universidade do estado do rio de janeiro - Logos

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universidade do estado do rio de janeiro - Logos
LOGOS
Vol.18. Nº01. 2011
34
Estatuto da
Cibercultura no Brasil
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
UERJ
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/Rede Sirius/PROTAT
L832
Logos: Comunicação & Universidade - Vol. 1, N° 1 (1990)
- . - Rio de Janeiro: UERJ, Faculdade de Comunicação Social,
1990 -
Semestral
E-ISSN 1982-2391 | ISSN 0104-9933
1. Comunicação - Periódicos. 2. Teoria da informação
-Periódicos. 3. Comunicação e cultura - Periódicos.
4. Sociologia - Periódicos. I. Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Faculdade de Comunicação Social.
CDU 007
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
REITOR
Ricardo Vieiralves de Castro
VICE-REITOR
Maria Christina Paixão Maioli
SUB-REITOR DE GRADUAÇÃO
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SUB-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
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SUB-REITORIA DE EXTENSÃO E CULTURA
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DIRETOR DO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
Glauber Almeida de Lemos
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
DIRETOR
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VICE-DIRETOR
Ricardo Ferreira Freitas
CHEFE DO DEPARTAMENTO DE JORNALISMO
Fabio Mario Iorio
CHEFE DO DEPARTAMENTO DE RELAÇÕES PÚBLICAS
Nicolau Maranini
CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TEORIA DA COMUNICAÇÃO
Ronaldo Helal
LOGOS - EDIÇÃO Nº 34 - VOL 18, Nº01, 2011
Logos: Comunicação & Universidade (E-ISSN 1982-2391 | ISSN 0104-9933) é uma publicação acadêmica semestral da Faculdade de Comunicação Social da UERJ e de seu Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC) que reúne artigos inéditos de pesquisadores nacionais e internacionais, enfocando o universo
interdisciplinar da comunicação em suas múltiplas formas, objetos, teorias e metodologias. A revista destaca a
cada número uma temática central, foco dos artigos principais, mas também abre espaço para trabalhos de pesquisa dos campos das ciências humanas e sociais considerados relevantes pelos Conselhos Editorial e Científico.
Os artigos recebidos são avaliados por membros dos conselhos e selecionados para publicação. Pequenos ajustes
podem ser feitos durante o processo de edição e revisão dos textos aceitos. Maiores modificações serão solicitadas
aos autores. Não serão aceitos artigos fora do formato e tamanho indicados nas orientações editoriais e que não
venham acompanhados pelos resumos em português, inglês e espanhol.
EDITOR ConvidadO
Prof. Dr. Alex Primo (UFRGS)
EDITOR Geral
Prof. Dr. Vinícius Andrade Pereira (LCI)
EDITOR WEB
Prof. Dr. Fernando Gonçalves (LCI)
CONSELHOS EDITORIAL E CIENTÍFICO
Ricardo Ferreira Freitas (Presidente do Conselho Editorial), Luiz Felipe Baêta Neves (Presidente do
Conselho Científico), Danielle Rocha Pitta (UFPE), Fátima Quintas (Fundação Gilberto Freyre),
Henri Pierre Jeudi (CNRS-França), Héris Arnt (UERJ), Ismar de Oliveira Soares (USP), Luis Custódio da Silva (UFPB), Márcio Souza Gonçalves (UERJ), Michel Maffesoli (Paris V - Sorbonne), Nelly
de Camargo (USP), Nízia Villaça (UFRJ), Patrick Tacussel (Université de Montpellier), Patrick Wattier (Université de Strassbourg), Paulo Pinheiro (UniRio), Robert Shields (Carleton University/Canadá), Ronaldo Helal (UERJ), Alessandra Aldé (UERJ) e Profa. Dra. Denise da Costa Oliveira Siqueira.
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Faculdade de Comunicação Social - PPGC - Mestrado em Comunicação
Revista Logos
A/C Prof. Dr. Vinícius Andrade Pereira (LCI)
Rua São Francisco Xavier, 524/10º andar, sala 10129, Bloco F
Maracanã - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. CEP: 20550-013
Tel.fax: (21) 2334-0757. E-mail: [email protected]
PROJETO GRÁFICO
Marcos Maurity e Samara Maia Mattos
DIAGRAMAÇÃO
Willian Gomes e Marcelle Andrade (LCI)
CAPA E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Willian Gomes (LCI)
REVISÃO
Mariana Bispo, Alessandro Paciello e José Messias (PPGCom/Uerj)
Sumário
3
Apresentação
Vinícius Pereira
Dossiê Estatuto da Cibercultura no Brasil
6
18
32
44
62
76
88
Avatares em jogo: interfaces, processos e experiências
Renato Teixeira Bressan e Potiguara Mendes da Silveira Junior
102
117
Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
Adriana da Rosa Amaral e Sandra Portella Montardo
126
139
O Universo Ficcional de Lost e a Narrativa Transmidiática
Maíra Bianchini dos Santos e Luciana Mielniczuk
152
A Web 2.0 como agenciamento de audiências pelos grupos midiáticos contemporâneos
Adilson Vaz Cabral Filho
166
Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo
Alysson Vianna Martins
Aparência, visibilidade e contatos:a autoprodução em sites de redes sociais e a cena da música eletrônica
Beatriz Brandão Polivanov
Cultura e Cibercultura:princípios para uma reflexão crítica
Francisco Rüdiger
A Escola do Futuro (USP) na construção da cibercultura no Brasil: interfaces, impactos, reflexões
Antonio Helio Junqueira e Brasilina Passarelli
Supercérebro flusseriano nos Alternate Reality Games
Thaiane Moreira de Oliveira
Apropriação tecnológica e cultura digital: O programa “Um computador por aluno” no interior
do nordeste brasileiro
Ana Beatriz Carvalho e Thelma Panerai Alves
O Muzak e as indústrias culturais: os hábitos da escuta e da experiência contemporânea com a
criatividade musical
Rodrigo Fonseca e Rodrigues
Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais
Cíntia Dal Bello
Temas Livres
Subjetividades, imaginarios y sensibilidades del presente: El fenómeno Cumbio
Verónica Tobeña
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Apresentação
Estatuto da Cibercultura no Brasil
Vinícius Andrade Pereira
Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002), com
formação complementar (bolsa doutorado sanduíche) no McLuhan Program in Culture
and Technology, da Universidade de Toronto, Canadá (2001). É professor da Faculdade de
Comunicação Social e do Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. É o coordenador do ESPM MEDIA LAB (ESPM-SP). É pesquisador
do CAEPM/ESPM, e pesquisador associado do McLuhan Program in Culture and Technology,
da Universidade de Toronto, Canadá. É sócio-fundador e diretor científico da ABCiber Associação Brasileira dos Pesquisadores em Cibercultura (biênio 2007-2009).
É com satisfação que apresentamos o número 34 da Revista Logos, que
traz um dossiê dedicado aos estudos da cibercultura no Brasil.
Considerando que a palavra cibercultura - como sinônimo de cultura digital e de dinâmicas comunicacionais e sociais contemporâneas mediadas pelas
tecnologias de informação hodiernas – ganhou nos últimos anos uma dimensão cada vez mais genérica, que por vezes parece perder qualquer especificidade
enquanto campo de estudos, a proposta do dossiê temático “O estatuto da
cibercultura no Brasil” estimulava dois tipos de artigos, que pudessem ajudar a
compreender melhor o quadro de pesquisas sobre o tema.
Por um lado, artigos que expressassem a diversidade de estudos que se
inscrevem na interseção dos campos da cibercultura e da comunicação. Ou seja,
este conjunto de textos ajudaria a afirmar a intensa diversidade de temas, objetos, metodologias e arcabouços teóricos que compõem o cenário de pesquisas e
estudos em cibercultura no país, realidade entrevista nos últimos anos nos principais espaços de discussões em torno deste tema — como o GT Comunicação
e Cibercultura, da COMPÓS, o GP Cibercultura, da Intercom, ou o Simpósio
Nacional da ABCiber – Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura.
O segundo modelo de artigo buscaria, dentro de uma perspectiva epistemológica e por vezes estatística, pensar o que seria e como se desenha o campo
da cibercultura brasileiro, na sua diversidade e especificidade, quando sobreposto ao também vasto e diverso campo da comunicação.
Assim, os estudos que representam o primeiro grupo de artigos passam por
temas tão variados quanto o uso de tecnologias e de redes sociais nos processos de
produção, representação e consumo de música, narrativas cross e transmídiáticas
aplicadas às séries televisivas e ao jornalismo, games e ARGs (Alternate Reality
Games), mídia e educação, web 2.0 e economia e política de comunicação digital.
Dentro da segunda modalidade de artigos, que pensam o conjunto de
pesquisas sobre cibercultura a partir de enquadramentos epistemológicos e estatísticos, apresentamos os artigos Cultura e Cibercultura – Princípios para uma
reflexão crítica, de Francisco Rudiger, e Pesquisa em Cibercultura: Análise da
produção brasileira da Intercom, de Adriana Amaral e Sandra Montardo.
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Dossiê
O Estatuto da Cibercultura no Brasil
Avatares em jogo: interfaces,
processos e experiências
Avatars on the table: interfaces, processes and experiences
Renato Teixeira Bressan | [email protected]
Diretor de Comunicação e Assessor na “TV Motoradio”. CEO e artista multimídia na rede #ReLet.
Graduado em Comunicação pela UFJF (2005-2008); Mestre em Comunicação e Tecnologias pela UFJF
(2009-2011); Mestrando do PPGCOM/UFJF na linha de pesquisa “Estética, Redes e Tecnocultura”.
Potiguara Mendes da Silveira Junior
Professor associado da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-graduação em Comunicação
da Universidade Federal de Juiz de Fora / UFJF. Pós-doutorado pela Universidade Nova de Lisboa
(Centro de Estudos de Comunicação e Linguagem / UNL) (2006); doutorado (1992) e mestrado
(1983) em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO / UFRJ); graduação em
comunicação pela Universidade Estácio de Sá (1976). Formação em psicanálise (Colégio Freudiano /
NovaMente / RJ) (1975-). Estudo e ensino sobre: teoria da comunicação, cultura, estética, tecnologia
e psicanálise. Atualmente, pesquisa sobre o que é “comunicacional” nos estudos da comunicação.
Editor da revista “Lumina PPGCOM/UFJF”.
Resumo
Partindo da dinâmica básica envolvida em um jogo de tabuleiro como o xadrez até a interação em um ambiente como o Second Life (Linden Lab, 2003), procura-se demonstrar como a experiência de avatarização
na tecnocultura contemporânea envolve práticas complexas e em rede que acabam por dizer respeito aos
processos mentais das próprias pessoas. O avatar em termos de escala, como interface, processo e experiência.
Palavras-Chave: Avatares; Second Life; Xadrez.
Abstract
Considering a regular dynamic in a board game as chess as well as during interactions through an environment
as Second Life (Linden Lab, 2003), we hypothesize that in contemporary technoculture an avatarial experience offers networked and complexes practices which tell us about the people’s mental processes. The avatar as an
interface, process and experience, analysed in scalability terms.
Keywords: Avatars; Second Life; Chess.
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Bressan & Silveira Jr. Avatares em jogo: interfaces, processos e experiências.
Introdução
O termo “avatar” é originário da palavra sânscrita अवतार (avata-ra), ou
avatãrah, e quer dizer “descida”, “passagem para baixo” ou “vindo para baixo de
muito longe”. A expressão surgiu no contexto religioso Hindu e diz respeito à incorporação de um ser espiritual, vindo de um plano superior, nas formas inferiores
da existência localizadas na contingência do plano físico. Diz-se que os avatares,
nesse contexto, eram vistos como seres que tinham poderes especiais e foram usados para certos propósitos na Terra. Esse conceito data de cerca de 500 a.C. e
esteve presente por anos na tradição oral antes de ser transcrito em um antigo texto
Hindu conhecido como Garuda Purana, o qual trata dos dez avatares usados pelo
deus Vishnu para realizar trabalhos especiais na esfera humana. Os avatares de
Vishnu, conhecidos como Daśāvatāra, assumiam várias formas, tais como a de
tartaruga, a de javali e até mesmo a forma humana, como a do próprio Buda.
Essa palavra – como, aliás, outros termos de origem semelhante – também executa
uma espécie de descenso linguístico, passando do campo metafísico do linguajar
religioso para o domínio (supostamente profano) do vocabulário cibercultural.
Em jogos eletrônicos e plataformas de virtualização como o Second Life, o termo
“avatar” é usado corriqueiramente para designar a identidade virtual dos jogadores
e cibernautas. Carregado de sentido místico em sua origem, ele transporta essa
significação para o universo digital no qual passa a ser aplicado. A ideia é que
através de meu avatar posso superar as limitações de minha condição humana
normal, sendo capaz de voar, teletransportar-me ou alterar minha aparência
exterior (FELINTO; BENTES, 2010:30).
No contexto das Ciências da Computação, “avatar” tem sido usado desde a
década de 1970, sobretudo a partir do jogo homônimo, criado para a plataforma
PLATO da Universidade de Illinois, que é considerado o primeiro MUD eletrônico interativo e baseado em gráficos. Outro jogo que utilizou o termo foi o Ultima
IV: Quest of the Avatar, uma espécie de RPG lançado em 1985 pela Origin Systems
para o Apple II. Através do personagem Lord British, o jogador é incentivado a se
tornar avatar, o exemplo de iluminação espiritual, para assegurar a paz.
No ano de estreia do Ultima IV, Randy Farmer e Chip Morningstar criaram Habitat, considerado o primeiro RPG multiplayer digital e online (hoje
também conhecido como MMORPG1), lançado em 1986, ainda na versão
beta, pelas empresas Quantum Link e Lucasfilm para rodar no Commodore
64 através do provedor America Online. Os autores do jogo explicam suas
influências e o papel do avatar no ambiente virtual:
Habitat foi inspirado por uma longa tradição de “ficção científica de hackers de
computadores”, sobretudo pelo romance True Names (Vinge, 1981) de Vernor Vinge,
assim como pelas preciosas memórias de infância dos jogos de faz de conta, memórias
mais recentes de jogos de interpretação de papéis (RPG) e semelhantes, e numerosas
outras influências misturadas de forma complexa demais para identificarmos. A estas
adicionamos uma pitada de besteira, um toque de ciberpunk (Gibson, 1984; Sterling,
1986), e uma predileção para a programação orientada a objetos (Sussman e Abelson,
1985). (...). Os jogadores são representados por figuras animadas que chamamos
“avatares”. Avatares geralmente possuem, embora não exclusivamente, aparência
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Bressan & Silveira Jr. Avatares em jogo: interfaces, processos e experiências.
humanoide (...). Avatares podem se mover no ambiente ao seu redor, pegar, soltar e
manipular objetos, conversar uns com os outros, e fazer gestos, cada um sob o controle
de um único jogador. O controle funciona através do joystick, o qual permite ao jogador
apontar para as coisas e emitir comandos. Para conversar é preciso usar o teclado. O
texto que o jogador digita aparece sobre a cabeça do seu avatar, como nos desenhos
animados no estilo “balão de diálogo”2 (MORNINGSTAR; FARMER, 1990).
Embora vários estudiosos apresentem entendimentos precisos sobre o avatar – enquanto representação gráfica do usuário ou unidade dinâmica que reflete as ações do jogador na tela, no ambiente virtual ou plataforma online (ver
KROMAND, 2007; MEADOWS, 2008; WAGGONER, 2009) –, parece-nos
ainda faltar muito a ser dito sobre o contexto e a presença do avatar enquanto
mediação e artífice de experiências interativas diversas.
Visa-se, portanto, ampliar o debate sobre o que se entende por avatar na
tecnocultura contemporânea, com o intuito de contribuir para a produção de
mais conhecimento sobre o tema. Partindo da dinâmica básica envolvida em
um jogo de tabuleiro como o xadrez até a interação em um ambiente como o
Second Life (Linden Lab, 2003), procura-se demonstrar como a experiência de
avatarização envolve questões complexas e práticas em rede que acabam por
dizer respeito aos processos mentais das próprias pessoas.
Escalas de avatarização: dinâmicas do xadrez
Em 1995, no clássico Life on the Screen: Identity in the age of internet,
Sherry Turkle dizia que uma nascente cultura da simulação afetava nossas
ideias sobre mente, corpo, eu e máquina, apagando cada vez mais as fronteiras
entre real e virtual, animado e inanimado, eu unitário e múltiplo, tanto no
âmbito das ciências e pesquisas acadêmicas quanto no cotidiano das pessoas:
Nos meus mundos mediados por computador, o eu é múltiplo, fluido, e constituído na
interação com as conexões da máquina; ele é feito e transformado pela linguagem (...).
No mundo artificialmente gerado dos MUDs, encontro personagens que me colocam
em um novo relacionamento com minha própria identidade3 (TURKLE, 1995:15).
Embora pareça que só através de um avatar textual, 2D ou 3D seja possível ter essa experiência de “avatarização”, podemos identificar esse fenômeno
antes mesmo da criação das interações mediadas por computador em nosso cotidiano, em certas escolhas e experiências que vivenciamos, dependendo
de determinada situação ou ambiente. Além disso, quando nos referimos a
Fernando Pessoa com seus diversos heterônimos, cada qual com características
peculiares e campos de ação específicos, vemos que essa possibilidade de distribuição e criação de “Eus” já era algo conhecido por ele. Todavia, um entendimento maior desse contexto nem sempre está disponível para a maioria dos
estudiosos e usuários. Isto por vários motivos: ausência de ferramentas teóricas
capazes de dar conta desse fenômeno de modo mais amplo; dificuldade de colocar em questão alguns conceitos naturalizados (Eu, corpo, lugar, etc.); falta
de experiência e familiaridade com os meios que permitem esse questionamento; etc. Além disso, fala-se muito em multiplicação de “Eus”, mas se comenta
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Bressan & Silveira Jr. Avatares em jogo: interfaces, processos e experiências.
pouco sobre os modos de colocar essa multiplicação em prática, os níveis de
complexidade e os processos gerais em questão.
Levando em conta o atual contexto apresentado por vários pesquisadores que consideram o conceito de redes como importante metáfora da contemporaneidade, ideia esta que se complementa com noções como conectividade,
ubiquidade, emergência, distribuição, compartilhamento, instantaneidade,
mobilidade, rapidez, fluxos, hibridismo etc., propomos a seguinte hipótese:
avatar é um processo complexo, múltiplo, em rede, com várias amplitudes (ou
escalas) no ambiente do jogo ou plataforma, mas não se limita a esse ambiente lúdico ou se fecha em si mesmo, pois não é apenas uma unidade (ou peça
individual) e tampouco está separado do jogador (ou usuário) que o controla.
Para exemplificar, partiremos de um dos jogos de tabuleiro mais populares
do mundo, o xadrez4 , em direção ao entendimento da dinâmica dos avatares na
plataforma 3D Second Life (SL). Em linhas gerais, um jogo de xadrez é constituído por 4 (quatro) elementos fundamentais, que são interdependentes, a saber:
a) regras do jogo; b) jogadores; c) plataforma do jogo (tabuleiro); e d) peças.
As regras do jogo dizem respeito ao que os jogadores podem e devem
fazer durante uma partida de xadrez, com base no campo específico de ação
das peças – ou seja, o tabuleiro – e na dinâmica das peças, tanto em relação
ao espaço que elas ocupam quanto na interação entre elas mesmas. Para que
se possa iniciar uma partida de xadrez, além da concordância em aceitar e agir
conforme as regras, é necessária a presença de dois jogadores (humanos ou
não), 32 peças (16 para cada jogador) e um tabuleiro (online ou offline) quadriculado, com 64 casas, sobre as quais as peças se movimentam.
Os jogadores realizam a ação de movimentar peças de forma alternada e
somente podem mobilizar uma peça do seu conjunto de cada vez. A movimentação delas só é possível caso haja espaço para a ocupação de determinada casa
ou interação com a peça do adversário. As 16 peças de cada jogador são dividas
em seis tipos: Rei (1 unidade), Dama (1 unidade), Bispo (2 unidades), Torre (2
unidades), Cavalo (2 unidades), e Peão (8 unidades). Cada tipo de peça somente
pode ser movimentado, a fim de ocupar determinada casa ou interagir com outras peças, com base em sua característica específica e em determinado momento
do jogo. No início do jogo, por exemplo, o peão pode se movimentar na vertical,
permanecendo na primeira ou segunda casa mais próxima, depois disso, ele só
se movimenta uma casa de cada vez. A dama, durante todo o jogo, pode se movimentar em horizontal, vertical ou diagonal, o número de casas que se deseje.
A complexidade do xadrez se deve, basicamente, ao fato de que cada
peça possui valoração, movimentos e possibilidades de captura específicos, variáveis estas que durante o jogo se combinam e multiplicam através de outras
variáveis – espaço no tabuleiro; disposição das peças; espaço e tempo de cada
jogada; experiência do jogador; raciocínios momentâneos; interação entre as
peças; possibilidades de movimentos etc.
Entretanto, algo pouco comentado sobre o xadrez é o fato de ele ser uma
“máquina de avatarização” bastante complexa e útil para entendermos a dinâmica
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Bressan & Silveira Jr. Avatares em jogo: interfaces, processos e experiências.
das contemporâneas plataformas online e ambientes imersivos diversos. De acordo com Mark Meadows, no xadrez existem mais avatares do que jogadores:
O xadrez possui avatares que existem tanto na peça individual (torre, cavaleiro,
etc.) quanto na perspectiva do jogador, tanto em alto-nível, do ponto de vista da
câmera em terceira-pessoa, quanto da perspectiva de primeira-pessoa do xadrez5
(MEADOWS, 2008: 20).
Para Meadows, existem dois níveis gerais de avatarização disponíveis no
xadrez: a) no nível individual de cada peça (primeira pessoa); e b) na visão de
jogo do jogador (terceira pessoa). Entretanto, parece-nos que o autor desconsidera o fato de que, durante a interação entre as peças e jogadores, há ainda outro
nível intermediário, na medida em que o jogador considera (1) sua visão de jogo
(chamaremos de Isométrica), a qual se realiza em meio à (2) visão de cada uma
de suas peças (primeira pessoa) em interação com (3) as outras peças do mesmo
conjunto, visão esta que seria uma espécie de terceira pessoa. Nesse sentido, podemos entender que existem pelo menos três escalas de avatarização disponíveis
para cada um dos jogadores durante uma partida de xadrez. Cada escala de avatarização promove a predominância de ações específicas durante o jogo, a saber:
Tipos de Escalas de Avatarização no Xadrez (para cada jogador)
Visão da peça (1ª pessoa):
Visão das peças (3ª pessoa):
Visão Isométrica (todo):
Regras específicas, com
base na característica intrínseca do tipo de peça. (ex:
Cavalo: se movimenta em
“L” em todas as direções)
Combinação das possibilidades de movimento de
cada uma das peças com o
próximo movimento de outras peças que fazem parte
do conjunto do jogador.
- Movimentação geral
- Movimentações possíveis
a partir de conhecimento de
vida do jogador, experiências
anteriores e conhecimento das
regras do xadrez
- Dimensão extragame (não
se limita à plataforma do jogo)
Entretanto, se levarmos em conta que essas três escalas oscilam a partir
da interação entre os dois competidores – e somente por isso, isto é, pela presença de um jogador em consideração com o outro, que o xadrez é um jogo
possível –, veremos que o processo de avatarização se complexifica ainda mais:
Cruzamento geral de escalas de avatarização, a partir da interação entre os jogadores
Visão Um/Um
Visão Um/Todo
Visão Todo/Um
Visão Todo/Todo
Visão Geral
Cada peça de um
jogador em relação
ao movimento de
cada peça do outro.
Cada peça de um jogador em relação ao
movimento de todas
as peças do outro.
Todas as peças de um
jogador em relação a
cada uma das peças
do outro.
Todas as peças de
um jogador em relação a todas as peças
do outro.
3ª Pessoa x 1ª Pessoa
3ª Pessoa x 3ª Pessoa
Identificação de padrões de
peças e suas possibilidades de
evolução no jogo, considerando tanto o outro jogador quanto o próprio conjunto de peças
e suas estratégias de jogo (não
se limita à plataforma).
1ª Pessoa x 1ª Pessoa 1ª Pessoa x 3ª Pessoa
Isométrica x Isométrica
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Bressan & Silveira Jr. Avatares em jogo: interfaces, processos e experiências.
O que o entendimento em termos de graus de avatarização (ou escalas)
nos mostra, entre outros fatores, é que o jogador, ele mesmo, é um avatar do
jogo e, portanto, deve se adequar às regras e agir conforme a situação que se
apresenta. Veremos como essa dinâmica pode ser observada nas interações disponíveis via Second Life (SL).
As múltiplas e simultâneas avatarizações do SL
Second Life (ou “segunda vida”, em português) é o nome de uma plataforma online 3D lançada pela empresa Linden Lab, em 2003. Embora o SL não
possua atualmente a popularidade que teve em 2007, a plataforma ainda mobiliza um vasto conjunto de experiências (sobretudo estéticas) e processos que têm
interessado várias empresas, laboratórios, instituições, pesquisadores e usuários
diversos. Uma das atrações mais comentadas em relação ao SL é a possibilidade
de fruição de um ambiente tridimensional online através da mediação de um
“avatar aberto” – i.e., um avatar que não é um agente ou peça com função predeterminada no jogo (por exemplo, no xadrez), estes seriam “avatares fechados”.
Segundo Daniel Kromand, avatar é uma unidade de jogo – por ter uma
marcação clara de sua fisicalidade no ambiente de interação, isto é, a tela –,
com possibilidades de ação, que responde aos comandos do jogador. No artigo
Avatar Categorization (2007), Kromand identifica dois tipos de avatares, situados em polos diametralmente opostos, porém sobre um contínuo de influência
em relação ao jogador; Avatar Fechado e Avatar Aberto:
Chamo o avatar com personalidade pré-gerada de Avatar Fechado, uma vez que o
jogador não tem controle algum sobre a mente do avatar e a mudança só é possível
através de uma progressão narrativa predeterminada. Este tipo de avatar tem uma
personalidade completa desde o início do jogo, embora partes dele possam ser retiradas
pelo jogador ou modificadas no decorrer do jogo. Avatares fechados típicos incluem Pacman (init. Namco/Midway 1980), Mario (init. Nintendo 1981) e Lara Croft (init.
Core Design/Edios Interactive 1996), uma vez que todos eles possuem mentalidades e
objetivos pré-embutidos na narrativa do jogo. Eles reagem de um modo predeterminado
em relação ao desenrolar da narrativa. O outro tipo de avatar eu chamo de Avatar
Aberto, pois ele não possui nenhum traço de personalidade sem o envolvimento do
jogador. Este tipo de avatar inicia o jogo como um quadro-negro vazio e adquire sua
personalidade através das escolhas do jogador, as quais podem ser limitadas pelo design
do jogo 6 (KROMAND, 2007: 401).
Por outro lado, como havíamos citado anteriormente, a experiência de avatarização não se dá somente, e necessariamente, através de objetos manipuláveis
com forma humanoide, em uma plataforma digital ou videogame. Janet Murray,
por exemplo, no seu livro Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço, defende que os RPGs são experiências de holodeck, só que sem a maquinaria.
Antes de chegarmos aos avatares 3D, de plataformas como SL e World
of Warcraft (Blizzard, 2004), devemos nos lembrar de que experiências de avatarização também já foram (e continuam sendo) registradas através do uso de
máscaras, desde a Grécia antiga; personagens (em contos orais, livros, peças teatrais, festividades, rituais etc.); nomes; imagens; nicknames em chats textuais;
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Bressan & Silveira Jr. Avatares em jogo: interfaces, processos e experiências.
emoticons; descrições textuais em um perfil de RPG; peões em jogos de tabuleiro; perfis em comunidades online; retratos em sites de relacionamento; imagens
em 2D nos primeiros MUDs; personagens de videogames (ex: Mario Bros.,
Lara Croft etc.), Buddy Poke no Orkut etc.
O entendimento desse contexto evidencia, entre outras coisas, que o avatar
é, antes de tudo, uma interface, e que toda interface, em menor ou maior grau, é
um avatar. Interface, aqui, seja no sentido de Pierre Lévy, como aparato material
que permite a interação entre o universo da informação digital e o mundo ordinário (LÉVY, 1999: 37), seja no significado proposto por Steven Jonhson:
Em seu sentido mais simples, a palavra se refere a softwares que dão forma e interação
entre usuário e computador. A interface atua como uma espécie de tradutor, mediando
entre as duas partes, tornando uma sensível para a outra. Em outras palavras, a relação
governada pela interface é uma relação semântica, caracterizada por significado e
expressão, não por força física. (JOHNSON, 2001: 17).
Entretanto, assim como a ação de uma peça de xadrez, mesmo que esta seja
“avatar fechado”, não se limita a seu caráter unitário e envolve o processo lúdico
como um todo, as possibilidades de avatarização disponíveis no SL não deveriam
ser vistas em relação apenas ao corpo gráfico 3D, o qual aparentemente só age dentro do metaverso. Assim, antes de enumerar alguns dos múltiplos avatares disponíveis via SL, é necessário analisar o processo de interação disponível neste ambiente.
Vejamos seus elementos e processos fundamentais, em termos gerais:
a) Regras e normas para interação na plataforma – incluindo (I) os limites e possibilidades oferecidas pela programação (algoritmos), e (II) as
regras de conduta social definidas para a plataforma;
b) A plataforma 3D (conectada à internet);
c) Website do SL (conectado à internet e à plataforma);
d) Dispositivos físicos de entrada e saída de dados (ex: computador,
teclado etc.);
e) Interfaces gráficas (inclui os corpos gráficos 3D e outros avatares);
f) Usuários
Como se percebe, o grau de complexidade do SL em relação a um jogo
de xadrez (tabuleiro físico) é bastante elevado, isto sem contarmos que a plataforma SL não se limita a ser apenas um jogo (no sentido de Huizinga, no
clássico Homo Ludens, por exemplo). Para entender didaticamente os processos
de avatarização disponíveis no SL (sobretudo via interfaces gráficas), vejamos
alguns processos com base na experiência disponível a um residente convencional, isto é, que possui apenas uma conta no SL.
Uma das primeiras ações necessárias ao usuário interessado em se tornar
residente do SL (de forma gratuita ou não) é a criação de um nome de usuário (o
primeiro avatar), a partir do qual ele será identificado, dentro da plataforma e nos
arquivos da Linden. Na conta gratuita, para criar seu nome de residente, o usuário deve se basear em um inventário dado e escolher os possíveis sobrenomes.
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Bressan & Silveira Jr. Avatares em jogo: interfaces, processos e experiências.
Após esta etapa, será necessária a escolha de um visual padrão, para o seu
corpo gráfico, disponibilizado pela empresa. São 12 (doze) avatares 3D passíveis de escolha, metade do gênero masculino, metade do feminino (Este já é
um segundo nível de avatarização). Depois de ter escolhido seu corpo inicial e
conseguido ativar sua conta, após recebimento do email de confirmação do SL,
o usuário poderá entrar na plataforma. Para isso, entretanto, ele deverá ter feito
o download da plataforma, instalado o programa do SL no seu computador –
o qual deverá possuir requisitos mínimos, como, por exemplo, uma boa placa
de vídeo – e ter acesso à internet.
Com a plataforma instalada, o usuário poderá, enfim, explorar o ambiente 3D do SL. As funções e interações disponíveis via plataforma, pelo
navegador principal, promovem outro grau de avatarização, que, por sua vez,
irá proporcionar a emergência de vários níveis internos de avatarização, e,
assim por diante, numa lógica de avatarização fractal, durante o percurso
no ambiente, através da interação do usuário com o próprio navegador, com
outros corpos 3D, com os objetos do ambiente, com o ambiente, com os
grupos, chats textuais internos etc.
Essa rede de avatares (interfaces, processos e funções diversas) no SL
opera de forma simultânea e, como se percebe, envolve uma complexidade
de interações de difícil mapeamento e análise. A estrutura básica que permite
tudo isso já é dada, automaticamente, ao usuário, é uma das condições para
exploração da plataforma e tende a se complexificar ainda mais, à medida que
o usuário ganha experiência e passa a modificar seu visual, seus modos de interagir, através dos variados graus de imersão e explorações possíveis.
A título de exemplo, vejamos uma escala de avatarização, das inúmeras presentes no SL: o controle dos ângulos de visão dentro da plataforma.
Através do comando “alt + botão esquerdo do mouse + botão de movimento do mouse”, o usuário poderá escolher o que ver e como ver: dar zoom
(positivo ou negativo) nos diversos objetos e espaços presentes; ocupar o
ambiente 3D e presenciar acontecimentos; variar ângulos de câmera (primeira, segunda, terceira pessoas; visão isométrica do ambiente; visão frontal, lateral, entre outras, do avatar etc.).
Agora, se pudermos imaginar como essas variações se expressam em interação com outros graus de avatarização e suas variáveis constitutivas (p.ex:
através dos objetos no inventário do usuário; os perfis do residente; grupos
em que ele participa; possibilidades de edição do ambiente, do corpo gráfico;
scripts etc.), veremos que um dos slogans do SL “Your world. Your imagination”
(Seu mundo, sua imaginação), de fato, faz muito sentido, e que, talvez por isso,
pela exigência em se mobilizar uma rede complexa de processos, elementos,
corpos gráficos, jogadores etc. é que o SL tenha saído de moda ou perdido
muito dos seus usuários – já que para isso, o usuário deve realmente investir
nessa “segunda vida” e nas múltiplas amplitudes (avatares) dela; algo que, para
alguém como Fernando Pessoa, consumiu toda uma vida.
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Bressan & Silveira Jr. Avatares em jogo: interfaces, processos e experiências.
Considerações finais
Embora seja necessário o desenvolvimento de uma análise específica dos
graus de avatarização tanto no xadrez quanto no SL, é possível defender que o avatar de fato é uma rede complexa, que mobiliza várias experiências em seu usuário,
sobretudo em nível estético (i.e. gnoseológico, afetivo). Além disso, ao mesmo tempo, o avatar é uma interface entre as inúmeras outras disponíveis (físicas, textuais,
gráficas etc.), que se expressa de forma processual, com limites que não podemos
prever ou situar com base apenas na materialidade dos dispositivos e plataformas
que são passíveis de manipulação e interação. Limites esses que deveriam ser vistos
no sentido matemático, enquanto índices de uma sequência de avatarização que
aumenta e tende ao infinito, superando fronteiras modais e separações cartesianas.
A partir desse entendimento, em termos de escalas e redes complexas, é que
podemos direcionar nossa problemática para o conceito de Pessoa, desenvolvido
pela Nova Psicanálise, em que: “Eu = Pessoa = Rede. É a mesma coisa: World Wide
Web. Se saímos do foco de qualquer situação e ampliamos a franja, chegamos a
uma persona mundi visível a cada momento da história” (MAGNO, 2007: 21):
Vejam, então, que Eu=Pessoa não é indivíduo, já que não é o sujeito centrado, de
Descartes; o sujeito dividido, de Lacan; ou a multiplicidade, de Deleuze. Eu=Pessoa é
definível apenas como Rede. E onde termina uma rede? Ninguém sabe. Portanto, há
várias, senão infinitas, amplitudes do Eu, ou da Pessoa (idem: 23).
Buscando propor uma fórmula mínima, basal, para o entendimento das
experiências observadas na clínica e para garantir autonomia à Psicanálise,
enquanto campo gravitacional capaz de incluir os conhecimentos de quaisquer áreas do saber segundo um protocolo próprio, MD Magno reformatou o
pensamento freudo-lacaniano e chegou ao “algoritmo” Haver quer não-Haver
(A—►Ã), segundo o qual, tudo que existe quer, em última instância, encontrar sua simetria absoluta, isto é, não-existir, extinguir-se. Como isso é impossível, uma vez que não-Haver não há, ocorre uma quebra de simetria e o movimento pulsional revira sobre si mesmo, e “retorna” – sem jamais ter saído, pois
não há saída – ao Haver, realizando o chamado Revirão (MAGNO, 2007). De
acordo com esta perspectiva, tudo que há são formações, inclusive a humana
– que se especifica por portar em sua construtura a possibilidade de Revirão.
Uma Pessoa é, pois, uma formação que porta o Revirão, isto é, está disponível
ao movimento pulsional Originário, mas também possui um Primário, seu
corpo e tudo que lhe é dado espontaneamente quando nasce, e um Secundário,
tudo que é criado, industrialmente produzido, como sistemas de linguagens,
padrões culturais etc. Além disso, enquanto formação, a Pessoa se apresenta
como um polo, com muitas formações em seu foco e com uma franja infinita.
Como o Revirão está disponível, se esse polo estiver em um estado positivo, por
exemplo, poderá, a partir de uma referência ao Originário, em continuidade,
passar para outro estado – no caso, o negativo –, e assim por diante, de uma
configuração qualquer a seu avesso e vice-versa.
O conceito de Pessoa abrange um rol de significações que vai da noção etimológica
básica de “máscara” até a noção mais ampla de homem (no sentido de humanidade),
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passando por indivíduo, sujeito, relação, comunidade, diferenciação e, principalmente,
sua significação que expressa a abertura para a relação, que constitui a singularidade
da Pessoa (ARAUJO, 2003: 203-4).
Em linhas gerais, Pessoa é
o conjunto infinito de formações e interesses com competência de conexão (a
outras formações e interesses), constituindo a rede ou malha sintomática que
nos afeta e locomove, hoje em dia cada vez mais qualificada no sentido de
comportamentos e atitudes que levem em conta mobilidade, conectividade e
comunicação (idem, 2003: 211).
Finalmente, se pudermos entender que “todo e qualquer tipo de vinculação entre todo e qualquer tipo de formação é interface” (MAGNO, 1998:
33), veremos que, ao falar de processos de avatarização, estamos falando de nós
mesmos, de nossas várias amplitudes, de focos permeados por uma franja com
vocação infinita, em meio às diversas possibilidades de comunicação, interação, experiências e passagens disponíveis às Pessoas, as quais, elas mesmas, são
interfaces para outras Pessoas, formações, avatares...
Referências Bibliográficas:
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terror e imagem, comunicação e tecnologia. Revista Lumina. V6. Juiz
de Fora: UFJF, 2003.
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imagens digitais. Porto Alegre: Sulina, 2010.
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Conference: The University of Tokyo, 2007.
MAGNO, MD. Formações e interfaces: parangolés e suas transas. Facom/
UFJF. Revista Lumina. V.1, n.1, p.33-51. Jul-Dez. 1998.
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Rio de Janeiro: Novamente, 2007.
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second life. Berkeley: New Riders, 2008.
MORNINGSTAR, C.; FARMER, F. R. The Lessons of Lucasfilm’s
Habitat. [online], (also published in: M.Benedikt (ed.) Cyberspace: First
Steps, MIT Press, 1991), 1990. [citado em 12/04/2010]
<http://sunsite.unc.edu/pub/academic/communications/papers/habitat/lessons.txt>.
TURKLE, S. Life on the screen: identity in the age of the internet. New
York: Touchstone, 1995.
WAGGONER, Z. My avatar, my self: identity in video role-playing game.
London: McFarland, 2009. Petrópolis: Vozes, 1984.
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Notas
1- Jogo de interpretação de personagem online e em massa para múltiplos jogadores
(Massively ou Massive Multiplayer Online Role-Playing Game ou Multi massive
online Role-Playing Game).
2- Livre tradução de: Habitat was inspired by a long tradition of “computer hacker
science fiction”, notably Vernor Vinge’s novel, True Names (Vinge, 1981), as
well as many fond childhood memories of games of make-believe, more recent
memories of role-playing games and the like, and numerous other influences too
thoroughly blended to pinpoint. To this we added a dash of silliness, a touch of
cyberpunk (Gibson, 1984; Sterling, 1986), and a predilection for object-oriented
programming (Sussman and Abelson, 1985). (...) The players are represent by
animated figures that we call “Avatars”. Avatars are usually, though not exclusively,
humanoid in appearance. (...) Avatars can move around, pick up, put down and
manipulate objects, talk to each other, and gesture, each under the control of an
individual player. Control is through the joystick, which enables the player to
point at things and issue commands. Talking is accomplished by typing on the
keyboard. The text that a player types is displayed over his or her Avatar’s head in
a cartoon-style “word balloon”.
3- Livre tradução de: In my computer-mediated worlds, the self is multiple, fluid, and
constituted in interaction with machine connections; it is made and transformed
by language (…) And in the machine-generated world of MUDs, I meet characters
who put me in a new relationship with my own identity.
4- Como nosso interesse é demonstrar de forma bastante geral a dinâmica de
avatarização e os elementos envolvidos em um jogo de xadrez, não nos deteremos
na história deste jogo de tabuleiro, tampouco nas diferentes tradições enxadrísticas
e suas regras específicas.
5- Livre tradução de: “Chess has avatars that exist in both the individual piece (the
rook, the knight, etc.) and the perspective of the player, both from a high-level,
third-person camera point of view, and from the first-person perspective of chess.”
6- Livre tradução de: “I name the avatar with pregenerated personality a Closed
avatar, since the layer has no control over the avatar’s mind, and change is only
possible through a predetermined narrative progression. This avatar type has
a complete personality from the beginning of the game, although parts of it
may be secluded from the player or changed through the course of the game.
Typical closed avatars include Pac-Man (init. Namco/Midway 1980), Mario (init.
Nintendo 1981) and Lara Croft (init. Core Design/Edios Interactive 1996), since
they all have predetermined mindsets and objectives inlaid in the narrative of the
game. They react in a predetermined way to the unfolding of the narrative. The
other avatar type I name an Open avatar, since it has no personality traits without
the involvement of the player. This avatar type starts the game as a blank slate and
gains its personality through player choices, which of course may be limited by
game design. The avatars of role-playing games are the quintessential open avatar.”
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Experiência das Narrativas
Cross e Transmidiáticas no
Webjornalismo1
Cross and Transmedia Narrative´s Experience on Webjournalism
Alysson Vianna Martins | [email protected]
Mestrando em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA. Jornalista pela UFPB.
Integrou o PIBIC de 2008 a 2010, estudando acerca da blogosfera, webjornalismo
e Teoria do Jornalismo. Na monografia, tratou das narrativas crossmidiáticas e
transmidiáticas e das propriedades do webjornalismo. Publicou, em organização
com Cláudio Cardoso de Paiva e Marina Magalhães de Morais, o livro “Afrodite no
ciberespaço: A era das convergências”, contendo também artigo de sua autoria.
Resumo
O jornalismo não adquiriu só novas características quando se apropriou da web para produzir seu material.
Especificidades inéditas e formas de construção do conteúdo também aparecem, ainda que algumas dessas
novidades já existam – em outros meios e outras áreas. Aqui, diferenciamos conceitual e empíricamente as
narrativas crossmidiáticas e transmidiáticas, discutindo a aplicabilidade de ambas no webjornalismo.
Palavras-Chave: Transmídia; Crossmídia; Narrativas Midiáticas; Webjornalismo.
Abstract
Not only new characteristics journalism acquired when it appropriatedfrom the Web to produce its material.
Unpublished specificities and forms of construction of the contents also appear, though some of these innovations
already exist - in other media and areas. In this work, we differentiate conceptual and empirical crossmediatics
and transmediatics narratives, discussing the applicability of both in Webjournalism.
Keywords: Transmedia; Crossmedia; Media narratives; Webjournalism
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Alysson Vianna Martins. Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo.
Introdução
A convergência é atualmente uma expressão bastante utilizada em textos acadêmicos. Para os pesquisadores Antikainen et al. (2004, p.8), a “convergência pode ser percebida nos conteúdos, nos dispositivos terminais e nos
sistemas de rede”2. Na comunicação, costuma-se falar da convergência como
sinônimo da convergência de formato, o mesmo que multimídia ou “multimeios” (SANTAELLA, 2003), isto é, a conjugação, em apenas um espaço, de
vários formatos midiáticos, como imagem, texto, vídeo, link etc. Outro tipo
de convergência é a de terminais, que reúne as funções de vários meios de
comunicação em apenas uma ferramenta. Contudo, o teórico Henry Jenkins
(2008, p. 27-28) vai de encontro à ideia de a convergência “ser compreendida
principalmente como um processo tecnológico que une múltiplas funções dentro dos mesmos aparelhos”, pois, embora isso ocorra, nunca vai haver um meio
que englobe todas as características dos outros, bem como uma substituição.
Assim, encontramos a convergência de conteúdo, sobre a qual nos
debruçamos e damos ênfase. Este tipo de convergência tem a ver com a
transposição de arquivos de um meio para outro, majoritariamente, do impresso, do rádio e da TV para a web. Como a convergência de conteúdo se
tornou bastante comum entre os meios de comunicação, acreditamos que
os jornalistas podem fortalecer seu trabalho por meio dessa possibilidade.
E é nesta seara onde as narrativas crossmidiáticas e transmidiáticas podem
surgir de maneira mais eficaz.
A expressão transmídia (ou narrativa transmidiática) nasceu na área do
entretenimento com a ideia de expansão de um assunto para diversos meios,
para que o receptor (fã) acompanhe essa migração, consumindo os desdobramentos da temática em vários dispositivos. Esse conteúdo tem de ser diferente
e independente daquele que inspirou inicialmente o assunto, explorando novos
pontos de vista e expandindo algo que não havia recebido destaque. Ainda que
focalize o fã, o produto pode ser consumido por um iniciante, haja vista que
cada material tem uma narrativa independente.
Por sua vez, a narrativa crossmidiática (ou crossmídia), surgida na área do
marketing e da publicidade, possui um conceito fluido, tendo em vista que muitos utilizam a expressão ou como sinônimo de convergência (ANTIKAINEN
et al., 2004; CORREIA E FILGUEIRAS, 2008), de transmídia (CORREIA
E FILGUEIRAS, 2008; DENA, 2004; MÉDOLA, 2009) ou mesmo sem
precisar o termo (CORREIA E FILGUEIRAS, 2008). Em nosso estudo, entendemos crossmídia como um cruzamento midiático. Ela acontece quando
um veículo direciona ou indica o espectador para outro, para que se possa
consumir determinado conteúdo ou interagir, podendo até, por exemplo, nos
remeter de volta ao meio inicial para que vejamos o produto finalizado (com
nossa interação ou mesmo de outros, quando se necessita de uma votação, por
exemplo). Por conseguinte, o diálogo acontece entre as mídias – o aspecto tecnológico –e não entre os conteúdos, como na narrativa transmidiática.
Além de diferenciar conceitualmente e empiricamente as duas narrativas, demonstraremos que elas podem ser percebidas na área jornalística, ainda
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Alysson Vianna Martins. Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo.
que não tenham sido criadas para esta. E nesse limiar da “cultura da convergência”, as empresas “passam a requerer de seus profissionais novas competências diante das exigências da plataforma convergente”, conforme acredita Ana
Sílvia Médola (2009, p. 4). Nessa linha, os jornalistas podem revigorar sua profissão através da aplicação das narrativas cross e transmidiáticas conjuntamente,
ou não, com os conteúdos transpostos.
Narrativa crossmidiática ou cruzamento de mídia
Apesar da existência da narrativa crossmidiática não estar condicionada
exclusivamente à internet, foi neste meio que os cruzamentos de mídia começaram a ser mais evidenciados. Em um de seus relatórios, Boumans (apud
CORREIA e FILGUEIRAS, 2008) defende que a mídia cruzada se tornou
mais sintomática no final dos anos noventa, através da criação do programa televisivo Big Brother, na Holanda. Na ocasião, a interação entre mídia televisiva
e web ganhou mais evidência, sobretudo no contexto da crossmídia, haja vista
que o programa guiava a audiência para web, para que o público interagisse e
depois voltasse à TV e assistisse ao programa.
No Brasil, o primeiro caso de cruzamento de mídia sem a necessidade
explícita da internet é proporcionado pela Globo Filmes, diz a pesquisadora
Luiza Lusvarghi (2007). De acordo com a autora (2007, p. 2), o filme Antonia
conseguiu articular esse cruzamento através do filme e do seriado. Ainda assim, Lusvarghi explica que o Big Brother brasileiro já fazia “amplo uso dessa
ferramenta de marketing” (2007, p. 2), porém, realizando o cruzamento ente
TV e web, semelhante ao que ocorreu na Holanda.
Embora não possamos dizer que o cruzamento midiático tenha surgido
com a web, sobretudo na interação com a TV, foi com esses dois meios que a
crossmídia ganhou mais relevância. Os pesquisadores Antikainen et al. (2004,
p. 28) descrevem o cenário das primeiras experiências de crossmídia evidenciadas por eles: “TV-SMS foi a primeira solução desenvolvida na chamada
TVweb (em 1999), onde uma tela foi criada para conteúdos da Internet: artigos, tempo e imagens de câmera da web”3. Além dessas experiências entre TV,
internet e telefonia móvel, através de SMS (serviço de mensagem curta, em
inglês “short message service”), Antikainen et al. (2004, p. 28) observam que
“pesquisas de opinião são produtos típicos da crossmídia, do ponto de vista da
interação da transmissão televisiva” 4.
O conceito de crossmídia surgiu na área da publicidade e do marketing,
como já mencionado de maneira apressada, através da “possibilidade de uma
mesma campanha, empresa ou produto utilizar simultaneamente diferentes
tipos de mídia: impressa, TV, rádio e Internet” (LUSVARGHI, 2007, p. 2).
Contudo, esse uso não acontece veiculando o mesmo conteúdo em outro meio,
isso seria convergência (de conteúdo).
Segundo a pesquisadora Celia Quico, “define-se Cross-Media como
um produto e/ou serviço interativo que envolve mais do que um medium”
(2004, p. 2, grifo do original). Se levarmos em consideração a ideia de interativo como a indicação ou guia de um meio para outro, em outras palavras,
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Alysson Vianna Martins. Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo.
que uma mídia direciona o espectador para outra, assim, encontramos a
narrativa crossmidiática. Esse entendimento de crossmídia como direcionamento, guia e indicação é também compartilhado por De Haas, afirmando
que “a narrativa direciona o receptor de uma mídia para a seguinte” (apud
CORREIA E FILGUEIRAS, 2008, p. 4).
Miyamaru et al. (2008) defendem que a crossmídia tem várias maneiras
de experimentação. No entanto, algumas dessas aplicações expressas pelos pesquisadores são sinônimas de convergência ou transmídia, como se a crossmídia
fosse um conceito maior, abarcando todos os outros. Contudo, entre as formas
de uso que os autores especificam, uma é semelhante ao que conceituamos
como narrativa crossmidiática: “call-to-action (CTA) é uma forma de indicar
e incentivar o usuário que a continuação da história pode ser realizada em
outra mídia. Pode ser abstraído como um hyperlink entre diferentes meios de
comunicação” (MIYAMARU et al., 2008, p. 4).
Os autores Antikainen et al. dão um exemplo de como pode haver narrativa crossmidiática, no mesmo sentido que conferimos ao termo: “Crossmídia
é usada para enviar alerta a um terminal (telefone móvel) e então conectar um
outro terminal (o computador e a Internet) para se registrar alertas e se juntar
mais informações do tema” 5 (2004, p. 30). A propósito, a narrativa crossmidiática como guiadora é defendida ainda desse modo, em certo momento, pela
brasileira Lucia Filgueiras (apud CORREIA E FILGUEIRAS, 2008, p. 5):
“crossmídia é o meio de suporte de múltipla colaboração utilizado para liberar
uma simples história, ou tema, na qual a narrativa direciona o público de um
meio para outro, utilizando a força de cada meio para dialogar”6.
Para a pesquisadora sobre crossmídia e transmídia, Christy Dena, as interações e os diálogos entre os meios de comunicação podem ser de três modos:
cross channel; inter-channel; intra-channel. No cross channel, o usuário muda de
mídia e começa a interação numa outra, que exige posicionamentos e trabalhos
cognitivos singulares: “o usuário pode estar sentado exatamente no mesmo lugar, lendo um livro na sua mesa e então usar a Internet, mas tem de mudar sua
interação (de passar páginas para teclar no teclado) e seus processos cognitivos de
raciocínio para ‘desenvolver’ novos esforços” 7 (DENA, 2004, p. 4).
Na interação inter-channel, o consumidor não muda de canal (isto é, o
meio de comunicação), porém de formato. Por exemplo, deixa de ler um texto
para assistir a um vídeo, no mesmo endereço ou em outro, contato que não mude
de mídia: “Navegação inter-channel envolve a ação dentro de um canal, mas
entre modos [que denominaríamos de formato]. Por exemplo, ir de um texto na
web para uma sequência de vídeo” 8 (DENA, 2004, p. 4, grifo nosso). Por fim, a
navegação intra-channel é aquela em que o navegante não muda nem de canal,
nem de formato: “Navegação intra-channel acontece dentro de um mesmo canal
e formato. Um exemplo pode ser observado quando se avança uma gravação de
áudio para o momento de uma fala do narrador” 9 (DENA, 2004, p. 5).
O conceito de crossmídia é utilizado de modo confuso, como equivalente à convergência ou, mais comumente, à transmídia, ou mesmo de maneira imprecisa e abrangente. Em certos momentos, os autores Antikainen et
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Alysson Vianna Martins. Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo.
al. falam de crossmídia aproximando com o entendimento de convergência:
“Crossmídia se refere ao conteúdo distribuído em várias mídias” 10 (2004, p. 3).
Aqui, os autores defendem que um conteúdo perpassado (ou convergido) por
várias mídias seria exemplo de crossmídia, ao invés de convergência. Todavia, a
crossmídia não tem a ver com conteúdo convergido, mas com a indicação para
outro meio, guiando a audiência para outra mídia. Antikainen et. al (2004, p.
7) defendem, erroneamente, portanto, que “uma publicidade crossmídia tem o
conteúdo disposto de forma impressa e digital, isto quer dizer possibilidade de
difusão do mesmo conteúdo por meio de diversas ferramentas” 11.
Os pesquisadores brasileiros, Correia e Filgueiras, em dado momento,
também utilizam o conceito de crossmídia como sinônimo de convergência,
afirmando que, na crossmídia, o conteúdo é “acessível/entregue em uma série
de dispositivos como PC’s, dispositivos móveis, TV ou caixas set-top” (2008,
p. 3). Correia e Filgueiras (2008, p. 4) trazem ainda autores como os supracitados Antikainen et al. (2004), que, de modo semelhante, tratam crossmídia
como sinônimo de convergência, esclarecendo que aquela acontece quando “o
mesmo conteúdo é transmitido por diferentes mídias, valendo-se dos benefícios individual de cada meio”. 12
A autora Ana Silvia Médola (2009), por sua vez, não distingue crossmídia de transmídia. No primeiro momento, refere-se claramente à narrativa
crossmidiática, pois fala de “convocação”, isto é, a indicação de outro meio ao
espectador; enquanto, no segundo, traz um exemplo de transmídia, que seria
a ampliação de um assunto veiculado em outro meio, sem a necessidade de
indicação (quando existiria crossmídia).
O exemplo mais recorrente é a convocação para que o telespectador acesse o site
da emissora para obter mais detalhes e informações sobre o conteúdo veiculado
na TV, no caso dos programas informativos. Mas também as telenovelas, as
séries, os reality shows, todos têm uma página na internet na qual o telespectador
poderá encontrar de blogs com participação de autores à ficha técnica da equipe de
produção (MÉDOLA, 2009, p. 4).
Os estudiosos Danilo Correio e Lucia Filgueiras (2008, p. 3) também
utilizam crossmídia como semelhante à transmídia e ainda ampliam o conceito de ambos, afirmando que, para existir cruzamento de mídia, “mais de um
meio precisa dar suporte a um tema ou história, assim como estabelecer uma
meta ou um propósito, e pretender transmitir uma mensagem”. Nessa perspectiva, os autores tratam transmídia e crossmídia como sinônimos, incluindo
propósitos e metas como essenciais ao processo.
Mais explicitamente, a australiana Christy Dena (2004, p. 2) usa crossmídia como sinônimo de transmídia. Para Dena, os fatos que Jenkins (2008)
descreve como transmidiáticos são também crossmidiáticos, visto que as expressões são equivalentes. Segundo a autora, os exemplos citados por Jenkins
sobre a franquia Matrix 13 são fatos de crossmídia. Ainda assim, como na série
não há divulgação de um meio ao outro, ou seja, o espectador não é levado de
uma mídia para a seguinte – o que seria próprio da narrativa crossmidiática
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Alysson Vianna Martins. Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo.
–, entendemos que a narrativa na franquia Matrix seria um caso da narrativa
transmidiática.
Como se percebe, os estudiosos que tratam de crossmídia são imprecisos quanto ao termo. Em vários instantes, os pesquisadores referidos precisam
o termo com clareza, porém, quando tornam a fazê-lo no mesmo trabalho,
às vezes não fazem distinção com outras expressões, como transmídia e convergência, usando-as como sinônimas ou mesmo conceituando crossmídia de
maneira muito abrangente. Fato esse que pode ser percebido por meio das
citações, nas quais um mesmo autor ajuda a definir crossmídia, mas também a
mostrar as falhas de conceituação dessa expressão.
Por fim, em nossa concepção, na narrativa crossmidiática, a intenção não
é expandir o conteúdo, mas promovê-lo. Portanto, o diálogo principal não é com
o assunto, com a temática ou com o contexto, mas com o meio. Sentir-se atraído,
guiado e direcionado para ir a outra mídia, independentemente do motivo.
