Veja aqui a reportagem na revista Volta ao Mundo

Transcrição

Veja aqui a reportagem na revista Volta ao Mundo
VOLTA AO MUNDO
VIAGENS EM LÍNGUA PORTUGUESA DESDE 1994
MELHOR
DESIGN
CAPA
DE REVISTA
N.º230 | DEZEMBRO 2013 | MENSAL | ANO 19
BRUGES | ISRAEL | BOLÍVIA | TANZÂNIA N.º 230 DEZEMBRO 2013
www.voltaaomundo.pt
ISABEL
STILWELL
desvenda Bruges inspirada
em Isabel de Borgonha
ISRAEL NO UMBIGO DO MUNDO
BOLÍVIA PELO MENOS UMA VEZ NA VIDA
TANZÂNIA ESPLENDOR AFRICANO
MENSAL, ANO 18, N.º 230, DEZEMBRO 2013 €4,90
Ponto Cardeal
O PORTÃO DOS TEMPLOS
Israel principia logo no nosso desejo de lá ir, nas razões que nos
conduzem, nas pessoas que nos acompanham, na bagagem que
levamos. E os que protegem Israel conhecem muito bem as regras
do jogo. Dezenas de perguntas, questões repetidas, cruzadas, olhos
que nos leem por dentro, raparigas e rapazes bem educados mas
rigorosamente alerta. Somos à partida ameaças potenciais,
estranhos que se aproximam e podem usar mil disfarces. E as
perguntas, claro. Por que razão queremos ir a Israel , se
conhecemos o passageiro que está ao nosso lado, e, se o
conhecemos, de onde o conhecemos e que tipo de relação temos
com ele. E as mesmas perguntas são feitas ao tal passageiro do
lado, uma vez, várias vezes, muitas vezes… Perguntas sem fim que
nos confundem e nos fazem sentir uma pontinha de culpa por
embarcarmos para Israel. E o olhar neutro, atento e focado nas
reações das nossas pupilas, nos movimentos dos nossos lábios, na
mais impercetível das nossas expressões. Mas em momento algum
nos sentimos ameaçados ou violentados. Numa porta de embarque
da El Al concentração rima com a mais polida das
correções. Profissionais, concluímos com toda
a certeza, gente treinada para defender o seu
espaço, Israel.
P.S. A Volta ao Mundo foi distinguida pela
segunda vez consecutiva com o prémio
«Escolha do Consumidor». Obrigado a todos!
José Jaime Costa
diretor
[email protected]
BÉLGICA
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BOLÍVIA
De Isabel para Isabel
No Salar, como na Lua
O seu longo percurso enquanto jornalista, à
frente de várias publicações de referência
e como colaboradora assídua de diferentes
meios, tornou Isabel Stilwell uma figura conhecida do grande público, mas é a escrita
(e o sucesso de vendas) de romances históricos que tem vindo a granjear-lhe maior
projeção. Entre Filipa de Lencastre, a Rainha
Que Mudou Portugal (que já vai na 28.ª edição) e Ínclita Geração, o seu mais recente
livro, Stilwell assinou uma mão-cheia de
bestsellers, mas a história de Isabel de Borgonha (a filha de D. Filipa de Lencastre que
levou Portugal ao mundo) fê-la embarcar
numa viagem inédita com a Volta ao Mundo
até Bruges. A partir da página 62.
A pose e a bandeira nacional fincada em
solo boliviano – no caso, o Salar de Uyuni,
a maior salina do mundo – expressam um
sentimento justificado de conquista. No
bom sentido, claro. Carlos Fernandes, que
se estreia nesta edição da Volta ao Mundo,
resume assim a sua experiência: «A Bolívia
tem um dos cenários mais incríveis que se
podem apreciar e é uma experiência com
uma verdadeira pitada de sal, recheada de
paisagens que fogem muito ao nosso dia a
dia e das viagens de montra. Guardo-a com
muito carinho na minha memória e desejo
que todos os leitores possam um dia passar por lá para perceber o que senti e o que
procurei transmitir na reportagem.»
Volta ao Mundo dezembro 2013
Move On
Ter um Lexus CT 200h é mais do que uma experiência. É um luxo.
Porque combina a elegância e a tecnologia de ponta com uma performance
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BRUGES
TEXTO DE ISABEL STILWELL
FOTOGRAFIA DE REINALDO RODRIGUES/GLOBAL IMAGENS
Em busca de Isabel
de Borgonha
Conte um, dois, três, salte
e mergulhe na Idade Média.
É tão simples como isso
quando se franqueiam as
portas de Bruges, em busca da
duquesa de Borgonha.
