fantasma com sua capa negra, e esta noite é também como uma porta que nunca conseguimos abrir. Meu velho (coloco meu braço sobre os seus ombros e aponto, lá fora, os postes elétricos e os ônibus que circulam livremente), meu velho, eu queria ser como você, assim, livre para andar na noite sem medo de morrer; e me bastaria um apartamento minúsculo no centro da cidade, num prédio antigo, para o qual levaria, todos os dias, uma mulher. E a minha solidão. 85 ILUSÕES DE UM DON JUAN Vejamos: você tem um metro e setenta e nove centímetros de altura, cor branca, cabelos pretos cacheados. Veste-se sem muito apuro, mas com modesta elegância. É um cafajeste light, mora num apartamento em Ondina, sozinho, onde recebe uma ou duas vezes por semana amiguinhas às quais gosta de contar vantagem (sutilmente, sem que elas percebam, porque nada lhe é mais desagradável do que alguém pensar que você gosta de contar vantagem). Diz, por exemplo, que já participou da Fórmula Indy, mentira da grossa, pois você sequer sabe dirigir seu verona amarelo; diz que teve um caso com Irene Papas, na Grécia, outra mentira braba, mesmo porque, você não se deu conta, Irene Papas já está bem gastadinha nos seus nem sei lá quantos anos, veja só que merda; que assistiu às filmagens do Seresteiro de Acapulco, no México (foi num estúdio de Hollywood), como se tivesse seus 45 anos (tem apenas 35); e que fez a travessia Mar Grande/Salvador, logo você que não consegue nadar 100 metros rasos sem botar os bofes para fora. Enfim, como dizia, você é desses caras que não conseguem contar uma história sem acrescentar outra. Veja por exemplo esta cena: Você levou (noite de sexta-feira, cheiro de pecado no ar) uma amiga (publicitária), chamada Selene, para a cobertura do seu apartamento, de onde tinha uma visão panorâmica da noite pálida e caliente, e enquanto servia taças de vinho do porto, queixava-se, como quem não quer nada, do dia que foi estafante, reuniões e reuniões com executivos e técnicos disso e daquilo, e aquela responsabilidade, você sabe, de ter que tomar altas decisões que envolverão certamente o destino de dezenas, senão centenas de pessoas – e neste momento, você suspendeu a fala para olhar o decote generoso do vestido negro de Selene e a expressão dela na qual desejava captar um sentimento, digamos, de fraternidade... ou de perversidade... Deixe-me explicar: você é expert em antecipar desejos inconscientes, diante dos quais daria o rumo da sua narrativa: se se preocuparia realmente com o destino daquelas pessoas, preservando-lhes o emprego e o bem estar, ou se agiria como um deus onipotente, um Fausto, sacrificando aquelas vidinhas medíocres em benefício da realização de grandes obras, e, no íntimo, você admitia que esta postura era muito mais excitante, que combinava mais com o vinho, com o seu terno e a cobertura e com a noite, e com o sexo parcialmente violento que consumaria ali mesmo sob as estrelas, sim, porque aquela mulher se sentiria mais motivada, vamos dizer assim, em ser penetrada por um homem que disporia de vidas e destinos, um fauno, um viquingue, um sátiro, um boto, um bandido. Ela poderia dizer: “Não acredito que você seja capaz disto!”, sentindo-se levemente alta e tonta com o céu girando girando e o mundo e a luz daquela estrela, vês? Então farás um pedido? Não! Darás uma ordem: que o mundo pare de girar – dirá ela caindo-lhe nos braços com os lábios entreabertos recendendo a álcool, não, a desejo – e você a beijará, 86 sentindo-se também, num voluteio de embriaguez, satisfeito de si, como o deus nórdico que lança seu martelo infalível sobre o tempo. Mas, o que podes fazer se despertas agora e nada mais tens diante de ti senão a sala acanhada do teu apartamento solitário, teu som 3 em 1 e a TV de 24 polegadas e a estante atulhada de livros que jamais lerás, como aqueles três tomos do Tratado da Natureza Humana, de Hume, que dá um toque distinto à sua estante, mas que resiste à tua leitura, embora seja infinitamente mais palatável que esses estruturalistas, ou pósestruturalistas, ou sei lá como queiram chamar, que nos oferecem pérolas de clareza e simplicidade (ah!), agora veja, pensa você, enfastiado, enjoado, enojado, se eu vou perder tempo destrinchando essas pirações pseudo-filosóficas, e sente-se melhor quando lembra dos tempos longínquos da adolescência, quando saía com os amigos para beber cerveja e caçar mulheres nos bares da orla marítima, ouvindo músicas românticas no carro enquanto o mundo passava rápido pela janela a 120 Km/h, e aqueles filmes, lembra-se? que você assistia no Cine Bahia, sozinho, à noite, e aquele prazer de sair ruminando tantos personagens e diálogos e lutas e dramas, e tudo era muito simples, como um soco de Humphrey Bogart, como aquelas paisagens remotas do Kafiristão, em que os aventureiros de Kipling/Huston encontrariam o seu reinado de morte, oh, o que lhe resta fazer senão abrir mais uma vez a porta deste apartamento, como se você só fizesse este gesto, repetindo-o eternamente, e sabe de uma coisa? Você ama viver sozinho apenas para ter esse prazer gratuito de abrir a porta do seu apartamento, e se ver assim, no corredor deserto do prédio, porque sempre amastes esses corredores e pátios desertos, por quê? Por quê? Eu pergunto, e tu dirás: “porque sinto como se colocassem o tempo diante de mim”, ou “porque sozinho me sinto um observador”, ou “porque há algo de eterno e inevitavelmente melancólico num espaço de ausências”, ou “porque sinto como se alguém invisível estivesse ali, como se estivesse estado sempre ali e só assim posso pressentir a sua presença e lançar sobre ele um pensamento que me é devolvido, e é como se eu estivesse me vendo num espelho”, ou porque aqui, amigo, ninguém pode me ver e julgar, porque aqui e somente aqui sou verdadeiramente livre, e triste, e só: quatro paredes, um corredor, uma escada, a lâmpada, as campainhas, a janela e o mundo lá fora: posso vê-lo. A noite passa como um fantasma com sua capa negra, e esta noite é também como uma porta que nunca conseguimos abrir. Amigo (coloco meu braço sobre os seus ombros e aponto, lá fora, os postes elétricos e os ônibus que circulam livremente), amigo, eu queria ser como você, assim, livre para andar na noite sem medo de morrer; e me bastaria um apartamento minúsculo no centro da cidade, num prédio antigo, para o qual levaria, todos os dias, uma mulher. E nada mais. (Oh, agora começo a me repetir, mesmo que num esforço de distanciamento e objetividade, como se andasse em círculo, sempre, sempre, sempre?) 87 IMAGENS URBANAS Como as personagens de Noite Vazia, de Khouri, esvazio meu ser com essas imagens urbanas que sempre farão parte de mim, porque, veja bem, o que há de tão fascinante nesta janela que abro, no 15o. andar de um prédio, na Graça ou na Barra Avenida, para o espaço imenso das avenidas que lá embaixo se enchem de pontos luminosos que vêm e que vão, e esse emaranhado de viadutos e pontes e tantos ângulos, ocultos, obscuros escondendo sabe-se lá que tipo de sonhos, e medos, e taras, e intenções? Penso que posso ser todas aquelas pessoas lá embaixo. Vejam, por exemplo, aquele homem, metido num casaco surrado, com cabelos crespos e barba por fazer, retorna para casa, no início da noite de uma sexta-feira, após um dia de trabalho, e ele também percebe que não é mais jovem, que todos os seus sonhos se dispersaram ao longo dos anos, que sua pele já não tem mais nenhuma vivacidade, nenhum frescor, que sua barriga cresceu, que seus músculos estão flácidos, que já não é mais capaz de enfrentar um homem com seus punhos, que já não é mais capaz de garantir sua integridade com suas mãos, que seus amigos se dispersaram também como farinha na praia, quando o vento bate forte e firme e ela voluteia e se desfaz, e que já não pode sequer contar com um amigo que o ajude a enfrentar esse mundo cão, que é capaz de apanhar feito um cão imundo, sem poder fazer porra nenhuma, está me entendendo? Pensa assim o homem desiludido, fodido, cansado de tudo e de si próprio, e que por isto, e que por não valer quase nada mesmo, carrega consigo no bolso do casaco surrado, uma arma, esta arma que tem prazer de ter entre os dedos enquanto olha em volta e vê os passantes, e pensa: venham, filhos da puta, venham se meter comigo, filhos de uma cachorra pra ver se não lhes meto uma bala nas fuças, escrotos fodidos, e pensa que já é tarde, que o ônibus está mais uma vez atrasado, e pensa que é inútil contar quantas horas da sua vida, quantas horas da sua vida, está entendendo? quantas horas de sua vida perdeu parado assim no ponto do ônibus, esperando, esperando enquanto os merdas passam pra cá e pra lá com seus carrões luxuosos, com suas mulheres embonecadas, que não sabem que ele existe, e que nunca saberão até que aponte a porra da arma pra suas cabecinhas... E quem sabe até dê um passeiozinho por aí pela periferia com essas granfas, e ele sorri saboreando a idéia de deitar uma delas no carro e, com suas próprias mãos, rasgar-lhe a blusa e levantar-lhe a saia, e arrancar-lhe a calcinha fora, e tirar pra fora sua pica e fodê-la, e mamar nas suas tetas, e chuparlhe a boceta, e dizer-lhe assim baixinho no ouvido: és minha agora e sempre, tá ouvindo? E ela será todas as meninas que o trataram como um moleque, como se ele tivesse sido feito por Deus para servi-las, e agora, sim, irá servi-las, a todas elas servirá com sua estrovenga que derramará este jato de leite quente nas suas entranhas, enquanto ela gritará por socorro, socorro, socorro, veja só que ela nem sabe onde está metida, essa égua nojenta, então você não quer receber 88 minha maromba, heim? dirá puxando-a pelos cabelos, beijando-lhe o pescoço, roçando-lhe os peitos com a lâmina do seu canivete, oh, sim, ele fica excitado sempre que pensa naquelas coisas e pensa mesmo se seria capaz de fazer uma coisa daquela ou se, simplesmente, mata-la-ia com um tiro na testa, pois não seria rebaixar-se muito misturar-se com essas peruas, não seria melhor dizer que iria despachá-la logo pras profundas, meu irmãozinho, sim, meu irmãozinho, porque o inferno é pouco, tá me entendendo, pra essa gente que sempre se acostumou a humilhá-lo, e aos seus irmãos, e aos seus pais, e aos seus avós, e a toda a interminável multidão de homens e mulheres, que, diante deles, só abre a boca para dizer: “Sim? O que o Sr. deseja? O que a Sra. quer?”, e o que é que a senhora quer agora, dona-puta-de-merda? Pensa com força, pensa com raiva sentindo seus dedos apertarem com força o cabo do revólver, e com que vontade não cuspiria fogo em volta, queimando todos esses filhos da puta que ficam andando pra lá e pra cá com essa pressa, pra quê? E o homem range os dentes, e seus ossos rangem, e tudo nele rangia como se fosse os dentes de um cachorro louco, mas ele se controla, mais uma vez, e uma mulher, ao seu lado, pergunta-lhe as horas. - Que horas, por favor? E ele: - O quê? E ela: - As horas... E ele: - Sim, claro, desculpe. E solta o cabo do revólver, e olha o relógio, e diz as horas com educação, e a mulher agradece-lhe, e o ônibus chega finalmente, e ele o pega, e desaparece para sempre desta história, e a mulher que fica no ponto, pensa: coitado, tão simpático, mas tão miseravelmente destruído, oh, e se eu não me cuidar também ficarei assim, mas já não estou assim meio caída, pensa olhando os seios que já não se mantêm suspensos, e ela nem se lembra quando eles começaram a cair, e pensar que um dia ela acreditou que eles jamais cairiam, e só então percebeu como já ia longe, meu Deus, aquelas noites em que seu namorado a encostava no muro, encostando o corpo magro e musculoso nela, e ela sentia o volume dele pressionando suas partes, e ela o empurrava, e ele insistia, e ela lutava com todas as suas forças até que sentia que ele a largaria, e sem querer frouxava os braços e sentia um súbito alívio ao saber que ele não se deixara intimidar, e nunca lutou tanto quanto naquele dia em que, na beira da praia, ele lhe arrancou fora a calcinha, e ela tentou fugir, inutilmente, e sentiu pela primeira vez o gosto de ser penetrada, e aquele medo de engravidar, e só então viu a força que tinha, e ficou confusa sim quando sentiu o líquido grosso, quente e pegajoso derramar-lhe nas coxas, e sentiu nojo, e quis limpar, e ele ficou lá parado como se tivesse morto, e ela pegou a calcinha jogada na areia e limpou-se com ela e atirou-a longe, e saiu dali feito uma maluca, e chorou muito naquela noite, 89 em silêncio, engolindo seus soluços, mas muitas outras vezes voltaria com ele à praia, e tudo terminaria ficando natural, até que um dia engravidou de verdade, e quis abortar, chegou a tomar remédios, mas a barriga continuou crescendo, e de repente não pôde mais esconder que, sim, teria um filho, mas seu pai não compreendia, desgraça de filha, criada com tanto gosto pra quê? Pra emprenhar assim feito uma vagabunda? Oh, meu pai, como doeu aquela surra, e as recriminações, e a rejeição cada dia pior, até que casamos e saí de casa, e tive outros filhos e outros e acho que foi aí que meus peitos começaram a cansar de dar leite e foram despencando, os meninos enchendo a casa com tanto barulho, e meu marido com tantas exigências, mas pra que estou pensando nisto agora, meu Deus do céu? – matuta a mulher, a mulher que espera o ônibus, a mulher que passara anos de sua vida esperando o ônibus, ela que já não tinha mais nem tanta pressa assim de chegar a casa, porque sua casa era fria como as ruas da cidade, fria e vazia como essas calçadas e avenidas, e pensa mesmo se não teria sido melhor se tivesse feito como sua prima Marlene, lembra-se dela? Claro, mas faz tantos anos, não é? Quando Marlene fugiu de casa pra viver com Roberto, que vivia dizendo que a amava, que queria casar com ela, e ele com aquela lábia que o diabo lhe deu conseguiu finalmente levá-la para um daqueles hoteizinhos baratos de beira de estrada, onde tudo parecia sempre muito velho e sujo, banheiros com portas despencadas que rangiam, e as teias de aranha nos ângulos da parede, e baratas que passavam pra lá e pra cá em meio ao lixo, e aquela cama velha com o colchão duro e as cobertas encardidas, meu Deus, então ela se submetia àquilo pra ter o gosto de dizer pra si que se entregara ao seu homem? E ele a fodia naquela espelunca, e que vergonha não tinha quando sentia sobre si os olhos do dono que a media de cima para baixo como se fosse uma puta, com olhos maldosos e com desprezo, até que engravidou e chegou mesmo a ficar alegre com isto, como se um filho fosse lhe garantir o lar, uma casa sua e um quarto seu, seu e dele, que seria um bom pai, viu? E lembra que ela mesma lhe disse isto: sim, Roberto será um bom pai, e ela queria ter pelo menos uns cinco filhos, dois meninos e três meninas, ou melhor, um menino e três meninas, porque menino dá mais trabalho, é mais solto e difícil de controlar, entende? Sim, Marlene, eu entendo, mas veja, Roberto não queria filhos, porque, como ele mesmo lhe disse, crianças não faziam parte dos seus planos, e quem poderia garantir que os filhos eram mesmo dele? E ele disse isto, Marlene, como se você o tivesse ofendido, veja só, como se você mesma fosse culpada, e mais culpada ainda por não entender que ele era um homem livre, dono do seu nariz, mas que não se preocupasse com isto, porque ele não a deixaria na mão numa hora dessa, que ele não era nenhum mal caráter, e veja, Marlene, que ele se predispôs a levá-la a uma fazedora de anjos que havia ali na Liberdade, que não se preocupasse, porque ele já a conhecia, conhecia muito bem, de forma que só precisava arranjar o dinheiro, porque nisso ele não podia fazer nada, porque, você sabe a situação em que ele se encontrava, há tantas semanas desempregado, mas ele lhe garantiu, viu? que estaria lá, e você tão bestinha Marlene, tão 90 bestinha que só fez mesmo baixar os olhos e chorar, sentindo vergonha de si mesma, como se a culpa de tudo fosse só tua, minha querida, venha, sente-se aqui comigo no banco desta praça, e me diga porque você não me procurou, Marlene? E por que inventou de tomar aquele remédio, por que não tinha dinheiro? Mas, querida, que dinheiro custa a sua vida? E, lembro-me como hoje da correria, sua mãe desesperada, você passando mal, e ninguém sabia o que era que você estava sentindo, Marlene, e levaram-lhe ao Hospital Geral onde você ficou quase duas horas sem ser atendida, que precisou seu irmão Valtinho ameaçar quebrar tudo pra que aparecesse um médico mal encarado, que violou sua intimidade com aquelas mãos bruscas e descuidadas, e que depois fez aquele comentário maldoso na frente da sua mãe, “que você quis matar seu filho”, que Deus tava dando o troco e que se você morresse a culpa seria sua, que ele lavava as mãos, que as mulheres hoje em dia estavam todas mesmo perdidas, que você não poderia ficar ali, por que não tinha leitos vagos nem pra mulheres honestas, e que ele, enfim, ia pra casa, porque já não estava agüentando mesmo toda aquela sujeira, que a merda do salário que recebia não justificava ficar ali perdendo tempo com mulheres de má vida, e, Marlene, você saiu do hospital naquele dia querendo morrer, e não é que quase conseguiu realizar seu desejo? Porque seu pai não podia entender que a filha dele tivesse dado assim pra coisa ruim, e foi a muito custo que o impediram de lhe surrar naquela mesma noite, mas ninguém pôde impedi-lo de descarregar sobre você aquelas palavras pesadas que até hoje carregas contigo, minha querida prima, mas onde? E olhando esta cidade, nesta noite calma e quieta, eu pergunto: aonde que você se meteu, meu anjo? Por que não suportou mais viver sob o peso da vergonha? Por que sabia que já não pertencia mais a nenhuma família, porque era suja, porque era uma assassina, uma puta? E foi embora sem nenhum aviso, e fico pensando sem compreender a razão de nunca ter-me procurado, se sempre fomos como irmãs, desde pequenas, correndo pelas ruas, pelas areias, brincando e sonhando e construindo nossas casas que hoje parecem desfeitas para sempre – e és tu, mulher, que olhas para a cidade noturna com este olhar noturno e este coração de sombra e treva, pensando que talvez também um dia precises partir, mas como, se nem idade para isto tens mais, minha velha? E, com todos os teus filhos que já estão por aí se esbarrando com o mundo, sem garantia de coisa alguma, e sentes teu coração pesar quando pensas que nada lhes pode garantir esta velha mãe, que nem mesmo pode estar perto deles, pois que suas horas enterra no trabalho monótono e cinzento que lhe pesa aos ombros como uma maldição, oh velha inútil, tu também foste jovem e sonhaste com um futuro radioso, porque sabias que não serias jamais igual a todas as mulheres infelizes que conhecias – e aqui estás, parada no ponto do ônibus, igual ou pior que elas, que pelo menos já devem estar mortas. E pensavas nisto quando o ônibus apontou na esquina e parou a custo no ponto, porque quase te jogastes na frente dele, e parou com má vontade, o desgraçado, acelerando, acelerando e quase a derrubando no chão, e tiveste que se agarrar com força na porta e quase destes um jeito nas costas, e isto te fez muito 91 mal, te fez sentir mais miserável e triste, e não te sentistes ainda mais triste porque aquele homem a amparou e a segurou, e lhe disse palavras gentis, e nem sequer agradeceste, e muito mal viste que era um jovem rapaz nos seus 25 anos de idade: alto, moreno, até um pouco simpático com seu nariz fino e olhos castanhos. Carrega nas mãos uma pasta de couro, uma pasta que segura com cuidado, talvez porque seja uma boa parte do pouco que tem aquele rapaz, mas veja que ele parece feliz olhando a paisagem lá fora que passa veloz pela janela, e logo vaga um lugar no banco e o rapaz senta e fica olhando os postes e as nuvens que passam com uma estranha claridade no céu. E que céu é aquele? É o céu da sua infância? O céu que pensou ter perdido para sempre? Sim, pode lembrar aqueles anos em que a lua onipresente o seguia por toda parte, e ele, ainda criança, pensava no mistério daquela luz e tudo era como um grande encantamento: a lua, o mar, as nuvens e uma canção praieira que penetrava todos os seus sonhos, embalando-o suavemente, como num barco que oscila lentamente em alto-mar. O rapaz se sente por um momento passageiro do barco até que seus olhos recuperam o interior sujo e triste do ônibus que sacoleja na pista cheia de buracos e vê que passara mais uma vez do ponto e mais uma vez lamenta a sua distração. Toca o sinal, corre para a porta e desce com um leve constrangimento. Anda pela rua deserta pensando que aquela rua é de fato tudo o que ele tem, mas isto, pensa ele balançando a cabeça levemente com um sorriso, isto é também um exagero, porque, veja, a casa que vê agora diante de si é também sua, e dentro dela há uma mesa velha de madeira, alguns bancos e cadeiras também velhos e a estante com seus livros. Ele gosta de ficar parado diante dos seus livros, como um monarca diante de seu reinado. E os seus livros são tudo o que ele tem de verdade? E neles não pode encontrar tudo o que um homem precisa? Veja aqui, pensa ele, e fechando os olhos pega um volume qualquer ao acaso, abre-o também ao acaso, lê as primeiras palavras que se apresentam diante dos seus olhos: Calmo é o fundo do meu mar; quem adivinharia que esconde monstros brincalhões! E segue os olhos pelas prateleiras, como sombra de um condor deslizando sobre as montanhas nevadas de Torres del Paine. Pensa no primeiro livro que comprou, há muitos anos: um volume de contos de Tchekov. Lembra-se que estranhou aquelas histórias quando as leu pela primeira vez. Elas terminavam de repente deixando-lhe vagos pensamentos e sensações que em vez de se dissiparem, instalavamse no espírito como algo que sempre fora seu. O jovem rapaz está imóvel, diante da estante muda e silenciosa. Acha triste pensar que os seus melhores amigos são aqueles livros. Por isso resolve sair àquela hora da noite pelos bares, encontrando velhos conhecidos, mas sem nunca se fixar em alguma mesa, pois ele anda ali como um fantasma. Ouça esta canção: o cavaquinho e o violão e essa imensa tristeza e me diga, amor, que esperança pode haver para um homem que não sabe sequer cantá-la? E é este jovem rapaz, silencioso e triste, que desaparece agora por entre as mesas e as cadeiras e as ruas e ladeiras do bairro. Ele se perde dos olhos de uma jovem mulher que, sentada a uma mesa, o vê 92 distanciar-se com um sentimento de aguda impotência. Ela acreditou ter visto nele algo que não estava presente ali, entre seus ruidosos companheiros. Lamentou não o ter seguido, porque pressentiu que ele a tomaria pela mão e a levaria para ver o mar noturno, e sentariam no passeio, e falariam de coisas realmente sérias e importantes, como as estrelas e o mar, e as estrelas-do-mar, e os cavalos-marinhos que habitam as profundezas escuras do oceano – e coisas assim. E agradeceria por tê-la tirado da sua ausência, porque olhar o mar era ver o que havia de mais verdadeiro e misterioso nela mesma. Por isso baixaria os olhos e, sorrindo, derramaria suas lágrimas – estas mesmas que nublam seus olhos enquanto olha a rua sobre as garrafas de cerveja. Poderia dizer pra si: deixe de ser besta, você não está mais com idade para essas coisas – e acreditaria um dia nas suas palavras e tornar-se-ia cada dia mais uma dessas mulheres descrentes, que, por serem descrentes, tornam-se vulgares; e encobriria sua tristeza e perdas com risos vazios, e tudo isso se poderia adivinhar olhando seus olhos anuviados. Mas, nessa noite, deixaria, porém, seus pensamentos vagarem sem rumo até o rapaz que viu no bar, e pensou que poderia ter saído com ele. Pensou que sairiam andando, de mãos dadas, que ele a levaria até as dunas do Abaeté para ver a lagoa à noite, e ela iria sim sabendo que venceria sua timidez, que tocariam suas mãos, que ele passaria suas mãos sobre os seus cabelos lisos, que beijaria levemente seus lábios, que encostariam seus corpos com o prazer vivo e palpitante, que tiraria a sua blusa e levantaria o vestido e deitar-se-ia sobre as suas próprias roupas estendidas na areia, que beijaria seus seios e diria palavras carinhosas, feliz consigo mesmo, e ela se deixaria penetrar olhando o céu, sentindo aquela estranha e inesquecível sensação de liberdade. Ficariam mais alguns minutos até que, passado o clímax, refletiriam que o lugar já não era tão seguro, que deveriam sair dali rápido e correriam pelas ruas, rindo, sujos de areia, mato e amor – mas o rapaz a chamava, e ela sequer lhe tinha dito o seu nome! Olhou para o jovem na cadeira ao lado e viu um outro rapaz bem vestido e pensou que poderiam ir a um motel, que seria mais seguro, mais confortável, e ele segurava sua mão agora com força. Faltava-lhe delicadeza, pensou, e bom humor. Como admirava essa qualidade nos homens, sentiu, e pensou que o homem de seus sonhos poderia comprá-la apenas com essa moeda: um doce e melancólico bom humor. Ele não precisaria ter coragem e ambição maiores que esta: a de conquistá-la com alegria, com esse misto de alegria e tristeza que tornam uma pessoa humana. “Meu rapaz, pensou, poderemos fazer muitas coisas, como correr sob a chuva numa noite de tempestade anunciando o fim do mundo, percorrer as ilhas da Baía de Todos os Santos com uma velha mochila nas costas, atravessando os mangues com lama aos joelhos, beber em todos os bares e dar uma esticada na zona onde me mostraria por que eu jamais deveria ir lá, dançar quadrilha numa noite de São João e amanhecer o dia amando-nos numa rede, enfrentar a polícia nas ruas, numa passeata em defesa dos direitos-humanos, correr na areia da praia, nadar, surfar, jogar pingue-pongue, assistir filmes catástrofes e policiais noir e filmes de arte em cinematecas, rir de 93 todos os que nos achariam irresponsáveis, pensar no futuro: num filho, numa casa no campo, num violão que você tocará cantando uma guarânia na fronteira com o Paraguai, percorrer as estradas deste país sobre caminhões, cortar o sertão num trem velho e sacolejante: café-compão-bolacha-não, café-com-pão-bolacha-não, veja esse luar que como ele não há refletindo sua luz leitosa sobre as barrancas, as caatingas e as falésias daquela praia no Ceará. Lembra-se? Esta lembrança do que nunca viveu é como uma casinha na beira do mar: as ondas quebram longe, muito longe nesta noite, e as lamparinas nos trazem um cheiro doce de óleo de baleia e o mundo é um grande mistério. Você me estende a sua mão de poeta e chama-me para andar ao léu nesta avenida e conta-me histórias da sua infância, quando pensava se um dia teria a felicidade de amar uma jovem assim como eu, e achei graça quando disse que lhe dava especial prazer pensar que um dia teria uma mulher nua ao seu lado e que poderia tocá-la com suas mãos, e que, num fim-de-tarde, sentiu, debaixo da chuva (de uma chuva forte), no alto da goiabeira, um sentimento que nunca havia experimentado antes, até que me encontrou. Mas você nunca me encontrou, pensou ela voltando-se para o rapaz ao lado que se inclinou e a beijou nos lábios, e ela deixou – e deixou que a levasse para casa, que lhe tirasse a roupa e a penetrasse ali mesmo no automóvel, onde sentiu um prazer sujo e entrou em casa, depois, e dormiu. E sonhou. E pensou: “O meu sono me faz lembrar Alice no País das Maravilhas, porque, nos meus sonhos, eu também sou como aquela menina curiosa, que se deixa arrastar pela incapacidade de suportar não saber o que há além de cada esquina, de cada árvore na floresta, de cada nuvem – e como Alice eu também não suportaria deixar de seguir um coelho de casaca e cartola com um relógio na algibeira e uns pequenos óculos de metal; e é esta disponibilidade de seguir que me faz ser, que me faz, que me... oh! E aqui me encontro neste quarto espaçoso chorando, porque sei que hoje dei o meu passo definitivo para longe de você e de mim. Posso fingir que estou bem quando meu pai abre a porta do quarto e diz: ‘Minha filha, que bom que você chegou. Já estava preocupado’ – e me dá um beijo no rosto, pensando que sou a mesma filha de ontem. Poderia falar-lhe das suas inquietações e ele diria: “Mas que bobagem, querida”. Ele passaria as mãos nos seus cabelos e no seu rosto e sairia fechando a porta com cuidado. Sairia para a sala e abriria a janela do apartamento e pensaria: “Eu a criei com tantos cuidados, meu anjo, e agora você me deixa assim inquieto”. Ele sabe que seria capaz de morrer por ela, que seria capaz de morrer para que não sofresse nunca, mas isto de nada adiantaria, porque ela não é mais sua. Ou melhor: só agora tem a consciência de que ela nunca fora realmente sua. O homem anda pelas ruas desertas do seu apartamento, porque já não pode mais andar pelas ruas desertas e ele sente ao mesmo tempo uma saudade indefinida de um tempo em que podia andar pelas ruas desertas sem medo de morrer. O homem se sente vazio. O homem abre a janela, no 15o. andar de um prédio, na Graça ou na Barra Avenida, para o espaço amplo das avenidas que lá embaixo se enchem de pontos luminosos que vêm e que vão, e esse 94 emaranhado de viadutos e pontes e tantos ângulos, ocultos, obscuros escondendo sabe-se lá que tipo de sonhos, medos, taras e intenções... A cidade pesa no seu espírito. É hora, caro leitor, de ajudar este homem a segurar o seu fardo – e deixe-me dizer-te que sinto que és capaz de fazer isto, porque pareces mesmo ter amadurecido, e esta noite mesma está madura – vês – como uma grande goiaba amarela. E nós a comeremos silenciosamente nesta varanda com vista para o mar. 95 DIANTE DO FAROL I Sentado numa pedra, diante do mar e do farol de Itapuã, remôo velhas cismas, quase eu mesmo uma pedra, uma dessas rochas milenares sobre a qual, desde tempos imemoriais, o mar lambe e lava em seu vaivém incessante, acrescentando-lhe memórias ancestrais. Memórias ancestrais... De repente afloram-me à mente acontecimentos e imagens que pensava ter esquecido: a face de minha mãe quando me tomou nos braços pela primeira vez, a atmosfera mágica da casa em que vivi, nos anos 60, meu primeiro sonho, o corredor que parecia não ter fim, o silêncio no quarto quando brincava no final da tarde, o cheiro dos sargaços, o cheiro das mangabas, o cheiro dos cajus e do mato molhado pelo sereno, uma lavadeira que cantava, o estranho e misterioso som das palavras, a espantosa descoberta da dor, a surpresa de estar alegre, a mesa do café, a família sentada à mesa, o despertador tocando na madrugada quando meu irmão mais velho saía para o serviço militar, em 1970, quando Lamarca aterrorizava os quartéis, o meu desejo de também servir o exército e que, depois (felizmente), perdi, a vizinha que me amava, os carros passando nas ruas e nos viadutos, o cheiro do óleo numa oficina mecânica em Nova Brasília, minha bicicleta, meu primeiro livro, meu primeiro carro, meu filho. Caminho com ele de mãos dadas, pelo meu passado e de repente vejo que a criança sou eu mesmo. Salvador, a cidade, a cidade ensolarada, que tanto aprendi a amar, dera-me o privilégio de andar de mãos dadas com a criança que fui. Mas, do que adianta lembrar de o que não é mais? Prefiro sair sozinho, caminhando, com as mãos nos bolsos, pelas ruas molhadas e voltar para casa e dormir. E sonhar com um homem que todos os dias percorre o mesmo caminho para nunca chegar a lugar algum. Mas eu posso chegar a algum lugar!, diz o homem. Veja esta casa, é a casa do meu avô, a mesma que conheci quando meu pai me levou pela primeira vez ao interior da Bahia, em Conceição do Jacuípe, com seu DKW branco, que logo mais se tornaria um monte de ferros retorcidos, com marcas de sangue e gritos, gritos que nunca ouvi, porque eu não estava lá, naquele dia fatídico do ano de 1973, no momento exato em que uma camioneta em alta velocidade saiu da estrada e acertou em cheio o carro, no qual estavam meu pai, minha irmã, de 11 anos, e meu irmão, de 3, numa curva de Amélia Rodrigues. Ele só teve tempo de dizer: “Nossa Senhora!” e se foi, e acho que seu último pensamento foi este: Nossa Senhora... e se lhe dessem tempo, pensaria também: “Isto não pode acontecer. Os meus filhos... Os meus filhos...” e o silêncio seguido de passos e de vozes das pessoas que se aglomeravam em volta do carro. Alguém fez massagens no coração, mas era tarde demais, e levaram as crianças para o hospital de Feira de Santana. E eu estou sentado na varanda da casa antiga do meu avô 96 Tranquilino – um sertanejo duro e espigado nos seus metro e oitenta, na sua careca e bigode alvos, na sua bondosa rispidez, na mão aleijada (por uma bomba de São João), que segurava o charuto sempre aceso, no jeito de olhar pela janela, vistoriando o tempo, no câncer que lhe destruiu a boca e a laringe, naquela ausência... - Meu avô – digo eu na cozinha da casa rústica, olhando o reflexo bruxuleante do candeeiro nas paredes da casa. – Então eu sou obrigado a lhe dar essa notícia, que o seu filho, que o meu pai, que ele... Mas o avô, que já havia morrido muitos anos antes, não espera que eu fale. Ele entra no recesso escuro da casa, lá onde fica a escuridão mais escura, e em toda a casa larga e extensa, em toda a casa com suas profundidades, em toda casa com suas memórias, em toda a casa com o seu obscuro passado, só há esse candeeiro que ilumina essa parede próxima a mim, e nada mais se mexe na casa além de uma lagartixa branca, quase transparente que salta sobre uma das inúmeras formigas de asa que pululam incessantemente na parede – e tudo o mais é tão quieto e silencioso... Veja: o carro ainda está lá, monte de ferros retorcidos, as frutas (jacas, mangas, laranjas, limas, limões) esparramadas no asfalto, e o carro – meu avô, meu avô, digo para o quarto escuro, mas ninguém responde –, e eu me lembro da alegria que tivemos quando meu pai chegou com o carro, pela primeira vez, morávamos ainda naquele apartamento apertado e infinito do Taboão, num tempo em que Salvador tinha aquele colorido suave de tons pastel, que saveiros e baleias passavam no horizonte calmo, que papa-figos aterrorizavam criancinhas, que a cidade mergulhava a nós, seus filhos, em sua doce quietude. Caminho para a varanda e vejo a lua branca cheia iluminando as roças de milho e os pés de lima e aquela jaqueira que ficava bem defronte à casa do meu avô. É tudo tão passado, penso. E, então, eu dormi, numa noite remota, na casa em Itapuã, dentro do carro, na caminha improvisada por minha mãe com cobertores grossos e travesseiros e lençóis, na garagem, e a minha mãe dizendo: “Deixe o vidro aberto para entrar ar”. E dormi, como Jonas na baleia, ali no ventre daquela estranha máquina que passaria, com o tempo, a fazer parte da família, juntamente com os passarinhos do meu pai, o gato, o cachorro, o cágado e a coleção de revistas em quadrinhos do meu irmão... Eu não sabia ainda que eles não eram eternos. II - Êi! Acorde! Não é bom construir prisões no passado – diz a moça, sentando-se ao lado do homem, que desperta de sua profunda introspecção. A casa do avô e o carro se dissolvem. Ela tem o rosto iluminado. O corpo esguio. Os pêlos dourados, nos braços e uma levíssima penugem dourada acima dos lábios. 