Um estudo autobiográfico, Inibições, sintomas e ansiedade, A

Transcrição

Um estudo autobiográfico, Inibições, sintomas e ansiedade, A
Um estudo autobiográfico, Inibições, sintomas e
ansiedade, A questão da análise leiga
e outros trabalhos
VOLUME XX
(1925-1926)
Dr. Sigmund Freud
UM ESTUDO AUTOBIOGRÁFICO (1925 [1924])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
SELBSTDARSTELLUNG
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1925 Em Grote’s Die Dedizin der Gegenwart in Selbstdarstellungen, 4, 1-52 (Leipzig:
Meiner.)
1928 G.S., 11, 9-82.
1934 Sob a forma de livro, com o título Selbstarstellung. Leipzig, Viena e Zurique:
Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 52 Pp.
1936 2ª ed. Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 107 Pp. Com novas notas
de rodapé e outro assunto adicional incluindo ‘Nachschrift 1935’, (ver adiante).
1946 Londres: Imago Publishing Co. Reimpressão da anterior com ilustrações diferentes.
107 Pp.
1948 G.W., 14, 33-96, com as novas notas de rodapé da 2ª ed., mas sem o outro assunto
adicional. (Quanto a ‘Nachschrif 1935’, ver adiante.)
1935 ‘Nachschrift 1935’. Almanach 1936, 9-14.
1936 Em Selbstdarstelung, 2ª ed. (ver acima), 102-7.
1946 Na reimpressão de Londres da anterior.
1950 G.W., 16, 31-4.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
An Autobiographical Study
1927 Em The Problem of Lay-Analyses. Nova Iorque: Brentano. Pp. 189-316.(Trad. de
James Strachey.)
1935 Londres: Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 137 Pp. Mesma
tradução, revista a partir da 2ª ed. alemã, com novas notas de rodapé e outro assunto adicional,
incluindo ‘Postscript (1935)’.
Autobiography
1935 Nova Iorque: Norton. 153 Pp. Como a anterior, mas com título diferente.
A presente tradução inglesa é uma versão modificada da publicação em 1935.
Como Freud explica em seu Pós-Escrito,ver em ([1]), a tradução inglesa dessa obra, quando
publicada pela primeira vez nos Estados Unidos. em 1927, foi incluída no mesmo volume que seu exame
da ‘análise leiga’; mas o Estudo Autobiográfico não foi mencionado nem na página de rosto nem na capa
externa do livro. Quando, oito anos depois, um novo editor norte-americano se encarregou da obra,
sugeriu a Freud que ela devia ser revista e atualizada. Assim o novo material apareceu em inglês antes
de sua publicação em alemão. O Volume XI dos Gesammelte Schriften, publicado em 1928, naturalmente
só traz o texto da primeira edição. O Volume XIV das Gesammelte Werke, publicado em 1948, apresenta
uma reprodução fotográfica daquela versão, juntamente com as novas notas de rodapé que foram
acrescentadas à segunda edição. Infelizmente, contudo, desprezou-se o fato de que considerável
número de modificações e acréscimos tinham sido feitos no verdadeiro texto da obra. Estes,
conseqüentemente, não foram incluídos nas Gesammelte Werke, embora naturalmente sejam
encontrados nas edições do livro lançadas separadamente (1936 e 1946). Essas omissões são
observadas na tradução inglesa que se segue. Soubemos por Ernest Jones (1957, 123) que a obra
principal foi escrita em agosto e setembro de 1924, havendo na realidade surgido em fevereiro de 1925; o
Pós-Escrito foi concluído por volta de maio de 1935.
Esta obra é geralmente, e de maneira bastante desorientadora, mencionada como ‘Autobiografia’
de Freud. O título da série para a qual originalmente constitui contribuição - Die Medizin der Gegenwart in
selbstdarstellungen (que poderia ser traduzido por ‘Medicina Contemporânea em Auto-Retratos’) - revela
com bastante clareza que o objetivo de seus organizadores ( foi publicada em quatro volumes, 1923-5,
com colaborações de cerca de vinte e sete autoridades médicas de renome ) era apresentar um relato da
história recente da ciência médica feito por aqueles que haviam desempenhado um papel de destaque na
sua elaboração. Assim o estudo de Freud é essencialmente um relato de sua participação pessoal no
desenvolvimento da psicanálise. Como ele próprio ressalta no parágrafo inicial, ele estava
inevitavelmente revendo muito do que já tinha sido tratado em seu artigo ‘A História do Movimento
Psicanalítico’ (1914d), cerca de dez anos antes. Não obstante, como um confronto entre as duas obras
revelará, sua disposição de ânimo então era bem diferente. As controvérsias que haviam impregnado de
exacerbação o artigo mais antigo tornaram-se agora insignificantes e ele pôde apresentar um relato frio e
inteiramente objetivo da evolução dos seus pontos de vista científicos.
Aqueles que desejam a história de sua vida pessoal devem, mais uma vez, ser encaminhados
aos três volumes da biografia de Ernest Jones.
UM ESTUDO AUTOBIOGRÁFICO
I
Vários dos colaboradores desta série de ‘Estudos Autobiográficos’ começaram expressando suas
apreensões pelas dificuldades inusitadas da tarefa que empreenderam. As dificuldades no meu caso são,
assim penso, ainda maiores pois mais de uma vez publiquei artigos nos mesmos moldes que o presente,
artigos que pela natureza do assunto têm tratado mais de considerações pessoais do que é habitual ou
do que de outra forma teria sido necessário.
Apresentei meu primeiro relato do desenvolvimento e do tema da psicanálise em cinco lições que
pronunciei em 1909 na Clark University, em Worcester, Mass., para onde fora convidado a fim de assistir
às comemorações do vigésimo aniversário de fundação daquela entidade. Só recentemente cedi à
tentação de prestar uma contribuição de natureza semelhante a uma publicação coletiva norte-americana
que aborda os primeiros anos do século XX, visto que seus editores haviam demonstrado seu
reconhecimento quanto à importância da psicanálise, dedicando-lhe um capítulo especial. Entre essas
duas datas surgiu um artigo, ‘A História do Movimento Psicanalítico’ [1914d], que, de fato, encerra a
essência de tudo que posso dizer sobre a presente ocasião. Visto que não devo contradizer-me e como
não tenho nenhum desejo de repetir a mim mesmo exatamente, devo esforçar-me por construir uma
narrativa na qual atitudes subjetivas e objetivas, interesses biográficos e históricos, se combinem em uma
nova proporção.
Nasci a 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Morávia, pequena cidade situada onde agora é a
Tchecoslováquia. Meus pais eram judeus e eu próprio continuei judeu. Tenho razões para crer que a
família de meu pai residiu por muito tempo no Reno (em Colônia), que ela, como resultado de uma
perseguição aos judeus durante o século XIV ou XV, fugiu para o leste, e que, no curso do século XIX,
migrou de volta da Lituânia, passando pela Galícia, até a Áustria alemã. Quando eu era uma criança de
quatro anos fui para Viena e ali recebi toda minha educação. No ‘Gymnasium’ [escola secundária] fui o
primeiro de minha turma durante sete anos e desfrutava ali de privilégios especiais, e quase nunca tive
de ser examinado em aula. Embora vivêssemos em circunstâncias muito limitadas, meu pai insistiu que,
na minha escolha de uma profissão, devia seguir somente minhas próprias inclinações. Nem naquela
época, nem mesmo depois, senti qualquer predileção particular pela carreira de médico Fui, antes, levado
por uma espécie de curiosidade, que era, contudo, dirigida mais para as preocupações humanas do que
para os objetivos naturais; eu nem tinha apreendido a importância da observação como um dos melhores
meios de gratificá-la. Meu profundo interesse pela história da Bíblia (quase logo depois de ter aprendido a
arte da leitura) teve, conforme reconheci muito mais tarde, efeito duradouro sobre a orientação do meu
interesse.Sob a influência de uma amizade formada na escola com um menino mais velho que eu, e que
veio a ser conhecido político, desenvolvi, como ele, o desejo de estudar direito e de dedicar-me a
atividade sociais. Ao mesmo tempo, as teorias de Darwin, que eram então de interesse atual, atraíramme fortemente, pois ofereciam esperanças de extraordinário progresso em nossa compreensão do
mundo; e foi ouvindo o belo ensaio de Goethe sobre a Natureza, lido em voz alta numa conferência
popular pelo professor Carl Brühlpouco antes de eu ter deixado a escola, que resolvi tornar-me estudante
de medicina.
Quando em 1873, ingressei na universidade, experimentei desapontamentos consideráveis.
Antes de tudo, verifiquei que se esperava que eu me sentisse inferior e estranho porque era judeu.
Recusei-me de maneira absoluta a fazer a primeira dessas coisas. Jamais fui capaz de compreender por
que devo sentir-me envergonhado da minha ascendência ou, como as pessoas começavam a dizer, da
minha ‘raça’. Suportei, sem grande pesar, minha não aceitação na comunidade, pois parecia-me que
apesar dessa exclusão, um dinâmico companheiro de trabalho não poderia deixar de encontrar algum
recanto no meio da humanidade. Essas primeiras impressões na universidade, contudo, tiveram uma
conseqüência que depois viria a ser importante, porquanto numa idade prematura familiarizei-me com o
destino de estar na Oposição e de ser posto sob o anátema da ‘maioria compacta’.Estavam assim
lançados os fundamentos para um certo grau de independência de julgamento.
Fui compelido, além disso, durante meus primeiros anos de universidade, a fazer a descoberta
de que as peculiaridades e limitações de meus dons me negavam todo sucesso em muitos dos campos
da ciência nos quais minha jovem ansiedade me fizera mergulhar. Assim aprendi a verdade da
advertência de Mefistófeles:
Vergebens, dass ihr ringsum wissenschaftlich schweift,Ein jeder lernt nur, was er lernen kann.
Por fim, no laboratório de fisiologia de Ernst Brücke encontrei tranqüilidade e satisfação plena - e
também homens que pude respeitar e tomar como meus modelos: o próprio grande Brücke e seus
assistentes, Sigmund Exner e Ernst Fleischl von Marxow. Com o segundo, um homem brilhante, tive o
privilégio de manter relações de amizade.Brücker confiou-me um problema para solucionar na histologia
do sistema nervoso; consegui resolvê-lo para sua satisfação e levar o trabalho mais adiante por conta
própria. Trabalhei nesse instituto, com breves interrupções, de 1876 a 1882, e geralmente se julgava que
eu estava destinado a preencher a vaga de professor assistente que viesse a ocorrer ali.Os vários ramos
da medicina propriamente dita, afora a psiquiatria, não exerciam qualquer atração sobre mim. Eu era
realmente negligente em meus estudos médicos e somente em 1881, um tanto tardiamente, recebi o grau
de doutor em medicina.
O momento decisivo ocorreu em 1882, quando meu professor, por quem sentia a mais alta
estima, corrigiu a imprevidência generosa de meu paiaconselhando-me vivamente, em vista de minha
precária situação financeira, a abandonar minha carreira teórica. Segui seu conselho, abandonei o
laboratório de fisiologia e ingressei no Hospital Geral como Aspirant [assistente clínico]. Logo depois fui
promovido a Sekundararzt [médico estagiário ou interno], e trabalhei em vários departamentos do
hospital, entre outros por mais de seis meses sob a orientação de Meynert,cujo trabalho e personalidade
muito me haviam impressionado quando eu ainda era estudante.
Num certo sentido, não obstante, permaneci fiel à linha de trabalho na qual originalmente me
iniciara. O assunto que Brücke propusera para minhas pesquisas fora a medula espinhal de um dos
peixes mais inferiores (Ammocoetes Petromyzon) e prossegui então até o sistema nervoso central.
Justamente nessa época, as descobertas de Fleichsig sobre a não-simultaneidade da formação das
bainhas de mielina lançavam luz reveladora sobre o curso intrincado de seus tratos. O fato de eu ter
começado por escolher as medulas oblongas como assunto único e exclusivo do meu trabalho foi outro
sinal da continuidade de meu desenvolvimento. Em completo contraste com o caráter difuso de meus
estudos durante os primeiros anos de universidade, estava agora desenvolvendo uma inclinação para
concentrar meus trabalhos exclusivamente em um único assunto ou problema. Essa inclinação tem
persistido e desde então me levou a ser acusado de unilateralidade.
Tornei-me tão atuante no Instituto de Anatomia Cerebral quanto o havia sido no de fisiologia.
Alguns breves artigos sobre o curso dos tratos e das origens nucleares na medula oblonga datam desses
anos de hospital, havendo Edinger tomado conhecimento de meus achados até certo ponto. Um belo dia
Meynert, que me dera acesso ao laboratório mesmo durante as ocasiões em que eu na realidade não
trabalhava sob sua orientação, propôs que eu devia dedicar-me inteiramente à anatomia do cérebro e
prometeu passar-me suas atividades como conferencista, visto sentir-se velho demais para lidar com os
métodos mais novos. Declinei dessa oferta, alarmado com a magnitude da tarefa; é possível também que
eu já tivesse adivinhado que esse grande homem de modo algum se encontrasse favoravelmente
inclinado a meu respeito.Do ponto de vista material, a anatomia do cérebro certamente não era melhor
que a fisiologia, e, tendo em vista considerações pecuniárias, comecei a estudar as doenças nervosas.
Havia naquela época, em Viena, poucos especialistas nesse ramo de medicina, o material para seu
estudo estava distribuído por grande número de diferentes departamentos do hospital, não havia
oportunidade satisfatória para aprender a matéria, e se era forçado a ser professor de si mesmo. Até
mesmo Nothnagel que fora nomeado pouco tempo antes, por causa do seu livro sobre localização
cerebral, não isolou a neuropatologia das outras subdivisões da medicina. A distância brilhava o grande
nome de Charcot assim, formei um plano de em primeiro lugar obter uma designação como conferencista
universitário [Dozent] sobre doenças nervosas, em Viena, e então dirigir-me a Paris para continuar meus
estudos.
No curso dos anos seguintes, enquanto continuava a trabalhar como médico estagiário, publiquei
grande número de observações clínicas sobre doenças orgânicas do sistema nervoso. Gradativamente
familiarizei-me com o terreno; fui capaz de situar o local de uma lesão na medula oblonga de maneira tão
exata que o anatomista patológico não teve mais informação alguma a acrescentar, fui a primeira pessoa
em Viena a encaminhar um caso para autópsia com um diagnóstico de polineurite aguda.
A fama de meus diagnósticos e de sua confirmação post-mortem trouxe-me uma afluência de
médicos norte-americanos, perante os quais pronunciei conferências sobre os pacientes do meu
departamento numa espécie de pidgin-English.* Sobre as neuroses eu nada compreendia. Em certa
ocasião, apresentei ao meu auditório um neurótico que sofria de dor de cabeça persistente como um
caso de meningite crônica localizada; todos se levantaram imediatamente, revoltados, e me
abandonaram, e minhas atividades prematuras como professor chegaram ao fim. À guisa de desculpas,
posso acrescentar que isso aconteceu numa época em que maiores autoridades do que eu, em Viena,
tinham o hábito de diagnosticar a neurastenia como tumor cerebral.
Na primavera de 1885, fui nomeado conferencista [Dozent] de neuropatologia com base em
minhas publicações histológicas e clínicas. Logo depois, como resultado de caloroso testemunho de
Brücke, foi-me concedida umabolsa de estudos de considerável valor..No outono do mesmo ano
empreendi a viagem até Paris.
Tornei-me aluno [élève] na Salpêtrière, mas, como um dos numerosos alunos estrangeiros,
dispensavam-me inicialmente pouca atenção. Certo dia, ouvi Charcot externar o pesar de que desde a
guerra não tinha tido mais notícias do tradutor alemão de suas conferências, prosseguiu dizendo que
ficaria satisfeito se alguém se encarregasse de verter o novo volume de suas conferências para o
alemão. Escrevi-lhe oferecendo meus préstimos; ainda me recordo de uma frase da carta, no sentido de
que eu sofria apenas de ‘l’aphasie motrice‘ e não de ‘l’aphasie sensorielle du français‘. Charcot aceitou a
oferta, fui admitido no círculo de seus conhecidos pessoais, e a partir dessa época tomei parte integral
em tudo que se passava na clínica.
No momento em que escrevo estas linhas, grande número de trabalhos e artigos de jornais me
chegam da França, dando provas de violenta objeção à aceitação da psicanálise e fazendo
freqüentemente as asserções mais inexatas no tocante a minhas relações com a escola francesa. Li, por
exemplo, que fiz uso de minha visita a Paris para familiarizar-me com as teorias de Pierre Janet e então
fugir com o tesouro. Gostaria, portanto, de dizer explicitamente que durante toda a minha estada na
Salpêtrière o nome de Janet nem sequer foi mencionado.
O que mais me impressionou enquanto privei com Charcot foram suas últimas investigações
acerca da histeria, algumas delas levadas a efeito sob meus próprios olhos. Ele provara, por exemplo, a
autenticidade das manifestações histéricas e de sua obediência a leis (‘introite et hic dii sunt’) a
ocorrência freqüente de histeria em homens, a produção de paralisias e contraturas histéricas por
sugestão hipnótica e o fato de que tais produtos artificiais revelam, até em seus menores detalhes, as
mesmas características que os acessos espontâneos, que eram muitas vezes provocados
traumaticamente. Muitas das demonstrações de Charcot começaram por provocar em mim e em outros
visitantes um sentimento de assombro e uma inclinação para o ceticismo, que tentávamos justificar
recorrendo a uma das teorias do dia. Ele se mostrava sempre amistoso e paciente ao lidar com tais
dúvidas, mas era também muito resoluto; foi numa dessas discussões que (falando de teoria) ele
observou: ‘Ça n’empêche pas d’exister‘ um mot que deixou indelével marca em meu espírito.
Sem dúvida, nem tudo o que Charcot nos ensinou naquela época é válido hoje: parte se tornou
duvidoso, parte deixou definitivamente de resistir ao teste do tempo. Mas sobrou muita coisa que
encontrou lugar permanente no acervo da ciência. Antes de partir de Paris, examinei com o grande
homem um plano para um estudo comparativo das paralisias histéricas e orgânicas. Desejava
estabelecer a tese de que na histeria as paralisias e anestesias das várias partes do corpo se acham
demarcadas de acordo com a idéia popular dos seus limites e não em conformidade com fatos
anatômicos. Ele concordou com esse ponto de vista, mas foi fácil ver que na realidade não teve qualquer
interesse especial em penetrar mais profundamente na psicologia das neuroses.Quando tudo já havia
sido dito e feito, foi a partir da anatomia patológica que seu trabalho havia começado.
Antes de retornar a Viena, passei algumas semanas em Berlim, a fim de adquirir um pouco de
conhecimentos sobre os distúrbios gerais da infância. Kassowitz que estava à frente de um instituto
público de Viena para tratamento de doenças infantis, prometera encarregar-me de um departamento
para doenças nervosas de crianças. Em Berlim, recebi assistência e uma amistosa recepção de
Baginsky. No curso dos poucos anos seguintes publiquei, do Instituto Kassowitz, várias monografias de
considerável vulto sobre paralisias cerebrais unilaterais e bilaterais em crianças. E por esse motivo, numa
data ulterior (em 1897), Nothnagel me fez responsável pelo tratamento do mesmo assunto em seu
grande Handbuch der allgemeninen und speziellen Therapie.
No outono de 1886, fixei-me em Viena como médico e casei-me com a moça que ficara à minha
espera numa distante cidade há mais de quatro anos. Posso agora retornar um pouco ao passado e
explicar como foi a culpa de minha fiancée por eu ainda não ser famoso naquela jovem idade. Um
interesse secundário, embora profundo, levara-me em 1884, a obter da Merck uma pequena quantidade
do então pouco conhecido alcalóide cocaína e estudar sua ação fisiológica. Quando me achava no meio
dessa tarefa, surgiu a oportunidade de uma viagem a fim de visitar minha fiancée, de quem eu estava
afastado há dois anos. Rapidamente encerrei minha pesquisa da cocaína e contentei-me, em minha
monografia sobre o assunto [1884e], em profetizar que logo seriam descobertos outros usos para ela.
Sugeri, contudo, a meu amigo Königstein o oftalmologista, que ele devia investigar a questão de saber
até que ponto as propriedades anestesiantes da cocaína eram aplicáveis em doenças dos olhos. Quando
voltei de minhas férias, verifiquei que não fora ele, mas outro dos meus amigos, Carl Koller (então em
Nova Iorque), com o qual eu também falara sobre a cocaína, quem fizera os experimentos decisivos em
olhos de animais e os demonstrara no Congresso Oftalmológico de Heildelberg. Koller, portanto é,
considerado, com justiça, o descobridor da anestesia local pela cocaína, que se tornou tão importante na
cirurgia secundária; mas não guardo nenhum rancor de minha fiancée pela interrupção.
Voltarei agora ao ano de 1886, época em que me estabeleci em Viena como especialista em
doenças nervosas. Cabia-me apresentar um relatório perante a ‘Gesellschaft derAerzte’ [Sociedade de
Medicina] sobre o que vira e aprendera com Charcot. Tive, porém, má recepção. Pessoas de autoridade,
como o presidente (Bamberger, o médico), declararam que o que eu disse era inacreditável. Meynert
desafiou-me a encontrar alguns casos em Viena semelhantes àqueles que eu descrevera e a apresentálos perante a sociedade. Tentei fazê-lo; mas os médicos mais antigos, em cujos departamentos encontrei
casos dessa natureza, recusaram-se a permitir-me observá-los ou a trabalhar neles. Um deles, velho
cirurgião, na realidade irrompeu com a exclamação: ‘Mas, meu caro senhor, como pode dizer tal tolice?
Hysteron (sic) significa o útero. Assim como pode um homem ser histérico?’ Objetei em vão que o que
desejava não era ter meu diagnóstico aprovado, mas ter o caso posto à minha disposição. Por fim, fora
do hospital, deparei-me com umcaso de hemianestesia histérica clássica em um homem, e demonstrei-o
perante a ‘Gesellschaft der Aerzte’ [1886s]. Dessa vez fui aplaudido, mas não adquiriram mais interesse
por mim. A impressão de que as altas autoridades haviam rejeitado minhas inovações permaneceu
inabalável; e, com minha histeria em homem e minha produção de paralisias histéricas por sugestão, vime forçado a ingressar na Oposição. Como logo depois fui excluído do laboratório de anatomia cerebral e
como durante intermináveis trimestres não tive onde pronunciar minhas conferências, afastei-me da vida
acadêmica e deixei de freqüentar as sociedades eruditas. Faz uma geração inteira desde que visitei a
‘Gesellschaft der Aerzte’.
Qualquer um que deseje ganhar para subsistência com o tratamento de pacientes nervosos deve
ser claramente capaz de fazer algo para ajudá-los. Meu arsenal terapêutico continha apenas duas armas,
a eletroterapia e o hipnotismo; receitar uma visita a um estabelecimento hidropático após uma única
consulta era uma fonte insuficiente de renda. Meu conhecimento de eletroterapia provinha do manual de
W. Erb [1882], o qual proporcionava instruções detalhadas para o tratamento de todos os sintomas de
doenças nervosas. Infelizmente, logo fui impelido a ver que seguir essas instruções não era
absolutamente de qualquer valia e que o que eu tomara por um compêndio de observações exatas era
meramente a construção de fantasia. Foi penosa a compreensão de que a obra do maior nome da
neuropatologia alemã não tinha maior relação com a realidade do que um livro de sonhos ‘egípcio’
vendido em livrarias baratas, mas ajudou-me a livrar-me de outro fragmento de inocente fé na autoridade,
da qual eu ainda não estava livre. Assim, pus de lado meu aparelho elétrico, mesmo antes de Moebius
haver salvo a situação, explicando que os êxitos do tratamento elétrico em distúrbios nervosos (até onde
havia algum) eram o efeito de sugestão por parte do médico.
Com o hipnotismo o caso foi melhor. Enquanto ainda estudante, assistira a uma exibição pública
apresentada por Hansen o ‘magnetista’ e notara que um dos pacientes em quem se fizera a experiência
se tornara mortalmentepálido no início da rigidez cataléptica, e assim havia permanecido enquanto
aquela condição havia durado. Isso me convenceu firmemente da autenticidade dos fenômenos da
hipnose. Apoio científico foi logo depois dado a esse ponto de vista por Heidenhain, mas não impediu os
professores de psiquiatria de declararem por muito tempo que o hipnotismo era não somente fraudulento
como também perigoso, e de considerarem os hipnotizadores com desprezo. Em Paris vira o hipnotismo
usado livremente como um método para produzir sintomas em pacientes, então removendo-os
novamente. E agora nos chegava a notícia de que surgira uma escola em Nancy que fazia uso extenso e
marcantemente bem-sucedido da sugestão, com ou sem hipnotismo, para fins terapêuticos. Ocorreu
assim, como algo natural, que, nos primeiros anos de minha atividade como médico, meu principal
instrumento de trabalho, afora os métodos psicoterapêuticos aleatórios e não sistemáticos, tenha sido a
sugestão hipnótica.
Isso implicou, naturalmente, em eu ter abandonado o tratamento de doenças nervosas orgânicas;
mas isso foi de pequena importância, pois, por um lado, as perspectivas no tratamento de tais desordens
em nenhum caso jamais eram promissoras, enquanto que, por outro lado, na clínica particular de um
médico exercendo suas atividades numa grande cidade, a quantidade de tais pacientes era nada em
comparação com as multidões de neuróticos, cujo número parecia ainda maior pelo modo como eles
corriam, com seus males não solucionados, de um médico a outro. E, independente disso, havia algo de
positivamente sedutor em trabalhar com o hipnotismo. Pela primeira vez havia um sentimento de haver
superado o próprio desamparo, e era altamente lisonjeiro desfrutar da reputação de ser fazedor de
milagres. Só depois é que iria descobrir os processos do método. No momento havia apenas dois pontos
passíveis de queixa: em primeiro lugar, que eu não era capaz de hipnotizar todos os pacientes, e, em
segundo, que fui incapaz de pôr os pacientes individuais num estado tão profundo de hipnose como teria
desejado. Com a idéia de aperfeiçoar minha técnica hipnótica, empreendi uma viagem a Nancy, no verão
de 1889, e passei ali várias semanas. Testemunhei o comovente espetáculo do velho Liébeault
trabalhando entre as mulheres e crianças pobres das classes trabalhadoras. Eu era um espectador dos
assombrosos experimentos de Bernheim em seus pacientes do hospital, e tive a mais profunda
impressão da possibilidade de que poderia haver poderosos processos mentais que, não obstante,
permaneciam escondidos da consciência dos homens. Pensando que seria instrutivo, persuadi uma de
minhas pacientes a acompanhar-me até Nancy. Essa paciente era uma histérica altamente dotada, uma
mulher bem-nascida, que me fora confiadaporque ninguém sabia o que fazer com ela. Pela influência
hipnótica eu lhe tornara possível levar uma existência tolerável, e sempre fui capaz de tirá-la da miséria
de sua condição. Mas ela sempre recaía após breve tempo, e em minha ignorância eu atribuía isso ao
fato de que sua hipnose jamais alcançara a fase de sonambulismo com amnésia. Bernheim tentou então
várias vezes provocar isso, mas ele também fracassou. Admitiu-me que seus grandes êxitos terapêuticos
por meio da sugestão eram alcançados apenas em sua clínica hospitalar, e não com seus pacientes
particulares. Tive muitas conversas estimulantes com ele, e comprometi-me a traduzir para o alemão
umas duas obras sobre a sugestão e seus efeitos terapêuticos.
Durante o período de 1886 a 1891, realizei poucos trabalhos científicos e não publiquei quase
nada. Estava ocupado em estabelecer-me em minha nova profissão e em assegurar minha própria
existência material, bem como a de uma família que aumentava rapidamente. Em 1891 apareceu o
primeiro dos meus estudos sobre as paralisias cerebrais de crianças, escrito em colaboração com meu
amigo e assistente, o Dr. Oskar Rie [Freud, 1891a]. Um convite que recebi no mesmo ano, para colaborar
em uma enciclopédia de medicina levou-me a investigar a teoria da afasia. Esta na época estava
dominada pelos pontos de vista de Wernicke e Lichtheim, que davam ênfase exclusivamente à
localização. O fruto dessa indagação foi um pequeno livro crítico e especulativo, Zur Auffassung der
Aphasien [1891b].
Agora, no entanto, devo revelar como aconteceu o fato de a pesquisa científica mais uma vez terse tornado o principal interesse de minha vida.
II
Devo complementar o que acabo de dizer, explicando que bem desde o início fiz uso da hipnose
de outra maneira, independentemente da sugestão hipnótica. Empreguei-a para fazer perguntas ao
paciente sobre a origem de seus sintomas, que em seu estado de vigília ele podia descrever só muito
imperfeitamente, ou de modo algum. Não somente esse método pareceu mais eficaz do que meras
ordens ou proibições sugestivas, como também satisfazia a curiosidade do médico, que, afinal de contas,
tinha o direito de aprender algo sobre a origem da manifestação que ele vinha lutando para eliminar pelo
processo monótono da sugestão.
A maneira pela qual cheguei a esse outro processo ocorreu como se segue. Enquanto ainda
trabalhava no laboratório de Brücke, eu travara conhecimento com o Dr. Josef Breuer que era um dos
médicos de família mais respeitados de Viena, mas que também possuía um passado científico, visto que
produzira vários trabalhos de valor permanente sobre a fisiologia da respiração e sobre o órgão do
equilíbrio. Era um homem de notável inteligência e quatorze anos mais velho que eu. Nossas relações
logo se tornaram mais estreitas e ele se tornou meu amigo, ajudando-me em minhas difíceis
circunstâncias. Adquirimos o hábito de partilhar todos os nossos interesses científicos. Nessa relação só
eu naturalmente tive a ganhar. O desenvolvimento da psicanálise, depois, veio a custar-me sua amizade.
Não me foi fácil pagar tal preço, mas não pude fugir a isso.
Mesmo antes de dirigir-me a Paris, Breuer me havia falado sobre um caso de histeria que, entre
1880 e 1882, ele havia tratado de maneira peculiar, o qual lhe permitira penetrar profundamente na
acusação e no significado dos sintomas histéricos, isto, portanto, ocorreu numa época em que os
trabalhos de Janet ainda pertenciam ao futuro. Ele por várias vezes me leu trechos da história clínica, e
tive a impressão de que isto contribuía mais no sentido de uma compreensão das neuroses do que
qualquer observação prévia. Tomei a determinação de informar Charcot a respeito dessas descobertas
quando cheguei a Paris, e na realidade o fiz. Mas o grande homem não teve qualquer interesse pelo meu
primeiro esboço do assunto, de modo que nunca mais voltei ao mesmo e deixei que fugisse de minha
mente
Quando do meu retorno a Viena, recorri mais uma vez à observação de Breuer e fiz com que ele
me contasse mais alguma coisa sobre o caso. Apaciente tinha sido uma jovem de educação e dons
incomuns, que adoecera enquanto cuidava do pai, pelo qual era devotamente afeiçoada. Quando Breuer
se encarregou do caso, este apresentou um quadro variado de paralisias com contraturas, inibições e
estados de confusão mental. Uma observação fortuita revelou ao médico da paciente que ela podia ser
aliviada desses estados nebulosos de consciência se fosse induzida a expressar em palavras a fantasia
emotiva pela qual se achava no momento dominada. A partir dessa descoberta, Breuer chegou a um
novo método de tratamento. Ele a levava a uma hipnose profunda e fazia-a dizer-lhe, de cada vez, o que
era lhe oprimia a mente. Depois de os ataques de confusão depressiva terem sido separados dessa
forma, empregou o mesmo processo para eliminar suas inibições e distúrbios físicos. Em seu estado de
vigília a moça não podia descrever mais do que outros pacientes como seus sintomas haviam surgido,
assim como não podia descobrir ligação alguma entre eles e quaisquer experiências de sua vida. Na
hipnose ela de pronto descobria a ligação que faltava. Aconteceu que todos os seus sintomas voltavam a
fatos comovedores que experimentara enquanto cuidava do pai; isto é, seus sintomas tinham um
significado e eram resíduos ou reminiscências daquelas situações emocionais. Verificou-se na maioria
dos casos que tinha havido algum pensamento ou impulso que ela tivera de suprimir enquanto se
encontrava à cabeceira de enfermo, e que, em lugar dele, como substituto do mesmo, surgira depois o
sintoma. Mas em geral o sintoma não era o precipitado de uma única cena ‘traumática’ dessa natureza,
mas o resultado de uma soma de grande número de situações semelhantes. Quando a paciente se
recordava de uma situação dessa espécie de forma alucinatória, sob a hipnose, e levava até sua
conclusão, com uma expressão livre de emoção, o ato mental que ela havia originalmente suprimido, o
sintoma era eliminado e não voltava. Por esse processo Breuer conseguiu, após longos e penosos
esforços, aliviar a paciente de seus sintomas.
A paciente se recuperara e continuara bem, e de fato tornara-se capaz de executar trabalhos de
importância. Mas na fase final desse tratamento hipnótico permaneceu um véu de obscuridade, que
Breuer jamais levantou para mim, e não pude compreender por que mantivera por tanto tempo em
segredo o que me parecia uma descoberta inestimável, em vez de com ela tornar a ciência mais rica. A
questão imediata, contudo, é se era possível generalizar a partir do que ele encontrara em um caso
isolado. O estado de coisas que ele descobrira pareceu-me ser de natureza tão fundamental que não
pude crer que pudesse deixar de estar presente em qualquer caso de histeria, caso se tivesse provado
ter ele ocorrido num caso isolado. Mas a dúvida só podia serresolvida pela experiência. Comecei então a
repetir as pesquisas de Breuer com meus próprios pacientes e afinal, especialmente depois que minha
visita a Bernheim, em 1889, me havia ensinado as limitações da sugestão hipnótica, não trabalhei em
outra coisa. Após observar durante vários anos que seus achados eram invariavelmente confirmados em
cada caso de histeria acessível a tal tratamento, e depois de haver acumulado considerável quantidade
de material sob a forma de observações análogas às dele, propus-lhe que devíamos lançar uma
publicação conjunta. De início ele objetou com vee- mência, mas por fim cedeu, especialmente tendo em
vista que, nesse meio tempo, as obras de Janet haviam previsto alguns dos seus resultados, tais como o
rastreamento de sintomas histéricos em fatos da vida do paciente e sua eliminação por meio da
reprodução hipnótica in statu nascendi. Em 1893 lançamos uma comunicação preliminar, ‘Sobre o
Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos’, e em 1895 seguiu-se nosso livro, Estudos sobre a
Histeria.
Se o relato apresentado por mim até agora levou o leitor a esperar que os Estudos sobre a
Histeria devem, em todos os pontos essenciais de seu conteúdo material, ser produto da mente de
Breuer, é precisamente isto que sempre tenho sustentado, e aqui tem sido meu objetivo repetir isto. No
tocante à teoria formulada no livro, fui em parte responsável, mas em uma medida que hoje não é mais
possível determinar. Essa teoria foi de qualquer maneira despretensiosa e quase não ultrapassou a
descrição direta das observações. Não procurou estabelecer a natureza da histeria mas apenas lançar
luz sobre a origem de seus sintomas. Assim, dava ênfase à significação da vida das emoções e à
importância de estabelecer distinção entre os atos mentais inconscientes e os conscientes (ou, antes,
capazes de ser conscientes); introduziu um fator dinâmico, supondo que um sintoma surge através do
represamento de um afeto, e um fator econômico, considerando aquele mesmo sintoma como o produto
da transformação de uma quantidade de energia que de outra maneira teria sido empregada de alguma
outra forma. (Esse segundo processo foi descrito como conversão.) Breuer referiu-se ao nosso método
como catártico; explicou-se sua finalidade terapêutica como sendo a de proporcionar que a cota de afeto
utilizada para manter o sintoma, que se desencaminhara e que, por assim dizer, se tinha tornado
estrangulada ali, fosse dirigida para a trilha normal ao longo da qual pudesse obter descarga(ou abreação). Os resultados práticos do processo catártico foram excelentes. Seus defeitos, que se tornaram
evidentes depois, eram os de todas as formas de tratamento hipnótico. Ainda existe grande número de
psicoterapeutas que não foi além da catarse como Breuer a compreendia e que ainda fala em seu favor.
Seu valor como método resumido foi revelado novamente por Simmel [1918] em seu tratamento das
neuroses de guerra no exército alemão, durante a primeira guerra mundial. A teoria da catarse não tinha
muito a dizer sobre o tema da sexualidade. Nos casos clínicos com que contribuí para os Estudos, os
papéis sexuais desempenhavam certa função, mas quase não se prestou mais atenção a eles do que a
outras excitações emocionais. Breuer escreveu sobre a moça, que desde então se tornou famosa como
sua primeira paciente, que sua faceta sexual era extraordinariamente não desenvolvida. Teria sido difícil
adivinhar pelos Estudos sobre a Histeria a importância que tem a sexualidade na etiologia das neuroses.
A fase de desenvolvimento que então se seguiu, a transição da catarse para a psicanálise
propriamente dita, já foi descrita por mim várias vezes com tantos pormenores que julgo difícil formular
quaisquer fatos novos. O evento que constituiu a abertura desse período foi o afastamento de Breuer do
nosso trabalho comum, de modo que me tornei o único administrador do seu legado. Tinham-se
verificado divergências de opiniões entre nós numa fase bem inicial, mas não haviam constituído uma
base para nosso afastamento. Ao responder à pergunta sobre quando é que um processo mental se
torna patogênico - isto é, quando é que se torna impossível lidar com ele normalmente - , Breuer preferiu
o que poderia ser chamado de teoria fisiológica: julgava ele que os processos que não podiam encontrar
um resultado normal eram aqueles que se haviam originado durante estados mentais ‘hipnóides’
inusitados. Isto provocou a questão ulterior da origem desses estados hipnóides. Eu, por outro lado,
estava inclinado a suspeitar da existência de uma ação mútua de forças e da atuação de intenções e
propósitos como os que devem ser observados na vida normal. Era assim um caso de ‘histeria hipnóide’
versus ‘neuroses de defesa’. Mas divergências como essa quase não o teriam afastado do assunto, se
não tivesse havido outros fatores em ação. Um desses foi indubitavelmente que seu trabalho como
clínico e médico de família tomava grande parte de seu tempo, e ele não podia, como eu, devotar todas
as suas forças ao trabalho da catarse. Além disso, viu-se atingido pela recepção que nosso livro obtivera
tanto em Viena como na Alemanha. Sua autoconfiança e poderes de resistência não estavam
desenvolvidos tão plenamente quanto o resto de sua organização mental. Quando, por exemplo, os
Estudos foram alvo do mau acolhimento por parte de Strümpell fui capaz de rir pela falta de compreensão
que sua crítica demonstrava, mas Breuer sentiu-se magoado e tornou-se desencorajado. Mas o que
contribuiu principalmente para sua decisão foi que meu próprio trabalho ulterior conduzia a uma direção
com a qual ele achava impossível reconciliar-se.
A teoria que havíamos tentado construir nos Estudos continuou, como já disse, muito incompleta;
em particular, quase não tínhamos tocado no problema da etiologia, na questão do terreno onde o
processo patogênico lança raízes. Aprendi então por experiência própria, a qual aumentava rapidamente,
que não era qualquer espécie de excitação emocional que estava em ação por trás dos fenômenos da
neurose, mas habitualmente uma excitação de natureza sexual, quer fosse um conflito sexual comum,
quer o efeito de experiências sexuais anteriores. Eu não estava preparado para essa conclusão e minhas
expectativas não desempenharam papel algum nela, pois eu havia começado minha investigação de
neuróticos de maneira bem insuspeitável. Enquanto escrevia minha ‘A História do Movimento
Psicanalítico’ em 1914, vinham-me à mente algumas observações que me tinham sido feitas por Breuer,
Charcot e Chrobak, as quais poderiam ter-me conduzido mais cedo a essa descoberta. Mas na ocasião
em que as ouvi não compreendi o que essas autoridades queriam dizer; na realidade haviam-me dito
mais do que elas próprias sabiam ou estavam preparadas para defender. O que ouvi delas permaneceu
em estado latente e inativo dentro de mim, até que a oportunidade de meus experimentos catárticos o
trouxe à luz como uma descoberta aparentemente original. Também não estava cônscio de que ao
derivar a histeria da sexualidade eu estava voltado aos próprios inícios da medicina e acompanhando um
pensamento de Platão. Só depois é que vim a saber disso por um ensaio de Havelock Ellis.
Sob a influência de minha surpreendente descoberta, dei então um passo importante. Fui além
do domínio da histeria e comecei a investigar a vidasexual dos chamados neurastênicos, que
costumavam visitar-me em grande número durante minhas horas de consulta. Essa experiência custoume, é verdade, minha popularidade como médico, mas trouxe-me convicções que hoje em dia, quase
trinta anos depois, não perderam nada de sua força. Havia muitos equívocos e mistérios a serem
superados, mas, uma vez isto feito, veio a ocorrer que em todos esses pacientes graves irregularidades
da função sexual se encontravam presentes. Considerando quão extremamente difundidas se acham, por
um lado, essas irregularidades e, por outro, a neurastenia, uma freqüente coincidência entre as duas não
teria comprovado grande coisa; mas havia algo mais nela do que um único fato insignificante. Uma
observação mais detida sugeriu-me que era possível escolher, dentre a confusão dos quadros clínicos
encobertos pela designação de neurastenia, dois tipos fundamentalmente diferentes, que podem surgir
em qualquer grau de mistura mas que, não obstante, iriam ser observados em suas formas puras. Em um
dos tipos a manifestação central era o ataque de ansiedade com seus equivalentes, formas rudimentares
e sintomas substitutivos crônicos; em conseqüência, dei-lhe a denominação de neurose de angústia,
limitando o termo neurastenia ao outro tipo. Agora era fácil estabelecer o fato de que cada um desses
tipos tinha uma anormalidade diferente da vida sexual como seu fator etiológico correspondente: no
primeiro, coitus interruptus, a excitação não consumada e a abstinência sexual, e no segundo,
masturbação excessiva e emissões noturnas numerosas demais. Em alguns casos especialmente
instrutivos, que haviam revelado surpreendentes alterações no quadro clínico de um tipo para o outro,
pôde ser provado que se havia verificado uma mudança correspondente no regime sexual subjacente. Se
fosse possível pôr termo à irregularidade e permitir que seu lugar fosse ocupado pela atividade sexual
normal, uma surpreendente melhoria da condição seria a recompensa.
Fui, assim, levado a considerar as neuroses como sendo, sem exceção, perturbações da função
sexual, sendo as denominadas ‘neuroses atuais‘ a expressão tóxica direta de tais perturbações e as
psiconeuroses sua expressão mental. Minha consciência médica sentia-se satisfeita por eu haver
chegado a essa conclusão. Esperei ter preenchido uma lacuna na ciência médica, a qual, ao lidar com
uma função de tão grande importância biológica, deixara de levar em conta quaisquer danos além
daqueles causados pela infecção ou por lesões anatômicas grosseiras. O aspecto médico do assunto
era, além disso, apoiado pelo fato de que a sexualidade não era algo puramente mental. Possuía
também uma faceta somática sendo também possível atribuir-lheprocessos químicos especiais, e atribuir
a excitação sexual à presença de algumas substâncias específicas, embora desconhecidas no momento.
Deve também ter havido alguma boa razão pela qual as verdadeiras neuroses espontâneas não se
assemelhavam a nenhum grupo de doenças mais estreitamente do que as manifestações de intoxicação
e abstinência, que são produzidas pela administração ou privação de certa substâncias tóxicas, ou do
que o bócio exoftálmico, que, conforme se sabe, depende do produto da glândula tireóide.
Desde aquela época não tive oportunidade de voltar à pesquisa das ‘neuroses atuais’ nem essa
parte do meu trabalho foi continuada por outro. Se hoje lanço um olhar retrospectivo aos meus primeiros
achados , eles me surpreendem como sendo os primeiros delineamentos toscos daquilo que é
provavelmente um assunto muito mais complicado. Mas no todo ainda me parecem válidos, Teria ficado
muito satisfeito se tivesse sido capaz, posteriormente, de proceder a um exame psicanalítico de mais
alguns casos de neurastenia juvenil, mas infelizmente não surgiu a ocasião. A fim de evitar concepções
errôneas, gostaria de esclarecer que estou longe de negar a existência de conflitos mentais e de
complexos neuróticos na neurastenia. Tudo que estou afirmando é que os sintomas desses pacientes
não são mentalmente determinados ou removíveis pela análise, mas devem ser considerados como
conseqüências tóxicas diretas de processos químicos sexuais perturbados.
Durante os anos que se seguiram à publicação dos Estudos, tendo chegado a essas conclusões
sobre o papel desempenhado pela sexualidade na etiologia das neuroses, li alguns artigos sobre o
assunto perante várias sociedades médicas, mas só me defrontei com incredulidade e contradição.
Breuer fez o que pôde, por mais algum tempo, para lançar na balança o grande peso de sua influência
pessoal a meu favor, mas nada conseguiu, sendo fácil constatar que também ele se esquivou de
reconhecer a etiologia sexual das neuroses. Ele poderia ter-me esmagado ou pelo menos me
desconcertado, apontando sua própria primeira paciente, em cujo caso os fatores sexuais
ostensivamente não haviam de forma alguma desempenhado qualquer papel.Mas nunca o fez, e não
pude compreender por que agiu dessa forma, até que vim a interpretar o caso corretamente e a
reconstituir, a partir de algumas observações que fizera, a conclusão de seu tratamento desse mesmo
caso. Depois que o trabalho de catarse parecia estar concluído, a moça subitamente desenvolvera uma
condição de ‘amor transferencial’ ele não havia feito a ligação disso com sua doença e então se afastara
desalentado. Evidentemente foi-lhe penoso ser lembrado desse aparente contretemps. Sua atitude em
relação a mim oscilou por algum tempo entre admiração e crítica acerba; depois surgiram dificuldades
acidentais, como nunca deixam de surgir numa situação tensa, e nos afastamos.
Outro resultado de eu haver empreendido o estudo de perturbações nervosas em geral foi que
alterei a técnica da catarse. Abandonei o hipnotismo e procurei substituí-lo por algum outro método,
porque estava ansioso por não ficar ficar restringido ao tratamento de condições histeriformes. Uma
maior experiência também dera lugar a duas graves dúvidas em minha mente quanto ao emprego do
hipnotismo, mesmo como um meio para a catarse. A primeira foi que até mesmo os resultados mais
brilhantes estavam sujeitos a ser de súbito eliminados, se minha relação pessoal com o paciente viesse a
ser perturbada. Era verdade que seriam restabelecidos se uma reconciliação pudesse ser efetuada, mas
tal ocorrência demonstrou que a relação emocional pessoal entre médico e paciente era, afinal de contas,
mais forte que todo o processo catártico, e foi precisamente esse fator que escapava a todos os esforços
de controle. E certo dia tive a experiência que me indicou, sob a luz mais crua, o que eu há muito tinha
suspeitado. Essa experiência ocorreu com uma de minhas pacientes mais dóceis, com a qual o
hipnotismo me permitia obter os resultados mais maravilhosos e com quem estava comprometido a
minorar os sofrimentos, fazendo remontar seus ataques de dor a suas origens. Certa ocasião, ao
despertar, lançou os braços em torno do meu pescoço. A entrada inesperada de um empregado nos
livrou de uma discussão penosa, mas a partir daquela ocasião houve um entendimento tácito de que o
tratamento hipnótico devia ser interrompido. Fui bastante modesto em não atribuir o fato aos meus
próprios atrativos pessoais irresistíveis, e senti que então havia apreendido a natureza do misterioso
elemento que se achava em ação por trás do hipnotismo. A fim de excluí-lo, ou de qualquer maneira
isolá-lo, foi necessário abandonar o hipnotismo.
Mas o hipnotismo fora de imensa ajuda no tratamento catártico, ampliando o campo de
consciência da paciente e pondo ao seu alcance conhecimentos que não possuía em sua vida de vigília.
Não pareceu ser tarefa fácil encontrar um substituto para os mesmos. Enquanto me encontrava nesse
estado de perplexidade, veio em meu auxílio a lembrança de uma experiência que muitas vezes
testemunhei quando estava com Bernheim. Quando o paciente despertava do seu estado de
sonambulismo parecia haver perdido toda recordação do que tinha acontecido enquanto se encontrava
naquele estado. Mas Bernheim afirmava que a lembrança se achava presente da mesma maneira; e se
insistia para que o paciente se recordasse, se afirmava que o paciente sabia de tudo e que tinha apenas
de falar, e se ao mesmo tempo punha a mão na testa do paciente, então as lembranças esquecidas de
fato voltavam, de início de forma hesitante, mas finalmente numa torrente e com clareza completa.
Determinei que agiria da mesma forma . Meus pacientes, refleti, devem de fato ‘saber’ todas as coisas
que até então só tinham sido tornadas acessíveis a eles na hipnose; e garantias e encorajamento da
minha parte, auxiliados talvez pelo toque da minha mão, teriam, pensei, o poder de forçar os fatos e
ligações esquecidos na consciência. Sem dúvida, isto parecia um processo mais laborioso do que levar
os pacientes à hipnose, mas poderia resultar como sendo altamente instrutivo. Assim, abandonei o
hipnotismo, conservando apenas meu hábito de exigir do paciente que ficasse deitado num sofá
enquanto eu ficava sentado ao lado dele, vendo-o, mas sem que eu fosse visto.
III
Minhas expectativas foram correspondidas; livrei-me do hipnotismo. Mas, justamente com a
mudança de técnica, o trabalho de catarse assumiu novo aspecto. A hipnose interceptara da visão uma
ação recíproca de forças que surgiam agora à vista e cuja compreensão proporcionava um fundamento
sólido à minha teoria.
Como ocorrera que os pacientes se haviam esquecido de tantos dos fatos de suas vidas externas
e internas mas podiam, não obstante, recordá-los se uma técnica específica fosse aplicada? A
observação forneceu uma resposta exaustiva a essa pergunta. Tudo que tinha sido esquecido de alguma
forma ou de outra fora aflitivo; fora ou alarmante ou penoso ou vergonhoso pelos padrões da
personalidade do indivíduo. Foi impossível não concluir que isto foi precisamente assim porque fora
esquecido - isto é, porque não tinha permanecido consciente. A fim de torná-lo consciente novamente
apesar disto, foi necessário superar algo que lutava contra alguma coisa no paciente, foi necessário
envidar esforços da parte do próprio paciente a fim de compeli-lo a recordar-se. A dose de esforço do
médico variava em diferentes casos; aumentava em proporção direta com a dificuldade do que tinha de
ser lembrado. O dispêndio de força por parte do médico era evidentemente a medida de uma resistência
por parte do paciente. Bastou traduzir em palavras o que eu próprio havia observado e fiquei de posse da
teoria da repressão.
Então foi fácil reconstituir o processo patogênico. Fiquemos em um exemplo simples no qual um
impulso específico surgira na mente do indivíduo mas se defrontava com a oposição de outros impulsos
poderosos. Devíamos ter esperado o conflito mental que então apareceu para obedecer ao seguinte
curso. As duas dinâmicas - para nossa finalidade atuais denominemo-las ‘o instinto’ e ‘a resistência’ lutavam uma com a outra à plena luz da consciência, até que o instinto era repudiado e a catexia de
energia era retirada de sua impulsão. Isto teria sido a solução normal. Em uma neurose, contudo (por
motivos que eram ainda desconhecidos), o conflito encontrou um resultado diferente. O ego recuou, por
assim dizer, na sua primeira colisão com o impulso instintual objetável; impediu o impulso de ter acesso à
consciência e à descarga motora direta, mas ao mesmo tempo o impulso reteve sua catexia integral de
energia. Denominei esse processo de repressão; era uma novidade e nada semelhante a ele jamais fora
reconhecido na vida mental. Era obviamente um mecanismo primário de defesa, comparável a uma
tentativa de fuga, e era apenas um percurso do julgamento de condenação normal desenvolvido depois.
O primeiro ato de repressão envolvia outras conseqüências. Em primeiro lugar, o ego era obrigado a
proteger-se contra a constante ameaça de uma renovada investida por parte do impulso reprimido,
fazendo um dispêndio permanente de energia, uma anticatexia, e assim se empobrecia. Por outro lado, o
impulso reprimido, que era agora inconsciente, era capaz de encontrar meios de descarga e de
satisfação substituída por caminhos indiretos e de assim levar toda a finalidade de repressão a nada. No
caso da histeria de conversão, o caminho indireto levava à inervação somática; o impulso reprimido
irrompia em um ponto ou outro e produzia sintomas. Os sintomas eram assim resultado de uma
conciliação, pois embora fossem satisfações substitutivas eram distorcidos e desviados de sua finalidade
devido à resistência do ego.
A teoria da repressão tornou-se a pedra angular da nossa compreensão das neuroses. Um ponto
de vista diferente teve então de ser adotado no tocante à tarefa da terapia. Seu objetivo não era mais ‘abreagir’ um afeto que se desencaminhara, mas revelar repressões e substituí-las por atos de julgamento
que podiam resultar quer na aceitação, quer na condenação do que fora anteriormente repudiado.
Demonstrei meu reconhecimento da nova situação não denominando mais meu método de pesquisa e de
tratamento de catarse, mas de psicanálise.
É possível considerar a repressão como um centro e reunir todos os elementos da teoria
psicanalítica em relação a ele. Mas antes de proceder dessa forma tenho outro comentário a tecer, de
natureza polêmica. De acordo com o ponto de vista de Janet, uma mulher histérica era uma criatura
infeliz que, por causa de uma fraqueza de constituição, era incapaz de manter reunidos seus atos
mentais e por esse motivo ela foi vítima de uma divisão (splitting) da mente e de uma restrição do campo
de sua consciência. O resultado de pesquisas psicanalíticas, por outro lado, revelou que essas
manifestações eram a decorrência de fatores dinâmicos - de conflito mental e de repressão. Essa
distinção parece-me bastante exagerada para pôr termo à cansativa repetição do ponto de vista de que
qualquer coisa de valor na psicanálise é simplesmente tomada de empréstimo às idéias de Janet. O leitor
terá aprendido pelo meu relato que historicamente e psicanálise é de todo independente das descobertas
de Janet, do mesmo modo que em seu conteúdo diverge delas e vai muito além da mesmas. As obras de
Janet jamais teriam tido as implicações que tornaram a psicanálise de tal importância para as ciências
mentais e que fizeram com que ela atraísse tal interesse universal. Sempre tratei o próprio Janet com
respeito, visto que suas descobertascoincidiram em considerável medida com as de Breuer, que foram
feitas antes, mas que vieram a lume depois das dele. Quando, porém, no curso do tempo a psicanálise
se tornou objeto de debates na França, Janet portou-se mal, mostrou ignorância dos fatos e utilizou feios
argumentos. E finalmente revelou-se aos meus olhos, e destruiu o valor de seu próprio trabalho,
declarando que quando falara de atos mentais ‘inconscientes’ nada quisera dizer com essa frase - não
havia passado de uma façon de parler.
Mas o estudo das repressões patogênicas e de outras manifestações que ainda têm de ser
mencionadas compeliu a psicanálise a adotar o conceito do ‘inconsciente’ de maneira séria. A psicanálise
considerava tudo de ordem mental como sendo, em primeiro lugar, inconsciente; a qualidade ulterior de
‘consciência’ também pode estar presente ou ainda pode estar ausente. Isto naturalmente provocou uma
negação por parte dos filósofos, para os quais ‘consciente’ e ‘mental’ eram idênticos, e que protestaram
que não podiam conceber um absurdo como o ‘mental inconsciente’. Isto, contudo, não pôde ser evitado,
e essa idiossincrasia dos filósofos não merece outra coisa senão ser posta de lado com um dar de
ombros. A experiência (adquirida de material patológico, que os filósofos ignoravam) da freqüência e do
poder de impulsos dos quais nada se sabia diretamente, e cuja existência teve de ser inferida como
algum fato do mundo externo, não deixou qualquer alternativa em aberto. Pode-se frisar, incidentalmente,
que isso era o mesmo que alguém tratar de sua vida mental como sempre se tratara de outras pessoas.
Não se hesitou em atribuir processos mentais a outras pessoas, embora não se tivesse qualquer
consciência imediata dos mesmos e somente se pudesse inferi-los de suas palavras e ações. Mas o que
permanecia válido para outros indivíduos devia ser aplicável a si próprio. Qualquer um que tentasse levar
o argumento mais para frente e concluir do mesmo que os próprios conceitos ocultos de alguém
pertenciam realmente a uma segunda consciência, defrontar-se-ia com o conceito de uma ‘consciência
inconsciente’ - e isso dificilmente seria preferível à suposição de um ‘mental inconsciente’. Se, por outro
lado, alguém declarasse, como alguns outros filósofos, que se estava preparando para levar em conta as
manifestações patológicas, mas que os processos subjacentes aos mesmos não devem ser descritos
como mentais mas como ‘psicóides’, a diferença de opinião degeneraria numa disputa estéril quanto a
palavras, embora mesmo assim a conveniência decidisse favoravelmente por manter a expressão ‘mental
inconsciente’. A outra questão quanto ànatureza final desse inconsciente não é mais sensível ou lucrativa
do que a mais antiga quanto à natureza do consciente.
Seria mais difícil explicar concisamente como veio a acontecer que a psicanálise fizesse outra
distinção no inconsciente e o separasse em um pré-consciente e em um inconsciente propriamente ditos.
Basta dizer que pareceu ser um caminho natural complementar da experiência com hipóteses que
estavam destinadas a facilitar o manuseio do material, e que estavam relacionadas com assuntos que
poderiam não ser objeto de observação imediata. O mesmíssimo método é adotado pelas ciências mais
antigas. A subdivisão do inconsciente faz parte de uma tentativa de retratar o aparelho da mente como
sendo constituído de grande número de instâncias ou sistemas, cujas relações mútuas são expressas em
termos espaciais, sem contudo implicarem qualquer ligação com a verdadeira anatomia do cérebro.
(Descrevia esse ponto como o método topográfico de abordagem.) Idéias como estas fazem parte de
uma superestrutura especulativa da psicanálise, podendo qualquer parcela da mesma ser abandonada
ou modificada, sem perda ou pesar, momento em que a sua insuficiência tenha sido provada. Mas resta
ainda muita coisa a ser descrita que está mais perto da verdadeira experiência.
Já mencionei que minha investigação das causas precipitantes e subjacentes das neuroses
levou-me cada vez com maior freqüência a conflitos entre os impulsos sexuais do indivíduo e suas
resistências à sexualidade. Em minha busca das situações patogênicas, nas quais as repressões de
sexualidade se haviam estabelecido e nas quais os sintomas, como substitutos do que foi reprimido,
tinham tido sua origem, fui levado cada vez mais de volta à vida do paciente e terminei chegando aos
primeiros anos de sua infância. O que os poetas e os estudiosos da natureza humana sempre haviam
assegurado veio a ser verdade: as impressões daquele período inicial de vida, embora estivessem na sua
maior parte enterradas na amnésia, deixaram vestígios indeléveis no crescimento do indivíduo e, em
particular, fundamentaram a disposição para qualquer distúrbio nervoso que viesse a sobrevir. Mas visto
que essas experiências da infância sempre se preocuparam com as excitações sexuais e a reação contra
elas, encontrei-me diante do fato da sexualidade infantil - mais uma vez uma novidade e uma contradição
de um dos mais acentuados preconceitos humanos. A infância era encarada como ‘inocente’ e isenta dos
intensos desejos do sexo, e não se pensava que a luta contra o domínio da ‘sexualidade’ começasse
antes da agitada idade da puberdade. Tais atividades sexuais ocasionais, conforme tinha sido impossível
desprezar nas crianças, eram postas de lado como indícios de degenerescência ou de depravação
prematura, ou como curiosa aberração da natureza. Poucos dos achados da psicanálise tiveram tanta
contestação universal ou despertaram tamanha explosão de indignação como a afirmativa de que a
função sexual se inicia no começo da vida e revela sua presença por importantes indícios mesmo na
infância. E contudo nenhum outro achado da análise pode ser demonstrado de maneira tão fácil e
completa.
Antes de avançar ainda mais na questão da sexualidade infantil, devo mencionar um erro no qual
incidi por algum tempo e que bem poderia ter tido conseqüências fatais para todo o meu trabalho. Sob a
influência do método técnico que empreguei naquela época, a maioria dos meus pacientes reproduzia de
sua infância cenas nas quais eram sexualmente seduzidos por algum adulto. Com pacientes do sexo
feminino o papel do sedutor era quase sempre atribuído ao pai delas. Eu acreditava nessas histórias e,
em conseqüência, supunha que havia descoberto as raízes da neurose subseqüente nessas
experiências de sedução sexual na infância. Minha confiança foi fortalecida por alguns casos nos quais
as relações dessa natureza com um pai, tio ou irmão haviam continuado até uma idade em que se devia
confiar na lembrança. Se o leitor sentir-se inclinado a balançar a cabeça pela minha credulidade, não
poderei de todo censurá-lo, embora possa alegar que isto ocorreu numa época em que intencionalmente
conservava minha faculdade crítica em suspenso, a fim de preservar uma atitude não tendenciosa e
receptiva em relação às muitas novidades que despertavam minha atenção diariamente. Quando,
contudo, fui finalmente obrigado a reconhecer que essas cenas de sedução jamais tinham ocorrido e que
eram apenas fantasias que minhas pacientes haviam inventado ou que eu próprio talvez houvesse
forçado nelas, fiquei por algum tempo inteiramente perplexo. De igual modo, minha confiança em minha
técnica e nos seus resultados sofreu rude golpe; não se podia discutir que eu havia chegado a essas
cenas por um método técnico que eu considerava correto, e seu tema estava indubitavelmente
relacionado com os sintomas dos quais partira minha pesquisa.Quando me havia refeito, fui capaz de
tirar as conclusões certas da minha descoberta: a saber, que os sintomas neuróticos não estavam
diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas de desejos, e que, no tocante
à neurose, a realidade psíquica era de maior importância que a realidade material. Mesmo agora não
creio que forcei as fantasias de sedução aos meus pacientes, que as ‘sugeri’. Eu tinha de fato tropeçado
pela primeira vez no complexo de Édipo, que depois iria assumir importância tão esmagadora, mas que
eu ainda não reconhecia sob seu disfarce de fantasia. Além disso, a sedução durante a infância retinha
certa parcela, embora mais humilde, na etiologia das neuroses. Mas os sedutores vieram a ser, em geral,
crianças mais velhas.
Ver-se-á, então, que meu erro foi o mesmo que seria cometido por alguém que acreditasse que a
história lendária dos primeiros reis de Roma (segundo narrada por Lívio) era uma verdade histórica em
vez daquilo que de fato ela é - uma reação contra a lembrança de tempos e circunstâncias que foram
insignificantes e ocasionalmente, talvez, inglórias. Quando o erro foi esclarecido, o caminho para o
estudo da vida sexual das crianças estava desvendado. Tornou-se assim possível aplicar a psicanálise a
outro campo da ciência e utilizar seus dados como meio de descobrir um novo conhecimento biológico.
A função sexual, conforme verifiquei, encontra-se em existência desde o próprio início da vida do
indivíduo, embora no começo esteja ligada a outras funções vitais e não se torne independente delas
senão depois; ela tem de passar por um longo e complicado processo de desenvolvimento antes de
tornar-se aquilo com que estamos familiarizados como sendo a vida sexual normal do adulto. Começa
por manifestar-se na atividade de todo um grande número de instintos componentes. Estes estão na
dependência de zonas erógenas do corpo; alguns deles surgem em pares de impulsos opostos (como o
sadismo e o masoquismo ou os impulsos de olhar e de ser olhado); atuam independentemente uns dos
outros numa busca de prazer e encontram seu objetivo, na maior parte, no corpo do próprio indivíduo.
Assim, de início a função sexual é não centralizada e predominantemente auto-erótica. Depois, começam
a surgir sínteses nela; uma primeira fase de organização é alcançada sob o domínio dos componentes
orais, e segue-se uma fase anal-sádica, e só depois de a terceira fase ter sido finalmente alcançada é
que a função sexual começa a servir aos fins de reprodução. No curso desse processo de
desenvolvimento, grande número de elementos dos vários instintos componentes vêm a ser inúteis para
essa última finalidade e são, portanto, deixados de lado ou utilizados para outros fins, enquanto outros
são desviados de seus objetivos e levados para a organização genital. Dei o nome de libido à energia
dos instintos sexuais e somente a essa forma de energia. Fui depois impelido a supor que a libido nem
sempre passa pelo seu recomendado curso de desenvolvimento de maneira suave. Como resultado quer
da excessiva força de certos componentes, quer de experiências que implicam uma satisfação
prematura, fixações da libido podem ocorrer em vários pontos no curso de seu desenvolvimento. Se
subseqüentemente verificar-se uma repressão, a libido reflui a esses pontos (um processo descrito como
regressão), sendo a partir deles que a energia irrompe sob a forma de um sintoma. Depois tornou-se
ainda claro que a localização do ponto de fixação é que determina a escolha da neurose, isto é, a forma
pela qual a doença subseqüente vem a surgir.
O processo de chegar a um objeto, que desempenha papel tão importante na vida mental, ocorre
juntamente com a organização da libido. Após a fase do auto-erotismo, o primeiro objeto de amor no caso
de ambos os sexos é a mãe, afigurando-se provável que, de início, uma criança não distingue o órgão de
nutrição da mãe do seu próprio corpo. Depois, mas ainda nos primeiros anos da infância, a relação
conhecida como complexo de Édipo se torna estabelecida: os meninos concentram seus desejos sexuais
na mãe e desenvolvem impulsos hostis contra o pai, como sendo rival, enquanto adotam atitude análoga.
Todas as diferentes variações e conseqüências do complexo de Édipo são importantes, e a constituição
inatamente bissexual dos seres humanos faz-se sentir e aumenta o número de tendências
simultaneamente ativas. Para as crianças não ficam claras durante muito tempo as diferenças entre os
sexos, e durante esse período de pesquisas sexuais produzem teorias sexuais típicas que, estando
circunscritas pelo fato de não estar completo o próprio desenvolvimento físico de seus autores,
constituem uma mescla de verdade e erro, e deixam de solucionar os problemas da vida sexual (o
enigma da Esfinge - isto é, a questão de onde vêm os bebês). Vemos, então, que a primeira escolha de
objeto de uma criança é incestuosa. Todo o curso do desenvolvimento que descrevi é percorrido
rapidamente, porquanto a feição mais notável da vida sexual do homem é seu desencadeamento
bifásico, seu desencadeamento em duas ondas, com um intervalo entre elas, que atinge um primeiro
clímax no quarto ou quinto ano da vida de uma criança. Mas a partir daí essa eflorescência prematura da
sexualidade desaparece; os impulsos sexuais que mostraram tanta vivacidade são superados pela
repressão, e segue-se um período de latência, que dura até a puberdade e durante o qual as formações
reativas de moralidade vergonha e repulsa são estruturadas. De todas as criaturas vivas somente o
homem parece revelar esse desencadeamento bifásico do crescimento sexual, e talvez seja ele o
determinante biológico de uma predisposição a neuroses. Na puberdade, os impulsos e as relações de
objeto dos primeiros anos de uma criança se tornam reanimados e entre eles os laços emocionais do seu
complexo de Édipo. Na vida sexual da puberdade, verifica-se uma luta entre os anseios dos primeiros
anos e as inibições do período de latência. Antes de seu desenvolvimento sexual infantil, estabelece-se
certa organização genital, mas somente os órgãos genitais do indivíduo masculino desempenham nela
seu papel, permanecendo os órgãos sexuais femininos não revelados. (Descrevi isso como o período de
primazia fálica.) Nessa fase o contraste entre os sexos não se inicia em termos de ‘macho’ ou ‘fêmea’,
mas de possuir um ‘pênis’ ou de ser ‘castrado’. O complexo de castração que surge nesse sentido é da
mais profunda importância na formação tanto do caráter quanto das neuroses.
A fim de tornar mais inteligível esse relato resumido de minhas descobertas sobre a vida sexual
do homem, enfeixei conclusões às quais cheguei em datas diferentes e que incorporei, à guisa de
suplemento ou correção, nas sucessivas edições de minha obra Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade (1905d). Espero que tenha sido fácil apreender a natureza de minha ampliação (à qual se
atribuiu tanta ênfase e que provocou tanta oposição) do conceito da sexualidade. Essa extensão é de
natureza dúplice. Em primeiro lugar, a sexualidade está divorciada da sua ligação por demais estreita
com os órgãos genitais, sendo considerada como uma função corpórea mais abrangente, tendo o prazer
como a sua meta e só secundariamente vindo a servir às finalidades de reprodução. Em segundo lugar,
os impulsos sexuais são considerados como incluindo todos aqueles impulsos meramente afetuosos e
amistosos aos quais o uso aplica a palavra extremamente ambígua de ‘amor’. Não considero, contudo,
que essas extensões sejam inovações, mas antes restaurações: significam a eliminação de limitações
inoportunas do conceito ao qual nos permitimos ser conduzidos.
O destacar a sexualidade dos órgãos genitais apresenta a vantagem de nos permitir levar as
atividades sexuais da crianças e dos pervertidos para o mesmo âmbito que o dos adultos normais. As
atividades sexuais das crianças até agora foram inteiramente desprezadas e, embora as dos pervertidos
tenham sido reconhecidas, foram-no com indignação moral e sem compreensão. Encaradas do ponto de
vista psicanalítico, mesmo as perversões mais excêntricas e repelentes são explicáveis como
manifestações da primazia dos órgãos genitais e que se acham agora em busca do prazer por sua
própria conta, como nos primeiros dias do desenvolvimento da libido. A mais importante dessas
perversões, a homossexualidade, quase não merece esse nome. Ela pode ser remetida à bissexualidade
constitucional de todos os seres humanos e aos efeitos secundários da primazia fálica. A psicanálise
permite-nos apontar para um vestígio ou outro de uma escolha homossexual em todos os indivíduos. Se
eu descrevi as crianças como ‘polimorficamente perversas’ estava apenas empregando uma terminologia
que era geralmente corrente; não estava implícito qualquer julgamento moral. A psicanálise não se
preocupa em absoluto com tais julgamentos de valor.
A segunda da minhas alegadas extensões do conceito de sexualidade encontra sua justificativa
no fato revelado pela pesquisa psicanalítica de que todos esses impulsos afetuosos foram originalmente
de natureza sexual, mas se tornaram inibidos em sua finalidade ou sublimados. A maneira como os
instintos sexuais podem assim ser influenciados e desviados lhes permite ser empregados para
atividades culturais de toda espécie, para as quais, realmente, prestam as mais importantes
contribuições.
Minhas surpreendentes descobertas quanto à sexualidade das crianças foram efetuadas, no
primeiro exemplo, mediante a análise de adultos. Mas depois (mais ou menos a partir de 1908) tornou-se
possível confirmá-las plenamente e em todos os detalhes por observações diretas em crianças. Na
realidade, é tão fácil alguém se convencer das atividades sexuais regulares, que não se pode deixar de
perguntar, atônito, como a raça humana pode ter conseguido desprezar os fatos e manter por tanto
tempo a lenda impregnada de desejo da assexualidade da infância. Essa surpreendente circunstância
deve estar ligada à amnésia que, na maioria dos adultos, oculta sua própria infância.
IV
As teorias da resistência e da repressão, do inconsciente, da significância etiológica da vida
sexual e da importância das experiências infantis - tudo isto forma os principais constituintes da estrutura
teórica da psicanálise. Nestas páginas, infelizmente, pude apenas descrever os elementos separados e
não suas interligações e sua relação uns com os outros. Mas sou obrigado agora a voltar às alterações
que gradativamente se verificam na técnica do método analítico.
Os meios que primeiramente adotei para superar a resistência do paciente, pela insistência e
pelo estímulo, tiveram de ser indispensáveis para a finalidade de proporcionar-me um primeiro apanhado
geral que era de se esperar. Mas em última análise veio a ser um esforço demasiado de ambos os lados,
e além disso parecia aberto a certas críticas evidentes. Deu, portanto, lugar a outro que era, em certo
sentido, seu oposto. Em vez de incitar o paciente a dizer algo sobre algum assunto específico, pedi-lhe
então que se entregasse a um processo de associação livre - isto é, que dissesse o que lhe viesse à
cabeça, enquanto deixasse de dar qualquer orientação consciente a seus pensamentos. Era essencial,
contudo, que ele se obrigasse a informar literalmente tudo que ocorresse à sua autopercepção, e não
desse margem a objeções críticas que procurassem pôr certas associações de lado, com base no
fundamento de que não eram irrelevantes ou inteiramente destituídas de sentido. Não houve
necessidade de repetir explicitamente a exigência de franqueza por parte do paciente ao relatar seus
pensamentos, pois era precondição do tratamento analítico inteiro.
Poderá parecer surpreendente que esse método de associação livre, levado a cabo sob a
observação da regra fundamental da psicanálise, deva ter alcançado o que dele se esperava, a saber, o
levar até a consciência o material reprimido que era retido por resistências. Devemos, contudo, ter em
mente que a associação livre não é realmente livre. O paciente permanece sob a influência da situação
analítica, muito embora não esteja dirigindo suas atividades mentais para um assunto específico.
Seremos justificados ao presumir que nada lhe ocorrerá que não tenha alguma referência com essa
situação. Sua resistência contra a reprodução do material reprimido será agora expressa de duas
maneiras. Em primeiro lugar, será revelada por objeções críticas; e foi para lidar com tais objeções que a
regra fundamental da psicanálise foi inventada. Mas se o paciente observar essa regra e assim superar
suas reservas, a resistência encontrará outro meio de expressão. Tal regra a disporá de tal forma que o
próprio material reprimido jamais ocorrerá ao paciente, mas somente algo que se aproxima dele de
maneira alusiva;e quanto maior a resistência, mais remota da idéia real, da qual o analista se acha à
procura, estará a associação substitutiva que o paciente tem de informar. O analista, que escuta
serenamente, mas sem qualquer esforço constrangido, à torrente de associações e que, pela sua
experiência, possui uma idéia geral do que esperar, pode fazer uso do material trazido à luz pelo paciente
de acordo com duas possibilidades. Se a resistência for leve, ele será capaz, pelas alusões do paciente,
de inferir o próprio material inconsciente; se a resistência for mais forte, ele será capaz de reconhecer seu
caráter a partir das associações, quando parecerem tornar-se mais remotas do tópico em mão, e o
explicará ao paciente. A descoberta da resistência, contudo constitui o primeiro passo no sentido de
superá-la. Assim, o trabalho de análise implica uma arte de interpretação, cujo manuseio bem-sucedido
pode exigir tato e prática, mas que não é difícil de adquirir. Mas não é apenas na poupança de trabalho
que o método de associação livre possui vantagem sobre o anterior. Ele expõe o paciente à menor dose
possível de compulsão, jamais permitindo que se perca contato com a situação corrente real, e garante
em grande medida que nenhum fator da estrutura da neurose seja desprezado e que nada seja
introduzido nela pelas expectativas do analista. Deixa-se ao paciente, em todos os pontos essenciais,
que determine o curso da análise e o arranjo do material; qualquer manuseio sistemático de sintomas ou
complexos específicos torna-se desse modo impossível. Em completo contraste com o que aconteceu
com o hipnotismo e com o método de inicitação, o material inter-relacionado aparece em diferentes
tempos e em pontos diferentes no tratamento. Portanto, para um espectador - embora de fato não deva
haver nenhum - um tratamento analítico pareceria inteiramente obscuro.
Outra vantagem do método é que jamais precisa ser decomposto. Deve, teoricamente, sempre
ser possível ter uma associação, contanto que não se estabeleçam quaisquer condições quanto ao seu
caráter. Contudo, há um único caso no qual de fato ocorre essa divisão com absoluta regularidade; por
sua própria natureza sui generis, contudo, esse caso também pode ser interpretado.
Chego agora à descrição de um fator que acrescenta uma feição essencial ao meu quadro de
análise, e que pode reivindicar, tanto técnica quanto teoricamente, ser considerado como de importância
primacial. Em todo tratamento analítico surge, sem interferência do médico, uma intensa relação
emocional entre o paciente e o analista, que não deve ser explicada pela situação real. Pode ser de
caráter positivo ou negativo, e pode variar entre os extremos de um amor apaixonado, inteiramente
sensual, e a expressão infrene de desafio e ódio exacerbados. Essa transferência - para designá-la pelo
seu nome abreviado - logo substitui na mente do paciente o desejo de ser curado, e, enquanto for
afeiçoada e moderada, torna-se o agente da influência do médico e nem mais nem menos do que a mola
mestra do trabalho conjunto de análise. Posteriormente, quando se tiver tornado arrebatada ou tiver sido
convertida em hostilidade, torna-se o principal instrumento da resistência. Poderá então acontecer que
paralise os poderes de associação do paciente e ponha em perigo o êxito do tratamento. Contudo, seria
insensato fugir à mesma, pois uma análise sem transferência é uma impossibilidade. Não se deve supor,
todavia, que a transferência seja criada pela análise e não ocorra independente dela. A transferência é
meramente descoberta e isolada pela análise. Ela é um fenômeno universal da mente humana, decide o
êxito de toda influência médica, e de fato domina o todo das relações de cada pessoa com seu ambiente
humano. Podemos facilmente reconhecê-la como o mesmo fator dinâmico que os hipnotistas
donominaram de ‘sugestionabilidade’, que é o agente do rapport hipnótico e cujo comportamento
imprevisível levou também a dificuldades com o método catártico. Quando não existe nenhuma inclinação
para uma transferência de emoção tal como esta, ou quando se torna completamente negativa, como
acontece na demência precoce ou na paranóia, então também não há qualquer possibilidade de
influenciar o paciente por meios psicológicos.
É perfeitamente verdade que a psicanálise, como outros métodos psicoterapêuticos, emprega o
instrumento da sugestão (ou transferência). Mas a diferença é esta: na análise não é permitido
desempenhar o papel decisivo na determinação dos resultados terapêuticos. Utiliza-se, ao contrário,
induzir o paciente a realizar um trabalho psíquico - a superação de suas resistências à transferência - que
implica uma alteração permanente em sua economia mental. A transferência é tornada consciente para o
paciente pelo analista, e é resolvida convencendo-o de que em sua atitude de transferência ele está
reexperimentando relações emocionais que tiveram sua origem em suas primeiras ligações de objeto,
durante o período reprimido de sua infância. Dessa forma, a transferência é transformada de arma mais
forte da resistência em melhor instrumento do tratamento analítico. Não obstante, seu manuseio continua
sendo o mais difícil, bem como a parte mais importante da técnica de análise.
Com a ajuda do método de associação livre e da arte correlata de interpretação, a psicanálise
conseguiu alcançar uma coisa que parecia não ser de importância prática alguma, mas que de fato
conduziu necessariamente a uma atitude totalmente nova e a uma nova escala de valores no
pensamento científico. Tornou-se possível provar que os sonhos têm um significado, e descobri-lo. Na
Antigüidade clássica dava-se grande importância aos sonhos, como forma de prever o futuro; mas a
ciência moderna nada quis com eles, passando-os à superstição, declarando-os processos puramente
somáticos - uma espécie de crispação de uma mente que de outra forma está adormecida. Afigurava-se
inteiramente inconcebível que qualquer um que houvesse realizado um trabalho científico sério pudesse
aparecer como um ‘intérprete de sonhos’. Mas desprezando a excomunhão lançada contra os sonhos,
tratando-os como sintomas neuróticos inexplicados, como idéias delirantes ou obsessivas, descurando de
seu conteúdo aparente, e fazendo de suas imagens componentes isoladas temas para associação livre, a
psicanálise chegou a uma conclusão diferente. As numerosas associações produzidas por aquele que
sonhava levaram à descoberta de uma estrutura de pensamentos que não pode mais ser descrita como
absurda ou confusa, que se classificava como um produto psíquico inteiramente válido, e do qual o sonho
manifesto não passava de uma tradução distorcida, abreviada e mal compreendida, e na sua maior parte
uma tradução em imagens. Esses pensamentos oníricos latentes encerravam o significado do sonho,
enquanto seu conteúdo manifesto era simplesmente um simulacro, uma fachada, que poderia servir
como ponto de partida para as associações, mas não para a interpretação.
Surgiu uma série de perguntas a serem respondidas, sendo a mais importante delas sobre se a
formação de sonhos tinha um motivo, em que condições se verificava, por quais métodos os
pensamentos oníricos (que são invariavelmente plenos de sentido) se tornavam convertidos no sonho
(que amiúde é destituído de sentido), e outras além disto. Tentei solucionar todos esses problemas em A
Interpretação de Sonhos, que publiquei no ano de 1900. Só posso encontrar espaço aqui para o resumo
mais breve de minha pesquisa. Quando os pensamentos oníricos latentes que são revelados pela análise
de um sonho são examinados, verifica-se que um deles se destaca dentre os demais que são inteligíveis
e bem conhecidos daquele que sonha. Esses últimos pensamentos são resíduos da vida de vigília (os
resíduos diurnos, como são intitulados tecnicamente); mas verifica-se que o pensamento isolado é um
impulso de desejo, muitas vezes de natureza repelente, que é estranho à vida de vigília daquele que
sonha, sendo, em conseqüência, repudiado por ele com surpresa ou indignação. Esse impulso é o
construtor real do sonho: proporciona a energia para sua produção e faz uso dos resíduos diurnos como
material. O sonho que assim se origina representa uma situação para o impulso, é a realização do seu
desejo. Não seria possível a esse processo verificar-se sem ser favorecido pela presença de algo da
natureza de um estado de sono. A precondição mental necessária de sono é a concentração do ego
sobre o desejo de dormir e a retirada da energia psíquica de todos os interesses da vida. Visto que ao
mesmo tempo todas as trilhas de aproximação à mortalidade se acham bloqueadas, o ego é também
capaz de reduzir o dispêndio [de energia] pelo qual em outras ocasiões mantém as repressões. O
impulso inconsciente faz uso desse relaxamento noturno da repressão a fim de abrir seu caminho até a
consciência com o sonho. A resistência repressiva do ego, contudo, não é abolida no sono, mas apenas
reduzida. Parte dela permanece sob a forma de uma censura de sonhos e proíbe o impulso inconsciente
de expressar-se nas formas que apropriadamente assumiria. Em conseqüência da severidade da censura
de sonhos, os pensamentos oníricos latentes são obrigados a se submeter a serem alterados e
amaciados a fim de tornarem o significado proibido do sonho irreconhecível. Esta é a explicação da
distorção do sonho, que dá conta das características mais surpreendentes do sonho manifesto. Estamos,
portanto, justificados em afirmar que um sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (reprimido). Verse-á agora que os sonhos são interpretados como um sintoma neurótico: são conciliações entre as
exigências de um impulso reprimido e a resistência de uma força censora no ego. Visto terem uma
origem semelhante, são igualmente ininteligíveis e têm igual necessidade de interpretação.
Não há qualquer dificuldade para descobrir a função geral do sonhar. Ela serve à finalidade de
desviar, por uma espécie de ação calmante, os estímulos externos ou internos que tenderiam a despertar
aquele que sonha, e assim de assegurar o sono contra interrupções. Os estímulos externos são
desviados, recebendo uma nova interpretação e sendo entretecidos em alguma situação inócua; os
estímulos internos, causados por exigências instintuais, recebem liberdade de atuação por aquele que
dorme, sendo-lhes permitido encontrar satisfação na formação de sonhos, enquanto os pensamentos
oníricos latentes submetem-se ao controle da censura. Mas se ameaçam irromper em liberdade e se o
significado do sonho se torna por demais claro, o que sonha interrompe o sonho e desperta assustado.
(Os sonhos dessa natureza são conhecidos como sonhos de ansiedade.) Uma falha semelhante na
função do sonhar ocorre se um estímulo externo tornar-se demasiado forte para ser desviado. (Esta é a
classe dos sonhos do despertar.) Dei a designação de elaboração onírica ao processo que, com a
cooperação da censura, transforma os pensamentos latentes no conteúdo manifesto do sonho. Ele
consiste em uma maneira peculiar de tratar o material pré-consciente do pensamento, de modo que suas
partes componentes se tornam condensadas, sua ênfase psíquica torna-se deslocada, e o seu todo é
traduzido em imagens visuais ou dramatizadas, e completado por uma elaboração secundária. A
elaboração onírica constitui excelente exemplo dos processos que ocorrem nas camadas mais profundas
e inconscientes da mente, que diferem consideravelmente dos processos normais familiares do
pensamento. Exibe também grande número de características arcaicas, tais como o uso de um
simbolismo (nesse caso de natureza predominantemente sexual), o qual desde então tem sido possível
descobrir em outras esferas da atividade mental.