O LIVRO QUE INSPIROU
ESTA VIAGEM
Título: Ínclita Geração
Autor: Isabel Stilwell
Género: Romance histórico
Editor: Esfera dos Livros
N.º páginas: 528+12 extratextos
PVP: 22 euros
P
ousados casacos, gorros e luvas, porque a manhã está
gelada, sentamo-nos a uma
mesa de madeira de faia,
comprida e larga, de um café
para descansar uns minutos.
Tiro da mochila o baralho de
cartas que comprei na loja de um dos museus,
satisfeita com a aquisição – Jogo dos Duques
da Borgonha, diz na caixa, e entre os vários
membros da família ali está ela, Isabel de
Portugal, uma pintura da duquesa da Borgonha atribuída a Jan van Eyck. Decididamente, prefiro mil vezes o retrato que o grande
mestre flamengo pintou em Avis, no Alentejo, de uma princesa desafiante, de sorriso
ligeiramente trocista nos lábios.
Tenho a certeza de que era essa a verdadeira
Isabel, feita de sol e de sombras, determinada e segura, que enfrentava com coragem e
determinação os obstáculos. E é essa a Isabel
que, seiscentos anos depois, procuramos nesta
cidade que foi sua.
Dou as cartas: Isabel é a rainha de copas,
Philippe, o duque da Borgonha, o rei do mesmo
naipe. Assentam-lhe bem os títulos, na prática
são reis de facto, na corte mais rica e culta da
Europa medieval. Tiro mais uma do baralho, e
aqui está Carlos, o Temerário, um rei de paus,
tinha de ser. O adorado filho único em que a
mãe investiu tudo, depois de os seus outros dois
bebés terem morrido ainda de colo, ou pouco
mais. Nos pequenos conventos desta cidade,
os frades e as freiras tinham ordens de rezar
continuamente pela segurança do herdeiro.
Estendo as cartas na mesa, o naipe virado
para cima, e encontro Maria, a neta querida, a
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sucessora da avó, que soube honrar a herança de
uma mulher forte, tão importante na sua vida.
Decidida, arrumo o baralho na caixa, porque
temos de sair de novo para a rua, seguindo os
passos da duquesa Isabel, nesta cidade que se
mantém miraculosamente próxima da Idade Média, salva das bombas das duas grandes
guerras que destruíram tanto do património
europeu, conservada com cuidado, visitada por
gente de todo o mundo, de máquinas fotográficas em riste.
Que sorte, o céu está agora azul, e a água
do canal que corre com as casas de ambos os
lados reflete o sol, os jardins com degraus e
portões junto do rio, os braços dos salgueiros
debruçados sobre os barcos cheios de turistas
que passam incessantemente. De repente a
luz muda, sem aviso, e caem pingos de chuva,
embora há segundos não houvesse uma nuvem
no céu – o melhor é ignorarmos o clima, caso
contrário não fazemos outra coisa senão abrir
e fechar chapéus de chuva.
Túlipas e carruagens na praça principal
A praça central de Bruges é um espanto, circunscrita por casas e onde desaguam pequeninas ruas da cidade. Os Halls e o Belfry, o
imponente campanário, ocupa um dos lados:
era ali, sob aqueles arcos, que se vendiam os
tecidos flamengos, o «ouro» que Isabel encontrou a cobrir as ruas no primeiro dia em
que entrou na cidade, a 8 de janeiro de 1430.
Tinha então 32 anos e Bruges celebrava em
pompa nunca antes vista o terceiro casamento
do seu senhor, o duque da Borgonha com a
princesa portuguesa, filha do rei de Portugal
e senhor de Ceuta.
COMO IR
A Air Brussels (brusselsairlines.com)
possui ligações regulares com Bruxelas
a partir de 119 euros. Na cidade, pode
optar por alugar um carro, já que o trajeto até Bruges é simples e não demora
mais de uma hora. Pode também apanhar um comboio até à estação na cidade, ou um táxi (cerca de 50 euros), e daí
um comboio para Bruges, que demora
cerca de uma hora.
ROTEIRO
Como preparar a viagem
Visite o site oficial do turismo de Bruges
(www.brugges.be) e vai encontrar toda a
informação de que precisa para planear
a sua estada e, ainda, encontrar o programa que mais lhe convém.
Onde estacionar
O ideal é negociar com o hotel o estacionamento, mas se não o tiver feito há
grandes parques públicos antes de entrar na parte histórica. Custam aproximadamente 9 euros por dia. O cartão de
Bruges dá um desconto de 25 por cento.