Narrativa transmidiática ou ampliação de tema
A narrativa transmidiática tem seu surgimento mais preciso do que a
crossmídia, bem como seu mentor. O pesquisador norte-americano Henry
Jenkins (2008) deu nome a algo que já acontecia, mas que não havia sido
estudado sistematicamente. Da área do entretenimento, “a narrativa transmidiática refere-se a uma nova estética que surgiu em resposta à convergência das
mídias – uma estética que faz novas exigências aos consumidores e depende
da participação ativa de comunidades de conhecimento” (JENKINS, 2008, p.
47). Para ser mais explícito, na transmídia, o consumidor segue os desdobramentos de uma temática por meio de várias mídias. Em outras palavras:
os consumidores devem assumir o papel de caçadores e coletores, perseguindo
pedaços da história pelos diferentes canais, comparando suas observações com as de
outros fãs, em grupos de discussão on-line, e colaborando para assegurar que todos
os que investiram tempo e energia tenham uma experiência de entretenimento
mais rica (JENKINS, 2008, p. 47).
Como no âmbito do entretenimento o fã ganha relevância, é nesta área
que a transmídia se torna mais clara, pois uma franquia ganha desdobramentos em jogos eletrônicos e filmes, principalmente. Numa narrativa transmidiática, por exemplo, o jogo traz elementos que ajudam a complementar
as brechas deixadas no filme, e vice-versa. Por conseguinte, “uma história
transmidiática se desenrola através de múltiplos suportes midiáticos, com
cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na
forma ideal de narrativa transmidiática, cada meio faz o que faz de melhor”
(JENKINS, 2008, p. 135).
Todavia, um produto transmidiático deve permitir que um espectador
não-fã possa consumi-lo, em outras palavras, não deve fazer com que seja imprescindível jogar o game para assistir ao filme, ou mesmo ter de ver o filme
para jogar o game. Ou seja, como Jenkins explica, “cada acesso à franquia deve
ser autônomo, para que não seja necessário ver o filme para gostar do game, e
LOGOS 34 Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, Nº 01, 1º semestre 2011
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Alysson Vianna Martins. Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo.
vice-versa. Cada produto determinado é um ponto de acesso à franquia como
um todo” (2008, p. 135). Portanto, se um meio não trouxer complemento para
o produto de outra mídia, não há narrativa transmídia, pois não há ampliação
do tema ou assunto. Isso ocorre, por exemplo, quando
Hollywood age como se tivesse apenas de proporcionar mais do mesmo, imprimindo um
logotipo de Jornada nas Estrelas [Star Trek] (1966) em um monte de bugigangas. Na
realidade, o público quer que o novo trabalho ofereça novos insights e novas experiências
(JENKINS, 2008, p. 146).
Henry Jenkins defende que os produtores têm de “desenvolver games
que não apenas levem as marcas de Hollywood a um novo espaço midiático,
mas que também contribuam para um sistema maior de narrativa” (2008, p.
146). Em suma, as franquias não devem apenas repetir, mas desdobrar e ampliar aquele universo já existente.
Com essa explicação, percebemos que o entendimento de transmídia
não sofre tantas confusões conceituais quanto o de crossmídia. Como a autoria
da expressão transmídia é bem evidenciada ao americano Henry Jenkins, que
a esmiúça em seu livro “Cultura da Convergência” (2008) por meio de teorias
e demonstrações empíricas, as ambiguidades só surgem devido à crossmídia,
aplicada algumas vezes como seu sinônimo. O problema quanto ao que se refere crossmídia se deve ao fato de ela não possuir uma produção bibliográfica
consistente teoricamente e empiricamente que lhe dê sustento.
As narrativas midiáticas no webjornalismo
De acordo com Monique de Haas, “comunicação crossmídia é a comunicação onde a narrativa direciona o receptor de um meio para o próximo” 14
(apud CORREIA E FILGUEIRAS, 2008, p. 4). Cabe explicar que De Haas
fala de “comunicação crossmídia” (no original: “cross media communication”)
já num sentido da aplicação dessa narrativa no jornalismo, haja vista que “a
base do conceito de mídia cruzada tem origem na área de publicidade e evoluiu para outras áreas conforme a necessidade dos diferentes autores em aproveitá-lo” (apud CORREIA e FILGUEIRAS, 2008, p. 14). Os pesquisadores
Antikainen et al. explicam que a “cross media communication”, expressão que
os autores também usam para referir-se à crossmídia no jornalismo, “é a comunicação onde a narrativa guia a audiência de uma mídia para outra” 15 (2004,
p. 7). Portanto, embora não tenha nascido na área jornalística, pesquisadores
de diversas áreas do conhecimento se valem desse conceito, bem como os de
jornalismo, que utilizam até a nomenclatura “cross media communication”.
Como já dissertamos, embora a narrativa crossmidiática ganhe bastante visibilidade com a relação entre TV e web, ela não necessariamente precisa dos dois
meios para existir. Um exemplo de crossmídia no jornalismo pode ser observado
quando a revista Super Interessante guia seu leitor para seu site – ver Imagem 1.
Neste caso específico, pode-se conferir na internet a reportagem exposta na revista
(convergência), bem como um desdobramento de seu assunto (transmídia).
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Alysson Vianna Martins. Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo.
Imagem 1: Crossmídia na Super Interessante por motivos de convergência e transmídia
Além da utilização da crossmídia para o jornalismo nesses dois casos,
o espectador pode ser guiado com finalidades de propaganda e marketing.
Em outras palavras, não existindo aprofundamento do tema (característico da
transmídia) ou convergência do conteúdo, porém apenas divulgação e publicidade. A narrativa crossmidiática usada com este fim (de publicidade e marketing) pode ser exemplificada ainda com um caso na revista Super Interessante
– ver Imagem 2. Nesta situação, a Editora Abril se utiliza da crossmídia na
revista para promover sua campanha.
Imagem 2: Campanha da Editora Abril divulgada através de crossmídia na Super Interessante 17
Enquanto a crossmídia possui a expressão “comunicação crossmídia”
para se referir à sua utilização no jornalismo, a transmídia ainda não obtém um
estudo tão estruturado nesta área. Contudo, se definirmos transmídia como
ampliação, desdobramento ou mesmo complementação de um assunto através
de mais de uma mídia, essa narrativa se enquadra no âmbito jornalístico, sobretudo na internet. Com as novas configurações da webjornalismo, entra em
cena um espaço maior para publicação e longe das amarras temporais, como
o fechamento18. Por conseguinte, uma matéria publicada em um meio pode
ganhar contornos e desdobramentos na internet. Ainda que esta mídia não seja
primordial para a existência da transmídia, as especificidades que o jornalismo
adquire nela facilitam seu emprego.
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Alysson Vianna Martins. Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo.
No webjornalismo, a transmídia pode acontecer aliada à convergência
dos materiais, valendo-se de outras de suas características do meio, como a
memória e a hipermídia (MIELNICZUK, 2003; PALACIOS, 2002, 2003).
Steven Johnson aponta, por exemplo, que “o mundo on-line propicia recursos
que ajudam a sustentar a programação mais complexa em outros meio de comunicação” (2005, p. 92). Quando um conteúdo transposto (convergência)
traz hiperlinks para matérias mais antigas (memória), esse fenômeno se perfaz
como narrativa transmidiática, pois há uma ampliação da temática inicialmente abordada em outro meio – ver Imagem 3. Como é o caso desta matéria
convergida do Jornal Hoje da TV para seu site, onde uma matéria sobre moda
(na TV e também no site, tendo em vista que foi convergida) amplia a temática
por meio de uma entrevista com um consultor da área.
Imagem 3: Matéria convergida do Jornal Hoje da TV para o site tem narrativa transmidiática
com hiperlink19.
Ainda assim, esses desdobramentos podem ocorrer de maneira mais tácita, isto é, sem a crossmídia e sem a convergência. É neste ponto que se faz
necessário um olhar mais atento do pesquisador, tentando verificar qual conteúdo pode ser considerado um desdobramento ou ampliação de outro que foi
veiculado em outro meio.
Considerações finais
Notamos que, inconscientemente ou não, ambas as narrativas já são aplicadas ao jornalismo. A crossmídia possui tanta evidência que os pesquisadores da
área criaram o termo “comunicação crossmídia” para se referir ao seu uso no jornalismo. A narrativa é observada não só em revistas, como exemplificado anteriormente; ao contrário, os telejornais Jornal Hoje, Jornal Nacional e Jornal da Globo,
todos da Rede Globo de televisão, incorporam a crossmídia em sua produção noticiosa diária. Ao final de grande parte das reportagens ou das notícias lidas pelos
apresentadores é colocado o site do telejornal na tela. Com o endereço, o espectador
é guiado para a internet para rever os materiais que foram exibidos nos telejornais
ou mesmo para acompanhar os possíveis desdobramentos dos mesmos.
Em contrapartida ao amplo uso e estudo da narrativa crossmidiática,
a transmídia não é estudada na área jornalística e não é observada com tanta facilidade. Essa dificuldade ocorre pois a ampliação pode existir sem uma
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Alysson Vianna Martins. Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo.
indicação direta (com crossmídia ou com hiperlinks, no caso de materiais convergidos), exigindo que o espectador e o pesquisador consumam os conteúdos
de uma mesma empresa através de suas várias mídias, analisando se determinado assunto obteve ampliação em outro meio. Embora seja mais comum que as
narrativas aconteçam entre TV e web, sobretudo desta para aquela, em 20 de
julho, observamos crossmídia e transmídia da web para a TV (ver Imagem 4).
Nesta situação, o apresentador do programa televisivo Globo Esporte, Thiago
Leifert, complementa uma notícia veiculada no portal Globo Esporte, indicando a mesma numa tela colocada no estúdio.
Imagem 4: Thiago Leifert indica site Globo Esporte como fonte de matéria do programa.20
Obviamente, não é apenas através da crossmídia e da transmídia que o
jornalista pode revigorar seu trabalho, sobretudo na web. Características do
webjornalismo – como a memória e a hipermídia – podem ajudar a elevar o
processo de construção de notícia, principalmente quando aliada à convergência. Uma matéria pode ser interligada com outra através dos hiperlinks, seja
esse material componente do banco de dados (memória) do próprio veículo
(intratextual) ou de outro espaço da internet (intertextual). Se uma notícia tiver sido convergida de outro meio para a web e trouxer links para outros textos,
essa ampliação de abordagens é considerada uma narrativa transmidiática; e
o jornalista terá elevado ainda mais a construção desse discurso se o material
(na primeira mídia) trouxer uma indicação (crossmídia) de que na web há um
desdobramento do assunto e sua convergência.
Um exemplo – apenas à guisa de demonstração porque vários outros poderiam ser citados – de uso eficaz das narrativas cross e transmidiáticas – aliadas às especificidades do webjornalismo da memória, hipermídia e convergência – acontece
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Alysson Vianna Martins. Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo.
no telejornal Jornal Hoje. Percebemos que uma matéria trouxe a narrativa crossmidiática, indicando a convergência do material para o site. O assunto era sobre a
doação de dinheiro para as vítimas decorrente das enchentes de junho deste ano
no Nordeste21. Quando acessamos o site do Jornal Hoje, observamos que essa matéria convergida (endereço no rodapé) traz um link intratextual (aquele que sugere
algo dentro do próprio site) para uma notícia exclusiva da internet – na qual eram
mostrados os endereços dos postos para doação de dinheiro e para ser voluntário.
Trazia ainda um link intertextual (indicando outro espaço da web), que nos direcionava para o site da Ação Global (endereço no rodapé).
O entrelaçamento criado tanto pela crossmídia e transmídia quanto pela
aliança da convergência, memória e hipermídia não torna necessariamente o
conteúdo mais crítico. Essas estratégias construtivas aumentam a polifonia,
ampliam uma temática abordada, atravessando até transversalmente mais de
uma mídia. Esse alargamento do assunto pode acontecer tanto de maneira intratextual (direcionando as indicações para a própria empresa) como para fora
dela (intertextual). Além do mais, essas informações adicionais possibilitam
ao jornalista dispor de uma pluralidade de visões em um texto, indo desde as
apreciações oficiais (órgãos públicos, políticos, assessores etc.) até as alternativas, como blogs, sites independentes, entre outros.
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Alysson Vianna Martins. Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo.
Notas
1 - Artigo referente à parte do TCC intitulado Crossmídia e Transmídia no Globo Esporte:
As Narrativas Midiáticas e as Propriedades da Convergência, Memória e Hipermídia.
2 - T.N.: “Convergence can be seen in contents, terminal devices and networking systems”.
3 - T.N.: “First TV-SMS solutions were developed in so called Tvweb (in 1999) where
a screen is created from Internet content: articles, weather and web camera images”.
4 - T.N.: “Polls are a typical form of cross media, from the viewpoint of interactive
television broadcasting”.
5 - T.N.: “Cross media is used to get alert on one terminal (mobile phone) and then
log on to another terminal (PC and the Internet) to follow up alerts and gather
more information of the subject”.
6 - T.N.: “Crossmedia is the collaborative support of multiple media to delivering a
single story or theme, in which the storyline directs the receiver from one medium
to the next, according to each medium’s strength to the dialogue”.
7 - T.N.: “The user may be sitting in the exactly the same spot, reading a book at their desk
and then using the Internet, but they have to change their interaction (from turning
pages to taping a keyboard) and the associated cognitive processes to ‘build’ the work”.
8 - T.N.: “Inter-channel navigation involves the movement within a channel and between
modes. For example, moving from a text-based webpage to a video sequence”.
9 - T.N.: “Intra-channel navigation therefore, is within the same channel and within
the same mode. An example would be fast-fowarding through an audio recording
at the request of the narrator”.
10 - T.N.: “Cross media refers to content distributed through multiple media”.
11 - T.N.: “In marketing cross media means both printed and digital content, for
broadcasters it means possibilities to broadcast same content to different devices”.
12 - T.N.: “The same content is transmitted through different media drawing on the
benefits of each individual médium”.
13 - Em seu livro, Jenkins (2008) esclarece que as narrativas dos jogos de Matrix
completam brechas deixadas nos filmes da franquia, bem como o filme traz
informações inéditas que o jogo não possui. Todavia, o autor afirma que cada
meio aborda o assunto de maneira completa, isto é, o consumidor não precisa
ter acesso a todos os produtos para entender a história, elas são autossuficientes.
14 - T.N.: “Cross media communication is communication where the storyline will
direct the receiver from one medium to the next”.
15 - T.N.: “Is communication where the storyline will direct the receiver from one
medium to the next”.
16 - Material veiculado na SUPER INTERESSANTE. São Paulo-SP: Editora Abril,
jul. 2010, p. 67.
17 - Matéria publicada na SUPER INTERESSANTE. São Paulo-SP: Editora
Abril, jul. 2010, p. 40.
18 - Em jargão jornalístico, fechamento se refere à hora final que um veículo deve
reunir as matérias para começar a pensar como melhor organizá-las na publicação;
também conhecido como deadline.
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Alysson Vianna Martins. Experiência das Narrativas Cross e Transmidiáticas no Webjornalismo.
19 - Matéria do Jornal Hoje de 21/07/2010 veiculada na TV e no site do telejornal.
Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2010/07/dicas-demoda-deixam-gordinhas-bem-vestidas.html>. Acesso em: 21/07/2010.
20 - Notícia exibida no programa Globo Esporte e no portal em 20/07/2010. Disponível em:
<http://globoesporte.globo.com/futebol/times/botafogo/noticia/2010/07/caio-estudafazer-trabalho-especifico-para-ganhar-massa-muscular.html>. Acesso em 03/08/2010.
21 - Matéria publicada no site do Jornal Hoje em 23/06/2010. Disponível em:
<http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2010/06/campanha-copasolidariaarrecada-donativos-para-vitimas-de-enchentesjh.html>.
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Aparência, visibilidade e contatos:
a autoprodução em sites de redes
sociais e a cena da música eletrônica
Appearance, visibility and contacts: self production in
social networking sites and e-music scene
Beatriz Brandão Polivanov | [email protected]
Graduada em Letras, na habilitação Português-Inglês (Bacharelado e Licenciatura) pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro em 2005. Mestre pelo Programa de Pos-Graduacao em Comunicacao Social da
Universidade Federal Fluminense, atualmente é doutoranda em Comunicação pelo PPGCOM/UFF, onde
desenvolve pesquisa sobre consumo, mídias sociais, juventude e identidade.
Resumo
E Este trabalho pretende discutir como jovens brasileiros ligados à cena da música eletrônica se autoproduzem online, através do mapeamento netnográfico de como são apropriados os sites Orkut e Facebook.
Argumentamos que o pertencimento ao segundo traz marcas de distinção social e que duas questões são
cruciais nesse processo: a administração da aparência e a rede de contatos, que são usadas para a conquista
de capital social e afetivo.
Palavras-chave: redes sociais online; autoprodução; música eletrônica.
Abstract
This paper aims at discussing how Brazilian youngsters linked to the e-music scene self-product themselves online, by means of conducting a netnographic mapping of how the websites Orkut and Facebook are appropriated. We argue that belonging to the second one brings marks of social distinction and that two questions are
crucial in this process: impression management and friendship performance, which are used to acquire social
and affective capital.
Keywords: sports; communication; anthropology; physical education.
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Beatriz Polivanov. Aparência, visibilidade e contatos: a autoprodução em sites de redes sociais e a cena da música eletrônica
Introdução
“Não gosto de uniforme e acho até ridículos alguns itens, como aquelas
botas ortopédicas”. Essa foi a resposta que obtive ao perguntar a uma jovem
de 27 anos, frequentadora de raves1 , clubes noturnos e ouvinte de música eletrônica – entendida aqui em sua concepção mais geral – se ela se considerava
parte de uma “tribo” ou subcultura 2 , em termos de gosto musical e/ou estilo
de roupas. As botas às quais ela se refere foram febre no início dos anos 2000 –
e ainda são muito usadas – entre as mulheres frequentadoras de raves no Brasil,
talvez por serem leves e terem o cano alto. Isso permite que quem as calce se
mantenha confortável e limpa até os joelhos, uma vez que grande parte das
raves no Brasil ocorre em áreas a céu aberto, com chão de gramado ou terra, o
que não raras vezes leva ao surgimento de poças de lama.
O que está em jogo aqui, no entanto, não é necessariamente (ou apenas) a
praticidade ou conforto dos calçados, mas sim uma questão de como ser e manter-se diferente dos outros, longe dos “uniformes”, que padronizam a multidão. E
não basta apenas fazer a distinção entre o que é massificado e o que é individual,
singular, subjetivo, mas também entre o que é “ridículo” e o que é valorizado.
A cena da música eletrônica – assim como outras “cenas”, como a do rock
– tem sido marcada, conforme aponta Thornton (1996), por uma série de distinções criadas pelos sujeitos que dela fazem parte, relacionadas às fronteiras entre
o underground (ou “alternativo”) e o mainstream (ou pop), o bom e o ruim, o
autêntico e o que não passaria de “mais do mesmo”, o que só alguns compreendem e o que é para todos (ou para qualquer um), o libertador e o “careta”. Essas
fronteiras, criadas discursivamente, vivem em constante tensão, pois a partir do
momento em que algo como um adereço ou um subgênero musical da cena se
torna “popular”, no sentido de que passa a ser consumido pela maioria, pela
massa, tende a perder seu valor de distinção (Bourdieu, 2008).
Parece-nos que é exatamente essa dinâmica que vem ocorrendo na cena
eletrônica em relação aos sites de redes sociais (SRS) – que serão conceituados
mais à frente – Orkut3 e Facebook4: a partir do momento em que o primeiro
tornou-se extremamente popular no Brasil e o segundo começou a ter seus
primeiros adeptos no país, houve uma espécie de migração de várias pessoas
ligadas à cena do primeiro para o segundo. Argumentamos, assim, que o próprio fato de esses sujeitos atualmente utilizarem mais o Facebook que o Orkut
já poderia ser considerado uma marca de distinção, uma vez que o primeiro
estaria mais “in” no momento no Brasil, pelo fato de ser uma novidade – só os
“mais antenados” o usam – e pela multiplicidade de aplicativos.
Ressaltamos que os SRS têm ocupado um papel central na construção
identitária dos sujeitos5 e na cena eletrônica eles constituem lugar fundamental
para essa construção dialógica, por meio da divulgação de festas e de novos
lançamentos musicais; das trocas de mensagens e comentários; das fotos e vídeos tornados públicos e do agenciamento de amizades.
Dessa forma, estamos interessados aqui em tentar entender como, no
processo de autopoesis, os sujeitos da cena eletrônica têm se apropriado das
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Beatriz Polivanov. Aparência, visibilidade e contatos: a autoprodução em sites de redes sociais e a cena da música eletrônica
novas tecnologias para representarem seus “eus”. Como estudos têm apontado
recentemente (Boyd e Ellison, 2007; Recuero, 2009), o ciberespaço tornou-se
um “lugar” essencial para os sujeitos – principalmente os jovens – construírem
suas identidades, construindo e mantendo relações sociais (que podem estar
presentes ou não também no mundo offline).
Argumentamos que através da apropriação que os sujeitos fazem de produtos midiáticos podemos entender o jogo ambíguo entre “ser você mesmo” (indivíduo qualitativo6) e ao mesmo tempo fazer parte da cena (indivíduo quantitativo ), percebendo quais são as formas valorizadas – naquele momento histórico
– pelos sujeitos da cena eletrônica e como são performatizadas suas identidades.
Entendemos que os sites de redes sociais podem ser considerados o principal tipo de site na Internet que permite aos sujeitos uma representação mais
“completa” de si, uma vez que, diferentemente de blogs, fotologs e outros, neles
é possível – e desejável – conectar-se a uma rede de amigos, postar e compartilhar fotos e vídeos, escrever e trocar mensagens, participar de comunidades
online, entre outras várias funções. No entanto, essa representação nunca é
“completa” no sentido de que os sujeitos “optam” por deixar à mostra, ressaltar
e também ocultar certos gostos e interesses, jogando assim com o que é valorizado ou desvalorizado pelos sujeitos com os quais se identifica. Isso ocorre, por
exemplo, quando o sujeito que se autoproclama da cena underground recusa
ser “amigo” de (isto é, ter em sua rede de contatos) um DJ que é considerado
de “mau gosto” ou muito pop ou quando o sujeito seleciona para publicar em
um determinado SRS apenas as fotos em que “saiu bem” – a bela aparência é
posta à mostra –, enquanto as fotos nas quais “saiu mal” são apagadas ou ficam
esquecidas no HD do computador.
Assim, propomos neste trabalho trazer algumas das reflexões e resultados concernentes a esse processo de autoconstrução nos SRS Facebook e
Orkut, que vimos obtendo a partir da observação participante e realização de
entrevistas7 com sujeitos considerados da cena eletrônica8 do Rio de Janeiro e
São Paulo, configurando o que Sá denomina de “netnografia”9.
Dessa maneira, buscaremos na próxima seção conceituar o que seriam os
sites de redes sociais para, mais à frente, discutir sobre representação online do
self e sobre como se dão as dinâmicas de administração da amizade e da aparência por sujeitos da cena da música eletrônica no Facebook e Orkut, aspectos
centrais para a performatização das identidades.
Os sites de redes sociais: representação e visibilidade
Os chamados sites de redes sociais (SRS) têm crescido exponencialmente, não só em termos quantitativos (cada vez mais usuários e mais com
finalidades diversas), mas também em termos, por assim dizer, qualitativos,
no sentido de que eles têm incorporado novas e variadas funções. Seja para
criar e/ou manter contatos profissionais, seja para compartilhar fotos com os
amigos ou para divulgar um evento, entre tantas outras inúmeras funções
que os SRS possuem, fato é que eles se tornaram um dos mais importantes
centros das atenções na alta modernidade.
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Beatriz Polivanov. Aparência, visibilidade e contatos: a autoprodução em sites de redes sociais e a cena da música eletrônica
Por mais que os SRS possam ser bastante variados entre si, em termos,
por exemplo, do foco em audiências diversas ou em pessoas que compartilhem
a mesma identidade racial, de gênero, religiosa e/ou nacional, ou do quanto eles
incorporam novas tecnologias de informação e comunicação, o ponto é que
esses sites têm em comum o fato de servirem, primordialmente, para os sujeitos
criarem seus perfis (públicos ou semipúblicos) e se relacionarem com outros
sujeitos, deixando suas conexões públicas (Boyd e Ellison, 2007).
Como ressalta Recuero, “a grande diferença entre sites de redes sociais
e outras formas de comunicação mediada pelo computador é o modo como
permitem a visibilidade e a articulação das redes sociais” (2009, p. 102 – grifo
nosso), entendendo que SRS não devem ser confundidos com redes sociais10 .
Dessa forma, os SRS lidam essencialmente com questões relacionadas a três eixos que não podem ser dissociados: visibilidade, aparência e redes de amizades
(ou redes de contatos, para não entrarmos num debate sobre a natureza dessas
relações sociais, se elas seriam realmente de amizade ou não).
Entendemos visibilidade como algo diferente de aparência, no sentido
de que o primeiro remeteria à ideia – mais abstrata – de tornar algo público
e visível (imagens, textos, vídeos etc., ou seja, informações pessoais que dizem algo a respeito do sujeito direta ou indiretamente), enquanto o segundo
remeteria à aparência física em si, à concretude da visibilidade, que se manifesta, por exemplo, nas fotos escolhidas para publicação no Facebook ou no
Orkut, na interface construída ou escolhida do MySpace11 ou na imagem de
fundo e do perfil no Twitter12.
Recuero destaca que os dois grandes elementos que constituem as redes
sociais (e não os sites de redes sociais) seriam: 1) os atores, ou seja, as pessoas envolvidas na rede em questão – que são representados por nós (ou nodos) e 2) as
conexões – constituídas pelos laços sociais “que, por sua vez, são formados através
da interação social entre os atores”. A autora ressalta que as conexões em uma
rede são, de certo modo, “o principal foco do estudo das redes sociais, pois é sua
variação que altera as estruturas desses grupos” (2009, p. 30) e que a maneira
de se analisar e entender essas conexões é prestando atenção aos rastros que são
deixados nos SRS, isto é, às mensagens13 que são deixadas e não são apagadas.
Além disso, Recuero enfatiza a ideia de que não se pode trabalhar com
os atores sociais em si, mas sim com suas representações, com as “construções
identitárias no ciberespaço” (2009, p. 25), explicando que um mesmo ator pode
ser representado por um fotolog, por um perfil no Twitter ou no Orkut, por
exemplo. Concordamos inteiramente com o ponto de vista da autora, mas gostaríamos de acrescentar que os seres humanos estão, em certa medida, sempre
representando, desempenhando ou ainda performatizando um papel ou função
social, apesar de essa representação e autoconstrução se darem de maneiras diferentes nos espaços online e offline, discussão que faremos brevemente abaixo.
Representações online do Eu: o virtual como potencialidade
O crescimento dos SRS não deve surpreender, uma vez que os sujeitos
se apropriam desses e de outros tipos de sites para construírem dialogicamente
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Beatriz Polivanov. Aparência, visibilidade e contatos: a autoprodução em sites de redes sociais e a cena da música eletrônica
suas identidades. Como argumentam Boyd e Ellison, os SRS, assim como
outros contextos online, permitem que os indivíduos construam conscientemente uma representação online dos seus selves e, portanto, eles “constituem
um importante contexto de pesquisa para estudiosos investigando processos
de administração de impressão, autoapresentação e performance de amizade”
(2007, online – tradução da autora).
De acordo com Lister et alli, os “SRS, como MUDs e grupos do Usenet
antes deles, podem ser entendidos como sites que permitem oportunidades discursivas para a reelaboração do self ” (2009, p. 215), dentro de uma perspectiva, como argumenta também Eugene Gorny, de que a autorrepresentação no
mundo virtual só pode ser pensada no contexto do pós-modernismo e pósestruturalismo, no qual o conceito de identidade, “ao contrário da visão ‘velha’,
modernista e essencialista, é entendido como descentralizado, múltiplo, fluido
e baseado em práticas discursivas fornecidas pela sociedade e pela cultura, ao
invés de ‘traços’ pessoais intrínsecos” (2003, online – tradução da autora).
E, cabe ressaltar, não se trata de fazer uma distinção entre subjetividades
online e offline, uma vez que esses dois mundos não estão separados, não só pelo
fato de os sujeitos compartilharem os mesmos vínculos sociais dentro e fora da
net, mas principalmente porque entendemos que o mundo “virtual” é parte do
mundo “real”, não podendo, portanto, ser visto como algo dicotômico a ele.
Trata-se de representações do Eu que, na acepção filosófica do termo,
são todas virtuais, no sentido de que podem vir a ser, têm (supostamente) a
mesma potencialidade para existir, são virtualmente possíveis. Como explica
Pierre Lévy: “é virtual aquilo que existe apenas em potência e não em ato, o
campo de forças e de problemas que tende a resolver-se em uma atualização”,
encontrando-se o virtual “antes da concretização efetiva ou formal (a árvore
está virtualmente presente no grão)” (1999, p. 47). Dessa forma, o par antônimo de “virtual” não é “real”, mas sim “atual”, se entendemos, por exemplo, que
o sujeito pode, virtualmente, representar-se de infinitas maneiras, mas atualiza
e concretiza apenas algumas delas.
Podemos também remeter a Erving Goffman (2009), para quem os sujeitos são metaforicamente atores-personagens que encenam e ao mesmo tempo são plateia para a encenação dos outros, representando assim o seu Eu de
maneiras diferentes, como em diversas peças teatrais. Cabe ressaltar, porém,
que é possível que haja rupturas nessas produções do Eu (por uma série de
razões) e que há uma poderosa estrutura (social, econômica, de gênero, etnia
etc.) que impede os sujeitos de se reinventarem ao seu bel prazer.
Não obstante, na realidade mediada pela Internet, os sujeitos têm
a possibilidade de, virtualmente, criarem infinitas representações de si.
Determinações genéticas e sociais, como gênero, cor de pele, idade e até
padrões de comportamento podem (e são com muita frequência) ser mudados no ciberespaçoxiv , de acordo com variados interesses.
De fato, por mais que não concordemos com a dicotomia entre o
mundo “real” e o “virtual” e entendamos que as identidades sejam fluidas,
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Beatriz Polivanov. Aparência, visibilidade e contatos: a autoprodução em sites de redes sociais e a cena da música eletrônica
múltiplas e construídas discursivamente no ambiente mediado pelo computador e fora dele, exercendo os sujeitos diferentes papéis sociais, no ciberespaço o processo de autoconstrução da identidade fica de certo modo mais
perceptível, uma vez que nele “nós não temos que nos apresentar totalmente
(...) tudo em um grande pacote. Em ambientes diferentes, nós podemos nos
dividir e apresentar nossas características em pacotes de vários tamanhos e
conteúdos” (SULER, online – tradução da autora).
Entendemos, dessa maneira, que as representações do self no ambiente
virtual, com suas constantes atualizações e processo de construção fortemente
atrelado à bricolagem, são o lócus por excelência onde o caráter fragmentário
e de reconstrução potencialmente infinita das identidades pode ser mais bem
apreendido. A construção da identidade online seria, assim, mais “livre” do que
a offline, uma vez que o sujeito pode omitir e ressaltar determinados aspectos
da sua aparência e personalidade. No entanto, deve-se ter em mente que essas
construções, mesmo no ciberespaço, não são totalmente livres de amarras por
no mínimo duas razões: 1) pelo fato de ciberespaços distintos – como sites de
redes sociais, blogs, chats, fóruns, etc. – possuírem estruturas e dinâmicas sociais
distintas, que requerem maior ou menor “nível” de anonimato e de construções
tidas como “verdadeiras”15 e 2) pelo fato de os sujeitos que utilizam esses espaços
muitas das vezes serem capazes de reconhecer representações pouco verossímeis
ou que indiquem que se trata de construções tidas como não “reais”.
Como apontam Boyd e Ellison, por mais que “a maioria dos sites encoraje os usuários a construir representações precisas de si mesmos, os participantes o fazem em níveis variados” e utilizam “estratégias complexas para negociar
a rigidez de um perfil ‘autêntico’ prescrito”. Em verdade, nenhum perfil pode
ser considerado “real” (2007, online – tradução da autora). Portanto, nossa discussão não está centrada na suposta autenticidade dos perfis, mas na maneira
como eles são concebidos e administrados. O que importa é a representação, e
não sua equivalência a uma suposta identidade real16.
Estamos assim interessados em discutir como os sujeitos, mais especificamente aqueles envolvidos com a cena da música eletrônica, criam seus
perfis “verdadeiros” no Facebook, em oposição aos chamados perfis “ fake”,
aqueles que não são considerados uma autorrepresentação do sujeito, mas
uma personagem completamente fictícia (ainda que verossímil) ou apenas
um meio de divulgação de eventos. Dessa forma, passaremos agora à discussão de como se dão duas dinâmicas centrais de autoconstrução nos SRS
por sujeitos envolvidos com a cena da música eletrônica: a administração da
aparência e da rede de amizades.
A autoprodução no Facebook e no Orkut e a cena eletrônica:
administrando a aparência e a rede de amizades
Antes de discutirmos sobre as duas dinâmicas em si, cabe definirmos
rapidamente o que são o Facebook e o Orkut. O primeiro se intitula “uma
utilidade social que conecta as pessoas com amigos e outros que trabalham,
estudam e moram a sua volta”17. Ele serve para as pessoas “manterem contato
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Beatriz Polivanov. Aparência, visibilidade e contatos: a autoprodução em sites de redes sociais e a cena da música eletrônica
com amigos, fazerem upload de um número ilimitado de fotos, compartilharem links e vídeos e aprenderem mais sobre as pessoas que elas conhecem”18.
Para além dessas funções, o site também disponibiliza uma série de aplicativos
(a grande maioria não desenvolvida pelo próprio Facebook) com funcionalidades as mais variadas, tais como jogos online, quizzes, editores de imagens, chats,
calendários de aniversários, charts de músicas, entre tantas outras, sendo que
para todos os aplicativos é permitido às pessoas que compartilham a mesma
rede de amigos verem as atualizações ocorridas19.
O Orkut, por sua vez, também é definido como um serviço de rede
social que permite a (aliás, baseia-se na) criação de perfis majoritariamente individuais, por meio da postagem de textos, fotos e vídeos, que são conectados
a outros perfis (os nós), permitindo, assim, que seja pública a rede de amizades
dos atores. O Orkut, no início, não contava com nenhum aplicativo, mas atualmente alguns podem ser encontrados, ainda que em menor quantidade que
no Facebook. Não é nosso objetivo neste trabalho fazer um estudo comparativo entre os dois sites e vale ressaltar que as dinâmicas de autoconstrução que
discutiremos abaixo valem tanto para um quanto para outro.
Nove dos dez entrevistados neste trabalho afirmaram que seus perfis no
Facebook são “verdadeiros”20 e correspondem, de certa forma, a uma representação
de si mesmos. Como mostra a fala de um dos entrevistados, “(o Facebook) é uma
representação do meu perfil pessoal, pois lá tem informações de quem sou, o que
gosto, para onde vou, com quem ando”.
Essa representação estaria atrelada a aspectos tão diversos como gosto, religião, política, um “jeito” de ser (“irônico”, “hostil”, “reservado” foram alguns
dos apontados) ou personalidade, idade, atividades, eventos dos quais participam
e modos de pensar (em relação a assuntos variados). Apesar de o site não oferecer a possibilidade de os usuários mudarem o layout de suas páginas, os sujeitos
utilizam uma série de recursos oferecidos por ele – como mensagens, fotos, vídeos e aplicativos – para tornar suas páginas personalizadas. Assim, o discurso e
práticas midiáticas massivas, externas, são transformados em discursos e práticas
individuais que conferem novos e particulares significados aos objetos.
No entanto, ao mesmo tempo em que os perfis são únicos, individuais21,
eles também mostram certas afiliações dos sujeitos, em um jogo entre expressão de subjetividade e pacto social. Como afirma Freire Filho,
Tão importante, hoje, quanto a estilização e customização do produto, passou a ser a
estilização do consumo – quer dizer, a impressão, no ato do consumo, de uma marca
de singularidade, dentro, claro, dos limites impostos pelo próprio conceito paradoxal
de moda: a um só instante, expressão de subjetividade, individualidade e pacto social,
tribal ou subcultural. (FREIRE FILHO, 2003, p.73) 22.
Os sujeitos aqui estudados compartilham o gosto pela música eletrônica,
mas buscam, ao mesmo tempo, serem “diferentes”, não se fixando a nenhuma
“tribo”. No entanto, mesmo sem essa afiliação, a sociabilidade em um SRS
parece ser um capital simbólico dos mais valorizados. Conforme argumenta
Gorny, um aspecto central que diferencia as autobiografias no ciberespaço das
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Beatriz Polivanov. Aparência, visibilidade e contatos: a autoprodução em sites de redes sociais e a cena da música eletrônica
mídias impressas é o fato de, no primeiro, não ser apenas o sujeito que conta
sua(s) história(s), mas também necessariamente aqueles com quem compartilha
uma rede de conexões, resultando em “uma autobiografia que oferece o sujeito
não como um indivíduo isolado, mas uma parte ou uma rede social intricada”
(2003, online – tradução da autora).
A articulação da rede de amizades ( friendship performance nos termos de Boyd e Ellison, 2007) funciona, assim, como marca de identidade
para o dono do perfil, seja pelas mensagens cotidianas trocadas, pelos “testimoniais”23 (ou similares) deixados, pelas fotos compartilhadas e nas quais
se pode identificar e comentar sobre as pessoas nelas ou simplesmente por
ter aquela(s) determinada(s) pessoa(s) na sua rede de conexões, para citar
algumas possibilidades.
Em relação aos perfis observados e às entrevistas realizadas, pôde-se perceber que, por mais que isso possa ser negado, um usuário não só com um
grande número de contatos, mas, principalmente, com os contatos “certos”
– no nosso caso, alguns exemplos desses contatos seriam DJs considerados
“bons”, promoters e hostesses24 de festas, donos de clubes noturnos e pessoas que
são influentes na noite – parece ser valorizado e respeitado pelos outros que
compartilham o gosto musical. Como argumenta Thornton (1996), com base
em Bourdieu, esses contatos representariam alto capital social25, no que diz
respeito não ao que se sabe, mas sim a quem se conhece.
No entanto, contatos marcados pela afetividade – como amigos(as),
namorados(as), parentes, bichos de estimação etc. – têm também um papel
de destaque, sendo escolhidos como “top friends” (amigos mais estimados) e
recebendo homenagens – como através de mensagens no mural do Facebook
–, além de serem “taggeados”26 em fotos. Propomos, desse modo, a noção de
“capital afetivo”, que estaria relacionado à ideia de mostrar-se querido ou amado por seus pares e que nos parece um capital central nos SRS, algo que pretendemos problematizar em trabalhos futuros.
Como argumentado acima, os perfis em SRS, considerados “verdadeiros” pelos sujeitos, tendem a mostrar as relações sociais que de fato os usuários
possuem offline. O que ocorre de diferente nos SRS é que lá esses contatos são
em geral tornados públicos a qualquer um que seja registrado em um determinado site e, além disso, no Facebook eles podem ser agrupados em listas e
no Orkut eles podem ser hierarquizados – publicamente ou não – (em classificações como “melhores amigos”, “bons amigos”, “conhecidos” etc.). Dessa
forma, por interesses diversos, os sujeitos jogam com a visibilidade e status de
seu capital social e também afetivo.
Outro aspecto da visibilidade é a questão do que deixar público no perfil
e o que não mostrar. Concentrando-nos apenas na questão da aparência (impression management), percebemos, em consonância com Maguire e Stanway
(2008), que ter uma boa aparência importa. Nove entrevistados afirmaram
que escolhem as fotos que irão publicar de acordo com o critério estético de
“estar bem na foto”, como pode ser visto nas seguintes falas: “utilizo uma foto
minha simples, normal, sem ser tratada nem nada, na qual eu acho que saí
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Beatriz Polivanov. Aparência, visibilidade e contatos: a autoprodução em sites de redes sociais e a cena da música eletrônica
bem” (entrevistado “a”), “(escolho) as fotos em que pelo menos eu saio bem”
(entrevistado “b”) e “bom, (escolho) as que eu não estou feia” (entrevistado
“c”). E é claro que isso fica evidente não só nos perfis dos entrevistados, mas em
grande parte dos perfis observados nos dois sites. E, é interessante notar, três
dos entrevistados sentiram certa “vergonha” ao admitir isso, fato que foi percebido pelas expressões “hehehe” e “rs” (risos) escritas logo após suas respostas
nas entrevistas. Dessa forma, percebemos que a (“boa”) aparência é também
questão central na autoprodução, mesmo que talvez os sujeitos não se sintam
muito confortáveis para assumir este fato.
Conclusão
Tentamos, neste artigo, fazer uma discussão, ainda que brevemente, sobre as representações online do Eu por sujeitos envolvidos com a cena da música eletrônica nos sites de rede social Facebook e Orkut. Buscamos reforçar que,
apesar de não pensarmos em termos de uma oposição entre o mundo “real” e
o “virtual”, as possibilidades de construção do self no ciberespaço são potencialmente infinitas, uma vez que nele o processo de autoprodução identitária –
marcado pelas escolhas individuais e pela efemeridade – pode se ver mais livre
(ainda que não totalmente) de amarras estruturais.
No entanto, os SRS estão repletos de perfis “verdadeiros”, no sentido
de que neles os sujeitos reconhecem mostrar sua personalidade e compartilham publicamente com sua rede de amigos fotos, vídeos, links e mensagens.
De fato, eles compartilham publicamente a própria rede de contatos que,
pelas observações dos perfis e pelas entrevistas realizadas com dez jovens
adultos da cena eletrônica, parece ganhar mais valor simbólico quanto maior
for o capital social dos “amigos” com quem interagem no site. Tanto a rede
de contatos quanto o próprio uso do Facebook – ainda considerado novidade
no Brasil para muitos – por esses sujeitos parecem ser marcas de distinção
daqueles que fazem parte da “cena”.
A Concentramos nosso foco em dois aspectos centrais desse processo: a
administração da aparência e da rede de amizades, entendendo que os sujeitos
jogam com o capital social (e afetivo) da sua rede de contatos e sua visibilidade
para representar papéis, sempre dinâmicos, em transformação contínua, e que
parecem estar atrelados a ideais de beleza e de “bons” relacionamentos. Vale
lembrar que esses papéis somente serão de fato “construídos” se na interação
com outros sujeitos eles forem interpretados como tais.
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THORNTON, Sarah. Club Cultures: Music, Media and Subcultural
Capital. Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1996.
_______________
Notas
1 - Raves são festas dedicadas à música eletrônica, que ocorrem geralmente em
grandes espaços abertos afastados dos centros urbanos (ou em grandes galpões) e
usualmente têm longa duração (não menos que dez horas). Os DJs são as figuras
centrais dessas festas e o público tende a ser numeroso (a maioria dessas festas é
planejada para milhares de pessoas).
2 - O conceito de “subcultura” estaria hoje ultrapassado, uma vez que os estudos
subculturalistas tendiam não só a pensar as culturas jovens como grupos estanques,
mas também a vê-las “a partir de dicotomias limitadoras, como resistência x
cooptação, posições hegemônicas x posições subordinadas”, deixando de lado
a “complexidade das práticas socioculturais juvenis” (FEITOSA, 2002, p.1).
Ver FEITOSA, Ricardo. “Perspectivas de abordagem sobre “autenticidade” e
“originalidade” na cena de música eletrônica”. Texto apresentado no Seminário de
Ciberpesquisa da Universidade Federal da Bahia (Pós-Graduação em Comunicação
e Cultura Contemporâneas), 2002. Disponível online em: <http://www.
pragatecno.com.br/autenticidade.doc>. Assim, uma série de novas terminologias
foi proposta (incluindo-se entre elas “cenas”, “estilos de vida” e “neotribos”), todas
buscando dar conta da fluidez e efemeridade que marcam os agrupamentos sociais
de jovens na contemporaneidade e também do fato de que esses agrupamentos
seguiriam uma lógica de pertencimento marcada principalmente pelas afinidades
de gostos culturais (FREIRE FILHO, 2007).
3 - www.orkut.com
4 - www.facebook.com
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5-
Conforme argumenta Holeton em: HOLETON, Richard. Composing
Cyberspace: Identity, Community, and Knowledge in the Electronic Age.
MCGRAW-HILL INC., 1997.
6 - Estamos usando aqui categorias de Georg Simmel, entendendo que o autor chama
de indivíduo qualitativo aquele que busca, através da construção (Bildung) do
seu self, diferenciar-se no meio da multidão, já que, para ele, pessoa é o indivíduo
qualificado, que se constrói nos diversos papéis sociais – algo que é característico
da modernidade. Ver SIMMEL, Georg. O indivíduo e a liberdade. In: SOUZA,
Jessé e ÖELZE, Berthold (orgs.) Simmel e a Modernidade. Brasília: Unb, 1998.
7 - Contamos com dez entrevistas textuais completas, feitas sincronamente pelo Skype
ou MSN, ambos ferramentas de comunicação online.
8 - Os sujeitos se autodeclaram participantes da cena, sendo quatro dos entrevistados
DJs profissionais. Todos frequentam festas dedicadas ao gênero há pelo menos
mais de quatro anos e consomem música eletrônica (aqui entendida em sua
denominação mais ampla) cotidianamente.
9 - Em: SÁ, Simone. “Netnografias nas redes digitais”. In: PRADO, José (org.).
Crítica das Práticas Midiáticas – da sociedade de massa às ciberculturas. São Paulo:
Hacker Editores, 2002.
10 - Segundo a autora, os sites de redes sociais são meros suportes, ferramentas,
sistemas que permitem a interação social entre os atores, ao passo em que as redes
seriam justamente essas interações.
11 - www.myspace.com
12 - www.twitter.com
13 - Entendidas neste ponto no sentido amplo, de algo que é comunicado em uma
interação social, e não apenas no sentido das mensagens textuais que são deixadas
nos sites, como os scraps no Orkut.
14 - Como explora Hofer em seu artigo: HOFER, Sonya. I Am They - Technological
Mediation, Shifting Conceptions of Identity and Techno Music. Convergence:
The International Journal of Research into New Media Technologies, pp. 307324, agosto, 2006. Disponível online em: <http://con.sagepub.com/cgi/
content/abstract/12/3/307>.
15 - Os SRS em geral requerem mais autenticidade na construção dos perfis e
possuem uma estrutura que, conforme argumentamos, é mais “completa” do
que a de chats e fóruns, por exemplo, espaços nos quais os sujeitos são muitas
vezes identificados apenas por um apelido e nos quais o anonimato – ou a não
identificação “real” do sujeito – não costuma ser problemático.
16 - Tomamos este pensamento emprestado de Benedict Anderson, que afirma que
“as comunidades não devem ser distinguidas por sua falsidade/autenticidade,
mas pelo estilo em que são imaginadas” (2008, p. 15). ANDERSON, Benedict.
Comunidades Imaginadas. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010.
17 - O nome do site vem de “year book”, uma espécie de livro muito popular
principalmente nos colégios norte-americanos de ensino médio (high schools),
que conta com as fotos dos rostos de todos os alunos da última série e algumas
informações sobre eles. O Facebook foi criado inicialmente para ser usado apenas
em ambientes universitários, favorecendo, assim, o contato com ex-colegas de
colégio e com atuais colegas universitários.
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18 - O site está online desde 29 de março de 1997, mas somente nos últimos anos
despontou como um dos mais utilizados no mundo.
19 - Um exemplo de um dos mais utilizados desses aplicativos é o jogo online Yoville.
Neste jogo, é possível que pessoas que são “amigas” no Facebook sejam vizinhas
na cidade fictícia de Yoville e através de mensagens pré-programadas do jogo
em seus perfis elas podem pedir ajuda umas às outras para completarem certas
missões (como “construir” um gato) e trocarem presentes entre si. Nos perfis
dos participantes aparecem também atualizações quanto ao nível em que o
jogador está, por exemplo.
20 - Ainda que as fotos postadas tenham conteúdos muito diversos – havendo aqueles
que publicam fotos de “ícones famosos”, de si mesmos, de amigos e familiares,
de natureza, artísticas, desenhos, entre outros tipos – percebemos que inúmeros
usuários do Facebook postam quase que exclusivamente fotos pessoais “reais”.
21 - Atualmente, os usuários do Facebook podem ter sua própria URL no site: <www.
facebook.com/seunome>.
22 - FREIRE FILHO, João. Mídia, consumo cultural e estilo de vida na pósmodernidade. Revista ECO-PÓS, v.6, n. 1, pp. 72-97, janeiro-julho, 2003.
Disponível online em: <http://www.pos.eco.ufrj.br/ojs-2.2.2/index.php/revista/
article/viewFile/199/205>.
23 - O termo “testimonial” é usado no Orkut. Ele equivale a “wall” no Facebook.
Trata-se de um espaço que pode ser tornado público ou não, que se localiza
em um lugar de destaque do perfil do usuário, no qual se deixam usualmente
mensagens positivas sobre o(a) dono(a) do perfil.
24 - Os promoters são aquelas pessoas encarregadas basicamente de divulgarem as
festas. Geralmente circulam pela noite e têm muitos conhecidos. As hostesses
– usualmente mulheres – são aquelas que ficam na entrada do clube e têm o
controle – através de listas impressas com nomes e contato telefônico direto com
quem estiver organizando o evento – das pessoas que têm desconto para entrar,
que são VIPs (very important people) etc. Elas teriam o poder de decidir quem
entra e quem não entra no clube.
25 - Segundo Recuero, capital social pode ser definido como “o conjunto de
recursos resultantes do conteúdo das trocas sociais na rede, que possui
aspectos coletivo e individual de modo simultâneo, ele também é diretamente
relacionado à capacidade de interação social de um grupo e de seus laços
sociais”. RECUERO, Raquel. “Dinâmicas de redes sociais no Orkut e capital
social”, 2006. Disponível em: <http://pontomidia.com.br/raquel/alaic2006.
pdf>. Último acesso em 21 de março de 2011.
26 - “Tag” é o recurso de marcar uma ou mais pessoas às imagens postadas, conectandoas aos perfis dos sujeitos marcados ou “taggeados”.
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Cultura e Cibercultura:
princípios para uma reflexão crítica
Culture and Cyberculture: principles for a critical reflection
Francisco Rüdiger | [email protected]
Doutor em Ciências Sociais, professor na PUC-RS, Porto Alegre, Brasil.
Resumo
O relato ensaia uma reflexão sobre a força e propriedade do conceito de cibercultura, procedendo a uma
revisão histórica do termo cultura que lhe informa. O argumento explora o caráter fantasmagórico que esta
última, a cultura, teria naquele âmbito, tomando a sério a hipótese de havermos entrado em uma época de
pós-cultura. A conclusão defende que, em vez de o abandonarmos, o conceito de cibercultura deve ser, antes,
objeto de um monitoramento crítico por parte dos que se preocupam em estudar suas manifestações.
Palavras-chave: Cibercultura – cultura – pós-cultura
Abstract
This short essay aims to reflect about the theoretical force and propriety of cyberculture as concept, outlining a
historical revision of the word ‘culture” that informs it. We explore the phantasmagoric features that this noun
has in that context, considering seriously the hypothesis according to which we have entered in a post-culture
epoch. Concluding we argue that, instead of abandon it, cyberculture is a concept that should be an object of a
critical monitoring by everyone that aims to study its expressions.
Keywords: Cyberculture – culture – post-culture
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Norbert Elias (1990) ratifica sua filiação ao pensamento historicista ao
observar, em sua obra maior, que os conceitos com que lidamos no estudo dos
fenômenos sociais são criados pelos seus próprios sujeitos, com base no material linguístico que lhes legou o passado. As categorias com que procedemos à
hermenêutica sociológica do mundo histórico só muito raramente se originam
da elaboração puramente abstrata. A tendência é a de eles surgirem da própria
vida social e, com o tempo, com sua aclimação societária, eventualmente se
tornarem referências analíticas dos seus respectivos processos de reflexão.
Depois de emergirem, segue o autor, o curso mais comum é o dos conceitos se enraízarem ou não entre o grupo destinatário, adquirindo, no caso da
primeira hipótese, uma forma e um sentido mais estáveis, que se desenvolvem
pela fala e pela escrita, até se tornarem instituições. Nesse caso, eles se tornam
parte do falar diário de um coletivo, senão passam a ser caixa de ressonância
de toda uma época e sociedade. As pessoas terminam por usá-los sem saber sua
origem e sem ter claro qual sua importância, porque, quando vêm ao mundo,
os encontram disponíveis para estruturar simbolicamente seu modo de vê-lo e
intermediar suas relações com os demais.
Uma geração os transmite a outra sem estar consciente do processo de sua formação
como um todo, e os conceitos sobrevivem enquanto esta cristalização de experiências
passadas e situações retiver um valor existencial, uma função na existência concreta
da sociedade – isto é, enquanto gerações sucessivas puderem identificar suas próprias
experiências no significado das palavras (Elias, 1990, p. 26).
Por outro lado, continua ele, os conceitos assim institucionalizados também podem hibernar por tempo maior ou menor, conforme as circunstâncias,
ou adquirir outro significado, continuando a ser reempregados sem referência
objetiva aos processos que lhe deram origem no passado. Ele acrescenta que em
outras ocasiões, porém, eles, alternativamente, podem morrer: as experiências e
funções sociais nelas inscritas, aos poucos, vão se desfazendo ou começam a se
transmutar, adquirindo novas feições e formas de expressão (Ibidem, p. 27).
Desejamos no que segue pensar a cibercultura, que se abre e se projeta
em nosso horizonte à luz dessas coordenadas, estruturar sua discussão em
referência ao conceito de cultura que naquele termo está contida. Durante
o último século, podemos convir que a cultura tornou-se motivo de um fetichismo intelectual, que não para de se expandir e, agora, impera sobre todos os estratos e segmentos das camadas médias urbanas de todo o mundo.
Defendendo o que chamam de virada cultural nas ciências sociais, os acadêmicos e suas clientelas, em todas as áreas, estão criando em escala de massas
uma nova versão da figura do filisteu culto que, outrora, quando a sociedade
era burguesa, denunciara Nietzsche.
Por outro lado, os sinais de saturação, senão de esgotamento do termo,
estão por toda parte. O principal nisso, aliás, nem data de hoje. Provém de
pelo menos meio século a sua definição como ‘tudo o que o homem faz com
algum sentido’. A explosão social e histórica do conceito por aquele tempo, a
respeito do qual falaremos, não importou em seu abandono. Ocorreu, antes,
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sua neutralização. Ele foi reduzido a termos puramente classificatórios e operacionais: tudo o que é humano é, em alguma medida, cultura. Os resultados
mais recentes, deletérios e grotescos disso podem ser encontrados nas menções, muitas vezes academicamente respaldadas, à “cultura da pobreza” ou,
ainda pior, à “cultura da violência”.
Aceita-se que, reflexivamente, o conceito de cultura possa ser de serventia para, por exemplo, distinguir o campo de estudos em que intervêm
ou interessam os fenômenos portadores de significados daqueles outros no
qual intervêm ou interessam os fenômenos passíveis de explicação nomológica. Deixando isso de lado, verifica-se, contudo, que cultura é um conceito
histórico-normativo, o qual só se pode empregar em termos classificatório-formais às custas de sua propriedade hermenêutica, senão da adulteração
grotesca da semântica que lhe deu um destino histórico.
Afinal, apenas para esclarecer, a pobreza não é algo para ser cultivado,
e a violência é o total oposto do que, no marco que ainda será referido, originário da expressão, se entende por cultura. A pessoa que, em um país ocidental, escarra no chão diante de seu semelhante ou que, no mesmo âmbito,
se entrega ao ódio contra aquele que julga ser diferente, não está cultivando
nada. Exceto, é claro, se admitirmos a palavra num sentido genérico e naturalista que, reflexivamente, não representa nenhum avanço na escada da
vida intelectual ou ganho do ponto de vista do entendimento do modo como
funciona o mundo social e histórico naqueles contextos.
A fortuna da expressão cibercultura, e os problemas históricos que lhe
subjazem, cremos, se conectam em origem e perspectiva de esclarecimento
com situação semelhante. Como se sabe, a expressão foi se tornando moeda
corrente em alguns círculos intelectualizados nos anos 1990, quando a internet
começou sua trajetória de popularização. Criado pela fusão dos termos cultura
e cibernética, o neologismo passou a ser empregado com intenção classificatória, à medida que ia progredindo a exploração mercadológica e publicística da
nova plataforma de comunicação. Isto é o que se pode ver, por exemplo, no
emprego essencialmente retórico da palavra, verificado nas primeiras abordagens do fenômeno, nos textos a ele dedicados por autores de obras díspares em
sentido daquela época, como Timothy Leary (1994) e Mark Dery (1996).
Arturo Escobar (2000) pretendeu romper com este tipo de emprego e
fazer valer a eventual pertinência acadêmica do termo para a antropologia,
conceituando-o como campo de estudo formado “pelas novas tecnologias de
duas áreas em especial: a da inteligência artificial (particularmente as tecnologias de informação e computação) e a da biotecnologia”. Para ele, estas
tecnologias estão criando novos regimes de sociabilidade, que são a tecnossocialidade, “um vasto processo de construção sociocultural posto em movimento pelas novas tecnologias [de informação]”, e a biossocialidade “uma
nova ordem de produção da vida, da natureza e do corpo, acionada pelas
intervenções tecnológicas lastreadas biologicamente”..
Em resumo, “ambos os processos, a bio e a tecnossocialidade, formam
a base para o que está sendo chamado aqui de regime da cibercultura”; eles
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corporificam “a percepção de que estamos vivendo e nos construindo em um
ambiente tecno e biocultural indelevelmente estruturado por novas formas de
ciência e tecnologia [e que se pode chamar de cibercultura]” (1994, p.56-57).
