Veja aqui a reportagem na revista Volta ao Mundo
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VOLTA AO MUNDO VIAGENS EM LÍNGUA PORTUGUESA DESDE 1994 MELHOR DESIGN CAPA DE REVISTA N.º230 | DEZEMBRO 2013 | MENSAL | ANO 19 BRUGES | ISRAEL | BOLÍVIA | TANZÂNIA N.º 230 DEZEMBRO 2013 www.voltaaomundo.pt ISABEL STILWELL desvenda Bruges inspirada em Isabel de Borgonha ISRAEL NO UMBIGO DO MUNDO BOLÍVIA PELO MENOS UMA VEZ NA VIDA TANZÂNIA ESPLENDOR AFRICANO MENSAL, ANO 18, N.º 230, DEZEMBRO 2013 €4,90 Ponto Cardeal O PORTÃO DOS TEMPLOS Israel principia logo no nosso desejo de lá ir, nas razões que nos conduzem, nas pessoas que nos acompanham, na bagagem que levamos. E os que protegem Israel conhecem muito bem as regras do jogo. Dezenas de perguntas, questões repetidas, cruzadas, olhos que nos leem por dentro, raparigas e rapazes bem educados mas rigorosamente alerta. Somos à partida ameaças potenciais, estranhos que se aproximam e podem usar mil disfarces. E as perguntas, claro. Por que razão queremos ir a Israel , se conhecemos o passageiro que está ao nosso lado, e, se o conhecemos, de onde o conhecemos e que tipo de relação temos com ele. E as mesmas perguntas são feitas ao tal passageiro do lado, uma vez, várias vezes, muitas vezes… Perguntas sem fim que nos confundem e nos fazem sentir uma pontinha de culpa por embarcarmos para Israel. E o olhar neutro, atento e focado nas reações das nossas pupilas, nos movimentos dos nossos lábios, na mais impercetível das nossas expressões. Mas em momento algum nos sentimos ameaçados ou violentados. Numa porta de embarque da El Al concentração rima com a mais polida das correções. Profissionais, concluímos com toda a certeza, gente treinada para defender o seu espaço, Israel. P.S. A Volta ao Mundo foi distinguida pela segunda vez consecutiva com o prémio «Escolha do Consumidor». Obrigado a todos! José Jaime Costa diretor [email protected] BÉLGICA 8 BOLÍVIA De Isabel para Isabel No Salar, como na Lua O seu longo percurso enquanto jornalista, à frente de várias publicações de referência e como colaboradora assídua de diferentes meios, tornou Isabel Stilwell uma figura conhecida do grande público, mas é a escrita (e o sucesso de vendas) de romances históricos que tem vindo a granjear-lhe maior projeção. Entre Filipa de Lencastre, a Rainha Que Mudou Portugal (que já vai na 28.ª edição) e Ínclita Geração, o seu mais recente livro, Stilwell assinou uma mão-cheia de bestsellers, mas a história de Isabel de Borgonha (a filha de D. Filipa de Lencastre que levou Portugal ao mundo) fê-la embarcar numa viagem inédita com a Volta ao Mundo até Bruges. A partir da página 62. A pose e a bandeira nacional fincada em solo boliviano – no caso, o Salar de Uyuni, a maior salina do mundo – expressam um sentimento justificado de conquista. No bom sentido, claro. Carlos Fernandes, que se estreia nesta edição da Volta ao Mundo, resume assim a sua experiência: «A Bolívia tem um dos cenários mais incríveis que se podem apreciar e é uma experiência com uma verdadeira pitada de sal, recheada de paisagens que fogem muito ao nosso dia a dia e das viagens de montra. Guardo-a com muito carinho na minha memória e desejo que todos os leitores possam um dia passar por lá para perceber o que senti e o que procurei transmitir na reportagem.» Volta ao Mundo dezembro 2013 Move On Ter um Lexus CT 200h é mais do que uma experiência. É um luxo. Porque combina a elegância e a tecnologia de ponta com uma performance e potência extraordinárias. 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O LIVRO QUE INSPIROU ESTA VIAGEM Título: Ínclita Geração Autor: Isabel Stilwell Género: Romance histórico Editor: Esfera dos Livros N.