Explicamos que o impulso instintual inconsciente do sonho liga-se a um resíduo diurno, com certo
interesse da vida de vigília que não foi eliminado; ele dá assim ao sonho que constrói duplo valor para o
trabalho de análise, pois por um lado um sonho que foi analisado revela-se como a realização de um
desejo reprimido, mas por outro pode ser a continuação de alguma atividade pré-consciente do dia
anterior, e poderá conter todas as espécies de assuntos e dar expressão a uma intenção, a uma
advertência, a uma reflexão, ou mais uma vez à realização de um desejo. A análise explora o sonho em
ambas as direções, como meio de obter conhecimento tanto do consciente do paciente quanto de seus
processos inconscientes. Ela também se beneficia do fato de que os sonhos têm acesso ao material
esquecido da infância e assim acontece que a amnésia infantil é, na sua maior parte, superada em
relação com a interpretação de sonhos. Nesse sentido, os sonhos realizam uma parte do que era
anteriormente tarefa do hipnotismo. Por outro lado, jamais sustentei a afirmação, tantas vezes a mim
atribuída, de que a interpretação de sonhos revela que todos os sonhos têm um conteúdo sexual ou
provêm de forças motoras sexuais. É fácil ver que a fome, a sede ou a necessidade de excretar podem
produzir sonhos de satisfação tão bem quanto qualquer impulso sexual ou egoísta reprimido. O caso de
criancinhas nos proporciona um teste convincente da validade da nossa teoria dos sonhos. Nelas os
vários sistemas psíquicos ainda não se acham acentuadamente divididos e as repressões ainda não se
tornaram profundas, de modo que amiúde nos deparamos com sonhos que nada mais são do que
realizações indisfarçadas de impulsos impregnados de desejos que sobraram da vida de vigília. Sob a
influência de necessidades imperativas, os adultos podem também produzir sonhos desse tipo infantil.Da
mesma forma que a psicanálise faz uso da interpretação de sonhos, também se beneficia do estudo de
numerosos pequenos deslizes e erros que as pessoas cometem - ações sintomáticas, como são
denominadas. Pesquisei esse assunto em uma série de artigos que foram publicados pela primeira vez
sob a forma de livro com o título de The Psychopathology of Every Day Life [Freud, 1901b]. Nessa obra
amplamente difundida, ressaltei que esses fênomenos não são acidentais, que exigem mais do que
explanações fisiológicas, que têm um significado e podem ser interpretados, e que há justificativas para
inferir-se deles a presença de impulsos e intenções refreados ou reprimidos. Mas o que constitui a
enorme importância da interpretação de sonhos, bem como desse segundo estudo, não é a assistência
que dão ao trabalho de análise, mas um outro de seus atributos. Previamente, a psicanálise se
interessara apenas em solucionar manifestações patológicas e, a fim de explicá-las, tinha muitas vezes
sido impelida a fazer suposições cujo caráter abrangente era inteiramente desproporcional para a
importância do material real em consideração. Quando, no entanto, se tratava de sonhos, não estava
mais lidando com sintoma patológico, mas com uma manifestação da vida mental normal que poderia
ocorrer em qualquer pessoa sã. Se os sonhos viessem a ser interpretados como sintomas, se sua
explanação exigisse as mesmas suposições - a repressão de impulsos, formação substitutiva, formação
de conciliação, a divisão do consciente e do inconsciente em vários sistemas psíquicos - , então a
psicanálise não seria mais uma ciência auxiliar no campo da psicopatologia, mas antes o ponto de partida
de uma ciência nova e mais profunda da mente, que seria igualmente indispensável para a compreensão
do normal. Seus postulados e achados poderiam ser levados a outras regiões da ocorrência mental;
estava aberto para ela um caminho que conduzia muito longe, até as esferas do interesse universal.
V
Devo interromper meu relato do crescimento interno da psicanálise e voltar-me para sua história
externa. O que descrevi até agora sobre suas descobertas relacionou-se em sua maior parte com os
resultados de meu próprio trabalho, mas também preenchi minha história com material proveniente de
datas ulteriores e não estabeleci distinção entre minhas próprias contribuições e as de meus alunos e
seguidores.
Por mais de dez anos após meu afastamento de Breuer, não tive seguidores. Fiquei
completamente isolado. Em Viena, fui evitado; no exterior, ninguém me deu atenção. Minha Interpretação
de Sonhos, vinda a lume em 1900, mal foi objeto de críticas nas publicações técnicas. Em meu artigo ‘A
História do Movimento Psicanalítico’ [1914d], mencionei como exemplo da atitude adotada por círculos
psiquiátricos de Viena uma conversa com um assistente na clínica [na qual eu fazia palestras], que
escrevera um livro sobre minhas teorias, mas que nunca havia lido minha Interpretação de Sonhos.
Haviam-lhe dito na clínica que não valia a pena. O homem em questão, que depois veio a ser professor,
chegou ao ponto de repudiar meu relato da conversa e de lançar dúvidas em geral sobre a exatidão de
minha memória. Só posso dizer que sustento todas as palavras do relato que então fiz.
Logo que percebi a natureza inevitável daquilo com que me defrontara, minha sensibilidade
diminuiu grandemente. Além disso, meu isolamento gradativamente chegou ao fim. Para começar, um
pequeno círculo de alunos reuniu-se em torno de mim em Viena; e então, depois de 1906, chegou a
notícia de que os psiquiatras de Zurique, E. Bleuler seu assistente C. G. Jung e outros, estavam
adquirindo vivo interesse pela psicanálise. Entramos em contato pessoal, e na Páscoa de 1908 os
amigos da nascente ciência reuniram-se em Salzburg, concordaram com a realização regular de outros
congressos informais semelhantes e adotaram providências para a publicação de um órgão que foi
organizado por Jung e que recebeu o título de Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische
Forschungen [Anuário de Pesquisas Psicanalíticas e Psicopatológicas]. Veio a lume sob a minha direção
e a de Bleuler, deixando de ser publicado no início da [primeira] guerra mundial. Ao mesmo tempo que os
psiquiatras suíços ingressavam no movimento, o interesse pela psicanálise começou também a ser
despertado em toda a Alemanha, tornando-se tema de grande número de comentários escritos e de vivos
debates em congressos científicos. Mas sua acolhida em parte alguma foi amistosa ou mesmo
benevolentemente neutra. Após travar o mais leve conhecimento com a psicanálise, a ciência alemã
estava coesa para rejeitá-la.
Mesmo hoje, é-me naturalmente impossível prever o julgamento final da posteridade sobre o
valor da psicanálise para a psiquiatria, a psicologia e as ciências mentais em geral. Mas imagino que,
quando a história da fase em que vivemos vier a ser escrita, a ciência alemã não terá motivo para
orgulhar-se daqueles que a representaram. Não estou pensando no fato de que rejeitaram a psicanálise
ou na forma incisiva como o fizeram; ambas essas coisas eram facilmente inteligíveis, eram de se
esperar e, de qualquer maneira, não lançaram descrédito algum sobre o caráter dos adversários da
análise. Mas pelo grau de arrogância que demonstraram, pelo seu desprezo sem consciência da lógica e
pela aspereza e falta de gosto dos seus ataques, não poderia haver desculpa alguma. Poder-se-á dizer
que é infantilidade de minha parte dar livre curso a tais sentimentos, depois de transcorridos quinze anos,
nem o faria, a menos que tivesse algo mais a acrescentar. Anos depois, durante a grande guerra, quando
uma coorte de inimigos fazia contra a nação alemã a acusação de barbarismo, acusação que resume
tudo o que escrevi acima, ela não obstante feriu profundamente, de modo a sentir que minha própria
experiência não me permitiria contradizê-la.
Um dos meus antagonistas vangloriava-se de silenciar seus pacientes logo que começavam a
falar sobre qualquer coisa de natureza sexual, e evidentemente pensava que essa técnica lhe dava o
direito de julgar o papel desempenhado pela sexualidade na etiologia das neuroses. Fora as resistências
emocionais, tão facilmente explicáveis pela teoria psicanalítica que era impossível ter sido conduzido
erroneamente por elas, parecia-me que o principal obstáculo estava no fato de que meus adversários
consideravam a psicanálise como um produto da minha imaginação especulativa, e não estavam
dispostos a crer no trabalho longo, paciente e imparcial que fora dedicado à sua elaboração. Visto que na
opinião deles a análise nada tinha a ver com a observação ou a experiência, acreditavam que eles
próprios estavam justificados em rejeitarem-na sem experiência. Outros ainda, que não se sentiam tão
fortemente convencidos disso, repetiam em sua resistência a manobra clássica de não olhar pelo
microscópio a fim de evitar ver o que haviam negado. É notável, realmente, quão incorretamente as
pessoas agem quando são obrigadas a formar um julgamento próprio sobre algum novo assunto. Durante
anos foi-me dito por críticos ‘benevolentes’ - e ainda hoje ouço a mesma coisa - que a psicanálise está
certa até tal e tal ponto, mas que aí ela começa a exagerar e a generalizar sem justificativa. E sei que,
embora nada seja mais difícil do que decidir onde tal ponto se encontra, esses críticos, algumas semanas
ou alguns dias antes, ignoravam inteiramente o assunto.
O resultado da anátema oficial contra a psicanálise foi que os analistas começaram a ficar mais
coesos. No segundo congresso, realizado em Nuremberg em 1910, constituíram-se, por proposta de
Ferenczi, em uma ‘Associação Psicanalítica Internacional’, dividida em grande número de sociedades
locais, mas com um presidente comum. A associação sobreviveu à primeira guerra mundial e ainda
existe, consistindo hoje em sociedades ramificadas na Áustria, Alemanha, Hungria, Suíça, Grã-Bretanha,
Holanda, Rússia e Índia, bem como duas nos Estados Unidos. Providenciei no sentido de que C. G. Jung
fosse nomeado primeiro presidente, o que depois veio a ser uma medida muito infeliz. Ao mesmo tempo,
foi iniciado um segundo periódico dedicado à psicanálise, o Zentralblatt für Psychoanalyse [Periódico
Central de Psicanálise], organizado por Adler e Stekel, e pouco depois um terceiro, Imago, organizado
por dois analistas não médicos, H. Sachs e O. Rank, e destinado a tratar da aplicação da psicanálise às
ciências mentais. Logo depois Bleuler [1910]publicou um artigo em defesa da psicanálise. Embora fosse
um alívio encontrar dessa vez honestidade e lógica direta tomando parte na pendência, não pude sentirme inteiramente satisfeito com o ensaio de Bleuler. Ele procurava com demasiada ansiedade uma
aparência de imparcialidade; nem constitui uma questão de acaso ser a ele que nossa ciência deve o
valioso conceito de ambivalência. Em artigos ulteriores, Bleuler adotou tal atitude crítica em relação à
estrutura teórica da análise e rejeitou ou lançou dúvidas sobre tais pontos essenciais dela, que eu não
podia deixar de perguntar a mim próprio com assombro o que poderia restar para ele admirar. Contudo,
não somente externou ele subseqüentemente os fortes apelos em favor da (‘psicologia profunda’, como
baseou nela seu estudo abrangente de esquizofrenia [Bleuler, 1911]. Não obstante, Bleuler não
continuou por muito tempo membro da Associação Psicanalítica Internacional, exonerando-se da mesma
como resultado de desentendimento com Jung, e perdeu-se o Burghölzli para a análise.
A desaprovação oficial não pôde prejudicar a divulgação da psicanálise nem na Alemanha nem
em outros países. Em outra parte [1914d] acompanhei as fases de seu crescimento e dei os nomes
daqueles que foram seus primeiros representantes. Em 1909, G. Stanley Hall convidou Jung e a mim
para irmos aos Estados Unidos visitar a Clark University, Worcester, Mass., da qual era ele presidente, e
passar uma semana pronunciando conferências (em alemão) nas comemorações do vigésimo aniversário
de fundação daquela entidade. Hall era, com justiça, estimado como psicólogo e educador, e introduzira a
psicanálise em seus cursos vários anos antes; havia um certo quê de ‘fazedor de reis’ em relação a ele,
um prazer em erigir autoridades e depois depô-las. Conhecemos também ali James J. Putnam o
neurologista de Harvard, que apesar de sua idade era partidário entusiasta da psicanálise e que lançou
todo o peso de uma personalidade que era universalmente respeitada em defesa do valor cultural da
análise e da pureza de suas finalidades. Era um homem estimável, no qual, como reação contra uma
predisposição à neurose obsessiva, predominava uma tendenciosidade ética, e a única coisa inquietante
nele era sua inclinação para vincular a psicanálise a um sistema filosófico particular a para fazer dela
serva de objetivos morais. Outro fato dessa época que me causou impressão duradoura foi um encontro
com William James, o filósofo. Jamais me esquecerei de uma pequena cena que ocorreu quando
passeávamos juntos. Ele parou de repente, entregou-me uma bolsa que carregava e pediu-me que
continuasse a caminhar, dizendo que me alcançaria logo que se recuperasse de um acesso de angina do
peito que estava justamente surgindo. Morreu dessa doença um ano depois, e sempre desejei que me
mostrasse tão destemido quanto ele em face da morte que se aproximava.
Naquela época eu contava apenas cinqüenta e três anos de idade. Sentia-me jovem e saudável,
e minha curta visita ao novo mundo encorajava meu auto-respeito em todos os sentidos. Na Europa eu
me sentia como um proscrito, mas ali me via acolhido pelos melhores como um igual. Quando subi ao
estrado em Worcester para pronunciar minhas Cinco Lições de Psicanálise [1910a], isto pareceu a
concretização de um incrível devaneio: a psicanálise não era mais um produto de delírio, tornara-se uma
parte valiosa da realidade. Ela não perdeu terreno nos Estados Unidos desde a nossa visita, é
extremamente popular entre o público leigo e reconhecida por grande número de psiquiatras oficiais
como importante elemento nos estudos médicos. Infelizmente, contudo, muito sofreu por ter sido diluída.
Além disso, muitos desmandos que não têm relação alguma com ela encontram guarida sob seu nome,
havendo poucas oportunidades de qualquer formação completa na técnica ou na teoria. Também nos
Estados Unidos ela entrou em conflito com o behaviorismo, uma teoria que é suficientemente ingênua
para vangloriar-se de haver tornado todo o problema da psicologia inteiramente improcedente.
Na Europa, durante os anos de 1911-13, ocorreram dois movimentos secessionistas da
psicanálise, conduzidos por homens que haviam previamente desempenhado considerável papel na nova
ciência, Alfred Adler e C. G. Jung. Ambos os movimentos pareceram altamente ameaçadores e
rapidamente obtiveram grande número de adeptos, contudo, sua força estava não em seu próprio
conteúdo, mas na atenção que ofereciam de estar libertados do que se julgava como os achados
repelentes da psicanálise, muito embora seu material real não fosse mais rejeitado. Jung tentou dar aos
fatos da análise uma nova interpretação de natureza abstrata, impessoal e não histórica, e assim
esperava escapar da necessidade de reconhecer a importância da sexualidade infantil e do complexo
edipiano bem como da necessidade de qualquer análise da infância. Adler parecia afastar-se ainda mais
da psicanálise; repudiou inteiramente a importância da sexualidade, remeteu a formação tanto do caráter
quanto das neuroses unicamente ao desejo dos homens pelo poder e à necessidade de compensarem
suas inferioridades constitucionais, lançou todas as descobertas psicológicas aos ventos. Mas o que ele
rejeitara forçou sua volta ao seu sistema fechado sob outras designações; o ‘protesto masculino’ dele não
passa da repressão injustificavelmente sexualizada. A crítica com que os dois heréticos se defrontaram
foi branda; eu apenas insisti que tanto Adler como Jung deixassem de descrever suas teorias como
‘psicanálise’. Após um espaço de dez anos pode-se afirmar que ambas as tentativas contra a psicanálise
foram desfeitas sem provocar qualquer dano.
Se uma comunidade basear-se no consenso sobre alguns pontos cardeais, é evidente que as
pessoas que abandonaram esse terreno comum deixarão de pertencer ao mesmo. Contudo, a secessão
de antigos discípulos muitas vezes tem sido trazida à baila contra mim como sinal de minha intolerância,
ou tem sido considerada como prova de certa fatalidade especial que paira sobre mim. Constitui resposta
suficiente ressaltar que em contraste com aqueles que me abandonaram, como Jung, Adler, Stekel e
alguns outros, existe grande número de pessoas, como Abraham, Eitingon, Ferenczi, Rank, Jones, Brill,
Sachs, Pfister, Van Emden, Reik e outros, que trabalham comigo há uns quinze anos em leal colaboração
e, em sua maior parte, numa amizade sem desfalecimentos. Mencionei apenas os mais antigos dos meus
discípulos, que já se projetaram por si mesmos na literatura da psicanálise; se omiti outros, isto não deve
ser considerado como um descuido, e na realidade entre aqueles que são jovens e que se associaram a
mim ultimamente encontram-se talentos nos quais se podem depositar grandes esperanças. Mas penso
que posso afirmar em minha defesa que um homem intolerante, dominado por uma crença arrogante em
sua própria infalibilidade, jamais teria sido capaz de conservar seu domínio sobre um número tão vasto
de pessoas intelectualmente eminentes, mormente se tivesse a seu dispor tão poucas atrações práticas
quanto eu possuía.
A guerra mundial, que dissolveu tantas outras organizações, nada pôde fazer contra a nossa
‘Internacional’. A primeira reunião após o conflito realizou-se em 1920, em Haia, em terreno neutro. Era
comovedor ver quão hospitaleiramente os holandeses davam as boas-vindas aos súditos famintos e
empobrecidos dos Estados europeus; e creio que esta foi a primeira ocasião, em um mundo arruinado,
que ingleses e alemães se sentaram à mesma mesa para o debate amigável de interesses científicos.
Tanto na Alemanha como nos países da Europa ocidental a guerra havia, na realidade, provocado
interesse pela psicanálise. A observação das neuroses de guerra havia finalmente aberto os olhos da
profissão médica para a importância da psicogênese em perturbações neuróticas, e algumas das nossas
perturbações psicológicas, tais como o ‘ganho proveniente da doença’ e a ‘fuga para a doença’,
rapidamente se tornaram populares. O último congresso antes do colapso alemão, realizado em
Budapeste em 1918, contou com representantes oficiais dos governos aliados das potências européias
centrais, havendo concordado com a criação de centros psicanalíticos para o tratamento de neuroses de
guerra. Mas esse ponto jamais foi alcançado. De maneira semelhante, também os planos abrangentes
elaborados por um dos nossos principais membros, o Dr. Anton Von Freund para o estabelecimento, em
Budapeste, de um centro para estudo analítico e tratamento malograram, como resultado das convulsões
políticas que se seguiram logo depois, e da morte prematura do seu autor insubstituível. Em data ulterior
algumas de suas idéias foram postas em execução por Max Eitingon, que em 1920 fundou uma clínica
psicanalítica em Berlim. Durante o breve período do domínio bolchevique na Hungria,Ferenczi ainda foi
capaz de levar a cabo um curso bem-sucedido de estudos como representante oficial da psicanálise na
Universidade de Budapeste. Após a guerra nossos adversários tiveram o prazer de anunciar que os fatos
haviam produzido um argumento conclusivo contra a validade das teses de análise. As neuroses de
guerra, disseram eles, haviam provado que os fatores sexuais eram desnecessários à etiologia de
distúrbios neuróticos. Mas seu triunfo foi frívolo e prematuro, pois, por um lado, ninguém tinha sido capaz
de efetuar uma análise completa de um caso de neurose de guerra, de modo que, de fato, não se
conhecia ao certo absolutamente nada quanto à motivação deles e nenhuma conclusão podia ser inferida
dessa incerteza: ao passo que, por outro lado, a psicanálise de há muito havia chegado ao conceito do
narcisismo e das neuroses narcísicas, nas quais a libido do paciente está vinculada ao seu próprio ego,
em vez de vinculada a um objeto. Portanto, embora em outras ocasiões se tivesse feito a acusação
contra a psicanálise de haver ela efetuado uma ampliação injustificável do conceito de sexualidade, esse
crime, quando se tornou conveniente para fins controvertidos, foi esquecido e ficamos mais uma vez
presos ao significado mais estreito do termo.
Se se deixar de lado o período catártico preliminar, a história da psicanálise enquadra-se, do meu
ponto de vista, em duas fases. Na primeira dessas fiquei sozinho e tive de fazer eu mesmo todo trabalho:
isso ocorreu de 1895-6 até 1906 ou 1907. Na segunda fase, que durou desde então até o presente
momento, quando uma grave doença me adverte do fim que se aproxima, posso pensar com espírito
tranqüilo na cessação de meus próprios labores.Por esse mesmo motivo, contudo, é-me impossível neste
Estudo Autobiográfico tratar tão plenamente do progresso da psicanálise durante a segunda fase como o
fiz com sua gradativa ascensão durante a primeira, que dizia respeito apenas à minha própria atividade.
Julgo que devo apenas ter a justificativa de mencionar aqui essas novas descobertas nas quais ainda
desempenhei um papel proeminente, em particular, portanto, aquelas feitas na esfera do narcisismo, da
teoria dos instintos, e da aplicação da psicanálise às psicoses.
Devo começar dizendo que a crescente experiência revelava cada vez mais claramente que o
complexo edipiano era o núcleo da neurose. Era ao mesmo tempo o clímax da vida sexual infantil e o
ponto de junção do qual todos os seus desenvolvimentos ulteriores provieram. Mas em caso afirmativo,
não era mais possível esperar que a análise descobrisse um fator que era específico na etiologia das
neuroses. Deve ser verdade, como Jung expressou tão bem nos primeiros dias em que ainda era
analista, que as neuroses não possuem conteúdo peculiar algum que pertença exclusivamente a elas,
mas que os neuróticos sucumbem às mesmas dificuldades que são superadas com êxito por pessoas
normais. Essa descoberta estava muito longe de ser um desapontamento. Estava em completa harmonia
com outra: que a psicologia profunda revelada pela psicanálise era de fato a psicologia da mente normal.
Nosso caminho tinha sido como o da química: as grandes diferenças qualitativas entre substâncias eram
remetidas a variações quantitativas nas proporções em que os mesmos elementos eram combinados.
No complexo edipiano viu-se que a libido estava ligada à imagem das figuras dos pais. Antes,
porém, houve um período no qual não havia tais objetos. Seguiu-se a partir desse fato o conceito (de
fundamental importância para a teoria da libido) de um estado no qual a libido do indivíduo preenchia seu
próprio ego e tinha este por seu objeto. Esse estado poderia ser denominado de narcisismo ou amor
próprio. A reflexão de um momento demonstrava que esse estado nunca cessa completamente. Durante
toda a vida do objeto seu ego permanece como o grande reservatório de sua libido, do qual as catexias
objetais são transmitidas e no qual a libido pode refluir novamente a partir dos objetos. Assim, a libido
narcísica está sendo constantemente transformada em libido objetal, e vice-versa. Um excelente exemplo
da extensão até a qual essa transformação pode ir é proporcionado pelo estado de estar apaixonado,
quer de uma maneira sexual, quer sublimada, que vai ao ponto de envolver um sacrifício do eu (self). Ao
passo que até agora, ao considerar-se o processo de repressão, somente se dispensou atenção ao que
foi reprimido, essas idéias tornaram possível formar uma estimativa correta das forças de repressão
também. Fora dito que a repressão era posta em ação pelos instintos de autopreservação que atuam no
ego (os ‘instintos do ego’) e que fazia com que ela se relacionasse com os instintos libidinais. Mas visto
que os instintos de autopreservação foram então reconhecidos como também sendo de natureza libidinal,
como sendo libido narcísica, o processo de repressão foi encarado como um processo que ocorre dentro
da própria libido; a libido narcísica opunha-se à libido objetal, o interesse da autopredefendia-se contra as
exigências do amor objetal, e portanto contra as exigências da sexualidade no sentido mais estreito
também.
Não há necessidade mais premente na psicologia do que de uma teoria dos instintos firmemente
alicerçada, sobre a qual talvez então fosse possível formular outros pontos. Contudo, nada disto existe, e
a psicanálise é impelida a envidar esforços especulativos no sentido de tal teoria. Ela começou por traçar
um contraste entre os instintos do ego (os instintos da autopreservação, a fome) e os instintos libidinais (o
amor), mas depois o substituiu por um novo contraste entre a libido narcísica e a libido objetal. Isto
claramente não foi a última palavra sobre o assunto; pareceu que considerações biológicas tornaram
impossível continuar-se satisfeito com a existência de apenas uma única classe de instintos.
Nas obras de meus anos mais recentes (Além do Princípio do Prazer [1910g], Psicologia de
Grupo e a Análise do Ego [1921c] e O Ego e o Id [1923b]), dei livre rédea à inclinação, que reprimi por
tanto tempo, para a especulação, e também considerei uma nova solução do problema dos instintos.
Combinei os instintos para a autopreservação e para a preservação da espécie sob o conceito de Eros e
contrastei com ele um instinto de morte ou destruição que atua em silêncio. O instinto, em geral, é
considerado como uma espécie de elasticidade das coisas vivas, um impulso no sentido da restauração
que outrora existiu, mas que foi conduzida a um fim por alguma perturbação externa. Esse caráter
essencialmente conservador dos instintos é exemplificado pelos fenômenos da compulsão de repetição.
O quadro que a vida nos apresenta é o resultado da ação simultânea e mutuamente oposta de Eros e do
instinto de morte.
Resta ver se essa interpretação virá a ser útil. Embora surgisse do desejo de fixar algumas idéias
teóricas mais importantes da psicanálise, vai muito além da psicanálise. Já ouvi dizer várias vezes em
tom de desprezo que é impossível aceitar seriamente uma ciência cujos conceitos mais gerais se
ressentem de exatidão, como os da libido e do instinto na psicanálise. Mas essa censura repousa numa
concepção totalmente errônea dos fatos. Conceitos básicos claros e definições vivamente traçadas
somente são possíveis nas ciências mentais até o ponto em que as segundas procuram ajustar uma
região de fatos no arcabouço de um sistema lógico. Nas ciências naturais, das quais a psicologia é uma
delas, tais conceitos gerais nítidos são supérfluos e realidade impossíveis. A zoologia e a botânica não
partiram de definições corretas e suficientes de um animal e de uma planta; até hoje a biologia foi incapaz
de dar qualquer significado certo ao conceito da vida. A própria física, realmente, jamais teria feito
qualquer progresso se tivesse tido de esperar até que os seus conceitos de matéria, força, gravitação, e
assim por diante, houvessem alcançado o grau conveniente de clareza e precisão. As idéias básicas ou
os conceitos mais gerais em qualquer das disciplinas da ciência sempre ficam determinados no início e
somente são explicados, para começar, mediante referência ao domínio dos fenômenos de que se
originaram; é somente por meio de uma análise progressiva do material de observação que podem ser
tornados claros e podem encontrar um significado significativo e consistente. Sempre julguei grave
injustiça que as pessoas se tenham recusado a tratar a psicanálise como qualquer outra ciência. Essa
recusa encontrou expressão no levantamento das mais obstinadas objeções. A psicanálise era
constantemente censurada pela sua falta de completamento e insuficiência; embora seja claro que uma
ciência baseada na observação não tem nenhuma outra alternativa senão elaborar seus achados de
forma fragmentária e solucionar seus problemas passo a passo. Além disso, quando me esforcei por
obter para a função sexual o reconhecimento que por tanto tempo fora negado a ela, a teoria
psicanalítica foi tachada de ‘pansexualismo’. E quando dei ênfase à importância, até então desprezada,
do papel desempenhado pelas impressões acidentais dos primeiros anos da juventude, foi-me dito que a
psicanálise negava os fatores constitucionais e hereditários - coisa que jamais sonhei em fazer. Era um
caso de contradição a qualquer preço e por quaisquer métodos.
Eu já fizera tentativas, em fases mais antigas do meu trabalho, para chegar a alguns pontos de
vista mais gerais com base na observação psicanalítica. Em um curto ensaio, ‘Formulações sobre os
Dois Princípios do Funcionamento Mental’[1911b], chamei a atenção (e não havia, naturalmente, nada de
original nisso) para o domínio do princípio de prazer-desprazer na vida mental e para o seu deslocamento
pelo que é denominado de princípio de realidade. Posteriormente [em 1915] fiz uma tentativa para
produzir uma ‘Metapsicologia’. Com isso eu queria dizer um método de abordagem de acordo com o qual
todo processo mental é considerado em relação com três coordenadas, as quais eu descrevi como
dinâmica, topográfica e econômica, respectivamente; e isso me pareceu representar a maior meta que a
psicologia poderia alcançar. A tentativa não passou de uma obra incompleta; após escrever dois ou três
artigos - ‘Os Instintos e suas Vicissitudes’ [1915c], ‘Repressão’ [1915d], ‘O Inconsciente’ [1915e], ‘Luto e
Melancolia’ [1917e] etc. - fiz uma interrupção, talvez acertadamente, visto que o tempo para afirmações
dessa espécie ainda não havia chegado. Em meus mais recentes trabalhos especulativos entreguei-me à
tarefa de dissecar nosso aparelho mental, com base no ponto de vista analítico dos fatos patológicos, e o
dividi em um ego, um id e um superego. O superego é o herdeiro do complexo edipiano e representa os
padrões éticos da humanidade.
Não gostaria de dar a impressão de que durante esse último período de meu trabalho voltei as
costas à observação de pacientes e me entreguei inteiramente à especulação. Ao contrário, sempre
fiquei no mais íntimo contato com o material analítico e jamais deixei de trabalhar em pontos detalhados
de importância clínica ou técnica. Mesmo quando me afastei da observação, evitei cuidadosamente
qualquer contato com a filosofia propriamente dita. Essa evitação foi grandemente facilitada pela
incapacidade constitucional. Sempre me mostrei receptivo às idéias de G. T. Fechner e segui esse
pensador em muitos pontos importantes. O alto grau em que a psicanálise coincide com a filosofia de
Schopenhauer - ele não somente afirma o domínio das emoções e a suprema importância da
sexualidade, mas também estava até mesmo cônscio do mecanismo da repressão - não deve ser
remetida à minha familiaridade com seus ensinamentos. Li Schopenhauer muito tarde em minha vida.
Nietzsche, outro filósofo cujas conjecturas e intuições amiúde concordam, da forma mais surpreendente,
com os laboriosos achados da psicanálise, por muito tempo foi evitado por mim, justamente por isso
mesmo; eu estava menos preocupado com a questão da prioridade do que em manter minha mente
desimpedida.
As neuroses foram o primeiro tema de análise e por muito tempo constituíram o único ponto.
Nenhum analista podia duvidar que a clínica estava errada por isolar esses distúrbios das psicoses e por
vinculá-los às doenças orgânicas nervosas. A teoria das neuroses pertence à psiquiatria, sendo
necessária uma introdução a ela. Parecia, contudo, que o estudo analítico das psicoses é impraticável
devido à sua falta de resultados terapêuticos. Os pacientes mentais, em geral, não têm a capacidade de
formar um transferência positiva, de modo que o principal instrumento da técnica analítica é inaplicável
aos mesmos. A transferência amiúde não se acha tão inteiramente ausente, mas pode ser utilizada até
certo ponto, havendo a análise alcançado inegáveis êxitos com depressões cíclicas, ligeiras modificações
paranóides e esquizofrenias parciais. Pelo menos tem constituído benefício para a ciência o fato de que
em muitos casos o diagnóstico possa oscilar por tempo bastante longo entre o assumir a presença de
uma psiconeurose ou de uma demência precoce, pois as tentativas terapêuticas iniciadas em tais casos
resultaram em valiosas descobertas antes que tivessem de ser interrompidas. Mas a principal
consideração nesse sentido é que muitas coisas que nas neuroses tiveram de ser buscadas nas
profundidades são encontradas nas psicoses da superfície, visíveis a todos. Por esse motivo, os
melhores temas para a demonstração de muitas asserções da análise são proporcionados pela clínica
psiquiátrica. Assim, estava destinado a acontecer, dentro de pouco tempo, que a análise encontrasse seu
caminho até os objetos da observação psiquiátrica. Muito cedo fui capaz (1896) de estabelecer em um
caso de demência paranóide a presença dos mesmos fatores etiológicos e dos mesmos complexos
emocionais que nas neuroses. Jung [1907] explicou alguns dos estereótipos mais enigmáticos em
dementes pondo-os em relação com históricos das vidas de pacientes; Bleuer [1906] demonstrou a
existência em várias psicoses de mecanismos como aqueles que a análise havia descoberto em
neuróticos. Desde então os analistas jamais reduziam seus esforços no sentido de chegarem a uma
compreensão das psicoses. Especialmente desde que se tornou possível trabalhar com o conceito de
narcisismo, conseguiram, ora aqui, ora ali, ter uma visão além da barreira. O máximo, sem dúvida, foi
alcançado por Abraham [1912] em sua elucidação das melancolias. É verdade que nesse campo todos
os nossos conhecimentos ainda não se transformaram em poder terapêutico, mas a simples vitória
teórica não deve ser desprezada, e podemos concentrar-nos em esperar pela sua aplicação prática. Em
última análise, mesmo os psiquiatras não podem resistir à força convincente de seu próprio material
clínico. No momento, a psiquiatria alemã vem passando por uma espécie de ‘penetração pacífica’ por
pontos de vista analíticos. Embora declarem continuamente que jamais serão psicanalistas, que não
pertencem à escola ‘ortodoxa’ nem concordam com seus exageros,e em particular que não crêem no
predomínio do fator sexual, a maioria dos estudiosos mais jovens lança mão de uma peça ou outra da
teoria analítica e a aplica a seu próprio modo ao material. Todos os indícios apontam para a proximidade
de posteriores desenvolvimentos na mesma direção.
VI
Agora contemplo a distância as reações sintomáticas que estão acompanhando a introdução da
psicanálise na França, que por tanto tempo se mostrou refratária. Assemelha-se à reprodução de algo
que já vivi antes, e contudo tem peculiaridades próprias. Objeções de incrível simplicidade são
levantadas, como a de que a sensibilidade francesa é ofendida pelo pedantismo e crueza da terminologia
psicanalítica. (Não se pode deixar de recordar o imortal Chevalier Riccaut de la Marlinière de Lessing.)
Um outro comentário tem ressonância mais séria (um professor de psicologia da Sorbonne não a julgava
abaixo dele): toda a forma de pensamento da psicanálise, assim declarou ele, é incompatível com o génie
latin. Aqui os aliados anglo-saxões da França, que contam como partidários da análise, são
explicitamente abandonados. Qualquer um, ouvindo a observação, suporia que a psicanálise tinha sido a
filha predileta do génie teutonique e havia ficado apegada ao seu seio desde o momento do nascimento.
Na França o interesse pela psicanálise começou entre os homens de letras. A fim de
compreender isso, deve-se ter em mente que, desde a época em que foi escrita A Interpretação de
Sonhos a psicanálise deixou de ser um assunto puramente médico. Entre seu surgimento na Alemanha e
na França está a história de suas numerosas aplicações a departamentos de literatura e estética, à
história das religiões e à pré-história, à mitologia, ao folclore, à educação, e assim por diante. Nenhuma
dessas coisas tem muito a ver com a medicina; de fato, é somente através da psicanálise que estão
ligadas a ela. Não me cabe, portanto, entrar em grandes detalhes quanto a elas nestas páginas. Não
posso, contudo, silenciar inteiramente sobre elas, pois, por um lado, são essenciais a uma apreciação
correta da natureza e do valor da psicanálise, e, por outro, comprometi-me, afinal de contas, a fazer um
relato da obra principal da minha vida. Os primórdios da maioria dessas aplicações da psicanálise serão
encontrados em minhas obras. Aqui e ali segui um pouco a trilha a fim de gratificar meus interesses não
médicos. Posteriormente,outros (não somente médicos, mas também especialistas nos vários campos)
seguiram as minhas pegadas e penetraram a fundo nos diferentes temas. Mas visto que meu programa
me limita a mencionar minha própria parcela nessas aplicações da psicanálise, posso apenas apresentar
um quadro bem inadequado de sua extensão e importância.
Grande número de sugestões me ocorreu a partir do complexo de Édipo, cuja ubiqüidade
gradativamente comecei a compreender. A escolha do poeta, ou sua invenção, de um assunto tão terrível
parecia enigmática, assim como o efeito esmagador de seu tratamento dramático, e a natureza geral de
tais tragédias do destino. Mas tudo isso se tornou inteligível quando se compreendeu que uma lei
universal da vida mental havia sido captada aqui em todo seu significado emocional. O destino e o
oráculo nada mais eram do que materializações de uma necessidade interna; e o fato de o herói pecar
sem seu conhecimento e contra suas intenções era evidentemente uma depressão certa da natureza
inconsciente de suas tendências criminosas. A partir da compreensão dessa tragédia do destino só
restava um passo para compreender uma tregédia de caráter - Hamlet, objeto de admiração por trezentos
anos, sem que seu significado tivesse sido descoberto ou os motivos de seu autor adivinhados. Mal
poderia haver a possibilidade de que essa criação neurótica do poeta viesse a malograr, como seus
inúmeros companheiros da vida real, sobre o complexo de Édipo, pois Hamlet viu-se defrontado com a
tarefa de tirar vingança de outro pelos dois feitos que são o tema dos desejos de Édipo; e diante daquela
tarefa seu braço ficou paralisado pelo seu próprio obscuro sentimento de culpa. Shakespeare escreveu
Hamlet logo após a morte do pai. As sugestões feitas por mim para a análise dessa tragédia foram
plenamente elaboradas depois por Ernest Jones [1910]. E o mesmo exemplo foi posteriormente utilizado
por Otto Rank como o ponto de partida para sua investigação da escolha de material feita por
dramaturgos. Em seu grande volume sobre o tema do incesto (Rank, 1912) ele foi capaz de revelar como
com tanta freqüência escritores têm tomado por assunto os temas de situação de Édipo e traçado, nas
diferentes literaturas do mundo, a maneira pela qual o material tem sido transformado, modificado e
suavizado.
Era tentador prosseguir dali uma tentativa de análise da criação poética e artística em geral. O
domínio da imaginação logo foi visto como uma ‘reserva’ feita durante a penosa transição do princípio de
prazer para o princípio de realidade a fim de proporcionar um substituto para as satisfações instintuais
que tinham de ser abandonadas na vida real. O artista, como o neurótico, se afastara de uma realidade
insatisfatória para esse mundo da imaginação; mas, diferentemente do neurótico, sabia encontrar o
caminho de volta daquela e mais uma vez conseguir um firme apoio na realidade. Suas criações, obras
de arte, eram as satisfações imaginárias de desejos inconscientes, da mesma forma que os sonhos; e,
como estes, eram da natureza de conciliações, visto que também eram forçados a evitar qualquer conflito
aberto com as forças de repressão. Mas diferiam dos produtos a-sociais, narcísicos do sonhar, na medida
em que eram calculados para despertar interesse compreensivo em outras pessoas, e eram capazes de
evocar e satisfazer aos mesmos impulsos inconscientes repletos de desejos também nelas. Além disso,
faziam uso do prazer percentual da beleza formal como o que chamei de um ‘abono de incentivo’. O que
a psicanálise era capaz de fazer era tomar das inter-relações entre as impressões da vida do artista, suas
experiências fortuitas e suas obras, e a partir delas interpretar a constituição [mental] dele e os impulsos
instintuais em ação nela - isto é, aquela parte dele que ele partilhava com todos os homens. Com esse
objetivo em vista, por exemplo, fiz de Leonardo da Vinci o tema de um estudo [1910c], que sebaseia
numa única lembrança da infância relacionado por ele e que viso principalmente a explicar seu quadro de
‘Sant’Ana com a madona e o menino’. Desde então meus amigos e meus alunos têm empreendido
numerosas análises de artistas e suas obras. Não parece que a fruição de uma obra de arte seja
estragada pelo conhecimento auferido de tal análise. O leigo talvez possa esperar demais da análise
nesse sentido, pois deve-se admitir que ela não lança luz alguma sobre os dois problemas que
provavelmente mais lhe interessam. Ela nada pode fazer quanto à elucidação da natureza do dom
artístico, nem pode explicar os meios pelos quais o artista trabalha - a técnica artística.
Fui capaz de demonstrar por um conto de W. Jensen intitulado Gradiva [1907a], o qual não
possui qualquer mérito específico por si mesmo, que os sonhos inventados podem ser interpretados da
mesma forma que os reais e que os mecanismos inconscientes familiares a nós na ‘elaboração onírica’
são assim também atuantes nos processos dos escritos imaginativos. Meu livro sobre Jokes and their
Relation to the Unconscious [1905c] foi um tema secundário proveniente diretamente de A Interpretação
de Sonhos. O único amigo meu interessado naquela época em meu trabalho observou-me que minhas
interpretações de sonhos muitas vezes o impressionavam como sendo chistes. A fim de lançar alguma
luz sobre essa impressão, comecei a pesquisar chistes e verifiquei que sua essência estava nos métodos
técnicos neles empregados, e que esses eram os mesmos que os meios utilizados na ‘elaboração
onírica’ - isto é, condensação, deslocamento, a representação de uma coisa pelo seu oposto ou por algo
pequeno, e assim por diante. Isso conduziu a uma indagação econômica de origem do alto grau de
prazer obtido ao ouvir-se um chiste. E a isso a resposta foi que tal se devia à suspensão momentânea do
dispêndio de energia na maturidade da repressão, devido à atração exercida pelo oferecimento de um
abono de prazer (prazer preliminar).
Eu próprio atribuí um valor mais elevado a minhas contribuições à psicologia da religião, que
começaram com o estabelecimento de marcante similitude entre as práticas religiosas ou ritual (1907b).
Sem ainda compreender as ligações mais profundas, descrevi a neurose obsessiva como uma religião
particular distorcida e a religião como uma espécie de neurose obsessiva universal. Posteriormente, em
1912, a indicação convincente de Jung das analogias de amplas conseqüências entre os produtos
mentais dos neuróticos e dos povos primitivos levou-me a voltar minha atenção paraaquele assunto. Em
quatro ensaios, enfeixados num livro com o título de Totem e tabu [1912-13], mostrei que o horror do
incesto era ainda mais acentuado entre as raças primitivas do que entre as civilizadas e dera lugar a
medidas muito especiais de defesa contra ele. Examinei as relações entre as proibições tabus (a forma
mais antiga na qual as restrições morais fazem seu surgimento) e a ambivalência emocional, e descobri
sob o esquema primitivo do universo conhecido como ‘animismo’ o princípio da superestimativa da
importância da realidade psíquica - a crença ‘na onipotência dos pensamentos’ - que está na raiz da
magia também. Desenvolvi a comparação com a neurose obsessiva em todos os pontos, e mostrei
quantos dos postulados da vida mental primitiva ainda estão em vigor nessa notável doença. Antes de
tudo, todavia, vi-me atraído pelo totemismo, o primeiro sistema de organização nas tribos primitivas, um
sistema no qual os inícios da ordem social estão unidos com uma religião rudimentar e com o domínio
implacável de um pequeno número de proibições tabus. O ser reverenciado é, em última análise, sempre
um animal, do qual o clã também pode reivindicar ser descendente. Muito indícios apontavam para a
conclusão de que toda raça, mesmo a mais altamente desenvolvida, havia outrora passado pela fase do
totemismo.
As principais fontes literárias de meus estudos nesse campo foram as conhecidas obras de J. G.
Frazer (Totemism and Exogamy e The Golden Bough), um filão de valiosos fatos e opiniões. Mas Frazer
pouco realizou no sentido de elucidar os problemas do totemismo: ele várias vezes alterara
fundamentalmente seus pontos de vista sobre o assunto, e os outros etnólogos e pré-historiadores
parecem estar em igual incerteza e discordância. Meu ponto de partida foi a impressionante
correspondência entre as duas ordenações tabus do totemismo (não matar o totem e não ter relações
sexuais com qualquer mulher do mesmo clã do totem) e os dois elementos do complexo de Édipo (livrarse do pai e tomar a mãe como esposa). Vi-me, portanto, tentado a equacionar o animal-totem com o pai;
e, de fato, os próprios povos primitivos fazem isso explicitamente honrando-o como o ancestral do clã. A
seguir vieram em meu auxílio dois fatos da psicanálise, uma feliz observação de uma criança feita por
Ferenczi [1929a], que me permitiu referir-me a um ‘retorno infantil do totemismo’, e a análise de fobias
animais iniciais nas crianças, que tantas vezes revelaram que o animal era um substituto do pai, um
substituto para o qual o medo ao pai, oriundo do complexo de Édipo, foradeslocado. Não me faltava
muito para reconhecer o assassinato do pai como o núcleo do totemismo e o ponto de partida na
formação da religião.
Esse elemento que faltava foi suprido quando me familiarizei com a obra de W. Robertson Smith,
The Religion of the Semites. Seu autor (um homem de suma capacidade intelectual que era tanto médico
como perito em pesquisas bíblicas) introduziu a chamada ‘refeição totem’ como parte essencial da
religião totêmica. Uma vez por ano o animal totem, que em outras épocas era considerado como
sagrado, era solenemente abatido na presença de todos os membros do clã, devorado e então objeto de
lamentações. O pesar era seguido de um grande festival. Quando levei ainda mais em conta a conjectura
de Darwin de que os homens originalmente viviam em hordas, cada um sob o domínio de um único
macho poderoso, violento e ciumento, surgiu diante de mim, de todos esses componentes, a seguinte
hipótese ou, melhor dizendo, visão. O pai da horda primitiva, visto que era um déspota absoluto,
apoderara-se para si mesmo de todas as mulheres; seus filhos, sendo-lhe perigosos como rivais, tinham
sido mortos ou afugentados. Um dia, contudo, os filhos se reuniram e se aliaram para dominar, matar e
devorar o pai, que fora seu inimigo mas também seu ideal. Após o feito foram incapazes de assumir sua
herança, visto que se atrapalhavam mutuamente. Sob a influência do fracasso e do remorso aprenderam
a chegar a um acordo entre si; agruparam-se num clã de irmãos, mediante o auxílio dos ditames do
totemismo, que visavam impedir a repetição de tal feito, e em conjunto passaram a abrir mão da posse
das mulheres por cuja causa haviam matado o pai. Foram então impelidos a encontrar mulheres
estranhas, sendo esta a origem da exogamia que se acha tão estreitamente vinculada ao totemismo. A
refeição totem era festival que comemorava o temível feito que decorria do sentimento de culpa do
homem (ou ‘pecado original’) e que foi começo, ao mesmo tempo, da organização social, da religião e de
restrições éticas.
Ora, se supusermos que tal possibilidade foi um fato histórico ou não, ela traz a formação da
religião para o círculo do complexo do pai e a baseia na ambivalência que domina esse complexo. Depois
que o animal totem deixou de servir como substituto para ele, o pai primitivo, ao mesmo tempo temido e
odiado, reverenciado e invejado, tornou-se o protótipo do próprio Deus. A rebeldia do filho e sua afeição
pelo pai lutavam uma contra a outra através de uma constante sucessão de conciliações, que
procuravam, por um lado, reparar o ato do parricídio e, por outro, consolidar as vantagens que
ocasionara. Esse ponto de vista da religião lança uma luz particularmente clara sobre a base psicológica
do cristianismo, no qual, como sabemos, a cerimônia da refeição totem ainda sobrevive com apenas um
pouco dedistorção, sob a forma de comunhão. Gostaria explicitamente de mencionar que essa última
observação não foi feita por mim, mas se encontra nas obras de Robertson Smith e Frazer.
Theodor Reik e G. Róheim, o etnólogo, seguiram a linha do raciocínio que desenvolvi em Totem
e Tabu e, numa série de importantes trabalhos, ampliaram-na, aprofundaram-na ou corrigiram-na. Eu
próprio voltei a ela mais de uma vez, no curso de minhas investigações do ‘sentimento de culpa
inconsciente’ (que também desempenha papel muito importante entre os motivos do sofrimento
neurótico) e em minhas tentativas para formar uma vinculação mais estreita entre a psicologia social e a
psicologia do indivíduo. Além disso, fiz uso da idéia de uma herança arcaica proveniente da época da
‘horda primitiva’ do desenvolvimento da humanidade ao explicar a suscetibilidade à hipnose.
Tenho tomado pouca parte direta em outras aplicações da psicanálise, embora sejam de
interesse geral. É somente um passo das fantasias dos neuróticos individuais para as criações
imaginosas de grupos e povos, como as encontramos em mitos, lendas e contos de fadas. A mitologia
tornou-se o domínio especial do Otto Rank; a interpretação dos mitos, sua ligação com os complexos
inconscientes familiares da primeira infância, a substituição das explanações astrais por uma descoberta
dos motivos humanos, tudo isto em grande medida devido aos seus esforças analíticos. O tema do
simbolismo, também, encontrou muitos estudiosos entre meus seguidores. O simbolismo trouxe para a
psicanálise muitos inimigos; muitos indagadores com mentes indevidamente prosaicas jamais foram
capazes de perdoar a esta o reconhecimento do simbolismo, que decorreu da interpretação dos sonhos.
Mas a análise não tem culpa da descoberta do simbolismo, pois de há muito fora conhecida em outros
domínios do pensamento ( tais como o folclore, lendas e mitos) e neles desempenha papel ainda maior
do que na ‘linguagem dos sonhos’.
Eu próprio em nada contribuí para a aplicação da análise à educação. Era natural, entretanto,
que as descobertas analíticas devessem atrair atenção de educadores e fazê-los ver os problemas delas
sob uma nova luz. O Dr. Oskar Pfister pastor protestante de Zurique, desbravou o caminho, como
incansável pioneiro, seguindo essa trilha, e não achou que a prática da análise era incompatível com o
fato de ele conservar sua religião, embora fosse verdadeque tal ocorresse de forma sublimada. Entre
muitos outros que trabalharam ao lado dele posso mencionar Frau Dr. Hug-Hellmuth e o Dr. S. Bernfeld,
ambos de Viena. A aplicação da análise à educação profilática de crianças saudáveis e à correção
daquelas que, embora na realidade não fossem neuróticas, se desviaram do curso normal de
desenvolvimento, levou a uma conseqüência que é de importância prática. Não é mais possível restringir
a pratica da psicanálise a médicos e dela excluir os leigos. De fato, um médico que não tenha passado
por uma formação especial é, apesar do seu diploma, um leigo em análise, e alguém que não seja
médico mas que tenha sido adequadamente formado pode, com referência ocasional a um médico, levar
a efeito o tratamento analítico não somente de crianças mas também de neuróticos.
Por um processo de desenvolvimento contra o qual teria sido inútil lutar, o próprio termo
‘psicanálise’ tornou-se ambíguo. Embora fosse originalmente o nome de um método terapêutico
específico, agora também se tornou a denominação de uma ciência - a ciência dos processos mentais
inconscientes. Por si só, essa ciência é poucas vezes capaz de lidar com um problema de maneira
completa, mas parece fadada a prestar valiosa ajuda nos mais variados campos do conhecimento. A
esfera de aplicação da psicanálise estende-se até a da psicologia, com a qual forma um complemento do
maior significado.
Lançando um olhar retrospectivo, portanto, ao mosaico que são labores da minha vida, posso
dizer que comecei muitas vezes e joguei fora muitas sugestões. Algo surgirá deles no futuro, embora eu
mesmo não possa dizer se será muito ou pouco. Posso, contudo, expressar a esperança de que abri um
caminho para importante progresso em nossos conhecimentos.
PÓS-ESCRITO (1935)
O organizador desta série de estudos autobiográficos não considerou, que eu saiba, a
possibilidade de que após certo lapso de tempo uma continuação pudesse ser escrita a qualquer um
deles, sendo possível que isso tenha ocorrido somente no caso presente. Estou empreendendo a tarefa
visto que meu editor norte-americano deseja publicar o pequeno trabalho numa nova edição. Ele veio a
lume pela primeira vez nos Estados Unidos em 1927 (editado por Brenato), sob o título de Um Estudo
Autobiográfico, mas foi levianamente lançado no mesmo volume como outro ensaio meu que deu seu
título, O Problema de Análises Leigas, a todo o livro, obscurecendo assim o presente trabalho.
Dois temas ocupam essas páginas: a história da minha vida e a história da psicanálise. Elas se
acham intimamente entrelaçadas. Esse Estudo Autobiográfico mostra como a psicanálise veio a ser todo
o conteúdo de minha vida e com razão presume que minhas experiências pessoais não são de qualquer
interesse ao se traçar um paralelo de minhas relações com aquela ciência.
Pouco antes de haver escrito esse estudo, parecia que minha vida logo chegaria ao fim pelo
retorno de uma doença maligna; mas a perícia cirúrgica salvou-me em 1923 e fui capaz de continuar com
minha vida e meu trabalho, embora não ficasse mais imune à dor. No período de mais de dez anos que
então transcorreu, jamais abandonei meu trabalho analítico e meus escritos - como se prova pela
conclusão do décimo-segundo volume da edição alemã de minhas obras completas. Mas eu próprio acho
que se verificou importante mudança. Fios que no curso do meu desenvolvimento se haviam enredado
começavam então a separar-se; interesses que eu adquirira num estádio mais avançado da minha vida
ficaram para trás, enquanto os mais antigos e originais se tornaram proeminentes mais uma vez. É
verdade que nessa última década levei a cabo partes importantes de meu trabalho analítico, tais como a
revisão do problema da ansiedade em meu livro Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926d) ou a simples
explicação do ‘fetichismo’ sexual que fui capaz de fazer um ano depois (1927e). Não obstante, seria
verdade dizer que, desde que formulei minha hipótese de existência de duas classes de instintos (Eros e
o instinto da morte) e desde que propus uma divisão da personalidademental em um ego, um superego e
um id (1923b), não prestei outras contribuições decisivas à psicanálise: o que tenho escrito sobre o
assunto desde então tem sido ou dispensável ou logo teria sido proporcionado por outrem. Essa
circunstância está ligada com uma alteração em mim mesmo, com o que poderia ser descrito como uma
fase de desenvolvimento regressivo. Meu interesse, após fazer um détour de uma vida inteira pelas
ciências naturais, pela medicina e pela psicoterapia, voltou-se para os problemas culturais que há muito
me haviam fascinado, quando eu era um jovem quase sem idade suficiente para pensar. No próprio
clímax do meu trabalho psicanalítico, em 1912, já tentara, em Totem e Tabu, fazer uso dos achados
recém-descobertos da análise a fim de investigar as origens da religião e da moralidade. Levei então
esse trabalho mais um passo à frente em dois ensaios ulteriores, O futuro de uma Ilusão (1927c) e O
Mal-Estar na Civilização (1930a).Percebi ainda mais claramente que os fatos da história, as interações
entre a natureza humana, o desenvolvimento cultural e os precipitados das experiências primitivas (cujo
exemplo mais proeminente é a religião) não passam de um reflexo dos conflitos dinâmicos entre o ego, o
id e o superego que a psicanálise estuda no indivíduo - são os mesmíssimos processos repetidos numa
fase mais ampla. Em O Futuro de uma Ilusão exprimi uma avaliação essencialmente negativa da religião.
Depois, encontrei uma fórmula que lhe fazia melhor justiça: embora admitindo que sua força reside na
verdade que ela contém, mostrei que a verdade não era uma verdade material mas histórica. [1939a,
Ensaio III, Parte II (G).]
Esses estudos, os quais, embora tendo origem na psicanálise, se estendem muito além dela,
talvez tenham despertado maior simpatia por parte do público do que a própria psicanálise. Podem ter
desempenhado certo papel na criação da ilusão efêmera de que eu me encontrava entre os escritores
aos quais uma grande nação como a Alemanha estava pronta a ouvir. Thomas Mann, um dos
reconhecidos porta-vozes do povo alemão, encontrou um lugar para mim na história do pensamento
moderno. Pouco depois minha filha Anna, atuando como minha procuradora, recebeu uma homenagem
cívica na Rathaus de Frankfurt-am-Main, ocasião em que me foi conferido o Prêmio Goethe de 1930. Isso
foi o clímax de minha vida como cidadão. Pouco depois as fronteiras do nosso país se estreitaram e a
nação não quis mais saber deE neste ponto seja-me permitido interromper estas notas autobiográficas. O
público não tem o direito de saber mais sobre meus assuntos pessoais - minhas lutas, meus
desapontamentos e meus êxitos. Seja como for, tenho sido mais acessível e franco em alguns dos meus
escritos (tais como A Interpretação de Sonhos e The Psychopathology of Everyday Life) do que as
pessoas que descrevem suas vidas em geral o são para seus contemporâneos ou para a posteridade.
Poucos agradecimentos recebi nesse sentido e não posso recomendar a ninguém que siga meu
exemplo.
Devo acrescentar mais algumas palavras à história da psicanálise durante a última década. Não
pode haver mais dúvida alguma de que ela continuará; comprovou sua capacidade de sobreviver e de
desenvolver-se tanto como um ramo do conhecimento quanto como um método terapêutico. O número
de seus partidários (organizadores na Associação Psicanalítica Internacional) aumentou de maneira
considerável. Além de grupos locais mais antigos (em Viena, Berlim, Budapeste, Londres, Holanda, Suíça
e Rússia) a partir de então se constituíram sociedades em Paris e Calcutá, duas no Japão, várias nos
Estados Unidos e, em data bem recente, uma em Jerusalém, outra na África do Sul e duas na
Escandinávia. Com seus próprios recursos essas sociedades locais apóiam (ou estão em vias de formar)
institutos de formação, nos quais se ministra instrução na prática da psicanálise de conformidade com um
plano uniforme, e clínicas para pacientes externos, nas quais experimentados analistas, bem como
alunos, dão tratamento gratuito a pacientes de recursos limitados. De dois em dois anos os membros da
Associação Psicanalítica Internacional realizam um congresso no qual se apresentam trabalhos
científicos e se solucionam questões de administração. O décimo-terceiro desses congressos (aos quais
não posso mais comparecer) foi realizado em Lucerna, em 1934. De um núcleo de interesses comuns a
todos os membros da Associação, seus trabalhos se irradiam em muitas direções diferentes. alguns dão
grande ênfase ao esclarecimento e aprofundamento dos nossos conhecimentos de psicologia, ao passo
que outros se interessam por manter-se em contato com a medicina e a psiquiatria. Do ponto de vista
prático, alguns analistas atribuíram-se a tarefa de fazer com que a psicanálise seja reconhecida nas
universidades e incluída no currículo médico, ao passo que outros se contentam em permanecer fora
dessas instituições, não permitindo que a psicanálise seja menos importante no campo da educação do
que no da medicina. Ocorre de quando em quando que um profissional da análiseverifique estar isolado
em uma tentativa de enfatizar algum ponto único dos achados ou pontos de vista da psicanálise, à custa
de todos os demais. Não obstante, a impressão total é satisfatória - de trabalho científico sério executado
em alto nível.
INIBIÇÕES, SINTOMAS E ANSIEDADE(1926 [1925])
INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS
HEMMUNG, SYMPTON UND ANGST
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1926 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 136 Pp.
1928 G.S., 11, 23-115.
1931 Neurosenlehre und Technik, 205-99.
1948 G.W., 14, 113-205.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
Inhibition, Symptom and Anxiety
1927 Stamford, Conn.: Instituto Psicanalítico. vi + 103 Pp. (Trad. supervisionada por L.
Pierce Clark; pref. de S. Ferenczi.)
Inhibitions, Symptoms and Anxiety
1935-6 Psychoanal. Quart., 4 (4), 616-25; 5 (1), 1-28; (2) 261-79; (3) 415-43. (Trad. de H.
A. Bunker.)
The Problem of Anxiety
1936 Nova Iorque: Psychoanalytic Quartely Press and W. W. Norton. vii + 165 Pp.
(Reimpressão da anterior sob a forma de volume.)
Inhibitions, Symptoms and Anxiety
1936 Londres: Hogarth Press e Instituto de Psicanálise. 179 Pp. (Trad. de Alix Strachey.)
Um resumo do capítulo I do original apareceu na Neue Freie Presse de Viena, a 21 de fevereiro
de 1926. Parte da primeira tradução norte-americana foi reimpressa nos Archives of Psychoanalysis, 1
(1927), 461-521. Todas as três traduções foram autorizadas por Freud e, como ressalta Ernest Jones
(1957, 139-40), os tradutores das duas últimas prepararam seus trabalhos simultaneamente e ignorando
inteiramente as atividades um do outro.
A presente tradução é uma versão consideravelmente modificada da publicada em Londres em
1936.Sabemos por Ernest Jones que este livro foi escrito em julho de 1925 e revisto em dezembro do
mesmo ano, tendo vindo a lume na terceira semana de fevereiro do ano seguinte.
Os tópicos por ele tratados abrangem vasto campo, havendo indícios de Freud ter encontrado
inusitada dificuldade em unificar o trabalho. Isto é revelado, por exemplo, na forma como o mesmo
assunto surge para exame em mais de um ponto em termos muito semelhantes, na necessidade em que
Freud se viu de ordenar grande número de questões isoladas em seus ‘Adendos’, e mesmo no próprio
título do livro. Não obstante, é verdade que - apesar de tais importantes problemas secundários, como as
diferentes classes de resistência, a distinção entre repressão e defesa, e as relações entre ansiedade,
dor e luto - o problema da ansiedade constitui seu principal tema. Um exame da relação apresentada no
Apêndice B ([1]) será suficiente para demonstrar como com tanta freqüência ele estava presente na
mente de Freud do começo ao fim de seus estudos psicológicos. Embora sobre certos aspectos do
assunto suas opiniões sofressem pequena modificação, sobre outros, conforme ele nos relata nestas
páginas, elas foram consideravelmente modificadas. Talvez seja de interesse delinear, pelo menos
toscamente, a história dessas alterações em dois ou três dos mais importantes temas em jogo.
(a) A ANSIEDADE COMO LIBIDO TRANSFORMADA
Foi no curso da investigação das neuroses ‘atuais’ que Freud pela primeira vez se defrontou com
o problema da ansiedade, sendo que suas primeiras apreciações sobre ela serão encontradas em seu
primeiro artigo sobre a neurose de angústia (1895b) e no memorando acerca do assunto que enviou a
Fliess pouco depois, provavelmente no verão de 1894 (Freud, 1950a, Rascunho E). Naquela época ele
ainda se encontrava em grande parte sob a influência de seus estudos neurológicos e imerso em sua
tentativa de expressar os dados da psicologia em termos fisiológicos. Em particular, seguindo Fechner,
aceitara como postulado fundamental o ‘princípio de constância’, de acordo com o qual havia uma
tendência inerente ao sistema nervoso de reduzir, ou pelo menos de manter constante, o grau de
excitação nele presente. Quando, portanto, fez a descoberta clínica de que em casos de neurose de
angústia sempre era possível descobrir certa interferência com a descarga de tensão sexual, foi-lhe
natural concluir que a excitação acumuladaescapava sob a forma transformada de ansiedade. Ele
considerou isso como um processo puramente físico sem quaisquer determinantes psicológicos.
Desde o início a ansiedade que ocorria em fobias ou em neuroses obsessivas levantava uma
complicação, pois aqui a presença dos fatos psicológicos não podia ser excluída. Mas, no tocante ao
surgimento da ansiedade, a explicação continuava a mesma. Nesses casos - nas psiconeuroses - a
razão do acúmulo de excitação não descarregada era psicológica: repressão. Mas o que se seguiu foi o
mesmo que nas neuroses ‘atuais’: a excitação acumulada (ou libido) foi transformada diretamente em
ansiedade.
Algumas citações indicarão com que lealdade Freud manteve esse ponto de vista. No ‘Rascunho
E’ (c. 1894), mencionado acima, escreveu ele: ‘A ansiedade surge por uma transformação da tensão
acumulada’. Em A Interpretação de Sonhos (1900a): ‘A ansiedade é um impulso libidinal que tem sua
origem no inconsciente e é inibido pelo pré-consciente’. (Edição Standard Brasileira, Vol. IV, Pp. 358-60,
IMAGO Editora, 1972.) Em Gradiva (1907a): ‘A Ansiedade em sonhos de ansiedade, como a ansiedade
neurótica em geral,... decorre da libido pelo processo de repressão’. (Standard Ed., 9, 60-1.) No artigo
metapsicológico sobre ‘Repressão’ (1915d): Após a repressão ‘a parcela quantitativa [do impulso
instintual - isto é, sua energia] não desapareceu, mas foi transformada em ansiedade’. (Edição Standard
Brasileira, Vol. VIV, p. 179, IMAGO Editora, 1974.) Finalmente, já em 1920, Freud acrescentou numa nota
de rodapé à quarta edição dos Três Ensaios: ‘Um dos resultados mais importantes da pesquisa
psicanalítica é essa descoberta de que a ansiedade neurótica se origina da libido, que é produto de uma
transformação desta e que, assim, se relaciona com ela da mesma forma que o vinagre com o vinho’.
(Edição Standard Brasileira, Vol. VIII, p. 231, IMAGO Editora, 1972.) É curioso observar, contudo, que
numa fase bem inicial Freud parece haver sido assaltado por dúvidas sobre o assunto. Numa carta a
Fliess de 14 de novembro de 1897 (Freud, 1950a, carta 75), ele observa, sem qualquer conexão
aparente com o restante do que vem escrevendo: ‘Resolvi, então, de agora por diante considerar como
fatores separados o que causa a libido e o que causa ansiedade’. Não se encontra em parte alguma
qualquer outra prova dessa retratação isolada. Na obra que temos diante de nós Freud desiste da teoria
que sustentara por tanto tempo. Ele não considerava mais a ansiedade como libido transformada, mas
como uma reação sobre um modelo específico a situações de perigo. Mas mesmo aqui ainda sustentava
[1] que era bem possível que no caso da neurose de angústia ‘o que encontra descarga na geração da
ansiedade é precisamente o excedente da libido não utilizada’. Essa última relíquia da antiga teoria iria
ser abadonada poucos anos depois.Num trecho perto dofinal de seu exame sobre ansiedade, na
Conferência XXXII de suas New Introductory Lectures (1933a), escreveu que também na neurose de
angústia o surgimento de ansiedade era uma reação a uma situação traumática: ‘não sustentaremos
mais que é a própria libido que se transformou em ansiedade em tais casos.’
(b) ANSIEDADE REALÍSTICA E NEURÓTICA
Apesar de sua teoria de que a ansiedade neurótica era simplesmente libido transformada, Freud
desde o início se deu ao trabalho de insistir na estreita relação entre a ansiedade devida a perigos
externos e a perigos instintuais. Em seu primeiro artigo sobre a neurose de angústia (1895b) escreveu: ‘A
psique é dominada pelo afeto de ansiedade se sentir que é incapaz de lidar por meio de uma reação
apropriada com uma tarefa (um perigo) que se aproxima de fora. Nas neuroses é dominada pela
ansiedade se notar que é incapaz de atenuar uma excitação (sexual) que tenha surgido de dentro. Assim
se comporta, como se estivesse projetando essa excitação para fora. O fato [ansiedade normal] e a
neurose correspondente se acham em firme relação um com a outra: o primeiro é a reação a uma
excitação exógena e a segunda a uma reação endógena análoga.’
Essa posição, especialmente em relação com fobias, foi aprimorada depois dos escritos de Freud
- por exemplo, nos artigos metapsicológicos sobre ‘Repressão’ (1915d) e ‘O Inconsciente’ (1915e),
Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, Pp. 178-81, 182-4 e 209-11, IMAGO Editora, 1974, e na conferência
XXV das Conferências Introdutórias. Mas foi difícil conservar a uniformidade da ansiedade nos dois tipos
de caso enquanto se insistia na derivação direta da ansiedade a partir da libido quanto às neuroses
‘atuais’. Com o abandono desse ponto de vista a nova distinção entre ansiedade automática e ansiedade
como um sinal toda a situação foi esclarecida e deixou de haver qualquer motivo para se ver uma
diferença genérica entre ansiedade neurótica e realística.
(c) A SITUAÇÃO TRAUMÁTICA E AS SITUAÇÕES DE PERIGO
As dificuldades deste livro aumentam quando se observa que a distinção entre a ansiedade como
um sinal do perigo de abordagem desse trauma, embora já aflorada em vários pontos anteriores, só é
confirmadano último capítulo. (Um relato ulterior e mais breve, apresentado na Conferência XXXII de New
Introductory Lectures, talvez seja mais fácil de ser apreendido.)
O determinante fundamental da ansiedade automática é a ocorrência de uma situação
traumática; e a essência disto é uma experiência de desamparo por parte do ego face de um acúmulo de
excitação, quer de origem externa quer interna, com que não se pode lidar ([1],[2]e [3]). A ansiedade
‘como um sinal’ é a resposta do ego à ameaça da ocorrência de uma situação traumática. Tal ameaça
constitui uma situação de perigo. Os perigos internos modificam-se com o período de vida,ver em ([1]e
[2]), mas possuem uma característica comum, a saber, envolver a separação ou perda de um objeto
amado, ou uma perda de seu amor,ver em ([1]) - uma perda ou separação que poderá de várias
maneiras conduzir a um acúmulo de desejos insatisfatórios e dessa maneira a uma situação de
desamparo. Embora Freud não houvesse reunido antes todos esses fatores, cada um deles tem uma
longa história prévia.
A própria situação traumática é claramente o descendente direto do estado de tensão acumulada
e não descarregada dos primeiros escritos de Freud sobre a ansiedade. Alguns dos relatos da mesma,
aqui apresentados, podem ser citações de 1894 a 1895. Por exemplo, ‘sofrendo de uma dor que não
pára ou experimentando um acúmulo de necessidades instintuais que não podem conter satisfação’, na
[1], pode ser comparado com ‘um acúmulo psíquico de excitação... devido à descarga ficar retida’,
segundo o ‘Rascunho E’ (Freud, 1950a). Nesse período inicial as excitações acumuladas, é verdade,
eram julgadas quase invariavelmente libidinais, mas não de todo invariavelmente. Depois no mesmo
‘Rascunho E’ encontra-se uma frase que ressalta que a ansiedade pode ser ‘uma sensação de um
acúmulo de outro estímulo endógeno - o estímulo no sentido de respirar...; a ansiedade pode, portanto,
ser capaz de ser utilizada em relação com a tensão física acumulada em geral’. Além disso, no ‘Project’
de 1895 (Freud, 1950a, Parte I, Seção 1) Freud enumera as principais necessidades que dão lugar a
estímulos endógenos que exigem descarga - ‘fome, respiração e sexualidade’, e em trecho posterior
(Parte I, Seção 11) observa que em algumas condições essa descarga ‘exige uma alteração no mundo
externo (por exemplo, o suprimento de nutrição ou a proximidade do objeto sexual)’ que ‘em fases iniciais
o organismo humano é incapaz de alcançar’. A fim de ocasionar isto necessita-se de ‘ajuda estranha’,
que a criança atrai pelos seus gritos. E aqui Freud expende comentários sobre o ‘desamparo original dos
seres humanos’. Existe uma referência semelhante na Parte III, Seção 1, da mesma obra, à necessidade
de ‘atrair a atenção de alguma personagem útil (que é, em geral, opróprio objeto desejado) para o anseio
e aflição da criança’. Esses trechos parecem ser uma indicação prematura da situação de desamparo
aqui descrita, ver em ([1] e [2]), em que a criança sente falta da mãe - situação que fora claramente
mencionada na nota de rodapé aos Três Ensaios (1950d) na qual Freud explicava a ansiedade de uma
criança no escuro como sendo devida à ‘ausência de alguém que amava’ (Edição Standard Brasileira,
Vol. VII, p. 231, IMAGO Editora, 1972).
Mas isso nos levou à questão dos vários perigos específicos que são capazes de precipitar uma
situação traumática em diferentes épocas da vida. Estes, em breves linhas são os seguintes: o
nascimento, a perda da mãe como um objeto, a perda do pênis, a perda do amor do objeto, a perda do
amor do superego. A questão do nascimento é tratada na seção seguinte e acabamos de mencionar
algumas primeiras referências à importância da separação da mãe. O perigo da castração com seus
efeitos devastadores constitui sem dúvida o mais familiar de todos esses perigos. Mas vale a pena
lembrar uma nota de rodapé acrescentada em 1923 ao caso clínico de ‘Little Hans’ (1909b), no qual
Freud reprova a aplicação da expressão ‘complexo de castração’ às outras espécies de separação que a
criança deve inevitavelmente experimentar (Standard Ed., 10, 8 n.) possivelmente podemos ver nessa
passagem um primeiro indício do conceito de ansiedade devido à separação que aqui se torna
proeminente. A ênfase dada ao perigo de perder o amor ao objeto amado é explicitamente relacionada
([1]) com as caracteristicas da sexualidade feminina, que só recentemente começaram a ocupar a mente
de Freud. Finalmente, o perigo de perder o amor do superego nos leva de volta aos problemas, já há
muito debatidos, do sentimento de culpa, que haviam sido reenunciados há pouco em O Ego e o Id
(1923b).
(d) A ANSIEDADE COMO UM SINAL
Conforme aplicada ao desprazer em geral, esta era uma noção muito antiga de Freud. Na Seção
6 da Parte II do “Project” póstumo de 1895 (Freud, 1950a) existe um relato de um mecanismo pelo qual o
ego restringe a geraçãode experiências dolorosas: ‘Dessa maneira, a liberação do desprazer fica
restringida em quantidade, e seu início atua como um sinal ao ego a fim de fixar uma defesa normal em
funcionamento.’ De maneira semelhante, em A Interpretação de Sonhos (1900a), Edição Standard
Brasileira, Vol. V, p. 641, IMAGO Editora, 1972, fundamenta-se que o pensar deve visar ‘restringir o
desenvolvimento do afeto na atividade do pensamento ao mínimo exigido para agir como sinal’. Em ‘O
Inconsciente’ (1915e), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, p. 210, IMAGO, 1974, a idéia já é aplicada à
ansiedade. Examinando o surgimento de ‘idéias substitutivas’ na fobia, escreve Freud: ‘A excitação de
qualquer ponto dessa estrutura externa, dada sua ligação com a idéia substitutiva, deve inevitavelmente
dar lugar a um ligeiro desenvolvimento da ansiedade; isto passa a ser utilizado como um sinal para
inibir... o progresso posterior do desenvolvimento da ansiedade.’ De maneira semelhante na Conferência
XXV das Conferências Introdutórias, o estado de ‘ansiosa expectativa’ é descrito em um ou dois pontos
como oferecendo um ‘sinal’ para impedir o irromper de grave ansiedade. A partir daí não se estava longe
da iluminadora exposição destas páginas. Pode-se observar que no presente trabalho também o conceito
é introduzido pela primeira vez como um sinal de ‘desprazer’,ver em ([1]) e só subseqüentemente como
de ‘ansiedade’.
(e) A ANSIEDADE E O NASCIMENTO
Resta a questão do que é que determina a forma pela qual a ansiedade se manifesta. Isto
também foi examinado por Freud em seus primeiros escritos. Para começar (sistematicamente com seu
ponto de vista da ansiedade como libido transformada) ele considerava o mais impressionante de seus
sintomas - a dispnéia e as palpitações - como elementos do ato da cópula, os quais, na ausência dos
meios normais de descarga da excitação, surgiam de forma isolada e exagerada. Esse relato será
encontrado no Rascunho E dos artigos de Fliess, mencionados acima, e que provavelmente datam de
junho de 1894, e no final da Seção III do primeiro artigo sobre neurose de angústia (1895b), sendo
repetido no caso clínico de ‘Dora’ (1950e) [1901], onde Freud escreveu: Afirmei, anos atrás, que a
dispnéia e as palpitações que ocorrem na histeria e na neurose da angústia são apenas fragmentos
soltos do ato de copulação.’ (Edição Standard Brasileira, Vol. VIII, p. 77, IMAGO Editora, 1972.) Não está
claro como tudo isto se ajustou aos pontos de vista de Freud quanto à expressão da emoções em geral.
Certamente parecem ter em última análise provindo de Darwin. Nos Estudos sobre a Histeria (1895d) ele
citouduas vezes o volume de Darwin sobre o assunto (Darwin, 1872), e na segunda ocasião recordou que
Darwin ensinara que a expressão das emoções ‘consiste em ações que originalmente possuíam um
significado e serviam a uma finalidade’ (Edição Standard Brasileira, Vol. II, p. 231, IMAGO Editora, 1974).
Num debate perante a Sociedade Psicanalítica de Viena em 1909, Freud, segundo Jones (1955, 494),
havia afirmado que ‘todo afeto... é apenas uma reminiscência de um fato’. Muito depois da Conferência
XXV das Conferências Introdutórias (1916-17), ele abordou esse ponto novamente e expressou a crença
de que o ‘núcleo’ de um fato é ‘a repetição de alguma experiência significativa específica’. Recordou
também a explicação que havia dado anteriormente sobre ataques histéricos (1909a, Standard Ed., 9,
232) como revivescências de fatos da infância, e acrescentou sua conclusão de que ‘um ataque histérico
pode ser parecido com um afeto individual recém-construído, e um afeto normal com a expressão de uma
histeria geral que se tornou uma herança’. Ele repete essa teoria, quase nos mesmos termos, na
presente obra,ver em ([1],[2],[3] e [4]).
Qualquer que seja o papel que essa teoria dos afetos tenha desempenhado na explicação
anterior de Freud quanto à forma assumida pela ansiedade, ela o desempenhou de maneira essencial em
sua nova explicação, a qual surgiu, aparentemente sem aviso, em uma nota de rodapé acrescentada à
segunda edição de A Interpretação de Sonhos (Edição Standard Brasileira, Vol. V, p. 428, IMAGO
Editora, 1972). No final de certa apreciação das fantasias sobre a vida no ventre, prosseguiu ele (e
imprimiu a frase em tipo espaçado): ‘Além disso, o ato de nascer é a primeira experiência de ansiedade,
sendo assim a fonte e o protótipo da sensação de ansiedade.’ A edição veio a lume em 1909, mas o
prefácio traz a data ‘Verão de 1908’. Uma possível pista para o súbito surgimento, naquela ocasião,
dessa idéia revolucionária encontra-se no fato de que Freud, não havia muito tempo, contribuíra com um
prefácio (datado de ‘Março de 1908’) para o livro de Stekel sobre estados de ansiedade (Freud, 1908f). O
prefácio, é verdade, não contém a mais leve idéia sobre a nova teoria, ao passo que o próprio livro de
Stekel parece explicitamente aceitar a teoria anterior de Freud sobre a vinculação entre a ansiedade e a
copulação. Não obstante, o interesse de Freud deve ter sido sem dúvida focalizado mais uma vez sobre o
problema, e pode ser que nesse ponto uma antiga lembrançapossa ter sido revivida em relação a um fato
descrito por ele posteriormente, no curso de sua apreciação da ansiedade nas Conferências
Introdutórias. Essa lembrança dizia respeito ao que se pretendia ser uma anedota cômica - que lhe fora
contada, quando era médico interno, por outro jovem colega - sobre como uma parteira havia declarado
existir uma ligação entre o nascimento e o estar assustado. A lembrança deve ter remontado a mais ou
menos 1884, embora Freud não pareça tê-la mencionado até essa conferência em 1917. Parece possível
que a lembrança tivesse sido de fato evocada pela sua leitura do livro de Stekel e que tenha provocado o
surgimento de nova teoria em 1908. A partir daí, essa teoria jamais foi abandonada. Ele lhe atribuiu
especial proeminência no primeiro dos seus artigos sobre a psicologia do amor (1910h), Edição Standard
Brasileira, Vol. XI, p. 156, IMAGO Editora, 1970. Embora não fosse publicado senão em 1910, sabemos
que seus pontos principais foram apresentados à Sociedade Psicanalítica de Viena em maio de 1909;
enquanto em novembro do mesmo ano as atas da sociedade (citadas por Jones, 1955, 494) informam ter
ele observado que as crianças começam sua experiência de ansiedade no próprio ato do nascimento.
Após a conferência de 1917, o assunto permaneceu inexplorado durante vários anos, até
reaparecer subitamente no fim do antepenúltimo parágrafo de O Ego e o Id (1923b), onde Freud se
referia ao nascimento como ‘o primeiro grande estado de ansiedade’. Isto nos leva à época da publicação
do livro de Rank, The Trauma of Birth. A relação cronológica entre essa frase de Freud e a obra de Rank
não é inteiramente clara. O Ego e o Id veio a lume em abril de 1923. A página de rosto do livro de Rank
traz a data ‘1924’, mas em sua última página encontram-se as palavras ‘escrito em abril de 1923’; e a
dedicatória declara que o livro foi ‘presenteado’ a Freud em 6 de maio de 1923 (aniversário de Freud).
Embora Ernest Jones (1957, 60) afirme especificamente que Freud não o lera antes de sua publicação
em dezembro de 1923, ele estava cônscio dos delineamentos gerais das idéias de Rank já em setembro
de 1922 (ibid., 61), e isso sem dúvida é bastante para explicar a referência ao nascimento em O Ego e o
Id.
O livro de Rank representou muito mais do que uma adoção da explicação de Freud da forma
assumida pela ansiedade. Argumentou ele que os ataques ulteriores de ansiedade eram tentativas de
‘ab-reagir’ o trauma do nascimento. Ele explicou todas as neuroses em moldes semelhantes,
destronando incidentalmente o complexo de Édipo, e propôs uma técnica terapêutica reformada, baseada
na superação do trauma do nascimento. As referências publicadas de Freud ao livro pareciam a princípio
favoráveis. Mas a presente obra revela uma inversão completa e final dessa opinião. Sua rejeição dos
pontos de vista de Rank, contudo, estimulou-o a uma reconsideração própria, e Inibições, Sintomas e
Ansiedade foi o resultado.
Trechos da primeira (1936) tradução londrina dessa obra foram incluídos em A General Selection
from the Works of Sigmund Freud (1937, 275-291), de Rickman.
INIBIÇÕES, SINTOMAS E ANSIEDADE
I
Na descrição das manifestações patológicas, o uso lingüístico permite-nos distinguir sintomas de
inibições, sem, contudo, atribuir-se grande importância à distinção. Na realidade, dificilmente poderíamos
pensar que valeria a pena diferenciar exatamente entre os dois, não fosse o fato de encontrarmos
moléstias nas quais observamos a presença de inibições mas não de sintomas, e ficamos curiosos para
saber a razão disso.
Os dois conceitos não se encontram no mesmo plano. A inibição tem uma relação especial com a
função, não tendo necessariamente uma implicação patológica. Podemos muito bem denominar de
inibição a uma restrição normal de uma função. Um sintoma, por outro lado, realmente denota a presença
de algum processo patológico. Assim, uma inibição pode ser também um sintoma. O uso lingüístico,
portanto, emprega a palavra inibição quando há uma simples redução de função, e sintoma quando uma
função passou por alguma modificação inusitada ou quando uma nova manifestação surgiu desta. Muito
amiúde parece ser assunto bem arbitrário, quer ressaltemos o lado positivo de um processo patológico e
chamemos o seu resultado de sintoma, quer ressaltemos seu lado negativo e intitulemos seu resultado
de inibição. Mas tudo isso é realmente de pouco interesse e o problema, conforme o enunciamos, não
nos leva muito longe.
Visto que o conceito da inibição se acha tão intimamente associado com o da função, talvez
fosse valioso examinar as várias funções do ego com vistas a descobrir as formas que qualquer
perturbação dessas funções assume em cada uma das diferentes afecções neuróticas. Tomemos para
um estudo comparativo dessa natureza a função sexual e as do comer, da locomoção e do trabalho
profissional.
(a) A função sexual está sujeita a grande número de perturbações, a maioria das quais exibe as
características de inibições simples. Estas são classificadas em conjunto como impotência psíquica. O
desempenho normal da função sexual só pode ocorrer como resultado de um processo muito
complicado, podendo surgir distúrbios em qualquer ponto do mesmo. Nos homens as principais fases nas
quais a inibição ocorre são reveladas por: um afastamento da libido no próprio início do processo
(desprazer psíquico); ausência do preparo físico para ela (falta de ereção); abreviação do ato
sexual(ejaculatio praecox), ocorrência que pode igualmente ser considerada como um sintoma; uma
suspensão do ato antes de haver chegado à sua conclusão natural (ausência de ejaculação); ou o não
surgimento do resultado psíquico (falta da sensação de prazer no orgasmo). A partir da função sexual,
surgem outras perturbações que se tornam dependentes de condições especiais de natureza pervertida
ou fetichista.
Que existe uma relação entre a inibição e a ansiedade é algo evidente. Algumas inibições
obviamente representam o abandono de uma função porque sua prática produziria ansiedade. Muitas
mulheres manifestamente temem a função sexual. Classificamos essa ansiedade sob a histeria, do
mesmo modo como fazemos em relação ao sintoma defensivo da repulsa que, surgindo originalmente
como uma reação preterida à experiência de um ato sexual passivo, aparece depois, sempre que a idéia
de tal ato é apresentada. Além disso, muitos atos obsessivos vêm a ser medidas de precaução e de
segurança contra experiências sexuais, sendo assim de natureza fóbica.
Isto não é muito ilustrativo. Podemos apenas observar que as perturbações da função sexual são
acarretadas por grande variedade de meios. (1) A libido pode simplesmente ser afastada (isto parece
produzir, com a maior rapidez, o que consideramos uma inibição pura e simples); (2) a função pode ser
executada de forma menos perfeita; (3) pode ser prejudicada por ter condições ligadas a ela, ou
modificada pelo desvio para outras finalidades; (4) pode ser impedida por medidas de segurança; (5) se
não puder ser impedida desde o início, pode ser imediatamente interrompida pelo aparecimento da
ansiedade; e (6) se for, não obstante, levada a efeito, poderá haver uma subseqüente reação de protesto
contra ela e uma tentativa de desfazer o que foi feito.
(b) A função da nutrição é, com a maior freqüência, perturbada por uma falta de inclinação para
comer, acarretada por uma retirada da libido. Um aumento do desejo de comer também não constitui
coisa incomum. A compulsão para comer é atribuída ao medo de morrer de fome, mas isto é um assunto
pouco estudado. O sintoma de vômitos é conhecido por nós como uma defesa histérica contra o comer. A
recusa de comer devido à ansiedade é concomitante de estados psicóticos (delírios de ser envenenado).
(c) Em algumas condições neuróticas a locomoção é inibida por uma indisposição para andar ou
por uma fraqueza no caminhar. Na histeria haverá uma paralisia do aparelho motor, ou essa função
especial do aparelho será abolida (abasia). Especialmente características são as dificuldades maiores
que surgem na locomoção devido à introdução de certas estipulações cuja inobservância resulta em
ansiedade (fobia).(d) Na inibição no trabalho - fato com o qual tantas vezes temos de lidar como um
sintoma isolado em nosso trabalho terapêutico - o indivíduo sente uma diminuição do seu prazer nele, ou
se torna menos capaz de realizá-lo bem, ou então experimenta certas reações no tocante ao mesmo,
como a fadiga, a tontura ou o enjôo, se for obrigado a prosseguir com o mesmo. Se for histérico, terá que
desistir do trabalho devido ao aparecimento de paralisias orgânicas e funcionais que lhe tornam
impossível continuar. Se for um neurótico obsessivo, será perpetuamente distraído de seu trabalho ou
perderá tempo com o mesmo pela intromissão de delongas e repetições.
Nosso estudo pode ser estendido também a outras funções; mas não haveria nada mais a
aprender agindo-se dessa forma, pois não devemos penetrar abaixo da superfície das manifestações a
nós apresentadas. Passemos então a descrever a inibição de forma a deixar muito pouca dúvida sobre o
que se quer dizer com ela, e digamos que a inibição é a expressão de uma restrição de uma função do
ego. Uma restrição dessa espécie pode ter causas muito diferentes. Alguns dos mecanismos em jogo
nessa renúncia à função são bem conhecidos por nós, como o é certa finalidade geral que a rege.
Essa finalidade é mais facilmente reconhecível nas inibições específicas. A análise revela que
quando atividades como tocar piano, escrever ou mesmo andar ficam sujeitas a inibições neuróticas, isso
ocorre porque os órgãos físicos postos em ação - os dedos ou as pernas - se tornaram erotizados de
forma muito acentuada. Descobriu-se como ato geral que a função do ego de um órgão fica prejudicada
se a sua erotogeneidade - sua significação sexual - for aumentada. Comporta-se, se me permitem uma
analogia um tanto absurda, como uma empregada doméstica que se recusa a continuar cozinhando
porque o patrão iniciou um caso amoroso com ela. Logo que o escrever, que faz com que um líquido flua
de um tubo para um pedaço de papel branco, assume o significado da copulação, ou logo que o andar se
torna um substituto simbólico do pisotear o corpo da mãe terra, tanto o escrever como o andar são
paralisados porque representam a realização de um ato sexual proibido. O ego renuncia a essas funções,
que se acham dentro de sua esfera, a fim de não ter de adotar novas medidas de repressão - a fim de
evitar entrar em conflito com o id.