97 O porão, é muito escuro o porão! – diz ele, para ela, como se pedisse socorro. E ela se inclina sobre ele e beija-lhe a boca. Helena. O seu corpo esguio, esses pelinhos dourados na sua barriga, esses peitos tão verdes ainda. Mas a casa do avô e o carro retornam à sua mente. Fujo do porão. Corro, corro, corro. Paro ofegante. Não, eu não quero ver. Eu não quero ver. O carro, escombros, a parede iluminada, as sombras dos móveis antigos, essa menina, o cheiro, o mar e você, meu amigo, sentado na beira da praia, em Berlinque, lendo Mandala, uma coletânea de artigos sobre alucinógenos, as barracas de lona, o mar azul, passos. - Isto é uma viagem – disse. - Isto é uma viagem. Eu ando pelas américas como um índio Iaqui. Comendo ervas, sonhando. E tu? Eu prefiro andar pelas ruas desta cidade – diz ele, iniciando o que chama de “jornada expedicionária pelas ruas de um tempo que não é mais o passado”. Mas eu quero falar sobre você, diz ele/eu. E antes que ela possa reagir (ela parece querer também dizer alguma coisa), ele fecha seus lábios com um delicado toque da ponta do seu dedo indicador. E fala: É uma história curta. É a sua história. Ouça: seus pais eram nossos inquilinos, lembra-se? Faz muito tempo, nós morávamos em Itapuã, próximo a Nova Brasília. Seus pais eram um casal avançado para os nossos padrões naquela época. Não sei, talvez porque deixassem claro para todos que se amavam, e que se desejavam (os casais eram tão assexuados, naquele tempo). Sua mãe, lembro-me bem, era uma mulher forte, de quadris largos, meio despachada, como se diz, falava o que ia à cabeça. Parecia gostar de viver. Seu pai era um homem alto, musculoso, tinha cabelos grandes e um longo cavanhaque. Como o grande carneiro do Ártico, do filme A Grande Planície, de Walt Disney, que assisti, lá se vão tantos anos, no cine Tamoio. Tinha uma masculinidade agressiva, explícita demais, talvez. - E eu? Você era a filha única do casal: magra, espigada, metida a saber das coisas e muito, muito levada. Vestia shorts curtinhos, blusas curtinhas, mostrava a barriguinha toda e podíamos ver, se olhássemos de perto, os pelinhos dourados nas coxas. Subia no grande pé de cajá que havia no quintal, com desenvoltura. Um dia chegou até a galha mais alta, aquela que até nós, meninos, não ousávamos ir. Corria descalça no meio das galinhas, comia goiaba brincando de amarelinha e, vejam só, jogava até futebol com os moleques. Tinha os lábios grossos que saboreavam tudo o que lhe chegava às mãos, os cabelos castanhos derramado nos ombros, pernas compridas, finas e seios empinados. Tinha mania de ficar me provocando. Pedia todas as frutas que eu comia para morder e as devolvia, úmidas, me olhando nos olhos. Pedia para entrar comigo no sótão da casa, meu refúgio secreto e ficava lá, encolhida, como se tivesse com frio. Vez em quando trazia a sobremesa (o doce de tamarindo que sabia que eu gostava e que me dava lambido), e não aceitava recusa. Você era assim, cheia repentes, como uma velha canção 98 sertaneja, e, às vezes, com um tom suave e triste, como noturno de Chopin. Você ocupava todos os espaços dos meus pensamentos, naquele tempo: o quintal, o brejo, as árvores, as dunas em frente à casa, o quarto silencioso, a frestas das telhas por onde entrava o sol. Eu sequer podia entender que a amava. Talvez eu a tenha decepcionado. Eu não sabia que anos depois você iria padecer por meses a fio, sobre uma cama, diante dos olhos aflitos da sua mãe. - Sim... O tempo passa rápido, eu sei, mas deixe-me voltar um pouco ao passado e ao seu futuro. Você cresceu, tomou formas, suas coxas engrossaram, seus lábios ficaram ainda mais cheios e havia muito tempo que se entregara a um homem quando o carro em que viajava com o namorado se espatifou a cento quilômetros por hora num poste. Seu namorado, segundo eu soube depois, não teve quase nenhum ferimento. Você fraturou alguns ossos no tórax, nas pernas e na bacia. Visitei-a, semanas depois do acidente, e te vi, magra e pálida, engessada do pescoço até as coxas, gritando e chorando, sobre uma cama. Sua mãe, que se separara anos antes do marido, parecia ter, agora, o dobro da idade. Senti-me completamente inútil e percebi que a minha presença te incomodava. Não era agradável para você ser vista por seu antigo amor de adolescência naquelas condições. Entendi e fui embora. Nunca mais voltei e nunca mais tive notícias suas, mas não foi por mal, está me entendendo? - Sim, eu entendo, mas o que você dizia mesmo? – pergunta ela, despertando de sua profunda introspecção, sentada, agora, sobre a pedra, diante do mar e do farol de Itapuã. Sei, que irias iniciar “uma jornada expedicionária por uma rua que não é mais o passado”. Lembro-me. Mas deixe-me lembrá-lo, também, que só as ruas do passado são seguras, pois não guardam o inesperado. Mas, o que seria da vida sem o risco e o imprevisível, não é mesmo? - Não é bom construir prisões no passado – diz o homem, melancolicamente, levantando-se, ao lado da mulher, que desperta de sua profunda introspecção. Ela levanta-se, também, da pedra e pensa, finalmente, que já é tempo de parar de sonhar. Precisa parar com aquela mania de querer ser algo que o tempo engoliu, irremediavelmente. Ela é, agora, uma mulher madura, com responsabilidades, e a sua bela cidade é, de fato, sua verdadeira face, fragmentária e multifacetada, tudo o que lhe resta do passado, esse mar, esse mar imenso... o farol branco de listas vermelhas, ou vermelho de listas brancas, resplandece ao sol do fim da tarde; o Morro da Vigia impõe-se, sereno, e, do alto dele, ela pode ver, agora, a longa avenida margeada de coqueiros, os telhados coloridos das casas, as areias e o mar que já não cabe em si. Preciso encontrar minha identidade, pensa ela/ele/eu diante dos destroços de uma cidade que renasce, como fênix, de suas próprias cinzas. 99 RUAS DESERTAS Assim vou, amigo, agora, andando por essas ruas claras da Cidade Baixa e que se parecem tanto com aquelas ruas em que andei um dia sem saber que andar por elas seria um dia um sonho longínquo, um renascimento. Então eu renascia naqueles passos? A tarde escoava-se lentamente nas varandas das casas antigas com mistérios que eu um dia conheci e que continuam ali. Veja: o passado é este presente de vozes de crianças que brincam por detrás da parede branca e só ouço as vozes, e penso que daquelas existências permanecerão apenas vozes sem corpo, como uma canção. Essa rua me surpreende, porque me desperta sensações que pareciam mortas e enterradas. Ruas vivas com crianças, velhos conversando nos portões, donas de casa mergulhadas em sua rotina, ecos de missas dominicais, contas, crucifixos, oratórios, amizades e intrigas, vendedores ambulantes e cães vadios e pessoas temerosas, a ameaça da carrocinha que era sempre uma promessa e uma dúvida: ficaríamos do lado dos cães vadios contra esses monstros que querem transformá-los em sabão? E eu olhava desconfiado, quando tomava banho, para o sabonete, pensando se não seria ele algum daqueles cães do nosso bairro. Como teria sido seu nome: rex? sultão? caçador? E nem tinha coragem de esfregar-me mais para que o que restou dele não escoasse pelo bueiro e não restasse dele nada mais que uma vaga lembrança espumosa. E nos reuniríamos, campeões, nossa turma invencível, para impedir a matança que nunca aconteceu ou que somente o tempo se encarregou de fazer? Ele levou todos os cachorros vadios da rua, e a rua, e o meu olhar – este mesmo olhar que tenta recuperar o irrecuperável. Ando devagar como quem saboreia um prato raro. Talvez o último. Aquela rua é o que restou de uma cidade que se voltou contra si própria com seus edifícios afiados como navalhas, com suas esquinas angulosas, com suas ruas sem moradores, entregues a passantes distraídos, ruas sem memória. Carros não cruzam avenidas aqui, nem perturbam o ruído do tempo. Estou numa rua do Bonfim, em cujo final se vê o mar. O mar se estende diante das casinhas simples que dormem à beira do mangue. Podemos sentir o cheiro da lama e dos sargaços, podemos sentir o cheiro do tempo e das horas que não passam. Que dinheiro paga esse privilégio, meu irmão? Que dinheiro pode pagar um cheiro e um sentimento? Como sois ricos sem saberes! Vocês têm todas as manhãs essa rotina branda de abrir a janela para as águas da Baía de Todos os Santos e de respirarem esse ar de mar. Eu sigo bordejando as casas e seu passado. Para quê? O que faço ali, caminhando feito um desocupado numa tarde de terça-feira? O que faço aqui? Paro diante do hospital e maternidade da Sagrada Família ou do que dizem que é: uma construção quadrada, um desses modernos edifícios padronizados que são iguais em todas as áreas da periferia. São simples, baratos e talvez até eficientes. Mas não é o que procuro. “Esta é a parte nova do hospital”, me informam. Passo direto e contorno o prédio até a antiga 100 construção. Lá está o grande portão diante da praça ladeada de árvores frondosas. Já é noite quando me aproximo do muro sobre o qual pousam estátuas de mármore de mulheres em estilo greco-romano, com sua graça e altivez clássicas. Na parte superior dos dois lados do portão de ferro estão duas estátuas empunhando uma tocha. O portão está trancado. Ando até ele, perturbando a tranqüilidade dos namorados que estão por ali espalhados. Encosto meu rosto e vejo o jardim mal cuidado e o caminho de pedra que segue até as escadarias. A frente do prédio é imponente, com 12 colunas (seis na parte de cima e mais seis na parte de baixo). O prédio me hipnotiza. Transporta-me. Nasci ali, há 40 anos e posso ver a criança chorando, ponto de luz que se acende e tantos passos que me trouxeram até ali, tanto tempo depois. Vejo meu pai que não sabe que o futuro já terminara, ou melhor, que o único futuro sou eu, que os vejo em tantos momentos. Ele ganha vida e faz novamente, em mim, tudo o que já fizera em vão. Lá vai ele acendendo as luzes. A casa se ilumina e com elas todos aqueles objetos secretos da memória: a TV grande com frisos amarelos, coberta por uma capa de pano feita pela minha mãe, na qual bordou a imagem do indiozinho que era símbolo da única emissora que existia naquele tempo, a TV Itapoan, a máquina de costura preta com desenhos dourados, com o suporte de madeira, o carretel de linha, a agulha e o pedal que minha mãe manipulava tão bem, sentada próximo à janela, iluminada pela luz que vinha lá de fora pela janela e que parecia eterna ali aos meus olhos, o aquário iluminado no quarto, com filtros dos quais saíam bolhinhas de oxigênio e os peixinhos – paulistinhas, finos com listras pretas e amarelas, os beijadores, espadas, caudas-devéu, tricogasteres –, e as plantas que olhadas de perto pareciam habitar um mundo submarino distante que, na realidade, só existia no espaço/tempo longínquo da minha fantasia. Ando mais um pouco pelo quarto e vejo o baú de madeira do meu irmão mais velho, onde ele colocava sua coleção de revistas em quadrinhos, e se abro a sua pesada tampa posso ainda ver exemplares antigos de Tarzan e dos Sobrinhos do Capitão, que eu lia sentado num canto mal iluminado do quarto, enquanto minha mãe passava pelo corredor para a cozinha, de onde vinha um ruído distante, um ruído que vem do fundo do tempo e que eu agora procuro discernir, inutilmente, e tudo aqui é tomado por esta sensação de inutilidade, quando não de desesperança ou de melancolia. “Corra, menino! Veja o que está acontecendo lá no fundo do corredor!”, grito eu com as mãos crispadas segurando a grade do portão. O menino corre, corre e lá no fundo do corredor vê rostos que se voltam em sua direção e sorriem. Vê a mesa posta, uma toalha branca bordada com fios dourados, pratos e xícaras brancas, de vidro grosso e resistente, um bule de café, pães e biscoitos. Do fogão vem um cheiro forte de ovos estrelados misturados com arroz na manteiga e bananas da terra fritas. E as mãos laboriosas, sempre ocupadas, pegando objetos, carregando-os para um lado e outro: da mesa para o fogão, do fogão para os armários, dos armários para a geladeira que era também branca e feita de um material grosso e resistente, uma geladeira compacta que prometia nunca acabar. E a minha mãe pergunta ao menino, meu filho, 101 deseja alguma coisa?, mas ela pergunta vagamente, quase mecanicamente, e o menino não responde, e ela nem se lembra se perguntou alguma coisa, e o menino volta pelo corredor, devagar, para dizer-me que não há nada lá, no fundo do corredor, e chega diante da janela e olha para a escuridão das ruas, porque já está escuro e o mundo vestiu aquele casaco grosso e fascinante da noite, do mistério, e as luzes se acenderam no mundo, e o mundo é como uma grande árvore de Natal. Menino, que vês assim nessa escuridão? Ele gosta de olhar pela janela, gosta de ver os fios que ligam os postes de iluminação, o emaranhado de fios sujos que passam ali bem perto da janela e que ele teme e respeita, porque lhe disseram que nunca deveria estirar as mãos e tocá-los para não virar fumaça, por isso ele se limitava a olhá-los e os fios tinham o poder de associar suas lembranças a um domingo de carnaval quando sua mãe o vestiu com um pierrô e carregou-o pelas ruas movimentadas, com toda aquela gente fantasiada, caretas, arlequins, colombinas e o cheiro de lança-perfume no ar. O menino sentia aquele cheiro que lhe dava uma vaga sensação de inebriamento e felicidade; era um cheiro que abria as portas para um mundo novo de sensações, um mundo mágico no qual a combinação do cheiro com o colorido das fantasias e com o movimento dos corpos e as músicas – marchas, ranchos e frevos – faziam brotar no seu espírito um novo mundo. O cheiro era uma porta pela qual atravessava do mundo natural para esse mundo superficial que era uma espécie de transgressão (ele não sabia disto ainda) e, talvez por isto, era-lhe ainda mais prazeroso. O perfume era como a luz elétrica nas ruas e nas casas: eles alteravam o ciclo da natureza, permitindo-lhes sensações e experiências novas – como a maçã pendente aos olhos de Adão. Seria isto que lhe fez associar os velhos fios entrelaçados nos postes ao cheiro das lanças perfumes e àqueles carnavais? Mas o menino não sabia disto, pensei segurando as grades. Lá estava ele, pequenino, sobre os ombros da mãe em meio ao movimento das ruas. Seus olhos, lá de cima, abarcavam uma extensão ampla de foliões dançando ao som dos frevos e das marchas do trio elétrico Jacaré e dos sambas do bloco Filhos do Porto. Pierrôs e caretas derramavam suas cores na Praça Castro Alves. Serpentinas cortavam o céu lilás. Confetes azuis, vermelhos, verdes, brancos e amarelos caíam como chuva dos altos edifícios, sobre as cabeças, em todas as direções. Risos e sons afloravam numa sinfonia improvável. Havaianas de riso fácil espalhavam cheiros inebriantes, brandindo lança-perfumes dourados, que passavam de mão em mão, borrifando desejos, alterando olhares, despertando sentimentos ocultos. Ciganas, em fantasias de cetim, refaziam a mágica ancestral só a elas permitida, de tornar mais visível o que escondem com tanto capricho. Deusas abriam as portas de sensações novas, estranhas, que confundiam o menino, despertando-lhe um desejo confuso de algo que não sabia discernir. Neste momento, o tempo se congela e só o espírito do menino movimenta-se sobre a multidão. Desprendendo-se da mãe, ele se movimenta entre as pessoas, deslizando por entre os abrigos de ônibus da Praça da Sé, aprofundando-se nas estreitas ruas do Pelourinho, pelos corredores dos sobrados, pelas sacadas dos velhos casarões, planando 102 livre sobre os terraços, aspirando o misterioso perfume da festa, despindo mulheres com um olhar faminto que a tudo devora, navegando rios de suor nos desvãos dos seios, escalando deliciosas colinas que arfam iluminadas pela luz crepuscular e alcançando, como heróico alpinista, os cumes dos bicos dos peitos, dos quais salta em vôo livre, rolando alegremente pelos ventres cobertos por penugens douradas, que se adensam em luxuriante floresta tropical. E ali o menino se detém, diante do mistério profundo e já não mais sabe para onde ir – e o mundo volta a se movimentar. O menino se vê novamente nos ombros da mãe e as pessoas se agitam à sua volta, o som das músicas arrefece e a noite chega com as luzes amistosas das igrejas e dos bares. E tudo fica mais quieto. São seis horas. O mistério cresce perante os olhos fascinados do menino, que não entende o nervosismo dos gestos da sua mãe e o olhar surpreso do seu irmão que aos poucos se acalma quando alcançam a avenida larga e menos movimentada, longe agora da agitada multidão. O som das bandas fica cada vez mais distante e sua mãe comenta coisas incompreensíveis com as suas tias. O menino sente um prazer mais familiar quando, agora, entram pela porta do apartamento, e todos riem, ou mesmo, gargalham, e o menino ri também fascinado com aquela manifestação de alegria, mas sem saber por que riem, e pergunta, mas ninguém lhe responde. Ele corre para a janela e se esquece do que se passa dentro do apartamento e fica, como ficara tantas outras vezes, mergulhado no silêncio da noite, na semiescuridão das ruas, no aspecto misterioso dos postes enfileirados como esqueletos caminhando para o desconhecido – e lá vão eles descendo a rua e a ladeira e sobre eles aqueles chapéus de luzes amareladas, porque as cidades de antigamente tinham essa aparência amarelada. E tudo fica mais quieto, cada vez mais quieto. Poucas pessoas – foliões desgarrados – descem as ladeiras do centro histórico, aos tropeços, e o menino não entende porque pessoas andam assim parecendo que vão cair a qualquer momento. Está mergulhado nesse pensamento quando sente uma coisa agarrar-se subitamente no seu braço esquerdo, como se um espinho lhe furasse a pele. Olha, num átimo de segundo, e vê o monstro agarrado no seu braço e um zumbido rascante fere-lhe os ouvidos. O menino sacode o braço, gritando com todas as forças, desesperado, até que lhe acodem e espantam o monstro e sua mãe toma-o nos braços e suas tias e o seu irmão riem, dizendo: “Era apenas uma cigarra. Ela não faz mal!”, mas logo vêem que ele chora mais e, agora, soluça. Dão-lhe água e alguém diz que parassem de rir, e ele continua soluçando baixinho, sem entender como podem rir dele, que quase fora devorado pelo monstro. Pela primeira vez, sente a noite como o lugar de onde se pode esperar qualquer coisa, um buraco negro do qual pode surgir o mais terrível ser, monstros com horríveis antenas e garras dispostos a despedaçar quem encontrem pela frente. Sua mãe deita-o na cama e quer levantarse, mas ele a segura firmemente pelo pescoço, ela tenta ainda desvencilhar-se do seu braço, mas ele ameaça o choro e ela cede e ficam os dois ali, na penumbra, deitados – e longe, bem longe, a música continua tocando. 103 O QUARTO DA INFÂNCIA A música tocava longe? Veja, ela agora parece com o ruído do mar, lembra-se? E era um mar noturno aquele, que vinha de longe, da escuridão profunda, como um grito que se arrebentava em brancas espumas na beira da praia. E você podia ouvi-la muito bem, deitado com sua mãe no quarto, que era o mesmo quarto, o quarto da infância, mas que ficava num lugar diferente agora: um bairro a beira-mar que ainda permanece vivo na tua lembrança, meu amigo, enquanto seguras com força as grades do portão deste imenso hospital que se estende daqui para o passado. Veja: você está com a sua mãe, deitado na cama, olhando o telhado de telhas vãs e as paredes feitas com óleo de baleia, e sua mãe canta uma canção qualquer de ninar, enquanto você pensa: onde está meu pai? Onde está o meu irmão? E teme por eles, porque já aprendeu que a vida é como um grande menino que brinca com a gente como se fossem bolinhas de gude, que às vezes rolam pelo bueiro, despencando pelos canos escuros do subterrâneo e se perdendo para sempre do nosso olhar – e não foi assim que aconteceu com aquele menino que simplesmente deixou de aparecer e disseram-lhe apenas que ele morreu, mas esta palavra não explicava nada, porque ninguém sabia dizer para onde ele foi, de forma que ele permanecia presente, todo o tempo, talvez mais do que nunca, como se estivesse atrás do muro, ou do poste, ou no quartinho do fundo e fosse aparecer a qualquer momento, e isto era terrível, porque ele nunca aparecia, e você corria e olhava como se pudesse flagrá-lo na sua traquinagem, mas você nunca se decidia se ele estava lá, ou se ele sempre estava lá – e para onde iam todos os mortos? Para onde iam todos os mortos do mundo? Haveria muros e quartos suficientes para todos eles se esconderem? E você pensava nisto, ali, deitado na cama, abraçado com sua mãe, mas você era tão pequeno ainda, e alguém poderia dizer: Não, ele não poderia ter um pensamento assim tão profundo, porque ele era tão pequenininho. Mas enquanto seu pai e seu irmão não apareciam, o mundo era um monstro disfarçado que ria do seu medo, e entre você e ele havia apenas a sua mãe que contava histórias de um tempo muito antigo, e às vezes você duvidava até dela, e pensava (com terror) que ela voltaria o rosto para você e você veria que o rosto dela era o de um monstro, ou mesmo do próprio diabo, e você fechava os olhos para não ter de enfrentar a realidade de uma transformação assim tão irremediavelmente triste, porque não haveria mais salvação – e tudo se transformava – o quarto, o silêncio do quarto, a voz dela, as ondas longe, o vento nos coqueiros – numa goela medonha que se abria para devorá-lo, e você desejaria correr pelos corredores escuros, abrindo portas e fugindo e correndo pela noite adentro até não pensar, porque era apenas isto o que você queria, meu menino, e você atravessaria todas as noites da sua vida e sentiria todos os medos, e veria todos os monstros, e 104 sentiria na pele o ataque maciço dos monstros, como naquela noite em que você acordou gritando, desesperado, porque formigas e aranhas subiam pelas suas pernas, pela sua barriga, pelos seus braços, e você gritava desesperado, e seus pais acendiam a luz e lhe sacudiam e lhe acariciavam e lhe diziam: veja, meu filho, não tem nenhuma aranha aqui, e você ainda as via por frações de segundo e as via desaparecer, como milagre, e soluçava muito, meu pequeno menino, e todos os seus medos se resolviam assim com esse “clic” mágico do interruptor e com a luz que lhe revelava os rostos familiares dos seus pais, que eram Deus com o seu tremendo poder de aniquilar de um só golpe com todos os males do mundo – e não era exatamente isto que acontecia agora, com o seu pai chegando com o seu irmão e acendendo a luz da sala, que clareava o quarto suavemente, e você abria os olhos e via que era mesmo a sua mãe que estava ali, ao seu lado (não seria o próprio diabo que sabia se disfarçar tão bem?, você ainda era capaz de pensar isto, mas logo não haveria mais dúvidas e você se envergonharia de ter pensado isto), e sentiria vontade de dizer: - Mãe, você me desculpa? E ela perguntaria: - Por quê, meu filho? E você não teria coragem de dizer: - Porque eu pensei que você era o diabo. E diria apenas: - Por que tive medo de você. E apagaria logo todas essas bobagens da sua cabeça, porque alguém ligaria a TV, que tinha o poder de dissolver todos os fantasmas do seu espírito, talvez por isto gostasse tanto dela, e sentia mesmo um grande prazer ao vê-la estremecer como um monstrinho zangado atiçado pela variação de energia, muito freqüente naquela época. Por isso seu pai, que dava jeito em todas as coisas, instalara um grande estabilizador de voltagem, o que não impedia que em alguns horários, principalmente às seis da tarde, houvesse uma queda geral da energia e a imagem ficasse quase desaparecendo. E diante do televisor, meu menino, quem sabe não poderias estender sua visão para o futuro, para um pequeno apartamento onde você estaria sozinho, aos quarenta anos de idade, diante da tela de um computador (e o que era um computador? Você nunca ouvira falar dele!), mas você o/se veria batendo rapidamente os seus dedos nas teclas que fariam tlec tlec tlec, e você, sozinho ali, diante do televisor, diria para ele, quase que num sussurro: “Ei! O que fazes aí?”