º páginas: 528+12 extratextos PVP: 22 euros P ousados casacos, gorros e luvas, porque a manhã está gelada, sentamo-nos a uma mesa de madeira de faia, comprida e larga, de um café para descansar uns minutos. Tiro da mochila o baralho de cartas que comprei na loja de um dos museus, satisfeita com a aquisição – Jogo dos Duques da Borgonha, diz na caixa, e entre os vários membros da família ali está ela, Isabel de Portugal, uma pintura da duquesa da Borgonha atribuída a Jan van Eyck. Decididamente, prefiro mil vezes o retrato que o grande mestre flamengo pintou em Avis, no Alentejo, de uma princesa desafiante, de sorriso ligeiramente trocista nos lábios. Tenho a certeza de que era essa a verdadeira Isabel, feita de sol e de sombras, determinada e segura, que enfrentava com coragem e determinação os obstáculos. E é essa a Isabel que, seiscentos anos depois, procuramos nesta cidade que foi sua. Dou as cartas: Isabel é a rainha de copas, Philippe, o duque da Borgonha, o rei do mesmo naipe. Assentam-lhe bem os títulos, na prática são reis de facto, na corte mais rica e culta da Europa medieval. Tiro mais uma do baralho, e aqui está Carlos, o Temerário, um rei de paus, tinha de ser. O adorado filho único em que a mãe investiu tudo, depois de os seus outros dois bebés terem morrido ainda de colo, ou pouco mais. Nos pequenos conventos desta cidade, os frades e as freiras tinham ordens de rezar continuamente pela segurança do herdeiro. Estendo as cartas na mesa, o naipe virado para cima, e encontro Maria, a neta querida, a 64 sucessora da avó, que soube honrar a herança de uma mulher forte, tão importante na sua vida. Decidida, arrumo o baralho na caixa, porque temos de sair de novo para a rua, seguindo os passos da duquesa Isabel, nesta cidade que se mantém miraculosamente próxima da Idade Média, salva das bombas das duas grandes guerras que destruíram tanto do património europeu, conservada com cuidado, visitada por gente de todo o mundo, de máquinas fotográficas em riste. Que sorte, o céu está agora azul, e a água do canal que corre com as casas de ambos os lados reflete o sol, os jardins com degraus e portões junto do rio, os braços dos salgueiros debruçados sobre os barcos cheios de turistas que passam incessantemente. De repente a luz muda, sem aviso, e caem pingos de chuva, embora há segundos não houvesse uma nuvem no céu – o melhor é ignorarmos o clima, caso contrário não fazemos outra coisa senão abrir e fechar chapéus de chuva. Túlipas e carruagens na praça principal A praça central de Bruges é um espanto, circunscrita por casas e onde desaguam pequeninas ruas da cidade. Os Halls e o Belfry, o imponente campanário, ocupa um dos lados: era ali, sob aqueles arcos, que se vendiam os tecidos flamengos, o «ouro» que Isabel encontrou a cobrir as ruas no primeiro dia em que entrou na cidade, a 8 de janeiro de 1430. Tinha então 32 anos e Bruges celebrava em pompa nunca antes vista o terceiro casamento do seu senhor, o duque da Borgonha com a princesa portuguesa, filha do rei de Portugal e senhor de Ceuta. COMO IR A Air Brussels (brusselsairlines.com) possui ligações regulares com Bruxelas a partir de 119 euros. Na cidade, pode optar por alugar um carro, já que o trajeto até Bruges é simples e não demora mais de uma hora. Pode também apanhar um comboio até à estação na cidade, ou um táxi (cerca de 50 euros), e daí um comboio para Bruges, que demora cerca de uma hora. ROTEIRO Como preparar a viagem Visite o site oficial do turismo de Bruges (www.brugges.be) e vai encontrar toda a informação de que precisa para planear a sua estada e, ainda, encontrar o programa que mais lhe convém. Onde estacionar O ideal é negociar com o hotel o estacionamento, mas se não o tiver feito há grandes parques públicos antes de entrar na parte histórica. Custam aproximadamente 9 euros por dia. O cartão de Bruges dá um desconto de 25 por cento. Volta ao Mundo dezembro 2013 RAINHA DE COPAS A «nossa» Isabel e o marido, Filipe, o Bom, são as estrelas principais do Jogo dos Duques da Borgonha, um baralho de cartas à venda por 11 euros nas lojas dos museus (à esquerda). Nesta página, Bruges, vista da torre mais alta da cidade. Volta ao Mundo dezembro 2013 65 MARCAS