Existem também claramente inibições que servem à finalidade de autopunição. Este é amiúde o
caso em inibições de atividades profissionais. Não se permite ao ego levar a efeito essas atividades,
porque trariam êxito e lucro, e isso são coisas que o severo superego proibiu. Assim o ego desiste
também delas, a fim de evitar entrar em conflito com o superego.As inibições mais generalizadas do ego
obedecem a um mecanismo diferente de natureza simples. Quando o ego se vê envolvido em uma tarefa
psíquica particularmente difícil, como ocorre no luto, ou quando se verifica uma tremenda supressão de
afeto, ou quando um fluxo contínuo de fantasias sexuais tem de ser mantido sob controle, ele perde uma
quantidade tão grande de energia à sua disposição que tem de reduzir o dispêndio da mesma em muitos
pontos ao mesmo tempo. Fica na posição de um especulador cujo dinheiro ficou retido em suas várias
empresas. Deparou-se-me por acaso um exemplo instrutivo dessa espécie de inibição geral intensa,
embora efêmera. O paciente, um neurótico obsessivo, era dominado por uma fadiga paralisante que
durava um ou mais dias, sempre que acontecia algo que evidentemente devia tê-lo enfurecido. Temos
aqui um ponto a partir do qual deve ser possível chegar a uma compreensão da condição geral que
caracteriza estados de depressão, inclusive a mais grave de suas formas, a melancolia.
No tocante às inibições, podemos então dizer, em conclusão, que são restrições da funções do
ego que foram ou impostas como medida de precaução ou acarretadas como resultado de um
empobrecimento de energia; e podemos ver sem dificuldade em que sentido uma inibição difere de um
sintoma, porquanto um sintoma não pode mais ser descrito como um processo que ocorre dentro do ego
ou que atua sobre ele.
II
As principais características dos sintomas já foram estudadas há muito e, espero, estabelecidas
sem discussão. Um sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação instintual que permaneceu em
estado jacente; é uma conseqüência do processo de repressão. A repressão se processa a partir do ego
quando este - pode ser por ordem do superego - se recusa a associar-se com uma catexia instintual que
foi provocada no id. O ego é capaz, por meio de repressão, de conservar a idéia que é o veículo do
impulso repreensível a partir do tornar-se consciente. A análise revela que a idéia amiúde persiste como
uma formação inconsciente.
Até agora tudo se afigura claro, mas logo nos defrontaremos com dificuldades que até o
momento não foram superadas. Até este momento nosso relato do que ocorre na repressão deu grande
ênfase a esse ponto de exclusão a partir da consciência. Mas deixou outros pontos passíveis de
incerteza. Uma questão que surgiu: o que aconteceu ao impulso instintual que fora ativado no id e que
procurou satisfação? A reposta foi indireta. Devido ao processo de repressão, o prazer que se teria
esperado da satisfação fora transformado em desprazer. Mas vimo-nos então em face do problema de
como a satisfação de um instinto poderia produzir desprazer. Todo o assunto pode ser esclarecido,
penso, se nos ativermos ao enunciado definitivo de que, como resultado da repressão, o pretendido curso
do processo excitatório no id não ocorre de modo algum; o ego consegue inibi-lo ou defleti-lo. Se este for
o caso, o problema de ‘transformação de afeto’ sob a repressão desaparece. Ao mesmo tempo, esse
ponto de vista implica uma concessão ao ego para que ele possa exercer uma influência muito ampla
sobre os processos no id, e teremos de descobrir de que forma ele é capaz de desenvolver tais poderes
surpreendentes.Parece-me que o ego obtém essa influência em virtude de suas vinculações íntimas com
o sistema perceptual - vinculações que, como sabemos, constituem sua essência e proporcionam a base
de sua diferenciação do id. A função desse sistema, o qual denominamos de Pcpt-Cs., está ligada à
manifestação da consciência. Ela recebe excitações não somente de fora, mas também de dentro, e se
esforça, por meio das sensações de prazer e desprazer que a alcançam a partir desses pontos, para
orientar o curso dos fatos mentais de conformidade com o princípio de prazer. Estamos muito inclinados
a pensar no ego como impotente contra o id; mas, quando se opõe a um processo instintual no id, ele
tem apenas de dar um ‘sinal de desprazer‘ a fim de alcançar seu objetivo com a ajuda daquela instituição
quase onipotente, o princípio de prazer. Para considerarmos essa situação em si por um momento,
podemos ilustrá-la mediante um exemplo de outro campo. Imaginemos um país no qual uma pequena
facção é contrária a uma medida proposta, cuja aprovação contaria com o apoio das massas. Essa
minoria obtém o controle da imprensa e com o auxílio desta manipula o árbitro supremo, a ‘opinião
pública’, conseguindo assim que a medida não seja aprovada.
Mas essa explicação provoca novos problemas. De onde provém a energia empregada para
transmitir o sinal de desprazer? Aqui podemos ser auxiliados pela idéia de que uma defesa contra um
processo interno importuno será plasmada sobre a defesa adotada contra um estímulo externo, e de que
o ego debela os perigos internos e externos, de igual modo, ao longo de linhas idênticas. No caso de
perigo externo, o organismo recorre a tentativas de fuga. A primeira coisa que ele faz é retirar a catexia
de percepção do objeto perigoso; posteriormente, descobre que constitui um plano melhor realizar
movimentos musculares de tal natureza que tornem a percepção do objeto perigoso impossível, mesmo
na ausência de qualquer recusa para percebê-lo - que é um plano melhor afastar-se da esfera de perigo.
A repressão é um equivalente a essa tentativa de fuga. O caso retira sua catexia (pré-consciente) do
representante instintual que deve ser reprimido e utiliza essa catexia para a finalidade de liberar o
desprazer (ansiedade). O problema de como surge a ansiedade em relação com a repressão pode não
ser simples, mas podemoslegitimamente apegar-nos com firmeza à idéia de que o ego é a sede real da
ansiedade, e abandonar nosso ponto de vista anterior de que a energia catexial do impulso reprimido é
automaticamente transformada em ansiedade. Se eu me expressasse antes no segundo sentido, estaria
dando uma descrição fenomenológica e não um relato metapsicológico do que ocorria.
Isto nos leva a outra questão: como é possível, de um ponto de vista econômico, que um mero
processo de retirada e descarga, como a retirada de uma catexia do ego pré-consciente, produza
desprazer ou ansiedade, visto que, de acordo com nossas suposições, o desprazer e a ansiedade podem
surgir somente como resultado de um aumento de catexia? A resposta é que essa seqüência causal não
deve ser explicada de um ponto de vista econômico. A ansiedade não é criada novamente na repressão;
é reproduzida como um estado afetivo de conformidade com uma imagem mnêmica já existente. Se
formos adiante e indagarmos da origem dessa ansiedade - e dos afetos em geral - estaremos deixando o
domínio da psicologia pura e penetrando na fronteira da fisiologia. Os estados afetivos têm-se
incorporado na mente como precipitados de experiências traumáticas primevas, e quando ocorre uma
situação semelhante são revividos como símbolos mnêmicos. Não penso haver laborado em erro ao
aproximá-los do ataque histérico mais recente e individualmente adquirido, e em considerá-los como seus
protótipos normais. No homem e nos animais superiores pareceria que o ato do nascimento, como a
primeira experiência de ansiedade do indivíduo, imprimiu ao afeto de ansiedade certas formas
características de expressão. Mas, embora reconhecendo essa vinculação, não devemos dar-lhe ênfase
indevida nem desprezar o fato de que a necessidade biológica exige que uma situação de perigo deva ter
um símbolo afetivo, de modo que um símbolo dessa espécie teria em qualquer caso de ser criado. Além
disso, não penso que estejamos justificados ao presumir que, sempre que haja uma irrupção de
ansiedade, algo como uma reprodução da situação de nascimento se passe na mente. Nem mesmo é
certo que os ataques histéricos, embora originalmente fossem reproduções traumáticas dessa natureza,
conservem esse caráter de modo permanente.
Como revelei em outra parte, a maioria da repressões com as quais temos de lidar em nosso
trabalho terapêutico são casos de pressão posterior.Pressupõem a atuação de repressões primitivas
mais antigas que exercem atração sobre a situação mais recente. Muitíssimo pouco se sabe até agora
sobre os antecedentes e as fases preliminares da repressão. Há o perigo de superestimar o papel
desempenhado na repressão pelo superego. Não podemos no momento dizer se seria o surgimento do
superego que proporciona a linha de demarcação entre a repressão primitiva e a pressão posterior. Seja
como for, as primeiras irrupções de ansiedade, que são de natureza muito intensa, ocorrem antes de o
superego tornar-se diferenciado. É altamente provável que as causas precipitantes imediatas das
repressões primitivas sejam fatores quantitativos, tais como uma força excessiva e o rompimento do
escudo protetor contra os estímulos.
Essa menção do escudo protetor provoca algo que nos relembra o fato de que a repressão
ocorre em duas situações diferentes - a saber, quando um impulso instintual indesejável é provocado por
certa percepção externa e quando surge internamente sem qualquer provocação. Voltaremos a essa
divergência mais adiante. Mas o escudo protetor existe apenas no tocante a estímulos externos, não
quanto a exigências instintuais internas.
Enquanto dirigirmos nossa atenção para a tentativa de fuga do ego, não chegaremos mais perto
do tema da formação de sintomas. Um sistema surge de um impulso instintual que foi prejudicialmente
afetado pela repressão. Se o ego, fazendo uso do sinal de desprazer, atingiu seu objetivo de suprimir
inteiramente o impulso instintual, nada saberemos sobre como isso aconteceu. Podemos apenas
descobrir algo a esse respeito pelos casos nos quais a repressão deve ser descrita como tendo, em
maior ou menor grau, falhado. Nesse caso a posição, falando em geral, é que o impulso instintual
encontrou um substituto apesar da repressão, mas um substituto muito mais reduzido, descolado e
inibido, e que não é mais reconhecível como uma satisfação. E, quando o impulso substitutivo é levado a
efeito, não há qualquer sensação de prazer; sua realização apresenta, ao contrário, a qualidade de uma
compulsão.
Ao rebaixar assim um processo de satisfação a um sintoma, a repressão exibe sua força sob
outro aspecto. O processo substitutivo é impedido, se possível, de encontrar descarga pela motilidade; e
mesmo se isso não puder ser feito, o processo é forçado a gastar-se ao efetuar alterações no próprio
corpo do indivíduo, não lhe sendo permitido girar em torno do mundo externo. Ele não deve ser
transformado em ação, pois, como sabemos, na repressão o ego está atuando sob a influência da
realidade externa e, portanto, impede o processo substitutivo de exercer qualquer efeito sobre aquela
realidade.
Do mesmo modo que o ego controla o caminho para a ação, controla o acesso à consciência. Na
repressão exerce sua força em ambas as direções,atuando de uma maneira sobre o próprio impulso
instintual e de outra sobre o representante [psíquico] desse impulso. A essa altura, cabe perguntar como
posso conciliar esse reconhecimento do poderio do ego com a descrição de sua posição que apresentei
em O Ego e o Id. Nesse livro esbocei um quadro de sua relação dependente com o id e o superego, e
revelei quão impotente e apreensivo ele era no tocante a ambos e com que esforço manteve sua exibição
de superioridade sobre eles. Esse ponto de vista repercutiu amplamente na literatura psicanalítica. Muitos
autores têm dado grande ênfase à fraqueza do ego em relação ao id e aos nossos elementos racionais
em face das forças demoníacas dentro de nós, e exibem forte tendência para transformarem o que eu
disse em pedra angular de uma Weltanschauung psicanalítica. Contudo, por certo o psicanalista, com
seus conhecimentos da forma como a repressão atua, deve, justamente ele, ser impedido de adotar um
ponto de vista tão extremo e unilateral.
Devo confessar que não sou de modo algum parcial quanto à construção de Weltanschauungen.
Tais atividades podem ser deixadas aos filósofos, que confessadamente acham impossível empreender
sua viagem pela vida sem um Baedeker* dessa espécie para proporcionar-lhes informações sobre todos
os assuntos. Aceitemos humildemente o desprezo com que nos olham, sobranceiros, do ponto de
observação de suas necessidades superiores. Mas visto que nós não podemos também abrir mão de
nosso orgulho narcísico, ficaremos reconfortados com o pensamento de que tais ‘Manuais para a Vida’
ficam logo desatualizados, de que é precisamente nosso trabalho míope, tacanho e insignificante que os
obriga a aparecer em novas edições, e de que até mesmo os mais atualizados deles nada mais são do
que tentativas para encontrar um substituto para o antigo, útil e todo-suficiente catecismo da Igreja.
Somente uma pesquisa paciente e perseverante, na qual tudo esteja subordinado à única exigência da
certeza, poderá gradativamente ocasionar uma transformação. O viajante surpreendido pela noite pode
cantar alto no escuro para negar seus próprios temores; mas, apesar de tudo isto, não enxergará mais
que um palmo adiante do nariz.
III
Voltando ao problema do ego. A contradição aparente deve-se ao fato de termos considerado as
abstrações de maneira por demais rígida e de termos atendido exclusivamente ora a um lado, ora a outro
daquilo que é de fato um complicado estado de coisas. Estávamos justificados, penso eu, em separar o
ego do id, pois há certas considerações que necessitam dessa medida. Por outro lado, o ego é idêntico
ao id, sendo apenas uma parte especialmente diferenciada do mesmo. Se considerarmos essa parte em
si mesma em contraposição ao todo, ou se houver ocorrido uma verdadeira divisão entre os dois, a
fragilidade do ego se torna evidente. Mas se o ego permanecer vinculado ao id e indistinguível dele,
então ele exibe a sua força. O mesmo se aplica à relação entre o ego e o superego. Em muitas situações
os dois se acham fundidos; e em geral só podemos distinguir um do outro quando há uma tensão ou
conflito entre eles. Na repressão, o fato decisivo é que o ego é uma organização e o id não. O ego é, na
realidade, a parte organizada do id. Estaríamos inteiramente errados se figurássemos o ego e o id como
dois campos opostos e se supuséssemos que, quando o ego tenta suprimir uma parte do id por meio de
repressão, o restante do id vai em socorro da parte que se acha em perigo e mede sua força com o ego.
Isto poderá amiúde ser o que acontece, mas por certo não é a situação inicial na repressão. Em geral, o
impulso inicial que irá ser reprimido permanece isolado. Embora o ato de repressão demonstre a força do
ego, em um ponto específico ele revela a impotência do ego e quão impenetráveis à influência são os
impulsos instintuais do id, pois o processo mental que se transformou em um sintoma devido à repressão
mantém agora sua existência fora da organização do ego e independentemente dele. Na realidade, não é
somente aquele processo, mas todos os seus derivados que usufruem, por assim dizer; desse mesmo
privilégio de extraterritorialidade; e sempre que entram em contato associativo com uma parte da
organização do ego, não é de modo algum certo que não atraiam essa parte para si próprio e assim se
ampliem às expensas do ego. Uma analogia com a qual de há muito estamos familiarizados comparou
um sintoma com um corpo estranho que vinha mantendo uma sucessão constante de estímulos e
reações no tecido no qual estava encravado. De fato ocorrealgumas vezes que a luta defensiva contra
um impulso instintual desagradável é eliminada com a formação de um sintoma. Até onde se pode
verificar, isto é freqüentemente possível na conversão histérica. Mas em geral o resultado é diferente. O
ato inicial da repressão é acompanhado por uma seqüência tediosa ou interminável na qual a luta contra
o impulso instintual se prolonga até uma luta contra o sintoma.
Nessa luta defensiva secundária o ego apresenta duas faces com expressões contraditórias. A
única linha de comportamento que ele adota decorre do fato de que sua própria natureza o obriga a fazer
o que deve ser considerado como uma tentativa de restauração ou de reconciliação. O ego é uma
organização. Baseia-se na manutenção do livre intercâmbio e da possibilidade de influência recípocra
entre todas as suas partes. Sua energia dessexualizada ainda revela traços de sua origem em seu
impulso para agregar-se e unificar-se, e essa necessidade de síntese torna-se mais acentuada à
proporção que a força do ego aumenta. Portanto, é natural que o ego deva tentar impedir que os
sintomas permaneçam isolados e alheios utilizando todos os métodos possíveis para agregá-los a si de
uma maneira ou de outra, e para incorporá-los em sua organização por meios desses vínculos. Como
sabemos, uma tendência dessa natureza já se acha atuante na próprio ato da formação de um sintoma.
Um exemplo clássico disto são aqueles sintomas histéricos que revelamos ser um meio termo entre a
necessidade de satisfação e a necessidade de punição. Tais sintomas participam do ego desde o início,
visto que atendem a uma exigência do superego, enquanto por outro lado representam posições
ocupadas pelo reprimido e pontos nos quais uma irrupção foi feita por ele até a organização do ego.
Constituem uma espécie de posto de fronteira com uma guarnição mista. (Se todos os sintomas
histéricos primários são estruturados nesses moldes, valeria a pena examiná-los muito cuidadosamente.)
O ego passa agora a comportar-se como se reconhecesse que o sintoma chegara para ficar e que a
única coisa a fazer era aceitar a situação de bom grado, e tirar dela o máximo proveito possível. Ele faz
uma adaptação ao sintoma - a essa peça do mundo interno que é estranha a ele - assim como
normalmente faz em relação ao mundo externo real. Ele sempre pode encontrar grande número de
oportunidades para fazer isto. A presença de um sintoma pode impor uma certa diminuição de
capacidade, e isto pode serexplorado para apaziguar alguma exigência da parte do superego ou para
recusar alguma reivindicação proveniente do mundo externo. Dessa forma, o sintoma gradativamente
vem a ser representante de interesses importantes; verifica-se útil na afirmação da posição do eu (self) e
se funde cada vez mais estreitamente com o ego, tornando-se cada vez mais indispensável a ele. Só
muito raramente é que o processo físico de ‘cura’ em torno de um corpo estranho segue um curso como
este. Há também o perigo de exagerar a importância de uma adaptação secundária dessa espécie a um
sintoma, e de afirmar que o ego criou o sintoma simplesmente a fim de fruir suas vantagens. Seria
igualmente verdadeiro dizer que um homem que perdera a perna na guerra fizera com que ela fosse
arrancada a tiros, de modo que ele pudesse daí por diante viver de sua pensão, sem ter de executar mais
nenhum trabalho.
Nas neuroses obsessivas e na paranóia, as formas que os sintomas assumem tornam-se muito
valiosas para o ego porque obtêm para este, não certas vantagens, mas uma satisfação narcísica sem a
qual, de outra forma poderia passar. Os sistemas que o neurótico obsessivo constrói lisonjeiam seu amor
próprio, fazendo-o sentir que ele é melhor que outras pessoas, porque é especialmente limpo ou
especialmente consciencioso. As construções delirantes do paranóico oferecem aos seus agudos
poderes perceptivos e imaginativos um campo de atividade que ele não poderia encontrar facilmente em
outra parte.
Tudo isto resulta no que nos é familiar como o ‘ganho (secundário) proveniente da doença’ que
se segue a uma neurose. Essa recuperação vem em ajuda do ego no seu esforço para incorporar o
sintoma, e aumenta a fixação deste último. Quando o analista tenta subseqüentemente ajudar o ego em
sua luta contra o sintoma, verifica que esses laços conciliatórios entre o ego e o sintoma atuam do lado
das resistências e que não são fáceis de afrouxar.
As duas linhas de comportamento que o ego adota em relação ao sintoma estão, de fato,
diretamente opostas uma à outra, pois a outra linha é de natureza menos amistosa, visto que continua na
direção da repressão. Não obstante o ego, assim parece, não pode ser acusado de incoerência. Sendo
de disposição pacífica, gostaria de incorporar o sintoma e torná-lo parte dele mesmo. É do próprio
sintoma que provém o mal, pois o sintoma, sendo o verdadeiro substituto e derivativo do impulso
reprimido, executa o papel do segundo; ele continuamente renova suas exigências de satisfação e
assimobriga o ego, por sua vez, a dar o sinal de desprazer e a colocar-se em uma posição de defesa.
A luta defensiva secundária contra o sintoma assume muitas formas. Trava-se em diferentes
campos e faz uso de uma variedade de métodos. Não estaremos em condições de dizer muito sobre ela
até que tenhamos feito uma indagação dos vários exemplos diferentes da formação de sintomas. Ao
procedermos dessa forma teremos oportunidade de penetrar no problema da ansiedade - problema que
de há muito avulta no segundo plano. O projeto mais sensato será começar pelos sintomas produzidos
pela neurose histérica, visto não estarmos ainda em posição de considerar as condições nas quais os
sintomas da neurose obsessiva, da paranóia e de outras neuroses são formados.
IV
Comecemos com uma fobia histérica infantil de animais - por exemplo, o caso do ‘Little Hans’
[1909b], cuja fobia por cavalos era indubitavelmente típica em todas as suas principais características. A
primeira coisa que se torna evidente é que em um caso concreto de doença neurótica o estado de coisas
é muito mais complexo do que se suporia enquanto se estivesse lidando com abstrações. Leva-se algum
tempo para encontrar-se orientação e para resolver qual é o impulso reprimido, que sintoma substitutivo
foi encontrado e onde está o motivo de repressão.
‘Little Hans’ recusava-se a sair à rua porque tinha medo de cavalos. Isto era a matéria-prima do
caso. Que parte disto constituía o sintoma? Era ele ter medo? Era sua escolha de um objeto para seu
temor? Era ter ele abandonado sua liberdade de movimento? Ou era mais de um desses fatores
combinados? Qual foi a satisfação a que ele renunciou? E por que teve de renunciar a ela?
A um primeiro vislumbre, somos tentados a responder que o caso não é assim tão obscuro. O
inexplicável medo de ‘Little Hans’ por cavalos era o sintoma e sua incapacidade de sair à rua era uma
inibição, uma restrição que o ego do menino impusera a si mesmo a fim de não despertar o sintoma de
ansiedade. O segundo ponto é claramente correto e no exame que se segue não me preocuparei mais
com essa inibição. Mas no tocante ao sintoma alegado, um conhecimento superficial do caso nem sequer
revela sua verdadeira formulação, pois uma investigação posterior indica que aquilo de que o menino
sofria não era um medo vago de cavalos, mas apreensão bem definida de que um cavalo ia mordê-lo.
Essa idéia, na realidade, esforçava-se por retirar-se da consciência e ser substituída por uma fobia
indefinida, na qual somente a ansiedade e seu objeto ainda apareciam. Talvez tenha sido essa idéia que
tenha constituído o núcleo do sintoma do ‘Little Hans’?
Não faremos qualquer progresso enquanto não tivermos passado em revista a situação psíquica
do menino como um todo, quando ela veio à luz no curso do tratamento analítico. Ele se encontrava, à
época, na atitude edipiana ciumenta e hostil em relação ao pai, a quem, não obstante - salvo até onde a
mãe dele era a causa de desavença -, amava ternamente. Aqui, então, temos um conflito devido à
ambivalência: um amor bem fundamentado e um ódio não menos justificável dirigidos para a mesmíssima
pessoa. A fobia de ‘Little Hans’ deve ter sido uma tentativa de solucionar esse conflito. Conflitos dessa
natureza devidos à ambivalência são muito freqüentes epodem ter outro resultado típico, no qual um dos
dois sentimentos conflitantes (em geral o da afeição) se torna imensamente intensificado e o outro
desaparece. O grau exagerado e o caráter compulsivo da afeição, por si sós, traem o fato de que não é a
única presente, mas está continuamente alerta para manter o sentimento oposto sob supressão,
permitindo-nos postular a atuação de um processo que denominamos de repressão por meio da
formação reativa (no ego). Casos como o do ‘Little Hans’ não revelam quaisquer vestígios de uma
formação reativa dessa natureza. Há formas claramente diferentes de saída de um conflito devido à
ambivalência.
Entrementes, fomos capazes de estabelecer outro ponto com certeza. O impulso instintual que
sofreu repressão em ‘Little Hans’ foi um impulso hostil contra o pai. A prova disto foi obtida na análise do
menino enquanto a idéia do cavalo que mordia estava sendo acompanhada. Ele vira um cavalo cair e
também vira um companheiro de brinquedo, com quem brincava de cavalo, cair e ferir-se. A análise
justificou a interferência de que ele tivera um impulso pleno de desejo de que o pai devia cair e ferir-se
como seu companheiro e o cavalo haviam feito. Além disso, sua atitude em relação à partida de alguém
em certa ocasião torna provável que o desejo de que o pai não atrapalhasse também encontrou
expressão menos hesitantes. Mas um desejo dessa espécie equivale a uma intenção de alguém
desvencilhar-se do pai - equivale ao impulso assassino do complexo de Édipo
Até agora não parece haver quaisquer elos de ligação entre o impulso instintual reprimido de
‘Little Hans’ e o substituto dele que suspeitamos devesse ser visto em sua fobia por cavalos.
Simplifiquemos sua situação psíquica, pondo de lado o fator infantil e a ambivalência. Imaginemos que
ele é um jovem criado que está apaixonado pela dona da casa e que recebeu certas provas de simpatia
desta. Ele odeia seu patrão, que é mais poderoso que ele, e gostaria de desembaraçar-se dele. Ser-lheia então evidentemente natural temer a vingança daquele e criar medo dele - da mesma forma ‘Little
Hans’ criou uma fobia por cavalos. Não podemos, portanto, descrever o medo que faz parte dessa fobia
como um sintoma. Se ‘Little Hans’, estando apaixonado pela mãe, mostrara medo do pai, não devemos
ter direito algum de dizer que ele tinha uma neurose ou fobia. Sua reação emocional teria sido
inteiramente compreensível. O que a transformou em uma neurose foi apenas uma coisa: a substituição
do pai por um cavalo. É esse deslocamento, portanto, que tem o direito de ser denominado de sintoma, e
que, incidentalmente, constitui o mecanismo alternativo que permite um conflito devido à ambivalência
ser solucionado sem o auxílio da formação reativa. [Cf.[1].] Tal deslocamento é tornado possível ou
facilitado na tenra idade de ‘Little Hans’ porque os traços inatos do pensamento totêmico podem ainda
ser facilmente revividos. As crianças ainda não reconhecem nem, seja como for, dão exagerada ênfase
ao abismo que separa os seres humanos do mundo animal. A seus olhos o homem adulto, o objeto de
seu medo e de sua admiração, ainda pertence à mesma categoria que o grande animal que possui tantos
atributos invejáveis, mas contra a qual elas foram advertidas porque ele pode tornar-se perigoso. Como
vemos, o conflito devido à ambivalência não é tratado em relação à única e mesma pessoa: é
contornado, por assim dizer, por um do par de impulsos conflitantes que são dirigidos para outra pessoa
como um objeto substitutivo.
Até agora tudo está claro. Mas a análise da fobia de ‘Hans’, tem sido um desapontamento
completo sob um aspecto. A distorção que constitui a formação de sintomas não foi aplicada ao
representante [psíquico] (o conteúdo ideativo) do impulso instintual que devia ser reprimido; foi aplicada a
um representante bem diferente e que só correspondia a uma reação ao instinto desagradável. Estaria
mais de acordo com nossas expectativas se ‘Little Hans’ tivesse desenvolvido, em vez de medo de
cavalos, uma inclinação para maltratá-los e espancá-los, ou se ele tivesse expressado em termos claros
o desejo de vê-los cair ou de serem feridos, ou mesmo de morrerem em convulsões (‘fazerem barulho
com os pés’). Algo dessa espécie de fato surgiu em sua análise, mas de forma alguma ocupava lugar de
relevo em sua neurose. E, o que é bastante curioso, se ele houvesse realmente produzido uma
hostilidade dessa natureza, não contra o pai, mas contra cavalos, como seu principal sintoma, não
devíamos ter dito que ele estava sofrendo de uma neurose. Deve haver algo de errado quer com nosso
ponto de vista da repressão, quer com nossa definição de um sintoma. Uma coisa, naturalmente, nos
impressiona de imediato; se ‘Little Hans’ realmente se houvesse comportado assim em relação aos
cavalos, isto significaria que a repressão não havia de forma alguma alterado o caráter de seu próprio
impulso instintual objetável e agressivo, mas somente o objeto para o qual estava dirigido.Sem dúvida,
existem casos nos quais isto é tudo o que faz a repressão. Contudo, mais do que isto aconteceu no
desenvolvimento da fobia de ‘Little Hans’ - o que pode ser percebido a partir de uma parte de outra
análise.
Como sabemos, ‘Little Hans’ alegava que aquilo que temia era que um cavalo o mordesse.
Algum tempo depois fui capaz de saber algo a respeito da origem de outra fobia a animais. Nesse caso o
animal temido era um lobo; ele também tinha o significado de um substituto do pai. Quando menino o
paciente em questão - um russo que eu só analisei quando ele contava vinte e tantos anos - tivera um
sonho (cujo significado foi revelado na análise) e, logo após isto, criara o temor de ser devorado por um
lobo, como os sete cabritos do conto de fadas. No caso de ‘Little Hans’ o fato comprovado de que o pai
costumava brincar de cavalo com ele sem dúvida determinou sua escolha de um cavalo como um animal
causador de ansiedade. Da mesma forma, parecia pelo menos muito provável que o pai do meu paciente
russo costumava, quando brincava com ele, fingir ser lobo e de brincadeira ameaçava devorá-lo. Desde
então deparou-se-me um terceiro exemplo. O paciente foi um jovem norte-americano que me procurou
para ser analisado. É bem verdade que ele não desenvolveu uma fobia a animais, mas é precisamente
por causa dessa omissão que seu caso ajuda a lançar luz sobre os outros dois. Quando criança ele fora
sexualmente excitado por uma fantástica história infantil, que lhe fora lida em voz alta, sobre um chefe
árabe que perseguia um ‘homem feito de especiarias’ a fim de comê-lo. O menino identificou-se com
essa pessoa comestível, tendo o chefe árabe sido facilmente reconhecível como um substituto do pai.
Essa fantasia formou o primeiro substrato de suas fantasias auto-eróticas.
A idéia de ser devorado pelo pai é típica do material infantil consagrado pelo tempo. Ela possui
paralelos familiares na mitologia (por exemplo, o mito de Cronos) e no reino animal. Contudo, apesar
dessa confirmação, a idéia nos é tão estranha que mal podemos dar crédito a sua existência em uma
criança. Tampouco sabemos se realmente significa o que parece dizer, e não podemos compreender
como pode ter-se tornado o tema de uma fobia. A observação analítica proporciona a informação
necessária. Revela que a idéia de ser devorado pelo pai dá expressão, em uma forma que sofreu
degradação regressiva, a um termo impulso passivo de ser armado por ele num sentido erótico genital.
Uma investigação ulterior do caso clínico não deixa nenhuma dúvida quanto à exatidão dessa
explanação. O impulso genital, é verdade, não trai dúvida alguma da sua terna finalidade, quando
expresso na linguagem que pertence à fase transicional superada entre as organizações oral e sádica da
libido. Além disso, trata-se simplesmente da questão da substituição do representante [psíquico] por uma
forma regressiva do impulso genitalmente orientado no id? De forma alguma é fácil ter-se certeza disto. O
caso clínico do ‘Wolf Man’ russo oferece um apoio bem definido ao segundo ponto de vista mais sério:
pois a partir da época do sonho decisivo, o menino tornou-se travesso, atormentador e sádico, havendo
logo depois desenvolvido uma neurose obsessiva regular. Seja como for, podemos ver que a repressão
não é o único meio que o ego pode empregar com a finalidade de defesa contra um impulso instintual
desagradável. Se ele conseguir fazer um instinto regredir, na realidade lhe terá causado mais dano do
que se o fizesse progredir. Por vezes, realmente, depois de forçar um instinto a regredir dessa forma,
passa a reprimi-lo.
O caso ‘Wolf Man’ e o caso um pouco menos complicado de ‘Little Hans’ levantam grande
número de outras considerações. Mas já fizemos duas descobertas inesperadas. Não pode haver dúvida
alguma de que o impulso instintual que foi reprimido em ambas as fobias era hostil contra o pai. Podemos
dizer que o impulso fora reprimido pelo processo de ser transformado em seu oposto.Em vez da
agressividade por parte do paciente para com o pai, surgiu agressividade (sob a forma de vingança) por
parte do pai para com o paciente. Visto que essa agressividade se acha, em qualquer caso, enraizada na
fase sádica da libido, somente uma certa dose de degradação se faz necessária para reduzi-la à fase
oral. Essa fase, enquanto apenas insinuada ao medo de ‘Little Hans’ de ser mordido foi ruidosamente
exibida no terror do ‘Wolf Man’ de ser devorado. Mas, além disso, a análise demonstrou, sem qualquer
sombra de dúvida, a presença de outro impulso instintual de natureza oposta que sucumbira à repressão.
Este foi um suave impulso passivo dirigido ao pai; que já havia alcançado o nível genital (fálico) da
organização libidinal. No tocante ao resultado do processo de repressão, esse impulso parece,
realmente, ter sido o mais importante dos dois, havendo passado por uma regressão de alcance bem
maior e tendo exercido influência decisiva sobre o conteúdo da fobia. Ao acompanharmos uma repressão
instintual única, tivemos assim de reconhecer uma convergência de dois de tais processos. Os dois
impulsos instintuais que foram dominados pela repressão - a agressividade sádica em relação ao pai e
uma atitude passiva suave para com ele - formam um par de opostos. Além disso, uma apreciação
completa do caso de ‘Little Hans’ revela que a formação de sua fobia tivera o efeito de abolir sua catexia
objetal afetuosa também de sua mãe, embora o conteúdo real de sua fobia não traísse qualquer sinal
disto. O processo de repressão tinha atacado quase todos os componentes do seu complexo edipiano tanto seus impulsos hostis quanto seus impulsos ternos para com a mãe. Em meu paciente russo esse
estado de coisas era muito menos óbvio.
Essas são complicações desagradáveis, considerando-se que somente passamos a estudar
casos simples de formação de sintomas devidos à repressão, e com esse intento escolhemos as
neuroses mais antigas e, ao que tudo indica, as mais manifestas da infância. Em vez de uma única
repressão encontramos uma coleção delas e ainda por cima ficamos envolvidos com a regressão. Talvez
tenhamos aumentado a confusão tratando os dois casos de fobia animal à nossa disposição - ‘Little Hans’
e o ‘Wolf Man’ - como se fossem fundidos no mesmo molde. Em verdade, ressaltam certas diferenças
entre eles. Somente no tocante a ‘Little Hans’ é que podemos dizer com certeza que aquilo que sua fobia
eliminou foram os dois principais impulsos do complexo edipiano - sua agressiv idade para com o pai e
seu excesso de afeição pela mãe. Um terno sentimento pelo pai também se encontrava presente e
desempenhou certo papel na repressão do sentimento oposto; mas não podemos nem provar que era
bastante forte para atrair a repressão sobre si mesmo, nem que desapareceu depois. ‘Hans’ parece, de
fato, ter sido um menino normal quanto àquilo que se denomina um complexo edipiano ‘positivo’. É
possível que os fatores que não encontramos estivessem, na realidade, em ação nele, mas não podemos
demonstrar sua existência. Mesmo a análise mais exaustiva apresenta lacunas em seus dados e é
insuficientemente documentada. No caso do russo, a deficiência encontra-se em outra parte. Sua atitude
para com objetos femininos foi perturbada por uma sedução antiga, e seu lado passivo feminino foi
acentuadamente desenvolvido. A análise de seu sonho com o lobo revelou pouquíssima agressividade
intencional para com o pai, mas apresentou prova inegável de que aquilo de que a repressão se
apoderou foi sua terna atitude passiva para com o pai. Em seu caso, também, é possível que os outros
fatores fossem igualmente atuantes; mas não estavam em evidência. Como se explica que, apesar
dessas diferenças nos dois casos que quase chegam a uma antítese, o resultado final - uma fobia - seja
aproximadamente o mesmo? Deve-se procurar a resposta em outro setor. Penso que será encontrada no
segundo fato que surge de nosso breve exame comparativo. Parece-me que em ambos os casos
podemos detectar qual foi a força motriz da repressão e podemos consubstanciar nosso ponto de vista
sobre sua natureza a partir da linha de desenvolvimento que as duas crianças subseqüentemente
seguiram. Essa força motriz era a mesma em ambas. Era o temor de castração iminente. ‘Little Hans’
desistiu de sua agressividade para com o pai temendo ser castrado. O medo de que um cavalo o
mordesse pode, sem nenhuma força de expressão, receber o pleno sentido do temor de que um cavalo
arrancasse fora com os dentes seus órgãos genitais - o órgão que o distinguia de uma fêmea. Como
vemos, ambas as formas do complexo edipiano, a forma normal, ativa, e a invertida fracassaram através
do complexo de castração. A idéia de ansiedade do menino russo de ser devorado por um lobo não
encerrava, é verdade, qualquer sugestão de castração, pois a regressão oral pela qual passara a afastara
para muito longe da fase fálica. Mas a análise de seu sonho torna supérflua uma prova ulterior. Constituiu
um triunfo da repressão que a forma pela qual sua fobia foi expressa não devesse mais encerrar qualquer
alusão à castração.
Aqui, então, está o nosso inesperado achado: em ambos os pacientes a força motriz da
repressão era o medo da castração. As idéias contidas na ansiedade deles - a de ser mordido por um
cavalo e a de ser devorado por um lobo - eram substitutos, por distorção, da idéia de serem castrados
pelo pai. Esta foi a idéia que sofreu repressão. No menino russo a idéia era a expressão de um desejo
que não foi capaz de subsistir em face de sua revolta masculina; em ‘Little Hans’ foi a expressão de uma
reação nele que transformara sua agressividade em seu oposto. Mas o afeto de ansiedade, que era a
essência da fobia, proveio, não do processo de repressão, não das catexias libidinais dos impulsos
reprimidos, mas do próprio agente repressor. A ansiedade pertencente às fobias a animais era um medo
não transformado de castração. Era portanto um medo realístico o medo de um perigo que era realmente
iminente ou que era julgado real. Foi a ansiedade que produziu a repressão e não, como eu
anteriormente acreditava, a repressão que produziu a ansiedade.
Não vale a pena negar o fato, embora não seja agradável relembrá-lo, de que em muitas
ocasiões afirmei que na repressão o representante instintual é distorcido, deslocado, e assim por diante,
enquanto a libido que pertence ao impulso sexual é transformada em ansiedade. Mas agora um exame
das fobias, que deve ser o mais capaz de oferecer provas confirmatórias, deixa de sustentar minha
asserção; parece, antes, contradizê-la diretamente. A ansiedade sentida em fobias a animais é o medo
de castração do ego; enquanto a ansiedade sentida na agorafobia (um assunto que tem sido estudado
menos completamente) parece ser seu medo de tentação sexual - um medo que, afinal de contas, deve
estar vinculado em suas origens ao medo de castração. Até onde se pode observar no momento, a
maioria das fobias remonta a uma ansiedade dessa espécie sentida pelo ego no tocante às exigências da
libido. É sempre a atitude de ansiedade do ego que é a coisa primária e que põe em movimento a
repressão. A ansiedade jamais surge da libido reprimida. Se eu me tivesse contentado antes em afirmar
que, após a ocorrência da repressão, certa dose de ansiedade apareceu em lugar da manifestação da
libido que era de se esperar, nada teria hoje a retratar. A descrição seria correta, existindo,
indubitavelmente, uma correspondência da espécie afirmada entre a força do impulso que tem de ser
reprimido e a intensidade da ansiedade resultante. Mas devo admitir que pensei que estava
apresentando mais que uma mera descrição. Acreditei que mexera em um processo metapsicológico de
transformação direta da libido em ansiedade. Agora não posso mais manter esse ponto de vista. E,
realmente, verifiquei ser impossível na época explicar como uma transformação dessa natureza foi
levada a efeito.
Talvez se pergunte como cheguei a essa idéia de transformação no primeiro exemplo. Foi
enquanto estudava as ‘neuroses atuais’ numa época em que a análise ainda estava muito longe de
distinguir entre processos no ego e processos no id. Constatei que irrupções de ansiedade e um estado
geral de preparo para a ansiedade eram produzidos por certas práticas sexuais tais como o coitus
interruptus, a excitação sexual não descarregada ou a abstinência forçada - isto é, sempre que a
excitação sexual era inibida, presa ou defletida em seu rumo à satisfação. Visto que a excitação sexual
era uma expressão de impulsos sexuais libidinais, não parecia ser muito precipitado presumir que a libido
era transformada em ansiedade por intermédio dessas perturbações. As observações que fiz na ocasião
ainda são válidas. Além disso, não se pode negar que a libido que pertence aos processos do id está
sujeita a perturbação por instigação da repressão. Talvez ainda seja verdade, portanto, que na repressão
a ansiedade é produzida a partir da catexia libidinal dos impulsos instintuais. Mas como podemos
reconciliar essa conclusão com nossa outra conclusão de que a ansiedade sentida em fobias é uma
ansiedade do ego e que surge neste, e de que não parte da repressão mas, ao contrário, põe a
repressão em movimento? Parece haver aqui uma contradição que de modo algum constitui um assunto
simples de solucionar. Não será fácil reduzir as duas fontes de ansiedade a uma única. Podemos tentar
fazê-lo supondo que, quando o coito é perturbado ou a excitação sexual interrompida ou a abstinência
forçada, o ego fareja certos perigos aos quais reage com ansiedade. Mas isto não nos leva a parte
alguma. Por outro lado, nossa análise das fobias parece não admitir qualquer correção. Non liquet.
V
Começamos por estudar a formação de sintomas e a luta secundária travada pelo ego contra os
sintomas. Mas ao selecionarmos as fobias para essa finalidade fizemos claramente uma escolha. A
ansiedade que predomina no quadro dessas desordens é agora vista como uma complicação que
obscurece a situação. Existem muitas neuroses que não apresentam qualquer ansiedade. A verdadeira
histeria de conversão é uma delas. Mesmo nos seus sintomas mais graves não se encontra qualquer
mescla de ansiedade. Só esse fato já deve advertir-nos para não estabelecermos uma ligação muito
estreita entre a ansiedade e a formação de sintomas. As fobias acham-se tão intimamente apresentadas
com a histeria de conversão em todos os outros aspectos que me senti justificado em classificá-las
juntamente com a segunda sob a denominação de ‘histeria de angústia’. Mas ninguém até agora foi
capaz de dizer o que é que determina se qualquer caso determinado assumirá a forma de uma histeria de
conversão ou de uma fobia - foi capaz, vale dizer, de estabelecer o que determina a geração da
ansiedade na histeria.
Os sintomas mais comuns da histeria de conversão - paralisias motoras, contraturas, ações ou
descargas involuntárias, dores e alucinações - constituem processos catexiais que são permanentemente
mantidos. Mas isto acarreta novas dificuldades. Na realidade não se sabe muita coisa acerca desses
sintomas. A análise pode revelar qual o processo excitatório perturbado que os sintomas substituem. Em
geral ocorre que eles têm seu quinhão nesse processo. É como se toda a energia do processo tivesse
sido concentrada nessa única parte do mesmo. Por exemplo, verificar-se-á que as dores de que sofria um
paciente estavam presentes na situação em que ocorreu a repressão; ou que a alucinação do paciente
era, na época, uma percepção; ou que sua paralisia motora é uma defesa contra uma ação que devia ser
levada a efeito naquela situação, mas que estava inibida; ou que sua contratura é, em geral, um
deslocamento de uma pretendida inervação dos músculos em alguma outra parte do corpo; ou que suas
convulsões são a expressão de uma explosão de afeto que foi retirada do controle normal do ego. A
sensação de desprazer que acompanha o aparecimento dos sintomas varia em grau impressionante. Nos
sintomas crônicos que foram deslocados para a motilidade, como paralisias e contraturas, ela se acha
quase inteiramente ausente; o ego comporta-se em relação aos sintomas como se nada tivesse a ver
com estes. Nos sintomas intermitentes e naqueles que dizem respeito à espera sensorial, as sensações
de desprazer são, em geral, distintamente sentidas; e nos sintomas de dor podem atingir um grau
extremo. O quadro apresentado é tão multiforme que é difícil descobrir o fator que permite todas essas
variações e ainda uma explicação uniforme das mesmas. Há, além disso, pouco a ser verificado na
histeria de conversão da luta do ego contra o sintoma após a sua formação. É somente quando a
sensibilidade à dor em alguma parte do corpo constitui o sintoma, que este está em condições de
desempenhar duplo papel. O sintoma da dor surgirá com não menor regularidade, sempre que a parte do
corpo em causa seja tocada de fora, do que quando a situação patogênica que representa seja
associativamente ativada de dentro, e o ego tomará precaução a fim de impedir que o sintoma seja
despertado através de percepções externas. Não posso dizer por que a formação de sintomas em
histeria de conversão deve ser uma coisa tão obscura, mas o fato nos oferece bom motivo para
abandonarmos sem mais delongas um campo de indagação tão improdutivo.
Passemos às neuroses obsessivas na esperança de aprendermos mais alguma coisa sobre a
formação de sintomas. Os sintomas que fazem parte dessa neurose se enquadram, em geral, em dois
grupos, cada um tendo uma tendência oposta. São ou proibições, precauções e expiação - isto é,
negativos quanto à natureza - ou são, ao contrário, satisfações substitutivas que amiúde aparecem em
disfarce simbólico. O grupo defensivo, negativo dos sintomas é o mais antigo dos dois, mas à medida que
a doença se prolonga, as satisfações, que zombam de todas as medidas defensivas, levam vantagem. A
formação de sintomas assinala um triunfo se consegue combinar a proibição com a satisfação, de modo
que o que era originalmente uma ordem defensiva ou proibição adquire também a significância de uma
satisfação; a fim de alcançar essa finalidade muitas vezes faz uso das trilhas associativas mais
engenhosas. Tal realização demonstra a tendência do ego de sintetizar, a qual já observamos,ver em
[[1]]. Em casos extremos o paciente consegue fazer com que a maioria de seus sintomas adquira, além
do seu significado original, um significado diretamente contrário. Isto é um tributo do poder de
ambivalência, o qual, por alguma razão desconhecida, desempenha papel tão relevante nas neuroses
obsessivas. No exemplo mais tosco o sintoma é bifásico uma ação que executa uma certa injunção é
imediatamente sucedida por outra ação que pára ou desfaz a primeira, mesmo que não vá até o ponto de
levar a cabo seu oposto.De imediato surgem duas impressões desse breve exame dos sintomas
obsessivos. A primeira é que uma luta incessante está sendo travada contra o reprimido, no qual as
forças repressoras constantemente perdem terreno; a segunda é que o ego e o superego têm uma
parcela especialmente grande na formação dos sintomas.
A neurose obsessiva é, indubitavelmente, o tema mais interessante e compensador da pesquisa
analítica. Deve-se confessar que, se nos esforçarmos por penetrar mais profundamente em sua natureza,
teremos de confiar em admissões duvidosas e suposições não confirmadas. A neurose obsessiva tem
origem, sem dúvida, na mesma situação que a histeria, a saber, a necessidade de desviar as exigências
libidinais do complexo edipiano. Na realidade, toda neurose obsessiva parece ter um substrato de
sintomas histéricos que se formaram em uma fase bem antiga. Mas subseqüentemente ela é plasmada
em moldes bem diferentes devido a um fator constitucional. A organização genital da libido vem a ser
débil e insuficientemente resistente, de modo que, quando o ego começa seus esforços defensivos, a
primeira coisa que ele consegue fazer é lançar de volta a organização genital (da fase fálica), no todo ou
em parte, ao nível anal-sádico mais antigo. Esse fato de regressão é decisivo para tudo o que se segue.
Outra possibilidade tem de ser considerada. Talvez a regressão seja o resultado não de um fator
constitucional mas de um fator tempo. Pode ser que a regressão possa ser tornada possível, não porque
a organização genital da libido seja fraca demais, mas porque a oposição do ego começa cedo demais,
enquanto a fase sádica se acha no seu apogeu. Não estou preparado para expressar uma opinião
definitiva sobre esse ponto, mas posso dizer que a observação analítica não fala em favor de tal
suposição. Antes revela que, na ocasião em que se entra em uma neurose obsessiva, a fase fálica já foi
alcançada. Além disso, o início dessa neurose pertence a uma época da vida mais posterior do que a da
histeria - ao segundo período da infância, após o período de latência ter-se estabelecido. Em uma
paciente cujo caso fui capaz de estudar e que foi dominada por esse distúrbio em uma data muito tardia,
tornou-se claro que a causa determinante de sua regressão e do surgimento de sua neurose obsessiva
foi uma ocorrência real através da qual sua vida genital, que até então se mantivera intacta, perdeu todo
seu valor.No tocante à explicação metapsicológica da regressão, estou inclinado a encontrá-la em uma
‘desfusão do instinto’, em um desligamento dos componentes eróticos que, com o início da fase genital,
se juntaram às catexias destrutivas que pertenciam à fase sádica.
Ao forçar a regressão, o ego lavra seu primeiro tento em sua luta defensiva contra as exigências
da libido. (Nesse sentido é vantajoso estabelecer uma distinção entre a idéia mais geral de ‘defesa’ e
‘repressão’. A repressão é apenas um dos mecanismos de que a defesa faz uso.) Talvez seja nos casos
obsessivos, mais do que nos normais ou nos histéricos, que podemos mais claramente reconhecer que a
força motora da defesa é o complexo de castração, e que o que está sendo desviado são as tendências
do complexo edipiano. No momento estamos tratando do início do período de latência, um período que
se caracteriza pela dissolução do complexo de Édipo, pela criação ou consolidação do superego e pela
edificação de barreiras éticas e estéticas no ego. Nas neuroses obsessivas esses processos são levados
mais longe do que o normal. Além da destruição do complexo de Édipo verifica-se uma degradação
regressiva da libido, o superego torna-se excepcionalmente severo e rude, e o ego, em obediência ao
superego, produz fortes formações reativas de consciência, piedade e asseio. Implacável, embora nem
sempre por isso bem-sucedida, a severidade se revela na condenação da tentação de continuar com a
masturbação infantil inicial, que agora se liga a idéias (anal-sádicas) regressivas mas que, não obstante,
representa a parte não subjugada da organização fálica. Há uma contradição inerente quanto a esse
estado de coisas, no qual, precisamente no interesse da masculinidade (isto é, pelo medo da castração),
toda atividade que pertence à masculinidade é paralisada. Mas também aqui a neurose obsessiva está
apenas levando a efeito, de forma excessiva, o método normal de livrar-se do complexo de Édipo. Mais
uma vez encontramos aqui a ilustração da verdade de que todo exagero contém a semente de sua
própria perdição. Pois, à guisa de atos obsessivos, a masturbação que foi suprimida se aproxima cada
vez mais da satisfação.
As formações reativas no ego do neurótico obsessivo, que reconheço como exageros da
formação normal do caráter, devem ser consideradas, penso eu, como ainda outro mecanismo de defesa
e situadas as lado da regressão e da repressão. Elas parecem estar ausentes ou muito mais fracas na
histeria. Lançando um olhar retrospectivo, podemos agora ter uma idéia do que é peculiar ao processo
defensivo da histeria. Parece que nela o processo se limita somente à repressão. O ego afasta-se do
impulso instintual desagradável, deixa-o seguir seu curso no inconsciente, e não toma mais qualquer
parte em sua sorte. Esse ponto de vista não pode ser absolutamente correto, pois estamos familiarizados
com o caso no qual um sintoma histérico é ao mesmo tempo a realização de uma penalidade imposta
pelo superego, mas ele pode descrever uma característica geral do comportamento do ego na histeria.
Podemos ou simplesmente aceitar como um fato que na neurose obsessiva surge um superego
severo dessa espécie, ou considerar a regressão da libido como a característica fundamental da afecção
e tentar relacionar a severidade do superego com isto. E realmente o superego, originando-se do id, não
pode dissociar-se da regressão e desfusão do instinto que ali se verificaram. Não podemos surpreendernos se ele se tornar mais áspero, mais rude e mais atormentador do que onde o desenvolvimento tem
sido normal.
A principal tarefa durante o período de latência parece ser o desvio da tentação à masturbação.
Essa luta produz uma série de sintomas que aparecem de maneira típica nos indivíduos mais diferentes e
que, em geral, têm a natureza de um cerimonial. Muito é de lamentar que alguém ainda não os tenha
reunido e analisado de maneira sistemática. Sendo os primeiros produtos da neurose, eles deviam ser
aqueles mais capazes de lançar luz sobre os mecanismos empregados em sua formação de sintomas. Já
exibem as características que surgirão de forma tão desastrosa se sobrevier uma doença grave. Tendem
a tornar-se ligados a atividades (que depois seriam levadas a efeito quase automaticamente) como ir
dormir, lavar-se, vestir-se e andar de um lado para o outro; e também tendem à repetição e ao
desperdício de tempo. No momento não está de modo algum claro por que isto ocorre dessa maneira,
mas a sublimação dos componentes erótico-anais desempenha nele papel inegável.
O advento da puberdade abre um capítulo decisivo na história de uma neurose obsessiva. A
organização genital interrompida na infância começa novamente com grande vigor. Mas, como sabemos,
o desenvolvimento sexual na infância determina qual a direção que tomará esse novo início na
puberdade. Não só os impulsos agressivos iniciais serão despertados de novo, mas também uma
proporção maior ou menor dos novos impulsos libidinais - nos casos maus todos eles - terá de seguir o
curso prescrito para eles pela regressão e surgirá como tendências agressivas e destrutivas. Em
conseqüência de as tendências eróticas serem disfarçadas dessa forma e devido às poderosas
formações reativas no ego, a luta contra a sexualidade doravante será levada adiante sob o estandarte
de princípios éticos. O ego recuará com assombro das instigações à crueldade e à violência que entram
na consciência a partir do id, não tendo qualquer idéia de que nelas ele está combatendo desejos
eróticos, inclusive alguns em relação aos quais não teria aberto exceção alguma. O superego por demais
rigoroso insiste ainda mais fortemente na supressão da sexualidade, visto esta ter assumido formas tão
repelentes. Assim, na neurose obsessiva o conflito é agravado em duas direções: as forças defensivas se
tornam mais intolerantes e as forças que devem ser desviadas se tornam mais intoleráveis. Ambos os
efeitos se devem a um único fator, a saber, a regressão da libido.
Muito do que se afirmou pode ser contestado com base no fundamento de que as idéias
obsessivas desagradáveis são bem conscientes. Mas não resta dúvida de que, antes de se tornarem
conscientes, passaram pelo processo de repressão. Na maioria delas a verdadeira enunciação do
impulso instintual agressivo é totalmente desconhecida do ego, exigindo boa dose de trabalho analítico
para torná-la consciente. O que de fato penetra na consciência é, em geral, somente um substituto
distorcido que é ou de natureza vaga, semelhante aos sonhos e indeterminada, ou de tal forma
caricaturado que se torna irreconhecível. Mesmo onde a repressão não usurpou o conteúdo do impulso
agressivo, ela por certo livrou-se de seu caráter afetivo concomitante. Como resultado, a agressividade
parece ao ego não uma impulsão mas, como os próprios pacientes dizem, apenas um ‘pensamento’ que
não desperta qualquer sentimento. Mas o fato é que este não é o caso. O que acontece é que o afeto
deixado de fora quando a idéia obsessiva é percebida aparece em um ponto diferente. O superego
comporta-se como se a repressão não tivesse ocorrido e como se conhecesse a verdadeira enunciação e
o pleno caráter afetivo do impulso agressivo, e trata o ego em conformidade com isso. O ego que, por um
lado, sabe ser inocente, é obrigado, por outro lado, a ficar cônscio de um sentimento de culpa e a arcar
com uma responsabilidade pela qual não pode responder. Esse estado de coisas não é, contudo, tão
desorientador como pareceria à primeira vista.O comportamento do superego simplesmente revela que
ele impediu a entrada ao id por meio da repressão, enquanto permaneceu plenamente acessível à
influência do superego. Se se pergunta por que o ego não tenta também afastar-se da crítica
atormentadora do superego, a resposta é que ele de fato consegue fazê-lo em grande número de casos.
Existem neuroses obsessivas nas quais nenhum sentimento de culpa se acha presente. Neles, até onde
se possa observar, o ego evitou tornar-se cônscio desse sentimento instituindo um novo conjunto de
sintomas, penitências ou restrições de natureza autopunitiva. Esses sintomas, contudo, representam ao
mesmo tempo uma satisfação de impulsos masoquistas que, por sua vez, foram reforçados pela
regressão.
A neurose obsessiva apresenta uma multiplicidade tão vasta de fenômenos que, apesar de todos
os esforços envidados até agora, não se conseguiu fazer uma síntese coerente de todas as suas
variações. Tudo que podemos fazer é colher certas correlações típicas, mas há sempre o risco de que
tenhamos desprezado outras uniformidades de natureza não menos importantes.
Já escrevi a tendência geral da formação de sintomas na neurose obsessiva. Ela irá dar lugar
cada vez mais amplo à satisfação substitutiva às expensas da frustração. Os sintomas que outrora
representavam uma restrição do ego vêm depois a representar também satisfações, graças à inclinação
do ego para a síntese, sendo bem claro que esse segundo significado gradativamente se torne o mais
importante dos dois. O resultado desse processo, que se aproxima cada vez mais de um fracasso
completo da finalidade original de defesa, é um ego extremamente restringido, que fica reduzido a
procurar satisfação nos sintomas. O deslocamento da distribuição das forças em favor da satisfação pode
ter o temido resultado final de paralisar a vontade do ego, que em toda decisão que tem de fazer é quase
tão fortemente impelido de um lado como do outro. O conflito superagudo entre o id e o superego, que
tem dominado a doença bem desde o começo, pode assumir proporções tão amplas que o ego, incapaz
de executar sua ação de mediador, nada poderá empreender que não seja atraído para a esfera daquele
conflito.
VI
No curso dessas lutas defrontamo-nos com duas atividades do ego que formam sintomas e que
merecem especial atenção porque são obviamente substitutas e, portanto, bem calculadas para
ilustrarem sua finalidade e técnica. O fato de surgirem tais técnicas auxiliares e substitutivas pode servir
como argumento de que a verdadeira repressão se deparou com dificuldades em seu funcionamento. Se
se considerar o quanto que o ego é mais cenário de ação da formação de sintomas na neurose obsessiva
do que na histeria e se considerar com que tenacidade o ego se apega a suas relações com a realidade
e com a consciência, empregando todas as suas faculdades intelectuais para essa finalidade - e
realmente como o próprio processo de pensar se torna hipercatexizado e erotizado -, então talvez se
possa chegar a uma melhor compreensão dessas variações da repressão.
As duas técnicas às quais me refiro estão desfazendo o que foi feito e isolado. A primeira delas
tem ampla gama de aplicação e remonta a um ponto muito distante. É, por assim dizer, mágica negativa,
e se esforça, por meio do simbolismo motor, por ‘dissipar com um sopro’ não meramente as
conseqüências de algum evento (ou experiência ou impressão), mas o próprio evento. Escolhi a
expressão ‘dissipar com um sopro’ de caso pensado, a fim de lembrar ao leitor o papel desempenhado
por essa técnica não somente nas neuroses mas também nos atos mágicos, nos costumes e nas
cerimônias religiosas. Na neurose obsessiva a técnica de desfazer o que foi feito é encontrada pela
primeira vez nos sintomas ‘bifásicos’,ver em [[1]], nos quais uma ação é cancelada por uma segunda, do
modo que é como se nenhuma ação tivesse ocorrido, ao passo que, na realidade, ambas ocorreram. A
finalidade de desfazer é o segundo motivo subjacente dos cerimoniais obsessivos, sendo o primeiro
tomar precauções a fim de impedir a ocorrência ou recorrência de algum evento específico. A diferença
entre os dois é facilmente observada: as medidas precautórias são racionais, enquanto tentar livrar-se de
algo ‘fazendo-o como se não tivesse acontecido’ é irracional e da natureza da magia. Naturalmente devese suspeitar que o segundo é o motivo mais antigo dos dois e decorre da atitude animista para com a
vida. Esse esforço em desfazer dilui-se em comportamento normal no caso em que uma pessoa resolve
considerar umevento como não tendo acontecido. Mas ao passo que ela não adotará quaisquer medidas
diretas contra o evento e simplesmente não prestará mais atenção alguma a ele ou a suas
conseqüências, a pessoa neurótica tentará tornar o próprio passado não existente. Tentará reprimi-lo por
meios motores. A mesma finalidade talvez possa explicar a obsessão de repetir, com tanta freqüência
encontrada nessa neurose e cuja execução serve a grande número de intenções contraditórias ao
mesmo tempo. Quando não aconteceu na forma desejada, é desfeita, sendo repetida de uma maneira
diferente; e logo todos os motivos que existem para que se demore em tais repetições entram também
em ação. À medida que a neurose continua, amiúde verificamos que o esforço em desfazer uma
experiência traumática constitui um motivo de primeiríssima importância na formação de sintomas. Assim,
inesperadamente descobrimos uma nova técnica motora de defesa, ou (como podemos dizer nesse caso
com menos exatidão) de repressão.
A segunda dessas técnicas que estamos começando a descrever pela primeira vez, a do
isolamento, é peculiar à neurose obsessiva. Ela também se verifica na esfera motora. Quando algo
desagradável aconteceu ao paciente ou quando ele próprio fez algo que tem um significado para sua
neurose, ele interpola um intervalo durante o qual nada mais deve acontecer - durante o qual não deve
perceber nem fazer nada. Esse comportamento, que parece estranho à primeira vista, logo se observa
como tendo relação com a repressão. Sabemos que na histeria é possível provocar uma experiência
traumática a ser dominada pela amnésia. Na neurose obsessiva isto pode muitas vezes não ser
alcançado: a experiência não é esquecida, mas em vez disso, é destituída de seu afeto, e suas conexões
associativas são suprimidas ou interrompidas, de modo que permanece como isolada, não sendo
reproduzida nos processos comuns do pensamento. O efeito desse isolamento é o mesmo que o efeito
da repressão com amnésia. Essa técnica, então, é reproduzida nos isolamentos da neurose obsessiva,
recebendo ao mesmo tempo reforço motor para finalidades mágicas. Os elementos que são mantidos à
parte dessa forma são precisamente aqueles que são da mesma classe de forma associativa. O
isolamento motor destina-se a assegurar uma interrupção da ligação no pensamento. O fenômeno normal
de concentração proporciona um pretexto para essa espécie de procedimento neurótico: o que nos
parece importante à guisa de uma impressão ou de um trabalho não deve sofrer ainterferência das
reivindicações simultâneas de quaisquer outros processos ou atividades mentais. Mas até mesmo uma
pessoa normal utiliza a concentração a fim de afastar não somente o que é irrelevante ou destituído de
importância, mas também, antes de tudo, o que é inadequado porque é contraditório. Ela fica muito
perturbada por aqueles elementos que em certa ocasião eram da mesma classe, mas que foram
desintegrados no curso do desenvolvimento dessa pessoa - como, por exemplo, por manifestações da
ambivalência do seu complexo paterno em sua relação com Deus, ou por impulsos vinculados a seus
órgãos excretores em suas emoções de amor. Assim, no curso normal da coisas, o ego tem grande dose
de trabalho de isolamento a executar em sua função de orientar a corrente de pensamento. E, como
sabemos, somos obrigados, ao executar nossa técnica analítica, a treiná-lo para abandonar por enquanto
essa função, eminentemente justificada como em geral ela é.
Todos verificamos por experiência que é especialmente difícil para um neurótico obsessivo levar
a efeito a regra fundamental da psicanálise. Seu ego é mais atento e faz isolamentos mais acentuados,
provavelmente por causa do alto grau de tensão devido ao conflito que existe entre seu superego e seu
id. Enquanto o neurótico está empenhado em pensar, seu ego tem de manter muita coisa afastada - a
intrusão de fantasias inconscientes e a manifestação de tendências ambivalentes. Ele não deve relaxar,
mas está constantemente preparado para uma luta. Ele fortifica essa compulsão a concentrar e a isolar
mediante a ajuda dos atos mágicos de isolamento que, sob a forma de sintomas, se desenvolvem,
passando a ser tão dignos de nota e a ter tanta importância prática para o paciente, mas que são,
naturalmente, inúteis em si e que têm a natureza de cerimoniais.
Mas nesse esforço para impedir associações e ligações de pensamento, o ego está obedecendo
a uma das ordens mais antigas e fundamentais da neurose obsessiva, o tabu de tocar. Se perguntarmos
a nós mesmos por que a evitação do tocar, do contato ou do contágio deve desempenhar papel relevante
nessa neurose e deve tornar-se o tema de complicados sistemas, a resposta é que o toque e o contato
físico são a finalidade imediata da catexias objetais agressivas e amorosas. Eros deseja o contato porque
se esforça por tornar o ego e o objeto amado um só, por abrir todas as barreiras espaciais entre eles.
Mas também a destrutividade, que (antes da invenção de armas de longo alcance) só poderia efetivar-se
de perto, deve pressupor contato físico,em engalfinhamento. ‘Tocar’ uma mulher tornou-se um
eufemismo para utilizá-la como um objeto sexual. Não ‘tocar’ os órgãos genitais é a expressão
empregada para proibir a satisfação auto-erótica. Visto que a neurose obsessiva começa por perseguir o
toque erótico e depois, após ter-se verificado a regressão, passa a perseguir o toque erótico à guisa de
agressividade, depreende-se que nada é tão fortemente proscrito nessa doença como o tocar, nem tão
bem adequado para tornar-se o ponto central de um sistema de proibições. Mas isolar é remover a
possibilidade de contato; é um método de evitar que uma coisa seja tocada de qualquer maneira. E
quando um neurótico isola uma impressão ou uma atividade interpolando um intervalo, ele está deixando
que se compreenda simbolicamente que ele não permitirá que seus pensamentos sobre aquela
impressão ou atividade entrem em contato associativo com outros pensamentos.
Isto é até onde nos levam nossas investigações sobre a formação de sintomas. Quase não vale a
pena resumi-las, pois os resultados que proporcionaram são escassos e incompletos, e quase nada nos
revelam que já não saibamos. Seria infrutífero voltar nossa atenção para a formação de sintomas em
outras perturbações além das fobias, histeria de conversão e neurose obsessiva, porquanto muito pouco
se sabe a respeito das mesmas. Mas ao passarmos em revista essas três neuroses em conjunto somos
levados a um problema muito sério, cuja consideração não pode ser mais postergada. Todas as três têm
como resultado a destruição do complexo de Édipo; e em todas as três a força motora da oposição do
ego é, acreditamos, o medo da castração. Contudo, é somente nas fobias que esse medo aflora e é
reconhecido. O que lhe aconteceu nas outras duas neuroses? Como o ego poupou a si mesmo esse
medo? O problema se agrava quando recordamos a possibilidade, já mencionada, de que a ansiedade
surja diretamente, por uma espécie de fermentação, de uma catexia libidinal, cujos processos foram
perturbados. Além disso, é absolutamente certo que o medo da castração é a única força motora da
repressão (ou defesa)? Se pensarmos nas neuroses em mulheres estamos destinados a duvidar disso,
pois embora possamos certamente estabelecer nelas a presença de um complexo de castração,
dificilmente podemos falar com propriedade em ansiedade de castração onde a castração já se verificou.
VII
Voltemos novamente a fobias infantis de animais, pois, quando tudo tiver sido dito e feito, nós as
compreenderemos melhor do que quaisquer outros casos. Nas fobias animais, então, o ego tem de opor
uma catexia de objeto libidinal que provém do id - uma catexia que pertence ou ao complexo de Édipo
positivo ou ao negativo - porque acredita que lhe ceder lugar acarretaria o perigo da castração. Essa
questão já foi examinada, mas ainda permanece um ponto duvidoso a esclarecer. No caso de ‘Little
Hans’ - isto é, no caso de um complexo de Édipo positivo - foi sua ternura pela mãe ou foi sua
agressividade para com o pai que convocou a defesa pelo ego? Na prática não parece fazer diferença
alguma, mormente quando cada conjunto de sentimentos implica o outro; mas a pergunta tem um
interesse teórico, visto ser somente o sentimento de afeição pela Mãe que pode contar como um
sentimento puramente erótico. O impulso agressivo flui principalmente do instinto destrutivo; sempre
acreditamos que em uma neurose é contra as exigências da libido e não contra as de qualquer outro
instinto que o ego se está defendendo. De fato, sabemos que depois de a fobia de ‘Hans’ ter sido
formada, sua terna ligação com sua mãe pareceu desaparecer, havendo sido totalmente eliminada pela
repressão, enquanto a formação do sintoma (a formação substitutiva) ocorreu em relação aos seus
impulsos agressivos. No ‘Wolf Man’ a situação foi mais simples. O impulso que foi reprimido - sua atitude
feminina em relação ao pai - foi genuinamente erótica; e foi em relação a esse impulso que a formação
de seus sintomas se verificou.
É quase humilhante que, após trabalharmos por tanto tempo, ainda estejamos tendo dificuldade
para compreender os fatos mais fundamentais. Mas decidimos nada simplificar e nada ocultar. Se não
conseguirmos ver as coisas claramente, pelo menos veremos claramente quais são as obscuridades. O
que nos está prejudicando aqui é evidentemente algum obstáculo no desenvolvimento da nossa teoria
dos instintos. Começamos por traçar a organização da libido através de suas fases sucessivas - desde a
fase oral, através da anal-sádica, até a genital - e, ao fazê-lo, colocamos todos os componentes do
instinto sexual no mesmo pé de igualdade. Depois pareceu que o sadismo era o representante de outro
instinto, que estava oposto a Eros. Esse novo ponto de vista, de que os instintos se enquadram em dois
grupos, parece explodir a construção mais antiga das fases sucessivas da organização libidinal. Mas não
temos de explorar um novo terreno a fim de encontrarmos uma saída da dificuldade. A solução tem
estado à mão por muito tempo e estáno fato de que aquilo com que nos preocupamos praticamente não
são impulsos instintuais puros, mas misturas em várias proporções dos dois grupos de instintos. Se isto
for assim, não há necessidade de rever nossa opinião quanto às organizações da libido. Uma catexia
sádica de um objeto também pode legitimamente reivindicar tratamento como uma catexia libidinal; e um
impulso agressivo contra o pai pode do mesmo modo ficar sujeito a repressão como um impulso terno
para com a mãe. Não obstante, teremos em mente, para consideração futura, a possibilidade de que a
repressão seja um processo que possui uma relação especial com a organização genital da libido e que o
ego recorra a outros métodos de defesa quando tem de proteger-se contra a libido em outros níveis de
organização. Continuando: um caso como o de ‘Little Hans’ não nos permite chegar a qualquer conclusão
clara. É verdade que nele um impulso agressivo foi eliminado pela repressão, mas isto aconteceu após
ter sido alcançada a organização genital.
Dessa vez não perderemos de vista o papel desempenhado pela ansiedade. Dissemos que logo
que o ego reconhece o perigo de castração dá o sinal de ansiedade e inibe através da instância do
prazer-desprazer (de uma maneira que ainda não podemos compreender) o iminente processo catexial
no id. Ao mesmo tempo forma-se a fobia. E agora a ansiedade de castração é dirigida para um objeto
diferente e expressa de forma distorcida, de modo que o paciente teme, não ser castrado pelo pai, mas
ser mordido por um cavalo ou devorado por um lobo. Essa formação substitutiva apresenta duas
vantagens óbvias. Em primeiro lugar, evita um conflito devido à ambivalência (pois o pai foi um objeto
amado, também) e, em segundo, permite ao ego deixar de gerar ansiedade, pois a ansiedade que
pertence a uma fobia é condicional: ela só surge quando o objeto dela é percebido - é com razão, visto
que é somente então que a situação de perigo se acha presente. Não é preciso ter medo de ser castrado
por um pai que não se encontra ali. Por outro lado, uma pessoa não pode livrar-se de um pai; ele pode
aparecer sempre que deseja. Mas se for substituído por um animal, tudo o que se tem de fazer é evitar a
vista do mesmo - isto é, sua presença - a fim de ficar livre do perigo e da ansiedade. ‘Little Hans’,
portanto, impôs uma restrição a seu ego. Ele produziu a inibição de não sair de casa, de modo a não
encontrar qualquer cavalo. Para o jovem russo foi ainda mais fácil, pois quase não lhe era uma privação
deixar de olhar mais para um livro de gravuras. Se sua travessa irmã não tivesse continuado a mostra-lhe
o livro com a fotografia do lobo de pé, ele teria sido capaz de sentir-se livre do seu medo.Em ocasião
anterior declarei que as fobias têm a natureza de uma projeção devido ao fato de que substituem um
perigo interno instintual por outro externo e perceptual. A vantagem disto é que o indivíduo pode
proteger-se contra um perigo externo, dele fugindo e evitando a percepção do mesmo, ao passo que é
inútil fugir de perigos que surgem de dentro. Essa minha afirmação não foi incorreta, mas não penetrou a
superfície das coisas, pois uma exigência instintual não é, afinal de contas, perigosa em si; somente vem
a ser assim, visto que acarreta um perigo externo real, o perigo de castração. Dessa forma, o que
acontece numa fobia, em último recurso, é substituído por outro. O ponto de vista que numa fobia o ego é
capaz de fugir à ansiedade por meio de evitação ou de sintomas inibitórios ajusta-se muito bem à teoria
de que a ansiedade é apenas um sinal afetivo e de que não ocorreu nenhuma alteração na situação
econômica.
A ansiedade sentida nas fobias de animais é, portanto, uma reação afetiva por parte do ego ao
perigo; e o perigo que está sendo assinalado dessa forma é o perigo de castração. Essa ansiedade não
difere em aspecto algum da ansiedade realística que o ego normalmente sente em situações de perigo,
salvo que seu conteúdo permanece inconsciente e apenas se forma consciente sob a forma de uma
distorção.
O mesmo demonstrará ser verdade, penso eu, quanto a fobia de adultos, embora o material
sobre o qual trabalham suas neuroses seja muito mais abundante e haja alguns adicionais na formação
dos sintomas. Fundamentalmente, a posição é idêntica. O paciente agorafóbico impõe uma restrição a
seu ego a fim de escapar a um certo perigo instintual - a saber, o perigo de ceder a seus desejos
eróticos, pois se o fizesse, o perigo de ser castrado, ou algum perigo semelhante, mais uma vez seria
evocado como se fosse em sua infância. Posso citar, à guisa de exemplo, o caso de um jovem que se
tornou agorafóbico porque temia ceder às solicitações de prostitutas e delas contrair uma infecção
sifilítica como castigo.
Estou bem cônscio de que grande número de casos apresenta uma estrutura mais complicada e
de que muitos outros impulsos instintuais reprimidos podem entrar numa fobia. Mas eles são apenas
correntes tributárias que em sua maior parte se ajustaram à corrente principal da neurose numa fase
ulterior. A sintomalogia da agorafobia torna-se complicada pelo fato deque o ego não se limita a fazer
uma renúncia. A fim de furtar-se à situação de perigo faz mais: em geral efetua uma regressão temporal à
infância (em casos extremos, a uma época em que o indivíduo se encontrava no ventre da mãe e se
protegia contra os perigos que o ameaçam no presente). Tal regressão torna-se agora uma condição cuja
realização isenta o ego de fazer uma renúncia. Por exemplo, um paciente agorafóbico pode ser capaz de
caminhar na rua contanto que esteja acompanhado, como uma criancinha, por alguém que ele conhece e
em quem confia; ou, pelo mesmo motivo, poderá ser capaz de sair sozinho, contanto que permaneça a
uma certa distância de sua própria casa e não vá a lugares que não lhe sejam familiares ou onde as
pessoas não o conheçam. O que essas estipulações são, isto dependerá, em cada caso, dos fatores
infantis que o dominam através de sua neurose. A fobia de estar sozinho não é ambígua em seu
significado, independentemente de qualquer regressão infantil: ela é, em última análise, um esforço para
evitar a tentação de entregar-se à masturbação solitária. A regressão infantil naturalmente só pode
ocorrer quando o indivíduo não é mais uma criança.
Uma fobia geralmente se estabelece após um primeiro ataque de ansiedade ter sido
experimentado em circunstâncias específicas, tais como na rua, em um trem ou em solidão. A partir
desse ponto a ansiedade é mantida em interdição pela fobia, mas ressurge sempre que a condição não
pode ser realizada. O mecanismo da fobia presta bons serviços como meio de defesa e tende a ser muito
estável. Uma continuação da luta defensiva, sob a forma de uma luta contra o sintoma, ocorre com
freqüência mas não invariavelmente.
O que aprendemos sobre a ansiedade nas fobias é também aplicável a neuroses obsessivas.
Nesse sentido não nos é difícil colocar as neuroses obsessivas em pé de igualdade com as fobias. Nas
primeiras, a mola de toda a formação de sintomas ulteriores é claramente o medo que o ego tem de seu
superego. A situação de perigo da qual o ego deve fugir é a hostilidade do superego. Não há aqui
qualquer vestígio de projeção; o perigo está inteiramente internalizado. Mas se perguntarmos a nós
mesmos o que é que o ego teme do superego, não podemos deixar de pensar que o castigo ameaçado
pelo segundo deve ser uma extensão do castigo de castração. Da mesmaforma que o pai se tornou
despersonalizado sob a forma do superego, o medo da castração, a qual se encontra nas mãos dele, se
transformou numa ansiedade social ou moral indefinida. Mas essa ansiedade está oculta. O ego foge
dela obedientemente, executando as ordens, precauções e penitências que lhe foram inculcadas. Se ele
foi impedido de assim agir, é imediatamente dominado por um sentimento extremamente aflitivo de malestar, que pode ser considerado como um equivalente de ansiedade e que os próprios pacientes
comparam com essa última.
A conclusão a que chegamos, portanto, é esta. A ansiedade é uma reação a uma situação de
perigo. Ela é remediada pelo ego que faz algo a fim de evitar essa situação ou para afastar-se dela.
Pode-se dizer que se criam sintomas de modo a evitar a geração de ansiedade. Mas isto não atinge uma
profundidade suficiente. Seria mais verdadeiro dizer que se criam sintomas a fim de evitar uma situação
de perigo cuja presença foi assinalada pela geração de ansiedade. Nos casos que examinamos, o perigo
em causa foi o de castração ou de algo remontável à castração.
Se a ansiedade for uma reação do ego ao perigo, seremos tentados a considerar as neuroses
traumáticas, as quais tão amiúde se seguem a uma fuga iminente da morte, como um resultado direto de
um medo da morte (ou medo pela vida) e a afastar de nossas mentes a questão da castração e as
relações dependentes do ego,ver em [[1] e [2]]. A maior parte daqueles que observaram as neuroses
traumáticas que se verificaram durante a última guerra assumiram essa posição e triunfalmente
anunciaram que estava prestes a chegar a prova de que uma ameaça ao instinto de autopreservação
poderia por si só produzir uma neurose, sem qualquer mescla de fatores sexuais e sem exigir qualquer
das complicadas hipóteses da psicanálise. De fato, deve-se lamentar muito que não haja uma única
análise de valor de uma neurose traumática. E é de lamentar-se, não porque tal análise fosse contradizer
a importância etiológica da sexualidade - pois qualquer contradição dessa natureza de há muito foi
eliminada pela introdução do conceito de narcisismo,que põe a catexia libidinal do ego em harmonia com
as catexias objetais e ressalta o caráter libidinal do instinto de autopreservação -, mas porque, na
ausência de quaisquer análises dessa espécie, perdemos uma oportunidade preciosíssima de tirar
conclusões decisivas sobre as relações entre a ansiedade e a formação de sintomas. Em vista de tudo o
que sabemos acerca da estrutura das neuroses relativamente simples da vida cotidiana, parecia
altamente improvável que uma neurose chegasse à existência apenas por causa da presença objetiva do
perigo, sem qualquer participação dos níveis mais profundos do aparelho mental. Mas o inconsciente
parece nada conter que pudesse dar qualquer conteúdo ao nosso conceito da aniquilamento da vida. A
castração pode ser retratada com base na experiência diária das fezes que estão sendo separadas do
corpo ou com base na perda do seio da mãe no desmame. Mas nada que se assemelhe à morte jamais
pode ter sido experimentado; ou se tiver, como no desmaio, não deixou quaisquer vestígios observáveis
atrás de si. Estou inclinado, portanto, a aderir ao ponto de vista de que o medo da morte deve ser
considerado como análogo ao medo da castração e que a situação à qual o ego está reagindo é de ser
abandonado pelo superego protetor - os poderes do destino -, de modo que ele não dispõe mais de
qualquer salvaguarda contra todos os perigos que o cercam. Além disso, deve-se recordar que nas
experiências que conduzem a uma neurose traumática o escudo protetor contra os estímulos externos é
desfeito e quantidades excessivas de excitação incidem sobre o aparelho mental,ver em [[1]]; de forma
que temos aqui uma segunda possibilidade - a de que a ansiedade está não apenas emitindo sinais
como um afeto, mas também sendo recriada a partir das condições econômicas da situação.
A afirmação que acabo de fazer, no sentido de que o ego foi preparado para esperar a castração,
tendo sofrido perdas de objeto constantemente repetidas, coloca a questão da ansiedade sob nova luz.
Até aqui consideramo-la como um final afetivo de perigo; mas agora, visto que o perigo é tão amiúde o de
castração, ele nos parece uma reação a uma perda, uma separação. Mesmo se surgir grande número de
considerações que vão contra esse ponto de vista, não podemos senão ficar surpreendidos por uma
correlação muito notável. A primeira experiência de ansiedade pela qual passa um indivíduo (no caso de
seres humanos, seja como for) é o nascimento, e, objetivamente falando, o nascimento é uma separação
da mãe. Poderia sercomparado a uma castração da mãe (equiparando a criança a um pênis). Ora, seria
muito satisfatório se a ansiedade, como símbolo de uma separação, devesse ser repetida em toda
ocasião subseqüente na qual uma separação ocorresse. Mas infelizmente estamos impedidos de fazer
uso dessa correlação pelo fato de que o nascimento não é experimentado subjetivamente como uma
separação da mãe, visto que o feto, sendo uma criatura completamente narcísica, está totalmente alheio
à sua existência como um objeto. Outro
argumento adverso é que sabemos quais são as reações afetivas a uma separação: são a dor e
o luto, e não a ansiedade. Incidentalmente, pode-se recordar que ao examinarmos a questão do luto
também deixamos de descobrir por que deve ser uma coisa tão dolorosa.
VIII
É chegada a ocasião de fazer uma pausa e meditar. O que claramente desejamos é encontrar
algo que nos diga o que é realmente a ansiedade, algum critério que nos permita distinguir dos falsos os
verdadeiros enunciados a respeito dela. Mas isto não é fácil conseguir. A ansiedade não é assim um
assunto tão simples. Até agora a nada chegamos, a não ser a pontos de vista contraditórias sobre ela,
nenhum dos quais pode, diante de uma opinião destituída de preconceito, ter preferência sobre os outros.
Proponho, portanto, adotar um procedimento diferente. Sugiro que se reúnam, de maneira bem imparcial,
todos os fatos que sabemos sobre a ansiedade, sem esperar chegar a uma nova síntese.
A ansiedade então é, em primeiro lugar, algo que se sente. Denominamo-la de estado afetivo,
embora também ignoremos o que seja um afeto. Como um sentimento, a ansiedade tem um caráter
muito acentuado de desprazer. Mas isto não é o todo de sua qualidade. Nem todo desprazer pode ser
chamado de ansiedade, pois há outros sentimentos, tais como a tensão, a dor ou o luto, que têm o
caráter de desprazer. Assim, a ansiedade deve ter outros traços distintivos além dessa qualidade de
desprazer. Podemos conseguir compreender as diferenças entre esses vários afetos desagradáveis?
Seja como for, podemos observar uma ou duas coisas sobre o sentimento de ansiedade. Seu
caráter de desprazer parece ter um aspecto próprio - algo não muito óbvio, cuja presença é difícil de
provar e que, contudo, ali se encontra com toda probabilidade. Mas além de ter essa característica
especial difícil de isolar, observamos que a ansiedade se faz acompanhar de sensações físicas mais ou
menos definidas que podem ser referidas a órgãos específicos do corpo. Como não estamos
interessados aqui na filosofia da ansiedade, contentar-nos-emos em mencionar alguns representantes
dessas sensações. Os mais claros e mais freqüentes são os ligados aos órgãos respiratórios e ao
coração. Eles proporcionam provas de que as inervações motoras - isto é, processos de descarga desempenham seu papel no fenômeno geral da ansiedade.
A análise dos estados de ansiedade, portanto, revela a existência de (1) um caráter específico de
desprazer, (2) atos de descarga e (3) percepções desses atos. Os dois últimos pontos indicam ao mesmo
tempo uma diferença entre estados de ansiedade e outros estados semelhantes, como os de luto edor.
Os últimos não têm qualquer manifestação motora; ou se têm, a manifestação não constitui parte
integrante de todo o estado, mas se distingue dela como sendo ou o resultado da mesma ou uma reação
a ela. A ansiedade, portanto, é um estado especial de desprazer com atos de descarga ao longo de
trilhas específicas. De conformidade com nossos pontos de vista gerais devemos estar inclinados a
pensar que a ansiedade se acha baseada em um aumento de excitação que, por um lado, produz o
caráter de desprazer e, por outro, encontra alívio através dos atos de descarga já mencionados. Mas um
relato puramente fisiológico dessa natureza quase não nos satisfará. Somos tentados a presumir a
presença de um fator histórico que une firmemente as sensações de ansiedade e suas inervações.
Presumimos, em outras palavras, que um estado de ansiedade é a reprodução de alguma experiência
que encerrava as condições necessárias para tal aumento de excitação e uma descarga por trilhas
específicas, e que a partir dessa circunstância o desprazer da ansiedade recebe seu caráter específico.