. E ele responderia: “Escrevo a tua história, meu pequeno eu”. E você perguntaria por que terras seus pés já correram, que estranhas paisagens seus olhos percorreram, por quem seu sentimento palpitara. E ele falaria das estradas desertas do Maranhão onde você quase morreu, de um velho sobrado na Barroquinha, onde velhos ocultistas desejaram reinventar o mundo, das margens largas do Velho Chico, onde mangas 105 maduras se precipitam sobre as águas e nas manhãs suaves os barqueiros gritam – entre Propriá e Colégio – que os índios xocós estão em pé de guerra, e você correrá para lá em busca de uma notícia e de uma esperança vã, e seus olhos serão varados pelas nuvens derramadas no vasto céu do ontem, dos campos verdes do sertão das Alagoas, onde o macaco avoa e as sanfonas gemem contando versos que afloram nos campos, entre os bois mansos, numa sinfonia de mugidos e silêncio, repentistas, jagunços, mulheres que caminham pelas estradas poeirentas com seus potes de barro na cabeça, jipes atravessando lamaçais, rios imensos, rios perigosos com suas grandes serpentes devoradoras, caboclos sobre palafitas, meninos e macacos guaribas gritando sobre as copas das árvores, cobras rápidas, rasteiras, estádios de futebol e bandeiras e gritos e hinos e a multidão valorosa e triste deste país que tu amas mais que tudo. Sua glória será andar por esse mundo sem fim, escreverá o homem na tela do seu computador, mas o menino não mais o vê. Lá está o velho xerife ocupando o teu lugar agora nas duas pequenas retinas, meu velho, e tu não tivestes a chance de dizer-lhe tudo o que desejaria, no fundo do teu peito, dizerlhe? Mas continuas escrevendo pela noite adentro como um velho mestre da arte de navegar, e teu computador é como uma galera fantasma que corta o céu noturno com suas velas brancas enfunadas pelo vento sul: vai vai vai que o céu negro já nada pode contra ti: vai que já nem mais precisas desta bússola, pois para ti, na noite dos teus anos, qualquer lugar é lugar; vai vai vai que nenhuma menina te espera na margem do rio (quem sabe não foi ela também devorada pela serpente de 15 metros chamada Tempo?). É noite, meu amigo, e encontras tempo para te reconciliares com o teu futuro? Estendas teu tapete para a aurora que logo virá no alvorecer de mais um século, que é apenas um segundo de Cronos, este deus imponente que se senta agora ao teu lado, e diz: Morrerás em breve e tuas páginas também amarelecerão, e tuas letras ficarão embaralhadas, como os infinitos dados que lanço sobre as eras. Por isso, levanta-te e caminha, pois não há mais tempo a perder! Vai vai vai com tua caravela, que és o descobridor de um novo continente: o teu. Lança o teu chicote sobre as costas dos escravos das galés, bate com força, homem, para não te veres tragado pelo redemoinho do tempo, pelo redemoinho das palavras, pelo redemoinho do silêncio, pelo redemoinho voraz desses olhos que tragam o mundo como um imenso sorvedouro, o Nada. Vai vai vai, esporeia este cavalo e fá-lo voar! Incendeia suas crinas e lança-te pelas pradarias do velho Cochise que ainda fuma o seu charuto nos desvãos do abismo: não vês a fumaça se erguendo no horizonte? Vai, homem, ecoa teu grito de guerra, levanta tua machadinha e lança-a sobre os canhões e os jatos PT-15 da Força Aérea do Amargedom, corra, corra pelas ruas desertas desta cidade, sob as lâmpadas de néon, sob a chuva e vê se te resta algum fôlego para cantar. Ressuscite teus mortos: os poetas malditos desta cidade ainda circulam pelas ruas: Gregório, Anísio, Short, suas vozes ainda ecoam sobre os velhos casarões, longe, bem longe, dos shopping centers, das praças limpas e dos parques perfumados. Sois fantasmas de um tempo sepultado, mas sobre o qual ainda não lançaram a 106 última pá de cal. E não o farão, pois não deixarei que apaguem os teus rostos do porvir. Prometo, amigos. Nem que para isto tenha eu também que vestir esta capa negra, este chapéu de abas largas, estas sandálias rotas e esta roupa surrada que me afastam do grande festim dos bem-sucedidos, dos que sentam à mesa do rei e se locupletam, e fingem não ver que ele está nu. Poetas malditos da Bahia, ainda sobrevivem nas catacumbas, como os cristãos de outrora, e teus passos ecoam na avenida Contorno, na Ladeira da Praça, no Santo Antônio Além do Carmo, além de todos os olhos que já não podem vê-los. E eu – por que eu? – lhes dou a mão que se estende e fica parada no tempo, inutilmente, talvez. O menino desligou a TV. É tarde. Logo mais os galos cantarão sobre as cercas dos quintais. Itapuã dorme ainda na madrugada de 1963. E este pequeno apartamento do Edifício Trevian, na rua Agnelo de Brito, na Federação, nesta madrugada do ano do dia 16 de junho de 1999, já cede ao cansaço da hora. Um carro passa na rua em frente: seus faróis iluminam por alguns segundos o homem de olhar furtivo que mergulha no labirinto dos becos. A chuva cai sobre os telhados. O relógio trabalha compassadamente: tac tac tac. Chove melancolia sobre o mundo. Feche a janela. Faz frio. Faz muito frio, meu amor. 107 CONDENADOS AO FUTURO Por que essas reminiscências do que não vivi? Ou será mesmo verdadeiro este casarão de pátios extensos, com fontes cobertas de flores e trepadeiras? Há algo aqui de um palácio muçulmano ou de castelos medievais? Há cobras amazônicas, grandes serpentes traiçoeiras convivendo comigo nesses jardins? Há mulheres nuas, doces escravas ocultas na sombra das alcovas? Há uma casa na beira do mar, aberta para uma paisagem de coqueiros varridos pelo vento sul? Há tantas e tão diversas coisas aqui neste silêncio? Escravas brancas me banham na fonte, uma negra velha ensaboa o menino com uma mangueira azul. Também o sol não é mais o mesmo: lateja no céu entre as nuvens. Ilumina a tarde com um tom pastel de um passado que não se pode mais recuperar. Caminho até a beira do rochedo, que não mais existe; estendo minha sombra sobre as calçadas. O herói das mil e uma noites está morto, imóvel no seu túmulo. Onde fica este palácio encantado, meu amor? Onde fica esta sensação que pressinto, como uma sombra de quem partiu? Não posso, não consigo contar o que perdi. Minhas mãos estão vazias, o meu cérebro, oco; a noite, deserta. O lirismo está morto! grita uma mulher na cidade, entre carros e néons. Já não há mais o passado. Estamos condenados ao futuro. E o futuro vem logo aí. Ele se anuncia nesse desajuste geral dos sentimentos e das idéias; nesse embaralhamento de conceitos, nesse desconcerto de sons, como numa grande feira livre do Oriente, da Índia, do Afeganistão. O futuro é essa multidão que se espraia pelas ruas de uma cidade de sete faces que logo se refaz em dez, em mil, em um milhão de rostos sem olhos, sem boca, sem nada. O futuro é esta linha, vês? Diante de ti, diante de mim, e basta um passo para transpô-la, para o salto que nos lançará a este abismo de um novo milênio que nos promete tantas interrogações. O meu filho crescerá neste mundo!, grito, à noite, correndo pelas ruas da cidade deserta, desta cidade que jamais será aquela que meus pés percorreram, que minhas mãos tocaram, que meu coração sentiu, que os meus ombros que carregam tantas lembranças como Atlas carregou também o seu fardo; e grito, correndo por essas ladeiras que um dia brilharam sob a chuva de maio, refletindo esses sonhos que nada mais espelham, oh, esqueci a capacidade de refletir o mundo? O novo milênio bate à porta e daqui a pouco terei que cruzar seu umbral, cruzarei sua fronteira como um mexicano em busca da Terra Prometida, como um velho deus inca que sabe que o seu tempo, que a sua era de ouro passou, que apenas o sentimento da perda guiará seus passos; corro, corro por essas ruas pensando que não mais terei 18 anos, que é apenas um fato isto: não terei mais 18 anos. Não mais poderei acreditar que a cidade me oferecerá tudo o que preciso: o mistério, a poesia, mulheres nuas e bêbadas, carros passando, fuscas, corcéis, opalas, prédios antigos, boêmios errantes, bares que nunca fecham, 108 intelectuais, cineastas, professores, a possibilidade de mudar o mundo, o fascínio do socialismo, o fascínio da utopia, revistas passadas de mão em mão, filmes proibidos assistidos em cineclubes, a descoberta do mundo: leia aqui esta reportagem sobre a Guerra do Araguaia, veja a história destes jovens que morreram por um sonho de igualdade, mas você não pode mais acreditar nisto, não é? Tornaste cínico, tornaste descrente, por isso estás condenado a correr por essas ruas que não têm mais fim, pois não existe mais o final feliz da história, não existe o final da história, não existe a história, nem sequer você existe; o teu reinado é um palácio ilusório, como o do fisher king, que se desfez quando Parsifal fez a pergunta errada. O rei continua ferido. O reino continua em desgraça. A peste come a gente e os animais. Tudo por que não soubeste fazer a pergunta certa? Por que tu jamais conseguirás decifrar o mundo, se não fizeres a pergunta certa; jamais conseguirás ordená-lo, dar-lhe um sentido, um começo, um meio e um fim; é preciso parar de correr, mas o tempo está aí batendo à nossa porta, o novo milênio é um abismo que nos chama; e eu sou apenas esse homem-menino que finge não ouvi-lo. “É noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes. E também a minha alma é uma fonte borbulhante. / É noite: somente agora despertam os que amam. E também a minha alma é o canto de alguém que ama.” Ah, “como desejaria sugar os seios da luz!” Como desejaria agora sorver todas as imagens do passado, e as do futuro, como um imenso buraco negro que tudo levaria ao nada. Já não preciso correr. Caminho agora pelas ruas de Salvador, como todos os homens que caminharam pelas ruas de Salvador: o conquistador português visionário que primeiro vislumbrou a cidade invisível; o comerciante que vendeu sua primeira linda escrava negra, sua linda negra de coxas quentes e sorriso doce, negra de Guiné, negra do Benin que ressurge agora, tantos anos depois, com este andar malemolente, com esse gingado fagueiro nesta bela canção praieira, neste romance de sete portas e sete mistérios, neste quadro que tenho diante dos meus olhos, no escritório silencioso, na noite silenciosa, entre tantos livros, e se lanço mão de um, ao acaso, posso ler que “de todos os mamíferos vivos, é o gambá, Didelphis marsupialis, provavelmente, o parente mais próximo das primeiras formas que, segundo acreditamos, se arriscaram a sair à noite para desafiar a supremacia dos répteis impetrantes”, e eu sou agora esse gambá que se arrisca a sair à noite, nesta asphalt jungle, nesta terra de ninguém. 109 CHARNECAS DE YORKSHIRE O cansaço me fecha os olhos. O país de outubro fica logo ali. Um baú velho, uma coleção de revistas em quadrinhos, uma tarde longa que nunca parecia terminar: X 9, Raio Negro, Jim das Selvas, Couro de Cobra, Shazam, Tex Willer, o corredor, a noite chegando nos fios, tirando a luz dos azulejos, dos terraços, das antenas de TV entre emaranhados de fios, palco de imensa solidão. Ainda estou lá, naquelas tardes, mesmo depois de ter andado todos esses caminhos, de ter fruído todos esses desencontros, de estar aqui só, numa sala vazia. Lá fora, a cidade fervilha de ausências. Multidões de nada habitam pontinhos de luz. Olho à minha volta e vejo também uma multidão de sombras que se esgueiram pela casa grande do tempo que passou. Fantasmas sorriem. Gestos se refazem/desfazem. Que posso fazer para você poder perceber esse meu estar? Todos os livros que li já não podem me salvar. Naufrago como um rochedo no pântano, nas charnecas escuras de Yorkshire. O tempo, este espaço que me cerca, este nada que me dá a ilusão da distância. É hora de morrer nas charnecas de Yorkshire. É hora de morrer. Mas há tantas formas de morrer, meu amigo. Há tantas formas de morrer. Esquecer é uma delas, e nisto eu morro todos os dias um pouco mais. O esquecimento é um velho baú, antigo como o mundo, que se enche de cenas, de imagens, de palavras, de sonhos, de sorrisos, de latidos, de crepúsculos, de cantigas, de noites e lares. É este baú que carrego, arrastando-o pelo tempo afora, sem jamais tornar a ver o que nele despejo. Nada mais posso dizer dele, além de que ele sou eu; de que ele é mais eu do que eu mesmo sou. Eu sou um milionésimo do eu que ele é. E, enquanto ele se agiganta, eu me diminuo, até ser apenas uma partícula de poeira esquecida no tempo. Até que eu desapareça completamente, como aquele incrível homem que encolheu. Então, eu serei ele, serei o todo esquecido que se encontra consigo mesmo na zona da memória: e me recordarei. Juntarei, então, pacientemente, todos os cacos de uma vida; todos os cacos de muitas vidas, e diante de mim, como a um deus, renascerão milhões de pores-de-sol, milhões de nuvens esgarçadas no horizonte, espelhos partidos tornarão a unir-se numa sucessão de imagens dentro de imagens. Você me sorrirá em algumas delas, você me matará em outras e em tantas outras caminharemos juntos, navegaremos juntos, escalaremos montanhas, enfrentaremos tigres e leões da montanha, dispararemos canhões, lutaremos com os dentes em savanas, abriremos portões, acenderemos fogueiras, derrubaremos reinados, lideraremos multidões e morreremos juntos, lado a lado, em batalhas vãs. Caminho por todas as terras, por todas as estradas para te encontrar agora no início deste caminho. Sim, eu tenho que morrer para me encontrar no esquecimento: eu tenho que me esquecer de mim para me encontrar na plenitude da recordação. Mas não é justo morrer assim nessas horas mortas que se arrastam, 110 nesta sala onde um relógio caminha lentamente pela eternidade, nestes espaços trilhados por formigas, nos caibros tomados pelo cupim, nesses sonhos que nunca parecem terminar. O mundo gira inaudível, mas eu preciso escutar o mundo!, mas o silêncio é grande e posso ouvi-lo em toda a sua grandeza, em toda a sua espantosa intensidade; posso ouvir todos os ruídos que vivem no silêncio e é como se tivesse de repente todo o mundo em meus braços: e todos os tempos do mundo estão nos meus braços. Você me diz que “o grande mundo está crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor”, que “então, o meu coração também pode crescer”. 111 LUNARIS 112 SUMÁRIO PARTE I À beira do abismo Paradoxo insolúvel Ninguém merece esse sacrifício Uma pessoa tão normal Gênios rebeldes suicidas O bebê com a água suja O dever de resistir Estamos nos transformando em fantasmas! No mundo da lua Já é tempo de ter medo Um lugar que não existe Condenado à subjetividade A Confraria Não sou da geração dos cínicos Em frente à casa Zona interdita Você não sabe sobre nós A mulher de Lunaris E no entanto... Desde quando dizer o que pensa é crime? Propósitos ocultos O urso melancólico A mulher, enfim De volta ao exílio Uma história de amor Calabouços e desvãos PARTE II Escritores, essa raça de maledicentes Rápido encontro na rua molhada O Farol Encontro infrutífero É preciso saber o que se quer 113 PARTE I À BEIRA DO ABISMO Sempre que não estava absorvido pelos afazeres do dia-a-dia, Alberto caía em depressão. É verdade que não se pode dizer ao certo se é exatamente esta a palavra adequada para expressar o que ele sentia: era um vago sentimento de apreensão que lhe tomava o espírito sempre que, por um motivo ou outro, não se encontrava fazendo as atividades costumeiras: trabalhando na universidade, indo ao cinema com sua mulher, resolvendo negócios, pagando prestações, fazendo compras no supermercado... Talvez tudo aquilo tivesse a ver com um sentimento de culpa, herdado não sabia como, de não estar fazendo alguma coisa útil, alguma coisa que se encaixasse na rotina do dia como algo normal – alguma coisa que pudesse considerar como saudável, longe dos tempos mortos, dos silêncios perturbadores, da estranheza das coisas. Algo, pensava ele, por fim, que lhe distraísse daquela estranha realidade dos objetos inanimados, do espaço que os separava, do silêncio que estava, como diria, presente, o tempo todo, por trás dos ruídos familiares, das ações e das palavras que compõem o que se costuma chamar de cotidiano. Era como se existisse uma outra história, paralela, misteriosa, que não se concretizava com fatos, com acontecimentos. Uma forma de ser e existir que ele apenas pressentia quando, ao sair por algum motivo do traçado habitual dos seus passos, deixava-se lentamente absorver. Era o que estava sentindo agora quando, no meio da tarde, após ter chegado mais cedo do trabalho, deixou-se ficar sentado, no sofá, na sala do apartamento, numa outrora silenciosa travessa do Caminho das Árvores. Podia ouvir a empregada preparando o jantar, um ou outro carro passando na rua, um passarinho trinando no alto de uma mangueira, o porteiro conversando com alguém no prédio em frente. E, envolvendo tudo, aquela apreensão, aquele estranho sentimento de gravidade, de profunda gravidade da vida. Já sentira aquela mesma sensação, algumas poucas vezes, após acordar de um cochilo, depois do almoço. Ao abrir os olhos, sentia uma profunda estranheza do existir, uma sensação quase insuportável de ser, de estar, por algum motivo profundamente misterioso, habitando uma bola solta no espaço, cercada de vazios, de ter uma consciência, de ser um pensamento que sequer tem a percepção de quem é, verdadeiramente. Sentia, então, abater-se sobre si uma forte percepção da sua responsabilidade como alguém que tem – embora nunca assim o desejasse – a vida. 114 Era também uma percepção moral, e qualquer relativismo desaparecia, naqueles breves segundos, diante da compreensão da gravidade de qualquer erro. Nesse momento, seu pensamento voltava-se sobre si e sondava, invariavelmente, seus sentimentos mais íntimos, suas relações com as pessoas: sua mulher, seus filhos, seus irmãos, com os amigos, com a empregada, com o porteiro, com os colegas de trabalho, com os cachorros que criava. E sentia um alívio quando convencia a si próprio que os tratava a todos bem, conforme suas possibilidades. Mas estariam realmente todos bem? E quais eram as suas possibilidades? Mesmo que se achasse em dia com sua consciência, não podia evitar a sensação desconfortável de que tudo ia mal com o mundo, lá fora. Usava esta expressão como uma forma de defesa ou de isolamento. Algumas vezes, tomado por este estado de profunda melancolia, saía às ruas, geralmente no final da tarde, e via, com uma lucidez que lhe era quase insuportável, uma tristeza oculta por trás dos risos e gestos, derramada no rosto das pessoas que circulavam nos ônibus, nos automóveis, nas calçadas; nos que ficavam parados nas esquinas, nas portas dos edifícios, nas janelas das casas, nas avenidas, parques e ruas de Salvador. E tudo era tão diferente dos tempos em que, ainda estudante, circulava pela cidade que sempre amara e que, então, lhe parecia, ao contrário, um mundo repleto de promessas, de sonhos, de possibilidades que nunca se esgotavam. Ele mudara ou foi a cidade que se deixou conspurcar, ao ponto de ficar esvaziada de todas as suas potencialidades, dos seus sonhos, da sua utopia? Por que diabo aquela sensação de estar à beira do abismo, à beira de uma catástrofe irremediável? Mas tudo estava tão normal! E, no entanto, parecia que a catástrofe já estava acontecendo – como um incêndio no porão enquanto as pessoas, sem saberem, dançam e negociam e fazem planos nos andares superiores de um velho edifício. “O horror! O horror!”. Lembrava-se sempre da exclamação de Kurtz, no romance de Conrad, e vez em quando flagrava-se balbuciando aquelas palavras. Era horrível o que a vida – seria melhor dizer: o Sistema – fazia com as pessoas, destruindo todos os seus sonhos, pulverizando toda a beleza e a juventude, e todas as potencialidades e possibilidades negadas. Que desperdício! Alberto sentia vontade de ir mais fundo naquela sensação, de mergulhar na dor coletiva que se ocultava por trás dos gestos habituais, das palavras cordiais, dos sorrisos, dos tiques que compunham todas as relações, mas não tinha coragem suficiente. O hábito, aquele sólido repertório de convenções, parecia-lhe uma camisa-de-força que todos vestiam, inconscientemente, para não ver a realidade. Era como se todos estivessem hipnotizados, para não poder ver que há um dragão no jardim, um esqueleto no armário, o medonho cão Cérbero que habita o Hades particular de cada um – suas mentes, seus lares: aqueles pontinhos de luz que via, à noite, quase sempre com um misto de fascínio e terror, quando sobrevoava a cidade 115 num avião. Meu Deus! Quantas abominações não acontecem na intimidade dos lares, no recesso das famílias. Era quase insuportável pensar. E, o que mais o incomodava era aquela convicção, presente lá no fundo da sua consciência, de que não valia a pena fazer nada para mudar. A consciência do horror era, para ele, um segredo guardado a sete chaves. Sabia que não devia dizê-lo, sob pena de ser subtraído (nem que fosse pela arma covarde do escárnio) por aqueles que desejasse libertar. Não era covardia, mas sim – o que talvez fosse muito mais grave – apenas a sensação de que não valia a pena fazer nada. Para que sacrificar-se por pessoas que desejam, mais do que qualquer outra coisa, continuar sendo prisioneiras? Não havia mais espaço no mundo para heroísmos. E se houvesse, certamente não seria ele o herói. O herói estava morto. Morrera em algum lugar do trajeto da sua própria vida, mas não podia dizer exatamente onde. Alberto, que já alimentara e acreditara em tantas utopias, vivia agora para preservar a sua integridade moral como uma construção particular – como uma casa que constrói em cima de uma árvore, no quintal, a qual vistoria diariamente para ver se permanece limpa e sólida, como um refúgio à estupidez do mundo. Um lugar pequeno, entretanto, para caber muitas pessoas; um lugar seleto, no qual podia colocar sua família e um ou dois amigos, mas cujas portas jamais poderia escancarar para o mundo. Ela era sua reserva moral – e lhe bastava. Tinha sua reserva moral como uma planta, no jardim, que todos os dias regava e sobre a qual se apoiava para se relacionar com o mundo. Tinha, às vezes, vontade de colocar os pés num terreno neutro, numa espécie de quarta dimensão, na qual poderia fazer tudo o que quisesse sem que fosse atingido por qualquer conceito, ou preconceito. Uma das suas diversões preferidas era deixar-se entregar à fantasia de que habitava aquele lugar. Era um estimulante exercício de imaginação, inofensivo, é verdade, mas que se constituía, sem que ninguém o soubesse, uma espécie de vingança contra o mundo, contra tudo aquilo que a civilização, com seus valores, representava na sua vida. Era seu único espaço de liberdade, no qual ninguém, nem mesmo as pessoas mais íntimas das suas relações, poderia penetrar. Esse lugar – que chamava de Lunaris, numa referência elíptica ao romance Solaris, de Stanislav Lem –, era uma forma especial de pensar. E de sentir. Só muitos anos, mais tarde. descobriria que era, de fato, um lugar. Um estranho mundo mutável que, com o tempo, adquirira o status de realidade – estranha, é verdade, mas nem por isso menos real. Nele, Alberto dava-se ao prazer às vezes pervertido (se tal palavra fizesse sentido naquele lugar), de refazer pessoas, de reconstruir acontecimentos, de eliminar todos aqueles que o aborreciam, de vingar-se de todos os que, de um modo ou de outro, o estorvavam. Nunca, é verdade, de modo violento ou cruel. Preferia sempre alguma solução que o fizesse rir. Mas sempre procurando 116 lembrar-se que suas emoções não poderiam nunca, jamais, serem manifestadas, por exemplo, numa expressão facial. A fronteira entre aquele mundo e este tinha que ser, sempre, preservada. Por isso, talvez, Alberto fosse um homem sério, ou um pouco distraído. Sua mulher, Judite, queixava-se sempre daquela sua qualidade, se é que se possa chamar assim. Ela nunca se cansava de se espantar com a facilidade com que Alberto se desligava das coisas. Como conseguia dormir – e até sonhar – num instante, às vezes até de pé, encostado numa parede. Ele chegara mesmo a confessar-lhe, sem que ela lhe desse crédito (mas era verdade!), que já dormira correndo. – Foi num exercício de Educação Física, há muitos anos, no colégio. Era muito cedo, eu estava com muito sono e... Apesar de tudo isto, acima exposto, talvez de forma bastante superficial, Alberto era uma pessoa normal. E não era, de forma alguma, um pessimista, ou um sonhador, no sentido comum que se costuma atribuir ao termo. Havia nele uma bem dosada mistura de Quixote e Sancho, de forma que, apesar de se sentir um pouco deslocado entre os seus semelhantes, tocava sua vida sem maiores problemas. Ia bem em seu trabalho: ensinava Literatura Brasileira no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. Gostava de ver-se cercado pelos alunos. De certa forma, a sala de aula era uma espécie de extensão daquele mundo paralelo, quando dava sorte de encontrar, entre os estudantes, quem acompanhasse suas peregrinações. Para ele, o ensino de Literatura não tinha nada em comum com qualquer outra disciplina. Não era uma ciência, era uma comunhão; as aulas eram – ou deviam ser – um ritual, no qual se partilhava uma experiência estética que se prolongava além da sala, que acompanhava cada um dos membros dessa confraria, em todos os momentos da vida. Lembrava-se freqüentemente de um artigo publicado numa revista sobre uma academia de judô em Paris, em cuja porta havia uma inscrição: o Judô começa lá fora, depois daquela porta. O aprendizado de Literatura tinha que ser, portanto, um re-direcionamento da sensibilidade, um engajamento. Mas no quê? Para quê? Uma das características da personalidade de Alberto, talvez aquela que ele mais se esmerava em ocultar, era a compreensão cristalina de que ele não tinha absolutamente certeza de nada. Por isso admirava, com um estranho e sincero ardor, todas aquelas pessoas que tinham convicções, embora ficasse verdadeiramente alarmado quando se sentia convicto do que quer que fosse. Sabia que nenhuma mudança radical e efetiva no mundo seria possível sem que houvesse essa estranha qualidade, que lhe parecia ser, ao mesmo tempo, a mais extrema forma de lucidez e de alienação. Espantava-se que alguém pudesse ter certeza do que quer que fosse no mundo, e se perguntava, às vezes, se seria capaz de largar tudo para seguir um líder carismático, alguém que avivasse uma chama que sabia existir em algum ponto do seu coração. Mas acreditava que essa pessoa não existia. E nessas horas podia até ver o seu coração como 117 um abismo inexpugnável em cujas profundezas algo extremamente valioso se apagava, dia após dia. Ele precisava descer até lá, mas lhe faltava determinação. Faltava uma crença de que valeria a pena sair dos seus cuidados para arriscar-se. Por isso, nessas horas, preferia refugiar-se em Lunaris. Alberto gostava de caminhar pelas ruas da sua cidade, com as mãos no bolso de um casaco (gostava de ver-se assim, embora não tivesse nenhum casaco), sob rajadas de vento de um inverno inexistente. Gostava de ver o emaranhado de becos e ladeiras que não levava nunca a lugar nenhum. Gostava do emaranhado de fios que pendiam dos postes antigos. Gostava das manchas de limo e lodo que cobriam as paredes dos casarões abandonados. Agradava-lhe a idéia de que, a qualquer momento, um daqueles casarões antigos desabaria sobre sua cabeça. Gostava da idéia de saber que sobreviveria ao desabamento. E de que teria, quando chegasse em casa, à noite, algo para contar. Gostava da idéia de ser um sobrevivente. Ele era um sobrevivente. Mas do quê? - Quarenta e cinco anos de idade é uma vida – dizia, sempre que botava os pés em Lunaris, para o seu melhor amigo. Por isso, a idéia da morte não lhe assombrava. Espantava-se com a quantidade inesgotável de lembranças e sensações que lhe habitava, embora quase todas adormecidas. Mas sabia que elas estavam lá – ou melhor: aqui, dizia, tocando a cabeça com o dedo indicador. Não tinha certeza sobre o lugar em que estavam, verdadeiramente. Mas sempre que uma palavra descuidada, uma música ocasional ou um cheiro acidental lhe abriam as portas do que, por falta de outra palavra, chamava de Recordação, ele se redescobria como um outro homem. Ou melhor: como um território mágico sobre o qual se derramam inesgotáveis delícias. - Às vezes penso que já estou morto para mim mesmo, para, pelo menos, 95% de todo o meu passado. Veja quantos livros já li – diz ele, mostrando sua biblioteca para seu amigo. – Mas nada, ou quase nada me lembro deles. De forma que é como se os não tivesse lido. De que vale então lê-los? O amigo diz que não é bem assim, que ele está exagerando. - Esses livros fazem parte de você, meu velho. Esses livros são você. Alberto achava graça na forma como ele falava – e vasculhou sua memória para lembrar qual, dentre as centenas de personagens das obras que atulhavam sua estante, falava daquele jeito. - Gatsby! - Eu não disse? – acrescentou seu amigo, com um sorriso. – Nem tudo que não lembramos está morto dentro de nós, meu velho. Era por essas e outras que Alberto gostava de Lunaris. Lá sempre alguém tinha algo interessante para lhe lembrar. Ou para fazê-lo esquecer. Porque o esquecimento é o lado oculto da lembrança, entende, meu velho? 118 Alberto anda pela cidade, com a cabeça baixa, mergulhado dos seus pensamentos, com as mãos no bolso, mas todos os ruídos (dos automóveis, das pessoas, das máquinas, do vento, dos pássaros, dos cães) lhe são estranhos. Ele é, naqueles momentos, algo que não existe, que nem tem um nome. Mas logo ele lembra que precisa voltar para casa – e se acha, mais uma vez, para perder-se depois, indefinidamente. 119 PARADOXO INSOLÚVEL Houve um tempo em que Lunaris confundia-se com o espaço da sua própria casa. Alberto morava, então, sozinho, numa residência de três quartos, três salas e uma extensa garagem na qual cabiam, folgados, três carros, O que não lhe valia grande coisa, considerando que tinha, como único meio de transporte, uma velha bicicleta. Mas gostava de jogar bola ali com seu filho, quando ele era pequeno e Alberto ainda não tomara a importante decisão de viver com Judite. Era um tempo bom aquele, que ele sempre lembra com um sentimento de perda. A casa dispunha também de uma pequena varanda, da qual se podia ver, por cima de um muro branco e baixo, a rua tranqüila, e, ao fundo, um quintal arenoso onde havia algumas árvores frutíferas: três coqueiros, uma mangueira e um pé de fruta-pão. O terreno era inclinado, de forma que enxergava, com facilidade, casas que se estendiam, sobrepostas umas às outras, entre uma vegetação relativamente preservada, até o mar. Ou melhor: uma nesga de mar que, embora pequena, alimentava Alberto com um sentimento de paz que era ampliado pelo silêncio da sua rua – uma pequena artéria do bairro de Itapuã. - Mas havia um tempo em que eu podia ver o mar inteiro, em toda a sua extensão, daqui desta janela – ou, melhor ainda, do alto de uma goiabeira que havia bem aqui – dizia Alberto a quem o visitava. Mas o que mais agradava Alberto era mesmo o silêncio. É difícil exprimir aqui o imenso prazer que sentia quando, à noite, deitava-se na rede, diante do janelão que dava para o quintal, com um bom livro nas mãos, e nada mais ouvia que o vento soprando sobre as folhas das árvores – e, além dele, nada mais que o ruído das ondas quebrando, distante. É claro que era uma alegria recolhida, introspectiva e com uma dose um pouco dolorida de melancolia. A melancolia foi, durante longos oito anos, que Alberto viveu sozinho naquela casa, a sua mais constante companhia. Sentia-se só, embora muitas vezes levasse amigos, com os quais falava sobre cinema e literatura, e mulheres, que olhavam sempre com um misto de fascínio e desdém aquela maneira de viver. - Mas o que havia de errado na minha maneira de viver? Bem, primeiro, essa falta de ambição. Você, meu velho, não tinha sequer uma cama! Achava bonito dormir sobre um colchão fino no chão, e como se fosse muita coisa resolveu até, durante um bom tempo, dormir num tatame duro que não sabe quem deixou lá como recompensa pela sua hospedagem. Quantos anos você ficou sem ter um móvel dentro de casa, meu velho? 