Percorra a cidade a pé e de olhos bem abertos. Os símbolos nas fachadas falam dos proprietários, e do que faziam. Visite a fábrica de cerveja de fabrico local, a Zot, e conheça a sua história. uma vez no HISTORIUM ENTRAMOS NUMA SALA QUE SIMULA UM CAIS. UM APRENDIZ DE VAN EYCK VEM ESPERAR UMA «MODELO» E UM PAPAGAIO VERDE Do outro lado da praça, o edifício de fachada branca, e águas-furtadas de janelinhas encarnadas, é a câmara municipal, outrora mercado, as caves inundadas pelas águas do canal, para que os barcos dos comerciantes pudessem descarregar, deixando as mercadorias ao abrigo da chuva e da neve, naquele que era o maior entreposto comercial do Norte da Europa. Olho em redor e volto a concluir que aquilo de que mais gosto são estas casas altas e estreitas, numa zona onde, desde sempre, o preço do metro quadrado de terra aconselhava a construir em altura. Procuro no que me rodeia sinais das descrições dos cronistas que acompanharam Isabel na sua Gloriosa Entrada na primeira cidade da Flandres. As gentes que a aclamavam na rua, enquanto passava numa liteira, a procissão que a seguia dos oficiais da cidade, os padres, os nobres, os grupos de profissionais, trajados de acordo com a sua arte, e as centenas de carruagens que traziam os nobres de todo o ducado – o exercício de imaginação não é difícil, neste dia ainda menos, porque é dia de feira e a praça está de facto cheia, e nem sequer falta o barulho dos cascos dos cavalos que puxam carruagens. Vamos abstrair de que lá dentro seguem turistas agasalhados com mantas, a ouvir as explicações dos cocheiros, a que se juntaram bicicletas, aos milhares, que circulam a grande velocidade e de que convém sair da frente. 66 Mas não há cercas para os torneios, nem cabeças de leão nas fachadas, a jorrar hipocraz, uma bebida quente de vinho, canela, mel e amêndoa que bem me apetecia experimentar, mas o que não faltam são esplanadas aquecidas, onde se pode sentar por momentos a estudar o mapa. Já agora um conselho: não se deixe enganar pelas aparentes distâncias porque, na realidade, tudo é perto e andar por estas ruas é um verdadeiro prazer. Mas antes de voltar a partir, aproveitei o facto de o Reinaldo estar entretido a montar e a desmontar tripés e lentes e passei por entre as bancas de flores, que são quase o exclusivo deste mercado. Caixotes de bolbos de túlipas recordam um tempo, que não é o de Isabel (estas flores chegaram à Europa em meados do século xvi vindas da Turquia), em que por estes lados do mundo eram tão valiosas, que tinham uma bolsa de valores próprias – as mais raras, resultados de novos cruzamentos, valiam autênticas fortunas, e os senhores da França e da Inglaterra mandavam os seus jardineiros em busca de uma espécie nunca vista para poderem exibir na sua estufa de raridades. Grandes fortunas se perderam, quando em 1637 se deu um autêntico crash, ao estilo do Lehman Brothers. Paro frente a um homem magro e de bigode que gesticula e apregoa as qualidades das suas flores. Ao seu lado, um cartaz com a sua ROTEIRO Cartão de Descontos Vale a pena comprar o Bruges City Card, que oferece descontos (pelo menos 25 por cento) em muitos dos sítios que vai querer visitar, nos passeios de barco nos canais, e admissão gratuita nos 26 museus e outros locais de interesse em Bruges. Dá também direito a um guia de 152 páginas com conselhos secretos dos conhecedores da cidade e um ótimo mapa da cidade. bruggecitycard.be fotografia e a legenda «Aqui está um agricultor que não se queixa!» Desconfio que, na Idade Média, seria também exemplar único. Historium: o regresso ao ano de 1435 Decidimos começar pelo Historium. Quando aqui estive em investigação para o livro adorei a experiência, e quero repeti-la. Por sorte, a encenação passa-se no ano de 1435, estava já a nossa Isabel há cinco anos por estas terras. A recriação é extraordinária e assistimos a um vídeo dos bastidores desta operação, ao trabalho de uma equipa multidisciplinar que