Destarte, cibercultura se converteu no termo a que a consciência mais
elaborada passou a recorrer para dar conta dos processos e situações surgidas cotidianamente à volta da informática de comunicação e seus maquinismos cibernéticos. As referências à biosocialidade, crescentes, não lograram
se vincular à palavra de modo particularmente notável, e o conceito assumiu
a condição classificatória que lhe dera uma ciência social de inspiração essencialmente metodológica. A expressão não desenvolveu a sua semântica e,
epistemicamente, acabou se restringindo à condição de construção típico-ideal com que se deseja designar o conjunto dos fenômenos cotidianos agenciados ou promovidos com o progresso da mídia digital interativa e, mais
genericamente, das novas tecnologias de comunicação.
Contudo, na época em que fora proposto pela primeira vez, o conceito de
cibercultura revelou-se portador de outro entendimento e sentido. Apresentouse em termos que não apenas guardavam relação com o sentido formador contido em qualquer menção enfática à cultura, mas que ainda hoje, não fosse
o estado totalmente carente de esperança em que se encontra a visão de uma
forma de vida moral e politicamente mais avançada, talvez pudessem fazer
parte do trabalho de análise crítica e transformação da sociedade. Fundadora
do Instituto de Pesquisas Ciberculturais (1964), Alicia Hilton, com efeito, foi
pioneira ao usar a expressão com o sentido substancial, referindo-se com ela
a uma exigência política e moral da nova era da automação e das máquinas
inteligentes. Para a engenheira, informata e empresária norte-americana, a revolução que esta põe em marcha coloca à sociedade um desafio ético de escala
universal. A humanidade está agora diante do desafio de ter de escolher entre a
educação emancipatória e o lazer criativo, de um lado, e a adaptação mecânica
e a idiotia apática, de outro (Hilton, 1964, p. 143).
Norbert Wiener, criador da cibernética, não era um simples cientista,
nem cego tecnocrata, mas um intelectual de ampla envergadura, para o qual
a pesquisa tecnológica era inseparável da elaboração de diversas preocupações sociais e políticas, senão da antropologia filosófica. O pensador estava
convencido da imperfeição constitutiva do modo de ser humano,o que conduziria este aos mais variados infortúnios: da fome e das doenças epidêmicas
às violências políticas e guerras cada vez mais destrutivas. A cibernética, conformefora por ele concebida, poderia ser um veículo para enfrentar este problema, na medida em que comportaria a possibilidade de criar uma sociedade em que o exercício do poder, entregue a mecanismos de retroalimentação
democráticos, de controle racional, eventualmente autorreguláveis, evitaria o
surgimento de suas formas violentas e tirânicas.
A cibernética – escreve um comentador – apresenta-se como um neo-iluminismo
que se impõe ao conjunto dos conhecimentos científicos, votando-os a uma espécie
de devir logotécnico, não só dos conhecimentos científicos acerca do mundo da
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tecnicidade tradicional ou do mundo natural, mas também dos que têm a ver
com o mundo subjetivo, com o mundo intersubjetivo e com o mundo da linguagem
(Rodrigues, 1990, p. 87).
Signatária do Relatório da Tríplice Revolução apresentado ao Presidente
Johnson, também em 1964, a visionária Hilton endossou seletivamente este
ponto de vista, sugerindo que o progresso da tecnologia daria origem a uma
“cibernação” que, com o tempo, ganharia proporções planetárias e na qual
uma situação espiritualmente regressiva só seria evitada com a promoção do
que chamou de cibercultura. A revolução cibernética exige uma reestruturação
dos programas e processos educacionais destinados à massa da população. Era
nisso que ela pensava,.uma vez que, só “os seres humanos que aprenderem a
usar a máquina com sabedoria serão por ela liberados para alcançar a sua excelência” (Hilton, op. cit., p. 146).
Embora o termo “cibercultura” não apareça, verifica-se, curiosamente,
que não é outra a perspectiva com que, mais ou menos na mesma época, se
desenvolve a reflexão sobre os efeitos sociais e históricos da citada revolução em
alguns países do bloco comunista. A sociedade na encruzilhada, relatório de
estudos comissionados pela Academia de Ciências da então Tchecoslováquia,
é prova disso, das proposições, mais que analíticas, carregadas de espírito utópico e emancipatório com que se entendia o surgimento da era cibernética.
Redigido por Radovan Richta em 1966, parte o mesmo da premissa de que
o socialismo só avançaria em direção a uma forma superior de organização, a
comunista, superando o sistema industrial e promovendo uma completa transformação das forças de produção, incluindo-se aí os recursos humanos, mediante o desenvolvimento das tecnologias de informação e a adoção cotidiana e
refletida do pensamento cibernético por parte da sociedade. Profético à época,
o relatório postulou que “os próximos decênios [trariam uma] completa transformação do mundo e no modo de vida que o mundo criará para si mesmo: e
para que esta transformação [fosse] mais rápida, era preciso dar início à revolução científica e tecnológica” (Richta, 1972, p. 12)
Oferecendo um relato que, como o escrito pela americana, se caracteriza por ultrapassar o âmbito dos que lhe seguiram, ao menos até o início
dos anos 1980, o texto explora os fatores antropológicos e aspectos culturais
envolvidos na questão, preconizando que a educação, “antes mesmo que a
impetuosa corrente da tecnologia material, revela-se a si mesma condição
imprescindível da [nova forma de] vida”. Afinal, a verdadeira tarefa do socialismo seria a de abrir as portas para o desenvolvimento integral da espécie,
“buscando variantes humanas para a sociedade tecnológica”, e, por isso, enquanto expressão do humanismo socialista:
A revolução científica e tecnológica deve vir a ser a maior revolução cultural da história,
porque ela transfere a cultura, que até agora teve tendência para ficar à margem, para
o centro da própria vida (idem, p. 152; cf. Barbrook, 2009).
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Deixando de lado eventual detalhamento dessas propostas, podemos passar direto e com vantagem para a reflexão que, exatamente à mesma época e
partindo de premissas e preocupações convergentes, elaborou sobre o assunto
George Simondon. Simondon (1989) acompanhou com fascínio, apesar de expressar reservas, os primeiros passos do pensamento cibernético, entrevendo por
meio deles as bases para uma eventual reconciliação entre cultura e tecnologia
que, em seu tempo, e para boa parte do público intelectualizado, ainda eram
vistas como forças antagônicas e virtualmente irreconciliáveis.
As máquinas [contemporâneas] são regidas por uma cultura que não foi elaborada
de acordo com elas e da qual elas estão ausentes: esta cultura é inadequada e não as
representa. [...] A falta de homeostase social [com os maquinismos] provém do fato
de que este aspecto da realidade [o dos maquinismos] não é representado na relação
reguladora [entre eles e o homem] que é a cultura (Simondon, [1958] 1989, p. 151).
O que passa despercebido para muitos de seus leitores, é que a cultura
à qual o autor se refere, não é, contudo, qualquer uma ou aquela do conceito
que lhe opõe à natureza, mas a cultura burguesa moderna, que tende a opor o
homem à máquina. A cultura pré-moderna,observa ele, estava integrada aos
processos técnicos, através de esquemas e simbolizações que formavam o homem segundo um mesmo princípio, que era o da ação artesanal. A cultura
atual, foco de sua obra, ao contrário, se caracteriza por um distanciamento em
relação àqueles processos, por um atraso em relação aos progressos e mudanças
sobrevindos aos objetos técnicos depois da Revolução Industrial.
A cultura atual é a cultura antiga, na medida em que incorpora os padrões das
técnicas artesanais e agrícolas dos séculos passados como base estruturadora de seus
esquemas dinâmicos [de intervenção e compreensão da realidade]. Estes esquemas
servem de mediação entre os grupos sociais e suas lideranças, criando, devido à sua
inadequação, uma distorção fundamental na abordagem e entendimento das técnicas
mais contemporâneas (Ibidem, p. 14).
Por isso, as reflexões sobre a técnica que propôs podem ser vistas como
filosofia num sentido forte, embora hoje ultrapassado: elas pretendem servir de
guia para uma prática de escala universal. As proposições reflexivas e analíticas
sobre o objeto técnico e sua gênese, seja ele artesanal ou fabril, são apenas um
ponto de partida. O problema de fundo é o da resistência oferecida pelos princípios humanistas da cultura burguesa ao avanço do mundo tecnológico. O
principal, senão a razão de ser de tudo,era, no entanto, o desejo de superar a defasagem entre a consciência social dominante e o desenvolvimento virtualmente autônomo dos processos articulados tecnologicamente. Segundo Simondon
(1989), a solução para tanto está em promover uma reforma em nossos sistemas
de ensino e, eventualmente, em nossas principais instituições, visando desenvolver uma educação tecnológica, prática, mas também histórica e reflexiva.
Para o autor, chegou a hora de colocar a educação do indivíduo e o cuidado com sua formação, no mesmo plano da produção dos objetos técnicos. O
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homem precisa se inserir nas redes que estes objetos estão engendrando, se ele
não quiser ficar anacrônico e se é para estas mesmas redes desenvolverem todo
o seu potencial em harmonia com a humanidade. A cultura (como formação)
deve se renovar em princípios e se pôr em dia com a técnica (maquinística):
A cultura é o meio pelo qual o homem regula sua relação com o mundo e sua relação
consigo mesmo: ora, se a cultua não incorporar a tecnologia, continuará comportando
uma zona obscura e não poderá aportar sua normatividade reguladora ao [desejável]
acoplamento entre homem e mundo (Ibdem p. 227).
As contradições e antagonismos que surgem entre o homem e a máquina
são, portanto, um problema que só poderá ser superado com uma revolução
cultural, com um esforço coletivo, cujas condições objetivas, todavia, ele não
analisa. O sentido de tal revolução seria o de harmonizar aquele último processo à criação de sujeitos efetivamente cultivados, através de uma educação tecnológica filosoficamente orientada, seja na escola, seja no mundo profissional.
Coube a Jean Baudrillard, passado um primeiro momento de encanto,
revelar as insuficiências desta filosofia da técnica. Para ele, a técnica precisa ser
estudada a partir de um exame de seu papel e de sua função no contexto histórico. “Uma análise concreta da técnica deverá considerar a relação que através
dela os homens ou grupos sociais mantêm entre si (análise sociológica), o modo
de produção dos seus meios e, ainda, quais são as estruturas de poder em que
esta produção se articula (análise histórica)” ([1967] 2001, p. 43).
Poupando o nome de Simondon e partindo deste pressuposto, o pensador conclui que, conforme o capitalismo avançou a cultura burguesa entrou
em colapso e acabou sendo suplantada por uma nova ordem coletiva, que ele,
mais tarde, chamaria de ordem dos simulacros. O progresso tecnológico foi
apropriado por uma nova linha de força, em que desmoronam ou se esvaziam
de sentido as velhas instituições, incluindo a cultura e os sistemas de ensino e
educação. Em seus primeiros estudos, o autor nota que a técnica, concretamente, é função do sistema social, por isso não é uma cultura albergada nele, ainda
que intencionalmente inovadora, que irá alterá-lo, se é que isso seja algo factível, porque poderíamos nos perguntar de onde viriam seus sujeitos. A fortuna
das técnicas, via de regra, é determinada pelas práticas da sociedade, e estas,
agora, não estão mais presas às imagens com que se cultivara a era burguesa,
mas a um imaginário de caráter cada vez mais tecnológico e maquinístico.
Atualmente, a criação da vida cotidiana se separa cada vez mais das
referências que lhe conferiam a cultura burguesa. A tecnicidade mesma está
se convertendo em mitologia, fonte de esquemas com os quais se pretende
reordenar, ideologicamente, é claro, o mundo, como prova, por exemplo,
nosso culto ao automatismo. Afinal, o automatismo, além de princípio tecnológico, não é menos expressão “do sonho de [ver] um mundo dominado,
de [ver] uma tecnicidade formalmente executada a serviço de uma humanidade inerte e sonhadora” (1973, p. 119).
Sendo assim, verifica-se, porém, que os tempos modernos precisam ser
vistos como que habitados pela fantasia coletiva de um mundo-máquina, de
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uma mecânica universal, de uma simulação generalizada, daquilo que será
mais tarde acusado pelo filósofo de “hiperrealidade” (2000). A tecnicidade,
embora com ela se desenvolva, é, em nossa era, assombrada pela crença irracional de que todo problema humano “pode ser previsto, prevenido e resolvido antecipadamente por meio de um objeto técnico, racional, absolutamente
adaptado [à solução dos problemas do mundo]” (Ibidem, p. 125).
O capital engendrou um sistema de vida em cujo âmbito nós nos encontramos cada vez mais prisioneiros de um código abstrato ou princípio de
simulação, que reduz nossa capacidade de ação à operacionalidade e engendra um processo de desilusão radical da existência. O que gera, no mínimo,
uma completa “evacuação da criatividade poética”, cuja tendência só aumentará com os futuros desenvolvimentos da informática de comunicação.
Detrás de cada tela de televisão e de computador, em cada operação técnica com
que se defronta diariamente, o indivíduo é analisado função por função, provado,
experimentado, fragmentado, acossado, obrigado a responder, convertido em um
sujeito fractal, que se difrata através das redes, em troca da mortificação de seu olhar,
de seu corpo, do mundo real (2000, p. 57).
Por isso, finaliza o autor, o maquinário virtual só excepcionalmente tem
relação com a informação, o encontro, a cultura ou o conhecimento. O principal que ele nos oferece é, antes, um certo tipo de imagem, na qual mergulhamos com a possibilidade de modificá-la, sem realmente sairmos de seu âmbito.
A existência se artificializa, a tal ponto que, agora, vivemos em um modelo
ambiental completo, feito de respostas espontâneas e incessantes, de feedbacks automáticos e contatos irradiados, passando, por toda a parte, a estarmos
numa hiperrealidade, onde não há mais propriedade em falar de cultura.
Desde então, avançou-se pouco em relação ao assunto, no tocante ao
que há propriamente de cultura na esfera da cibercultura, com exceção do
esforço feito em sentido contrário, ainda nos 1990, por Pierre Lévy. Para este,
cibercultura merece uma reflexão conceitual. Tal categoria “especifica o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos
de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento
do ciberespaço” (1999, p. 17). A perspectiva é relevante porque o autor inclui
em sua definição, tanto os aspectos materiais, quanto os aspectos espirituais de
algo cuja natureza é prática e, por óbvio, ainda que não se refira de modo ostensivo, social. Em nosso entendimento, o problema está não apenas no sujeito
ao qual o autor atribuirá as operações deste conjunto, mas no caráter e sentido
que ele atribui àquelas e, portanto, à cibercultura.
Para Lévy, a cibercultura, conforme acima definida, contém um programa sem objetivo, nem conteúdo, e carece de sujeito que lhe seja destinatário
individual, porque seu móvel é uma inteligência coletiva. Como ele diz, os
processos em que se materializa têm um significado deletério para os homens,
visto estarem em constante mutação, serem fluídos, desprovidos de qualquer
sentido estável e central. Embora ele esboce uma divisão entre os que participam e os que estariam fora deles, o autor conclui que, de fato, na cibercultura,
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“cada um de nós se encontra em maior ou menor grau nesse estágio de desapossamento [intelectual da existência] (1999, p. 28).
Em seguida a I Guerra Mundial, Spranger, entre outros, já observara
que “o livre desenvolvimento de uma personalidade altamente refinada estava
deixando de ser a meta final de nossa atual civilização”, que a nova meta era “a
personalidade que recebe seus melhores valores da totalidade social e a esta dá
os seus em retorno”, porque chegara um tempo em que “unicamente o indivíduo incorporado numa organização supraindividual pode receber tudo o que
este tempo pode lhe oferecer”. (Spranger apud Bruford, 1975, p. 265).
Lévy não está muito longe deste entendimento, mas totalmente inserido
no seu respectivo contexto, ao esclarecer os fundamentos do que chama de cibercultura. O movimento que a constitui, nota, é tão imperioso e avassalador,
que mesmo os mais inteirados a seu respeito encontram-se, em diversos níveis,
ultrapassados pelo processo: ninguém pode participar ativamente da criação e
da assimilação das transformações do conjunto de especialidades técnicas que
o agenciam, nem das ideias e experiências por ele postas em circulação.
A contrapartida, contudo, existe, e está no que seria a essência ou principal motor da cibercultura: a inteligência coletiva. As comunicações em escala
molecular e global, permitidas pela mídia digital interativa, estabelecem uma
sinergia cooperativa entre as competências, recursos, projetos e ideias de todos
os que, mais ou menos, se integram às redes. Com isso, ativa-se uma inteligência que procede mediante a agregação e colagem de contribuições pontuais,
para gerar conhecimentos, práticas e situações passíveis de apropriação terminal por todos os sujeitos integrantes do universo telemático.
A cibercultura seria, pois, produto da aspiração em construir um laço
social fundado na reunião em torno de centros de interesses particulares, no
compartilhamento de pequenos saberes, na aprendizagem parcelar mais cooperativa e nos processos de sinergia colaborativa. O programa que a moveria
seria o do universal sem totalidade: universal, já que a interconexão deve se
estender a todos, qualquer um deve poder acessar de qualquer lugar as diversas comunidades virtuais e seus produtos; mas sem totalidade, porque o
processo seria por princípio inacabável e disperso: as fontes são cada vez mais
heterogêneas, os mecanismos mutantes e as perspectivas de apropriação de
tudo isso só tendem a se multiplicar (Lévy, 1999, p. 130-132).
Jacob Burckhardt (1973) ensina que na Itália da Renascença teria ressurgido a tendência para o desenvolvimento no mais alto grau da personalidade
que nascera com os antigos gregos e que, “quando ela se casava com uma natureza realmente poderosa e um espírito ricamente dotado, capaz de assimilar ao
mesmo tempo todos os elementos da cultura de então, via-se surgir o homem
universal” (1973, p. 111). Segundo Pierre Lévy, estamos entrando, via mídia
digital interativa, em uma era de cultura universal na qual nada e ninguém,
exceto talvez uma megamáquina ainda a ser construída, é capaz de totalizar.
Neste contexto, stamos nos tornando mais abertos e criativos, graças às possibilidades de interconexão em escala mundial, porém, como indivíduos e em
última análise, não estamos ficando mais inteligentes: continuamos sendo as
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mesmas pessoas de sempre, como afirmou o autor em entrevista para o jornal
Folha de São Paulo (caderno Ilustrada, 28/05/1999, p. 15).
A pergunta que nos fazemos diante disso não é, no caso, sobre a propriedade da interpretação do que, via mídia digital interativa, está ocorrendo
com a formação da inteligência e da subjetividade, mas sim, se ela faz bom
uso do conceito de cultura e, nos ajuda, com isso, a entender de forma reflexiva e abrangente o que está em jogo na chamada cibercultura. O estudioso
faz bem em notar que sua definição da cibercultura como expressão de uma
inteligência coletiva, para não falar desta figura mesma, constitui um campo
de problemas antes que uma solução.
Desejamos que cada rede dê à luz a um grande animal coletivo? Ou o objetivo é, ao
contrário, valorizar as contribuições pessoais de cada e colocar os recursos dos grupos
a serviço dos indivíduos? A inteligência coletiva é um modo de coordenação eficaz na
qual cada um pode considerar-se como um centro? Ou, então, desejamos subordinar os
indivíduos a um organismo que os ultrapassa? (Lévy, op. cit., p. 131).
Para nós, trata-se, no entanto, de perguntas retóricas, visto que as respostas
podem ser facilmente deduzidas da leitura de seu livro: a rede é uma figura na
qual se supera o indivíduo, pelo menos do ponto de vista da sua formação cultural. Os processos de abstração do contato social e a fragmentação da experiência
que ela estimula, combinados com os recursos de que se passa a dispor e as motivações provenientes do contexto histórico mais abrangente, tendem a prender
o sujeito em situações cada vez mais fugazes, fungíveis e superficiais. Nessas,
faltam os estímulos à integração objetiva, e não meramente formal da consciência, está ausente a interação concreta e, por isso, responsável com os outros, e,
enfim, suspendem-se os incentivos à totalização horizontal, mas também vertical
da experiência individual contida na ideia de autoformação (cf. Sloterdijk, 2011).
Na continuação, perguntamos se, por tudo isso, na cibercultura, a referência ao termo cultura não seria, antes de tudo, um expediente retórico com
que nosso tempo oculta a si mesmo o que precisamente lhe falta; se, nessa
referência, em vez de um processo possuidor da devida propriedade, não se
encontra apenas a fantasmagoria, talvez terminal, do que, devidamente compreendida em seu processo de criação e posicionamento histórico, foi, durante toda uma época, chamado de cultura. A cultura sempre tivera o caráter
de ideologia, mas nem por isso deixou de ser uma ideia com que gerações,
ainda que selecionadas socialmente, e só até certo ponto, estruturaram um
modo de ser bem característico e determinado. Agora, pode ser que inclusive
o caráter de ideologia a que ela se reduzira com o filistinismo burguês e seus
sucedâneos, esteja em vias de desaparecimento.
Visando entender o problema, vale a pena repetir que, via de regra, a cultura, academicamente, é trabalhada atualmente não apenas como uma categoria classificatória e formal, cujo sentido é estabelecer algum tipo de contraste
com a de natureza, mas, ainda, como categoria em si mesma sem história,
quando veremos que ela é, antes, algo histórico num sentido radical. A cultura,
pensada bem, revela-se, de fato, como algo que não existiu sempre, mas sim
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Francisco Rüdiger. Cultura e Cibercultura: princípios para uma reflexão crítica
que passou a existir a partir do momento em que saímos do estado de natureza.
O processo que com a expressão se designa, rigorosamente falando, é um fenômeno dos tempos modernos, cujas práticas, referências e sentido estão sujeitos
a mudança e a um eventual esgotamento em meio ao movimento histórico.
Raymond Williams (ano) nos ajuda a esclarecer o ponto, observando
que, “como substantivo independente, como processo abstrato ou produto
deste, cultura não é importante antes do final do século XVIII, nem comum antes de meados do século XIX” (Williams, 2000, p 88). Antes da
era moderna, só por analogia com a agricultura, cultivo do solo, o termo
aparecia na sintaxe histórica dos assuntos humanos. Cícero assim o emprega, por exemplo, para referir-se ao cultivo da mente, em suas Tusculanae
Disputatio (45 a.C.). Durante o século XVII, começou, porém, a aparecer
um novo sentido, que, mais elaborado, se firmaria por volta de 1900 e
segundo o qual “cultura” podia ser também o nome do eventual patrimônio material tido por um indivíduo ou comunidade. No século seguinte,
entrementes, acrescentou-se ao termo outro sentido: a ideia de processo
de desenvolvimento interior das capacidades superiores do indivíduo, por
meio de certas práticas, obras e instituições (cf. Bruford, 1975).
Adorno dá conta das conexões existentes entre uma e outra acepção,
nem sempre elaboradas e conscientes entre os que empregam a expressão,
salientando que, criticamente, cultura precisa ser apreendida em seu duplo
aspecto, se é para a vermos com propriedade reflexiva e perspectiva histórica. Como ele diz, a cultura remete à sociedade em meio à qual emerge, mas
também é uma mediação entre aquela e o indivíduo. A palavra designa um
processo que, se por um lado, está encravado nos mecanismos de reprodução material da existência, de outro, só adquire sentido como cultura sendo
o seu processo de apropriação intelectual e, por extensão, o de autotransformação do corpo, alma e modo de ser de um indivíduo.
Segundo este pensador, ocorre, porém, que, conforme avança o movimento da indústria cultural, a cultura, assim entendida, isto é, em sua força
e propriedade históricas, entra em colapso, convertendo-se, pelo lado subjetivo, no que ele chama de pseudoformação.
A cultura revela um duplo aspecto: é cultivo do espírito, por um lado, e domínio da
natureza, adaptação, por outro. A formação [do indivíduo] encerraria dentro de si
ambos os momentos. A tensão entre eles, contudo, se esfumou na maior parte. A cultura
do espírito como algo substancial mal se experimenta agora, excetuados os que se
ocupam disso profissionalmente. A adaptação à rede social universalmente socializada
converteu-se em algo que tudo domina e já quase não inclui a recordação de algo
autônomo espiritualmente (Adorno, 2004, p. 533).
Acompanhando em parte as análises sobre o que foi chamado de cultura afirmativa por Marcuse (1997, p. 89-136), o filósofo nota que as sementes desta metamorfose já estavam plantadas em plena época de apogeu da
formação. “Tudo o que hoje ocorre ao espírito objetivo estava inscrito nele já
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Francisco Rüdiger. Cultura e Cibercultura: princípios para uma reflexão crítica
nos tempos do liberalismo ou, pelo menos, exige o pagamento de velhas dívidas” (Adorno, op. cit., p. 95). A burguesia que a promoveu como direito de
todos, comandou a estruturação de uma sociedade em que ela, a cultura, por
um lado, permaneceu de fora do campo de experiência das camadas trabalhadoras e, de outro, se sublimou em um entendimento predominantemente
espiritualista, associado, na prática, às artes, letras e humanidades.
A conversão da indústria cultural em sistema rompeu com este privilégio e ampliou as perspectivas de seu campo, mas em condições que acabaram
por estimular a esterilização política, moral, estética e filosófica da criação
cultural e por submeter o processo de formação ao fetichismo da mercadoria.
O resultado disso é uma situação objetiva que tende a impedir as massas de,
senão os promoverem, pelo menos de se apropriarem de forma viva, concreta
e individua dos chamados bens culturais e, por extensão, de cultivarem a experiência e desenvolverem progressivamente sua individualidade, conforme
era o programa contido originariamente no conceito de cultura. (p. 232).
No clima de pseudocultivo, os conteúdos objetivos da formação cultural, coisificados,
com caráter de mercadoria, sobrevivem [onde o logram] à custa de seu conteúdo de
verdade, de sua relação viva com sujeitos vivos, desta correlação que define o próprio
conceito de formação cultural (p. 234).
Por isso, conclui o autor, o conceito de cultura perdeu sua atualidade:
as condições sociais e econômicas de nosso tempo não comportam mais, só
por exceção, o surgimento de seus respectivos sujeitos. A expressão sobrevive como rótulo degenerado historicamente, em que se inscrevem estratégias
mercadológicas, em vez de processos de apropriação individual criadores e
emancipatórios em relação às condições de vida existentes. O progresso das
condições materiais de vida, elogiável, é pago com o embotamento da experiência e o bloqueio dos processos de autocultivo progressivo e emancipatório.
Isso quando a regressão da consciência e a entrega voluntária ao barbarismo
não despontam como alternativas mais estimulantes de ocupação do corpo e
da subjetividade (cf. Rüdiger, 2003).
A tragédia da cultura, conforme postulará,começa a partir do momento em que o sujeito, submetido às condições de vida modernas, se torna
incapaz de extrair dos bens e pessoas com que se relaciona os elementos e
ideias capazes de, por sua própria iniciativa e atividade, promoverem o desenvolvimento de sua individualidade. O sujeito, contrariamente em épocas
e contextos anteriores, se vê, neste novo momento, incapaz de assimilar os
fatores objetivos e formas espirituais que circunscrevem sua vida como fatores e formas possuidoras de sua própria estrutura e sentido e, com base na sua
eventual apropriação sensível e intelectual, promover o seu próprio avanço e
aperfeiçoamento como indivíduo.
Nesse contexto, sem dúvida, nos tornamos mais instruídos, nos tornamos finalistas,
mais ricos em prazeres e em capacidades, senão melhor formados, mas nosso cultivo
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Francisco Rüdiger. Cultura e Cibercultura: princípios para uma reflexão crítica
não guarda passo com isso, pois vamos desde um ter e um poder mais baixo até outro
mais alto, mas não desde nós mesmos em um plano inferior, para outro, mais elevado
(Simmel, 1988, p. 219).
A cultura só pode significar objetivamente o progresso individual em
que o sujeito se transforma e aperfeiçoa ao desenvolver, mediante a apropriação e elaboração de certos conteúdos objetivos, os poderes e o saber com que
faz avançar o conjunto de sua individualidade em relação às suas circunstâncias históricas concretas. A criação do mundo histórico, promovida por esse
mesmo sujeito, todavia, resulta no aparecimento de processos que, cada vez
mais complicados do ponto de vista técnico e de sua apreensão intelectual,
apesar de aprimorarem as condições de existência, tendem a bloquear, pela
complexidade, o desenvolvimento da personalidade individual que, em sua
origem e motivação, supunha o conceito de cultura.
Então, o homem se converte em mero portador da coerção com que esta lógica submete o
seu desenvolvimento e passa a conduzi-la em linha tangente àquela pela qual esta lógica,
fosse outra a situação, poderia regressar ao homem e promover o seu desenvolvimento
cultural – e isto é bem o que chamamos de tragédia da cultura (Simmel, 1998, p. 227).
George Steiner (1992) merece menção neste contexto, não só por convergir com esta linha de entendimento, mas, sobretudo, por tirar-lhe as últimas
consequências, explorando-a conceitualmente com uma noção ainda hoje inovadora e tremendamente provocativa: a de pós-cultura. Isso se torna relevante se
considerarmos que a cultura, como dito, virou fetiche não apenas entre as camadas médias globalitárias, mas também entre as novas gerações de acadêmicos.O
ensaísta, com efeito, provavelmente foi pioneiro ao, titubeante, cunhar, em 1971,
o termo pós-cultura, com o objetivo de caracterizar a época da história que ele
entrevia se abrir ao mundo, após o final da II Grande Guerra.
Segundo ele, a cultura, propriamente falando, é algo exclusivo de uma
época e de uma certa civilização. Apenas a Europa burguesa pode reclamar para
si a condição de época cultural, conjuntura portadora de uma estrutura simbólica singular e profana que, marcada por um tipo único de homem e uma série
de expressões artísticas, literárias e intelectuais muito características, é agora, no
máximo, motivo de memória ou objeto de uma mitologia nostálgica.
Para a imensa maioria dos seres pensantes e, de modo indubitável, para os jovens de
hoje, a imagem da cultura, incluindo a consciência da sua superioridade e integrando
no seu quadro a soma quase total das energias intelectuais e morais de todo o mundo,
transformou-se ou num absurdo com laivos racistas ou numa peça de museu [escrevia
ele, em 1971] (Steiner, 1992, p. 71)
Depois da II Guerra, as forças oriundas de uma nova configuração
social e civilizatória se conjugaram para fazer entrar em declínio a ideia de
cultura que surgira com a era burguesa. Steiner comenta, entre outros eixos,
o papel da informatização nesse processo. Para ele, o computador, estava
bem claro já, não era uma máquina cujos recursos podiam ser vistos apenas
de acordo com o modelo da instrumentalidade controlável e pré-definida
que regeria os maquinismos anteriores.
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Francisco Rüdiger. Cultura e Cibercultura: princípios para uma reflexão crítica
Em ligação com as linhas telefônicas ou com canais de transmissão mais sofisticados,
escrevia ele há exatas quatro décadas, os computadores polivalentes serão em
breve uma presença rotineira em todos os escritórios e na maior parte das casas de
família.[Também] É provável que este córtex eletrônico [de cunho coletivo] reduza
a singularidade do indivíduo, ao mesmo tempo que expanda imensamente o seu
horizonte de referência e intervenção (p. 129).
Os processos por meio deles articulados transformam as relações entre
a inteligência humana e o potencial de conhecimento disponível pelo coletivo,
entre as escolhas que fazemos e as possibilidades existentes para a humanidade.
O foco se torna o exercício do poder e este não será, crê o autor, contido por
nenhum apelo à razão, porque somos criaturas que vivemos em meio aos escombros do tempo em que aquela almejava ter um valor cultural formativo. O fato é
que ultrapassamos um limiar e que, vendo bem, “não há regresso, não podemos
optar pelos sonhos da ignorância. Abriremos, penso eu, a última porta do castelo, embora ela possa levar, ou talvez porque pode levar, a realidades que estão
para além da capacidade de entendimento e controle humanos” (p. 141).
O resultado disso é uma ruptura que atinge o centro do próprio conceito
de cultura, é a substituição de seus princípios, ritmos e promessas, fundados
na ideia de transcendência espiritual. Tal rompimento se deu pela procura desordenada da gratificação imediata dos sentidos via mecanismos de consumo,
bem como pela experimentação tecnologicamente obsessiva com tudo o que
nos fornece um modo de vida doravante indiferente em significado, senão furioso em suas tendências, mas sempre fascinante a nossa vontade de poderio.
Se o dur désir de durer foi a mola decisiva da cultura clássica, talvez a nossa pós-cultura
se caracterize por preferir não durar a ter que se despedir dos riscos do pensamento. A
capacidade de encararmos a autodestruição como um possível, prosseguindo o debate
com o desconhecido, não é mais uma perspectiva de somenos (p. 142).
Steiner pretende retomar ou retirar de seu texto todas as conclusões das
notas para a reafirmação do conceito de cultura propostas meio século antes por
T. S. Eliot, mas são às observações sobre cultura e anarquia de Mathew Arnold
que permitem melhor entender suas proposições, assim como as de Adorno, citadas acima. Escrevendo em 1869, Arnold esclareceu o conceito de cultura diante
da ameaça representada pelo avanço social e político das camadas populares e
o culto à máquina a ele associado para dentro da vida do espírito. Kant estabelecera o conceito de cultura em seu sentido forte, postulando que “o homem
tem necessidade de cuidado e formação” (Kant, 1994 p. 14). Porta-voz do iluminismo, o filósofo expressou a crença que seria de toda uma época, ao afirmar
que o homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela cultura e a
educação. A conquista disso depende de um processo formativo que, no limite,
se estende por toda a vida. “Quem não tem cultura de nenhuma espécie é um
bruto”, porque só pelo cultivo de si mesmo, físico e metafísico, se pode avançar
“em direção à perfeição da natureza humana” (p. 16).
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Francisco Rüdiger. Cultura e Cibercultura: princípios para uma reflexão crítica
Arnold consagrou este conceito referindo-se com ele ao cultivo da perfeição individual do ser humano, aos refinamentos materiais e espirituais que,
livremente, pode se dar à vida humana individual, ao aperfeiçoamento moral,
embelezamento integral e desenvolvimento da inteligência. O essencial nele
era a procura da perfeição por todos os meios e em todas as áreas, senão a busca
pela excelência em tudo, é “a preocupação em ser completo em todos os aspectos da vida, em desenvolver total e harmoniosamente a nossa humanidade”
(Arnold, 1996, p. 58). A cultura significava formação integral do ser humano
para o emprego da razão e da liberdade, o refinamento dos seus sentidos e dos
instintos, o fortalecimento da sua saúde física e mental, a conquista da plenitude dos seus poderes individuais e “a fruição mais bela e livre da vida”, como
antes dissera (Herder,pud Marcuse, 1997, p. 101-102).
Segundo Steiner, tudo isso não é mais o caso com o colapso da era burguesa e o avanço social e político das massas, com o materialismo aquisitivo
da sociedade contemporânea e sua vontade de poder, fundados no desenvolvimento tecnológico. Nesse contexto, o público passa por uma metamorfose
e, embora se amplie à escala de massas, perde a condição de eco esclarecido
da criatividade proveniente de um talento individual, uma formação que
responde, diferenciando-se internamente, à sua atividade singular, para se
transformar em um agregado de forças avulsas e indistintamente estimulador, senão mesmo co-criador do que lhe diz respeito e faz algum sentido. Os
pressupostos que haviam feito surgir a ideia de cultura são abolidos, e vem
abaixo o que sustentava suas obras e manifestações, fazendo-nos pensar que
“o antigo vocabulário se esgotou, que as formas da cultura clássica, à escala
global, já não podem ser reconstruídas” (p. 98).
A cultura era objeto de um projeto que visava à aquisição de conhecimentos, mas também. e por esta via, a formação integral e distinta de indivíduos cada vez mais perfeitos, que se inseria, reunindo tanto um quanto outro
processo, em um relato emancipatório de cunho mais ou menos totalizante
ou universal. As experiências particulares e os conhecimentos específicos eram
vistos aí como momentos formadores de um movimento mais amplo, que seria
o percurso de autoformação do próprio indivíduo em meio à sua época histórica. As práticas a partir das quais se materializava o cultivo de si se legitimavam
através de um discurso em que se previa a realização de todas as potencialidades do indivíduo singular, tanto quanto a virtual emancipação do conjunto
da humanidade em relação a tudo o que, em cada momento, ainda a mantém
acorrentada em seu inacabável processo de desenvolvimento.
Agora, porém, o cultivo de si mesmo parece ter perdido a validade que
continha, seja porque as práticas formativas se dissolveram, ao sucumbirem ao
fetichismo da mercadoria, seja porque o seu sujeito perdeu sua referência no cuidado com o bem comum ou no compartilhamento de uma mesma destinação
histórica. A relação consigo mesmo e com os outros, para não falar dos bens que
o mundo nos oferece, se desvincula de ideais e, onde sobrevive estruturada, passa
a se nortear pelas noções de performance e competências especializadas.
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Francisco Rüdiger. Cultura e Cibercultura: princípios para uma reflexão crítica
O princípio que anima as pessoas em meio à era das massas não é mais a
apropriação integral, mais singular de suas circunstâncias, como pregava o discurso
da era burguesa, passando a ser a liberdade, nem sempre benfazeja, de se conduzir
de acordo com suas competências individuais e as oportunidades que cada um
encontra nos vários mercados em que se distribuem as esferas de existência.
Como disse Lyotard, relacionando este processo todo com nossa entrada
na pós-modernidade, agora:
A relação com o saber não é mais a da realização da vida do espírito ou a da
emancipação da humanidade; é a dos utilizadores de um instrumental conceitual e
material complexo e dos beneficiários de suas performances, [...] que não mais dispõem
de um metarrelato para formular-lhes o bom uso e a finalidade [do ponto de vista
coletivo] (Lyotard, 1986, p. 94).
Com o avanço da indústria cultural, continuamos para concluir, o
princípio de que a aquisição do saber é indissociável do cultivo do espírito cai
em desuso; a cultura, em sentido enfático, não é de outra coisa que se trata,
torna-se fantasmagoria. Com tanto e muito mais, claro, o saber passa a ser
produzido para ser vendido e consumido, para se aproveitado em processos
de valorização mercantil, seja de bens, seja das capacidades que têm apelo nos
mercados. Os conhecimentos, noutros termos, perdem sua relevância formativa em meio a uma época na qual nosso enredamento com os mecanismos
de mercado tende a se tornar total, ainda que deles possamos nos beneficiar,
como bem notou Georg Simmel.
Por isso tudo, o conceito de cibercultura, menos que um construto
simbólico a ser descartado, deveria continuar a ser pensado, mas criticamente, como sinal de um problema, que é o das condições de formação do indivíduo no que seria, reflexivamente, um estágio avançado da indústria cultural convertida em sistema. A reflexão sobre suas manifestações nos fornece
várias razões para crer que os espaços para elaborar conhecimento, em vez de
meramente receber informações, e efetivamente desenvolver uma formação
individual, em vez de meramente interagir à distância com os demais, oferecidos via internet são muito limitados.
A internet, é fato, nos ajuda a acessar as informações que desejarmos
virtualmente sobre todos os assuntos pensáveis, a conectarmos-nos com outros sem correr riscos e a ter responsabilidades maiores. Leva-nos a interagir
com um número de pessoas e situações que não nos seria impossível na vida
imediata, – só em simbioses densas, engajadas e objetivas com outros, podemos aprender a usar e desenvolver nossos poderes e capacidades, assimilar
um pouco das conexões que constituem a realidade do mundo concreto e
eventualmente explorar os compromissos sociais que dão ou retiram sentido
à existência (cf. Dreyfus, 2001).
As redes telemáticas e os seus ciberespaços nos atraem e seduzem porque, exceto em condições extraordinárias, restringem nossa responsabilidade, percepção e entendimento do mundo, dependentes da inserção, engajamento e vulnerabilidade do corpo em situações concretas compartilháveis
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Francisco Rüdiger. Cultura e Cibercultura: princípios para uma reflexão crítica
com nossos semelhantes – mas é bem isso que, entre outros, nos fornece
bons motivos para proceder à sua investigação. A cibercultura se movimenta
sobre o pano de fundo da paulatina expansão do mundo da informática e,
por tudo o que dissemos, em vez de o fazer como meio de elaborar o sentido da experiência vivida, pode ser que, antes, atue como enorme formação
reativa ou mecanismo de defesa aos efeitos perversos do projeto de domínio
do mundo e recriação artificial da existência contidos, sob as condições da
economia de mercado total, naquela expansão.
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61
A Escola do Futuro (USP) na
construção da cibercultura no Brasil:
interfaces, impactos, reflexões
School of the Future (USP) researches in the building of
Brazilian cyberculture: interfaces, impacts and reflexions
Antonio Helio Junqueira | [email protected]
Doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, Mestre em Comunicação e Práticas de
Consumo pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Brasilina Passarelli | [email protected]
Professora Titular, Chefe do Departamento de Biblioteconomia e Documentação da Escola de
Comunicação e Artes da ECA/USP e Coordenadora Científica do NAP Escola do Futuro / USP.
Resumo
O NAP EF/USP tem a construção do seu percurso entrelaçada com a própria história da Internet no Brasil.
Ambos se iniciaram no País há duas décadas. Este artigo revê a trajetória desse núcleo, enfocando suas principais
áreas de atuação: a pesquisa-ação – vanguarda na intervenção sobre a realidade da inclusão digital e construção da
cidadania no Brasil – e a pesquisa empírica realizada pelo seu Observatório da Cultura Digital
Palavras-chave: cibercultura; inclusão digital; etnografia virtual; literacias emergentes na web 2.0.
Abstract
School of the Future Research Laboratory at the University of Sao Paulo/Brazil was born at the same time that commercial Internet arrived in 1994. This paper reports major projects developed as action-research devoted to connect different
audiences as citizens and students as well as empirical research developed at the Digital Cultural Observatory.
Keywords: cyberculture; digital inclusion; virtual ethnography; web 2.0 emerging literacies.
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
62
Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
1. Da inclusão digital às literacias emergentes na web 2.0: uma
trajetória de vinte anos.
A primeira conexão da Internet no Brasil, então restrita ao ambiente acadêmico, ocorreu em janeiro de 1991, por meio da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (FAPESP). Com o progressivo desenvolvimento e incorporação do acesso global a diferentes tipos de informação em rede – ocorrida a
partir dos Estados Unidos, no final da década de 1990 – a Internet logo passou a
ser aberta também ao ambiente comercial. No Brasil, isso veio a ocorrer em 1994.
As principais conquistas tecnológicas que definiram este período e que impulsionaram definitivamente seu desenvolvimento em escala mundial foram as criações da
world wide web (WWW), do protocolo de transferência de hipertexto (Hyper Text
Transfer Protocol – HTTP) e da linguagem de marcação de hipertexto (Hyper
Text Markup Language – HTML).
Nessa mesma época, surgiu, na Universidade de São Paulo, o Núcleo de
Pesquisa das Novas Tecnologias Aplicadas à Educação Escola do Futuro (NAP
EF/USP), congregando um grupo de pesquisadores atentos aos desafios e perspectivas então colocados pelas novas tecnologias de informação e comunicação
(TICs). Aos primeiros passos desse percurso vieram a se agregar – já em meados dos anos 2000 – novos focos de ação e de pesquisa relacionados às novas
configurações comunicacionais permitidas pela web. Desde então, este núcleo
de pesquisa passou a se dedicar cada vez mais intensamente às intervenções, estudos e pesquisas sobre a “sociedade em rede” (CASTELLS, 1999) e as ações e
comportamentos dos “atores em rede” (LATOUR, 2008), haja vista a inegável
importância sociocultural adquirida por tais fenômenos na contemporaneidade. Afinal, a web, enquanto espaço interativo aberto e colaborativo, colocou-se,
desde a sua origem, como ambiente prenhe de novas oportunidades para a
permanente produção de conhecimento, para a comunicação em rede e para a
horizontalização das relações sociais de poder.
Nesse contexto, o crescimento acelerado tanto da oferta e do acesso aos
computadores pessoais (PCs), a partir da segunda metade da década de 1980,
quanto do uso da Internet, especialmente ao final da última década, vieram
modificar profundamente o ambiente comunicativo e informacional da sociedade brasileira contemporânea.
Atualmente, o Brasil lidera os índices de concentração de computadores
e de acesso à Internet em toda a América Latina. Segundo dados da Pesquisa
TIC Domicílios 2010, realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil –
CGI.br1, a penetração de computadores nos lares urbanos brasileiros já atinge
39% e o acesso à Internet, 31%.
Cabe destacar ainda que a penetração da web na população dos países latino-americanos e do Caribe atingiu recentemente o índice de 34,5%,
sendo superada pela América do Norte (77,4%), pela Austrália e Oceania
(61,3%) e pela Europa (58,4%), conforme dados atualizados da Internet
World Stats, para 20102.
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63
Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
No Brasil, a emergência econômica dos estratos mais populares, aliada a
outros fatores sociais positivos de emprego e ocupação, vem garantindo a manutenção de um crescimento acelerado nas vendas de novos computadores. Em
2010, segundo informações da Associação da Indústria de Eletro-Eletrônicos
(Abinee), foram vendidos 14 milhões de unidades, com um crescimento de
17% sobre os resultados do ano anterior. Para 2011, a previsão desta mesma
fonte é de um avanço de 13% no número de novas unidades comercializadas.
Nos últimos vinte anos, o NAP EF/USP empenhou-se em acompanhar
a evolução da cibercultura no Brasil, realinhando, de forma permanente, suas
trajetórias, diretrizes e os embasamentos teórico-metodológicos de suas ações e
pesquisas. Nesse caminhar, percorreu instâncias de vanguarda em projetos de
intervenção social na educação e na construção do protagonismo digital, até
chegar, a partir de 2007, ao seu atual estágio investigativo e reflexivo consolidado na criação do Observatório da Cultura Digital.
Segundo Brasilina Passarelli (2010, p.72), coordenadora científica do
NAP EF/USP, esse percurso se justifica e se adéqua à perspectiva sócio-histórica das duas últimas décadas, na qual se distinguem duas “ondas” na sociedade
em rede: uma primeira, cujo núcleo central é definido pelas preocupações,
políticas e programas de inclusão digital, e a segunda, que se concentra nas
diferentes formas de apropriação e de produção de conhecimento na web.
Na primeira “onda”, as atenções se voltaram majoritariamente às políticas de acesso e fornecimento de infraestrutura para a mitigação dos fenômenos
da exclusão digital e para a conquista da cidadania dos diferentes públicos
beneficiários. Tal fenômeno registrou-se não apenas no Brasil, mas em grande
parte dos países de economia emergente.
A segunda “onda”, por sua vez, veio como decorrência do acúmulo de experiências e de informações advindas das iniciativas públicas e privadas setoriais,
as quais carrearam a necessidade da adoção de novos enfoques e perspectivas de
investigação. Estes surgiram preocupados com a reflexão sobre a realidade da
apropriação cotidiana das novas tecnologias e na construção de identidades e
narrativas pelos atores em rede, em diferentes realidades sócio-históricas e culturais. Para o NAP EF/USP, tais demandas levaram, na contemporaneidade, à
busca de um novo instrumental teórico-metodológico para o estudo dos atores
em rede, no bojo do qual se elegeram as perspectivas emergentes das literacias
informacionais e da etnografia virtual como posturas e lugares privilegiados para
o estudo do conjunto das novas práticas sociais no ambiente virtual e a produção
individual e coletiva do conhecimento na web 2.0.
2. Emergência das literacias digitais e da etnografia virtual: novas metodologias para o estudo dos atores em rede.
A palavra literacia tem sido empregada no Brasil como tradução literal
do termo inglês literacy e vem sendo considerada, especialmente no âmbito da
Escola do Futuro, da Universidade de São Paulo (PASSARELLI, 2010), como
capaz de conferir melhor compreensão e abrangência conceitual das novas
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
práticas sociotécnicas relacionadas à apropriação e uso das TICs na contemporaneidade. Dessa perspectiva, sua adoção representa a melhor opção entre
possibilidades como: letramento, habilidade ou competência.
Há que se registrar, já de início, que considerável número de intelectuais
cujo trabalho se baseia na língua inglesa, admite não existir uma tradução direta para o termo literacy na maior parte das línguas.
O primeiro dos termos relacionados – letramento –, em português, remete ao universo da educação formal, onde se atrela especialmente ao processo
de alfabetização, ou seja, ao ensino e aprendizado das letras e à prática da leitura e da escrita. Vincula-se, assim, à superação do analfabetismo e à acentuação
do caráter grafocêntrico da sociedade. Nesse sentido, não incorpora adequadamente a codificação dos novos sentidos sociais correlacionados às práticas
de interação dos sujeitos na web e à aquisição das habilidades de uso de suas
ferramentas de acesso, leitura, interpretação, pesquisa e navegação.
Esse entendimento do processo de interação entre sujeitos, artefatos
e ferramentas na rede como um continuum na construção do aprendizado
leva, também, à superação do termo habilidade como tradução adequada e
suficiente para literacy.
Em 1997, o pesquisador Paul Gilster cunhou o termo “literacia digital”,
definindo-a como a “habilidade de entender e utilizar a informação de múltiplos formatos e proveniente de diversas fontes quando apresentada por meio de
computadores (GILSTER, 1997:1). Para ele, a literacia digital constitui-se na
“extensão lógica da própria literacia, da mesma forma que o hipertexto é uma
extensão da experiência da leitura tradicional” (GILSTER, 1997: 230).
Na sociedade em rede, a noção de literacia incorpora a capacidade dos
indivíduos interagirem e se comunicarem utilizando-se das TICs. No entanto,
para Gislter, a literacia digital não se esgota na aquisição de habilidades, mas
expande-se para as formas como estas são incorporadas e efetivamente utilizadas
na vida cotidiana dos indivíduos. Nesse sentido, o autor destaca especialmente o
aprendizado e o autoaprimoramento pessoal quanto às aptidões para: a) realizar
julgamentos sobre o conteúdo das informações disponíveis na Internet; b) justapor os diversos conhecimentos encontrados na Internet provenientes de diferentes fontes de maneira não linear para elaborar informações confiáveis, e c) buscar
e manter a pesquisa constante das informações atualizadas.
O conceito criado por Gilster no final da última década do século passado, gradativamente passou a incorporar as modificações ocorridas em função do
permanente desenvolvimento das TICs, especialmente no que diz respeito à convergência das mídias tradicionais para a Internet (JENKINS, 2008), o que resultou na necessária expansão da referencialidade do termo. Dessa forma, passou-se,
contemporaneamente, à utilização da palavra no plural, ou seja: literacias digitais.
Estudos realizados ao longo das duas últimas décadas vêm corroborando a ideia de que o desenvolvimento das literacias digitais exige dos
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
indivíduos não apenas habilidades motoras e de interação pessoal, mas, também, cognitivas, como aquelas relacionadas ao raciocínio, intelecto, capacidade de análise, avaliação e crítica. Dessa forma, as literacias digitais devem
ser entendidas em sua multiplicidade.
Esses novos conhecimentos a respeito das literacias digitais explicam
o porquê de o termo habilidade não ter sido tampouco uma tradução satisfatoriamente ampla e adequada para literacy. A compreensão das novas literacias digitais exige foco na prática social e na aplicação da crítica,
da reflexão, do julgamento e da cognição, muito distantes, portanto, daquilo que pode ser explicado apenas pelas habilidades inatas e cognitivas
(WARSCHAUER, 2003). Nesse contexto, a aquisição das literacias ligadas
ao campo informacional reporta-se, essencialmente, à conquista de habilidades e competências para a construção de sentidos, viabilizando o aprendizado e o raciocínio independentes e autônomos.
Outros autores contemporâneos também têm defendido que o conceito de literacia aplicado ao campo informacional não deve ser definido com
base em habilidades e, ainda menos, em um conjunto de habilidades descontextualizadas, aleatoriamente adquiridas e acumuladas pelos indivíduos.
Pelo contrário, deve ser pensado enquanto processo holístico, experimentado
pelo sujeito, nas suas interações com a tecnologia, de maneira autoconsciente
e que é mediado simultaneamente pelas relações sociais, físicas e textuais do
indivíduo com a informação. A este indivíduo em permanente aprendizado
informacional ao longo de toda a sua existência se associam ainda aspectos
éticos e de responsabilidade social na obtenção, apropriação, uso, transformação, armazenamento e disseminação da informação.
Portanto, o que se nota nesse contexto é a emergência de novos e ampliados enfoques de conceituação e leitura das literacias informacionais, nos quais
o sujeito torna-se apto à percepção crítica da informação, desvelando o seu
caráter de não neutralidade, ao mesmo tempo que compreende o contexto de
produção, disseminação e uso dessas mesmas informações. Nesse sentido, esses
novos conceitos sinalizam para o engajamento dos indivíduos com suas comunidades, seus contextos, valores, demandas e interações políticas e sociais.
A aquisição e, mais do que isso, o desenvolvimento permanente das literacias
informacionais, sob essa ótica, reveste-se de uma perspectiva emancipadora
e libertadora, à medida que os agentes podem tornar-se sujeitos ativos de sua
educação, aquisição de conhecimentos e atuação social.
A aquisição e o permanente desenvolvimento das literacias informacionais contribuiriam, nessa perspectiva, para a promoção do protagonismo individual, para o fortalecimento da democracia e da cidadania ativa e consciente,
para a expressão cultural e para a realização pessoal.
Finalmente, quanto à utilização do termo competência como tradução
para literacy no campo informacional, há que se destacar a existência de estudos exaustivos sobre o tema na literatura internacional, o que justifica que não
venhamos aqui a nos debruçar novamente sobre o mesmo assunto. Contudo,
também há que ser mencionado que tais estudos têm, via de regra, se mostrado
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
inconclusivos em apontar uma convergência consensual quanto à utilização do
termo no ambiente informacional.
No Brasil, as pesquisas sobre literacias emergentes têm sido a tônica da
pesquisa do NAP Escola do Futuro, da Universidade de São Paulo, sob a coordenação científica da pesquisadora Brasilina Passarelli. Para ela, na passagem
da cultura apenas letrada para a cultura das diferentes mídias e da convergência entre elas (JENKINS, 2008), o conceito de literacia obrigatoriamente
se expande para incorporar as novas características e potencialidades da web
2.0, marcada por novas lógicas e narrativas. Nestas, ganham corpo a hipertextualidade, a interatividade, a desterritorialização e a horizontalização das
relações de poder. Para a interação em rede, os indivíduos têm que ser capazes
de comunicar-se nas e pelas novas linguagens, reconhecendo as práticas sociais
e os gêneros textuais envolvidos nas interfaces multimidiáticas.
Nessa direção e a partir dos aportes teórico-metodológicos de autores
como Bruno Latour (2005, p.131), para quem “(...) uma rede social não é o
que está representado no texto, mas quais leituras do texto podemos tirar do
revezamento dos atores como mediadores destas ações”, tornou-se pertinente
e consistente pesquisar e refletir sobre as literacias digitais com o suporte conceitual e teórico-metodológico da etnografia virtual (HINE, 2000). Dessa
perspectiva, os instrumentos tradicionais da pesquisa etnográfica são chamados a colaborar na análise e interpretação das atitudes, comportamentos,
apropriações, usos e produção de conhecimentos em comunidades virtuais
de aprendizagem e de prática, aos quais se reporta a parte mais substancial
das pesquisas atuais do NAP EF/USP.
Ressalte-se que, do ponto de vista metodológico, a etnografia veio a
colaborar decisivamente para a compreensão do próprio conceito das literacias emergentes na web, permitindo a sua investigação e interpretação no
momento mesmo da sua criação na virtualidade da vida contemporânea.
Originada e adaptada a partir dos métodos tradicionais da Antropologia,
a etnografia virtual pressupõe a coleta e o registro sistemático de dados a
respeito da cultura investigada – com a qual o pesquisador estabelece estreitos contatos por meio de uma experiência de imersão cultural radical –, ao
mesmo tempo que mantém o distanciamento do seu olhar sobre o outro.
Entretanto, para além do estrito foco descritivo denso, incorpora, também, a
interpretação e a crítica dos fenômenos educativos, adquirindo a sua própria
intencionalidade, a partir da completa imersão e da observação participante
do pesquisador nas comunidades e culturas virtuais.
A pesquisa etnográfica em ambientes digitais já se configura como uma
relevante abordagem metodológica, a qual vem sendo adotada em diversos
contextos e países, viabilizando a observação, a coleta de dados, a análise crítica e a interpretação da cultura produzida pelos agentes conectados via Internet,
no interior da qual se reconfiguram identidades, sociabilidades e novas formas
de reterritorialização da vida contemporânea.
As relações virtuais estabelecidas pelos atores em rede (LATOUR, 2005)
ensejam e viabilizam a construção de novas identidades pelos sujeitos em
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
interatividade. Essas, dada sua fluidez, multiplicidade e impermanência, conferem
aos indivíduos possibilidades novas e ampliadas de experimentar o “real”, configurando aquilo que Shirley Turkle (1995) denominou de “cultura da simulação”.
A emergência desses fenômenos e sua constante alteração, por serem tão
próximos, contemporâneos e presentes na realidade cotidiana de grande parte
da população mundial – e por não permitirem, assim, um mínimo distanciamento temporal –, trazem complicadores importantes para o seu registro e
análise, bem como para a interpretação sociocultural dos seus efeitos.