Volta ao Mundo dezembro 2013
RAINHA DE COPAS
A «nossa» Isabel e o
marido, Filipe, o Bom,
são as estrelas principais
do Jogo dos Duques da
Borgonha, um baralho
de cartas à venda por
11 euros nas lojas dos
museus (à esquerda).
Nesta página, Bruges,
vista da torre mais alta
da cidade.
Volta ao Mundo dezembro 2013
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MARCAS
Percorra a cidade a pé
e de olhos bem abertos.
Os símbolos nas fachadas
falam dos proprietários,
e do que faziam. Visite
a fábrica de cerveja de
fabrico local, a Zot, e
conheça a sua história.
uma vez no HISTORIUM ENTRAMOS
NUMA SALA QUE SIMULA UM CAIS.
UM APRENDIZ DE VAN EYCK VEM ESPERAR
UMA «MODELO» E UM PAPAGAIO VERDE
Do outro lado da praça, o edifício de fachada
branca, e águas-furtadas de janelinhas encarnadas, é a câmara municipal, outrora mercado, as
caves inundadas pelas águas do canal, para que
os barcos dos comerciantes pudessem descarregar, deixando as mercadorias ao abrigo da chuva
e da neve, naquele que era o maior entreposto
comercial do Norte da Europa. Olho em redor
e volto a concluir que aquilo de que mais gosto
são estas casas altas e estreitas, numa zona onde,
desde sempre, o preço do metro quadrado de
terra aconselhava a construir em altura.
Procuro no que me rodeia sinais das descrições dos cronistas que acompanharam Isabel
na sua Gloriosa Entrada na primeira cidade da
Flandres. As gentes que a aclamavam na rua,
enquanto passava numa liteira, a procissão que a
seguia dos oficiais da cidade, os padres, os nobres,
os grupos de profissionais, trajados de acordo
com a sua arte, e as centenas de carruagens
que traziam os nobres de todo o ducado – o
exercício de imaginação não é difícil, neste
dia ainda menos, porque é dia de feira e a praça
está de facto cheia, e nem sequer falta o barulho
dos cascos dos cavalos que puxam carruagens.
Vamos abstrair de que lá dentro seguem turistas
agasalhados com mantas, a ouvir as explicações
dos cocheiros, a que se juntaram bicicletas, aos
milhares, que circulam a grande velocidade e
de que convém sair da frente.
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Mas não há cercas para os torneios, nem
cabeças de leão nas fachadas, a jorrar hipocraz,
uma bebida quente de vinho, canela, mel e
amêndoa que bem me apetecia experimentar,
mas o que não faltam são esplanadas aquecidas,
onde se pode sentar por momentos a estudar
o mapa. Já agora um conselho: não se deixe
enganar pelas aparentes distâncias porque, na
realidade, tudo é perto e andar por estas ruas é
um verdadeiro prazer.
Mas antes de voltar a partir, aproveitei o
facto de o Reinaldo estar entretido a montar e
a desmontar tripés e lentes e passei por entre
as bancas de flores, que são quase o exclusivo
deste mercado. Caixotes de bolbos de túlipas
recordam um tempo, que não é o de Isabel
(estas flores chegaram à Europa em meados
do século xvi vindas da Turquia), em que por
estes lados do mundo eram tão valiosas, que
tinham uma bolsa de valores próprias – as mais
raras, resultados de novos cruzamentos, valiam
autênticas fortunas, e os senhores da França e
da Inglaterra mandavam os seus jardineiros em
busca de uma espécie nunca vista para poderem
exibir na sua estufa de raridades. Grandes fortunas se perderam, quando em 1637 se deu um
autêntico crash, ao estilo do Lehman Brothers.
Paro frente a um homem magro e de bigode que gesticula e apregoa as qualidades das
suas flores. Ao seu lado, um cartaz com a sua
ROTEIRO
Cartão de Descontos
Vale a pena comprar o Bruges City Card,
que oferece descontos (pelo menos 25
por cento) em muitos dos sítios que vai
querer visitar, nos passeios de barco nos
canais, e admissão gratuita nos 26 museus e outros locais de interesse em
Bruges. Dá também direito a um guia de
152 páginas com conselhos secretos dos
conhecedores da cidade e um ótimo mapa
da cidade. bruggecitycard.be
fotografia e a legenda «Aqui está um agricultor
que não se queixa!» Desconfio que, na Idade
Média, seria também exemplar único.
Historium: o regresso ao ano de 1435
Decidimos começar pelo Historium. Quando
aqui estive em investigação para o livro adorei
a experiência, e quero repeti-la. Por sorte, a
encenação passa-se no ano de 1435, estava já
a nossa Isabel há cinco anos por estas terras.