estudou todos os detalhes, da roupa aos adereços, para que o retrato fosse fidedigno. Esperamos num pequeno grupo, nas orelhas o auricular em inglês (também há em francês e em espanhol), e vamos seguindo pegadas marcadas nos degraus de uma escada, esperando enquanto a primeira porta não abre. Quando as dobradiças rangem, entramos numa sala que simula um cais de mercadoria, onde um rapaz espera uma rapariga linda, que vem posar para um dos quadros de Van Eyck. Na história, o aprendiz do pintor aguarda para levar a bela Ana e um papagaio verde, vindo talvez do Portugal dos Descobrimentos, até ao estúdio do Mestre, e mais não posso contar.... No final, encontramos uma série de salas onde os detalhes da época são explicados. Pode Volta ao Mundo dezembro 2013 MOINHOS A paisagem da então Flandres era marcada pelos moinhos, tão diferentes dos nossos. Procure-os a norte da porta de Ghent, num jardim fabuloso que corre a linha da antiga muralha. ONDE FICA Hotel Mirabole É um hotel pequeno, próximo, mas não central, confortável e com um ambiente familiar. Deram-nos a chave da porta e entrámos e saímos à vontade. Os pequenos-almoços eram simples, mas bons. h-rsn.com Hotel Prinsenhof É um hotel mais sofisticado, numa rua próxima da praça. Quartos pequenos, mas de bom gosto e acolhedores. prinsenhof.com ver a caravela e imaginar que Isabel esteve nela dois meses seguidos, perdida no Atlântico, o mapa de Sluis, que então se chamava L'Ecluse, onde a nossa princesa chegou no dia de Natal de 1429, quando todos já a julgavam perdida para sempre. Se gosta de mapas, observe como o canal ligava o mar do Norte a Damme, terra onde os duques passaram a primeira noite, e se prefere deixar-se guiar pelo olfato, abra uma gaveta e cheire o sândalo das oficinas, veja os pigmentos, as tintas e as cores. O meu objeto favorito é o par de óculos expostos, que podíamos imaginar um anacronismo se não estivessem pintados nos olhos do senhor abade, no Madonna with Canon Joris van der Paele de Van Eyck (que pode visitar no Museu Groeninge, aqui em Bruges). Quando regressamos à rua, agradecemos que a Bruges de hoje não cheire ao século xv e que de uma daquelas janelinhas não gritem um «água-vai». Agora cheira a chocolate e há lojas de chocolates, de todos os tamanhos, gramagens e feitios nas ruas em redor das praças principais. A família em Portugal agradece, caso lhes queira trazer alguns. Belfry, 366 degraus e a xenofobia A fila de gente para subir à torre do campanário é longa, e está frio, não apetece nada esperar ali parado. Mas não desistimos, já que Volta ao Mundo dezembro 2013 SUBIR OS 366 DEGRAUS DO BELFRY CUSTA, MAS É OBRIGATÓRIO. A TORRE SIMBOLIZA O PODER DE BRUGES E OS SINOS AINDA MARCAM A VIDA DA CIDADE sabemos que nunca vai ser mais curta, já que é o ponto obrigatório em todos os roteiros. Só entram pequenos grupos de cada vez, porque as escadas são muito estreitas, e os «engarrafamentos» difíceis de contornar, já que faltam patamares largos. A torre significava o poder dos cidadãos – os sinos marcavam a vida dos habitantes, da varanda faziam-se os anúncios públicos, e era aqui que se guardavam os tesouros e os documentos mais importantes. São só 55 degraus até à Tesouraria, as arcas de ferro em nichos, atrás de grades que se podiam fechar para dupla segurança. Isabel não subiria muito mais alto do que isto, acreditamos, mas nós temos de continuar pelos 366 degraus acima. Apesar das mochilas, a do Reinaldo com duas máquinas bem mais pesada do que a minha, continuamos sempre a subir. Quando estávamos a fotografar os degraus que antecedem a sala do mecanismo que comanda o carrilhão de 47 sinos, uma irritante inglesa que procurava descer antes de tempo, e nos considerava um empecilho, comentou com os seus dois acompanhantes: «A tirarem tantas fotografias, são japoneses com certeza.» Parei no degrau estreito e respondi-lhe que éramos portugueses e que lhe pedia desculpa, mas estávamos em trabalho, mas a