Transtornos de Personalidade e Gestalt

Transcrição

Transtornos de Personalidade e Gestalt
INSTITUTO GESTALT DE SÃO PAULO
CURSO DE FORMAÇÃO EM GESTALT-TERAPIA
LEONARDO SAUAIA
TRANSTORNOS DE PERSONALIDADE E GESTALT-TERAPIA
SÃO PAULO, AGOSTO DE 2012
LEONARDO SAUAIA
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
APRESENTADO COMO REQUISITO FINAL PARA A
OBTENÇÃO DO TITULO DE GESTALT TERAPEUTA
PELO INSTITUTO GESTALT DE SÃO PAULO
ORIENTADORA: PROFª. DRª. SELMA CIORNAI
AGRADECIMENTOS
NENA, POR NUNCA TER DEIXADO A CHAMA SE APAGAR
SELMA, POR ALIMENTÁ-LA COM MAIS LENHA
ROBERTO, POR CUIDAR PRA QUE EU NÃO ME QUEIMASSE
E MEUS PACIENTES, POR ME MOSTRAREM QUE MAIS IMPORTA O CALOR
QUE O BRILHO.
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
DEFINIÇÃO
TIPOS DE TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
REPERCUSSÃO
TRATAMENTOS
CONTRIBUIÇÕES DA GESTALT
(DIS)FUNÇÕES DE CONTATO
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
5
7
9
14
15
16
19
24
25
1.
Apresentação
Meu encontro com os Transtornos de Personalidade remonta aos tempos
da Faculdade de Medicina de Santo Amaro, quando acompanhava a Liga de
Saúde Mental, já no fim da graduação. Lembro-me das discussões de alguns
casos ditos como “difíceis” por nossos professores, com manejo complicado e
freqüentemente frustrantes ao atendimento psiquiátrico e psicoterapêutico.
Este breve contato se aprofundaria nos anos seguintes, durante a
residência em Psiquiatria, no Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental, da
Santa Casa de São Paulo. Meu preceptor, Dr Marsal Sanches, gentilmente me
guiava no acompanhamento de pacientes que provocavam fortes e distintas
reações na equipe multidisciplinar. Alguns casos eram encarados como “falha
de caráter”, gerando condutas polêmicas – e geralmente pouco eficazes. Aos
poucos, fui me afeiçoando destas situações tão desconcertantes ao modelo de
assistência psiquiátrica vigente. Percebia que essas pessoas (sim, antes de
tudo pessoas) evidenciavam as insuficiências e falhas dos serviços de Saúde
Mental. Naquela época, a “contra-transferência” era invocada e abusada em
nome
de
indisponibilidades
pessoais
ao
adequado
atendimento
dos
Transtornos de Personalidade.
Buscando maior conhecimento e contato com as propostas de tratamento
desenvolvidas especificamente para aqueles pacientes, fiz contato com centros
especializados situados em outros países. Recebi uma resposta convidativa do
Henderson Hospital, em Sutton, Inglaterra; uma comunidade terapêutica
estritamente psicoterápica, de orientação predominantemente psicodinâmica,
voltada ao atendimento de pacientes com Transtornos de Personalidade.
Acompanhei o serviço diariamente durante cinco meses, integrando grupos de
psicoterapia, assistência ao bem-estar social, jardinagem, psicodrama e
arteterapia. Neste último, aprendi muito sobre uma abordagem diferente do
costumeiramente aplicado por outros profissionais, que mais tarde descobri se
tratar da postura fenomenológica. Pam, a arteterapeuta, encorajava-me a
experimentar uma qualidade de contato diferente com os pacientes, permitindolhes maior participação e envolvimento no processo terapêutico.
Com várias idéias e muitos sonhos, voltei ao Brasil em Fevereiro de 2005.
Após tamanha imersão no universo psicoterapêutico, vim decidido a iniciar uma
formação em psicoterapia. Inspirado pela postura de Pam, encorajado por
colegas e agraciado pelo acaso, fiz contato com o Instituto Gestalt de São
Paulo. Desde o início da formação, tornavam-se nítidas as contribuições da
Gestalt-terapia para minha prática Psiquiátrica, principalmente junto aos
pacientes com Transtornos de Personalidade. Alguns estudos preliminares,
realizados durante o período de formação (2005-2007) proporcionavam melhor
contorno àquele conteúdo intuitivamente emergente. Esta monografia é mais
que uma compilação, mas uma ampliação destes conhecimentos e
experiências vividos nos últimos anos de prática clínica, tanto como Psiquiatra
como Psicoterapeuta. É também um gesto de gratidão a todos que, direta ou
indiretamente,
amadurecimento
desde
como
o
início
proporcionaram
terapeuta,
incluindo
meu
crescimento
e
colegas
(Psiquiatras
e
Psicoterapeutas), Mestres (na concepção da palavra) e pacientes (que, entre
erros e acertos, sempre serão a razão deste trabalho).