No homem, o nascimento proporciona uma experiência prototípica desse tipo, e ficamos inclinados,
portanto, a considerar os estados de ansiedade como uma reprodução do trauma do nascimento. [Ver em
[1]]
Isto não implica que a ansiedade ocupa uma posição excepcional entre os estados afetivos. Na
minha opinião, os outros afetos são também reproduções de experiências muito antigas, talvez mesmo
pré-individuais, de importância vital; e devo estar inclinado e considerá-las como ataques histéricos
universais, típicos e inatos, comparados com os ataques recentes e individualmente adquiridos que
ocorrem em neuroses histéricas e cuja origem e significado como símbolos mnêmicos foram revelados
pela análise. Seria muito conveniente, como é natural, sermos capazes de demonstrar a verdade desse
ponto de vista em um grande número desses afetos - uma coisa que ainda está muito longe de ser o
caso.
A opinião de que a ansiedade remonta ao fato do nascimento levanta objeções imediatas que
têm de ser atendidas. Pode-se argumentar que a ansiedade é uma reação que, com toda probabilidade,
é comum a todoorganismo, certamente todo organismo de ordem superior, ao passo que o nascimento é
experimentado apenas pelos mamíferos, sendo de duvidar se até mesmo em todos eles o nascimento
tem o significado de um trauma. Portanto, pode haver ansiedade sem o protótipo de nascimento. Mas
essa objeção leva-nos além da barreira que divide a psicologia da biologia. Pode ser que, precisamente
porque a ansiedade tem uma função biológica indispensável a cumprir como reação a um estado de
perigo, seja diferentemente engendrada em diferentes organismos. Não sabemos, além disso, se a
ansiedade envolve as mesmas sensações e inervações nos organismos muito afastados do homem,
como faz na próprio homem. Assim, não há aqui qualquer bom argumento contra o ponto de vista de que,
no homem, a ansiedade seja moldada no processo do nascimento.
Se a estrutura e a origem da ansiedade forem conforme o descrito, a pergunta que se segue é:
qual a função da ansiedade e em que ocasiões se reproduz? A resposta parece ser óbvia e convincente:
a ansiedade surgiu originalmente como uma reação a um estado de perigo e é reproduzida sempre que
um estado dessa espécie se repete.
Essa resposta, contudo, levanta outras considerações. As inervações envolvidas no estado
original de ansiedade provavelmente tinham um significado e finalidade, da mesma forma que os
movimentos musculares que acompanham um primeiro ataque histérico. A fim de compreender um
ataque dessa natureza, tudo o que se tem a fazer é procurar a situação na qual os movimentos em
questão formavam parte de uma ação apropriada e aconselhável. Dessa forma, no nascimento é
provável que a inervação, ao ser dirigida para os órgãos respiratórios, esteja preparando o caminho para
a atividade dos pulmões, e, ao acelerar as pulsações do coração, esteja ajudando a manter o sangue
isento de substâncias tóxicas. Naturalmente, quando o estado de ansiedade é reproduzido depois como
um afeto, faltar-lhe-á tal oportunidade, da mesma forma como às repetições de um ataque histérico.
Quando o indivíduo é colocado numa nova posição de perigo, talvez lhe seja bem desaconselhável reagir
com um estado de ansiedade (que é uma reação a um perigo anterior) em vez de iniciar uma reação
apropriada ao perigo atual. Mas seu comportamento pode tornar-se adequado mais uma vez, se a
situação de perigo for reconhecida à medida que se aproximar e se for assinalada por uma irrupção de
ansiedade. Nesse caso ele pode imediatamente livrar-se da ansiedade, recorrendo a medidas mais
adequadas. Assim, podemos ver que há duas formas como a ansiedade pode surgir: de uma maneira
inadequada, quando tenha uma nova situação de perigo, ou de uma maneira conveniente, a fim de dar
um sinal e impedir que tal situação ocorra.Mas o que é um ‘perigo’? No ato do mecanismo há um
verdadeiro perigo para a vida. Sabemos o que isso significa objetivamente; mas num sentido psicológico
nada nos diz absolutamente. O perigo do nascimento não tem ainda qualquer conteúdo psíquico. Não
podemos possivelmente supor que o feto tenha qualquer espécie de conhecimento de que existe a
possibilidade de sua vida ser destruída. Ele somente pode estar cônscio de alguma grande perturbação
na economia de sua libido narcísica. Grandes somas de excitação nele se acumulam, dando margem a
novas espécies de sentimentos de desprazer, e alguns órgãos adquirem maior catexia, prenunciando
assim a catexia objetal que logo se estabelecerá. Que elementos em tudo isso são utilizados como sinal
de uma ‘situação de perigo’?
Infelizmente pouquíssimo se conhece acerca da composição mental de um recém-nascido para
tornar possível uma resposta direta. Não posso sequer garantir a validade da descrição que acabo de
apresentar. É fácil dizer que o bebê repetirá sua emoção de ansiedade em toda situação que recorde o
evento do nascimento. O importante é saber o que recorda o evento e o que é recordado.
Tudo o que podemos fazer é examinar as ocasiões nas quais crianças de colo ou um pouco mais
velhas revelam disposição de produzir ansiedade. Em seu livro sobre o trauma do nascimento, Rank
(1924) fez uma tentativa firme de estabelecer uma relação entre as primeiras fobias das crianças e as
impressões nelas causadas pelo evento do nascimento. Mas não penso que ele tenha sido bemsucedido. Sua teoria está sujeita a duas objeções. Em primeiro lugar, ele presume que a criança recebeu
na ocasião do nascimento certas impressões sensoriais, em particular de natureza visual, cuja renovação
pode lembrar à sua memória o trauma do nascimento e assim evocar uma reação de ansiedade. Essa
suposição é bem infundada e extremamente improvável. Não é crível que uma criança retenha coisas
além de sensações tácteis e gerais relacionadas com o processo de nascimento. Se, posteriormente, as
crianças revelam medo de animaizinhos que desaparecem em buracos ou deles saem, essa reação, de
acordo com Rank, se deve ao fato de elas perceberem uma analogia. Mas é uma analogia da qual não
podem estar cônscias. Em segundo lugar, ao considerar essas situações de ansiedade posteriores, Rank
repisa, conforme melhor lhe convém, ora a lembrança que a criança tem de sua feliz existência intrauterina, ora sua lembrança de perturbação traumática que interrompeu aquela existência - o que deixa a
porta aberta para a interpretação arbitrária. Existem, além disso, certos exemplos de ansiedade infantil
que contrariam diretamente sua teoria. Quando, por exemplo, uma criança é deixada sozinha no escuro,
seria de esperar-seque ela, de conformidade com seu ponto de vista, recebesse de bom grado o
restabelecimento da situação intra-uterina: contudo é precisamente em tais ocasiões que a criança reage
com ansiedade. E se isto for explicado afirmando-se que a criança está sendo lembrada da interrupção
que o evento do nascimento causou em sua felicidade intra-uterina, torna-se impossível fechar os olhos
por mais tempo ao caráter exagerado de tais explicações.
Sou impelido à conclusão de que as primeiras fobias da infância não podem ser diretamente
rastreadas em impressões do nascimento e que até agora não foram explicadas. Um certo preparo para
a ansiedade se acha sem dúvida presente na criança de colo. Mas esse preparo para a ansiedade, em
vez de estar em seu ponto máximo logo após o nascimento e então lentamente decrescer, não surge
senão depois, à medida que se processa o desenvolvimento mental, e permanece durante um certo
período da infância. Se essas primeiras fobias persistirem além de um certo período da infância, estamos
inclinados a suspeitar da presença de uma perturbação neurótica, embora não seja absolutamente claro
qual seja sua relação com as indubitáveis neuroses que surgem posteriormente na infância.
Só algumas das manifestações de ansiedade nas crianças nos são compreensíveis, e devemos
limitar nossa atenção às mesmas, Ocorrem, por exemplo, quando uma criança está sozinha, ou no
escuro, ou quando se encontra com uma pessoa desconhecida em vez de uma com a qual ela está
habituada - como a mãe dela. Esses três exemplos podem ser reduzidos a uma condição única - a saber,
a de sentir falta de alguém que é amado e de quem se sente saudade. Mas aqui, penso eu, temos a
chave de uma compreensão da ansiedade e de uma reconciliação das contradições que parecem
assediá-la.
A imagem mnêmica que a criança tem da pessoa pela qual ela sente anseio é sem dúvida
intensamente catexizada, provavelmente de forma alucinatória inicialmente. Mas isto não tem qualquer
efeito, parecendo agora que o anseio se transforma em ansiedade. Essa ansiedade tem toda a aparência
de ser uma expressão do sentimento da criança em sua desorientação, como se em seu estado ainda
muito pouco desenvolvido ela não soubesse como melhor lidar com sua catexia de anseio. Aqui a
ansiedade aparece como una reação à perda sentida do objeto e lembramo-nos de imediato do fato de
que também a ansiedade de castração constitui o medo de sermos separados deum objeto altamente
valioso, e de que a mais antiga ansiedade - a ‘ansiedade primeva’ do nascimento - ocorre por ocasião de
uma separação da mãe.
Mas a reflexão de um momento nos leva além dessa questão da perda de objeto. A razão por
que a criança de colo deseja perceber a presença de sua mãe é somente porque ela já sabe por
experiência que esta satisfaz todas as suas necessidades sem delongas. A situação, portanto, que ela
considera como um ‘perigo’ e contra a qual deseja ser protegida é a de não satisfação, de uma crescente
tensão devida à necessidade, contra a qual ela é inerme. Penso que se adotarmos esse ponto de vista
todos os fatos se enquadrarão nos seus lugares. A situação de não satisfação na qual as quantidades de
estímulo se elevam a um grau desagradável sem que lhes seja possível ser dominadas psiquicamente ou
descarregadas deve, para a criança, ser análoga à experiência de nascer - deve ser uma repetição da
situação de perigo. O que ambas as situações têm em comum é a perturbação econômica provocada por
um acúmulo de quantidades de estímulos que precisam ser eliminadas. Em ambos os casos a reação de
ansiedade se estabelece. (Essa reação é ainda conveniente na criança de colo, pois a descarga, sendo
dirigida para o aparelho respiratório e os músculos vocais, agora convoca a mãe para ela, logo que ativou
os pulmões do recém-nascido para livrar-se dos estímulos internos.) É desnecessário supor que a
criança traz mais alguma coisa com ela da época do seu nascimento do que essa maneira de indicar a
presença do perigo.
Quando a criança houver descoberto pela experiência que um objeto externo perceptível pode
pôr termo à situação perigosa que lembra o nascimento, o conteúdo do perigo que ela teme é deslocado
da situação econômica para a condição que determinou essa situação, a saber, a perda de objeto. É a
ausência da mãe que agora constitui o perigo, e logo que surge esse perigo a criança dá o sinal de
ansiedade, antes que a temida situação econômica se estabeleça. Essa mudança constitui o primeiro
grande passo à frente na providência adotada pela criança para a sua autopreservação, representando
ao mesmo tempo uma transição do novo aparecimento automático e involuntário da ansiedade para a
reprodução intencional da ansiedade como um sinal de perigo.
Nesses dois aspectos, como um fenômeno automático é um sinal de salvação, verifica-se que a
ansiedade é um produto do desamparo mental da criança, o qual é um símile natural de seu desamparo
biológico. A impressionante coincidência como a ansiedade do bebê recém-nascido e a ansiedade da
criança de colo são condicionadas pela separação da mãe não precisa ser explicada em moldes
psicológicos. Essas explicação podeser apresentada simples e suficientemente de forma biológica,
porquanto, da mesma maneira que a mãe originalmente satisfez todas as necessidades do feto através
do aparelho do próprio corpo dela, assim agora, após o nascimento daquele, ela continua a fazê-lo,
embora parcialmente por outros meios. Há muito mais continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira
infância do que a impressionante censura do ato do nascimento nos teria feito acreditar. O que acontece
é que a situação biológica da criança como feto é substituída para ela por uma relação de objeto psíquica
quanto a sua mãe. Mas não nos devemos esquecer de que durante sua vida intra-uterina a mãe era um
objeto para o feto, e que naquela ocasião não havia absolutamente objetos. É óbvio que nesse esquema
de coisas não há lugar para a ab-reação do trauma do nascimento. Não podemos achar que a ansiedade
tenha qualquer outra função, afora a de ser um sinal para a evitação de uma situação de perigo.
O significado da perda de objeto como um determinante da ausência se estende
consideravelmente além desse ponto, pois a transformação seguinte da ansiedade, a saber, a ansiedade
de castração, que pertence à fase fálica, constitui também medo da separação e está assim ligada ao
mesmo determinante. Nesse caso, o perigo de se separar dos seus órgãos genitais. Ferenczi [1925]
traçou, de maneira bem correta, penso eu, uma nítida linha de ligação entre esse medo e os medos
contidos nas situações mais antigas de perigo. O alto grau de valor narcísico que o pênis possui pode
valer-se do fato de que o órgão é uma garantia para seu possuidor de que este pode ficar mais uma vez
unido à mãe - isto é, a um substituto dela - no ato da copulação. O ficar privado disto equivale a uma
renovada separação dela, e isto por sua vez significa ficar desamparadamente exposto a uma tensão
desagradável, devido à necessidade instintual, como foi o caso no nascimento. Mas a necessidade cujo
aumento se teme é agora uma necessidade específica que pertence à libido genital, e que não é mais
indeterminada, como o foi no período da infância. Pode-se acrescentar que para um homem que seja
impotente (isto é, que seja inibido pela ameaça de castração) o substituto da copulação é uma fantasia
de retorno ao ventre da mãe. Seguindo a linha de pensamento de Ferenczi, podemos dizer que o homem
em causa, havendo tentado provocar seu retorno ao ventre da mãe, utilizando o órgão genital dele para
representá-lo, está agora [em sua fantasia] substituindo regressivamente aquele órgão por toda a sua
pessoa.
O progresso que a criança alcança em seu desenvolvimento - sua crescente independência, a
divisão mais acentuada do seu aparelho mental em várias instâncias, o advento de novas necessidades não pode deixar de exercer influência sobre o conteúdo da situação de perigo. Já traçamos a mudança
desse conteúdo a partir da perda da mãe como objeto até a castração. A mudança seguinte é causada
pelo poder do superego. Com a despersonalização do agente parental a partir do qual se temia a
castração, o perigo se torna menos definido. A ansiedade de castração se desenvolve em ansiedade
moral - ansiedade social -, não sendo agora tão fácil saber o que é a ansiedade. A fórmula ‘separação e
expulsão da horda’ só se aplica àquela porção ulterior do superego que se formou com base em
protótipos sociais, não só ao núcleo do superego, que corresponde à instância parental introjetada.
Expressando-o de modo mais geral, o que o ego considera como sendo o perigo e ao qual reage com um
sinal de ansiedade consiste em o superego dever estar com raiva dele ou puni-lo ou deixar de amá-lo. A
transformação final pela qual passa o medo do superego é, segundo me parece, o medo da morte (ou
medo pela vida), que é um medo do superego projetado nos poderes do destino.
Época houve em que atribuí certa importância ao ponto de vista de que aquilo que era utilizado
como uma descarga de ansiedade era a catexia que fora retirada no processo de repressão. Hoje isto me
parece quase de nenhuma importância. O motivo disto é que, embora antigamente acreditasse que a
ansiedade, de maneira invariável, surgisse automaticamente por um processo econômico, minha
presente concepção de ansiedade como um sinal emitido pelo ego a fim de tornar afetiva a instância do
prazer-desprazer elimina a necessidade de considerar o fator econômico. Naturalmente nada há a dizer
contra a idéia de que é precisamente a energia que foi liberada por haver sido retirada através da
repressão que é utilizada pelo ego para provocar o afeto; porém não é mais de importância alguma qual a
parcela de energia que é empregada para essa finalidade.Ver em [[1].]
Essa nova visão das coisas exige o exame de outra asserção minha - a saber, que o ego é a
sede real da ansiedade. Penso que essa proposição ainda éválida. Não existe razão alguma para atribuir
qualquer manifestação de ansiedade ao superego; embora a expressão ‘ansiedade do id’ necessitasse
de correção, isto seria antes quanto à forma do que quanto ao fundo. A ansiedade é um estado afetivo e
como tal, naturalmente, só pode ser sentida pelo ego. O id pode ter ansiedade como o ego, pois não é
uma organização e não pode fazer um julgamento sobre situações de perigo. Por outro lado, muitas
vezes acontece ocorrer ou começar a ocorrer processos no id que fazem com que o ego produza
ansiedade. Na realidade, é provável que as primeira repressões, bem como a maioria das ulteriores,
sejam motivadas por uma ansiedade do ego dessa classe, no tocante a processos específicos do id. Aqui
estamos mais uma vez fazendo uma distinção correta entre dois casos: o caso no qual ocorre algo no id
que ativa uma das situações de perigo para o ego e que o induz a emitir o sinal de ansiedade para que a
inibição se processe, e o caso no qual uma situação análoga ao trauma do nascimento se estabelece no
id, seguindo-se uma reação automática de ansiedade. Os dois casos podem ser mais aproximados, se se
ressaltar que o segundo corresponde à situação de perigo mais antiga e original, ao passo que o primeiro
corresponde a qualquer um dos determinantes ulteriores de ansiedade que dela se tenha originado; ou,
conforme aplicado a perturbação com que de fato nos defrontamos, que o segundo caso é atuante na
etiologia das neuroses ‘atuais’, ao passo que o primeiro permanece típico para o das psiconeuroses.
Vemos, então, que não se trata tanto de remontarmos aos nossos primeiros achados, mas de pôlos em harmonia com descobertas mais recentes. Constitui ainda um fato inegável que na abstinência
sexual, na interferência imprópria no curso da excitação sexual, ou se esta for desviada de ser elaborada
psiquicamente, a ansiedade surge diretamente da libido; em outras palavras, que o ego fica reduzido a
um estado de desamparo em face de uma tensão excessiva devida à necessidade, como ocorreu na
situação do nascimento, e que a ansiedade é então gerada. Mais uma vez aqui, embora o assunto seja
de somenos importância é bem possível que o que encontra descarga na geração da ansiedade é
precisamente o excedente da libido não utilizada. Como sabemos, uma psiconeurose está especialmente
sujeita a desenvolver-se com base em uma neurose ‘atual’. Isto se afigura como se o ego tivesse
tentando poupar-se à ansiedade, que ele aprendeu a manter em suspensão por algum tempo, e ligá-la
pela formação de sintomas. A análise das neuroses de guerra traumáticas - expressão
que,incidentalmente, abrange grande variedade de perturbações - provavelmente teria revelado que
grande número delas possui algumas características das neuroses ‘atuais’, ver em [[1]]
Ao descrever a evolução das várias situações de perigo a partir do seu protótipo, o ato do
nascimento, não tive qualquer intenção de afirmar que cada determinante invalida completamente o
precedente. É verdade que, à medida que continua o desenvolvimento do ego, as situações de perigo
mais antigas tendem a perder sua força e a ser postas de lado, de modo que podemos dizer que cada
período da vida do indivíduo tem seu determinante apropriado de ansiedade. Assim o perigo de
desamparo psíquico é apropriado ao perigo de vida quando o ego do indivíduo é imaturo; o perigo da
perda de objeto, até a primeira infância, quando ele ainda se acha na dependência de outros; o perigo de
castração, até a fase fálica; e o medo do seu superego, até o período de latência. Não obstante, todas
essas situações de perigo e determinantes de ansiedade podem resistir lado a lado e fazer com que o
ego a elas reaja com ansiedade num período ulterior ao apropriado; ou, além disso, várias delas podem
entrar em ação ao mesmo tempo. É possível, além disto, que haja uma relação razoavelmente estreita
entre a situação de perigo que seja operativa e a forma assumida pela neurose resultante.Quando, numa
parte anterior desta apreciação, verificamos que o perigo da castração era de importância em mais de
uma doença, ficamos alerta contra uma superestimativa desse fator, visto que ele poderia não ser
decisivo para o sexo feminino, que indubitavelmente está mais sujeito a neuroses do que os homens.
[Ver [1].] Vemos agora que não há perigo algum em considerarmos a ansiedade de castração como a
única força motora dos processos defensivos que conduzem à neurose. Indiquei alhures como
meninazinhas, no curso do seu desenvolvimento, são levadas a fazer uma terna catexia objetal pelo seu
complexo de castração. É precisamente nas mulheres que a situação de perigo da perda de objeto
parece ter permanecido mais efetiva. Tudo que precisamos fazer é proceder a uma ligeira modificação
em nossa descrição do seu determinante de ansiedade, no sentido de que não se trata mais de sentir a
necessidade do próprio objeto ou de perdê-lo, mas de perder o amor do objeto. Visto não haver qualquer
dúvida de que a histeria tem forte afinidade com a feminilidade, da mesma forma que a neurose
obsessiva com a masculinidade, afigura-se provável que, como um determinante da ansiedade, a perda
do amor desempenha o mesmíssimo papel na histeria que a ameaça da castração nas fobias e o medo
do superego na neurose obsessiva.
IX
O que nos resta agora é considerar a relação entre a formação de sintomas e a geração de
ansiedade.
Parece haver duas opiniões amplamente sustentadas sobre esse assunto. Uma é que a
ansiedade é um sintoma de neurose. A outra é que existe uma relação muito mais ampla entre as
duas.De acordo com a segunda opinião, os sintomas só se formam a fim de evitar a ansiedade: reúnem a
energia psíquica que de outra forma seria descarregada como ansiedade. Assim este seria o fenômeno
fundamental e o principal problema da neurose.
Que essa segunda opinião é pelo menos em parte verdadeira é demonstrado por alguns
exemplos marcantes. Se um paciente agorafóbico que tenha sido acompanhado até a rua for ali deixado
sozinho, ele produzirá um ataque de ansiedade. Ou se um neurótico obsessivo for impedido de lavar as
mãos após haver tocado algo, ele se tornará preso de uma ansiedade quase insuportável. É claro,
portanto, que a finalidade e o resultado da condição imposta de ser acompanhado na rua e que o ato
obsessivo de lavar as mãos consistiam em prevenir irrupções de ansiedade dessa espécie. Nesse
sentido, toda inibição que o ego impõe a si próprio pode ser denominada de sintoma.
Visto que remetemos a geração da ansiedade a uma situação de perigo, preferiremos dizer que
os sintomas são criados a fim de remover o ego de uma situação de perigo. Se se impedir que os
sintomas sejam formados, o perigo de fato se concretiza; isto é, uma situação análoga ao nascimento se
estabelece, na qual o ego fica desamparado em face de uma exigência instintual constantemente
crescente - o determinante mais antigo e original da ansiedade. Assim, em nossa opinião, a relação entre
a ansiedade e o sintoma é menos estreita do que se supunha, pois inserimos o fator da situação de
perigo entre eles. Podemos também acrescentar que a geração de ansiedade põe a geração de sintomas
em movimento e é, na realidade, um requisito prévio dela, pois se o ego não despertasse a instância de
prazer-desprazer gerando ansiedade, não conseguiria a força para paralisar o processo que se está
preparando no id e que ameaça com perigo. Há em tudo isso evidente inclinação para limitar ao mínimo a
quantidade de ansiedade gerada e para empregá-la somente como sinal, porquanto agir de outra forma
somente resultaria em sentir em outro lugar o desprazer que o processo instintual estava ameaçando
produzir e que não constituiria um êxito do ponto de vista do princípio de prazer, embora seja um sucesso
que ocorre bastante amiúde nas neuroses.
A formação de sintomas, portanto, de fato põe termo à situação de perigo. Ela tem dois aspectos;
um, oculto da visão, acarreta a alteração no id em virtude da qual o ego é afastado de perigo; o outro,
apresentado abertamente, revela o que foi criado em lugar do processo instintual que foi afetado - a
saber, a formação substitutiva.
Seria, contudo, mais correto atribuir ao processo defensivo o que acabamos de dizer sobre a
formação de sintomas e empregar a segunda expressão como sinônimo de formação de substitutos.
Tornar-se-á então claro que o processo defensivo é análogo à fuga por meio da qual o ego se afasta de
um perigo que o ameaça de fora. O processo defensivo é uma tentativa de fuga de um perigo instintual.
Um exame dos pontos fracos dessa comparação tornará as coisas mais claras.
Uma objeção a ela é que a perda de um objeto (ou perda do amor da parte do objeto) e a
ameaça de castração são do mesmo modo perigos que provêm de fora como, digamos, seria um animal
feroz; não são perigos instintuais. Não obstante, os dois casos não são os mesmos. Um lobo
provavelmente nos atacaria independentemente do nosso comportamento em relação a ele; mas a
pessoa amada não deixaria de nos amar nem seríamos ameaçados de castração se não alimentássemos
certos sentimentos e intenções dentro de nós. Assim, tais impulsos instintuais são determinantes de
perigos externos e dessa maneira se tornam perigosos em si; e podemos agora prosseguir contra o
perigo externo adotando medidas contra os internos. Nas fobias de animais, o perigo parece ser ainda
sentido inteiramente como externo, justamente como sofreu um deslocamento externo no sintoma. Nas
neuroses obsessivas o perigo é muito mais internalizado. Aquela parcela de ansiedade referente ao
superego que constitui a ansiedade social ainda representa um substituto interno de um perigo externo,
enquanto a outra parcela - a ansiedade moral - já é inteiramente endopsíquica.
Outra objeção é que, numa tentativa de fuga de um perigo externo iminente, tudo o que o
indivíduo está fazendo é aumentar a distância entre ele próprio e o que o está ameaçando. Ele não se
está preparando para defender-se contra ele ou tentando alterar algo a respeito dele, como seria o caso
se ele atacasse o lobo com um cajado ou nele atirasse com uma arma. Mas o processo defensivo parece
fazer algo mais do que corresponderia a uma tentativa de fuga. Trava debate com o problema do
processo instintual ameaçador e de alguma forma suprime-o ou desvia-o de seus objetivos, e assim o
torna inócuo. Essa objeção parece inatacável e deve receber a devida importância. Julgo provável que
deve haver certos processos defensivos que podem verdadeiramente ser comparados com uma tentativa
de fuga, embora em outros o ego assuma uma linha muito mais ativa de autoproteção e inicie vigorosas
contramedidas. Mas talvez toda a analogia entre a defesa e a fuga seja inválida pelo fato de que tanto o
ego como o instinto no id sejam partes da mesma organização, não entidades isoladas como o lobo e a
criança, de modo que qualquer espécie de comportamento por parte do ego resultará também numa
alteração do processo instintual.
Esse estudo dos determinantes da ansiedade tem, por assim dizer, revelado o comportamento
defensivo do ego transfigurado numa luz racional. Cada situação de perigo corresponde a um período
particular de vida ou a uma fase particular de desenvolvimento do aparelho mental e parece ser
justificável quanto a ele. Na primeira infância o indivíduo realmente não está preparado para dominar
psiquicamente as grandes somas de excitação que o alcançam quer de fora, quer de dentro. Além disso,
num certo período de vida seu interesse mais importante realmente é que as pessoas das quais ele
depende não devem retirar seu carinho dele. Posteriormente, em sua meninice, quando sente que o pai é
um poderoso rival no tocante à sua mãe, e se torna cônscio de suas próprias inclinações agressivas para
com ele e de suas intenções sexuais em relação à mãe, realmente tem justificativa de ter medo do pai; e
seu medo de ser punido por este pode encontrar expressão através de reforço filogenético no medo de
ser castrado. Finalmente, quando trava relações sociais, realmente lhe é necessário temer seu superego,
ter uma consciência; e a ausência desse fator daria margem a conflitos, perigos e assim por diante.
Mas esse último ponto levanta um novo problema. Em vez do afeto da ansiedade tomemos, por
um momento, outro - o do pesar, por exemplo. Parece perfeitamente normal que aos quatro anos de
idade uma menina chore penosamente se a sua boneca quebrar-se; ou aos seis, se a governanta
reprová-la; ou aos dezesseis, se for desprezada pelo namorado; ou aos vinte e cinco, talvez, se um filho
dela morrer. Cada um desses determinantes de dor tem a sua própria época e cada um desaparece
quando essa época terminar. Somente os determinantes finais e definitivos permanecem por toda a vida.
Devemos julgar estranho se essa menina, depois de ter crescido, se tornado esposa e mãe, fosse chorar
por algum objeto sem valor que tivesse sido danificado. Contudo, é assim que se comporta o neurótico.
Embora todas as instâncias para a dominação dos estímulos de há muito se tenham desenvolvido dentro
de amplos limites em seu aparelho mental, e embora esteja suficientemente crescido para satisfazer à
maior parte de suas necessidades por si mesmo e há muito tenha aprendido que a castração não é mais
praticada como castigo, ele não obstante se comporta como se as antigas situações de perigo ainda
existissem e se apega a todos os antigos determinantes de ansiedade.
Por que isto é assim exige uma resposta em tanto longa. Antes de tudo, devemos peneirar os
fatos. Num grande número de casos os antigos determinantes da ansiedade realmente declinam, após
terem produzido reações neuróticas. As fobias de crianças muito tenras, temores de ficarem sós ou no
escuro ou com estranhos - fobias que podem quase ser chamadas de normais -, em geral desaparecem
depois; a criança ‘sai delas crescendo’, como dizemos sobre algumas outras perturbações da infância. As
fobias de animais, de ocorrência tão freqüente, sofrem o mesmo destino e muitas histerias de conversão
dos primeiros anos não têm continuidade em anos posteriores da vida. Ações cerimoniais surgem com
extrema freqüência no período de latência, mas somente uma percentagem muito pequena delas se
desenvolve posteriormente numa neurose obsessiva completa. Em geral, até onde possamos dizer pelas
nossas observações sobre crianças citadinas que pertencem a raças brancas e que vivem de acordo com
padrões culturais razoavelmente elevados, as neuroses da infância têm a natureza de episódios
regulares no desenvolvimento de uma criança, embora muito pouca atenção se dispense às mesmas.
Sinais de neuroses infantis podem ser detectados em todos os neuróticos adultos sem exceção; mas de
modo algum todas as crianças que revelam esses sinais se tornam neuróticas depois. Deve acontecer,
portanto, que certos determinantes da ansiedade sejam abandonados e certas situações de perigo
percam seu significado à medida que o indivíduo se torna mais maduro. Além disso, algumas dessas
situações de perigo conseguem sobreviver, alcançando épocas posteriores, e modificam seus
determinantes de ansiedade a fim de atualizá-los. Dessa forma, por exemplo, um homem pode reter seu
medo de castração à guisa de uma sifilidofobia, após ter vindo a saber que não é mais habitual castrar as
pessoas por se entregarem a seus desejos sexuais, mas que, por outro lado, graves doenças podem
sobrevir a qualquer um que se entrega assim a seus instintos. Outros determinantes de ansiedade, como
o medo do superego, estão destinados a não desaparecer absolutamente, mas a acompanhar as
pessoas por toda sua vida. Nesse caso, o neurótico diferirá da pessoa normal devido ao fato de que suas
reações aos perigos em questão serão indevidamente acentuadas. Finalmente, o ser adulto não oferece
qualquer proteção absoluta contra um retorno da situação de ansiedade traumática original. Todo
indivíduo tem, com toda probabilidade, um limite além do qual seu aparelho mental falha em sua função
de dominar as quantidades de excitação que precisam ser eliminadas.
Essas retificações secundárias não podem de forma alguma alterar o fato aqui em exame de que
numerosíssimas pessoas continuam infantis em seu comportamento referente ao perigo, e não superam
determinantes de ansiedade que ficaram ultrapassados. Negar isto seria negar a existência da neurose,
pois são precisamente tais pessoas que denominamos de neuróticas. Mas como isto é possível? Por que
nem todas as neuroses são episódios no desenvolvimento do indivíduo que terminam quando a fase
seguinte é alcançada? De onde provém o elemento de persistência a essas reações ao perigo? Por que
só o afeto de ansiedade parece desfrutar da vantagem sobre todos as outros afetos de evocação de
reações que se distinguem das restantes por serem anormais e que, através de sua falta de propriedade,
vão de encontro ao movimento da vida? Em outras palavras, mais uma vez chegamos desprevenidos ao
enigma com o qual tantas vezes nos defrontamos: de onde provém a neurose - qual é a sua última, sua
própria raison d’être peculiar? Após dez anos de labores psicanalíticos, continuamos exatamente no
escuro quanto a esse problema, como estávamos no início.
X
A ansiedade é a reação ao perigo. Não se pode, afinal de contas, deixar de suspeitar que o
motivo pelo qual o afeto de ansiedade ocupa uma posição sul generis na economia da mente tem algo a
ver com a natureza essencial do perigo. Contudo, os perigos são o destino comum da humanidade; são
os mesmos para todos. O que necessitamos e com o que não podemos mexer é algum fator que
explicará por que algumas pessoas são capazes de sujeitar o afeto de ansiedade, apesar da sua
qualidade peculiar, às elaborações normais da mente, ou que decide quem está condenado a fracassar
naquela tarefa. Duas tentativas para encontrar um fator dessa espécie foram feitas, sendo natural que
tais esforços encontrassem uma recepção acolhedora, visto que prometem ajudar a atender uma
necessidade atormentadora. As duas tentativas em questão são mutuamente complementares; abordam
o problema em extremidades opostas. A primeira foi feita por Alfred Adler há mais de dez anos. Sua
asserção, reduzida a sua essência, era a de que as pessoas que fracassavam na tarefa a elas atribuída
pelo perigo eram aquelas muito impedidas por alguma inferioridade orgânica. Se fosse verdade que
simplex sigillum veri, devíamos acolher tal solução [Lösung] como uma libertação [Erlösung]. Mas ao
contrário, nossos estudos críticos dos últimos dez anos efetivamente demonstraram a total impropriedade
de tal explicação - explicação, além disso, que põe de lado toda a riqueza do material descoberto pela
psicanálise.
A segunda tentativa foi feita por Otto Rank em 1923 em seu livro The Trauma of Birth. [Ver Pp. 89
e 136 e seg.] Seria injusto pôr sua tentativa no mesmo nível que a de Adler, salvo nesse único ponto, o
qual nos diz respeito aqui, pois permanece no terreno da psicanálise e persegue uma linha de
pensamento psicanalítica, de modo que pode ser aceita como um esforço autêntico para solucionar os
problemas da análise. Nesse assunto da relação do indivíduo com o perigo Rank afasta-se da questão do
defeito orgânico do indivíduo e se concentra no grau variável de intensidade do perigo. O processo de
nascimento é a primeira situação de perigo, e a convulsão econômica que ele produz torna-se o protótipo
da reação de ansiedade. Já,ver em [[1]] traçamos a linha de desenvolvimento que liga essa primeira
situação de perigo e determinante da ansiedade com todas as ulteriores, e vimos que todas conservam
uma qualidade comum até onde significam, em certo sentido, uma separação da mãe - de início somente
num sentido biológico, a seguir como uma perda direta do objeto e depois como uma perda do objeto
incorrida indiretamente. A descoberta dessa extensa concatenação constitui indubitável mérito da
construção de Rank. Agora, o trauma do nascimento se apodera de cada indivíduo com um grau
diferente de intensidade e a violência da reação de ansiedade varia com a força do trauma, sendo a
quantidade inicial da ansiedade gerada nele que, de acordo com Rank, decide se ele chegará a controlálo - se ele se tornará neurótico ou normal.
Não nos cabe criticar aqui com riqueza de detalhes a hipótese de Rank. Temos apenas a
considerar se ela ajuda a resolver nosso problema particular. A fórmula dele - de que se tornam
neuróticas as pessoas nas quais o trauma do nascimento foi tão forte que jamais foram capazes
inteiramente de ab-reagi-la - é altamente discutível de um ponto de vista teórico. Não sabemos ao certo o
que se quer dizer por ab-reação do trauma. Tomada literalmente, implica que quanto mais freqüente e
intensamente uma pessoa neurótica reproduzir o afeto de ansiedade, mais de perto ela se aproximará da
saúde mental - uma conclusão insustentável. Foi por não ter coincidido com os fatos que abandonei a
teoria da ab-reação, que desempenhara papel tão importante no método catártico. Dar tanta ênfase,
também, à variabilidade com base no trauma do nascimento é não deixar lugar algum para as legítimas
reivindicações da constituição hereditária como fator etiológico, pois essa variabilidade é um fator
orgânico que atua de maneira acidental em relação com a constituição, dependendo ela própria de
muitas influências que podem ser denominadas acidentais - como, por exemplo, na assistência oportuna
por ocasião do parto. A teoria de Rank despreza inteiramente os fatores constitucionais bem como os
filogenéticos. Se, contudo, tivéssemos de tentar encontrar um lugar para o fator constitucional
restringindo o enunciado dele com a cláusula, digamos, de que aquilo que é realmente importante é a
extensão na qual o indivíduo reage à intensidade variável do trauma do nascimento, estaríamos privando
sua teoria de sua significação e estaríamos relegando o novo fator introduzido por ele a uma posição de
importância secundária: o fator que decidiu se uma neurose devia sobrevir ou não estaria num campo
diferente e, mais uma vez, desconhecido.
Além disso, o fato de que, enquanto o homem partilha o processo de nascimento com os outros
mamíferos, somente ele tem o privilégio em relação a eles de possuir uma disposição especial para a
neurose dificilmente é favorável à teoria de Rank. Mas a principal objeção a ela é que flutua no ar em vez
de estar baseada em observações confirmadas. Nenhum conjunto de prova foi coligido para indicar que o
nascimento difícil e retardado coincide de fato com o desenvolvimento de uma neurose, ou mesmo que
as crianças assim nascidas exibem os fenômenos da primeira apreensão infantil de forma mais
acentuada e por um período mais longo do que outras crianças. Poder-se-ia retrucar que as dores do
parto e os nascimentos induzidos, fáceis para a mãe, possivelmente podem envolver grave trauma para a
criança. Mas podemos ainda ressaltar que os nascimentos que levam à asfixia estariam destinados a
proporcionar claras provas dos resultados que supostamente devem seguir-se. Deve ser uma das
vantagens da teoria etiológica de Rank o fato de que ela postula um fator cuja existência pode ser
verificada pela observação. E enquanto tal tentativa de verificação não for feita, é impossível verificar o
valor da teoria.
Por outro lado, não posso identificar-me com o ponto de vista de que a teoria de Rank contradiz a
importância etiológica dos instintos sexuais tal como até agora reconhecidos pela psicanálise, pois sua
teoria só tem referência à relação do indivíduo com a situação de perigo, de modo que deixa
perfeitamente aberto para nós a suposição de que, se uma pessoa não foi capaz de dominar seus
primeiros perigos, ela está destinada a fracassar também em situações ulteriores envolvendo perigo
sexual, e assim a ser impelida a uma neurose.
Não acredito, portanto, que a tentativa de Rank tenha solucionado o problema da causação da
neurose, nem creio que possamos até agora dizer o quanto ela, não obstante, tenha contribuído para tal
solução. Se uma investigação dos efeitos do parto difícil sobre a disposição à neurose deve proporcionar
resultados negativos, classificaremos de inferior o valor da contribuição dele. Deve-se temer que nossa
necessidade de encontrar uma ‘causa última’ simples e tangível da doença neurótica permaneça
insatisfeita. A solução ideal, pela qual os médicos ainda anseiam, seria descobrir certo bacilo que
pudesse ser isolado e cultivado numa cultura pura e que, quando injetado em alguém, invariavelmente
produzisse a mesma doença; ou, expressando-o de forma um tanto menos extravagante, demonstrar a
existência de certas substâncias químicas cuja administração provocasse ou curasse neuroses
específicas. Mas a probabilidade de uma solução dessa espécie parece pequena.
A psicanálise leva a conclusões menos simples e satisfatórias. O que tenho a dizer nesse sentido
de há muito é familiar e nada tenho de novo a acrescentar. Se o ego consegue proteger-se de um
impulso instintual perigoso, através, por exemplo, do processo de repressão, ele por certo inibiu e
prejudicou a parte específica do id em causa; mas ao mesmo tempo lhe deu certa independência e
renunciou a um pouco de sua própria soberania. Isto é inevitável pela natureza da repressão, que é,
fundamentalmente, uma tentativa de fuga. O reprimido é agora, por assim dizer, um fora-da-lei; fica
excluído da grande organização do ego e está sujeito somente às leis que regem o domínio do
inconsciente. Se, agora, a situação de perigo modificar-se de modo que o ego não tenha razão alguma
de desviar-se de um novo impulso instintual análogo ao reprimido, a conseqüência da restrição do ego
que ocorreu se tornará manifesta. O novo impulso prosseguirá seu curso sob uma influência automática ou, como eu preferiria dizer, sob a influência da compulsão à repetição. Ele seguirá a mesma trilha que o
impulso mais antigo reprimido, como se a situação de perigo que tivesse sido superada ainda existisse. O
fator de fixação na repressão, portanto, é a compulsão à repetição do id inconsciente - uma compulsão
que em circunstâncias normais só é eliminada pela função livremente móvel do ego. O ego poderá
ocasionalmente conseguir romper as barreiras da repressão que ele próprio erigiu e recuperar sua
influência sobre o impulso instintual, e dirigir o curso do novo impulso de conformidade com a situação de
perigo modificada. Mas de fato o ego muito raramente consegue fazer isto: ele não pode desfazer suas
repressões. É possível que a maneira pela qual a luta vá ser travada dependa de relações quantitativas.
Em alguns casos tem-se a impressão de que o resultado seja imposto: a atração regressiva exercida pelo
impulso reprimido e a força da repressão não tem outra opção senão obedecer à compulsão à repetição.
Em outros casos percebemos uma contribuição de outra atuação de forças: a atração exercida pelo
protótipo reprimido é reforçada por uma repulsão proveniente da direção de dificuldades na vida real que
atrapalham qualquer curso diferente que poderia ser seguido pelo novo impulso instintual.
Que esse é um relato correto da fixação na repressão e da retenção das situações de perigo que
não são mais situações dos dias atuais é confirmado pelo fato da terapia analítica - fato que é bastante
modesto em si, mas que dificilmente pode ser superestimado de um ponto de vista teórico. Quando, na
análise, demos ao ego assistência capaz de situá-lo em posição de levantar suas repressões, ele
recupera seu poder sobre o id reprimido e pode permitir aos impulsos instintuais que sigam seu curso
como se as antigas situações de perigo não existissem mais. O que podemos fazer dessa maneira
coincide com o que pode ser alcançado em outros campos da medicina, pois em geral nossa terapia
deve contentar-se em provocar mais rapidamente, de forma mais confiável e com menos dispêndio de
energia do que seria o caso de outra forma, o bom resultado que em circunstâncias favoráveis teriam
ocorrido por si. Vemos pelo que acaba de ser dito que as relações quantitativas - relações que não são
diretamente observáveis mas que só podem ser inferidas - são o que determina se situações de perigo
antigas serão preservadas, se repressões por parte do ego serão mantidas e se neuroses da infância
encontrarão continuidade. Entre os fatores que desempenham seu papel na causação das neuroses e
que criam as condições sob as quais as forças da mente são lançadas umas contra as outras, surgem
três de forma proeminente: um fator biológico, um filogenético e um puramente psicológico.
O fator biológico é o longo período de tempo durante o qual o jovem da espécie humana está em
condições de desamparo e dependência. Sua existência intra-uterina parece ser curta em comparação
com a da maior parte dos animais, sendo lançado ao mundo num estado menos acabado. Como
resultado, a influência do mundo externo real sobre ele é intensificada e uma diferenciação inicial entre o
ego e o id é promovida. Além disso, os perigos do mundo externo têm maior importância para ele, de
modo que o valor do objeto que pode somente protegê-lo contra eles e tomar o lugar da sua antiga vida
intra-uterina é enormemente aumentado. O fator biológico, então, estabelece as primeiras situações de
perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará a criança durante o resto de sua vida.
A existência do segundo fator, o filogenético, baseia-se apenas em inferência. Fomos levados a
presumir sua existência por uma marcante característica no desenvolvimento da libido. Verificamos que a
vida sexual do homem, diferentemente da vida sexual da maioria dos animais de perto relacionada com
ele, não realiza um progresso firme desde o nascimento à maturidade, mas, após uma eflorescência
inicial até o quinto ano, sofre uma interrupção bem nítida, e então segue seu curso mais uma vez na
puberdade, reatando os inícios interrompidos na primeira infância. Isto levou-nos a supor que algo
momentoso deve ter ocorrido nas vicissitudes da espécie humana que deixou para trás essa interrupção
no desenvolvimento sexual do indivíduo como um precipitado histórico. Esse fator deve seu significado
patogênico ao fato de que a maioria das exigências instintuais dessa sexualidade infantil são tratadas
pelo ego como perigos e desviados como tais, de modo que os impulsos sexuais ulteriores da puberdade,
que no curso natural das coisas seriam egossintônicos, correm o risco de sucumbir à atração de seus
protótipos infantis e de segui-los até a repressão. É aqui que nos defrontamos com a etiologia mais direta
das neuroses. É fato curioso que o contato inicial com as exigências da sexualidade deve ter efeito sobre
o ego semelhante ao produzido pelo contato prematuro com o mundo externo.
O terceiro fator, o psicológico, reside em um defeito do nosso aparelho mental que tem a ver
precisamente com sua diferenciação em um id e um ego, e que é portanto também atribuível, em última
análise, à influência do mundo externo. Em vista dos perigos da realidade [externa], o ego é obrigado a
resguardar-se contra certos impulsos instintuais no id e a tratá-los como perigos. Mas não pode protegerse dos perigos instintuais internos tão eficazmente quanto pode de alguma realidade que não é parte de
si mesmo. Intimamente vinculado ao id como está, só pode desviar um perigo instintual restringindo sua
própria organização e aquiescendo na formação de sintomas em troca de ter prejudicado o instinto. Se o
instinto rejeitado renovar seu ataque, o ego é dominado por todas aquelas dificuldades que nos são
conhecidas como males neuróticos.
Além disso, creio, nosso conhecimento da natureza e da causas da neurose ainda não pode ir
adiante.
XI
ADENDOS
No curso deste exame vários temas tiveram que ser postos de lado antes que houvessem sido
plenamente tratados. Reuni-os neste capítulo de modo que possam receber a atenção que merecem.
A - MODIFICAÇÕES DE PONTOS DE VISTA ANTERIORES
(a) Resistência e Anticatexia
Importante elemento da teoria da repressão é a opinião de que a repressão não é um fato que
ocorre uma vez, mas que exige um dispêndio permanente [de energia]. Se esse dispêndio viesse a
cessar, o impulso reprimido, que está sendo alimentado todo o tempo a partir de suas fontes, na ocasião
seguinte fluiria pelos canais dos quais havia sido expulso, e a repressão ou falharia em sua finalidade ou
teria de ser repetida um número indefinido de vezes. Assim, é porque os instintos são contínuos em sua
natureza que o ego tem de tornar segura sua ação defensiva por um dispêndio permanente [de energia].
Essa ação empreendida para proteger a repressão é observável no tratamento analítico como
resistência. A resistência pressupõe a existência do que eu denominei de anticatexia. Uma anticatexia
dessa espécie é claramente observada na neurose obsessiva. Ela aparece ali sob a forma de uma
alteração do ego, como uma formação reativa no ego, e é efetuada pelo reforço da atitude que é o oposto
da tendência instintual que tem de ser reprimida - como, por exemplo, na piedade, na consciência e no
asseio. Essas formações reativas de neurose obsessiva são essencialmente exageros dos traços
normais do caráter que se desenvolvem durante o período de latência. A presença de uma anticatexia na
histeria é muito mais difícil de detectar, embora teoricamente seja igualmente indispensável. Na histeria,
também, uma quantidade de alteração do ego através da formação reativa é inegável e em algumas
circunstâncias se torna tão acentuada que se força à nossa atenção como o principal sintoma.O conflito
devido à ambivalência, por exemplo, é transformado em histeria por esse meio. O ódio do paciente por
uma pessoa a quem ele ama é mantido em baixo nível por uma quantidade reduzida de ternura e
apreensão da parte dela. Mas a diferença entre as formações reativas na neurose obsessiva e na histeria
é que na segunda não têm a universidade de um traço de caráter, mas estão confinadas a relações
específicas. Uma histérica, por exemplo, pode ser especialmente afetuosa com seus próprios filhos, os
quais no fundo ela odeia; mas por causa disso ela não será mais amorosa, em geral, do que outras
mulheres ou mais afetuosa para com outras crianças. A formação reativa da histeria apega-se
tenazmente a um objeto específico e jamais se difunde por uma disposição geral do ego, ao passo que o
que é característico da neurose obsessiva é precisamente uma difusão dessa espécie - um afrouxamento
de relações na escolha de objeto.
Há outra espécie de anticatexia, contudo, que parece mais adequada ao caráter peculiar da
histeria. Um impulso instintual reprimido pode ser ativado (novamente catexizado) a partir de duas
direções: de dentro, através de reforço de suas fontes internas de excitação, e de fora, através da
percepção de um objeto que ele deseja. A anticatexia histérica é principalmente dirigida para fora, contra
percepções perigosas. Assume a forma de uma espécie especial de vigilância que, por meio de
restrições do ego, causa situações a serem evitadas que ocasionariam tais percepções, ou, se de fato
ocorrerem, consegue afastar delas a atenção do paciente. Alguns analistas franceses, em particular
Laforgue [1926], recentemente deram a essa ação da histeria o nome especial de ‘escotomização’. Essa
técnica de anticatexia é ainda mais perceptível nas fobias, cujo interesse se acha concentrado na
remoção do paciente cada vez mais para longe da possibilidade da ocorrência da percepção temida. O
fato de que a anticatexia tem uma direção oposta na histeria e nas fobias à que tem na neurose
obsessiva - embora a distinção não seja absoluta - parece ser significativo. Sugere existir estreita relação
entre a repressão e a anticatexia externa, por um lado, e entre a regressão e a anticatexia interna (isto é,
alteração do ego através da formação reativa), por outro. A tarefa de defesa contra uma percepção
perigosa é, incidentalmente, comum a todas as neuroses. Várias ordens e proibições na neurose
obsessiva têm em vista o mesmo fim.
Mostramos em ocasião anterior que a resistência que tem de ser superada na análise provém do
ego, que se apega a suas anticatexias. É difícil para o ego dirigir sua atenção para percepções e idéias
que ele então estabeleceu como norma evitar, ou reconhecer como pertencendo a si próprio impulsos
que são o oposto completo daqueles que ele conhece como seus próprios. Nossa luta contra a
resistência na análise baseia-se nesse ponto de vista dos fatos. Se a resistência for ela mesma
inconsciente, como tão amiúde acontece devido à sua ligação com o material reprimido, nós a tornamos
consciente. Se for consciente, ou quando se tiver tornado consciente, apresentamos argumentos lógicos
contra ela; prometemos ao ego recompensas e vantagens se ele abandonar sua resistência. Não pode
haver nenhuma dúvida ou erro sobre a existência dessa resistência por parte do ego. Mas temos de
perguntar a nós mesmos se ela abrange todo o estado de coisas na análise, pois verificamos que mesmo
após o ego haver resolvido abandonar suas resistências ele ainda tem dificuldades em desfazer as
repressões; e denominamos o período de ardoroso esforço que se segue, depois de sua louvável
decisão, de fase de ‘elaboração’. O fator dinâmico que torna uma elaboração desse tipo necessária e
abrangente não está longe para se procurar. Pode ser que depois de a resistência do ego ter sido
removida, o poder da compulsão à repetição - a atração exercida pelos protótipos inconscientes sobre o
processo instintual reprimido - ainda tenha de ser superado. Nada há a dizer contra descrever esse fator
como a resistência do inconsciente. Não há qualquer necessidade de se ficar desestimulado por causa
dessas correções. Devem ser bem escolhidas se acrescentarem algo ao nosso conhecimento, e não
constituem vergonha alguma para nós, na medida em que antes enriquecem do que invalidam nossos
pontos de vista anteriores - limitando algum enunciado, talvez, que era por demais geral ou ampliando
alguma idéia que foi muito estreitamente formulada.
Não se deve supor que essas correções nos proporcionem um levantamento completo de todas
as espécies de resistência encontradas na análise. A investigação ulterior do assunto revela que o
analista tem de combater nada menos que cinco espécies de resistência, que emanam de três direções o ego, o id e o superego. O ego é a fonte de três, cada uma diferindo em sua natureza dinâmica. A
primeira dessas três resistências do ego é a resistência da repressão, que já examinamos acima [[1]] e
sobre as quais há o mínimo a ser acrescentado. A seguir vem a resistência da transferência, que é da
mesma natureza mas que tem efeitos diferentes e muito mais claros na análise, visto que consegue
estabelecer uma relação com a situação analítica ou com o próprio analista, reanimando assim uma
repressão que deve somente ser relembrada. A terceira resistência, embora também uma resistência do
ego, é de natureza inteiramente diferente. Ela advém do ganho proveniente da doença e se baseia numa
assimilação do sintoma no ego. [Ver em [1]] Representa uma não disposição de renunciar a qualquer
satisfação ou alívio que tenha sido obtido. A quarta variedade, que decorre do id, é a resistência que,
como acabamos de ver, necessita de ‘elaboração’. A quinta, proveniente do superego e a última a ser
descoberta, é também a mais obscura, embora nem sempre a menos poderosa. Parece originar-se do
sentimento de culpa ou da necessidade de punição, opondo-se a todo movimento no sentido do êxito,
inclusive, portanto, à recuperação do próprio paciente pela análise.
(b) Ansiedade a Partir da Transformação da Libido
A opinião sobre a ansiedade que formulei nestas páginas diverge um tanto da que até agora
julguei correta. Anteriormente considerei a ansiedade como uma reação geral do ego sob condições de
desprazer. Sempre procurei justificar seu aparecimento com base em fundamentos econômicos e
presumi, alicerçado em minhas investigações das neuroses ‘atuais’, que a libido (excitação sexual) que
era rejeitada ou não utilizada pelo ego encontrava descarga direta sob a forma de ansiedade. Não se
pode negar que essas várias asserções não se ajustavam muito bem, ou, seja como for, não decorriam
necessariamente umas das outras. Além disso, davam a impressão de haver uma vinculação
especialmente estreita entre a ansiedade e a libido e isto não estava conforme ao caráter geral da
ansiedade como uma reação ao desprazer. A objeção a esse ponto de vista surgiu por termos
considerado o ego como a sede única da ansiedade. Foi um dos resultados da tentativa de uma divisão
estrutural do aparelho mental que fiz em O Ego e o Id. Ao passo que o antigo ponto de vista tornava
natural supor que a ansiedade decorria da libido pertencente aos impulsos instintuais reprimidos, o novo,
pelo contrário, tornava o ego a fonte da ansiedade. Trata-se assim da ansiedade (do id) ou da ansiedade
do ego. Visto que a energia que o ego emprega é dessexualizada, o novo ponto de vista também tendia a
enfraquecer a estreita ligação entre a ansiedade e a libido. Espero haver pelo menos conseguido tornar
clara a contradição e ter apresentado uma idéia nítida do ponto em dúvida.
A asserção de Rank - que foi originalmente minha - de que a emoção da ansiedade é uma
conseqüência do fato do nascimento e uma repetição da situação então experimentada, obrigou-me a
rever mais uma vez o problema da ansiedade. Mas não pude fazer qualquer progresso com a idéia dele
de que o nascimento é um trauma, estados de ansiedade, uma reação de descarga ao mesmo e todos os
afetos de ansiedade subseqüentes uma tentativa de ‘ab-reagi-lo’ cada vez mais completamente. Fui
obrigado a partir de volta da relação de ansiedade até a situação de perigo que estava por trás dele. A
introdução desse elemento abriu novos aspectos da questão. O nascimento foi encarado como sendo o
protótipo de todas as situações ulteriores de perigo que se apoderavam do indivíduo sob as novas
condições decorrentes de um modo de vida modificado e um crescente desenvolvimento mental. Por
outro lado, seu próprio significado foi reduzido a essa relação prototípica como perigo. A ansiedade
sentida ao nascer tornou-se o protótipo de um estado afetivo que teve de sofrer as mesmas vicissitudes
que os outros afetos. Ou o estado de ansiedade se reproduzia automaticamente em situações análogas à
situação original e era assim uma forma inadequada de reação em vez de apropriada, como o fora na
primeira situação de perigo, ou o ego adquiria poder sobre essa emoção, reproduzia-a por sua própria
iniciativa e a empregava como uma advertência de perigo e como um meio de pôr o mecanismo de
prazer-desprazer em movimento. Demos assim ao aspecto biológico do afeto de ansiedade sua devida
importância, reconhecendo a ansiedade como a reação geral a situações de perigo, enquanto
endossávamos o papel desempenhado pelo ego como a sede da ansiedade, atribuindo-lhe a função de
produzir afeto de ansiedade de acordo com suas necessidades. Assim atribuímos duas modalidades de
origem à ansiedade na vida posterior. Uma era involuntária, automática e sempre justificada sob
fundamentos econômicos, e ocorria sempre que uma situação de perigo análoga ao nascimento se havia
estabelecido. A outra era produzida pelo ego logo que uma situação dessa espécie simplesmente
ameaçava ocorrer, a fim de exigir sua evitação. No segundo caso o ego sujeita-se à ansiedade como
uma espécie de inoculação, submetendo-se a um ligeiro ataque da doença a fim de escapar a toda sua
força. Ele vividamente imagina a situação de perigo, por assim dizer, com a finalidade inegável de
restringir aquela experiência aflitiva a uma mera indicação, a um sinal. Já vimos com pormenores,ver em
[[1] e [2]] como as várias situações de perigo surgem uma após a outra, conservando ao mesmo tempo
uma vinculação genética.
Talvez sejamos capazes de continuar um pouco além em nossa compreensão da ansiedade
quando voltarmos para o problema da relação entre a ansiedade neurótica e a ansiedade realística,ver
em [[1]]
Nossa hipótese anterior de uma transformação direta da libido em ansiedade possui menos
interesse para nós agora do que antes. Mas se a considerarmos, teremos de distinguir diferentes casos.
No tocante à ansiedade evocada pelo ego como um sinal, ela não entra em consideração, nem, portanto,
em qualquer daquelas situações de perigo que suscitam o ego a provocar repressão. A catexia libidinal
do impulso sexual reprimido é empregada de outra forma que não a de ser transformada e descarregada
como tal - como se verifica de maneira bem clara na histeria de conversão. Por outro lado, uma
indagação ulterior da questão da situação de perigo trará à nossa atenção um exemplo da produção de
ansiedade que, penso eu, tem de ser explicado de forma diferente,ver em [[1]].
(c) Repressão e Defesa
No curso da apreciação do problema da ansiedade revivi um conceito ou, dizendo de maneira
mais modesta, uma expressão, da qual fiz uso exclusivo trinta anos atrás quando comecei pela primeira
vez a estudar o assunto, mas depois o abandonei. Refiro-me à expressão ‘processo defensivo’. Substituí-
a depois pela palavra ‘repressão’, mas a relação entre as duas continuou incerta. Constituirá uma
vantagem indubitável, penso eu, reverter ao antigo conceito de ‘defesa’, contanto que o empreguemos
explicitamente como uma designação geral para todas as técnicas das quais o ego faz uso em conflitos
que possam conduzir a uma neurose, ao passo que conservamos a palavra ‘repressão’ para o método
especial de defesa com o qual a linha de abordagem adotada por nossas investigações nos tornou mais
bem familiarizados no primeiro exemplo.
Mesmo uma inovação puramente terminológica deve justificar sua adoção; ela deve refletir algum
novo ponto de vista ou certa extensão de conhecimento. A revivescência do conceito da defesa e a
restrição do de repressão levam em conta um fato de há muito conhecido, mas que recebeu importância
adicional devido a algumas novas descobertas. Nossas primeiras observações de repressão e da
formação de sintomas foram feitas em relação com a histeria. Verificamos que o conteúdo perceptual de
experiências excitantes e o conteúdo ideativo de estruturas patogênicas de pensamento foram
esquecidos e impedidos de ser reproduzidos na lembrança, e concluímos portanto que o manter-se
afastado da consciência constitui uma característica principal da repressão histérica. Posteriormente,
quando passamos a estudar as neuroses obsessivas, constatamos que naquela doença as ocorrências
patogênicas não são esquecidas. Permanecem conscientes, mas são ‘isoladas’ de uma forma que até
podemos apreender, de modo que se obtém o mesmo resultado que na amnésia histérica. Não obstante,
a diferença é bastante grande para justificar a crença de que o processo pelo qual as exigências
instintuais são postas de lado na neurose obsessiva não pode ser o mesmo que na histeria.
Investigações ulteriores têm revelado que na neurose obsessiva uma regressão dos impulsos instintuais
a uma fase libidinal mais antiga é provocada mediante a oposição do ego, e que essa regressão, embora
não torne a repressão desnecessária, funciona claramente no mesmo sentido que a repressão. Também
vimos que na neurose obsessiva a anticatexia, que também presumivelmente se acha na histeria,
desempenha papel especialmente relevante na proteção do ego, efetuando nele uma alteração reativa.
Nossa atenção, além disso, foi despertada para um processo de ‘isolamento’ (cuja técnica ainda não
pode ser elucidada) que encontra manifestação sintomática direta e para um procedimento, que pode ser
denominado mágico, de ‘desfazer’ o que foi feito - procedimento sobre cuja finalidade defensiva não pode
haver qualquer dúvida, mas que não apresenta mais qualquer semelhança com o processo de
‘repressão’. Essas observações oferecem fundamentos bastante sólidos para a reintrodução do antigo
conceito de defesa, que pode abranger todos os processos que tenham a mesma finalidade - a saber, a
proteção do ego contra as exigências instintuais -, e para nele classificar a repressão como um caso
especial. A importância dessa nomenclatura é realçada se considerarmos a possibilidade de que
investigações ulteriores poderão revelar haver estreita ligação entre formas especiais de defesa e
doenças específicas, como, por exemplo, entre repressão e histeria. Além disso, podemos antecipar a
possível descoberta de ainda outra importante correlação. Pode muito bem acontecer que antes da sua
acentuada clivagem em um ego e um id, e antes da formação de um superego, o aparelho mental faça
uso de diferentes métodos de defesa dos quais ele se utilize após haver alcançado essas fases de
organização.
B - OBSERVAÇÕES SUPLEMENTARES SOBRE A ANSIEDADE
O afeto da ansiedade apresenta uma ou duas características cujo estudo promete lançar mais luz
sobre o assunto. A ansiedade [Angst] tem inegável relação com a expectativa: é ansiedade por algo. Tem
uma qualidade de indefinição e falta de objeto. Em linguagem precisa empregamos a palavra ‘medo’
[Furcht] de preferência a ‘ansiedade’ [Angst] se tiver encontrado um objeto. Ademais, além de sua
relação com o perigo, a ansiedade tem uma relação com a neurose que há muito estamos tentando
elucidar. Surge a questão: por que todas as reações não são neuróticas - por que aceitamos tantas delas
como normais? E finalmente o problema da diferença entre ansiedade realística e ansiedade neurótica
aguarda um exame completo.
Para começarmos com o último problema. O progresso que alcançamos é que fomos atrás de
reações de ansiedade até situações de perigo. Se fizermos a mesma coisa com a ansiedade realística
não teremos qualquer dificuldade para solucionar a questão. O verdadeiro perigo é um perigo que é
conhecido, sendo a ansiedade realística a ansiedade por um perigo conhecido dessa espécie. A
ansiedade neurótica é a ansiedade por um perigo desconhecido. O perigo neurótico é assim um perigo
que tem ainda de ser descoberto. A análise tem revelado que se trata de um perigo instintual. Levando
esse perigo que não é conhecido do ego até a consciência, o analista faz com que a ansiedade neurótica
não seja diferente da ansiedade realística, de modo que com ela se pode lidar da mesma maneira.
Existem duas reações ao perigo real. Uma reação afetiva, uma irrupção de ansiedade. A outra é
uma ação protetora. O mesmo presumivelmente se aplicará ao perigo instintual. Sabemos como as duas
reações podem cooperar de forma apropriada, uma dando o sinal para que a outra surja. Mas também
sabemos que elas podem comportar-se de modo impróprio: a paralisia proveniente da ansiedade pode
sobrevir, difundindo-se uma reação à custa da outra.
Em alguns casos as características da ansiedade realística e da ansiedade neurótica se acham
mescladas. O perigo é conhecido e real, mas a ansiedade referente a ele é supergrande, maior do que
nos parece apropriado. É esse excedente de ansiedade que trai a presença de um elemento neurótico.
Tais casos, contudo, não introduzem qualquer princípio novo, pois a análise revela que ao perigo real
conhecido se acha ligado um perigo instintual desconhecido.
Podemos descobrir ainda mais sobre isso se, não contentes em rastrearmos a ansiedade no
perigo, prosseguirmos indagando qual é a essência e o significado de uma situação de perigo.
Claramente, ela consiste na estimativa do paciente quanto à sua própria força em comparação com a
magnitude do perigo e no seu relacionamento de desamparo em face desse perigo - desamparo físico se
o perigo for real e desamparo psíquico se for instintual. Ao proceder assim o indivíduo será orientado
pelas experiências reais que tiver tido. (Quer ele esteja certo ou errado em sua estimativa não importa
quanto ao resultado.) Denominemos uma situação de desamparo dessa espécie, que ele realmente
tenha experimentado, de situação traumática. Teremos então bons motivos para distinguir uma situação
traumática de uma situação de perigo.
O indivíduo terá alcançado importante progresso em sua capacidade de autopreservação se
puder prever e esperar uma situação traumática dessa espécie que acarrete desamparo, em vez de
simplesmente esperar que ela aconteça. Intitulemos uma situação que contenha o determinante de tal
expectativa de uma situação de perigo. É nessa situação que o sinal de ansiedade é emitido. O sinal
anuncia: ‘Estou esperando que uma situação de desamparo sobrevenha’ ou ‘A presente situação me faz
lembrar uma das experiências traumáticas que tive antes. Portanto, preverei o trauma e me comportarei
como se ele já tivesse chegado, enquanto ainda houver tempo para pô-lo de lado.’ A ansiedade, por
conseguinte, é, por um lado, uma expectativa de um trauma e, por outro, uma repetição dele em forma
atenuada. Assim os dois traços de ansiedade que notamos têm uma origem diferente. Sua vinculação
com a expectativa pertence à situação de perigo, ao passo que sua indefinição e falta de objeto
pertencem à situação traumática de desamparo - a situação que é prevista na situação de perigo.
Seguindo essa seqüência, ansiedade-perigo-desamparo (trauma), podemos agora resumir o que
se disse. Uma situação de perigo é uma situação reconhecida, lembrada e esperada de desamparo. A
ansiedade é a reação original ao desamparo no trauma, sendo reproduzida depois da situação de perigo
como um sinal em busca de ajuda. O ego, que experimentou o trauma passivamente, agora o repete
ativamente, em versão enfraquecida, na esperança de ser ele próprio capaz de dirigir seu curso. É certo
que as crianças se comportam dessa maneira em relação a toda impressão aflitiva que recebem,
reproduzindo-a em suas brincadeiras. Ao passarem assim da passividade para a atividade tentam
dominar suas experiências psiquicamente. Se isto é o que se quer dizer por ‘ab-reação de um trauma’
não podemos ter mais nada a incitar contra a expressão. [Ver [1].] Mas o que é de importância decisiva é
o primeiro deslocamento da reação de ansiedade de sua origem na situação de desamparo para uma
expectativa dessa situação - isto é, para a situação de perigo. Depois disso vêm os deslocamentos
ulteriores, do perigo para o determinante do perigo - perda do objeto e das modificações dessa perda
com as quais já nos familiarizamos.
O resultado indesejável de ‘estragar’ uma criancinha é ampliar a importância do perigo de perder
o objeto (sendo o objeto uma proteção contra toda situação de desamparo) em comparação com
qualquer outro perigo. Ele portanto estimula o indivíduo a permanecer no estado de infância, cujo período
de vida se caracteriza pelo desamparo motor e psíquico.
Até agora não tivemos oportunidade alguma de considerar a ansiedade realística sob qualquer
luz diferente da ansiedade neurótica. Sabemos qual a distinção. Um perigo real é aquele que ameaça
uma pessoa a partir de um objeto externo, e um perigo neurótico é aquele que a ameaça a partir de uma
exigência instintual. Até onde a exigência instintual é algo, também se pode admitir que a ansiedade
neurótica da pessoa tenha uma base realística. Vimos que a razão pela qual parece haver uma
vinculação especialmente estreita entre a ansiedade e a neurose é que o ego se defende contra um
perigo instintual com a ajuda da reação de ansiedade, do mesmo modo que o faz contra um perigo real
externo, mas que essa linha de atividade defensiva resulta numa neurose devido a uma imperfeição do
aparelho mental. Chegamos também à conclusão de que uma exigência instintual freqüentemente só se
torna um perigo (interno) porque sua satisfação provocaria um perigo externo - isto é, porque o perigo
interno representa um perigo externo.
Por outro lado, o perigo externo (real) deve também ter conseguido tornar-se internalizado, se se
quiser que seja significativo para o ego. Ele deve ter sido reconhecido como relacionado com certa
situação de desamparo que foi experimentada. O homem não parece ter sido dotado, ou ter sido dotado
num grau muito pequeno, de reconhecimento instintual dos perigos que o ameaçam de fora. Criancinhas
estão constantemente fazendo coisas que põem em perigo suas vidas, e eis precisamente por que não
podem passar sem um objeto protetor. Em relação à situação traumática, na qual o paciente está
desamparado, convergem perigos externos e internos, perigos reais e exigências instintuais. Quer o ego
esteja sofrendo de uma dor que não pára ou experimentando um acúmulo de necessidades instintuais
que não podem obter satisfação, a situação econômica é a mesma, e o desamparo motor do ego
encontra expressão no desamparo psíquico.
Nesse sentido as fobias desorientadoras da primeira infância merecem ser mencionadas mais
uma vez. [Ver [1].] Fomos capazes de explicar algumas delas, tais como o medo de ficar sozinho ou no
escuro ou com estranhos, como reações ao perigo de perder o objeto. Outras, como o medo de
animaizinhos, trovoadas etc., talvez pudessem ser explicadas como traços vestigiais do preparo
congênito para fazer face a perigos reais tão acentuadamente desenvolvidos em outros animais. No
homem, só é apropriada aquela parte dessa herança arcaica que tem referência à perda do objeto. Se as
fobias de infância se tornarem fixadas e ficarem mais fortes e persistirem até anos depois, a análise
revela que o conteúdo delas se associou às exigências instintuais e veio também representar perigos
internos.
C - ANSIEDADE, DOR E LUTO
Sabe-se tão pouco acerca da psicologia dos processos emocionais que as observações
experimentais que estou prestes a fazer sobre o assunto podem reivindicar um julgamento muito suave.
O problema diante de nós decorre da conclusão à qual chegamos de que ansiedade vem a ser uma
reação ao perigo de uma perda de objeto. Agora já conhecemos uma reação à perda de um objeto, que é
o luto. A questão portanto é: quando essa perda conduz à ansiedade e quando ao luto? Ao examinar o
assunto do luto em ocasião anterior constatei que havia uma característica dele que continuava
absolutamente sem explicação. Isto era seu estado de dor peculiar. [Cf. p. 132.] E contudo parece
evidente por si mesmo que a separação de um objeto deve ser dolorosa. Assim o problema torna-se mais
complicado: quando a separação de um objeto produz ansiedade, quando produz luto e quando produz,
pode ser, somente dor?
Digamos de imediato que não há qualquer perspectiva à vista para responder a essas perguntas.
Devemos contentar-nos em traçar certas distinções e esboçar certas possibilidades.
Nosso ponto de partida será novamente a única situação que acreditamos compreender - a
situação da criancinha quando se lhe apresenta um estranho em vez de sua mãe. A primeira exibirá a
ansiedade que atribuímos ao perigo de perda de objeto. Mas sua ansiedade é indubitavelmente mais
complicada do que isto e merece um exame mais completo. Que ela tem ansiedade não resta a menor
dúvida, mas a expressão de seu rosto e sua reação de chorar indicam que ela está também sentindo dor.
Nela parecem estar reunidas certas coisas que depois serão separadas. Ela não pode ainda distinguir
entre a ausência temporária e a perda permanente. Logo que perde a mãe de vista comporta-se como se
nunca mais fosse vê-la novamente; e repetidas experiências consoladoras, ao contrário, são necessárias
antes que ela aprenda que o desaparecimento da mãe é, em geral, seguido pelo seu reaparecimento. A
mãe encoraja esse conhecimento, que é tão vital para a criança, fazendo aquela brincadeira tão
conhecida de esconder dela o rosto com as mãos e depois, para sua alegria, de descobri-lo de novo.
Nessas circunstâncias a criança pode, por assim dizer, sentir anseio desacompanhado de desespero.
Em conseqüência da incompreensão dos fatos pela criança, a situação de sentir falta da mãe não
é uma situação de perigo mais uma situação traumática. Ou, para dizê-lo mais corretamente, é uma
situação traumática se acontecer que a criança na época esteja sentindo uma necessidade que sua mãe
seja a pessoa a satisfazer. Transforma-se numa situação de perigo se essa necessidade não estiver
presente no momento. Assim, o primeiro determinante da ansiedade, que o próprio ego introduz, é perda
de percepção do objeto (que é equacionada com a perda do próprio objeto). Ainda não se trata de perda
de amor. Posteriormente, a experiência ensina à criança que o objeto pode estar presente mas
aborrecido com ela; e então a perda de amor a partir do objeto se torna um novo perigo e muito mais
duradouro e determinante de ansiedade.
A situação traumática de sentir falta da mãe difere num aspecto importante da situação
traumática de nascimento. No nascimento não existia qualquer objeto e dessa forma não se podia sentir
falta alguma deste. A ansiedade era a única reação que ocorria. Desde então, repetidas situações de
satisfação criaram um objeto da mãe e esse objeto, sempre que a criança sente uma necessidade,
recebe uma intensa catexia que pode ser descrita como de ‘anseio’. A dor é assim a reação real à perda
de objeto, enquanto a ansiedade é a reação ao perigo que essa perda acarreta e, por um deslocamento
ulterior, uma reação ao perigo da perda do próprio objeto.
Sabemos também muito pouco sobre a dor. O único fato do qual temos certeza é que a dor
ocorre em primeiro lugar e como uma coisa regular sempre que um estímulo que incide na periferia
irrompe através dos dispositivos do escudo protetor contra estímulos e passa a atuar como um estímulo
instintual contínuo, contra o qual a ação muscular, que é em geral efetiva porque afasta do estímulo o
ponto que está sendo estimulado, é impotente. Se a dor provier não de uma parte da pele mas de um
órgão interno, a situação é ainda a mesma. Tudo que aconteceu é que uma parte da periferia interna
ocupou o lugar da periferia externa. A criança obviamente tem ocasião de sofrer experiências de dor
dessa classe, que são independentes das necessidades de experiência da criança. Esse determinante da
geração de dor parece, contudo, ter muito pouca semelhança com a perda de um objeto. E além disso, o
elemento que é essencial à dor, o estímulo periférico, está de todo ausente da situação de anseio da
criança. Contudo, não pode ser para nada que o uso comum da palavra tenha criado a idéia de dor
interna mental e tenha tratado o sentimento de perda de objeto como equivalente à dor física.
Quando há dor física, ocorre um alto grau do que pode ser denominado de catexia narcísica do
ponto doloroso. Essa catexia continua a aumentar e tende, por assim dizer, a esvaziar o ego.Sabe-se que
quando os órgãos internos nos transmitem dor recebemos representações espaciais e outras
representações de partes do corpo que de maneira comum não são absolutamente representadas em
ideação consciente. Ademais, o fato marcante de que, quando há um desvio psíquico ocasionado por
algum outro interesse, mesmo as dores físicas mais intensas deixam de seguir (não devo dizer
‘permanecem inconscientes’ nesse caso) pode ser explicado por haver uma concentração de catexia no
representante psíquico da parte do corpo que está emitindo dor. Penso ser aqui que encontraremos o
ponto de analogia que tornou possível levar sensações de dor até a esfera mental, pois a intensa catexia
de anseio que está concentrada no objeto do qual se sente falta ou que está perdido (uma catexia que
aumenta com firmeza porque não pode ser apaziguada) cria as mesmas condições econômicas que são
criadas pela catexia da dor que se acha concentrada na parte danificada do corpo. Assim, o fato da
acusação periférica da dor física pode ser deixado de lado. A transição da dor física para a mental
corresponde a uma mudança da catexia narcísica para a catexia de objeto. Uma representação de objeto
que esteja altamente catexizada pela necessidade instintual desempenha o mesmo papel que uma parte
do corpo catexizada por um aumento de estímulo. A natureza contínua do processo catexial e a
impossibilidade de inibi-lo produzem o mesmo estado de desamparo mental. Se o sentimento de
desprazer que então surge tem o caráter específico de dor (um caráter que não pode ser descrito mais
exatamente) em vez de manifestar-se na forma reativa de ansiedade, plausivelmente podemos atribuir
isso a um fator do qual ainda não fizemos suficientemente uso em nossas explicações - o alto nível de
catexia e ‘ligação’ que predomina enquanto ocorrem esses processos queconduzem a um sentimento de
desprazer. Conhecemos ainda outra reação emocional à perda de um objeto, que é o luto. Mas não
temos mais qualquer dificuldade em explicá-la. O luto ocorre sob a influência do teste de realidade, pois a
segunda função exige categoricamente da pessoa desolada que ela própria deva separar-se do objeto,
visto que ele não mais existe. Ao luto é confiada a tarefa de efetuar essa retirada do objeto em todas
aquelas situações nas quais ele foi o recipiente de elevado grau de catexia. Que essa situação deva ser
dolorosa ajusta-se ao que acabamos de dizer, em vista da catexia de anseio, elevada e não passível de
satisfação, que está concentrada no objeto pela pessoa desolada durante a reprodução das situações
nas quais ela deve desfazer os laços que a ligam a ele.
APÊNDICE A: REPRESSÃO E DEFESA
O relato que Freud faz na [1] e [2] da história de seu uso dos dois termos talvez seja um pouco
confusa, e seja como for merece ser ampliada. Ambos ocorreram muito livremente durante o período de
Breuer. O primeiro aparecimento de ‘repressão (Verdrängung)’ foi na ‘Comunicação Preliminar’ (1893a),
Edição Standard Brasileira, Vol, II, p. 51 IMAGO Editora, 1974, e o de ‘defesa (Abwehr)’ foi no primeiro
artigo sobre ‘The Neuro-Psychoses of Defense (1894a). Nos Estudos sobre a Histeria (1895d),
‘repressão’ apareceu cerca de doze vezes e ‘defesa’ um pouco mais que isso. Parece ter havido certa
discriminação, contudo, entre o emprego dos termos: ‘repressão’ parece ter descrito o processo real, e
‘defesa’ o motivo dele. Não obstante, no prefácio à primeira edição dos estudos (Edição Standard
Brasileira, Vol. II, p. 37, IMAGO Editora, 1974) os autores parecem haver equacionado os dois conceitos,
porquanto mencionaram sua opinião de que a ‘sexualidade parece desempenhar um papel principal...
como motivo para “defesa” - isto é, para reprimir idéias da consciência’. E, ainda mais explicitamente,
Freud, no primeiro parágrafo de seu segundo artigo sobre ‘The Neuro-Psychoses of Defense’ (1896b)
aludiu ao ‘processo psíquico de “defesa” ou “repressão”’.
Após o período de Breuer - isto é, mais ou menos a partir de 1897 - houve uma redução na
freqüência do uso de ‘defesa’. Não foi abandonada inteiramente, contudo, e será encontrada várias
vezes, por exemplo, no Capítulo VII da primeira edição de The Psychopathology of Everyday Life (1910b)
e na Seção 7 do Capítulo VII do livro de chistes (1950c). Mas ‘repressão’ já estava começando a
predominar, tendo sido quase exclusivamente empregada no caso clínico de ‘Dora’ (1950e) e nos Três
Ensaios (1905d). E logo depois disto, chamou-se explicitamente a atenção para a mudança, num artigo
sobre sexualidade das neuroses (1906a), datado de junho de 1905. No curso de um levantamento
histórico de seus pontos de vista, e ao tratar do período pós-Breuer imediato, Freud teve ocasião de
mencionar o conceito e escreveu: ‘... “repressão” (como eu começara a dizer, em vez de “defesa”)...’
(Edição Standard Brasileira, Vol. VII, p. 288, IMAGO Editora, 1972).A ligeira inexatidão que tinha
começado a aparecer nessa frase tornou-se mais acentuada numa frase paralela em ‘A História do
Movimento Psicanalítico’ (1914d), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, p. 20, IMAGO Editora, 1974. Aqui
Freud, mais uma vez escrevendo sobre o término do período de Breuer, observou: ‘encarava a própria
divisão psíquica como o efeito de um processo de repulsão que naquela ocasião denominei de “defesa”,
e depois, de “repressão”.’
Após 1905 a predominância de ‘repressão’ aumentou ainda mais, até que, por exemplo, na
análise do ‘Rat Man’ (1909d), vamos encontrar (Standard Ed., 10, 196) Freud falando de ‘duas espécies
de repressão’, utilizadas respectivamente em histeria e neurose obsessiva. Este é um exemplo
especialmente simples onde, no esquema revisto sugerido no presente trabalho, ele teria falado de ‘duas
espécies de defesa‘.
Mas não foi muito antes da utilidade de ‘defesa’ como um termo mais abrangente que ‘repressão’
começou discretamente a surgir - particularmente nos artigos metapsicológicos. Assim, as ‘vicissitudes’
dos instintos, um dos quais somente é ‘repressão’, foram consideradas como ‘modalidades de defesa‘
contra eles (Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, Pp. 147, 153 e 170, IMAGO Editora, 1974), e, mais uma
vez, ‘projeção’ foi mencionada como um ‘mecanismo’ ou ‘meio de defesa’ (ibid., 211 e 255). Somente dez
anos depois, contudo, no presente trabalho, é que se reconheceu explicitamente a conveniência de
distinguir entre o emprego dos dois termos.
APÊNDICE B: LISTA DE ESCRITOS DE FREUD QUE TRATAM PREDOMINANTEMENTE OU
EM GRANDE PARTE DA ANSIEDADE
[O tópico da ansiedade ocorre em um número muito grande (talvez na maioria) dos escritos de
Freud. A relação seguinte poderá, não obstante, ser de algum uso prático. A data no início de cada
registro é a do ano no qual o trabalho em questão provavelmente foi escrito. A data no final é a de
publicação, e sob essa data maiores pormenores da obra serão encontrados na Bibliografia e Índice de
Autores. Os itens entre colchetes foram publicados postumamente.]
[1893 Rascunho B. ‘The Aetiology of the Neuroses’, Seção II. (1950a)]
[1894 Rascunho E. ‘How Anxiety Originates’. (1950a)]
[1894 Rascunho F. ‘Collection III’, Nº 1. (1950 a)]
[1895 (?) Rascunho J. (1950a)]
1894 ‘Obsessions and Phobias’, Seção II. (1895c)
1895 ‘On the grounds for Detaching a Particular Syndrome from Neurasthenia under the
description “Anxiety Neurosis”.’ (1895b)
1895 ‘A Reply to Criticisms of my Paper on Anxiety Neurosis’. (1895f)
1909 ‘Analysis of a Phobia in a Five-Year-Old Boy’. (1909b)
1910 ‘Psicanálise “Silvestre”.’ (1910k)
1914 ‘From the History of an Infantile neurosis’. (1918b)
1917 Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferência XXV. (1916-17)
1925 Inibições, Sintomas e Ansiedade. (1926d)
1932 New Introductory Lectures on Psycho-Analysis, Conferência XXXII (Primeira Parte). (1933a)
A QUESTÃO DA ANÁLISE LEIGA: CONVERSAÇÕES COM UMA
PESSOA IMPARCIAL (1926)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DIE FRAGE DER LAIENANALYSE
Unterredungen mit einem Unparteiischen
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1926 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 123 Pp.
1928 G.S., 11, 307-84.
1948 G.W., 14, 209-86.
1927 ‘Nachwort zur Frage der Laienanalyse‘, Int. Z. Psychoanal., 13 (3), 326-32
1928 G.S., 11, 385-94.
1948 G.W., 14, 287-96.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
The Problem of Lay-Analyses
1927 Em The Problem of Lay-Analyses, Nova Iorque: Brentano. Pp. 25-186. (Trad. de A.
P. Maerker-Branden; pref. de S. Ferenczi.) O volume abrange também An Autobiographical Study
(ver acima, p. 14).
The Question of Lay-Analysis: an Introduction to Psycho-Analysis
1947 Londres: Imago Publishing Co. vi + 81 Pp. (Trad. de N. Procter-Gregg; pref.de
Ernest Jones.)
1950 Nova Iorque: Norton. 125 Pp. (Reimpressão da anterior.)
1927 ‘Concluding Remarks on the Question of Lay Analysis’ Int. J. Psycho-Anal., 8 (3),
392-8. (Trad. não especificada.)
1950 ‘Postcript to a Discussion on Lay Analysis’, C.P., 5, 205-14. (Trad. de James
Strachey.)
Um resumo do original alemão, sob o título ‘Psychoanalyse und Kurpfuscherei’ (‘Psicanálise e
Charlatanismo’), foi incluído em Almanach 1927, 47-59, publicado em setembro de 1926 mais ou menos
na mesma época que o próprio volume. A presente tradução inglesa da obra principal (com um subtítulo
diferente) é um trabalho inteiramente novo de James Strachey; a tradução do ‘Pós-Escrito’ é uma
reimpressão revista da publicada em 1950.Em fins da primavera de 1926 foi dado início a um processo,
em Viena, contra Theodor Reik, proeminente membro não-médico da Sociedade Psicanalítica de Viena.
Foi acusado, segundo informações prestadas por alguém que ele viera tratando analiticamente, de
violação de uma antiga lei austríaca contra ‘charlatanismo’ - lei que tornava ilegal que uma pessoa sem
um grau médico tratasse de pacientes. Freud de imediato interveio energicamente. Ele discutiu o caso
privadamente com um funcionário de alta categoria, e passou a preparar o presente trabalho para
publicação imediata. Começou a escrevê-lo no fim de junho, e antes do fim de julho ele estava em
impressão, vindo a lume em setembro. Em parte, talvez, como resultado de sua intervenção, mas em
parte porque as provas foram insatisfatórias, o promotor público encerrou o processo após uma
investigação preliminar. (Ver o ‘Pós-Escrito’, [1].)