criatura ainda era mais xenófoba contra jornalistas do que nipónicos e retorquiu: «Ah, vocês são dos que arranjam os sarilhos, para depois os irem fotografar.» Como gostaria de recuar seiscentos anos e condená-la a uns dias nas masmorras. Tenho a certeza de que a «nossa» Isabel não lhe perdoaria a insolência, não era propriamente uma mulher tolerante e sabia-lhe bem exercer o poder. Mas, à falta dela, continuei a subir. Ofegante, cheguei ao topo, e a vista do alto daqueles 86 metros merece o esforço: Bruges estende-se por quilómetros, sem aqueles atentados urbanísticos que infelizmente do alto dos nossos castelos vemos tantas vezes. Ali está o Palácio dos Duques, o Prinsenhof – imponente visto de cima, telhados pretos, águas-furtadas com as suas janelinhas iluminadas, e uma inconfundível torre cónica, o telhado em cone, ao estilo Rapunzell. É o ponto seguinte da visita. Durma na cama da duquesa Agora, o Prinsenhof é um hotel, o The Duke's Palace, mas a emoção de saber que aqui viveu Isabel, Philippe, Carlos, que aqui dormiu o infante D. Fernando, sim, o infante Santo, que aqui, neste local, estiveram todas os personagens do meu livro faz que, mesmo a pessoa menos piegas, inspire o ar gelado com respeito. O Prinsenhof foi ampliado para a nova duquesa da Borgonha, naquele ano de 1430, e 69 BY NIGHT Os turistas jantam cedo e as ruas e os canais ficam só por nossa conta. Repare nos portões que dão diretamente para a água e admire o Belfry, magnífico visto a esta luz. ocupava então três ou quatro vezes o espaço que tem hoje. Os cronistas que acompanharam a chegada de Isabel da Borgonha, contam como o duque investiu na decoração do paço, mandando vir tapeçarias, quadros e móveis do palácio de Dijon, num cortejo de centenas e centenas de carroças, escoltadas por quatrocentos soldados, e como mandou erguer no pátio central uma cozinha enorme, seis despensas e uma sala de jantar gigante para acolher todos os convidados. E foi aqui que em junho de 1467, aos 71 anos, e depois de um jogo de ténis (era diferente, mas chamava-se ténis), morreu o duque da Borgonha, de uma pneumonia. O caixão com o seu corpo foi acompanhado até à catedral que já não existe, de quatro bispos e 22 padres, numa procissão conduzida por Carlos, dois dos seus irmãos bastardos, um escudeiro que transportava a espada do duque, e por todos os grandes e pequenos do ducado, vestidos de negro. Uma travessia da cidade a meio da noite, as tochas acesas na mão para cortar a escuridão. E, alguns anos depois, é também aqui que a neta de Isabel morre, em consequência de uma queda de cavalo, aos 25 anos, aquela que aos 20 anos foi também duquesa da Borgonha. Quando vemos o edifício por fora, sobretudo quando está iluminado à noite, é fácil voltar atrás no tempo, mas por dentro é apenas um hotel moderno e luxuoso. Ficar aqui instalado deve ser confortável, mas caro, por noite cerca de 250 euros, mas se for como nós vai limitar-se a fazer uma visita para beber um chá ou um café, uma infusão de frutos vermelhos para ele e uma verbena para mim (4,5 euros cada), acompanhadas de uns deliciosos bolinhos. Não se esqueça de pedir a história do Prinsenhof, são apenas umas folhas fotocopiadas, mas bem escritas e rigorosas. DINASTIA A Ponte de São Bonifácio leva-nos até à Igreja de Notre-Dame, onde estão sepultados o filho e a neta da duquesa da Borgonha. Em Bruges há sempre caminhos diferentes para chegar onde queremos. O PRINSENHOF, O PALÁCIO DOS DUQUES, É HOJE UM HOTEL. MAS COMO ISABEL VIVEU NAQUELE LOCAL, E FOI ALI QUE MORREU FILIPE, VALE A ROMAGEM. Encontre a duquesa na beleza dos vitrais É preciso ressalvar, por escrito, que o Reinaldo não me deixou parar em nenhuma das lojas, mas as montras apeteciam mesmo. Foi indecente, porque Isabel da Borgonha vivia na corte mais luxuosa do mundo de então, e os tintureiros e tecelões que trabalhavam nestas ruas produziam para ela os tecidos mais fabulosos, brocados e veludos de cores nunca antes