A recriação é extraordinária e assistimos a um
vídeo dos bastidores desta operação, ao trabalho
de uma equipa multidisciplinar que estudou
todos os detalhes, da roupa aos adereços, para
que o retrato fosse fidedigno.
Esperamos num pequeno grupo, nas orelhas
o auricular em inglês (também há em francês
e em espanhol), e vamos seguindo pegadas
marcadas nos degraus de uma escada, esperando
enquanto a primeira porta não abre. Quando
as dobradiças rangem, entramos numa sala que
simula um cais de mercadoria, onde um rapaz
espera uma rapariga linda, que vem posar para
um dos quadros de Van Eyck. Na história, o
aprendiz do pintor aguarda para levar a bela Ana
e um papagaio verde, vindo talvez do Portugal
dos Descobrimentos, até ao estúdio do Mestre,
e mais não posso contar....
No final, encontramos uma série de salas
onde os detalhes da época são explicados. Pode
Volta ao Mundo dezembro 2013
MOINHOS
A paisagem da então
Flandres era marcada
pelos moinhos, tão
diferentes dos nossos.
Procure-os a norte da
porta de Ghent, num
jardim fabuloso que corre
a linha da antiga muralha.
ONDE FICA
Hotel Mirabole
É um hotel pequeno, próximo, mas não
central, confortável e com um ambiente
familiar. Deram-nos a chave da porta e
entrámos e saímos à vontade. Os pequenos-almoços eram simples, mas bons.
h-rsn.com
Hotel Prinsenhof
É um hotel mais sofisticado, numa rua
próxima da praça. Quartos pequenos,
mas de bom gosto e acolhedores.
prinsenhof.com
ver a caravela e imaginar que Isabel esteve nela
dois meses seguidos, perdida no Atlântico, o
mapa de Sluis, que então se chamava L'Ecluse,
onde a nossa princesa chegou no dia de Natal
de 1429, quando todos já a julgavam perdida
para sempre. Se gosta de mapas, observe como
o canal ligava o mar do Norte a Damme, terra
onde os duques passaram a primeira noite,
e se prefere deixar-se guiar pelo olfato, abra
uma gaveta e cheire o sândalo das oficinas,
veja os pigmentos, as tintas e as cores. O meu
objeto favorito é o par de óculos expostos,
que podíamos imaginar um anacronismo se
não estivessem pintados nos olhos do senhor
abade, no Madonna with Canon Joris van der
Paele de Van Eyck (que pode visitar no Museu
Groeninge, aqui em Bruges).
Quando regressamos à rua, agradecemos
que a Bruges de hoje não cheire ao século xv
e que de uma daquelas janelinhas não gritem
um «água-vai». Agora cheira a chocolate e
há lojas de chocolates, de todos os tamanhos,
gramagens e feitios nas ruas em redor das praças
principais. A família em Portugal agradece, caso
lhes queira trazer alguns.
Belfry, 366 degraus e a xenofobia
A fila de gente para subir à torre do campanário é longa, e está frio, não apetece nada
esperar ali parado. Mas não desistimos, já que
Volta ao Mundo dezembro 2013
SUBIR OS 366 DEGRAUS DO BELFRY CUSTA,
MAS É OBRIGATÓRIO. A TORRE SIMBOLIZA
O PODER DE BRUGES E OS SINOS AINDA
MARCAM A VIDA DA CIDADE
sabemos que nunca vai ser mais curta, já que
é o ponto obrigatório em todos os roteiros. Só
entram pequenos grupos de cada vez, porque
as escadas são muito estreitas, e os «engarrafamentos» difíceis de contornar, já que faltam
patamares largos.
A torre significava o poder dos cidadãos –
os sinos marcavam a vida dos habitantes, da
varanda faziam-se os anúncios públicos, e era
aqui que se guardavam os tesouros e os documentos mais importantes. São só 55 degraus
até à Tesouraria, as arcas de ferro em nichos,
atrás de grades que se podiam fechar para dupla
segurança. Isabel não subiria muito mais alto
do que isto, acreditamos, mas nós temos de
continuar pelos 366 degraus acima.
Apesar das mochilas, a do Reinaldo com
duas máquinas bem mais pesada do que a minha,
continuamos sempre a subir. Quando estávamos
a fotografar os degraus que antecedem a sala
do mecanismo que comanda o carrilhão de
47 sinos, uma irritante inglesa que procurava
descer antes de tempo, e nos considerava um
empecilho, comentou com os seus dois acompanhantes: «A tirarem tantas fotografias, são
japoneses com certeza.» Parei no degrau estreito
e respondi-lhe que éramos portugueses e que lhe
pedia desculpa, mas estávamos em trabalho,
mas a criatura ainda era mais xenófoba contra
jornalistas do que nipónicos e retorquiu: «Ah,
vocês são dos que arranjam os sarilhos, para
depois os irem fotografar.»