Importante exemplo disso são as constatações recentemente abordadas por
Shirley Turkle (2011) – pioneira em apontar os novos processos identitários dos
sujeitos no ambiente virtual – que, a partir de suas novas pesquisas, constata
certo esgarçamento, saturação, inconvenientes no uso do tempo e nas práticas
de socialização dos sujeitos e, consequentemente, tendências de esvaziamento no
uso das redes sociais. Observa-se, assim, que um espaço de apenas dezesseis anos
parece já ser suficiente para levar a importantes reconsiderações teóricas sobre o
futuro das práticas socioculturais mediadas pelos computadores e Internet.
3. Projetos de intervenção na educação e cidadania: o NAP EF/
USP na vanguarda na pesquisa-ação
O NAP EF/USP foi criado em 1989 (3) e instituído como Núcleo de
Apoio à Pesquisa em janeiro de 1993, como entidade já então subordinada
à Pró-Reitoria de Pesquisa da USP. Ao longo de todo esse período, suas atividades vêm sendo financiadas por agências oficiais de fomento à pesquisa
(CNPq, CAPES, FAPESP), além de contar com contratos e convênios com
instituições públicas e privadas.
O escopo do conjunto de seus projetos e pesquisas é permanentemente pautado pela busca da inovação no uso das tecnologias de informação e
comunicação (TICs) tanto nas suas interfaces com a educação formal e não
formal, quanto na implementação de ações voltadas à construção da cidadania e do protagonismo digital dos públicos beneficiários.
As ações do núcleo se fundamentam na proposta da pesquisa-ação, na
qual sujeito e objeto se conectam, com a profunda inserção do pesquisador
no meio pesquisado, buscando a ativa e efetiva participação da população observada, com vistas à emergência de novos conhecimentos sobre a realidade
(THIOLLENT, 1986: p.14).
Na “sociedade em rede” – uma das principais características estruturantes da contemporaneidade e que vem sendo permanentemente forjada desde
meados dos anos noventa do século passado – a educação, assim como todas
as outras dimensões da vida e da cultura humanas, passa a ser configurada
na ambiência de novos paradigmas. Nesse contexto, a educação à distância
(EAD) destaca-se particularmente enquanto fenômeno possibilitado pela convergência dos atores em rede, pela oferta e acesso a ferramentas e tecnologias
de informação e comunicação (TICs) e pelo desenvolvimento de ambientes
virtuais de aprendizagem (AVA) cada vez mais amplos e abrangentes. Nestes,
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
os estudantes são crescentemente instados a serem os construtores ativos do
seu conhecimento, processo no qual a intuição e a descoberta são elementos
privilegiados e fundamentais.
Cabe destacar que os projetos nos quais o NAP EF/USP vem se envolvendo – dadas as próprias demandas sociais e políticas do desenvolvimento
da cibercultura no Brasil – vêm ganhando dimensões cada vez mais robustas,
quer em termos de sua amplitude numérica de atendimento de agentes envolvidos, quer quanto aos objetivos e metas das ações propostas.
Nesse sentido, quatro projetos em plena vigência em 2011 merecem ser
particularmente destacados: a) O AcessaSP (financiado e gerido pela Secretaria
de Gestão Pública do Governo do Estado de São Paulo, instituído em 2000);
b) O Projeto EntreMeios São Bernardo do Campo (conduzido pela Secretaria
de Educação do município paulista de São Bernardo do Campo, iniciado em
2010); c) O Acessa Escola (também financiado e gerido pela mesma instituição
anterior, a partir de 2009); e d) O Programa Rede São Paulo de Formação de
Docente – REDEFOR (financiado e gerido pela Secretaria da Educação do
Governo do Estado de São Paulo, em conjunto com as universidades paulistas
USP, UNESP e UNICAMP, instituído em outubro de 2010).
Tratando de detalhar melhor o conceito, público-alvo, objetivo e abrangência de cada um desses programas e projetos, serão introduzidos a seguir alguns parágrafos específicos sobre eles.
3.1. Inclusão digital da população carente: Programa AcessaSP
Trata-se de um programa focado prioritariamente na inclusão digital e
no protagonismo social, a partir da disponibilização de equipamentos, infraestrutura e acesso à Internet gratuita, o que contribui para o desenvolvimento
social, cultural, intelectual e econômico dos cidadãos paulistas.
De dimensões gigantescas, o AcessaSP acumula indicadores tais como:
mais de 50 milhões de atendimentos em 10 anos de existência; mais de 2 milhões
de agentes cadastrados; 602 postos de atendimento (Infocentros e/ou Telecentros)
em funcionamento e 42 em implantação; 543 municípios paulistas atendidos e
1.172 monitores capacitados.
A execução do Programa se processa em dois diferentes tipos de
Infocentros: os municipais (em parceria com as prefeituras e geralmente implantados em bibliotecas da rede pública de equipamentos municipais) e os
Postos Públicos de Acesso à Internet (PoPAI’s). Estes últimos têm sido instalados em parceria com secretarias e órgãos do Governo do Estado de São Paulo,
tais como postos do Poupatempo, restaurantes Bom Prato, terminais e estações
de transporte coletivo (ônibus, trens, metrô), entre outros.
Além disso, o programa se dedica à produção de conteúdos educativos
(digitais e não digitais) e à promoção de ações de interesse comunitário com
o uso das TICs, contribuindo para a informação da população atendida e na
capacitação para o uso cidadão dos computadores, infraestrutura e Internet.
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
Figura 1. Portal do AcessaSP (http://www.acessasp.sp.gov.br/)
3.2. Programa Rede EntreMeios São Bernardo do Campo
Estruturado e operacionalizado a partir de convênio entre a Secretaria de
Educação da Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo e o NAP EF/
USP, busca promover a integração de uso das TICs nas escolas da rede pública
daquele município, atualizando o ambiente de aprendizado, com amplo envolvimento dos educadores e dirigentes das escolas públicas. Seu público-alvo é
formado por 600 professores, 170 diretores, 200 coordenadores, 60 orientadores
pedagógicos e 60 monitores de laboratórios.
Figura 3. Portal do Programa EntreMeios
(http://entremeios.futuro.usp.br/portal/)
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
3.3. Programa Acessa Escola
O contínuo desenvolvimento das TICs, e especialmente das ferramentas da web 2.0, tem viabilizado uma nova prática sociocultural, na qual
o sujeito assume, cada vez mais, papéis ativos de produção e compartilhamento de informações e sentidos, ampliando, assim, suas possibilidades
de comunicação e cooperação no âmbito de comunidades virtuais. Para
Jenkins (2008: p.67) é nesse momento em que “(...) uma rede de computadores possibilita a interação mediada entre pessoas, organizações e instituições...” que se pode falar na construção efetiva de “(...) redes sociais que
incorporam as características interativas das mídias digitais e constituem
uma cultura do digital”.
Nesse contexto de interação entre sujeito e meio social, surgem e se consolidam também as comunidades virtuais de aprendizagem, com culturas próprias, mediadas por práticas dialógicas que passam a abranger os diferentes
âmbitos da educação, seja ela formal, não formal ou informal.
Coordenado pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE),
o Programa Acessa Escola busca incentivar a inclusão digital de alunos da rede
pública estadual de ensino e o fortalecimento da autonomia do aprendizado,
contribuindo para a inserção desse público de maneira colaborativa na cultura
digital, por meio do uso da Internet na escola. Atende a 239 municípios paulistas, beneficiando cerca de três milhões de estudantes, professores, pais e moradores das comunidades beneficiárias.
Figura 2. Portal do Programa Acessa Escola
(http://acessaescola.fde.sp.gov.br/)
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
4. O Observatório da Cultura Digital: emergência das abordagens contemporâneas na investigação empírica
O desenvolvimento da cibercultura no Brasil e o adensamento de
experiências com coletivos digitais conduziram à necessidade da busca da
compreensão científica do universo midiático da “sociedade em rede” e suas
conexões com as novas formas do ensinar e do aprender. Como visto, no
âmbito do NAP EF/USP, tais demandas se concretizaram na instituição do
Observatório da Cultura Digital, como lugar privilegiado de estudos e pesquisas teórico-metodológicas a respeito das diferentes literacias informacionais (WARSCHAUER, 2003), das novas formas de produção e de relações
de autoria individual e coletiva do conhecimento em ambientes web e das
hibridações nas fronteiras culturais produzidas pelos novos atores em rede
(CASTELLS, 1999; LATOUR, 2005; PASSARELLI, 2010).
Tal perspectiva desde logo exigiu a adoção de guias metodológicos pautados pela etnografia, tanto no ambiente virtual (netnografia ou etnografia
virtual), quanto na realidade física presencial, sempre na busca de investigar
os comportamentos e movimentos dos atores mergulhados na cultura digital.
As pesquisas desenvolvidas no âmbito do Observatório da Cultura
Digital compreendem a Internet como espaço onde a cultura é permanentemente criada e recriada e os valores, sentidos, conhecimentos, narrativas e
representações são resignificados pela interação dos atores em rede.
A atuação neste ambiente exige uma postura de total imersão e a observação participante do pesquisador, ao mesmo tempo que impõe a necessidade do
distanciamento do olhar na interpretação da nova cultura emergente. Tal conjunto de posturas e perspectivas vem sendo garantido pela crescente incorporação da
etnografia virtual no estudo do mundo e da cultura digital (HINE, 2000).
Sob esse olhar, as pesquisas buscam identificar, interpretar e compreender o modo como os atores em rede constroem e desenvolvem novos hábitos,
usos, sentidos e narrativas e a maneira como se apropriam das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs)
Entre suas principais ações, o Observatório da Cultura Digital já produziu e disponibilizou à academia e à sociedade: a) livros e coletâneas publicadas,
com destaque para aqueles produzidos em pareceria com a SENAC SP Editora
(4); b) relatórios analíticos sobre os resultados da Pesquisa Online – PONLINE,
realizada anualmente desde 2002 pela coordenação do Programa AcessaSP (5);
c) Teses e Dissertações junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
(PPGCOM ECA USP) (6), e d) artigos científicos publicados em periódicos
especializados, Congressos, Simpósios e Encontros Nacionais e Internacionais.
Em seu projeto mais recente, o NAP EF/USP passou, a partir de fevereiro de 2011, a contribuir com pesquisas que visam incluir a abordagem da
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
etnografia virtual na compreensão, interpretação e avaliação das interfaces,
usos, apropriações e construção de sentidos e narrativas por frequentadores de
cursos formais de educação à distância. Aliou-se, dessa forma, ao Programa
Rede São Paulo de Formação Docente – REDEFOR.
Esse programa tem como objetivo oferecer cursos de pós-graduação para
docentes da rede pública de ensino do Estado de São Paulo, a partir de convênio firmado entre o Governo do Estado e as três universidades públicas paulistas (USP, UNICAMP e UNESP). No conjunto, são ofertados dezesseis cursos
de pós-graduação, sendo treze nas disciplinas curriculares das áreas abrangidas e três de gestão. Os cursos são oferecidos na modalidade à distância, mas
contam, também, com encontros e avaliações presenciais periódicos. Possuem
duração de um ano, com carga horária total de 360 horas.
Na sua primeira edição, no final do segundo semestre de 2010, o
REDEFOR contou com a oferta global de pouco mais de 9 mil vagas, as quais
foram disputadas por cerca de 50 mil candidatos.
Figura 4. Portal do REDEFOR ( http://redefor.usp.br/ )
5. Uma visão do futuro
Na ambiência da nova ordem de acontecimentos da sociedade em rede,
o NAP EF/USP construiu, ao longo de sua trajetória, uma perspectiva de inserção social ímpar, a qual lhe permite intervir diretamente sobre a realidade
da inclusão digital brasileira e sobre as literacias emergentes na web e, ao mesmo tempo, refletir criticamente e avaliar sua ação e interação com o contexto
sócio-histórico e econômico em que atua.
Constitui-se, assim, em um importante “ator” na história da Cibercultura no
Brasil, tendo ocupado, em muitos momentos, posições de vanguarda, especialmente
durante a primeira “onda” da implantação e desenvolvimento da Internet no País,
onde as atenções focavam as políticas de mitigação dos efeitos da exclusão digital.
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
Conduziu, nesse ambiente de digital divide, pioneiras e abrangentes iniciativas de
acesso gratuito a equipamentos e infraestrutura de comunicação e informação e, ao
mesmo tempo, de formação de professores para o uso de ferramentas digitais.
Atualmente, concentra seus esforços no estudo e na pesquisa das redes
sociais, com foco nas literacias emergentes na web 2.0, entendendo que novas
lógicas e semânticas estão sendo inventadas e escritas na virtualidade da sociedade em rede, por novos atores em rede. Desvendar, interpretar e compreender
esses fenômenos no momento mesmo em que surgem e se desenvolvem é o
desafio que se impõe hoje ao NAP EF/USP. E, também, a cada um de nós.
Referências Bibliográficas
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação:
economia, sociedade e cultura; v.1; Trad. Roneide Venâncio. São
Paulo: Paz e Terra, 1999.
GILSTER, Paul. Digital literacy. San Francisco, CA: John Willey &
Sons, 1997.
HINE, Christine. The virtual ethnography. London: Sage, 2000.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.
LATOUR, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network theory. New York: Oxford University Press, 2005.
PASSARELLI, Brasilina. Literacias emergentes nas redes sociais: estado da arte e pesquisa qualitativa no observatório da cultura digital.
In: PASSARELLI, Brasilina; AZEVEDO, José. (org.). Atores em Rede:
Olhares Luso-Brasileiros. São Paulo: Editora SENAC, 2010.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez
Editora, 1986.
TURKLE, Sherry. Alone together: why we expected more from technology
and less from each other. New York: Basic Books, 2011.
__________. Vida no ecrã: a identidade na era da Internet. Lisboa:
Relógio d’Água, 1995.
WARSCHAUER, Mark. Technology and social inclusion: rethinking the
digital divide. Massachusetts: MIT Press, 2003.
Notas
1 - Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Pesquisa TIC Domicílios 2010.
Disponível em http://cetic.br/usuarios/tic/2010-total-brasil/index.htm. Acesso
em 24 de março de 2011.
2 - Conforme a publicação “Internet World Stats: Usage and Population Statistics”. Disponível
em http://www.internetworldstats.com/stats.htm. Acesso em 24 de março de 2011.
3 - Sob a coordenação científica de Fredric M. Litto, professor titular da ECA/USP.
Inicialmente, foi denominado Laboratório de Tecnologias de Comunicação,
do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão daquela escola. A partir de
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
setembro de 2006, a coordenação científica do núcleo passou a ser exercida por
Brasilina Passarelli, professora titular do Departamento de Biblioteconomia e
Documentação da ECA/USP.
4 - Os livros publicados pelo NAP EF/USP em parceria com a Editora SENAC,
São Paulo, são: PASSARELLI, Brasilina. Interfaces digitais na educação: @
lucin[ações] consentidas. 2007; PASSARELLI, Brasilina (org.). Inclusão
digital e empregabilidade. 2009; TORI, Romero Educação sem distância. 2010;
DIMANTAS, Hernani. Linkania: uma teoria de redes. 2010; GUZZI, Drica.
Web e participação: democracia do século XXI. 2010; PASSARELLI, Brasilina;
AZEVEDO, José (org.). Atores em Rede: Olhares Luso-Brasileiros. 2010 (em
convênio com a Universidade do Porto, Portugal).
5- Este trabalho permite investigar perfis de usos e hábitos de consumo de Internet,
bem como acompanhar indicadores de evolução e desempenho dos atores
beneficiados ao longo do tempo, gerando subsídios para a gestão do próprio
programa e potencializando a análise comparada da iniciativa com as verificadas
em outros contextos nacionais e internacionais de políticas de inclusão digital.
7- Nos últimos cinco anos, as dissertações orientadas pela Coordenadora de Pesquisa
do NAP EF/USP, Prof.ª Dr.ª Brasilina Passarelli, foram: BLISKA, A.V. Capital
Social em Comunidades Virtuais de Aprendizagem e de Prática. (Dissertação de
Mestrado). ECA/USP, São Paulo, 2007; BESKOW, C. A. Comunicação, educação
e inclusão digital: quem “tá ligado” na escola estadual paulista? Uma análise da
interatividade no projeto TôLigado: o jornal interativo da sua escola. (Dissertação
de Mestrado). ECA/USP, São Paulo, 2008; FREIRE, C.P. Critérios de Reputação
em Coletivos Digitais: estudo de caso na disciplina de criando comunidades virtuais
de aprendizagem e de prática. (Dissertação de Mestrado). ECA/USP, São Paulo,
2009; CAPOBIANCO, Ligia. Comunicação e literacia digital na internet: estudo
etnográfico e análise exploratória de dados do Programa de Inclusão Digital
AcessaSP – PONLINE. (Dissertação de Mestrado). ECA/USP, São Paulo, 2010;
CHICA, Cristiane. Formação continuada de mediadores do Programa de Inclusão
Digital AcessaSP. (Dissertação de mestrado). ECA/USP, São Paulo, 2010.
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Supercérebro flusseriano nos
Alternate Reality Games
Superbrains flusserian in Alternate Reality Games
Thaiane Moreira de Oliveira | [email protected]
Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Estácio de Sá (2007). Mestre em Comunicação
Social pela Universidade Federal Fluminense. Vice-coordenadora editorial da Revista Ciberlegenda e cocoordenadora do Programa de Extensão “Polo de Pesquisa e Produção em Jogos Eletrônicos e Redes
Colaborativas (P3)”, do curso de graduação em Estudos de Mídia (UFF). Pesquisa, atualmente, Alternate
Reality Games, tendo como foco questões sobre subjetividade e cognição a partir da transitoriedade entre
a realidade e a ficcionalidade de gêneros de jogos pervasivos.
Resumo
A proposta deste artigo é desenvolver uma reflexão acerca dos jogos de realidade alternada (Alternate Reality
Games) a partir das contribuições filosóficas de Vilém Flusser. O objetivo é elucubrar considerações sobre os
argueiros (produtores e jogadores) comparando-os a geração utópica de Flusser como membros pertencentes ao
supercérebro capazes de gerir novos significados e representações em um meio predominantemente tecnológico.
Palavras-chave: Vilém Flusser; Filosofia; Games Studies.
Abstract
The purpose of this paper is to develop an understanding about the Alternate Reality Games based on the philosophical
contributions of Vilém Flusser. The objective is contemplate considerations about the producers and players of ARG’s
against the utopian generation of Flusser as members belonging to the super-brain able to manage new meanings and
representations in a predominantly technological environment.
Keywords: Vilém Flusser; Philosophy; Games Studies.
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
O ludus como objeto cultural na escalada da abstração
A palavra ludus, de ludere, tem origem no latim clássico e refere-se a todas
as instâncias da não-seriedade, e particularmente no sentido de ilusão e de simulação (HUIZINGA, 1938/1980, 41). Este elemento sempre esteve presente na vida
dos sujeitos desde os tempos primitivos até os dias atuais. Tomando o jogo como
um fenômeno cultural, que é cultura e produz cultura, Johan Huizinga reconhece
o elemento lúdico como uma categoria primária da vida, mais antigo do que a
própria cultura. Mas isto não quer dizer que a cultura “nasça do jogo, como um
recém-nascido se separa do corpo da mãe. Ela surge no jogo, e enquanto jogo, para
nunca mais perder este caráter” (Op. Cit, 193). Já para Flusser, o homem como
ente que brinca e joga se diferencia dos animais pela falta de seriedade e “enquanto jogador rebela-se o homem contra essa seriedade. E é tanto mais rebelde, de
quanto mais jogos participa. Esta é a dignidade do homem” (FLUSSER, 1967, 6).
Flusser, neste mesmo artigo publicado no Caderno Suplemento Literário do Jornal
O Estado de São Paulo, em 1967, conceitua os jogos como sistema composto de
elementos combináveis de acordo com regras. Para ele, a soma desses elementos
forma o repertório do jogo e a soma das regras forma a estrutura. Complementa
que a totalidade das combinações possíveis do repertório é a competência do jogo
e a totalidade das combinações realizadas é o universo deste. Esta conceituação de
Flusser vai ao encontro de Johan Huizinga ao afirmar que o jogo é:
Uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados
limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas
absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de
um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente da vida
quotidiana. (HUIZINGA, 1980, 33)
Huizinga ainda acrescenta que o princípio do jogo tem como característica principal a atribuição de representações da realidade (Op. Cit., p. 7). Desta
maneira, é possível afirmar que o elemento lúdico está presente desde o surgimento da civilização. Sob um aspecto antropológico, ainda é plausível inferir
que nas civilizações primitivas o ludus já estava presente, pois o homem primata se utilizava da capacidade de representar através dos sons de linguagem e de
gestos. Dialogando com Vilém Flusser, a pré-história tem como característica
a tridimensionalidade pela qual “o homem natural encontrava-se mergulhado
no espaço-tempo, no mundo de volumes que se aproximam e afastam” (2008,
15), através da manipulação dos objetos por suas mãos. É pela manipulação
dos objetos que se inicia o processo de escalada da abstração, sendo este o primeiro estágio conceituado pelo filósofo tcheco-brasileiro como abstração do
tempo. O segundo gesto abstraidor, para Flusser, é a visão através da representação destes objetos em imagens, como as pinturas de Lauscaux, pertencentes
ao nível da bidimensionalidade. Tanto a manipulação dos objetos como sua
representação em imagens estão imbuídos do caráter lúdico.
Para o filósofo, o terceiro gesto abstraidor é a invenção da escrita – a
conceituação – ao qual transforma-se o imaginável em concebível, imagens
em conceitos. Para Flusser, a conceituação abstrai a largura da superfície
através dos dedos das mãos e pertence ao nível da unidimensionalidade pelo
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
qual o “homem transforma a si próprio em homem histórico, em ator que
concebe o imaginado” (Op. Cit., p. 17)1.
A própria invenção da escrita, em sua capacidade de representação abstrata e arbitrária de uma palavra ou idéia demonstra a apropriação do ludus
em atribuir um significado – um conceito – ao significante – imagem acústica
(SAUSSURE, 1970). Ou ainda, segundo a concepção de Peirce, uma representação na mente do interpretante de um signo equivalente ao objeto podendo
este ser perceptível, imaginável ou inimaginável (PEIRCE, 1995, 46).
O ludus na Antiguidade Clássica
Porém, o sentido mais aproximado de jogo como fenômeno lúdico conforme apresentado por Huizinga, remonta na Antiguidade Clássica, na Grécia
e Roma. É possível encontrar o lúdico, nesta época, em três aspectos distintos:
Nos jogos competitivos, na mitologia e no próprio pensar filosófico.
Jogos Olímpicos e Política do Pão e Circo
Na Grécia, os jogos estavam presentes em praticamente toda cultura.
Um exemplo de atividade cultural com elementos lúdicos foram os Jogos
Olímpicos, considerado sagrado, pois era realizado em homenagem a Zeus,
o deus mais importante na cultura grega. Os gregos consideravam de grande
importância tais competições, chegando a promover tréguas sagradas para não
prejudicar a realização dos jogos. Com isso, conclui-se que, essas competições
sagradas para os gregos, apesar de seu caráter lúdico, eram consideradas como
fenômenos imbuídos de seriedade.
Os gregos distinguiam competições sérias, que constituíam a vida social helênica, de jogos voltados para o caráter pueril de brincar pelo uso das
palavras agon e paidia, respectivamente. Esta distinção também fora abordada
por Platão, levantando uma terceira palavra que designaria os jogos: Paidéia.
Para o filósofo, paidia corresponderia ao sentido pueril de brincar enquanto a
paidéia seria correspondente ao caráter de coisa séria (JAEGER, 1989, 630).
Huizinga explica que “o fato de a maior parte das competições dos gregos serem realizadas com uma seriedade mortal não é razão para separar o agon do
jogo, ou negar o caráter lúdico do primeiro” (HUIZINGA, 1980, 56).
Assim como na Grécia, para a sociedade romana os jogos não eram
apenas um fenômeno casual, eram necessários para a própria cultura; faziam
parte dela, pois os jogos também eram sagrados e tinham como função social
a consolidação e garantia da prosperidade. O espírito lúdico é constatado
claramente no grito por panen et circenses, em uma tentativa política imperial
de contornar uma possível rebelião de desempregados em massa, através da
qual oferecia, ao povo, alimentação, espetáculos de gladiadores e corridas de
cavalos (HUIZINGA, 1980, 198).
Esses jogos competitivos – primeiro na Grécia e depois em Roma –
refletiam um ideal de superioridade, tanto do domínio e demonstração de
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poder, quanto da superação de sua própria corporeidade humana e da elevação do espírito, já que estes eram considerados sagrados e utilizavam mitologias como cumprimento de votos.
Nos mitos e ritos
A mitologia, tanto grega quanto romana, era utilizada como forma de
sublimação ontológica. Buscava-se, através de representações, a explicação da
realidade quando esta não estava expressa pela razão. Essas representações da
realidade eram sempre imbuídas do espírito fantasioso e lúdico, como explica
Huizinga ao constatar que o lúdico também está presente no cultivo dos mitos
e ritos, que joga no extremo limite entre a brincadeira e a seriedade.
A mitologia baseia-se em tradições históricas e lendárias, perpassadas de
gerações, associada para explicar os fenômenos naturais e ontológicos, em sua
maioria através de enigmas, utilizando danças e cantos como formas de expressão – também fenômenos dotados de ludicidade em sua natureza.
Após as navegações, expansões comerciais e contatos entre povos e culturas diferentes, a mitologia passou a ser contestada. Neste sentido, sua principal
opositora fora a filosofia, que havia surgido pelos mesmos fundamentos da própria mitologia: explicação das causas através da natureza, pelos pré-socráticos.
E na filosofia
Após buscar várias acepções do jogo, Huizinga demonstra que na construção do pensamento na Antiguidade, o caráter lúdico também se fazia presente, no jeux d’esprit (HUIZINGA, 1980, 165). As rivalidades escolásticas filosóficas incutem a natureza agonística da competição desde a Antiguidade. A
contestação da mitologia pela filosofia era tracejada de fenômenos lúdicos, não
apenas os agonísticos, no sentido de superação e competição com os mitos. Na
própria narrativa filosófica eram encontrados elementos que foram utilizados
de maneira lúdica, como intertextualidades que baseavam-se na mitologia para
subvertê-la, a exemplo da Apologia de Sócrates, escrita por Platão (PLATÃO,
s/d). É possível, também, observar o elemento lúdico na retórica sofista, que
buscava não apenas a exibição de seus conhecimentos, como também, e principalmente, a derrota de seus rivais nas competições públicas. Suas proezas
consistiam em derrocar o adversário através de uma rede de argumentos bem
estruturados, intimamente relacionado com o enigma, cuja apropriação já havia sido sacralizada na própria mitologia. À medida que as sociedades vão se
desenvolvendo, o enigma adquire sentidos distintos que vai da base filosófica
da busca pelo universal ao simples entretenimento.
Contudo, o fenômeno lúdico não é encontrado apenas na retórica sofista. Platão utilizou não apenas intertextualidades como elemento lúdico em
suas obras. O ludus em Platão também se fazia presente em suas artimanhas do
jogo e do enigma em seus personagens inventados e/ou representados em suas
obras, assim como no uso de metáforas, como na Alegoria da Caverna. A própria metáfora em si é um enigma que não apenas possui todas as características
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de jogo conceituadas por Huizinga e citadas aqui neste trabalho, como as
transcende. Ou seja, é uma atividade voluntária, exercida para além dos limites espaço-temporais e, apesar de ser dotada de um fim em si mesmo, utiliza
outro significante para conotar além de si através de uma narrativa que a faz
diferente da vida quotidiana.
Em A República, Platão, fazendo uso de sua representação socrática, afirma que o jogo é a única forma de se atingir o logos, ou seja, o conhecimento.
No diálogo entre Sócrates e Glaucon, afirma-se que o jogo é o método ideal de
instrução, em contraposição ao ensinamento forçoso que tende a não permanecer na alma (PLATÃO, 1991). Porém, não apenas Platão empregou o caráter
lúdico em seu pensamento. Diversos outros filósofos, impossíveis de listar neste
trabalho, utilizaram e utilizam o lúdico para a estruturação de seu pensamento
epistemológico, quer o tendo como objeto reflexivo ou exposto em seu estilo de
pensar ou seu estilo de escrever, o que ganharia o termo de filosofia lúdica ao
se opor “a todo espírito pesadume e ao sprit de sérieux, às vezes equiparando a
todas as outras filosofias, e talvez toda a filosofia” (MORA, 2001, 1809), ao se
opor a rigorosidade da escrita e do pensar predominantemente filosófico.
Diversão lúdica da pós-história
Séculos após a Antiguidade e a Era Medieval – que, filosoficamente, consistia em sincretizar o pensamento filosófico com crenças religiosas,
tendo como expoentes principais São Tomás de Aquino e Santo Agostinho
– a Renascença trouxe de volta os ideais humanistas e a busca centrada no
homem e não mais em Deus. Este período ficou caracterizado pela exaltação da Ciência para a compreensão dos fenômenos naturais do universo.
Filosoficamente, neste período, importantes correntes surgiram atreladas ao
pensamento científico, como o empirismo inglês, tendo como principal expoente John Locke e o racionalismo, inaugurado por Descartes, que duvidava da própria dúvida para combatê-la.
Paradoxalmente, é a partir da dúvida dogmática de Descartes que a
soberania da ciência foi instaurada em supressão da fé, visto que Descartes
pretendia ao duvidar da dúvida, combater a onda cética que duvida da existência divina. Para Flusser, “a fé poderá ser definida como a participação de
um único jogo e a recusa de traduzir para outros”. (FLUSSER, 1967, 5). O
racionalismo inaugurado por Descartes deu início ao pensamento científico
moderno, pelo qual se valorizava a primazia do pensamento lógico e progressivamente linear, da qual a única relação do homem com o mundo é através
da racionalidade cientifica, em contraposição à relação mítica do homem
com o que lhe é superior e inatingível, como era nas sociedades mitológicas.
Na racionalidade científica já não há mais a revelação das informações dadas
por seres metafísicos (mythos), e sim, um nivelamento de informações atribuído a epistemologias logicamente tangíveis. E é neste universo da racionalidade científica que o ludus ganha um caráter de não-seriedade e perde a sua
influência sobre as sociedades, em sobreposição da seriedade da razão científica. Porém, a ciência, ao isolar uma hipótese e tentar descobrir a realidade
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a partir dessa premissa, baseia-se em um recorte do real, portanto, adquire a
ficcionalidade em seu caráter (BERNARDO, 2008, 126). Em diálogo com
Flusser, com a soberania da cientificidade nas sociedades modernas, o logos
já não se torna alcançável pelo ludus, e sim, pela experiência lógico-empírico-racional calcada pela ciência, da qual Flusser atribui como parte do reino
dos conceitos, oriundo do mundo da ficção (FLUSSER, 2007, 113). Ou seja,
ao conceituar o sensível e o perceptível em representações de símbolos (seja
imagéticos, numéricos ou léxicos), a relação do sujeito com o objeto perde
seu caráter de factualidade, adquirindo o de ficcionalidade.
Contudo, este processo de detrimento do ludus, segundo Huizinga, não
teve início apenas com a inauguração do pensamento soberano da ciência. O
enfraquecimento do lúdico ocorre a partir do momento em que o caráter de
seriedade assume a condução dos jogos, por exemplo, nos esportes. A atividade
esportiva, como forma de superação das possibilidades da corporeidade humana, não tem seu início na Revolução Científica pós-renascimento, mas remonta
desde o período greco-romano, como explicitado anteriormente, através dos
jogos olímpicos baseados em grandes espetáculos competitivos. No entanto,
a partir do momento em que o mythos deixa de mediar a relação do homem
com o mundo, o caráter de seriedade desfaz qualquer possibilidade de atuação
do ludus pela diversão e assim, perde sua legitimidade para a competição. Para
Flusser, a prática esportiva está imbuída não de diversão, mas de diversificação,
de mutação da natureza, que gera aos espectadores dos espetáculos dos gladiadores da atualidade, um nojo por se tornarem instrumentos maquínicos dos
atletas em forma de seus corpos em constante superação de si.
Os praticantes, os esportistas “sensu stricto”, submetem o seu corpo a técnicas
de diversificação aparente (tornam-se nadadores, máquinas para levantar peso
ou equilibristas de bolas de futebol). Na realidade enquadram o seu corpo na
universalidade dos instrumentos. Mas o esporte revela o seu verdadeiro aspecto,
se visto a partir da assistência. Os corpos humanos, convertidos em instrumentos,
em máquinas de produzir “records”, são expostos à “contemplação” da assistência
para divertí-la. No disfarce de adoração idolátrica de máquinas excepcionalmente
eficazes (Pelés, Eder Jofres) esconde-se o nojo existencial do homem degradado em
instrumento. (FLUSSER, 1963, 3)
Para Flusser, a diversão não libertaria o homem do predomínio industrializante, mas o intensificaria, transformando-o em instrumentos na
universalidade, ou seja, de uma só versão. Portanto, “a diversão é forma de
aversão ao universo” (FLUSSER, 1963, 1).
Cada vez mais vemos a diversão, em seu caráter de não-seriedade se
tornar parte do predomínio da indústria, visto que o segmento do entretenimento é um dos que mais cresce comercialmente na contemporaneidade. Para
Flusser, “um dos sintomas mais inquietantes da decadência da civilização tecnológica é sua busca de diversão” (1963, 2). E neste sentido, constata-se uma
exploração de jogos eletrônicos que buscam cada vez mais uma aproximação
da realidade, com efeitos de real (BARTHES, 1984), em sua ficcionalidade,
produzidos através de imagens técnicas, cunhada de sociedade telemática por
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Vilém Flusser. A este período em que há a supremacia das imagens técnicas
em supressão da escrita, Flusser denomina como Pós-história, não em um
sentido de finitude histórica, mas sim como uma inversão da própria história em espetáculo e de eventos em programas (FLUSSER, 2008, 59). Para
Flusser, essas imagens espetaculares da pós-história permitem evitar entrar
em entropia, contudo “desde já, a nossa cobiça de sensações (...) sugere que o
tédio começa a se manifestar” (Ibid, 62).
Uma leitura flusseriana dos Alternate Reality Games
Um destes produtos, que mais permite escapar da entropia pela diversão,
porém, sem se desvincular plenamente da transformação da história em espetáculo, oferecendo sempre experiências reais (porém artificiais em sua essência)
através da transitoriedade entre realidades e ficcionalidades, são os Alternate
Reality Games (ARG). Os Jogos de Realidade Alternada, em tradução para o
português, são jogos originados da experiência dos Role Playing Games (RPGs),
no qual os jogadores constroem e se tornam parte da narrativa do jogo.
O próprio conceito de “Realidade Alternada” marca uma dissolução da
fronteira entre o real e o virtual, entre a verdade e a ficção, sob a égide da ludicidade. Para Flusser, a diversão serve para tapar a realidade, porém o ARG não
apenas tapa a realidade, mas também a reconstrói, transformando a própria
realidade em diversão universal, ou seja, verte o jogo em um único verso a ser
experimentado através da utilização de tecno-imagens que buscam reagrupar
pontos em superfícies, gesto que vai do abstrato para o concreto.
Não existem regras bem definidas sobre o ato de se jogar um ARG,
porém, sua característica principal, como uma máxima que possibilita o desenvolvimento deste gênero de jogo, é o fingimento. Ou seja, fingir que o jogo
não é um jogo, chamado de TINAG (This Is Not A Game), no qual simulacros
vão sendo construídos para gerar um efeito de real, segundo conceito estabelecido por Jean Baudrillard. Em um mundo onde não apenas os signos estão
virtualizados, mas onde existe uma virtualidade de tudo, é difícil definir o
que é realidade e o que deixa de ser realidade. Ou seja, quando se fala em
realidade concreta e realidade virtual não se pode limitá-las como conceitos
opostos pertencentes de barreiras sólidas que as separam. São barreiras cada
vez mais fluidas que se misturam na contemporaneidade. Porém, mantendo-nos na abordagem flusseriana, a vivência é uma realidade, mesmo em seu
caráter enganador. Observando os jogadores em seus fingimentos a fim de uma
maximização de suas vivências no jogo, dialogamos com Flusser, quando o
mesmo afirma que “de tanto fingirmos acreditar na ficção da vivência e da razão, acabamos perdendo a fé na realidade” (FLUSSER, 1966, 3). Os jogadores,
por estarem envolvidos na ficcionalidade de suas experiências, conscientemente
passam a suspender a crença (MCGONIGAL, 2003) sobre a própria realidade.
Com isso, é possível concluir que, assim como na realidade da vivência concreta, todo ato perceptivo oriundo do processo de se jogar um ARG é também
um ato de fabricação de sentidos, visto que não apenas somos intermediados
pela representação através de signos imagéticos, mas também representamos
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o mundo através de imagens produzidas pelo homem, seja no âmbito da realidade concreta ou virtualizada, ambas em sua ficcionalidade, observando-se,
assim, a completude da escalada da abstração flusseriana.
Através das pontas de seus dedos, os jogadores imergem em imagens
técnicas produzidas nas junções de pontos e pixels das telas de seus computadores, rumo a “zerodimensionalidade”. Abstraindo o comprimento da
linha, “o homem transforma a si próprio em jogador que calcula e computa
o concebido” (FLUSSER, 2008, 17). Em uma imaginação ao quadrado que
faz com que imaginadores e receptores através de seus “aparelhos munidos
de teclas computem os elementos pontuais do universo para formarem imagem e destarte permitirem que vivamos e ajamos concretamente em mundo
tornado impalpável, inconcebível e inimaginável” no limite extremo da abstração (FLUSSER, 2008, 45).
Geralmente, a trama narrativa presente nos ARG’s surge a partir de um
pedido de ajuda 2 de um dos personagens, na internet ou em espaços urbanos, o
que demonstra esta impalpabilidade da concretude da realidade. Nesta trama,
os jogadores são instigados a desvendar enigmas propostos por um personagem real envolto em uma narrativa de mistério capaz de gerir a imersividade,
metáfora derivada da experiência física de submergir na água e ficar envolvido
por uma realidade diferente (MURRAY, 2003, 97-99). Na busca de um objetivo em comum – o de desvendar os enigmas propostos pelo jogo – os jogadores
estabelecem uma relação de pertencimento nesta estrutura de “neotribalização” (MAFESSOLI, 2006) ao criarem laços em redes sociais da virtualidade
da internet (como Orkut, Facebook, Twitter, entre outras), como uma nova
forma de se fazer sociedade (LÉVY, 2002, 101). E é a partir desta comunidade, motriz de uma Inteligência Coletiva, que o pensamento e o conhecimento
vão construindo suas reconfigurações através de experiências que transcendem
ao indivíduo em redes sociais propícias e criadas com o propósito de dialogar
(compartilham suas hipóteses a partir de experiências individuais) e construir,
assim, novas informações para juntos alcançarem a resolução do enigma proposto pelo game. Sendo assim, os jogadores compartilham suas hipóteses, até
juntos chegarem a uma conclusão que decifre um enigma proposto pelo game.
Como integrantes da Inteligência Coletiva, os usuários/jogadores utilizam as
redes abertas de computação da internet para estruturação de laços sociais e
construção de seus conhecimentos, já adquiridos individualmente e compartilhados em redes sociais. Para Flusser, existem duas formas de jogos: fechados
e abertos (1967, 2). Os jogos fechados encerram-se em si mesmos, enquanto
os abertos evocam outros complementos para além de si. Portanto, jogos em
sua materialidade são fechados enquanto outras formas de expressões lúdicas,
como pensamento, são por sua natureza, abertas. Contudo, dialogando com
Peirce ao propor Categorias do Pensamento (PEIRCE, 1982), entende-se que
o interpretante final (ou seja, todas as possibilidades de produção sígnica na
mente do interpretante) é impossível de ser alcançado. Desta forma, nem o
pensamento, assim como conclui Flusser, neste artigo, é passível de se tornar
um jogo aberto, porém está em constante potencialidade de crescimento.
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O repertório do pensamento pode ser aumentado, e a sua estrutura pode ser modificada.
Não há, pois, coincidências necessárias entre a competência do pensamento e o
seu universo, e este universo pode, pois expandir-se indefinidamente. Mas não
infinitamente. Não pode haver jogos infinitamente abertos. Um jogo infinitamente
aberto, (um jogo realmente universal) teria um repertório infinito e uma estrutura
infinita. Nesse jogo de jogos hipotéticos haveria uma infinidade de peças, e isto implica
total injogabilidade (FLUSSER, 1967, 3).
Se apropriando dessa conclusão de Flusser, apesar do ARG se apresentar
como um jogo aberto, com inúmeras possibilidades de interação com a narrativa, ainda sim, ele se encerra em si mesmo, porém o conhecimento adquirido
por seus jogadores através do compartilhamento de experiências encontra-se
em constate devir de se tornar um jogo aberto.
Segundo Pierre Lévy, precursor do termo Inteligência Coletiva, “nesta perspectiva, o ciberespaço tornar-se-ia o espaço móvel das interações entre
conhecimentos e conhecedores de coletivos inteligentes desterritorializados”
(LÉVY, 1999, 29). Flusser também aborda esta questão da coletividade e conectividade dos nós, na rede telemática, em uma espécie de supercérebro, composta como um mosaico de cérebros individuais humanos.
Ora, como semelhante sociedade representaria salto da mente para nível novo, os
processos mentais seriam outros: seriam processos conscientes de si próprios, conscientes
do método dialógico da liberdade, conscientes da estratégia do jogo da liberdade,
utilizando o acaso como matéria prima das decisões deliberadas em diálogos com os
outros. A existência humana teria mudado: de ‘homo faber’ passaríamos a ‘homo
ludens’ (FLUSSER, 2008, 96).
A isto, Flusser refere-se a uma geração de homo ludens que através dos acasos, produzem com liberdade novas informações a partir das adquiridas e das
compartilhadas, permitindo o diálogo em um nível de criatividade consciente.
Sob o regimento desta nova lógica estruturada socialmente e culturalmente, os meios de comunicação estão em um processo de reformulação não
apenas de seus conteúdos, mas também de suas estratégias de alcance ao seu
público. Público formado por consumidores que foram sempre fieis e passivos
sob o domínio da comunicação massiva tradicional, porém na atualidade, se
tornaram ávidos por novas formas de se buscar e produzir suas próprias informações: os prosumers. Esta geração de formigas, como Flusser se refere a esses
novos consumidores das imagens telemáticas, tem como estratégia a distribuição de informações a seus pares a fim de permitirem o dialógico na sociedade,
cuja abstração do eu transformar-se-á em “nós outros”, sob forma de aventuras,
de situações imprevistas e criadas disciplinadamente (FLUSSER, 2008, 107).
Flusser projeta que esta geração de gente fascinada fitará os terminais
através de seus aparelhos telematizados cibernéticos, emancipada de sua
materialidade descorporificadamente atrofiada, possuída pela avidez insaciável por aventuras imaginárias sempre renovadas. Ela estaria a caminho
de sua concretização abstrata, em busca da diversão para combater o tédio,
a entropia do universo.
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Contudo, percebemos que as práticas publicitárias atuais buscam enquadrar os desejos e afetos através de proporcionamento inovador de vivências tangíveis ao envolvimento corpóreo desta nova ordem de consumidores,
que já não aceita imperativos publicitários, mas prioriza o consumo de experiências reais (mesmo que artificiais, em sua natureza). Desta forma, vemos
uma cultura da presença participativa sendo incorporada nas relações calcadas pelas práticas comunicacionais.
Por cultura da presença, compreendemos, através das contribuições de
Hans Urich Gumbrecht, como resultados de efeitos da relação que um sujeito estabelece com o mundo e que ocorrem através de experiências intensas
do seu corpo com as formas materiais, em contraposição aos efeitos de significado, baseados na relação entre um sujeito e o mundo estritamente através de representações simbólicas cognitivas. Logicamente, o filósofo alemão
buscava utilizar tais conceitos para explicar a metafísica do conhecimento.
Contudo, o nosso interesse recai sobre este conceito de presença para compreendermos o ato performático dos ARGs ao explorar experiências reais-artificiais do consumidor, pois para Zumthor, “a performance é o ato de
presença no mundo e em si mesma” (ZUMTHOR, 2000, 67). Ou seja, para
o autor, a performance deve ser compreendida como um jogo que envolve
recepção, percepção e leitura da mensagem e vai além do ato do emissor, perpassando também à ação do público, ao “engajamento do corpo” (Ibid., 22)
para quem vivencia a experiência dos jogos pervasivos, se nos apropriarmos
desta perspectiva para o objeto em questão.
Poderíamos relacionar esta comunidade de jogadores performáticos de
ARG’s aos “engajadores” da revolução tecnológica utópica a qual Flusser se
refere, porém com algumas ressalvas. O engajamento destes novos atores sociais, complementando as contribuições de Flusser, deverá ser proveniente não
da experiência imersiva, mas da experiência pervasiva que possibilita a ação/
reação/interação do homem com os produtores das imagens técnicas, mediado
por seus aparelhos e entre si. Esta ressalva refere-se à imersividade, visto que,
por mais que suas vivências transbordem os suportes tecnológicos do jogo para
experiências urbanas, os jogadores, voltados apenas para o núcleo de seus relacionamentos mediados por seus aparelhos produtores de imagens técnicas,
mergulham no divertimento proporcionado pelo jogo. Ao contrário do programa de seus aparelhos que tendem a se tornar, estes sim, cada vez mais pervasivos, ou seja, tendem a se difundir por toda a sociedade (virtual ou concreta)
por meio de diversos canais, tecnologias, sistemas e dispositivos.
(In) conclusões?
Seria esta geração de argueiros (jogadores de ARG) a “geração de formigas” a qual Flusser prevê? Mesmo diante dos diálogos aqui estabelecidos
com diversos autores, e principalmente com Vilém Flusser, ainda assim torna-se uma ficcionalidade proferir tal afirmação. Ou seja, seria uma parcialidade
particular negar ou afirmar tal suposição. Porém, no decorrer deste trabalho,
foi possível verificar que esta geração que surge composta majoritariamente
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por jovens nativos da cibernética que habituados à manipulação de imagens
técnicas e sintéticas apenas com a ponta de seus dedos, possuem algumas das
características apresentadas por Flusser.
Seus corpos atrofiados e desmaterializados, seus cérebros conectados ao
supercérebro, se relacionam mediados por aparelhos telematizados. Buscam
insaciavelmente por novas imagens, por novas experiências e aprenderam o alcance do logos pelo ludus, em tentativa de subtrair o tedioso de suas vivências.
Não jogam por competição, ou pela busca por prêmios3, ou pela superação
de seus limites corpóreos (corpos estes já com a ausência de corporeidade, incorpóreos), mas sim pela pura experiência de diversão, ou seja, de aversão ao
único verso, ao universo. Primam pela informação e aprenderam a dialogar,
através do compartilhamento de informações, porém, ainda não alcançaram a
liberdade criativa. Longe de qualquer implicação de passividade, este jogadores
tornam-se fantoches ativos de seus titereiros. Diante das questões elencadas ao
longo do trabalho, pode-se afirmar que, esta geração de argueiros, que experimenta e reconstrói sua realidade sob formas de aventuras criadas disciplinadamente, se não é a geração flusseriana, tem o potencial para tornar a ser.
Referências Bibliográficas
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Notas
1 - Cabe ressaltar que, apesar de apresentarmos linearmente a escalada
da abstração, segundo Flusser, a mesma não acontece com rigorosidade linear ininterruptamente. Segundo Flusser, a escalada da abstração foi sempre interrompida por passos de volta ao concreto. O
último passo rumo à abstração será inaugurado pela computação,
abordada posteriormente neste trabalho.
2 - A este pedido inicial, é atribuído pela comunidade gamer o nome
de Rabbit Hole, em alusão à obra Alice no País das Maravilhas de
Lewis Carroll (1865). Esta alusão indica a estratégia utilizada pelos produtores (ou puppetmasters, como são chamados – em outra
alusão aos titereiros, manipuladores de fantoches), para fisgar o seu
público-alvo, através de enigmas que permitem a transitoriedade entre a realidade e a ficcionalidade.
3 - Por mais que os jogadores afirmem a primazia pela experiência, é possível observar que, entre eles, existe uma competição subjetivada, através
da qual busca-se, como premiação, uma visibilidade entre a comunidade. Busca-se a liderança de solução dos enigmas, compartilhando
com os demais a fim de ganhar reputação entre seus pares, em uma
aproximação às teorias de Paul Lazarfeld, na década de 1940.
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Apropriação tecnológico e cultura digital:
O programa “Um computador por aluno”
no interior do nordeste brasileiro
Technological appropriation and digital culture: The “One
computer per student” program in northeast countryside
Ana Beatriz Carvalho | [email protected]
Doutora em Educação. Universidade Federal de Pernambuco. Professora do PPGEdumatec. Vinculada
aos grupos de pesquisa: Mediação Pedagógica (UFPB) e Novas Tecnologias na Educação (GENTE/UFPE).
Thelma Panerai Alves | [email protected]
Professora do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino – Centro de Educação (UFPE)
Resumo
O Programa Um Computador por Aluno (PROUCA) do Governo Federal brasileiro distribui laptops
educacionais nas escolas da rede pública. O objetivo deste artigo é apresentar as mudanças que ocorreram a partir da inserção dos laptops educacionais nas escolas públicas do interior do Nordeste brasileiro,
especificamente no Estado de Pernambuco, em cidades caraterizadas por baixos indicadores sociais e econômicos, que revelaram resultados interessantes, ultrapassando a proposta de inclusão digital e inovação
pedagógica previstos no PROUCA. A metologia utilizada foi a de pesquisa-ação, realizada durante o período de implementação do referido programa nas cidades de Caetés e Vitória de Santo Antão, localizadas
no interior de Pernambuco, na perspectiva dos Estudos Culturais. Os resultados indicam que a inserção
dos laptops educacionais em locais com baixos indicadores econômicos, sociais e educacionais promovem
mudanças na cultura local e nas formas de se relacionar e aprender.
Palavras-chave: inclusão digital, cibercultura, sociedade informacional.
Abstract
The One Laptop per Child Program (PROUCA) of theBrazilian Government delivers educational laptops in
public schools. The aim of this paper is to show changes that occurred after the insertion of educational laptops in
public schools from the Northeast of Brazil, specifically on Pernambuco, in cities characterized by low social and
economic indicators which showed interesting results, exceeding the digital inclusion proposal and PROUCA’s
provided educational innovation. The used methodology was action research, performed during the implementation of that program in cities of Caetés and Vitória de Santo Antão located on the contryside of Pernambuco,
on the Cultural Studies perspective. The results indicate that the insertion of laptops in locations of lower economic indicators, social and educational changes promotes local culture and ways of relating and learning. .
Keywords: digital inclusion, ciberculture, information society.
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
Introdução
A chamada sociedade em rede ou sociedade informacional (CASTELLS,
2003) reconfigurou as atividades do cotidiano, mediadas agora por artefatos
tecnológicos, inseridos em todos os níveis do cotidiano moderno: trabalho,
lazer, produção e, finalmente, educação, a ponto de ser impossível adiar mais
o debate sobre a necessidade de inserir as inovações tecnológicas no contexto
educacional e de promover o letramento digital da população. O conceito de
sociedade informacional propõe uma dimensão muito mais ampla do uso da
tecnologia e de sua apropriação por parte dos indivíduos da sociedade, afetando todas as instâncias do cotidiano. Considerando essa perspectiva, podemos
afirmar que as mudanças que ocorreram dentro do modo de produção e acumulação reconfiguraram o nosso modo de vida, uma vez que estes foram os
pressupostos de transformação de toda a sociedade, que passou de analógica
para digital em menos de meio século (NEGROPONTE, 1999). Neste contexto, a educação também deveria estar inserida no processo
de modernização, ou inovação tecnológica, sempre na perspectiva de um
processo contínuo de progresso e melhoria. Aqui, o uso dos artefatos tecnológicos é compreendido como algo externo ao homem, e não como uma
criação sua. Separamos a cultura da técnica e do econômico, porque é mais
fácil reduzir a complexidade a elementos estanques, e não tratar do tema em
uma perspectiva mais ampla.
Entendemos que a questão cultural é o cerne de qualquer discussão
sobre as mudanças paradigmáticas mediadas pelo uso das tecnologias e precisa ser pensada sobre a perspectiva do campo dos Estudos Culturais. A dimensão tecnológica e suas consequências para a sociedade são quase sempre
analisadas na perspectiva da técnica e das relações que se estabelecem entre
o ser humano e o artefato tecnológico. É uma concepção de tecnologia estranha ao homem, e não produto de sua construção, e, por essa estranheza,
produz “impactos” na vida cotidiana, considerada estável e equilibrada antes
do advento das tecnologias. (LÉVY, 1999).
A inserção das tecnologias digitais no cotidiano da sociedade informacional não é um processo neutro ou isento de conflitos e contradições.
Pelo contrário, as inovações tecnológicas representam a dinâmica das relações econômicas da sociedade e sua aplicação pode ser compreendida como
um instrumento de poder. Assim, a consolidação da sociedade informacional
provocou o surgimento dos excluídos digitais - pessoas que não têm acesso
à informação no mundo digitalizado. A existência desses grupos sem condições de acessibilidade, no que se refere aos conteúdos digitais, demandou a
construção de políticas públicas de inclusão digital, que buscam promover a
equidade e a universalização do acesso à informação. Para Cazeloto (2008),
o próprio conceito de inclusão digital já denota uma hierarquização, porque
o seu objetivo é levar a informatização a grupos sociais que, sem essa ação,
não teriam acesso às ferramentas telemáticas.
Uma das alternativas para promover ações de inclusão digital é utilizar o espaço da escolapara esse propósito , a partir da formação de alunos e
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
professores e do uso educacional das ferramentas digitais. Esta estratégia pode
ser encontrada em vários programas governamentais nos quais o foco é a mudança nas características da escola, nas práticas pedagógicas e nas formas com
as quais alunos e professores se relacionam com o conhecimento.
As políticas de inclusão digital que foram direcionadas para as escolas
apresentaram diversas configurações e, inicialmente, contemplaram a infraestrutura em equipamentos, com a implantação de laboratórios de informática.
Embora tenha sido uma iniciativa interessante, a existência de laboratórios não
significou a apropriação tecnológica esperada. Em 2005, surge o conceito de
1:1 apresentado por Negroponte (REFERÊNCIA), uma concepção inovadora
de que a inclusão digital poderia ser realizada com um computador para cada
aluno, através da distribuição de laptops educacionais no valor de cem dólares.
A ideia revolucionária foi rapidamente implantada em vários países do mundo
e, no Brasil, o projeto recebeu o nome Um Computador por Aluno.
A perspectiva de inclusão digital do Programa Um Computador por
Aluno está centrada no potencial de apropriação do aluno, que passa a ter controle do equipamento e da acessibilidade. Apesar do controle exercido em sala
de aula pelos professores, que determinam o tempo e o tipo de uso do laptop, a
proposta é que o aluno use a rede wireless da escola nos intervalos entre as aulas
e até mesmo depois delas. Neste sentido, é fundamental a possibilidade do
aluno levar o computador para casa, favorecendo a inclusão digital de seus familiares com o compartilhamento do computador. Na prática, a possibilidade
de uso do laptop em outros espaços além da escola (na praça, em casa, na casa
dos amigos) e com outras pessoas fora do círculo escolar (familiares e amigos),
permitiu que o processo de apropriação tecnológica fosse além das dimensões
pedagógicas previstas no PROUCA.
A partir desses elementos, podemos realizar uma reflexão sobre os desdobramentos do uso do laptop educacional nas escolas públicas, extrapolando dimensões diferentes da inovação pedagógica e da apropriação tecnológica
como fim. A inserção desses computadores em cidades do interior do nordeste,
por exemplo, revelam uma realidade multifacetada que não está restrita ao
escopo de uma política pública de inclusão digital.
O objetivo deste artigo é apresentar as mudanças que ocorreram a partir da inserção dos laptops educacionais nas escolas públicas do interior do
Nordeste brasileiro, especificamente no Estado de Pernambuco, em cidades
caraterizadas por baixos indicadores sociais e econômicos, que revelaram resultados interessantes que ultrapassam a proposta de inclusão digital e inovação
pedagógica previstos no Programa Um Computador por Aluno.
A metologia utilizada foi a pesquisa-ação realizada durante o período
de implementação do Programa Um Computador por Aluno nas cidades de
Caetés e Vitória de Santo Antão, localizadas no interior de Pernambuco, na
perspectiva dos Estudos Culturais. Os instrumentos de pesquisa utilizados foram: entrevistas com os sujeitos envolvidos (gestores, professores, pais e alunos)
e a observação participante, com registros de imagens, vídeos e anotações de
campo durante o período de maio a dezembro de 2010.
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
Os resultados da pesquisa indicam que a apropriação tecnológica dos
alunos é muito mais rápida do que a dos professores. Os alunos estabelecem
rapidamente o seu processo de inserção no mundo digital, num processo de
reflexão individual e, ao mesmo tempo, compartilhamento de informações
com os colegas. Os professores demonstram ansiedade e insegurança no que se
refere ao uso pedagógico dos laptops em sala de aula e, também, receio quanto
ao controle do que vai ocorrer / está ocorrendo dentro desta sala de aula, visto
que os alunos apresentam enorme facilidade na navegação, nas buscas e, consequentemente, no letramento digital.
Assim, a cultura digital é construída rapidamente e consolidada entre
os alunos, enquando a cultura escolar enfrenta dificuldades na adaptação da
inovação tecnológica ao cotidiano da sala de aula.
Cultura e poder: o processo de apropriação das tecnologias digitais
A cultura contemporânea é caracterizada por vários autores como uma
transição da modernidade para a pós-modernidade (HARVEY, 1993). A reflexão sobre o papel e as características da escola dentro deste novo mundo
híbrido, visto como um espaço em mudança nas novas configurações culturais, possibilita a análise de elementos subjetivos que permeiam e constróem a
escola como instituição e as perspectivas reais de quebra dos seus paradigmas.