O assunto, contudo, não parou aí. A publicação do trabalho de Freud situou em primeiro plano as
acentuadas diferenças de opinião sobre a permissibilidade da psicanálise não-médica que existiam no
âmbito das próprias sociedades psicanalíticas. Considerou-se aconselhável, portanto, ventilar a questão,
e uma longa série de opiniões abalizadas (28 ao todo) de analistas de vários países foi publicada em
1927 nos dois periódicos oficiais - em alemão no Internationale Zeischrift (Partes 1, 2 e 3 do volume XIII)
e em inglês no International Journal (Partes 2 e 3 do Volume VIII). A série foi concluída pelo próprio Freud
num pós-escrito (impresso adiante, [1])no qual ele responde aos argumentos dos seus opositores e
enunciou novamente seu próprio caso.
Um relato bem completo dos pontos de vista de Freud sobre o assunto será encontrado no
Capítulo IX (‘Lay-Analysis’) do terceiro volume da biografia de Freud por Ernest Jones (1957, 309 e
segs.). Desde os primeiros tempos ele se apegou vigorosamente à opinião de que a psicanálise não
devia ser considerada puramente como uma preocupação da profissão médica. Sua primeira expressão
em letra de forma sobre o assunto parece ter sido em seu prefácio, de 1913, a um livro de Pfister (Freud
19143b); e em carta (citada por Jones, ibid., 323), escrita bem no fim de sua vida, em 1938, ele declarou
que ‘Jamais repudiei esses pontos de vista e insisto neles ainda mais intensamente do que antes’. Mas
foi no trabalho que se segue que discutiu o assunto mais de perto e plenamente.
Independente, contudo, do exame da questão da análise leiga, Freud apresentou nas páginas
seguintes o que foi talvez seu relato não técnico mais bem-sucedido da teoria e prática da psicanálise,
escrito no seu estilo mais vivo e leve. A parte teórica, em particular, possui a vantagem sobre suas obras
expositórias mais antigas de haver sido elaborada após a grande elucidação de seus pontos de vista
sobre a estrutura da mente em O Ego e o Id (1923b).
A QUESTÃO DA ANÁLISE LEIGA: CONVERSAÇÕES COM UMA PESSOA IMPARCIAL
INTRODUÇÃO
O título deste pequeno trabalho não é de pronto inteligível. Portanto, eu o explicarei. ‘Leigo’ =
‘Não-médico’; e a questão é se os não-médicos bem como os médicos devem ter permissão para praticar
a análise. Essa questão tem suas limitações tanto no tempo como no espaço. No tempo, porque até
agora ninguém se preocupou com quem pratica a análise. Na realidade, as pessoas se têm preocupado
pouquíssimo com isto - a única coisa com a qual estavam concordes era o desejo de que ninguém devia
praticá-la. Várias razões foram dadas para isto, mas se basearam na mesma falta de gosto fundamental.
Assim, a exigência de que somente médicos devem analisar corresponde a uma atitude nova e
aparentemente mais amistosa em relação à análise - se, isto é, ela puder escapar à desconfiança de ser,
afinal de contas, apenas um derivado ligeiramente modificado da atitude mais antiga. Admite-se que em
certas circunstâncias um tratamento analítico seja empreendido; mas, se for assim, somente os médicos
devem empreendê-lo. O motivo dessa restrição torna-se assim um assunto de indagação.
A questão está limitada no espaço porque não surge em todos os países com igual significado.
Na Alemanha e nos Estados Unidos isto não passaria de uma discussão acadêmica, pois naqueles
países qualquer paciente pode submeter-se a tratamento e por quem ele escolher, e qualquer um que ele
escolha pode, como um ‘charlatão’, lidar com quaisquer pacientes, contanto somente que ele assuma a
responsabilidade de suas ações. A lei não intervém até que seja chamada a sanar algum dano causado
ao paciente. Mas na Áustria, na qual e para a qual escrevo, existe uma lei preventiva, que proíbe aos
não-médicos empreenderem o tratamento de pacientes, sem aguardar o seu resultado. Dessa forma,
aqui a questão de se leigos ( = não-médicos) podem tratar pacientes pela psicanálise tem um sentido
prático. Logo que é levantada, contudo, parece ser solucionada pela letra da lei. Os neuróticos são
pacientes, os leigos são não-médicos, a psicanálise é um método paramétodo para curar ou melhorar as
perturbações nervosas, e todos esses tratamentos ficam reservados a médicos. Depreende-se que não
se permite aos leigos praticar a análise em neuróticos, sendo puníveis se não obstante agirem dessa
maneira. Sendo a posição tão simples, dificilmente alguém se aventura a chamar a si a questão da
análise leiga. Ainda assim, há certas complicações, com as quais a lei não se preocupa, mas que não
obstante exigem consideração. Talvez venha a acontecer que nesse caso os pacientes não sejam como
outros, que os leigos não sejam realmente leigos, e que os médicos não tenham exatamente as mesmas
qualidades que se teria o direito de esperar deles e nos quais suas alegações devem basear-se. Se isto
puder ser provado, haverá fundamentos justificáveis para exigir que a lei não seja aplicada sem
modificação ao caso perante nós.
I
Isto acontecer dependerá das pessoas que não são obrigadas a estar familiarizadas com as
peculiaridades de um tratamento analítico. Constitui nossa tarefa dar informações sobre o assunto a
essas pessoas imparciais, que presumimos estejam, no momento, ainda em ignorância. É de lamentar-se
que não possamos permitir-lhes a presença como auditório, em um tratamento dessa espécie. Mas a
‘situação analítica’ não permite a presença de terceiros. Além disso, as diferentes sessões são de valor
muito desigual. Um ouvinte não autorizado que por acaso presenciasse uma delas em geral não formaria
qualquer impressão útil; ele correria o perigo de não compreender o que se estava passando entre o
analista e o paciente, ou ficaria enfadado. Por bem ou por mal, portanto, ele deve contentar-se com
nossas informações, que tentaremos tornar tão dignas de confiança quanto possível.
Um paciente, então, pode estar sofrendo de flutuações em seus estados de ânimo que ele pode
controlar, ou de um sentimento de desalento pelo qual sua energia se sente paralisada porque pensa ser
incapaz de fazer algo adequadamente, ou de um constrangimento entre estranhos. Poderá perceber,
sem compreender a razão disso, que tem dificuldades em executar seu trabalho profissional, ou na
realidade qualquer decisão relativamente importante ou qualquer empreendimento. Ele poderá um dia ter
sofrido de um ataque aflitivo - desconhecido em sua origem - de sentimentos de ansiedade, e desde
então tornou-se incapaz, sem luta, de caminhar sozinho pela rua, ou de viajar de trem; talvez tenha tido
de desistir de ambos inteiramente. Ou, coisa bem marcante, seus pensamentos poderão seguir seu
próprio curso e se recusarem a ser dirigidos pela vontade do paciente. Eles perseguem problemas que
lhes são inteiramente indiferentes, mas dos quais não pode livrar-se. Tarefas bem ridículas lhe são
também impostas, tais como contar as janelas das frentes das casas. E quando tiver realizado ações
simples como pôr uma carta no correio ou desligar um bico de gás, ele se encontra, um momento depois,
a duvidar se realmente agiu assim. Isto poderá não ser mais do que aborrecimento e uma amolação. Mas
seu estado se torna intolerável se súbito verificar ser incapaz de desviar a idéia de que empurrou uma
criança para debaixo das rodas de um carro ou de que lançou um estranho da ponte dentro d’água, ou se
tem de perguntar a si mesmo se não é o assassino que a polícia está à procura em relação a um crime
que foi descoberto naquele dia. Isto é pura tolice, como ele próprio sabe; jamais cometeu dano algum
contra alguém, mas se fosse realmente o assassino que está sendo procurado, seu sentimento - seu
sentimento de culpa - não poderia ser mais forte.Ou ainda nosso paciente - e dessa vez vamos
considerá-lo como mulher - pode sofrer de outra forma e em campo diferente. Ela é pianista, mas os
dedos estão dominados pela cãibra e se recusam a servi-la. Ou quando pensa em ir a uma recepção ela
de pronto se torna cônscia de um apelo da natureza cuja satisfação seria incompatível com uma reunião
social. Ela desistiu, portanto, de freqüentar festas, bailes, teatros ou concertos. Ela se acha dominada por
violentas dores de cabeça ou outras sensações dolorosas em ocasiões que são as mais inconvenientes.
Poderá até ser incapaz de sustentar no estômago qualquer refeição que venha a ingerir - o que pode, em
última análise, tornar-se perigoso. E, finalmente, constitui um fato lamentável que não possa tolerar
quaisquer agitações, que afinal de contas são inevitáveis na vida. Em tais ocasiões ela sofre um desmaio,
muitas vezes acompanhado por espasmos musculares que recordam estados patológicos sinistros.
Outros pacientes, além disso, sofrem de perturbações num campo específico no qual a vida
emocional converge com exigências de natureza corpórea. Se são homens, verificam ser incapazes de
dar expressão física aos seus sentimentos mais ternos para com o sexo oposto, enquanto em relação
aos objetos menos amados talvez possam ter todas as reações sob seu domínio. Ou seus sentimentos
sensuais ligam-nos a pessoas que desprezam e das quais gostariam de livrar-se; ou esses mesmos
sentimentos impõem exigências a eles cuja realização eles próprios acham repulsiva. Se são mulheres,
sentem-se impedidas pela ansiedade ou repulsa ou por obstruções desconhecidas quanto ao
atendimento das exigências da vida sexual; ou, se se entregaram ao amor, constatam ter-lhes sido
negada a fruição que a natureza proporcionou como recompensa por tal atendimento.
Todas essas pessoas reconhecem estar doentes e recorrem a médicos, por meio dos quais as
pessoas esperam que perturbações nervosas como essas sejam eliminadas. Os médicos também
formulam as categorias nas quais se acham divididos esses males. Eles os diagnosticam, cada um de
acordo com seu próprio ponto de vista, sob nomes diferentes: neurastenia, psicastenia, fobias, neurose
obsessiva, histeria. Examinam os órgãos que produzem os sintomas, o coração, o estômago, os
intestinos, a genitália, e concluem que estão sãos. Recomendam interrupções no modo de vida habitual
do paciente, exercícios de fortalecimento, tônicos, e por esses meios ocasionam melhorias habituais - ou
absolutamente nenhum resultado. Eventualmente, os pacientes vêm a saber que há pessoas
interessadas de modo bem especial no tratamento de tais males e iniciam com elas uma análise.
Durante essa indagação sobre os sintomas dos neuróticos, a Pessoa Imparcial, que imagino
estar presente, vem mostrando sinais de impaciência.Nesse ponto, contudo, ela se torna atenta e
interessada. ‘Então agora’, diz ela ‘saberemos o que o analista faz com o paciente a quem o médico foi
incapaz de ajudar’.
Nada acontece entre eles, salvo que conversam entre si. O analista não faz uso de qualquer
instrumento - nem mesmo para examinar o paciente - nem receita quaisquer remédios. Se mesmo for
possível, deixa até o paciente em seu ambiente e no seu modo de vida habitual durante o tratamento.
Essa não é uma condição necessária, naturalmente, e talvez nem sempre seja praticável. O analista
concorda em fixar um horário com o paciente, faz com que ele fale, ouve o que ele diz, por sua vez
conversa com ele e faz com que ele ouça.
As feições da Pessoa Imparcial agora revelam sinais de alívio e relaxamento inegáveis, mas
também traem claramente certo desprezo. É como se ela estivesse pensando: ‘Nada mais do que isto?
Palavras, palavras, palavras, como diz o príncipe Hamlet.’ E sem dúvida ela também está pensando na
fala zombeteira de Mefistófeles sobre com que conforto se pode ir passando com palavras - versos que
nenhum alemão jamais esquecerá.
‘Assim é uma espécie de mágica’, comenta ela: ‘O senhor fala e dissipa seus males.’
Isto mesmo. Seria mágica se surtisse efeito um pouco mais rapidamente. Um atributo essencial
de um mágico é a rapidez - poder-se-ia dizer a subitaneidade - do sucesso. Mas os tratamentos analíticos
levam meses e mesmo anos: mágica tão lenta perde seu caráter miraculoso. E incidentalmente não
desprezemos a palavra. Afinal de contas, ela é um instrumento poderoso; é o meio pelo qual
transmitimos nossos sentimentos a outros, nosso método de influenciar outras pessoas. As palavras
podem fazer um bem indizível e causar terríveis feridas. Sem dúvida ‘no começo foi a ação’ e a palavra
veio depois; em certas circunstâncias ela significou um progresso da civilização quando os atos foram
amaciados em palavras. Mas originalmente a palavra foi magia - um ato mágico; e conservou muito de
seu antigo poder.
A Pessoa Imparcial continua: ‘Suponhamos que o paciente não esteja mais bem preparado para
compreender o tratamento analítico do que eu; então como o senhor vai fazê-lo acreditar na magia da
palavra ou da fala que deve libertá-lo de seus sofrimentos?’Algum preparo deve naturalmente ser-lhe
proporcionado, havendo uma maneira simples de fazê-lo. Convidá-lo a ser inteiramente sincero com o
seu analista, nada refrear intencionalmente que lhe venha à cabeça, e portanto pôr de lado toda reserva
que o possa impedir de informar sobre certos pensamentos ou lembranças. Cada um está cônscio de que
existem certas coisas em si que não estaria absolutamente disposto a contar a outras pessoas ou que
consideraria inteiramente fora de cogitação revelar. São elas suas ‘intimidades’. Essa pessoa também
não tem qualquer idéia - e isto representa um grande progresso no autoconhecimento psicológico - de
que há outras coisas que alguém não se importaria de admitir para consigo: coisas que alguém gosta de
ocultar de si próprio e que por esse motivo interrompe e expulsa de seus pensamentos se, apesar de
tudo, vierem à tona. Talvez ela própria observe que um problema psicológico muito marcante começa a
aparecer nessa situação - um pensamento seu sendo mantido em segredo para seu próprio eu (self). É
como se seu próprio eu (self) não fosse mais a unidade que ela sempre considerou que fosse, como se
houvesse algo mais também nela que pudesse enfrentar esse eu (self). Ela pode tornar-se obscuramente
cônscia de um contraste entre um eu (self) e uma vida mental no sentido mais lato. Se agora ela aceita a
exigência feita pela análise de que dirá tudo, facilmente se tornará acessível a uma expectativa de que ter
relações e trocas de pensamento com alguém sob condições inusitadas talvez possa também levar a
resultados inusitados.
‘Compreendo’, diz nossa Pessoa Imparcial. ‘O senhor presume que todo neurótico tem algo que
o oprime, algum segredo. E fazendo-o contar-lhe a respeito disto o senhor alivia sua opressão e lhe faz
bem. Isto, naturalmente, é o princípio da confusão, que a Igreja Católica utiliza desde tempos imemoriais
a fim de assegurar seu domínio sobre as mentes das pessoas.’
Devemos responder: ‘Sim e não!’ A confissão sem dúvida desempenha seu papel na análise
como uma introdução a ela, poderíamos dizer. Mas está muito longe de constituir a essência da análise
ou de explicar-lhe os efeitos. Na confissão o pecador conta o que sabe; na análise o neurótico tem mais a
dizer. Nem ouvimos falar que confissão tenha desenvolvido força suficiente para eliminar sintomas
patológicos reais.
‘Então, afinal de contas, eu não compreendo’, retruca nosso interlocutor. ‘O que possivelmente o
senhor quer dizer por “dizendo mais do que ele sabe”? Mas posso muito bem acreditar que como analista
o senhor consegue uma influência mais acentuada sobre seus pacientes do que um padre confessor
sobre seus penitentes, visto que os contatos do senhor com ele são muito mais longos, mais intensos e
também mais individuais, e visto que osenhor emprega essa maior influência para desviá-lo de seus
pensamentos doentios, para que, pela conversa, ele se livre de seus temores, e assim por diante. Por
certo seria estranho se fosse possível por tais meios controlar também fenômenos puramente mecânicos,
tais como vômitos, diarréia e convulsões; mas sei que uma influência como esta é de fato bem possível
se uma pessoa for levada a um estado de hipnose. Pelo trabalho que o senhor tem com o paciente
provavelmente consegue provocar uma relação hipnótica dessa natureza com ele - uma ligação
sugestiva com o senhor mesmo - muito embora o senhor talvez tenha essa intenção; e nesse caso os
resultados miraculosos do seu tratamento são o efeito de sugestão hipnótica. Mas, que eu saiba, o
tratamento hipnótico atua com muito maior rapidez do que a sua análise, a qual, conforme me diz, dura
meses e anos.’
Nossa Pessoa Imparcial não pode nem ser tão ignorante nem tão perplexa como de início
pensamos. Há sinais inegáveis de que ela está tentando compreender a psicanálise com a ajuda do seu
conhecimento anterior, de que está tentando ligá-la com algo que já conhece. Encontra-se agora diante
de nós a difícil tarefa de tornar-lhe claro que ela não será bem-sucedida nisto: que a análise é um
procedimento sui generis, algo novo e especial, que só pode ser compreendida com o auxílio de novas
compreensões internas (insights) - ou hipóteses, se isto soar melhor. Mas ela ainda está aguardando
nossas respostas a suas últimas observações.
O que se diz sobre a influência pessoal do analista certamente merece grande atenção. Uma
influência existe e desempenha relevante papel na análise - mas não o mesmo papel que no hipnotismo.
Deve ser possível convencê-lo de que as situações nos dois casos são bem diferentes. Talvez seja
bastante ressaltar que não devemos utilizar essa influência pessoal, o fator de ‘sugestão’, para suprimir
os sintomas da doença, como ocorre com a sugestão hipnótica. Ademais, seria um erro crer que esse
fator é o veículo e promotor do tratamento em toda sua extensão. No seu início, sem dúvida. Mas depois
ele se opõe às nossas intenções analíticas e nos força a adotar as contramedidas mais exageradas. E eu
gostaria de mostrar por um exemplo quão longe estão da técnica da análise o desviar os pensamentos de
um paciente e pela conversa afastá-lo dos problemas. Se um paciente nosso estiver sofrendo de um
sentimento de culpa, como se ele houvesse perpetrado um crime grave, não recomendamos que ele
despreze seus escrúpulos de consciência e não frise sua reconhecida inocência; ele próprio muitas vezes
tentou fazê-lo sem êxito. O que fazemos é recordar-lhe que um sentimento tão forte e persistente deve,
afinal de contas, estar baseado em algo real, que talvez possa ser possível descobrir.{#V20_P186}
‘Surpreender-me-ia’, comenta a Pessoa Imparcial, ‘se o senhor fosse capaz de aliviar seus pacientes
concordando com o sentimento de culpa deles dessa maneira. Mas quais são suas intenções analíticas?
e que faz o senhor com seus pacientes?’
II
Se devo dizer algo de inteligível ao leitor, sem dúvida terei de dizer-lhe alguma coisa sobre uma
teoria psicológica que não é conhecida ou que não é apreciada fora dos círculos analíticos. Será fácil
deduzir dessa teoria o que desejamos de nossos pacientes e como obtê-lo. Eu lhe exporei isto
dogmaticamente, como se fosse uma estrutura teórica completa. Mas não suponha ele que ela surgiu
como essa estrutura, como um sistema filosófico. Nós a desenvolvemos lentamente, lutando com todos
os pequenos detalhes da mesma, temo-la modificado sem cessar, mantendo um contato contínuo com a
observação, até que ela finalmente adquiriu uma forma na qual parece ser suficiente para nossas
finalidades. Apenas há poucos anos tive de revestir essa teoria em outros termos. Nem, naturalmente,
posso garantir-lhe que a forma como ela é expressa hoje continue a ser defendida. A ciência, como se
sabe, não é uma revelação; muito depois dos seus primórdios ainda lhe faltam os atributos de
determinação, imutabilidade e infalibilidade pelos quais o pensamento humano tão profundamente
anseia. Mas tal como ela é, é tudo que podemos ter. Se quiser ainda ter em mente que a nossa ciência é
muito jovem, não chegando quase a ser tão velha quanto o século, e que ela se interessa pelo que seja
talvez o material mais difícil que possa ser o assunto de pesquisa humana, facilmente será capaz de
adotar a atitude correta no tocante à minha exposição. Mas interrompa-me sempre que se sentir
inclinado, se não puder seguir-me ou se desejar outras explicações.
‘Eu o interrompi antes mesmo de haver começado. O senhor diz que pretende expor-me uma
nova psicologia: mas devo ter pensado que a psicologia não era nenhuma nova ciência. Tem havido
bastantes psicologias e psicólogos, e ouvi falar em grandes realizações nesse campo quando estava na
faculdade.’
Não devo nem sonhar em discuti-las. Mas se o senhor examinar o assunto mais detidamente terá
de classificar essas grandes realizações como pertencendo antes à fisiologia dos órgãos dos sentidos. A
teoria da vida mental não poderia ser desenvolvida, porque estava inibida por uma única incompreensão
essencial. O que ela abrange hoje, como é ensinada na faculdade? Independente dessas valiosas
descobertas na fisiologia dos sentidos, grande número de classificações e definições de nossos
processos mentais que, graças ao uso lingüístico, se tornou o patrimônio comum de toda pessoa
educada. Isto não era suficiente para dar uma visão de nossa vida mental. O senhor não observou que
todo filósofo, todo escritor de imaginação, todo historiador e todo biógrafo compõem sua própria
psicologia para si, formulam suas próprias hipóteses específicas concernentes às interligações e
finalidades dos atos mentais - tudo mais ou menos plausível e tudo igualmente indigno de confiança?
Existe evidente falta de qualquer fundamento comum. E é por esse motivo também que no campo da
psicologia não há, por assim dizer, qualquer respeito e qualquer autoridade, Nesse campo cada um pode
‘correr sem governo’ conforme lhe aprouver. Se o senhor levantar uma questão de física ou de química,
qualquer pessoa sabedora de que não possui ‘conhecimento técnico’ algum calará a boca. Mas se o
senhor aventurar-se numa asserção psicológica, deve estar preparado para fazer face a julgamento e
contradição de todos os setores. Nesse campo, aparentemente, não existe ‘conhecimento técnico’ algum.
Mas isto me surpreende como um título legal inadequado. Conta-se a história de uma pessoa a quem, ao
candidatar-se a um emprego como ama de crianças, foi feita a pergunta se sabia cuidar de bebês.
‘Naturalmente’, retrucou ela, ‘ora, afinal de contas, eu própria já fui bebê.’
‘E o senhor alega que descobriu esse “fundamento comum” da vida mental, que foi desprezado
por todo psicólogo, a partir de observações de pessoas doentes?’
A fonte dos nossos achados não me parece privá-los do seu valor. A embriologia, para citar um
exemplo, não mereceria ser digna de fé se não pudesse dar uma explicação clara da origem das
deformações inatas. Já lhe falei de pessoas cujos pensamentos seguem seu próprio curso de modo que
elas são obrigadas a preocupar-se com problemas aos quais são inteiramente indiferentes. Você pensa
que a psicologia acadêmica jamais poderia prestar a menor contribuição no sentido de explicar uma
anormalidade como essa? E, afinal de contas, todos temos a experiência, à noite, de os nossos
pensamentos seguirem o seu próprio curso e criarem coisas que não compreendemos, que nos intrigam
e que são suspeitamente rememorativas de produtos patológicos. Nossos sonhos, quero dizer. As
pessoas comuns sempre têm firmemente acreditado que os sonhos têm um sentido e um valor - que
significam alguma coisa. A psicologia acadêmica jamais foi capaz de nos informar qual é esse significado.
Ela nada pode inferir dos sonhos. Se tentasse produzir explicações, estas seriam não-psicológicas como remontá-las a estímulos sensoriais ou a uma profundidade desigual de sono em diferentes partes
do cérebro, e assim por diante. Mas é justo dizer que uma psicologia que não pode explicar os sonhos é
também inútil para a compreensão da vida mental normal, e que ela não pode reivindicar a denominação
de ciência.
‘O senhor está-se tornando agressivo; dessa forma evidentemente atingiu um ponto sensível.
Ouvi dizer, é verdade, que na análise grande valor éatribuído aos sonhos, que eles são interpretados etc.
Mas também soube que a interpretação dos sonhos é deixada ao capricho dos analistas, e que eles
próprios jamais deixariam de discutir a maneira de interpretar os sonhos e a justificativa para tirar
conclusões dos mesmos. Se isto for assim, o senhor não deve sublinhar de maneira tão acentuada a
vantagem que a análise conquistou sobre a psicologia acadêmica.’
Existe realmente grande dose de verdade no que o senhor diz. É certo que a interpretação dos
sonhos chegou a ter importância incomparável tanto para a teoria como para a prática da análise. Se
pareço ser agressivo, isto é apenas uma maneira de defender-me. E ao pensar em todo o mal que alguns
analistas têm causado com a interpretação de sonhos, quase perco a coragem e repito o pronunciamento
pessimista do nosso grande satirista Nestroy, quando este diz que cada grande passo à frente é apenas
a metade do que parece ser de início. Mas o senhor já verificou que os homens fazem tudo para
confundir e distorcer aquilo de que lançam mão? Com a ajuda de um pouco de previsão e autodisciplina
a maior parte dos perigos da interpretação de sonhos pode ser evitada com certeza. Mas o senhor há de
concordar que nunca chegarei à minha exposição se nos deixarmos desviar dessa maneira.
‘Sim. Se bem compreendi, o senhor quis falar-me sobre o postulado fundamental da nova
psicologia.’
Não foi com isso que eu desejava começar. Minha finalidade era deixá-lo ouvir falar sobre os
quadros que formamos da estrutura do aparelho mental no curso dos nossos estudos analíticos.
‘O que o senhor quer dizer pelo “aparelho mental”? e de que, pergunto eu, é ele construído?’
Logo tornar-se-á claro o que é o aparelho mental; mas peço-lhe que não me pergunte de que
material é ele construído. Isto não é assunto de interesse psicológico. A psicologia pode ser tão
indiferente a ele como, por exemplo, a óptica pode ser para a questão de se as paredes de um telescópio
são feitas de metal ou de papelão. Deixaremos inteiramente de lado a linha material de abordagem, mas
não a espacial, pois imaginamos o aparelho desconhecido que serve às atividades da mente como sendo
realmente um instrumento de várias partes (que denominamos de ‘instâncias’), cada uma das quais
desempenha uma função particular e tem uma relação espacial fixa umas com asoutras: ficando
compreendido que por relação espacial - ‘em frente de’ e ‘atrás’, ‘superficial’ e ‘profundo’ - simplesmente
queremos dizer em primeiro lugar uma representação da sucessão regular das funções. Será que me fiz
claro?
‘Quase que não. Talvez eu compreenda isto depois. Mas, em qualquer caso, eis aqui uma
estranha anatomia de alma - uma coisa que, afinal de contas, absolutamente não existe mais para os
cientistas.’
O que o senhor espera? É uma hipótese como tantas outras nas ciências: as mais antigas
sempre foram um tanto toscas. ‘Aberta à revisão’, podemos dizer em tais casos. Parece-me aqui
desnecessário recorrer ao ‘como se’ que se tornou tão popular. O valor de uma ‘ficção’ dessa espécie
(como o filósofo Vaihinger a denominaria) depende de quanto se pode alcançar com sua ajuda.
Mas prosseguindo. Pondo-nos a par dos conhecimentos cotidianos, reconhecemos nos seres
humanos uma organização mental interpolada entre seus estímulos sensoriais e a percepção das suas
necessidades somáticas, por um lado, e seus atos motores, por outro, e que serve de mediador entre
eles com vistas a uma finalidade particular. Chamamos essa organização de seu ‘Ich‘ [‘ego’; literalmente,
‘eu’]. Ora, não há novidade alguma quanto a isso. Cada um de nós faz essa suposição sem ser filósofo, e
alguns até mesmo apesar de serem filósofos. Mas isto, em nossa opinião, não esgota a descrição do
aparelho mental. Além desse ‘eu’, reconhecemos outra região mental, mais impositiva e mais obscura
que o ‘eu’, e a isto denominamos de ‘Es‘ [‘id’; literalmente, ‘it‘*]. A relação entre os dois deve ser nossa
preocupação imediata.
Provavelmente o senhor protestará por termos escolhido pronomes para descrevermos nossas
duas instâncias ou províncias, em vez de dar-lhes nomes gregos bombásticos. Na psicanálise, contudo,
gostamos de nos manter em contato com o modo popular de pensar e preferimos tornar seus conceitos
cientificamente úteis de preferência a rejeitá-los. Não existe mérito algum nisto. Somos obrigados a
assumir essa linha, pois nossas teorias devem ser compreendidas por nossos pacientes, que amiúde são
muito inteligentes,mas nem sempre eruditos. O impessoal ‘it‘ está imediatamente ligado com certas
formas de expressões empregadas pelas pessoas normais. ‘Isto (it) me trespassou’, dizem as pessoas;
‘havia alguma coisa em mim naquele momento mais forte do que eu.’ ‘C’était plus fort que moi.’
Em psicologia só podemos descrever as coisas com a ajuda de analogias. Nada existe de
peculiar nisto; é também o caso alhures. Mas temos que estar constantemente a modificar essas
analogias, pois nenhuma delas nos dura bastante. Em conseqüência, ao tentar tornar clara a relação
entre o ego e o id, devo pedir-lhe que imagine o ego como uma espécie de fachada do id, como uma
frontaria, como uma camada externa e cortical deste. Podemos apegar-nos a essa última analogia.
Sabemos que as camadas corticais devem suas características peculiares à influência modificadora do
meio externo com que confinam. Assim, supomos que o ego é a camada do aparelho mental (do id) que
foi modificada pela influência do mundo externo (da realidade). Isto mostrará como na psicanálise
adotamos maneiras especiais de contemplar as coisas seriamente. Para nós o ego é realmente algo
superficial e o id algo mais profundo - contemplados de fora, naturalmente. O ego está entre a realidade e
o id, que é aquilo verdadeiramente mental.
‘Ainda não farei pergunta alguma quanto a como tudo isto pode ser conhecido. Mas diga-me em
primeiro lugar: o que o senhor ganha com a distinção entre um ego e um id? O que o leva a proceder
assim?’
Sua pergunta indica-me o caminho certo a trilhar, pois a coisa importante e valiosa é saber que o
ego e o id diferem grandemente um do outro em vários aspectos. As normas que regem o curso dos atos
mentais são diferentes no ego e no id; o ego persegue diferentes finalidades e por outros métodos. Muito
se poderia dizer sobre isto; mas talvez o senhor se contentará com uma nova analogia e com um
exemplo. Pense na diferença entre o ‘front’ e ‘atrás das linhas’, como eram as coisas durante a guerra.
Não nos surpreendíamos então que algumas coisas no front fossem diferentes do que eram atrás das
linhas, e que muitas coisas que eram permitidas atrás das linhas tinham de ser proibidas no front. A
influência determinante era, naturalmente, a proximidade do inimigo; no caso da vida mental é a
proximidade do mundo externo. Época houve em que ‘fora’, ‘estranho’ e ‘hostil’ eram conceitos idênticos.
E agora chegamos ao exemplo. No id não há conflitos; as contradições e antíteses persistem nele lado a
lado indiferentemente, sendo
freqüentemente ajustados
pela
formação
de conciliações.
Em
circunstâncias semelhantes, o ego sente um conflito que deve ser resolvido; e a decisão está em um
anseio de ser abandonado em favor do outro. O ego é uma organização caracterizada por uma tendência
muito marcante no sentido da unificação, da síntese. Essa característica falta ao id; está, como
poderíamos dizer, ‘toda em pedaços’; seus diferentes anseios perseguem suas próprias finalidades
independentemente e sem levar em conta uns aos outros.
‘E se uma região mental tão importante “atrás das linhas” existe, como pode o senhor explicar ter
sido ela desprezada até a ocasião da análise?’
Isto nos leva de volta a uma de suas perguntas anteriores,ver em [[1]]. A psicologia barrara seu
próprio acesso à região do id, insistindo num postulado que é bastante plausível mas insustentável: a
saber, que todos os atos mentais são conscientes para nós - que ser consciente é o critério do que é
normal, e que, se há processos em nosso cérebro que não são conscientes, não merecem ser chamados
de atos mentais e não são de qualquer interesse para a psicologia.
‘Mas eu devia ter pensado que isto era óbvio.’
Sim, e isto é que os psicólogos pensam. Não obstante, facilmente se pode mostrar ser falso - isto
é, ser uma distinção inteiramente inapropriada. A auto-observação mais superficial revela que nos podem
ocorrer idéias que não podem ter-se verificado sem preparação. Mas o senhor não experimenta nada
dessas preliminares do seu pensamento, embora elas também devam, por certo, ter sido de natureza
mental; tudo que lhe entra na consciência é o resultado pronto para usar. Ocasionalmente o senhor pode
tornar consciente essas estruturas de pensamento preparatórias em retrospectiva, como uma
reconstrução.
‘Provavelmente nossa atenção foi distraída, de modo que deixamos de notar os preparativos.’
Evasões! O senhor não pode dessa maneira chegar ao fato de que em sua pessoa podem
ocorrer atos de natureza mental, e amiúde muito complicados, dos quais sua consciência nada sabe e o
senhor também não. Ou o senhor está preparado para supor que uma dose maior ou menor de sua
‘atenção’ é bastante para transformar um ato não mental num mental? Mas de que vale discutir? Existem
experimentos hipnóticos nos quais a existência da tais pensamentos não conscientes é irrefutavelmente
demonstrada a qualquer um que deseja saber.
‘Não me retratarei, mas creio que finalmente o compreendo. O que o senhor chama de “ego” é
consciência; e o seu “id” é o denominado subconsciente, sobre o qual as pessoas tanto falam hoje em
dia. Mas por que o disfarce com os novos nomes?’
Não é disfarce. Os outros nomes não são de valia alguma. E não tente dar-me literatura em vez
de ciência. Se alguém fala de subconsciência, não sei dizer se ele tem em mente o termo
topograficamente - para indicar algo que está na mente abaixo da consciência - ou qualitativamente para indicar outra consciência, uma substância, por assim dizer. Essa pessoa provavelmente não está
esclarecida sobre nada disso. A única antítese digna de confiança é entre o consciente e o inconsciente.
Mas seria grave erro julgar que essa antítese coincide com a distinção entre o ego e id. Naturalmente
seria magnífico se fosse tão simples assim: nossa teoria teria trânsito fácil. Mas as coisas não são tão
simples. O verdadeiro é que tudo que acontece no id é e permanece inconsciente, e que os processos no
id, e somente eles, podem tornar-se conscientes. Mas nem todos eles são, nem sempre, nem
necessariamente; e grandes partes do ego podem continuar permanentemente inconscientes.
O tornar-se consciente de um processo mental constitiu um caso complicado. Não posso deixar
de dizer-lhe - mais uma vez, dogmaticamente - nossas hipóteses a respeito disto. O ego, como o senhor
se recordará, é a camada externa, periférica do id. Ora, cremos que na superfície mais externa desse ego
há uma instância dirigida imediatamente para o mundo externo, um sistema, um órgão, através de cuja
excitação somente ocorre o fenômeno que denominamos de consciência. Esse órgão pode ser
igualmente bem excitado de fora - recebendo assim ( com a ajuda dos órgãos do sentido) os estímulos
do mundo exterior - e de dentro - tornando-se assim cônscio, em primeiro lugar, das sensações no id, e
então também dos processos no ego.
‘Isto está ficando cada vez pior e eu o compreendo cada vez menos. Afinal de contas, aquilo para
o que o senhor me convidou foi um debate da questão sobre se leigos (= não-médicos) devem
empreender tratamentos analíticos. Qual é o ponto principal, então, de todas esses exames de teorias
ousadas e obscuras que o senhor não me pode convencer que sejam justificadas?’
Sei que não posso convencê-lo. Isto está além de qualquer possibilidade e por esse motivo além
de minha finalidade. Quando ministramos aos nossos alunos instrução teórica em psicanálise, podemos
ver quão pouca impressão lhes estamos causando, para começar. Eles absorvem as teorias da análise
tão friamente quanto outras abstrações com as quais são alimentados. Poucos deles talvez desejam ficar
convencidos, mas não há qualquer vestígio de que estejam. Mas também exigimos que todo aquele que
quiser praticar a análise em outras pessoas se submeta ele próprio a uma análise. É somente no curso
dessa ‘auto-análise’ (como é confusamente denominada), quando eles realmente têm a experiência de
que sua própria pessoa é afetada - ou antes, sua própria mente - pelos processos afirmados pela análise,
que adquirem as convicções pelas quais são ulteriormente orientados como analistas.Como então
poderia esperar convencê-lo, a Pessoa Imparcial, da correção das nossas teorias, quando só posso pôr
diante do senhor um relato abreviado e portanto ininteligível das mesmas, sem confirmá-las pelas
próprias experiências do senhor?
Estou agindo com uma finalidade diferente. A questão em debate entre nós não é, no mínimo, se
a análise é sensata ou insensata, se ela está certa em suas hipóteses ou se incidiu em erros grosseiros.
Estou formulando nossas teorias perante o senhor visto que essa é a melhor maneira de tornar-lhe claro
qual o âmbito de idéias abrangido pela análise, com base em quais hipóteses ela aborda um paciente e o
que faz com ele. Dessa forma uma luz bem definida será lançada sobre a questão da análise leiga. E não
fique alarmado. Se o senhor me acompanhou até este ponto já passou pelo pior. Tudo que se segue lhe
será mais fácil. - Mas agora, com sua licença, farei uma pausa para tomar alento.
III
‘Espero que o senhor queira dizer-me como, com base nas teorias da psicanálise, a origem de
uma doença neurótica pode ser imaginada.’
Tentarei fazê-lo. Mas para esse fim devemos estudar nosso ego e nosso id de um novo ângulo,
do ângulo dinâmico - vale dizer, levando em conta as forças em ação neles e entre eles. Até agora nos
contentamos com uma descrição do aparelho mental.
‘Meu único temor é que ela possa tornar-se ininteligível novamente!’
Espero que não. Logo o senhor se orientará nela. Pois bem, presumimos que as forças que
impulsionam o aparelho mental em atividade são produzidas nos órgãos corporais como uma expressão
das necessidades somáticas principais. O senhor deve recordar-se das palavras do nosso poeta-filósofo:
‘A fome e o amor [são o que move o mundo].’ Incidentalmente, um par de forças formidáveis! Damos a
essas necessidades corporais, até onde representam uma instigação à atividade mental, o nome de
‘Triebe‘ [instintos], uma palavra por cuja causa somos invejados por muitas línguas modernas. Bem,
esses instintos enchem o id: toda a energia do id, expressando-o em breves palavras, se origina deles.
Nem as forças do ego têm qualquer outra origem; provêm daquelas do id. O que, então, desejam esses
instintos? Satisfação - isto é, o estabelecimento de situações nas quais as necessidades corporais
possam ser extintas. Uma diminuição da tensão da necessidade é sentido pelo nosso órgão da
consciência como agradável; um aumento dela logo é sentido como desprazer. Dessas oscilações surge
a série de sentimentos de prazer-desprazer, de acordo com a qual todo o aparelho mental regula sua
atividade. Nesse sentido falamos de uma ‘dominância do princípio de prazer’.
Se as exigências instintuais do id não encontrarem satisfação alguma, surgem condições
intoleráveis. A experiência logo revela que essas situações só podem ser estabelecidas mediante a ajuda
do mundo externo. Nesse ponto a parte do id que está dirigida para o mundo externo - o ego - começa a
funcionar. Se toda a força impulsora que põe o veículo em movimento for derivada do id, o ego, por assim
dizer, se encarrega da direção, sem a qual meta alguma pode ser alcançada. Os instintos no id
pressionam por satisfação imediata a todo custo, e dessa forma nada alcançam nem chegam mesmo a
acarretar dano apreciável. Constitui tarefa do ego resguardar-se contra tais contratempos, para servir de
medianeiro entre as reivindicações do id e as objeções do mundo externo. Ele leva a efeito sua atividade
em duas direções. Por um lado, observa o mundo externo com o auxílio do seu órgão de sentido, o
sistema de consciência, a fim de apanhar o momento favorável para satisfação sem dano; e , por outro,
influencia o id, refreia suas ‘paixões’, induz seus instintos a adiar sua satisfação, e na realidade, se for
reconhecida a necessidade, a modificar seus objetivos ou, em troca de alguma compreensão, a desistir
deles. Até onde ele domestica os impulsos do id dessa forma, ele substitui o princípio de prazer, que
anteriormente era o único decisivo, pelo que se conhece como o ‘princípio de realidade’, que, embora
persiga os mesmos objetos finais, leva em conta as condições impostas pelo mundo externo real.
Posteriormente, o ego aprende que existe ainda outra maneira de obter satisfação além da adaptação ao
mundo externo que descrevi. É também possível intervir no mundo externo modificando-o, e nele
estabelecer intencionalmente as condições que tornam possível a satisfação. Essa atividade então se
torna a função mais elevada do ego; decisões quanto a quando é mais conveniente controlar as paixões
e curvar-se diante da realidade, e quando é mais apropriado ficar ao lado delas e lutar contra o mundo
externo - tais decisões compõem toda a essência da sabedoria mundial.
‘E o id atura ser dominado assim pelo ego, apesar de ser, se é que eu o compreendo bem, a
parte mais forte?’
Sim, tudo correrá bem se o ego estiver de posse de toda a sua organização e eficiência, se tiver
acesso a todas as partes do id e puder exercer sua influência sobre elas, pois não existe qualquer
oposição natural entre o ego e o id; eles se pertencem, e em condições saudáveis não podem na prática
ser distinguidos um do outro.
‘Isto parece muito bem, mas não posso ver como em tal relação ideal possa haver o menor lugar
para uma perturbação patológica.’
O senhor tem razão. Enquanto o ego e suas relações com o id atenderem essas condições
ideais, não haverá qualquer distúrbio neurótico. O ponto no qual a doença faz sua irrupção é inesperado,
embora quem não esteja familiarizado com patologia geral fique surpreendido em encontrar uma
confirmação do princípio de que são os desenvolvimentos e diferenciações mais importantes que trazem
em si as sementes da doença, da falha de função.
‘O senhor está-se tornando erudito demais. Não posso acompanhá-lo.’
Devo retroagir um pouco mais. Um pequeno organismo vivo é uma coisa verdadeiramente infeliz
e impotente, não é assim? comparado com o mundo externo intensamente poderoso, repleto como está
de influências destrutivas. Um organismo primitivo, que não tenha desenvolvido uma organização
apropriada do ego, encontra-se à mercê de todos esses ‘traumas’. Ele vive pela ‘cega’ satisfação de seus
desejos instintuais e muitas vezes perece por causa disto. A diferenciação de um ego é, acima de tudo,
um passo no sentido da autopreservação. Nada, é verdade, pode ser aprendido da sua destruição, mas
se alguém sobreviveu com sorte a um trauma poderá observar a abordagem de situações semelhantes e
dar sinal do perigo por uma repetição abreviada das impressões que experimentou em relação com o
trauma - por um afeto de ansiedade. Essa reação à percepção do perigo introduz agora uma tentativa de
fuga, que pode ter o efeito de poupar a vida até que se tenha tornado bastante forte para fazer face aos
perigos do mundo externo de maneira mais ativa - mesmo agressivamente, talvez.
‘Tudo isto está muito longe do que o senhor prometeu relatar-me.’
O senhor não tem idéia alguma de como eu estou perto de cumprir minha promessa. Mesmo em
organismos que depois se desenvolvem numa eficiente organização do ego, o ego deles é débil e pouco
se diferencia, para começar, de seu id, durante seus primeiros anos de infância. Imagine agora o que
acontecerá se esse ego impotente experimentar uma exigência instintual do id ao qual ele gostaria de
opor resistência (porque sente que satisfazê-lo é perigoso e provocaria uma situação traumática, um
choque com o mundo externo), mas que ele não pode controlar, porque ainda não possui bastante força
para fazê-lo. Em tal caso o ego trata do perigo instintual como se ele fosse externo; faz uma tentativa de
fuga, afasta-se dessa parte do id e o deixa entregue ao seu destino, depois de retirar dele todas as
contribuições que em geral presta aos impulsos instintuais. O ego, como costumamos dizer, institui uma
repressão desses impulsos instintuais. Por enquanto isto tem o efeito de desviar o perigo, mas não se
pode confundir o interno e o externo impunemente. Não se pode fugir de si mesmo. Na repressão o ego
está acompanhando o princípio de prazer, que em geral ele tem o hábito de corrigir, estando destinado a
sofrer dano como vingança. Isto está no fato de o ego haver permanentemente estreitado sua esfera de
influência. O impulso instintual reprimido agora está isolado, abandonado a si mesmo, inacessível, mas
também não influenciável. Ele segue seu próprio caminho. Mesmo depois, em geral, quando o ego se
tornou mais forte, ainda não pode suspender a repressão; sua síntese fica prejudicada, uma parte do id
permanece terreno proibido ao ego. Nem o impulso instintual isolado permanece ocioso; ele compreende
como ser compensado por lhe ser negada satisfação normal; produz derivados psíquicos que lhe tomam
o lugar; vincula-se a outros processos que por influência dele também arranca do ego; e finalmente
irrompe no ego e na consciência sob a forma de um substituto irreconhecivelmente distorcido, criando o
que denominamos de um sintoma. De imediato a natureza de uma perturbação neurótica se torna clara
para nós: por um lado, um ego que é inibido em sua síntese, que não tem qualquer influência sobre
partes do id, que deve renunciar a algumas de suas atividades a fim de evitar novo choque com o que foi
reprimido, e que se exaure no que, na maior parte, são atos vãos de defesa contra sintomas, os
derivados dos impulsos reprimidos; por outro lado, um id no qual os instintos individuais se tornaram
independentes, perseguem seus objetivos independentemente dos interesses da pessoa como um todo e
doravante obedecem às leis somente da psicologia que domina nas profundezas do id. Se observarmos
toda a situação chegaremos a uma fórmula simples quanto à origem de uma neurose: o ego faz uma
tentativa de suprimir certas partes do id de maneira inapropriada; essa tentativa falhou e o id tirou sua
vingança. Uma neurose é assim o resultado de um conflito entre o ego e o id, no qual o ego se envolveu
porque, como revela uma investigação cuidadosa, ele deseja a todo custo reter sua adaptabilidade em
relação com o mundo externo real. A divergência verifica-se entre o mundo externo e o id; e é porque o
ego, leal a sua natureza mais íntima, toma o partido do mundo externo que ele se torna envolvido num
conflito com seu id. Mas observe que o que cria o determinante da doença não é o fato desse conflito pois discordâncias dessa natureza entre a realidade e o id são inevitáveis, sendo uma das principais
tarefas do ego servir de mediador nelas -, mas a circunstância de o ego haver feito uso do instrumento
ineficiente de repressão para lidar com o conflito. Mas isto por sua vez se deve ao fato de que o ego, na
ocasião em que se incumbiu da tarefa, era não desenvolvido e impotente. Todas as repressões decisivas
se verificam na primeira infância.
‘Que assunto notável! Seguirei seu conselho e não farei críticas, visto que o senhor deseja
apenas mostrar-me aquilo em que a psicanálise crê a propósito da origem da neurose, de modo que o
senhor venha a dizer como ela se dispõe a combatê-la. Eu teria várias perguntas a fazer-lhe e depois as
formularei. Mas no momento sinto-me tentado, dessa vez, a levar adiante a sua seqüência de
pensamento e a aventurar-me numa teoria própria. O senhor expôs a relação entre o mundo externo, o
ego e o id, e formulou como sendo determinante de uma neurose que o ego em sua dependência do
mundo externo luta contra o id. Não é concebível o caso oposto de o ego, num conflito dessa espécie,
permitir a si mesmo ser arrastado para fora pelo id e renunciar à sua consideração pelo mundo externo?
O que acontece num caso como este? pelas minhas idéias leigas de natureza da insanidade diria que tal
decisão por parte do ego poderia ser o determinante da insanidade. Afinal de contas, uma fuga da
realidade dessa espécie parece ser a essência da’insanidade.Sim. Eu próprio pensei nessa possibilidade,
e na realidade creio que ela atende aos fatos - embora para provar a verdadeira suspeita exigisse o
exame de algumas considerações altamente complicadas. As neuroses e psicoses estão, como é
evidente, intimamente relacionadas, mas devem, não obstante, diferir em algum aspecto decisivo. Isto
bem poderia ser o partido tomado pelo ego num conflito dessa espécie. Em ambos os casos o id
conservaria sua característica de cega inflexibilidade.
‘Muito bem, prossiga! Quais os indícios dados pela sua teoria sobre o tratamento das doenças?’
É fácil agora descrever nossa finalidade terapêutica. Tentamos restaurar o ego, livrá-lo de suas
restrições, e dar-lhe de volta o domínio sobre o ego que ele perdeu devido às suas primeiras repressões.
É para esse único fim que efetuamos a análise, toda nossa técnica está dirigida para essa finalidade.
Temos de procurar as repressões que foram estabelecidas e instigar o ego a corrigi-las com nossa ajuda
e a lidar com os conflitos melhor do que mediante uma tentativa de fuga. Visto que essas repressões
pertencem bem aos primeiros anos da infância, o trabalho de análise nos leva também de volta àquele
período. Nosso caminho a essas situações de conflito, que na maior parte foram esquecidas e que
tentamos reviver na lembrança do paciente, nos é mostrado pelos seus sintomas, sonhos e associações
livres. Estes devem, contudo, ser em primeiro lugar interpretados - traduzidos -, pois, sob a influência da
psicologia do id, assumiram formas de expressão estranhas à nossa compreensão. Podemos presumir
que quaisquer associações, pensamentos e lembranças que o paciente seja incapaz de comunicar-nos
sem lutas internas estão de alguma maneira vinculados ao material reprimido ou são seus derivados. Ao
estimular o paciente a desprezar suas resistências relatando essas coisas, estamos educando seu ego a
superar sua inclinação no sentido de tentativas de fuga e a tolerar uma abordagem ao que é reprimido.
No fim, se a situação da repressão puder ser reproduzida com êxito em sua memória, sua obediência
será brilhantemente recompensada. Toda a diferença entre sua idade então e agora atua a seu favor, e a
coisa da qual seu ego infantil fugiu aterrorizado muitas vezes parecerá ao seu ego adulto e fortalecido
nada mais que uma brincadeira de criança.
IV
‘Tudo o que o senhor me relatou até agora foi psicologia. Muitas vezes soou estranho, difícil ou
obscuro; mas sempre foi - se é que posso dizê-lo assim - “puro”. Até agora muito pouco tenho sabido,
sem dúvida, sobre psicanálise; mas não obstante chegou aos meus ouvidos o rumor de que o senhor se
ocupa principalmente com coisas que não têm qualquer direito a esse predicado. O fato de o senhor não
haver ainda aflorado nada dessa espécie faz-me sentir que está deliberadamente ocultando algo. E há
outra dúvida que não posso reprimir. Afinal de contas, como o senhor mesmo diz, as neuroses são
perturbações da vida mental. É possível, então, que coisas tão importantes não desempenhem
absolutamente qualquer papel nessas perturbações profundas?”
Então o senhor julga que uma consideração tanto do que é mais baixo quanto do que é mais alto
tenha faltado às nossas apreciações até este momento? O motivo disto é que não consideramos
absolutamente até agora, por esta vez, desempenhar eu próprio o papel de um interruptor que retém a
marcha da conversa. Falei-lhe tanto de psicologia porque desejava que o senhor ficasse com a
impressão aplicada - e, além disso, de uma psicologia que é desconhecida fora da análise. Um analista
deve, portanto, antes de tudo, ter aprendido essa psicologia, essa psicologia profunda ou psicologia do
inconsciente, ou pelo menos tanto dela quanto se conhece nos dias que correm. Necessitaremos disto
como uma base para nossas conclusões ulteriores. Mas agora, que foi o senhor quis dizer com sua
alusão a ‘pureza’?
‘Bem, geralmente se informa que nas análises os fatos mais íntimos - e os mais sórdidos - da
vida sexual são trazidos à tona para apreciação em todos os seus detalhes. Se for assim - não fui capaz
de depreender dos seus debates psicológicos que seja necessariamente assim - isto seria um forte
argumento para que se restringisse esses tratamentos a médicos. Como se poderia sonhar em permitir
tais perigosas liberdades a pessoa de cujo caráter não se tivesse qualquer garantia?’
É verdade que o médicos desfrutam de certos privilégios na esfera do sexo: é-lhes até mesmo
permitido examinar os órgãos genitais das pessoas - embora isto não lhes fosse permitido no Oriente e
embora alguns reformadores idealistas (o senhor sabe quem eu tenho em mente) tenham disputado esse
privilégio. Mas o senhor quer saber em primeiro lugar se é assim em análise e por que deve ser assim. Sim, é assim.
E deve ser assim, em primeiro lugar porque a análise está inteiramente fundamentada em
completa franqueza. As circunstâncias financeiras, por exemplo, são discutidas com igual detalhe e
imparcialidade: dizem-se coisas que são ocultadas de qualquer cidadão, mesmo se ele não for
concorrente ou um coletor de impostos. Não discutirei - na realidade, eu próprio insistirei com energia que essa obrigação à imparcialidade também impõe grave responsabilidade moral ao analista. E deve ser
assim, em segundo lugar, porque os fatores da vida sexual desempenham um papel extremamente
importante, dominante e talvez mesmo específico entre as causas e fatores precipitantes das doenças
neuróticas. Que mais pode a análise fazer se não manter-se perto do seu tema, do material apresentado
pelo paciente? O analista jamais induz o paciente até o terreno do sexo. Ele não lhe diz
antecipadamente: ‘Estaremos lidando com as intimidades de sua vida sexual!’ Ele lhe permite que
comece o que tem a dizer onde lhe aprouver, e tranqüilamente aguarda até que o próprio paciente
aborde fatos sexuais. Sempre costumava advertir meus alunos: ‘Nossos antagonistas nos disseram que
nos defrontaremos com casos nos quais o fator do sexo não desempenha papel algum. Tenhamos o
cuidado de não introduzi-lo em nossas análises e de assim estragar nossa oportunidade de encontrar tal
caso.’ Mas até agora nenhum de nós teve essa boa sorte.
Estou cônscio, naturalmente, de que nosso reconhecimento da sexualidade se tornou - quer
confessadamente, quer não - o motivo mais forte da hostilidade de outras pessoas em relação à análise.
Poderá isto abalar nossa confiança? Isto simplesmente nos revela como é neurótica toda nossa vida
civilizada, visto que pessoas manifestamente normais não se comportam de forma muito diferente das
neuróticas. Numa época em que a psicanálise foi solenemente levada a julgamento perante as
sociedades cultas da Alemanha - hoje as coisas se tornaram inteiramente mais tranqüilas -, um dos
oradores alegou possuir autoridade peculiar porque, assim disse ele, chegou mesmo a permitir que seus
pacientes falassem: para finalidades de diagnósticos, claramente e para pôr à prova as asserções dos
analistas. ‘Mas’, acrescentou ele, ‘se começarem a falar sobre assuntos sexuais fecho-lhes as bocas.’
Que pensa disto como um método de demonstração? A sociedade erudita aplaudiu o orador
calorosamente em vez de sentir-se, com razão, envergonhada do seu relato. Só a triunfante certeza
proporcionada pela consciência de preconceitos sustentados em comum pode explicar a falta de
pensamento lógico do orador. Anos depois alguns daqueles que na épocatinham sido meus partidários
cederam à necessidade de libertar a sociedade humana do julgo da sexualidade que a psicanálise estava
procurando impor-lhe. Um deles explicou que o que é sexual não significa absolutamente sexualidade,
mas algo mais, algo abstrato e místico. E outro chegou a declarar que a vida sexual é meramente uma
das esferas na qual os seres humanos procuram por uma ação sua necessidade imperiosa de poder e
dominação. Eles têm sido acolhidos com grandes aplausos, pelo menos no momento.
‘Aventurar-me-ei de certa maneira, dessa vez, a tomar partido neste ponto. Surpreendi-me como
sendo extremamente ousado afirmar que a sexualidade não é necessidade natural e primitiva dos seres
vivos, mas uma expressão de algo mais. Só se precisa considerar o exemplo dos animais.’
Isto não faz diferença alguma. Não há qualquer mistura, por mais absurda, que a sociedade de
bom grado não esteja disposta a engolir se for anunciada como um antídoto à temida predominância da
sexualidade.
Confesso, além disso, que a aversão que o senhor mesmo tem traído de atribuir ao fator da
sexualidade um papel tão relevante na causação da neurose - confesso que isto quase não me parece
compatível com a sua tarefa como uma Pessoa Imparcial. O senhor não teme que essa antipatia possa
interferir em fazer um julgamento justo?
‘Lamento ouvi-lo dizer isto. Sua confiança em mim parece estar abalada. Mas nesse caso por
que não escolheu outro como sua Pessoa Imparcial?’
Porque essa outra pessoa não teria pensado em nada diferente do senhor. Mas se ela tivesse
sido preparada desde o começo para reconhecer a importância da vida sexual, todos teriam exclamado:
‘Ora, essa não é nenhuma Pessoa Imparcial, é um dos seus partidários!’ Não, estou longe de abandonar
a expectativa de ser capaz de influenciar suas opiniões. Devo admitir, contudo, que do meu ponto de
vista essa situação é diferente daquela com a qual lidamos antes. No tocante aos nossos debates
psicológicos, trata-se para mim de uma questão de indiferença se o senhor acredita ou não em mim,
contanto somente que tenha a impressão de que aquilo que nos preocupa são problemas puramente
psicológicos. Mas aqui, quanto à questão da sexualidade, deveria não obstante contentar-me se o senhor
fosse acessível à compreensão de que seu motivo mais forte de contradição é precisamente a arraigada
hostilidade de que partilha com tantas outras pessoas.
‘Mas afinal de contas não possuo a experiência que lhe deu inabalável certeza.’
Muito bem. Posso agora continuar com minha exposição. A vida sexual não é simplesmente algo
apimentado; constitui também sério problema científico. Muito havia de novo a ser aprendido sobre ela,
muitas coisas estranhas a serem explicadas. Acabo de dizer-lhe que a análise tem de remontar aos
primeiros anos da infância do paciente, porque foi então que ocorreram as repressões decisivas,
enquanto seu ego era débil. Mas certamente na infância não existe qualquer vida sexual? Com certeza
ela só começa na puberdade? Pelo contrário. Temos de aprender que os impulsos instintuais sexuais
acompanham a vida a partir do nascimento, sendo precisamente a fim de desviar esses instintos que o
ego infantil institui repressões. Uma coincidência notável, não é? que as criancinhas já devem estar
lutando contra a força da sexualidade, do mesmo modo como o orador da sociedade erudita iria fazer
depois, e posteriormente ainda meus seguidores que estabeleceram suas próprias teorias. Como isto
acorre? A explicação geral seria que nossa civilização se acha inteiramente estruturada às expensas da
sexualidade; mas há muito mais a ser dito sobre o assunto.
A descoberta da sexualidade infantil é uma daquelas da quais temos motivo de nos sentirmos
envergonhados [por causa de sua evidência]. Alguns pediatras, assim parece, sempre tiveram
conhecimento disto, e algumas enfermeiras de crianças. Homens hábeis, que se denominam a si próprios
psicólogos de crianças, logo falaram em tons de censura de uma ‘profanação da inocência da infância’.
Mais uma vez, o sentimento em vez do argumento! Fatos dessa espécie são de ocorrência cotidiana em
entidades políticas. Um membro da oposição ergue-se e denuncia certo desacerto administrativo no
serviço público, no exército, no judiciário e assim por diante. Diante disto outro membro, preferivelmente
do governo, declara que tais afirmações constituem uma afronta ao sentimento de honra do organismo
político, do exército, da dinastia, ou mesmo da nação. Não passam assim de inverdades. Sentimentos
como estes não podem tolerar quaisquer afrontas.
A vida sexual das crianças naturalmente é diferente da dos adultos. A função sexual, desde seus
primórdios até a forma definitiva na qual nos é tão familiar, passa por um complicado processo de
desenvolvimento. Desenvolve-se juntamente, a partir de numerosos instintos componentes, com
diferentes finalidades e passa por várias fases de organização até que finalmente entra a serviço da
reprodução. Nem todos os instintos componentes são igualmente úteis para o resultado final; devem ser
desviados, remodelados e em parte suprimidos. Tal curso de desenvolvimento de grande alcance nem
sempre é percorrido sem uma lacuna; ocorrem inibições no seu desenvolvimento, fixações parciais nas
primeiras fases de desenvolvimento. Se depoissurgirem obstáculos ao exercício da função sexual, o
anseio sexual - a libido, como o denominamos - é capaz de retornar a esses pontos mais antigos de
fixação. O estado da sexualidade das crianças e de suas transformações até a maturidade também nos
deu a chave de uma compreensão do que se conhece como as perversões sexuais, que as pessoas
sempre costumavam descrever com todos os sinais indispensáveis de repulsa, mas cuja origem jamais
foram capazes de explicar. Todo o tópico é de interesse incomum, mas para as finalidades de nossa
conversa não faz muito sentido dizer-lhe mais a respeito do mesmo. A fim de nos orientarmos nele,
carecemos de conhecimentos anatômicos e fisiológicos, não podendo todos eles, infelizmente, ser
adquiridos em escolas de medicina. Mas uma familiaridade com a história da civilização e com a
mitologia é igualmente indispensável.
‘Depois de tudo isto, ainda não posso formar um quadro da vida sexual das crianças.’
Então abordarei ainda mais o assunto; seja como for, não me é fácil afastar-me dele. Dir-lhe-ei,
então, que o fato mais notável sobre a vida sexual da crianças, segundo me parece, passa por todo seu
desenvolvimento mais amplo nos cinco primeiros anos de vida. A partir desse ponto até a puberdade
estende-se o que se conhece como período de latência. Durante ele a sexualidade normalmente não
avança mais; pelo contrário, os anseios sexuais diminuem de vigor e são abandonadas e esquecidas
muitas coisas que a criança fazia e conhecia. Nesse período da vida, depois que a primeira eflorescência
da sexualidade feneceu, surgem atitudes do ego como a vergonha, a repulsa e a moralidade, que estão
destinadas a fazer frente à tempestade ulterior da puberdade e a alicerçar o caminho dos desejos sexuais
que se vão despertando. Esse ‘desencadeamento bifásico’, como é denominado, da vida sexual muito
tem a ver com a gênese das doenças neuróticas. Parece ocorrer somente nos seres humanos, e talvez
seja um dos determinantes do privilégio humano de tornar-se neurótico. A pré-história da vida sexual foi
tão desprezada antes da psicanálise como, em outro setor, os antecedentes da vida mental consciente. O
senhor com razão suspeitará de que os dois estão intimamente ligados.
Há muito a dizer, com relação ao que nossas expectativas não nos prepararam, sobre o
conteúdo, manifestações e realizações desse período inicial da sexualidade. Por exemplo, o senhor sem
dúvida ficará surpreendido em saber como amiúde meninos de pouca idade têm medo de ser
devoradospelo pai. (E talvez também se surpreenda por eu incluir esse medo entre os fenômenos da vida
sexual.) Mas gostaria de lembrar-lhe o conto mitológico, do qual é possível que ainda se recorde dos
seus dias de escola, de como o deus Cronos engoliu os filhos. Como isto lhe deve ter soado estranho
quando o ouviu pela primeira vez! Mas suponho que nenhum de nós pensou nisto naquela época. Hoje
podemos também recordar grande número de contos de fadas nos quais aparece algum animal voraz
como um lobo, e o reconheceremos como um disfarce do pai. Esta é a oportunidade de assegurar-lhe
que foi somente através do conhecimento da sexualidade infantil que se tornou possível compreender a
mitologia e o mundo dos contos de fadas. Aqui então algo foi alcançado como um subproduto de estudos
analíticos.
O senhor ficará não menos surpreendido em saber que as crianças do sexo masculino sofrem do
medo de ser roubadas do seu órgão sexual pelo pai, de modo que esse medo de ser castrado exerce
poderosíssima influência sobre o desenvolvimento do seu caráter e na decisão do rumo a ser seguido por
sua sexualidade. E mais uma vez aqui a mitologia poderá dar-lhe a coragem de crer na psicanálise. O
mesmo Cronos que devorou os filhos também emasculou seu pai Uranos, e depois ele próprio foi
emasculado como vingança por seu filho Zeus, que fora salvo pela astúcia de sua mãe. Se o senhor se
tiver sentido inclinado a supor que tudo o que a psicanálise informa sobre a sexualidade inicial das
crianças provém da imaginação perturbada dos analistas, deve pelo menos admitir que sua imaginação
criou o mesmo produto que as atividades imaginativas do homem primitivo, cujos mitos e contos de fadas
são o precipitado. A alternativa mais amável, e provavelmente também o ponto de vista mais pertinente,
seria que na vida mental das crianças, hoje em dia, podemos ainda detectar os mesmos fatores arcaicos
que em geral outrora dominavam nos dias primevos da civilização humana. Em seu desenvolvimento
mental, a criança estaria repetindo a história de sua raça de uma forma abreviada, do mesmo modo como
a embriologia de há muito reconheceu ser este o caso do desenvolvimento somático.
Outra característica da sexualidade infantil inicial é que o órgão sexual feminino propriamente dito
ainda não desempenha nela qualquer papel: a criança ainda não o descobriu. A ênfase recai inteiramente
no órgão masculino, todo o interesse da criança está dirigido para a questão de se ele se acha presente
ou não. Sabemos menos acerca da vida sexual de meninas do que de meninos. Mas não é preciso
envergonharmo-nos dessa distinção; afinal de contas, a vida sexual das mulheres adultas é um
‘continente negro’ paraa psicologia. Mas aprendemos que as meninas sentem profundamente falta de um
órgão sexual que seja igual em valor ao masculino; elas se consideram por causa disso inferiores, e essa
‘inveja do pênis’ é a origem de todo um grande número de reações femininas características.
Também é característico das crianças que suas duas necessidades excretórias sejam
catexizadas [carregadas] de interesse sexual, que é mais uma vez obliterada na prática de fazer chistes.
Para nós pode parecer um fato desagradável, mas leva muito tempo para que as crianças desenvolvam
sentimentos de repugnância. Isto não é discutido nem mesmo por pessoas que de outra forma insistem
sobre a pureza seráfica da mente da criança.
Nada, contudo, merece mais atenção do que o fato de as crianças regularmente dirigirem seus
desejos sexuais para os seus parentes mais próximos - em primeiro lugar, portanto, para o pai e a mãe, e
depois para seus irmãos e irmãs. O primeiro objeto do amor de um menino é sua mãe, e de uma menina
seu pai (exceto até onde uma disposição bissexual inata favorece a presença simultânea da atitude
contrária). Sente-se o outro genitor como um rival perturbador, e não infreqüentemente é encarado com
forte hostilidade. O senhor deve compreender-me bem. O que quero dizer não é que a criança deseja ser
tratada por seu genitor predileto simplesmente com a espécie de afeição que nós adultos gostamos de
considerar como a essência da relação pai-filho. Não, a análise não nos deixa dúvida alguma de que os
desejos da criança se estendem, além de tal afeição, a tudo que compreendemos por satisfação sensual
- até onde, vale dizer, o permitem os poderes de imaginação da criança. É fácil ver que a criança jamais
adivinha os fatos reais das relações sexuais; ela os substitui por outras idéias oriundas de sua própria
experiência e sentimentos. Em geral seus desejos culminam na intenção de dar à luz ou, de alguma
maneira indefinível, de procriar um bebê. Também os meninos, em sua ignorância, não se excluem do
desejo de dar à luz uma criança. Damos a toda essa estrutura mental a denominação de ‘complexo de
Édipo’, segundo a conhecida lenda grega. Com o término do período sexual inicial ele deve normalmente
ser abandonado, deve desintegrar-se radicalmente e ser transformado, estando os resultados dessa
transformação destinados a importantes funções na vida mental ulterior. Mas em geral isso não se efetua
de maneira bastante radical, caso em que a puberdade acarreta uma revivescência do complexo, que
pode ter graves conseqüências.
Estou surpreendido por o senhor ainda estar calado. Isto dificilmente quer dizer que consente. Ao afirmar que a primeira escolha de uma criança é, para empregar o termo técnico, uma escolha
incestuosa, a análise sem dúvida mais uma vez fere os sentimentos mais sagrados da humanidade,
epode muito bem estar preparada para uma quantidade correspondente de descrença, contradição e
ataque. E estes ela tem recebido com abundância. Nada a tem danificado mais na abalizada opinião dos
seus contemporâneos do que sua hipótese do complexo de Édipo como uma estrutura universalmente
vinculada ao destino humano. O mito grego, incidentalmente, deve ter tido o mesmo significado; mas a
maioria dos homens hoje em dia, eruditos igualmente, prefere crer que a Natureza estabeleceu em nós
uma aversão inata como salvaguarda contra a possibilidade de incesto.
Mas vamos em primeiro lugar convocar a história em nosso auxílio. Quando Caio Júlio César
aportou no Egito, encontrou a jovem rainha Cleópatra (que logo iria tornar-se tão importante para ele)
casada com o irmão dela ainda mais jovem, Ptolomeu. Numa dinastia egípcia nada havia de peculiar
nisso; os Ptolomeus, que eram de origem grega, haviam simplesmente continuado com o costume que
fora praticado por seus antecessores, os antigos faraós, por alguns milhares de anos. Isto, todavia, era
meramente um incesto entre irmão e irmã, que mesmo na época atual não é julgado tão rigorosamente.
Voltemos assim à nossa principal testemunha em assuntos concernentes aos tempos primevos - a
mitologia. Ela nos informa que os mitos de cada povo, e não somente dos gregos, estão repletos de
casos amorosos entre pais e filhas e mesmo entre mães e filhos. A cosmologia, não menos que a
genealogia de raças reais, está fundamentada no incesto. Para que finalidade o senhor supõe que essas
lendas foram criadas? Para estigmatizar deuses e reis como criminosos? para imputar-lhes a repulsa da
raça humana? De preferência, por certo, porque os desejos incestuosos constituem um legado humano
primordial e jamais foram plenamente superados, de modo que sua realização ainda era concedida aos
deuses e aos seus descendentes quando a maioria dos seres humanos comuns já era obrigada a
renunciar a tais desejos. Está em completa harmonia com essas lições da história e da mitologia o fato de
encontrarmos desejos ainda presentes a atuantes na infância do indivíduo.
‘Eu poderia considerar erroneamente que o senhor tivesse tentado ocultar de mim tudo isso
sobre a sexualidade infantil. Parece-me muitíssimo interessante, particularmente por causa de sua
ligação com a pré-história humana.’
Temia que pudesse afastar-nos para muito longe de nossa finalidade. Mas talvez, afinal de
contas, seja útil.
‘Agora me diga, então, que certeza pode o senhor oferecer para os seus achados analíticos
sobre a vida sexual das crianças? Sua convicção baseia-se unicamente em pontos de concordância com
a mitologia e a história?’Oh, de modo algum. Ela tem como base a observação direta. O que aconteceu
foi isto. Tínhamos começado por inferir o conteúdo da infância sexual a partir da análise de adultos - isto
é, cerca de vinte a quarenta anos depois. Posteriormente, procedemos a análises sobre as próprias
crianças, e não deixou de ser uma grande vitória quando assim fomos capazes de confirmar nelas tudo
que tínhamos podido adivinhar, apesar da quantidade do que havia ficado encoberto e distorcido no
intervalo.
‘O quê? O senhor submeteu criancinhas à análise? crianças com menos de seis anos? isso pode
ser feito? E não é muito arriscado para as crianças?
Pode muito bem ser feito. Quase não se pode acreditar no que se passa numa criança de quatro
ou cinco anos de idade. As crianças têm uma mente muito ativa nessa idade; seu período sexual
prematuro é também um período de florescimento intelectual. Tenho a impressão de que com o início do
período de latência elas se tornam mentalmente inibidas também, mais estúpidas. Também a partir dessa
época muitas crianças perdem seu encanto físico. E, no tocante ao dano causado pela análise
prematura, posso informar-lhe que a primeira criança na qual se aventurou o primeiro experimento, há
quase vinte anos, desde então se desenvolveu num jovem saudável e capaz, que atravessou a
puberdade de maneira irrepreensível, apesar de alguns graves traumas psíquicos. Talvez seja de se
esperar que as coisas não sejam piores para as outras ‘vítimas’ da análise prematura. Muito daquilo que
é de interesse está ligado a essas análises infantis; é possível que no futuro elas se tornem ainda mais
importantes. Do ponto de vista da teoria, seu valor é indubitável, proporcionando informações destituídas
de ambigüidade sobre problemas que permanecem insolúveis nas análises de adultos; e dessa forma
protegem o analista de erros que poderiam ter para ele conseqüências graves. Surpreendemos os fatores
que levam à formação de uma neurose enquanto se acham realmente em ação e não podemos então
confundi-los. No interesse da criança, é verdade, a influência analítica deve ser combinada com medidas
educacionais. A técnica ainda tem de receber sua confirmação. Mas o interesse prático é despertado pela
observação de que grande número de nossas crianças passa por uma fase claramente neurótica no
curso de seu desenvolvimento. Visto termos aprendido a observar com maior agudeza, somos tentados a
afirmar que a neurose nas crianças não é a exceção mas a regra, como se ela quase não pudesse ser
evitada na trilha desde a disposição inata da infância até a sociedade civilizada. Na maioria dos casos
essa fase neurótica da infância é superada espontaneamente. Mas será que ela não pode também
regularmente deixar seus vestígios no adulto saudável comum? Por outro lado, naqueles que se tornam
neuróticos depois, nunca deixamos deencontrar elos com a doença na infância, embora na época não
tenha sido necessário ser muito observável. De forma precisamente análoga os médicos hoje, creio,
sustentam a opinião de que cada um de nós passou por uma investida de tuberculose em sua infância. É
verdade que no caso das neuroses o fator de imunização não atua, mas somente o fator de
predisposição.
Voltemos a sua pergunta sobre a certeza. Ficamos de maneira geral bem convictos, pelo exame
direto das crianças, de que tínhamos razão em nossa interpretação daquilo que os adultos nos relataram
sobre sua infância. Em grande número de casos, contudo, outra espécie de confirmação tornou-se
possível. O material da análise de alguns pacientes permitiu-nos reconstruir certos acontecimentos
externos, certos eventos impressionantes de seus anos de infância, dos quais não conservaram qualquer
lembrança consciente. Acidentes felizes, informações de pais ou de amas ofereceram depois provas
irrefutáveis de que essas ocorrências realmente se verificaram. Isto, naturalmente, não aconteceu com
freqüência, mas quando se verificou, foi com esmagadora impressão. A reconstrução correta, o senhor
precisa saber, de tais experiências esquecidas da infância tem sempre grande efeito terapêutico,
permitam ou não confirmação objetiva. Esses eventos devem sua importância, naturalmente, ao fato de
terem ocorrido numa idade tão prematura, numa época em que podiam ainda produzir um efeito
traumático sobre o ego frágil.
‘E que espécie de eventos podem ser esses, que têm de ser descobertos pela análise?’
De várias espécies. Primeiramente, impressões capazes de influenciar permanentemente a vida
sexual que desabrocha da criança - tais como observações de atividades sexuais entre adultos, ou
experiências sexuais suas com um adulto ou outra criança (fatos que não são raros); ou, ainda, o ouvir
por acaso conversas, compreendidas na época ou retrospectivamente, das quais a criança pensou poder
tirar conclusões sobre assuntos misteriosos ou fantásticos; ou, ainda, observações ou ações da própria
criança que dão prova de atitudes significativas de efeito ou inimizade para com outras pessoas. É de
especial importância numa análise induzir uma lembrança da atividade sexual esquecida do próprio
paciente como criança e também da intervenção dos adultos que acabaram com a mesma.
‘Isso me dá a oportunidade de trazer à baila uma pergunta que há muito desejava formular. Qual
é, então, a natureza dessa “atividade sexual” das crianças numa tenra idade, que, como o senhor diz, foi
desprezada antes dos dias da análise?’
Constitui um fato estranho que a parte regular e essencial dessa atividade sexual não tenha sido
desprezada. Ou antes, ela não é de forma alguma estranha, pois foi impossível desprezá-la. Os impulsos
sexuais das crianças encontram suas principais expressões na autogratificação pela fricção de seus
próprio órgãos genitais, ou, mais precisamente, da porção masculina deles. A distribuição
extraordinariamente ampla dessa forma de ‘travessura’ infantil sempre foi conhecida dos adultos, e foi
considerada como grave pecado e severamente punida. Mas por favor não me pergunte como as
pessoas podiam reconciliar essas observações das inclinações imorais das crianças - porque as crianças
o fazem, como elas próprias dizem, porque lhes dá prazer - com a teoria de sua pureza e nãosensualidade inatas. O senhor tem de fazer com que nossos adversários solucionem esse enigma. Nós
temos um problema mais importante diante de nós. Que atitude devemos adotar em relação à atividade
sexual da primeira infância? Sabemos a responsabilidade na qual estamos incorrendo se a suprimirmos;
mas não nos aventuramos a deixá-la seguir seu curso sem restrição. Entre as raças num baixo nível de
civilização, e entre as camadas inferiores das raças civilizadas, a sexualidade das crianças parece ter
recebido livre rédea. Isso provavelmente oferece poderosa proteção contra o subseqüente
desenvolvimento de neuroses no indivíduo. Mas isso ao mesmo tempo não envolve uma extraordinária
perda de aptidão para realizações culturais? Muito há para sugerir que aqui estamos diante de uma nova
Sila e Caríbdis.
Mas se os interesses que são estimulados pelo estudo da vida sexual dos neuróticos criam uma
atmosfera favorável ao estímulo da lascívia - isso é uma questão que eu me aventuro a deixar ao seu
próprio julgamento.
V
‘Creio que compreendo sua finalidade. O senhor deseja demonstrar-me que espécie de
conhecimento se faz necessário a fim de praticar a análise, de modo que eu possa ser capaz de julgar se
somente os médicos devem ter o direito de praticá-la. Bem, até agora surgiu muito pouco que tem a ver
com a medicina: muito de psicologia e um pouco de biologia ou de ciência sexual. Mas talvez não
tenhamos chegado ao fim?’
Certamente não. Ainda existem lacunas a ser preenchidas. Posso fazer um pedido? Quer
descrever-me como o senhor imagina um tratamento analítico? - da mesma forma como se o senhor
mesmo tivesse de proceder a um.
‘Uma bela idéia, sem dúvida! Não, não tenho a menor intenção de resolver nossa controvérsia
por uma experiência dessa espécie. Mas apenas para ser agradável, farei o que o senhor pede - a
responsabilidade será sua. Muito bem. Suporei que o paciente me procura e se queixa dos seus males.
Prometo-lhe recuperação ou melhoria se ele seguir minhas instruções. Estimulo-o a dizer-me com toda
franqueza tudo que ele sabe e que lhe ocorre, e que não se desvie dessa intenção mesmo se algumas
coisas lhe sejam desagradáveis de dizer. Assimilei a regra de maneira apropriada?’
Assimilou. O senhor deve acrescentar: ‘mesmo se o que lhe ocorrer lhe parecer destituído de
importância ou de sentido.’
‘Acrescentarei isso. Logo ele começa a falar e eu a ouvir. E então? Infiro do que ele me diz a
espécie de impressões, experiências e desejos que reprimiu porque se defrontou com eles numa época
em que seu ego ainda estava fraco e tinha medo deles em vez de enfrentá-los. Quando ele tiver
aprendido isso de mim, voltará às antigas situações e com minha ajuda ele se sai melhor. As limitações
às quais seu ego estava vinculado então desaparecem, e ele fica curado. Está certo?’
Bravo! bravo! vejo mais uma vez que as pessoas serão capazes de acusar-me de eu haver
transformado num analista alguém que não é médico. O senhor apreendeu tudo de maneira admirável.
‘Nada mais fiz senão repetir o que ouvi do senhor - como se fosse algo que eu tivesse aprendido
de cor. Seja como for, não posso formar quadro algum de como deva fazê-lo e estou inteiramente
desorientado para compreender por que uma tarefa como essa deva levar uma hora por dia durante
tantos meses. Afinal de contas, uma pessoa comum em geral não teve tantas experiências assim, o que
foi reprimido na infância é provavelmente o mesmo em cada caso.’Quando realmente se pratica a análise
aprendem-se as espécies de coisas além disso. Por exemplo: o senhor não acharia absolutamente que
fosse um assunto simples deduzir do que o paciente lhe conta as experiências que ele esqueceu e os
impulsos instituais que reprimiu. Ele diz algo que no começo significa tão pouco para o senhor como para
ele. O senhor terá de resolver contemplar o material que ele lhe entrega em obediência à regra de uma
maneira bem especial: como se fosse minério, talvez, do qual seu teor de metal precioso tem de ser
extraído por um processo específico. Estar-se-á também preparado para trabalhar muitas toneladas de
minério que podem conter o pouco material valioso que se procura. Aqui devemos ter um primeiro motivo
do prolongado caráter do tratamento.
‘Mas como se trabalha com essa matéria-prima - para manter seu símile?’
Presumindo-se que as observações e associações do paciente são apenas distorções do que se
procura - alusões, por assim dizer, das quais se tem de adivinhar o que se acha oculto detrás delas.
Numa palavra, esse material, quer consista em lembranças, associações ou sonhos, tem primeiramente
de ser interpretado. O senhor fará isso, naturalmente, observando as expectativas que formou quando
ouvia, graças ao seu conhecimento especial.
“’Interpretar!” Que palavra sórdida! Não gosto do seu som; ele me rouba toda a certeza. Se tudo
depender de minha interpretação, quem pode garantir que eu interpreto certo? Assim, afinal de contas,
tudo é deixado ao meu capricho?’
Um momento! As coisas não são assim tão más. Por que o senhor escolhe excluir seus próprios
processos mentais da norma da lei que reconhece nos de outras pessoas? Quando o senhor atingiu certo
grau de autodisciplina e possui certo conhecimento à sua disposição, suas interpretações serão
independentes de suas características pessoais e atingirão o alvo. Não estou afirmando que a
personalidade do analista seja uma questão de indiferença para essa parte da tarefa dele. Uma espécie
de agudeza em ouvir o que está inconsciente e reprimido, que não está na posse igualmente de todos,
tem seu papel a desempenhar. E aqui, antes de tudo, somos levados à obrigação do analista de tornar-se
capaz, por uma profunda análise dele próprio, da recepção sem preconceitos do material analítico. Algo,
é verdade, ainda permanece de fora: alguma coisa comparável à ‘equação pessoal’ nas observações
astronômicas. Esse fator individual sempre desempenhará um papel mais significativo na psicanálise do
que alhures. Uma pessoa anormal pode tornar-se um médico cuidadoso; como analista ele será
prejudicado pela sua própria anormalidade de ver os quadros da vida mental não distorcidos. Vistoser
impossível demonstrar a qualquer um sua própria anormalidade, o consenso geral em questão de
psicologia profunda será particularmente difícil de ser alcançado. Alguns psicólogos, na verdade, julgam
que ele é inteiramente impossível e que todo tolo tem o igual direito de externar sua estultície como
sabedoria. Confesso que sou mais otimista a respeito disso. Afinal de contas, nossas experiências
revelam que acordos razoavelmente satisfatórios podem ser alcançados mesmo na psicologia. Todo
campo de pesquisa tem sua dificuldade particular que devemos tentar eliminar. E, além disso, mesmo na
arte interpretativa da análise muito existe que pode ser aprendido como qualquer outro material de
estudo: por exemplo, em relação com o método peculiar de representação indireta através de símbolos.
‘Bem, não tenho mais qualquer desejo de empreender um tratamento analítico mesmo na minha
imaginação. Quem pode dizer quais as outras surpresas que eu poderia encontrar?’
O senhor tem toda a razão em abandonar a idéia. Está vendo como se fariam necessárias muito
mais formação e prática. Quando tiver achado uma interpretação certa, encontra-se à frente outra tarefa.
O senhor tem de esperar o momento exato no qual pode comunicar sua interpretação ao paciente com
alguma perspectiva de êxito.
‘Como se pode sempre reconhecer o momento certo?’
Isto é uma questão de tato, que pode tornar-se mais requintada com a experiência. O senhor
estará cometendo grave erro se, num esforço talvez de encurtar a análise, lançar suas interpretações na
cabeça do paciente logo que as houver encontrado. Dessa maneira o senhor obterá dele expressões de
resistência, rejeição e indignação, mas não permitirá que seu ego domine seu material reprimido. A
fórmula é: esperar até que o paciente tenha chegado tão perto do material reprimido que ele tenha
apenas mais alguns passos na dianteira da interpretação que o senhor propuser.
‘Creio que nunca aprenderia a fazer isso. E se adotar essas precauções ao fazer minha
interpretação, o que vem depois?’
Será então seu destino fazer uma descoberta para a qual não estava preparado.
‘E o que pode ser isso?’
Que o senhor se enganou com seu paciente; que não pode contar no mínimo com a colaboração
e a condescendência dele; que ele está pronto a colocar toda dificuldade possível em seu trabalho
comum - numa palavra, que ele não tem absolutamente qualquer desejo de ficar curado.
‘Ora veja só! Isso é a coisa mais louca que o senhor já me contou. E também não acredito nela.
O paciente que está sofrendo tanto, que se queixatão comovedoramente de seu males, que está fazendo
um sacrifício tão grande para o tratamento - o senhor diz que ele não tem qualquer desejo de ficar
curado! Mas naturalmente o senhor não está dando um significado exato às suas palavras.’
Acalme-se! Realmente confirmo o que digo. O que falei foi a verdade - não toda a verdade, sem
dúvida, mas uma parte muito digna de nota dela. O paciente deseja ser curado - mas ele também deseja
não ser. Seu ego perdeu sua unidade, e por esse motivo sua vontade também não tem qualquer unidade.
Se isto não fosse assim, ele não seria nenhum neurótico.
“’Fosse eu sagaz, e não seria o Tell!”
Os derivados do que é reprimido irromperam em seu ego e ali se estabeleceram; e o ego tem tão
pouco controle sobre as tendências daquela fonte quanto sobre o que é realmente reprimido, e em geral
nada sabe a respeito delas. Esses pacientes, na realidade, são de uma natureza peculiar e criam
dificuldades com as quais não estamos habituados a lidar. Todas as nossas instituições sociais são
estruturadas para pessoas com um ego unido e normal, que se pode classificar de bom ou mau, que ou
cumpre sua função ou é inteiramente eliminado por uma influência esmagadora. Daí a alternativa jurídica:
responsável ou irresponsável. Nenhuma dessas distinções se aplica a neuróticos. Deve-se admitir que há
dificuldade em adaptar as exigências sociais a sua condição psicológica. Isto foi experimentado em larga
escala durante a última guerra. Os neuróticos que burlavam o serviço militar eram simuladores ou não?