120 Depois, o completo desdém quanto à sua segurança pessoal. Deixava as portas abertas, o que, aliás, não fazia mesmo muita diferença haja vista que ela, na verdade, não contava muito. Bastava alguém se apoiar nela para que cedesse. Como uma mulher, com um mínimo de juízo, concordaria em viver num lugar como aquele, heim, meu velho? E depois havia ainda a situação sempre instável como você vivia, dependendo de um emprego no Estado (naquela época você ainda não era professor), uma porcaria de um salário que não dava para nada. Lembra-se daquela vez que você procurou em casa algo que pudesse vender e, por não encontrar, saiu por aí procurando quem quisesse comprar os seus livros? Logo aquilo que você mais amava! Mas não encontrou ninguém, e acho que não foi por acaso que ninguém os quis, não é, meu velho? Alberto sorri. O seu amigo era sempre muito perspicaz. Olhou em volta, no seu escritório, e viu que estavam todos ali. Em meio às centenas de volumes, podia dizer exatamente a ordem que os adquirira. Os primeiros volumes da minha coleção foram exatamente estes – pegou um volume Contos de Tchekov, e um das Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe. Confessou, pela primeira vez, ao seu amigo que os adquirira numa noite fria de dezembro de 1977, numa livraria que ficava na avenida Carlos Gomes. Lembra de ter visto os dois volumes no mostrador, que não sabia qual dois comprar, pois tinha dinheiro apenas para um. - Eu não podia trazer somente um, entende? - Claro, meu velho. Eu também já fiz das minhas na juventude. Alberto ficou um tempo olhando para seu amigo. Pensou em dizer-lhe que ele nunca fora jovem, que ele era fruto da sua imaginação, mas não teve coragem. Pensou, pela primeira vez, que não devia se afeiçoar muito aos moradores de Lunaris. Bem, o fato é que levou os dois exemplares para o povoado de Amoreiras, na Ilha de Itaparica – e que foi totalmente absorvido, não sem alguma estranheza, nos dias que se seguiram, por mundos e personagens tão distintos: de um lado, funcionários públicos, estudantes, oficiais, escritores, homens e mulheres frustrados, pedidos num ambiente medíocre, nas paisagens geladas e inóspitas da Rússia, retratados com minúcias em histórias que, muitas vezes, pareciam não ter um fim. De outro, aqueles mundos de exceção, de homens perturbados, atacados por obsessões e pensamentos doentios, numa atmosfera de pesadelo. Aquelas duas leituras maçariam para sempre a sensibilidade de Alberto. E lá estava ele, com os dois pequenos volumes nas mãos, olhando-os como se fossem dois filhos. Eram para ele raridades. - E pensar que estive para vendê-los. Judite não entendia aquele interesse pelos livros. Ou melhor, como Alberto só veio perceber muitos anos depois, ela fingia não entender. Era uma forma de magoá-lo que era 121 também uma forma de amá-lo. No fundo, uma tentativa, sempre frustrada, mas nem por isso menos comovente, de tê-lo com ela. Judite nada sabia de Lunaris, mas pressentia a necessidade de mantê-lo, o mais tempo possível, do lado de cá da porta que separava os dois mundos. Daí aquela insistência toda de convencê-lo que deveria realizar atividades práticas, tomar as rédeas do Lar. E o Lar, ao contrário de Lunaris, exigia ações concretas e atenção constante. Alberto não se negava a fazer as coisas, mas nada do que fizesse era suficiente. - Você sabe que tem dois filhos para criar, não sabe? - Suponho que sim. Mas o que você quer dizer com isto? Alberto tentou, durante os primeiros anos, explicar para Judite que não podia perder a metade do seu tempo lavando pratos, comprando pão, limpando o cocô do cachorro. Mas ela era inflexível. - Engraçado, mas estive pensando que... talvez seja esta a razão principal de eu amá-la – disse para o seu amigo. - O quê? Limpar o cocô do cachorro? - Não exatamente. Apenas acho que é uma forma dela querer que eu fique um pouco mais de tempo lá, com ela. Acho que ela tem medo de você. - Mas ela nem sabe que eu existo! Achou graça na maneira como ele falou, mas não quis dizer mais nada. Toda vez que a conversa chegava àquele ponto, ele sentia um pouco de tristeza. E silenciava. Era quando se via andando, mais uma vez, pelas ruas da cidade, com as mãos nos bolsos do seu casaco inexistente. E, não sabia porque, era quase sempre uma rua da Salvador dos anos 70. - Não sei porque este pensamento fixo nos anos 70, disse para Judite, enquanto empurrava o carrinho de supermercado. - Pegue aquela lata de leite. E não esqueça do iogurte. Mas do que você estava falando mesmo? - Nada. Estava apenas pensando alto. - Não sei porque este pensamento fixo nos anos 70, falou para o seu amigo, enquanto abria casualmente um volume de A máquina do tempo, de H. G. Wells. - Por que você não volta lá e vê com os seus próprios olhos? - Mas como voltar lá? Você pensa que eu tenho uma máquina do tempo? - Claro que você tem! O amigo lhe ensinou um truque para retornar ao tempo que ele quisesse. - Veja bem. Você tem que procurar alguma coisa que continue igual, da mesma maneira que era no tempo para o qual você deseja retornar. Você tem que achar essa “alguma coisa” e fixar os olhos inteiramente nela – e, enquanto deixa-se absorver por ela, pensar para onde você 122 deseja ir. Então, quando sentir que já está lá, é só tirar os olhos e, pronto, você já terá sido transportado. É muito simples, é só experimentar. Alberto sorriu, com uma ponta de ironia. Tudo para o seu amigo era muito simples. Não havia nada, no mundo, que ele não desse jeito. Aquele era um homem para o qual não havia a palavra impossível. Achou uma grande bobagem, mas, já que não tinha outra opção melhor, por que não experimentar? Que outra coisa não havia se modificado desde os anos 70? Este era o primeiro problema. A verdade é que fora justamente nesses últimos trinta anos que a cidade de Salvador passara por suas mais profundas mudanças – para pior, se vocês quiserem saber a minha opinião. É claro que havia muitos mais lugares onde você pode comprar coisas, mas o que havia de verdadeiramente humano e de original na cidade fora varrido pelo chamado crescimento urbano. As dunas do Abaeté, nas quais andava sem o mínimo receio do que quer que fosse, foram descaracterizadas, desfiguradas, mutiladas pela especulação imobiliária. Um dos mais belos paraísos naturais do estado (poderia dizer do mundo) transformara-se, em alguns lugares, em pontos de desova de cadáveres. Hordas de bandidos, ladrões, assaltantes vagavam por toda parte, e você, naturalmente, não podia andar por ali, despreocupadamente, sob risco de virar um presunto. As praias foram poluídas, à exceção de alguns pontos onde era considerada em condições adequadas de balneabilidade ou coisa que o valha. A vegetação, por sua vez, sofrera transformações radicais, a ponto de desaparecerem, quase completamente, espécies frutíferas como os cajueiros, mangabeiras, dendezeiros, amendoeiras e pitangueiras que eram tão abundantes naquele tempo. Um sem-número de residências e condomínios foram implantados, de forma desordenada, sobre extensas áreas de dunas, restingas e manguezais, e, no miolo do bairro e ao longo da sua principal avenida – Octávio Mangabeira, depois rebatizada como Dorival Caymmi no trecho que vai da estátua da Sereia até o Aeroporto 2 de Julho – substituídas por uma profusão de casas comerciais, que alteraram completamente o perfil de bairro residencial. Até o ruído do bairro se alterara completamente: em vez do ruído do vento nas árvores, do mar quebrando na praia e das cantigas de lavadeiras e dos pregões dos vendedores, lá estava o barulho incessante das máquinas, dos carros, da algaravia de uma gente angustiada. Percorreu inutilmente o bairro de ponta a ponta, procurando alguma imagem que permanecesse intocada. Sentou-se na balaustrada, na orla, diante do mar, junto à amendoeira que fica ao lado da estátua da Sereia, e deixou-se absorver por seus pensamentos, por tudo aquilo que não mais existia senão dentro dele próprio. Do homem mais esquecido da Terra. Oh, ele não tinha o direito de esquecer! Pensou isto e, quando levantou os olhos, viu o mar. Viu as ondas mescladas de verde e cinza, agitadas. Estava um dia nublado, chuvoso e algumas nuvens pairavam, grossas, no horizonte um pouco ao leste. Alberto fixou os olhos nelas e, sem que o 123 quisesse ou mesmo o desejasse, deixou que seu pensamento fosse transportado para um dia distante, há cerca de 35 anos, quando parou com sua bicicleta naquele exato ponto. O que ele pensava então? Levava exemplares de revistas em quadrinhos no bagageiro, para trocar com alguns meninos. Saía de porta em porta, perguntando: quer trocar revistas? Tinha alguns exemplares velhos de Tarzan e de Os sobrinhos do Capitão, e outros, mais novos e melhor conservados, de O homem aranha, Mickey, Pateta, Couro de cobra, Shazam e Tex Willer. Naquele exato momento em que parara ali, para olhar o mar, pensava que precisava andar rápido ou a chuva poderia molhar as revistas. Não havia nenhum abrigo por perto, nem aquele homem, com roupas um pouco estranhas, sentado na balaustrada. O homem pareceu assustar-se quando, como se saísse de um sortilégio, viu uma canoa cortar o mar encapelado e, ao voltar-se para trás, o menino que o olhava um pouco assustado. Num reflexo inexplicável (e imperdoável) tornou a olhar para o mar, e quando voltou os olhos para trás o menino desaparecera, e com ele toda aquela atmosfera de passado. - Você não quis acreditar que era ele. Não quis acreditar que conseguira. Este é um problema dos céticos, daqueles que não querem acreditar. Fingiu que concordava com ele, mas o problema lhe parecera ser bem outro. O problema é que ele não podia ser duas pessoas ao mesmo tempo. Ser uma significava não ser o outra. Era um paradoxo insolúvel – pensou. Lá estava, portanto, Alberto metido numa rua qualquer com as mãos no bolso do casaco. Percebia que só lhe restava a memória e que, na verdade, ela nada mais era do que pura imaginação. Lembrava, claro, que tinha vivido isto e aquilo, que tinha visto isto e aquilo, mas tudo o que visualizava não era a realidade em si, e sim a imagem que construíra dela. Era prisioneiro de uma fraude. Era, ele próprio, uma fraude. 124 NINGUÉM MERECE ESSE SACRIFÍCIO Alberto sentiu necessidade de escrever um livro: um romance que nada mais era que um subterfúgio. Através dele realizaria o percurso que o levaria da fraude para a verdade. Seria, entretanto, uma verdade assim, com “v” minúsculo, pois que desconfiava de todas as palavras absolutas. Sua verdade seria relativa, como as próprias bases nas quais apoiava seu pensar. Verdades absolutas tendiam quase sempre a querer anular as outras – e já tínhamos inúmeros exemplos de como essas coisas terminavam, não é mesmo? - Esta é também uma forma perigosa de ver as coisas – disse Márcio, um dos seus amigos mais próximos. Ele estava sentado, na poltrona de sua casa, na Pituba, com um copo de suco de uva, que rodava lentamente entre o polegar e o indicador da mão direita. – Esse relativismo sem limites que se impôs na cultura ocidental na segunda metade do século XX é um dos grandes males dos nossos tempos, dessa chamada contemporaneidade (torceu um pouco a boca, quando disse esta palavra). – Existem sim, valores sólidos, absolutos e precisamos nos fortalecer em torno desses valores. A Honestidade, a Moral, a Ética, a Sinceridade, a Fraternidade. Acreditar nisso é uma postura política, além de filosófica. Não me agrada essa postura cínica e esnobe dos intelectuais de meia tigela da nossa (torceu a boca, mais uma vez) contemporaneidade. A propósito, li outro dia uma frase bastante esclarecedora: “O cinismo é a falsa consciência esclarecida”. Márcio não cansava de alertar sobre o risco que resultava da omissão dos intelectuais perante a mediocridade e a corrupção que minavam nossos valores, a nossa sociedade. As coisas mais abomináveis eram expostas nos meios de comunicação e nenhuma voz sequer se levantava para protestar. Citou Guillebaud: “Falar de moral aos homens e às mulheres desta virada de século é condenar-se a não ser nunca compreendido; é mesmo perpetuar a desorientação que pretendemos combater”. Para Márcio a verdade com “v” minúsculo de Alberto nada mais era que um ato de covardia. Uma forma de se refugiar no senso comum da (torcia a boca) contemporaneidade. Com ela, certamente, ele nunca arranjaria inimigos. Com ela poderia manter relações cordiais, sem se indispor com ninguém. - É uma forma de se ter uma vida segura e confortável – dizia com um (insuportável) tom de ironia na voz. A princípio, que mal havia em se querer ter uma vida segura e confortável? Mas, dizia ele, o que parecia ser uma forma de manter relações cordiais, respeitosas e fraternas com as 125 pessoas, nada mais era que uma estratégia de distanciamento – uma forma de mantê-las longe do que realmente importa. Mas, o que realmente importa? Alberto saiu da casa de Márcio com a mesma sensação com a qual sempre saía da casa de Márcio: de incômodo, de uma grande insatisfação. Pegou um ônibus até o Farol da Barra, sentou-se no gramado, no lado esquerdo do farol e ficou olhando o mar, com um ar distraído. Gostava da sua paz de espírito, do seu recolhimento interior, da sua solidão. Não apreciaria viver em pé de guerra com quem quer que seja. Ninguém merece esse sacrifício, pensou. Mas, por que então agir como se ele se interessasse verdadeiramente por elas? Não seria mais honesto assumir sua misantropia? Entretanto, desde que se dera por si, sempre se vira metido em movimentos sociais, ecológicos, políticos, comunitários, em defesa de alguma causa. Tudo por causa do seu senso de Responsabilidade. Bem, querendo ou não, lá estava um valor com inicial maiúscula. Nem tudo estava perdido. 126 UMA PESSOA TÃO NORMAL Talvez esse Senso de Responsabilidade fosse apenas uma reação inconsciente, uma forma dele se infiltrar na chamada “comunidade dos homens”. Fruto, talvez, da suspeita, vaga e desconfortável, de que fosse, no fundo, uma pessoa estranha. Talvez por isso Alberto fosse uma pessoa tão normal. Era uma forma de disfarçar uma realidade que só ele podia saber. Talvez por isso o tocasse tão profundamente os dramas dos personagens da literatura ou do cinema que, por um motivo ou outro, eram colocados à margem – naquela solidão profunda que resulta numa radical singularidade. Impressionara-o bastante, por exemplo, a personagem vivida pelo ator Cristopher Walken, no filme A hora da zona morta (Dead zone), de David Cronemberg. Ou, ainda mais, o Demian, de Hermann Hesse. Aquele que tinha, na testa, o Sinal de Caim. Lembrava-se de Homero Mesiara, uma figura insólita que conhecera em Itapuã, em meados dos anos 70, que, numa casa velha, na rua Guararapes, entre livros antigos, teias de aranha e chás macrobióticos, lhe dissera. - Você tem também o Sinal de Caim. Daqueles que não poderão nunca viver com o rebanho. Daqueles que estão marcados para sempre pela solidão. Talvez por isso Alberto nunca soubesse, quando se via andando pelas ruas desertas de Salvador, para onde realmente estava indo. Sabia apenas que amava aquelas ruas como se elas fossem parte dele mesmo. Quase podia sentir-se em tudo no que, à sua volta, seus olhos tocavam: os casarões centenários do Centro Histórico, as casas comerciais da Baixa dos Sapateiros, com seus vendedores e suas calçadas apinhadas de pedestres, as avenidas ensolaradas da Orla Marítima, com suas casas iluminadas pelo sol da tarde, o labirinto de vielas e becos dos bairros periféricos, as pacíficas e desertas paisagens do subúrbio ferroviário, as praias, os pátios, as sacadas, os campos de futebol, os varais, os mangues, as veredas, as dunas e pastagens da Grande Salvador. Tudo que os seus olhos puderam ver não podia ser compartilhado. Tudo aquilo era, ao contrário do que parecia, uma outra dimensão, que repousava em algum lugar atrás dos seus olhos. - Mas o que tem a ver todas essas ruas, praças, avenidas, varais e não sei o que mais com o seu “sinal de Caim”? – perguntou o amigo de Alberto, pitocando um carretel de linha com o dedo médio da mão direita. - Não sei. Talvez seja uma forma de “amar a solidão”, como disse Rilke em uma das suas cartas. A cidade é o meu elo com as pessoas. Uma forma de não me perder. Talvez tenha a ver com a idéia da solidão como caminho para a comunhão. A única forma de amar alguma 127 coisa é saber-se separado dela. É impossível amar verdadeiramente se nos sentimos apenas como uma ovelha do rebanho. Seu amigo torceu o nariz. Disse que eu parecia um personagem de um livro de autoajuda. Alberto sabia que aquilo, na verdade, não explicava nada. Tinha que fazer alguma coisa para não cair no lugar comum. Voltou para casa. - Pai, você comprou o pão? – perguntou seu filho. - Esqueci. - Porra! Que merda! Eu vou comer o quê? 128 GÊNIOS REBELDES SUICIDAS Alberto sabia que Márcio considerava toda aquela história de estranhezas e sinais de Caim uma grande besteira. “Uma forma pedante de querer ser especial”, dizia. Ele, decisivamente, não gostava do humanismo romântico de Hesse e considerava toda mística em torno das personagens singulares da história uma grande farsa, destinada a desviar as pessoas – sobretudo os jovens – das questões que realmente interessam. - Mas você não acha que muitas dessas personagens foram pessoas especiais? - Sim, sem dúvida. Mas e daí? - Não são pessoas dignas de admiração justamente por terem sido diferentes e por terem pago um preço caro por isso? - Sem dúvida, em alguns casos. Mas, em muitos outros, as pessoas muitas vezes admiram ícones, e chegam mesmo a copiar suas vidas desastrosas, pelas razões erradas! Veja o exemplo daqueles poetas românticos e seus sucessores, os malditos, os escritores da chamada Geração Perdida, os beatniks... Quase todos uns sujeitos desorientados, que tiveram um fim triste e amargo. - Uhm... - Veja aquele pobre coitado do Byron, um aristocrata sonhador, que, veja só, resolveu lutar na Grécia. Seu fim não podia ser outro: morreu doente, em condições lastimáveis, achando que já era o momento de descansar quando tinha apenas 36 anos! E, convenhamos, um legado ainda mais importante a ser deixado para a literatura universal. Baudelaire, grande poeta, mas, no fundo um cínico, fraco, incapaz de se manter por si próprio, vivia pedindo dinheiro ao padrasto que, a bem da verdade, não tinha porque ficar mantendo um sujeito que não queria nada com a hora do Brasil. - Era um sujeito medíocre. Não reconheceu o gênio de Baudelaire. - Ele era um militar, não era um intelectual. Seria esperar demais que ele reconhecesse o gênio do criador de As flores do Mal, quando a maioria dos próprios escritores de sua geração não o conseguiram. Além de tudo, Baudelaire era falso, mesquinho e maledicente. Elogiava Victor Hugo através de cartas para difamá-lo pelas costas. Teve uma vida e uma morte miseráveis. Quer continuar? Então o que podemos dizer do seu sucessor imediato, o príncipe da Modernidade, Rimbaud? Um jovem desregrado, que não foi sequer capaz de assumir a sua condição de maldito até o fim. Como se sabe, morreu, aos 37 anos, depois das aventuras idiotas nas quais se meteu, convertendo-se ao catolicismo que tanto desdenhou. As pessoas falam que 129 ele foi traficar armas na África como se isto fosse de fato um grande negócio. Pois deu no que deu. Agora vejamos os representantes da famosa Geração Perdida, nos Estados Unidos. Fitzgerald, um jovem talentosíssimo, basta ver a obra-prima que é o seu Gatsby, tornou-se um farrapo humano, devido ao alcoolismo. Sua mulher morreu louca e ele mesmo, se considerarmos o que o seu companheiro de geração escreveu sobre ele – de forma implacável e até desumana, dizem que movido pela mais dilacerante inveja, em Paris é uma festa – não estava muito longe disso. O próprio Hemingway, cuja imagem de vencedor nada mais era que uma grande fraude, morreu da pior forma que se pode esperar de um homem: matando-se. E, saindo da literatura para a indústria do cinema e do entretenimento, cujos mitos substituíram os daquela na sua lamentável capacidade influenciar milhões de incautos, o que vemos é ainda mais lamentável. James Dean teve pressa demais e se espatifou rapidinho, aos vinte e poucos anos. Elvis, the Pélvis, ótimo cantor, com um swing difícil de se encontrar num branquelo do Tenessee, caiu de podre, saturado de drogas, medicamentos e veneno (das serpentes que o arrodeavam). Pasolini, em sua radical rejeição dos “valores burgueses”, morreu pisoteado pela escória em meio à qual vivia. Aqui entre nós, o rebelde-mor, Raul Seixas, dava até pena de se ver nos seus últimos anos: um espantalho que, na verdade, na sua ácida e bem-humorada crítica ao Sistema, nunca incomodou nenhum dos poderosos, tornando-se, como muitos outros contestadores, meros produtos de mercado. Até mesmo Glauber, com sua estética revolucionária, nada mais foi, nos seus últimos tempos, que um enfezado patrulhador de todos aqueles que não rezavam na sua cartilha cinemanovista... - Era um homem lúcido e combativo. É uma pena que não tenhamos outros intelectuais como ele nessa paisagem modorrenta que se tornou a nossa cultura nas duas últimas décadas. - Não acho que a agressão e o desrespeito sejam a melhor forma de agitar a cultura. Basta lembrar a forma como ele destratou um homem respeitável, como o professor Valentin Calderon, quando invadiu as dependências do Museu de Arte Sacra, que o professor dirigia, nos anos 70. Sem falar no desrespeito que foi a invasão do enterro de Di Cavalcanti. Glauber acreditava no grito como forma de convencimento, e isso não me parece que seja uma forma civilizada de se chegar a nenhum avanço, no que quer que seja. O autoritarismo de Glauber contaminou seus seguidores, que não hesitam em difamar quem quer que ouse contestar a infalibilidade do gênio. Virou um dogma – e eu não aceito dogmas. - Você não acha que é um pouco excessivo querer se cobrar infalibilidade de pessoas que já nos fizeram benefícios inestimáveis com suas obras? - De forma alguma. Considero todos eles artistas de imenso talento. Só não acho que, como pessoas, sejam modelos para nada. Podem até ter tido vidas admiráveis, ao seu modo, 130 como exemplos de contestação à execrável mediocridade pequeno-burguesa (para usar um termo tão familiar à nossa geração). Mas, de forma alguma, em sã consciência, eu os usaria como referência para a minha própria vida – a não ser que eu queira levá-la, também, ao desastre. E há casos piores, tais como os da chamada geração beatnik, que nem sequer uma obra de peso nos legou. Pode-se dizer que On the road, de Kerouack, ou Naked Lunch, de Burroughs, sejam livros notáveis, ou mesmo importantes como emblemas de sua época, mas veja a longa distância que os separam da obra, por exemplo, de Walt Whitman, outro libertário, este sim, genial. E, dos mais recentes, nem se fala, basta ver o tão citado Bukowski, um bêbado miserável que de uma hora para outra foi transformado em um escritor cult (torceu a boca). Fico verdadeiramente impressionado com a ignorância das pessoas. E olha que nem chegamos a falar dos filósofos... aqueles que pensam a vida com tanta profundidade que não conseguem sequer colocar seus conceitos em prática. E que terminam seus dias atirando-se pelas janelas, caindo de podres. Mas fica para depois. Meu estômago não agüenta muitas doses de genialidade. Alberto saiu da casa de Márcio com aquela sensação de incômodo e de insatisfação com as quais sempre saía da casa de Márcio. Pensava nos argumentos que poderia ter usado e que não o fez. Afinal, quem ele pensava que era? Ele não tardava por esperar! 131 O BEBÊ COM A ÁGUA SUJA Olhando para sua própria subjetividade, Alberto pensa que, na verdade, nenhuma palavra, nenhum conceito pode dar conta de sequer um bilionésimo da vida e da biografia de qualquer pessoa. E, muito menos, de homens tão complexos como um Baudelaire, que Márcio arrasou tão tranqüilamente como quem vai no açougue comprar um quilo de carne. Com uma boa dose de imaginação, imaginou-se vendo e sentindo os sentimentos do poeta maldito; as infinitas sensações que lhe tocaram o espírito; o que pensava realmente do mundo, a partir da sua suja Paris. A sua dor. Sê sábia, ó minha Dor, e queda-te mais quieta. Reclamavas a Tarde; eis que ela vem descendo: Sobre a cidade um véu de sombras se projeta, A alguns trazendo a angústia, a paz a outros trazendo. “Dá-me, ó Dor, tua mão”, pensa Alberto, em Recolhimento, sob a sombra de uma amendoeira, em Itapuã, olhando o movimento da tarde, vendo aproximar-se “a doce Noite que caminha”. Sabia que, diante dos mortos, nenhuma palavra devia ser dita. Não havia por que julgar os que, bem ou mal, passaram por esse “mar de lágrimas” (não pôde evitar a expressão) tocado por sabe-se lá que fatalidades. Mas dava razão a Márcio quando criticava essa tendência estúpida de se mistificar as dores alheias, imbuindo-as de um glamour, que na crua realidade, nunca existiu. De Baudelaire basta-me sua poesia; não há nenhuma glória em morrer na miséria, implorando esmolas. Em algum momento da nossa cultura, no Ocidente, cometeu-se um erro grave. Ao se rejeitar e combater falsos valores, jogara-se os valores verdadeiros fora. Em algum momento da celebrada modernidade, lançou-se fora o bebê junto com a água suja da bacia. Com a falsa moral e a hipocrisia, renegou-se a verdadeira moral; com a falsidade, o próprio conceito de verdade; com o autoritarismo, a autoridade. O resultado aí está: uma sociedade que se fragmenta, de alto a baixo, sem um só pilar que a sustente. A dúvida e a desfaçatez penetraram por todos os meandros da sociedade, contaminando-a. Hoje, celebram-se escritores cínicos e grotescos como pessoas geniais. E a sujeira toma conta de todo o organismo, contaminando-o. Levou suas preocupações para Lunaris. Seu amigo arqueou as sobrancelhas, fez uma expressão de preocupação e disse. 132 - Mas este também é um argumento perigoso! Infelizmente, todo o conceito de limpeza, na era pós-nazista, já é, de certa forma, um conceito contaminado. Por trás do conceito de Moral há, quase sempre, uma meia dúzia de hienas, esperando sua vez de participar do banquete. O pior crime é aquele que se faz em nome de um belo conceito, de uma boa causa. Basta lembrar, nesse sentido, a frase de Samuel Johnson: “O patriotismo é, muitas vezes, o último refúgio de um patife”. O maior crime é o de conspurcar o conceito do Bem. E é sempre bom tomar cuidado com os que se reúnem para salvar o mundo. O demônio – se você me permite a utilização dessa imagem – parece ter se esmerado na sua tarefa de confundir os nossos valores. Ele, de fato, parece ter-nos apanhado direitinho nas suas redes de contradições. O ceticismo e a ironia, refúgio do homem moderno, tornaram-se uma arma voltada contra ele próprio. Mas, com todos os riscos da empreitada, talvez seja o momento, neste início de século, de se ter coragem de voltar a acreditar em valores sólidos, mesmo que correndo o risco de se incorrer em novos erros. Alberto pensava nessas palavras, enquanto lia A ditadura escancarada, de Élio Gaspari. Não podia deixar de ter um sentimento ambíguo, de admiração e pena, por todos aqueles jovens que foram exterminados, nos anos 60/70 pela ditadura militar. A ideologia, fosse ela qual fosse, parecia-lhe ali uma armadilha cujas conseqüências eram quase sempre funestas. De certa forma, os veteranos das organizações esquerdistas, que recrutavam jovens para suas aventuras armadas de tomada do poder, pareciam-lhe também responsáveis por suas mortes. Bastava lembrar do tal Arroyo batendo em retirada, fugindo para São Paulo, no ápice da ação de extermínio dos guerrilheiros do Araguaia pelos militares, “deixando para trás pelo menos trinta guerrilheiros transformados em fugitivos”. Deixando para trás jovens de vinte e poucos anos, arrancados de seus estudos para uma aventura política que nada mais era que uma caminhada para a morte. Para todos os lados que olhava, a vida era, para Alberto, uma grande armadilha. A única atitude que lhe parecera, por algum tempo, mais justa e honesta era a da resistência pacífica de um Gandhi. Mas quem está, hoje em dia, disposto a ir de peito aberto para o matadouro? De certa forma, ela só parecia ser possível em duas circunstâncias: a de uma lucidez e desprendimento absolutos, ou como um grande exemplo de fanatismo. De todo modo, agradava-lhe bastante a figura pacifista de um Henry David Thoreau, mas desse tipo só aparecia alguém de 1000 em 1000 anos. E os resultados práticos eram sempre quase nulos. Mas sabia que, em algum nível, é preciso resistir; que é preciso acreditar; e que é preciso lutar. 133 O DEVER DE RESISTIR Talvez Alberto, como muitas outras pessoas da sua geração, sem o saber ou sequer imaginar tal coisa, aguardasse aquilo que mais desprezava: um Messias. Precisaria ser alguém muito especial, alguém impossível de existir... de verdade. Alguém que pudesse convencê-lo do impossível; alguém que pudesse convencê-lo a desmontar tudo aquilo que mais amava e no que mais acreditava, para caminhar no deserto. Alguém que pudesse convencê-lo a morrer. Porque só morrendo encontraria sua verdadeira vida. Oh, mas não foi exatamente isso que aconteceu com os pobres e incautos simulacros de heróis do Araguaia? Os ingênuos sonhadores, manipulados por heróis de pés de barro, que só encontraram a desgraça e a derrota e o supremo desamparo? Alberto seria tão estúpido ainda para ficar aí esperando a redenção do mundo? Ele rejeitava essa idéia com todo o seu ser para tornar a encontrá-la, lá no mais fundo do seu íntimo, como uma imagem luminosa. A única capaz de mobilizar tudo o que existia nele de verdadeiro, de real. Lembrou-se um amigo seu, jornalista e escritor, que lhe confessara ter ficado dois dias sem dormir após uma entrevista com o ilustre geógrafo baiano Milton Santos. Tudo porque ele denunciara, sem meias palavras, o mais tenebroso crime que se estava perpetrando, entre as imagens feéricas e enganadoras da globalização – ou, como ele mesmo dizia, do globalitarismo: a morte do pensamento. E a necessidade da utopia como forma de resistência. Disse ele, numa entrevista concedida ao jornal A Tarde, em 14 de janeiro de 2001. “A idéia de generosidade que a gente praticou até os anos 60, e que levava à noção de utopia e de possibilidade de realização da utopia, ela voltará. Nós temos que voltar urgentemente a noção de Homem, do humanismo. Isso é que vai ser o grande fanal”. - O homem está sendo mutilado pela realização histórica atual – disse o professor Santos, com seu rosto largo, sua pele negra contrastando com seus dentes brancos e seus olhos vivos, espremidos, sempre sorrindo, com voz mansa dizendo coisas tão sérias, ali sentado, gesticulando com suas grandes mãos, com suas mãos enormes que pareciam ocupar todo o espaço à minha frente. Ele sorria, e falava, e gesticulava, dizendo que nós tínhamos o dever de resistir, de impedir que não nos deixassem ser completamente homens, que precisávamos recuperar a idéia de humanismo. Precisamos resistir à idéia terrível de sermos reduzidos a meros consumidores. Precisamos resistir ao marketing. Precisamos resistir ao Mercado, este Big Brother desses tempos ocos, sem substância. 