O foco da aprendizagem contextualizada até recentemente estava voltado para
as particularidades sociais, econômicas e culturais de um grupo de alunos.
Com a globalização, este conceito de realidade foi expandido e os conceitos de
comunidade, lugar, espaço e tempo foram redimensionados, não comportando
mais um conceito de identidade cultural estável. “Se nos estudos culturais a
cultura é uma arena, um campo de luta em que o significado é fixado e negociado, as escolas, sua maquinaria, seus currículos e práticas são parte deste
complexo” (COSTA, 2005, p.34). Assim, é preciso investigar as relações de
poder que permeiam esta arena, considerando a produtividade e a positividade
do poder, além de sua capacidade de produzir subjetividades e identidades.
A revolução tecnológica da informação é a base para a consolidação de
uma sociedade informacional, estando relacionada com a apropriação da tecnologia em benefício do fluxo contínuo de informação. A tecnologia pode ser
compreendida, segundo Castells (2003), como o uso de conhecimentos científicos para especificar as vias de se fazerem as coisas de uma maneira reproduzível. Neste aspecto, somente a tecnologia não é responsável por uma revolução informacional. O autor deixa bem claro em sua obra que as tecnologias
da informação devem ser compreendidas como um “conjunto convergente de
tecnologias em microeletrônica, computação (hardware e software), telecomunicações/radiodifusão e optoeletrônica” (CASTELLS, 2003, p. 67).
A Para o autor, o que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a
centralidade de conhecimentos e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa informação que gera conhecimentos, que são retroalimentados de forma contínua, criando novas formas de inovação e uso. Assim, os
computadores, programas, sistemas de comunicação e programação genética
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
são amplificadores e extensões da mente humana que alteraram, fundamentalmente, o modo pelo qual nascemos, vivemos, aprendemos, trabalhamos e
produzimos. A modificação em nosso modo de viver e em nossa compreensão
sobre a organização da sociedade é iniciada a partir do mundo do trabalho, já
que nele são inseridas as primeiras inovações tecnológicas que não modificam
apenas a técnica da produção, mas, também, alteram a organização das firmas,
a sua estrutura e a divisão do trabalho.
A ideia de mudança - seja na dimensão da produção, do trabalho ou da
educação - sempre perpassa a noção de uma cultura que precisa ser modificada. No texto sobre Estudos Culturais, de Frow e Morris (2008), esta questão é abordada, citando a fórmula da retórica neoliberal, de que os problemas
econômicos precisam de soluções “culturais”, referindo-se a um complexo de
expectativas, costumes e valores sociais que afetam os nossos métodos de trabalho, e não a um conjunto de obras-primas ou a um domínio do prazer estético (FROW e MORRIS, 2008, p.315). Nesse aspecto, os Estudos Culturais
contemporâneos também estabelecem uma conexão direta com o trabalho,
mas livre da subordinação à produtividade econômica e sem o moralismo e
determinismo da retórica neoliberal.
Esta abordagem é importante porque nos leva a refletir sobre as forças
que exercem o poder dominante de controle e de modelagem sobre a cultura. Hall (1997) levanta a questão do papel do Estado, que, em razão de suas
políticas legislativas, pode determinar a configuração da cultura. Ou seria o
mercado, a política e a economia, através de sua “mão oculta” que, de fato,
determinam os padrões de mudança cultural?
Por que deveríamos nos preocupar em regular a “esfera cultural” e por que
as questões culturais têm estado cada vez mais frequentemente no centro dos
debates acerca das políticas públicas? No cerne desta questão está a relação entre
cultura e poder. Quanto mais importante – mais “central” – se torna a cultura,
tanto mais significativas são as forças que a governam, moldam e regulam
(HALL, 1997, 16).
Quando pensamos na regulação das políticas públicas na cultura, o primeiro indicativo é a comunicação, por meio das rádios e emissoras de TV.
Porém, Hall (1997) também questiona se o Estado “governa” a cultura, através
do sistema educacional, do arcabouço legal, do processo parlamentar ou por
intermédio de procedimentos administrativos. A importância de saber como
a cultura é modelada, controlada e regulada é que ela também regula nossas
condutas e ações sociais. Quando pensamos na dimensão da cultura da escola,
como um conjunto de práticas sociais e procedimentos, do mesmo modo que
a cultura empresarial é uma forma de influir, moldar, governar e regular como
os empregados se sentem e agem nas organizações, podemos concluir que, uma
vez que a cultura regula as práticas e condutas sociais, é importante saber quem
regula essa cultura.
O caráter de inovação é sempre simplista, pois existe uma tendência em
se afirmar que o uso das tecnologias “inova” o processo educativo, mas este
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.01, Nº34, 1º semestre 2011
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
processo quase nunca é detalhado ou apresentado com começo, meio e fim.
A inovação não é um processo natural do desenvolvimento de uma sociedade
e tampouco o será na educação mediada por tecnologias. Pelo contrário, o
uso da tecnologia vem se tornando um dispositivo de poder (FOUCAULT,
2005) apropriado por sujeitos dentro da escola que determinam a sua inserção, tanto do ponto de vista da quantidade do seu uso (horários e pré-requisitos para utilização dos equipamentos), quanto para a qualidade do seu uso
(restrição ao acesso de sites e softwares).
A questão da inclusão digital nas escolas.
As Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) estão sendo incorporadas aos espaços e práticas escolares, num movimento que vincula a escola à
cultura digital. Esta, relativiza os conceitos de tempo e espaço, delineando novas
maneiras de interação/comunicação entre as pessoas, novos ambientes de aprendizagem, novas formas de produção do conhecimento, provocando mudanças de
comportamento, não só no interior da escola, mas em toda a comunidade.
A proposta apresentada para o uso das tecnologias já se mostra problemática no próprio conceito de inclusão digital e em seu contexto de apropriação das tecnologias por educadores. Para discutir essa questão, buscamos
em Warschauer (2003a, 2003b, 2006) algumas considerações sobre o assunto. Segundo este autor, baseado em pesquisas realizadas em vários países em
desenvolvimento, incluindo o Brasil (2003a, 2003b), boa parte da discussão
sobre novas tecnologias e equidade social tem o foco em uma concepção simplista do que seja exclusão digital. Priorizar apenas hardware, software e acesso
à Internet, sem considerar questões sociais e educacionais é uma visão curta,
embora adotada em políticas públicas de países diversos (2003a, pp.11-12).
Maria Helena Bonilla (2004), partindo do diagnóstico sobre esta questão em vários países do mundo e também no Brasil, considera que “a inclusão digital está sendo vista como a capacidade da população inserir-se no
contexto das tecnologias de informação e comunicação como consumidora
de bens, serviços e informações” (BONILLA, 2004, p.7).
A autora questiona o que está sendo chamado de inclusão, uma vez
que estar inserido na sociedade informacional significa aceitar que existe
uma forma hegemônica, um único discurso possível do mundo no qual
estar incluídosignifica ser consumidor de produtos, bens, serviços e informações. Santos (2001) argumenta que existe uma contradição básica
no capitalismo que, ao mesmo tempo em que ele gera exclusão, necessita
reintegrar ao sistema pelo menos uma parte dos excluídos para garantir a
continuidade do sistema econômico.
Para Bonilla (2004), é preciso escapar deste modelo inclusão/exclusão e pensar a inclusão digital como algo mais abrangente, que implique
em que aquele que está incluído seja capaz de participar, questionar, produzir, decidir, transformar; sendo parte integrante da dinâmica social em
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
todas as suas instâncias (BONILLA, 2004, p.8). Para a autora, trabalhar
a inclusão digital nesta perspectiva exige vontade e ação política, que vai
além da equidade na acessibilidade ao aparato tecnológico. A tecnologia
por si só não produz nada. É o seu uso e sua apropriação, sobretudo no
aspecto ideológico, que fará a diferença.
A formação de uma grande teia encontra a sua viabilidade nos usos das
tecnologias digitais, já definida por Castells (2003), como uma “transformação
tecnológica que se expande mediante uma linguagem digital comum na qual
a informação é gerada, armazenada, recuperada, processada e retransmitida”
(CASTELLS, 2003, p.68). Essa reflexão é muito importante porque não se
trata de “treinar” o professor para ser apenas um consumidor dos produtos
tecnológicos disponíveis no mercado, mas sim, utilizar a tecnologia como um
instrumento de colaboração e compartilhamento de informação através da formação de redes. É uma proposta mais ampla para reunir as questões do empoderamento através da informação diretamente vinculada à educação, no qual
as redes de informação são viabilizadas pelo uso da tecnologia.
Se a inclusão digital já é um conceito controverso no âmbito da sociedade informacional, a situação de pensar o interior da escola, ou a partir dela,
assume uma dimensão muito mais complexa. Historicamente, as escolas públicas vêm se apropriando das ferramentas tecnológicas de forma lenta e quase
sempre problemática. Os problemas estruturais das escolas e a construção de
uma cultura escolar permeada por diversos conflitos dificultam a transição
de um modelo de sociedade fordista para um modelo focado na cidadania e
na autonomia do aluno. A inserção da tecnologia e do uso das redes em sua
concepção mais ampla, como espaço de compartilhamento de informações,
entra em choque com a compreensão do professor como única autoridade na
transmissão do conhecimento.
Segundo Cobo e Pardo (2007), a educação é uma das disciplinas mais
beneficiadas com o surgimento das novas tecnologias, especialmente as relacionadas com a Web 2.0. Por esta razão, é fundamental conhecer e aproveitar a
bateria de novos dispositivos digitais que abrem inexploradas potencialidades.
Alguns autores já usam o termo “aprendizagem 2.0” e um dos principais benefícios destas novas aplicações da web de uso livre, que simplificam tremendamente a cooperação entre pares, responde ao princípio de não requerer do
usuário uma alfabetização tecnológica avançada. Estas ferramentas estimulam
a experimentação, reflexão e geração de conhecimentos individuais e coletivos,
favorecendo a construção de um ciberespaço de intercriatividade que contribui
para criar um espaço de aprendizagem coletiva.
No entanto, a cibercultura, ou mesmo a consolidação de uma cultura
digital, não está isenta de um processo hierárquico que promove uma divisão entre dominantes e dominados, mesmo considerando a perspectiva de inclusão digital a partir da escola. Cazeloto (2008) aponta para a existência de
uma estratificação cultural na cibercultura e nos alerta para os problemas nos
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
programas sociais de inclusão digital. Para o autor, esses programas tendem a
enxergar a cibercultura como um campo homogêneo, no qual só existiriam
duas posições possíveis: a inclusão e a exclusão. Porém, existe uma diversidade
nos níveis de apropriação tecnológica que não estão restritos apenas ao acesso e
ao uso de ferramentas sofisticadas. Mesmo entre os “incluídos”, a diversidade e
instabilidade das posições obtidas leva necessariamente a um questionamento
sobre qualquer forma definitiva de apropriação dos recursos, privilégios e poderes na cibercultura (CAZELOTO, 2008, p.112).
Neste contexto, a proposta de inserção da tecnologia como um movimento de inclusão social pode assumir formatos diferenciados do objetivo inicial dos programas implementados. No caso do Programa Um Computador
por Aluno, o objetivo é promover a inclusão digital e fomentar inovações pedagógicas nas escolas beneficiadas. Obviamente, a formação de uma cibercultura
no campo escolar também será alcançada, caso os objetivos gerais do programa
se realizem. Porém, existem outras dimensões que não estão explicitadas no
programa, que escapam do discurso oficial e remodelam o uso dos laptops e as
relações entre os alunos, alunos e professores, professores e gestores. As possibilidades de apropriação, sobretudo na esfera social, apontam para a amplitude
de programas de inclusão social e as mudanças efetivas que podem realizar.
A Proposta de Inclusão Digital no PROUCA: anotações sobre o
percurso metodológico
O Programa Um Computador por Aluno (PROUCA) é uma derivação do
projeto One Laptop per Child (OLPC), desenvolvido pelo MIT (Massachusetts
Institute of Technology), através de Nicholas Negroponte, Seymort Paper e
Mary Lou Jepsen. No Brasil, em 2007, foram selecionadas cinco escolas, em
cinco estados diferentes da federação, para a implementação do projeto: São
Paulo (SP), Porto Alegre (RS), Palmas (TO), Piraí (RJ) e Brasília (DF).
Com os dados obtidos nesta experiência pré-piloto, foram definidas
trezentas (300) escolas para participar do PROUCA. O laptop distribuído
entre professores e alunos é um modelo Classmate, que conta com programas
educativos, jogos, editor de texto, comunicador instantâneo, criação e edição
de áudio, vídeo e fotos. O sistema operacional utilizado é o Linux, que adota
uma licença livre e aberta, o que significa que os interessados podem usá-lo,
transformá-lo e distribuí-lo.
Com todas essas possibilidades, o PROUCA visa criar e socializar novas formas de utilização das tecnologias digitais nas escolas públicas brasileiras, ampliando a qualidade da educação e o processo de inclusão digital,
mediante o desenvolvimento de competências, habilidades, valores e saberes
dos sujeitos da aprendizagem.
Segundo o documento com a proposta para avaliação do PROUCA, o
projeto Um Computador por Aluno é “um projeto de inclusão digital pedagógica nas escolas, com repercussão na família, baseado em um notebook, tipo
subnotebook, ou um laptop de baixo custo, apto ao enlace de conectividade sem
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
fio (em rede mesh ou wireless), objetivando o conhecimento e tecnologias que
oportunizam a inovação pedagógica nas escolas públicas” (BRASIL, 2010).
A formação do Programa Um Computador por Aluno ficou sob a responsabilidade de execução das universidades, especificamente uma por cada
Estado. No caso de Pernambuco, a Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE)ficou responsável por realizar a formação dos professores em dez municípios – capital e interior do estado -, incluindo a cidade que recebeu o
UCA Total (parte do Programa no qual todas as escolas da rede pública
da cidade recebem os laptops). Professores pequisadores e alunos desta universidade integram o grupo de formação do PROUCA, em Pernambuco,
sendo que o processo de implantação do programa possibilitou a realização
de diversas pesquisas, que resultaram em artigos publicados. Foi feito um
recorte geográfico e os seis professores pesquisadores envolvidos no projeto
foram designados para um município específico (alguns pesquisadores ficaram responsáveis por dois municípios), acompanhados de dois alunos da pós-graduação. A equipe de formação da UFPE definiu como estratégia de ação
a realização da formação concomitantemente com a pesquisa. É importante
ressaltar que o Programa UCA foi estruturado em três pilares: formação,
pesquisa e avaliação. A equipe de formação e pesquisa pertencia ao mesmo
grupo e a equipe de avaliação realizou as suas atividades de forma independente, sob a supervisão direta da SEED/MEC.
A pesquisa tem uma abordagem qualitativa, nos princípios da pesquisa-ação, uma vez que todo o processo de implantação do programa e
formação também tornou-se objeto de pesquisa. A escolha pelo campo dos
Estudos Culturais nos permitiu analisar diversos elementos que não podiam ser interpretados em sua totalidade apenas considerando os elementos
do projeto inicial de inclusão digital, uma vez que a inserção dos laptops
nas duas realidades culturais possibilitou o surgimento de diversos elementos que não foram previstos.
As ações de formação e a coleta de dados da pesquisa foram realizadas
em visitas aos municípios, em reuniões com os gestores e multiplicadores na
universidade, e em contato com os professores através do ambiente virtual de
aprendizagem utilizado, o e-Proinfo. Nas duas visitas programadas in loco,
foram realizadas entrevistas com os gestores, professores, alunos, pais e outros
sujeitos envolvidos com o PROUCA. Durante as visitas, foi realizado também
o registro de imagens em fotografias e vídeos, que serviram como material
de análise da pesquisa. No caso deste estudo, foram objeto de nossa análise
dois municípios específicos com baixo índice de desenvolvimento econômico,
social e educacional: Caetés e Vitória de Santo Antão, municípios sob responsabilidade de formação e pesquisa das autoras.
Caetés é um município de cerca de 26 mil habitantes e com um IDH
de 0,521, o que demonstra que é uma cidade pequena e pobre. Neste município, o projeto UCA se denomina UCA TOTAL, ou seja, o projeto vai
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
alcançar todas as escolas do município. Inicialmente, quatro escolas da cidade
foram contempladas com o PROUCA: uma escola estadual e três municipais.
Para essas escolasforam distribuídos mais de quatro mil laptops. Em Vitória
de Santo Antão, a pesquisa foi realizada em apenas uma escola com características bastante específicas: é a única escola rural do PROUCA, no estado de
Pernambuco. Está localizada dentro de uma Usina açucareira, na qual trabalham os pais dos alunos participantes do programa. É importante assinalar
que os professores desta escola rural não apresentavam nenhuma desenvoltura
no uso de computadores. Justamente por suas especificidades, esta escola foi
escolhida para compor o nosso estudo, já que a sua realidade mostrava-se mais
suscetível ao processo de inserção tecnológica, com mudanças significativas no
cotidiano dos professores e alunos.
Podemos afirmar que um projeto desta natureza favorece a criação de
redes nacionais de estudos e diálogos sobre os processos de ensino, aprendizagem, pesquisa e avaliação. E esse é um dos objetivos principais do PROUCA:
a formação de redes de conhecimento e o intercâmbio de práticas educativas
entre os professores. Sem isso, eles correm o risco de não avançar tão significativamente no conhecimento, enquanto os alunos estarão em ritmo bem mais
acelerado no uso dos laptops.
A inserção dos laptops educacionais no interior nordestino: o
nosso campo de estudo
Em Caetés, os laptops foram entregues aos alunos, professores e gestores,
para que eles os levassem para seus lares. A partir daí, começou uma espécie de
(r)evolução no município. Os computadores passaram a ser vistos em todos os
lugares: nas ruas, praças, escolas, feiras, lojas, lanchonetes, carros, caminhões. Em
qualquer ponto geográfico de Caetés era possívelvê-los. A maior parte das crianças
e adolescentes se concentrava na principal praça da cidade, onde foi instalada uma
rede sem fio. Lá, permaneciam horas sentados, em pequenos grupos, pesquisando e
navegando na Internet. É importante salientar que essa praça tinha o nome de uma
personalidade importante da cidade, mas, após a chegada da rede sem fio, passou
a ser chamada unanimemente de “Praça da Internet”. Uma mudança significativa.
Nesta praça, durante a manhã, tarde e noite, podia-se observar um fato
interessante: a maioria dos alunos, apesar de ter o seu próprio laptop, não trabalhava sozinho, individualmente, mas, sim, formando grupos para socializar
as experiências na rede. Cada um com seu equipamento, mas reunidos em
grupos, trocando informações. Isso representa uma mudança significativa nos
modos de aprender e ensinar - ou seja, os alunos preferiam aprender colaborativamente. Então, é possível afirmar que, neste município, surgiu uma nova
forma de convivência entre seus habitantes, até então desconhecida.
Os mais de quatro mil laptops foram para centenas ou milhares de lares.
Isso significa que cada computador pode ser acessado pelos familiares dos alunos, professores e gestores, possibilitando a apropriação tecnológica de pessoas
que não freqüentavam as escolas, produzindo, assim, uma rede de interação
nunca vista no município.
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
Em um encontro com a secretária de educação do município do Caetés,
entre outros assuntos tratados, fomos informados que o pai de um aluno foi
conversar com ela sobre a chegada dos laptops em sua casa. Ele afirmou que seus
quatro filhos receberam os computadores e que isso transformou o ambiente
familiar. Os meninos passaram a permanecer mais tempo juntos, decifrando os
mistérios da Internet e tentando aprender cada vez mais. Além disso, eles insistiam em ensinar aos pais o manejo do equipamento. O referido pai chorou ao
afirmar que, a partir da utilização e da aprendizagem com os laptops, seus filhos
teriam novas oportunidades na vida, sem precisar pegar nas únicas ferramentas
que entravam em sua casa há algumas gerações: a enxada e a pá. Essa descrição
nos deixou emocionados e reflexivos. Ficamos pensando no impacto das tecnologias na vida daquelas pessoas, especialmente nas famílias de origem mais humilde, que não teriam condições de comprar laptops. A dimensão desse fenômeno
ou dessa transformação que está ocorrendo no município de Caetés ainda não
está bem definida, mas podemos intuí-la.
Em outro momento, numa conversa informal com a gestora de uma das
escolas do PROUCA, em Caetés, soubemos que nos intervalos entre as aulas,
nas entradas e nas saídas de aulas, os alunos apresentavam comportamentos
completamente diferentes: já não corriam, gritavam e se empurravam, como
de costume. Eles circulavam pela escola, com seus laptops nos braços, ou permaneciam sentados em cadeiras dos corredores, sempre trocando informações
com seus companheiros. Ou seja, os alunos ficam em constante observação
das atividades que estão sendo desenvolvidas em seus computadores ou das
atividades que os companheiros estão desenvolvendo. Também é importante
citar que os alunos das escolas de Caetés não permitem mais que a escola cerre
suas portas em domingos e feriados, porque eles não querem ficar sem conexão
à Internet. Neste sentido, as gestoras estão sendo flexíveis e favoráveis aos novos esquemas espaço-temporais do processo de ensino e aprendizagem. Fatos
assim servem para mostrar a importância deste projeto na vida dos alunos,
professores e da comunidade em geral. A (r)evolução tecno-pedagógica pode
trazer grandes benefícios para uma cidade como Caetés, localizada no interior
do Nordeste e só conhecida por ser a terra natal do ex-presidente Lula.
No outro município, Vitória de Santo Antão, temos um diferencial interessante: a escola está localizada na zona rural, dentro das terras de uma usina de
produção de açúcar chamada Usina JB. A usina conta com profissionais de TI,
engenheiros e outras categorias de trabalhadores. Essas pessoas se mostraram dispostas a colaborar na implementação dos laptops em sala de aula e na manutenção
dos mesmos, porque, inicialmente, a quase totalidade de professores desconhecia
o manejo de computadores. É importante ressaltar que, na época da entrega dos
equipamentos aos professores e alunos, a comunidade lançou fogos de artifícios,
tamanha alegria de todos em receber o novo artefato. Hoje, passados seis meses
do recebimento dos laptops, os professores desta escola da zona rural, que está
incrustada na usina citada, sofrendo as influências políticas, sociais, econômicas
e culturais desta realidade, já ultrapassaram a fase de apropriação tecnológica e
estão conseguindo utilizar pedagogicamente o computador. Na atualidade, eles
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
dispõem de um blog da escola, onde colocam fotos, textos, áudios e vídeos, dando visibilidade a um movimento de compartilhamento, de construção coletiva e
de avanço cultural. Outra transformação ocorrida no município está relacionada
com o número de alunos desistentes. Muitos deles voltaram às aulas atraídos pelo
laptop individual e pelas novidades em sala de aula.
Aqui, cabe ressaltar que, antes, através dos laboratórios de informática,
as escolas ofereciam/oferecem uma utilização compartilhada dos computadores. A literatura mostra que, muitas vezes, a relação era de 10:1, ou seja, dez
alunos para um computador, o que certamente os impedia de praticar, descobrir e trabalhar bem no computador. Agora, o PROUCA oferece a modalidade
1:1, favorecendo alguns aspectos inovadores dentro da escola, como: imersão
em uma cultura digital (alunos, professores, gestores e membros da comunidade passam a conhecer e utilizar o universo online); mobilidade (uso do laptop
em outros ambientes, dentro e fora da escola); conectividade (interação entre
professores e alunos, através de redes sem fio conectadas à Internet); uso pedagógico de mídias diversas (disponíveis no laptop).
Nossa percepção é de que houve uma real transformação nas escolas e nas
comunidades que receberam os laptops educacionais. Em cada município, professores, alunos e pais demonstravam grande expectativa, pois receber esses equipamentos gratuitos era uma novidade que poucos se permitiam acreditar. Muitas destas pessoas nunca tinham tocado em um computador. Na realidade, os envolvidos
nesta transformação visível não foram só os professores, alunos e funcionários das
escolas. Nesta lista de beneficiados, temos que incluir os familiares.
O fato das escolas públicas dos municípios de Caetés e Vitória de Santo
Antão serem beneficiadas com computadores e rede de internet, por si só, já
se configura em uma grande transformação, especialmente se considerarmos
que são cidades pequenas e pobres, do interior de Pernambuco. Neste sentido,
acreditamos que é necessário refletir sobre o impacto não apenas da tecnologia
em si, mas, principalmente, de uma inovação pedagógica que considere as especificidades de cada município, escola, sala de aula e o que isso pode provocar
na rotina de professores e alunos.
Considerações finais
A apropriação das tecnologias digitais só será alcançada quando o processo
de consolidação da cultura digital também for efetivado, o domínio da técnica
por si só, não garante a utilização das tecnologias de forma realmente inovadora.
A inserção dos laptops nas escolas da rede pública em municípios pobres em uma
região com uma lacuna histórica no seu processo de desenvolvimento, extrapola
as condições e consequências previstas no programa de inclusão digital. Umas
das imagens mais reveladoras registradas em nosso estudo foi a de uma adolescente vestida para trabalhar no corte de cana, utilizando o laptop dentro de
um caminhão que trasporta trabalhadores que estava estacionado na praça. A
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
cultura agrícola de uma jovem que tem como meio de vida a dureza do trabalho
no campo pode ser transformada a partir do uso dos laptops educacionais? Ao
que tudo indica, as mudanças são significativas e os sujeitos de nossa pesquisa,
embora não apresentem clareza em todas as dimensões que a inclusão digital
oferece, estão confiantes que o mundo de informações disponíveis para o acesso
pode realmente fazer a diferença em suas histórias de vida. Talvez o futuro não
comprove tanto otimismo, mas só o fato de se acreditar na possibilidade de mudanças, já é um indicativo importante. É interessante que apesar do receio dos
professores diante do uso do laptop como instrumento de inovação pedagógica,
alunos e familiares encaram o uso do equipamento em uma perspectiva bastante
positiva. Não existe o embate entre os traços antigos da cultura e a existência de
uma ferramenta que modifica alguns dos seus princípios, eles acreditam é na
possibilidade de escolha. Nos dois municípios estudados, houve redução da brecha de acesso ao conhecimento entre os diferentes grupos sociais. Foi interessante
notar os grupos que se formaram/formavam de alunos, tanto nas escolas como
na praça, consolidando novas formas de convivência. Verificamos que o modelo
1 a 1 impacta especialmente as classes menos favorecidas, pois quanto menor o
acesso aos equipamentos digitais, maior é o interesse e a transformação.
Podemos afirmar que objetivo principal do Programa Um Computador
por aluno - promover a inclusão digital - é plenamente alcançado entre os
alunos que rapidamente se apropriam do uso tecnológico e dominam o laptop com desenvoltura. Mesmo que os professores tenham apresentado dificuldades iniciais no domínio técnico de seus laptops, talvez esse não seja
o maior problema. Em nossa opinião, o grande desafio é encontrar formas
produtivas e viáveis de integrar esses computadores ao processo de ensino e
aprendizagem, de acordo com as condições concretas de cada escola, favorecendo a reflexão desses professores sobre suas práticas, proporcionando a
compreensão dos mesmos sobre suas ações/atuações e possibilitando, assim,
a reconstrução dessas ações, se necessário. Temos muitos desafios ainda para
superar no no tocante ao uso pleno dos laptops dentro das escolas: a formação dos professores pode ter sido insuficiente no que se refere a deixar
o professorado seguro e fluente no uso dos laptops, a percepção deles com
relação ao uso desses equipamentos s ainda é de receio e de inexperiênci. Eles
não sabem como trabalhar e produzir materiais específicos para motivar os
alunos - que já conhecem bem o usodos computadores, as escolas apresentam infraestrutura precária e apoio técnico insuficiente/ineficiente. Diante
do quadro apresentado, percebemos com clareza que o campo da cultura é
um lugar de conflito, negociações e, sobretudo, deconvergência de relações
que resultam em novos modelos de cultura. A consolidação de uma cultura
digital é fundamental para que os professores e alunos alcancem plenamente
a apropriação tecnológica dos equipamentos e possam realizar e aproveitar as
inovações pedagógicas necessárias. Porém, é preciso compreender as mudanças culturais como um processo lento, nos quais diversos elementos individuais e coletivos são cotidianamente negociados até que se possa instaurar um
novo modelo que resultará na existência de uma cultura digital, conhecida
como cibercultura, como pressuposto básico da cultura escolar.
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Carvalho e Alves. Apropriação tecnológica e cultura digital: O Programa Um Computador por Aluno no interior do nordeste brasileiro
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Pesquisa em Cibercultura: análise da
produção brasileira da Intercom
Cyberculture Research: analyzing brazilian scientific
production at Intercom
Adriana da Rosa Amaral | [email protected]
Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da UNISINOS.
Bolsista de Produtividade do CNPq
Sandra Portella Montardo | [email protected]
Professora e pesquisadora dos Cursos de Comunicação Social, e do Mestrado em Inclusão Social e
Acessibilidade e do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, na Universidade Feevale, Novo
Hamburgo, Brasil
Resumo
Este artigo visa ampliar o mapeamento da produção cientifica em Cibercultura no Brasil. Para tanto, analisa-se 443 artigos científicos e ensaios apresentados no Grupo de Pesquisa Cibercultura apresentados nas
edições nacionais do Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, entre 2001 e 2010. A partir dessa
amostra, identificou-se 13 eixos temáticos principais que constituem os estudos de Cibercultura no Brasil.
Palavras-chave: Pesquisa em Cibercultura; Produção científica brasileira; Intercom.
Abstract
This paper aims to broad the research about the brazilian scientific production. In order to do that we’ve analyzed the content of 443 papers and essays presented at Cyberculture Research Group presented at national editions of Intercom (Brazilian Congress of Communication Studies) between 2001-2010. From this sample we’ve
identified 13 thematic hubs that are central to cyberculture studies in Brazil.
Keywords: Cyberculture Research; Brazilian Scientific Production; Intercom.
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Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
1 Introdução
Este artigo propõe uma ampliação do mapeamento da pesquisa científica em cibercultura no Brasil iniciado em um estudo anterior (AMARAL;
MONTARDO, 2010) no qual procedeu-se a uma análise comparativa dos
anais do Grupo de Trabalho (GT) Comunicação e Cibercultura da Associação
Nacional de Programas de Pós-graduação em Comunicação (Compós) e nos
anais da Association of Internet Researchers (AOIR) no período de 20002010. Naquela ocasião, optou-se por analisar a produção brasileira sobre
Cibercultura a partir dos anais do GT Comunicação e Cibercultura da
Compós devido ao fato de que ela concentra boa parte produção científica
(em especial a realizada nos Programas de Pós-Graduação) nas várias áreas
de interesse da Comunicação, em função das políticas de seleção de textos
para os GTs e do número reduzido de artigos aprovados nos mesmos (10).
Assim, foram analisados 109 artigos sobre Cibercultura produzidos no Brasil
naquele estudo. Por conta do recorte não foi possível levar em consideração
a produção distribuída no congresso da Intercom, aquele que atualmente
conta com o maior número de participantes. O Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, organizado anualmente pela Intercom desde 1977, é o maior evento da Comunicação no
Brasil, chegando a reunir cerca de 3,5 mil participantes em suas edições
nacionais1. Entre esses participantes, são contemplados estudantes de graduação, de pós-graduação, mestres, doutores, que podem apresentar produções
acadêmicas, científicas ou não, em vários eventos que compõem o congresso2
, mediante aprovação de texto previamente submetido.
Como amostra deste estudo, optou-se, então, pelos artigos científicos e
ensaios apresentados Grupo de Pesquisa Cibercultura – que anteriormente era
chamado Núcleo de Pesquisa Tecnologias da Informação e da Comunicação
(2001-2008), no período entre 2001-2010. O recorte temporal para escolha da
primeira década dos anos 00 se deu, em primeiro lugar, em função deste “constituir o período de popularização e consolidação da internet” (AMARAL,
MONTARDO, 2010) e também por ser o mesmo recorte do trabalho anterior, facilitando assim o objetivo da comparação.
Foram analisados, ao todo, 443 artigos, a partir de seus títulos, resumos
e palavras-chave. Percebe-se, então, que essa amostra consiste em um panorama mais abrangente da produção em Cibercultura no Brasil, que deve ser
justaposto à amostra brasileira do estudo anterior (109 artigos).
Pode-se dizer, então que a abordagem privilegiada neste artigo é exploratória. Já o enquadramento metodológico deste estudo coincide com alguns
dos princípios da Grounded Theory (Teoria Fundamentada) aplicada aos estudos de internet (FRAGOSO, RECUERO, AMARAL, 2011), enquanto
que o tratamento dispensado à amostra se deu via Análise do Conteúdo.
Foram inferidas treze categorias temáticas nos artigos analisados. Os resultados obtidos neste artigo são confrontados com os do estudo de 2010, quanto
aos estudos elaborados no Brasil.
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Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
2 Estudos sobre Cibercultura no Brasil
Desde os anos 90, os fenômenos pertinentes à cibercultura têm sido estudados globalmente à medida em que o próprio conceito se amplia e se desdobra. Para uma periodização mais completa indicamos autores como Wellmann
(2004), Postill (2010), Macek (2005), Felinto (2007), entre outros. No presente
artigo não entraremos em discussões sobre diferenças nas abordagens teóricas
entre alguns dos principais autores do campo. Em Rüdiger (2011), encontramse alguns elementos introdutórios para o entendimento dessa proposição.
Tampouco trataremos das semelhanças e diferenças entre a pesquisa sobre o tema conduzida no Brasil e em outros países como Estados Unidos,
França, Canadá, Inglaterra, Espanha, Portugal, entre outros. Entendemos a
importância dessas comparações, bem como o contexto histórico e político,
mas tal demanda seria inviável para esse artigo.
Para o momento, é importante compreender que assim como acontece
em outras partes do mundo dada a natureza dos fenômenos por ela compreendidos, os estudos de Cibercultura no Brasil perpassam várias disciplinas, áreas e abordagens como a Comunicação, Antropologia, Artes, Ciências Sociais,
Estudos Culturais, Filosofia, entre outros.
No entanto, alguns pontos mais específicos sobre as concepções brasileiras de Cibercultura – sobretudo das discussões travadas na Associação
Brasileira dos Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber) são encontrados em
Trivinho e Cazeloto (2009) e em Trivinho (2011):
Esse campo desenvolveu e hoje acumula formas diversas de compreensão sobre o
social contemporâneo (dentro e fora da rede), sobre o sujeito e a alteridade, sobre a
sociabilidade (presencial e em tempo real), sobre as identidades e assim por diante – sobre
a vida humana, enfim, na época atual; um campo que, no âmbito da representação
de mundo, se desenvolveu pela via acertada, a do consenso em relação à criação da
ABCiber, a partir da diferença produtiva, elegante, respeitosa e plena de amizade no
âmbito intelectual e de sinergia na esfera pessoal; pela via acertada: a da construção
de uma instituição científica e cultural democratizada internamente e progressista,
que se fez – em sua história, a recorrer-se aqui ao GT “Comunicação e Cibercultura”
da COMPÓS – em nome da liberdade e da solidariedade interpares e evidentemente
também no social extensivo. O campo de estudos da cibercultura conta com e se nutre
de atividades desenvolvidas em Universidades, Programas de Pós-Graduação, Cursos
de Graduação, Associações, instituições extra-acadêmicas, Centros, Grupos e/ou
Núcleos de Pesquisa; conta com e é sustentado por centenas de pesquisadores e pósgraduandos, cargos, titulações, obras, congressos, chancelas de agências de fomento e
organizações privadas, bolsas e auxílios, know-how etc. – todos os elementos necessários,
ainda que por vezes institucionalmente embrionários, que costumam estar vinculados
à estruturação de um campo científico. (TRIVINHO, 2011, p. 32).
Todavia, por uma questão de recorte da amostra, anteriormente discutida (AMARAL, MONTARDO, 2010), optamos por centrarmos nossa análise
na Comunicação. Ainda assim, salientamos que o evento da Intercom também
abriga pesquisadores de outras áreas em sua relação com a Comunicação, o que
caracteriza a riqueza e amplitude das categorias aqui apresentadas.
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Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
3 Aspectos metodológicos e a caracterização da amostra
O contato com o campo no qual coletamos os dados foi feito através
da abordagem da Teoria Fundamentada (Grounded Theory), essencialmente
indutiva deixando os dados “falarem por si” antes de recorrermos à literatura
(FRAGOSO, RECUERO, AMARAL, 2011). Mesmo assim, é preciso lembrarmos que a “sensibilidade teórica” das autoras enquanto sujeitos da pesquisa
para o processo de comparação dos dados não descartou as pré-noções e o próprio background das mesmas como participantes da Intercom em várias de suas
edições. Outro detalhe importante é que a coleta, a descrição e a interpretação
dos dados foram feitas de forma praticamente simultâneas, principalmente devido à experiência do estudo anterior (AMARAL, MONTARDO, 2010).
3.1 Breve contextualização sobre a organização da Intercom –
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
Para que se entenda o escopo da amostra, vale que se apresente a
Intercom, as atividades que ela promove, bem como sua atuação em pesquisa
propriamente dita. De acordo com a definição do site da entidade:
A Intercom - A Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
– é uma instituição sem fins lucrativos, destinada ao fomento e à troca de
conhecimento entre pesquisadores e profissionais atuantes no mercado. A entidade
estimula o desenvolvimento de produção científica não apenas entre mestres
e doutores, como também entre alunos e recém-graduados em Comunicação,
oferecendo prêmios como forma de reconhecimento aos que se destacam nos eventos
promovidos pela entidade. (Intercom, 2011).
Essa troca de conhecimentos entre o mercado de comunicação, o ensino e a pesquisa, é promovido pela Intercom, que foi fundada em 12 de
dezembro de 1977, de várias formas, entre elas, com a publicação de periódicos e com a realização de eventos. Quanto aos eventos promovidos pela
instituição, destaca-se congressos nacionais e regionais, colóquios, simpósios,
seminários, cursos e debates.
Anualmente, são organizados 6 congressos: 5 regionais (situados em cidades de cada região geográfica do país, que são realizados sempre no primeiro
semestre) e 1 nacional (no segundo semestre). De acordo com o site da instituição, as cidades e universidades que sediam o evento são escolhidas pelos
sócios no ano anterior à sua realização, sendo que aspectos concernentes à
Comunicação são discutidos a partir de uma mesma temática. O Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação acontece ininterruptamente desde
1977, chegando a reunir cerca de 3500 pessoas, 2 terços das quais, estudantes
de graduação de Cursos de Comunicação, segundo o site da instituição.
A respeito da Pesquisa propriamente dita, tanto a edição nacional
quanto as regionais dos congressos oferecem a oportunidade de apresentação de trabalhos em Grupos de Pesquisa (GP) agrupados a partir de Divisões
Temáticas (DT). Atualmente, os GPS contemplam a apresentação de trabalhos de alunos do mestrado, doutorado e de professores universitários
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Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
(portanto, já mestres e/ou doutores)3. As divisões temáticas são as seguintes:
Jornalismo; Publicidade e Propaganda; Relações Públicas e Comunicação
Organizacional; Comunicação Audiovisual; Comunicação Multimídia;
Interfaces Comunicacionais; Comunicação, Espaço e Cidadania e Estudos
Interdisciplinares da Comunicação (Intercom, 2011).
3.2 A Divisão Temática 05 Multimídia e o GP Cibercultura
A partir dessa configuração que se apresenta desde 2008, o GP
Cibercultura4 encontra-se nucleado dentro da Divisão Temática Comunicação
Multimídia, assim como o GP Conteúdos Digitais e Convergências
Tecnológicas. No entanto, deve-se observar que do ano de 2001 ao ano de
2008, os pesquisadores apresentavam sua produção científica em Núcleos
de Pesquisa (NP), sendo que o destinado aos estudos de Cibercultura fora
denominado neste período como NP Tecnologias da Informação e da
Comunicação (TICs). A ementa da DT e suas palavras-chaves indicam os
temas e possíveis objetos a serem discutidos:
Estudo dos processos comunicacionais em sua dimensão multimídia. Analisa as práticas
comunicacionais desenvolvidas em ambientes multimidiáticos, envolvendo discussões
em torno da dimensão cultural da comunicação nesses novos ambientes. Engloba
estudos da comunicação em sua relação com a tecnologia: a tecnologia da palavra,
da escrita, da imprensa e dos formatos digitais. Envolve as discussões em torno da
comunicação mediada por computador, da cibercultura e dos conteúdos digitais em
seus múltiplos aspectos e interconexões com a questão comunicacional. Palavras-chave:
Multimídia – Tecnologias – Cultura. (Intercom, 2011).
A ementa do GP Cibercultura5, alocado dentro dessa DT também nos
endereça ao tipo de produção científica a ser acolhido:
O Grupo de Pesquisa sobre Cibercultura tem como objeto o desenvolvimento da
Comunicação Mediada por Computador (CMC) e seus efeitos sobre a indústria de
Comunicação e a sociedade. Uma primeira seção temática concerne à Internet e analisa
a singularidade de seu mecanismo de recepção e emissão, as novas formas de mediação
que autoriza e suas características tecnológicas. A segunda seção concerne à sociabilidade
virtual, que analisa grupos de discussão, salas de bate-papo, homepages e privacidade. A
terceira seção é a Hipermídia, que está focada no esforço social de construir a linguagem
própria deste novo meio, analisando a convergência, o hipertexto e a imersão. A quarta
seção discute abstratamente a relação entre tecnologias de Comunicação e cultura,
tomando como base a Comunicação mediada por computador. (Intercom, 2011).
Cabe fazer uma observação a respeito do GP Conteúdos Digitais e
Convergência Tecnológica. Para isso, importa, primeiro, apresentar a sua ementa:
Estudar novas formas de expressão no campo digital, aproveitando a possibilidade
de convergência tecnológica entre diferentes plataformas. Os estudos e pesquisas
devem estimular a criação de novos formatos audiovisuais e de dados digitais,
através da criação de roteiros para uma única ou mais plataformas tecnológicas,
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Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
captação de experiências em áudio, imagem e dados realizadas de modo linear ou
justapostas (não linear) e edição desses materiais, respeitando as características e
linguagens de cada plataforma tecnológica. Também deverá contemplar estudos
e pesquisas que revelem e/ou analisem a aplicabilidade dos conteúdos digitais
desenvolvidos para as novas plataformas tecnológicas de caráter alâmbrico ou
inalâmbrico, transmitidos em tempo real ou por demanda, entre diferentes grupos
sociais. Dado que os temas relativos às tecnologias digitais estão diretamente
relacionadas as plataformas analógicas que os antecedem e servem de referência
aos novos estudos, o grupo de pesquisa em Conteúdos Digitais e Convergência
Tecnológica incluirá áreas de interesse como os gêneros jornalísticos, educativos
e/ou culturais, publicitários, serviços, entretenimento e de interesse público
desenvolvidos em diferentes plataformas digitais como TV e rádio digital, cinema
digital, celulares, games, I-Pods, Palms e/ou computadores. Inclui ainda os projetos
desenvolvidos para convergência entre as diversas plataformas. Palavras-chave:
Conteúdos digitais - mídias digitais - convergência tecnológica - plataformas
tecnológicas (Intercom, 2011).
Observamos claramente nessa ementa uma sobreposição de elementos e
temáticas entre ambos os grupos. Não deve passar despercebido o fato de que
Grupos de Pesquisa diferentes dentro da mesma Divisão Temática possam
apresentar uma certa sobreposição em alguns trabalhos apresentados. Essa
sobreposição e divisão, além da pertinência ou não do termo comunicação
multimídia como a categoria que nomeia a DT foram alvos de uma intensa
discussão e reflexão em 2009 e que se encontra no relatório pós-congresso e
publicado no Blog do GP:
O grupo reconheceu que a divisão temática da qual faz parte, ao lado do GP Conteúdos
Digitais e Convergências Tecnológicas, está melhor estruturada em relação à primeira
proposta apresentada no ano passado. Contudo, entendendo que o termo “multimídia”
é datado, o grupo propõe que a divisão temática seja intitulada Comunicação e Redes
Digitais. De toda forma, o grupo decidiu refletir melhor sobre essa denominação em
seu blog. (PRIMO, 2009)6
3.3. Temáticas apresentadas no GP Cibercultura – 2001-2010
Com essa apresentação da pesquisa no âmbito da Intercom, fica evidente a abrangência da amostra de 443 artigos disponíveis nos anais do NP
Tecnologias da Informação e da Comunicação (2001-2008) e nos do GP
Cibercultura do DT Comunicação Multimídia (2009-2010)7 em relação à
produção apresentada na Compós entre 2000-2010, que consistiu em apenas
109 artigos. Cabe observar, agora, se um número significativamente maior
de trabalhos apresentados (Intercom) revela a predominância de eixos temáticos diferentes, por exemplo. Para isso, adotaremos a análise de conteúdo.
Para Fonseca Jr. (2005), a análise de conteúdo “funciona por desmembramento do texto em unidades, em categorias segundo agrupamentos
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.01, Nº34, 1º semestre 2011
107
Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
analógicos”(FONSECA Jr., 2005, p. 31). Nesse contexto, o autor (2005) destaca a análise temática como sendo de fácil operacionalidade na pesquisa acadêmica, por ser rápida e eficaz.
Assim, a partir da observação dos títulos, resumos e palavras-chave de
443 artigos, disponíveis nos anais dos Congressos Nacionais da Intercom8,
de 2001 a 2010, obteve-se as seguintes categorias e às respectivas temáticas
que compreendem.
Tabela 1 – Categorias de eixos temáticos recorrentes nos estudos em
Cibercultura no Brasil – Intercom (2001-2005)
Categoria
Temática que compreende
Base teórica
1- Linguagem
Estudos empíricos, em sua
maioria, sobre arquitetura
Filosofia, Informática,
de informação, hipertexto,
Literatura, Artes, Educação
links, buscadores, hipere Semiótica.
mídia e narrativas de jogos
digitais.
2- Crítica da Técnica/do
Imaginário Tecnológico
Estudos teóricos quanto à
problematização da questão
da técnica e do imaginário
tecnológico sob vários
aspectos.
Filosofia e Sociologia
3- Subjetividade
Estudos teóricos sobre
novas formas ou crítica a
novas formas de subjetivação em função das TIC.
Psicologia e Filosofia.
4- Apropriação tecnológica
Estudos teóricos ou empíricos sobre a reconfiguração
Antropologia e Sociologia.
de práticas sociais/culturais
em função das TIC.
5- Economia Política da
Comunicação Mediada por
Computador
Investigações ligadas
a novas conformações
econômicas e políticas em
função da Internet.
Economia, Filosofia e
Comunicação.
6- Ciberativismo
Reflexões sobre a potencialização da ação do
indivíduo/coletividade em
termos de ação política via
Internet.
Filosofia, Sociologia e
Comunicação.
Sistematização que consiste em estudos teóricos
7- Epistemologia, Teorias e
e metodológicos sobre a
Métodos
Técnica, Tecnologia e a
Cultura Digital.
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.01, Nº34, 1º semestre 2011
Filosofia, Literatura e Comunicação.
108
Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
Categoria
Temática que compreende
Base teórica
8- Imaginário Tecnológico
Reflexões sobre o presente
a partir de referências da
Literatura, das Artes, do
Cinema.
9- Inclusão Digital
Estudos sobre potencialização da inclusão social via
Sociologia e Educação.
TIC.
10- Práticas de Consumo
Mercadológico
Estudos sobre práticas de
consumo mercadológico
em função das TIC.
Marketing e Comunicação.
11- Sociabilidade Online
Estudos empíricos sobre
práticas e processos de
sociabilidade online.
Sociologia e Comunicação.
12- Jornalismo Digital
Estudos teóricos e empíricos sobre as novas práticas, linguagens e rotinas
produtivas jornalísticas em
função das Tecnologias de
Informação e Comunicação
13- Entretenimento Digital
Estudos sobre estéticas,
formatos, gêneros, características e produtos e
Comunicação, Sociologia,
práticas culturais do campo
Estética, Estudos Culturais
do entretenimento que
estão presentes na cultura
digital
Sociologia, Literatura
Comparada e Cinema.
Comunicação.
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Conforme já foi exposto em um estudo anterior (AMARAL;
MONTARDO, 2010), percebe-se, a partir desta tabela, a natureza interdisciplinar dos estudos sobre Cibercultura. Vale ressaltar que duas novas
categorias emergiram da análise dos Núcleos de Pesquisa da Intercom
quando comparada às que foram inspiradas pela comparação dos estudos
de Cibercultura do Brasil e dos Estados Unidos: a de Jornalismo Digital
e a de Entretenimento Digital. Tais categorias, conforme o explicitado na
tabela 1, voltam-se para a influência das Tecnologias de Informação e de
Comunicação nas práticas jornalísticas, consistindo em estudos empíricos
ou teóricos sobre o tema. A outra é a categoria de Entretenimento Digital
que incorpora trabalhos, em sua maioria empíricos, que analisam produtos
da cultura pop, seu papel e suas apropriações dentro da cibercultura, como
games, música etc. Cabe destacar que, no período analisado, sempre houve
o Núcleo de Pesquisa em Jornalismo na Intercom, mas que não existe um
GP específico que discuta o Jornalismo Digital9.
A seção a seguir traz os resultados obtidos, bem como comentários sobre
os mesmos.
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.01, Nº34, 1º semestre 2011
109
Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
3.4 Produção acadêmica sobre Cibercultura na Intercom (2001-2010)
Ainda quanto à amostra, vale ressaltar que a ideia inicial era analisar o
período de 2000-2010. Porém, os anais disponíveis no site da Intercom relativo ao XXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado em
Manaus (AM) não consta nenhum núcleo de pesquisa voltado aos estudos de
Cibercultura entre os 26 existentes10. Por conta disso, a análise se deu a partir
do ano de 2001.
3.4.1 Temáticas da produção em cibercultura 2001-2005
Entre 2001 e 2005, o NP Tecnologias da Informação e Comunicação
teve 3 diferentes coordenadores. Todos professores-doutores vinculados a
Programas de Pós-Graduação em Comunicação: Paulo Vaz, da UFRJ (20012002); Simone de Sá, da UFF (2003-2004) e Erick Felinto, da UERJ (2005).
Para fins de facilitar a análise, a tabela abaixo traz as temáticas predominantes entre 2001-2005 no NP Tecnologias da Informação e da Comunicação, bem
como o número de trabalhos apresentados, e o (a) coordenador(a) de cada biênio.
Tabela 2 – Temáticas da Cibercultura no Intercom de 2001-2005
Categorias de
temas
2001 –
Campo Grande,
MS
Coordenação/No. Paulo Vaz
de trabalhos
(UFRJ)-43
Linguagem (42)
Critica da Técnica / do Imaginário tecnológico
(32)
Subjetividade
(20)
Apropriação tecnológica (40)
Economia Política da Comunicação Mediada por
Computador (5)
Ciberativismo (7)
Epistemologia (4)
Imaginário Tecnológico (20)
Inclusão Digital
(5)
Práticas de
Consumo Mercadológico (5)
2002
Salvador, BA
2003
Belo Horizonte,
MG
2005
2004
Rio de Janeiro,
Porto Alegre, RS
RJ
Paulo Vaz
(UFRJ) –
50
Simone de Sá
Pereira (UFF)
- 32
Simone de Sá
(UFF) – 30
Erick Felinto
(UERJ) – 49
10
17
5
5
5
6
6
6
4
10
6
4
5
5
11
11
6
3
9
1
1
1
1
1
1
2
4
3
4
6
5
1
3
2
3
1
4
1
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1
1
1
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Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
Categorias de
temas
Sociabilidade
online (6)
Jornalismo
Digital (8)
Entretenimento
digital (10)
2001 –
Campo Grande,
MS
2
2002
Salvador, BA
2003
Belo Horizonte,
MG
2005
2004
Rio de Janeiro,
Porto Alegre, RS
RJ
2
4
1
2
2
2
3
1
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Em primeiro lugar, destaca-se, nos anos de 2001 e 2002, o número
de trabalhos apresentados nas categorias Linguagem (10-17) e Apropriações
Tecnológicas (11-11), revelando a predominância de trabalhos que combinam
abordagens empíricas e reflexões teóricas. Chama a atenção, também, que
no ano de 2001 tem-se a maior concentração de trabalhos sobre Práticas de
Consumo Mercadológico, de estudos empíricos, portanto.
Bastante curioso é o fato de existirem nesses dois primeiros anos analisados trabalhos que hoje em dia não chegariam a integrar os GPS da DT
Multimídia. Trata-se de estudos sobre fotografia offline. Provavelmente,
a fotografia, nessa época, fosse interpretada como uma Tecnologia da
Informação e da Comunicação.
Com relação à categoria Crítica da Técnica/do Imaginário Tecnológico,
observa-se uma certa constância em sua ocorrência no NP considerado, havendo aumento no final do período. Um aumento constante de ocorrências
pode ser visto também na categoria Imaginário Tecnológico. Subjetividade é
uma categoria que apresenta certo equilíbrio neste período. Nada comparável
à categoria Economia Política da Comunicação Mediada por Computador
em termos de equilíbrio, pois apresenta apenas um trabalho em cada um dos
anos entre 2001 e 2005.
Percebe-se na tabela acima o aumento de interesse a respeito da categoria
epistemologia em 2005 quando comparada a ano de 2001 (4-1). O mesmo
acontece com os estudos de jornalismo no âmbito das TIC, categoria representada por quatro trabalhos no fim do período em comparação com os anos
anteriores de análise. O contrário pode ser percebido na categoria Inclusão
Digital, com um decréscimo no número de trabalhos apresentados.
Na produção científica desses cinco anos analisados, nota-se certa
constância no interesse por entretenimento digital, havendo uma pequena
queda no final do período.
3.4.2. Temáticas da produção em Cibercultura no Intercom 2006-2010
Durante esse período houve uma ampliação do número de trabalhos
recebidos, passando de 203 para 243 trabalhos apresentados. A mudança mais
significativa aconteceu em 2008 quando o NP TICs transforma-se em GP
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.01, Nº34, 1º semestre 2011
111
Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
Cibercultura e nesse ano recebe 59 trabalhos, um recorde ao longo de seus 10
anos. Percebe-se que os três coordenadores do GP estão vinculados a PPGs
da área de Comunicação: Erick Felinto, da UERJ (2006-2007), que foi até
agora o coordenador que permaneceu por um triênio; Alex Primo, da UFRGS
(2008-2009) e a atual coordenadora, Fátima Regis, da UERJ (2010).
Abaixo sistematizamos novamente as categorias temáticas em uma tabela.
Tabela 2 – Temáticas da Cibercultura no Intercom de 2006-2010
Categorias de
temas
Coordenação/No.
de trabalhos
Linguagem (22)
Critica da Técnica / do Imaginário tecnológico (17)
Subjetividade
(23)
Apropriação tecnológica (23)
Economia Política da Comunicação Mediada por
Computador (4)
Ciberativismo
(16)
Epistemologia,
Teorias e Metodos (7)
Imaginário Tecnológico (11)
Inclusão Digital
(14)
Práticas de
Consumo Mercadológico (12)
Sociabilidade
online (27)
Jornalismo
Digital(27)
Entretenimento
Digital (26)
2006 –
Brasília, DF
2007
Santos, SP
2008
Natal, RN
2009
Curitiba, PR
2010
Caxias do Sul,
RS
Erick Felinto
(UERJ) – 40
4
Erick Felinto
(UERJ) – 45
3
Alex Primo
(UFRGS) – 59
7
Alex Primo
(UFRGS) – 48
2
Fátima Régis
(UERJ) – 49
6
1
8
3
4
1
4
3
3
7
6
4
2
5
6
6
3
1
4
4
1
4
3
1
2
2
1
1
3
2
4
5
3
3
1
2
3
1
2
4
2
4
5
8
3
6
1
3
8
9
6
2
4
8
6
6
2
Fonte: Elaborada pelas autoras.
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.01, Nº34, 1º semestre 2011
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Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
Nessa segunda metade dos anos 00, percebe-se um maior equilíbrio distributivo no número de trabalhos entre as categorias temáticas. No entanto,
notadamente o número de trabalhos de cunho empírico entra em expansão
em relação aos de cunho apenas teórico. Isso pode ser observado principalmente na redução de trabalhos apresentados na categoria Crítica da Técnica/
do Imaginário Tecnológico (17) e na categoria Imaginário Tecnológico (11).
Esta última, pela primeira vez, não aparece em um ano do GP (em 2009). Em
franca expansão, as categorias como Sociabilidade Online (27) e Apropriação
Tecnológica (23) apresentaram um número expressivo de trabalhos apresentados. A categoria Economia Política da Comunicação Mediada por Computador
(5) manteve-se presente com a mesma média de trabalhos, contudo, eles foram concentrados nos anos de 2006 e 2008. No entanto, é preciso salientar
que existe um GP específico sobre Economia Política e que, provavelmente, a
maior parte dos trabalhos dessa abordagem, mesmo que tratem de fenômenos
da cibercultura, seja endereçada para lá.
As categorias Jornalismo (27) e Entretenimento Digital (26) ganham força nesse contexto, assim como a categoria Práticas de Consumo
Mercadológico. Observamos, assim, que as questões relacionadas às reconfigurações das práticas e rotinas produtivas jornalísticas, publicitárias e das
marcas, além das rotinas da comunicação organizacional no contexto da
cibercultura, emergem de forma expressiva, mostrando a inserção cotidiana
das TICs nos contextos profissionais da Comunicação. No âmbito específico
do Entretenimento observamos o crescimento da análise dos games de forma
muito marcante, da cultura dos fãs, dos seriados televisivos e sua relação com
a web e das formas de consumo e fruição da música em sites de redes sociais
e via apropriação de outras tecnologias.