Eram e não eram. Se eram tratados como simuladores e sua doença era tornada altamente incômoda,
eles se recuperavam; se depois de serem ostensivamente restabelecidos eram enviados de volta às
forças armadas, imediatamente se refugiavam mais uma vez na doença. Nada podia ser feito com eles. E
o mesmo se aplica aos neuróticos na vida civil. Eles se queixam da doença mas a exploram com todas as
suas forças; e se alguém tenta afastá-la deles, defendem-na como a proverbial leoa com seus filhotes.
Contudo, não faria sentido algum recriminá-los por essa contradição.
‘O melhor plano, porém, não seria deixar de administrar a esses doentes tratamento, qualquer
que fosse ele, mas deixá-los entregues à sua sorte? Não penso que valha a pena despender esforços tão
grandes com cada um deles como o senhor me leva a supor que faz.’
Não posso aprovar sua sugestão. Indubitavelmente constitui uma atitude mais adequada aceitar
as complicações da vida de preferência a lutar contra elas. Talvez seja verdade que nem todo neurótico
que tratamos valha o sacrifício de uma análise, mas existem alguns indivíduos muito valiosostambém
entre eles. Devemos fixar nós mesmos a meta de que o menor número possível de seres humanos
ingresse na vida civilizada com tal aparelho mental defeituoso. E para essa finalidade devemos reunir
muita experiência e aprender a compreender muitas coisas. Toda análise pode ser instrutiva e
proporcionar-nos um acervo de nova compreensão inteiramente à parte do valor pessoal do paciente
individual.
‘Mas se um impulso volitivo formou-se no paciente que deseja reter a doença, o primeiro deve ter
suas razões e motivos e ser capaz, de alguma forma, de justificar-se. Mas é impossível compreender por
que alguém deseja estar doente ou o que poderá obter disso.’
Oh, isso não é tão difícil de compreender. Penso nos neuróticos de guerra, que não têm de servir
precisamente porque são doentes. Na vida civil a doença pode ser utilizada como uma tela para encobrir
a incompetência na profissão de alguém ou na concorrência com outras pessoas, enquanto na família
pode servir de meio para sacrificar os outros membros e extorquir provas do amor destes, ou para impor
a vontade sobre eles. Tudo isso se acha razoavelmente perto da superfície; nós o resumimos na
expressão ‘ganho proveniente da doença’. É curioso, contudo, que o paciente - isto é, seu ego - nada
saiba de toda a concatenação desses motivos e das ações que eles envolvem. Combate-se a influência
dessas tendências compelindo-se o ego a tomar conhecimento delas. Mas há outros motivos, que se
acham situados ainda mais profundamente, para que alguém se apegue à doença, com os quais não é
tão fácil lidar. Mas esses não podem ser compreendidos sem uma nova viagem pela teoria psicológica.
‘Queira continuar. Um pouco mais de teoria não fará diferença alguma agora.’
Quando lhe descrevi a relação entre o ego e o id, suprimi uma parte importante da teoria do
aparelho mental, pois fomos obrigados a presumir que dentro do próprio ego uma instância específica
tornou-se diferenciada, sendo ela designada como superego. Esse superego ocupa uma posição
especial entre o ego e o id. Ele pertence ao ego e partilha do seu alto grau de organização psicológica;
mas tem uma vinculação particularmente íntima com o id. É de fato um precipitado das primeiras catexias
do objeto do id e é o herdeiro do complexo de Édipo após o seu falecimento. Esse superego pode
confrontar-se com o ego e tratá-lo como um objeto; e ele muitas vezes o trata com grande aspereza. É
tão importante para o ego continuar em boas relações com o superego como com o id. Desavenças entre
o ego e o superego são de grande importância na vida mental. O senhor já terá adivinhado que o
superego é o veículo do fenômeno que chamamos de consciência. A saúdemental muito depende de o
superego ser normalmente desenvolvido - isto é, de haver-se tornado suficientemente impessoal. E é isso
precisamente o que não ocorre nos neuróticos cujo complexo de Édipo não passou pelo processo correto
de transformação. O superego deles ainda se confronta com seu ego como um pai rigoroso se defronta
com um filho: e sua moralidade atua de maneira primitiva devido ao ego ser punido pelo superego. A
doença é empregada como um instrumento para essa ‘autopunição’, e os neuróticos têm de comportar-se
como se fossem governados por um sentimento de culpa que, a fim de ser satisfeito, precisa ser punido
pela doença.
‘Isso realmente parece muito misterioso. A coisa mais estranha a respeito disso é que
aparentemente mesmo essa poderosa força da consciência do paciente não alcança sua consciência.’
Sim, estamos apenas começando a apreciar a significação de todas essas circunstâncias
importantes. Eis por que minha descrição estava destinada a ser tão obscura. Mas agora posso
continuar. Descrevemos todas as forças que se opõem ao trabalho de recuperação como sendo as
‘resistências’ do paciente. O ganho proveniente da doença é uma dessas resistências. O ‘sentimento de
culpa inconsciente’ representa a resistência do superego; é o fator mais poderoso, e o mais temido por
nós. Encontramos ainda outras resistências durante o tratamento. Se o ego durante o período inicial
estabeleceu uma repressão por medo, então este persiste e se manifesta como uma resistência se o ego
se aproxima do material reprimido. E finalmente, como o senhor pode imaginar, é provável que haja
dificuldades se se esperar que um processo instintual que tenha seguido um caminho específico durante
décadas de súbito siga uma nova trilha que acabe de ser aberta para ele. Isso poderia ser denominado
de resistência do id. A luta contra todas essas resistências constitui nosso principal trabalho durante um
tratamento analítico; a tarefa de fazer interpretações não é nada em comparação com ela. Mas como
resultado dessa luta e da superação das resistências, o ego do paciente fica tão alterado e fortalecido
que podemos antecipar com tranqüilidade seu futuro comportamento quando o tratamento estiver
terminado. Por outro lado, pode-se compreender agora por que são necessários tratamentos tão
prolongados. A extensão do caminho de desenvolvimento e a riqueza do material não são os fatores
decisivos. É mais uma questão de o caminho estar desimpedido. Um exército pode ficar retido durante
semanas numa extensão de terreno que na época de paz um trem expresso percorre em poucas horas se o exército tiver de superar ali a resistência do inimigo. Essas batalhas exigem tempo também na vida
mental. Infelizmente sou obrigado a dizer-lhe que todos os esforços no sentido de acelerar o tratamento
analítico de formaapreciável até agora malograram. A melhor maneira de encurtá-lo parece ser levá-lo a
efeito de acordo com as regras.
‘Se jamais senti desejo de caçar furtivamente em seu parque de caça e tentar analisar alguém, o
que o senhor me diz sobre as resistências me teria curado disso. Mas o que dizer da influência pessoal
especial que afinal de contas o senhor próprio admitiu? Isto não entra em ação contra as resistências?’
Foi bom o senhor me perguntar sobre isso. Essa influência pessoal é a nossa ama dinâmica mais
poderosa. É o novo elemento que introduzimos na situação e por meio do qual a tornamos fluida. O teor
intelectual de nossas explicações não pode fazê-lo, pois o paciente, que partilha de todos os
preconceitos do mundo que o cerca, precisa acreditar em nós tão pouco quanto o fazem os nossos
críticos científicos. O neurótico põe-se a trabalhar porque tem fé no analista e neste crê porque adquire
uma atitude emocional especial para com a figura do analista. Também as crianças só acreditam nas
pessoas às quais estão ligadas. Já lhe disse,ver em [[1]] que uso fazemos dessa influência ‘sugestiva’
particularmente grande. Não para suprimir os sintomas - isso distingue o método analítico de outros
processos psicoterapêuticos -, mas como uma força motora a fim de induzir o paciente a superar suas
resistências.
‘Muito bem, e se isso suceder, tudo então não correrá bem?’
Sim, deve. Mas surge uma complicação inesperada. Talvez constitua a maior surpresa do
analista constatar que a relação emocional que o paciente adota para com ele é de natureza bem
peculiar. O primeiro médico que tentou uma análise - não fui eu - defrontou-se com esse fenômeno e não
soube o que fazer dele, pois essa relação emocional, para expressá-lo de maneira simples, é da natureza
do apaixonar-se. Estranho, não é? Especialmente quando se leva em conta que o analista nada faz para
provocá-la mas, pelo contrário, antes se mantém à distância do paciente, falando humanamente, e o
cerca de certo grau de reserva - quando se aprende, além disso, que essa estranha relação de amor
despreza tudo o mais que seja realmente propício e toda variação quanto a atração pessoal, idade, sexo
ou classe. Esse amor é de natureza realmente compulsiva. Não que essa característica precise estar
ausente do apaixonar-se espontâneo. Como se sabe, o contrário ocorre freqüentemente. Mas na situação
analítica surge com inteira regularidade sem haver qualquer explanação racional para isso. Ter-se-ia
pensado que a relação do paciente com o analista nada mais exigia senão certa dose de respeito,
confiança, gratidão e simpatia humana. Em vez disso, existe esse apaixonar-se, que, ele próprio, dá a
impressão de ser um fenômeno patológico.‘Eu teria pensado da mesma maneira que isso seria favorável
às suas finalidades analíticas. Se alguém está apaixonado, ele é dócil, e tudo fará no mundo para o bem
de outra pessoa.’
Sim. É favorável para começar. Mas quando esse apaixonar-se se tornou mais profundo, toda a
sua natureza vem à luz, grande parte da qual é incompatível com a tarefa de análise. O amor do paciente
não se satisfaz com ser obediente; torna-se exigente, exige satisfações afetuosas e sensuais,
exclusivismo, torna-se ciumento e revela cada vez mais claramente seu lado oposto, sua disposição de
tornar-se hostil e vingativo se não puder alcançar seus fins. Ao mesmo tempo, como todo o apaixonar-se,
expulsa todo o outro material mental; extingue o interesse pelo tratamento e recuperação - em suma, não
pode haver dúvida alguma de que tomou o lugar da neurose e que nosso trabalho teve o resultado de
eliminar uma forma de doença por outra.
‘Isso realmente parece um caso perdido! O que pode ser feito quanto a isso? A análise teria de
ser abandonada. Mas se, como o senhor diz, a mesma coisa acontece em todos os casos, seja como for
seria impossível levar a efeito qualquer análise.’
Começaremos utilizando a situação a fim de aprendermos algo dela. O que aprendermos talvez
poderá então ajudar-nos a dominá-la. Não constitui fato extremamente digno de nota que conseguimos
transformar toda neurose, qualquer que seja seu conteúdo, numa condição de amor patológico?
Nossa convicção de que uma parte da vida erótica que tenha sido anormalmente empregada se
acha na base das neuroses deve ser inabalavelmente fortalecida por essa experiência. Com essa
descoberta estamos mais uma vez numa posição firme e podemos aventurar-nos a tornar esse próprio
amor objeto de análise. E podemos fazer outra observação. O amor analítico não se manifesta em todos
os casos tão clara e ruidosamente como tentei descrevê-lo. Por que não? Logo poderemos ver. À medida
que as facetas puramente sensuais e hostis do seu amor tentam revelar-se, a oposição do paciente a
elas é despertada. Ele luta contra elas e tenta reprimi-las perante nossos próprios olhos. O paciente está
repetindo com o analista, sob a forma de apaixonar-se, experiências mentais pelas quais já passou antes;
ele transferiu para o analista atitudes mentais que estavam prontas nele e intimamente associadas com
sua neurose. Ele também está repetindo diante dos nossos olhos suas antigas ações defensivas; ele
gostaria mais de repetir em sua relação com o analista toda a história daquele período esquecido de sua
vida. Assim, o que ele nos está mostrando é o núcleo da história íntima de sua vida: ele o está
reproduzindo de forma tangível, como se ele realmente estivesse acontecendo, em vez de recordar-se
dele. Dessa maneira, o enigma do amortransferencial é solucionado e a análise pode seguir seu caminho
- com a ajuda da nova situação que lhe parecera uma grande ameaça.
‘Isso é muito engenhoso. E é tão fácil convencer o paciente de que ele não está apaixonado, mas
somente obrigado a levar à cena uma revivescência de uma antiga peça?’
Tudo agora depende disso. E toda a habilidade para lidar com a ‘transferência’ é dedicada a
ocasioná-la. Como o senhor está vendo, as exigências da técnica analítica alcançam seu máximo nesse
ponto. Aqui se podem cometer os erros mais graves ou os maiores êxitos podem ser registrados. Seria
estultície tentar fugir às dificuldades suprimindo-se ou negligenciando-se a transferência; qualquer outra
coisa mais que se tivesse feito no tratamento não mereceria o nome de análise. Despachar o paciente
logo que as inconveniências da sua neurose de transferência surgem não seria mais sensato, e além
disso seria covardia. Seria como se alguém houvesse invocado espíritos e deles fugisse logo que
aparecessem. Algumas vezes, é verdade, nada mais é possível. Existem casos nos quais não podemos
dominar a transferência desencadeada e a análise tem de ser interrompida; mas devemos pelo menos ter
lutado com os espíritos maus com o máximo de nossas forças. Ceder às exigências da transferência,
atender aos desejos do paciente no sentido de satisfação afetuosa e sensual, é não só com justiça
proibido por considerações morais como também é inteiramente ineficaz como um método técnico para
alcançar a finalidade da análise. Um neurótico não pode ser curado por lhe ser permitido reproduzir
estereótipos incorretos e inconscientes que nele estão à mão. Se nos empenharmos em conciliações
com ele mediante a oferta de satisfações parciais em troca de sua colaboração ulterior na análise,
devemos ter cuidado para não incidirmos na situação ridícula do clérigo que devia converter um agente
de seguros enfermo. O doente continuou não convertido mas o clérigo despediu-se segurado. A única
saída possível da situação de transferência é remontá-la ao passado do paciente, como ele realmente a
experimentou ou como ele a imaginou através da atividade realizadora de desejos de sua imaginação. E
isto exige do analista muita habilidade, paciência, calma e abnegação própria.
‘E onde o senhor supõe que o neurótico experimentou o protótipo do seu amor transferencial?’
Em sua infância: em geral, em sua relação com um dos seus pais. O senhor deve lembrar-se da
importância que tivemos de atribuir a esses primeiros laços emocionais. Assim, aqui o círculo se fecha.‘O
senhor finalmente acabou? Estou-me sentindo um pouco perplexo com tudo o que ouvi do senhor. Queira
dizer-me apenas mais uma coisa: como e onde se pode aprender o que é necessário para praticar-se a
análise?’
No momento existem dois institutos nos quais se ministra instrução sobre psicanálise. O primeiro
foi fundado em Berlim pelo Dr. Max Eitingon, que é membro da Sociedade local. O segundo é mantido
pela Sociedade Psicanalítica de Viena às suas próprias expensas e com considerável sacrifício. O papel
desempenhado pelas autoridades limita-se, no presente, às muitas dificuldades que antepõem ao novo
empreendimento. Um terceiro instituto de formação está sendo agora inaugurado em Londres pela
Sociedade dessa cidade, sob a direção do Dr. Ernest Jones. Nesses institutos os próprios candidatos são
submetidos à análise, recebem instrução teórica mediante conferências sobre todos os assuntos que são
importantes para eles, e desfrutam da supervisão de analistas mais velhos e mais experimentados
quando lhes é permitido fazer suas primeiras experiências com casos relativamente brandos. Calcula-se
um período de cerca de dois anos para essa formação. Mesmo após esse período, naturalmente, o
candidato é apenas um principiante e não ainda um mestre. O que ainda se necessita deve ser adquirido
pela prática e por uma troca de idéias nas sociedades psicanalíticas nas quais membros jovens e velhos
se reúnem. O preparo para a atividade analítica de modo algum é fácil e simples. O trabalho é árduo,
grande a responsabilidade. Mas qualquer um que tenha sido analisado, que tenha dominado o que pode
ser ensinado em nossos dias sobre a psicologia do inconsciente, que esteja familiarizado com a ciência
da vida sexual, que tenha aprendido a delicada técnica da psicanálise, a arte da interpretação, de
combater resistências e de lidar com a transferência - qualquer um que tenha realizado tudo isso não é
mais um leigo no campo da psicanálise. Ele é capaz de empreender o tratamento de perturbações
neuróticas e ainda poderá com o tempo alcançar nesse campo o que quer que se possa exigir dessa
forma de terapia.
VI
‘O senhor despendeu grande dose de esforço ao mostrar-me o que é a psicanálise e que espécie
de conhecimento se faz necessário a fim de praticá-la com certa perspectiva de êxito. Muito bem. Ouvi-lo
não pode ter-me causado mal algum. Mas não sei que influência o senhor espera que suas explicações
tenham em meu julgamento. Vejo diante de mim um caso que nada tem de inusitado a esse respeito. As
neuroses são uma espécie específica de doença e a análise é um método específico de tratá-las - um
ramo especializado da medicina. Constitui regra em outros casos, bem como para um médico que tenha
escolhido um ramo especial da medicina, não se satisfazer com a educação que é confirmada pelo seu
diploma: particularmente se ele pretende fixar-se numa cidade razoavelmente grande, uma cidade que,
somente ela, possa oferecer um meio de vida a especialistas. Qualquer um que deseje ser cirurgião tenta
trabalhar por alguns anos numa clínica cirúrgica, e de forma semelhante o mesmo se verifica com
oculistas, laringologistas, e assim por diante - para não dizer nada de psiquiatras, que talvez jamais
sejam capazes de afastar-se de uma instituição ou um sanatório do Estado. E o mesmo acontecerá no
caso de psicanalistas: qualquer um que se resolva em favor desse novo ramo especializado da medicina,
quando concluídos seus estudos, fará os dois anos de especialização que o senhor mencionou num
instituto de formação, se realmente este exigir tanto tempo. Ele também compreenderá depois que lhe
será vantajoso manter contato com seus colegas numa sociedade psicanalítica, e tudo correrá bem. Não
posso ver onde haja lugar nisso para a questão da análise leiga.’
Um médico que faz o que o senhor prometeu em seu nome será bem acolhido por todos nós.
Quatro quintos daqueles que eu reconheço como meus alunos são, de qualquer maneira, médicos. Mas
permita-me ressaltar-lhe como as relações de médicos com a análise se desenvolveram realmente e
como provavelmente continuarão a desenvolver-se. Os médicos não têm qualquer reivindicação histórica
pela posse única da análise. Pelo contrário, até recentemente fizemos face à mesma com tudo aquilo que
pudesse prejudicá-la, desde o ridículo mais frívolo à calúnia mais grave. O senhor responderá com razão
que isso pertence ao passado e não precisa afetar o futuro. Concordo, mas temo que o futuro será
diferente do que o senhor previu.
Permita-me dar à palavra ‘charlatão’ o significado que ela deve ter em vez do significado jurídico.
De acordo com a lei, charlatão é qualquer um que trata pacientes sem possuir um diploma oficial que
prove que ele é medico. Eu preferiria outra definição: charlatão é todo aquele que efetua um tratamento
sem possuir o conhecimento e a capacidade necessários para tanto. Firmando-me nessa definição,
aventuro-me a afirmar que - não somente nos países europeus - os médicos formam um contingente
preponderante de charlatões na análise. Eles com grande freqüência praticam o tratamento analítico sem
o terem aprendido e sem compreendê-lo.
De nada vale o senhor argumentar que isso é inconsciente e que não pode acreditar que os
médicos sejam capazes disso; que afinal de contas um médico sabe que um diploma de médico não é
uma carta de corso e que um paciente não é um fora-da-lei; e que se deve sempre admitir que um
médico está agindo de boa fé mesmo que talvez esteja laborando em erro.
Os fatos ficam; esperaremos que possam ser explicados como o senhor pensa. Tentarei explicarlhe como se torna possível a um médico agir em relação com a psicanálise de uma forma que ele
cuidadosamente evitaria em todos os outros campos.
A primeira consideração é que na escola de medicina um médico recebe uma formação que é
mais ou menos o oposto do que ele necessitaria como preparo para a psicanálise. Sua atenção foi
dirigida para fatos objetivamente verificáveis de anatomia, de física e de química, de cuja apreciação
correta e influência adequada depende o êxito do tratamento médico. O problema da vida é trazido para
seu campo de visão até onde nos tenha sido explicado pelo jogo das forças que também podem ser
observadas na natureza inanimada. Seu interesse não é despertado no lado mental dos fenômenos
vitais; a medicina não se preocupa com o estudo das funções intelectuais superiores, que se situa na
esfera de outra faculdade. Supõe-se que só a psiquiatria lide com as perturbações das funções mentais;
mas sabemos de que maneira e com quais finalidades ela o faz. Ela procura os determinantes somáticos
das perturbações mentais e os trata como outras causas de doença.
A psiquiatria tem razão de agir dessa forma e a educação médica é claramente excelente. Se for
descrita como unilateral, deve-se primeiro descobrir o ponto de vista a partir do qual se está
transformando essa característica numa censura. Em si toda ciência é unilateral. Tem de ser assim, visto
que ela se restringe a assuntos, pontos de vista e métodos específicos. É uma insensatez, na qual eu
não tomaria parte, lançar uma ciência contra a outra. Afinal de contas, a física não diminui o valor da
química; ela não pode ocupar seu lugar mas, por outro lado, não pode ser substituída por ela. A
psicanálise é, por certo, bem particularmente unilateral, por ser a ciência doinconsciente mental. Não
devemos, portanto, contestar às ciências médicas seu direito de serem unilaterais.
Só encontraremos o ponto de vista que estamos procurando se passarmos da medicina científica
para a terapêutica prática. Uma pessoa doente é um organismo complicado. Ela poderá lembrar-nos que
até mesmo os fenômenos mentais, que são tão difíceis de apreender, não devem ser apagados do
quadro da vida. Os neuróticos, realmente, constituem uma complicação indesejável, um estorvo tanto
para a terapêutica como para a jurisprudência e o serviço militar. Mas existem e são uma preocupação
particular da medicina. A educação médica, contudo, nada faz, literalmente nada, para compreendê-los e
tratá-los. Em vista da estreita ligação entre as coisas que distinguimos como físicas e mentais, podemos
antecipar o dia em que os caminhos do conhecimento e, esperemos, da influência serão desbravados,
conduzindo da biologia e da química orgânicas para o campo de fenômenos neuróticos. Esse dia ainda
parece distante, e no momento essas doenças nos são inacessíveis pela direção da medicina.
Seria tolerável se a educação médica apenas deixasse de proporcionar aos médicos orientação
no campo das neuroses. Mas ela faz mais do que isso: dá-lhes uma atitude falsa e prejudicial. Os
médicos cujo interesse não foi despertado pelos fatores psíquicos da vida estão mais que prontos para
formar uma estimativa deficiente dos mesmos e ridicularizá-los como não científicos. Por essa razão, são
incapazes de aceitar algo de realmente sério que tenha a ver com eles e não reconhecem as obrigações
provenientes deles. Portanto, caem na falta de respeito do leigo pela pesquisa psicológica e tornam sua
própria tarefa fácil para eles próprios. - Sem dúvida os neuróticos têm de ser tratados, visto serem
pessoas enfermas e procurarem o médico, devendo-se estar sempre pronto para fazer-se experiência
com algo novo. Mas por que arcar com o fardo de uma preparação tediosa? Nós nos arranjaremos muito
bem; quem pode dizer se o que ensinam nos institutos analíticos é de alguma valia? - Quanto menos tais
médicos compreenderem do assunto, mais aventurosos se tornam. Só um homem que realmente sabe é
modesto, pois ele sabe quão insuficiente é o seu conhecimento.
A comparação que o senhor apresentou para tranqüilizar-me, entre a especialização na análise e
em outros ramos da medicina, não é, então, aplicável. Para a cirurgia, a oftalmologia, e assim por diante,
a própria escola de medicina oferece uma oportunidade de educação ulterior. Os institutos analíticos são
em pequeno número, recentes e destituídos de autoridade. As escolas de medicina não os reconheceram
e deles não tomam qualquer conhecimento. O jovem médico, que teve de confiar tanto em seus
mestresque pouca ocasião teve de educar seu julgamento, prazerosamente aproveita o momento
propício para desempenhar o papel de crítico por exceção num campo no qual ainda não há qualquer
autoridade reconhecida.
Existem também outras coisas que favorecem seu apreciamento como um charlatão analítico. Se
ele tentasse efetuar operações na vista sem suficiente preparo, o fracasso de suas extrações de
cataratas e iridectomias e a ausência de pacientes logo poriam termo à sua arriscada empresa. A prática
de análise é relativamente segura para ele. O público é estragado pelo resultado médio bem-sucedido de
operações na vista e espera do cirurgião a cura. Mas se um ‘especialista em nervos’ deixar de restaurar
seus pacientes, ninguém fica surpreendido. As pessoas não foram inutilizadas por êxitos na terapia das
neuroses; o especialista em nervos pelo menos ‘muito se preocupou com elas’. Realmente, não há muito
que possa ser feito; a natureza deve ajudar, ou o tempo. Com as mulheres temos primeiro a
menstruação, depois o casamento e posteriormente a menopausa. Finalmente a morte constitui uma
verdadeira ajuda. Além disso, o que o analista médico tem feito com seu paciente neurótico é tão
insignificante que nenhuma censura lhe pode ser feita. Ele não tem feito uso de quaisquer instrumentos
ou medicamentos; ele tem apenas conversado com ele e tentado persuadi-lo ou dissuadi-lo de alguma
coisa. Certamente isto não pode causar mal algum, especialmente se ele evita abordar assuntos aflitivos
ou inquietantes. O analista médico, que tem evitado qualquer ensinamento rigoroso, sem dúvida não terá
omitido a tentativa de aperfeiçoar a análise, de extrair-lhe as presas venenosas e de torná-la agradável
para o paciente. E será prudente que ele pare por aí, pois se ele realmente se aventurar a invocar
resistências e depois não souber fazer-lhes face, poderá realmente tornar-se impopular.
A honestidade obriga-me a admitir que a atividade de um analista não formado causa menos mal
aos seus pacientes do que a de um cirurgião inábil. O possível dano limita-se ao fato de o paciente ter
sido levado a uma despesa inútil e de ter suas possibilidades de recuperação eliminadas ou diminuídas.
Além disso, a reputação da terapia analítica foi reduzida. Tudo isso é muito indesejável, mas não tem
comparação alguma com os perigos que advêm do bisturi de um charlatão cirúrgico. Segundo me parece,
não se devem temer agravamentos severos ou permanentes de uma condição patológica, mesmo com
um emprego não especializado da análise. Em confronto com os traumas da vida que provocaram a
doença, um pouco de imperícia por parte do médico não tem qualquer importância. Simplesmente ocorre
que a tentativa inadequada de curar não causou bem algum ao paciente.‘Ouvi seu relato sobre o
charlatão médico na análise sem interrompê-lo, embora formasse a impressão de que o senhor se acha
dominado por uma hostilidade contra a profissão médica, para cuja explicação histórica o senhor mesmo
apontou o caminho. Mas admitirei uma única coisa: se as análises têm de ser levadas a efeito, isto deve
ser efetuado por pessoas que foram formadas inteiramente para esse mister. E o senhor não pensa que
com o tempo os médicos que se dediquem à análise tudo farão para obter essa formação?’
Temo que não. Enquanto a atitude da escola médica em relação ao instituto de formação
analítica continuar inalterada, os médicos acharão a tentação de tornarem as coisas mais fáceis para eles
próprios grande demais.
‘Mas parece que o senhor fica sistematicamente a fugir de qualquer pronunciamento direto sobre
a questão da análise leiga. O que penso agora é que, em vista de ser impossível manter uma observação
dos médicos que querem analisar, o senhor está propondo, como vingança, por assim dizer, puni-los,
privando-os do monopólio da análise e abrindo de par em par as portas dessa atividade médica também
a leigos.’
Não posso dizer se o senhor adivinhou meus motivos de maneira correta. Talvez eu possa mais
adiante apresentar-lhe provas de uma atitude menos parcial. Mas ponho ênfase na exigência de quem
ninguém deve praticar a análise se não tiver adquirido o direito de fazê-lo através de uma formação
específica. Se essa pessoa é ou não um médico, a mim me parece sem importância.
‘Então que propostas definitivas tem a fazer?’
Ainda não fui até esse ponto e não poderei dizer se chegarei lá. Gostaria de examinar outra
questão com o senhor, e antes de tudo aflorar um ponto especial. Diz-se que as autoridades, por
instigação da profissão médica, desejam proibir inteiramente a prática da análise por leigos. Tal proibição
também afetaria os membros não-médicos da Sociedade Psicanalítica, que têm desfrutado de excelente
formação e se aperfeiçoado grandemente pela prática. Se a proibição fosse efetivada, nós nos
encontraríamos numa posição na qual grande número de pessoas ficariam impedidas de executar uma
atividade que podemos com segurança nos sentir convictos de que podem efetuar muito bem, ao passo
que a mesma atividade está franqueada a outras pessoas para as quais não há qualquer garantia
semelhante. Essa não é precisamente a espécie de resultado ao qual a legislação deva conduzir.
Contudo, esse problema especial não é muito importante nem muito difícil de solucionar. Diz respeito
apenas a um pequeno número de pessoas, que não pode ser seriamente prejudicado. Elas
provavelmente emigrarão para aAlemanha, onde nenhuma legislação as impedirá de encontrar
reconhecimento pela sua proficiência. Se se desejar poupá-las disto e abrandar a severidade da lei, isto
facilmente pode ser feito com base em alguns precedentes bem conhecidos. Sob a monarquia austríaca
com freqüência acontecia ser dada permissão a notórios charlatães, ad personam [pessoalmente], para
levarem a efeito atividades médicas em certos campos, porque as pessoas estavam convencidas da
verdadeira capacidade deles. Os interessados eram na sua maior parte curandeiros camponeses, e sua
recomendação parece ter sido feita regularmente por um dos arquiduques que outrora eram tão
numerosos; mas deve ser possível que isso também seja feito no caso de citadinos e com base em uma
garantia diferente e meramente técnica. Essa proibição teria efeitos mais importantes sobre o instituto de
formação analítica de Viena, que daí por diante seria incapaz de aceitar quaisquer candidatos, para
formação, de círculos não médicos. Assim, mais uma vez em nosso país uma linha de atividade
intelectual seria suprimida, a qual se permite que se desenvolva livremente em outras partes. Sou a
última pessoa a reivindicar qualquer competência para julgar leis e regulamentos. Mas posso
compreender que dar ênfase à nossa lei sobre charlatanismo não leva em direção à abordagem das
condições na Alemanha a que tanto se visa hoje, e que a aplicação dessa lei ao caso da psicanálise traz
em si algo de anacrônico, visto que na época de sua promulgação ainda não havia essa coisa que se
chama análise e que a natureza peculiar das doenças neuróticas ainda não era reconhecida.
Agora chego a uma questão cujo exame me parece mais importante. A prática da psicanálise é
um assunto que deve, em geral, ficar sujeito à interferência oficial, ou seria mais conveniente deixá-lo
seguir seu desenvolvimento natural? Certamente não chegarei a qualquer decisão sobre esse ponto aqui
e agora, mas tomarei a liberdade de pôr o problema diante do senhor para sua consideração. Em nosso
país desde antigamente um verdadeiro furor prohibendi [paixão por proibições] tem constituído a regra,
uma tendência a manter as pessoas sob tutela, a interferir e a proibir, o que, como todos sabemos, não
tem dado frutos particularmente bons. Em nossa nova Áustria republicana, parece, as coisas ainda não
mudaram muito. Imagino que o senhor terá algo de importante a dizer para a solução do caso da
psicanálise ora em consideração por nós; não sei se o senhor tem o desejo ou a influência com que oporse a essas tendências burocráticas. Seja como for, não lhe pouparei meus pensamentos desautorizados
sobre o assunto. Em minha opinião, uma pletora de regularmentos e proibições prejudica a autoridade da
lei. Pode-se observar que onde há somente poucas proibições elas são cuidadosamente observadas,
mas onde alguém é acompanhado de proibições a cada passo, esse alguém se sente realmente tentado
a desprezá-las. Além disso, não significa que alguém seja realmente um anarquista se estiver preparado
para compreender que as leis e os regulamentos não podem, a partir de sua origem, alegar possuir o
atributo de serem sagrados e não infringíveis, que são muitas vezes inadequadamente elaborados e
ofendem nosso sentimento de justiça, ou o farão após certo tempo, e que, em vista da lerdeza das
autoridades, amiúde não existe outro meio de corrigir tais leis impróprias senão violando-as
ousadamente. Além disso, se se deseja manter o respeito pelas leis e regulamentos é aconselhável nada
promulgar onde não pode facilmente ser mantida uma vigilância no sentido de serem obedecidos ou
transgredidos. Grande parte do que citei acima sobre a prática da análise por médicos poderia ser
repetido aqui no tocante à análise autêntica por leigos que a lei vem procurando suprimir. O curso de uma
análise é muito modesto, não empregando nem medicamentos nem instrumentos, e consiste apenas em
conversa e numa troca de informações; não será fácil provar que um leigo esteja praticando ‘análise’, se
ele afirmar que está simplesmente dando estímulo e explicações e tentando estabelecer uma influência
humana saudável sobre pessoas que estão à procura de assistência mental. Por certo não seria possível
proibir isso meramente porque os médicos algumas vezes fazem a mesma coisa. Nos países de língua
inglesa as práticas da Ciência Cristã tornaram-se muito difundidas: uma espécie de negação dialética dos
males da vida, baseada num apelo às doutrinas da religião cristã. Não hesito em afirmar que esse
procedimento representa uma aberração lamentável do espírito humano; mas quem nos Estados Unidos
ou na Inglaterra sonharia em proibi-lo e torná-lo punível? As autoridades estão assim tão certas do
caminho correto para a salvação que elas se aventuram a impedir que cada um tente ‘ser salvo segundo
a sua própria maneira’. E admitindo-se que muitas pessoas, se entregues a si próprias, correm para o
perigo e fracassam, não seria melhor que as autoridades marcassem cuidadosamente os limites das
regiões que devem ser consideradas como proibidas, e quanto ao restante, até onde possível, permitir
que os seres humanos sejam educados pela experiência e influência mútua? A psicanálise é algo tão
novo no mundo, a massa da humanidade é tão pouco instruída sobre ela, a atitude da ciência oficial
paracom ela é ainda tão vacilante, que me parece precipitado intervir em seu desenvolvimento com
regulamentos legislativos. Deixemos que os próprios pacientes descubram que lhes é prejudicial procurar
assistência mental junto a pessoas que não aprenderam a proporcioná-la. Se explicarmos isto a eles e os
advertirmos contra tal fato, teremos poupado a nós mesmos a necessidade de proibi-lo. Nas principais
estradas da Itália as torres de cabos de alta-tensão trazem a inscrição sucinta e impressionante: ‘Chi
tocca, muore [Quem tocar, morre].’ Isso está perfeitamente calculado para regular o comportamento de
transeuntes em relação a quaisquer fios que estejam pendentes. Os avisos alemães correspondentes
exibem uma verbosidade desnecessária e ofensiva: ‘Das Berühren der Leitungsdrähte ist, weil
lebensgefährlich, strengstens verboten [Tocar as linhas de transmissão é, por ser perigoso à vida,
rigorosamente proibido].’ Qualquer um que tenha amor à vida fará a proibição para si mesmo; e qualquer
um que deseja matar-se dessa maneira não pedirá permissão.
‘Mas há casos que podem ser citados como precedentes legais contra a permissão da análise
leiga; quero dizer, a proibição de leigos praticarem o hipnotismo e a proibição recentemente baixada
contra a realização de sessões espíritas ou a fundação de sociedades espíritas.’
Não posso dizer que seja admirador dessas medidas. A segunda é uma invasão indisfarçada de
supervisão policial em detrimento da liberdade intelectual. Estou acima da suspeição de ter muita crença
naquilo que se conhece como ‘fenômenos ocultos’ ou de sentir qualquer desejo de que sejam
reconhecidos. Mas proibições como essas não sufocarão o interesse das pessoas por esse mundo
supostamente misterioso. Poderão, pelo contrário, ter causado grande dano e ter fechado a porta a uma
curiosidade imparcial que poderia haver chegado a um julgamento que nos teria libertado dessas
possibilidades vexatórias. Mais uma vez, contudo, isso somente se aplica à Áustria. Em outros países,
pesquisas ‘parapsíquicas’ não encontram quaisquer obstáculos legais. O caso do hipnotismo é algo
diferente do da análise. O hipnotismo é a evocação de um estado mental anormal e é utilizado por leigos,
nos dias que correm, somente com a finalidade de espetáculos públicos. Se a terapia hipnótica tivesse
mantido seus inícios muito promissores, ter-se-ia chegado a uma posição semelhante à da análise. E
incidentalmente a história do hipnotismo oferece um precedente para o da análise em outra direção.
Quando eu era um jovem conferencista de neuropatologia, os médicos invectivavam ardorosamente o
hipnotismo, declaravam que ele era um logro, um logro do demônio e um procedimento altamente
perigoso. Hoje eles monopolizaram esse mesmo hipnotismo e dele fazem uso, sem hesitações, como um
método de exame; para alguns especialistas de nervos ele ainda constitui seu principal instrumento
terapêutico.
Mas já lhe disse que não tenho qualquer intenção de fazer propostas que se baseiem na decisão
quanto a se o controle legal ou o deixar que as coisas sigam o seu curso deva ser preferido em matéria
de análise. Sei que isto é uma questão de princípio, sendo que sobre a resposta a ela as inclinações das
pessoas de autoridade terão mais influência do que argumentos. Já estabeleci o que me parece falar em
favor de uma política de laissez faire. Se a outra decisão for adotada - para uma política de intervenção
ativa - então parece que em qualquer caso uma medida imperfeita e injusta de proibir implacavelmente a
análise por não-médicos será um resultado insuficiente. Algo mais terá de ser considerado nesse caso:
terão de ser lançadas condições sob as quais a prática da análise será permitida a todos aqueles que
procurem dela fazer uso, terá de ser estabelecida uma autoridade da qual se possa aprender o que é a
análise e que espécie de preparo se faz necessário para isso, e as possibilidades de instrução em análise
terão de ser estimuladas. Devemos portanto, ou deixar as coisas em paz ou estabelecer ordem e clareza;
não devemos precipitar-nos numa situação complicada com uma única proibição isolada proveniente
mecanicamente de um regulamento que se tornou inadequado.
VII
‘Sim, mas os médicos! os médicos! Não posso induzi-lo a penetrar no verdadeiro tema de nossas
conversações. O senhor ainda continua a esquivar-se de mim. Trata-se de se devemos ou não dar aos
médicos o direito de praticarem a análise - e isto em nada me afeta, depois de haverem preenchido
certas condições. A maioria dos médicos não consiste em charlatães em análise como o senhor os
representou. O senhor mesmo afirma que a grande maioria dos seus alunos e seguidores são médicos.
Chegou ao meu conhecimento que eles estão longe de partilhar seu ponto de vista sobre a questão da
análise leiga. Sem dúvida posso presumir que seu alunos concordam com suas exigências no sentido de
suficiente preparo e assim por diante; e contudo esses alunos julgam coerente vedar a prática da análise
a leigos. É isso mesmo? e em caso afirmativo, como o senhor o explica?
Estou vendo que o senhor está bem informado. Sim, de fato. Nem todos, é verdade, mas boa
proporção dos meus colegas não concorda comigo em relação a esse ponto, sendo favoráveis a que os
médicos tenham o direito exclusivo ao tratamento analítico de neuróticos. Isto lhe mostrará que
divergências de opinião são permitidas mesmo em nosso campo. O partido que eu tomo é bem
conhecido e a contradição sobre o assunto da análise leiga não interfere em nossa boa compreensão.
Como posso explicar-lhe a atitude desses meus alunos? Não sei ao certo; penso que deve ser a força do
sentimento profissional. O curso do desenvolvimento deles tem sido diferente do meu, eles ainda não se
sentem à vontade em seu isolamento dos colegas, gostariam de ser aceitos pela ‘profissão’ como tendo
plenos direitos, e estão preparados, em troca, por essa tolerância, para fazer um sacrifício num ponto
cuja importância vital não lhes é evidente. Talvez possa ser de outra forma; imputar motivos de
concorrência a eles seria não somente acusá-los de sentimentos baixos, mas também atribuir-lhes uma
estranha miopia. Estão sempre prontos a introduzir outros médicos na análise, e de um ponto de vista
material deve ser-lhes indiferente ter de partilhar os pacientes disponíveis com colegas médicos ou com
leigos. Mas algo diferente provavelmente desempenha seu papel. Esses meus alunos podem ser
influenciados por certos fatores que garantem a um médico indubitável vantagem sobre um leigo na
prática analítica.
‘Garantir-lhe uma vantagem? Aí está. Então finalmente o senhor está admitindo a vantagem? Isto
deve resolver a questão.’Não me é difícil admiti-lo, o que poderá revelar-lhe que não tenho assim um
preconceito tão arraigado como o senhor supõe. Deixei de mencionar essas coisas porque sua discussão
mais uma vez tornaria necessárias considerações teóricas.
‘Em que está pensando agora?’
Primeiramente há a questão do diagnóstico. Quando se submete à análise um paciente que sofre
do que se descreve como perturbações nervosas, deseja-se de antemão estar certo - até agora,
naturalmente, conforme a certeza possa ser alcançada - de que ele se presta a essa espécie de
tratamento, de que se pode ajudá-lo por esse método. Isso, contudo, é o caso apenas se ele realmente
tiver uma neurose.
‘Eu teria pensado que isso seria reconhecível a partir dos fenômenos, dos sintomas dos quais ele
se queixa.’
É aí que surge uma nova complicação. Ela nem sempre pode ser reconhecida como uma certeza
absoluta. O paciente poderá exibir o quadro externo de uma neurose e, contudo, poderá ser algo mais - o
início de uma doença mental incurável ou a fase preliminar de um processo destrutivo no cérebro. A
distinção - o diagnóstico diferencial - nem sempre é fácil e nem pode ser feita imediatamente em cada
fase. A responsabilidade de tal decisão só pode, naturalmente, ser empreendida por um médico. Como
eu disse, nem sempre é fácil para ele. A doença pode ter uma aparência inocente por considerável
tempo, até que por fim, afinal de contas, apresenta o seu mau caráter. Na realidade, constitui um dos
temores comuns dos neuróticos que eles venham a tornar-se insanos. Contudo, se um médico se tiver
enganado por algum tempo com um caso dessa espécie ou tiver estado incerto a respeito dele, nenhum
mal foi provocado e nada de desnecessário foi feito. Nem realmente o tratamento analítico desse caso
teria causado qualquer dano, embora tivesse sido exposto como um desperdício desnecessário. E além
disso certamente haveria muitas pessoas que culpariam a análise pelo infeliz resultado. Injustamente,
sem dúvida, mas tais ocasiões devem ser evitadas.
‘Mas isso parece um caso perdido. Atinge as raízes de tudo o que o senhor me disse sobre a
natureza e a origem de uma neurose.’
De modo algum. Simplesmente conforma mais uma vez o fato de que os neuróticos são uma
praga e um estorvo para todos os interessados - inclusive os analistas. Mas talvez eu elucide sua
confusão se enunciar minha nova informação em termos mais corretos. Provavelmente seria mais correto
dizer dos casos com os quais estamos agora lidando que eles desenvolveram realmente uma neurose,
não sendo ela, no entanto, psicogênica mas somatogênica - que suas causas não são mentais, mas
físicas. O senhor compreende?‘Sem dúvida, compreendo. Mas não posso harmonizar isso com a outra
faceta, a psicológica.’
Isso pode ser resolvido, contudo, se se tiver em mente as complexidades da substância viva. Em
que achamos a essência de uma neurose? No fato de que o ego, a organização superior do aparelho
mental (elevada através da influência do mundo externo), não é capaz de cumprir com sua função de
mediador entre o id e a realidade, de que na sua debilidade ela recua de certas partes instituais do id e, a
fim de compensar isto, tem de aturar as conseqüências de sua renúncia sob a forma de restrições,
sintomas e formações reativas malsucedidas.
Uma debilidade do ego dessa espécie é encontrada em todos nós na infância e eis por que as
experiências dos primeiros anos da infância são de importância tão grande para a vida ulterior. Sob o
fardo extraordinário desse período da infância - temos em poucos anos de abarcar a enorme distância de
desenvolvimento entre os homens primitivos da idade da pedra e os participantes da civilização
contemporânea, e, ao mesmo tempo e em particular, temos de desviar os impulsos instituais do período
sexual inicial -, sob esse fardo, portanto, nosso ego procura refúgio na repressão e fica exposto a uma
neurose da infância, cujo precipitado ele carrega consigo até a maturidade como uma disposição a uma
doença nervosa ulterior. Tudo agora depende de como o organismo em crescimento é tratado pelo
destino. Se a vida tornar-se muito árdua, se o abismo entre reivindicações instituais e as exigências da
realidade tornar-se grande demais, o ego poderá falhar em seus esforços para reconciliar os dois, e mais
prontamente, quanto mais for inibido pela disposição trazida por ele na infância. O processo de repressão
é então repetido, os instintos separam-se violentamente do domínio do ego, encontram suas satisfações
substitutivas pelos caminhos da regressão e o pobre ego tornou-se desamparadamente neurótico.
Apeguemo-nos firmemente apenas a isto: o ponto nodal e o pivô de toda a situação é a força
relativa da organização do ego. Acharemos então fácil concluir nosso levantamento etiológico. Como o
que pode ser denominado de causas normais da doença neurótica, já conhecemos a debilidade do ego
infantil, a tarefa de lidar com os primeiros impulsos sexuais e os efeitos das experiências mais ou menos
fortuitas da infância. Não é possível, contudo, que ainda outros fatores desempenhem seu papel,
proveniente da época anterior ao início da vida da criança? Por exemplo, uma força e insubordinação
inatas da vida instintual no id, que desde o começo atribuem ao ego tarefas por demais árduas para ele?
Ou uma debilidade de desenvolvimento especial do ego devida a razões desconhecidas? Tais fatores
devem,
naturalmente,adquirir
uma
importância
etiológica,
em
alguns
casos
transcendente.
Invariavelmente temos de lidar com a força instintual do id; se ela se tiver desenvolvido de forma
excessiva, as perspectivas de nossa terapia são precárias. Ainda sabemos muito pouco a respeito das
causas da uma inibição de desenvolvimento do ego. Esses então seriam os casos de neurose com uma
base essencialmente constitucional. Sem alguns de tais fatores favoráveis constitucionais e congênitos
uma neurose, sem dúvida, dificilmente pode ocorrer.
Mas se a relativa debilidade do ego for o fator decisivo para a gênese de uma neurose, também
deve ser possível que uma doença física ulterior produza uma neurose, contanto que ela possa acarretar
um enfraquecimento do ego. E isto, mais uma vez, é verificado muito amiúde. Uma perturbação física
dessa espécie pode afetar a vida instintual no id e aumentar a força dos instintos além do limite até o qual
o ego é capaz de lidar com eles. O modelo normal de tais processos talvez seja a alteração, nas
mulheres, causada pelos distúrbios da menstruação e da menopausa. Ou ainda, uma doença somática
geral, na realidade uma doença orgânica do órgão central nervoso, poderá atacar as condições nutritivas
do aparelho mental e compeli-lo a reduzir seu funcionamento e paralisar suas operações mais delicadas,
uma das quais é a manutenção da organização do ego. Em todos esses casos surge aproximadamente o
mesmo quadro da neurose; esta tem sempre o mesmo mecanismo psicológico, mas, como vemos, uma
etiologia mais variada e muitas vezes muito complexa.
‘O senhor agora está me agradando mais. Finalmente começou a falar como médico. E agora
espero que o senhor admita que um assunto tão complicado como uma neurose só possa ser manejado
por um médico.’
Temo que o senhor esteja indo além do alvo. O que vimos examinando era um ponto de
patologia, aquilo em que estamos interessados na análise é um procedimento terapêutico. Admito - não,
insisto - que em todo caso que esteja em consideração para análise o diagnóstico será estabelecido em
primeiro lugar pelo médico. A maior parte das neuroses que nos ocupam é felizmente de natureza
psicogênica e não dá motivo para suspeitas patológicas. Uma vez que o médico tenha firmado isto, pode
confiantemente passar o tratamento a um analista leigo. Em nossas sociedades analíticas as coisas
sempre foram arranjadas dessa maneira. Graças ao estreito contato entre os membros médicos e nãomédicos, erros tais que pudessem ser temidos foram inteiramente evitados. Há uma contingência ulterior,
aliás, na qual o analista tem de pedir a ajuda do médico. No curso de um tratamento analítico, sintomas na maior parte das vezes físicos - poderão surgir, havendodúvida se devem ser considerados como
pertencentes à neurose ou se devem ser relacionados como uma doença orgânica independente que
interveio. A decisão sobre esse ponto deve, mais uma vez, ser deixada ao médico.
‘De modo que mesmo durante o curso de uma análise um analista leigo não pode passar sem um
médico. Um novo argumento contra sua aptidão.’
Não. Nenhum argumento contra analistas leigos pode ser arquitetado a partir dessa
possibilidade, pois em tais circunstâncias um analista médico não agiria de maneira diferente.
‘Não compreendo isso.’
Há uma regra técnica de que um analista, se surgirem sintomas dúbios como esse durante o
tratamento, não os submeterá ao seu próprio julgamento mas os encaminhará a um médico que esteja
ligado à análise - um médico consultor, talvez -, mesmo se o próprio analista for médico e até mesmo
bem versado em seus conhecimentos médicos.
‘E por que se deve elaborar uma regra que me parece tão desnecessária?’
Não é desnecessária; de fato, existem várias razões para ela. Em primeiro lugar, não constitui um
bom plano que uma combinação de tratamento orgânico e psíquico seja levada a efeito pela mesma
pessoa. Em segundo lugar, a relação na transferência pode tornar desaconselhável ao analista examinar
o paciente fisicamente. E em terceiro, o analista tem todos os motivos para duvidar se ele está
desprovido de preconceitos, visto seus interesses estarem tão intensamente dirigidos para os fatores
psíquicos.
‘Compreendo agora sua atitude para com a análise leiga de maneira bem clara. O senhor
deliberou que deve haver analistas leigos. E visto que não pode contestar a impropriedade deles quanto
à sua tarefa, está reunindo tudo o que pode para desculpá-los e tornar-lhes a vida mais fácil. Mas não
posso nem de longe compreender por que deva haver analistas leigos, que, afinal de contas, podem
apenas ser terapeutas de segunda classe. Estou pronto, no que me toca, a abrir uma exceção no caso
dos poucos leigos que já foram formados como analistas; mas outras não devem ser criadas e os
institutos de formação devem ser submetidos à obrigação de não aceitarem mais leigos para formação.’
Estou de acordo com o senhor, se puder ser demonstrado que todos os interesses em jogo serão
atendidos por essa restrição. O senhor há de concordar que esses interesses são de três espécies: o dos
pacientes, o dos médicos e - último em ordem mas não em importância - o da ciência, querealmente
abrange os interesses de todos os futuros pacientes. Vamos examinar esses três pontos juntos?
Para o paciente, portanto, é uma questão de indiferença se o analista for um médico ou não,
contanto somente que o perigo de sua condição ser mal compreendida fique excluído pelo relatório
médico necessário antes do início do tratamento e em algumas ocasiões possíveis durante o curso do
mesmo. Para ele é incomparavelmente mais importante que o analista deva possuir qualidades pessoais
que o tornem digno de confiança, e que ele deva ter adquirido o conhecimento e a compreensão, bem
como a experiência, que, somente estes, possam tornar-lhe possível cumprir sua tarefa. Poder-se-ia
pensar que a autoridade de um analista seria prejudicada se o paciente soubesse que ele não é médico e
que não pode, em certas situações, passar sem o apoio de um médico. Naturalmente jamais deixamos
de informar os pacientes sobre a qualificação de seu analista, e temos sido capazes de nos convencer de
que os preconceitos profissionais não encontram eco neles, estando prontos para aceitar uma cura de
qualquer direção da qual provenha - o que, incidentalmente, a profissão médica de há muito descobriu,
para sua profunda mortificação. Nem os analistas leigos que praticam a análise em nossos dias são um
bando casual de rebotalho, mas pessoas de educação acadêmica, doutores em filosofia, educadores,
juntamente com algumas mulheres de grande experiência na vida e marcante personalidade. A análise, à
qual todos os candidatos num instituto de formação analítica têm de submeter-se, é ao mesmo tempo o
melhor meio de formar um opinião sobre sua aptidão pessoal para o desempenho de sua exigente
profissão.
Agora quanto ao interesse dos médicos. Não julgo que esse interesse possa lucrar com a
incorporação da psicanálise à medicina. O currículo médico já dura cinco anos e os exames finais
avançam até o sexto ano. De poucos em poucos anos são feitas novas exigências ao aluno, sem o
cumprimento das quais o cadebal deste para o futuro teria que ser declarado insuficiente. O acesso à
profissão médica é muito difícil e a clínica não é nem muito satisfatória nem muito remuneradora. Se
alguém apoiar a exigência, por certo plenamente justificada, de que os médicos devem também
familiarizar-se com a parte mental da doença, e se por causa disto se ampliar a instrução médica a ponto
de abranger certo preparo para a análise, isto implica ulterior sobrecarga do currículo e um
correspondente prolongamento do período letivo. Não sei se os médicos ficarão satisfeitos com essa
conseqüência de sua reivindicação em relação à análise. Mas dificilmente se pode fugir a esse fato. E
isto num período em que as condições da existência material se deterioram de tal forma para as classes
das quais os médicos são recrutados,um período no qual a geração mais jovem se vê compelida a provar
suas necessidades por si mesma com a maior brevidade possível na vida.
Talvez, no entanto, o senhor escolha não sobrecarregar os estudos médicos com o preparo para
a prática analítica, mas julgue mais conveniente que os futuros analistas sigam sua formação necessária
somente após a conclusão dos seus estudos médicos. Talvez diga que a perda de tempo que isso
implica não seja de importância prática alguma, visto que, afinal de contas, um jovem com menos de
trinta anos de idade jamais gozará da confiança dos seus pacientes, a qual é um sine qua non para
proporcionar assistência mental. Sem dúvida talvez se dissesse como resposta que um médico recémsaído da faculdade e que se dedique a doenças físicas não pode esperar ser tratado pelos seus
pacientes também com grande respeito e que um jovem analista poderia muito bem preencher seu tempo
trabalhando numa clínica psicanalítica para pacientes externos sob a supervisão de profissionais
experimentados.
Mas o que me parece mais importante é que com essa sua proposta o senhor está dando apoio a
um desperdício de energia para o qual, nestes tempos difíceis, realmente não posso encontrar qualquer
justificativa econômica. O tratamento analítico, é verdade, cruza o campo da educação médica, mas um
não inclui o outro. Se - o que pode parecer fantástico hoje em dia - alguém tivesse de fundar uma
faculdade de psicanálise, nesta teria de ser ensinado muito do que já é lecionado pela escola de
medicina: juntamente com a psicologia profunda, que continua sempre como a principal disciplina,
haveria uma introdução à biologia, o máximo possível de ciência da vida sexual e familiarização com a
sintomatologia da psiquiatria. Por outro lado, a instrução analítica abrangeria ramos de conhecimento
distantes da medicina e que o médico não encontra em sua clínica: a história da civilização, a mitologia, a
psicologia da religião e a ciência da literatura. A menos que esteja bem familiarizado nessas matérias, um
analista nada pode fazer de uma grande massa de seu material. À guisa de compensação, a grande
massa do que é ensinado nas escolas de medicina não lhe é de utilidade alguma para suas finalidades.
Um conhecimento de anatomia dos ossos tarsianos, da constituição dos carboidratos, do curso dos
nervos cranianos, uma compreensão de tudo o que a medicina trouxe à luz sobre as causas excitantes
bacilares da doença e os meios de combatê-las, sobre reações do soro e sobre neoplasmas - todo esse
conhecimento, que é indubitavelmente do mais alto valor em si, não obstante não lhe é de nenhuma
conseqüência; não lhe interessa; nem o ajuda diretamente a compreender uma neurose e a curá-la, nem
contribuir para um aguçamento daquelas faculdades intelectuais às quaissua ocupação faz as maiores
exigências. Não se pode objetar que o caso é o mesmo quando um médico segue algum outro ramo
especial de medicina - a odontologia, por exemplo: nesse caso, também, ele poderá não precisar de
parte daquilo em que precisa ser aprovado nos exames e muito terá que aprender além disso, em relação
ao que sua escolaridade não o preparou. Mas os dois casos não podem ser colocados no mesmo pé de
igualdade. Na odontologia os grandes princípios da patologia - as teorias da inflamação, da supuração,
da necrose e do metabolismo dos órgãos corporais - ainda conservam sua importância. Mas a
experiência de um analista está em outro mundo, com outros fenômenos e outras leis. Por mais que a
filosofia possa ignorar o abismo entre o físico e o mental, ele ainda existe para a nossa experiência
imediata e ainda mais para os nossos empreendimentos práticos.
É injusto e inconveniente tentar compelir uma pessoa que deseja libertar alguém do tormento de
uma fobia ou de uma obsessão a seguir a estrada indireta do currículo médico. Nem esse esforço terá
qualquer êxito, a menos que resulte inteiramente na supressão da análise. Imagine uma paisagem na
qual dois caminhos levam ao topo de uma colina de onde se descortina um panorama - um curto e reto, o
outro longo, sinuoso e tortuoso. Tenta-se impedir o caminho curto mediante um aviso proibitório, talvez
porque passa por alguns canteiros de flores que se deseja proteger. A única possibilidade que se tem de
a proibição ser respeitada é se o caminho curto for íngreme e difícil, enquanto o mais longo for uma
subida suave. Se, contudo, esse não for o caso, pode-se imaginar o uso da proibição e o destino dos
canteiros! Temo que se conseguirá compelir os leigos a estudarem medicina tão pouco quanto serei
capaz de induzir os médicos a aprenderem análise, pois o senhor conhece a natureza humana tão bem
quanto eu.
‘Se o senhor tiver razão, de que o tratamento analítico não pode ser efetuado sem formação
especial, mas que o currículo médico não pode suportar ainda mais o fardo de um preparo para ele, e
que os conhecimentos médicos são, em grande medida, desnecessários para um analista, como
chegaremos ao médico ideal que esteja à altura de todas as tarefas de sua vocação?’
Não posso prever a maneira de sair dessas dificuldades, nem é da minha alçada ressaltá-la.
Compreendo apenas duas coisas - primeiro que a análise constitui um estorvo para o senhor e que a
melhor coisa seria que ela não existisse, embora os neuróticos, sem dúvida, constituam também um
estorvo; e em segundo lugar, que os interesses de todos os que se preocupam com esse assunto seriam
por enquanto atendidos se os médicos pudessem resolver tolerar uma classe de terapeutas que os
aliviariam do tédio de tratar asneuroses psicogênicas enormemente comuns, enquanto ficariam em
permanente contato com eles em benefício dos pacientes.
‘Essa é a última palavra sobre o assunto? ou tem algo mais a dizer?’
Sim, realmente. Eu quis apresentar um terceiro interesse - o da ciência. O que tenho a dizer
sobre isso pouco lhe interessará; mas, por comparação, é de toda a importância para mim.
Pois não consideramos absolutamente conveniente para uma psicanálise ser devorada pela
medicina e encontrar seu último lugar de repouso num livro de texto de psiquiatria sob a epígrafe
‘Métodos de Tratamento’, juntamente com procedimentos tais como sugestão hipnótica, auto-sugestão e
persuasão, que, nascidas da nossa ignorância, têm de agradecer a indolência e a covardia da
humanidade por seus efeitos efêmeros. Merece melhor destino e, pode-se esperar, o terá. Como uma
‘psicologia profunda’, uma teoria do inconsciente mental, pode tornar-se indispensável a todas as
ciências que se interessam pela evolução da civilização humana e suas principais instituições como a
arte, a religião e a ordem social. Em minha opinião ela já proporcionou a essas ciências considerável
ajuda na solução de seus problemas. Mas essas são apenas pequenas contribuições em confronto com o
que poderia ser alcançado se historiadores da civilização, psicólogos da religião, filósofos e assim por
diante concordassem em manejar o novo instrumento de pesquisa que está a seu serviço. O emprego da
análise para o tratamento das neuroses é somente uma das suas aplicações; o futuro talvez demonstre
que não é o mais importante. Seja como for, seria errôneo sacrificar todas as outras aplicações a essa
única, só porque diz respeito ao círculo de interesses médicos.
Pois aqui uma perspectiva ulterior estende-se adiante, a qual não pode ser invadida com
impunidade. Se os representantes das várias ciências mentais devem estudar a psicanálise a fim de ser
capazes de aplicar seus métodos e ângulos de abordagem ao seu próprio material, não lhes será
suficiente parar de repente nos achados que são formulados na literatura analítica. Eles devem aprender
a análise da única maneira possível - submetendo-se eles próprios a uma análise. Os neuróticos que
necessitam de análise contariam assim com a companhia de uma segunda classe de pessoas, que
aceitam a análise por motivos intelectuais, mas que sem dúvida também acolherão o aumento da
capacidade que incidentalmente alcancem. Para efetuar essa análise far-se-á necessário grande número
de analistas, para os quais qualquer conhecimento médico terá particularmente pouca importância. Mas
esses ‘analistas didatas’ - vamos chamá-los assim - precisarão ter tido uma educação especificamente
cuidadosa. Se se quiser que ela nãofique tolhida, eles devem receber a oportunidade de colher
experiência de casos instrutivos e informativos; e visto que pessoas saudáveis, às quais também falta o
motivo da curiosidade, não se apresentam para análise, é mais uma vez somente com os neuróticos que
será possível aos analistas didatas - sob cuidadosa supervisão - ser educados para a sua atividade nãomédica subseqüente. Tudo isso, contudo, requer certa dose de liberdade de movimento, não sendo
compatível com restrições mesquinhas.
Talvez o senhor não creia nesses interesses puramente teóricos da psicanálise ou não possa
permitir-lhes que afetem a questão prática da análise leiga. Então deixe-me adverti-lo de que a
psicanálise tem ainda outra esfera de aplicação, que se acha fora do âmbito da lei sobre charlatanismo e
com relação à qual os médicos quase não farão reivindicação. Refiro-me à aplicação à educação de
crianças. Se uma criança começa a mostrar sinais de um desenvolvimento indesejável, se se tornar malhumorada, indócil e desatenta, o pediatra e mesmo o médico da escola nada poderão fazer por ela,
mesmo se a criança apresenta sintomas neuróticos claros, tais como nervoso, perda de apetite, vômitos
ou insônia. Um tratamento que combine a influência analítica com medidas educacionais, levado a efeito
por pessoas que não se envergonhem de interessar-se pelos assuntos próprios do mundo da criança, e
que compreendam como orientar-se na vida mental de uma criança, pode ocasionar duas coisas ao
mesmo tempo: a eliminação dos sintomas neuróticos e a reversão da mudança de caráter que havia
começado. Nosso reconhecimento da importância dessas neuroses obscuras das crianças, como sendo
o que alicerça a disposição para graves doenças mais adiante na vida, ressalta essas análises infantis
como excelente método de profilaxia. A análise indubitavelmente ainda tem seus inimigos. Não sei se
estes dispõem de meios ao seu alcance para paralisar as atividades desses analistas educacionais ou
educadores analíticos. Não penso que seja muito provável; mas nunca se pode estar muito certo.
Além disso, voltando à nossa questão do tratamento analítico dos neuróticos adultos, mesmo aí
anda não esgotamos todas as linhas de abordagem. Nossa civilização nos impõe uma pressão quase
intolerável e exige um corretivo. Será demasiado fantástico esperar que a psicanálise, apesar de suas
finalidades, possa estar destinada à tarefa de preparar a humanidade para tal corretivo? Talvez mais uma
vez um norte-americano tenha a idéia de gastar algum dinheiro para que os ‘assistentes sociais’ do seu
país sejam formadosanaliticamente e para transformá-los num grupo de auxiliares a fim de combaterem
as neuroses da civilização.
‘Ah! uma nova espécie de Exército da Salvação!’
Por que não? Nossa imaginação sempre obedece a padrões. A corrente daqueles ansiosos por
aprender, que então fluirá para a Europa, será obrigada a passar por Viena, pois aqui o desenvolvimento
da análise poderá ter sucumbido a um trauma prematuro de proibição. O senhor está sorrindo? Não
estou dizendo isso como um suborno em seu apoio. De modo algum. Sei que o senhor não me conhece,
nem posso garantir que isso me venha a acontecer. Mas de uma coisa eu sei. De forma alguma é tão
importante qual a decisão que o senhor possa adotar no tocante à questão da análise leiga. Isso poderá
ter um efeito local. Mas as coisas que realmente importam - as possibilidades na psicanálise de
desenvolvimento interno - jamais poderão ser afetadas por regulamentos e proibições.
PÓS-ESCRITO (1927)
Logo após eu ter escrito o pequeno volume que constituiu o ponto de partida da presente
apreciação, houve uma acusação de charlatanismo apresentada contra um membro não-médico de
nossa Sociedade, o Dr. Theodor Reik, nos tribunais de Viena. Em geral se sabe, penso eu, que depois de
todos os trâmites preliminares terem sido concluídos e grande número de pareceres técnicos terem sido
recebidos, a acusação foi abandonada. Não creio que isso tenha sido resultado do meu livro. Sem dúvida
o argumento da procuradoria foi muito fraco, e a pessoa que apresentou a acusação como a parte
agravada demonstrou ser uma testemunha indigna de confiança. De modo que a anulação do processo
contra o Dr. Reik provavelmente não deverá ser considerada como um julgamento ponderado dos
tribunais de Viena sobre a questão geral da análise leiga. Quando tracei a figura da ‘Pessoa Imparcial’
que foi meu interlocutor em meu opúsculo, tive diante de minha mente um dos nossos altos funcionários.
Este foi um homem com quem eu próprio conversara sobre o caso de Reik e a quem, a pedido dele,
escrevera um parecer confidencial sobre o assunto. Eu sabia que não tinha conseguido convertê-lo aos
meus pontos de vista, e foi por isso que fiz com que meu diálogo com a Pessoa Imparcial terminasse
também sem acordo.
Nem esperei que conseguisse êxito na obtenção de unanimidade da atitude dos próprios
analistas em relação ao problema da análise leiga. Qualquer um que compare os pontos de vista
expressos pela Sociedade Húngara nessa apreciação com os do grupo de Nova Iorque talvez conclua
que meu livro não produziu efeito algum e que cada um persiste em sua opinião anterior. Mas também
não creio nisso. Penso que muitos dos meus colegas modificaram seu extremo parti pris e que a maioria
aceitou minha opinião de que o problema da análise leiga não deve ser solucionado nos mesmos moldes
do uso tradicional, mas que decorre de uma nova situação e, portanto, exige novo julgamento.
Além disso, a forma que dei a todo o exame parece que contou com aprovação. Minha tese
principal foi no sentido de que a questão importante não é se um analista possui um diploma médico, mas
se ele recebeu a formação especial necessária à prática da análise. Isto serviu de ponto de partida para
uma discussão, que foi avidamente adotada, quanto a qual é a formação mais adequada para um
analista. Meu ponto de vista foi eainda continua sendo o de que não é a formação prescrita pela
universidade para futuros médicos. O que se conhece como educação médica parece-me uma maneira
árdua e indireta de abordagem da profissão da análise. Sem dúvida ela oferece a um analista muito do
que lhe é indispensável. Mas ela o sobrecarrega de muitas outras coisas que ele jamais utilizará,
havendo o perigo de desviar seu interesse e todo seu modo de pensamento da compreensão dos
fenômenos psíquicos. Um esquema de formação para analistas ainda tem de ser criado. Deve ele
abranger elementos das ciências mentais, da psicologia, da história e do estudo da evolução. Há tanto a
ser ensinado em tudo isso que é justificável omitir do currículo qualquer coisa que não tenha relação
direta alguma com a prática da análise e somente sirva indiretamente (como qualquer outro estudo) de
formação para o intelecto e para os poderes de observação. É fácil fazer face a essa sugestão objetandose que as escolas analíticas dessa natureza não existem e que eu estou simplesmente estabelecendo
um ideal. Um ideal, sem dúvida. Mas um ideal que pode e deve ser concretizado. E em nossos institutos
de formação, apesar de todas as suas insuficiências próprias de seus verdes anos, essa concretização já
teve início.
Não terá escapado aos meus leitores que naquilo que afirmei presumi como axiomático algo que
é ainda violentamente debatido no exame. Presumi, vale dizer, que a psicanálise não é um ramo
especializado da medicina. Não vejo como é possível discutir isso. A psicanálise é uma parte da
psicologia; não da psicologia médica no velho sentido, não da psicologia de processos mórbidos, mas
simplesmente da psicologia. Certamente não é o todo da psicologia, mas sua subestrutura e talvez
mesmo todo o seu alicerce. A possibilidade de sua aplicação a finalidades médicas não nos deve
desorientar. A eletricidade e a radiologia também têm sua aplicação médica, mas a ciência à qual ambas
pertencem é, não obstante, a física. Nem a situação delas pode ser afetada por argumentos históricos.
Toda a teoria da eletricidade teve sua origem numa observação de um preparado muscular nervoso;
contudo, ninguém sonharia hoje em considerá-la como parte da fisiologia. Argumenta-se que a
psicanálise foi, afinal de contas, descoberta por um médico no curso dos seus esforços para assistir seus
pacientes. Mas isto claramente não está nem nesse ponto nem naquele. Além disso, o argumento
histórico é uma faca de dois gumes. Poderíamos acompanhar a história e recordar a inamistosidade e
mesmo a animosidade com que a profissão médica tratou a análise bem desde o começo. Isso pareceria
implicar que ela não pode fazer quaisquer reivindicações à análise no momento atual. E embora eu não
aceite essaimplicação, ainda sinto certas dúvidas quanto a se o presente cortejar da psicanálise pelos
médicos está baseado, do ponto de vista da teoria da libido, na primeira ou na segunda subfases de
Abraham - se desejam tomar posse de seu objeto com a finalidade de destruí-lo ou de preservá-lo.
Gostaria de considerar o argumento histórico por mais um momento. Visto que é em mim
pessoalmente que estamos interessados, posso lançar um pouco de luz, para qualquer um que esteja
interessado, sobre meus próprios motivos. Após quarenta e um anos de atividade médica, meu
autoconhecimento me diz que nunca fui realmente médico no sentido adequado. Tornei-me médico por
ter sido compelido a desviar-me do meu propósito original; e o triunfo da minha vida está em eu haver,
após uma viagem longa e indireta, encontrado meu caminho de volta à minha senda mais antiga. Não
tenho conhecimento algum de haver tido qualquer anseio, na minha primeira infância, de ajudar a
humanidade sofredora. Minha disposição sádica inata não foi muito forte, de modo que não tive qualquer
necessidade de desenvolver essa disposição dos seus derivados. Nem jamais ‘brinquei de médico’;
minha curiosidade infantil evidentemente escolheu outros caminhos. Em minha juventude senti uma
necessidade absorvente de compreender algo dos enigmas do mundo em que vivemos e talvez mesmo
de contribuir com alguma coisa para a solução dos mesmos. O meio mais esperançoso de alcançar esse
fim pareceu ser matricular-me na faculdade de medicina; no entanto, mesmo após isto realizei
experiências - sem êxito - com a zoologia e a química, até que afinal, sob a influência de Brücke, que
teve mais influência sobre mim do que qualquer outra pessoa em toda minha vida, fixei-me em fisiologia,
embora naqueles dias ela estivesse muito estreitamente restrita à histologia. Naquela ocasião já havia
sido aprovado em todos os meus exames médicos, mas não adquiri qualquer interesse por coisa alguma
que tivesse a ver com a medicina, até que o professor que eu tão profundamente respeitava advertiu-me
de que em vista das minhas circunstâncias materiais precárias eu não poderia possivelmente seguir uma
carreira teórica. Assim, passei da histologia do sistema nervoso para a neuropatologia e depois,
incentivado por novas influências, comecei a interessar-me pelas neuroses. Quase não penso, contudo,
que a minha falta de autêntico temperamento médico tenha causado grande dano aos meus pacientes,
pois não é muito vantajoso para os pacientes se o interesse terapêutico do seu médico tiver uma ênfase
emocional muito marcante. Eles são maisbem ajudados se ele executar sua tarefa friamente e
obedecendo às regras tão de perto quanto possível.
Sem dúvida o que acabo de dizer lança pouca luz sobre o problema da análise leiga; destinou-se
apenas a apresentar minhas credenciais pessoais, como sendo eu próprio um partidário do valor inerente
da psicanálise e da independência de sua aplicação em relação à medicina. Mas objetar-se-á, a esta
altura, que se a psicanálise, considerada como uma ciência, for considerada uma subdivisão da medicina
ou da psicologia, isto será uma questão puramente acadêmica e de nenhum interesse prático. O
verdadeiro ponto em debate, dir-se-á, é diferente, a saber, a aplicação da análise ao tratamento de
pacientes; até onde ela alega que faz isso, ela deve contentar-se, continuará o argumento, em ser aceita
como um ramo especializado da medicina, como a radiologia, por exemplo, e em submeter-se às regras
formuladas para todos os métodos terapêuticos. Reconheço que isto seja assim; admito-o. Só quero
sentir-me seguro de que a terapia não destruirá a ciência. Infelizmente, as analogias só nos levam até
certa distância; logo se alcança um ponto no qual os assuntos da comparação seguem caminhos
divergentes. O caso da análise difere do da radiologia. Não é preciso que um físico tenha um paciente a
fim de estudar as leis que regem os raios X. Mas o único tema da psicanálise são os processos mentais
dos seres humanos e é somente nos seres humanos que ele pode ser estudado. Por motivos que podem
facilmente ser compreendidos, os seres humanos neuróticos oferecem material muito mais instrutivo e
acessível do que os normais, e sonegar esse material a qualquer um que deseje estudar e aplicar a
análise é privá-lo de boa metade das suas possibilidades de formação. Não tenho, naturalmente,
intenção alguma de pedir que os interesses de pacientes neuróticos sejam sacrificados àqueles de
instrução e de pesquisa científica. O objetivo do meu pequeno volume sobre a questão da análise leiga
foi precisamente demonstrar que, se certas precauções forem observadas, os dois interesses poderão
facilmente ser harmonizados e que os interesses da medicina, conforme compreendidos de maneira
correta, não serão os últimos a lucrar com tal solução.
Eu mesmo formulei todas as precauções necessárias e posso afirmar com segurança que o
debate nada acrescentou a esse ponto. Mas gostaria de acrescentar que a ênfase foi dada muitas vezes
da maneira que não fazia justiça aos fatos. O que se disse sobre as dificuldades do diagnóstico
diferencial e da incerteza, em muitos casos, de chegar a uma decisão sobre os sintomas somáticos situações, vale dizer, nas quais os conhecimentos médicos e a intervenção médica são necessários -,
tudo isso é perfeitamente verdadeiro. Não obstante, o número de casos em que dúvidas dessa
espéciejamais surgem de maneira alguma e que não se exige um médico é por certo incomparavelmente
maior. Esses casos podem ser bem desinteressantes cientificamente, mas desempenham papel bastante
importante na vida para justificarem as atividades de analistas, que são perfeitamente capazes para lidar
com eles. Há algum tempo analisei um colega que dava provas de uma aversão particularmente forte à
idéia de permitir que qualquer um se empenhasse numa atividade médica caso não fosse médico. Eu
estava em condições de dizer-lhe: ‘Estamos agora trabalhando há mais de três meses. Em que ponto de
nossa análise tive ocasião de fazer uso dos meus conhecimentos médicos?’ Ele admitiu que eu não
tivera tal ocasião.
Além disso, não atribuo grande importância ao argumento de que um analista leigo, porque ele
deve estar preparado para consultar um médico, não tenha autoridade aos olhos dos seus pacientes e
não seja tratado com mais respeito do que pessoas tais como endireitas* ou massagistas. Mais uma vez,
a analogia é imperfeita - bem independente do fato de que o que rege os pacientes no reconhecimento,
por parte destes, da autoridade é, em geral, a transferência emocional deles e que a posse de um
diploma médico não os impressiona tanto como os médicos acreditam. Um analista leigo não terá
dificuldade alguma em angariar tanto respeito como é devido a um assistente pastoral secular.
Realmente, as palavras ‘assistente pastoral secular’ bem poderiam servir como uma fórmula geral para
descrever a função que o analista, seja ele médico ou leigo, tem de realizar em relação ao público.
Nossos amigos do clero protestante, e mais recentemente também entre o clero católico, são muitas
vezes capazes de liberar seus paroquianos das inibições de sua vida cotidiana confirmando-lhes a fé depois de primeiro lhes haver oferecido um pouco de informação analítica sobre a natureza dos seus
conflitos. Nossos antagonistas, os ‘psicólogos do indivíduo’ adlerianos, se esforçam por produzir um
resultado semelhante em pessoas que se tenham tornado instáveis e deficientes, provocando-lhes o
interesse pela comunidade social - após terem primeiro lançado alguma luz sobre um único recanto de
sua vida mental e lhes terem revelado o papel desempenhado na doença deles pelos seus impulsos
egoístas e suspeitosos. Ambos esses processos, que tiram sua força por estarem baseados na análise,
têm seu lugar na psicoterapia. Nós que somos analistas pomos diante de nós como nosso objetivo a
análise mais completa e mais profunda possível de quem quer que possa ser nosso paciente. Não
procuramos levar-lhe alívio recebendo-o na comunidade católica, protestante ou socialista. Antes
procuramos enriquecê-lo a partir de suas própria fontes internas, colocando à disposição do seu ego
aquelas energias que, devido à repressão, se acham inacessivelmente confinadas em seuinconsciente,
bem como aquelas que seu ego é obrigado a desperdiçar na tarefa infrutífera de manter essas
repressões. Uma atividade como essa é trabalho pastoral no melhor sentido da palavra. Atribuímos a nós
mesmos uma finalidade demasiado alta? A maioria dos nossos pacientes merece os cuidados que esse
trabalho exige de nós? Não seria mais econômico escorar suas fraquezas de fora antes do que
reconstruí-las de dentro? Não posso dizer; mas existe algo mais que eu realmente sei. Na psicanálise
tem existido desde o início um laço inseparável entre cura e pesquisa. O conhecimento trouxe êxito
terapêutico. Era impossível tratar um paciente sem aprender algo de novo; foi impossível conseguir nova
percepção sem perceber seus resultados benéficos. Nosso método analítico é o único em que essa
preciosa conjunção é assegurada. É somente pela execução do nosso trabalho pastoral analítico que
podemos aprofundar nossa compreensão que desponta da mente humana. Essa perspectiva de ganho
científico tem sido a feição mais orgulhosa e feliz do trabalho analítico. Devemos sacrificá-la a bem de
quaisquer considerações de natureza prática?
Algumas observações feitas no curso dessa apreciação levaram-me a suspeitar que, apesar de
tudo, meu livro sobre análise leiga foi mal compreendido sob um aspecto. Os médicos se têm defendido
de mim, como se eu houvesse declarado que eles eram em geral incompetentes para praticar a análise e
como se eu tivesse afirmado como uma senha que reforços médicos deviam ser rejeitados. A idéia
provavelmente surgiu de eu ter sido levado a declarar no curso de minhas observações (que tinham uma
finalidade controversa em vista) que analistas médicos não formados eram ainda mais perigosos que os
leigos. Talvez possa tornar clara minha verdadeira opinião sobre essa questão dando eco a uma
observação cínica sobre as mulheres que certa vez apareceu em Simplicissimus. Um homem se
queixava a outro das fraquezas e da natureza melindrosa do belo sexo. ‘Seja como for’, replicou seu
companheiro, ‘as mulheres são a melhor coisa que temos dessa espécie’. Sou obrigado a admitir que,
enquanto as escolas que desejamos para formação de analistas ainda não existirem, as pessoas que
tenham tido uma educação preliminar em medicina constituem o melhor material para futuros analistas.
Temos o direito de exigir, contudo, que elas não devem confundir sua educação preliminar com uma
formação completa, que elas devem superar aunilateralidade que é estimulada pela instrução nas
escolas de medicina e que devem resistir à tentação de flertar com a endocrinologia e o sistema nervoso
autônomo, quando aquilo de que se necessita é de uma percepção de fatos psicológicos com a ajuda de
uma estrutura de conceitos psicológicos. Também partilho do ponto de vista de que todos aqueles
problemas que se relacionam com a ligação entre os fenômenos psíquicos e seus fundamentos
orgânicos, anatômicos e químicos podem ser abordados somente por aqueles que tenham estudado
ambos, isto é, por analistas médicos. Não se deve esquecer, contudo, que isso não é o todo da
psicanálise, e que quanto ao seu outro aspecto nunca podemos passar sem cooperação de pessoas que
tenham tido uma educação preliminar nas ciências mentais. Por motivos práticos temos tido o hábito - e
isso é verdade, incidentalmente, também em relação às nossas publicações - de distinguir entre análise
médica e aplicada. Mas essa não é uma distinção lógica. A verdadeira linha de divisão situa-se entre a
análise científica e suas aplicações igualmente nos setores médico e não-médico.
Nessas apreciações, a rejeição mais rude da análise leiga foi expressa por nossos colegas norteamericanos. Algumas palavras em resposta a eles, não serão, penso, fora de propósito. Dificilmente
posso ser acusado de fazer mau uso da análise para finalidades controversas, se expressar a opinião de
que a resistência por parte deles provém inteiramente de fatores práticos. Eles vêem como em seu
próprio país os analistas leigos submetem a análise a todas as espécies de finalidades nocivas e
ilegítimas e, em conseqüência, causam dano tanto aos seus pacientes como ao bom nome da análise.
Não é, portanto, de se admirar que em sua indagação eles evitem o mais amplamente possível tais
inescrupulosos fomentadores de discórdia e tentem impedir que quaisquer leigos tenham participação na
análise. Mas esses fatos já são suficientes para reduzir o significado da posição norte-americana, pois a
questão da análise leiga não deve ser resolvida somente com base em considerações práticas, e as
condições locais nos Estados Unidos não podem ser a única influência determinante sobre nossos
pontos de vista.
A resolução aprovada por nossos colegas norte-americanos contra os analistas leigos, baseada
como essencialmente está em razões práticas, parece-me, não obstante, pouco prática, pois não poderá
afetar qualquer dos fatores que regem a situação. Ela é mais ou menos equivalente a uma tentativa de
repressão. Se for impossível impedir os analistas leigos de exercerem suas atividades e se o público não
apoiar a campanha contra eles, não seria mais aconselhável reconhecer o fato de sua existência
oferecendo-lhes oportunidades de formação? Talvez não fosse possível, dessa maneira, alcançar
certainfluência sobre eles? E, se lhes fosse oferecida como incentivo a possibilidade de receberem a
aprovação da profissão médica e de serem convidados a cooperar, será que eles não teriam certo
interesse em elevar seu próprio padrão ético e intelectual?
VIENA, junho de 1927
PSICANÁLISE (1926)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1925 Provável data da composição.)
1934 G.S., 12, 372-80.
1934 Almanach 1935, 9-17. (Omitindo-se a Bibliografia.)
1935 Z. Psychoanal. Päd., 9 (2), 73-80. (Com inclusão da Bibliografia.)
1948 G.W., 14, 299-307.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Psychoanalysis: Freudian Scholl’
1926 Em Encyclopaedia Britannica, 13ª ed., Novo Vol. 3, 253-5. (Trad. de James
Strachey.)
1929 Em Encyclopaedia Britannica, 14ª ed., 18, 672-4. (Reimpressão da anterior.)
A presente tradução é uma revisão daquela publicada pela primeira vez em 1926. O artigo é
reimpresso aqui mediante entendimento com autores da Encyclopaedia Britannica.
A Décima-Primeira Edição da Encyclopedia Britannica veio a lume em 1910-11. Não continha
qualquer referência à psicanálise. Após a primeira guerra mundial, em 1922, surgiu o que se declarou ser
a ‘Décima-Segunda Edição’. Esta consistia na antiga Décima-Primeira Edição juntamente com três
‘Novos Volumes’. Ainda não havia qualquer artigo sobre psicanálise. Logo depois resolveu-se lançar, em
1926, uma ‘Décima-Terceira Edição,’ que iria consistir novamente na antiga Décima-Primeira com o
acréscimo, mais uma vez, de três ‘Novos Volumes Suplementares’ - mas diferentes daqueles que haviam
integrado a ‘Décima-Segunda Edição’. Dessa vez um artigo sobre psicanálise foi julgado necessário, e
solicitaram ao próprio Freud que colaborasse com o mesmo. Sem dúvida ele ficou satisfeito em aceitar o
convite, visto que a Encyclopaedia Britannica ocupava um lugar predileto em seu coração. Enquanto
preparava Totem e Tabu, escreveu a Ernest Jones (em 24 de fevereiro de 1912) dando uma lista de
todas as autoridades que ele havia consultado, e concluía com evidente orgulho: ‘Estou agora até de
posse da Encyclopaedia Britannica, 11ª ed., 1911.’ (Jones, 1953, 395.) E era uma obra que ele estava
sempre ávido por consultar. Já, além disso, em 1924, ele havia contribuído com um longo capítulo sobre
psicanálise para uma compilação em dois volumes que fora lançada pelos editores da Encyclopaedia
Britannica sob o título These Eventful Years. Muito pouco tempo após a publicação da Décima-Terceira
Edição, reconheceu-se a necessidade de produzir uma nova edição completa de toda obra. Houve um
movimento para substituir o artigo de Freud por um diferente; mas, através dos esforços conjuntos de
Ernest Jones e do próprio Freud, essa idéia foi eliminada, e o artigo foi mantido inalterado na DécimaQuarta Edição (1929) e em todas as subseqüentes.
De fato, contudo, quando o original alemão veio à luz em 1934, viu-se que certo número de
modificações pequenas, mas não destituídas de importância, tinham, desde o início, sido feitas na versão
inglesa. O título do artigo, por exemplo, fora alterado de ‘Psicanálise’ para ‘Psicanálise: Escola Freudiana’
e uma referência pouco lisonjeira a Jung e Adler havia sido omitida. Subtítulos adicionais também tinham
sido inseridos, o que não parece ajudar o encadeamento do argumento de Freud. Para finalidades atuais,
o melhor plano pareceu remontar ao original alemão, conforme elaborado por Freud, sendo as
divergências mais importantes da versão da Encyclopaedia Britannica indicadas em notas de rodapé.