134 Precisamos resistir ao fato de que estamos sendo transformados em simulacros. Cidadãos do mundo, uni-vos! Desembainhem suas espadas e lutem contra a tirania da informação e do dinheiro, ao bezerro de ouro da competitividade, que se aproveita da confusão dos espíritos para pregar seu falso paraíso que nada mais é que um pântano fétido e purulento. Resistam à canalhice dos que se locupletam no banquete dos bem-sucedidos, dos que se curvam aos poderosos e lambem o chão onde eles pisaram, dos que pilotam seus programas de grande audiência que disseminam a alienação e a ignorância, dos que se contrapõem às idéias que podem efetivamente mudar o mundo. - As épocas que subestimam a utopia são épocas de empobrecimento intelectual, ético e estético. É preciso jogar-se para a frente, o que pode parecer suicida. Mas, do contrário, ficamos paralisados pelo pragmatismo... – disse ele, evaporando-se, em seguida, diante dos meus olhos, como um fantasma vindo do fundo da noite mais luminosa. Alberto ficou também duas noites sem dormir, após ter ouvido o relato do seu amigo jornalista e a aparição do professor, em Lunaris, após seu desencarnamento (palavra que pode desagradar os céticos, por suas ressonâncias espíritas, mas que se aplica bem ao caso: a aparição do professor, apesar mesmo da nitidez do seu sorriso, do seu olhar e dos seus gestos, era toda isenta do peso da carne. Era pura idéia). “Tal como aconteceu ao meu amigo jornalista, o professor reacendeu, dentro de mim, uma fogueira que brilhava na noite escura e fria, tal como as fogueiras ancestrais, acesas pelos patagões nas remotas paisagens geladas da Terra do Fogo. A fogueira que aquecia seus corpos nus, enquanto ventos gelados os cercavam com seu uivo”, pensou Alberto, andando, pelas ruas, com as mãos no bolso do seu casaco, que se tornava, pouco a pouco, real. A fogueira tornava claro o que antes lhe parecera obscuro. Ela fazia derreter as máscaras dos falsos ídolos e revelava o que havia de horrendo sob as faces sedutoras. Oh, mas ele era apenas um homem que andava pela cidade, à noite, parando para olhar as vitrines, os jornais nas bancas de revistas, o mar distante, o silêncio e a sua própria insignificância. Ele era o mais anônimo entre os homens que vagavam à noite pela cidade – e este era seu mais intenso prazer. Alberto não se acreditava capaz de mudar nada. Por que viera, então, a ele, aquela iluminação? As palavras do professor exigiam-lhes um gesto, uma atitude, ação. Eram como uma onda que, gerada em algum ponto do nada, jorrava através dele para quebrar-se em uma praia que não sabia sequer onde estava. Mas não podia represar a onda, ela era mais forte que ele – e isto o assustava. Alberto voltou pra casa, mergulhado nos seus pensamentos. Naquela noite, sua mulher não quis queixar-se do seu alheamento. Limitou-se a dar-lhe um beijo no rosto, voltar-se para o lado e dormir, enquanto ele ficou alguns minutos, com os olhos pregados numa estrela que 135 estava em algum lugar acima do teto do seu apartamento e das nuvens cerradas que cobriam a cidade. ESTAMOS NOS TRANSFORMANDO EM FANTASMAS! Alberto gostava muito da introdução de Saint-Exupéry ao seu livro Terra dos Homens (na excelente tradução de Rubem Braga): Mais coisas sobre nós mesmos nos ensina a terra que todos os livros. Porque nos oferece resistência. Ao se medir com um obstáculo o homem aprende a se conhecer; para superá-lo, entretanto, ele precisa de ferramenta. Uma plaina, uma charrua. O camponês, em sua labuta, vai arrancando lentamente alguns segredos à natureza; e a verdade que ele obtém é universal. Assim o avião, ferramenta das linhas aéreas, envolve o homem em todos os velhos problemas. Trago sempre nos olhos a imagem de minha primeira noite de vôo, na Argentina – uma noite escura onde apenas cintilavam, como estrelas, pequenas luzes perdidas na planície. Cada uma dessas luzes marcava, no oceano da escuridão, o milagre de uma consciência. Sob aquele teto alguém lia, ou meditava, ou fazia confidências. Naquela outra casa alguém sondava o espaço ou se consumia em cálculos sobre a nebulosa de Andrômeda. Mais além seria, talvez, a hora do amor. De longe em longe brilhavam esses fogos no campo, como que pedindo sustento. Até os mais discretos: o do poeta, o do professor, o do carpinteiro. Mas entre essas estrelas vivas, tantas janelas fechadas, tantas estrelas extintas, tantos homens adormecidos... É preciso a gente tentar se reunir. É preciso a gente fazer um esforço para se comunicar com algumas dessas luzes que brilham, de longe em longe, ao longo da planura. Havia, naquelas palavras, segundo acreditava Alberto, um antídoto para a superficialização das relações, que lhe parecia ser a tônica da sua geração. Uma geração que, talvez pela primeira vez, no Brasil, era majoritariamente urbana, e que talvez por isso mesmo, lhe parecia castrada, disforme. De repente, o mundo real, marcado pela experiência direta com a terra, que oferece resistência, escapa ao homem, deixando, em seu lugar, um estranho vácuo no qual nada de sólido parece subsistir. O homem da era virtual já não consegue arrancar segredos à natureza; 136 no oceano da escuridão, apesar de todas as informações que circulavam pela mídia e pela Internet, o homem parecia se comunicar cada vez menos. Alberto estava cada dia mais convicto de que as relações entre as pessoas – essas pequenas luzes perdidas na planície – eram cada dia mais irreais. Mediadas pelos meios de comunicação, tornavam-se simulacros de relações. Faltava-lhes verticalidade. Faltava-lhes a solidez da experiência compartilhada. Sim, era preciso a gente tentar se reunir, mas todos estavam sempre tão ocupados, tão isolados nos seus escritórios, nos seus apartamentos, diante das telas de tv e dos computadores. Prova disso era o fato de que ele passava cada vez maior parte do seu tempo conversando com seu amigo, em Lunaris. - Este é um problema muito grave. Estamos nos transformando em fantasmas. Seu amigo sorriu. Achou que ele estava exagerando. Ou melhor: que estava deixando-se (convenientemente, diga-se de passagem) dominar-se por uma imagem literária, o que era de muito mau gosto. - As pessoas continuam se relacionando do mesmo jeito que sempre fizeram. Basta dar uma volta pela orla marítima para ver isto. Olhe os bares, as praias. Você precisa ir aos subúrbios, aos domingos. Andar pelos bairros periféricos. Você não pode reduzir o mundo e a cidade a esse seu mundinho de classe média, de morador de bairros nobres. Você precisa conhecer o número infindável de entidades beneficentes, de organizações não-governamentais, de academias, de instituições de toda ordem em torno das quais milhões de pessoas se reúnem. Muito mais, aliás, do que nessa construção idealizada à qual você se refere como os velhos bons tempos. O homem continua a mesma merda, meu velho. Com ou sem Internet. Agora veja só a que ponto nós chegamos, pensa Alberto. Um fantasma, criado pela minha carência e pela minha solidão, sai do seu mundo inexistente para me convencer de que somos reais. Uma idéia atravessou, como um raio, o espírito de Alberto, paralisando-o. “Serei eu, na verdade, uma criação dele? Serei eu o simulacro?” 137 NO MUNDO DA LUA A idéia de que era ele, e não o seu amigo, o habitante de Lunaris, deixou Alberto bastante indisposto, por algumas semanas. Ao ponto de Judith exasperá-lo com novas admoestações. - Você parece que vive no mundo da lua! A frase, embora ela não o desejasse em absoluto, só fez agravar o seu quadro de melancolia. Alberto faltou diversas vezes, nos dias que se seguiram a essa frase, ao trabalho, deixando-se vagar pelas ruas de Salvador, como uma alma penada. Pegou um ônibus cheio para Praias do Flamengo. Subiu as escadas da Igreja do Bonfim. Pegou uma lancha para a Ilha de Maré. Arriscou sua vida percorrendo, sozinho, as dunas do Abaeté. Cortou a cidade de cabo a rabo, até chegar à conclusão de que isto não provava nada. Afinal de contas, aquilo tudo poderia ser apenas uma réplica da sua cidade. Ele sabia agora que em Lunaris tudo era possível. Confessou, não sem temor, o seu receio para o Dr. R., festejado neuropsiquiatra. Ele riu, daquela forma peculiar de um gênio que acha curiosa uma idéia como aquela. - Ora, meu caro. Claro que você é real. Do contrário não poderíamos estar falando aqui. Do contrário, eu também não seria real. Mas eu sou real. Logo, você também é. Chamou a empregada. Ordenou que lhes servisse um suco de goiaba. Colocou um CD de Stockhausen para ouvirem. Mostrou sua coleção de gravuras de dinossauros e um artigo no qual revelava a forma insólita pela qual curou um meningeoma de um paciente. Alberto saiu de lá, tarde da noite, convicto de que era real. Mas tinha algumas dúvidas quanto ao Dr. R. Passou os dias que se seguiram sem retornar a Lunaris. Fez um sem-número de atividades práticas – ao ponto de Judite chegar a cogitar que ele teria salvação. Por alguns dias, Alberto teve a ilusão de que era um homem útil, prestativo, como todo homem deve ser. Ele tinha, de fato, uma admiração extrema por pessoas assim: positivas, diretas, práticas, sem recuos, sem vacilações. Pessoas que querem ir ali, e, simplesmente, vão. Pessoas que não fazem muitas perguntas a si próprias. Pessoas que não têm tanto medo de errar. Dias depois, entretanto, voltou a Lunaris onde queixou-se a seu amigo que aquele Alberto não era, de fato, ele mesmo; que precisava voltar a ser o que era antes de perder-se definitivamente de si próprio. Ou se transformaria em dois? Seria o Alberto, que passaria os dias trabalhando, ganhando 138 dinheiro, fazendo negócios, tomando decisões importantes, trocando lâmpadas, consertando objetos e equipamentos, levando as crianças para a escola, dando ordens aos empregados, amando Judith. E seria o outro Alberto, que sairia definitivamente da sua vida real para passar os dias contando piadas em Lunaris, andando a esmo pelas ruas de Salvador, lendo um bom livro num banco de praça do Campo Grande, observando os animais no zoológico, tomando chuva, olhando o mar, amando mulheres desconhecidas, pregando peças nas ruas, viajando de trem para qualquer lugar. - Não seria legal me dividir? – perguntou, nem sabe por que, ao seu amigo, que limitouse a arquear a sobrancelha esquerda e a dizer: - Ora, mas você não é?! Não entendeu muito bem o que ele queria dizer, mas terminou achando (embora não o dissesse) que ele tinha razão. Ou melhor, que ele estava errado. Que eu era mais de dois. Que era três, talvez, incluindo ele próprio; ou quatro, incluindo Judith; ou cinco, incluindo você, leitor; ou seis, incluindo quem lhe escreve; ou... ... o homem que acredita que pode mudar o mundo. ... o homem que acha impossível mudar o mundo. ... o mundo. ... o homem que gosta de música clássica e torce nariz para a música popular. ... o homem que gosta de ouvir Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Paul Denver. ... o homem que gosta de ouvir Steve Maclean e Johnny Mathis. ... o homem que gosta de filmes policiais e aprecia ler sua velha coleção de fotonovelas e de livros de bolso de espionagem, da sensual espiã Brigite Montfort. ... o homem que não se importa de ser ridículo. ... o homem. 139 JÁ É TEMPO DE TER MEDO Havia um tempo em que Alberto não tinha medo. Não era, na verdade, não ter medo de ladrão, de assalto, da morte, do ridículo, da solidão, da traição. Era não ter medo. Era acreditar que nada de mal lhe podia acontecer, era achar que Deus estava o tempo todo olhando para ele, era achar que na hora H sempre apareceria um anjo salvador que lhe daria a mão e lhe concederia a sua graça. Era, talvez, em última instância, achar-se diferente, ungido, marcado. Não pelo sinal de Caim, conforme lhe sugeria Homero, mas por uma luz que sempre se projetaria num espaço além, reservando-lhe um destino luminoso. Durante muitos anos, Alberto viveu com essa crença – na verdade, não era uma crença, porque não era racionalizada; mas uma intuição. Chegou às vezes a abusar dela: circulava pelas ruas do Centro Histórico, pela mal afamada Ladeira da Montanha, pelos becos e travessas da Carlos Gomes, a qualquer hora do dia e da noite, sem que nada lhe acontecesse. Vivia de peito aberto, para o que desse e viesse. Viajou de carona pelas estradas solitárias do Norte-Nordeste, dormiu em barracas e a céu aberto, rindo-se de todos que lhe aconselhavam prudência. E nunca nada lhe aconteceu, até que o tempo, agindo silenciosamente, foi-lhe tirando, pouco a pouco, o véu da frente dos olhos – e lhe revelando o mundo. E, na sua paisagem ensolarada, foram-se instalando, pouco a pouco, os fantasmas do medo. Não o medo de ladrão, de ser assaltado, de ficar doente, de morrer. Mas o medo. Ele estava agora naquele espaço que envolvia as coisas, no silêncio no qual tudo estava mergulhado, no ato de sentir, de pensar, de ser. Era um medo frio, gelado, como o espaço cósmico, que fluía do seu pensamento e voltava-se sobre si, investigando-se. Era o medo de pensar em Deus, no Nada que engoliria, finalmente, um dia, o próprio dia. - Sinto medo por saber que você não existe. E por estar aqui, conversando com você – disse ele, na varanda de uma casa, em Lunaris, cercada de fontes e palmeiras com folhas largas, e uma grande quantidade de hibiscus e trepadeiras sobre muros desgastados pelo tempo, úmidos, gotejantes. A mulher, de cabelos pretos, cacheados, assanhados por um vento que não existia, sorria para Alberto. Ao lado dela podia ver a TV grande, em preto e branco, que existia num apartamento da sua infância. E lhe parecia estranho que ela estivesse ali, naquele momento. Não 140 podia perceber seu significado, a relação dela com o medo, com a mulher que sorria – com a rua lá fora. A rua vazia. A rua. A mulher beijou-lhe o rosto, virou as costas, desapareceu, enquanto pensava que o medo era apenas, talvez, a única prova de que ele existia. De que estava vivo. De que não era um espectro de Lunaris. O medo, enfim, concluiu Alberto, era saber que havia crescido. Que era adulto, dono do seu destino. Era a ausência do seu pai, que morreu num acidente; e da sua mãe, que desapareceu, um dia, sem deixar vestígios. O medo era, agora, não uma presença, mas a ausência. De repente, em algum momento do final da sua adolescência, alguém aproximou-se dele e entregou-lhe uma jóia preciosa, pela qual seria a partir de então responsável e sobre a qual um dia teria que prestar contas. E, a presença daquele objeto valioso, tirara definitivamente a sua paz. E mais grave ficaram as coisas quando decidiu viver com Judite; quando tiveram filhos; quando construíram uma casa e compraram os móveis – e começaram a adquirir todos aqueles bens: o automóvel, as duas Tvs, as antenas, o vídeo, o DVD, os dois aparelhos de som, o sofá, as camas, os colchões, os guarda-roupas, as peças da cozinha, a mesa e as cadeiras, os cães (um poodle e uma cocker), as estantes, as panelas, os pratos, os talheres, a estante e os livros. E, finalmente, o computador com seus apetrechos (toca Cds, scanner, impressora, caixas de som). Uma simples mudança, agora, exigia uma complicada logística, um planejamento e mil pequenas providências que lhe exigiriam tempo, e tempo, e tempo. Alberto costumava medir sua responsabilidade de homem adulto pela quantidade de coisas que carregava consigo, nos bolsos e na pasta: as chaves da casa, do carro, do escritório, o celular, a caixa dos óculos, a flanela para limpar as lentes, a carteira com dinheiro, documentos e cartões de crédito; o talão de cheque, caneta, agenda, livros, papéis... Ao medo e à responsabilidade, somava-se a consciência plena de que havia nele um milhão de seres que precisavam ser conhecidos – e reconhecidos. Chegara-lhe a compreensão de que muitas vidas se cruzavam com a sua, deixando-lhe, aqui e ali, marcas que se refletiam em seus mínimos gestos, expressões, pensamentos, sensações, sentimentos. Percebeu que, para escrever uma biografia, se acaso o quisesse, precisaria perscrutá-las a fundo. Comentou isto, à noite, com Judite, que tentou, com todas as forças, dissuadir-lhe dessa empreitada. Ela acreditava que, além da sua própria vida, somente a dela, a dos seus filhos e, vá lá, dos seus cachorros, deveria existir para ele. Não podia aceitar a idéia de dividi-lo com uma legião de sombras e fantasmas. Não podia aceitar a idéia de dividi-lo. Ela não sabia de Lunaris. 141 UM LUGAR QUE NÃO EXISTE Passou a semana seguinte pensando em como faria para investigar todas as vidas que o formavam, se sequer podia lembrar de um milionésimo delas. - É óbvio que você precisa fazer um rigoroso processo de seleção – disse um dos seus amigos lunarianos. Recomendou-lhe que delegasse tal tarefa ao Inconsciente, que certamente seria muito mais sábio e lúcido que seu próprio eu, se é que poderia definir-se assim. - Feche os olhos. Deixe o pensamento vagar ao sabor das ondas. Não procure. O que vê? Não via nada. Não sentia nada. Estava seco, indiferente. Ou melhor, viera-lhe, sim, imagens de pessoas, mas eram insignificantes. Pensou que, ao contrário do que seu amigo lhe dissera, esta investigação deveria ser feita pelo seu eu consciente. Após o jantar, depois de assistir a trechos do julgamento de Sadam Hussein no Jornal Nacional, deitou-se na rede, na varanda, e deixou que as imagens viessem-lhe à mente. Viu-se, aos 9 anos de idade, olhando, fascinado, um caldeidoscópio, na vitrine de uma loja, na avenida Carlos Gomes; viu-se jogando bola (salão) com o irmão mais velho e os amigos do irmão, em Itapuã; viu-se, anos mais tarde, sobre as dunas dos ex-combatentes, no final da tarde, extasiado com o reflexo do sol poente numa velha pick-up que trafegava lá embaixo, na avenida; viu-se numa infindável sucessão de momentos e imagens – mas ao final de tudo, continuava vazio. Abriu, então, a porta e atravessou o corredor que o levava a Lunaris. Viu uma mulher que estava sentada numa cadeira de balanços, ao fundo de uma sala pouco iluminada. Era a primeira vez que a via. Acendeu a luz, mas ainda assim não conseguia enxergar sua fisionomia. Em volta dela havia várias portas, mas preferiu aguardar que ela desse um sinal. Mas ela nada disse, de forma que se viu novamente deitado na rede. Adormeceu. No dia seguinte, Alberto pegou uma folha de papel e escreveu: “Sim, eles podem ser o ponto de partida dessa empreitada. Tenho vagas lembranças deles: um casal, amigo de meus pais, que de vez em quando aparecia lá em casa. Ele, um homem alto, de porte imponente, robusto, cabelos grisalhos, elegante no vestir e na forma de se expressar, de se movimentar. Ela, uma mulher, também de meia idade, por volta de seus 53 anos de idade, bem educada e cortês. Em ambos cabia perfeitamente a palavra distinção. Nunca soube (ou não me lembro) de onde meus pais os conheciam. Lembro apenas da presença deles em minha casa, do afago que ela 142 fazia em meus cabelos, da voz firme e amável dele, de, talvez, algum presente que me deram em meu aniversário. E nada mais, além de um certo mistério que os envolvia e que podia perceber na forma cortês como meus pais os tratavam, sentando-se com eles na sala de estar, fumando, fazendo comentários (cujo conteúdo já não recordo), dando risadas gordas e calorosas”. “Um dia ouvi, na cozinha, minha mãe contando, para uma tia minha, a história trágica do casal. E que resumo, aqui, utilizando as escassas informações que disponho: a de que ele, policial militar, ainda bastante jovem, conhecera ela, professora da rede pública, e logo se apaixonaram. Não obtiveram, entretanto, a aprovação da família dela, que tentou, a todo custo, inutilmente, impedir o namoro. Diante da insistência deles em realizar o matrimônio, o pai dela, que possuía um “gênio ruim”, quis intimidá-lo. Sabe-se que levou uma arma (uma mauser alemã) e que, na tentativa de matar o amante da filha, foi morto por este com um tiro certeiro no coração. Seguiu-se um grande escândalo, ele foi julgado e absolvido por legítima defesa – e ela, que amava o pai, mas que reconhecia a inocência do amante, optou por ficar com ele, rompendo definitivamente com a família. Já estavam juntos há 25 anos, tinham três filhos e pareciam amar-se mutuamente, como nos primeiros dias de namoro. Não se sabe até que ponto o fantasma do pai os atormentava, mas desde que ouvi esta história, nunca mais pude vê-los como se mostravam aos meus olhos. Havia agora uma perspectiva de maior profundidade, como se uma imagem plana ganhasse suas três dimensões – e uma quarta, na qual se escondia algo que estava além da minha compreensão. Era como se numa casa moderna, clara e iluminada, eu descobrisse um porão secreto, cheio de móveis quebrados, objetos esquecidos e ossos esbranquiçados”. A história trágica do casal, da qual o menino tomava conhecimento, despertara nele um olhar sobre a realidade marcado pelo ceticismo. Nunca mais as coisas seriam o que pareciam ser. - Você poderia escrever uma excelente novela com esta história. Ou, pelo menos, um conto – disse Márcio quando Alberto o visitou com Judite. Era costume do casal de amigos convidar-lhes, nas manhãs de sábado, para comer um belo cozido. - Eu sei – disse Alberto, sem disfarçar um certo desânimo. – Tenho diversas histórias reais, algumas verdadeiramente dramáticas, para transformar em contos, novelas, romances, que, entretanto, nunca saem da minha cabeça para o papel. Sei o que você está pensando. Que nada me impede de fazê-lo. Mas, oh, meu amigo, as coisas não são assim tão fáceis. A grande dificuldade é que, quanto melhor é a história, mais eu me sinto incapaz de recriá-la. A realidade está sempre muito além das minhas forças. De fato, Alberto sentia-se assim. Ele nunca se achava capaz de escrever um só artigo. Entretanto, premido pelas circunstâncias, escrevera vários, e sempre se saíra bem. Mas, se não 143 fosse obrigado, por questões de sobrevivência ou pelo senso de responsabilidade (nunca deixara de fazer o que prometera), jamais começava os seus projetos literários mais caros. Aqueles, justamente, que o colocariam num patamar superior, como intelectual e escritor. De volta para casa, recolheu-se ao escritório e, por um mero desencargo de consciência, resolveu escrever o início da novela – ou do romance. Na realidade, jamais sabia ao que seus escritos o iriam levar. Ao chegar à décima primeira página, mostrou a Judite o resultado inicial. O que acha? Sinceramente... - Acho que falta um pouco mais de... consistência. Refiro-me aos personagens, não à linguagem. Digo consistência no sentido de, digamos, materialidade. Não parecem personagens de carne e osso. Parecem fantasmas, simulacros, sei lá. Judite fora ao ponto. Alberto considerava-se incapaz de escrever cenas realistas. Tudo, em sua obra, ganhava a consistência de meras sombras. Talvez isto fosse conseqüência da sua permanência, cada vez mais freqüente, em Lunaris, pensou. E imediatamente um pensamento cruzou a sua mente: a única forma de realizar uma obra consistente seria transformar Lunaris em algo palpável, em algo que todos, à sua volta, pudesse também vê-la e dizer: isto é real. Alberto ficou com aquela idéia martelando-lhe o pensamento, durante alguns dias, e, tomado não sabe por que pudor se manteve longe de Lunaris. De certa forma, sentia aquela idéia de tornar Lunaris real como uma traição. Mas não via outra alternativa. Ou melhor: não queria pensar na outra alternativa, que seria deixar-se absorver, pouco a pouco, pela irrealidade. Fez então uma experiência. Numa manhã de terça-feira, dirigiu-se para lá, descrevendo, para si próprio, cada passo daquele território. A porta amarela com manchas pequenas de tinta azul, trinco preto, chave prateada. O corredor de ladrilhos amarelos, entre paredes brancas; fios de telefone na lateral esquerda; a pequena sala no fundo do corredor, na qual se encontrava um sofá-cama de forro também amarelo com desenhos de flores e duas almofadas; uma estante corde-rosa ao fundo, com volumes dentre os quais pôde distinguir uma coletânea de ensaios do The New York Reviews of Books, editado pela Paz e Terra, Obras Escolhidas III, de Walter Benjamim, pela Brasiliense, dois volumes da obra completa de Jorge Luís Borges, pela Editora Globo, e História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi, pela Cultrix. Mas o que aqueles livros estavam fazendo ali? Nunca os havia visto antes! Aproximou-se do homem, seu velho conhecido. Chamava-se... Hélio. Estava sentado, um pouco reclinado para trás, numa cadeira de balanço. Os cabelos um pouco avermelhados refletiam a luz do sol, que penetrava no recinto por uma clarabóia. Tinha a camisa de lã quadriculada colocada, de forma um tanto desleixada para dentro das calças azuis de brim. Os olhos, sob as sobrancelhas espessas, o fitavam com uma expressão irônica. Podia jurar que ria dele, embora sua boca permanecesse séria. 144 O ambiente todo trazia uma sensação de paz que era quebrada, entretanto, pelo olhar de Hélio. Não sabia porque, não quis levar a visita adiante. Cumprimentou-o de longe e deu meia volta. Alguma coisa lhe dizia que tal visita era impossível, simplesmente porque aquele lugar não existia. - Ora bolas! – pensou. – E que importa se existe ou não? Por acaso as paisagens do sertão, descritas por Graciliano, em Vidas Secas, existem, de fato? Por acaso existe Fabiano e a cachorra Baleia? E, no entanto, como são reais! Mas, certamente, Graciliano jamais conversou com Fabiano, nem o visitou para receber conselhos sobre este ou aquele assunto. O problema, pensou, era que Lunaris estava penetrando demais na sua vida, no seu cotidiano. Talvez, o que mais afligia a Alberto era a impossibilidade de compartilhar suas dúvidas a respeito de Lunaris, e dos lunarianos, com outras pessoas. Certa feita, enquanto caminhava com Judite pela Orla Marítima, no trecho entre o Jardim de Allah e o Aeroclube, num belo final de tarde, tentou falar-lhe de suas apreensões. Mas não ousou referir-se a Lunaris. Aquele era, talvez, o seu único segredo. - Você, por acaso, já se viu freqüentando um determinado lugar que... um lugar que não existe... Ou melhor: que só existe em sua imaginação? - Eu tenho mais o que fazer – disse ela, secamente. E, após uma pausa, acrescentou, com um riso amistoso, quase imperceptível. – Você não existe. 145 CONDENADO À SUBJETIVIDADE Alberto resolveu adiar o projeto para realizar Lunaris. Mesmo assim foi até lá, pela escada, àquela hora mergulhada em sombras, onde encontrou Hélio. Acendeu a luz para poder perceber-lhe melhor as impressões. Pensou em falar-lhe do projeto, mas, temendo sua ironia, preferiu deixar o assunto de lado. Falou-lhe, então, dos seus projetos de livros, todos eles irrealizados. Hélio levantou a hipótese de que sua resistência a escrever era conseqüência do simples fato de que ele não encontrara ainda a sua linguagem. “O modelo que você tem de literatura inibe seus esforços”, disse. Acrescentou que Alberto jamais escreveria um texto realista, com descrições de pessoas e ambientes. Isto, disse ele, estava além de suas forças e todo esforço nesta direção seria inútil, uma perda de tempo. - Você tem de encontrar a sua forma de expressão, seja ela qual for – acrescentou. Alberto percebeu, ao sair de lá, que ele, com aquelas poucas palavras, colocara uma pedra no caminho das suas intenções realistas. Percebeu que ele, com aquelas poucas palavras, o condenara à subjetividade. Talvez, a ele mesmo. O que lhe restava, então, fazer? - Se a objetividade lhe é negada, por que não navegar pelas subjetividades? Mas isto é possível? – pensou. Naquela mesma noite, resolveu fazer a experiência. Encontrava-se deitado, sozinho, em seu quarto. Eram dez horas e trinta minutos, o apartamento estava deserto e ele percebia, com uma vaga estranheza, que, sem os ruídos e movimentos familiares de sua mulher e filhos, que estavam viajando, as coisas à sua volta pareciam existir de uma outra forma. Era como se deixassem de ser objetos para tornar-se algo diferente. Como enigmas. O próprio espaço entre um objeto e outro ganhava nova consistência. Tornava-se quase material. Sim, um estranho mistério emanava das coisas à volta de Alberto. Não era a primeira vez que ele tinha aquela sensação. Isto acontecia sempre que Judith e as crianças viajavam. Sempre que ele ficava sozinho. Era como estava, agora, ali, em seu apartamento, na Anthenor Tupinambá – estreita e movimentada rua situada entre as avenidas Magalhães Neto e a Paulo VI, na Pituba. Alberto fixou o olhar na Naissance de Vénus, de Cabanel, na parede do quarto, à sua frente. Foi quando percebeu, subitamente, nos prédios em torno, ruídos aos quais nunca havia antes prestado a atenção. Risinhos no Proteu. Uma voz de criança, que pede insistentemente alguma coisa (não sabia exatamente o quê) no Alpes. Um gemido um pouco mais longe. A Pavana, de Ravel, que veio do segundo andar do Tairu, dolente e melancólica, atravessou a 146 varanda, circulou pelos corredores, deslizou suavemente no playground e ganhou a noite, misturando-se ao latido dos cachorros. E ao ruído de um e outro carro, que passava. Outros sons, de outros apartamentos, de outros prédios, ganhavam nitidez: um homem discutia com uma mulher, na Carmem Miranda. Alguém sussurrava palavras indecentes na Rubem Berta. Uma mulher gemia em algum lugar da Amazonas. Um homem mentia na Alameda das Algarobas. Dezenas, centenas de televisores gritavam, em uníssono, em todas as ruas. Os sons do bairro, de cada casa e apartamento do bairro, o alarido das ruas, as vozes nos pontos de ônibus, nas padarias, restaurantes e boates multiplicavam-se. E ampliavam-se para todas as casas, ruas e lojas da cidade. Salvador era, agora, uma grande e interminável fonte emissora de sons, que Alberto, entre surpreso e atemorizado, acessava a seu bel-prazer. Aos poucos, não sem relutância, ele aprendia a sintonizar os sons que mais lhe chamavam a atenção. Questionou-se: teria o direito de invadir assim a privacidade das pessoas? Pensou em desistir, mas que mal pode haver em deixar sua mente flutuar no espaço/tempo? Quem poderia acusá-lo do que quer que fosse, se ele nada mais fazia do que ficar ali, deitado em sua cama, na solidão do seu quarto, de olhos fechados? Ouviu, então, mais e mais vozes, como se todas as pessoas da cidade estivessem no seu quarto. Ouviu palavras de afeto e de advertência; ouviu xingamentos, confissões (algumas embaraçosas) e ameaças; ouviu lamentações e gritos de alegria, de gozo, de pavor, até que já não conseguia captar apenas vozes, mas também leves, sucintas, rarefeitas vibrações de pensamentos... Eram como os sinais que ouvia, no pequeno rádio de pilha do pai, nos distantes anos 70, quando tentava sintonizar emissoras de outros países: vozes em línguas desconhecidas que surgiam e desapareciam, a um mínimo toque no sintonizador, em meio a chiados, até serem novamente recuperadas, numa luta que se prolongava noite adentro. Meu Deus!, pensou Alberto, receoso de vir a ser inundado por tantos pensamentos. Lá estava, por exemplo, a mulher, metida num barraco miserável, na Avenida Suburbana, pensando no que iria dar de comer aos filhos, ao amanhecer; o rapaz que, após ser arrancado de casa e fuzilado por “justiceiros”, morria à mingua, lentamente, na noite escura; o jovem que pensava em matar-se e que (felizmente) desistiu do ato desesperado; homens poderosos que planejavam um crime. E, do fundo silencioso da noite, a mente que o observava. A mente que via o pensamento de Alberto e que já sabia quem ele era. Alberto abriu os olhos. Teve medo. Teve muito medo. Teria sido um sonho? Oh, a noite escura... 