2.
Definição – O que são?
Os Transtornos de Personalidade são definidos pela Organização Mundial
de Saúde, na 10a Edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10),
como “padrões de comportamento profundamente enraizados e duradouros,
manifestando-se como respostas inflexíveis à ampla gama de situações
pessoais e sociais. Constituem-se em desvios extremos ou significativos da
forma como um indivíduo médio, em uma dada cultura, percebe, pensa, sente
e — particularmente — se relaciona com os outros. Tais padrões de
comportamento tendem a ser estáveis e compreendem múltiplas áreas do
comportamento e do funcionamento psicológico.”1
É interessante recuperar os itens destacados pelo negrito, por
evidenciarem o caráter relacional da doença. Este aspecto central dos
Transtornos de Personalidade (TP) será de grande relevância para a
estruturação do tratamento, bem como pelo entendimento de sua gênese (na
formação da Personalidade e suas distorções decorrentes das experiências
relacionais turbulentas vividas).
Para fins de pesquisa, a classificação mais utilizada é aquela proposta
pela Associação Norte-americana de Psiquiatria, o Manual Estatístico e
Diagnóstico de Saúde Mental (DSM), atualmente em elaboração de sua quinta
edição; na quarta edição, ainda vigente, os TP são dispostos em 10 tipos,
distribuídos em 3 grupos (Clusters). O primeiro grupo, Cluster A, compreende
aqueles tipos de Personalidade com características bizarras ou excêntricas:
Esquizóide, Esquizotípico e Paranóide. Os tipos dramáticos e impulsivos estão
contidos no Cluster B: Narcísico, Histriônico, Anti-social e Borderline
(correspondente ao tipo Emocionalmente Instável na CID-10). Aqueles de
característica predominantemente ansiosa constam no Cluster C: Esquivo,
Obsessivo-Compulsivo e Dependente.2
É importante esclarecer que, apesar de usados correntemente por
clínicos e pesquisadores como equivalentes, os critérios diagnósticos das duas
classificações (CID-10 e DSM-IV) diferem entre si, chegando a discordâncias
completas e até à inexistência de um dos tipos em cada uma delas: o tipo
Narcísico inexiste na CID-10, enquanto o tipo Esquizotípico não é considerado
um TP por esta classificação, mas sim uma doença do espectro Psicótico.3
A seguir, discorrerei brevemente sobre cada um dos tipos propostos pela
DSM-IV.
3.
Tipos de Transtorno de Personalidade
TP Paranóide
Este tipo se caracteriza principalmente por seu contato alerta e
desconfiado. Mais prevalente em minorias étnicas e grupos costumeiramente
segregados (por crença ou orientação sexual), podem apresentar tendências
agressivas ou retraimento social. Seu comportamento belicoso e querelante
provoca ou reforça sua exclusão de grupos sociais. No acompanhamento
psicoterápico, a transparência tolerável gera confiança e facilita o processo de
formação do vínculo, cuja lentidão pode prejudicar a disponibilidade do
terapeuta. Especial atenção deve ser dada a fim de evitar que a relação
enverede para cumplicidade, tranqüilizadora para este tipo de paciente, mas
inviabilizadora para o processo terapêutico.
TP Esquizóide
Caracterizado por contato restrito com todos a seu redor, inclusive o
terapeuta, os pacientes com TP Esquizóide dificilmente sustentam o processo
de terapia, ou até mesmo verbalizam uma queixa espontânea decorrente de
seu comportamento. Estes indivíduos apresentam baixa energia global e
importante empobrecimento social. Um cuidado especial deve ser tomado com
o respeito pelo fluxo moroso do processo terapêutico; a elaboração de uma
figura a ser abordada pode levar longo tempo, sendo difícil a sustentação da
terapia em períodos sem a emergência de um tema específico. O trabalho mais
fundamental pode ser voltado à ampliação de awareness, o que já deverá
dispender bastante energia do binômia terapeuta-cliente; lembrando que este
tipo apresenta baixa energia, é fundamental que se observe a possibilidade de
esgotamento do terapeuta durante o trabalho, evitando-se um vicariante
resfriamento da relação.