As mobilizações sociais produzidas nos ambientes online repercutiram
em um número alto de trabalhos sobre Ciberativismo (16), Sociabilidade
Online (27) e Inclusão Digital (14). Os trabalhos pertinentes à Linguagem
(22), sobretudo nas questões relacionadas à hipertextualidade e às discursividades dos formatos e gêneros online, continuam sendo constantes no GP. E
os aspectos de visibilidade, vigilância e construções identitárias dos sujeitos
estão presentes na categoria temática Subjetividade (23). Há um crescimento
da categoria Epistemologia, Teorias e Métodos (7), tendo aparecido em todos
os anos dessa segunda metade da década e levantando tanto questões de ordem
teórica quanto em relação à discussão de métodos e metodologias que procurem dar conta das especificidades da pesquisa em cibercultura.
Entre os dois períodos da produção do GP é possível observamos claramente o delineamento de um perfil que está relacionado à área, tendo ocorrido
um crescimento de artigos empíricos em relação aos teóricos. Mesmo assim,
o GP, nesses seus 10 anos, mostra-se equilibrado e cada vez mais discutindo
questões emergentes no campo. No entanto, apesar da queda dos artigos teóricos apresentados, observou-se um aumento do interesse pela discussão de abordagens metodológicas e de definições operatórias para apropriação das teorias
em consonância com o campo empírico.
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.01, Nº34, 1º semestre 2011
113
Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
3.5. Comparação entre as categorias temáticas do GT Comunicação e
Cibercultura Compós (2000-2010) e do GP Cibercultura da Intercom
(2001-2010)
Ao relacionarmos os resultados obtidos com a análise anterior (Brasil/
EUA – GT Cibercultura Compós/AoIR), numa primeira mirada já são destacadas a emergência de mais duas categorias temáticas: Jornalismo Digital e
Entretenimento Digital. A primeira não ocorre no GT da Compós (talvez pela
abertura e profundidade das temáticas do GT de Jornalismo daquele evento);
mas a segunda tem ocorrido com certa frequência, embora naquele momento
da análise (2010) as tenhamos compreendido como parte ora das categorias
de Apropriação Tecnológica, ora de Sociabilidade, além da de Linguagem, o
que seria o caso de revisar aquele primeiro mapeamento. No caso específico da
Intercom, o Entretenimento Digital ganha um amplo destaque. Isso também
se deve ao fato de que temáticas como os games e a música estarem sendo muito pesquisadas em âmbito de mestrado e doutorado e talvez ainda não estejam
tão inseridas nos projetos de pesquisa dos professores orientadores per se (com
exceções, é claro). Já em relação ao Jornalismo Digital, percebe-se um indicativo da possibilidade da abertura de um GP específico de Jornalismo Digital/
Ciberjornalismo dentro da DT 01 – Jornalismo da Intercom.
Além da questão das categorias temáticas, verifica-se o mesmo crescimento em termos de artigos mais voltados à teorização e à aplicação empírica
com diferenças temporais, evidentemente. E, por fim, o interesse por temas
relacionados à questão epistemológica metodológica específica tem encontrado ressonância em ambos os grupos.
4. Considerações finais:
A partir desse artigo mapeamos mais um importante fórum de divulgação da pesquisa em Cibercultura no Brasil, o GP Cibercultura da Intercom
e observamos a emergência de mais duas categorias temáticas nos trabalhos
apresentados: Jornalismo Digital e Entretenimento Digital. Também observamos o crescimento quantitativo - foram 443 trabalhos apresentados ao
longo de 10 anos - da pesquisa nessa área no Brasil (por mestres, mestrandos,
doutorandos e doutores) e o aumento significativo da produção da pesquisa
empírica sobre Cibercultura. Os dados aqui apresentados compõem mais
um elemento na descrição e compreensão dos fenômenos do campo. Outros
tantos ainda necessitam ser elocubrados.
Tais dados, comparados ao estudo anterior sobre o GT Comunicação
e Cibercultura da Compós, mostram o desenvolvimento da pesquisa sobre
os fenômenos da cibercultura e começam a delinear um panorama desse
campo em suas temáticas e abordagens teóricas. Nesse sentido, um próximo
passo seria mapear o terceiro fórum nacional de pesquisa em Cibercultura:
o simpósio anual da ABCiber, que chegará em novembro de 2011 a sua
quinta edição. Também torna-se mister pensar, para mais adiante, a produção de teses e dissertações e as próprias revistas e livros para fechar a
questão da produção científica.
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.01, Nº34, 1º semestre 2011
114
Montardo e Amaral. Pesquisa em Cibercultura: análise da produção brasileira da Intercom
Por fim, é necessário observar que, para além da produção científica, seria
importante observar as linhas de pesquisa dos Programas de Pós-Graduação,
Grupos de Pesquisa, bem como as formações dos pesquisadores, entre outros
elementos que constituem o campo.
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WELLMAN, Barry. The three ages of internet studies: ten, five and zero
years ago. New Media & Society. London, Vol. 6 Issue 1, p123-129, 2004.
Notas:
1- As edições regionais (Intercom Sul, Intercom Sudeste, Intercom Nordeste, Intercom
Centro-Oeste) antecedem o congresso nacional e não serão objeto de análise aqui
por saírem do escopo desse paper.
2- GPs (Encontro dos Grupos de Pesquisa), Libercom (mesas-redondas), Intercom
Júnior (dedicado a graduandos, bolsistas de IC, recém-graduados) e Expocom
(mostra competitiva de trabalhos produzidos em disciplinas da graduação das
universidades e faculdades) são alguns dos vários eventos que compõem o congresso.
3- Alunos de graduação e recém-formados podem apresentar seus artigos no
Intercom Júnior, evento que compõe os congressos nacionais e regionais, nas
mesmas divisões temáticas.
4- A partir desse mesmo ano, sob coordenação do professor Dr. Alex Primo (UFRGS)
é inaugurado o Blog do GP Cibercultura Intercom, meio utilizado tanto para
a comunicação da programação dos trabalhos a serem apresentados como para
discussão e divulgação dos relatórios e observações dos participantes. Disponível
em: <http://nptic.wordpress.com/>. Acesso em: 12 jul. 2011.
5- Não foi localizada a ementa do tempo em que o GP era o NP TICs. (2001-2008).
6- Disponível em: <http://nptic.wordpress.com/2009/09/21/relatorio-do-gp-naintercom-2009/>. Publicado em: 21 set. 2009. Acesso em: 07 jul. 2011.
7- Outro dado interessante é que a DT Comunicação Multimídia também está
presente nos congressos regionais da Intercom e que essa produção mais regional
tem sido valorizada. Nos anos de 2009 e 2010, respectivamente, a DT Comunicação
Multimídia do Intercom Sul – a região sul é uma área na qual a pesquisa em
cibercultura tem uma concentração expressiva de pesquisadores - conseguiu lançar
e-books compilando e organizando os artigos apresentados em 2008 (BALDESSAR,
2009) e 2009 (AMARAL, AQUINO e MONTARDO, 2010).
8- Disponívelem:<http://www.portalintercom.org.br/index.php?option=com_conte
nt&view=article&id=1081&Itemid=125>. Acesso em: 13 jul. 2011.
9- Atualmente, a configuração da pesquisa sobre Jornalismo na Intercom está
dividida da seguinte maneira. Existe a Divisão Temática Jornalismo e dentro dela
se encontram cinco GPs. São eles: Gêneros Jornalísticos, História do Jornalismo,
Jornalismo Impresso, Teorias do Jornalismo e Telejornalismo.
10- Apesar disso, localizamos vários trabalhos que tratam de temáticas pertinentes à
cibercultura em diferentes GPs como em Teorias da Comunicação, Comunicação
e Cultura Popular, entre outros. Contudo, optamos por não incluí-los na análise
por dois motivos: 1) porque poderiam ter sido adaptados à ementa dos GPS aos
quais foram submetidos; 2) porque provavelmente esse foi um dos motivos para
a organização e constituição do GP no ano posterior.
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.01, Nº34, 1º semestre 2011
116
O Muzak e as indústrias culturais:
Os hábitos da escuta e da experiência
contemporânea com a criatividade musical
The Muzak and cultural industries:
The habits of listening and contemporary experience
with musical creativitys
Rodrigo Fonseca e Rodrigues | [email protected]
Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999) e mestrado em Comunicação
Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002). Doutor em Comunicação e Semiótica, pela PUCSP ( 2007). É pós-doutorando pela Universidade Nova de Lisboa. Atualmente é professor Adjunto I (
Metodologia Científica, Comunicação, Arte e Estética) da Universidade FUMEC. Tem experiência na área
de Comunicação, com ênfase em linguagem, semiótica, teorias da Comunicação, música e metodologia de
pesquisa, atuando principalmente nos seguintes temas: criação, escuta, música, linguagem, subjetivação,
desejo e internet. Atua como assessor parecerista ad hoc da FAPESP. Editor da Revista Mediação. É autor
do livro “Música Eletrônica: a textura da máquina.”.
Resumo
A partir de um esforço de definição conceitual do termo Muzak, utilizado para designar um produto da
indústria fonográfica que institui hábitos cotidianos de experiência musical, este trabalho tenta aventar
as modalidades históricas da escuta e as suas possibilidades criativas nos contextos contemporâneos. O
Muzak será um pretexto para motivar uma discussão de caráter epistemológico nos estudos da comunicação, que merecem um investimento de retorno a questionamentos de princípios conceituais e de aportes
teóricos. Em vez de somente recensear gêneros, cenas e sistemas de produção da máquina da cultura musical, este texto apresenta uma breve revisão crítica sobre o pensamento da semiótica e da filosofia da arte,
a fim de conceber o Muzak sob o ângulo da escuta, tratando de ultrapassá-la como mera recepção musical
e de pensá-la como uma atividade criativa.
Palavras-chave: indústria cultural, experiência musical, Muzak, comunicação, epistemologia.
Abstract
From a conceptual effort to define the term Muzak, used to designate a product of the music industry establishing daily
habits of musical experience, this paper tries to suggest the historical modalities of listening and creative possibilities in contemporary contexts. The Muzak is an excuse to motivate a discussion of epistemological in communication studies, which
require an investment return to the questioning of the conceptual and theoretical frameworks. Rather than just identify
genres, scenes and production systems of the machine from musical culture, this paper presents a brief critical review on the
thought of semiotics and the philosophy of art, to conceive the Muzak from the standpoint of listening, trying to overcome
it as mere reception and think about it as a creative activity.
Keywords: cultural industry, musical experience, Muzak, communication, epistemology.
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Maia e Pereira. Apontamentos sobre a relação entre liberdade de imprensa e identidade profissional dos jornalistas.
John Cage, 1961, dizia, em Silences, livro repleto de chistes contra os preconceitos da escuta contemporânea especializada, amiúde refratária diante dos
novos desafios poéticos e tecnológicos aos quais se via instigada, que um ouvinte
indiferente aos ruídos urbanos, como os de elevadores, por exemplo, apoiava
a sua concepção de música em obsoletos alfarrábios. O compositor canadense,
contudo, não imaginara que, além da estática figura do ascensorista, teríamos
um recurso sonoro para tranqüilizar os passageiros claustrofóbicos: o chamado
“Muzak”. Melodias conhecidas soando em baixos decibéis, direcionadas a um
plano subliminar da atenção, fariam com que, no futuro, compositores como
Tom Jobim e Michel Legrand brincassem entre si, ao se nomearem mutuamente
como “reis do elevador”. Fato é que a Muzak alastrou-se como um lucrativo ramo
dos negócios da indústria da música.
A fórmula dos produtores do Muzak stricto sensu era, a princípio, recensear canções ou peças musicais que, largamente veiculadas pela rubrica da
indústria fonográfica, em algum momento alcançaram amplo sucesso de público. Esta se define, em sua concepção simplista, como um modo de “tradução” ou de adaptação facilitada (ou corrompida, para muitos críticos) de obras
por vezes mais complexas, rítmica ou harmonicamente, sempre sem o texto (a
letra). Os produtores de Muzak inicialmente adaptavam tais obras a arranjos
comedidos e triviais, restringindo as sonoridades e timbres que facilitariam o
reconhecimento de suas fontes e elementos formais, no intento de acomodar
a escuta a estados de ânimo previamente desejados para esta finalidade. Há
certamente gêneros preferenciais na escolha de composições a serem travestidas para a orquestração Muzak, como se atestam facilmente a bossa nova,
as canções-temas de filmes clássicos, as baladas românticas, os singles da hit
parade, boleros e outros ritmos latinos, além de standards do jazz em suas fases de cariz mais tonal. Afiguram-se, a este respeito, inúmeros exemplares do
compositor de Garota de Ipanema, dos Beatles, de Burt Baccharat, Elton John,
Cole Porter, entre outros grandes melodistas bissextos. Imaginamos igualmente esta prática como uma área altamente catalisadora da cobiçosa indústria dos
direitos autorais, uma vez que a natureza do Muzak pressupunha uma reutilização do sucesso garantido. A este respeito, imaginamos que o arranjador e
band leader Ray Conif, sucesso de vendas nos anos sessenta e setenta, deve ter
desembolsado em pagamento de royalties tudo o que economizou em esforço
criativo. E quando Joaquin Rodrigo, esquecendo-se de quanto já recebera pelas
inúmeras pasteurizações de seu clássico Concerto de Aranjuez, criticou a versão
que Miles Davis lhe dera em 1960, o trompetista o advertiu, com ironia, afirmando que o compositor passaria a apreciar mais a sua interpretação jazzística
quando os royalties começassem a engordar sua conta bancária.
Designações como, por exemplo, canned music (termo já empregado em
1907), easy-listening, bubblegum, subpop, “papel de parede sonoro” ou simplesmente “música orquestrada” (justificando-se pelo seu aspecto eminentemente instrumental ) concernem a arranjos musicais discretos que remetem a
uma escuta desatenta, secundária, distraída, subliminar. Uma audição passiva ocorrendo enquanto se fazem tarefas rotineiras, percorrem-se espaços públicos, como aeroportos, elevadores, supermercados ou salas de espera. Estas
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expressões estendem o significado de Muzak às produções musicais voltadas
para uma escuta descomprometida, no sentido adorniano encontrado em O
fetichismo na música e a regressão da audição (1938). Tal como a chamada “música ligeira”, essa não oferece ao ouvinte nenhum desafio estético, ou seja, cognitivo, crítico e utópico.1
Houve, muito antes de imputar-se tal regressão da escuta à lógica da
indústria cultural, infinitas ocasiões nas quais a música não compreendia, para
certa audiência, nenhum protagonismo perceptivo ou artístico. Procedimentos
similares deste modo funcional e coadjuvante da escuta musical ao longo da
história podem ser brevemente relembrados: as notas que se desprendiam da
harpa de Davi e aplacavam a ira do rei Saul, os cânticos e as percussões hipnóticas que enredavam-se aos cultos religiosos, cerimônias cívicas ou mesmo ocasiões de combate, como uma espécie de trilha sonora que pontuava situações
coletivas para reforçar o seu caráter, ora catártico, ora meramente espetacular.
A exemplo do teatro grego, temos relatos de que a música do coro exercia funções de contraponto com a imagem, a narrativa, a gestualidade e os estados
psicológicos sugeridos pelas tramas dos seus dramaturgos. Através das situações tanto sociais quanto íntimas, a música foi, em muitos momentos, um tipo
de plasma sonoro imprescindível nos templos, na corte, nas feiras, campos de
batalha, festas familiares e mesmo nas clínicas, academias e ginásios.
O século XX é pródigo de utilizações desta natureza, resguardadas as distâncias, como no caso do cinema, das exposições mundiais, enfim, nas produções audiovisuais e instalações de arte e happenings. Há algumas décadas vieram
ao já conhecido repertório de rótulos musicais a ambient music, a scapemusic,
a new age, etc, que, a despeito de serem equivocadamente confundidas com a
música minimalista de Steve Reich, Terry Riley, Philip Glass, Michael Newman
- tão distantes entre e si e do próprio termo que os rotula! - e a “discret music”
de Brian Eno, surgiram como nichos de produção musical voltados, como já o
dissemos, para funções específicas de experiência e de consumo da música. Este
procedimento, com alguma licença, pode ter dado início a um certo gênero, mas
o Muzak pode ser problematizada diferentemente, como veremos adiante. Este
exercício inicial de definir o Muzak nos atestam como é canhestra qualquer tentativa de caracterizar categoricamente um gênero, um estilo e principalmente, o
status social ou artístico de uma certa manifestação musical.
Por que pensar, entretanto, a Muzak e a experiência contemporânea da
escuta musical a partir dos escopos epistemológicos da comunicação social?
Com que finalidade estudar o processo de produção Muzak como um sintoma
da indústria cultural e fonográfica que diz respeito mais à funcionalidade, ao
sensacionalismo e aos estados perceptivos do que a uma suposta sensação estética? O que esta estratégia musical tem a ver com a experiência da escuta? Seria
sequer uma experiência estética? De que natureza seria tal escuta? A quem interessa diretamente e indiretamente o consumo da Muzak? Há sempre à espreita,
nos estudos da comunicação, o perigo tentador de se confundir um corpus empírico com o objeto, ou seja, de se analisar gêneros por suas qualidades formais,
de distinguir cenas de práticas coletivas por critérios redutores de identificação
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e estruturas coletivas, ao invés de se investir num retorno ao questionamento
de aportes teóricos e princípios epistemológicos apressadamente abrigados sob
o nome de “comunicação social”.
Acreditamos que a compreensão da produção e experiência da Muzak
poderia provocar especulações de pensamento, desde que este objeto nos motive pretextualmente a vislumbrar nuances silenciosas pelas quais as práticas
da produção musical que se valem da criação de paisagens sonoras ou de
designs de ambientes sonorizados afetariam a nossa experiência social, como
uma espécie de “política da existência”. O conceito de política, não etimológica, mas epistemologicamente tratado, poderia nos levar a conceber a experiência com a arte sob a tensão de uma constante negociação com nossas
condições de existir. E torna-se impossível pensar a nossa micropolítica social
contemporânea sem a onipresença da mídia.
A partir da lente teórica dos frankfurtianos, a Muzak poderia ser tomada como a manifestação de um propósito comum a quaisquer estratégias de
produção cultural: a sutil comoção dos afetos, com fins meramente mercadológicos, sob uma suposta “ideologia da má consciência”. Recorde-se, no que
tange aos campos da experiência musical, que estes autores desqualificavam
artisticamente qualquer música que não pertencesse ao rol dos compositores
eruditos, chegando a execrar o jazz das big bands e mesmo a poética de compositores como Benjamin Britten e Igor Stravinsky, pelo fato de estes não
aderirem à, então, inédita poética dodecafônica. Não precisamos, contudo,
nos apegar a motivações ideológicas ou tampouco nos resumir a apontar a
produção da Muzak como sintomática das violências da vida urbana moderna, da prevalência do descartável e do lixo, como queria, por outra via,
denunciar Murray Shafer, ao se valer do termo “esgoto sonoro” para se referir
à invasão da música de consumo.
A experiência da escuta que envolve o nosso convívio com a Muzak, se
tomarmos como exemplos as fases da experiência semiótica peirceana ligadas
à audição, poderá ilustrar muitas maneiras triviais pelas quais atualmente escutamos. Resumidamente, pode-se falar de processos icônicos, indiciais ou
simbólicos gerados pela semiose na escuta musical. Peirce, como sabemos, categorizava a experiência em três fases do tempo: a primeiridade, a secundidade
e a terceiridade. A performance icônica, ligada a primeiridade, parece ser, contraditoriamente, a mais exigente para a semiose da escuta musical. Isto porque,
ao contato concreto com o som, tudo o que soa tem de ser auto-referente.2 A
secundidade, indicial, daria conta do trabalho de reconhecimento auditivo. O
trabalho indicial da escuta é o processo em que imagens são geradas por associação inferente, que deduz uma idéia, uma situação a partir de um indício
sonoro. Há muitos condicionamentos ligados à escuta nesse processo, porque
tendemos a encenar uma situação, um acontecimento, quando estimulados
por certos movimentos sonoros, harmônicos, melódicos, ruidísticos. O simbolismo que se instala por via da audição, pertencendo a terceiridade peirceana, é parte de um pacto muito arraigado a uma ordem de valores incutidos
em nossa cultura musical. É o processo no qual a escuta arrebanha muitas
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memórias culturalmente condicionadas. E isso tudo já afeta, logo de início, a
predisposição da escuta. A dimensão simbólica da audição é aquela a que mais
se dedicam os discursos midiáticos especializados.3
O compositor e autor Pierre Schaeffer se obstinou em classificar, no seu
Traité des Objects Musicaux (1969), quais desdobramentos semiósicos seriam
possíveis na atividade da escuta. Schaeffer postulava, valendo-se de especificidades da língua francesa, a existência de quatro principais modos de escuta
que, quando combinados, se subdividiriam em sete níveis de percepção. São
estes, respectivamente: ouïr, ecouter, entendre e comprendre. A primeira função
da escuta, ouïr, se dá pelas percepções brutas de esboços do objeto sonoro, estabelecendo relações de semelhança ou analogia entre o representamen e o objeto.
Seria como ouvir e gerar, rapidamente, uma imagem mental análoga ao objeto
sonoro sentido. O segundo modo de escuta, ecouter, é uma função que estabelece relações indiciais entre o signo e o objeto. Seria algo como suscitar a imagem da fonte originária do som, ou seja, quando se reconhece a sua causalidade
ou a sua “história energética”. Por exemplo, reconhecer que de qual instrumento musical ou dispositivo sonoro (sintetizadores, samplers etc.) um dado som
deriva. O terceiro modo da escuta, entendre, são as operações do intelecto que
qualificam o som, como as relações entre notas, intervalos, durações métricas
e toda a arquitetura sintática e formal que sistematiza a organização da música.
A quarta escuta, comprendre, remete aos valores, ao sentido e à emergência de
infinitas conotações. É um trabalho que a escuta faz de “co-preensão” do sonoro com idéias extra-sonoras. Compreender, na concepção schaefferiana, aponta
para a última e mais complexa etapa da experiência sonora.4
Se começarmos o nosso exercício de indagações assumindo movimentos
não apenas sonoros, mas insonoros na escuta, é necessário, desde já, explicitar
uma séria recusa à noção defendida pelas correntes teóricas como a neuropsicologia acústica. Segundo as suas concepções fisicalistas, define-se por “onda sonora” a compressão do ar, cujas moléculas se deslocam a partir de uma fonte de
emissão. Escutar seria traduzir, pelo sentido da audição, vibrações mecânicas
em processos químicos, em nosso cérebro. Assentada numa concepção computacional do cérebro e na figura de um “sujeito cerebral”, a psicoacústica atribui
a processos cerebrais cognitivos e afetivos pelos quais a informação é levada
por sinais mecânicos e, por sua vez, analisada, armazenada, recuperada, intercomparada e interpretada como o real trabalho da escuta. Esta não passaria de
aquisição de informação, do seu processamento e armazenagem motivada por
impulsos somáticos, gerando estados afetivos, como seria o caso da emoção.
Esta é a manifestação integral de uma função cerebral chamada “recompensa
límbica”. O sistema límbico, responsável pelas imagens evocadas internamente
e exibidas no córtex, seria acionado por entradas somáticas e ambientais.
Já o filósofo Henri Bergson (1999) utiliza o termo “endosmose” para
falar da escuta, pela qual se produz uma mistura complexa de muitíssimas
durações, das quais participamos. E a memória protagoniza a escuta musical,
cuja principal contribuição é a de analisar o próprio movimento mnemônico
que contrai uma multiplicidade de sensações para fazer uma síntese sonora,
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semiósica, musical. Quando escutamos, diz Bergson, antes do aparecimento de qualquer imagem da lembrança ou projeção de estados sentimentais,
somos tocados por um mundo que é primordialmente vibratório, um mundo feito de ritmos e modulações de forças, nem todas elas sonoras. Muitos
desses ritmos escapam às durações conscientemente vividas, processando-se
por entre os hiatos dos sentidos perceptivos, que a memória, previamente
“educada”, vai destramente preenchendo.
Voltando para o nosso objeto, cogitamos se toda a gama de escolhas que
preside a criação musical contemporânea vinculada ao chamado mainstream não
estaria a condicionar a todos – quem produz e quem consome – bem como os
hábitos cotidianos de escuta, nos quais temos de incluir os walkman surgidos nos
anos setenta, o som nos automóveis, os sistemas sonoros espalhados pela casa, o
computador e os recentes ipods e celulares, não transmutariam qualquer música
em Muzak. Pergunta-se: não escutamos, por muitas vezes, Nelson Freire, John
Coltrane, Dorival Caymmi ou Amon Tobin de maneira desatenta ou entrecortada, enquanto lemos, trabalhamos ou recebemos amigos em casa? Esta hipótese
poderia nos levar a redefinir o termo Muzak e remetê-lo mais à penetração oblíqua
de um complexo de mentalidades ligadas à tecnologia, aos hábitos de consumo, aos
fetiches contemporâneos, enfim a toda aquela micropolítica da existência social.
Sob o amparo das idéias de Deleuze, o Muzak, por seu caráter de apelo
à mera recognição e de simplificação formal deliberada, se aproxima – pode-se
dizer sem nenhum temor de se cometer um acinte epistemológico - mais dos
processos “sensacionalistas” da comunicação e não dos que tangem à sensação livre e inominável da escuta musical. A afirmação procede se levamos em
conta que qualquer expressão com pretensões artísticas vive, por pressuposto,
da desestabilização dos sensacionalismos, no sentido da intenção de provocar
sistematicamente no outro, seja a partir de discursos especializados, seja de
imagens ou de signos tecnologicamente produzidos, sensações esperadas e controláveis. Enquanto a Muzak visa a orquestração das sensações rumo a estados
perceptivos, mnemônicos, emocionais, de ânimo ou mesmo de certo humor,
por exemplo, a arte musical (se assim pode ser nomeada) nos arrebata destes
estados triviais, ao desabilitar a memória e a percepção auditivas, estas antes
domesticadas pelos condicionamentos de mera recognição sonora.
Se valer a pena rememorar agora a dinâmica dialética vislumbrada por
Umberto Eco, no que remete à tensão existente entre a indústria cultural e
a criação “genuína” da arte, poderíamos dizer que os especialistas estéticos
criam fórmulas pseudoartísticas que se tornam, sem que se pretenda, materiais
instigantes para o trabalho do artista. Por seu turno, este tem suas obras futuramente reapropriadas pelos especialistas da canção de consumo, do designer
sonoro e assim por diante. São, a este respeito, notórias certas releituras de
alguns produtores, como os chamados “djs de desktop”, que bricolam clichês
musicais, sonoridades redundantes e cacofonias para reinventar a novidade na
escuta musical. Artistas da bricolagem sonora, como o Dj Shadow, apreciam
reapresentar trechos de Muzak em suas comosições. Brian Eno, já citado acima, dizia em uma entrevista o quanto o uso excessivo do reverber nas vozes e
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violinos nos discos de Ray Conif o chamaram a atenção, ainda quando criança, para os efeitos de ambiência em estúdio de gravação musical como um material rico de possibilidades. Neste momento importa demonstrar um aspecto
conceitual não raramente desprezado pelas correntes teóricas da comunicação
que se dedicam ao estudo da experiência estética e dos processos de criação
artísticas contemporâneas: o problema do “material”. Quando um jornalista especializado analisa uma composição musical, ele começa por dizer, por
exemplo, que esta é feita a partir deste ou daquele material -elementos sonoros
de uma etnia, de um momento histórico, etc.
Ao eleger o material como tema de análise, de igual maneira, o teórico
dos estudos da comunicação dedicado à experiência estética passa a dar muita
força a esse. E há uma questão acerca do material na criação e que ultrapassa a
noção de que este é simplesmente matéria dotada de forma. O material, obviamente, é tudo aquilo que se tem à disposição. É tudo o que está à mão do compositor. Esse já está atravessado de relações, sempre investido de uma experiência coletiva. O material, no limite, apenas participa como um regime inicial
na composição, podendo ele ser até mesmo o mais descartável de todos. Não
importa, todavia, que o artista se valha deste ou daquele material, sejam idéias,
sejam sons e notas musicais. O compositor pode se valer de materiais diversos:
formas musicais, dispositivos técnicos, instrumentos, o corpo, os hábitos de
audiência, os traços de uma época, uma fórmula, uma figura -um ritmo, um
gesto, um rosto, etc. Ele também pode se servir de um sistema sintático, de um
significado, de uma gama de timbres, de uma célula rítmica, etc. Tudo isso já
vem carregado de história, de sentido e de símbolos que são em si mesmos materiais. E o material na arte estará, ironicamente, sempre em uma relação paradoxal com a sua própria e necessária abolição. Ademais, pode-se até dizer que
um material será sempre mais adequado quanto menor resistência ele tiver para
desaparecer. O que se chama usualmente de material, a despeito de se referir
a toda matéria que sofre as intervenções do compositor, é apenas um pretexto
para uma composição que, em última instância, maquina novos ritmos para
a sensação. Para Deleuze, quem compõe estará, na realidade, a compor com
a principal “matéria-prima” da arte, por direito: as sensações. Problematizar a
escuta contemporânea frente às prerrogativas de produção sonora, possibilitadas pelos usos das tecnologias recentes, nos reenvia para além dos princípios
técnicos e materiais que empregam. Vale frisar que toda a amplitude e heterogeneidade de materiais sonoros e de recursos técnicos não bastam para garantir
qualquer novidade para a escuta. Compor, para além de combinar materiais,
seria sonorizar sensações, afetos, pensamentos, reminiscências. O que conta na
composição, enfim, é o poder de desestabilizar a memória trivial, recognitiva.
A escuta, num sentido holístico, não seria simplesmente recepção, pois
não haveria nenhuma precedência natural da fonte sonora sobre a escuta.
Escutar é um processo criativo que se faz a partir de investimentos que instaurem a presença do ouvido na composição. Por isto, os atributos que normalmente apontamos ao compositor seriam subsidiários do que ele efetivamente
fizer da escuta. Compor não se trata meramente de organizar sons e notas,
melodias e ritmos, tampouco é encadear signos acústicos. É também um tipo
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de operação diferencial sobre aquilo que chamamos de cultura, de história, de
vidas. Fazer peças sonoras trata-se, afinal, de uma idéia inexistente: o que se faz
é a escuta. O que se movimentaria, entretanto, não seria antes a escuta, e não o
som? E a escuta, pensada desta maneira, poderia ser muito mais do que captar,
ouvir aquilo que soa. Se a escuta não repousa apenas no sonoro e, tampouco, é
uma ação puramente auditiva, a questão é, afinal, a de ouvir não o som, nem o
que está no som, e sim o que está no escutar. E há uma grande distância entre
algo que “nos faz escutar”, sob o primado da persuasão, e o incomunicável das
sonoridades, que “faz escutas”. E a escuta se faz, antes de tudo, para além dos
dotes técnicos, teóricos ou performáticos: a criação sonora será sempre um
problema do fazer da escuta, de fazer escutas.
As palavras “escuta” e “audição”, ou os verbos como “escutar” e “ouvir”
deveriam ser estrategicamente distanciados entre si. Esta distinção dar-se-ia por
uma razão: a audição e o ouvir se reportam ambos ao caráter propriamente fenomenológico, perceptivo, psicofísico do som. A escuta possui um sentido diferente. Ela agencia muito mais do que dimensões físicas, interpretativas, semióticas
ou culturais. É um conceito que diz respeito a sensações, à criatividade, ao pensamento e a micropolíticas da existência que experimentamos misteriosamente
com as sonoridades e que faz da música uma efetiva “arte de escutar”. Propomos,
ao fim desta digressão, que é necessário repensar a escuta musical como um
acontecimento singular que nos afeta para aquém dos tempos ordinários dos
estados de percepção, de lembrança, de inteligência, de competência lingüística
e de hábitos culturais; e para além das condições técnicas, chancelas econômicas
e estratégias comunicacionais midiáticas. E pensar a experiência com a música
é problematizar potências incomunicáveis – as sensações – não como meros estímulos sensoriais, mas na qualidade de uma sensibilidade inventada. E tudo
poderá se tornar material para a criação contínua de sensações estéticas, nisso residiria a micropolítica da existência. Até mesmo as “profanações musicais”, como
a Muzak, podem nos motivar a inovar a experiência da escuta.
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Notas
1 - Para o pensamento adorniano, o trabalho do artista deveria se comprometer com três princípios que irão legitimar a sua obra, a saber: o
crítico, o cognitivo e o utópico. Crítico, porque caberia à arte colocar
em crise o presente ao qual estamos confinados; cognitivo porque ela
deveria nos levar a conhecer algo que não sabíamos; e utópico porque
um trabalho da arte seria a promessa de um mundo diferente deste
em que vivemos no presente, exortando-nos a vislumbrar um mundo
novo ainda por se construir.
2 - Bem o disse G. Deleuze quando asseverou para a necessidade de
haver então uma zeroidade, caso se persistisse em escalonar as fases
da experiência, de acordo com a semiótica de Peirce, até a imediaticidade pré-sígnica no contato com o mundo.
3 - O conhecido “flash-back”, recurso da cultura midiática na escuta musical, também é um exemplo do condicionamento à memória de produção de cenas e sentimentos numa sucessão temporal já representada.
4 - A compreensão na escuta seria o mesmo que, segundo os exemplos
dados por Silvio Ferraz: “...escutar a morte, a matemática, os afetos, os povos distantes, tudo em código”. (FERRAZ, 1998, p. 54)
Ferraz encontrou um modo sintético de exprimir estas quatro fases
da escuta pensadas por Schaeffer e as resume nesta frase: “...ouvir um
instrumento (ouïr), a história de sua energia (écoute ), extrair seu quadro de material composicional (entendre), escutar toda uma política
(comprendre)” (FERRAZ, 1998, p. 54).
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O Universo Ficcional de Lost e a
Narrativa Transmidiática
Lost’s Fictional Universe and Transmedia Storytelling
Maíra Bianchini dos Santos | [email protected]
Aluna do curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM). Integrante do Grupo Jornalismo Digital (JORDI) da UFSM.
Luciana Mielniczuk | [email protected]
Professora Adjunta do Departamento de Comunicação da UFRGS e professora colaboradora do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da UFSM. Doutora em Comunicação e Cultura
Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Resumo
Este artigo estuda a expressão da narrativa transmidiática (Jenkins, 2008) no seriado norte-americano
Lost. Delimitou-se como corpus a segunda temporada do seriado, que foi estudada a partir de três categorias de análise – a presença de portais de acesso, a apresentação de conteúdos ficcionais inéditos e a
participação de consumidores em comunidades de conhecimento.
Palavras-chave: cultura da convergência; Lost; narrativa transmidiática.
Abstract
This article studies the expression of transmedia storytelling (Jenkins, 2008) in the U. S. television series Lost.
The second season of the show was delimited as the sample for analysis and it was studied from three categories
of analysis - the existence of access portals, the presentation of new fictional content and the participation of
consumers in knowledge communities.
Keywords: convergence culture; Lost; transmedia storytelling.
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Bianchini e Mielniczuk. O Universo Ficcional de Lost e a Narrativa Transmidiática.
Introdução
A narrativa do seriado norte-americano Lost 1 não se limitou ao conteúdo exibido nos episódios de cada uma das seis temporadas em que foi televisionado. Livros, jogos, miniepisódios para celular e outros produtos lançados
em suportes midiáticos auxiliares foram utilizados para expandir a história
das personagens e aprofundar a experiência de entretenimento dos fãs com o
universo ficcional da série. Em um contexto de mudanças na relação dos consumidores entre si, com os meios e com os produtos que circulam na mídia,
os criadores e produtores do seriado Lost procuraram explorar o cenário midiático atual e proporcionar a possibilidade de uma forma de consumo diferente
daquela em que o espectador somente acompanha os episódios pela televisão
a cada semana. A iniciativa não é inédita nem exclusiva do seriado, mas se
destaca pela repercussão positiva e mundial da série e por sua dimensão – pela
quantidade de histórias e de suportes complementares utilizados. Através dos
produtos lançados para outros suportes que não o televisivo, os consumidores
tiveram acesso a informações novas sobre o conteúdo dos episódios, as quais,
apesar de serem secundárias, ou seja, de não se apresentarem como indispensáveis para o entendimento do seriado, ainda assim são válidas por expandirem a
compreensão dos fãs sobre o universo narrativo de Lost.
Neste artigo, os episódios de Lost e as narrativas desenvolvidas em suportes midiáticos auxiliares foram observadas com o objetivo de mapear o uso
da narrativa transmidiática (Jenkins, 2008) na segunda temporada do seriado. Segundo Jenkins (2008), na narrativa transmidiática, cada texto adicional
contribui de forma única e valiosa para o todo e cada mídia colabora com
suas características mais fortes. Esses conteúdos disponibilizados em diferentes
suportes midiáticos são associados por portais de acesso que representam a
conexão entre as histórias de cada suporte e permitem ao espectador conhecer
múltiplas camadas de significado em um universo narrativo.
De acordo com Jenkins (2008), a narrativa transmidiática está inserida
no paradigma da cultura da convergência, o qual é baseado na articulação
das noções de convergência dos meios de comunicação, de cultura participativa e de inteligência coletiva. A convergência dos meios abrange profundas
mudanças sociais, culturais, empresariais e tecnológicas no modo como nos
relacionamos com as mídias. No âmbito da cultura participativa, os consumidores passam a ser considerados como parte ativa da criação e da circulação de novos conteúdos, e a inteligência coletiva diz respeito ao potencial
que as comunidades de conhecimento virtuais têm de alavancar o intelecto
individual, ao reunir diversas pessoas com saberes diferentes em torno de um
objeto de interesse em comum, sobre o qual elas estão dispostas a discutir e
construir novos conhecimentos.
Para avaliar de que forma a noção de transmidialidade está expressa na
construção do universo ficcional do seriado Lost2 , foram definidas três categorias de análise a partir das considerações de Jenkins (2008) sobre a narrativa
transmidiática, tendo em vista avaliar as histórias desenvolvidas nos diversos
suportes midiáticos auxiliares de Lost. São elas: 1) a presença de portais de
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acesso, 2) a apresentação de conteúdos ficcionais inéditos à história televisionada em outros suportes midiáticos e 3) a existência de comunidades de conhecimento. A segunda temporada da série foi escolhida como fio condutor para a
realização da análise por se tratar da temporada com o número mais significativo de contribuições narrativas oriundas de outras mídias além da televisiva.
A presença da narrativa transmidiática na segunda temporada do seriado
foi estudada a partir da identificação de 13 portais de acesso entre o conteúdo
dos episódios televisivos da série e o dos suportes midiáticos complementares,
entre os quais foram selecionados quatro suportes para a análise: internet (site),
celular (Lost: Missing Pieces), ARG (The Lost Experience) e jogo eletrônico (Lost:
Via Domus). A escolha dos quatro suportes e dos respectivos produtos justifica-se pelo número de contribuições narrativas apresentadas em seus conteúdos
em relação aos episódios televisionados
O Seriado Lost e o contexto da Transmidialidade
Uma mistura de drama, aventura e ficção científica, com toques de comédia e romance, Lost conta a história de um grupo de pessoas cujas vidas
estão misteriosamente ligadas a uma ilha ao sul do Oceano Pacífico. A narrativa da série inicia com a queda de um avião (voo 815) da fictícia companhia
aérea Oceanic Airlines, o qual havia saído de Sydney, na Austrália, em direção
a Los Angeles, nos Estados Unidos. No meio da viagem, porém, a aeronave
sofre uma pane nos sistemas, parte-se em três pedaços e cai na ilha misteriosa.
O grupo precisa então lutar pela sobrevivência, especialmente quando percebe
que não será resgatado, e que a ilha guarda diversas surpresas e enigmas. Ao
longo da história, cada sobrevivente também deverá confrontar os próprios
medos e inseguranças, em uma jornada de superação pessoal. Na narrativa de
Lost, a história dos protagonistas é contada de forma fragmentada, mostrando
o passado das personagens em flashbacks intercalados com a ação no tempo
presente da ilha. No final da terceira temporada, foi introduzida a técnica de
flashforward, a qual acompanha as personagens em acontecimentos do futuro,
e, na sexta temporada, a narrativa contou com flashsideways, recurso utilizado
para mostrar a vida das personagens em uma realidade alternativa.
Lost foi sucesso imediato de público3. Os telespectadores logo ficaram
intrigados com a ilha misteriosa e a história das personagens. Desde a primeira
temporada, o programa conquistou fãs dispostos a elaborar teorias, discutir
ideias e especular sobre os enigmas da ilha e o destino dos sobreviventes. O
elenco, formado por atores de diversas nacionalidades, ajudou a conquistar o
público internacional, e o programa foi transmitido em mais de 200 países4.
Segundo Porter e Lavery (2007), o que fez – e ainda faz – o público identificar-se com o seriado é a ideia de que, eventualmente, todas as pessoas enfrentam
problemas interiores e sentem-se perdidas, emocional ou fisicamente, em algum ponto da vida. Tanto as personagens quanto o público anseiam por um
recomeço, são “sobreviventes de uma vida moderna caótica, que ainda buscam
respostas para questões fundamentais” (PORTER e LAVERY, 2007, p. 67).
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Além das informações exibidas nos episódios ao longo das temporadas
na televisão, Lost conta com conteúdo desenvolvido especificamente para o site e
para as coleções em DVD, livros, jogo eletrônico, miniepisódios produzidos para
transmissão via celular e ARGs (Alternate Reality Games, ou Jogos de Realidade
Alternativa). Cada suporte midiático auxilia de forma distinta na expansão do entendimento do universo da série, como se o conteúdo de cada um deles correspondesse a uma peça de um imenso quebra-cabeça que inclui dezenas de personagens,
referências culturais, históricas, religiosas, filosóficas e científicas e uma história
que, em seis temporadas, abrange acontecimentos relacionados à ilha ao longo de
cerca de dois mil anos – da época Romana Clássica até 2008. Com a quantidade
de dados que o universo do seriado disponibiliza, os fãs deixam de ser apenas espectadores e buscam, por meio da internet, pesquisar mais informações, reunir-se
em comunidades de interesse e dividir o conhecimento que adquirem sobre a série.
Jenkins (2008) denomina o processo de fragmentação da história em múltiplos suportes de mídia de narrativa transmidiática. De acordo com o autor,
uma história transmidiática se desenrola através de múltiplos suportes midiáticos, com
cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na forma
ideal de narrativa transmidiática, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que
uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e
quadrinhos, seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração
de um parque de diversões (JENKINS, 2008, p. 135).
Segundo Jenkins, o impulso transmidiático está no centro daquilo que
ele chama de cultura da convergência, paradigma cultural em ascensão que
altera o modo de relação entre produtores e consumidores com os produtos
midiáticos e entre si. Jenkins não se refere à convergência como a união de
múltiplas funções em um único aparelho, mas sim como uma palavra que
define mudanças tecnológicas, industriais, culturais e sociais no modo como as mídias
circulam em nossa cultura. Algumas das ideias comuns expressas por esse termo
incluem o fluxo de conteúdos através de vários suportes midiáticos, a cooperação entre
as múltiplas indústrias midiáticas, a busca de novas estruturas de financiamento das
mídias que recaiam sobre os interstícios entre antigas e novas mídias, e o comportamento
migratório da audiência, que vai a qualquer lugar em busca das experiências de
entretenimento que deseja (JENKINS, 2008, p. 332-333).
Na cultura da convergência, um universo ficcional bem desenvolvido –
e, consequentemente, uma narrativa transmidiática bem-sucedida – sustenta
diversas histórias e envolve múltiplas personagens, podendo ser expandida em
diferentes suportes midiáticos. Produtos de entretenimento baseados em universos narrativos complexos, como o de Lost, oferecem grandes quantidades
de informação e estimulam os consumidores a explorar conteúdos adicionais.
Murray chama essa característica de capacidade enciclopédica, a qual “oferece
aos escritores a oportunidade de contar histórias a partir de múltiplas perspectivas privilegiadas, e de brindar o público com narrativas entrecruzadas que
formam uma rede densa e de grande extensão” (MURRAY, 2003, p. 89).
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A complexidade dos universos ficcionais explorados por meio da narrativa transmidiática exige que os fãs unam-se em comunidades de interesse para
compartilhar informações e opiniões sobre a história e reunir o conhecimento
individual de cada membro sobre o assunto. Muitas vezes, os membros de uma
comunidade criam conhecimentos em torno de uma temática sobre a qual não
existem especialistas reconhecidos no grupo. Lévy chama de inteligência coletiva a “capacidade de comunidades de interesse de alavancar o conhecimento e
a especialização de seus membros, normalmente pela colaboração e discussão
em larga escala” (JENKINS, 2008, p. 327).
A troca de informações entre os membros das comunidades disponibiliza para o intelecto coletivo todo o conhecimento existente no grupo sobre o
objeto de interesse comum em determinado momento. Esse movimento deve-se especialmente ao fato de que hoje são colocadas em circulação muito mais
informações do que uma única pessoa consegue processar (Lévy, 1999).
Produtos midiáticos capazes de elucidar investimentos intelectuais instigam a curiosidade do público e investem na capacidade de envolvimento emocional dos membros de uma comunidade de conhecimento com um produto de
entretenimento. Em geral, tais produções representam uma franquia, ou seja, o
esforço coordenado de relacionar uma marca a conteúdos ou produtos midiáticos, sendo todos eles vinculados ao mesmo universo narrativo ficcional (Jenkins,
2008). Grande parte do sucesso de franquias midiáticas como Matrix, Star Wars
e Harry Potter deve-se à dedicação e ao comprometimento dos fãs que se envolvem com essas histórias apaixonadamente. O consumidor que se caracteriza
como fã confere ao universo ficcional um valor e um significado pessoal. Para
que os produtos midiáticos provoquem o envolvimento do consumidor é preciso
que a obra não seja só uma história, mas sim um universo ficcional, rico e complexo o suficiente para sustentar o desenvolvimento de toda uma franquia.
A partir das considerações de Jenkins (2008) sobre a noção de narrativa
transmidiática, foram elaboradas três categorias de análise para o estudo: 1)
a presença de portais de acesso, 2) a apresentação de conteúdos ficcionais nas
mídias complementares, em relação às informações exibidas nos episódios televisivos, e 3) a existência de comunidades de conhecimento.
Os portais de acesso criam a conexão entre as histórias de cada suporte midiático. Dias Souza e Mielniczuk, ao abordarem a presença da narrativa
transmidiática no jornalismo da revista Época, afirmam que os portais de acesso
são caracterizados por “elementos que vinculam, por meio de um determinado
conteúdo, um suporte midiático ao outro, fazendo com que o leitor busque outra
mídia ou ferramenta de comunicação para complementar ou acrescentar informações” (DIAS SOUZA e MIELNICZUK, 2009, p. 5). Os portais são a forma
de ligação entre os conteúdos da narrativa transmidiática e representam os caminhos pelos quais os consumidores transitam pela história nas múltiplas mídias.
Através dos portais de acesso, tornam-se disponíveis conteúdos ficcionais inéditos nas mídias complementares, os quais implicam compreensão adicional para os consumidores que procuram por esses produtos. No entanto,
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identificar os portais de acesso para os conteúdos inéditos de uma narrativa
transmidiática nem sempre é fácil para os consumidores. Muitas vezes, eles enfrentam dificuldades para encontrar ou compreender determinados elementos
narrativos, ou mesmo não sabem da existência deles. Nesse sentido, torna-se de
extrema importância para a narrativa transmidiática a existência de comunidades de conhecimento, nas quais eles entram em contato com esclarecimentos
sobre o que é exibido nos episódios televisivos e reúnem todas as informações
disponíveis sobre o universo da série.
Neste trabalho, os portais de acesso que ligam as histórias distribuídas
em múltiplas mídias são considerados como o eixo de sustentação da narrativa
transmidiática, pois eles representam o modo pelo qual um universo ficcional
rico e complexo transpõe os limites de um único suporte – a televisão – e
perpassa outras mídias para oferecer conteúdo adicional aos consumidores e,
consequentemente, incentivá-los a participar de comunidades de interesse e a
compartilhar informações com outros telespectadores.
Ligações narrativas: a narrativa transmidiática no conteúdo
ficcional de Lost
Lost e as narrativas desenvolvidas em suportes midiáticos auxiliares foram
observados com o objetivo de mapear o uso da transmidialidade na segunda
temporada do seriado5. A segunda temporada de Lost foi escolhida como fio
condutor para esta pesquisa porque se observa ser a temporada com o número
mais significativo de contribuições narrativas procedentes de outras mídias além
da televisiva6. Por meio do conteúdo de alguns episódios, é avaliado de que forma
a história contada em cada uma das mídias complementares apresenta informações e pontos de vista inéditos sobre o que foi exibido na narrativa dos 24 episódios do segundo ano da série. Para sistematizar a análise, a estrutura da narrativa
transmidiática em Lost foi esquematizada a partir de seis suportes midiáticos,
sendo eles: televisão, com os episódios exibidos ao longo das temporadas; DVDs
e internet, com as informações disponibilizadas em sites oficiais e nas coleções
das temporadas em DVD; celular, com a série de miniepisódios produzidos para
esses aparelhos; ARGs; livros e jogos eletrônicos7. A análise é realizada em quatro
suportes midiáticos complementares: internet (site), celular (Lost: Missing Pieces),
ARG (The Lost Experience) e jogo eletrônico (Lost: Via Domus). A partir das ligações entre os suportes e o conteúdo televisionado, identificamos 13 portais de
acesso entre as histórias contadas na segunda temporada de Lost para a televisão
e a narrativa desenvolvida nos produtos complementares selecionados. O esquema apresentado pela Figura 1 demonstra a representação visual da estrutura da
narrativa transmidiática em Lost, a qual será explicada a seguir.
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Figura 1: Esquema estrutural das narrativas complementares de Lost em relação à história
central do seriado.
No centro da estrutura, na Área A, encontra-se o conteúdo canônico da série, aquele que é televisionado semanalmente ao longo das temporadas. Agrupados
por tipo de suporte midiático, os produtos complementares da série estão organizados de acordo com a contribuição narrativa que apresentam para Lost.
Os conteúdos disponibilizados por meio da internet e das coleções das
temporadas em DVDs (Área B) encontram-se na base da estrutura, pois são
os suportes que dão sustentação ao universo da série. O material das coleções proporciona uma visão aprofundada sobre os bastidores e a produção do
programa. Já as comunidades de conhecimento formadas na internet são as
principais fontes de dados e informações relacionadas ao universo de Lost – a
versão brasileira da Lostpédia8, ferramenta wiki focada inteiramente na série,
contém mais de três mil artigos sobre assuntos como episódios, personagens,
atores, cenários, temas recorrentes, entre outros; na versão em inglês9, existem
mais de sete mil artigos. Essas comunidades muitas vezes constroem conhecimento sobre elementos narrativos apenas mencionados brevemente ao longo
dos episódios. O movimento de inteligência coletiva na construção de saberes
é resultado do investimento intelectual e pessoal dos fãs com o seriado e não
constitui, portanto, uma produção de narrativa transmidiática por parte dos
criadores de Lost, diferente do que acontece com os outros produtos midiáticos
mencionados10. As comunidades de interesse em Lost são mencionadas neste
trabalho por reforçarem a relação dos fãs com o seriado e por facilitarem a
troca de informações entre os consumidores.
Localizadas ao lado da história central, as contribuições dos miniepisódios para celular e dos ARGs (Áreas C e D) muitas vezes apresentaram informações importantes (embora não imprescindíveis) para o entendimento de
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alguns aspectos da série ou revelaram pontos de vista até então inéditos para
os telespectadores. Já no topo da Figura 1, os livros e o jogo Lost: Via Domus
(Áreas E e F) mostram a história de outros sobreviventes do acidente aéreo,
aqueles que aparecem apenas como figurantes nos episódios.
Na representação visual da Figura 1, estão destacados em negrito os
produtos de quatro suportes midiáticos selecionados para análise, sendo eles:
internet (site), celular (Lost: Missing Pieces), ARG (The Lost Experience) e jogo
eletrônico (Lost: Via Domus). Como já foi mencionado, a partir de cada ligação
entre os portais das múltiplas mídias utilizadas no seriado, identificamos 13
portais de acesso entre as histórias contadas nos episódios televisivos da segunda temporada de Lost e a narrativa desenvolvida nos produtos complementares
selecionados. Para esquematizar a análise, os portais são descritos conforme a
ilustração da Figura 2, a qual representa o esquema estrutural de como as histórias estão interligadas no universo narrativo de Lost. A estrutura da Figura 2
será explicada em detalhes a seguir.
Figura 2: Esquema estrutural dos portais de acesso que representam as conexões narrativas entre as mídias auxiliares e a história central de Lost. Na imagem da esquerda, em negrito, está destacada a relação dos produtos cujas histórias complementam
a narrativa da segunda temporada de Lost.
Na imagem da esquerda, estão listados os produtos desenvolvidos para
cada suporte midiático. A partir das letras utilizadas para representar cada
suporte complementar, a imagem da direita mostra as ligações narrativas entre
as histórias. Cada sigla corresponde a um ponto de ligação entre a história
televisionada (Área A) e o conteúdo dos suportes midiáticos complementares
(Áreas B, C, D, E e F). Os portais AB, AC1 a AC3, AD1 a AD4, AF e ADF
correspondem às contribuições dos suportes midiáticos complementares para
a narrativa central do seriado. Já os portais BC, BD e BF representam um
exemplo da influência da existência de comunidades de conhecimento para a
construção de significado sobre o conteúdo de cada uma das mídias adicionais.
A presença da narrativa transmidiática em Lost será apresentada nas tabelas 1 e 2, as quais representam uma síntese dos resultados desta pesquisa11.
A Tabela 1 mostra como os suportes midiáticos auxiliares de Lost contribuíram para a narrativa central. A primeira coluna da tabela indica o portal
de acesso identificado; a segunda refere-se ao trecho de um dos episódios de
Lost ao qual o conteúdo do suporte midiático auxiliar está relacionado, e a
terceira, à contribuição narrativa no suporte.
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Bianchini e Mielniczuk. O Universo Ficcional de Lost e a Narrativa Transmidiática.
Tabela 1: Conexões entre o conteúdo narrativo dos episódios de Lost e
o dos suportes midiáticos complementares, a partir da definição de portais de
acesso entre as histórias.
Portal
AB
AC1
AC2
AC3
AD1
AD2
AD3
Episódio de Lost
Suporte Midiático
Live Together, Die Alone (2x23,
24)12 – Sayid, Jin e Sun avistam
o que sobrou de uma gigantesca
estátua de pedra – um pé com
quatro dedos.
Two For the Road (2x20) – Hurley e Libby combinam um piquenique romântico na praia. Libby
vai buscar as toalhas na Escotilha,
mas é assassinada por Michael.
Three Minutes (2x22) – Bea
Klugh propõe um acordo para
Michael em troca da liberdade
dele e de Walt. Michael concorda,
mas com uma condição: ele quer
o barco dos “Outros”.
Three Minutes (2x22) – Bea
Klugh leva Walt para ver Michael. Quando o garoto diz que
os “Outros” estão fingindo,
ela ameaça colocá-lo na “sala”
novamente, o que deixa Walt aterrorizado.
Site oficial de Lost – três anos depois do episódio 2x23, 24, o resumo
online do episódio The Incident
(5x16, 17) revela a identidade da
estátua – a deusa egípcia Taweret.
Miniepisódio The Adventures of
Hurley and Frogurt (02)13 – enquanto Libby vai até a Escotilha,
Hurley está na praia conversando
com Neil “Frogurt” sobre a garota.
Miniepisódio The Deal (04) – momentos depois da conversa entre Michael e Bea, Juliet entra na cabana e
informa Michael que ele irá ganhar
o barco. Eles conversam sobre Walt,
Ben e a irmã de Juliet, Rachel.
Orientation (2x03) – Jack e
Locke assistem ao vídeo de Orientação da Estação 3 – O Cisne
da Iniciativa Dharma, projeto
científico financiado pela Fundação Hanso.
Orientation (2x03) – a Iniciativa
Dharma é apresentada como um
projeto de pesquisa científica
implantado na ilha e responsável
pelo funcionamento da Estação
3 – O Cisne e de outras estações
no local.
Orientation (2x03) – no vídeo
de Orientação da Estação 3 – O
Cisne, o Dr. Marvin Candle
explica que os números 4 8 15 16
23 42 devem ser executados no
computador a cada 108 minutos.
Miniepisódio Room 23 (06) – Walt
causa pânico nos “Outros” e provoca a morte de diversos pássaros
quando é trancado na Sala 23.
ARG The Lost Experience – a
Fundação Hanso foi criada por
Alvar Hanso e tem como objetivo
desenvolver projetos de pesquisa
científica que promovam o bemestar global e a preservação da vida
humana. No século XXI, a Fundação foi tomada por Thomas Mittelwerk, e seus meios de ação foram
deturpados.
ARG The Lost Experience – no
video do Sri Lanka, Alvar Hanso
explica os motivos históricos e
políticos por trás da criação da Iniciativa Dharma.
ARG The Lost Experience – no video do Sri Lanka, Alvar Hanso afirma
que os números 4 8 15 16 23 42
representam os fatores ambientais e
humanos nucleares da Equação de
Valenzetti.
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Bianchini e Mielniczuk. O Universo Ficcional de Lost e a Narrativa Transmidiática.