Como gostaria de recuar seiscentos anos e
condená-la a uns dias nas masmorras. Tenho a
certeza de que a «nossa» Isabel não lhe perdoaria
a insolência, não era propriamente uma mulher
tolerante e sabia-lhe bem exercer o poder. Mas,
à falta dela, continuei a subir. Ofegante, cheguei
ao topo, e a vista do alto daqueles 86 metros
merece o esforço: Bruges estende-se por quilómetros, sem aqueles atentados urbanísticos que
infelizmente do alto dos nossos castelos vemos
tantas vezes.
Ali está o Palácio dos Duques, o Prinsenhof
– imponente visto de cima, telhados pretos,
águas-furtadas com as suas janelinhas iluminadas, e uma inconfundível torre cónica, o
telhado em cone, ao estilo Rapunzell. É o ponto
seguinte da visita.
Durma na cama da duquesa
Agora, o Prinsenhof é um hotel, o The Duke's
Palace, mas a emoção de saber que aqui viveu
Isabel, Philippe, Carlos, que aqui dormiu o
infante D. Fernando, sim, o infante Santo,
que aqui, neste local, estiveram todas os personagens do meu livro faz que, mesmo a pessoa
menos piegas, inspire o ar gelado com respeito.
O Prinsenhof foi ampliado para a nova duquesa da Borgonha, naquele ano de 1430, e
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BY NIGHT
Os turistas jantam cedo
e as ruas e os canais
ficam só por nossa conta.
Repare nos portões que
dão diretamente para a
água e admire o Belfry,
magnífico visto a esta luz.
ocupava então três ou quatro vezes o espaço
que tem hoje. Os cronistas que acompanharam
a chegada de Isabel da Borgonha, contam
como o duque investiu na decoração do paço,
mandando vir tapeçarias, quadros e móveis do
palácio de Dijon, num cortejo de centenas e
centenas de carroças, escoltadas por quatrocentos soldados, e como mandou erguer no pátio
central uma cozinha enorme, seis despensas e
uma sala de jantar gigante para acolher todos
os convidados.
E foi aqui que em junho de 1467, aos 71
anos, e depois de um jogo de ténis (era diferente,
mas chamava-se ténis), morreu o duque da
Borgonha, de uma pneumonia. O caixão com
o seu corpo foi acompanhado até à catedral que
já não existe, de quatro bispos e 22 padres, numa
procissão conduzida por Carlos, dois dos seus
irmãos bastardos, um escudeiro que transportava
a espada do duque, e por todos os grandes e
pequenos do ducado, vestidos de negro. Uma
travessia da cidade a meio da noite, as tochas
acesas na mão para cortar a escuridão.
E, alguns anos depois, é também aqui que
a neta de Isabel morre, em consequência de
uma queda de cavalo, aos 25 anos, aquela que
aos 20 anos foi também duquesa da Borgonha.
Quando vemos o edifício por fora, sobretudo
quando está iluminado à noite, é fácil voltar
atrás no tempo, mas por dentro é apenas um
hotel moderno e luxuoso. Ficar aqui instalado
deve ser confortável, mas caro, por noite cerca
de 250 euros, mas se for como nós vai limitar-se a fazer uma visita para beber um chá ou um
café, uma infusão de frutos vermelhos para
ele e uma verbena para mim (4,5 euros cada),
acompanhadas de uns deliciosos bolinhos. Não
se esqueça de pedir a história do Prinsenhof,
são apenas umas folhas fotocopiadas, mas bem
escritas e rigorosas.
DINASTIA
A Ponte de São Bonifácio
leva-nos até à Igreja de
Notre-Dame, onde estão
sepultados o filho e a neta
da duquesa da Borgonha.
Em Bruges há sempre
caminhos diferentes para
chegar onde queremos.
O PRINSENHOF, O PALÁCIO DOS DUQUES,
É HOJE UM HOTEL. MAS COMO ISABEL
VIVEU NAQUELE LOCAL, E FOI ALI QUE
MORREU FILIPE, VALE A ROMAGEM.