TP Esquizotípico
Notório por histórias e experiências bizarras, o TP Esquizotípico
representa o comportamento mais bizarro e excêntrico sem que haja a
desagregação ou fragmentação da Personalidade. Suas alterações de
conteúdo de pensamento ou distorções de sensopercepção flertam com um
quadro Psicótico, mas ainda preservam linearidade e integridade suficientes
para estabelecerem relações sociais consistentes, ainda que disfuncionais.
Apresentam grande dispersão de energia e dificuldades cognitivas e
emocionais decorrentes das mencionadas distorções. Podem desenvolver forte
vínculo à medida que progride o acompanhamento psicoterapêutico, com
especial sensibilidade para crítica.
TP Antissocial
Conhecido historicamente como Psicopatas, os TP Antissociais impactam
por sua marcante manipulação e aparente ausência de emoções. Após vários
estudos realizados, sua indicação para tratamento continua questionável, pois
costumam fazer uso nocivo da terapia e qualquer outra intervenção. O
terapeuta se vê constantemente tendo que se esquivar de possíveis situações
de sedução e conluio. Outro difícil aspecto, até impeditivo ao trabalho
psicoterapêutico é a manifestação de raiva e julgamento moral durante o
processo.
Atualmente,
recomenda-se
direcionar
o
tratamento,
quando
pertinente, a instituições de saúde (clínicas, hospitais, universidades), em que
os desconfortos gerados no vínculo tortuoso podem se diluir dentro de uma
equipe multiprofissional ou da própria organização.
TP Histriônico
Este tipo já fora repetidamente descrito pelos estudiosos mais clássicos
de Psicopatologia, desde os primórdios das pesquisas em Psicoterapia (basta
lembrar de Anna O, a paciente mais emblemática descrita por Sigmund Freud).
Conhecido por sua expressão emocional dramática e contato prejudicado por
inadequada intimidade, o tipo Histriônico apresenta importantes prejuízos de
funcionamento emocional, social e profissional em decorrência de intenso
desequilíbrio
energético.
A
expressão
hiperbólica
e
teatral
de
seus
sentimentos, freqüentemente põe em cheque sua credibilidade, desgastando
até mesmo seu vínculo com serviços de saúde, por seu contato superficial e
intenso. Especial atenção deve se voltar à possibilidade de erotização e
sedução no trabalho psicoterapêutico, tanto pela aproximação como pela
repulsa decorrentes desse comportamento.
TP Emocionalmente Instável (Borderline)
Foco
das
principais
pesquisas
em
TP
na
atualidade,
o
tipo
Emocionalmente Instável, ou Borderline, é conhecido por comportamento
impulsivo e constantes oscilações de humor. Atos de auto e heteroagressividade
podem
surgir
durante
o
tratamento,
prejudicando
seu
andamento. Trata-se de uma organização primitiva da Personalidade, com
pouca capacidade para interações emocionalmente significativas, apesar de
rica sensibilidade. Sua capacidade de leitura do ambiente e das pessoas que o
rodeiam, está profundamente prejudicada pelas distorções decorrentes de
eventos traumáticos pregressos – tais como abuso sexual, agressão física e
negligências.
Dotados
de
precário
auto-suporte,
provocam
constantes
interrupções no acompanhamento psicoterapêutico. Para estes casos,
recomenda-se a confecção de contrato terapêutico claro e sustentável, a fim de
minimizar as possíveis sabotagens ao trabalho. É comum a mobilização de
fortes emoções no terapeuta, podendo acarretar um envolvimento insuportável,
seguido de inevitável afastamento; tal padrão representa uma repetição
constante nas experiências de vida dos pacientes com TP Borderline.
TP Narcísico
Normalmente estruturados em um funcionamento pautado por arrogância
e pretensão, os indivíduos com TP Narcísico encontram seu “ponto ótimo” para
o tratamento quando deprimem; o momento de maior vulnerabilidade é
justamente aquele em que podem se defrontar com a realidade de sua
existência, frustrada pelas expectativas irreais e infundadas de desempenho
além de suas possibilidades. Após este inevitável período de depressão ou
paralisia, o indivíduo com TP Narcísico se mobiliza quando abandonado ou
frustrado. Se construir um vínculo saudável e confirmador com o terapeuta,
poderá reconstruir sua perspectiva de mundo a partir de parâmetros reais e
sustentáveis. Freqüentemente, para atender a necessidades de sua estrutura
básica, subverte a relação terapêutica e considera o terapeuta como
admirador, podendo invalidar a terapia caso esse cenário esteja ameaçado.