AD4
AF
ADF
Two For the Road (2x20) – Sawyer está sentado na praia lendo o
manuscrito do livro Bad Twin, de
Gary Troup, quando é interrompido por Jack.
Everybody Hates Hugo (2x04)
– Jack e Sayid examinam as
fundações da Estação O Cisne.
Sayid conclui que as paredes de
concreto maciço protegem um
gerador geotérmico.
ARG The Lost Experience – Bad
Twin foi publicado como parte do
ARG e apresentou informações
sobre a Fundação Hanso e sobre
Thomas Mittelwerk.
Orientation (2x03) e ARG The
Lost Experience – ambos os
suportes midiáticos apresentam
informações sobre a Fundação
Hanso e Thomas Mittelwerk no
ano de 2006.
Lost: Via Domus – o flashback
de Elliott Maslow situa Thomas
Mittelwerk trabalhando em nome
da Fundação Hanso em atividades
ilícitas realizadas durante o ano de
2004.
Lost: Via Domus – episódio 5 –
Hotel Persephone – Elliott Maslow
explode a porta de entrada da Sala
do Incidente e encontra um gigantesco imã no local.
Com a descrição das ligações entre o conteúdo dos episódios e as
informações divulgadas nas mídias auxiliares, é possível perceber como
as narrativas adicionais complementam a compreensão de alguns eventos
narrados no seriado. Já a Tabela 2 representa algumas contribuições das
comunidades de conhecimento para a compreensão da história e para o
acesso a conteúdos adicionais da série.
Tabela 2: Contribuição da existência de comunidades de conhecimento
para a compreensão do conteúdo das mídias complementares de Lost.
Portal
Situação em que o consumidor precisou recorrer ao
intelecto coletivo
BC
Lost: Missing Pieces – miniepisódios foram lançados somente para
aparelhos celulares da empresa
Verizon e, depois, no site da emissora ABC.
BD
BF
Contribuição da Comunidade
de Conhecimento
Disponibilização dos miniepisódios
no site YouTube; no caso da comunidade brasileira, os miniepisódios foram baixados, legendados,
postados novamente e divulgados
em blogs, redes sociais e fóruns de
discussão.
ARG The Lost Experience – a
Uso da internet permitiu que os
construção narrativa do ARG se
usuários buscassem pistas, decodidá a partir das ações dos consumi- ficassem enigmas, trocassem conhedores em resposta aos mistérios
cimentos e construíssem, juntos, a
apresentados no jogo.
história do game.
Consumo como processo coletivo
Lost: Via Domus – resolução das
permite que a comunidade tenha
missões do jogo e revelação de
acesso a todas as informações
conteúdos extra, tais como algudisponíveis sobre o jogo. Se um
mas das artes conceituais do jogo. jogador descobre algo, divide com
o resto do grupo.
A participação dos fãs em comunidades de interesse é essencial para a
distribuição dos conteúdos por meio de mídias sociais e para a percepção do
valor das informações relacionadas ao seriado para os outros consumidores.
Além disso, a participação ativa na busca e no compartilhamento de conteúdos
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Bianchini e Mielniczuk. O Universo Ficcional de Lost e a Narrativa Transmidiática.
relacionados ao seriado fortalece o sentimento de lealdade dos fãs tanto com o
universo ficcional quanto com a comunidade na qual estão inseridos.
Considerações Finais
No contexto do modelo de cultura da convergência proposto por Jenkins
(2008), consideramos particularmente interessante o conceito de narrativa
transmidiática, nova forma de se contar histórias na qual elementos ficcionais
são dispersos em múltiplos suportes midiáticos. A narrativa transmidiática representa uma mudança significativa na lógica do entretenimento comercial
atual. Ainda que a maioria das histórias ficcionais seja contada no modo tradicional – ou seja, de forma linear e em um único suporte midiático –, nos últimos anos, nota-se o fortalecimento de franquias que investem no potencial de
envolvimento afetivo e engajamento dos consumidores e expandem o universo
de suas personagens para várias mídias.
Através da observação das histórias contadas no seriado Lost e em suas
mídias complementares, pode-se mapear a presença da narrativa transmidiática ao longo da segunda temporada da série em 13 portais de acesso, como demonstram as tabelas 1 e 2. A observação do uso da narrativa transmidiática na
série Lost provoca uma reflexão sobre as mudanças significativas na lógica do
entretenimento comercial, as quais decorrem do uso estratégico de múltiplos
suportes midiáticos no desenvolvimento de uma franquia e do envolvimento e
da participação do público com uma história ficcional, especialmente através
de tecnologias de informação e comunicação, entre outros. Com o presente
estudo, esperamos contribuir para futuras reflexões sobre as mudanças que
ocorrem no contexto da cultura da convergência, em especial no modo pelo
qual os conteúdos midiáticos são produzidos e consumidos.
Referências Bibliográficas
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Ficcional de Lost por meio da Narrativa Transmidiática. Monografia
(Graduação em Comunicação Social – Habilitação Jornalismo) –
Curso de Comunicação Social – Universidade Federal de Santa Maria
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Narrativa Transmidiática no Jornalismo da Revista Época. In: Anais do
VII SBPJor – comunicações coordenadas e livres. São Paulo: USP, 2009.
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LÉVY, Pierre. A Inteligência Coletiva: por uma Antropologia do
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guia não autorizado. Osasco, SP: Novo Século Editora, 2007.
THOMPSON, Frank. Lost: Sinais de Vida. São Paulo: Prestígio, 2006.
Notas
1 - Seriado produzido pela emissora norte-americana ABC entre setembro de 2004 e
maio de 2010. Ao todo, Lost teve seis temporadas e 121 episódios.
2 - Este artigo apresenta os principais resultados da pesquisa Através do Espelho
– Aprofundamento do Universo Ficcional de Lost por meio da Narrativa
Transmidiática (Bianchini, 2009), a qual procurou avaliar a expressão da
narrativa transmidiática no seriado Lost.
3 - Durante a exibição da primeira temporada de Lost nos Estados Unidos, a série teve
uma média de 18,3 milhões de telespectadores por episódio. O episódio de estreia
da segunda temporada marcou o índice mais alto de audiência do programa nos
Estados Unidos, com 23,47 milhões de telespectadores. Informação disponível
no texto wiki sobre a audiência da série em: http://pt.lostpedia.wikia.com/wiki/
Audiência. Acesso: 29 mar. 2011.
4 - Documentário BAFTA Gets Lost, produzido pela British Academy of Film and
Television Arts – BAFTA. Disponível em: http://www.bafta.org/access-all-areas/
videos/bafta-gets-lost,815,BA.html. Acesso em: 29 mar. 2011.
5 - A observação foi facilitada pelo fato de uma das autoras deste trabalho acompanhar
Lost desde o lançamento da série, em 2004, e já estar familiarizada com o conteúdo
dos episódios e de algumas ações desenvolvidas em outros suportes midiáticos.
6-
Novamente, é importante destacar que tal constatação foi feita levando em
consideração apenas as cinco primeiras temporadas de Lost.
7 - A esquematização dos suportes midiáticos auxiliares utilizados em Lost leva em
consideração o conteúdo revelado entre a primeira e a quinta temporada do
seriado. A pesquisa que resultou neste artigo foi realizada antes da exibição da
sexta temporada da série.
8 - Página inicial da versão em português da enciclopédia em wiki Lostpédia disponível
em: http://pt.lostpedia.wikia.com/wiki/Pagina_Principal. Acesso em: 29 mar. 2011.
9 - Página inicial da versão em inglês da enciclopédia em wiki Lostpédia disponível em
http://lostpedia.wikia.com/wiki/Main_Page. Acesso em: 29 mar. 2011.
10 - Em dezembro de 2009, Henry Jenkins publicou dois textos em seu blog
intitulados The Revenge of the Origami Unicorn, nos quais o autor propôs novas
considerações em relação à noção de narrativa transmidiática que havia relatado
no livro Cultura da Convergência. Nos textos mencionados, Jenkins considera
que as produções de fãs, como sites baseados no sistema wiki e as fanfictions,
também fazem parte da estratégia de narrativa transmidiática, pois reforçam
os laços dos consumidores com os produtos e fortalecem o valor do universo
narrativo ficcional. Para este artigo, no entanto, levamos em consideração apenas
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
137
Bianchini e Mielniczuk. O Universo Ficcional de Lost e a Narrativa Transmidiática.
o conteúdo do livro Cultura da Convergência. As duas partes do texto The
Revenge of the Origami Unicorn estão disponíveis em: http://www.henryjenkins.
org/2009/12/the_revenge_of_the_origami_uni.html e http://henryjenkins.
org/2009/12/revenge_of_the_origami_unicorn.html. Acesso: 29 mar. 2011.
11 - Veja as descrições completas de cada portal no item ‘3.2 Análise das Narrativas
Complementares de Lost’ da pesquisa Através do Espelho – Aprofundamento do
Universo Ficcional de Lost por meio da Narrativa Transmidiática (Bianchini, 2009).
12 - Este código é utilizado no trabalho para identificar a qual temporada e a qual
episódio refere-se o título mencionado. No caso de Live Together, Die Alone (2x23,
24), por exemplo, o número ‘2’ significa ‘segunda temporada’, e os números ‘23,
24’, ‘vigésimo terceiro e vigésimo quarto episódios’.
13 - No caso dos miniepisódios produzidos para celular, o código refere-se apenas ao
número do episódio, já que apenas uma sequência de 13 miniepisódios foi produzida.
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Visibilidade, vigilância,
identidade e indexação: a
questão da privacidade nas
redes sociais digitais1
Visibility, surveillance, identity and indexation: the
issue of privacy in digital social networks
Cíntia Dal Bello2 | [email protected]
Doutoranda em Comunicação e Semiótica do PEPGCOS-PUC-SP e bolsista CAPES; coordenadora, docente
epesquisadora do curso de Comunicação Social - Publicidade e Propaganda da Universidade Nove de
Julho; membrodo grupo de estudos Plurimídia. Sua pesquisa versa sobre cibercultura, subjetividade e
visibilidade mediática, cominteresse particular pelas emergentes redes sociais digitais.
Resumo
Nas redes sociais digitais, a exposição generalizada da intimidade dá margem a novos modelos de exploração das informações pessoais ali depositadas (à revelia de autorização prévia). Neste contexto cibercultural,
visibilidade, vigilância, identidade e indexação tornam-se indiscerníveis e remetem à versão up-to-date e
transpolítica do ideal utópico e teleológico de uma sociedade transparente, contribuindo para a desvalorização da “privacidade”. Palavras-chave: Futebol; Televisão; Políticas Públicas.
Palavras-chave: Cibercultura; Redes sociais digitais; Privacidade.
Abstract
In digital social networks, widespread exposure of intimacy gives rise to new models of exploitation of personal
information deposited in them (in the absence of previous authorization). In this cybercultural context, visibility, surveillance, identity and indexation become indiscernible and evoke the up-to-date and transpolitical version of the utopian and teleogical ideal of a transparent society, contributing to the devaluation of “privacy.”
Keywords: Cyberculture; Digital social networks; Privacy.
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Dal Bello. Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais
Introdução
Em tempos pós-modernos, na era da visibilidade mediática cibercultural
(TRIVINHO, 2010), tornou-se lugar comum afirmar que as fronteiras entre
espaço público e privado dissolveram-se. Inclusive, parece inapropriado falar
em invasão de privacidade quando se observa nas práticas cotidianas de publicação e compartilhamento de informações (em blogs, fotologs, redes sociais e
metaversos) um movimento crescente em busca de exposição e audiência – o
que Sibilia (2008) chama, muito apropriadamente, de evasão de privacidade.
Figura 1. O “tamanho” da política de privacidade do Facebook
(New York Times, 12 mai 2010).
Apesar de soar obsoleta, a tal “privacidade” permanece insolente, uma
questão que não se dissolve mesmo quando o mais jovem bilionário do ramo
das redes sociais – Mark Zuckerberg, cofundador do Facebook – decreta que
esse tipo de preocupação é um exagero. O fato é que, sob alegação de oferecer
um controle preciso, a plataforma transfere ao usuário o ônus de operar cerca de 50 configurações de privacidade, com mais de 170 opções (CORBIN,
2010), ao passo que sua política de privacidade torna-se cada vez mais complexa: cresceu de 1.004 palavras para 5.830 em cinco anos (figura 1). No Brasil,
o Orkut, sensível à necessidade do usuário de compartilhar informações de
acordo com seus círculos sociais, lançou um recurso que facilita a publicação
de conteúdo por Grupos de Amigos cadastrados no perfil – uma reviravolta
em relação à propalada tendência de tudo exibir e mostrar sem restrições. O
Facebook, na sequência, também adotou o recurso.
Ao que parece, a questão da privacidade nas redes sociais do ciberespaço não está superada ou exaurida; antes, comparece reconfigurada nos deslocamentos, paradoxos e hibridações característicos da época. O conjunto
de exemplos denota uma escalada que acompanha, por sua vez, a crescente
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Dal Bello. Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais
complexidade das plataformas ciberculturais de relacionamento e projeção
subjetiva. Eles apontam para a necessidade premente de reflexão sobre a pertinência do conceito de “privacidade” em meio a tantos mecanismos de busca,
rastreamento, indexação, vigilância e visibilidade que dão lastro tecnológico a
novas formas de ser, estar e relacionar-se com o mundo.
Privacidade e individualidade: deslocamentos pós-modernos
Privacidade, individualidade, identidade e sujeito são conceitos que se
irmanam nas concepções políticas, ideológicas e teleológicas do projeto moderno. Para Sibilia (2008), os quartos privados do mundo burguês foram fundamentais para o desenvolvimento das noções de individualidade e identidade
– pois era no silêncio dessas fronteiras físicas que os indivíduos podiam perscrutar seu íntimo (para aquém das fronteiras da pele, do corpo) e dar vazão,
em diários pessoais, aos pensamentos constitutivos de sua essência, seu núcleo
interior, seu “eu”. Esta prática solitária era compreendida como uma forma
de se chegar ao conhecimento daquilo que diferencia e torna autêntico o sujeito centrado e pensante (cartesiano). Constituir-se como indivíduo tratava
de perceber-se como único e indivisível; ter uma identidade coerente, linear e
contínua temporalmente, em constante evolução – razão de ser dos registros
diários íntimos que permitiam a tomada de perspectiva sobre a história da
própria existência, uma busca da verdade sobre si. Esses diários particulares
invariavelmente tinham circulação restrita, quando não eram objetos “cadeados”, guardados no segredo de baús ou gavetas.
No século XX, foram diversos os abalos sísmicos que implodiram a confiança generalizada da modernidade na racionalidade científica e tecnológica
como determinante de um futuro melhor – afinal, essa mesma “racionalidade”
conduziu a humanidade ao Holocausto e às bombas de Hiroshima e Nagasaki.
Todas as certezas teleológicas que conformavam a atuação no presente com
vistas à conquista do destino pulverizaram-se em face do horror.
Ao indivíduo resultante da luta coletiva pelo direito à liberdade, igualdade
e fraternidade – luta em que o direito à privacidade ganhou o contorno moderno
–, sobraram a urgência do presente e uma pluralidade de incertezas, inclusive
sobre quem é ou quem deve ser.
Por essa razão, não é possível mais falar em sujeito sem considerar que
este, agora, é outro: descentrado, encadeado no discurso, atravessado pelos
contextos, diluído, inexistente; o mesmo ocorre com identidade (plural, contraditória, temporária, múltipla, fragmentada). Por seu turno, as tecnologias do
tempo real, ao facultar ubiqüidade na projeção e manifestação cibermediática,
fazem surgir (in)divíduos: aqueles que não são mais redutíveis a si mesmos
na medida em que espalham-se e colocam-se (in) nos diversos fragmentos ou
constructos subjetivos (divíduos) que espargem pelas redes. De fato, não são
sujeitos (na acepção de “mônadas”), mas subjetividades flutuantes ou rarefeitas,
quando não completamente liquefeitas ou pulverizadas.
Não seria diferente com o conceito de privacidade. Se a privacidade
estava intrinsecamente vinculada à existência de espaços privados (como a
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Dal Bello. Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais
residência, em primeira instância, e o quarto de dormir, ainda mais privativo),
identificáveis por efeito de contraste com aqueles que são de domínio público,
o que pensar sobre todo o conjunto de dispositivos tecnológicos que confere
acesso público ao ambiente privado? Embora câmeras de vigilância e escutas
telefônicas estejam associadas à invasão de privacidade, webcams instaladas
pelos próprios (in)divíduos em seus quartos são indicativos de um movimento
de evasão das paredes protetoras (e “sem graça”) do espaço privado – haja vista
a prática do sexting, que tem ganhado cada vez mais adeptos entre jovens brasileiros (inclusive menores de idade).
A espetacularização da intimidade nos diários online (SIBILIA, 2008)
sinaliza que não apenas muros e paredes (contornos fronteiriços concretos entre público e privado) foram transpostos, mas também baús, gavetas e cadeados que guardavam os pequenos e grandes segredos do cotidiano. Embora o
sistema de arquivamento de posts dos blogs ainda tenha alguma relação com o
encadeamento do discurso na passagem do tempo inerente aos antigos diários
de papel, que perspectiva histórica da própria vida é possível desenvolver na visibilidade histérica e “ensurdecedora” do Twitter, microblogging comprometido
de forma inexorável (não com o presente, mas) com o instantâneo?
Privacidade, identidade, vigilância e controle: o indivíduo moderno
De acordo com a proposição de Jameson (1994), a pós-modernidade não
representa, necessariamente, uma ruptura total com a modernidade, correspondendo antes ao recrudescimento de tendências que já estavam presentes3. Nesse
sentido, talvez seja possível e apropriado retomar as discussões de Foucault sobre
visibilidade e vigilância – principalmente quando Mark Zuckerberg assume que
a missão do Facebook é tornar o mundo “mais aberto e conectado”.
A instituição da visibilidade como instância de vigilância global e, ao
mesmo tempo, individualizante é uma estratégia moderna de resolução do
“problema da acumulação dos homens” (FOUCAULT, 1979, p. 214) associado
ao perturbador crescimento demográfico nos centros urbanos no século XVIII.
A arquitetura do Panopticon, de Bentham, aplicável a hospitais, prisões, escolas
e fábricas, visa à restauração da disciplina quando muitos precisam ser “administrados” por poucos. A adoção do projeto pelos revolucionários franceses,
em plena época das Luzes, está em consonância com a ideia de que a opinião
pública, como instância de visibilidade total, é preventiva: o “olhar dos outros,
o discurso dos outros” (Ibid., p. 215-216) constituiriam fatores impeditivos de
que qualquer um fizesse algo passível de punição.
Este reino da ‘opinião’, invocado com tanta freqüência nesta época, é um tipo de
funcionamento em que o poder poderá se exercer pelo simples fato de que as coisas
serão sabidas e de que as pessoas serão vistas por um tipo de olhar imediato, coletivo
e anônimo. Um poder cuja instância principal fosse a opinião não poderia tolerar
regiões de escuridão. Se o projeto de Bentham despertou interesse, foi porque ele fornecia
a fórmula, aplicável a muitos domínios diferentes, de um ‘poder exercendo-se por
transparências’, de uma dominação por ‘iluminação’ (Ibid., p. 217).
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Dal Bello. Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais
O modelo estrutural do Panopticon de Benthan propõe o exercício do
poder pelo olhar, ou seja, pela instituição da visibilidade e da transparência
como estratégias de submissão e dissuasão, materializando, na prática, a esfera
da opinião pública como instância preventiva: “o simples fato de que as coisas
são sabidas e de que as pessoas serão vistas por um tipo de olhar imediato,
coletivo e anônimo” (Ibid., p. 216-217) parece suficiente para inibir o outro de
agir mal. A fórmula disciplinar moderna, ao conjugar visibilidade e vigilância, esconjura a privacidade (rincão de obscuridade e articulação de interesses
particulares) e sonha com uma sociedade transparente em que cada um, tendo
interiorizado o olhar do vigia, pudesse exercer uma vigilância contínua sobre
e contra si mesmo.
Assim, para os reformadores do século XVIII, sob a vigília constante dos
olhares alheios o indivíduo perderia sua capacidade de querer fazer o mal. Por
essa razão, qualquer zona de obscuridade ou invisibilidade – zonas opacas que
não permitem o exercício da opinião pública pelo corpo social e a instituição
de uma sociedade transparente – deveriam ser repudiadas.
Um medo assombrou a segunda metade do século XVIII: o espaço escuro, o anteparo de
escuridão que impede a total visibilidade das coisas, das pessoas, das verdades. Dissolver
os fragmentos de noite que se opõem à luz, fazer com que não haja mais espaço escuro
na sociedade, demolir estas câmaras escuras onde se fomentam o arbitrário político, os
caprichos da monarquia, as superstições religiosas, os complôs dos tiranos e dos padres,
as ilusões da ignorância, as epidemias (Ibid., p. 216).
Os espaços privados neste período (de 1789 a 1794, principalmente)
são considerados facciosos e dados à conspiração interesseira, contrários
aos ideais da nação. Antes, portanto, da ascensão do movimento romântico, em que o indivíduo fecha-se sobre si e sua família. Desconfiar-se-á
de todo e qualquer interesse privado que possa conturbar a dimensão da
esfera pública – modelo de comportamento a ser seguido. Só mais tarde
a esfera privada bem como a inviolabilidade do corpo e da residência do
indivíduo serão delineadas (por efeito de contraste e graças às pressões da
dimensão pública).
Com o condicionamento sistemático da opinião pública aos interesses
econômicos e políticos que comandam os media, o caráter utópico desta política ficou evidente desde o século XIX. A instauração do poder do olhar pelo
dispositivo de vigilância de Benthan não ocorreu sem sofrer efetiva resistência
(FOUCAULT, 1979), além de revelar-se ineficiente mediante o crescimento da
multidão. O modelo panóptico de controle, dependente da memória visual de
seus agentes para reconhecimento interpessoal, cedeu lugar a mecanismos de
identificação mais refinados: o porte de papéis de identificação para operários,
domésticos, militares, prostitutas, crianças abandonadas e viajantes (1854); emprego de fotografia (1876), identificação antropométrica (1882) e registro de
marcas corporais e digitais (início do século XX) no sistema prisional e, a partir
de 1912, aos nômades, comerciantes e industriais itinerantes (CORBIN, 1991,
p. 429-435).
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Dal Bello. Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais
A nova ameaça que tais procedimentos fazem pesar sobre o segredo da vida privada
começa a inquietar. [...] o temor da violação do eu e seu segredo engendra o fantástico
desejo de decifrar a personalidade que se oculta e de intrometer-se na intimidade dos
outros; muda preocupação que embasa o esnobismo do incógnito, atiça a tentação da
carta anônima, contribui para o prestígio do voyeurismo do fim-de-século, explica a
emergência da personagem do detetive em busca de pistas (Ibid., p. 435-436).
O sentido de invasão de privacidade emerge como algo indesejável na
medida em que pululam os símbolos do eu, reforçadores do sentimento de
individualidade. Corbin (1991) inventaria uma série de práticas novas para a
época: a contemplação diária da silhueta corporal com a popularização dos
espelhos, a posse da imagem própria com a difusão de retratos e fotografias,
a marcação dos objetos pessoais com monogramas, o uso social de objetos de
distinção (prêmios, diplomas, quadros de honra ao mérito, condecorações), a
prática do diário íntimo, a montagem do álbum, a leitura silenciosa, a coleção
de objetos antigos e a manutenção do museu familiar, a vigilância sobre o
corpo e a disciplina de suas pulsões. O indivíduo comparece ensimesmado, introspectivo. As pressões de ser alguém, de ser único, levam ao aparecimento de
novos sofrimentos íntimos: o indivíduo moderno teme fracassar no imperioso
esforço de delimitar sua singularidade.
A espetacularização da vida pessoal: dissolução de fronteiras,
inversão de valores e evasão de privacidade
No século XX, o sentido de vida pessoal, ainda mais privada, reescalona as normas da vida privada familiar e da vida pública/profissional. Sua
emergência é possível, segundo Prost (1992), graças à ampliação das moradias
e seus espaços de conforto. A construção de residências e conjuntos habitacionais funcionais contribui para a desvalorização das relações de vizinhança e a
decadência dos espaços de convívio responsáveis pela transição gradual entre
a privacidade da casa e a total impessoalidade da esfera pública do trabalho,
agora burocratizado. A socialização dos filhos, a liberalização da mulher e a
dissociação entre sexualidade e procriação abrandam os imperativos da instituição familiar. O corpo reabilitado pode ser olhado sem pudor e é cuidado
para ser exibido; exige-se respeito categórico à integridade física e a recusa à
velhice generaliza-se.
De fato, o corpo se tornou o lugar da identidade pessoal. Sentir vergonha do próprio
corpo seria sentir vergonha de si mesmo. [...] Mais do que as identidades sociais,
máscaras ou personagens adotadas, mais até mesmo do que as idéias e convicções,
frágeis e manipuladas, o corpo é a própria realidade da pessoa. Portanto, já não existe
vida privada que não suponha o corpo (Ibid., p. 105).
A conquista do lazer, tempo das férias e espaço dos clubes, bem como
os jogos, levam à suspensão de normas e hierarquias, instituindo outras regras
e critérios de relacionamento e convívio. A ascensão da moda, do humor e
da inconsistência das mensagens publicitárias, o abrandamento dos formalismos e a desmistificação dos registros e referências da vida pública levam ao
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Dal Bello. Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais
apagamento das diferenças de posição e à diluição dos papéis, embora os códigos sociais, mais discretos e complexos, não deixem de ser efetivos.
Em contrapartida, os meios de comunicação de massa e a publicidade
modelam os comportamentos cotidianos, uniformizam gostos, ideias e opiniões, colonizam o imaginário pessoal e engendram mercados para produtos
em série enquanto “cada qual julga que está se personalizando mais” (Ibid., p.
148). O caráter transpolítico da revolução em curso, delineadora da cultura
mediática, pode, assim, ser ilustrado:
Não se trata, porém, de uma maquinação, e sim do próprio funcionamento de nossa
sociedade. Não são decisões de alguns agentes maquiavélicos que teriam decidido
impor suas ideologias. Nem as pessoas dos meios de comunicação nem os publicitários
alimentam tais intenções. Aliás, eles formam uma nebulosa de contornos fluidos, onde
ninguém detém um verdadeiro poder. Dentro desse grupo, cada qual simplesmente
executa sua tarefa. Mas a rede das comunicações é tal que, mesmo sem um acordo prévio,
todos se interessam pelos mesmos assuntos nos mesmos momentos, para desenvolver as
mesmas opiniões. [...] E, para não cansar, é preciso personalizar. Entre a mídia e o
público, a comunicação substitui a informação (Ibid., p. 148-149).
Na cultura mediática, a notoriedade pública torna-se medida de sucesso
e a dimensão do espetacular avança para a vida privada de políticos, artistas e
campeões. O desvanecimento das fronteiras entre público e privado e a contaminação recíproca entre seus códigos produzirão uma crescente desvalorização da privacidade – a celebração da individualidade move-se do interior
para o exterior: abandona o reduto íntimo (da mente, do corpo, do quarto, da
residência) para alcançar as superfícies (da pele, da imagem, da espacialidade
pública dos media).
Se antes os mecanismos de identificação feriam a privacidade do indivíduo (moderno, romântico e introspectivo) e eram sentidos como uma verdadeira invasão, a larga adesão às redes sociais digitais parece testemunhar, na
modernidade tardia, o arrefecimento do sentimento de “eu” em perfis e avatares publicizados nas instâncias midiáticas da visibilidade ciberespacial.
Figura 2. Capa da Time (20 mai. 2010).
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Dal Bello. Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais
Como ápice dessa inversão de valores, a “popularização” das plataformas ciberculturais de relacionamento deve-se principalmente à facilidade de
publicação e projeção das subjetividades nos rincões glocais de visibilidade
mediática (Dal Bello, 2009). No âmbito das redes sociais digitais, a privacidade é considerada um obstáculo concreto à realização de um mundo mais aberto,
razão pela qual o Facebook sentiu-se no direito de suprimi-la em diversas ações
inventariadas4 por Fletcher (2010) na reportagem que foi capa da Time (figura
2).
A privacidade, compreendida como um conjunto de direitos, comparece
como detestável opacidade que relega o indivíduo ao anonimato. O exercício
da cidadania jaz inscrito no paradigma sociocultural da visibilidade mediática
e testemunha o entranhamento da lógica da indústria cultural no imaginário social. Nesse sentido, pode-se afirmar que a “cibercultura, mesmo fincada
em personalização tão peculiar do uso das interfaces tecnológicas, não trouxe,
a rigor, nada de novo, ao ter, quando muito, apenas requentado a tradição”
(TRIVINHO, 2010, p. 11). Eis porque a privacidade, nos discursos mediáticos, é apresentada como algo em vias de superação (ou a ser superado) em prol
de uma sociedade mais aberta em que seja possível celebrar a vista de larga
audiência a normalidade do cotidiano e a banalidade massificante do “eu sou
eu”. Para além da perspectiva ingênua de que este discurso apenas reflete um
comportamento ou uma mentalidade de época, há que se contrapor o fato de
que a evasão de privacidade é estimulada quando valorizada como diferencial
da novíssima Geração Y.
Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: privacidade
como resistência?
Se, do ponto de vista da arquitetura, o modelo de visibilidade centralizadora, omnividente e disciplinar do Panopticon não seja aplicável à nuvem difusa de
informações do ciberespaço, por outro lado, a frase “cada camarada torna-se um
vigia” nunca foi tão atual, bastando adaptar “camarada” para “amigo” ou “seguidor”, denominações comuns nas redes sociais digitais para designar aqueles que
configuram a audiência particular de um usuário. Obviamente, existem limitações
que restringem sua transposição imediata para a leitura da dinâmica visibilidadevigilância nas redes sociais digitais, tendo em vista que o panóptico foi concebido
para a manutenção da rotina e da ordem em locais físicos fechados e populosos
cujos integrantes não estão necessariamente por livre e espontânea vontade. Neste
sentido, a naturalização da cultura da delação (de comportamentos ou conteúdos
inadequados, conforme figura 3) como recurso para atender à necessidade de controle sobre a publicação de seus usuários não se aproxima (bastante) da ideologia
disciplinar?
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Dal Bello. Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais
Figura 3. Opções de denúncia no Facebook (10 jan. 2011).
O que muda, em essência, não é a paridade entre visibilidade e
vigilância, mas a predisposição pessoal à exibição pública e sua crescente
naturalização. A Geração Y não parece se incomodar com as possibilidades de rastreamento, controle e indexação a que está sujeita quando
se inscreve nas redes. A sedução dos jogos de sociabilidade calcados na
lógica do “apareser” (Dal Bello, 2009), somada à sensação de segurança no conforto das residências e à superficialidade dos relacionamentos,
sitiam possíveis temores no “universo paralelo” do ciberespaço. O senso
comum expresso por esta figura do imaginário coletivo deve sofrer inevitável transformação com o avanço das tecnologias móveis de conexão
contínua, geolocalização no território e sobreposição (ou hibridação) entre ambientes digitais e físicos. Mas a troca de uma metáfora (falaciosa)
por outra (?) custará aos indivíduos o pouco de privacidade que lhes resta,
já que os mecanismos de indexação estão em vias de se tornar ainda mais
totalitários e precisos.
A explosão demográfica das redes sociais digitais, que possibilitam
a manifestação subjetiva e a promoção do “eu” para uma audiência cativa, formada por amigos ou seguidores, assinala o quanto tais plataformas parecem corresponder à necessidade de ser reconhecidamente alguém,
democratizando o acesso à realização do sonho de ser star em um star
sistem particular. Por confundir-se tão intimamente com o imaginário do
espetáculo, a visibilidade facultada pelas redes torna-se imprescindível
e desejável – ainda que traga consigo, pois lhe é intrínseca!, a faceta da
vigilância.
É exatamente neste ponto que reside o valor mercadológico de uma
rede social: ela congrega indivíduos que a utilizam como base de apresentação, comunicação e ambiente de relacionamento; classifica-os em grupos
de perfis combinando variáveis diversas; rastreia deslocamentos coletivos
ou individuais de interesse; indexa, a qualquer tempo, qualquer um para
entregar-lhe mensagens (em geral publicitárias) particularmente significativas. Para que essas considerações não pareçam abstratas ou teóricas,
basta acrescentar que Orkut e Facebook têm operado “no azul”. Ao passo
que configuram entre os sites mais acessados do mundo, tais plataformas
consolidam um rentável modelo de negócio baseado em visibilidade, vigilância, identidade e indexação. Em decorrência, é óbvio que suas políticas
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Dal Bello. Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais
de privacidade tornam-se cada vez mais complexas, de modo a assegurar a
exploração comercial dos recursos subjetivo-informacionais e resguardá-las
da responsabilidade por eventuais problemas que os indivíduos tenham ao
se tornarem cada vez mais abertos e conectados.
Nesse sentido, cabe um rápido comentário: o Google tem anunciado,
muito oportunamente e na contramão das práticas do Facebook, um processo
de simplificação de suas múltiplas políticas de privacidade. O lançamento do
Grupo de Amigos, para a nova versão do Orkut, sinaliza sua preocupação em
não desmerecer a confiança de seus usuários. Ao subsidiar e promover recursos mais simples de controle de privacidade, o Google espera que os usuários
sintam-se seguros para compartilhar mais. A inversão da lógica é estupenda:
trata-se de reabilitar a privacidade para poder explorar melhor as preciosas informações que só trafegam em sua esfera.
Embora os proponentes de uma sociedade transparente não tenham vivido para montarem seus perfis no Facebook, é possível inferir que teriam reivindicado, em nome dos interesses públicos, acesso irrestrito às informações
ali depositadas. Afinal, o potencial deste dinâmico banco de dados não passou
despercebido às autoridades de segurança dos Estados Unidos que têm estudado a proposição de “novas leis e formas de controlar as mensagens que os usuários trocam pela web”. A campanha contra o terrorismo, a grande obscuridade
do século XXI, exige que se contemple “a necessidade de equilibrar a segurança
nacional e a privacidade dos usuários” (AGUIARI, 2010).
Novas tecnologias, velhas tensões: talvez seja o momento de reabilitar a
privacidade como novíssimo rincão de resistência e afirmação dos direitos individuais ao invés de qualificá-la de obsoleta, declará-la morta e entregá-la aos cães.
Nesse sentido, não apenas a sociedade civil organizada tem se mobilizado; são
inúmeros os casos de usuários que adotaram, por iniciativa própria, um padrão
de uso moderado das plataformas ciberculturais. A despeito do discurso corrente
de dissolução de fronteiras entre público e privado, compreendem que ainda há
algo de absolutamente particular cuja preservação depende em parte5 de como
utilizam o instrumental das redes. Suas estratégias, entre outras, incluem:
a) sonegação parcial ou adulteração de informações pessoais;
b) dissimulação da identidade oficial por meio da adoção de fake
profile;
c) uso superficial de múltiplas plataformas e perfis;
d) restrição do número de amigos;
e) classificação dos amigos em grupos para personalizar a publicação dos
conteúdos;
f) aplicação de “cadeados” aos conteúdos publicados (o que limita sua
visibilidade à rede de amigos autorizados);
g) seleção de imagens (para publicação) que não revelem a localização
geográfica da residência, da escola e do ambiente de trabalho;
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Dal Bello. Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais
h) uso de canais de comunicação mais apropriados para tratar de assuntos privados.
Para concluir, um breve relato: em 1 de outubro, por ocasião do lançamento do Google Street View no Brasil, perguntei a um jovem (aqui nomeado
Jr., 19 anos) se ele não ficava “assustado” com tamanha exposição. Afinal, lá
estava a sua rua, a sua casa, o seu portão. Ele respondeu que não, afinal, “minha geração cresceu com a Internet. A gente não está muito preocupada com essa
tal privacidade. Pra gente, isso é normal”. Ficou patente que o termo marcava
um diferencial entre nós: seu descaso pela problemática estava em consonância
com o orgulho por pertencer a uma nova geração. “Não sou funcionário público,
nem terrorista. Não faço nada de errado. Por isso, eu não ligo. Pelo menos até certo
ponto”.
A partir daí, narrou três casos particulares de invasão de privacidade
(no primeiro, foi vitimado pela própria namorada; no segundo, localizou uma
pessoa pelo Orkut em menos de trinta minutos partindo do cruzamento de
informações mínimas; e no terceiro, descobriu que o link para os perfis falsos
utilizados no Formspring para trocar confidências com a namorada fora publicizado pelo Facebook sem sua permissão). Também falou sobre como essas situações alteraram seu comportamento em relação ao uso das redes, tornando-o
mais cuidadoso. No terceiro caso, por exemplo, ao ver sua intimidade exposta,
deletou imediatamente todo o conteúdo e bloqueou a visibilidade dos perfis –
o que parece incoerente e desnecessário, pois neles já não havia mais nada.
Ao término da entrevista, Jr. ficou bastante surpreso ao perceber o quanto sua prática cotidiana recente destoa de sua crença (mais “antiga”): ele zelava
pela “tal” privacidade muito mais do que supunha, embora ainda guarde certa
ingenuidade em relação às tecnologias de indexação – “Se você quiser, pode divulgar meu nome verdadeiro. Imagina, meus amigos e minha namorada não têm
interesse em cibercultura, nunca achariam o seu blog!”.
Referências
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set. 2010. Portal Exame. Disponível em: http://info.abril.com.br/noticias/internet/governo-obama-quer-grampear-redes-sociais-27092010-37.
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Janeiro. Disponível em: http://compos.com.puc-rio.br/media/gt1_eugenio_trivinho.pdf. Acesso em: 15 set. 2010.
Notas:
1- Este artigo é uma adaptação extendida do texto originalmente apresentado no
IV Simpósio Nacional da ABCiber (eixo temático “Redes sociais, comunidades
virtuais e sociabilidade”) com o título “Sorria, você está sendo indexado! A questão da
privacidade nas plataformas de relacionamento e projeção subjetiva”.
2- Doutoranda em Comunicação e Semiótica do PEPGCOS-PUC-SP e bolsista
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Dal Bello. Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais
CAPES; coordenadora, docente epesquisadora do curso de Comunicação Social Publicidade e Propaganda da Universidade Nove de Julho; membrodo grupo de
estudos Plurimídia. Sua pesquisa versa sobre cibercultura, subjetividade e visibilidade
mediática, cominteresse particular pelas emergentes redes sociais digitais.
3- Para Jameson (1994, p. 38-39), a investigação sobre o pós-moderno pode ser
reveladora do moderno e, talvez, “o inverso também seja verdadeiro, embora os dois
nunca tenham sido pensados como constituindo opostos simétricos. Uma alternância
ainda mais rápida entre eles poderá, pelo menos, evitar que se cristalizem a postura
celebratória ou o anacronismo do fulminante gesto moralista”.
4- Dentre elas, as iniciativas Facebook Beacon, em 2007, Facebook Connect, em
2008 e Open Graph, com o Facebook Like Button, em 2010. Além disso, Fletcher
(2010) chama a atenção para os seguintes fatos: (a) no passado, o padrão de exibição
das informações foi alterado para a exposição máxima, exigindo que o usuário
arcasse com o ônus de configurar suas restrições de privacidade; (b) em dezembro de
2009, não-usuários passaram a visualizar informações de seus membros, incluindo
lista de amigos e interesses; e, embora muitos tenham reconfigurado suas opções
de privacidade, “ainda é quase impossível burlar a forma como os dados podem ser
usados em outros lugares”, considerando-se a variedade de aplicativos e sites parceiros
da plataforma; (c) em 5 de maio de 2010, a Electronic Privacy Information Center
apresentou uma queixa à Federal Trade Commission contra o Facebook, relatando
as mudanças freqüentes em sua política de privacidade e a “tendência de projetar
controles de privacidade que, se não enganosos, não são intuitivos”.
5- Há inúmeros recursos de rastreamento e indexação difíceis (se não impossíveis)
de serem burlados pelo usuário comum. Além disso, ainda que o indivíduo faça
uso de identidade falsa ou do anonimato para comunicar-se pelas redes, algo de sua
subjetividade ficará latente – o que permitirá a entrega de mensagens publicitárias
customizadas.
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A Web 2.0 como agenciamento
de audiências
pelos grupos midiáticos
contemporâneos
Web 2.0 as audiences management
by contemporary media groups
Adilson Vaz Cabral Filho1 | [email protected]
Doutor e Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo-UMESP.
Professor do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense-UFF,
coordenador do EMERGE – Centro de Pesquisas e Projetos em Comunicação e Emergência e
membro da Diretoria da ULEPICC. Coordenador do Informativo Eletrônico “Sete Pontos” http://www.comunicacao.pro.br/setepontos.
Resumo
Este artigo parte de pesquisa bibliográfica e documental para compreender a Web 2.0 a partir da sua
apropriação pelos grupos midiáticos contemporâneos. O agenciamento de audiências caracteriza melhor
seu modus operandi, relacionando-se aos dados produzidos pelos usuários e sobre estes a partir de seus
próprios usos, resultando em ganhos mais eficientes do que a simples busca pela elevação de índices de
audiência2.
Palavras-chave: Web 2.0; Políticas de Comunicação; Digitalização das Comunicações.
Abstract
This paper is based on a bibliographical and documental research to understand Web 2.0 from its appropriation
by contemporary media groups. Audiences management characterizes better its modus operandi, related to data
produced by Internet users and also about them, from their own interactions and involvements, resulting in
more complex and efficient gains than the simple search for rising audience taxes.
Keywords: Web 2.0; Communication Policy; Communication Digitalization.
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Cabral Filho. A Web 2.0 como agenciamento de audiências pelos grupos midiáticos contemporâneos
1. O contexto
A Internet se disseminou de modo irreversível no meio doméstico e comercial desde meados da década de 90 do século passado, com a implementação de um modo gráfico que foi, aos poucos, agregando suportes de texto,
imagem, áudio e vídeo em qualidade de definição e “tempo real”, além de
aplicações em ferramentas e recursos dos mais diversos. O mais elementar desses recursos é o hipertexto, que permite a navegação através de sites, de uma
página interna num determinado site ou uma determinada expressão dentro
da própria página. Seu criador Tim Berners-Lee denominou esse modo gráfico
de World Wide Web (teia do tamanho do mundo), também conhecida por sua
sigla WWW ou pelo seu modo abreviado: Web.
A primeira versão da Web, viabilizada pelo recurso do hipertexto, que
permite a navegação através de sites e páginas hospedados nos diversos servidores conectados à Grande Rede, consistia na veiculação de conteúdos e, portanto, circulação de dados na Internet, diretamente relacionada à capacidade
de produção pelos responsáveis dos sites, que acrescentam dados diversos numa
maior ou menor periodicidade, de modo unidirecional, mas viabilizando espaços de interação, como comentários ou links para emails de resposta. A partir
do surgimento de experiências, linguagens e tecnologias destinadas a envolver
usuários na produção e circulação de conteúdos, tendo como consequência a
própria razão de existir e persistir dessas iniciativas, a Web passa por um processo de transformação no qual os produtores não são só aqueles que disponibilizam seus conteúdos na Rede, mas todos os que se relacionam com espaços
que propiciam e fomentam o compartilhamento de conteúdos e a colaboração
entre usuários.
Cooperação e compartilhamento nunca foram expressões tão mencionadas nesses tempos recentes, quando grandes conglomerados midiáticos como
Microsoft, Yahoo, Google, dentre outros, oferecem aos usuários as melhores
plataformas integradas de relacionamento, contando com serviços de correio
eletrônico, de busca, de comunicação instantânea, de mídias sociais3, de compartilhamento de conteúdos midiáticos (fotos, vídeos, apresentações, etc), dentre outros. Em tempos de convergência tecnológica, os conglomerados midiáticos diversificam sua configuração, tratando-se de empresas e conjuntos de empresas que atuam nos meios analógicos e digitais, bem como junto a softwares
e sites de ferramentas, além de recursos que facilitam e viabilizam tarefas para
integrar pessoas, grupos, organizações e iniciativas diversas.
O que se estranha nesse admirável mundo novo é que, desde o século
XIX, compartilhamento e cooperação sempre foram associados a outro tipo
de projeto político, econômico e cultural, envolvendo determinadas coletividades e relacionado a uma perspectiva de transformação. No livro “O espírito
comum”, por exemplo, Raquel Paiva enuncia a unidade, o amor e a reformulação da estrutura social como fundamentos responsáveis pela permanência
da concepção da vida comunitária na história da humanidade (1998, p.115).
O compartilhamento e a cooperação dessa nova fase da Internet, conhecida
pelo termo Web 2.0, são anunciados não por movimentos, organizações ou
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Cabral Filho. A Web 2.0 como agenciamento de audiências pelos grupos midiáticos contemporâneos
partidos de caráter emancipatório ou revolucionário, mas por conglomerados
atuantes na Internet, não necessariamente surgidos das mídias digitais.
Tim o’Reilly compreende a Web 2.0 como “a mudança para uma internet como plataforma, e um entendimento das regras para obter sucesso nesta
nova plataforma”. Seus principais expoentes – empresas e ideólogos - se reúnem anualmente em torno da Web 2.0 Summit, para estabelecer tendências
dos próximos anos e apresentar resultados para o mercado em geral e a mídia
especializada, que trata de reverberá-los ao grande público.
A despeito de análises e concepções acadêmicas e de mercado, que tomam
a própria Internet como lugar por excelência das ferramentas ditas colaborativas,
parte-se de uma análise que compreenda a Web 2.0 para além de puro “marketing” ou somente “grife”, mas que identifique a presença do termo no debate no
qual sua existência é que estabelece o problema da nova relação entre usuários de
Internet e os grupos de mídia contemporâneos.
Pretende-se, portanto, ao propor o agenciamento de audiências como
posicionamento crítico que compreende a importância do termo, sua atuação
e implicações para a área da comunicação e a sociedade em geral, estabelecer
uma visão distinta tanto da apologia acrítica quanto da mera desconsideração
ao conceito. Essa nova forma de manipulação, ou ainda, para ser mais preciso,
de agenciamento se dá pelo empreendimento dos grupos midiáticos contemporâneos, não mais associados a veículos analógicos ou digitais, mas organizados
em torno de empresas e/ou consórcios que complementam essas formas de
atuação num cenário de convergência tecnológica. Desse modo, A Web 2.0 se
afirma como a própria continuidade de controle de tais empreendimentos sobre as multidões antes silenciosas, mas atualmente envoltas em mecanismos de
hiperinformação e simulação de múltiplas ofertas e emissão de conteúdos, que
ratificam o próprio poder e a legitimação dos conglomerados midiáticos.
Busca-se apresentar esse trabalho a partir de pesquisas bibliográficas
no âmbito da Economia Política da Comunicação, bem como em relação
aos Estudos sobre Cibercultura, contextualizando posicionamentos oriundos
do mercado ou da academia, ligados à importância do desenvolvimento da
Internet na reconfiguração e recombinação dos grupos midiáticos diante de
novos desafios. O intuito é demonstrar como a Web 2.0 vem sendo concebida
pelos grupos midiáticos contemporâneos como solução estratégica de atuação
junto ao público em geral e, em especial, os usuários da Internet, mediante o
agenciamento de audiências potencialmente produtoras de conteúdo, que são
estimulados em torno das plataformas que geram valor aos seus mantenedores
de modos bastante abrangentes.
2. Visões sobre a Web 2.0
Uma boa evidência da complexidade do debate em torno do conceito de
Web 2.0, bem como de suas implicações, está na disputa travada pela edição
do verbete “Web 2.0” na Wikipedia, a conhecida enciclopédia online colaborativa, também identificada como uma das mais significativas materializações
da própria Web 2.0. Apresentando uma vasta exposição de argumentos prós e
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Cabral Filho. A Web 2.0 como agenciamento de audiências pelos grupos midiáticos contemporâneos
contra, de temas e áreas relacionados, o verbete finaliza afirmando que
até o momento não existe consenso sobre o que exatamente é a Web 2.0 e as definições
variam de forma a incluir determinadas características / conceitos de acordo com o
entendimento de cada especialista. Esta indefinição também se deve ao fato de a Web
2.0 não ser um objeto, um produto, tampouco de uma marca, apesar de existir um
ou mais pedidos de patente sob o termo, mas sim de um conceito relativamente novo
(2010).
O assunto é abordado no artigo “Escalada do conflito em processos colaborativos online: uma análise do verbete web 2.0 da Wikipédia”, de Aline
de Campos, apresentado no III Simpósio da ABCiber em 2009. Evidencia
argumentos nas duas direções apresentadas anteriormente, finalizando com as
duas macro concepções em aberto, fruto do tensionamento estabelecido desde
quando o tópico em questão foi criado na Wikipedia. Ao mostrar a disputa
travada entre usuários do site na utilização da página do verbete, revela-se que
o compartilhamento originalmente proporcionado aos usuários pela plataforma não é compatível com tomadas de posição pessoal ou coletiva na dinâmica
das páginas desse site. O compartilhamento sobre a compreensão do assunto,
proporcionado pelos vários posicionamentos dos usuários da Wikipedia, não
foi suficiente para proporcionar uma cooperação adequada sobre o entendimento do assunto, dado o tensionamento entre as duas visões predominantes
que inviabilizou um possível consenso.
Para além da já abordada definição de Tim o’Reilly (2005), as visões a
respeito da Web 2.0 evidenciam a já comentada polarização em torno da apologia ou do descaso. De um lado os que ressaltam seus aspectos participativos,
colaborativos e de geração de conteúdos pelos usuários. De outro, os que evidenciam aspectos mercadológicos, ou ainda, de minimização da novidade e da
intensidade da mudança que representa a Web 2.0.
Da vasta definição proposta por o’Reilly, este trabalho faz referência especial à compreensão da Web como plataforma e o manejo e gerenciamento
dos dados, confrontando-se com a compreensão da inteligência coletiva a partir dos dispositivos tecnológicos e ferramentas à disposição dos internautas,
que favorecem a afirmação desse ambiente colaborativo e de compartilhamento. Fazem parte desse contexto ferramentas como a já citada Wikipedia, mas
também Second Life, Facebook, Google+ dentre outros, além do Twitter4.
Autores do campo da Economia Política da Comunicação, como
Enrique Bustamante durante o VII Congreso Internacional ULEPICC,
abordam a necessidade da elaboração de reflexões críticas ao enfrentamento às teorias disseminadas pelos que denominou gurus de Tecnologia
da Informação, acolhidos no meio acadêmico a partir de sua difusão
globalizada no meio editorial. Autores e conceitos como a cauda longa de
Chris Anderson, o de Wikinomia, de Don Tapscott e, de um modo mais
abrangente, os de trabalho imaterial e de multidão, de Antônio Negri,
que trazem contribuições sedutoras ao debate, mas carecem de uma perspectiva crítica que contextualize as transformações atuais em relação aos
reais desafios que elas nos impõem.
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Cabral Filho. A Web 2.0 como agenciamento de audiências pelos grupos midiáticos contemporâneos
A cauda longa, proposta recontextualizada por Chris Anderson em relação
à chamada Nova Economia, diz respeito ao movimento de consumo que revela
uma grande procura de pequenos produtos e uma pequena procura a grandes
produtos. Pode ser relacionada a uma determinada empresa, um setor ou mesmo
à configuração de um grande número de setores / nichos de mercado, que delineiam a chamada cauda longa nesses novos tempos.
No contexto da relação entre meios tradicionais analógicos – em especial
a TV e o rádio – e os novos meios digitais no contexto da Internet, observa-se
que o tamanho da cauda não elimina a existência do corpo. Ou seja, não é só
a audiência o fator determinante entre a intensidade de procura e a intensidade
de produtos, mas sim uma simbiótica relação de mútuo e complementar favorecimento, construída ao longo da década de 90 do século passado e mantida
justamente pela transposição da oposição entre empresas midiáticas tradicionais e empresas ligadas a informática e à Internet, dentre as quais a Microsoft
se constituía como principal exemplo. Em outras palavras, o prolongamento
e a persistência do tamanho da cauda são determinados pela continuidade da
existência do corpo e da cabeça, equivalentes aos grupos midiáticos contemporâneos, agora reconfigurados.
No livro Cibercultura (1996), Pierre Lévy ressaltava o conflito entre as
mídias de massa e os sites da Web, para quem “o ponto de vista propagado
pelas mídias é ditado pelo seu interesse”, sob a suposta motivação de que “o
ciberespaço encoraja uma troca recíproca e comunitária, enquanto as mídias
clássicas praticam uma comunicação unidirecional na qual os receptores estão
isolados uns dos outros” (p. 203). Se essa afirmação já era suspeita à época,
visto que os conteúdos consumidos pelos receptores distantes uns dos outros
já faziam parte de uma memória comum, atualmente se torna cada vez mais
um cenário anacrônico, em virtude das várias formas de hibridização entre os
meios analógicos e digitais, possibilitada pela fusão de empresas em torno de
conglomerados e/ou de iniciativas de parceria em torno dessas.
Ainda no final do século XX, Wilson Dizard Jr já mencionava uma transição em curso, embora não tivesse a pretensão de afirmar seu caminho. No
livro prudentemente intitulado “A nova mídia”, o autor menciona a inovação
mais importante dessa mídia em transição como “a distribuição de produtos de
voz, vídeo e impressos num canal eletrônico comum, muitas vezes em formatos interativos bidirecionais que dão aos consumidores maior controle sobre os
serviços que recebem, sobre quando obtê-los e de que forma” (2000, p.23).
De lá para cá outros autores se aventuraram a abordar essa transição,
seja de forma comedida, descrevendo evidências de mercado que ressaltam
suas pressuposições, seja para acender holofotes em torno de suas mirabolantes
novidades, destinadas a atrair milhares ávidos por respostas definitivas e caminhos rápidos e práticos para transpor esse momento de transição, almejando
segurança e lucro em novos tempos vindouros.
Joseph Jaffe, em “O declínio da mídia de massa”, anuncia o fim do comercial de 30 segundos como o formato característico e dominante da publicidade na TV, em função da anunciada convergência tecnológica e da própria
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Cabral Filho. A Web 2.0 como agenciamento de audiências pelos grupos midiáticos contemporâneos
hibridização de meios e suportes. Com visão semelhante a de Pierre Lévy na
distinção entre mídia de massa e na Internet, o autor não incorporou em seus
estudos as novas possibilidades interativas e convergentes dos novos tempos
de mídias sociais e da Web 2.0, a partir das quais surgem diversas campanhas
que não abandonam o investimento tradicional, sendo ainda privilegiadas por
profissionais de Publicidade e Marketing.
Já Don Tapscott vai mais além com seu livro Wikinomics, no qual compreende a Web 2.0 como plataforma para participação entre usuários que são
consumidores ativos de produtos e serviços, se dispondo a contribuir ainda
mais para o fortalecimento de empresas e marcas as quais se fidelizam, pela
simples possibilidade de se ressaltar no seu raio de influência, de contribuir
para melhores produtos ou mesmo se especializarem como profissionais nas
áreas em que contribuem. O autor não deixa dúvidas sobre a disposição das
empresas em conhecer os resultados desse novo paradigma5: de 2000 a 2005
conseguiram 9 milhões de dólares de investimentos para a realização de suas
pesquisas, que teve o próprio livro como subproduto, além do mais recente
Macrowikinomics.
Ao longo da primeira década do século XXI os autores deslocaram suas
análises de um modelo ora em transição, ora híbrido para um modelo que
conta com a Web 2.0 como sustentáculo, servindo de plataforma para a compreensão do comportamento dos usuários / internautas / consumidores nesses
novos tempos de potencial capacidade de produção de conteúdos, possibilitando uma multiplicidade de ofertas, bem como uma infinidade de canais de
distribuição que afeta diferentes áreas da comunicação e correlatas.
3. Agenciamento de audiências como manutenção do controle
midiático
A disputa pela qual os tradicionais meios de massa se moviam era a
conquista de audiências. Tida por Dallas Smythe como o próprio sustentáculo da programação e, por conseqüência, dos veículos de comunicação, foi
identificada por ele como a verdadeira mercadoria para a comunicação no
capitalismo avançado. Bolaño (2000, p. 142) apontou um importante problema metodológico nesta concepção, na medida em que o autor comentado
equivalia audiência a outros conceitos de referência da área da comunicação
como “mensagem”, “informação”, “imagem”, dentre outros, dando margem
a um estudo mais acurado em relação à própria crítica da Economia Política
da Comunicação, que se seguiu nos anos posteriores.Visibilidade, vigilância,
identidade e indexação: privacidade como resistência?
Cabe compreender, no entanto, como essa audiência se comporta em tempos de meios digitais online e de diversas mídias sociais relacionadas às corporações
midiáticas reconfiguradas? Os usos das audiências feitos por parte dos grupos midiáticos envolvem a própria sustentação de suas iniciativas através da experiência de
envolvimento nos conteúdos que oferecem: os conteúdos gerados pelos usuários em
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Cabral Filho. A Web 2.0 como agenciamento de audiências pelos grupos midiáticos contemporâneos
sites de relacionamento fazem com que estes se mantenham por um tempo considerável nesses espaços, colocando-os à disposição de mensagens publicitárias das
mais diversas e pelos mais diferentes meios; transitando pelas mais diferentes páginas dessas ferramentas, os usuários oferecem às empresas geradoras dessas mídias
sociais mais e melhores argumentações para a definição de novos investimentos e,
por fim, a própria circulação desses usuários em torno de suas páginas contribui
para o mapeamento de seus interesses de consumo, atividade de interesse de clientes anunciantes que não somente inserem novos conteúdos em suas mídias, como
também são geradoras de novos conteúdos e aplicativos. Nesse sentido, associar as
audiências tão somente a mercadorias no contexto dos meios de comunicação é
algo que restringe sua importância atual, na medida em que podem também ser
compreendidas como insumos à disposição dos meios de produção e distribuição
comunicacionais para o desenvolvimento de suas mercadorias, dentre as quais, a
própria audiência.
