Título: A Historia como Retalhos da Memória Autor

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Título: A Historia como Retalhos da Memória Autor
Título: A Historia como Retalhos da Memória
Autor: Lizete Dickstein
Neste trabalho pretendo tratar do que nos esquecemos e do que lembramos. O
esquecimento, em psicanálise, para além do processo bioquímico a que nossa memória está
assujeitada, é fruto do recalque. Portanto, o esquecimento, as falhas em nossa memória,
salvo patologias neurológicas, diz respeito ao que não se quer saber , ou melhor, ao que não
se pode saber. E as nossas lembranças,
elementos da nossa ficção autobiográfica, são
inevitavelmente encobridoras, fruto da opacidade que há nas respostas que vêm do Outro.
Recordar, em psicanálise, é o trabalho de construção daquilo que compõe a fantasia do
sujeito. É a apropriação, pela palavra, do lugar de sujeito, agente em sua história. Vou me
valer do filme Amnésia (título original Memento, EUA, 2001) dirigido por Cristopher Nolan ,
para me auxiliar nesse percurso.
Título: A Historia como Retalhos da Memória
Autor: Lizete Dickstein
Esse filme nos convoca a pensar sobre o inexplicável, o enigmático e que clama por
significação. Similar ao que ocorre com nossas lembranças, essa narrativa fílmica desconstrói
a forma linear e temporal. Apresenta-se em cenas de trás para frente, algumas coloridas,
intercaladas por outras em preto e branco, passadas cronologicamente do passado para o
presente.
A história começa pelo fim, e sua primeira cena é a imagem, fotografada numa
polaroide, de um cadáver. Na foto, ao contrário do que seria esperado, a imagem, que deveria
se tornar cada vez mais nítida, vai empalidecendo com o tempo. Essa desmontagem do
previsível convoca o espectador a dar um sentido ao real.
Título: A Historia como Retalhos da Memória
Autor: Lizete Dickstein
O filme traz, por meio de recortes desalinhados, cenas picotadas, imagens
desfiguradas, um emaranhado de restos que tentam se fazer traços e um sujeito atônito, em
permanente angústia, submetido a uma cena que se desmancha a todo instante. Nossas
tramas, nosso quebra-cabeça de recordações, são elementos que oferecem um enquadre para
que o sujeito possa ter lugar diante do real, situando-se, assim, numa estabilidade possível. É
o momento em que o desejo se fixa a um objeto e situa o sujeito diante do desejo do Outro.
Leonard Shelby-Lenny como é chamado na história- é um investigador
de
ocorrência de fraudes em pedidos de seguros por indenização. Certa noite, sua casa é
invadida por dois homens que estrupam e matam sua mulher.
Título: A Historia como Retalhos da Memória
Autor: Lizete Dickstein
Lenny consegue assassinar um dos homens, o outro foge. Lenny é atacado,
recebendo um golpe violento na cabeça, o que o incapacita a memorizar de qualquer fato
recente. Melancolizado pela perda da mulher, encontra seu único sentido de viver na
descoberta e vingança do assassino. E, por não poder dar encadeamento às suas vivências e
descobertas, registra-as obstinadamente nas fotografias de uma polaroide, e, mais
radicalmente, marca tatuagens pelo corpo. Vemos um sujeito em desespero, buscando dar
continuidade a uma história brutalmente interrompida. Se Lenny tatua o próprio corpo, é
porque pretende que aquelas inscrições não se apaguem, que não retornem ao estatuto de
real desprovido de sentido e perdendo perpetuamente seu valor significante. Mas como seguir
se uma cena não se conecta com outra? Como seguir se ao dormir tudo se perde?
Título: A Historia como Retalhos da Memória
Autor: Lizete Dickstein
Para Lenny, não se trata de esquecimento, mas de apagamento. O que podia ser
lembrado e esquecido parece ter ganhado um ponto final na cena da morte da esposa. Lenny
diz: ”Nunca me lembro de esquecê-la (...) , e assim, como posso cicatrizar? sentir o tempo?”.