Encontre a duquesa na beleza dos vitrais
É preciso ressalvar, por escrito, que o Reinaldo
não me deixou parar em nenhuma das lojas, mas
as montras apeteciam mesmo. Foi indecente,
porque Isabel da Borgonha vivia na corte mais
luxuosa do mundo de então, e os tintureiros e
tecelões que trabalhavam nestas ruas produziam
para ela os tecidos mais fabulosos, brocados e
veludos de cores nunca antes vistas, graças aos
pigmentos da Madeira e dos Açores, que o infante D. Henrique fazia chegar à irmã. Tecidos
que transformavam num guarda-roupa fabuloso
e que recebiam, por vezes, nomes portugueses,
como a touca portuguesa, ou a saia portuguesa, a
que os cronistas se referem invariavelmente. Por
isso, sim, é justo que me tivesse deixado entrar
nas lojas. Mas não deixou, porque tínhamos
que fazer, o que também era verdade.
Chegámos ao Burgo, a praça onde em tempos estava a Igreja de Saint-Donatien, em que
a duquesa assistiu a tantas missas, em que velou
o corpo do mestre Van Eyck, e o do seu próprio
marido. Mas o Town Hall é do tempo de Isabel
da Borgonha, e é magnífico, as estátuas nos
nichos são recentes porque as antigas foram
destruídas, como é magnífica, e merece visita,
a sala gótica com os seus espantosos murais.
Mas nesta pequena praça, o meu edifício favorito é a Basílica do Sangue Divino, porque é
diferente de tudo o resto – uma porta térrea dá
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entrada para a cripta de São Basil, construída
no século xii, e o seu estilo românico é sóbrio e
encantador. Na porta ao lado, suba para visitar
a basílica propriamente dita, onde se guarda a
relíquia do sangue de Cristo, trazida da segunda
cruzada e que está em Bruges desde então. A
capela parece oriental, as paredes pintadas de
frescos, mas foi o Reinaldo, honra lhe seja feita,
que descortinou a «nossa» Isabel nos vitrais
das janelas, e depois os «nossos» Filipe, Carlos
e Maria – os senhores da Borgonha estão aqui,
por obra de uma renovação feita no século xix,
e os vitrais originais, pasme-se, num museu
em Londres. É em junho, no Dia de Corpo de
Cristo, que acontece a procissão mais antiga da
cidade e que, ainda hoje, recria ao pormenor
uma procissão medieval. Se tiver oportunidade,
esteja lá nesse dia, porque então não vai mesmo
precisar de fazer uso da imaginação...
Os autóctones passam de bicicleta sem
prestar atenção àqueles que se debruçam sobre mapas – nem podia ser de outra maneira,
Bruges tem milhares de visitantes por ano,
e mesmo no outono e no inverno a cidade
enche, sobretudo aos fins de semana. Mas
esta senhora de cabelos brancos, montada
na sua «bica», decide que o Reinaldo e eu
merecemos o seu apoio. Procuramos o quê?
A Bolsa de Valores? Tentamos pronunciar
a palavra em flamengo, aliás numa Bélgica
onde fazem gala em não falar francês, mas
falhamos redondamente. Em inglês conseguimos explicar que queremos ver a taberna
onde, no tempo de Isabel, os comerciantes
faziam câmbios. Não havia uma moeda única europeia, nem tão-pouco dentro de cada
país, e foi a «nossa» Isabel que se empenhou
em criar o sistema monetário do ducado da
Borgonha e uniformiza-lo com a Inglaterra, o
seu principal fornecedor e cliente. A família
dona desta taberna, Tier Bourse, deu o nome
à Bolsa, os pobres não sabiam o que faziam...
A casa é uma desilusão. Seis séculos depois,
é a sede de uma rádio local, um edifício que não
se pode visitar. Mas marcámos presença, e se
quiser desenjoar da Idade Média tem mesmo
ao lado o Museu da Batata Frita. Isso mesmo.
A cidade vista da água
Mas afinal onde estão os canais desta Veneza do
Norte, como lhe chamam? Tem duas hipóteses:
ou segue o mapa, que é fácil, ou segue o grupo
de turistas que, por sua vez, vão atrás de um
guia. Num dos ancoradouros, bem assinalados,
pode apanhar um barco e fazer uma viagem
fluvial pela cidade, uma forma diferente de
conhecer Bruges – de ponte em ponte, cada uma
com uma história, vendo os monumentos por
ângulos diferentes, na dobra de um canal. Exceto, claro, nos meses mais frios, em que alguns
Volta ao Mundo dezembro 2013
Volta ao Mundo dezembro 2013
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OLHOS ABERTOS
O Béguinage (à esq. em
cima) é um convento
diferente de todos os
outros. A porta de Ghent
(à esq, em baixo) foi palco
do assalto à carruagem
da duquesa. Durante dois
anos, Isabel não voltou
a Bruges.