TP Dependente
Caracterizados por sua premente inabilidade para autonomia, o TP
Dependente é encontrado em indivíduos portadores e doenças crônicas (não
necessariamente incapacitantes). Apresentam aumento de prevalência ao
longo da vida (com aumento da idade) e provocam reações de grande
disparidade nas equipes de saúde. Em seu funcionamento psíquico, apresenta
diminuição global de energia, o que pode provocar sobrecarga e esgotamento
do terapeuta e de todos identificados como cuidadores. Freqüentemente, o
terapeuta exerce a função de reposição de um perda pregressa, o que precisa
ser delicada e constantemente abordado nas sessões, a fim de evitar a
descaracterização do processo. O vínculo é fácil mas pode ser distorcido e
irreal, uma vez que os indivíduos com TP Dependente evitam possíveis
conflitos por medo de separação ou abandono.
TP Obsessivo-compulsivo
Os
indivíduos
caracterizados
pelo
tipo
Obsessivo-compulsivo
de
Personalidade apresentam funcionamento perfeccionista e rígido, sendo na
maioria das vezes socialmente aceito e até adaptável. O abalo à estrutura
ocorre em momentos de transição para situações desconhecidas, o que lhes
provoca apreensão e paralisia. Durante o processo terapêutico, pode disputar a
autoridade pela terapia, uma vez que se atêm aos princípios e bases da
orientação psicoterapêutica com mais afinco que o próprio profissional.
TP Esquiva
Caracterizados pela evitação de emoções e manutenção do estabelecido
a altos custos de funcionamento, os indivíduos com TP Esquiva são justamente
pouco afeitos aos processos de psicoterapia. Este processo lhes causa
profunda perturbação. As intervenções propostas são raramente aceitas e o
processo corre sério risco de interrupção sem sequer a formação adequada de
vínculo. No entanto, a sustentação deste funcionamento demanda a quase
completa anulação da identidade e voluntariedade do indivíduo, fato este que
se manifesta invariavelmente em um abalo mais profundo da Saúde Mental.
4.
Repercussão
Vários estudos apontam a repercussão sócio-econômica dos TP. Há até
poucos anos, os prejuízos funcionais decorrentes das características de
Personalidade destes indivíduos eram erroneamente atribuídas a outros
diagnósticos
pretensamente
mais
prevalentes
e
incapacitantes,
como
Depressão Grave e Transtorno Afetivo Bipolar. Novos trabalhos evidenciaram o
impacto de cada tipo de TP em cinco distintos domínios da vida dos pacientes:
contexto familiar, desempenho profissional, saúde física, sofrimento psíquico e
relações sociais; os resultados apontam diversas alterações plenamente
atribuíveis ao comportamentos caracterizados pelos tipos de Personalidade.4
Recentemente, vários estudos se propuseram a avaliar os custos que os
TP representam aos serviços de saúde, visando orientar de forma mais precisa
os investimentos dos recursos públicos – econômicos e humanos. Os
resultados apontam alto uso de serviços de emergência, internações
hospitalares e agendamentos de consultas ambulatoriais. Além disso, custos
indiretos,
como
benefícios
previdenciários,
gastos
espúrios
(drogas),
fornecimento de medicamentos e deslocamento de suporte sócio-familiar para
cuidados intensivos, representam mais ônus aos cofres públicos e privados.5
5.
Tratamentos
Como sugere a definição dos TP, uma doença de relação demanda
fundamentalmente o tratamento psicoterápico. No entanto, as principais
correntes psicoterapêuticas falharam em abordar adequadamente os TP, com
resultados frustros e baixa adesão aos tratamentos. Reconhecidamente,
adaptações eram necessárias a todas as orientações psicoterápicas vigentes.
Desta forma, derivações como a Psicoterapia Focada na Transferência
(proposta por Otto Kernberg a partir da Psicanálise),6 a Terapia Dialética
Comportamental (desenvolvida por Marsha Linehan a partir da Terapia
Cognitivo-comportamental),7 a Terapia Focada em Esquemas (criada por
Jeffrey Young a partir de distintos referenciais teóricos)8 e o Tratamento
Baseado em Mentalização (elaborado por Anthony Bateman e Peter Fonagy,
de referencial psicodinâmico, a partir da Teoria do Apego de John Bowlby).9
Maiores detalhes sobre cada uma dessas abordagens pode ser encontrado nas
referências citadas ao final.