147 A CONFRARIA Na manhã seguinte, recebeu a visita de Hélio, que, pela primeira vez, aproveitando-se talvez da ausência de Judite e das crianças, viera de Lunaris para visitá-lo. Enquanto tomavam café, Alberto falou-lhe da estranha experiência. Então era mesmo possível que pudesse sintonizar seu pensamento nos de outras pessoas – e, o que era pior, que alguém pudesse sintonizar seu pensamento, inclusive sabendo quem era, onde vivia? Hélio garantiu-lhe que sim, havia, de fato, pessoas que tinham aquele poder e que, espalhadas pela cidade, faziam parte de uma confraria misteriosa. Eles nunca se encontravam pessoalmente, esta era uma das normas que seguiam rigorosamente. - O pensamento é um caçador – disse ele. E depois, como se dissesse algo sem importância, acrescentou – Por isso, é preciso cuidado com o que se vai encontrar. À noite, Alberto prometeu a si próprio que não faria mais aquela estranha prática. Sabia que era sensível, ou melhor, que era sensitivo, que se deixasse seu pensamento vagando solto, sintonizaria, inevitavelmente, algo. E que este algo nem sempre poderia ser o que esperava encontrar. Ligou a televisão, ficou com o controle nas mãos, passando para um e outro canal. Sua atenção, entretanto, não se fixava em nada. Desligou a TV, pegou um livro na estante – o volume Obras Primas dos Contos de Terror, da Livraria Martins Editora, de 1962. Leu um belo conto de Prósper Merimée, “A Vênus de Ille”, mas assim que o terminou, deitado na cama, sozinho, no quarto, fechou os olhos e, ao sentir que o seu pensamento começava a vagar por uma zona penumbrosa, tornou a abri-lo. Olhou o quadro de Cabanel, a porta do guarda-roupa onde estava pendurado uma camisola de seda de Judite, e no chão uma cesta de lixo vazia, e nas paredes as sombras do ventilador de teto, e num canto, sobre uma mesinha de cabeceira, o Contraponto, de Huxley, que mantivera ali, fazia duas semanas, para a leitura que, entretanto, vinha adiando. E, mais uma vez, pensou que não faria mal fazer a experiência, que era uma tolice deixar-se dominar por superstições bestas. E, com um sorriso nos lábios, fechou os olhos, mais uma vez, e deixou seu pensamento vagar a esmo: identificava os sons da rua, e achou estranho pensar que os identificava, não pelos ouvidos, mas pelo pensamento, que lhes dava um sentido. Lá estava, o porteiro do prédio vizinho, comentando em voz baixa, com a empregada do Santa Lúcia, a respeito do filho de um dos moradores, que levara escondido, para casa, uma rampa de skate que apanhara não sabia aonde. Fixando a atenção no prédio em frente, percebeu que o vizinho, pai de duas lindas adolescentes, sussurrava algo no ouvido de uma colega de Mestrado, na Faculdade de Administração da Universidade Federal da Bahia, que levara para 148 conhecer a família. Ela era bem mais jovem que ele, e, aproveitando-se talvez de uma saída da mulher dele, para a cozinha, devolvia-lhe alguns agrados. Estava agora diante dele. Podia ver a sala, iluminada precariamente por um abajur; o sofá coberto com um lençol encardido, a porta da cozinha entreaberta, um cãozinho poodle branco, ao canto, olhando para ele (sentiu como se o animal o enxergasse). E antes que Bete, a mulher de Baltazar, retornasse à sala, viu-se deslizando pelo corredor, numa velocidade vertiginosa, atravessando os corredores, os prédios, os quintais, as ruas. E lá estava, agora, numa ruela suja e estreita, numa travessa dos Barris, diante de um portão velho de uma casa antiga. Viu, com riqueza de detalhes, os ornamentos esmaecidos pelo tempo, nos azulejos azuis e brancos, pequenos desenhos de flores e linhas curvas em estilo rococó. E a porta, e o hall, e a sala. E um homem, de seus 35 anos, de olhos grandes e bigode ralo, conversando com uma jovem de seus 22 anos. Falava-lhe da necessidade de levarem a cabo o plano, que ela não podia voltar atrás, agora. Que ele não a deixaria retroceder. Ela, que tinha uns cabelos castanhos iluminados pela lâmpada fluorescente que estava sobre sua cabeça, falava alguma coisa que ele não captara bem, e que por isto mesmo aproximara-se um pouco mais. Podia ver-lhe claramente o rosto, o brilho dos olhos, que lhe parecia ser de medo, o esforço que demonstrava para dissuadir o parceiro do plano, do plano, mas que plano? Pensou em perguntar-lhes, mas no momento mesmo em que deu um passo em direção a eles, sentiu que o quarto, e a lâmpada, e a moça, e o homem, e a cadeira de palha que encontrava-se, à sua esquerda, eclipsarem-se, e, num piscar de olhos, encontrava-se de pé, na rua do Sodré, no centro da cidade. Um ônibus passou próximo a ele, em direção à Praça da Sé. Três meninos de rua cheiravam cola a um canto. Um homem com camiseta azul, encostado num muro baixo, olhava para os meninos e Alberto podia ver-lhe os pensamentos nos quais afloravam facas e escopetas e um desejo que, como uma serpente, sorrateira, deslizava em direção deles mesclados a uma estranha idéia de “limpeza”. Agora cercado de edifícios, Alberto pensava no plano, no plano, que, por algum motivo que lhe era estranho, achava que devia impedir que se realizasse. Foi com este pensamento que se viu, agora, deitado na sua cama. 149 NÃO SOU DA GERAÇÃO DOS CÍNICOS Uma pergunta martelava a cabeça de Alberto desde que fizera a experiência, fazia já uma semana. Não retornara a Lunaris e não conversara nada a respeito com Hélio ou com qualquer outro lunariano. Mas a pergunta continuava martelando sua cabeça: a mulher existia, de fato? E, se existia, não corria algum perigo? A que plano o homem se referia e por que ele causava a ela tamanha aversão, quase podia dizer, terror? Após retornar do interior do Estado, para onde viajara com os dois filhos do casal, Judite encontrara Alberto ainda mais taciturno. Ele quase não falava com ela, e quando o fazia era quase sempre para responder, de forma seca e lacônica, a alguma pergunta. Não admitia, entretanto, que houvesse qualquer problema. Apenas estava preocupado com as aulas e o projeto de pesquisa que desenvolvia na faculdade. Mas o fato era que o rosto da garota – os cabelos castanhos, os olhos assustados, a expressão atemorizada que fizera quando o homem lhe falara do plano e a ameaça velada que percebera muito bem na voz e nos gestos dele – não lhe saía um minuto do pensamento. Tentou, mais duas ou três vezes, repetir a experiência, mas não conseguira ser levado àquele ponto da cidade, à rua suja, à casa antiga, à sala, ao corredor. E, ao constatar que não conseguia chegar ao local, pelo pensamento, resolveu que iria, em carne, osso e uma imensa curiosidade. Na tarde de uma sexta-feira, deu uma desculpa qualquer para Judite, tomou um ônibus executivo na avenida Paulo VI para a Praça da Sé, e deixou-se levar, alternando olhares pela janela para o mar, à esquerda, e para o livro (lia uma excelente e pouco conhecida novela de Herman Melville, Bartleby, o escriturário). Alberto saboreava, com especial prazer, as obras pouco badaladas de grandes escritores, como se se apoderasse de uma peça rara, um objeto que compartilharia com alguns poucos garimpadores, como ele. Sentira isto, com grande intensidade, por exemplo, quando lera a belíssima novela O eleito, de Thomas Mann, ou O altar dos mortos, de Henry James. Ou, ainda, o conto O simun, de Horácio Quiroga, ou as novelas O último dia de um condenado à morte, de Victor Hugo, ou Bibliomania, de Flaubert. Podia mesmo citar duas dezenas de obras-primas que jamais eram citados pelos leitores cultos (ele frisava, com ironia, essa palavra). Para ele, pouco valia a leitura de O lobo da estepe, de Herman Hesse, se a esta não fosse acrescentada a leitura de Roshalde ou dos melancólicos contos da fase romântica da juventude do autor alemão. Embora, é claro, não pudesse dizer que se tratavam de obras desconhecidas – não, pelo menos, dos grandes leitores. Borges, por exemplo, considerava o Bartleby, uma das obras mais importantes de Melville, e alguns autores 150 não hesitaram em colocar a novela de Hugo entre as obras-primas do autor. O que lhe irritava um pouco era a mania de hierarquizar as obras e os autores, inclusive acrescentando-lhes os epítetos de mais ou menos “sérios”; ou de “maiores” e “menores”. “Ray Bradbury é um autor menor”, ouvira, certa feita, um jovem escritor de sucesso falar, acrescentando: “Um autor que me empolgou na juventude, mas que não está, absolutamente, entre os grandes”. Para Alberto, o que importava de fato era o quanto uma obra lhe marcara a alma e as entranhas; o quanto lhe encantara e deslumbrara. Lembrava, com êxtase, os momentos maravilhosos sorvidos de obras como Os frutos dourados do sol ou A morte é uma transação solitária, e achava indigno, agora, empinar o nariz e dizer que foi apenas uma experiência da juventude. Alberto era fiel até o fim, mesmo quando, passados os anos e tantas experiências, voltava a uma ou outra obra que já não lhe tocava mais o espírito e na qual podia divisar defeitos que antes permaneceram ocultos. Mas nem por isso referia-se a eles com menos respeito. Podia falar, sim, dos seus defeitos, mas jamais com desdém. Negava-se a cuspir no prato em que havia se alimentado. Às vezes, entristecia-se consigo próprio, como se houvesse perdido, para sempre, uma faculdade rara, que lhe permitia comover-se com algo que já não fazia mais sentido para ele. Isto acontecera, de certa forma, recentemente, com o romance de Fernando Sabino, O encontro marcado, sem dúvida a obra que mais havia marcado a sua juventude. A juventude... onde andaria ela? Onde andaria...?, pensou, olhando pela janela do ônibus, vendo lá fora o mar, os coqueiros balançados pelo vento frio de junho que parecia querer ressuscitar antigos fantasmas. Oh Deus, já não lhe bastava todas as imagens, lembranças, personagens reais e fictícias e sensações que lhe habitavam? Aos 45 anos de idade, Alberto sentia-se, de certa forma, um velho; um homem com experiências suficientes para toda uma vida. Por isso, talvez, não tivesse tanto medo de morrer. Mas tinha os filhos, tinha Judite, os irmãos, os amigos, os livros que pretendia escrever. E alguma coisa lhe dizia que, o que escrevera até então, não seria nada comparado com a sua obra de maturidade; a obra que estava ali, latente, dentro do seu peito, como se dizia antigamente, antes que os cínicos atacassem, com fúria destrutiva, tudo aquilo que, na arte, vibrasse como um sentimento verdadeiro. Alberto preparava-se para sua batalha da maturidade, para o resgate irresoluto do lirismo, dos valores que realmente importam, para a possibilidade de conhecer um objeto (a vida), sem querer execrá-la, destruí-la. Nesse sentido, aproximava-se, de certa forma, do estado de espírito luminoso que animava as obras dos orientais: os poemas de Tagore e de Bashô. A sua Idade Média, como bem lembrou Umberto Eco, em seus Ensaios sobre a literatura, não era a falsa Idade Média “dos séculos obscuros, de cores noturnas e cavas sombras”, mas aquela outra, real, do esplendor do aurum, do ouro que reflete a claridade do mundo. A sua poética, assim o pretendia, não era a que se comprazia apenas no sórdido, no sujo, no bizarro, no anormal. Era a poética da luz. Era a poesia, também, como “paixão metafísica”. Não sou da geração dos porcos, pensou Alberto. Não sou da geração dos cínicos 151 que, tal como um vírus, contamina tudo que toca com seu sarcasmo. Como o narrador de Bartleby, ele acreditava que o mandamento “amai-vos uns aos outros” era uma proteção para quem o seguisse. “Homens já cometeram assassinatos por causa de ciúme, e raiva, e ódio, e egoísmo, e orgulho espiritual, mas nenhum homem, do qual eu jamais tenha ouvido falar, cometeu um assassinato diabólico por causa da doce caridade”. Tal como o velho escriturário, ele também se sensibilizara com a profunda tristeza e melancolia do jovem copista, que se contentava em alimentar-se com bolinhos de gengibre e a ficar olhando, por uma janela, para uma velha parede. E ele, se de fato existisse, se não fosse uma criatura ficcional, certamente se importaria, como Alberto, com o destino daquela jovem mulher, entrevista, num rápido momento, num sonho. Eu, pensou Alberto, sou um homem real, de carne e osso; ele era um personagem ficcional, embora, talvez, não menos real, mas... e ela? O ônibus freou. Havíamos chegado ao fim de linha, na Praça da Piedade, ao lado do Instituto Geográfico e Histórico. Havia chegado ao seu destino. Só faltava descer a ladeira dos Barris e lá, em algum lugar que não sabia exatamente qual, encontrar a casa, bater a porta e cumprir a missão que se havia proposto. 152 EM FRENTE À CASA Rodou os Barris por cerca de 40 minutos, até que encontrou a rua que lhe parecia ser a do sonho. Era uma rua razoavelmente larga, cujo nome, Rockfeller, contribuía para lhe dar um certo ar de nobreza, mas que se mostrava decadente, como quase toda aquela parte da cidade. Após mais alguns minutos, investigando todo o local, viu a casa. Era um sobrado de dois andares, com paredes de cor creme e um pequeno jardim, no meio do qual havia um pé de pitanga e dois pequenos bancos de madeira. Ela existia de fato e isto não chegou a surpreender Alberto. De alguma forma misteriosa, ele sabia que encontraria a casa, mas não tinha – ou não queria ter – certeza quanto à mulher. A existência dela pesaria, de uma forma estranha, no seu espírito. Seria como se, de alguma forma misteriosa, ela desequilibrasse a sua existência, o mundo que vivia, a sua realidade. Por isto, talvez, tenha demorado a se decidir quanto a se deveria ou não apertar a campanhia. Sentia como se um par de olhos estivesse pousado nas suas costas. Naquele dia, Alberto não teve coragem de tocar a campanhia. Horrorizava-lhe a possibilidade de que a mulher viesse atender à porta, que ela existisse. Voltou para casa e, alguns dias depois, entretanto, viu-se novamente postado de frente à casa, agora um pouco mais cedo, no final da tarde, quando a luz do sol poente permitia-lhe vê-la em detalhes: os portões de ferro, com uma pintura levemente descascada; o jardim bem cuidado, onde via, ao lado da pitangueira, as folhas grossas de uma espada-de-ogum; a pintura rugosa, áspera, das paredes; a janela semi-aberta, no segundo andar, na qual estava dependurado um vestido vermelho. Havia um movimento regular de pessoas, na rua em frente, e isto lhe deu coragem para estender bater palmas e chamar. (A ausência de uma campanhia irritou-lhe um pouco.) Teve que chamar mais duas ou três vezes, até que uma mulher gorda, de cabelos curtos e pele morena, apareceu à janela. - Boa tarde. Procuro uma mulher... Não sei o nome dela, mas posso descrevê-la. Ela tem altura média, os cabelos castanhos, até aqui, mais ou menos, aos ombros. Tem a pele branca, lábios vermelhos. - Disseram para você que ela mora aqui? - Não! Na verdade, não tenho certeza que a casa seja mesmo esta. Me falaram de uma casa branca, de dois andares, na Rua Rockfeller... - Mas o que você quer com ela? - Um amigo me pediu que pegasse um material, um texto. 153 - Não sei, moço. Acho que não posso ajudar. Moro aqui sozinha, com meu marido e uma filha pequena. Você já foi aqui na casa ao lado? Moram duas mulheres aí... Mas não são assim muito brancas. Alberto desistiu. Conteve-se para não continuar descrevendo a mulher: Ela tem um sorriso bonito, encantador. É uma mulher bonita, e sua beleza é ressaltada por um ar despachado, até, poderia dizer, um pouco moleque. Veste-se com simplicidade: vestidos leves que lhe ressaltam as formas do corpo, o corpo magro, esguio; que não lhe tolhem os movimentos, que são ágeis, quase de menina. Bem, não posso dizer com certeza que ela mora aqui, mas lembro-me perfeitamente de tê-la visto aqui, há cerca de duas semanas. Não a viu? Não existe esta mulher? Bem, posso estar enganado, mas juro que a rua pareceu-me ser exatamente esta. E a casa... não poderia ter-me enganado. Mas se a senhora diz... Bem, de todo modo, agradeço-lhe as informações. Desculpe-me qualquer coisa. 154 ZONA INTERDITA Ridículo. Alberto sentiu-se ridículo, ao voltar as costas para a mulher. Mais do que isto: sentiu uma espécie gelada de medo, como se, com aquela simples experiência, tivesse ultrapassado os limites do razoável, penetrando, mesmo que por poucos minutos e meia dúzia de palavras e gestos, numa zona interdita. Uma zona aonde nenhuma pessoa sensata deveria ir. Naquela noite, teve um sonho estranho: chegava a um terreno onde sabia haver corpos enterrados, esqueletos semi-insepultos. Munido de uma pá, escavava a terra cinzenta, pútrida, e desenterrava os ossos, empilhando-os, ainda cobertos por pedaços de pele e carnes, e, durante todo o tempo, dedicava-se a limpá-los com uma escova e a poli-los. Mas a sensação que sentia era a de ter se contaminado, definitivamente. Nos dias seguintes o mesmo sonho se repetia, sob novas roupagens. Eram sonhos completamente diversos, e o mesmo: a desventura de um homem que, devido a uma curiosidade mórbida, se encontrava à margem da normalidade, longe das pessoas e coisas que mais amava: um proscrito, um maldito. Impressionou-lhe sobremaneira o sonho que se repetia e que tinha como personagem um estranho lagarto. Escreveu o sonho num caderno: “Eu estava, naquela fresca tarde de agosto, sentado sobre uma pequena elevação de dunas, em companhia de meu irmão mais novo e de minha irmã. Apreciávamos o movimento de carros na avenida, lá embaixo, e conversávamos distraidamente sobre não sei qual assunto, quando vi, esgueirando-se, por entre as moitas de capim, no meio fio, um lagarto grande, verde, com listas pretas e claras, devia ter algo em torno de 1,5 metro. Ele andava, em movimentos bruscos, parando aqui e ali, onde deixava-se ficar, por alguns segundos, até que novamente se movimentava. Como se adivinhando que não via nenhum carro e que não passava, naquele momento, nenhum pedestre, atravessou a rua, sumindo, por alguns momentos, entre a calçada e um banco de mármore, quase virando a esquina. Pensei que iria desaparecer, talvez para sempre, quando disse uma desculpa qualquer para os meus irmãos, que pareciam não ter visto o estranho animal, e, descendo a colina, rapidamente, cheguei à avenida, do lado de cá da estrada, quando o animal acabava de virar a esquina de uma outra rua, perpendicular à que nos encontrávamos. Pensei que não havia mal algum em segui-lo, e apressei os passos, enquanto meus olhos viam os reflexos do sol que se punha lançando uma luz rosa, suave, nas paredes dos prédios à minha esquerda. Ao virar a esquina, deparei-me com o lagarto, que estava imóvel, como uma estátua, à minha direita. Ele permanecia imóvel, com o olhar voltado para a frente, mas eu podia ver que ele, de algum modo estranho, me olhava, numa atitude defensiva. Fiquei, também, por alguns 155 momentos, imóvel, mas logo fiz um gesto, na intenção de me aproximar dele, que rapidamente correu velozmente em direção à outra esquina. Percebi que precisava ser rápido, senão iria perdê-lo. Corri no encalço do animal que, subitamente (pude ver isto quando virei a esquina) assumira uma forma semi-humana: tinha uma postura semi-ereta e corria sobre os dois pés. Continuava, entretanto, com a aparência de lagarto – e pude perceber, com certa aversão, a semelhança dele com um ex-colega de escola, que há muitos anos eu não via. De repente, ao virar a esquina, veio-me a consciência clara de que me havia exposto mais do que era recomendável. Sentia-me como se tivesse dado um passo decisivo para um território desconhecido, como se ele tivesse me atraído para uma armadilha. As ruas estavam desertas. O sol iluminava os muros verdes de casas verdes. Voltei sobre os meus passos, agora com um sentimento de quase pânico. Sentia a necessidade vital de encontrar pessoas iguais a mim, mas pensei que não deveria retornar para o lugar onde ficaram meus irmãos. Senti, com uma ponta de horror, que a minha simples presença poderia contaminá-los, que eles ficariam também expostos ao homem-lagarto. Tomei outro caminho, e outro, e outro. Desci escadas íngremes; corri, beirando o lago, que serpenteava na face leste da cidade; peguei um atalho, entre pés de tamarindo, e, enquanto tentava, desesperadamente, despistar o animal, senti abater-se sobre mim, gradativamente, um sentimento agudo de solidão. Naquela situação, era claro que não poderia contar com ninguém nem com nada mais além dos meus próprios recursos. Sentia-me, também, cada vez mais forte. Corria com uma potência cada vez mais crescente, mas não ousava parar. Não poderia enfrentá-lo, e, embora em nenhum momento houvesse olhado para trás, algo me dizia que ele estava lá. Corri até que o sol desceu atrás das colinas; corri durante toda a noite e madrugada. Retornei cautelosamente para casa, olhando, com o máximo de cuidado, todas as pessoas com as quais cruzava, naquela manhã”. 156 VOCÊ NÃO SABE SOBRE NÓS De repente, numa bela e ensolarada manhã de agosto, Alberto deu-se conta de que havia alguns meses que não retornara a Lunaris. Achou que já era tempo de encontrar-se com um dos seus amigos, mas não quis, o que não deixava de ser um despropósito, encontrá-lo em seu próprio ambiente. Pensou que seria interessante se o encontrasse, por que não?, ali mesmo, em seu mundo. Mas como faria para que ele recebesse a sua mensagem? Não havia nenhum mensageiro, se não ele mesmo, que pudesse ir até lá falar-lhe. Matutou sobre isto durante alguns dias, e teve uma idéia que, inicialmente, pareceu-lhe estúpida, mas que logo se mostrou eficaz. Foi à beira da praia, em Itapuã, e lançou ao mar uma garrafa com uma mensagem em seu interior. Ficou por alguns minutos, não sabe quantos, vendo a garrafa balançando, sobre as ondas verdes, azuis e cinzas, até que desapareceu. No bilhete, endereçado a Hélio, escrevera que estaria, dali a dois dias, sentado sobre uma duna, próximo a uma lagoa, à altura da primeira ponte de Praias do Flamengo. Quando chegou lá, ele já se encontrava no local, sentado na areia, olhando para algum ponto indefinido do mar, a oeste. Sentou-se ao seu lado, em silêncio. - Você me surpreende – disse ele, após alguns minutos. – Não pensei que pudesse vir para o lado de cá. Hélio sorriu, como se dissesse: “São tantas as coisas que você não sabe sobre nós”. Mas não disse nada. Continuou fitando o horizonte, onde, no final da tarde, o sol coloria o firmamento com uma variada tonalidade de cores, entre o vermelho, o rosa e o cinza. - Poucas pessoas conseguem ver toda a gama de cores que uma simples nuvem reflete. Os escritores, particularmente, são muito limitados nesse particular. Acho que é porque, para isto, é necessário uma certa ausência. É preciso não estar aqui para vê-las, entende? Alberto não entendia, mas recebeu as palavras com um certo desdém. Aquilo lhe soava como uma frase de efeito, um artifício. Mas numa coisa ele tinha razão: era mesmo difícil poder descrever toda a riqueza de cores que cambiavam, no céu, enquanto o sol aos poucos declinava no horizonte. Na verdade, faltavam-lhe palavras para definir as numerosas gradações de cor que pareciam beber as formas. Que pareciam ser as próprias formas. - Você quer dizer que, na verdade, você não está aqui? – falou Alberto, por fim. - Eu estou aqui tanto quanto você pode estar lá, em Lunaris – disse ele. E acrescentou, antes que Alberto dissesse alguma coisa: – Mas que importa isto? Voltou-se para Alberto e este pôde, pela primeira vez, observar-lhe a aparência. Podia mesmo descrevê-lo em minúcias, enquanto o olhava, mas era-lhe impossível fazê-lo assim que tirava os olhos dele. Percebera, pela primeira vez, que lhe era impossível ter sua imagem 157 guardada na memória. Ele era apenas, e para todo o sempre, uma idéia, a lembrança de palavras, uma voz sem som. - Eu conheço toda esta região muito melhor do que você, que viveu grande parte da sua vida aqui. Posso dizer-lhe que, atrás daquele muro branco, coberto de limo, a leste, uma pequena aranha devora uma mosca, presa em sua teia. Naquelas pedras, no mar, uma pinaúna se desprende, lentamente, da pedra escorregadia, e afunda nas águas. O menino, que vende castanhas, ali próximo à barraca Honolulu, pensa, com tristeza, que levará para casa meros 12 reais, e que sua mãe o castigará. Estas casas todas... ainda não conseguiram tirar o encanto do lugar. - Eu não consigo esquecê-la – disse Alberto. – Você sabe de quem estou falando. E o que me dói é não saber se ela existe, ou se não passa de um sonho. Mas não foi um sonho: eu estava acordado. Eu estive lá: vi seu rosto branco, seus cabelos castanhos, sob a lâmpada, que balançava para um lado e outro, deslocando as sombras, fazendo dançá-las, como fantasmas. E havia o homem. Ele queria obrigá-la a fazer algo. A vida dela pode estar correndo perigo. E o que eu posso fazer? A casa está lá, mas ninguém sabe dizer nada dela. Talvez porque... ela não esteja lá, agora. O sol se pôs, no horizonte, enquanto a lua surgia, no lado oposto do céu, imponente. As dunas tinham agora uma claridade leitosa. Alberto viu o corpo de Hélio desintegrando-se, na penumbra. Restava somente o vento. Os pássaros. A noite. 158 A MULHER DE LUNARIS Naquela noite, resolveu fazer a experiência, mesmo com a presença de Judite na casa. Após ela ter ido deitar-se, ficou até mais tarde no escritório, lendo O jogador, de Dostoievski. Mais tarde, quando sentiu que todos dormiam, fecho o livro, encostou a porta do escritório, abaixou a luz, até que ficasse mergulhado numa penumbra, fechou os olhos e... Lá estava ele, novamente, diante da casa. Era ele mesmo, o sobrado de dois andares na rua Rockfeller, podia ver com nitidez as espadas-de-ogum e os bancos, no jardim, a pintura cheia de rugosidade nas paredes. A porta e as janelas estavam fechadas, mas podia ver uma claridade tênue no interior. Não sabia, entretanto, se alguém mais podia vê-lo. Não sabia se, como um fantasma, podia atravessar as paredes e entrar; ou se, como uma pessoa de carne e osso, podia simplesmente bater à porta. Pensou, com algum desconforto, que não podia classificar-se entre nenhuma das coisas existentes: como um ser real ou imaginário; material ou espiritual; bom ou mau. Sabia apenas que aquilo que lhe parecia ser o seu corpo não obedecia a qualquer manifestação voluntária do seu pensamento. Havia, sim, uma intenção, fora ela que o levara ali, mas tudo o que lhe ocorria obedecia a desígnios para ele ainda insondáveis, de forma que as coisas, que aconteciam em espasmos, sempre lhe surpreendiam. Era como se habitasse o interior de uma forma-pensamento – e, de repente, viu a rua, a casa, o jardim, os postes de iluminação, o céu escuro, pois era noite, como um sonho que vivia acordado. Pensou então que deveria fechar os olhos, e abri-los. E “viu” que o simples ato de fechá-los dissolvia toda a “realidade” que estava à sua volta; e que ao abri-los encontrava-se num outro lugar. Lá estava a casa, por dentro: os ornamentos esmaecidos pelo tempo... os azulejos azuis e brancos... os pequenos desenhos de flores e linhas curvas em estilo rococó.. a porta... o hall... a sala... ... a mulher. Ali estava, ela, à distância de dois passos. Podia ver, com espantosa nitidez, o vestido de um azul desbotado, com desenhos de flores; o tecido leve com um caimento que revelava todas as formas do corpo magro e ágil; os cabelos castanhos, com pequenos cachos que caíam sobre o pescoço e os ombros; os olhos, também castanhos, com longos cílios, voltados para um ponto qualquer do telhado; as mãos sob a nuca; as pernas estiradas ao longo do sofá; os peitos, que lhe caberiam perfeitamente nas palmas das mãos, arfando levemente; os lábios entreabertos; os pelos dourados que desciam pelo rosto, próximo às orelhas; os braços rijos, mas delicados, estendidos ao longo do corpo, as mão longilíneas apoiadas nas coxas; os pés, pequenos, calçados por meias soquete brancas com desenhos azuis... e enquanto a olhava, tudo em volta mergulhava numa zona de penumbra na qual mal podia vislumbrar a forma dos objetos. E, de repente, sentiu como se estivessem ambos suspensos no espaço, como formas pura, sem 159 substância, sem materialidade. Por isso, não pensou em tocá-la, nem falar-lhe, pois qualquer gesto ou palavra quebraria aquele momento de encanto. 160 E NO ENTANTO... Ao despertar, na manhã seguinte, em sua cama, Alberto indagou-se se havia de fato ido até aquele lugar, ou se tudo não passara de um sonho. Judite já havia saído para o trabalho; seu filho, para a escola. A empregada chegava naquele exato momento: ouvia com bastante nitidez a chave rodando na fechadura; os cachorros fazendo festa; os passos; a luz que penetrava pela janela; um carro que passava na rua em frente. Sentia-se bem ao perceber que o encanto da noite anterior ainda não se diluíra completamente e que os seus sentidos estavam num estado anormal – ou não seria, ao contrário, aquele, o estado normal – de sensibilidade? Penetrara numa zona numinosa, carregada de energia intensa, da qual retornara com as baterias carregadas. Aos poucos, Alberto acostumava-se com a idéia de que a mulher de cabelos castanhos, que ele vira com tantos detalhes em sua última incursão, não existia, ainda – e que tornaria a encontrá-la. Isto lhe parecia inevitável, e já não lhe assustava esta possibilidade: a ele fora dada a misteriosa missão de fazê-la existir. Até ontem esta idéia o deixava perturbado, mas a visão que guardara dela, ainda que pouco nítida, inoculava-lhe a força necessária para continuar sua busca. A idéia de que estaria mergulhando mais e mais em um mundo insólito não o assustava mais. Mas não se precipitou. Tinha que manter as aparências, ou botaria tudo a perder. Afinal de contas, ainda tinha mulher, filhos, um trabalho, amigos, embora estes parecessem cada dia mais distantes. Judite parecia olhá-lo com crescente desconfiança. Chegou a dizer-lhe que o notava distante, que já não o reconhecia. Faltou dizer o que notou em seus olhos: que tinha medo. Nas semanas seguintes fez várias programações com ela: foram, com um casal amigo, ele professor de jornalismo, ela psicóloga, assistir a filmes nos cinemas de arte da cidade – o do Museu Geológico, localizado no corredor da Vitória; ao Cine Bahiano de Tênis, na Graça; à Sala Walter da Silveira, nos Barris. Depois iam comer comidas mexicanas ou bolivianas, no La Khantuta, na Pituba. Adorava a língua com molhos picantes, que serviam às sextas-feiras. - Você está gostando de ensinar? – perguntou Cláudio, numa daquelas noites, sentados a um canto do La Khantuta: um pequeno pátio, ao lado da lanchonete. - Gostar não é bem o caso. Não ensinaria, se não dependesse disto para sobreviver. Mas venho me adaptando bem, quando os alunos deixam. Cláudio sorriu: O pior é que eles parecem estar cada dia menos interessados em nós, professores. Somos uma espécie de efeito colateral na fórmula que os levarão, sem maiores esforços, a alcançarem o sucesso e a glória. Você sabe, eles não almejam menos que isto, disse Cláudio. De alguma forma misteriosa, que não implique em esforços de qualquer natureza, eles 161 chegam às faculdades como uma concessão para que possam pertencer ao seleto clube de médicos e advogados milionários, de escritores famosos e apresentadores da Rede Globo. E quando começam a despertar para a dura realidade de que, em sua grande maioria, sequer seguirão na profissão para a qual enterraram sete a oito anos numa faculdade, adivinhem em quem eles porão a culpa? Alberto percebeu que Cláudio não estava nos seus melhores dias. Jaqueline explicou: - Não levem muito a sério o que ele diz. Ele sofreu um golpe muito duro na avaliação que os queridos alunos, ou os meninos, como ele os chama, fizeram dele. - Disseram que eu não tenho didática – disse Cláudio bebendo um gole de cerveja, o qüinquagésimo terceiro desde que entraram na lanchonete. Ora, mas para que diabos interessa a didática! - Disseram que as aulas dele eram chatas, maçantes, que a turma não agüentava ouvi-lo lendo textos intermináveis. Foram unânimes em acusá-lo de atrasar quase todas as aulas e de faltar outras tantas. Alguns, entretanto, admitiram que ele é um professor esforçado. E uma boa pessoa... Alberto riu: - O pior de tudo foi este esforçado. Tiraram dele a possibilidade até de ser um mau professor por convicção! - O pior era que ele vivia se gabando que era adorado pelos meninos. Sem falar nas meninas – disse Jaqueline enfatizando esta última palavra. – Aliás, as meninas é que parecem ter sido as mais severas. Logo elas que vivem se desmanchando para ele, enviando e-mails com declarações do tipo: “Você será sempre o meu professor”. E agora... - Mas o que houve? Você sempre disse que seus alunos sempre gostaram de você. Que os ex-alunos mantêm uma relação de carinho e amizade – disse Judite. - O problema é que antes, não havia a tal avaliação. Uma avaliação, ainda por cima, anônima. - Eles são todos uns falsos! – disse Cláudio, que ficara, até então, em silêncio, ouvindo o que diziam dele. Pra sintetizar o caso: Cláudio tivera, ao longo do semestre, algumas arestas com os alunos, que conversavam durante sua aula, entravam e saíam da sala, falavam em voz alta, copiavam trabalhos na Internet. E, o que era pior, não aceitavam admitir a própria ignorância. E viviam pressionando-o para aumentar as notas, tirar as faltas, prorrogar os prazos para a entrega dos trabalhos. E, no momento em que não cedia, corriam para o coordenador do curso, para se queixarem dele. - São uns ingratos! Uns ignorantes! 162 O “X” da questão, disse Cláudio, é o fato de que, nas faculdades particulares, simplesmente inexiste o vestibular como forma de seleção. Não sei nem para que existe o vestibular, se todos os que o fazem, passam! Então somos obrigados a nos defrontar, num curso superior, de jornalismo, com pessoas que nunca leram um livro na vida – e que nem sabem escrever. E, se vocês pensam que estou exagerando, vejam este trabalho que passei para um aluno. Após exibir um documentário sobre a propaganda nazista, intitulado Arquitetura da destruição, pedi-lhes que fizessem um texto analisando aspectos ideológicos da propaganda feita pelo nazismo. Veja o que este rapaz escreveu, disse retirando do bolso da calça um pedaço de papel. ............................................... Seguiu-se um instante de silêncio. Em seguida Alberto falou, com um sorriso sutil, quase imperceptível. - Só faltou chamar Mussolini de Mussarela. O que não estaria muito longe da verdade, considerando-se que ambos são originados de uma mesma região. - Naturalmente, tive uma conversinha com o rapaz. Aconselhei-o, sinceramente, a deixar o curso. Teria mais futuro como bioquímico... ou como enfermeiro... O problema, acrescentou Cláudio, é que as faculdades particulares estão se multiplicando incrivelmente nos últimos anos. Isto faz parte, dizem, do processo de democratização do ensino superior. Mas confesso que tenho muito receio do que possa vir a acontecer quando esses profissionais chegarem ao mercado de trabalho, o que, aliás, já está acontecendo. Alberto pensou nos seus alunos e achou que, apesar dos pesares, tivera mais sorte: conseguira um bom relacionamento com os “meninos”, que, pelo menos em sua maioria, mostravam-se interessados no curso e razoavelmente preparados. Havia uma atitude respeitosa por parte deles e pareciam mesmo admirá-lo, embora, de fato, nunca houvesse sido avaliado. Ele era um professor à moda antiga: não tinha propriamente uma didática; raramente escrevia informações no quadro; jamais pensara em usar equipamentos modernos (data show, vídeos, slides etc.). Suas aulas consistiam de conversas, entremeadas pela leitura de textos e comentários. Ao contrário dos alunos de Cláudio, estes apreciavam a leitura, em voz alta, dos textos indicados para o curso. Nem tudo estava perdido! Também não fazia avaliações através de provas objetivas. Dava temas para os alunos desenvolverem e os discutia individualmente, com um deles. Observava neles um interesse sincero em aprender e não um mero esforço para obter um diploma. Falou sobre isto a Cláudio, que soltou um longo suspiro. - Você é um homem de sorte! 