A DIVISA NA FACHADA DE JOÃO VASQUES
GARANTE QUE O FUTURO SE FAZ DE BOAS
CONTAS. A DUQUESA da Borgonha NÃO
TERIA DITO MELHOR.
dos canais gelam, para deixar ver uma Bruges
muito diferente, mas igualmente fascinante, e
com menos turistas – e aquela que Isabel da
Borgonha viu repetidamente durante os 41 anos
em que esteve nesta cidade.
Béguinage, um lugar mágico
Depois de um almoço leve, no restaurante moderno e de bom gosto da fábrica de cerveja De
Halve Maan, decidimos descer até ao béguinage.
Não pude deixar de voltar ao meu livro – foi
aqui que coloquei o encontro entre Isabel da
Borgonha e o seu colaço – irmão de leite – Lopo
Gonçalves. Foi aqui, na paz desta espécie de
convento de mulheres religiosas, viúvas ou
solteiras, que na Idade Média decidiam dedicar
a vida a Deus e a servir os pobres independentes
de uma ordem religiosa, que Lopo lhe conta
os detalhes da morte de D. Pedro na Batalha
de Alfarrobeira, assassinado pelos soldados do
meio-irmão, Afonso de Bragança. É um sítio
mágico que vale a pena visitar com calma.
O acesso faz-se por uma ponte, por cima de um
canal que desagua no lago do Amor, cheio de
cisnes brancos, como aqueles que o duque da
Borgonha mandou a Isabel com o pedido de
casamento, e que segundo a lenda terão ficado
no paço de Sintra.
O local é património da humanidade desde
1998 e é o único béguinage que ainda existe,
Volta ao Mundo dezembro 2013
fechado por três portões. O grande jardim verde,
de árvores altas, e ladeado por casinhas brancas,
onde as beguinas viviam, e quase que ficamos
sem fôlego quando vimos a atravessá-lo três
freiras que regressavam em silêncio da missa na
igreja que se descobre entre as árvores altas...
São beneditinas, e agora é aquela ordem que
toma conta do lugar.
Pode visitar uma das casinhas (está fechada das 12h30 às 13h30), e a igreja que é do
tempo de Isabel por fora, mas depois de um
fogo no século xvi transformou-se em barroca
por dentro. Procure a mais antiga imagem de
Nossa Senhora em Bruges, uma imagem de
madeira, sem pinturas, que vale a pena ver
mais de perto.
Isabel era admiradora das beguinas e inspirou-se nelas quando decidiu retirar-se para
La Motte-au-Bois, não muito longe de Bruges,
transformando o castelo em hospital, cuidando de mulheres doentes e pobres. Mas nunca
deixou de vir a Bruges sempre que o marido
estava doente. «Traz-me as tuas ameixas em
calda, que são o melhor remédio», pedia-lhe
ele, e depois melhorava e partia para mais uma
batalha, e mais uma aventura, porque foi sendo
pai de filhos bastardos até aos 56 anos, totalizando segundo os historiadores mais sérios 26
amantes, e 24 filhos ilegítimos, porque há quem
lhe atribua uma prole muito maior.
Porta de Ghent – o grande insulto
Agora passam os carros, sobre a ponte levadiça, ao lado do grande canal que une Bruges a
Sluis, naquela que é a porta de Ghent, a porta
principal na muralha que rodeava a cidade na
Idade Média.
A fortificação é bonita, pode ser visitada
às sextas e ao fim de semana, e tem um valor
imenso para quem aqui está à procura dos locais
onde a vida de Isabel da Borgonha foi tocada.
Porque esta porta marcou um momento terrível na sua vida: no dia 26 de agosto de 1436,
os cidadãos de Bruges revoltaram-se contra o
aumento dos impostos, obrigando a duquesa
a fugir, com o pequenino Carlos, de apenas
2 anos ao colo. Imaginou que ninguém impediria a sua saída, que ninguém se atreveria
a tocar-lhe, mas enganou-se. Os rebeldes
mandaram a carruagem parar e quiseram
detê-la. Quando finalmente conseguiu escapar, jurou não voltar até que as cabeças dos
revoltosos rolassem na calçada. E rolaram.
Arrependidos, ou melhor ,conscientes de
que não podiam sobreviver sem a proteção
dos duques da Borgonha, acabaram por pedir
perdão e Isabel voltou, mas apenas dois anos
depois. Sendo esperada então, neste mesmo
local, pelos senhores da cidade rojados no
chão, de cabeça destapada, dispostos a comer
o pó da estrada.
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ANTEPASSADOS
Carlos, como o seu tio
Henrique, tira o elmo
e une as mãos em oração,
para a viagem final.