Aproveitou-se a oportunidade para rever a tradução e harmonizar alguns dos termos técnicos com o uso
adotado em outras partes nesta edição.
PSICANÁLISE
Visto que a psicanálise não foi mencionada na décima-primeira edição da Encyclopaedia
Britannica, é impossível restringir este relato aos seus progressos desde 1910. A parte mais importante e
mais interessante de sua história está no período antes dessa data.
PRÉ-HISTÓRIA
Nos anos de 1880-2 um médico vienense, o Dr. Josef Breuer (1842-1925), descobriu um novo
método por meio do qual aliviou uma moça, que vinha sofrendo de grave histeria, de seus muitos e
variados sintomas. Ocorreu-lhe a idéia de que os sintomas estavam ligados a impressões que ela
recebera durante um período de agitação enquanto cuidava do pai enfermo. Ele então induziu-a,
enquanto ela se encontrava num estado de sonambulismo hipnótico, a procurar essas ligações em sua
memória e a viver através das cenas ‘patogênicas’ mais uma vez, sem inibir, os afetos que surgiam no
processo. Ele verificou que quando ela fizera isso, o sintoma em causa desapareceu para sempre.
Isso ocorreu numa data anterior às investigações de Charcot e de Pierre Janet sobre a origem
dos sintomas histéricos, e assim a descoberta de Breuer não foi de modo algum influenciada por eles.
Mas ele não levou o assunto adiante na época e só uns dez anos depois é que o recomeçou em
colaboração com Sigmund Freud. Em 1895 publicaram um livro, Estudos sobre a Histeria, no qual as
descobertas de Breuer foram descritas e se fez uma tentativa para explicá-las pela teoria da ‘cartase‘. De
acordo com essa hipótese, os sintomas histéricos se originam através da energia de um processo mental
que é afastado da influência consciente e desviada para a inervação corporal (‘conversão‘). Um sintoma
histérico seria assim um substituto de um ato mental omitido e uma reminiscência da ocasião que deve
ter dado margem a esse fato. E, com base nesse ponto de vista, a recuperação seria o resultado da
liberação do afeto que se extraviara e de sua descarga por um caminho normal (‘ab-reação‘). O
tratamento catártico deu excelentes resultados terapêuticos, mas verificou-se que não eram permanentes
e que não eram independentes da relação pessoal entre o paciente e o médico. Freud, que depois
prosseguiu com essas investigações sozinho, fez uma alteração técnica das mesmas, substituindo a
hipnose pelo método da associação livre. Ele inventou o termo ‘psicanálise’, que no curso do tempo veio
a ter dois significados: (1) um método específico de tratar as perturbações nervosas e (2) a ciência dos
processos mentais inconscientes, que também é apropriadamente descrita como ‘psicologia profunda’.
TEMA DA PSICANÁLISE
A psicanálise encontra apoio sempre crescente como método terapêutico, devido ao fato de que
pode fazer mais pelos seus pacientes do que qualquer outro método de tratamento. O principal campo de
sua aplicação são as neuroses mais brandas - histeria, fobias e estados obsessivos; e nas malformações
do caráter e inibições ou anormalidades sexuais ela também pode trazer acentuadas melhorias ou
mesmo recuperações. Sua influência sobre a demência precoce e a paranóia é duvidosa; por outro lado
em circunstâncias favoráveis pode lidar com estados depressivos, mesmo se forem de tipo grave.
Em cada caso, o tratamento exige muito, tanto do método como do paciente: o primeiro necessita
de uma formação especial e deve dedicar longo período de tempo à exploração da mente do paciente, ao
passo que o segundo deve fazer consideráveis sacrifícios, tanto materiais como mentais. Não obstante,
todas as preocupações em jogo são, em geral, recompensadas pelos resultados. A psicanálise não atua
como uma panacéia conveniente (‘cito, tute, jucunde‘) para perturbações psicológicas. Ao contrário, sua
aplicação tem sido essencial para tornar claras pela primeira vez as dificuldades e as limitações no
tratamento de tais distúrbios. No momento, só em Berlim e em Viena é que há instituições voluntárias que
tornam o tratamento psicanalítico acessível às classes assalariadas.
A influência terapêutica da psicanálise depende da substituição de atos mentais inconscientes
por conscientes e vigora dentro dos limites desse fator. A substituição é efetivada superando-se as
resistências internas na mente do paciente. O futuro provavelmente atribuirá muito maior importância à
psicanálise como a ciência do inconsciente do que como um procedimento terapêutico.
A psicanálise, no seu caráter de psicologia profunda, considera a vida mental de três pontos de
vista: o dinâmico, o econômico e o topográfico.
Do primeiro desses pontos de vista, o dinâmico, a psicanálise extrai todos os processos mentais
(independentes da recepção de estímulos externos) da ação mútua de forças, que ajudam ou inibem
umas às outras, se combinam, entram em conciliações umas com as outras etc. Todas essas forças são
originalmente da natureza de instintos; assim, possuem uma origem orgânica. São caracterizadas por
possuírem uma reserva de energia (somática) imensa (‘a compulsão à repetição‘); e são representadas
mentalmente como imagens ou idéias com uma carga afetiva. Na psicanálise, não menos do que em
outras ciências, a teoria dos instintos é um assunto obscuro. Uma análise empírica conduz à formulação
de dois grupos de instintos: os denominados ‘instintos do ego’, que estão dirigidos para a
autopreservação, e os ‘instintos do objeto’, que dizem respeito às relações com um objeto externo. Os
instintos sociais não são considerados como elementares ou irredutíveis. A especulação teórica leva à
suspeita de que há dois instintos fundamentais que jazem ocultos por detrás dos instintos do ego e dos
instintos do objeto manifesto: a saber, (a) Eros, o instinto que luta sempre por uma união mais estreita, e
(b) o insisto de destruição, que leva no sentido da destruição do que está vivo. Em psicanálise dá-se o
nome de ‘libido‘ à manifestação da força de Eros.
Do ponto de vista econômico, a psicanálise supõe que os representantes mentais dos instintos
têm uma carga (catexia) de quantidades definidas de energia, sendo finalidade do aparelho mental
impedir qualquer represamento dessas energias e manter o mais baixo possível o volume total das
excitações com que ele se acha carregado. O curso dos processos mentais é automati-camente regulado
pelo ‘princípio do prazer-desprazer‘; o desprazer está assim de certa forma relacionado com um aumento
de excitação, e o prazer com uma redução. No curso do desenvolvimento, o princípio de prazer original
passa por uma modificação com referência ao mundo externo, dando lugar ao ‘princípio de realidade‘, de
conformidade com o qual o aparelho mental aprende a adiar o prazer da satisfação e a tolerar
temporariamente sentimentos de desprazer.
Topograficamente, a psicanálise considera o aparelho mental como um instrumento composto,
esforçando-se por determinar em quais pontos dele ocorrem os vários processos mentais. De acordo
com os pontos de vista psicanalíticos mais recentes, o aparelho mental compõe-se de um ‘id‘, que é o
repositório dos impulsos instintuais, de um ‘ego‘, que é a parte mais superficial do id e aquela que foi
modificada pela influência do mundo externo, e de um ‘superego‘, que se desenvolve do id, domina-o e
representa as inibições do instinto que são características do homem. A qualidade da consciência,
também, conta com uma referência topográfica, pois os processos no id são inteiramente inconscientes,
ao passo que a consciência é a função da camada mais externa do ego, que se interessa pela percepção
do mundo externo.
A esta altura, duas observações talvez sejam cabíveis. Não se deve supor que estas idéias muito
gerais sejam pressuposições das quais depende o trabalho da psicanálise. Pelo contrário, são suas
conclusões mais recentes e estão ‘abertas à revisão’. A psicanálise está firmemente alicerçada na
observação dos fatos da vida mental e por essa mesma razão sua superestrutura teórica ainda está
incompleta e sujeita a constante alteração. Em segundo lugar, não existe motivo para surpresa que a
psicanálise, que originalmente nada mais era que uma tentativa de explicar os fenômenos mentais
patológicos, deva ter-se desenvolvido numa psicologia da vida mental normal. A justificativa disso surgiu
com a descoberta de que os sonhos e os erros [‘parapraxias’, tais como lapsos de linguagem etc.] de
homens normais têm o mesmo mecanismo que os sintomas neuróticos.
A primeira tarefa da psicanálise foi a elucidação dos distúrbios neuróticos. A teoria analítica
baseia-se em três pedras angulares: o reconhecimento da (1) ‘repressão‘, da (2) importância do instinto
sexual e da (3) ‘transferência‘.
(1) Há uma força na mente que exerce as funções de uma censura e que exclui da consciência e
de qualquer influência sobre a ação todas as tendências que a desagradam. Tais tendências são
descritas como ‘reprimidas’. Elas permanecem inconscientes e se alguém tentar levá-las para a
consciência do paciente provoca-se uma ‘resistência‘.2 Esses impulsos instintuais reprimidos, contudo,
nem sempre se tornaram impotentes. Em muitos casos conseguiram fazer sentir sua influência na mente
por caminhos indiretos, e as satisfações indiretas ou substitutivas dos impulsos reprimidos assim
alcançadas são o que constitui os sintomas neuróticos. (2) Por motivos culturais, a repressão mais
intensa incide sobre os instintos sexuais; mas é precisamente em relação com eles que a repressão mais
facilmente falha, de modo que se verifica que os sintomas neuróticos são satisfações substitutivas da
sexualidade reprimida. A crença de que no homem a vida sexual começa apenas na puberdade é
incorreta. Pelo contrário, sinais dela podem ser detectados desde o começo da existência extra-uterina;
ela atinge um primeiro ponto culminante no ou antes do quinto ano (‘período primitivo’), depois do qual
fica inibida ou interrompida (‘período de latência’) até a idade da puberdade, que é o segundo clímax do
seu desenvolvimento. Esse desencadeamento bifásico do desenvolvimento sexual parece ser distintivo
do gênero Homo. Todas as experiências durante o primeiro período da infância são da maior importância
para o indivíduo e em combinação com sua constituição sexual herdada foram as disposições para o
desenvolvimento subseqüente do caráter e da doença. É errôneo fazer a sexualidade coincidir com a
‘genitalidade’! Os instintos sexuais passam por um complicado curso de desenvolvimento, e só no fim
deste é que a ‘primazia das zonas genitais’ é alcançada. Antes disso há grande número de organizações
‘pré-genitais’ da libido - pontos nos quais ela pode tornar-se ‘fixada’ e aos quais, no caso de subseqüente
repressão, ela retornará (‘regressão‘). As fixações infantis da libido são o que determina a forma de
qualquer neurose ulterior. Assim, as neuroses devem ser consideradas como inibições no
desenvolvimento da libido. Não existem causas específicas de perturbações nervosas; a questão de se
um conflito encontra uma solução saudável ou conduz a uma inibição neurótica de função depende de
considerações quantitativas.
O conflito mais importante com o qual se defende uma criancinha é sua relação com os pais, o
‘Complexo de Édipo‘; é ao tentar lidar com esse problema que aqueles destinados a sofrer de uma
neurose habitualmente malogram. As reações contra as exigências instintuais do complexo de Édipo são
a fonte das realizações mais preciosas e socialmente importantes da mente humana; e isto é válido não
somente na vida dos indivíduos, como também provavelmente na história da espécie humana como um
todo. O superego também, a instância moral que domina o ego, tem sua origem no processo de
superação do complexo de Édipo.
(3) Por ‘transferência‘ quer-se dizer uma peculiaridade marcante dos neuróticos. Eles
desenvolvem para com seu médico relações emocionais, tanto de caráter afetuoso como hostil, que não
se baseiam na situação real, mas que derivam de suas relações com os pais (o complexo de Édipo). A
transferência é uma prova do fato de que os adultos não superaram sua antiga dependência infantil; ela
coincide com a força que foi designada como ‘sugestão’; e é somente aprendendo a fazer uso dela que o
médico fica capacitado a induzir o paciente a superar suas resistências internas e a eliminar suas
repressões. Dessa forma, o tratamento analítico atua como uma segunda educação do adulto, como um
corretivo da sua educação enquanto criança.
Dentro desse estreito âmbito foi impossível mencionar muitos assuntos do maior interesse, tais
como a ‘sublimação‘ dos instintos, o papel desempenhado pelo simbolismo, o problema da ‘ambivalência‘
etc. Nem houve espaço para aludir às aplicações da psicanálise - originadas, como vimos, na esfera da
medicina - a outros setores do conhecimento (como a antropologia social, o estudo da religião, a história
literária e a educação), onde sua influência vem constantemente aumentando. Basta dizer que a
psicanálise, em seu caráter da psicologia dos atos mentais inconscientes mais profundos, promete tornarse o elo entre a psiquiatria e todos aqueles outros ramos da ciência mental.
A HISTÓRIA EXTERNA DA PSICANÁLISE
Os primórdios da psicanálise podem ser assinalados por duas datas: 1895, que viu a publicação
dos Estudos sobre a Histeria de Breuer e Freud, e 1900, que testemunhou a da Interpretação de Sonhos,
de Freud. De início, as novas descobertas não despertaram interesse algum quer na profissão médica,
quer entre o público em geral. Em 1907 os psiquiatras suíços, sob a liderança de E. Bleuler e C. G. Jung,
começaram a interessar-se pelo assunto; em 1908 realizou-se em Salzburgo uma primeira reunião dos
partidários provenientes de grande número de diferentes países. Em 1909 Freud e Jung foram
convidados para visitar os Estados Unidos por G. Stanley Hall a fim de pronunciarem uma série de
conferências sobre psicanálise na Universidade de Clark, Worcester, Mass. A partir daquela época, o
interesse cresceu rapidamente na Europa; expressou-se contudo, numa rejeição muito enérgica dos
novos ensinamentos - uma rejeição que muitas vezes revelou uma coloração não-científica.
As razões dessa hostilidade iriam ser encontradas, do ponto de vista médico, no fato de que a
psicanálise dá ênfase a fatores psíquicos, e, do ponto de vista filosófico, na suposição do conceito da
atividade mental inconsciente como sendo um postulado fundamental; mas a razão mais forte foi,
indubitavelmente, a indisposição geral da humanidade em conceder ao fator da sexualidade a
importância que lhe é atribuída pela psicanálise. Apesar dessa oposição generalizada, contudo, o
movimento em prol da psicanálise não iria ser refreado. Seus partidários aglutinaram-se numa
Associação Internacional, que atravessou incólume as provações da grande guerra, e na hora presente
(1925) abrange grupos locais em Viena, Berlim, Budapeste, Londres, Suíça, Holanda, Moscou e Calcutá,
bem como dois nos Estados Unidos. Há três periódicos que representam os pontos de vista dessas
sociedades: o Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, Imago (que se interessa pela aplicação da
psicanálise a campos não-médicos de conhecimentos), e o International Journal of Psycho-Analysis.
Durante os anos de 1911-13 dois ex-partidários, Alfred Adler, de Viena, e C. G. Jung, de Zurique,
retiraram-se do movimento psicanalítico e fundaram suas escolas de pensamento, as quais, em vista da
hostilidade geral à psicanálise, podiam estar certas de uma acolhida favorável, mas permaneceram
cientificamente estéreis. Em 1921 o Dr. M. Eitingon fundou em Berlim a primeira clínica e escola de
formação psicanalítica pública, logo acompanhada de uma segunda em Viena.
BIBLIOGRAFIA
Breuer
e
Freud,
Studien
über
Hysterie
(1895);
Freud,
Traumdeutung
(1900);
Zur
Psychopathologie des Alltagslebens (1904); Drei Abhandlugen zur Sexualtheorie (1905); Vorlesungen zur
Einführung in die Psychoanalyse (1916). As obras completas de Freud foram publicadas em alemão
(Gesammelte Schriften) (1925) e em espanhol (Obras completas) (1923); a maior parte delas foi
traduzida para o inglês e outras línguas. Breves relatos do tema e da história da psicanálise serão
encontrados em: Freud, Über Psychoanalyse (as conferências pronunciadas em Worcester, EUA) (1909);
Zur Geschichte der psychoanalytischen Bewegung (1914); Selbstdarstellung (na coleção de Grote, Die
Medizin der Gegenwart in Selbstdarstellungen) (1925). Particularmente acessíveis aos leitores ingleses
são: Ernest Jones, Papers on Psycho-Analysis, e A. A. Brill, Psychoanalysis.
DISCURSO PERANTE A SOCIEDADE DOS
BNAI BRITH (1941 [1926])
ANSPRACHE AN DIE MITGLIEDER
DES VEREINS BNAI BRITH
(a) EDIÇÃO ALEMÃ:
1941 G. W., 17, 51-3.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Adress to the Society of B’nai B’rith.’
A presente tradução, de James Strachey, parece ser a primeira para o inglês. Algumas frases
dela foram apresentadas numa nota de rodapé na p.312 de The Origins of Psycho-Analysis (1954), a
tradução inglesa de Freud, 1950a.
Esse discurso foi lido em nome de Freud numa reunião dos B’nai B’rith realizada em 6 de maio
de 1926, em honra ao seu septuagésimo aniversário. Fora precedido por um discurso laudatório feito pelo
seu médico, o professor Ludwig Braun.
Os B’nai B’rith (Filhos da Aliança) são uma ordem que representa os interesses judeus - culturais,
intelectuais e caritativos. Originalmente fundada nos Estados Unidos em meados do século XIX, tem lojas
filiadas em muitas partes do mundo. Como se verá adiante, Freud filiou-se ao grupo de Viena em 1895 e
durante muitos anos foi freqüentador assíduo de suas reuniões, realizadas em terças-feiras alternadas.
De tempos a tempos ele próprio pronunciou conferências ali, havendo os temas de algumas delas sido
registrados: duas conferências sobre sonhos em dezembro de 1897 (Freud, 1950a, Carta 78); outra, não
especificada, em março de 1900 (ibid., Carta 130); sobre La fécondité, de Zola, em 27 de abril de 1900
(Jones, 1953, 363); sobre La révolte des anges, de Anatole France (Sachs, 1945, 103); e a segunda
parte de suas ‘Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte’, em 1915 (Jones, 1955, 415).
DISCURSO PERANTE A SOCIEDADE DOS BNAI BRITH
Ilustríssimo Grão Presidente, ilustríssimos Presidentes, caros Irmãos, Agradeço-vos as honrarias que me prestastes hoje. Sabeis por que não podeis ouvir o som de
minha própria voz. Ouvistes um dos meus amigos e alunos falar do meu trabalho científico; mas é difícil
formar um julgamento sobre tais coisas e por muito tempo ainda ele não pode ser alcançado com
segurança. Permiti-me acrescentar algo ao que foi dito por aquele que é tanto meu amigo como o médico
que vela por mim. Gostaria de dizer-vos em breves palavras como me tornei um dos vossos e o que
procurei de vós.
Aconteceu que nos anos a partir de 1895 fiquei sujeito a duas poderosas impressões que se
combinaram para produzir o mesmo efeito sobre mim. Por um lado, alcançara minha primeira
compreensão interna (insight) das profundezas da vida dos instintos humanos; eu vira certas coisas que
eram tranqüilizadoras e mesmo, de início, assustadoras. Por outro, a comunicação das minhas
descobertas desagradáveis teve como resultado a ruptura da maior parte dos meus contatos humanos;
senti-me como se fosse desprezado e universalmente evitado. Em minha solidão fui presa do anseio de
encontrar um círculo de homens de escol de caráter elevado que me recebesse com espírito amistoso,
apesar da minha temeridade. Vossa sociedade foi-me indicada como o lugar onde tais homens deviam
ser encontrados.
O fato de vós serdes judeus só me poderia ser agradável, pois eu próprio sou judeu, e sempre
me parecera não somente indigno como positivamente insensato negar esse fato. O que me ligava ao
povo judeu não era (envergonho-me de admitir) nem a fé nem o orgulho nacional, pois sempre fui um
descrente e fui educado sem nenhuma religião, embora não sem respeito pelo que se denomina de
padrões ‘éticos’ da civilização humana. Sempre que sentia inclinação pelo entusiasmo nacional
esforçava-me por suprimi-lo como sendo prejudicial e errado, alarmado pelos exemplos de advertência
dos povos entre os quais nós judeus vivemos. Mas restavam muitas outras coisas que tornavam a
atração do mundo judeu e dos judeus irresistível - muitas forças emocionais obscuras, que eram mais
poderosas quanto menos pudessem ser expressas em palavras, bem como uma nítida consciência de
identidade interna, a reserva segura de uma construção mental comum. E além disso havia uma
percepção de que era somente à minha natureza judaica que eu devia duas características que se
haviam tornado indispensáveis para mim no difícil curso de minha vida. Por ser judeu encontrei-me livre
de muitos preconceitos que restringiam outros no uso de seu intelecto, e como Judeu estava preparado
para aliar-me à Oposição e passar sem consenso à ‘maioria compacta’.
Assim foi que me tornei um dos vossos, tive minha parcela em vossos interesses humanitários e
nacionais, angariei amigos entre vós e persuadi meus próprios e poucos amigos restantes a se filiarem à
nossa sociedade. Não houve absolutamente qualquer dúvida em convencer-vos das minhas novas
teorias; mas numa época em que ninguém na Europa me dava ouvidos e ainda não tinha nenhum
discípulo mesmo em Viena, vós me concedestes vossa amável atenção. Vós fostes o meu primeiro
auditório.
Durante cerca de dois terços do longo período que decorreu desde meu ingresso persisti
convosco de maneira conscienciosa, e encontrei refrigério e estímulo em minhas relações convosco. Vós
tendes sido bastante amáveis hoje para não incriminar-me de que durante a última terça parte do tempo
me mantive afastado de vós. Estive sobrecarregado de trabalho e as exigências ligadas ao mesmo
pesaram sobre mim; o dia deixou de ser bastante longo para que eu freqüentasse vossas reuniões, e
logo meu corpo começou a rebelar-se contra uma refeição tomada tarde da noite. Finalmente
sobrevieram os anos de minha doença, o que me impede de estar entre vós até mesmo num dia como o
de hoje.
Não posso dizer se fui um autêntico Filho da Aliança no vosso sentido da palavra. Estou quase
inclinado a duvidar disso; muitas circunstâncias excepcionais surgiram no meu caso. Mas de uma coisa
posso assegurar-vos - que vós muito significastes para mim e muito fizestes por mim durante os anos nos
quais fiz parte de vós. Peço-vos, portanto, que aceiteis meus calorosos agradecimentos tanto por esses
anos como por hoje.
Vosso em W. B. & E.Sigm. Freud
BREVES ESCRITOS (1926)
KARL ABRAHAM 1926
O Dr. Karl Abraham, presidente do grupo de Berlim, do qual foi o fundador, e presidente, na
época, da Associação Psicanalítica Internacional, faleceu em Berlim em 25 de dezembro [1925]. Não
havia alcançado a idade de cinqüenta anos quando sucumbiu a um mal interno contra o qual sua
poderosa constituição tivera de lutar desde a primavera. No Congresso de Houburg ele parecera, para
grande alegria de todos nós, ter-se recuperado, mas uma recaída nos trouxe penoso desapontamento.
Enterramos com ele - integer vitae scelerisque purus - uma das esperanças mais firmes da nossa
ciência, jovem como é e ainda tão implacavelmente agredida, e uma parte do seu futuro que agora,
talvez, seja irrealizável. Dentre todos aqueles que me acompanhavam pelos sombrios caminhos da
pesquisa psicanalítica, ele granjeou um lugar tão proeminente que somente um outro nome poderia ser
posto ao lado dele. É provável que a confiança ilimitada de seus colegas e alunos o teria convocado para
a liderança e sem dúvida ele teria sido um líder modelo na busca da verdade, não se deixando
desencaminhar nem pelo louvor, nem pela censura dos muitos, nem pela sedutora ilusão de suas
próprias fantasias.
Escrevo estas linhas para os amigos e companheiros de trabalho que conheceram e valorizaram
Abraham como eu. Eles acharão fácil compreender o que a perda desse amigo, muito mais jovem que
eu, significa para mim; e me perdoarão se eu não fizer qualquer outra tentativa de expressar o que é tão
difícil de traduzir em palavras. Um relato da personalidade científica de Abraham e uma apreciação do
seu trabalho serão empreendidos para a nossa revista por outrem.
A ROMAIN ROLLAND(1926)
Viena IX, Bergasse, 19, 29 de janeiro de 1926.
Inesquecível amigo! Com que dificuldades e sofrimentos você deve ter lutado para atingir o ponto
culminante da humanidade como o seu!
Muitos anos antes de vê-lo, eu o havia exaltado como um artista e um apóstolo do amor da
humanidade. Eu próprio fui um discípulo do amor da humanidade, não por motivos sentimentais ou em
busca de um ideal, mas por motivos desapaixonados e econômicos, porque, sendo os nossos instintos
inatos e o mundo que nos cerca o que são, não poderia deixar de considerar esse amor como não menos
essencial para a sobrevivência da raça humana do que tais coisas como a tecnologia.
E quando finalmente vim a conhecê-lo pessoalmente, fiquei surpreendido em verificar que você
pode apreciar a força e a energia tão altamente e que você mesmo encarna essa força de vontade.
Que a próxima década não lhe traga outra coisa senão êxitos!
Muito cordialmenteSigm. Freud, aetat, 70
NOTA PREAMBULAR A UM ARTIGO DE E. PICKWORTH FARROW (1926)
Conheço o autor deste artigo como um homem de inteligência valiosa e independente.
Provavelmente por ser um tanto voluntarioso deixou de manter boas relações com dois analistas com os
quais fez a tentativa. Logo depois passou a fazer uma aplicação sistemática do método de auto-análise
que eu próprio empreguei no passado para a análise de meus próprios sonhos. Seus achados merecem
atenção precisamente por causa do caráter peculiar de sua personalidade e de sua técnica.
O Futuro de uma Ilusão, O mal-estar na
civilização e outros trabalhos
VOLUME XXI
(1927-1931)
Dr. Sigmund Freud
O FUTURO DE UMA ILUSÃO (1927)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DIE ZUKUNFT EINER ILLUSION
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1927 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 91 págs.
1928 2ª ed. Mesmos editores. (Inalterada) 91 págs.
1943 G. W., 11,411-66.
1948 G. W., 14,325-380.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
The Future of an Illusion
1928 Londres: Hogarth Press e Instituto de Psicanálise. 98 págs. (Trad. de W.D. Robson-Scott.)
A presente tradução inglesa baseia-se na que foi publicada em 1928.
Este trabalho foi começado na primavera de 1927, terminado por volta de setembro e publicado
em novembro do mesmo ano.
No ‘Pós-Escrito’ que acrescentou em 1935 a seu Autobiographical Study, Freud mencionou ‘uma
mudança significativa’ ocorrida em seus trabalhos durante a década anterior. ‘Meu interesse’, explicou,
‘após ter feito um longo détour pelas ciências naturais, medicina e psicoterapia, retornou aos problemas
culturais que me haviam fascinado muito tempo antes, quando eu não passava de um jovem com idade
apenas suficiente para pensar’(Standard Ed. 20,72). Naturalmente, ele havia abordado por diversas
vezes esses problemas nos anos intermediários - especialmente em Totem e Tabu (1912-13), Edição
Standard Brasileira, Vol. XIII, IMAGO Editora, 1974, mas foi com o Futuro de Uma Ilusão que ingressou
na série de estudos que vieram a constuir seu interesse principal pelo resto da vida. Destes, os mais
importantes foram O Mal-Estar na Civilização (1930a), que é o sucessor direto do presente trabalho, o
exame de filosofias de vida, tema da última das New Introductory Lectures (1933a), Why War? (1933b),
carta aberta dirigida a Einstein, e, finalmente, Moses and Monotheism (1933a), em que trabalhou de 1934
em diante.
Em vista do amplo pronunciamento de Freud na [1] (‘Desprezo ter que distinguir entre cultura e
civilização’) e de uma observação semelhante ao final de Why War?, parece desnecessário empenharnos no enfadonho problema da tradução correta da palavra alemã ‘Kultur‘. Via de regra, ainda que não
invariavelmente, optamos por civilização para o substantivo e ‘cultural’ para o adjetivo.
O FUTURO DE UMA ILUSÃO
I
Quando já se viveu por muito tempo numa civilização específica e com freqüência se tentou
descobrir quais foram suas origens e ao longo de que caminho ela se desenvolveu, fica-se às vezes
tentado a voltar o olhar para outra direção e indagar qual o destino que a espera e quais as
tranformações que está fadada a experimentar. Logo, porém, se descobre que, desde o início, o valor de
uma indagação desse tipo é diminuído por diversos fatores, sobretudo pelo fato de apenas poucas
pessoas poderem abranger a atividade humana em toda a sua amplitude. A maioria das pessoas foi
obrigada a restringir-se a somente um ou a alguns de seus campos. Entretanto, quanto menos um
homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar-se seu juízo sobre o
futuro. E há ainda uma outra dificuldade: a de que precisamente num juízo desse tipo as expectativas
subjetivas do indivíduo desempenham um papel difícil de avaliar, mostrando ser dependentes de fatores
puramente pessoais de sua própria experiência, do maior ou menor otimismo de sua atitude para com a
vida, tal como lhe foi ditada por seu temperamento ou por seu sucesso ou fracasso. Finalmente, faz-se
sentir o fato curioso de que, em geral, as pessoas experimentam seu presente de forma ingênua, por
assim dizer, sem serem capazes de fazer uma estimativa sobre seu conteúdo; têm primeiro de se colocar
a certa distância dele: isto é, o presente tem de se tornar o passado para que possa produzir pontos de
observação a partir dos quais elas julguem o futuro.
Dessa maneira, qualquer pessoa que ceda à tentação de emitir uma opinião sobre o provável
futuro de nossa civilização fará bem em se lembrar das dificuldades que acabei de assinalar, assim como
da incerteza que, de modo bastante geral, se acha ligada a qualquer profecia. Disso decorre, no que me
concerne, que devo efetuar uma retirada apressada perante tarefa tão grande, e com rapidez buscar a
pequena nesga de território que até o presente tem reivindicado minha atenção, tão logo determinei sua
posição no esquema geral das coisas.
A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a vida humana se
elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais - e desprezo ter que distinguir entre
cultura e civilização -, apresenta, como sabemos, dois aspectos ao observador. Por um lado, inclui todo o
conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair
a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos
necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da
riqueza disponível. As duas tendências da civilização não são independentes uma da outra; em primeiro
lugar, porque as relações mútuas dos homens são profundamente influenciadas pela quantidade de
satisfação instintual que a riqueza existente torna possível; em segundo, porque, individualmente, um
homem pode, ele próprio, vir a funcionar como riqueza em relação a outro homem, na medida em que a
outra pessoa faz uso de sua capacidade de trabalho ou o escolha como objeto sexual; em terceiro,
ademais, porque todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização, embora se suponha que esta
constitui um objeto de interesse humano universal. É digno de nota que, por pouco que os homens sejam
capazes de existir isoladamente, sintam, não obstante, como um pesado fardo os sacrifícios que a
civilização deles espera, a fim de tornar possível a vida comunitária. A civilização, portanto, tem de ser
defendida contra o indivíduo, e seus regulamentos, instituições e ordens dirigem-se a essa tarefa. Visam
não apenas a efetuar uma certa distribuição da riqueza, mas também a manter essa distribuição; na
verdade, têm de proteger contra os impulsos hostis dos homens tudo o que contribui para a conquista da
natureza e a produção de riqueza. As criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a
tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação.
Fica-se assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma maioria
resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção.
Evidentemente, é natural supor que essas dificuldades não são inerentes à natureza da própria
civilização, mas determinadas pelas imperfeições das formas culturais que até agora se desenvolveram.
E, de fato, não é difícil assinalar esses defeitos. Embora a humanidade tenha efetuado avanços
contínuos em seu controle sobre a natureza, podendo esperar efetuar outros ainda maiores, não é
possível estabelecer com certeza que um progresso semelhante tenha sido feito no trato dos assuntos
humanos; e provavelmente em todos os períodos, tal como hoje novamente, muitas pessoas se
perguntaram se vale realmente a pena defender a pouca civilização que foi assim adquirida.
Pensar-se-ia ser possível um reordenamento das relações humanas, que removeria as fontes de
insatisfação para com a civilização pela renúncia à coerção e à repressão dos instintos, de sorte que,
imperturbados pela discórdia interna, os homens pudessem dedicar-se à aquisição da riqueza e à sua
fruição. Essa seria a idade de ouro, mas é discutível se tal estado de coisas pode ser tornado realidade.
Parece, antes, que toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia ao instinto; sequer
parece certo se, caso cessasse a coerção, a maioria dos seres humanos estaria preparada para
empreender o trabalho necessário à aquisição de novas riquezas. Acho que se tem de levar em conta o
fato de estarem presentes em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, anti-sociais e
anticulturais, e que, num grande número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para
determinar o comportamento delas na sociedade humana.
Esse fato psicológico tem importância decisiva para nosso julgamento da civilização humana.
Onde, a princípio, poderíamos pensar que sua essência reside no controle da natureza para o fim de
adquirir riqueza, e que os perigos que a ameaçam poderiam ser eliminados por meio de uma distribuição
apropriada dessa riqueza entre os homens, parece agora que a ênfase se deslocou do material para o
mental. A questão decisiva consiste em saber se, e até que ponto, é possível diminuir o ônus dos
sacrifícios instintuais impostos aos homens, reconciliá-los com aqueles que necessariamente devem
permanecer e fornecer-lhes uma compensação. É tão impossível passar sem o controle da massa por
uma minoria, quanto dispensar a coerção no trabalho da civilização, já que as massas são preguiçosas e
pouco inteligentes; não têm amor à renúncia instintual e não podem ser convencidas pelo argumento de
sua inevitabilidade; os indivíduos que as compõem apóiam-se uns aos outros em dar rédea livre a sua
indisciplina. Só através da influência de indivíduos que possam fornecer um exemplo e a quem
reconheçam como líderes, as massas podem ser induzidas a efetuar o trabalho e a suportar as renúncias
de que a existência depende. Tudo correrá bem se esses líderes forem pessoas com uma compreensão
interna () superior das necessidades da vida, e que se tenham erguido à altura de dominar seus próprios
desejos instintuais. Há, porém, o perigo de que, a fim de não perderem sua influência, possam ceder à
massa mais do que esta a eles; por conseguinte, parece necessário que sejam independentes dela pela
posse dos meios de poder à sua disposição. Expressando-o de modo sucinto, existem duas
características humanas muito difundidas, responsáveis pelo fato de os regulamentos da civilização só
poderem ser mantidos através de certo grau de coerção, a saber, que os homens não são
espontaneamente amantes do trabalho e que os argumentos não têm valia alguma contra suas paixões.
Conheço as objeções que serão levantadas contra essas afirmações. Dir-se-á que a
característica das massas humanas aqui retratada, a qual se supõem provar que a coerção não pode ser
dispensada no trabalho da civilização, constitui, ela própria, apenas o resultado de defeitos nos
regulamentos culturais, falhas devido às quais os homens se tornaram amargurados, vingativos e
inacessíveis. Gerações novas, que forem educadas com bondade, ensinadas a ter uma opinião elevada
da razão, e que experimentarem os benefícios da civilização numa idade precoce, terão atitude diferente
para com ela. Senti-la-ão como posse sua e estarão prontas, em seu benefício, a efetuar os sacrifícios
referentes ao trabalho e à satisfação instintual que forem necessários para sua preservação. Estarão
aptas a fazê-lo sem coerção e pouco diferirão de seus líderes. Se até agora nenhuma cultura produziu
massas humanas de tal qualidade, isso se deve ao fato de nenhuma cultura haver ainda imaginado
regulamentos que assim influenciem os homens, particularmente a partir da infância.
Pode-se duvidar de que seja de algum modo possível, pelo menos até agora, no presente estágio
de nosso controle sobre a natureza, estabelecer regulamentos culturais desse tipo. Pode-se perguntar de
onde virão esses líderes superiores, inabaláveis e desinteressados, que deverão atuar como educadores
das gerações futuras, e talvez seja alarmante pensar na imensa quantidade de coerção que
inevitavelmente será exigida antes que tais intenções possam ser postas em prática. A grandiosidade do
plano e sua importância para o futuro da civilização humana não podem ser discutidas. É algo firmemente
baseado na descoberta psicológica segundo a qual o homem se acha aparelhado com as mais variadas
disposições instintuais, cujo curso definitivo é determinado pelas experiências da primeira infância. Mas,
pela mesma razão, as limitações da capacidade de educação do homem estabelecem limites à
efetividade de uma transformação desse tipo em sua cultura. Pode-se perguntar se, e em que grau, seria
possível a um ambiente cultural diferente passar sem as duas características das massas humanas que
tornam tão difícil a orientação dos assuntos humanos. A experiência ainda não foi feita. Provavelmente
uma certa percentagem da humanidade (devido a uma disposição patológica ou a um excesso de força
instintual) permanecerá sempre associal; se, porém, fosse viável simplesmente reduzir a uma minoria a
maioria que hoje é hostil à civilização, já muito teria sido realizado - talvez tudo o que pode ser realizado.
Não gostaria de dar a impressão de me ter extraviado da linha estabelecida para minha
investigação,ver em [[1]]. Permitam-me, portanto, fornecer a garantia expressa de que não tenho a menor
intenção de formular juízos sobre o grande experimento em civilização que se encontra hoje em
desenvolvimento no imenso país que se estende entre a Europa e a Ásia. Não possuo conhecimento
especial nem capacidade de decidir sobre sua praticabilidade para testar a adequação dos métodos
empregados ou medir a amplitude do inevitável hiato existente entre intenção e execução. O que lá está
em preparo, mostra-se inacabado, tornando, portanto, baldada uma investigação para a qual nossa
própria civilização, há longo tempo consolidada, nos fornece material.
II
Deslizamos, sem nos darmos conta, do campo econômico para o da psicologia. A princípio,
ficamos tentados a procurar as vantagens da civilização na riqueza disponível e nos regulamentos para
sua distribuição. Entretanto, com o reconhecimento de que toda civilização repousa numa compulsão a
trabalhar e numa renúncia ao instinto, provocando, portanto, inevitavelmente, a oposição dos atingidos
por essas exigências, tornou-se claro que a civilização não pode consistir, principal ou unicamente na
própria riqueza, nos meios de adquiri-la e nas disposições para sua distribuição, de uma vez que essas
coisas são ameaçadas pela rebeldia e pela mania destrutiva dos participantes da civilização. Junto com a
riqueza deparamo-nos agora com os meios pelos quais a civilização pode ser defendida: medidas de
coerção e outras, que se destinam a reconciliar os homens com ela e a recompensá-los por seus
sacrifícios. Estas últimas podem ser descritas como as vantagens mentais da civilização.
Em benefício de uma terminologia uniforme, descreveremos como ‘frustração’ o fato de um
instinto não poder ser satisfeito, como ‘proibição’ o regulamento pelo qual essa frustração é estabelecida,
e como ‘privação’ a condição produzida pela proibição. O primeiro passo consiste em distinguir entre
privações que afetam a todos e privações que não afetam a todos, mas apenas a grupos, classes ou
mesmo indivíduos isolados. As primeiras são as mais antigas; com as proibições que as estabeleceram,
a civilização - quem sabe há quantos milhares de anos? - começou a separar o homem de sua condição
animal primordial.Para nossa surpresa, descobrimos que essas privações ainda são operantes e ainda
constituem o âmago da hostilidade para com a civilização. Os desejos instintuais que sob elas padecem,
nascem de novo com cada criança; há uma classe de pessoas, os neuróticos, que reagem a essas
frustrações através de um comportamento associal. Entre esses desejos instintuais encontram-se os do
canibalismo, do incesto e da ânsia de matar. Soa estranho colocar lado a lado desejos que todos
parecem unânimes em repudiar e desejos sobre os quais existe tão vívida disputa em nossa civilização
quanto a sua permissão ou frustração; psicologicamente, porém, é justificável proceder assim.
Tampouco, de modo algum é uniforme a atitude da civilização para com esses antigos desejos
instintuais. Apenas o canibalismo parece ser universalmente proscrito e - para a opinião não psicanalítica
- ter sido completamente dominado. A intensidade dos desejos incestuosos ainda pode ser detectada por
detrás da proibição contra eles, e, sob certas condições, o matar ainda é praticado, e, na verdade,
ordenado, por nossa civilização. É possível que ainda tenhamos pela frente desenvolvimentos culturais
em que a satisfação de outros desejos, inteiramente permissíveis hoje, parecerá tão inaceitável quanto,
atualmente, o canibalismo.
Essas primeiras renúncias instintuais já envolvem um fator psicológico igualmente importante
para todas as outras renúncias instintuais. Não é verdade que a mente humana não tenha passado por
qualquer desenvolvimento desde os tempos primitivos e que, em contraste com os avanços da ciência e
da tecnologia, seja hoje a mesma que era nos primórdios da história. Podemos assinalar de imediato um
desses progressos mentais. Acha-se em consonância com o curso do desenvolvimento humano que a
coerção externa se torne gradativamente internalizada, pois um agente mental especial, o superego do
homem, a assume e a inclui entre seus mandamentos. Toda criança nos apresenta esse processo de
transformação; é só por esse meio que ela se torna um ser moral e social. Esse fortalecimento do
superego constitui uma vantagem cultural muito preciosa no campo psicológico. Aqueles em que se
realizou são transformados de opositores em veículos da civilização. Quanto maior é o seu número numa
unidade cultural, mais segura é a sua altura e mais ela pode passar sem medidas externas de coerção.
Ora, o grau dessa internalização difere grandemente entre as diversas proibições instintuais. Com
referência às primeiras exigências culturais, que já mencionei, a internalização parece ter sido
amplamente conseguida, se não levarmos em conta a exceção desagradável dos neuróticos. Contudo, o
caso se altera quando nos voltamos para as outras reivindicações instintuais. Aqui observamos com
surpresa e preocupação que a maioria das pessoas obedece às proibições culturais nesses pontos
apenas sob pressão da coerção externa, isto é, somente onde essa coerção pode fazer-se efetiva e
enquanto deve ser temida. Isso também é verdade quanto ao que é conhecido como sendo as exigências
morais da civilização, que, do mesmo modo, se aplicam a todos. A maioria das experiências que se tem
da infidedignidade moral do homem ocorre nessa categoria. Há incontáveis pessoas civilizadas que se
recusam a cometer assassinato ou a praticar incesto, mas que não se negam a satisfazer sua avareza,
seus impulsos agressivos ou seus desejos sexuais, e que não hesitam em prejudicar outras pessoas por
meio da mentira, da fraude e da calúnia, desde que possam permanecer impunes; isso, indubitavelmente,
foi sempre assim através de muitas épocas da civilização.
Se nos voltarmos para as restrições que só se aplicam a certas classes da sociedade,
encontraremos um estado de coisas que é flagrante e que sempre foi reconhecido. É de esperar que
essas classes subprivilegiadas invejem os privilégios das favorecidas e façam tudo o que podem para se
liberarem de seu próprio excesso de privação. Onde isso não for possível, uma permanente parcela de
descontentamento persistirá dentro da cultura interessada, o que pode conduzir a perigosas revoltas. Se,
porém, uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte e de seus participantes
depende da opressão da outra parte, parte esta talvez maior - e este é o caso em todas as culturas
atuais-, é compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa hostilidade para
com uma cultura cuja existência elas tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não
possuem mais do que uma quota mínima. Em tais condições, não é de esperar uma internalização das
proibições culturais entre as pessoas oprimidas. Pelo contrário, elas não estão preparadas para
reconhecer essas proibições, têm a intenção de destruir a própria cultura e, se possível, até mesmo
aniquilar os postulados em que se baseia. A hostilidade dessas classes para com civilização é tão
evidente, que provocou a mais latente hostilidade dos estratos sociais mais passíveis de serem
desprezados. Não é preciso dizer que uma civilização que deixa insatisfeito um número tão grande de
seus participantes e os impulsiona à revolta, não tem nem merece a perspectiva de uma existência
duradoura.
O ponto até o qual os preceitos de uma civilização foram internalizados - ou, para expressá-lo de
modo mais popular e não psicológico, o nível moral de seus participantes-, não constitui a única forma de
riqueza mental que entra em consideração ao se avaliar o valor de uma civilização. Há, além disso, suas
vantagens sob forma de ideais e criações artísticas, isto é, as satisfações que podem ser derivadas
dessas fontes.
As pessoas sempre estarão prontamente inclinadas a incluir entre os predicados psíquicos de
uma cultura os seus ideais, ou seja, suas estimativas a respeito de que realizações são mais elevadas e
em relação às quais se devem fazer esforços por atingir. Parece, a princípio, que esses ideais
determinam as realizações da unidade cultural; contudo, o curso real dos acontecimentos parece indicar
que os ideais se baseiam nas primeiras realizações que foram tornadas possíveis por uma combinação
entre os dotes internos da cultura e as circunstâncias externas, e que essas primeiras realizações são
então erigidas pelo ideal como algo a ser levado avante. A satisfação que o ideal oferece aos
participantes da cultura é, portanto, de natureza narcísica; repousa em seu orgulho pelo que já foi
alcançado com êxito. Tornar essa satisfação completa exige uma comparação com outras culturas que
visaram a realizações diferentes e desenvolveram ideais distintos. É a partir da intensidade dessas
diferenças que toda cultura reivindica o direito de olhar com desdém para o resto. Desse modo, os ideais
culturais se tornam fonte de discórdia e inimizades entre unidades culturais diferentes, tal como se pode
constatar claramente no caso das nações.
A satisfação narcísica proporcionada pelo ideal cultural encontra-se também entre as forças que
alcançam êxito no combate à hostilidade para com a cultura dentro da unidade cultural. Essa satisfação
pode ser partilhada não apenas pelas classes favorecidas, que desfrutam dos benefícios da cultura, mas
também pelas oprimidas, já que o direito a desprezar povos estrangeiros as compensa pelas injustiças
que sofrem dentro de sua própria unidade. Não há dúvida de que alguém pode ter sido um plebeu infeliz,
atormentado por dívidas e pelo serviço militar, mas, em compensação, não deixava de ser um cidadão
romano, com sua própria quota na tarefa de governar outras nações e ditar suas leis. Essa identificação
das classes oprimidas com a classe que as domina e explora é, contudo, apenas uma parte de um todo
maior. Isso porque, por outro lado, as classes oprimidas podem estar emocionalmente ligadas a seus
senhores; apesar de sua hostilidade para com eles, podem ver neles os seus ideais. A menos que tais
relações de tipo fundamentalmente satisfatório subsistam, é impossível compreender como uma série de
civilizações sobreviveu por tão longo tempo, malgrado a justificável hostilidade de grandes massas
humanas.
Um tipo diferente de satisfação é concedido aos participantes de uma unidade cultural pela arte,
embora, via de regra, ela permaneça inacessível às massas, que se acham empenhadas num trabalho
exaustivo, além de não terem desfrutado de qualquer educação pessoal. Como já descobrimos há muito
tempo, a arte oferece satisfações substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas
renúncias culturais, e, por esse motivo, ela serve, como nenhuma outra coisa, para reconciliar o homem
com os sacrifícios que tem de fazer em benefício da civilização. Por outro lado, as criações da arte
elevam seus sentimentos de identificação, de que toda unidade cultural carece tanto, proporcionando
uma ocasião para a partilha de experiências emocionais altamente valorizadas. E quando essas criações
retratam as realizações de sua cultura específica e lhe trazem à mente os ideais dela de maneira
impressiva, contribuem também para sua satisfação narcísica.
Nenhuma menção se fez ainda do que talvez constitua o item mais importante do inventário
psíquico de uma civilização, item este que consiste, no sentido mais amplo, em suas idéias religiosas, ou,
em outras palavras (que posteriormente serão justificadas), em suas ilusões.
III
Em que reside o valor peculiar das idéias religiosas?
Já falamos da hostilidade para com a civilização, produzida pela pressão que esta exerce, pelas
renúncias do instinto que exige. Se se imaginarem suspensas as suas proibições - se, então, se pudesse
tomar a mulher que se quisesse como objeto sexual; se fosse possível matar sem hesitação o rival ao
amor dela ou qualquer pessoa que se colocasse no caminho, e se, também, se pudesse levar consigo
qualquer dos pertences de outro homem sem pedir licença-, quão esplêndida, que sucessão de
satisfações seria a vida! É verdade que logo nos deparamos com a primeira dificuldade: todos os outros
têm exatamente os mesmos desejos que eu, e não me tratarão com mais consideração do que eu os
trato. Assim, na realidade, só uma única pessoa se poderia tornar irrestritamente feliz através de uma tal
remoção das restrições da civilização, e essa pessoa seria um tirano, um ditador, que se tivesse
apoderado de todos os meios de poder. E mesmo ele teria todos os motivos para desejar que os outros
observassem pelo menos um mandamento cultural: ‘não matarás’.
Mas quão ingrato, quão insensato, no fim das contas, é esforçar-se pela abolição da civilização!
O que então restaria seria um estado de natureza, muito mais difícil de suportar. É verdade que a
natureza não exigiria de nós quaisquer restrições dos instintos, deixar-nos-ia proceder como bem
quiséssemos; contudo, ela possui seu próprio método, particularmente eficiente, de nos coibir. Ela nos
destrói, fria, cruel e incansavelmente, segundo nos parece, e, possivelmente, através das próprias coisas
que ocasionaram nossa satisfação. Foi precisamente por causa dos perigos com que a natureza nos
ameaça que nos reunimos e criamos a civilização, a qual também, entre outras coisas, se destina a
tornar possível nossa vida comunal, pois a principal missão da civilização, sua raison d’être real, é nos
defender contra a natureza.
Todos sabemos que, de diversas maneiras, a civilização já faz isso bastante bem, e é claro que,
na medida em que o tempo passa, o fará muito melhor. Ninguém, no entanto, alimenta a ilusão de que a
natureza já foi vencida, e poucos se atrevem a ter esperanças de que um dia ela se submeta inteiramente
ao homem. Há os elementos, que parecem escarnecer de qualquer controle humano; a terra, que treme,
se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num
torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que se lhes antepõe; as doenças, que só recentemente
identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos, e, finalmente, o penoso enigma da
morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que
a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa
fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização. Uma das
poucas impressões gratificantes e exaltantes que a humanidade pode oferecer, ocorre quando, em face
de uma catástrofe elementar, esquece as discordâncias de sua civilização, todas as suas dificuldades e
animosidades internas, e se lembra da grande tarefa comum de se preservar contra o poder superior da
natureza.
Tal como para a humanidade em geral, também para o indivíduo a vida é difícil de suportar. A
civilização de que participa impõe-lhe uma certa quantidade de privação, e outros homens lhe trazem
outro tanto de sofrimento, seja apesar dos preceitos de sua civilização, seja por causa das imperfeições
dela. A isso se acrescentam os danos que a natureza indomada - o que ele chama de Destino - lhe
inflige. Poder-se-ia supor que essa condição das coisas resultaria num permanente estado de ansiosa
expectativa presente nele e em grave prejuízo a seu narcisismo natural. Já sabemos como o indivíduo
reage aos danos que a civilização e os outros homens lhe infligem: desenvolve um grau correspondente
de resistência aos regulamentos da civilização e de hostilidade para com ela. Mas, como se defende ele
contra os poderes superiores da natureza, do Destino, que o ameaçam da mesma forma que a tudo
mais?
A civilização o poupa dessa tarefa; ela a desempenha da mesma maneira para todos,
igualmente, e é digno de nota que, nisso, quase todas as civilizações agem de modo semelhante. A
civilização não se detém na tarefa de defender o homem contra a natureza, mas simplesmente a
prossegue por outros meios. Trata-se de uma tarefa múltipla. A auto-estima do homem, seriamente
ameaçada, exige consolação; a vida e o universo devem ser despidos de seus terrores; ademais, sua
curiosidade, movida, é verdade, pelo mais forte interesse prático, pede uma resposta.
Muito já se conseguiu com o primeiro passo: a humanização da natureza. De forças e destinos
impessoais ninguém pode aproximar-se; permanecem eternamente distantes. Contudo, se nos elementos
se enfurecerem paixões da mesma forma que em nossas próprias almas, se a própria morte não for algo
espontâneo, mas o ato violento de uma Vontade maligna, se tudo na natureza forem Seres à nossa volta,
do mesmo tipo que conhecemos em nossa própria sociedade, então poderemos respirar livremente,
sentir-nos em casa no sobrenatural e lidar com nossa insensata ansiedade através de meios psíquicos.
Talvez ainda nos achemos indefesos, mas não mais desamparadamente paralisados; pelo menos,
podemos reagir. Talvez, na verdade, sequer nos achemos indefesos. Contra esses violentos superhomens externos podemos aplicar os mesmos métodos que empregamos em nossa própria sociedade;
podemos tentar conjurá-los, apaziguá-los, suborná-los e, influenciando-os assim, despojá-los de uma
parte de seu poder. Uma tal substituição da ciência natural pela psicologia não apenas proporciona alívio
imediato, mas também aponta o caminho para um ulterior domínio da situação.
Porque essa situação não é nova. Possui um protótipo infantil, de que, na realidade, é somente a
continuação. Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de desamparo: como crianças
de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razões para temê-los, especialmente nosso pai;
contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos que conhecíamos. Assim, foi natural
assemelhar as duas situações. Aqui, também, o desejar desempenhou seu papel, tal como faz na vida
onírica. Aquele que dorme pode ser tomado por um pressentimento da morte, que ameaça colocá-lo no
túmulo. A elaboração onírica, porém, sabe como selecionar uma condição que transformará mesmo esse
temível evento uma realização de desejo: aquele que sonha vê-se a si mesmo numa antiga sepultura
etrusca a que desceu, feliz por satisfazer seus interesses arqueológicos. Do mesmo modo, um homem
transforma as forças da natureza não simplesmente em pessoas com quem pode associar-se como com
seus iguais - pois isso não faria justiça à impressão esmagadora que essas forças causam nele -, mas
lhes concede o caráter de um pai. Transforma-as em deuses, seguindo nisso, como já tentei demonstrar,
não apenas um protótipo infantil, mas um protótipo filogenético.
No decorrer do tempo, fizeram-se as primeiras observações de regularidade e conformidade à lei
nos fenômenos naturais, e, com isso, as forças da natureza perderam seus traços humanos. O
desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes
mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do
Destino, particularmente a que é demonstrada na morte,e compensá-los pelos sofrimentos e privações
que uma vida civilizada em comum lhes impôs.
Contudo, dentro dessas funções há um deslocamento gradual de ênfase. Observou-se que os
fenômenos da natureza se desenvolviam automaticamente, de acordo com as necessidades internas.
Indubitavelmente, os deuses eram os senhores da natureza; haviam-na disposto para ser como era e
agora podiam deixá-la por sua própria conta. Apenas ocasionalmente, no que se conhece como milagres,
intervinham eles em seu curso, como para tornar claro que não haviam abandonado nada de sua esfera
original de poder. Com referência à distribuição dos destinos, persistia a desagradável suspeita de que a
perplexidade e o desamparo da raça humana não podiam ser remediados. Era aqui que os deuses se
mostravam aptos a falhar. Se eles próprios haviam criado o Destino, então seus desígnios deviam ser
considerados inescrutáveis. Alvoreceu a noção, no povo mais bem dotado da Antiguidade, de que Moira
[o Destino] alçava-se acima dos deuses e que mesmo estes tinham os seus próprios destinos. E quanto
mais autônoma a natureza se tornava e quanto mais os deuses se retiravam dela, com mais seriedade
todas as expectativas se dirigiram para a terceira função deles, ou seja, mais a moralidade tornou-se o
seu verdadeiro domínio. Ficou sendo então tarefa dos deuses nivelar os defeitos e os males da
civilização, assistir os sofrimentos que os homens infligem uns aos outros em sua vida em conjunto e
vigiar o cumprimento dos preceitos da civilização, a que os homens obedecem de modo tão imperfeito.
Esses próprios preceitos foram creditados com uma origem divina; foram elevados além da sociedade
humana e estendidos à natureza e ao universo.
Foi assim que se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o homem de
tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua
própria infância e da infância da raça humana. Pode-se perceber claramente que a posse dessas idéias o
protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza e do Destino, e contra os danos que o ameaçam
por parte da própria sociedade humana. Reside aqui a essência da questão. A vida neste mundo serve a
um propósito mais elevado; indubitavelmente, não é fácil adivinhar qual ele seja, mas decerto significa um
aperfeiçoamento da natureza do homem. É provavelmente a parte espiritual deste, a alma, que, no
decurso do tempo, tão lenta e relutantemente, se desprendeu do corpo, que constitui o objeto desta
elevação e exaltação. Tudo o que acontece neste mundo constitui expressão das intenções de uma
inteligência superior para conosco, inteligência que, ao final, embora seus caminhos e desvios sejam
difíceis de acompanhar, ordena tudo para o melhor - isto é, torna-o desfrutável por nós. Sobre cada um
de nós vela uma Providência benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos
tornemos um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza. A própria morte não é uma
extinção, não constitui um retorno ao inanimado inorgânico, mas o começo de um novo tipo de existência
que se acha no caminho da evolução para algo mais elevado. E, olhando na outra direção, essa visão
anuncia que as mesmas leis morais que nossas civilizações estabeleceram, governam também o
universo inteiro, com a única diferença de serem mantidas por uma corte suprema de justiça
incomparavelmente mais poderosa e harmoniosa. Ao final, todo o bem é recompensado e todo o mal,
punido, se não na realidade, sob esta forma de vida, pelo menos em existências posteriores que se
iniciam após a morte. Assim, todos os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a se
desfazer. A vida após a morte, que continua a vida sobre a terra exatamente como a parte invisível do
espectro se une à parte visível, nos conduz à perfeição que talvez tenhamos deixado de atingir aqui. E a
sabedoria superior que dirige esse curso das coisas, a bondade infinita que nela se expressa, a justiça
que nela atinge seu objetivo, são os atributos dos seres divinos que também nos criaram, e ao mundo
como um todo, ou melhor, de um ser divino no qual, em nossa civilização, todos os deuses da
Antiguidade foram condensados. O povo que pela primeira vez alcançou êxito em concentrar assim os
atributos divinos não ficou pouco orgulhoso de seu progresso. Descerrara à vista o pai que sempre se
achara oculto por detrás de toda figura divina, como seu núcleo. Fundamentalmente, isso constituía um
retorno aos primórdios históricos da idéia de Deus. Agora que este era uma figura isolada, as relações do
homem com ele podiam recuperar a intimidade e a intensidade do relacionamento do filho com o pai.
Mas, já que se fizera tanto pelo próprio pai, desejava-se obter uma recompensa, ou, pelo menos, ser o
seu filho bem amado, o seu Povo Escolhido. Muito mais tarde, a piedosa América reivindicou ser o
‘Próprio País de Deus’, e, com referência a uma das formas pelas quais os homens adoram a divindade,
essa reivindicação é indubitavelmente válida.
As idéias religiosas acima resumidas naturalmente passaram por um longo processo de
desenvolvimento, e diversas civilizações a elas aderiram em diversas fases. Isolei uma dessas fases que
corresponde aproximadamente à forma final assumida por nossa atual civilização branca e cristã. É fácil
perceber que nem todas as partes desse quadro concordam igualmente bem umas com as outras, que
nem todas as perguntas que têm premência de resposta a recebem, e que é difícil pôr de lado a
contradição da experiência cotidiana. Não obstante, tal como são, essas idéias - idéias religiosas no
sentido mais amplo - são prezadas como o mais precioso bem da civilização, como a coisa mais preciosa
que ela tem a oferecer a seus participantes. São muito mais altamente prezadas do que todos os
artifícios para conquistar tesouros da terra, prover os homens com o sustento, evitar suas doenças, e
assim por diante. As pessoas sentem que a vida não seria tolerável se não ligassem a essas idéias o
valor que é para elas reivindicado. E é aqui que surge a questão: o que são essas idéias à luz da
psicologia? De onde derivam a estima em que são tidas? E, para dar mais um tímido passo, qual é seu
valor real?
IV
Uma investigação que progride como um monólogo, sem interrupção, não está inteiramente livre
de perigos. Facilmente, fica-se tentado a pôr de lado pensamentos que nela ameaçam irromper, e, em
troca, fica-se com uma sensação de incerteza que, no final, se tenta manter submissa por uma decisão
radical. Imaginarei, portanto, que tenho um opositor que acompanha meus argumentos com desconfiança
e, aqui e ali, permitirei que interponha algumas observações.
Escuto-o dizer: ‘Você empregou repetidamente as expressões “a civilização cria essas idéias
religiosas, “a civilização as coloca à disposição de seus participantes”. Há nisso algo que me soa
estranho. Não posso dizer por que razão, mas não soa tão natural quanto dizer que a civilização dos
produtos do trabalho, ou sobre os direitos referentes às mulheres e crianças’.
Ainda assim, penso que se justifica expressar-me dessa maneira. Tentei demonstrar que as
idéias religiosas surgiram da mesma necessidade de que se originaram todas as outras realizações da
civilização, ou seja, da necessidade de defesa contra a força esmagadoramente superior da natureza. A
isso acrescentou-se um segundo motivo: o impulso a retificar as deficiências da civilização, que se faziam
sentir penosamente. Ademais, é especialmente apropriado dizer que a civilização fornece ao indivíduo
essas idéias, porque ele já as encontra lá; são-lhe presenteadas já prontas, e ele não seria capaz de
descobri-las por si mesmo. Aquilo em que ele está ingressando constitui a herança de muitas gerações, e
ele a assume tal como faz com a tabuada de multiplicar, a geometria, e outras coisas semelhantes. Há,
na realidade, uma diferença nisso, mas ela reside em outro lugar e ainda não posso examiná-la. A
sensação de estranheza que você menciona, talvez se deva em parte ao fato de esse corpo de idéias
religiosas ser geralmente apresentado como revelação divina. Contudo, essa própria apresentação faz
parte do sistema religioso e ignora inteiramente o desenvolvimento histórico conhecido dessas idéias e
suas diferenças em épocas e civilizações diferentes.
‘Temos aqui outro ponto, que me parece ser mais importante. Você argumenta que a
humanização da natureza deriva da necessidade de pôr fim à perplexidade e ao desamparo do homem
frente a suas forças temíveis, de entrar em relação com elas e, finalmente, de influenciá-las. Mas uma
motivação desse tipo parece supérflua. O homem primitivo não tem escolha, não dispõe de outra maneira
de pensar. É-lhe natural,algo inato, por assim dizer, projetar exteriormente sua existência para o mundo e
encarar todo acontecimento que observa como manifestação de seres que, no fundo, são semelhantes a
ele próprio. É seu único método de compreensão. E de modo algum trata-se de algo auto-evidente, mas,
pelo contrário, de uma coincidência notável, que, cedendo assim à sua disposição natural, consegue
satisfazer uma de suas maiores necessidades’.
Não acho isso tão notável. Imagina você que o pensamento não possui motivos práticos, que é
simplesmente a expressão de uma curiosidade desinteressada? Isso, certamente, é algo muito
improvável. Acredito antes que, quando o homem personifica as forças da natureza, está mais uma vez
seguindo um modelo infantil. Ele aprendeu, das pessoas de seu primeiro ambiente, que a maneira de
influenciá-las é estabelecer um relacionamento com elas; assim, mais tarde, tendo o mesmo fim em vista,
trata tudo o mais com que se depara da mesma maneira por que tratou aquelas pessoas. Assim, não
contradigo sua observação descritiva; é, de fato, natural ao homem personificar tudo o que deseja
compreender, a fim de, posteriormente, controlá-lo (a dominação psíquica como preparação para a
dominação física), mas forneço, além disso, um motivo e uma gênese para essa peculiaridade do pensar
humano.
‘Mas ainda há um terceiro ponto. Você tratou anteriormente da origem da religião, em seu livro
Totem e Tabu [1912-13]. Lá, porém, ela aparecia sob uma luz diferente. Tudo era o relacionamento filhopai. Deus era o pai exaltado, e o anseio pelo pai constituía a raiz da necessidade de religião. Desde
então, segundo parece, você descobriu o fator da fraqueza e do desamparo humanos, ao qual, na
verdade, o principal papel na formação da religião é geralmente atribuído, e agora transpõe tudo que foi
outrora o complexo paterno em função do desamparo. Posso lhe pedir que explique essa
transformação?’
Com prazer. Estava esperando esse convite. Contudo, trata-se realmente de uma
transformação? Em Totem e Tabu, não era meu propósito explicar a origem da religião, mas apenas do
totemismo. Poderá você, segundo qualquer dos pontos de vista que lhe são conhecidos, explicar o fato
de que a primeira forma pela qual a divindade protetora se revelou aos homens teve de ser a de um
animal, que tenha havido uma proibição contra matar e comer esse animal, e que, não obstante, o
costume solene tenha sido matá-lo e comê-lo comunalmente uma vez por ano? É exatamente isso que
acontece no totemismo. E dificilmente tem propósito argumentar se o totemismo deve ser chamado de
religião. Ele possui vinculações estreitas com as posteriores religiões de deuses. Os animais totêmicos
tornam-se os animais sagrados dos deuses, e as mais antigas, mas fundamentais restrições morais - as
proibições contra o assassinato e o incesto - originam-se do totemismo. Aceite você ou não as
conclusões de Totem e Tabu, espero que admita que uma série de fatos notáveis e desvinculados são
nele reunidos num todo coerente.
A questão de saber por que, a longo prazo, o deus animal não bastou, e foi substituído por um
deus humano, mal foi abordada em Totem e Tabu, e outros problemas concernentes à formação da
religião não foram, de modo algum, mencionados no livro. Considera você uma limitação desse tipo a
mesma coisa que uma negação? Meu trabalho constitui um bom exemplo do isolamento estrito da
contribuição específica que o exame psicanalítico pode efetuar quanto à solução do problema da religião.
Se agora estou tentando acrescentar a outra parte, menos profundamente oculta, acho que você não
deveria me acusar de estar me contradizendo, tal como antes me acusou de ser unilateral. Naturalmente,
é meu dever apontar os vínculos de união entre o que disse antes e o que apresento agora, entre os
motivos manifestos, entre o complexo paterno e o desamparo e a necessidade de proteção do homem.
Essas vinculações não são difíceis de encontrar. Consistem na relação do desamparo da criança
com o desamparo do adulto, que a continua, de maneira que, como era de esperar, os motivos para a
formação da religião que a psicanálise revela agora, mostram ser os mesmos que a contribuição infantil
aos motivos manifestos.Transportemo-nos para a vida mental de uma criança. Você se recorda da
escolha de objeto de acordo com o tipo anaclítico [ligação], de que fala a psicanálise? A libido segue aí
os caminhos das necessidades narcísicas e liga-se aos objetos que asseguram a satisfação dessas
necessidades. Desta maneira, a mãe, que satisfaz a fome da criança, torna-se seu primeiro objeto
amoroso e, certamente, também sua primeira proteção contra todos os perigos indefinidos que a
ameaçam no mundo externo - sua primeira proteção contra a ansiedade, podemos dizer.
Nessa função [de proteção] a mãe é logo substituída pelo pai mais forte, que retém essa posição
pelo resto da infância. Mas a atitude da criança para com o pai é matizada por uma ambivalência
peculiar. O próprio pai constitui um perigo para a criança, talvez por causa do relacionamento anterior
dela com a mãe. Assim, ela o teme tanto quanto anseia por ele e o admira. As indicações dessa
ambivalência na atitude para com o pai estão profundamente impressas em toda religião, tal como foi
demonstrado em Totem e Tabu. Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a
permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes
superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio
os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção.
Assim, seu anseio por um pai constitui um motivo idêntico à sua necessidade de proteção contra as
conseqüências de sua debilidade humana. É a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas
feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer - reação que é,
exatamente, a formação da religião. Mas não é minha intenção levar mais adiante a investigação do
desenvolvimento da idéia de Deus; aquilo em que aqui estamos interessados é o corpo acabado das
idéias religiosas, tal como transmitido pela civilização ao indivíduo.
V
Retomemos o fio de nossa investigação. Qual é, então, a significação psicológica das idéias
religiosas e sob que título devemos classificá-las? A pergunta de modo algum é fácil de ser
imediatamente respondida. Após rejeitar uma série de formulações, nos fixaremos na que se segue. As
idéias religiosas são ensinamentos e afirmações sobre fatos e condições da realidade externa (ou
interna) que nos dizem algo que não descobrimos por nós mesmos e que reivindicam nossa crença. Visto
nos fornecerem informações sobre o que é mais importante e interessante para nós na vida, elas são
particular e altamente prezadas. Quem quer que nada conheça a respeito delas é muito ignorante, e
todos que as tenham acrescentado a seu conhecimento podem considerar-se muito mais ricos.
Existem, naturalmente, muitos ensinamentos desse tipo sobre as mais variadas coisas do
mundo. Toda lição escolar está cheia deles. Consideremos a geografia. É-nos dito que a cidade de
Constança fica sobre o Bodensee. Uma canção estudantil acrescenta: ‘se não acredita, vá lá e veja’.
Suponhamos que eu estive lá e que pude confirmar que de fato aquela encantadora cidade fica à beira
de uma vasta extensão de água, chamada de Bodensee por todos os que vivem em torno dela; então,
me convenci totalmente da correção daquela afirmação geográfica. Com respeito a isso, recordo-me de
outra experiência, bastante notável. Já era homem maduro quando pela primeira vez me encontrei sobre
a colina da Acrópole, em Atenas, entre as ruínas do templo, contemplando o mar azul. Uma sensação de
espanto mesclava-se à minha alegria. Ela parecia dizer: ‘Então é realmente verdade, tal como
aprendemos na escola!’ Quão superficial e fraca deve ter sido a crença que então adquirira na verdade
real do que ouvira, se agora podia ficar tão espantado! Não darei, porém, demasiada ênfase ao
significado dessa experiência, pois meu espanto poderia ter tido outra explicação, que não me ocorreu na
ocasião, e que é de natureza inteiramente subjetiva, nada tendo a ver com o caráter especial do lugar.
Todo ensinamento como este, então, exige uma crença em seu conteúdo, mas não sem produzir
fundamentos para sua reivindicação. Esses ensinamentos são apresentados como o resultado resumido
de um processo mais extenso de pensamento, baseado na observação e, decerto, também em
inferências. Se alguém desejar passar por esse processo, em vez de aceitar seu resultado, eles lhe
mostrarão como fazê-lo. Ademais, é-nos dada sempre, em acréscimo, a fonte do conhecimento que é por
eles transmitido, quando essa fonte não é auto-evidente, como no caso das afirmações geográficas. Por
exemplo, a Terra tem a forma de uma esfera; as provas aduzidas para isso são o experimento do
pêndulo de Foucault, o comportamento do horizonte e a possibilidade de circunavegá-la. Visto ser
impraticável, como qualquer pessoa interessada percebe, enviar crianças em idade escolar numa viagem
em redor do mundo, satisfazemo-nos em permitir que o que é ensinado na escola seja aceito com
confiança; sabemos, no entanto, que a via para a aquisição de uma convicção pessoal permanece
aberta.
Tentemos aplicar o mesmo teste aos ensinamentos da religião. Quando indagamos em que se
funda sua reivindicação a ser acreditada, deparamo-nos com três respostas, que se harmonizam de
modo excepcionalmente mau umas com as outras. Em primeiro lugar, os ensinamentos merecem ser
acreditados porque já o eram por nossos primitivos antepassados; em segundo, possuímos provas que
nos foram transmitidas desde esses mesmos tempos primevos; em terceiro, é totalmente proibido
levantar a questão de sua autenticidade. Em épocas anteriores, uma tal presunção era punida com os
mais severos castigos, e ainda hoje a sociedade olha com desconfiança para qualquer tentativa de
levantar novamente a questão.
Esse terceiro ponto está fadado a despertar nossas mais fortes suspeitas. Afinal de contas, uma
proibição desse tipo só pode ter uma razão - que a sociedade se acha bastante cônscia da insegurança
da reivindicação que faz em prol de suas doutrinas religiosas. Caso contrário, decerto estaria pronta a
colocar os dados necessários à disposição de quem quer que desejasse chegar à convicção. Assim
sendo, é com uma sensação de desconfiança difícil de apaziguar que passamos ao exame dos outros
dois fundamentos de prova. Temos que acreditar porque nossos antecipassados acreditaram. Mas
nossos ancestrais eram muito mais ignorantes do que nós. Acreditavam em coisas que hoje não nos é
possível aceitar, e ocorre-nos a possibilidade de que as doutrinas da religião possam pertencer também a
essa classe. As provas que nos legaram estão registradas em escritos que, eles próprios, trazem todos
os sinais de infidedignidade. Estão cheios de contradições, revisões e falsificações e, mesmo onde falam
de confirmações concretas, elas próprias acham-se inconfirmadas. Não adianta muito asseverar que
suas palavras, ou inclusive apenas seu conteúdo, se originam da revelação divina, porque essa asserção
é, ela própria, uma das doutrinas cuja autenticidade está em exame, e nenhuma proposição pode ser
prova de si mesma.
Chegamos assim à singular conclusão de que, de todas as informações proporcionadas por
nosso patrimônio cultural, as menos autenticadas constituem precisamente os elementos que nos
poderiam ser da maior importância, ter a missão de solucionar os enigmas do universo e nos reconciliar
com os sofrimentos. Não poderíamos ser levados a aceitar algo de tão pouco interesse para nós quanto o
fato de as baleias darem à luz filhotes, em vez de porem ovos, se não se pudesse apresentar provas
melhores do que isso.
Esse estado de coisas é, em si próprio, um problema psicológico bastante notável. E que
ninguém imagine que o que declarei a respeito da impossibilidade de provar a verdade das doutrinas
religiosas contenha algo de novo. Isso já foi sentido em todas as épocas, e, indubitavelmente, também
pelos ancestrais que nos transmitiram esse legado. Muitos deles provavelmente nutriram as mesmas
dúvidas que nós, mas a pressão a eles imposta foi forte demais para que se atrevessem a expressá-las.
E, visto que incontáveis pessoas foram atormentadas por dúvidas semelhantes e se esforçaram por
reprimi-las, por acharem que era seu dever acreditar, muitos intelectos brilhantes sucumbiram a esse
conflito e muitos caracteres foram prejudicados pelas transigências com que tentaram encontrar uma
saída para ele.
Se todas as provas apresentadas em prol da autenticidade dos ensinamentos religiosos se
originam do passado, é natural que se passe o olhar em volta e se veja se o presente, sobre o qual é
mais fácil formar julgamentos, não será capaz de fornecer provas desse tipo. Se, por esse meio,
alcançássemos êxito em liberar da dúvida mesmo uma parte isolada do sistema religioso, a sua
totalidade ganharia imensamente em credibilidade. Os processos dos espiritualistas vêm a nosso
encontro nesse ponto; eles estão convencidos da sobrevivência da alma individual e procuram
demonstrar-nos, para além de qualquer dúvida, a verdade dessa doutrina religiosa. Lamentavelmente,
não conseguem refutar o fato de o aparecimento e as palavras dos espíritos serem simplesmente
produtos de sua própria atividade mental. Invocaram os espíritos dos maiores homens e dos mais
eminentes pensadores, mas todos os pronunciamentos e informações que deles receberam foram tão
tolos e tão deploravelmente sem sentido que neles nada se pode encontrar de crível, exceto a
capacidade dos espíritos em se adaptarem ao círculo de pessoas que os conjuraram. Devo agora
mencionar duas tentativas que foram feitas - ambas as quais transmitem a impressão de serem esforços
desesperados - para fugir ao problema. Uma, de natureza violenta, é antiga; a outra, sutil e moderna. A
primeira é o ‘Credo quia absurdum’, do primeiro Padre da Igreja. Sustenta que as doutrinas religiosas
estão fora da jurisdição da razão - acima dela. Sua verdade deve ser sentida interiormente, e não
precisam ser compreendidas. Mas esse Credo só tem interesse como autoconfissão. Como declaração
autorizada, não possui força obrigatória. Devo ser obrigado a acreditar em todos os absurdos? E caso
não, por que nesse em particular? Acima da razão não há tribunal a que apelar. Se a verdade das
doutrinas religiosas depende de uma experiência interior que dá testemunho dessa verdade, o que se
deve fazer com as muitas pessoas que não dispõem dessa rara experiência? Pode-se exigir que todo
homem utilize o dom da razão de que é possuidor, mas não se pode erigir, com base num motivo que
existe apenas para poucos, uma obrigação que se aplique a todos. Se determinado homem obteve uma
convicção inabalável a respeito da verdadeira realidade das doutrinas religiosas, a partir de um estado de
êxtase que o comoveu profundamente, que significação isso tem para os outros?
A segunda tentativa é a efetuada pela filosofia do ‘como se’, que assevera que nossa atividade
de pensamento inclui grande número de hipóteses cuja falta de fundamento e até mesmo absurdeza
compreendemos perfeitamente. São chamadas de ‘ficções’, mas, por várias razões práticas, temos de
nos comportar ‘como se’ nelas acreditássemos. Tal é o caso das doutrinas religiosas, devido à sua
incomparável importância para a manutenção da sociedade humana. Essa linha de argumentação não se
afasta muito do ‘Credo quia absurdum‘, mas penso que a exigência feita pelo argumento do ‘como se’ é
uma exigência que só o filósofo pode apresentar. Um homem cujo pensar não se acha influenciado pelos
artifícios da filosofia nunca poderá aceitá-la; na opinião de tal homem, a admissão de que algo é absurdo
ou contrário à razão não deixa mais nada a ser dito. Não se pode esperar dele que, precisamente ao
tratar de seus interesses mais importantes, abra mão das garantias que exige para todas as suas
atividades comuns. Lembro-me de um de meus filhos que se distinguia, em idade precoce, por uma
positividade particularmente acentuada. Quando estava sendo contada às crianças uma história de fadas
e todas a escutavam com embevecida atenção, ele se levantava e perguntava: ‘Essa história é
verdadeira?’ Quando se respondia que não, afastava-se com um olhar de desdém. Podemos esperar que
dentro em breve as pessoas se comportem da mesma maneira para com os contos de fadas da religião,
a despeito de tudo o que o ‘como se’ advoga.
Atualmente, porém, elas ainda se conduzem de modo inteiramente diferente e, em tempos
passados, as idéias religiosas, a despeito de sua incontrovertível falta de autenticidade, exerceram a
mais forte influência possível sobre a humanidade. Trata-se de um novo problema psicológico. Devemos
perguntar onde reside a força interior dessas doutrinas e a que devem sua eficácia, independente, como
é, do reconhecimento pela razão.
VI
Acho que preparamos suficientemente o caminho para uma resposta a ambas as perguntas. Ela
será encontrada se voltarmos nossa atenção para a origem psíquica das idéias religiosas. Estas,
proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados de experiência ou resultados finais de
pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O
segredo de sua força reside na força desses desejos. Como já sabemos, a impressão terrificante de
desamparo na infância despertou a necessidade de proteção - de proteção através do amor -, a qual foi
proporcionada pelo pai; o reconhecimento de que esse desamparo perdura através da vida tornou
necessário aferrar-se à existência de um pai, dessa vez, porém, um pai mais poderoso. Assim o governo
benevolente de uma Providência divina mitiga nosso temor dos perigos da vida; o estabelecimento de
uma ordem moral mundial assegura a realização das exigências de justiça, que com tanta freqüência
permaneceram irrealizadas na civilização humana; e o prolongamento da existência terrena numa vida
futura fornece a estrutura local e temporal em que essas realizações de desejo se efetuarão. As
respostas aos enigmas que tentam a curiosidade do homem, tais como a maneira pela qual o universo
começou ou a relação entre corpo e mente, são desenvolvidas em conformidade com as suposições
subjacentes a esse sistema. Constitui alívio enorme para a psique individual se os conflitos de sua
infância, que surgem do complexo paterno - conflitos que nunca superou inteiramente -, são dela
retirados e levados a uma solução universalmente aceita.
Quando digo que todas essas coisas são ilusões, devo definir o significado da palavra. Uma
ilusão não é a mesma coisa que um erro; tampouco é necessariamente um erro. A crença de Aristóteles
de que os insetos se desenvolvem do esterco (crença a que as pessoas ignorantes ainda se aferram) era
um erro; assim como a crença de uma geração anterior de médicos de que a tabes dorsalis constitui
resultado de excessos sexuais. Seria incorreto chamar esses erros de ilusões. Por outro lado, foi uma
ilusão de Colombo acreditar que descobriu um novo caminho marítimo para as Índias. O papel
desempenhado por seu desejo nesse erro é bastante claro. Pode-se descrever como ilusão a asserção
feita por certos nacionalistas de que a raça indo-germânica é a única capaz de civilização, ou a crença,
que só foi destruída pela psicanálise, de que as crianças são criaturas sem sexualidade. O que é
característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos. Com respeito a isso, aproximam-se
dos delírios psiquiátricos, mas deles diferem também, à parte a estrutura mais complicada dos delírios.
No caso destes,enfatizamos como essencial o fato de eles se acharem em contradição com a realidade.
As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em contradição com a
realidade. Por exemplo, uma moça de classe média pode ter a ilusão de que um príncipe aparecerá e se
casará com ela. Isso é possível, e certos casos assim já ocorreram. Que o Messias chegue e funde uma
idade de ouro é muito menos provável. Classificar-se essa crença como ilusão ou como algo análogo a
um delírio dependerá da própria atitude pessoal. Exemplos de ilusões que mostraram ser verdadeiras
não são fáceis de encontrar, mas a ilusão dos alquimistas de que todos os metais podiam ser
transformados em ouro poderia ser um deles. O desejo de possuir uma grande quantidade de ouro, tanto
ouro quanto possível, foi, é verdade, em grande parte arrefecido por nosso conhecimento atual dos
fatores determinantes da riqueza, mas a química não mais encara a transmutação dos metais em ouro
como impossível. Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma realização de desejo
constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a
realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação.
Havendo estabelecido desse modo nossas coordenadas, retornemos à questão das doutrinas
religiosas. Podemos agora repetir que todas elas são ilusões e insuscetíveis de prova. Ninguém pode ser
compelido a achá-las verdadeiras, a acreditar nelas. Algumas são tão improváveis, tão incompatíveis com
tudo que laboriosamente descobrimos sobre a realidade do mundo, que podemos compará-las - se
consideramos de forma apropriada as diferenças psicológicas - a delírios. Do valor de realidade da
maioria delas não podemos ajuizar; assim como não podem ser provadas, também não podem ser
refutadas. Conhecemos ainda muito pouco para efetuar sua abordagem crítica. Os enigmas do universo
só lentamente se revelam à nossa investigação; existem muitas questões a que a ciência atualmente não
pode dar resposta. Mas o trabalho científico constitui a única estrada que nos pode levar a um
conhecimento da realidade externa a nós mesmos. É, mais uma vez, simplesmente uma ilusão esperar
qualquer coisa da intuição e da introspecção; elas nada nos podem dar, a não ser detalhes sobre nossa
própria vida mental, detalhes difíceis de interpretar, nunca qualquer informação sobre as perguntas que a
doutrina religiosa acha tão fácil responder. Seria insolente permitir que nossa própria vontade arbitrária
ingressasse na questão e, de acordo com nossa estimativa pessoal, declarasse esta ou aquela parte do
sistema religioso como mais ou menos aceitável. Tais questões são momentosas demais para isso;
poderiam ser chamadas de demasiadamente sagradas.Nesse ponto, é de esperar que se encontre uma
objeção. ‘Bem, então, se mesmos os céticos impenitentes admitem que as asserções da religião não
podem ser refutadas pela razão, por que não devo acreditar nelas, já que possuem tanta coisa de seu
lado - a tradição, a concordância da humanidade, e todas as consolações que oferecem?’ De fato, por
que não? Assim como ninguém pode ser forçado a crer, também ninguém pode ser forçado a descrer.
Mas não nos permitamos ficar satisfeitos em nos enganarmos que argumentos desse tipo nos conduzirão
pela estrada do pensamento correto. Se algum dia já houve um exemplo de desculpa esfarrapada, temolo aqui. Ignorância é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo pode ser derivado dela. Em outros
assuntos, nenhuma pessoa sensata se comportaria tão irresponsavelmente ou se contentaria com
fundamentos tão débeis para suas opiniões e para a posição que assume. É apenas nas coisas mais
elevadas e sagradas que se permite fazê-lo. Na realidade, trata-se apenas de tentativas de fingir para
nós mesmos ou para outras pessoas que ainda nos achamos firmemente ligados à religião, quando há
muito tempo já nos apartamos dela. Quanto a questões de religião, as pessoas são culpadas de toda
espécie possível de desonestidade e mau procedimento intelectual. Os filósofos distendem tanto o
sentido das palavras, que elas mal retêm algo de seu sentido original. Dão o nome de ‘Deus’ a alguma
vaga abstração que criaram para si mesmos e, assim, podem posar perante todos como deístas, como
crentes em Deus, e inclusive gabar-se de terem identificado um conceito mais elevado e puro de Deus,
não obstante significar seu Deus agora nada mais que uma sombra sem substância, sem nada da
vigorosa personalidade das doutrinas religiosas. Os críticos insistem em descrever como ‘profundamente
religioso’ qualquer um que admita uma sensação da insignificância ou impotência do homem diante do
universo, embora o que constitua a essência da atitude religiosa não seja essa sensação, mas o passo
seguinte, a reação que busca um remédio para ela. O homem que não vai além, mas humildemente
concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é,
pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra.
Avaliar o valor de verdade das doutrinas religiosas não se acha no escopo da presente
investigação. Basta-nos que as tenhamos reconhecido como sendo, em sua natureza psicológica,
ilusões. Contudo, não somos obrigados a ocultar o fato de que essa descoberta também influencia
fortemente nossa atitude para com a questão que a muitos deve parecer a mais importante de todas.
Sabemos aproximadamente em que períodos, e por que tipo de homens, as doutrinas religiosas foram
criadas. Se, ademais, descobrirmos os motivos que conduziram a isso, nossa atitude para com o
problema da religião experimentará um acentuado deslocamento. Dir-nos-emos que seria muito bom se
existissem um Deus que tivesse criado o mundo, uma Providência benevolente, uma ordem moral no
universo e uma vida posterior; constitui, porém, fato bastante notável que tudo isso seja exatamente
como estamos fadados a desejar que seja. E seria ainda mais notável se nossos lamentáveis, ignorantes
e espezinhados ancestrais tivessem conseguido solucionar todos esses difíceis enigmas do universo.