vistas, graças aos pigmentos da Madeira e dos Açores, que o infante D. Henrique fazia chegar à irmã. Tecidos que transformavam num guarda-roupa fabuloso e que recebiam, por vezes, nomes portugueses, como a touca portuguesa, ou a saia portuguesa, a que os cronistas se referem invariavelmente. Por isso, sim, é justo que me tivesse deixado entrar nas lojas. Mas não deixou, porque tínhamos que fazer, o que também era verdade. Chegámos ao Burgo, a praça onde em tempos estava a Igreja de Saint-Donatien, em que a duquesa assistiu a tantas missas, em que velou o corpo do mestre Van Eyck, e o do seu próprio marido. Mas o Town Hall é do tempo de Isabel da Borgonha, e é magnífico, as estátuas nos nichos são recentes porque as antigas foram destruídas, como é magnífica, e merece visita, a sala gótica com os seus espantosos murais. Mas nesta pequena praça, o meu edifício favorito é a Basílica do Sangue Divino, porque é diferente de tudo o resto – uma porta térrea dá 72 entrada para a cripta de São Basil, construída no século xii, e o seu estilo românico é sóbrio e encantador. Na porta ao lado, suba para visitar a basílica propriamente dita, onde se guarda a relíquia do sangue de Cristo, trazida da segunda cruzada e que está em Bruges desde então. A capela parece oriental, as paredes pintadas de frescos, mas foi o Reinaldo, honra lhe seja feita, que descortinou a «nossa» Isabel nos vitrais das janelas, e depois os «nossos» Filipe, Carlos e Maria – os senhores da Borgonha estão aqui, por obra de uma renovação feita no século xix, e os vitrais originais, pasme-se, num museu em Londres. É em junho, no Dia de Corpo de Cristo, que acontece a procissão mais antiga da cidade e que, ainda hoje, recria ao pormenor uma procissão medieval. Se tiver oportunidade, esteja lá nesse dia, porque então não vai mesmo precisar de fazer uso da imaginação... Os autóctones passam de bicicleta sem prestar atenção àqueles que se debruçam sobre mapas – nem podia ser de outra maneira, Bruges tem milhares de visitantes por ano, e mesmo no outono e no inverno a cidade enche, sobretudo aos fins de semana. Mas esta senhora de cabelos brancos, montada na sua «bica», decide que o Reinaldo e eu merecemos o seu apoio. Procuramos o quê? A Bolsa de Valores? Tentamos pronunciar a palavra em flamengo, aliás numa Bélgica onde fazem gala em não falar francês, mas falhamos redondamente. Em inglês conseguimos explicar que queremos ver a taberna onde, no tempo de Isabel, os comerciantes faziam câmbios. Não havia uma moeda única europeia, nem tão-pouco dentro de cada país, e foi a «nossa» Isabel que se empenhou em criar o sistema monetário do ducado da Borgonha e uniformiza-lo com a Inglaterra, o seu principal fornecedor e cliente. A família dona desta taberna, Tier Bourse, deu o nome à Bolsa, os pobres não sabiam o que faziam... A casa é uma desilusão. Seis séculos depois, é a sede de uma rádio local, um edifício que não se pode visitar. Mas marcámos presença, e se quiser desenjoar da Idade Média tem mesmo ao lado o Museu da Batata Frita. Isso mesmo. A cidade vista da água Mas afinal onde estão os canais desta Veneza do Norte, como lhe chamam? Tem duas hipóteses: ou segue o mapa, que é fácil, ou segue o grupo de turistas que, por sua vez, vão atrás de um guia. Num dos ancoradouros, bem assinalados, pode apanhar um barco e fazer uma viagem fluvial pela cidade, uma forma diferente de conhecer Bruges – de ponte em ponte, cada uma com uma história, vendo os monumentos por ângulos diferentes, na dobra de um canal. Exceto, claro, nos meses mais frios, em que alguns Volta ao Mundo dezembro 2013 Volta ao Mundo dezembro 2013 73 OLHOS ABERTOS O Béguinage (à esq. em cima) é um convento diferente de todos os outros. A porta de Ghent (à esq, em baixo) foi palco do assalto à carruagem da duquesa. Durante dois anos, Isabel não voltou a Bruges. A DIVISA NA FACHADA DE JOÃO VASQUES GARANTE QUE O FUTURO SE FAZ DE BOAS CONTAS. A DUQUESA da Borgonha