Como complemento do tratamento psicoterapêutico, a farmacoterapia
aparece ainda em desenvolvimento. Não há um medicamento ou uma classe
farmacológica
conhecimento
especificamente
do
destinada
funcionamento
ao
tratamento
neuroquímico
dos
TP.
O
correspondente
a
comportamentos característicos de cada tipo de TP vem avançando
progressivamente; isso permite a escolha mais embasada de determinadas
medicações para determinados fins, evitando o empirismo que regia a
farmacoterapia dos TP até recentemente.
6.
Contribuições da Gestalt
A Gestalt-terapia, apesar de não ter desenvolvido um modelo específico
ao
tratamento
dos
TP,
oferece
diversas
vantagens
na
abordagem
psicoterapêutica. Conta com o referencial teórico da Fenomenologia, o que
proporciona um olhar mais atento aos comportamentos manifestos dos
indivíduos com TP, evitando a interpretação incompreensível e, por vezes,
abusiva. É fundamental que se contextualize o comportamento do indivíduo
nas situações experienciadas pelo mesmo, evitando-se o dano de julgar suas
atitudes sob a óptica do terapeuta, pois se tratam de medidas de alguma forma
adaptativas, denominadas pela Gestalt “ajustamentos criativos”. Presta-se
especial atenção aos padrões rígidos de relacionamento, a fim de evitar o
desenvolvimento de padrões dependentes e manipuladores na relação com o
terapeuta. Não são raros os casos de mal-estar do terapeuta quando se sente
solicitado além das suas possibilidades de “atender a demanda do cliente”. A
postura dialógica do Gestalt-terapeuta, baseada em inclusão, diferenciação,
presença e confirmação possibilita ao paciente uma experiência nova.11 O
paciente tem sua experiência valorizada e acolhida pelo terapeuta, com
proximidade suficiente para se sentir suportado, e adequada distância para
preservar as identidades de ambos. Além destes fatores, a manutenção do
foco no Aqui e Agora oferece ao paciente uma oportunidade de atualização de
sua história, sem se deixar paralisar por um passado traumático.10
A expressão verbal freqüentemente se revela limitada em situações
terapêuticas mais delicadas, como por exemplo quando se aborda eventos
traumáticos da história do paciente. Para tais situações, a utilização dos
recursos expressivos da Gestalt-terapia (tais como formas de arte ou
dramatizações) pode representar uma alternativa valiosa, contornando
paralisias e resistências do processo terapêutico.
Talvez o maior benefício oferecido pela abordagem fenomenológica da
Gestalt-terapia seja a atitude não interpretativa, mais respeitosa com as
limitações e fragilidades do indivíduo com TP, já comumente julgados e
interpretados por aqueles que o circundam. Descrita habilmente por Gary
Yontef, em alguns de seus ensaios sobre a importância da Relação Dialógica
na Gestalt Terapia, a atitude dialógica não intenciona o desenvolvimento de
uma relação, mas propicia maior fluidez e profundidade desta.11
Martin Buber sintetiza uma nova possibilidade relacional no contexto
humano geral, a relação Eu-Tu, para a qual distingue quatro aspectos
essenciais e indispensáveis: a reciprocidade, a presença, a imediatez e a
responsabilidade.12 Vale notar que o enfoque se dá na relação, mais
amplamente que apenas nas características de terapeuta ou paciente. A
reciprocidade é condição primária para a relação dialógica plena; na prática,
isto implica em desfazer-se de garantias de domínio da relação terapêutica,
exigindo que o profissional esteja tão envolvido no processo quanto espera de
seu interlocutor. A presença de qualidade é outra das condições sine qua non
para o desenvolvimento do trabalho terapêutico pleno; sem isso não há
psicoterapia, mas apenas uma atuação teatral; os abalos da qualidade de
presença devem ser avaliados critica e bilateralmente, pois revelam
indisponibilidade possível de qualquer um dos entes da relação. A imediatez é
talvez a condição mais preciosa e difícil de se sustentar nos moldes
profissionais atuais; muitos intermediários da relação terapêutica (como família,
cônjuges, planos de saúde, empregadores, entre outros) podem interferir na
relação terapêutica, o que corrompe sua fluidez. Por fim, Buber cita a
responsabilidade, o que apenas reforça a atitude respeitosa com ambas figuras
contidas na relação: Eu e Tu, Terapeuta e Paciente. Yontef ainda ressalta a
relação Eu-Tu como não intencionada, mas fruto da disponibilidade mútua e
verdadeira. A disponibilidade com que o Gestalt-terapeuta se coloca no
encontro com seu paciente, proporciona uma horizontalização da relação;
nesse contato não há intermediários nem expectativas prévias (como a de um
diagnóstico ou de uma correspondência a alguma teoria previamente
consagrada).12
Outra contribuição da Gestalt-terapia para o tratamento psicoterapêutico
dos Transtornos de Personalidade provém de seu referencial Fenomenológico.