Como a psicanálise pode nos dar subsídios para abordar essas questões?
Assim, para que Lenny possa continuar a viver, é necessário que sua vida tenha
sentido.
Na constituição do sujeito, o sentido é antecipado pela mãe. Desejo no qual a
criança é capturada, se fazendo representar a partir daí através de significantes. A criança
estará assim aparelhada para começar a construir, a partir de suas marcas, uma história que
terá função de recobrir o real. Porém, o significante não cobre tudo de real, algo resta. O saber
inconsciente se produz nas entrelinhas que escapam a toda intenção do dizer, é um saber que
não se sabe.
Título: A Historia como Retalhos da Memória
Autor: Lizete Dickstein
A possibilidade de alguma cicatrização só se estabelece com as voltas que esse
saber inconsciente pode fazer numa escrita entre o dito e não-dito.
Freud na carta 52 a Fliess, apontou que as inscrições mnêmicas, a princípio inócuas,
adquirem significação traumática num momento posterior (nachträglich), indicando a própria
concepção de temporalidade e causalidade psíquica na produção de sentido.
Mas coube a Lacan os fundamentos para dentro da lógica significante, da
temporalidade lógica dependente do Outro.
Título: A Historia como Retalhos da Memória
Autor: Lizete Dickstein
No seminário livro IX , A Identificação ( 1961-1962, Recife), Lacan
ilustra essa
questão a partir do personagem de Robinson Crusoé, do livro de Daniel Defoe (1719). Crusoé
era um marinheiro que naufragou numa ilha deserta do Caribe. Solitário durante anos, certo dia
encontra uma pegada na areia. Ele poderia pensar: “Será que isso é mesmo uma pegada? E
se for um acidente natural na areia? O que isso quer dizer se for uma pegada?”. Ou seja,
Crusoé poderia ter tomado a pegada como um sinal ou ter negado veementemente que isso
lhe dizia respeito. O que acontece? Ele supõe que, do lugar de onde tinha vindo essa pegada,
poderia haver outras pegadas, como algo cujo sentido possa ser antecipado ou adivinhado.
Então, essa marca passível de ser apagada ou rasurada pelo próprio infans pode ser lida como
mensagem. É justamente por poder ser apagada é que essa marca tem valor de traço. Essa
inscrição que mantêm-se, mesmo apagada é o traço da nossa história.
Título: La Historia como Retazos de Memoria
Autor: Lizete Dickstein
Se antes nada havia, é a partir de um só golpe que uma marca toma lugar de uma
ausência. Assim como Crusoé, o infans vai poder dar algum sentido, alguma significação
àquela inscrição. Significação essa imaginária, sempre fálica, portadora de uma falta, do
impossível de se simbolizar o real. A memória e suas lacunas, apontam a essa ferida aberta ao
real, que clama sua historização, para esse tempo perdido e irrecuperável da nossa debilidade
face à nossa constituição como sujeito.
No filme, Lenny traduz no filme algo que nós vivemos pontualmente : a angústia
frente a esse indizível, na qual os sentidos são sempre transitórios e contingentes. Por mais
que Lenny busque uma direção, ela sempre se esvai.
Título: A Historia como Retalhos da Memória
Autor: Lizete Dickstein
O sujeito neurótico tenta supor que possa dar conta da demanda do Outro. Mas,
esse esforço só leva ao destino da insatisfação porque entre o que se pede e o que se recebe
tem sempre a constatação deceptiva de que não é disso que se trata. Assim, o desejo humano
é um movimento que só pode se tecer em torno de uma estrutura onde a falta reina de forma
imperativa, O que faltou a Lenny.
A partir das questões abordadas nesse trabalho quero avançar e pensar sobre o
percurso de uma análise.
Quando os sentidos que davam sustentação a existência de um sujeito caem, o que
pode ser a partir daí a história desse sujeito?
Assim, ao final de um percurso analítico o que resta de nossa história para
além de sua consistência imaginária?