NÃO TERIA DITO MELHOR. dos canais gelam, para deixar ver uma Bruges muito diferente, mas igualmente fascinante, e com menos turistas – e aquela que Isabel da Borgonha viu repetidamente durante os 41 anos em que esteve nesta cidade. Béguinage, um lugar mágico Depois de um almoço leve, no restaurante moderno e de bom gosto da fábrica de cerveja De Halve Maan, decidimos descer até ao béguinage. Não pude deixar de voltar ao meu livro – foi aqui que coloquei o encontro entre Isabel da Borgonha e o seu colaço – irmão de leite – Lopo Gonçalves. Foi aqui, na paz desta espécie de convento de mulheres religiosas, viúvas ou solteiras, que na Idade Média decidiam dedicar a vida a Deus e a servir os pobres independentes de uma ordem religiosa, que Lopo lhe conta os detalhes da morte de D. Pedro na Batalha de Alfarrobeira, assassinado pelos soldados do meio-irmão, Afonso de Bragança. É um sítio mágico que vale a pena visitar com calma. O acesso faz-se por uma ponte, por cima de um canal que desagua no lago do Amor, cheio de cisnes brancos, como aqueles que o duque da Borgonha mandou a Isabel com o pedido de casamento, e que segundo a lenda terão ficado no paço de Sintra. O local é património da humanidade desde 1998 e é o único béguinage que ainda existe, Volta ao Mundo dezembro 2013 fechado por três portões. O grande jardim verde, de árvores altas, e ladeado por casinhas brancas, onde as beguinas viviam, e quase que ficamos sem fôlego quando vimos a atravessá-lo três freiras que regressavam em silêncio da missa na igreja que se descobre entre as árvores altas... São beneditinas, e agora é aquela ordem que toma conta do lugar. Pode visitar uma das casinhas (está fechada das 12h30 às 13h30), e a igreja que é do tempo de Isabel por fora, mas depois de um fogo no século xvi transformou-se em barroca por dentro. Procure a mais antiga imagem de Nossa Senhora em Bruges, uma imagem de madeira, sem pinturas, que vale a pena ver mais de perto. Isabel era admiradora das beguinas e inspirou-se nelas quando decidiu retirar-se para La Motte-au-Bois, não muito longe de Bruges, transformando o castelo em hospital, cuidando de mulheres doentes e pobres. Mas nunca deixou de vir a Bruges sempre que o marido estava doente. «Traz-me as tuas ameixas em calda, que são o melhor remédio», pedia-lhe ele, e depois melhorava e partia para mais uma batalha, e mais uma aventura, porque foi sendo pai de filhos bastardos até aos 56 anos, totalizando segundo os historiadores mais sérios 26 amantes, e 24 filhos ilegítimos, porque há quem lhe atribua uma prole muito maior. Porta de Ghent – o grande insulto Agora passam os carros, sobre a ponte levadiça, ao lado do grande canal que une Bruges a Sluis, naquela que é a porta de Ghent, a porta principal na muralha que rodeava a cidade na Idade Média. A fortificação é bonita, pode ser visitada às sextas e ao fim de semana, e tem um valor imenso para quem aqui está à procura dos locais onde a vida de Isabel da Borgonha foi tocada. Porque esta porta marcou um momento terrível na sua vida: no dia 26 de agosto de 1436, os cidadãos de Bruges revoltaram-se contra o aumento dos impostos, obrigando a duquesa a fugir, com o pequenino Carlos, de apenas 2 anos ao colo. Imaginou que ninguém impediria a sua saída, que ninguém se atreveria a tocar-lhe, mas enganou-se. Os rebeldes mandaram a carruagem parar e quiseram detê-la. Quando finalmente conseguiu escapar, jurou não voltar até que as cabeças dos revoltosos rolassem na calçada. E rolaram. Arrependidos, ou melhor ,conscientes de que não podiam sobreviver sem a proteção dos duques da Borgonha, acabaram por pedir perdão e Isabel voltou, mas apenas dois anos depois. Sendo esperada então, neste mesmo local, pelos senhores da cidade rojados no chão, de cabeça destapada, dispostos a comer o pó da estrada. 