O olhar Fenomenológico sobre a experiência da relação oferece uma expansão
do entendimento do funcionamento patológico dos TP. Ilustrada na figura
abaixo, extraída do livro “Transtornos de Personalidade: uma Perspectiva
Gestáltica” de Gilles Delisle, a experiência da relação pode ser didaticamente
dividida em três diferentes instâncias, que ocorrem simultaneamente: a
experiência sensório-motora, a experiência cognitiva e a experiência
emocional. A primeira se caracteriza pela obviedade do contato, com pouca
distorção nos casos de TP; aquilo que um indivíduo percebe com seus sentidos
neurológicos. A partir dessa primeira experiência, surge o processo cognitivo
que dá contorno ao evento vivido, já contaminado por experiências prévias que
induzem a interpretação da informação percebida com maior obviedade na
primeira etapa (sensório-motora). O desdobramento emocional é consecutivo
ao processo cognitivo, sendo atribuído um sentimento, igualmente distorcido
por eventos previamente vividos. Essa fragmentação, ainda que didática, nos
permite compreender o processo de adoecimento relacional que acomete os
indivíduos com TP. Apenas a partir do entendimento global de seu
funcionamento de contato é possível planejar uma intervenção terapêutica,
oferecendo-se a oportunidade de ampliação de awareness e re-significação da
nova experiência.13
7.
(Dis)Funções de Contato
Os indivíduos com TP sofrem prejuízos de relacionamento decorrentes de
padrões rígidos e disfuncionais de contato com aqueles que os circundam. Os
conceitos ciclo de contato e interrupção de contato (modalidades funcionais e
disfuncionais) propostos pela Gestalt-terapia enriquecem a construção de um
diagnóstico mais amplo, além de possibilitarem intervenções psicoterapêuticas
mais efetivas. Seguem os quatro tipos básicos de contato disfuncional14
encontrados nos diversos TP, ressaltando que estes são vivenciados pela
maioria das pessoas em momentos variados; tornam-se patológicos apenas
quando um indivíduo se relaciona de forma crônica e recorrente através desta
modalidade de contato com o mundo que o circunda – quando adota uma
forma fixa cristalizada de relacionamento.
Introjeção
O movimento de introjeção é caracterizado pela aceitação indiscriminada
de conteúdos externos. Conceitos, princípios e normas são tomados como
próprios pelo indivíduo, sem que sofram transformações nessa passagem. No
processo de aprendizado e formação da personalidade, a introjeção é
importante na assimilação de valores externos que possibilitam a adaptação do
indivíduo em seu meio. No entanto, assimilação implica em transformação, em
processamento. O exemplo clássico do alimento que deve ser mastigado,
engolido e digerido para que seja absorvido ilustra a necessidade do organismo
de processar o que se recebe para que possa ser utilizado. O indivíduo que
introjeta não lida com as informações externas de forma critica e
transformadora, “engolindo tudo sem mastigar” e sofrendo uma conseqüente
“indigestão”. Tal comportamento impede a construção de conceitos próprios, o
que prejudica o desenvolvimento da personalidade. Sem a capacidade de se
apoderar e autenticar sua visão do mundo, o introjetor se exime do conflito
entre o externo e o interno, pagando o preço da adequação forçada aos moldes
impostos
pelo
meio.
A
conseqüência
disso
é
a
não-integração
da
personalidade, representada pela ambivalência entre as vontades próprias,
emergentes naturalmente na relação com o mundo, e o sufocamento destas
por interesses alheios.