163 A conversa com os amigos servira para dissipar um pouco as sombras que insistiam em obscurecer os dias ensolarados de Alberto. Na verdade, ele tinha tudo para se sentir um homem realizado: um bom emprego, uma bela mulher, um filho saudável de 18 anos (com todos os testes que a saúde, nesta idade, propicia), uma boa casa, amigos fiéis; adorava a sua cidade, não a trocaria por lugar algum do mundo. Gostava de si mesmo e do seu passado, isto é, no que a sua imaginação o transformara. Não havia traumas em sua história, nem grandes arrependimentos. Todos os dias passava a sua vida a limpo e nada havia nela que o estorvasse. Alberto sentia-se atravessado por seus inúmeros afetos – dentre os quais incluía, com destaque, seus irmãos, tios, primos, a empregada, os cachorros, os passarinhos que pousavam, todos os dias, nos galhos da mangueira que havia em frente à sua casa; até as formigas que nada tinham em comum com as assustadoras formigas do conto “O anão”, de Lygia Fagundes Telles. Podia ainda enumerar algumas dezenas de amigos íntimos, vivos e mortos, que sequer sabiam da sua existência, mas com os quais compartilhava uma alegria profunda e terna: Érico Veríssimo, Fernando Sabino, Monteiro Lobato, James Hilton, John Steimbeck, Sosígenes Costa, Graham Greene, Cyro dos Anjos, Vinícius de Moraes, Gabriel Garcia Márquez, Julio Cortazar, Juan Julfo, Jorge Luís Borges, Aldous Huxley, Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Chico Buarque de Hollanda... E no entanto... oh! Lá estava ele, alimentando relações com pessoas irreais que, ao seu modo, negavam todo este mundo de luminosa aparência. Alberto, se quisesse voltar ao passado, poderia descer as escadas do tempo, penetrar no bosque profundo das suas memórias mais longínquas; conversar com todos os que já foram lacrados no baú da memória. Poderia tirar, um a um, todos os personagens que fizeram parte da sua vida. Não precisaria inventar nada, pois todos estavam ali, ao alcance das suas mãos. E no entanto.... * * * Alberto levantou os olhos e viu que Judite dizia-lhe algo. Fingiu entender o que ela dizia. Era-lhe penoso admitir o seu profundo alheamento. Tentou extrair um sentido das palavras que ouvia, agora, enquanto o carro rodava pela Avenida Octávio Mangabeira. - Cláudio está tão abatido! Não acha uma bobagem ele se deixar abater tanto pela opinião de alguns alunos? - Seria, sem dúvida, se os considerássemos apenas alguns alunos. Mas eu entendo ele: existe, arraigado no íntimo de cada professor, a esperança idiota de ter seu valor compreendido pelas novas gerações. Ao mesmo tempo em que os tratamos com certo paternalismo ou mesmo condescendência, sabemos que serão eles quem dará as cartas no futuro. A verdade é que precisamos deles talvez mais do que eles precisam de nós. Por outro lado, sabemos também que 164 eles não têm maturidade ainda para nos avaliar devidamente, a não ser num sentido mais superficial da relação professor-aluno. E isto – esta vantagem – torna-se, na verdade, uma grande desvantagem, na medida em que alimentamos a idéia tola de que somos incompreendidos. Pensamos, com nossos botões: “oh! Eles não tem condições ainda de perceber o nosso valor. Só saberão isto daqui a 20, 30 anos, mas aí será tarde demais!”. Judite olhou para Alberto, de esguelha, com um sorriso irônico. - Isto fica mais complicado ainda quando entra o elemento sexual, não é? Daqui a 30 anos, quando as alunas perceberem o valor do “mestre”, será tarde demais... - Será possível que você só pensa nisto?! Alberto ficava profundamente ofendido com as insinuações de Judite. Será possível que ela só pensasse nisto? - Pobre Cláudio. Acho que ele está chegando na Idade do Lobo... 165 DESDE QUANDO DIZER O QUE PENSA É CRIME? Nas semanas seguintes, Alberto alternou momentos intensos de leitura – lia agora, com bastante entusiasmo, alguns livros policiais de Georges Simenon com o famoso inspetor Maigret, e um interessante romance de Graham Greene, O coração da matéria – com a correção de textos dos alunos e, nas horas vagas, saídas esporádicas com amigos. Judite se esmerava em não deixar tempo livre para ele se entregar a devaneios. Voltou a se encontrar com alguns amigos escritores, que almoçavam todas as quintas-feiras num restaurante popular, no Rio Vermelho. E, às sextas-feiras, à noite, como de costume, saíam com algum casal amigo para assistir a filmes e a peças de teatro. Depois iam comer num restaurante japonês, mexicano ou boliviano. A conversa terminava sempre despencando para o tema habitual: a literatura. - Acho que estou ficando velho – disse Marcelo, que, como Alberto, já dobrara os 40 e caminhava célere para tornar-se um cinqüentão. - Bem, isto não é nenhuma novidade. - Não me entenda mal. Não se trata de limitações físicas. Neste sentido, continuo sendo o mesmo Marcelo de há vinte, trinta anos atrás. (Alberto riu e futucou o braço de Marlene, mulher do amigo.) Falo sério. Neste ponto, a velhice não me assusta. O grande problema é que me sinto, a cada dia que passa, completamente inadaptado a este mundo. Leia-se: a esse conjunto de idéias que nos são enfiadas goela adentro como se fossem muito normais. - Acho que ele vai falar da faculdade – disse Marlene, que, como Alberto e Judite, conheciam de cor e salteado a implicância de Marcelo com os chamados Estudos Culturais que predominava nas faculdades de Letras, especialmente no Instituto de Letras da Ufba, onde lecionava a disciplina Literatura Brasileira. - Antigamente você ia estudar Letras, naturalmente, porque gostava de literatura, assim como se supõe que quem estude Física, ou Matemática, ou Engenharia, ou o diabo que o carregue, goste de Física, Matemática ou Engenharia. Mas o que menos parece existir, hoje, no Instituto de Letras são pessoas – professores e alunos – que gostem efetivamente de literatura. Em vez de nos dedicarmos a ler textos literários de qualidade, temos agora que passar horas falando sobre minorias sexuais, questões étnicas e, o que é insuportável, autores absolutamente inexpressivos, que foram relegados ao esquecimento, segundo dizem, porque eram mulheres, gays, lésbicas, negros, índios, motoristas de caminhão ou sei lá mais o que. Virou uma febre essa compulsão de se resgatar aqueles que não têm voz. Mas, pelo menos até agora, pelo que eu saiba, não se encontrou um só autor mais significativo, isto é, em termos literários. Mas, desculpe, esqueci que isto, para eles, não tem importância nenhuma. O que importa agora é o 166 valor sociológico, antropológico, político, lingüístico. Ou, principalmente, as tais questões de gênero. - Você está exagerando, Marcelo. Existem muitos estudos que são feitos hoje na universidade sobre autores... - Sim, continua-se dando infinitas voltas sobre as obras de alguns eleitos, sem que, aliás, se tragam muitas novidades. Enquanto isto, uma infindável lista de escritores permanece esquecida da Academia. E outros tantos que deveriam efetivamente ser “resgatados”, continuam no limbo do esquecimento simplesmente porque não são mulheres, gays ou negros. Marcelo pontuava agora suas frases com grande ênfase e gestos largos que chamavam momentaneamente a atenção dos clientes do restaurante, que passavam. - E o pior de tudo é a chatice mortal dos textos que nos impõem. Deus do céu! Para eles, um texto de crítica ou de teoria literária só tem valor se vier embalado numa linguagem pedante, confusa e empolada. Já vai longe o tempo em que você tinha o imenso de prazer de ler obras como O castelo de Axel, de Edmund Wilson, ou os belos textos de crítica de Julio Cortazar ou mesmo, em alguns casos, de Umberto Eco, que tem também seus momentos indigestos. - Marcelo, limpe a bochecha... - Heim? - Tem um pedacinho de comida na sua bochecha! Alberto sentiu o impulso de limpar a bochecha de Marcelo, mas se conteve. Achou que seria íntimo demais. E, afinal, para que servem as esposas? - Obrigado, querida! Por alguns segundos ficaram todos olhando para um ponto qualquer diante deles. - Onde eu estava mesmo? Alberto concordava, em parte, com os argumentos de Marcelo. Faltava-lhe apenas energia suficiente para se indignar. Há alguns anos resolvera não se indispor com as colegas do Departamento de Teoria, que tratavam aquelas questões dos Estudos Culturais como um feudo, em torno do qual instalaram pontes levadiças e poços repletos de crocodilos famintos. Para elas, tudo o que não estivesse circunscrito por suas teorias fortificadas não passava de idéias “conservadoras”, “ultrapassadas”. Descobriu, finalmente, que a melhor atitude era a de simplesmente concordar com elas e, um segundo depois, esquecê-las. Estudar aquelas questões era apenas o preço que teve que pagar para tirar seus títulos de mestre e doutor, da mesma forma que, para tirar dinheiro no caixa eletrônico precisa pegar uma fila. Quanto aos conhecimentos que o obrigaram a adquirir no instituto, limitava-se a deixá-los guardados no bolso da algibeira para retirá-los sempre que, numa conversa ociosa qualquer, precisasse mostrar-se atualizado. 167 O que mais o incomodava, entretanto, era a forma como muitos dos estudiosos da literatura consideravam-se os donos da bola sem que tivessem escrito um único poema, conto ou romance que prestassem. E, para que não fosse possível apontar a fraude que representavam, detonaram com o próprio conceito de valor – e, sobretudo, daquele que poderia emitir um juízo de valor; ou, mais ainda, do próprio lugar deste. O próprio conceito de “prestar” tornara-se um conceito arcaico. E ao pensar nele, Alberto nada mais era do que a peça empoeirada de um ridículo museu. Abaixo com os valores absolutos! Tudo é arte! O autor – pobre coitado – que ainda possuía a ilusão de emitir algum juízo sobre sua obra fora relegado à condição de um mero transmissor. Que ficaria melhor, diga-se de passagem, se não se aventurasse a falar sobre aquilo que menos conhece: a sua própria obra. No carro, de volta para casa, com Judite, a imagem desesperada de Marcelo voltava-lhe mais uma vez – com um não-sei-que de ridículo – à sua mente. Lembrava-se dele dizendo: - Eu perdi o gosto de escrever. Pior: perdi o gosto até mesmo de ler! Depois que tive a desventura de ler esses textos de teoria literária, nos quais os gênios esmiúçam a ideologia e a linguagem dos textos literários, comecei a achar que toda a ficção e a prosa que nos foram legados pelos pobres e miseráveis autores não valem grande coisa. O que vale é o que se escreve sobre eles. Talvez, excetuando-se um Joyce, um Guimarães, uma Virgínia Wolf, um Rimbaud, um Pound e uma Clarice, a grande maioria são pobres coitados que acreditavam na literatura como narrativa, como possibilidade de se contar uma boa história. Escritor é apenas aquele que revoluciona a linguagem. Aquele cujo peso da obra está mais no significante do que no significado. Ora ora, me desculpem, mas eles deviam era tomar no cu! Alberto, sobressaltado, olhou discretamente para os lados, para ver se não havia alguma professora do Departamento ali por perto. Marcelo já estava, francamente, extrapolando. Com aquela frase ele os deixava duplamente complicados: além de horrorosas e reacionárias peças de museu, eles passavam a ser politicamente incorretos. Afinal de contas, “tomar no cu”, além de ser uma expressão muito feia, denotava um preconceito explícito em relação às minorias gays, que, a bem da verdade, já não eram tão minoritárias assim. - Marcelo extrapola demais quando passa do terceiro copo – disse Alberto. - Ora! Ele só estava dizendo o que ele pensa! Desde quando isto é um crime? - Desde quando ele está ofendendo as minorias. - Que preconceito, Alberto. Desde quando “tomar no cu” é uma ofensa? - Desde quando isto é dito como uma ofensa, Judite. Agora vamos mudar de assunto? 168 PROPÓSITOS OCULTOS Afinal de contas, mandar alguém tomar no cu por pensar diferente de você é uma ofensa? Ou melhor: é mais ofensivo do que mandar alguém “tomar banho” ou “catar coquinho?” Para quem não acha nada demais, muito pelo contrário, tomar no cu é certamente muito melhor do que ficar sem tomar banho ou ter o trabalho desgraçado de catar coquinho. Alberto ficou assombrado com o baixo nível dos seus pensamentos, quando acordou na manhã seguinte. Tudo aquilo, entretanto, tinha a grande vantagem de ocupar a sua cabeça oca. Enquanto pensava naquelas polêmicas absolutamente insignificantes, não correria o risco de sair por aí conversando com pessoas inexistentes, mergulhado em labirintos de sabe-se lá que espécie de tramas, envolvendo belas mulheres que necessitavam dele para existir. Alberto sabia que as discussões com Cláudio e com Marcelo estavam muito longe de esgotar os assuntos, que a crítica cultural podia trazer questões de interesse. Quantas vezes ele mesmo não colocara em dúvida as diretrizes do chamado bom gosto que delimitavam o seu modo de pensar e de avaliar? Não já se flagrara, diversas vezes, percebendo valor e altos significados em modelos e expressões considerados de baixo nível, de mau gosto, superados? Mas aceitava essa relativização até um certo ponto. Além dele estava o abismo da banalização. O banal instalavase, perigosamente, na cultura, quando o diário de madame de tal, no qual ela derramava seus lugares-comuns íntimos, é colocado em pé de igualdade com as melhores páginas de um Machado de Assis. Se ao autor já não cabe nenhuma autoridade sobre a sua obra, e ao crítico quaisquer autoridade – ou a capacidade de distinguir valores entre “a” ou “b” – que diabo vale a universidade, que seria, em primeira e última instâncias, um centro de saber e de aprendizado? Mas já não existe sequer o centro... E, afinal de contas, quem pode garantir que Machado de Assis é o bam bam bam? Judite e Marquinhos, seu filho, haviam saído. Alberto tomou um suco de laranja e foi caminhar na praia. Sentia-se fortalecido com todas aquelas bobagens. Nada daquilo o levaria a lugar algum, mas sabia que o simples fato de lidar com conceitos e questões familiares, o fazia sentir-se colocado nos eixos. E quanto mais se sentia fortalecido, mais sentia crescer dentro dele a percepção da inevitabilidade de seus propósitos ocultos. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, voltaria àquela casa e, a despeito de todos os riscos, encontraria, mais uma vez, aquela mulher. 169 O URSO MELANCÓLICO Bem... feitas todas essas considerações e circunlóquios, Alberto dispusera-se, mais uma vez, não sem um certo estremecimento íntimo, a conversar com Hélio. Mas como contatá-lo, se não estava disposto, pelo menos não por enquanto, a retornar a Lunaris? Funcionaria lançar mais uma vez garrafas ao mar? Preferiu um outro método: escreveu um bilhete, fez um aviãozinho com a folha de papel e lançou-o, à noite, quando ninguém o observava, do alto de um edifício, na Barra. O avião, tal como a gaivota da crônica “Sobrevoando Ipanema”, de Paulo Mendes Campos, deu um “vôo quase rasante” sobre as ondas, próximas ao farol (na crônica era uma falésia da Avenida Niemeyer), com suas “longas asas armadas na corrente aérea que virava do Sul, lenta, levando o seu corpo leve e descarnado, seu esqueleto pontiagudo, geometricamente estruturado para reduzir ao mínimo a resistência do ar e da água”. Bordejou as “rochas morenas e suadas”, cruzou a avenida Oceânica – “um pouco mais acima os automóveis coloridos, (...) à direita o azul, embaixo as espumas leitosas”. Foi arrebatado por uma corrente de ar, ganhou impulso para o alto e, finalmente, desapareceu, na praia, por entre os arrecifes. Dois dias depois, lá estava Hélio, com seus cabelos grisalhos, sentado próximo à jaqueira centenária, no Parque Zoobotânico de Salvador, o Jardim Zoológico - De qualquer forma que a gente lhe chama, você termina vindo – disse Alberto, com um sorriso maroto. Não dá para acreditar. - O fato de eu estar aqui não tem nada a ver com o seu aviãozinho – disse ele, com um ar ofendido que, aliás, não combinava muito com a sua condição de espectro. - Por favor, não se ofenda. Na verdade, eu é que não pareço girar muito bem da bola. Mas isto não tem importância.... - Bem... Vamos ao que interessa: o fato é que eu preciso vê-la, pelo menos mais uma vez. Preciso me certificar que ela vai estar bem. Se ela existe. Se ela sabe... bem, se ela sabe quem eu sou. Hélio riu, Alberto não entendeu por que. Mas seu orgulho não permitiu que perguntasse. - Hélio, quem é ela? Ele o olhou de lado, com um que de ironia, assim lhe pareceu. Não respondeu. Recomendou que ele fosse, naquela mesma noite, às 20h37, até a frente da casa, nos Barris. Que ficasse lá durante uns 13 minutos. E pronto. Deus não joga dados, disse, por fim, citando Einstein, antes que mudasse de assunto e falasse, com melancolia, sobre o urso que viveu, durante muitos anos, ali, num cercado. Alberto lembrava-se muito bem dele, quando, ainda criança, ia ao zoológico, acompanhado dos seus pais. - Ele era tão melancólico... 170 A MULHER, ENFIM À noite, arranjou uma desculpa qualquer e foi até a frente da casa, na rua Rockfeller. Chegou exatamente no horário combinado e ficou lá, parado, olhando o movimento. Duas meninas brincavam com um bambolê, objeto que acreditava ter desaparecido completamente da face da Terra, da mesma forma que todos os brinquedos da sua infância: as bolas de gude, as pernas de pau, os badogues, os revólveres feitos de compensado, arame, elástico e carretel de linha, os arco e flechas, as arraias e periquitos, os... Eram exatamente vinte horas e trinta e cinco minutos quando uma camioneta passou pela rua, e parou na calçada em frente. Um homem ficou parado dentro do veículo um, dois, dez, doze minutos. No décimo terceiro abriu a porta e cruzou a rua em direção à casa. Alberto não sabia o que fazer, já ia abordá-lo quando sentiu uma mão tocando seu ombro. Voltou-se e deu de cara com Hélio. - Que susto! O que você está fazendo aqui? O homem abriu o portão e entrou na casa. - Eu ia falar com ele... você atrapalhou tudo... e agora? Hélio disse que de nada adiantaria falar com o homem. Ele nada sabe sobre ela. - Você ainda não entendeu? Eu lhe disse para vir até aqui. Por que você não veio? Ao concluir esta pergunta, atravessou a rua e desapareceu por uma travessa. Mais tarde, deitado em sua cama, Alberto pensou no que Hélio lhe dissera. Sabia que ele não estava louco. Os habitantes de Lunaris não enlouquecem. Tampouco dizem ou fazem coisas sem propósito, por um motivo simples: eles não podem ser normais. Levantou-se, sem que Judite percebesse, foi até o escritório, sentou-se ao computador, tentou escrever algo, nada lhe vinha à mente, folheou um livro ao acaso, rabiscou desenhos numa folha de papel, enquanto a frase de Hélio lhe martelava o pensamento, “Por que você não veio?”, “Por que você não veio?”, por que eu não fui, eu não fui, não fui, não... Então é isto, murmurou. Fechou os olhos e, imediatamente, viu-se, em frente à casa. Não havia ninguém na rua. Hélio não estava lá. Abriu o portão, subiu três pequenos degraus, chegou à varanda e, estendendo a mão, empurrou a porta, que se abriu, lentamente. Sentiu medo. Sentiu medo dela. A sala estava mergulhada numa penumbra. Não podia descrever os objetos. Não via nada, além do vulto, ao fundo da sala. Ela o olhava. Ela estava de costas para ele, mas, como se pressentisse sua presença, voltou-se. Sim, era ela, reconheceu de imediato. Não parecia surpresa em vê-lo, mas não demonstrou sinal de que o esperava. Agia como se ele fosse alguém muito 171 familiar. Arrumava a mesa: colocou uma toalha azul com bordados brancos, arrumou um jarro no centro. Usava o mesmo vestido... que ele vira na vez anterior. Sorriu para ele: - Pensei que ia chegar mais cedo – disse, e acrescentou logo em seguida. – Mas fico feliz que tenha chegado. Você sabe que não gosto de esperar. Alberto ficou parado. Não sabia o que dizer. Ela percebeu, e riu do seu comportamento, como se lhe parecesse estranho. - Vou colocar a janta. Mas não precisa ficar aí parado, com cara de quem viu fantasma. Foi à cozinha, acendeu o fogão, retornou com o prato fundo que colocou sobre a mesa. - Preparei uma sopa de feijão com macarrão e um ensopado de boi. Como sua mãe gostava de fazer. Não vá desperdiçar. E, pelo amor de Deus, não fique aí parado! Alberto sentou-se no sofá. Não sabia o que dizer. Esperava qualquer coisa, menos que ela estivesse ali, diante dele, tratando-o com toda aquela intimidade. O que poderia falar para ela? Não sabia sequer o seu nome. - Quem é você? – disse, por fim. Ela o olhou, séria; depois começou a sorrir. - Quem eu haveria de ser? Ora, deixe de ser bobo! Tome logo sua sopa e vamos dormir. 172 DE VOLTA AO EXÍLIO Alberto acordou, na manhã seguinte, ao lado de Judite. Piscou os olhos para confirmar que era ela mesma que estava ali. Olhou em volta e reconheceu os objetos familiares. Mas já não eram tão familiares assim. Havia neles uma quase imperceptível estranheza, como se os tivesse vendo pela primeira vez. Estava confuso. Lembrava-se de ter-se deitado ao lado dela, a outra, cujo nome sequer sabia, que apreciara, demoradamente, seu corpo, na penumbra do quarto, que sentira uma vontade quase irresistível de tocá-la, mas que não encontrara coragem. Sentia ainda seu cheiro suave que, ali mesmo, na cama, transportara-o para um campo de flores, num dia de primavera; vira-se correndo com ela, de mãos dadas, entre flores amarelas, centenas, milhares de flores amarelas; ela corria, velozmente, com seu corpo ágil e esguio, rindo e soltando gritos que se fundiam com a claridade tênue da tarde. Podia quase sentir como se seu corpo também se dissolvesse juntamente com a luz amarela, e as flores amarelas, e as nuvens alvas, e o céu azul, que começava a escurecer, bem no alto, sobre as suas cabeças, enquanto o horizonte era bombardeado com novos tons de vermelho e rosa e uma infinidade de tons alaranjados. E, ao abrir os olhos, percebeu que ela ressonava, levemente, na cama, de costas para ele. E aos poucos foi ele também tragado pelo sono, como se tomado por um esquecimento universal – mas, lá no fundo do seu coração, saboreando antecipadamente o momento em que, na manhã seguinte, ao abrir os olhos, tornaria a vê-la, e, mais uma vez, e definitivamente, sentir seu cheiro e ouvir suas risadas. De repente, pela primeira vez em sua vida, Alberto sentia no seu peito o desabrochar de um estranho sentimento de carência, que o assustava. Pela primeira vez algo muito terrível o espiava pela fresta de uma porta que se entreabria sabe-se lá para que abismos. Aquilo que mais amava: o seu lar, a sua família, o espaço de sua intimidade, o calor e a presença de Judite, tornava-se, de chofre, para ele, um exílio. Levantou-se, com o máximo de cuidado, para não acordar Judite. Caminhou até o banheiro, lavou o rosto, a cabeça, abriu a janela, olhou demoradamente a rua molhada pela chuva que caíra de madrugada, o movimento incipiente dos porteiros, das crianças saindo para a escola, dos jornaleiros, dos carros que começavam a passar – e sentiu-se só. 173 UMA HISTÓRIA DE AMOR Uma outra espécie de medo começou a afligir Alberto. O que ele mais temia, agora, não era que ele se tornasse irreal; mas que isto pudesse acontecer com Judite e seus filhos. Sentia uma culpa antecipada pela possibilidade absurda de fazê-los desaparecer. De olhos fechados, sentado num banco, com a cabeça encostada numa árvore, no jardim, ele conseguia, sem maiores esforços (o que lhe dava algum alívio), ver, em sua mente, a imagem de Judite: o rosto retangular com traços fortes; os cabelos pretos cacheados, com mechas caídas na testa e sobre os ombros; a testa ampla, os olhos grandes e cinzentos, os lábios nem finos nem grossos, mas surpreendentemente nítidos, como se fossem riscados numa folha de papel com um lápis de desenho; o pescoço fino mas vigoroso; o colo generoso com seios rijos geralmente cobertos por um tecido leve; os braços femininos mas cujo vigor era evidente (não à toa, ela havia sido campeã de tênis no colégio) também no corpo torneado; as pernas firmes, longilíneas, às quais não faltavam força e agilidade. Acrescente-se a isto o cheiro adocicado de almíscar do seu perfume favorito, que a precedia em todos os seus passos, e a admirável combinação de energia e feminilidade, o seu dinamismo, o senso prático, a lucidez, não sem alguma pitada de autoritarismo que a fazia, às vezes, não somente respeitada, mas temida. Era, de fato, pensou Alberto, uma mulher admirável, uma mulher que amava e com a qual, apesar de freqüentes incompreensões dela, relacionadas ao seu jeito, digamos, excessivamente abstrato, pretendia viver o resto de sua vida. A conhecera num desses golpes de sorte, há cerca de 21 anos, quando, ao entrar numa lanchonete, nos Barris, a vira sentada a um canto. Ele ficou impressionado com a aparência cigana da mulher, o que o levou perguntar se ela tinha antepassados na Hungria. Talvez pela estranheza da pergunta, talvez pela gostosura do suco de goiaba, que ela tomava, o fato é que ela, que estava excessivamente séria, de repente se naturalizou, e, como se falasse com um velho amigo, sorriu e perguntou: mas por que Hungria? Não sei nada deste país! E Alberto, que já recebera um copaço, de 500 ml, de suco de graviola, esclareceu que não falara à toa daquele país, mas que havia lá, segundo lera num livro, um contingente muito grande de ciganos, posteriormente devastados, coitados, pelos exércitos nazistas. Bem... não queria falar naquelas coisas tão desagradáveis, mas as palavras são assim, a gente começa a dizê-las e elas logo vão ganhando caminhos próprios, fugindo ao nosso controle, você sabe como é, não? Ela riu e disse que não achava nada demais falar sobre nazistas, aliás, era necessário mesmo que os tivéssemos bem vivinhos na memória, mas a verdade era que o suco de goiaba combinava com outros assuntos mais amenos – e quando ela falava assim eles já haviam saído juntos da lanchonete e caminhavam em direção à Biblioteca Central. 174 Não se sabe por que, achou que ela apreciava temas mitológicos e encominhou a conversa para esse lado. Disse que a achava uma mulher muito distinta. Sim, esta é a palabvra adequada, observou Alberto, mas a conversa não rendeu muito mais. Ela chegou a lhe dar o número do telefone, disse que morava no Costa Azul, e ele ficou as duas semanas seguintes pensando em ligar, mas por alguma estranha razão sentiu um vago receio, você sabe, ele tinha pouco menos de vinte e sete anos e naquela época prezava imensamente a sua liberdade, alguma coisa dizia-lhe que aquela mulher poderia enfeitiçá-lo e fingiu esquecer-se dela, até que, alguns meses depois a encontrou sentada numa pedra no Jardim de Alá, num final de tarde, apreciando o pôr do sol. Alberto ficou impressionado com o reflexo suave da luz amarela nos cabelos dela – iguaizinhos ao de uma nuvem esgarçada, que se estirava, quase imperceptível, por trás de outras que pareciam labaredas de fogo, fortemente contrastadas com o céu que descambava do azul para um cinza misterioso que lhe trazia não sabia que estranha reminiscência da infância. Havia ainda uma menina que brincava com um cãozinho poodle, no gramado; os coqueiros delgados sacudidos pelo vento fresco; os arrecifes longe e ali, bem perto dele, o sorriso de Judite que, visto de um certo ângulo, revelava um traço no rosto e um jeito de sorrir que despertava-lhe qualquer beleza adormecida, dessas que nos são muito caras e das quais não queremos nunca mais nos apartar. Vieram frases soltas, risos e a noite; vieram passos, as lâmpadas dos postes, sombras e uma infinidade de manchas escuras, e o receio de não sabiam o quê, que os levou a se darem as mãos e a correrem, rindo para disfarçar, até a calçada. Ela, num impulso do qual já ia se arrependendo, convidou-o para tomar um café no Chalezinho, que fica em frente ao coqueiral, no que ele se apressou em aceitar, antes que sentisse um aperto no coração – e se esqueceram do tempo, até que ela disse que precisava ir. Alberto ofereceu-se para levá-la em casa, mas não insistiu quando ela disse que preferia ir sozinha, mas que a procurasse no dia seguinte, falou num impulso do qual já ia mais uma vez se arrependendo, quando ele propôs que fossem ao cinema, no dia seguinte, assistir a Os incompreendidos, que estava passando no cine Art I, no Politeama. Foram a um, dois, três, dez filmes, jantaram em restaurantes, discorreram sobre suas reminiscências, reviraram, pouco a pouco, seus baús, remexeram nos seus papéis velhos da memória, contaram casos engraçados, inventariaram perdas, lembraram de cenas desvanecidas que logo recuperaram seus contornos, falaram mal do governo, levantaram bandeiras, lideraram passeatas, sentaram numa pedra, no meio do mar, da qual podiam ver, no horizonte esfumaçado, as baleias que migram anualmente dos gelados mares antárticos, beijaram-se, pela primeira vez, num banco qualquer de uma praça, diante de uma fonte de pedra, atravessaram ruas de mãos dadas, contaram casos para distrair, meteram-se sozinhos no quarto de Alberto, do qual podiam ouvir o diz-que-diz-que macio que brota dos coqueirais, e ali, coincidentemente numa noite fria, tiraram suas roupas e se acariciaram e se beijaram, e longe de qualquer olhar intruso, fizeram amor, e gozaram, e se deixaram abandonar 175 a si mesmos, e Alberto lembrou que aquilo foi o que temera, quando, na casa de sucos tomou o número do telefone dela e por isso mesmo não quisera ligar para ela. Eis ali a cigana com seu sortilégio. E teve vontade de dizer que não queria mais vê-la, mas lá estava, grudada nele, a sensação de aconchego (se a noite pelo menos não estivesse tão fria) que o chamaria, nos dias seguintes, e nos outros, e nos outros, até que ela engravidou, e ele quis, bem dentro dele, fugir, dizer-lhe que assumiria o filho, mas que em sua vida não havia lugar ainda para uma relação, mas lá estava ele, mais uma vez, caminhando pelas ruas das tardes frias com as mãos nos bolsos do casaco, pensando que ainda havia muitas coisas na vida para fazer antes que se comprometesse definitivamente com uma mulher – e no fundo de sua alma passara aquele desejo obscuro de que seria melhor se tudo fosse um engano, que ela fechasse o portão antes de sair definitivamente da sua vida; que o liberasse daquele fardo que antevia, mas nada disso falou quando ela lhe confirmou à noite que estava mesmo grávida e que eles tinham que decidir juntos o que fazer. Já falara com os irmãos, com uma amiga, com um velho amigo de infância, mas que de nada adiantara, pois as reações e os conselhos foram os mais diversos e contraditórios. Um dos seus irmãos a olhara gravemente e lhe advertira que ter mais um filho não seria fácil, que ela não tinha garantias de que ele assumiria a relação, que devia ser racional e pensar friamente; outro a abraçara, com entusiasmo, quando soube da “notícia extraordinária”; uma amiga colocara-se à disposição para acompanha-la a uma clínica, se assim que ela quisesse; outro comprara uma garrafa de vinho para comemorar – e lá estava ela, diante dele, olhando para Alberto. Esperando. Como ele gostaria de mostrar um entusiasmo, de abraçá-la, com alegria, mas ele era um homem sincero e, para falar a verdade, não apreciava esses extravasamentos emocionais. Tinha que analisar as coisas friamente, entende? Mas, claro, não havia dúvidas de que aceitaria a criança, jamais pensaria em abortá-la, isto estava fora de cogitação. Mas isto não significava que precisassem ficar juntos. - Na minha vida tem espaço para um filho, mas não tem para uma relação – disse, sem piscar. Despediram-se friamente. Aquela noite lhe pareceu muito mais fria. Mas vieram outras. Alberto não se decidira, intimamente, se a queria ou não, se a queria com o filho, se a queria com suas explosões, com suas definições – de indefinições bastavam as dele. Havia-lhe dito que havia outra mulher em sua vida, mas que não era bem assim, não o entendesse mal, por favor, que apenas não se livrara completamente de um envolvimento anterior. Para começar uma nova vida, com filho, mulher e o quê mais era necessário que saldasse a dívida com o seu passado, entende? Mas não falou nada disso, porque odiava lugares comuns e meias verdades, de forma que foram empurrando as coisas com a barriga – a dela já um tanto avantajada. E Alberto foi, pouco a pouco, se acostumando com os novos rumos que a sua vida tomava. Ele que sempre lavantara bem alto a bandeira vermelha da sua liberdade, levou ainda um tempo cultivando jeitos bruscos e poucas palavras, para deixar bem claro que 176 não precisava dar satisfações a ninguém, e uma certa superioridade intelectual que, como percebeu mais tarde, traía-lhe apenas uma certa pobreza de espírito. Vieram uma, duas, três mil brigas até que, ainda morando separados, ele acordou certa manhã de abril com alguém lhe chamando no portão, dizendo-lhe que seu filho estava para nascer. Ele ainda morava em Itapuã, com seu fogão velho, com sua geladeira enferrujada, com sua rede no quarto dos fundos e um colchão fino no quarto da frente e uma pequena vitrola, além, é claro, dos livros e de um profundo silêncio quebrado apenas pelo vento nos coqueiros e uma música longínqua nos bares. Vestiu rápido uma camiseta, a calça jeans, sandálias de couro e saiu à toda para o ponto de ônibus. Chegou 40 minutos depois ao apartamento onde o médico iniciava o trabalho de parto. Tirou uma fotos, viu a criança rompendo as carnes em meio ao sangue – e compreendeu, finalmente, por que a cigana húngara o havia enfeitiçado. 