75 ANTEPASSADOS Carlos, como o seu tio Henrique, tira o elmo e une as mãos em oração, para a viagem final. No túmulo do filho e da neta de Isabel estão as árvores genealógicas onde encontra as armas de Portugal. À direita, a praça principal da cidade. É um momento de emoção quando NOS ENCONTRAMOS COM aS NOSSaS PERSONAGENS. OS TÚMULOS DE CARLOS E MARIA SÃO UM PONTO ALTO. Jantar em casa de João Vasques Felizmente, o meu quarto no pequeno hotel Maraboe, confortável e próximo do centro, tinha banheira. Precisávamos urgentemente de descansar, antes do passo seguinte: ir jantar a casa de João Vasques, o secretário da duquesa da Borgonha, que veio com ela de Portugal e esteve ao seu lado até que a morte de Isabel os separou. Tratava de todos os seus assuntos com Portugal, e em junho 1448, dezoito anos depois de terem chegado à Borgonha, casou-se com Marguerite van Ackere, da nobreza da Flandres, um bom casamento, patrocinado pelos duques. Com o casamento, o bom João aventurou-se a ter casa própria, mesmo ali ao lado do Prinsenhof, e na fachada a inscrever a ouro a sua divisa, que não podia ir mais ao encontro do espírito da sua senhora: «A bon compte avenir», pode ler-se, ou seja, «Boas contas garantem o futuro» – se Isabel tivesse sido ministra das Finanças de Portugal muita desgraça se teria evitado. Hoje lá está a casa, preservada e transformada num bar-restaurante, o Cafedraal. Os criados não reconhecem a minha história, sabem só que a casa é medieval, que lá fora no pátio, onde se pode comer nos dias mais quentes, há painéis de cenas bíblicas nas paredes, mais nada. Triste a facilidade com que as pessoas habitam casas sem lhes quererem saber a história. Mas come-se bem, pelo menos. 76 Igreja de Notre Dame – O filho e a neta em pompa e circunstância Senti uma enorme emoção ao voltar à Igreja de Notre-Dame, porque quando se faz pesquisa histórica e nos encontrarmos «cara a cara» com as nossas personagens é um momento de emoção. Mas o coração ia-me caindo aos pés quando percebemos que as obras de conservação da catedral impediam o acesso aos túmulos do filho de Isabel da Borgonha e da neta Maria. Felizmente tínhamos uma carta do Turismo de Bruges e carteiras profissionais; conseguimos demover um dos guardas a deixar-nos passar. Carlos, o Temerário, que andou em guerras na tentativa de alargar o ducado e conquistar e manter os seus territórios, tem o elmo pousado ao seu lado, como acontece com o infante D. Henrique, o tio que admirava tanto: ao encontro de Deus deixam as armas e unem as mãos em oração. Aproxime-se para conseguir perceber nos lados do túmulo a árvore genealógica de Carlos, e depois na de Maria, e lá vai encontrar os brasões com as armas portuguesas. Lá encontrará o brasão de Isabel da Borgonha, de D. Filipa de Lencastre e de D. João I e os dos seus antepassados. Isabel foi enterrada longe daqueles que mais amou, porque Carlos quis que descansasse em paz no grande palácio dos duques da Borgonha, em Dijon. Um pretexto para uma nova viagem, em breve. n ONDE COMER Restaurante Cafedraal Tem pinta e história! A salada d'hiver, com magret de pato fumado, vinaigrette de framboesas, nozes caramelizadas e chutney era óptima ( 17,50 euros). Como prato principal, o linguini alla Vangole, com as moules obrigatórias (22,50 euros). A tarte Tatin era deliciosa, e o Kolonel, sorvete de limão e vodka (9 euros) também. cafedraal.be Restaurante Belle Epoque É despretensioso e tem comida flamenga. Eu comi waterzooi, uma panelinha de cobre com um cozido de galinha, legumes e batatas, quentinho e facilmente digerível (17 euros). O Reinaldo aventurou-se pelo carbonade flamande, uma panelinha com carne com molho de cerveja (18,50 euros) belleepoquebrugge.be Restaurante Schrijverke Em frente à Igreja de Norte-Damme. Não se assuste com os preços na lista – há uma outra para almoços. Pedi sanduíche de pão e fiambre, que afinal saiu presunto; as fatias de pão escuro vêm ao lado. Use as mãos para fazer a sanduíche, é mais medieval. Preço 12 euros. AGRADECIMENTOS www.brugge.be www.brusselsairlines.com Volta ao Mundo dezembro 2013 77