Transtornos de Personalidade do tipo Obsessivo-compulsiva e Esquiva,
ambos pertencentes ao anteriormente citado Cluster C, apresentam a
introjeção como disfunção de contato mais marcante. O TP Obsessivocompulsivo tem como características o perfeccionismo e a excessiva
preocupação com detalhes e regras, prejudicando o resultado da execução de
suas tarefas; não consegue delegar responsabilidades, dispensando mais
atenção aos outros, em detrimento próprio; abre mão de atividades de
interesse próprio e se dedica exaustivamente a questões de interesse alheio
(não necessariamente coletivo). O indivíduo com Transtorno de Personalidade
Esquiva evita contato interpessoal significativo, temendo inadequação e
críticas; considera-se socialmente inepto, sem atrativos pessoais; é reticente
em relação a atividades novas, evitando riscos a qualquer custo.
Projeção
A projeção ocorre quando o indivíduo atribui a responsabilidade sobre
suas vontades ao meio. O projetor considera-se vitima de atitudes alheias,
negando qualquer participação atuante nos acontecimentos que regem sua
vida. Em movimento oposto à introjeção, os princípios e conceitos (desejos e
intenções) próprios são percebidos como externos. Além de gozar de falsa
isenção de responsabilidade na relação, o indivíduo perde a oportunidade de
transformação enquanto não se apodera de suas atitudes e sentimentos; a
projeção o priva de entrar em contato com o conteúdo não-aceito, e
conseqüentemente alienado. Para manter tal funcionamento, o indivíduo lança
mão de distorções da realidade, tomando como verdadeiras as suposições
levantadas na relação, a fim de confirmar sua forma particular de perceber uma
determinada situação. No entanto, vale ressaltar a diferenciação que Zinker faz
entre projeções criativas e patológicas: “Enquanto na projeção patológica a
pessoa não tem noção de que o que ela vê tem relação com a natureza de
suas experiências internas, o projetor criativo sabe que suas projeções são
fruto de sua imaginação, seu poder, seu diálogo consigo mesmo e com o
mundo”.15
Três tipos de TP apresentam características projetivas em seus
funcionamentos. O primeiro é o TP Paranóide, do Cluster A, cujos traços mais
marcantes são: suspeição de prejuízo, exploração ou ludibrio (em todas as
relações vividas) sem fundamento suficiente; relutância em confiar nos outros;
interpretações distorcidas de fatos, atribuindo significados ocultos a situações
benignas; percepções depreciativas de comentários sobre si. Os outros dois
são do grupo dos “dramáticos”, são o TP Histriônica – cujo padrão mais
característico de funcionamento é atribuir ao outro a responsabilidade por seu
sofrimento e por sua felicidade – e o TP Narcísica – presente apenas na
classificação do DSM-IV. O indivíduo com TP Histriônico é marcado por
tentativas (por vezes desesperadas) de manipular o meio para que este atenda
suas
necessidades,
evidenciadas
em
comportamentos
como:
auto-
dramatização, teatralização e expressão exagerada de suas emoções;
utilização da aparência física para chamar atenção sobre si, lançando mão de
artifícios de sedução e provocação sexual; desconforto nas situações nas quais
não é o centro das atenções; precipitação de intimidade nos relacionamentos.
Já o indivíduo com TP Narcísica apresenta funcionamento semelhante,
caracterizado por exigência de admiração excessiva, crença de ser especial e
único, comportamentos e atitudes arrogantes e insolentes e ausência de
empatia.
Retroflexão
Em decorrência de um enrijecimento da barreira de contato entre meio e
indivíduo, este pode adotar uma postura excludente daquele, limitando suas
experiências a sua própria pessoa. Suas atitudes, boas ou más, são todas
dirigidas a si, privando o outro de seu contato e de suas ações, igualmente
boas ou más. Isso gera em si uma postura de auto-exigência, obrigando-se a
satisfazer suas próprias necessidades sem a participação de outra pessoa.
Trata-se de um desenvolvimento deficiente e cindido da personalidade, pois o
retrofletor é basicamente uma pessoa que perdeu – ou nunca teve – a
confiança de ser bem recebido e aceito pelos outros; por isso controla seus
impulsos ou movimentos que o dirigiriam para o outro.
Dentre o grupo dos “bizarros”, o Transtorno de Personalidade Esquizóide
é mais característico por comportamentos decorrentes deste tipo de disfunção
de contato, como escolha por atividades solitárias, falta de apreço por
relacionamentos íntimos, indiferença a criticas e desinteresse em experiências
sexuais com outra pessoa.