O projeto colocado em prática por esse novo tipo de rearranjamento midiático é nitidamente distinto daquele que tradicionalmente
se configurou como compartilhamento ou colaboração. Originalmente
tais projetos estão relacionados com uma proposta e uma perspectiva
pedagógicas, relacionadas ao letramento, envolvendo a inclusão no meio
digital como parte integrante da inclusão social. Nesse sentido resulta
numa disposição política de construção conjunta, algo a ser fomentado
ao longo do tempo, de modo dialógico, horizontal e efetivamente participativo, sublimando o estabelecimento de hierarquias como postura de
envolvimento numa perspectiva comum. Daí colaborar e compartilhar
como integrantes de um mesmo universo de referência.
A movimentação empreendida pelas forças de mercado não expressa preocupação com projetos comuns nas intenções dos conglomerados
midiáticos impulsionadores da Web 2.0 e suas mídias sociais a não ser
como fetiche. São vendidas experiências aos usuários da Internet, que
assimilam e afirmam suas propostas de interação e envolvimento, no intuito de obter sua permanência nos sites visitados. Estimula-se o mercado
que reverbera a Web 2.0 como laboratório e palco de campanhas publicitárias e ações diversas, canalizando o interesse de usuários na condição
de audiência ou de consumidores. E, não menos importante, os futuros
profissionais nos espaços de formação acadêmicos ou técnicos são incentivados a pactuar o fascínio pelas oportunidades oferecidas em torno
da Web 2.0: tanto pelas novas possibilidades no campo da linguagem a
partir de suportes e recursos disponíveis (gerando mais mercadorias para
a manutenção do agenciamento das audiências), como pelos múltiplos
e diversificados postos de trabalho não necessariamente remunerados,
mas que viabilizam o contato com novidades nas suas áreas de formação
(Comunicação, Design, Informática, etc).
Surge também um novo campo na interface do Marketing com a
Comunicação que é o branding, que envolve, para além da logomarca, a
identidade visual e a percepção da marca, passando por fatores relacionados
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Cabral Filho. A Web 2.0 como agenciamento de audiências pelos grupos midiáticos contemporâneos
aos conceitos trabalhados nas campanhas publicitárias, bem como no conjunto de procedimentos que as empresas assumem ao lidar com o público
e a cadeia produtiva da atividade publicitária. Esta recente área de atuação,
que ganha cada vez mais a atenção de atuais e futuros profissionais do
mercado, está em sintonia com o investimento crescente nas mídias sociais
promovido pelos conglomerados midiáticos. Essas ferramentas materializam suas demandas de relacionamento contínuo com o público para além
dos tradicionais e limitados 30 segundos de inserção comercial, que não
deixam de cumprir uma função importante nas estratégias de mídia das
campanhas publicitárias, mas não necessariamente como meio principal.
Por esse cardápio de ações e áreas de atuação, compreende-se que
o convite dirigido aos usuários-consumidores é bastante distinto daquele
relacionado a um projeto de interesse comum, seja de fortalecimento ou de
transformação coletiva, desconstruindo a pertinência da associação de expressões como cooperação ou compartilhamento às ações mercadológicas
em curso. Mesmo iniciativas relacionadas ao estímulo à participação para
fins políticos, também abordadas no livro Wikinomics, de Don Tapscott,
pressupõem a virtualização e a pulverização da atividade política antes assumida por movimentos sociais variados, representativos de consideráveis
segmentos da população, distintos de concepções efetivamente relacionadas ao coletivo, como a afirmação da democracia direta ou à realização do
poder popular.
Nesse contexto, a multidão é compreendida e afirmada como ideário
de legitimação de suas atuações. Apresentada por Antônio Negri e Michael
Hardt, a proposta da multidão como sujeito histórico, relacionada ao recente
desenvolvimento tecnológico que compreende mecanismos de informação e
comunicação, aparece como depuração das coletividades constituídas como
povo. Rubén Dri salienta um possível deslocamento na concepção de povo
trabalhada por Negri, na medida em que estes se constituem como sujeitos de
processos:
não é fácil para um povo constituir-se como tal, criar-se como povo. O dominador
sempre fará todos os esforços possíveis para o fragmentar, dividir, atomizar, numa
palavra, para o reduzir a uma multidão. O caminho deve ser da multidão para o povo
e não ao contrário como propõe Negri (DRI, 2009).
Embora longe de ser homogênea e não dotada explicitamente de uma conotação política de transformação, a conexão tecnológica proporcionada pela
segunda onda da Web disponibiliza um estoque considerável de conteúdos que
proporciona o redimensionamento dos usuários (relacionado a seus diferentes
usos e disposição para compartilhamento de conteúdos). Iniciativas de inclusão
digital são recolocadas e a sociabilidade na rede se apresenta em outras bases, já
que a dinâmica da Web 2.0 mais aproxima internautas através das telas, apropriando-se de suas disposições políticas6. Ou ainda por um outro viés, efetivase também como consequência natural desse esvaziamento, proporcionando a
mobilização possível nesses tempos de escassez de trabalho assalariado, na qual
LOGOS 34 O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, Nº01, 1º semestre 2011
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Cabral Filho. A Web 2.0 como agenciamento de audiências pelos grupos midiáticos contemporâneos
a inclusão social se dá pela via dos dispositivos tecnológicos, tendo a Web 2.0
como impulsionadora e potencializando maior base de sociabilidade.
Desse cenário resta a conclusão de que não há pleno compartilhamento, que leve à cooperação e à produção conjunta de conhecimento, a não ser
em grupos que já se conhecem fora da Web ou formados por especialistas
ou aficcionados em determinados assuntos, concebendo a formação de nichos
extremamente segmentados, que são foco das estratégias contemporâneas de
Marketing e Publicidade.
Howard Rheingold cunhou inicialmente o conceito de comunidades virtuais nos primórdios da Internet comercial, em seu livro homônimo
de 1993, associando-o ao desenvolvimento de suficiente sentimento humano
para formar redes de relações pessoais no espaço cibernético [ciberespaço]”.
Tal formulação é mais fruto do próprio desenvolvimento embrionário, porém
sedutor, da tecnologia de redes mundialmente integradas do que propriamente
a concepção de um projeto proporcionado pela Internet. A maior parte das
conexões realizadas na Internet entre usuários não são redes propriamente ditas, nem mesmo comunidades, no que diz respeito aos seus vínculos efetivos.
E, como observado na pesquisa realizada no contexto da Universidade e seu
entorno, também não há uma disposição para o compartilhamento e a colaboração, a não ser em contextos muito particulares, o que desmonta dois aspectos
determinantes para a existência de comunidades.
Dessa forma, ou o fenômeno das comunidades virtuais se trataria ou de
algo muito específico em determinados contextos que carecem de melhor compreensão ou de um conceito dilatado, aplicável a um conjunto muito amplo de
acontecimentos, contribuindo para a própria perda de seu sentido. Além disso,
cabe salientar que as formas de pertencimento que definem uma comunidade
são mais complexas e dinâmicas que qualquer rede informática contemporânea (recaindo também num problema da compreensão pelo viés da teoria das
redes ou qualquer outro viés estruturalmente determinado).
Para Henrique Antoun (2006, p.15), “a participação e a ação comum
ganham grande maleabilidade, transformando as comunidades virtuais em
comunidades de movimento que esboroam as fronteiras entre público e o privado”. O autor põe seu foco na dimensão real do espaço virtual e demarca
uma diferenciação entre mídia de massa e meios na Internet, expressa explicitamente no resumo do artigo: “Enquanto no mercado de massa ele [o público]
é o homem médio da curva de Bells assediado pelos produtos arrasa quarteirão (blockbuster); na Internet ele é o ativista da lei de potência explorando a
cauda longa (longtail) do mercado de nicho”. O que a maturação da Internet
comercial e doméstica e a reconfiguração dos conglomerados midiáticos estão
demonstrando é que essa diferenciação é cada vez mais tênue na sua destinação final, dada a supressão dessa própria contraposição entre meios de massa e
meios da Internet.
Andrew Keen por sua vez estabelece uma crítica desmedida a tudo isso
que ele intitula de culto ao amador, título de seu livro lançado em 2009. O
estímulo direcionado à celebração desse culto, em torno fundamentalmente
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Cabral Filho. A Web 2.0 como agenciamento de audiências pelos grupos midiáticos contemporâneos
da Web 2.0, seria para o autor um “triunfo da inocência sobre a experiência”
(p.38) e que ao invés de usar a mídia “para buscar notícias, informação ou cultura, nós a usamos para SERMOS de fato a notícia, a informação, a cultura”
(p.12).
No entanto, as estratégias distintas de agenciamento de audiências como
manutenção do controle por parte dos conglomerados midiáticos através de
suas ferramentas em torno da Web 2.0 estão em curso e de modo consolidado,
na medida da evidência do investimento e da mobilização do mercado nos mais
diversos tamanhos, da força produtiva assalariada e da juventude que assimila
esses espaços como perspectiva possível de atuação profissional e dos usuários
em geral, que encontram nessas mídias uma forma de expressão simuladora de
uma liberdade que efetivamente as mídias de massa e seus proprietários nunca
se dispuseram a proporcionar.
4. Grupos midiáticos contemporâneos diante da digitalização
Se é verdade que as massas deixaram de ser maiorias silenciosas, visto
que relativamente se expressam por diferentes meios na medida do seu alcance, competência comunicativa, condição financeira e infraestrutura material,
a idéia de que o usuário final está no controle necessita ser definitivamente
questionada quando se pensa no crescimento e na reconfiguração dos modos
de exploração do capital na área de comunicação.
Dois indícios da continuidade desse domínio em sentidos aparentemente opostos, mas efetivamente complementares merecem destaque nessa análise: de um lado o mercado e, em especial, os grupos de mídia, que se tornam
atores plenos na configuração das tecnologias de informação e comunicação
junto à sociedade, a julgar pela participação destes na Cúpula Mundial para a
Sociedade da Informação, legitimada pela ONU como atores dentro da estrutura descentralizada que abriu espaços para atores da sociedade civil.
Por outro lado, é cada vez mais recorrente a estratégia de simular proximidade junto ao público: seja em relação aos gêneros de telejornais e telenovelas na TV, como os personagens do amigo da dona de casa e conselheiro
sentimental das rádios AM ou o acelerado locutor que toca os últimos sucessos
do momento da rádio FM. Nos bastidores, um imbricado jogo de interesses
envolvendo patrocinadores, poder público, bem como a própria estrutura de
gestão das empresas de mídia e dos veículos propriamente ditos, numa teia que
perpassa toda a cadeia produtiva do setor, bem como demanda análises complementares, a partir de áreas como linguagem e economia política.
Incentivos a falar com microfones abertos, além de entrevistas e depoimentos junto a ouvintes e telespectadores tornam a mídia de massa mais
acolhedora e representativa do cotidiano da população, no qual o chamado
jornalismo participativo ou cidadão vem tomando terreno e se firmando junto
ao público que o legitima, apesar de um inevitável incômodo por parte de
profissionais diplomados.
O mesmo acontece com a publicidade, com o anunciado fim do horário
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Cabral Filho. A Web 2.0 como agenciamento de audiências pelos grupos midiáticos contemporâneos
nobre. Para Rossi (2006, p. 56), “horário nobre é o “meu tempo”, aqueles
louváveis instantes em que o consumidor pode sintonizar-se com um meio de
comunicação e abrir-se ao seu conteúdo”. Acrescentando-se a Internet e seus
diferentes formatos, recursos e ferramentas, bem como sua nova composição
empresarial, com iniciativas surgidas a partir da própria rede e outras de empresas que expandiram seus negócios para além da radiodifusão, tem-se um
jogo bastante complexo que intensifica movimentações de mercado de diferentes dimensões7.
O mais interessante fenômeno relacionado a essa transição das mídias
está sendo cunhado nos laboratórios das empresas pontocom que lidam com
mecanismos de busca, já que a legitimação do objeto da busca é determinada
pela manipulação de palavras-chave, não mais por sua audiência absoluta. Esse
domínio, que vem sendo chamado no setor de otimização de mecanismos de
busca, proporciona em conseqüência uma audiência mais ampla, a partir da
incidência dos termos buscados entre os primeiros lugares das primeiras páginas de serviços como Google, Bing, dentre outros. Para John Battelle, autor do
livro “A Busca”, trata-se de promover a busca como a nova interface entre internautas e dispositivos de acesso à Internet, já que “(...) dentro de pouco tempo
começaremos a ver mudanças significativas na maneira como os resultados nos
serão oferecidos (...) as ferramentas do futuro poderão construir em tempo real
um perfil de seus interesses do seu uso passado na Web” (2006, p. 226).
Essa transição de audiências a palavras-chave na legitimação de conteúdos diversos ligados a empresas e seus produtos e serviços, de comunicação
ou qualquer setor, relacionado ao que vem se denominando como Web 3.0 ou
Web semântica, resulta num celeiro de experiências para TV e rádio digital,
que demandam um espaço mais abrangente de atuação quando deparados com
cenários conservadores como o brasileiro, ou se contentarão com a Internet
como um grande laboratório, o que a cada ano que passa vem deixando de ser
restrito a um pequeno universo.
Pode-se afirmar que os meios tradicionais cedem o acesso, a produção, mas não abrem mão do controle e da gestão dos meios e conteúdos.
Reconfiguram tanto conteúdos quanto dados de usuários de outro modo e se
constituem como ambiente de intensificação da concentração de corporações
midiáticas, mesmo que tendo passado um significativo tempo na assimilação
da Internet. As possibilidades de empreendedorismo existem e servem como
reforço à própria lógica dessa nova fase do capital na área das comunicações,
tendo os distintos modos de incorporação como meta e a falência como ameaça sempre presente, intensificando o limite do suportável em termos de saúde
do trabalho e das vidas pessoais dos trabalhadores, tanto quanto dos próprios
donos, empreendedores que não se ausentam do campo de batalha. Faz-se
acreditar, em relação a esse cenário, que uma possível bolha 2.0 não é iminente, mas algo com o qual se lida no próprio cotidiano dos negócios e produtos
derivados, e vice-versa.
Com a consolidação das mídias sociais como caminho possível para
a manutenção do controle dos grupos midiáticos, o conhecimento sobre as
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formas de retorno e medição de audiência também se modificam: no início deste século quem sabia não falava, atualmente todos falam mesmo não sabendo o
que. Compreende-se que o mercado midiático contemporâneo encontra-se em
plena sintonia com a overdose da informação e o fluxo dos mercados editorial,
de eventos e das empresas em geral, ávidos por ideias que funcionem. Prova
disso é que muitas empresas entram nas mídias sociais para ocupar espaço que
a concorrência já ocupou primeiro ou pensa em ocupar, sem necessariamente
contar como uma estratégia definida. Os cases são apresentados em eventos,
sistematizados em livros, recebendo feedbacks de seus fiéis prosumidores e se
redefinem em constante atualização e agregação de conteúdos pelas audiências
devidamente agenciadas.
Em contraste surge uma reação tradicional da mídia conservadora a esses novos tempos. Reunidos em torno da Declaração de Hamburgo8, vários
grupos midiáticos tradicionais, que não atuam em ou com mecanismos de
busca, decidiram por cortar relações com empresas como a Google, o Yahoo
e a Microsoft, no sentido de suspender a publicação gratuita de seus conteúdos, alegando, como relativa razão, que estavam contribuindo gratuitamente
para o fortalecimento dessas empresas e seus valores, especialmente os de suas
ações. A parte equivocada da relativa verdade recai justamente nos modos de
produzir valor dentro da Nova Economia e das parcerias que vem se realizando
em todo o planeta, bem como de uma transformação que incide também na
disposição para o pagamento por parte dos usuários.
Mais uma vez, seu equivalente publicitário estaria na disposição em fazer
o usuário engolir anúncios pela demanda de conteúdos, através de inserções ao
longo dos produtos distribuídos, tal como hoje nos filmes e programas de canais de utilização gratuita de TV a Cabo e/ou através das variações de inserção
de marca/produto nos conteúdos veiculados.
Se o desafio é tamanho para os grupos midiáticos, é gigantesco para o
público que começa a assimilar a Internet em seu cotidiano, buscando apreender tais desafios e responsabilidades nesses novos tempos. A primordial questão
que se coloca é saber se há competência para enfrentá-los ou trata-se de uma
luta perdida, principalmente pela impressão de que estamos todos navegando felizes com nossas ferramentas colaborativas em nossas comunidades de
compartilhamento.
Referências:
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de Pós-Graduação em Comunicação), v. 7, n. Dezembro, p. 1-24, 2006.
BATTELLE, John. A busca: como o Google e Seus Competidores
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Reinventaram os Negócios e Estão Transformando Nossas Vidas. Rio
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DRI, Rúben. Antonio Negri ou a evaporação da dialéctica. Disponível
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JAFFE, Joseph. O declínio da mídia de massa. São Paulo, Makron Books,
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KEEN, Andrew. O culto ao amador: como blogs, MySpace, YouTube e a
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LÉVY, Pierre. Cibercultura. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1996.
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Cabral Filho. A Web 2.0 como agenciamento de audiências pelos grupos midiáticos contemporâneos
WEB 2.0. Verbete da Wikipedia. Disponível em http://pt.wikipedia.
org/wiki/Web_2.0. Acesso em 05/02/2010.
Notas:
1,2- Autor
3- As mídias sociais são diferenciadas aqui da expressão redes sociais na medida em
que se tratam de aplicações que possibilitam e potencializam a formação das redes
sociais.
4- O Twitter é aqui associado à comunicação instantânea e não a microblog, como
vem sendo costumeiramente tratado, pois nem bem sua destinação é compatível
com a de blogs, nem mesmo os blogs se destinam a serem plataformas colaborativas,
mas iniciativas unilaterais abertas, através de espaços para comentários devidamente
identificados pelos seus responsáveis.
5- New Paradigm é inclusive o nome de sua empresa de consultoria.
6- Os recentes manifestos que vem sendo realizados no norte africano estão
sendo chamados de Revolução Twitter ou Revolução Facebook, mas contam,
determinantemente, com uma população disposta a transgredir o ciberespaço e
realizar seu espaço de transformação social para além das telas dos computadores.
7- Ver Denis de Moraes (nos livros “O Planeta Mídia” e no seu artigo dentro da
coletânea “Por uma outra comunicação”, por ele organizada) e César Bolaño (no livro
“Mercado Brasileiro de Televisão”), atualizadas mais recentemente por Cesar Bolaño
e Valério Brittos em “A televisão brasileira na era digital: exclusão, esfera pública e
movimentos estruturantes”)
8- Ver http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/leia-integra-da-declaracao-dehambugo/
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Subjetividades, imaginarios y
sensibilidades del presente
El fenómeno Cumbio
Subjectivities, imaginary and sensitivities of the present
the Cumbio phenomenon
Verónica Tobeña1 | [email protected]
Lic. en Ciencias de la Comunicación, Universidad de Buenos Aires; Doctoranda en Ciencias Sociales (FLACSO
Argentina); becaria doctoral de CONICET. Investigadora del Área Educación de FLACSO Argentina.
Resumen
El presente texto se propone explorar las subjetividades, los imaginaros y las sensibilidades del presente
que resultan de cambios estructurales como la globalización, la mundialización de la cultura, la resignificación de los Estados y su entorno institucional, los procesos de individualización y de fragmentación social
y cultural, la expansión y proliferación de los medios masivos de comunicación y el auge de las nuevas
tecnologías de la información. Ante la infinidad de escenas de la vida contemporánea que pueden citarse
para dar cuenta de la expresión de lo nuevo cultural, el texto propone analizar una que encarna en lo que
llama el fenómeno Cumbio, y que expresa muy elocuentemente uno de los rasgos que asume la escena actual y que tiene que ver con reconocer públicamente a aquellos que hacen de su intimidad un espectáculo.
Palavras-chave: Transformación cultural - Cumbio - Internet - Espectacularización de la intimidad Nuevo régimen de ficción
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Bianchini e Mielniczuk. O Universo Ficcional de Lost e a Narrativa Transmidiática.
Introducción
En los últimos años las categorías y las nociones que nos ayudaban a pensar la realidad y la configuración del mundo parecen haber perdido su potencia
explicativa. Los debates entre los que suponen una configuración moderna del
mundo y los que asumen que aquel orden está hoy superado por la (des)organización posmoderna persisten, y con ellos se mantiene la discusión de si la transformación debe pensarse al nivel de las matrices explicativas o de los proyectos
utópicos que mueven hoy nuestro devenir histórico, o si la mutación se da a
nivel estructural reconfigurando de forma inédita el mundo en que vivimos y
tornando de esta manera obsoleto nuestro arsenal conceptual moderno. Si bien
este debate no está cerrado ni saldado, y tanto las intervenciones en pos de una
concepción moderna como de una posmoderna del mundo aportan elementos
y argumentos interesantes para echar un poco de luz sobre los fenómenos del
presente, este texto parte de la premisa de que cambios estructurales como la
globalización, la mundialización de la cultura, la resignificación de los Estados
y su entorno institucional, los procesos de individualización y de fragmentación social y cultural, la expansión y proliferación de los medios masivos de
comunicación y el auge de las nuevas tecnologías de la información, marcan
un nuevo clima cultural y reconfiguran el escenario actual marcándonos un
umbral de época. Y si estamos ingresando a una nueva formación histórica, si
estamos frente a un proceso de transición hacia otro orden, hacia algo nuevo y
diferente, creemos que eso nuevo está influenciando también nuestra manera
de mirar el mundo y de pensarlo, porque esta nueva configuración estaría a su
vez reconfigurándonos a nosotros mismos en tanto nuestra subjetividad, nuestro imaginario y nuestra sensibilidad se modela y moldea al sabor de los ritmos
históricos, de sus prácticas, de las experiencias que propicia, de sus artefactos
culturales y de sus perspectivas.
Para sostener esta idea que pregona que estamos frente a una condición
cultural inusitada se impone reflexionar por el carácter novedoso de los fenómenos y procesos que configuran nuestra cultura y para ello la referencia al
pasado será insoslayable. ¿Cuáles son los procesos y los fenómenos que estarían
transformando la cultura en la actualidad? ¿A dónde debemos ir a buscar las
evidencias de dicho cambio o en qué espacios deberíamos detener nuestra mirada para pensar la transformación cultural?
Sobre las subjetividades del presente
Los cambios que observamos son medulares porque tienen la capacidad
de desplazar a los agentes de la subjetivación previos a las transformaciones, del
lugar central que ocupaban en la escena pasada; esa subjetivación se produce
hoy en combinación con otros vectores que aplican su fuerza subjetivante sobre
fibras que antes no habían sido estimuladas. Se observa un cambio entonces al
nivel de las mediaciones pero también es nuevo el eje alrededor del cual actúan
esas nuevas mediaciones. ¿Cuáles son esos vectores y esas terminales con las
que toman contacto? Si en los tiempos de los Estados Nación y de vigor de
los relatos totalizadores los individuos esculpían su subjetividad al calor de las
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Bianchini e Mielniczuk. O Universo Ficcional de Lost e a Narrativa Transmidiática.
ficciones orientadoras2 de la nación, de sus relatos, sus imágenes y sus símbolos,
y de las producciones que generaba la incipiente industria cultural, vehiculados
por instituciones que entonces gozaban de prestigio y salud como la escuela,
la familia, la fábrica y los partidos políticos, utilizando como medios de transmisión artefactos culturales basados fundamentalmente en la letra escrita; hoy
nuestra subjetividad es cada vez menos (o no se reduce solamente a) un producto de nuestra filiación familiar, de nuestra inscripción territorial, de nuestro
paso por la escuela o nuestra identidad política y pertenencia laboral porque
nuestra constitución subjetiva se labra fundamentalmente al calor de los medios masivos de comunicación, de las nuevas tecnologías de la información y la
abrumadora presencia de las creaciones de la industria cultural.
Incluso, el inusitado poder subjetivante que cobran dichos medios no
se ocupa tanto de esculpir nuestros aspectos más íntimos o interiores sino que
activan nuestras fibras más epidérmicas, se desplazan del interior al exterior,
del alma al cuerpo (Sibilia, 2008). Se trata de lo que Sennett (2000) intentó
apresar a partir de la expresión “la corrosión del carácter”, con la que buscaba
aludir a la mutación sufrida por el temperamento que la sociedad industrial
había ayudado a cimentar y que tenía que ver con una identidad que debía
buena parte de sus formantes a la inscripción social y las membresías que resultaban de ella, a la filiación en el mundo del trabajo asalariado industrial y a la
pertenencia a un colectivo nacional. Sennett nos muestra cómo la organización
industrial del capitalismo moderno definía los territorios y los tiempos de la
vida de los sujetos recortando de esta manera la figuración de un mundo y una
manera de ser en ese mundo. En contraposición al universo que figuraba la
sociedad industrial, la sociedad postindustrial se estructura a partir de bases
materiales que modelan un inconsciente cultural (Bourdieu, 2002) que surge de
las experiencias de las nuevas modalidades laborales (basadas en el trabajo en
red, la flexibilidad de las instituciones, el fin de los anclajes territoriales fijos, el
ocaso de las ideologías, etc.) socavando ese carácter que los modos de organización industriales habían favorecido (Sennett, op. cit.).
Las subjetividades que el presente está tallando ya no son efecto
único de un conjunto de relatos con densidad histórica, con capacidad de
establecer lazos fuertemente fijados, y con potencial identitario hegemónico; hoy el campo de identificaciones posibles se expande y se fragmenta, al tiempo que se muestra más frágil y precario para producir articulaciones duraderas (Bauman, 2002). Al mismo tiempo, ese repertorio de
posibles identificaciones se diferencia a la vez que se desdiferencia, esto
es, mantiene el viejo repertorio de identificaciones tradicionales con sus
diferenciaciones anteriores e incorpora a este inventario material desdiferenciado y desdiferenciador, que es precisamente el que refuerza las fronteras y al mismo tiempo las desdibuja, produce un espacio ambivalente y
contaminado, un espacio más fluido y global, lleno de pliegues, que es lo
que imprime un carácter novedoso al escenario cultural actual. Esta disolución de las fronteras, esta crisis de las divisiones tradicionales, esta imbricación de elementos y de motivos pertenecientes a esferas distintas que
ahora se yuxtaponen y se desdiferencian, conviven con los mecanismos
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de representación y de interpelación tradicionales y abren un campo de
significaciones que opera de manera diferente a la interpelación que fija
a una subjetividad única u orgánica.
“Han cambiado no tanto las imágenes en sí (los mitos y estereotipos, los personajes y los
relatos) sino la forma en que se agrupaban, dividían y oponían. Y también la forma en
que se usaban” (Ludmer, 2004: 103).
Sobre los imaginarios contemporáneos
El origen de la ampliación y complejización de ese campo de identificaciones posibles puede atribuirse al ensanchamiento cultural que producen dos
fenómenos ligados fuertemente a la dinámica económica: el ordenamiento de
la cultura de acuerdo a los criterios del mercado, y el descentramiento cultural3
que provoca la expansión y la influencia de los medios masivos de comunicación, de las nuevas tecnologías de la información y los artefactos culturales
vinculados a la revolución informática.
El primero de estos fenómenos implica una ampliación del espacio cultural pues al ser el mercado el principio ordenador del mundo simbólico, los
criterios que definen qué se incluye dentro del terreno cultural y qué no ya no
tienen que ver con patrones de belleza o estéticos, sino con la lógica mercantil. Esto quiere decir que es el público, a través de la acogida que brinda a los
productos, lo que funciona legitimándolos como obras de arte o como cultura.
El valor estético deja de ser el organizador del mundo simbólico para ceder al
valor de cambio ese rol. Al tiempo que productos otrora ajenos a la esfera de la
cultura son incluidos como mercancías culturales, la lógica mercantil también
penetra a las tradicionales obras de arte. Así, el arte se “socializa” de la mano
del mercado, quien, poco a poco, logra romper “la gran división” que distinguía al arte elevado de la cultura de masas (Huyssen, 2006), desdibujándose
asimismo los límites que ceñían al arte a una esfera diferenciada, para hacerlo
entrar en todos los espacios imaginables. La estetización general de la existencia
y la massmediatización de la realidad (Vattimo, 1989) refieren precisamente
a este fenómeno de desbordamiento de lo estético y del mercado a todas las
dimensiones de lo social4. Josefina Ludmer (2006) postula que la imbricación
que hoy tiene la cultura con el mercado produce un espacio económicocultural
sin afueras que trastoca los sentidos, los criterios y las categorías alrededor de
las cuales se organiza todo lo que se produce en dicho espacio. Para el caso de
la literatura y de las escrituras, que es el que ella analiza, plantea que se trata de
escrituras en posición diaspórica, esto es, escrituras que se ubican en un espacio
que no es ni el adentro ni el afuera de la literatura; de modo que son escrituras
que no pueden entenderse con los criterios específicos que las definen como de
valor literario, porque entran en una dimensión en la que la realidad y la ficción
se fusionan y se confunden porque se crean mutuamente, dando como resultado un régimen de significación ambivalente que es precisamente lo que le da
su sentido. En virtud de la posición diaspórica que ocupan, la autora denomina
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a estas escrituras literaturas postautónomas. Ahora bien, ante esta mutación de
las esferas cabe preguntarse qué pasa con los modos de leer cuando cambia
la literatura, ¿ellos también cambian? Y ¿qué características adopta la lectura
cuando se trata de hipertextos que ya no tienen una lógica lineal y secuencial
ni se soportan en el papel? ¿No están, estas transformaciones que sufren las esferas en las que se organizaba la producción cultural así como los innovadores
artefactos culturales, señalándonos cambios al nivel de los imaginarios?
El otro fenómeno que impacta en el campo cultural es el que provoca la
revolución tecnológica. El desarrollo que desde hace varias décadas viene produciéndose en el campo de la informática, especialmente en lo que a las nuevas tecnologías de la información y la comunicación respecta, ha modificado
profundamente la naturaleza de nuestras sociedades al punto que se ha abandonado la terminología de sociedad industrial, para referirse a nuestro sistema
capitalista de producción y de relación social como sociedades de la información
(Castells, 1999). A partir del protagonismo que cobran las nuevas tecnologías de
la información en los intercambios y la dinámica social cotidiana, el escenario
cultural se puebla de nuevos artefactos culturales que se van constituyendo progresivamente en los principales soportes culturales y de transmisión simbólica
que utilizan los jóvenes. Dichos artefactos son portadores de una nueva episteme
(Martín-Barbero, op. cit.) al constituirse en medios que nos ponen en contacto
con mundos desconocidos, capaces de articular elementos y materialidades heterogéneas (imagen, sonoridad, textualidad), que abren nuevas posibilidades de
aprender y de conjugar los sentidos y el intelecto (García Canclini, 2007).
Sobre las nuevas sensibilidades
Estas transformaciones nos hablan de una verdadera mutación cultural;
se trata de cambios que refieren a una estructura de sentimientos (Williams,
1980) que difiere fuertemente de la que preexistía a las posibilidades de trascender el contexto inmediato que ofrece internet o la televisión por cable, y
que también es muy distinta a la que estaba dominada por el pensamiento
logocéntrico y que McLuhan bautizó como “Galaxia Gutenberg” (Quevedo,
2003). En la escena presente no son las letras y las relaciones cara a cara
el material privilegiado a partir del cual construimos nuestro yo, sino que
cobran relevancia las imágenes y los vínculos mediados por las tecnologías
electrónicas, los cuales van delineando nuestros contornos y activando fibras
y nervios que hasta entonces se mantenían en inactividad. Imágenes que están dinamizadas por el ritmo fragmentario y acelerado de las pantallas de tv;
vínculos que se caracterizan por la instantaneidad y la inmediatez del chat,
que son efímeros, volátiles, y se deslocalizan en tanto tienen lugar en un ciberespacio o espacio virtual, despiertan una sensibilidad y un ritmo corporal
inusual. Fragmentación, velocidad, simultaneidad, precariedad, ubicuidad
implican una relación sensorial con el mundo, que dan por resultado una
multiplicidad de percepciones y de identificaciones híbridas y efímeras, que
introducen nuevas temporalidades y nuevas espacialidades.
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Una cámara y un blog crean una estrella5: El fenómeno Cumbio
Hay infinidad de escenas de la vida contemporánea que pueden citarse
para dar cuenta de la expresión de lo nuevo cultural. Aquí proponemos detenernos a analizar una que encarna en lo que llamamos el fenómeno Cumbio,
y que expresa muy elocuentemente el creciente reconocimiento público que
tributa la exposición de la vida privada, o, más sintéticamente, “La intimidad
como espectáculo”. La expresión pertenece a Paula Sibilia y da título a su último libro (2008), dedicado a describir y analizar los cambios en el terreno de
las subjetividades que explican el actual vuelco de la intimidad hacia la esfera
pública y los modos en que esta espectacularización de la intimidad y ficcionalización de la personalidad se presentan.
Uno de esos modos es el que protagonizan los floggers6 y que en nuestro
país tiene a Agustina Rivero, más conocida como Cumbio, como referente
sobresaliente. Cumbio se destaca entre sus congéneres por la popularidad que
alcanzó en un tiempo récord: a las tres semanas de inaugurar su flog había
alcanzado uno de los números de posteos y de visitas más elevados y una adhesión a su filosofía de vida que la hacía cosechar miles de seguidores que responden semanalmente a sus convocatorias de reunión en el Shopping Abasto. Esta
adolescente, de apenas 17 años, es tan popular que su nombre ya se convirtió
en una marca y cosecha clubes de fans y blogs a favor, con la misma pasión con
la que inspira detractores y decenas de blogs en su contra. Su notoriedad es tan
prominente que la firma deportiva Nike la eligió como imagen de su marca y
es contratada por distintos boliches que explotan su presencia para aumentar
la atracción de público. El caso parece ser todo un fenómeno: entre los hechos
que nos indican el alcance de su notoriedad resaltan que la joven fue tentada
por un partido político a ser candidata a diputada y que el diario New York
Times dedicó un extenso artículo a hablar de la celebre flogger, quien además
ya puso en circulación un libro sobre su vida (“Yo, Cumbio. La vida según la
flogger más famosa del país”) y otorgó a un cineasta los derechos para filmar
un documental sobre su vida (Perfil, 2009).
Si bien muchos abordan este fenómeno intentando encontrar denominadores comunes con generaciones jóvenes anteriores que, como los hippies, eran vistos socialmente como diferentes o rebeldes; más que la persistencia de la afirmación de sus diferencias7 en referencia a un otro social
(ya sea para oponérsele, rebelársele, o para celebrarlo), o de definirse por su
filiación a alguna ideología, por sus preferencias sexuales, o por sus gustos
musicales o estéticos, lo que otorga identidad a los floggers es sus ganas de
conocer gente por medio del fotolog. En una entrevista realizada por el
programa “Tiene la palabra” que emite los viernes el canal de cable TN,
la joven estrella respondía impávida ante la avidez de los periodistas por
colocarle etiquetas o enfrentarla con un Otro8:
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- Cumbio: “Nosotros no tenemos enemigos. Con los Emo9 todo bien, con
todos todo bien”.
- Periodista: “¿Cuáles son los contenidos de los floggers?”
- Cumbio: “Lo que nos une es las ganas de conocer gente. Lo que nos une
es la página, no hay una ideología o estética que nos una. (…) Algunos estudian y
otros no, algunos trabajan y otros no. La mayoría tienen entre 13 y 17 años, pero
hay algunos de hasta 35. (…) No entiendo por qué la rebelión tiene que ser pelearse
con los papás. (…) No soy fan de nadie. Mis referentes son mi hermano, mi mamá,
mi novia, mi papá”.
¿Cuál es el secreto de su éxito? El secreto parece ser no tener secretos.
Su popularidad parece estar cimentada en la exposición de su intimidad en la
Web que además es replicada y potenciada desde los medios masivos de comunicación. “Cuál es el contenido de los floggers?” se preguntaba el periodista,
y aquí podríamos reformular el interrogante del siguiente modo: ¿cuáles son
los rasgos particulares que presenta este yo para transformarse en objeto de
espectacularización?, ¿qué lo convierte en una personalidad digna de publicidad y de atraer la mirada ajena?
Quizás es oportuno recordar que la separación entre los ámbitos público
y privado de la existencia es una invención histórica y que la división de estos
dos espacios, cada uno con sus reglas, sus funciones y sus rituales, obedece a
las necesidades e intereses políticos y económicos específicos del capitalismo
industrial (Sennett, 1978). Cuando esta escisión operaba con éxito y sus límites
estaban nítidamente marcados, la intimidad era una substancia o un aspecto de
la individualidad que se cultivaba en el plano privado, adonde los individuos se
recluían para escapar de las convenciones a las que debían ajustarse en la vida
pública, y del cual tomaban los nutrientes para su autoconstrucción. El principal ámbito del espacio privado era el plano doméstico y para quienes contaban
con esta posibilidad era específicamente el cuarto propio. Era en estos lugares
cerrados a la mirada de los otros en los cuales el sujeto se permitía ser él mismo
y apostaba a su autenticidad y su verdad, allí incrementaba su acervo interior
a través de la lectura (principalmente de novelas) y la escritura (fundamentalmente de diarios íntimos y de cartas). Así, la subjetividad de los hombres
y las mujeres modernos se amasaba en dialogo con la vida de esos personajes
literarios que sembraban un campo de identificaciones prolífico, ya que ellos
también se presentaban llenos de dilemas interiores, de pasiones incontrolables
y de deseos reprimidos. Esas historias que se leían con fruición y que calaban
en las fibras más recónditas de sus lectores, estaban llenas de pliegues donde se
superponían y yuxtaponían miedos, pasiones, aspiraciones, deseos, frustraciones; los tesoros de una subjetividad que debía mantener a raya de la mirada de
los otros los aspectos más humanos y más irracionales del ser social formaban
parte del material a partir del cual las subjetividades modernas elaboraban los
espesores de su yo. Los trabajos introspectivo y retrospectivo representaban un
ejercicio recurrente en los procesos de autoconstrucción del yo: el sustrato de
estas identidades estaba claramente fundado en la experiencia individual, en
los modos en que esa experiencia era elaborada interiormente y en la búsqueda
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de un sentido que ligaba los fragmentos y los trozos de esas distintas facetas de
uno mismo en un relato con un significado subjetivo (Sibilia, op. cit.). Como
resultado de este proceso de constitución subjetiva Sibilia señala que lo que
arroja el contexto industrial es una forma subjetiva particular que define como
homo psycologicus u homo privatus y se caracteriza por su interioridad psicológica. Se trata de “un tipo de sujeto que aprendió a organizar su experiencia en torno
de un eje situado en el centro de su vida interior” (p. 77). David Riesman (1971)
delineó el concepto de personalidades introdirigidas para dar cuenta de este tipo
de subjetividad volcada hacia adentro de sí misma.
El fenómeno Cumbio parece estar marcando un desdibujamiento de
las fronteras que separaban categóricamente lo público de lo privado. No se
trata simplemente de un avance de lo privado sobre el ámbito público sino de
algo más complejo. “Hay una imbricación e interpenetración de ambos espacios,
capaz de reconfigurarlos hasta volver la distinción obsoleta” (Sibilia: 93) Lo que
la emergencia de este personaje nos muestra es un tipo de subjetividad que se
realiza en el mismo gesto que la hace visible. El yo ya no se autoconstruye al
calor de las experiencias más íntimas ni desde los espacios reservados al desarrollo de la interioridad, tampoco es un producto de debates internos o de
ejercicios autorreflexivos, sino que cobra entidad al hacerse público, visible.
Lo que se observa es un desplazamiento de las tiranías de la intimidad a las
tiranías de la visibilidad (Sennett, 1978).
“El homo privatus se disuelve al proyectar su intimidad en la visibilidad de las
pantallas, y las subjetividades introdirigidas se extinguen para ceder el paso a las
nuevas configuraciones alterdirigidas (…) Todo apunta a ese desplazamiento del
eje alrededor del cual las subjetividades se construyen. Abandonando el espacio
interior de los abismos del alma o los nebulosos conflictos de la psiquis, el yo se
estructura a partir del cuerpo. O, más precisamente, de la imagen visible de lo
que cada uno es. (…) El cuerpo se torna una especie de objeto de diseño. Hay que
exhibir en la piel la personalidad de cada uno y esa exposición debe respetar ciertos
requisitos. Cada vez más hay que aparecer para ser. Y según las premisas básicas
de la sociedad del espectáculo y la moral de la visibilidad, si nadie ve algo es muy
probable que ese algo no exista” (Sibilia: 127-130).
Los deslizamientos no se dan únicamente a nivel de la espacialidad (público-privado) sino que estos deslizamientos también conciernen
al eje de la temporalidad. “No sólo hay un declive de la contemplación introspectiva sino también de la mirada retrospectiva” (Sibilia: 132). Al igual
que ocurría en el caso de las concepciones que marcan lo que es púbico y
lo que es privado, cabe destacar que el tiempo es también una categoría
que varía temporoespacialmente pues sus características se modifican al
compás de los contextos y los cambios históricos. El carácter renovado que
asume hoy la idea de tiempo debe su nueva fisonomía al avance del género
informativo que con sus ritmos fugaces y su presentación fragmentada promueven la destemporalización y la destotalización (Sibilia: 154). La idea de
destemporalización alude a un tiempo al que no le es inherente el pasado
ni la promesa del futuro, es un tiempo sin tiempo porque en él el tiempo se
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comprime. Es “un presente constantemente presentificado”, un “tiempo congelado” (Debord, 1995):
“Esa sensación de que vivimos en un presente inflado, congelado, omnipresente y
constantemente presentificado, promueve la vivencia del instante y conspira contra las
tentativas de darle sentido a la duración (...) Por todo esto, (…) ‘las novelas largas
escritas hoy tal vez sean una contradicción’ ya que la dimensión del tiempo se ha
perturbado y su linealidad estalló en una infinidad de astillas dispersas (…) La ficción
fue perdiendo efecto sobre el lector, entre otras cosas porque la recreación del mundo
que proponen las novelas queda opacada por el flujo global de información que existe
hoy” (Sibilia, 143-155).
¿Y cómo se expresa este presente congelado y esta vivencia del instante
en el caso de Cumbio? Lo que puede apreciarse a través de las intervenciones
públicas de esta adolescente en las que va destilando pistas que nos permiten
reconstruir los rasgos de su personalidad es que no hay un sustrato ideológico
o fundado en algún aspecto que provenga de su densidad interior que delinea
sus rasgos particulares, más bien parece ser la acentuación de lo que hay de banal y ordinario en su personalidad lo que la convierte en una estrella. Aunque
tenga una novia mujer, aunque su estética y su imagen vaya a contramano de
la que intentan entronar los medios como modelo de mujer a esculpir, aunque
se inscriba en una tribu urbana que irrumpió provocando cierto pánico moral10
en la sociedad por la desconfianza hacia los valores y creencias que parecían
animarlos, a pesar de todas estas cualidades que pueden tomarse hoy como
rasgos de excentricidad dignos de ser destacados o admirados por sus pares en
virtud de su transparencia, la célebre flogger no se apoya en ninguna de estas
condiciones de su existencia para elaborar la definición de su yo (“No me define
el hecho de ahora estar con otra mujer, no soy bisexual!”, dice) y no hay membresía, mas allá de su afiliación al fotolog, que le cuadre. Su bandera parece ser la
de ser pública, su ser cobra relieve y se espesa al aparecer en las pantallas y su
celebridad esta basada en su ser y no en un hacer.
El modo en que se ficcionaliza la personalidad parece ser la clave del
éxito, ya que no se trata solamente de cumplir con ciertos mandatos estéticos
que parecen caracterizar al universo floggero sino que la estilización del yo en el
ciberespacio o en el escenario mediático tiene que devenir en la creación de un
personaje. “No voy a desfiles de moda pero si voy a desfiles floggers donde yo misma
desfilo. Cada uno va con la ropa que a uno le gusta y se siente cómodo. Lo que está
más expuesto no es el look sino el personaje: como uno va y baila y dice soy tal. Mi
relación con la moda en realidad es mínima: un día me dan ganas de cambiarme
el pelo de color y me lo cambio” (…) “Las gorras me gustan más que todo para las
fotos pero no tanto para salir”, afirma11. Así, el personaje Cumbio no es efecto
de la exposición ingenua y espontánea de su imagen sino que es producto de
la espectacularización deliberada de su vida o, mejor dicho, de la puesta en escena de su vida como su obra eximia: es el hacer de su yo un show, un fetiche.
Porque es su propia existencia y su experiencia vital la que se transforma en su
obra. Su celebridad no reside en alguna habilidad que cristaliza en un producto o en una sustancia exterior y tangible; es la construcción visual del yo y la
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visibilidad que esta obra alcanza gracias a las herramientas electrónicas y en
virtud de haber sido tocada por la varita mágica de los medios y el mercado el
secreto de su éxito. El mérito en el que se funda su popularidad es su habilidad
para conquistar las pantallas. Los límites que separaban la realidad de la
ficción también se desdibujan cuando la obra toma como sustrato a la vida;
la realidad se estetiza para que parezca una ficción y con este movimiento el
estatus de uno y otro se desdibuja.
Esto se da en un contexto donde se observa un significativo declive de
la literatura canónica y los géneros de ficción tradicionales, y que como contrapartida presenta un mercado editorial volcado a la literatura testimonial, las
autobiografías, las novelas verdad, la literatura de no ficción y las biografías de
personalidades famosas (Schiffrin, 2001; 2005). Muchas de esas biografías se
inspiran en figuras que deben su celebridad a su desempeño sobresaliente en
alguna rama del arte, de la historia o de la política, sin embargo, la trama que
tejen esas biografías no están centradas en aquellos aspectos de su existencia
que hicieron de su vida algo extraordinario y excepcional, sino que subrayan
los aspectos más banales y pedestres de su paso por este mundo. Así lo que se
ofrece es una reelaboración de estos personajes al calor de lo que los iguala con
el hombre común, de modo de volver a estos personajes más reales. Otras propuestas editoriales, en cambio, se basan en aquellas celebridades que deben su
glamour al mercado y se volvieron famosas exclusivamente por obra y gracia del
beneplácito mediático, que es su fuente de legitimación, y en este caso son en
general escritas por sus propios protagonistas. Esta tendencia se consustancia
con otra propensión propia de la producción televisiva que es la de la profusión
del reality show, que consiste en la apoteosis del hombre común al transformar
la realidad de “cualquiera” en materia de entretenimiento.
El antropólogo francés Marc Augé (1998) atribuye esta nueva repartición
de lo real y la ficción a un cambio en el régimen de la ficción. Desde su perspectiva el carácter de la ficción y el lugar del autor son los dos criterios por los
que se puede definir un régimen de ficción. Lo que él plantea es que la ficción
está definida por la existencia del autor y por la relación del relato ficcional con
lo real, y esto es lo que está cambiando en la actualidad. Dichos cambios son
deudores de transformaciones que se dan en los tres polos que están implicados
en los modos en que se diferencian lo real y la ficción, que a su vez deben a la
existencia de la identidad y de la alteridad y las características que asumen una y
otra, los posibles vínculos que son capaces de entablar entre sí. Estos polos son:
1) Lo imaginario y la memoria colectivos (IMC): “una totalidad simbólica por referencia a la cual se define un grupo y en virtud de la cual ese grupo
se reproduce en el universo imaginario generación tras generación” (p. 76).
2) Lo imaginario y la memoria individuales (IMI): “El complejo IMC
ciertamente da forma a los mundos imaginarios y las memorias individuales (IMI). Asimismo ese complejo es una fuente de elaboraciones narrativas
producidas por creadores más o menos autónomos. El complejo IMI puede
influir en el complejo colectivo y enriquecerlo, y es una fuente directa de la
creación literaria” (p. 76-77).
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3) La Creación-Ficción (C-F): Toda creación-ficción, sea colectiva o individual, es producto de los sueños, es decir que de alguna manera es producto
de “un ligero desfase (…) entre las coacciones del sistema simbólico y la imaginación del individuo” (p. 134). “Toda creación (…) puede a su vez afectar tanto los
universos imaginarios individuales como el simbolismo colectivo” (p. 77)
Sobre la base de este planteo, la hipótesis de Augé es entonces que la
debilitación de algunas de estas fuentes puede afectar a las otras dos (p. 77).
Y si los imaginarios colectivos inciden en el imaginario individual volviendo
viable la posibilidad de producir relatos individuales (ficciones), cabe preguntarse qué ocurre cuando el polo del imaginario colectivo parece agotado
o bien se muestra incapaz de influir sobre los imaginarios individuales operando como agente aglutinador y de identificación colectiva, deslizándose de
esta manera al polo de la ficción.
“Evidentemente ahora se nos plantea el problema de determinar la relación que
hay hoy entre los tres polos de lo imaginario cuando por todas partes se anuncia
la muerte de los mitos de la modernidad, que a su vez se convertirían en simples
elementos de ficción. Pero enfocar esta cuestión presupone una doble reflexión: una
reflexión sobre la imagen, sobre la imagen material a la cual los seres humanos
están aún más expuestos y son más sensibles hoy que en la época barroca (…); y
una reflexión sobre la ficción misma, sobre la cual podemos preguntarnos si no ha
cambiado también ella misma de naturaleza o de índole a partir del momento
en que ya no parece constituir un género particular, sino que parece unirse a la
realidad hasta el punto de confundirse con ella” (p. 116-117).
Es que si hoy no contamos con una totalidad simbólica que nos enmarque dentro de un colectivo y al mismo tiempo opere como sustrato potencial
al cual irían a recalar nuestros imaginarios individuales: ¿cuál sería el carácter
de la ficción que estos imaginarios individuales están en condiciones de crear
ante el agotamiento de los relatos que nos serían comunes?
“Hemos pasado al ‘todo ficcional’ (…) Todos los antiguos universos imaginarios
colectivos tienen ahora el carácter de ficción (…) Ante sí, lo imaginario individual no
tiene más que la ficción. Pero la ficción también ha cambiado, puesto que ya no tiene
intercambio alguno con el polo desocupado IMC. La nueva ficción, que llamaremos
‘ficción-imagen’, se sitúa a media distancia de los anteriores polos IMC y CF, como si
ambos se hubieran desplazado hacia una nueva posición de equilibrio (…) Informado
únicamente por la ficción-imagen, el yo que ocupa el antiguo polo de lo imaginario y de
la memoria individuales (IMI) puede considerarse ‘ficcional’” (p. 135-136).
Una ficción que es pura imagen, que prescinde de la mediación simbólica, es una ficción que “debe su existencia a la desaparición simultánea de la
historia y del autor” (p. 136). Es una ficción en la que su anclaje temporoespacial aparece lavado o es difícil de determinar porque no conserva rasgos del
universo simbólico que le dio vida pues ya no es nutrida por él.
En el caso de Cumbio la desaparición de la mediación simbólica es flagrante así como los rasgos que asume aquí el nuevo régimen de ficción que
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advierte Augé, caracterizado como ficción total. A la evidencia y el análisis
ofrecido hasta aquí podemos agregar, en este sentido, una escena protagonizada por la flog star, que si tenemos en cuenta que representa a una de las tribus
urbanas más sobresalientes de nuestros días, hay algo del ethos cultural actual
que parece expresarse en ella. En la escena en cuestión, la hipótesis de Augé de
que estaríamos frente a un régimen ficcional donde la historia y el autor desaparecen y el polo imaginario colectivo se deteriora, cobra vigor:
-Periodista: “A mí me gustó estar en presencia de ella (Cumbio) porque yo
soy fanático del Emo de Capussotto, la verdad que me encanta. Como yo soy medio
dark entonces me gustaba el Emo. (Risas) Pero vos tenés una onda medio, más allá
de que digas que podes parecer triste por momentos, sos para arriba”.
- Cumbio: “No me reí del chiste del Emo porque no me causa gracia reírme
de otra persona porque no me gustaría que se rían de mí”.
- Periodista: “¿De qué te reís vos, Cumbio?”
- Cumbio: “No sé…, (piensa unos momentos) me río de las cosquillas...”
Con la expresión “me río de las cosquillas” parece manifestarse con una
elocuencia insuperable el acabose del imaginario colectivo que señala Augé. Lo
que esta revelación de la joven estrella parece estar marcando es el primer plano
que hoy ocupa lo sensorial y las sensaciones, y la importancia que cobra el cuerpo, que en virtud de la ficción total se transforma en la única mediación posible.
Palabras finales
A lo largo de estas páginas intentamos abordar la mutación cultural que
está transformando a nuestras sociedades, centrándonos en el fenómeno de
los floggers y haciendo foco en Cumbio, una de sus exponentes más sobresalientes para el caso argentino. Creemos que el ejemplo utilizado es atinado en
tanto condensa de forma elocuente las maneras inéditas en que se expresan las
subjetividades, los imaginarios y las sensibilidades que propician los cambios
contemporáneos, y que por eso nos ayudan a pensar la cultura hoy. Estos cambios impactan en la organización del mundo socavando la configuración que
el proyecto moderno había intentado darle al funcionamiento social. Ese orden
se había forjado gracias al proceso de secularización que dividió a las distintas
esferas de la actividad en campos autónomos, pero también estaba asentado en
la división de los ámbitos público y privado, en la diferenciación de la realidad
y la ficción, en la conformación de un complejo entramado institucional al servicio del progreso y en la organización jerárquica de los contenidos culturales,
todos ellos sostenidos y motorizados por la acción del Estado Nación. Es precisamente este escenario el que vemos desdibujarse tornando inestable e incierta
la fisonomía del mundo. Que Internet y los nuevos y sofisticados artefactos culturales han revolucionado el modo en que nos vinculamos, aprendemos y trabajamos resulta a esta altura una afirmación poco original. Pero comprender la
dinámica de la sociedad de la información en la que nos hemos transformado
y el impacto que ésta tiene en la constitución de subjetividades, imaginarios y
sensibilidades, nos conmina a explorar el andamiaje y las modulaciones que las
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nuevas tecnologías ejercen sobre los sujetos y su medio ambiente. En este sentido, estas páginas apuntaron a interrogarse por la fisonomía que está adquiriendo el mundo, por los agentes que participan en su construcción y los valores y
sentidos que éste encierra. El carácter contemporáneo de las mutaciones y las
migraciones de sentido que aquí documentamos hace más difícil una percepción diáfana de dichos procesos. Esperamos que estas páginas constituyan un
pequeño aporte en la difícil tarea de apresar el presente.
Notas
1 - Lic. en Ciencias de la Comunicación, Universidad de Buenos Aires; Doctoranda en
Ciencias Sociales (FLACSO Argentina); becaria doctoral de CONICET. Investigadora
del Área Educación de FLACSO Argentina. E-mail: [email protected].
2 - Retomamos esta noción de Nicolás Shumway (2002). Este autor habla de ficciones
orientadoras como esos relatos que una nación se inventa para instituir los rasgos
de la comunidad y de esta manera proveer de narrativas que interpelen a los
individuos como ciudadanos de una nación.
3 - Esta expresión se propone dar cuenta del desplazamiento del libro del lugar central
que solía ocupar en la cultura, y de su reemplazo por la imagen visual (MartínBarbero, 2002).
4 - Para algunos autores (Jameson, 1999), esta reconfiguración cultural que motoriza
la acción del mercado es producto de la fase cultural por la que atraviesa el
capitalismo tardío.
5- Este es el título del artículo que el diario New York Times publicó sobre la célebre flogger.
6 - “Los floggers son la primera tribu urbana que se define por su uso de internet, en
particular del portal Fotolog.com. Se trata de una red social gratuita donde los usuarios
publican una foto por día en su flog (abreviatura de foto-log, o ‘bitácora de fotos’)
con un texto breve y pueden recibir hasta 20 comentarios o ‘firmas’ de sus amigos. La
popularidad de cada flogger se mide por la cantidad de firmas que reciben y por el
número de usuarios que los agregan como amigos. (…) Por eso, la rutina de los floggers
tiene por objetivo hacer amigos y volverse popular” (Perfil, 2008).
7 - Que tiene rasgos muy singulares e indisociables de su tiempo al depender de las
nuevas tecnologías electrónicas para ejercer su práctica en tanto flogger.
8-L
a entrevista puede verse en: http://www.mazcue.com.ar/tn-tiene-la-palabra-cumbio/
9 - Los Emo son una tribu urbana contemporánea que se define por un estilo
estético basado fundamentalmente en el peinado (flequillo largo peinado de
costado tapándole la mitad de la cara), en la vestimenta, en el maquillaje (los
ojos delineados de negro, sombras oscuras), en los complementos (tatuajes,
pulseras) que combinan todo esto con una filosofía de vida negativa que les da
un aire pesimista y lánguido. Para ampliar la información véase: http://www.
forometropolis.com/foro/showthread.php?t=4429
10 - El término fue acuñado por el sociólogo Stanley Cohen en su libro Folk Devils
and Moral Panics en 1972, y refiere a una reacción de un grupo de personas
basada en la percepción falsa o exagerada de algún comportamiento cultural o
de grupo, frecuentemente de un grupo minoritario o de una subcultura, como
peligrosamente desviado y que representa una amenaza para la sociedad. Son
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subproductos de controversias que producen argumentos y tensión social o que
no son fácilmente discutidos dado que algunos de estos pánicos morales son tabú
para algunos sectores de la sociedad.
11 - Fuente: http://www.terra.com.ar/canales/el_ropero/190/190726.html
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