177 CALABOUÇOS E DESVÃOS Muitos anos se passaram. O filho cresceu, outros problemas, até mais graves, vieram, mas Alberto tinha essa imensa qualidade de driblar tudo aquilo que poderia fazê-lo infeliz. Aliás, se havia uma determinação em Alberto, era certamente esta: a de que nada nem ninguém tinha o direito de sacrificar-lhe a felicidade. Era, claro, uma felicidade triste, melancólica, repleta de calabouços e desvãos, como um castelo medieval. Mas talvez fosse este mesmo o motivo de prezá-la tanto. Seu espírito anguloso fizera-o, desde cedo, amar tudo o que, de certa forma, negava-se a si próprio. Não suportaria uma felicidade plena – como um campo iluminado pelo sol, sem mistérios e reentrâncias. Sua felicidade, portanto, semelhava-se mais a um vale coberto de sombras, que se projetavam de imensos rochedos, perdendo-se em socalcos cada vez mais profundos. E sobre tudo aquela neblina, e a chuva fina, que caía dum céu azulcinza, pincelado por nuvens frágeis carregadas pelo vento incessante. Era nesta passagem que ele vivia, tal como um lobo solitário, mesmo depois de tantos anos vivendo ao lado de Judite, que amava o sol e o calor. Daí, talvez, a dificuldade que ela tinha de entendê-lo. Talvez lhe assustasse um tanto não possuí-lo plenamente, não poder penetrá-lo, com seu olhar, por todos os ângulos. Casar com ela foi, talvez, um esforço para manter-se na superfície. Mas agora, tal como no “chamado da selva”, de London, ele se via compelido a descer, mais e mais, aos seus subterrâneos. 178 PARTE II ESCRITORES, ESSES MALEDICENTES Alberto entrou numa espécie de ressaca. Era uma ressaca consciente, consentida, uma ressaca marcada pela prudência e por um certo recato. Ele abrira finalmente a porta, e a encontrara. Sabia agora que podia abri-la novamente, mas não tinha pressa. Receava, ainda, que de alguma forma, ao passar para o outro lado, perdesse as definições deste. Temia que seu mundo real, de repente, perdesse sua nitidez, como uma imagem que fica fora de foco, até, quem sabe, perder-se para sempre. Voltou a freqüentar o almoço das quintas-feiras, com seus amigos escritores. Neste dia, em pleno mês de setembro, receberam a visita do ex-cônsul da França, homem distinto e respeitável, que tomara uma amiga sua, anos antes, como amante. Ela mesma lhe contara, pedindo reserva, no que foi naturalmente atendida. Era um negócio atraente, para ela, que rendia jantares em restaurantes caros e viagens furtivas para regiões turísticas, além de muita cultura. Afinal de conta, Henri (vamos chamá-lo assim) era um homem da sociedade, um homem do mundo. Foi através dela que Alberto ficou sabendo que Cannes deveria ser pronunciada sem o “s” final. - Você tem que falar assim: Canne. Canne! Entendeu? Alberto entendeu, mas não entendia muito bem por que ela não pronunciava Parri, em vez de Paris. “Por que eu pareço um ignorante apenas quando falo Cannes, e todo mundo acha normal quando falo Paris em vez de Parri?”, pensou Alberto, na falta de outra coisa para pensar. Não sabia se ele, Henri (pronuncia-se ónrí, por favor) explicou isto para ela, mas explicou muitas outras coisas: por exemplo, que traduzir “o poema das cores”, de Rimbaud, era totalmente fora de questão. Impossibile! Impossiblie! Enquanto que Baudelaire, com toda a sua estranha arquitetura simbolista, podia ter até dez traduções diferentes, todas elas válidas. Formidable, não é? E lá estava Ónri, tantos anos depois, bem na frente de Alberto, à mesa do restaurante, sem saber que ele sabia tanto sobre sua vida pessoal, e até sexual. (Essas mulheres são mesmo muito inconvenientes.) De forma que, enquanto ouvia atentamente sua peroração sobre escritores franceses e suas traduções no Brasil, sorria para ele e pensava: cachorrão! Fale mais, seu vivaldino, fale mais! E o mais curioso foi quando o ex-cônsul começou a atacar, impiedosamente, a tradução de autores franceses feito por uma eminente figura intelectual da cidade – tradução que ele mesmo havia apresentado, no prefácio do livro, e em algumas conferências, sempre cobrindo-as com grandes e rasgados elogios. Ali, entretanto, admitia o que realmente pensava: 179 - Bem, aqui, na intimidade, posso dizer o que penso realmente, não é? Você sabe, a carreira diplomática nos exige concessões terríveis. Nem sempre podemos dizer abertamente o que pensamos. Mas o fato é que as traduções do professor XY são, realmente, desculpe-me a palavra, duras. Terrivelmente duras! O problema é que, em primeiro lugar, ele não é um poeta e está muito longe de sê-lo. Em segundo, um homem tão conservador, tão conservadoramente cristão, eh, eh, traduzindo poetas como Rimbaud e Baudelaire! Ora, faça-me o favor! Os versos ficam duros, perdem a pureza, a jovialidade, a limpidez. É, de fato, horrível. Horrible! Ele não disse tudo isto no almoço. Deve-se lembrar que o homem é um diplomata. Disse a Alberto, quando este pegou sua carona até o Shopping Iguatemi. Alberto disse, naturalmente, que concordava com ele, mas escondeu a animosidade, fruto talvez de um ciúme escondido, pode-se dizer até desconhecido dele, da velha amiga, da qual nunca mais ouvira falar. No almoço seguinte, a figura da vez foi o jovem escritor revolucionário – aquele que, segundo uma jornalista local que o entrevistou, com apenas um romance já colocou Guimarães Rosa nos chinelos. O diabo é que faltava, a um autor de tal quilate, o reconhecimento pecuniário à altura da sua genial “transgressão literária”. Vivia de biscates. “A verdade é que eu ando muito, muito duro”, disse ele, que é tímido, numa das poucas vezes que abriu a boca. Vale dizer, pensa Alberto, que o jovem escritor não tem absolutamente nenhuma culpa do que dizem dele. Talentoso, saudavelmente ousado, ele faz simplesmente seu trabalho sem querer se autorotular. Mas, na melhor das hipóteses, falta-lhe a indignação necessária para rechaçar o epíteto de “o novo Guimarães Rosa”. Sem ela, pôde Alberto constatar, ele é um jovem escritor talentoso e inventivo, que está apenas começando a construir seu caminho. Com ela, deixa muito a desejar, correndo mesmo o risco de morrer no nascedouro. Havia muitos outros escritores no almoço, e Alberto gostava de observar suas idiossincrasias. Por exemplo, a do poeta consagrado cujo principal assunto era o de descaroçoar os concretistas. “São uns imbecis!”, bradava, sempre que o assunto vinha à baila. “Aquilo nunca foi poesia! Agora ficam uns homenzarrões daqueles fazendo brincadeirinhas com palavras!”. - Parece coisa de viado! – dizia o outro escritor,. ex-jornalista combativo, ex-cronista, para quem todo mundo (com exceção dos que estavam ali, é claro) é viado. Se alguém lembrava o nome de uma figura notória do passado soteropolitano, imediatamente ele dizia: - É viado! De fato, ele conhecia a história de todas as pessoas públicas – inclusive detalhes picantes da vida sexual delas, o que lhe conferia o status de uma enciclopédia ambulante da vida social de Salvador. - Lembra-se daquele poeta pop dos anos 60? - Dava o cu! - Lembra-se daquela romancista que fez muito sucesso nos anos 70? 180 - Era puta! - E aquele famoso antropólogo. - Era corno! Alberto pensava, abismado, quem poderia escapar da língua demolidora de mitos do escritor, mas sabia que ele não errava uma. De uma coisa estava certo: se não podia chamá-lo de algo, era de difamador. Ele apenas sabia. E dizia. - Mas pra você, Betinho, todo mundo é viado. Assim não é possível! – dizia outro escritor, o mais velho do grupo, rindo, como se pegasse uma criança numa traquinagem. Excelente romancista, contista, ensaísta e pesquisador, simplesmente deixara de escrever, para espanto e indignação dos seus pares. A sua obra ficcional, entretanto, era diminuta: apenas um romance, bastante elogiado, alguns contos publicados em antologias, e só. Ah, e os ensaios, bissextos, para desespero dos seus pares. - Estou lendo seu romance.... - Oxente! O que deu em você? Está doente?! Alberto tinha uma grande consideração por ele, além de um grande respeito intelectual. Vivia insistindo para que ele voltasse a escrever e a publicar. Inutilmente. Dizia que tinha coisas mais importantes a fazer. Por exemplo: viver. Não aceitava dar entrevistas, o que era, do ponto de vista de Alberto, um grande desperdício, haja vista não apenas sua extensa cultura, como seu conhecimento da vida cultural do Brasil. Afinal, convivera com personalidades importantes da vida cultural brasileira, a exemplo de Graciliano Ramos, Rubem Braga, Vinícius de Morais, Osman Lins, Mário de Andrade e muitos outros. - Esqueça, Albertinho. Eu não tenho nada para dizer! Diante dele, Alberto percebia com mais nitidez a mediocridade dos que, sem saber um milésimo do que ele sabia, viviam a pavonear-se, emitindo opiniões, na maioria das vezes insignificantes, sobre tudo. 181 RÁPIDO ENCONTRO NA RUA MOLHADA Alberto sabia que todos aqueles encontros, que todas aquelas atividades nada mais eram que uma forma de adiar o reencontro com ela. Agia como alguém que adiava, minuto a minuto, uma deliciosa refeição, para que pudesse saboreá-la com todos os sentidos aguçados. Evitara, durante todo este tempo, reencontrar qualquer um dos habitantes de Lunaris, simplesmente porque nada tinha para lhes dizer. Certa noite, entretanto, ao caminhar pela rua Carlos Gomes, percebeu a presença de um deles, parado, junto a um poste, na entrada para o Largo 2 de Julho. Era como se ele já o esperasse. - Mas por que a agulha aponta sempre para o setentrião? – perguntou, com a primeira frase que lhe viera a cabeça, a frase de um livro do qual não se recordava bem. Mas continuou: A pedra atrai o ferro, eu vi, e imagino que uma imensa quantidade de ferro atraia a pedra. Mas então... então em direção à estrela polar, nos limites extremos do globo, existem grandes jazidas de ferro. O homem o olhou, sem surpresa. Alberto esperou que risse, mas ele limitou-se a dizer, como se lançasse uma pista, com o trecho de um outro livro. - Deixe-me dizer-lhe uma coisa: eu não gosto realmente desses enterros públicos. Não sei porque eu deva ser diferente das outras pessoas, mas eles não me fazem rir. Não consigo ver nada de engraçado neles. Apanhou a frase como um tenista que, do outro lado da quadra, rebate a bola com uma raquete. - Dizem que o tempo tudo cura, Dizem que sempre se pode esquecer, Mas os sorrisos e lágrimas anos a fio, ainda fazem meu coração sofrer. - As chuvas que chegam tão cedo... Pois eles estão procurando... – disse. Mas poderia ter dito: Hombre, o senhor é um poeta. Veja: algo da estranheza de Praga ainda por esses livros de sonhos que se perdem em outros sonhos. Tudo em Praga é estranho e, se prefere, nada é estranho. Qualquer coisa pode acontecer. Em Londres, num certo entardecer, senti a mesma coisa. - É verdade. Só estou esperando a chuva passar para morrer. Alberto esticou a mão para além do toldo e sentiu as gotas d´água tocarem-lhe a pele. Lembrou-se do tempo em que andava, quase todos os dias por aquela rua, num tempo em que achava todas as coisas belas. Lembrou-se da esfiha que comia, com suco de laranja, na pastelaria chinesa; do apartamento no qual visitava uma antiga namorada, que devia também estar, em algum lugar, esperando a chuva passar. Esperando a chuva. Olhou para o lado e não mais viu o homem. Havia pessoas circulando nas calçadas, filetes d´água escorrendo das calhas, 182 passos rápidos respingando água, nas poças, carros e ônibus circulando. Já era tarde. Precisava voltar para casa. 183 O “FAROL” No dia seguinte viu, de relance, atravessando o largo de Amaralina, próximo ao mar, o jovem (na verdade, já não tão jovem assim) escritor iconoclasta. Aquele mesmo que usa as palavras como chispas de fogo, queimando aqui, chamuscando ali, esforçando-se para nunca ser invisível – invisível como os habitantes de Lunaris. Alberto, de certa forma, desconfiava dessas pessoas de carne e osso que se mostravam tão indubitavelmente concretas. O jovem escritor quarentão já era apontado, por certos setores da imprensa (os mesmos, talvez, que via o outro jovem escritor, como o novo Guimarães Rosa), como o Mário de Andrade de sua geração, que estava agora na fase da “consolidação”, rompendo, aqui e ali, as muralhas tão fortemente construídas pela onipresente geração dos 60. Organizara antologias, em nível nacional, revelara talentos até então obscuros, que agora andavam por aí com os narizes empinados, fizera releituras críticas de textos geniais até então esquecidos, ressuscitara escritores malditos, injustamente lançados para fora do cânone por serem incômodos. Pensou em acenar para ele, mas a lembrança de alguns artigos que escrevera fizera-o recuar. A verdade é que discordava de algumas coisas que ele escrevera, apenas algumas coisas, pois, na verdade, tinha por ele admiração. Achava, entretanto, que, sob alguns aspectos, ele era supervalorizado e que só mantinha aquele ar de “Farol” da sua geração simplesmente porque ninguém mais questionava nada “neste país de merda”, como diria o poeta, esculhambador-mor dos concretistas. - Ficam esses imbecis elogiando um bando de merdas nos jornais, como se fossem geniais. Este é mesmo um país de merda! – dizia ele. E era agora o que pensava Alberto em relação ao “Farol” da sua geração, que desaparecia por trás das baianas de acarajé, enquanto lhe vinha à mente uma resenha “crítica” que ele, o “Farol”, escrevera sobre um poeta de sua geração. Nela, o contista-romancista-ensaísta-crítico reconhecia alguns méritos que eram, entretanto, obscurecidos, quando não anulados pelo fato de basear-se no conceito de Deus, segundo ele “o mais abjeto que há entre nós, capaz de contaminar mesmo as mentes mais esclarecidas”, uma idéia, enfim, “que deveria ser expurgada da civilização moderna”. Ao ler aquelas palavras, Alberto pensou: então, segundo o “Farol”, toda obra que “flerta” com o conceito de Deus deve ser questionada? Então, segundo sua abalizada opinião, autores como Dostoievski, Dante, Herman Hesse, Graham Greene e William Faulkner deveriam ser anulados. Muito bem. A questão, que gostaria de colocar para ele, se não vivêssemos num país de merda no qual todo mundo escreve o que quer e ninguém questiona mais nada, era: mas que restaria do gigantesco edifício cultural do ocidente (sem falar no oriente), se se retirasse o conceito de Deus? Vale dizer que não se trata de crença religiosa, mas de um simples constatação. Talvez 184 fosse conveniente ao “Farol”, antes de emitir opiniões tão decisivas, ler o ensaio “Um prefácio para a Bíblia Hebraica”, de George Steiner, na qual ele se refere, não ao conceito de Deus, mas à importância, como fator cultural, da Bíblia. Diz ele: “O que você tem nas mãos não é um livro. É o livro. Isso, é claro, é o que “Bíblia” significa. Trata-se do livro que define, e não apenas para a civilização ocidental, o conceito de texto. Todos os nossos outros livros, por mais diferentes que sejam seus assuntos e sua organização, relacionam-se, ainda que indiretamente, a este livro dos livros. Relacionam-se aos fatos de seu discurso articulado, seu texto dirigido ao leitor, à confiança nos recursos léxicos, gramáticos e românticos que a Bíblia origina e desenvolve em nível de prodigalidade jamais ultrapassado. Todos os demais livros, sejam eles de histórias, narrativas de fatos imaginários, códigos de lei, tratados de moral, poemas líricos, diálogos dramáticos, meditações teológicofilosóficas, são como fagulhas, por vezes distantes, lançadas por incessantes labaredas de um fogo central. No caso da civilização ocidental, como também no de outras civilizações do planeta às quais o “Bom Livro” foi levado, uma grande parte da identidade histórica e social é dada pela Bíblia. Ela dá à consciência os instrumentos freqüentemente implícitos da memória e da citação. Até os tempos modernos esses instrumentos encontravam-se tão profundamente gravados em nosso caráter, inclusive – talvez até em especial – entre pessoas não letradas ou pré-letradas, que a referência bíblica funcionava como auto-referência, como um passaporte para a viagem interior em direção ao nosso próprio âmago. As Escrituras foram (e para muitos ainda são) uma presença atuante tanto no que é universal quanto no singular; são culturalmente compartilhadas e, ao mesmo tempo, da mais extrema privacidade. Não há outro livro como este; em todos os demais ecoam os murmúrios desta fonte distante (hoje em dia os astrofísicos nos falam de “ruídos de fundo” da criação)”. E acrescenta, mais adiante: “Como ficariam nuas as paredes de nossos museus se delas fossem retiradas as obras de arte que representam ou se referem a temas bíblicos. Que silêncio se faria em nossa música ocidental, desde os cantos gregorianos até Bach, desde Handel até Stravinsky e Britten, se baníssemos as referências bíblicas de seus textos, de suas dramatizações e de seus temas. O mesmo aconteceria com a literatura ocidental. Nossa poesia, nosso drama, nossa ficção ficariam irreconhecíveis se omitíssemos a presença constante da Bíblia. Além do mais, seria impossível delinear categoricamente essa presença. Ela abarca os imensos tomos de paráfrase bíblica até a mais tangencial e sutil alusão. Abrange todos os modos de intertextualidade, de incorporação nas linhas e entrelinhas. Como assinalar as inúmeras ilações originadas de traduções ou paráfrases de textos bíblicos dos dramas sacros medievais nas oblíquas referências bíblicas no romance de Faulkner Absalão Absalão!? Que rubrica única poderia explicar os usos de Acab (Ahab) e de Jonas em Moby Dick e o aproveitamento de personagens bíblicos na Divina 185 Comédia de Dante ou a história dos Patriarcas recontada na extensa tetralogia de Thomas Mann sobre José? Se uma figura tão pouco importante como a mulher de Lot aparece na poesia inglesa medieval e continua presente em Blake, em Joyce e como tema do poema de D. H. Lawrence “She Looks Back”? As histórias de Moisés e de Sansão ressurgem grandiosas no romantismo francês (Victor Hugo, Vigny). O Proust que nós conhecemos não existiria sem Sodoma e Gomorra. Tampouco Kafka, sem as Tábuas da Lei, ou Racine sem Esther e Athalie. Ecos da Bíblia, o jogo de citações escondidas ou de paródias são tão indispensáveis ao Fausto de Goethe quanto às fantásticas reflexões de Henry James sobre o Éden e sobre o pecado capital em A taça de ouro (título retirado do Eclesiastes) e quanto, ainda, às mutações sardônicas e desesperadas dessa mesma trama primeva em Esperando Godot, de Beckett. Não faz sentido continuar essa enumeração”. Alberto colocou o livro de Steiner numa pasta e tentou, diversas vezes, um encontro casual com o “Farol”, mas o azar não o permitiu. Pensou em como poderia fazer, quando o encontrasse, como poderia convencê-lo a sentar-se por alguns momentos para tomar um chope e, direcionando, gradualmente, a conversa para temas literários, lembrar-se-ia de pegar o livro para mostrar um outro artigo qualquer até que, por acaso, não mais do que por acaso, diria: - A propósito, foi você que escreveu, um dia desses, um longo artigo sobre a poesia de fulano? Me parece que você o criticava... pelo que mesmo?... ah, por ele basear seu texto no conceito de Deus! Bem... me parece que vi algo sobre este tema aqui, em algum lugar deste livro... Talvez, neste momento, o “Farol” já percebesse que havia caído numa armadilha, e que seria obrigado a se justificar, inutilmente. Alberto sentia um prazer especial em ver pessoas – as que merecem, evidentemente – surpresas por terem sido enredadas numa teia da qual não podem se libertar facilmente. Por isso, talvez, tenha gostado tanto do filme do Michael Moore, no qual ele, fazendo-se passar por um sócio da Associação de Rifles Americana, conseguira marcar uma entrevista com o presidente daquela entidade, ninguém menos que o eterno Ben Hur de Hollywood, o canastrão Charlton Heston. Com a intimidade que o fato de praticarem o mesmo hobby propiciava, o ator soltou o verbo até que, pressionado por uma e outra pergunta, percebeu que caíra nela, a armadilha. A cena final, dele se retirando e negando-se a falar, pode ter sido um epílogo melancólico para o astro do Cinema. Esta talvez fosse a intenção secreta de Alberto em relação a o “Farol”, mas a verdade é que todas as suas tentativas se frustraram, e não foram poucas as vezes que Alberto voltou para casa, desconsolado, com o livro na pasta. Pensou em escrever um artigo, rebatendo os argumentos dele, mas achou que seria dar muita osadia, como diziam suas velhas primas do interior. - Não vou dar osadia para este sacana! 186 Mas o pior era que o “Farol” continuava publicando, semanalmente, seus artigos, para a nada insignificante indignação de Alberto. - Veja só que besteira ele escreveu aqui! – disse, com um tom indignado, para Judite, que lia um dos seus inúmeros livros que nunca iria acabar de ler. 187 ENCONTRO INFRUTÍFERO Uma semana depois, antes que caísse na tentação de visitar algum habitante de Lunaris, Alberto, aproveitando-se do fato de Judite ter ido visitar uma amiga, deu uma esticadazinha a um barzinho, na Orla Marítima, para comer uma casquinha de siri. Lá chegando, não acreditou quando viu um de seus amigos lunarianos, solitário, num canto, sentado a uma mesa, apreciando o mar noturno. Não parecia que ninguém o estivesse vendo, e o fato dele não ter nenhuma bebida ou comida, à mesa, pareceu confirmar isto. Ele estava lá, simplesmente, voltado para o mar escuro, como se tivesse sentado a uma pedra ou na areia da praia. Sentou-se próximo a ele, na mesa. Permaneceram um longo tempo sem, dizer nada, até que Alberto, certificando-se de que ninguém o olhava, disse qualquer coisa, como, por exemplo: - Não o esperava encontrar aqui. O outro permaneceu impassível. - Tem notícias... dela? Não respondeu. - Não tenho pensado em outra coisa, durante todos esses dias. - Por que não a visita? Ela pediu para dizer-lhe... bem, ela acredita que o ofendeu, mas não sabe bem por quê. Agora foi a vez de Alberto ficar em silêncio, olhando o mar sobre a amurada. Como dizer-lhe que o que mais desejava era vê-la novamente? Mas tinha medo. Acreditava, de forma intensa, que ao vê-la colaboraria, de alguma forma estranha e misteriosa, para a desintegração, ou diluição, não sabia ao certo, de Judite, e do seu filho. Vê-la significaria diluir toda a sua existência, do lado de cá. Era quase intolerável pensar nisto. Ele seria responsável pelo desaparecimento de todo um mundo. Talvez, de todo um Universo. Sem saber exatamente por que, lembrou-se de um amigo seu, dos tempos da universidade, que nunca completava uma frase. Achava que, se a completasse, cometeria um erro de Português. E que este erro, somado a outro, e outro, e outro, terminaria por destruí-lo. Mas que isto só aconteceria, de forma irrevogável, se fosse flagrado no Erro pelo Aurélio. - Ele não pode ver que eu... - Ele? De quem você está falando? - Do Aurélio, ora. Quem mais poderia...? - Mas, pelos diabos, quem é este Aurélio?! - Ele sabe tudo o que eu... bem, mas eu não posso permitir que... Você me entende... 188 Não, Alberto nunca entendeu o Alvarez. Sabia, ou melhor, pressentia, já que ele nunca o declarou plenamente, que ele vivia cada minuto da sua vida com medo. Com medo do Aurélio. - Mas, com todos os diabos, quem, afinal de contas, é este Aurélio?! - Ele sabe todos os nossos... bem, você deve saber que... entende...? Mergulhado naquelas reminiscências, Alberto esqueceu-se completamente do seu conhecido lunariano, e, quando voltou a si, ele já não estava mais ali. Mas ficara-lhe a frase martelando a memória: “Ela acredita que o ofendeu, mas não sabe bem por quê”. 189 É PRECISO SABER O QUE SE QUER No dia seguinte, achando que estava se mostrando muito ausente, e que aquela ausência, provocada pela lembrança constante da mulher, cujo nome nem sabia!, que lhe tomava todos os pensamentos, parecia-lhe já uma forma de enfraquecer os seus laços com “o lado de cá”, Alberto convidou Judite e sua mãe (dela, sogra dele) para um programa. Iriam ao cinema e depois a um restaurante. - O que temos aqui? Podemos ver um filme nacional. (Hoje em dia, pensou Alberto, quando parece ter passado a síndrome cinemanovista da experimentação e da vanguarda, já é um bom programa levar a sogra para o cinema. Mas, mesmo assim, ainda é necessário cuidado.) - Vejamos aqui... temos duas opções: Cidade Baixa e Dois filhos de Francisco. Dizem que Cidade Baixa é muito bom, mas para levar dona Helena... sei não. - Só se for para ela levar dois meses nos xingando. Foram ver Dois filhos de Francisco. Saíram felizes do cinema, achando que a escolha fora perfeita. Dona Helena chorou, Judite chorou, até Alberto procurou disfarçar a emoção – e saíram todos muito felizes. - Que bom ver um filme assim, pra cima, não é? - É, mas dá pra se perceber que o diretor quer atingir o emocional das pessoas. É tudo muito bem estudado para obter uma boa bilheteria. Que distância do realismo poético de um La strada – disse Alberto, recuperando o ar blasé do intelectual, insuportável. - Você não gostou? – perguntou dona Helena. – Mas será possível não gostar de um filme deste! - Não é bem isto. As críticas não impedem que eu tenha gostado do filme. Podemos avaliá-lo por diversos planos, sabe? Não, ela não sabia. Para ela, todo aquele palavrório traduzia-se num único defeito grave: o da falta de definição. “Um homem de verdade precisa saber o que quer na vida. Se ele nem sabe se gostou do filme, que dirá do resto...” E, como se tivesse se surpreendido com as próprias palavras, acrescentou, após uma pausa: - Espero que você saiba o que quer com a minha filha. * * * Deixando a polêmica de lado (mas com as palavras da sogra martelando no juízo), Alberto acompanhou-as a uma lanchonete onde iriam comer alguma coisa. Quase lhe passou 190 percebido o fato de que estava vazia, sem quase nenhum cliente, e que em poucos minutos quase não conseguia encontrar um lugar para se sentar. - Estranho... E, como se tivesse lhe revelando um segredo, disse Judite que a responsável por aquele fenômeno, estava sentada à frente dele, olhando-o com um vago sorriso de ironia. Em síntese: a velhinha tinha o dom de atrair fregueses para qualquer estabelecimento onde entrasse. Não sabia explicar as causas, e guardara o segredo por mais de cinqüenta anos. - É verdade, garantiu Judite. Sempre que eu saía com ela, experimentava uma sensação estranha de algo que não sabia o que era. Quando ela me revelou o segredo, tudo se ajustou, “como uma luva”. - Seria minha sogra uma habitante de Lunaris? . EM ELABORAÇÃO 191 DADOS DO AUTOR Carlos Ribeiro nasceu em 19 de agosto de 1958, em Salvador, Bahia. Formado em Jornalismo e doutorando em Letras pela Universidade Federal da Bahia, é um dos editores da Iararana – revista de arte, crítica e literatura. Realizou durante 15 anos trabalhos voltados para as áreas de meio ambiente, divulgação científica, literatura, cultura popular e história oral, entre outras. Em 1986 participou da quarta expedição brasileira à Antártida, e em 1993 visitou a Estação Ecológica Mamirauá, no Amazonas, realizando trabalho de divulgação das atividades científicas ali realizadas. Tem publicado os seguintes livros: Já vai Longe o Tempo das Baleias (Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1982), O Homem e o Labirinto (BDA Bahia, 1995), Chapada Diamantina (AC&M Editora, RJ, 1988, que inclui textos de Jorge Amado e Roy Richard Funch, e fotos de Luiz Claudio Marigo), O Chamado da Noite (Editora Sette Letras, RJ, 1997), O Visitante Noturno (Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2000), Caçador de Ventos e Melancolias: um estudo da lírica nas crônicas de Rubem Braga (Edufba, 2001) e Abismo (Geração Editorial, 2004). Participa das antologias Oitenta – Poesia & Prosa (BDA Bahia, 1996), Anos 90: Manuscritos de Computador (Boitempo, 2001), Chico Buarque do Brasil (Garamond, 2004), Contos Cruéis (Geração Editorial, 2006) e Antologia panorâmica do conto baiano – século XX (Editus, 2006). Com textos publicados em suplementos culturais e revistas literárias de Salvador, foi vencedor em 1988 do concurso de contos promovido pela Academia de Letras da Bahia. Ribeiro é colaborador do jornal A Tarde, no qual escreve reportagens e resenhas literárias, professor de jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. . www.carlosribeiroescritor.com.br 192 193