Confluência
As disfunções de contato até agora descritas apresentam entre si a
semelhança de limites entre indivíduo e meio preservados. Nos dois primeiros
casos – introjeção e projeção – a disfunção se dá na atribuição da
responsabilidade pelas ações vividas na relação. O indivíduo que retroflete
sofre com a rigidez de um limite intransponível entre si e o meio. No que se
refere à confluência, tal limite não existe; é nesse aspecto que reside a
disfunção de contato. A ausência na barreira de contato entre indivíduo e meio
pode ser vista como defesa conseqüente ao impacto gerado por ela. O simples
esboço de uma estrutura que limite o contato (mas que não o impeça) provoca
angústia e frustração no confluente. Nesse contato disfuncional, o indivíduo é
incapaz de ver diferença entre si e o meio, acarretando a impossibilidade de
atribuir responsabilidade a qualquer das partes da relação por suas ações.
Três tipos de Transtornos de Personalidade, de três Clusters diferentes,
apresentam a confluência como principal forma de contato. Do Cluster A, o
Transtorno de Personalidade Esquizotípica é evidenciado por uma formação
bastante rudimentar de personalidade, razão pela qual é considerado pela CIDX um quadro psicótico por apresentar entre seus traços experiências
perceptivas incomuns e distorcidas, afeto inadequado, idéias de referência,
crenças bizarras e pensamentos mágicos inconsistentes com a cultura do
indivíduo. O grupo dos “ansiosos” inclui o TP Dependente, cujo comportamento
confluente é explicitado por características como preocupação irrealista com
temores de abandono e de incapacidade de auto-cuidado, necessidade de
estabelecer relacionamentos íntimos e dificuldade em expressar discordância
por medo de perda de apoio. O Transtorno de Personalidade Borderline,
incluso no Cluster B, talvez seja o mais emblemático de contato disfuncional
confluente, evidenciado na descrição do quadro psicopatológico segundo o
DSM-IV: esforços frenéticos para evitar abandono (real ou imaginário),
perturbação da identidade, comportamento auto-mutilador em situações de
forte carga emocional (até mesmo benigna) e pseudo-psicoses, caracterizadas
por atribuição alucinatória a pensamentos e percepções reais.
De todos os Transtornos de Personalidade discriminados pelo DSM-IV, o
único ainda não mencionado é o TP Anti-social. No entanto, sua ausência se
explica por não se tratar de um funcionamento neurótico; o indivíduo se põe
acima do meio, utilizando-se deste apenas para atingir seus objetivos.
Verdadeiramente, não ocorre contato nem mesmo de forma disfuncional,
decorrente do não estabelecimento de relações que reconheçam a presença
do outro.
8.
Conclusão
A Gestalt-terapia representa uma valiosa alternativa de abordagem
psicoterapêutica no tratamento dos Transtornos de Personalidade. Certamente
encontra limitações como outros referenciais teóricos, mas possibilita em
diversos
aspectos
um
acompanhamento
psicoterápico
construtivo
e
sustentável, tanto para os indivíduos com TP como para terapeutas dispostos a
este trabalho. Da mesma forma que em outras abordagens psicoterapêuticas,
adaptações devem ser feitas ao atendimento dos pacientes com TP; no
entanto, sob o referencial fenomenológico, essa adaptação é premissa básica
da prática clínica, uma vez que o fenômeno é princípio delineador do trabalho
psicoterapêutico. Não se planeja um acompanhamento Gestáltico sem que o
paciente seja parte ativa e determinante para a condução (ou até interrupção)
deste trabalho.
Talvez o maior desafio resida em expandir a visão dos Gestalt-terapeutas
sobre os Transtornos de Personalidade, pois os diagnósticos podem ser vistos
como rótulos que reduzem o acompanhamento a algumas características
específicas e impedem que o terapeuta veja aquele indivíduo em sua
totalidade. Esse é um temor que, conforme aconselha Gary Yontef em um de
seus ensaios,11 só a experiência poderá dirimir. É provável que esse temor seja
um traço de fundamentalismo fenomenológico, e aí sim, tristemente aquelas
necessidades especiais daquele indivíduo de estrutura relacional precária não
serão adequadamente atendidas.
Com este trabalho, pretendo não apenas expandir a visão dos
profissionais
não
familiarizados
com
as
particularidades
e
potenciais
contribuições da Gestalt-terapia para o trabalho com Transtornos de
Personalidade, mas também convidar Gestalt-terapeutas a uma maior
sensibilização e compreensão das dificuldades relacionais essenciais dos
Transtornos de Personalidade. Espero sinceramente ter me aproximado disso.
9.
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