No túmulo do filho e da
neta de Isabel estão as
árvores genealógicas
onde encontra as armas
de Portugal. À direita, a
praça principal da cidade.
É um momento de emoção quando
NOS ENCONTRAMOS COM aS NOSSaS
PERSONAGENS. OS TÚMULOS DE CARLOS
E MARIA SÃO UM PONTO ALTO.
Jantar em casa de João Vasques
Felizmente, o meu quarto no pequeno hotel
Maraboe, confortável e próximo do centro,
tinha banheira. Precisávamos urgentemente de
descansar, antes do passo seguinte: ir jantar a
casa de João Vasques, o secretário da duquesa da
Borgonha, que veio com ela de Portugal e esteve
ao seu lado até que a morte de Isabel os separou.
Tratava de todos os seus assuntos com Portugal,
e em junho 1448, dezoito anos depois de terem
chegado à Borgonha, casou-se com Marguerite
van Ackere, da nobreza da Flandres, um bom
casamento, patrocinado pelos duques. Com o
casamento, o bom João aventurou-se a ter casa
própria, mesmo ali ao lado do Prinsenhof, e na
fachada a inscrever a ouro a sua divisa, que não
podia ir mais ao encontro do espírito da sua
senhora: «A bon compte avenir», pode ler-se, ou
seja, «Boas contas garantem o futuro» – se Isabel
tivesse sido ministra das Finanças de Portugal
muita desgraça se teria evitado.
Hoje lá está a casa, preservada e transformada num bar-restaurante, o Cafedraal. Os criados
não reconhecem a minha história, sabem só que
a casa é medieval, que lá fora no pátio, onde se
pode comer nos dias mais quentes, há painéis
de cenas bíblicas nas paredes, mais nada. Triste
a facilidade com que as pessoas habitam casas
sem lhes quererem saber a história. Mas come-se
bem, pelo menos.
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Igreja de Notre Dame – O filho e a neta em
pompa e circunstância
Senti uma enorme emoção ao voltar à Igreja
de Notre-Dame, porque quando se faz pesquisa
histórica e nos encontrarmos «cara a cara»
com as nossas personagens é um momento de
emoção. Mas o coração ia-me caindo aos pés
quando percebemos que as obras de conservação
da catedral impediam o acesso aos túmulos do
filho de Isabel da Borgonha e da neta Maria.
Felizmente tínhamos uma carta do Turismo de
Bruges e carteiras profissionais; conseguimos
demover um dos guardas a deixar-nos passar.
Carlos, o Temerário, que andou em guerras
na tentativa de alargar o ducado e conquistar e
manter os seus territórios, tem o elmo pousado
ao seu lado, como acontece com o infante D.
Henrique, o tio que admirava tanto: ao encontro
de Deus deixam as armas e unem as mãos em
oração. Aproxime-se para conseguir perceber
nos lados do túmulo a árvore genealógica de
Carlos, e depois na de Maria, e lá vai encontrar os brasões com as armas portuguesas. Lá
encontrará o brasão de Isabel da Borgonha, de
D. Filipa de Lencastre e de D. João I e os dos
seus antepassados. Isabel foi enterrada longe
daqueles que mais amou, porque Carlos quis
que descansasse em paz no grande palácio dos
duques da Borgonha, em Dijon. Um pretexto
para uma nova viagem, em breve. n
ONDE COMER
Restaurante Cafedraal
Tem pinta e história! A salada d'hiver,
com magret de pato fumado, vinaigrette
de framboesas, nozes caramelizadas e
chutney era óptima ( 17,50 euros). Como
prato principal, o linguini alla Vangole,
com as moules obrigatórias (22,50 euros). A tarte Tatin era deliciosa, e o Kolonel, sorvete de limão e vodka (9 euros)
também.
cafedraal.be
Restaurante Belle Epoque
É despretensioso e tem comida flamenga. Eu comi waterzooi, uma panelinha
de cobre com um cozido de galinha,
legumes e batatas, quentinho e facilmente digerível (17 euros). O Reinaldo
aventurou-se pelo carbonade flamande,
uma panelinha com carne com molho de
cerveja (18,50 euros)
belleepoquebrugge.be
Restaurante Schrijverke
Em frente à Igreja de Norte-Damme.
Não se assuste com os preços na lista
– há uma outra para almoços. Pedi sanduíche de pão e fiambre, que afinal saiu
presunto; as fatias de pão escuro vêm ao
lado. Use as mãos para fazer a sanduíche, é mais medieval. Preço 12 euros.
AGRADECIMENTOS
www.brugge.be
www.brusselsairlines.com
Volta ao Mundo dezembro 2013
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