VII
Tendo identificado as doutrinas religiosas como ilusões, somos imediatamente defrontados por
outra questão: não poderão ser de natureza semelhante outros predicados culturais de que fazemos alta
opinião e pelos quais deixamos nossas vidas serem governadas? Não devem as suposições que
determinam nossas regulamentações políticas serem chamadas também de ilusões? E não acontece
que, em nossa civilização, as relações entre os sexos sejam perturbadas por ilusão erótica ou um certo
número dessas ilusões? E, uma vez despertada nossa suspeita, não nos esquivaremos de também
perguntar se nossa convicção de que podemos aprender algo sobre a realidade externa pelo emprego da
observação e do raciocínio no trabalho científico, possui um fundamento melhor. Nada deveria impedirnos de dirigir a observação para nossos próprios eus e de aplicar o pensamento à crítica dele próprio.
Nesse campo, uma série de investigações se abre a nossa frente, cujos resultados não podem deixar de
ser decisivos para a construção de uma ‘Weltanschauung’. Imaginamos, ademais, que um esforço desse
tipo não seria vão e que, pelo menos em parte, justificaria nossas suspeitas. O autor, porém, não dispõe
dos meios para empreender tarefa tão abrangente; necessita confinar seu trabalho ao seguimento de
apenas uma dessas ilusões, a saber, a da religião.
Aqui, a alta voz de nosso opositor nos interrompe. É-nos exigido que expliquemos nossa má
ação:
‘Os interesses arqueológicos são, indubitavelmente, bastante dignos de elogios, mas ninguém
empreende uma escavação se, assim procedendo, solapar as moradias de pessoas vivas, de maneira
que aquelas aluam e soterrem estas sob suas ruínas. As doutrinas da religião não constituem um tema
sobre o qual se possa tergiversar, como outro qualquer. Nossa civilização se ergue sobre elas e a
manutenção da sociedade humana se baseia na crença da maioria dos homens na verdade dessas
doutrinas. Caso se lhes ensine que não existe um Deus todo-poderoso e justo, nem ordem mundial
divina, nem vida futura, se sentirão isentos de toda e qualquer obrigação de obedecer aos preceitos da
civilização. Sem inibição ou temor, seguirão seus instintos associais e egoístas, e procurarão exercer seu
poder; o Caos, que banimos através de muitos milhares de anos de trabalho civilizatório, mais uma vez
retornará. Mesmo que soubéssemos, e pudéssemos provar, que a religião não se acha na posse da
verdade, deveríamos ocultar esse fato e nos comportarmos da maneira prescrita pela filosofia do ‘como
se’, e isso no interesse da preservação de todos nós. E, à parte o perigo do empreendimento, seria uma
crueldade sem propósito. Não poucas pessoas encontram sua única consolação nas doutrinas religiosas,
e só conseguem suportar a vida com o auxílio delas. Você as despojaria de seu apoio, sem ter nada
melhor a lhes oferecer em troca. Admite-se que, até agora, a ciência ainda não conseguiu muita coisa,
mas, mesmo que progredisse mais, não bastaria para o homem. Este possui necessidades imperiosas de
outro tipo, que jamais poderiam ser satisfeitas pela frígida ciência, sendo muito estranho - na verdade, o
auge da incoerência - que um psicólogo, que sempre insistiu em que a inteligência, quando comparada à
vida dos instintos, desempenha apenas um papel de menor vulto nos assuntos humanos, tente agora
despojar a humanidade de uma preciosa realização de desejos e proponha compensá-la disso com um
alimento intelectual’.
Quantas acusações de uma só vez! Não obstante, estou preparado para refutá-las e, mais ainda,
afirmo que a civilização corre um risco muito maior se mantivermos nossa atual atitude para com a
religião do que se a abandonarmos.
Contudo, mal sei por onde começar minha réplica. Talvez sirva de garantia o fato de que eu
mesma encare meu empreendimento como completamente inócuo e livre de riscos. Aqui, não sou eu
quem está supervalorizando o intelecto. Se as pessoas são como meus opositores as descrevem - e não
gostaria de contradizê-los -, então não há perigo de que a crença de um devoto seja vencida pelos meus
argumentos, e ele, privado de sua fé. Além disso, não disse nada que outros homens, melhores do que
eu, já não tenham dito antes de mim, de modo muito mais completo, energético e impressivo. Seus
nomes são bem conhecidos e não vou citá-los porque não quero dar a impressão de estar procurando
colocar-me entre eles. Tudo o que fiz - e isso constitui a única coisa nova em minha exposição - foi
acrescentar uma certa base psicológica às críticas de meus grandes predecessores. É difícil esperar que
precisamente esse acréscimo produza o efeito que foi negado àqueles esforços anteriores. Não há
dúvida de que aqui se me poderia perguntar qual a vantagem de escrever isso, se estou certo de que
será ineficaz. Retornarei a esse ponto mais tarde.
Sou a única pessoa a quem essa publicação pode prejudicar. Serei obrigado a ouvir as mais
desagradáveis censuras por causa de minha superficialidade, estreiteza de espírito e falta de idealismo
ou compreensão dos mais altos interesses da humanidade. Por um lado, porém, tais admoestações não
são novas para mim, e, por outro, se um homem já aprendeu na juventude a se sobrepor à desaprovação
de seus contemporâneos, que lhe pode ela importar na velhice, quando ele está certo de que em breve
se achará além do alcance de todo favor ou desfavor? Em épocas passadas, era diferente. Então,
declarações como as minhas acarretavam um seguro cerceamento da existência terrena de quem as
proferisse e uma aceleração efetiva da oportunidade de conseguir uma experiência pessoal do além.
Mas, repito, esses tempos já passaram e, atualmente, os escritos desse tipo não trazem para seu autor
mais perigo do que para seus leitores. O máximo que pode acontecer é que a tradução ou distribuição de
seu livro sejam proibidas num país ou noutro, e, precisamente, é natural, num país que esteja convencido
do alto padrão de sua cultura. Mas se alguém faz um apelo em favor da renúncia aos desejos e da
aquiescência ao Destino, tem que ser capaz de tolerar também esse tipo de prejuízo.
Outra questão que me ocorreu foi a de saber se, no fim das contas, a publicação dessa obra não
poderia causar danos. Não a uma pessoa, mas a uma causa, a causa da psicanálise, pois não se pode
negar que a psicanálise é criação minha e que se deparou com muita desconfiança e má vontade. Se
agora me apresento com esses pronunciamentos desagradáveis, as pessoas estarão prontas a efetuar
um deslocamento de minha pessoa para a psicanálise: ‘Agora estamos vendo’, dirão, ‘aonde a
psicanálise conduz. A máscara caiu; conduz a uma negação de Deus e de um ideal moral, como sempre
desconfiamos. Para nos manter afastados dessa descoberta é que fomos iludidos a pensar que a
psicanálise não possuía Weltanschauung e que jamais poderia elaborar uma.’
Um clamor desse tipo me seria realmente desagradável, por causa de meus muitos
colaboradores, alguns dos quais, de modo algum, partilham de minha atitude para com os problemas da
religião. A psicanálise, porém, já enfrentou muitas tempestades e terá agora de arrostar mais essa. Na
realidade, a psicanálise constitui um método de pesquisa, um instrumento imparcial, tal como o cálculo
infinitesimal, por assim dizer. Se um físico descobrisse, com o auxílio deste último, que ao fim de certo
tempo a Terra seria destruída, ainda assim hesitaríamos em atribuir tendências destrutivas ao próprio
cálculo e, portanto, em proscrevê-lo. Nada do que eu disse aqui sobre o valor de verdade das religiões
precisou do apoio da psicanálise; já foi dito por outros muito antes que a análise surgisse. Se a aplicação
do método psicanalítico torna possível encontrar um novo argumento contra as verdades da religião, tant
pis para a religião, mas os defensores desta, com o mesmo direito, poderão fazer uso da psicanálise para
dar valor integral à significação emocional das doutrinas religiosas. Prossigamos com nossa defesa. A
religião, é claro, desempenhou grandes serviços para a civilização humana. Contribuiu muito para domar
os instintos associais. Mas não o suficiente. Dominou a sociedade humana por muitos milhares de anos e
teve tempo para demonstrar o que pode alcançar. Se houvesse conseguido tornar feliz a maioria da
humanidade, confortá-la, reconciliá-la com a vida, e transformá-la em veículo de civilização, ninguém
sonharia em alterar as condições existentes. Mas, em vez disso, o que vemos? Vemos que um número
estarrecedoramente grande de pessoas se mostram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a
como um jugo do qual gostariam de se libertar; e que essas pessoas fazem tudo que se acha em seu
poder para alterar a civilização, ou então vão tão longe em sua hostilidade contra ela, que nada têm a ver
com a civilização ou com uma restrição do instinto. Nesse ponto, será objetado contra nós que esse
estado de coisas se deve ao próprio fato de a religião ter perdido parte de sua influência sobre as massas
humanas, exatamente por causa do deplorável efeito dos progressos da ciência. Tomaremos nota dessa
admissão e do motivo que lhe é dado; dela faremos uso posteriormente para nossos próprios fins, mas a
objeção em si não possui força.
É duvidoso que os homens tenham sido em geral mais felizes na época em que as doutrinas
religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais certamente não foram. Sempre souberam
como externalizar os preceitos da religião e anular assim suas intenções. Os sacerdotes, cujo dever era
assegurar a obediência à religião, foram a seu encontro nesse aspecto. A bondade de Deus deve apor
uma mão refreadora à Sua justiça. Alguém peca; faz depois um sacrifício ou se penitencia e fica livre
para pecar de novo. A introspectividade russa atingiu o máximo ao concluir que o pecado é indispensável
à fruição de todas as bênçãos da graça divina, de maneira que, no fundo, o pecado é agradável a Deus.
Não é segredo que os sacerdotes só puderam manter as massas submissas à religião pela efetivação de
concessões tão grandes quanto essas à natureza instintual do homem. Assim, concluíram: só Deus é
forte e bom; o homem é fraco e pecador. Em todas as épocas, a imoralidade encontrou na religião um
apoio não menor que a moralidade. Se as realizações da religião com respeito à felicidade do homem,
susceptibilidade à cultura e controle moral não são melhores que isso, não pode deixar de surgir a
questão de saber se não estamos superestimando sua necessidade para a humanidade e se fazemos
bem em basearmos nela nossas exigências culturais.Consideremos a situação inequívoca do presente.
Escutamos a admissão de que a religião não mais possui sobre o povo a mesma influência que
costumava ter.(Estamos aqui interessados na civilização européia cristã.) E isso não aconteceu por que
suas promessas tenham diminuído, mas porque as pessoas as acham menos críveis. Admitamos que o
motivo - embora talvez não o único - para essa mudança seja o aumento do espírito científico nos
estratos mais elevados da sociedade humana. A crítica desbastou o valor probatório dos documentos
religiosos, a ciência natural demonstrou os erros neles existentes, e a pesquisa comparativa ficou
impressionada pela semelhança fatal existente entre as idéias religiosas que reverenciamos e os
produtos mentais de povos e épocas primitivos.
O espírito científico provoca uma atitude específica para com os assuntos do mundo; perante os
assuntos religiosos, ele se detém um instante, hesita, e, finalmente, cruza-lhes também o limiar. Nesse
processo, não há interrupção; quanto maior é o número de homens a quem os tesouros do conhecimento
se tornam acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa, a princípio somente de seus
ornamentos obsoletos e objetáveis, mas, depois, também de seus postulados fundamentais. Os
americanos que instituíram o ‘julgamento do macaco’ em Dayton
mostraram-se, somente eles,
coerentes. Em todas as outras partes a transição inevitável é realizada através de meias-medidas e
insinceridades.
A civilização pouco tem a temer das pessoas instruídas e dos que trabalham com o cérebro.
Neles, a substituição dos motivos religiosos para o comportamento civilizado por outros motivos,
seculares, se daria discretamente; ademais, essas pessoas são em grande parte, elas próprias, veículos
de civilização. Mas a coisa já é outra com a grande massa dos não instruídos e oprimidos, que possuem
todos os motivos para serem inimigos da civilização. Enquanto não descobrirem que as pessoas não
acreditam mais em Deus, tudo correrá bem. Mas eles o descobrirão, infalivelmente, mesmo que este meu
trabalho não seja publicado. E estarão prontos a aceitar os resultados do pensamento científico, mas sem
que neles se tenha dado a modificação que o pensamento científico provoca nas pessoas. Não existe
aqui perigo de que a hostilidade dessas massas à civilização se arremesse contra o ponto fraco que
encontraram naquela que lhe impõe tarefas? Se a única razão pela qual não se deve matar nosso
próximo é porque Deus proibiu e nos punirá severamente por isso nesta vida ou na vida futura, então,
quando descobrirmos que não existe Deus e que não precisamos temer Seu castigo, certamente
mataremos o próximo sem hesitação e só poderemos ser impedidos de fazê-lo pela força terrena. Desse
modo, ou essas massas perigosas terão de ser muito severamente submetidas e com todo cuidado
mantidas afastadas de qualquer possibilidade de despertar intelectual, ou então o relacionamento entre
civilização e religião terá de sofrer uma revisão fundamental.
VIII
Poder-se-ia pensar que não haveria dificuldades especiais na maneira de executar essa última
proposta. É verdade que ela envolveria uma certa parte de renúncia, mas talvez se ganhasse mais do
que se perdesse, e um grande perigo seria evitado. No entanto, todos se assustam com isso, como se
isso fosse expor a civilização a um perigo ainda maior. Quando São Bonifácio pôs abaixo a árvore que
os saxões veneravam como sendo sagrada, os assistentes esperavam que algum acontecimento temível
se seguisse ao sacrilégio. Mas nada aconteceu, e os saxões aceitaram o batismo.
Quando a civilização formulou o mandamento de que o homem não deve matar o próximo a
quem odeia, que se acha em seu caminho ou cuja propriedade cobiça, isso foi claramente efetuado no
interesse comunal do homem, que, de outro modo, não seria praticável, pois o assassino atrairia para si a
vingança dos parentes do morto e a inveja de outros, que, dentro de si mesmos, se sentem tão inclinados
quanto ele a tais atos de violência. Assim, não desfrutaria de sua vingança ou de seu roubo por muito
tempo, mas teria toda possibilidade de ele próprio em breve ser morto. Mesmo que se protegesse contra
seus inimigos isolados através de uma força ou cautela extraordinárias, estaria fadado a sucumbir a uma
combinação de homens mais fracos. Se uma combinação desse tipo não se efetuasse, o homicídio
continuaria a ser praticado de modo infindável e o resultado final seria que os homens se exterminariam
mutuamente. Chegaríamos, entre os indivíduos, ao mesmo estado de coisas que ainda persiste entre
famílias na Córsega, embora, em outros lugares, apenas entre nações. A insegurança da vida, que
constitui um perigo igual para todos, une hoje os homens numa sociedade que proíbe ao indivíduo matar,
e reserva para si o direito à morte comunal de quem quer que viole a proibição. Aqui, então, temos justiça
e castigo.
Mas não damos publicidade a essa explicação racional da proibição do homicídio. Asseveramos
que a proibição foi emitida por Deus. Assim, assumimos a responsabilidade de adivinhar Suas intenções
e descobrimos que Ele também não gosta que os homens se exterminem uns aos outros. Comportandonos dessa maneira, revestimos a proibição cultural de uma solenidade muito especial, mas, ao mesmo
tempo, nos arriscamos a tornar sua observância dependente da crença em Deus. Se voltarmos atrás, ou
seja, se não mais atribuirmos a Deus o que é nossa própria vontade, e nos contentarmos em fornecer a
razão social, então, é verdade, teremos renunciado à transfiguração da proibição cultural, mas também
teremos evitado seu risco. Contudo, ganhamos algo mais. Através de certo tipo de difusão ou infecção, o
caráter de santidade e inviolabilidade - de pertencer a outro mundo, poder-se-ia dizer - espalhou-se de
certas poucas proibições de vulto para todas as outras regulamentações, leis e ordenações culturais.
Nestas, entretanto, a auréola com freqüência não parece cair bem; não apenas se invalidam umas às
outras por fornecerem decisões contrárias em épocas e lugares diferentes como também, à parte isso,
apresentam todos os sinais de inadequação humana. É fácil identificar nelas coisas que só podem ser
produto de uma compreensão míope, de uma expressão de interesses egoisticamente restritos, ou de
uma conclusão baseada em premissas insuficientes. A crítica que não podemos deixar de lhes dirigir
também diminui a um grau muito pouco favorável nosso respeito por outras exigências culturais mais
justificáveis. Visto ser tarefa difícil isolar aquilo que o próprio Deus exigiu, daquilo que pode ter sua
origem remontada à autoridade de um parlamento todo-poderoso ou de um alto judiciário, constituiria
vantagem indubitável que abandonássemos Deus inteiramente e admitíssemos com honestidade a
origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua
pretensa santidade, esses mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e imutabilidade. As
pessoas compreenderiam que são elaborados, não tanto para dominá-las, mas, pelo contrário, para
servir a seus interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com eles e, em vez de visarem à
sua abolição, visariam unicamente à sua melhoria. Isso constituiria um importante avanço no caminho
que leva à reconciliação com o fardo da civilização.
Aqui, porém, nosso apelo em favor da atribuição de motivos puramente racionais aos preceitos
da civilização - isto é, derivá-los da necessidade social - é interrompido por uma dúvida repentina.
Escolhemos como exemplo a origem da proibição do homicídio. Mas nossa descrição dela concorda com
a verdade histórica? Tememos que não; parece não ser mais do que uma elaboração racionalista. Com o
auxílio da psicanálise, efetuamos um estudo precisamente dessa parte da história cultural da
humanidade, e, baseando-nos nele, somos obrigados a dizer que, na realidade, as coisas aconteceram
de outro modo. Mesmo no homem atual os motivos puramente racionais pouco podem fazer contra
impulsões apaixonadas. Quão mais fracos, então, eles devem ter sido no animal humano das eras
primevas! Talvez seus descendentes ainda hoje se matassem uns aos outros sem inibição, não fosse o
fato de entre aqueles atos homicidas ter ocorrido um - a morte do pai primitivo - que evocou uma reação
emocional irresistível, com conseqüências momentosas. Foi dele que surgiu o mandamento. Não
matarás. Sob o totemismo, esse mandamento estava restrito ao substituto paterno, mas posteriormente
foi estendido às outras pessoas, embora ainda hoje não seja universalmente obedecido.
Contudo, e tal como foi demonstrado por argumentos que não preciso repetir aqui, o pai primevo
constituiu a imagem original de Deus, o modelo a partir do qual as gerações posteriores deram forma à
figura de Deus. Daí a explicação religiosa ser correta. Deus realmente desempenhou um papel na
gênese daquela proibição; foi Sua influência, e não uma compreensão interna (insight) de necessidade
social, que a criou. E o deslocamento da vontade do homem para Deus é plenamente justificado, pois os
homens sabiam que se tinham livrado do pai através da violência, e, em sua reação a esse ato ímpio,
resolveram respeitar doravante sua vontade. Dessa maneira, a doutrina religiosa nos conta a verdade
histórica - submetida embora, é verdade, a certa modificação e disfarce -, ao passo que nossa descrição
racional não a reconhece.
Observamos agora que o cabedal de idéias religiosas inclui não apenas realizações de desejos,
mas também importantes reminiscências históricas. Essa influência concorrente de passado e presente
tem de conceder à religião uma riqueza de poder verdadeiramente incomparável. Entretanto, talvez, com
o auxílio de uma analogia, outra descoberta ainda possa começar a alvorecer em nós. Embora não seja
boa política transplantar idéias para longe do solo em que se desenvolveram, há aqui, contudo, uma
consonância que não podemos deixar de apontar. Sabemos que a criança humana não pode completar
com sucesso seu desenvolvimento para o estágio civilizado sem passar por uma fase de neurose, às
vezes mais distinta, outras, menos. Isso se dá porque muitas exigências instintuais que posteriormente
serão inaproveitáveis não podem ser reprimidas pelo funcionamento racional do intelecto da criança, mas
têm de ser domadas através de atos de repressão, por trás dos quais, via de regra, se acha o motivo da
ansiedade. A maioria dessas neuroses infantis é superespontaneamente no decurso do crescimento,
sendo isso especialmente verdadeiro quanto às neuroses obsessivas da infância. O remanescente pode
ser eliminado mais tarde ainda, através do tratamento psicanalítico. Exatamente do mesmo modo, podese supor, a humanidade como um todo, em seu desenvolvimento através das eras, tombou em estados
análogos às neuroses,
e isso pelos mesmos motivos - principalmente porque nas épocas de sua
ignorância e debilidade intelectual, as renúncias instintuais indispensáveis à existência comunal do
homem só haviam sido conseguidas pela humanidade através de forças puramente emocionais. Os
precipitados desses processos semelhantes à repressão que se efetuou nos tempos pré-históricos, ainda
permaneceram ligados à civilização por longos períodos. Assim, a religião seria a neurose obsessiva
universal da humanidade; tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo,
do relacionamento com o pai. A ser correta essa conceituação, o afastamento da religião está fadado a
ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento, e nos encontramos exatamente nessa
junção, no meio dessa fase de desenvolvimento. Nosso comportamento, portanto, deveria modelar-se no
de um professor sensato que não se opõe a um novo desenvolvimento iminente, mas que procura
facilitar-lhe o caminho e mitigar a violência de sua irrupção. Decerto nossa analogia não esgota a
natureza essencial da religião. Se, por um lado, a religião traz consigo restrições obsessivas, exatamente
como, num indivíduo, faz a neurose obsessiva, por outro, ela abrange um sistema de ilusões plenas de
desejo juntamente com um repúdio da realidade, tal como não encontramos, em forma isolada, em parte
alguma senão na amência, num estado de confusão alucinatória beatífica. Mas tudo isso não passa de
analogias, com a ajuda das quais nos esforçamos por compreender um fenômeno social; a patologia do
indivíduo não nos provê de um correspondente plenamente válido.
Já foram repetidamente indicados (por mim próprio e, particularmente, por Theodor Reik) os
múltiplos pormenores em que a analogia entre religião e neurose obsessiva pode ser acompanhada, e
quantas das peculiaridades e vicissitudes da formação da religião podem ser entendidas a essa luz. E
harmoniza-se bem com isso o fato de os crentes devotos serem em alto grau salvaguardados do risco de
certas enfermidades neuróticas; sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar
uma neurose pessoal.
Nosso conhecimento do valor histórico de certas doutrinas religiosas aumenta nosso respeito por
elas, mas não invalida nossa posição, segundo a qual devem deixar de ser apresentadas como os
motivos para os preceitos da civilização. Pelo contrário! Esses resíduos históricos nos auxiliaram a
encararos ensinamentos religiosos como relíquias neuróticas, por assim dizer, e agora podemos argüir
que provavelmente chegou a hora, tal como acontece num tratamento analítico, de substituir os efeitos da
repressão pelos resultados da operação racional do intelecto. Podemos prever, mas dificilmente
lamentar, que tal processo de remodelamento não se deterá na renúncia a transfiguração solene dos
preceitos culturais, mas que sua revisão geral resultará em que muitos deles sejam eliminados. Desse
modo, nossa tarefa de reconciliar os homens com a civilização estará, até um grande ponto, realizada.
Não precisamos deplorar a renúncia à verdade histórica quando apresentamos fundamentos racionais
para os preceitos da civilização. As verdades contidas nas doutrinas religiosas são, afinal de contas, tão
deformadas e sistematicamente disfarçadas, que a massa da humanidade não pode identificá-las como
verdade. O caso é semelhante ao que acontece quando dizemos a uma criança que os recém-nascidos
são trazidos pela cegonha. Aqui, também estamos contando a verdade sob uma roupagem simbólica,
pois sabemos o que essa ave significa. A criança, porém, não sabe. Escuta apenas a parte deformada do
que dizemos e sente que foi enganada; sabemos com que freqüência sua desconfiança dos adultos e
sua rebeldia têm realmente começo nessa impressão. Tornamo-nos convencidos de que é melhor evitar
esses disfarces simbólicos da verdade no que contamos às crianças, e não afastar delas um
conhecimento do verdadeiro estado de coisas, comensurado a seu nível intelectual.
IX
‘Você se permite contradições difíceis de reconciliar. Começa dizendo que um trabalho como o
seu é inteiramente inócuo: ninguém se permitirá ser despojado de sua fé por considerações do tipo das
que apresenta. Não obstante, desde que, e tal como fica depois evidente, é sua intenção perturbar essa
fé, podemos perguntar-lhe por que, na realidade, está publicando sua obra? Ademais, em outra
passagem, admite que pode ser perigoso, e de fato muito perigoso, que alguém descubra que as
pessoas não acreditam mais em Deus. Até então se mostrara dócil, mas agora parece desprezar sua
obediência aos preceitos da civilização. Entretanto, sua asserção de que basear os mandamentos da
civilização em fundamentos religiosos constitui um perigo para aquela, repousa na presunção de que o
crente pode ser transformado num incréu. Sem dúvida isso é uma contradição completa.
‘E eis aqui uma outra. Por um lado, você admite que os homens não podem ser dirigidos por sua
inteligência, que são governados por suas paixões e suas exigências instintuais. Por outro, porém,
propõe substituir a base afetiva de sua obediência à civilização por uma base racional. Quem puder, que
compreenda. A mim, parece que não deve ser uma coisa nem outra.
‘Além disso, não aprendeu nada da história? Já uma vez antes, uma tentativa desse tipo, a de
substituir a religião pela razão, foi feita oficialmente e em grande estilo. Decerto se lembra da Revolução
Francesa e de Robespierre? E deve também lembrar-se de quão efêmera e deploravelmente ineficaz a
experiência foi? A mesma experiência está sendo repetida atualmente na Rússia e não precisamos ficar
curiosos sobre o seu resultado. Não acha que podemos aceitar como algo evidente o fato de que os
homens não podem passar sem religião?
‘Você mesmo disse que a religião é mais que uma neurose obsessiva. Mas não tratou desse
outro lado dela. Contentou-se em elaborar a analogia com uma neurose. Os homens, diz você, devem
ser libertados da neurose. O que se possa perder no processo não lhe interessa.’
A aparência de contradição provavelmente surgiu porque lidei com assuntos complicados de
modo muito apressado. Até certo ponto, porém, podemos remediar isso. Continuo a sustentar que o que
escrevi é, sob determinado aspecto, inteiramente inócuo. Nenhum crente se permitirá ser desviado de
sua fé por esses argumentos ou outros semelhantes. O crente está ligado aos ensinamentos da religião
por certos vínculos afetivos. Contudo, indubitavelmente existem inumeráveis outras pessoas que não são
crentes,no mesmo sentido. Obedecem aos preceitos da civilização porque se deixam intimidar pelas
ameaças da religião e têm medo dela enquanto se vêem obrigados a considerá-la como parte da
realidade que as cerca. São as pessoas que desertam tão logo lhes é permitido abandonar sua crença no
valor de realidade da religião. No entanto, elas também não são afetadas por argumentos. Deixam de
temer a religião quando observam que os outros não a temem, e foi a respeito delas que afirmei que
acabariam por saber do declínio da influência religiosa mesmo que eu não publicasse meu trabalho. [[1].]
Mas acho que você mesmo concede maior peso à outra contradição de que me acusa. Visto os
homens serem tão pouco acessíveis aos argumentos razoáveis e tão completamente governados por
seus desejos instintuais, por que tentar privá-los de uma satisfação instintual e substituí-la por
argumentos racionais? É verdade que os homens são assim, mas você já se perguntou se eles têm de
ser assim, se sua natureza mais íntima tem necessidade disso? Pode um antropólogo fornecer o índice
craniano de um povo cujo costume é deformar a cabeça das crianças enrolando-as com ataduras desde
os primeiros anos? Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e
os débeis poderes intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é
exatamente a educação religiosa que tem grande parte da culpa por essa relativa atrofia? Penso que
seria necessário muito tempo para que uma criança, que não fosse influenciada, começasse a se
preocupar com Deus e com as coisas do outro mundo. Talvez seus pensamentos sobre esses assuntos
tomassem então os mesmos caminhos que os de seus antepassados. Mas não esperamos por um
desenvolvimento desse tipo; introduzimo-la às doutrinas da religião numa idade em que nem está
interessada nelas nem é capaz de apreender sua significação. Não é verdade que os dois principais
pontos do programa de educação infantil atualmente consistem no retardamento do desenvolvimento
sexual e na influência religiosa prematura? Dessa maneira, à época em que o intelecto da criança
desperta, as doutrinas da religião já se tornaram inexpugnáveis. Mas acha você que é algo conducente
ao fortalecimento da função intelectual o fato de um campo tão importante lhe ser fechado pela ameaça
do fogo do Inferno? Quando outrora um homem se permitia aceitar sem crítica todos os absurdos que as
doutrinas religiosas punham à sua frente, e até mesmo desprezar as contradições existentes entre elas,
não precisamos ficar muito surpresos com a debilidade de seu intelecto. Não dispomos, porém, de outros
meios de controlar nossa natureza instintual, exceto nossa inteligência. Como podemos esperar que
pessoas que estão sob domínio de proibições de pensamento atinjam o ideal psicológico, o primado da
inteligência? Você sabe também que se diz que em geral as mulheres padecem de ‘debilidade mental
fisiológica’, isto é, de uma inteligência inferior à dos homens. O fato em si é discutível, e sua
interpretação, duvidosa; contudo, um argumento em favor de essa atrofia intelectual ser de natureza
secundária é o de que as mulheres vivem penando sob o rigor de uma proibição precoce que as impede
de voltarem seus pensamentos para o que mais lhes interessaria, isto é, os problemas da vida sexual.
Enquanto os primeiros anos da vida de uma pessoa forem influenciados não só por uma inibição sexual
mental, mas também por uma inibição religiosa, e por uma inibição leal derivada desta última, não
podemos realmente dizer a que ela se assemelha.
Mas moderarei meu zelo e admitirei a possibilidade de que também eu esteja perseguindo uma
ilusão. Talvez o efeito da proibição religiosa do pensamento não seja tão negativo quanto suponho; talvez
acontecesse que a natureza humana permanecesse a mesma, ainda que não se abusasse da educação
para submeter as pessoas à religião. Não sei, e tampouco você pode saber. Não são apenas os grandes
problemas da vida que atualmente parecem insolúveis; muitas questões menores também são difíceis de
responder. Mas você tem de admitir que, aqui, estamos justificados em ter esperanças no futuro - a de
que talvez exista, ainda a ser desenterrado, um tesouro capaz de enriquecer a civilização, e de que vale
a pena fazer a experiência de uma educação não religiosa. Se ela se mostrar insatisfatória, estou pronto
a abandonar a reforma e voltar a meu juízo anterior, puramente descritivo, de que o homem é uma
criatura de inteligência débil, governada por seus desejos instintuais.
Sobre outro ponto concordo irrestritamente com você. Sem dúvida é insensato começar a tentar
eliminar a religião pela força, e de um só golpe. Acima de tudo, porque isso seria irrealizável. O crente
não permitirá que sua crença lhe seja arrancada, quer por argumentos, quer por proibições. E mesmo
que isso acontecesse com alguns, seria crueldade. Um homem que passou dezenas de anos tomando
pílulas soporíferas, evidentemente fica incapaz de dormir se lhe tiram sua pílula. Que o efeito das
consolações religiosas pode ser assemelhado ao de um narcótico é fato bem ilustrado pelo que está
acontecendo nos Estados Unidos. Lá estão tentando agora - claro que sob a influência de um domínio
feminista - privar o povo de todos os estimulantes, intoxicantes e outras substâncias produtoras de
prazer, e, em vez delas, a título de compensação, empanturram-no de devoção. Trata-se de outro
experimento sobre cujo resultado não precisamos sentir-nos curiosos ,ver em [[1] e [2]].
Assim, tenho de contradizê-lo quando prossegue argumentando que os homens são
completamente incapazes de passar sem a consolação da ilusão religiosa, que, sem ela, não poderiam
suportar as dificuldades da vida e as crueldades da realidade. Isso é certamente verdade quanto aos
homens em que se instilou o doce (ou agridoce) veneno desde a infância. Mas, e os outros, os que foram
mais sensatamente criados? Os que não padecem da neurose talvez não precisem de intoxicante para
amortecê-la. Encontrar-se-ão, é verdade, numa situação difícil. Terão de admitir para si mesmos toda a
extensão de seu desamparo e insignificância na maquinaria do universo; não podem mais ser o centro da
criação, o objeto de terno cuidado por parte de uma Providência beneficente. Estarão na mesma posição
de uma criança que abandonou a casa paterna, onde se achava tão bem instalada e tão confortável. Mas
não há dúvida de que o infantilismo está destinado a ser superado.Os homens não podem permanecer
crianças para sempre; têm de, por fim, sair para a ‘vida hostil’. Podemos chamar isso de ‘educação para
a realidade‘. Precisarei confessar-lhe que o único propósito de meu livro é indicar a necessidade desse
passo à frente?
Você tem medo, provavelmente, de que não resistam a tão duro teste? Bem, pelo menos
tenhamos esperança de que resistam. Já é alguma coisa, de qualquer modo, alguém saber que está
entregue a seus próprios recursos: aprende a fazer um emprego correto deles. E os homens não estão
completamente sem assistência. Seu conhecimento científico lhes ensinou muito, desde os dias do
Dilúvio, e aumentará seu poder ainda mais. E quanto às grandes necessidades do Destino, contra as
quais não há remédio, aprenderão a suportá-las com resignação. De que lhes vale a miragem de amplos
campos na Lua, cujas colheitas ainda ninguém viu? Como honestos arrendatários nesta Terra,
aprenderão a cultivar seu terreno de tal modo que ele os sustente. Afastando suas expectativas em
relação a um outro mundo e concentrando todas as energias liberadas em sua vida na Terra,
provavelmente conseguirão alcançar um estado de coisas em que a vida se tornará tolerável para todos e
a civilização não mais será opressiva para ninguém. Então, com um de nossos companheiros de
descrença, poderão dizer sem pesar:
Den Himmel überlassen wirDen Engeln und den Spatzen.
X
‘Isso soa esplêndido! Uma raça de homens que renunciou a todas as ilusões e assim se tornou
capaz de fazer tolerável sua existência na Terra! Entretanto, não posso partilhar de suas expectativas. E
isso não por ser o obstinado reacionário por quem talvez me tome. Não, mas por ser sensato. Parece que
agora trocamos de papéis: você surge como um entusiasta que permite ser arrebatado por ilusões, e eu
represento as reivindicações da razão, os direitos do ceticismo. O que você expôs me parece ser
construído sobre erros que, seguindo seu exemplo, eu poderia chamar de ilusões, por traírem de modo
bastante claro a influência de seus desejos. Você prende sua esperança à possibilidade de que
gerações, que não experimentaram a influência das doutrinas religiosas na primeira infância, alcançarão
facilmente a desejada primazia da inteligência sobre a vida dos instintos. Isso é decerto uma ilusão;
nesse aspecto decisivo, a natureza humana dificilmente tem probabilidade de mudar. Se não estou
equivocado - conhece-se tão pouco sobre as outras civilizações - ainda hoje existem povos que não se
desenvolveram sob a pressão de um sistema religioso e que, contudo, não se aproximam mais do seu
ideal do que do resto. Se você quiser expulsar a religião de nossa civilização européia, só poderá fazê-lo
através de outro sistema de doutrinas, e esse sistema, desde o início, assumiria todas as características
psicológicas da religião - a mesma santidade, rigidez e intolerância, a mesma proibição do pensamento para sua própria defesa. Há que possuir algo desse tipo, a fim de atender aos requisitos da educação. E
é impossível passar sem educação. O caminho que vai da criança de peito ao homem civilizado é longo;
não poucos jovens se desviariam dele e fracassariam no cumprimento de suas missões na vida, na
época correta, se fossem deixados sem orientação quanto a seu próprio desenvolvimento. As doutrinas
que tivessem sido aplicadas à sua criação, sempre estabeleceriam limites ao pensar de seus anos de
maturidade - que é exatamente o que você censura à religião fazer hoje. Não observa que se trata de um
defeito inato e inestimável de nossa e de qualquer outra civilização, o fato de impor às crianças, que são
movidas pelo instinto e fracas do intelecto, a tomada de decisões que só a inteligência madura dos
adultos pode reivindicar? A civilização, porém, não pode operar de outro modo, de uma vez que o
desenvolvimento, tão longo quanto as eras, do gênero humano, está comprimido em uns poucos anos de
infância; e é só através de forças emocionais que a criança pode ser induzida a se assenhorear da tarefa
que lhe apresentam. Tais são, portanto, as perspectivas para sua “primazia do intelecto”.‘E você não
deve ficar surpreso agora que eu perore em favor da retenção do sistema doutrinal religioso como base
da educação e da vida comunal do homem. Trata-se de um problema prático, e não de uma questão de
valor de realidade. Já que, para preservar nossa civilização, não podemos adiar a influência sobre o
indivíduo até que ele esteja maduro para a civilização (e, ainda assim, muitos nunca estarão), já que
somos obrigados a impor à criança em crescimento um sistema doutrinário que nela funcione como um
axioma que não admita crítica, parece-me que o sistema religioso é, de longe, o mais apropriado para
esse fim. E o é, naturalmente, exatamente por causa de sua realização de desejo e seu poder
consolatório, devido aos quais você reivindica identificá-lo como sendo ‘ilusão’. Diante da dificuldade de
se descobrir qualquer coisa sobre a realidade - na verdade, da dúvida de saber se nos será possível
realmente descobri-la -, não devemos desprezar o fato de que também as necessidades humanas são
uma realidade e, na verdade, uma realidade importante, uma realidade que nos interessa especialmente
de perto.
‘Outra vantagem da doutrina religiosa, em minha opinião, reside numa de suas características a
que você parece particularmente opor-se, pois permite um refinamento e sublimação das idéias que
tornam possível para ela livrar-se da maioria dos resíduos oriundos do pensamento primitivo e infantil. O
que então sobra é um corpo de idéias que a ciência não mais contradiz e que é incapaz de refutar. Essas
modificações da doutrina religiosa, que você condenou como meias-medidas e transigências, tornam-lhe
possível evitar a cisão entre as massas não instruídas e o pensador filosófico, e preservar o vínculo
comum entre eles, tão importante para a salvaguarda da civilização. Com isso, não haveria necessidade
de temer que os homens do povo descobrissem que as camadas superiores da sociedade “não mais
acreditam em Deus”. Acho que agora lhe demonstrei que seus esforços se reduzem a uma tentativa de
substituir uma ilusão já provada e emocionalmente valiosa, por outra, que não foi provada e não possui
valor emocional.’
Não sou inacessível à sua crítica. Sei como é difícil evitar ilusões; talvez as esperanças que
confessei também sejam de natureza ilusória. Aferro-me, porém, a uma distinção. À parte o fato de
castigo algum ser imposto a quem não as partilha, minhas ilusões não são, como as religiosas, incapazes
de correção. Não possuem o caráter de um delírio. Se a experiência demonstrar - não a mim, mas a
outros depois de mim, que pensem como eu - que estávamos enganados, abandonaremos nossas
expectativas. Tome minha tentativa pelo que ela é. Um psicólogo que não se ilude sobre a dificuldade de
descobrir a própria orientação neste mundo, efetua um esforço para avaliar o desenvolvimento do
homem, à luz da pequena porção de conhecimento que obteve através de um estudo dos processos
mentais de indivíduos, durante seu desenvolvimento de crianças a adultos. Ao agir assim, impõe-se a ele
a idéia de que a religião é comparável a uma neurose da infância, e é otimista bastante para imaginar
que a humanidade superará essa fase neurótica, tal como muitas crianças evolvem de suas neuroses
semelhantes. Essas descobertas derivadas da psicologia individual podem ser insuficientes, injustificada
sua aplicação à raça humana, e infundado otimismo o dele. Concedo-lhes todas essas incertezas. Mas
freqüentemente não podemos impedir-nos de dizer o que pensamos, e nos desculpamos disso com o
fundamento de que só o dizemos pelo que vale.
Aqui temos dois pontos sobre os quais devo demorar-me um pouco mais. Em primeiro lugar, a
fraqueza de minha posição não acarreta fortalecimento algum da sua. Acho que você está defendendo
uma causa perdida. Podemos insistir, tão freqüentemente quanto quisermos, em que o intelecto do
homem não tem poder, em comparação com sua vida instintual, e podemos estar certos quanto a isso.
Não obstante, há algo de peculiar nessa fraqueza. A voz do intelecto é suave, mas não descansa
enquanto não consegue uma audiência. Finalmente, após uma incontável sucessão de reveses, obtém
êxito. Esse é um dos poucos pontos sobre o qual se pode ser otimista a respeito do futuro da
humanidade, e, em si mesmo, é de não pequena importância. E dele se podem derivar outras
esperanças ainda. A primazia do intelecto jaz, é verdade, num futuro infinitamente distante.
Presumivelmente, ela estabelecerá para si os mesmos objetivos que aqueles cuja realização você espera
de seu Deus (naturalmente dentro de limites humanos, na medida em que a realidade externa,
‘
, permita), a saber, o amor do homem e a diminuição do sofrimento. Assim sendo, podemos
dizer-nos que nosso antagonismo é apenas temporário e não irreconciliável. Desejamos as mesmas
coisas, mas você é mais impaciente, mais exigente e - por que não dizer? - mais egoísta do que eu e os
que se encontram do meu lado. Você faria o estado de bem-aventurança começar diretamente após a
morte; espera dele o impossível e não desiste das reivindicações do indivíduo. Nosso Deus,
,
atenderá todos esses desejos que a natureza a nós externa permita, mas fa-lo-á de modo muito
gradativo, somente num futuro imprevisível e para uma nova geração de homens. Não promete
compensação para nós, que sofremos penosamente com a vida. No caminho para esse objetivo distante,
suas doutrinas religiosas terão de ser postas de lado, por mais que as primeiras tentativas falhem ou os
primeiros substitutos se mostrem insustentáveis. Você sabe por que: a longo prazo, nada pode resistir à
razão e à experiência, e a contradição que a religião oferece a ambas é palpável demais. Mesmo as
idéias religiosas purificadas não podem escapar a esse destino, enquanto tentarem preservar algo da
consolação da religião. Indubitavelmente, se se confinarem à crença num ser espiritual superior, cujas
qualidades sejam indefiníveis e cujos intuitos não possam ser discernidos, não só estarão à prova do
desafio da ciência, como também perderão sua influência sobre o interesse humano.
Em segundo lugar, observe a diferença entre a sua atitude para com as ilusões e a minha. Você
tem de defender a ilusão religiosa com todas as suas forças. Se ela se tornar desacreditada - e, na
verdade, a ameaça disso é bastante grande - então seu mundo desmoronará. Nada lhe resta a não ser
desesperar de tudo, da civilização e do futuro da humanidade. Dessa servidão, estou, estamos livres.
Visto estarmos preparados para renunciar a uma boa parte de nossos desejos infantis, podemos suportar
que algumas de nossas expectativas mostrem que não passam de ilusões.
É possível que a educação libertada do ônus das doutrinas religiosas não cause grande mudança
na natureza psicológica do homem. O nosso deus
ó
talvez não seja um deus muito poderoso, e
poderá ser capaz de efetuar apenas uma pequena parte do que seus predecessores prometeram. Se
tivermos de reconhecer isso, aceitá-lo-emos com resignação. Não será por causa disso que perderemos
nosso interesse no mundo e na vida, pois dispomos de um apoio seguro, que falta a você. Acreditamos
ser possível ao trabalho científico conseguir um certo conhecimento da realidade do mundo,
conhecimento através do qual podemos aumentar nosso poder e de acordo com o qual podemos
organizar nossa vida. Se essa crença for uma ilusão, então nos encontraremos na mesma posição que
você. Mas a ciência, através de seus numerosos e importantes sucessos, já nos deu provas de não ser
uma ilusão. Ela conta com muitos inimigos manifestos, e muitos outros secretos, entre aqueles que não
podem perdoá-la por ter enfraquecido a fé religiosa e por ameaçar derrubá-la. É censurada pela
pequenez do que nos ensinou e pelo campo incomparavelmente maior que deixou na obscuridade.
Nisso, porém, as pessoas se esquecem de quão jovem ela é, quão difíceis foram seus primórdios e quão
infinitesimalmente pequeno foi o período de tempo que decorreu desde que o intelecto humano ficou
suficientemente forte para as tarefas que ela estabelece. Não nos achamos todos nós em falta, ao basear
nossos julgamentos em períodos de tempo que são curtos demais? Deveríamos tomar os geólogos como
modelo. As pessoas queixam-se da infidedignidade da ciência, do modo como ela anuncia como lei hoje
o que a geração seguinte identifica como erro e substitui por uma nova lei cuja validade aceita não
perdura por mais tempo. Mas isso é injusto e, em parte, inverídico. As transformações da opinião
científica são desenvolvimentos, progressos, e não revoluções. Uma lei que a princípio foi tida por
universalmente válida, mostra ser um caso especial de uma uniformidade mais abrangente ou é limitada
por outra lei, só descoberta mais tarde; uma aproximação grosseira à verdade é substituída por outra
mais cuidadosamente adaptada, a qual, por sua vez, fica à espera de novos aperfeiçoamentos. Existem
diversos campos em que ainda não superamos uma fase de pesquisa na qual fazemos experiências com
hipóteses que em breve têm de ser rejeitadas como inadequadas; em outros campos, porém, já
possuímos um cerne de conhecimento seguro e quase inalterável. Finalmente, tentou-se desacreditar o
esforço científico de maneira radical, com o fundamento de que, achando-se ele ligado às condições de
sua própria organização, não poderia produzir nada mais senão resultados subjetivos, ao passo que a
natureza real das coisas a nós externas permanece inacessível. Mas isso significa desprezar diversos
fatores de importância decisiva para a compreensão do trabalho científico. Em primeiro lugar, nossa
organização - isto é, nosso aparelho psíquico - desenvolveu-se precisamente no esforço de explorar o
mundo externo, e, portanto, teria de ter concebido em sua estrutura um certo grau de utilitarismo; em
segundo lugar, ela própria é parte constituinte do mundo que nos dispusemos a investigar e admite
prontamente tal investigação; em terceiro, a tarefa da ciência ficará plenamente abrangida se a limitarmos
a demonstrar como o mundo nos deve aparecer em conseqüência do caráter específico de nossa
organização; em quarto, as descobertas supremas da ciência, precisamente por causa do modo pelo qual
foram alcançadas, são determinadas não apenas por nossa organização, mas pelas coisas que
influenciaram essa organização; finalmente, o problema da natureza do mundo sem levar em
consideração nosso aparelho psíquico perceptivo não passa de uma abstração vazia, despida de
interesse prático.
Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos
pode dar, podemos conseguir em outro lugar.
O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO (1930 [1929])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DAS UNBEHAGEN IN DER KULTUR
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1930 Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 136 págs.
1931 2ª ed. (Reimpressão da 1ª ed., com alguns acréscimos.)
1934 G.S., 12, 29-114.
1948 G.W., 14, 421-506.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
Civilization and its Discontents
1930 Londres: Hogarth Press e Institute of Psycho-Analysis. Nova Iorque: Cape and
Smith, 144 págs. (Trad. de Joan Riviere.)
A atual tradução baseia-se na publicada em 1930.
O primeiro capítulo do original alemão foi publicado pouco antes do resto do livro, em
Psychoanal. Bewegung,1 (4) novembro-dezembro de 1929. O quinto capítulo apareceu separadamente
no número seguinte do mesmo periódico, 2 (1), janeiro-fevereiro de 1930. Duas ou três notas de rodapé a
mais foram incluídas na edição de 1931 e uma frase final foi acrescentada à obra. Nenhum desses
acréscimos apareceram na primeira versão da tradução inglesa.
Freud terminara O Futuro de uma Ilusão no outono de 1927. Durante os dois anos seguintes,
principalmente, sem dúvida, por causa de sua doença, produziu muito pouco. No verão de 1929, porém,
começou a escrever outro livro, mais uma vez sobre um assunto sociológico. O primeiro esboço foi
terminado por volta de fins de julho; o livro foi enviado à gráfica no começo de novembro e realmente
publicado antes do fim do ano, embora trouxesse a data de ‘1930’ em sua página de rosto (Jones, 1957,
157-8).
O título original para ele escolhido por Freud foi ‘Das Unglück in der Kultur’ (‘A Infelicidade na
Civilização’), mas ‘Unglück’ foi posteriormente alterado para ‘Unbehagen’, palavra para a qual foi difícil
escolher um equivalente inglês, embora o francês ‘malaise‘ pudesse ter servido. Numa carta à sua
tradutora, a Sra. Riviere, Freud sugeriu‘O Desconforto do Homem na Civilização’, mas foi ela própria que
descobriu a solução ideal para a dificuldade no título finalmente adotado.
O tema principal do livro - o antagonismo irremediável entre as exigências do instinto e as
restrições da civilização - pode ter sua origem remontada a alguns dos mais antigos trabalhos
psicológicos de Freud. Assim, em 31 de maio de 1897, escreveu a Fliess que ‘o incesto é anti-social e a
civilização consiste numa progressiva renúncia a ele’ (Freud, 1950a, Rascunho N), e, um ano depois, no
artigo ‘Sexuality in the Aetiology of the Neuroses’ (1898a), escreveu que ‘podemos com justiça
responsabilizar nossa civilização pela disseminação da neurastenia’. Não obstante, em seus primeiros
trabalhos, Freud não parece ter considerado a repressão como sendo inteiramente devida a influências
sociais externas. Embora em seus Três Ensaios (1905d), fale da ‘relação inversa que existe entre a
civilização e o livre desenvolvimento da sexualidade’ (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 250,
IMAGO Editora, 1972), em outra passagem da mesma obra, fez o seguinte comentário sobre as barreiras
opostas ao instinto sexual surgidas durante o período de latência: ‘Tem-se das crianças civilizadas uma
impressão de que a construção dessas barreiras é um produto da educação, e sem dúvida, a educação
muito tem a ver com ela. Mas, na realidade, este desenvolvimento é organicamente determinado e fixado
pela hereditariedade, e pode ocasionalmente ocorrer sem qualquer auxílio da educação.’ (Ibid., pág.
157.)
A noção de haver uma ‘repressão orgânica’ que prepara o caminho para a civilização - noção
expandida nas duas longas notas de rodapé ao início e ao final do Capítulo IV (pág. 77 e seg. e 57 e
segs., adiante) - remonta ao mesmo período anterior. Numa carta a Fliess, em 14 de novembro de 1897,
Freud escreveu que freqüentemente suspeitou ‘que algo orgânico desempenhou um papel na repressão’
(Freud, 1950a, Carta 75). Prossegue, no mesmo sentido daquelas notas de rodapé, sugerindo a
importância, como fatores de repressão, da adoção de uma postura ereta e da substituição do olfato pela
vista como sentido dominante. Uma alusão ainda mais precoce à mesma idéia ocorre numa carta de 11
de janeiro de 1897 (ibid., Carta 55). Nos trabalhos publicados de Freud, as únicas menções dessas
idéias, antes do atual, parecem ser uma breve passagem na análise do ‘Rat Man’ (1909d), Satndard Ed.,
10, 247-8, e outra ainda mais sucinta no segundo artigo sobre a psicologia do amor (1912d), Edição
Standard Brasileira, Vol. XI, pág.172, IMAGO Editora, 1972. De modo particular, nenhuma análise das
origens internas mais profundas da civilização pode ser encontrada naquilo que é, de longe, o mais longo
dos primeiros estudos de Freud sobre o assunto, ou seja, o artigo ‘“Civilized” Sexual Morality and Modern
Nervous Illness’ (1908d), que dá a impressão de as restrições da civilização serem algo imposto desde
fora.
Na verdade, contudo, não foi possível nenhuma avaliação clara do papel desempenhado nessas
restrições pelas influências internas e externas e seus efeitos recíprocos, até que as investigações
realizadas por Freud sobre a psicologia do ego o conduziram às hipóteses sobre o superego e sua
origem nas mais antigas relações objetais do indivíduo. É devido a isso que uma parte tão grande da
presente obra (especialmente nos Capítulos VII e VIII) se interessa pela exploração e clarificação
ulteriores da natureza do sentimento de culpa, e que Freud,ver ([1]), declara sua ‘intenção de representar
o sentimento de culpa como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização’. E isso, por
sua vez, constitui o fundamento para o segundo tema lateral de importância da obra (embora nenhum
deles seja, na verdade, um tema lateral), a saber, o instinto de destruição.
A história das opiniões de Freud sobre o instinto da agressão ou de destruição é complicada e só
resumidamente pode ser indicada aqui. Através de todos os seus primeiros escritos, o contexto em que
ele predominantemente o encarou foi o do sadismo. Seus primeiros estudos mais longos sobre ele
ocorreram nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905d), onde surgiu como um dos ‘instintos
componentes’ ou ‘parciais’ do instinto sexual. ‘Assim’, escreveu ele na Seção 2 (B) do primeiro ensaio, ‘o
sadismo corresponderia a um componente agressivo do instinto sexual que se tornou independente e
exagerado e, por deslocamento, usurpou a posição dominante’ (Edição Standard Brasileira, Vol. VII,
IMAGO Editora, 1972, págs. 159-60). Não obstante, posteriormente, na Seção 4 do segundo ensaio, a
independência original dos impulsos agressivos foi reconhecida: ‘Pode-se presumir que os impulsos de
crueldade surgem de fontes que são, na realidade, independentes da sexualidade, mas podem unir-se a
ela num estágio prematuro’ (ibid., 198n). As fontes independentes indicadas deveriam ter sua origem
remontada aos instintos autopreservativos. Essa passagem foi alterada na edição de 1915, onde se
declarou que ‘o impulso da crueldade surge do instinto de domínio’ e a frase sobre ser ele ‘independente
da sexualidade ‘foi omitida. Mas já em 1909, no decorrer do combate às teorias de Adler, Freud fizera um
pronunciamento muito mais amplo. Na Seção II do terceiro capítulo da história clínica do ‘Pequeno Hans’
(1909b), Freud escreveu: ‘Não consigo convencer-me da existência de um instinto agressivo especial, ao
lado dos instintos familiares de autopreservação e sexo, e em pé de igualdade com eles’ (ibid., 10, 140).
A relutância em aceitar um instinto agressivo independente da libido foi auxiliada pela hipótese do
narcisismo. Os impulsos de agressividade, e de ódio também, desde o início pareceram pertencer ao
instinto autopreservativo, e, visto que este se achava agora incluído na libido, não se exigia qualquer
instinto agressivo independente. E assim era a despeito da bipolaridade das relações objetais, das
freqüentes misturas de amor e ódio, e da complexa origem do próprio ódio. (Ver ‘Instincts and their
Vicissitudes’ (1915c), Standard Ed., 14, 138-9). Foi somente após a hipótese formulada por Freud de um
‘instinto de morte’ que um instinto agressivo verdadeiramente independente apareceu em Beyond the
Pleasure Principle (1920g). (Ver, especificamente, o Capítulo VI, ibid., 18, 52-5). Mas é de notar que
mesmo aí, e nos escritos posteriores de Freud (por exemplo, no Capítulo IV de The Ego and the Id.), o
instinto agressivo ainda era algo secundário, derivado do instinto de morte autodestrutivo e primário. Isso
é verdadeiro, ainda, quanto à presente obra, embora aqui a ênfase esteja colocada mais nas
manifestações do instinto de morte voltadas para fora, e também quanto aos estudos ulteriores do
problema na última parte da Conferência XXXIII das New Introductory Lectures (1922a) e em mais de um
ponto do Esboço da Psicanálise (1940a [1938] Pequena Coleção das Obras de Freud, Livro 7, IMAGO
Editora, 1974), de publicação póstuma.Sem embargo, é tentador citar um par de frases de uma carta
escrita por Freud, em 27 de maio de 1937, à Princesa Marie Bonaparte, na qual parece aludir a uma
maior independência original da destrutividade externa: ‘A interiorização do instinto agressivo é,
naturalmente, o correspondente da exteriorização da libido, quando ela se transfere do ego para os
objetos. Teríamos um quadro esquemático nítido se supuséssemos que, originalmente, ao início da vida,
toda a libido era dirigida para o interior e toda a agressividade para o exterior, e que, no decorrer da vida,
isso gradativamente se alterava. Mas talvez isso possa não ser correto’. É justo acrescentar que, em sua
carta seguinte, Freud escrevia: ‘Peço-lhe para não dar muito valor às minhas observações sobre o
instinto de destruição. Elas só foram feitas fortuitamente e teriam de ser cuidadosamente pensadas antes
de publicadas. Ademais, pouco há de novo nelas.’
É óbvio, portanto, que O Mal-Estar na Civilização é uma obra cujo interesse ultrapassa bastante
a sociologia.
Partes consideráveis da primeira tradução (1930) do presente trabalho foram incluídas em
Civilization, War and Death: Selections from Three Works by Sigmund Freud (1939, 26-81), da autoria de
Rickman.
O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO
I
É impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões de
avaliação - isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros,
subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida. No entanto, ao formular qualquer juízo
geral desse tipo, corremos o risco de esquecer quão variados são o mundo humano e sua vida mental.
Existem certos homens que não contam com a admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza
deles repouse em atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da
multidão. Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado a supor que, no final das contas, apenas uma minoria
aprecia esses grandes homens, ao passo que a maioria pouco se importa com eles. Contudo, devido não
só às discrepâncias existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas ações, como também à
diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente não são tão simples assim.
Um desses seres excepcionais refere-se a si mesmo como meu amigo nas cartas que me
remete. Enviei-lhe o meu pequeno livro que trata a religião como sendo uma ilusão, e ele me respondeu
que concordava inteiramente com esse meu juízo, lamentando, porém, que eu não tivesse apreciado
corretamente a verdadeira fonte da religiosidade. Esta, diz ele, consiste num sentimento peculiar, que ele
mesmo jamais deixou de ter presente em si, que encontra confirmado por muitos outros e que pode
imaginar atuante em milhões de pessoas. Trata-se de um sentimento que ele gostaria de designar como
uma sensação de ‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras - ‘oceânico’, por assim
dizer. Esse sentimento, acrescenta, configura um fato puramente subjetivo, e não um artigo de fé; não
traz consigo qualquer garantia de imortalidade pessoal, mas constitui a fonte da energia religiosa de que
se apoderam as diversas Igrejas e sistemas religiosos, é por eles veiculado para canais específicos e,
indubitavelmente, também por eles exaurido. Acredita ele que uma pessoa, embora rejeite toda crença e
toda ilusão, pode corretamente chamar-se a si mesma de religiosa com fundamento apenas nesse
sentimento oceânico.As opiniões expressas por esse amigo que tanto respeito, e que outrora já louvara a
magia da ilusão num poema, causaram-me não pequena dificuldade. Não consigo descobrir em mim
esse sentimento ‘oceânico’. Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos. Pode-se tentar descrever
os seus sinais fisiológicos. Onde isso não é possível - e temo que também o sentimento oceânico desafie
esse tipo de caracterização -, nada resta senão cair no conteúdo ideacional que, de forma mais imediata,
está associado ao sentimento. Se compreendi corretamente o meu amigo, ele quer significar, com esse
sentimento, a mesma coisa que o consolo oferecido por um dramaturgo original e um tanto excêntrico ao
seu herói que enfrenta uma morte auto-infligida: ‘Não podemos pular para fora deste mundo.Isso equivale
a dizer que se trata do sentimento de um vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo como um
todo. Posso observar que, para mim, isto parece, antes, algo da natureza de uma percepção intelectual,
que, na verdade, pode vir acompanhada de um tom de sentimento, embora apenas da forma como este
se acharia presente em qualquer outro ato de pensamento de igual alcance. Segundo minha própria
experiência, não consegui convencer-me da natureza primária desse sentimento; isso, porém, não me dá
o direito de negar que ele de fato ocorra em outras pessoas. A única questão consiste em verificar se
está sendo corretamente interpretado e se deve ser encarado como a fons et origo de toda a
necessidade de religião.
Nada tenho a sugerir que possa exercer influência decisiva na solução desse problema. A idéia
de os homens receberem uma indicação de sua vinculação com o mundo que os cerca por meio de um
sentimento imediato que, desde o início, é dirigido para esse fim, soa de modo tão estranho e se ajusta
tão mal ao contexto de nossa psicologia, que se torna justificável a tentativa de descobrir uma explicação
psicanalítica - isto é, genética - para esse sentimento. A linha de pensamento que se segue, sugere isso
por si mesma. Normalmente, não nada de que possamos estar mais certos do que do sentimento de
nosso eu, do nosso próprio ego. O ego nos aparece como algo autônomo e unitário, distintamente
demarcado de tudo o mais. Ser essa aparência enganadora - apesar de que, pelo contrário, o ego seja
continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente que
designamos como id, à qual o ego serve como uma espécie de fachada -, configurou uma descoberta
efetuada pela primeira vez através da pesquisa psicanalítica, que, de resto, ainda deve ter muito mais a
nos dizer sobre o relacionamento do ego com o id. No sentido do exterior, porém, o ego de qualquer
modo, parece manter linhas de demarcação bem e claras e nítidas. Há somente um estado indiscutivelmente fora o comum, embora não possa estigmatizado como patológico - em que ele não se
apresenta assim. No auge do sentimento de amor, a fronteira entre ego e objeto ameaça
desaparecer.Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache enamorado declara que
‘eu’ e ‘tu’ são um só, e está preparado para se conduzir como se isso constituísse um fato. Aquilo que
pode ser temporariamente eliminado por uma função fisiológica [isto é, normal] deve também,
naturalmente, estar sujeito a perturbações causadas por processos patológicos. A patologia nos
familiarizou com grande número de estados em que as linhas fronteiriças entre o ego e o mundo externo
se tornam incertas, ou nos quais, na realidade, elas se acham incorretamente traçadas. Há casos em que
partes do próprio corpo de uma pessoa, inclusive partes de sua própria vida mental - suas percepções,
pensamentos e sentimentos -, lhe parecem estranhas e como não pertencentes a seu ego; há outros
casos em que a pessoa atribui ao mundo externo coisas que claramente se originam em seu próprio ego
e que por este deveriam ser reconhecidas. Assim, até mesmo o sentimento de nosso próprio ego está
sujeito a distúrbios, e as fronteiras do ego não são permanentes.
Uma reflexão mais apurada nos diz que o sentimento do ego do adulto não pode ter sido o
mesmo desde o início. Deve ter passado por um processo de desenvolvimento, que, se não pode ser
demonstrado, pode ser construído com um razoável grau de probabilidade. Uma criança recém-nascida
ainda não distingue o seu ego do mundo externo como fonte das sensações que fluem sobre ela.
Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos estímulos. Ela deve ficar fortemente
impressionada pelo fato de certas fontes de excitação, que posteriormente identificará como sendo os
seus próprios órgãos corporais, poderem provê-la de sensações a qualquer momento, ao passo que, de
tempos em tempos, outras fontes lhe fogem - entre as quais se destaca a mais desejada de todas, o seio
da mãe -, só reaparecendo como resultado de seus gritos de socorro. Desse modo, pela primeira vez, o
ego é contrastado por um ‘objeto’, sob a forma de algo que existe ‘exteriormente’ e que só é forçado a
surgir através de uma ação especial. Um outro incentivo para o desengajamento do ego com relação à
massa geral de sensações - isto é, para o reconhecimento de um ‘exterior’, de um mundo externo - é
proporcionado pelas freqüentes, múltiplas e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer, cujo
afastamento e cuja fuga são impostos pelo princípio do prazer, no exercício de seu irrestrito domínio.
Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que pode tornar-se fonte de tal desprazer, a lançá-lo
para fora e a criar um puro ego em busca de prazer, que sofre o confronto de um ‘exterior’ estranho e
ameaçador. As fronteiras desse primitivo ego em busca de prazer não podem fugir a uma retificação
através da experiência. Entretanto, algumas das coisas difíceis de serem abandonadas, por
proporcionarem prazer, são, não ego, mas objeto, e certos sofrimentos que se procura extirpar mostramse inseparáveis do ego, por causa de sua origem interna. Assim, acaba-se por aprender um processo
através do qual, por meio de uma direção deliberada das próprias atividades sensórias e de uma ação
muscular apropriada, se pode diferenciar entre o que é interno - ou seja, que pertence ao ego - e o que é
externo - ou seja, que emana do mundo externo. Desse modo, dá-se o primeiro passo no sentido da
introdução do princípio da realidade, que deve dominar o desenvolvimento futuro. Essa diferenciação,
naturalmente, serve à finalidade prática de nos capacitar para a defesa contra sensações de desprazer
que realmente sentimos ou pelas quais somos ameaçados. A fim de desviar certas excitações
desagradáveis que surgem do interior, o ego não pode utilizar senão os métodos que utiliza contra o
desprazer oriundo do exterior, e este é o ponto de partida de importantes distúrbios patológicos.Desse
modo, então, o ego se separa do mundo externo. Ou, numa expressão mais correta, originalmente o ego
inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo. Nosso presente sentimento do ego
não passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo - na verdade,
totalmente abrangente -, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca.
Supondo que há muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primário do ego persistiu em maior
ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento do ego mais estrito e mais nitidamente
demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo
ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo - as
mesmas idéias com que meu amigo elucidou o sentimento ‘oceânico’.
Contudo, terei eu o direito de presumir a sobrevivência de algo que já se encontrava
originalmente lá, lado a lado com o que posteriormente dele se derivou? Sem dúvida, sim. Nada existe de
estranho em tal fenômeno, tanto no campo mental como em qualquer outro. No reino animal, atemo-nos
à opinião de que as espécies mais altamente desenvolvidas se originaram das mais baixas; no entanto,
ainda hoje, encontramos em existência todas as formas simples. A raça dos grandes sáurios se extinguiu
e abriu caminho para os mamíferos; o crocodilo, porém, legítimo representante dos sáurios, ainda vive
entre nós. Essa analogia pode ser excessivamente remota, além de debilitada pela circunstância de as
espécies inferiores sobreviventes não serem, em sua maioria, os verdadeiros ancestrais das espécies
mais altamente desenvolvidas dos dias atuais. Via de regra, os elos intermediários extinguiram-se, e só
os conhecemos através de reconstruções. No domínio da mente, por sua vez, o elemento primitivo se
mostra tão comumente preservado, ao lado da versão transformada que dele surgiu, que se faz
desnecessário fornecer exemplos como prova. Quando isso ocorre, é geralmente em conseqüência de
uma divergência no desenvolvimento: determinada parte (no sentido quantitativo) de uma atitude ou de
um impulso instintivo permaneceu inalterada, ao passo que outra sofreu um desenvolvimento ulterior.
Esse fato nos conduz ao problema mais geral da preservação na esfera da mente. O assunto mal
foi estudado ainda, mas é tão atraente e importante, que nos será permitido voltarmos um pouco nossa
atenção para ele, ainda que nossa desculpa seja insuficiente. Desde que superamos o erro de supor que
o esquecimento com que nos achamos familiarizados significava a destruição do resíduo mnêmico - isto
é, a sua aniquilação -, ficamos inclinados a assumir o ponto de vista oposto, ou seja, o de que, na vida
mental, nada do que uma vez se formou pode perecer - o de que tudo é, de alguma maneira, preservado
e que, em circunstâncias apropriadas (quando, por exemplo, a regressão volta suficientemente atrás),
pode ser trazido de novo à luz. Tentemos apreender o que essa suposição envolve, estabelecendo uma
analogia com outro campo. Escolheremos como exemplo a história da Cidade Eterna. Os historiadores
nos dizem que a Roma mais antiga foi a Roma Quadrata, uma povoação sediada sobre o Palatino.
Seguiu-se a fase dos Septimontium, uma federação das povoações das diferentes colinas; depois, veio a
cidade limitada pelo Muro de Sérvio e, mais tarde ainda, após todas as transformações ocorridas durante
os períodos da república e dos primeiros césares, a cidade que o imperador Aureliano cercou com as
suas muralhas. Não acompanharemos mais as modificações por que a cidade passou; perguntar-nosemos, porém, o quanto um visitante, que imaginaremos munido do mais completo conhecimento histórico
e topográfico, ainda pode encontrar, na Roma de hoje, de tudo que restou dessas primeiras etapas. À
exceção de umas poucas brechas, verá o Muro de Aureliano quase intacto. Em certas partes, poderá
encontrar seções do Muro de Sérvio que foram escavadas e trazidas à luz. Se souber bastante - mais do
que a arqueologia atual conhece -, talvez possa traçar na planta da cidade todo o perímetro desse muro e
o contorno da Roma Quadrata. Dos prédios que outrora ocuparam essa antiga área, nada encontrará, ou,
quando muito, restos escassos, já que não existem mais. No máximo, as melhores informações sobre a
Roma da era republicana capacitariam-no apenas a indicar os locais em que os templos e edifícios
públicos daquele período se erguiam. Seu sítio acha-se hoje tomado por ruínas, não pelas ruínas deles
próprios, mas pelas de restaurações posteriores, efetuadas após incêndios ou outros tipos de destruição.
Também faz-se necessário observar que todos esses remanescentes da Roma antiga estão mesclados
com a confusão de uma grande metrópole, que se desenvolveu muito nos últimos séculos, a partir da
Renascença. Sem dúvida, já não há nada que seja antigo, enterrado no solo da cidade ou sob os
edifícios modernos. Este é o modo como se preserva o passado em sítios históricos como Roma.
Permitam-nos agora, num vôo da imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma
entidade psíquica, com um passado semelhantemente longo e abundante - isto é, uma entidade onde
nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam
a existir, paralelamente à última. Isso significaria que, em Roma, os palácios dos césares e as
Septizonium de Sétimo Severo ainda se estariam erguendo em sua antiga altura sobre o Palatino e que o
castelo de Santo Ângelo ainda apresentaria em suas ameias as belas estátuas que o adornavam até a
época do cerco pelos godos, e assim por diante. Mais do que isso: no local ocupado pelo Palazzo
Cafarelli, mais uma vez se ergueria - sem que o Palazzo tivesse de ser removido - o Templo de Júpiter
Capitolino, não apenas em sua última forma, como os romanos do Império o viam, mas também na
primitiva, quando apresentava formas etruscas e era ornamentado por antefixas de terracota. Ao mesmo
tempo, onde hoje se ergue o Coliseu, poderíamos admirar a desaparecida Casa Dourada, de Nero. Na
Praça do Panteão encontraríamos não apenas o atual, tal como legado por Adriano, mas, aí mesmo, o
edifício original levantado por Agripa; na verdade, o mesmo trecho de terreno estaria sustentando a Igreja
de Santa Maria sobre Minerva e o antigo templo sobre o qual ela foi construída. E talvez o observador
tivesse apenas de mudar a direção do olhar ou a sua posição para invocar uma visão ou a outra.
A essa altura não faz sentido prolongarmos nossa fantasia, de uma vez que ela conduz a coisas
inimagináveis e mesmo absurdas. Se quisermos representar a seqüência histórica em termos espaciais,
só conseguiremos fazê-lo pela justaposição no espaço: o mesmo espaço não pode ter dois conteúdos
diferentes. Nossa tentativa parece ser um jogo ocioso. Ela conta com apenas uma justificativa. Mostra
quão longe estamos de dominar as características da vida mental através de sua representação em
termos pictóricos.
Há outra objeção a ser considerada. Pode-se levantar a questão da razão por que escolhemos
precisamente o passado de uma cidade para compará-lo com o passado da mente. A suposição de que
tudo o que passou é preservado se aplica, mesmo na vida mental, só com a condição de que o órgão da
mente tenha permanecido intacto e que seus tecidos não tenham sido danificados por trauma ou
inflamação. Mas influências destrutivas que possam ser comparadas a causas de enfermidade como as
citadas acima nunca faltam na história de uma cidade, ainda que tenha tido um passado menos
diversificado que o de Roma, e ainda que, como Londres, mal tenha sofrido com as visitas de um inimigo.
Demolições e substituições de prédios ocorrem no decorrer do mais pacífico desenvolvimento de uma
cidade. Uma cidade é, portanto, a priori, inapropriada para uma comparação desse tipo com um
organismo mental.
Curvamo-nos ante essa objeção e, abandonando nossa tentativa de esboçar um contraste
impressivo, nos voltaremos para o que, afinal de contas, constitui um objeto de comparação mais
estreitamente relacionado: o corpo de um animal ou o de um ser humano. Aqui também, no entanto,
encontramos a mesma coisa. As primeiras fases do desenvolvimento já não se acham, em sentido
algum, preservadas; foram absorvidas pelas fases posteriores, às quais forneceram material. O embrião
não pode ser descoberto no adulto. A glândula do timo da infância, sendo substituída, após a puberdade,
por tecidos de ligação, não mais se apresenta como tal; nas medulas ósseas do homem adulto posso,
sem dúvida, traçar o contorno do osso infantil, embora este tenha desaparecido, alongando-se e
espessando-se até atingir sua forma definitiva. Permanecem o fato de que só na mente é possível a
preservação de todas as etapas anteriores, lado a lado com a forma final, e o de que não estamos em
condições de representar esse fenômeno em termos pictóricos.
Talvez estejamos levando longe demais essa reflexão. Talvez devêssemos contentar-nos em
afirmar que o que se passou na vida mental pode ser preservado, não sendo, necessariamente,
destruído. É sempre possível que, mesmo na mente, algo do que é antigo seja apagado ou absorvido quer no curso normal das coisas, quer como exceção - a tal ponto, que não possa ser restaurado nem
revivescido por meio algum, ou que a preservação em geral dependa de certas condições favoráveis. É
possível, mas nada sabemos a esse respeito. Podemos apenas prender-nos ao fato de ser antes regra, e
não exceção, o passado achar-se preservado na vida mental.
Assim, estamos perfeitamente dispostos a reconhecer que o sentimento ‘oceânico’ existe em
muitas pessoas, e nos inclinamos a fazer sua origem remontar a uma fase primitiva do sentimento do
ego. Surge então uma nova questão: que direito tem esse sentimento de ser considerado como a fonte
das necessidades religiosas.
Esse direito não me parece obrigatório. Afinal de contas, um sentimento só poderá ser fonte de
energia se ele próprio for expressão de uma necessidade intensa. A derivação das necessidades
religiosas, a partir do desamparo do bebê e do anseio pelo pai que aquela necessidade desperta, pareceme incontrovertível, desde que, em particular, o sentimento não seja simplesmente prolongado a partir
dos dias da infância, mas permanentemente sustentado pelo medo do poder superior do Destino. Não
consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da proteção de um pai. Dessa
maneira, o papel desempenhado pelo sentimento oceânico, que poderia buscar algo como a restauração
do narcisismo ilimitado, é deslocado de um lugar em primeiro plano. A origem da atitude religiosa pode
ser remontada, em linhas muito claras, até o sentimento de desamparo infantil. Pode haver algo mais por
trás disso, mas, presentemente, ainda está envolto em obscuridade.
Posso imaginar que o sentimento oceânico se tenha vinculado à religião posteriormente. A
‘unidade com o universo’, que constitui seu conteúdo ideacional, soa como uma primeira tentativa de
consolação religiosa, como se configurasse uma outra maneira de rejeitar o perigo que o ego reconhece
a ameaçá-lo a partir do mundo externo. Permitam-me admitir mais uma vez que para mim é muito difícil
trabalhar com essas quantidades quase intangíveis. Outro amigo meu, cuja insaciável vontade de saber o
levou a realizar as experiências mais inusitadas, acabando por lhe dar um conhecimento enciclopédico,
assegurou-me que, através das práticas de ioga, pelo afastamento do mundo, pela fixação da atenção
nas funções corporais e por métodos peculiares de respiração, uma pessoa pode de fato evocar em si
mesma novas sensações e cenestesias, consideradas estas como regressões a estados primordiais da
mente que há muito tempo foram recobertos. Ele vê nesses estados uma base, por assim dizer
fisiológica, de grande parte da sabedoria do misticismo. Não seria difícil descobrir aqui vinculações com
certo número de obscuras modificações da vida mental, tais como os transes e os êxtases. Contudo, sou
levado a exclamar, como nas palavras do mergulhador de Schiller: ‘…Es freue sich, Wer da atmet im
rosigten Licht.’
II
Em meu trabalho O Futuro de uma Ilusão [1927c], estava muito menos interessado nas fontes
mais profundas do sentimento religioso do que naquilo que o homem comum entende como sua religião o sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explicam os enigmas deste mundo com
perfeição invejável, e que, por outro, lhe garantem que uma Providência cuidadosa velará por sua vida e
o compensará, numa existência futura, de quaisquer frustrações que tenha experimentado aqui. O
homem comum só pode imaginar essa Providência sob a figura de um pai ilimitadamente engrandecido.
Apenas um ser desse tipo pode compreender as necessidades dos filhos dos homens, enternecer-se
com suas preces e aplacar-se com os sinais de seu remorso. Tudo é tão patentemente infantil, tão
estranho à realidade, que, para qualquer pessoa que manifeste uma atitude amistosa em relação à
humanidade, é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de superar essa visão
da vida. Mais humilhante ainda é descobrir como é vasto o número de pessoas de hoje que não podem
deixar de perceber que essa religião é insustentável e, não obstante isso, tentam defendê-la, item por
item, numa série de lamentáveis atos retrógrados. Gostaríamos de nos mesclar às fileiras dos crentes, a
fim de encontrarmos aqueles filósofos que consideram poder salvar o Deus da religião, substituindo-o por
um princípio impessoal, obscuro e abstrato, e dirigirmos-lhes as seguintes palavras de advertência: ‘Não
tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão!’ E, se alguns dos grandes homens do passado agiram da
mesma maneira, de modo nenhum se pode invocar seu exemplo: sabemos por que foram obrigados a
isso.
Retornemos ao homem comum e à sua religião, a única que deveria levar esse nome. A primeira
coisa em que pensamos é na bem conhecida expressão de um de nossos maiores poetas e pensadores,
referindo-se à relação da religião com a arte e a ciência:
Wer Wissenschaft und Kunst besitzt, hat auch Religion; Wer jene beide nicht besitzt, der habe
Religion!
Esses dois versos, por um lado, traçam uma antítese entre a religião e as duas mais altas
realizações do homem, e, por outro, asseveram que, com relação ao seu valor na vida, essas realizações
e a religião podem representar-se ou substituir-se mutuamente. Se também nos dispusermos a privar o
homem comum [que não possui nem ciência nem arte] de sua religião, é claro que não teremos de nosso
lado a autoridade do poeta. Escolheremos um caminho específico para nos aproximarmos mais de uma
justa apreciação de suas palavras. A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós;
proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos
dispensar as medidas paliativas. ‘Não podemos passar sem construções auxiliares’, diz-nos Theodor
Fontane. Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de
nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam
insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável. Voltaire tinha os derivativos em mente quando
terminou Candide com o conselho para cultivarmos nosso próprio jardim, e a atividade científica constitui
também um derivativo dessa espécie. As satisfações substitutivas, tal como as oferecidas pela arte, são
ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente,
graças ao papel que a fantasia assumiu na vida mental. As substâncias tóxicas influenciam nosso corpo e
alteram a sua química. Não é simples perceber onde a religião encontra o seu lugar nessa série. Temos
de pesquisar mais adiante.
A questão do propósito da vida humana já foi levantada várias vezes; nunca, porém, recebeu
resposta satisfatória e talvez não a admita. Alguns daqueles que a formularam acrescentaram que, se
fosse demonstrado que a vida não tem propósito, esta perderia todo valor para eles. Tal ameaça, porém,
não altera nada. Pelo contrário, faz parecer que temos o direito de descartar a questão, já que ela parece
derivar da presunção humana, da qual muitas outras manifestações já nos são familiares. Ninguém fala
sobre o propósito da vida dos animais, a menos, talvez, que se imagine que ele resida no fato de os
animais se acharem a serviço do homem. Contudo, tampouco essa opinião é sustentável, de uma vez
que existem muitos animais de que o homem nada pode se aproveitar, exceto descrevê-los, classificá-los
e estudá-los; ainda assim, inumeráveis espécies de animais escaparam inclusive a essa utilização, pois
existiram e se extinguiram antes que o homem voltasse seus olhos para elas. Mais uma vez, só a religião
é capaz de resolver a questão do propósito da vida. Dificilmente incorreremos em erro ao concluirmos
que a idéia de a vida possuir um propósito se forma e desmorona com o sistema religioso.Voltar-nosemos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens, por
seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o
que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade;
querem ser felizes e assim permanecer. Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e
uma meta negativa. Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à
experiência de intensos sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’ só se
relaciona a esses últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a atividade do homem se
desenvolve em duas direções, segundo busque realizar - de modo geral ou mesmo exclusivamente - um
ou outro desses objetivos.
Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do
prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver
dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro,
tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade alguma de ele ser executado;
todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o
homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de felicidade no sentido
mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau,
sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. Quando qualquer situação
desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão-somente um sentimento de contentamento
muito tênue. Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco
de um determinado estado de coisas.
Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria
constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de
três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode
dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se
contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos
relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja
mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito,
embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes.
Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades de sofrimento, os homens se
tenham acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade - tal como, na verdade, o próprio
princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio da
realidade -, que um homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente porque escapou à infelicidade ou
sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em
segundo plano. A reflexão nos mostra que é possível tentar a realização dessa tarefa através de
caminhos muito diferentes e que todos esses caminhos foram recomendados pelas diversas escolas de
sabedoria secular e postos em prática pelos homens. Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades
apresenta-se-nos como o método mais tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o
gozo antes da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo. Os outros métodos, em que a fuga do
desprazer constitui o intuito primordial, diferenciam-se de acordo com a fonte de desprazer para a qual
sua atenção está principalmente voltada. Alguns desses métodos são extremados; outros, moderados;
alguns são unilaterais; outros atacam o problema, simultaneamente, em diversos pontos. Contra o
sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento
voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas. A felicidade passível de ser conseguida através
desse método é, como vemos, a felicidade da quietude. Contra o temível mundo externo, só podemos
defender-nos por algum tipo de afastamento dele, se pretendermos solucionar a tarefa por nós mesmos.
Há, é verdade, outro caminho, e melhor: o de tornar-se membro da comunidade humana e, com o auxílio
de uma técnica orientada pela ciência, passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade humana.
Trabalha-se então com todos para o bem de todos. Contudo, os métodos mais interessantes de evitar o
sofrimento são os que procuram influenciar o nosso próprio organismo. Em última análise, todo
sofrimento nada mais é do que sensação; só existe na medida em que o sentimos, e só o sentimos como
conseqüência de certos modos pelos quais nosso organismo está regulado.O mais grosseiro, embora
também o mais eficaz, desses métodos de influência é o químico: a intoxicação. Não creio que alguém
compreenda inteiramente o seu mecanismo; é fato, porém, que existem substâncias estranhas, as quais,
quando presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós, diretamente, sensações prazerosas,
alterando, também, tanto as condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de
receber impulsos desagradáveis. Os dois efeitos não só ocorrem de modo simultâneo, como parecem
estar íntima e mutuamente ligados. No entanto, é possível que haja substâncias na química de nossos
próprios corpos que apresentem efeitos semelhante pois conhecemos pelo menos um estado patológico,
a mania, no qual uma condição semelhante à intoxicação surge sem administração de qualquer droga
intoxicante. Além disso, nossa vida psíquica normal apresenta oscilações entre uma liberação de prazer
relativamente fácil e outra comparativamente difícil, paralela à qual ocorre uma receptividade, diminuída
ou aumentada, ao desprazer. É extremamente lamentável que até agora esse lado tóxico dos processos
mentais tenha escapado ao exame científico. O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela
felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício, que tanto
indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a
tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de
independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações’,
é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo
próprio, com melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa
propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos. São
responsáveis, em certas circunstâncias, pelo desperdício de uma grande quota de energia que poderia
ser empregada para o aperfeiçoamento do destino humano.
A complicada estrutura de nosso aparelho mental admite, contudo, um grande número de outras
influências. Assim como a satisfação do instinto equivale para nós à felicidade, assim também um grave
sofrimento surge em nós, caso o mundo externo nos deixe definhar, caso se recuse a satisfazer nossas
necessidades. Podemos, portanto, ter esperanças de nos libertarmos de uma parte de nossos
sofrimentos, agindo sobre os impulsos instintivos. Esse tipo de defesa contra o sofrimento se aplica mais
ao aparelho sensorial; ele procura dominar as fontes internas de nossas necessidades. A forma extrema
disso é ocasionada pelo aniquilamento dos instintos, tal como prescrito pela sabedoria do mundo peculiar
ao Oriente e praticada pelo ioga. Caso obtenha êxito, o indivíduo, é verdade, abandona também todas as
outras atividades: sacrifica a sua vida e, por outra via, mais uma vez atinge apenas a felicidade da
quietude. Seguimos o mesmo caminho quando os nossos objetivos são menos extremados e
simplesmente tentamos controlar nossa vida instintiva. Nesse caso, os elementos controladores são os
agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da realidade. Aqui, a meta da satisfação não
é, de modo algum, abandonada, mas garante-se uma certa proteção contra o sofrimento no sentido de
que a não-satisfação não é tão penosamente sentida no caso dos instintos mantidos sob dependência
como no caso dos instintos desinibidos. Contra isso, existe uma inegável diminuição nas potencialidades
de satisfação. O sentimento de felicidade derivado da satisfação de um selvagem impulso instintivo não
domado pelo ego é incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação de um instinto que
já foi domado. A irresistibilidade dos instintos perversos e, talvez, a atração geral pelas coisas proibidas
encontram aqui uma explicação econômica.
Outra técnica para afastar o sofrimento reside no emprego dos deslocamentos de libido que
nosso aparelho mental possibilita e através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade. A tarefa aqui
consiste em reorientar os objetivos instintivos de maneira que eludam a frustração do mundo externo.
Para isso, ela conta com a assistência da sublimação dos instintos. Obtém-se o máximo quando se
consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e
intelectual. Quando isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós. Uma satisfação desse tipo,
como, por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em
solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial que, sem dúvida, um dia
poderemos caracterizar em termos metapsicológicos. Atualmente, apenas de forma figurada podemos
dizer que tais satisfações parecem ‘mais refinadas e mais altas’. Contudo, sua intensidade se revela
muito tênue quando comparada com a que se origina da satisfação de impulsos instintivos grosseiros e
primários; ela não convulsiona o nosso ser físico. E o ponto fraco desse método reside em não ser
geralmente aplicável, de uma vez que só é acessível a poucas pessoas. Pressupõe a posse de dotes e
disposições especiais que, para qualquer fim prático, estão longe de serem comuns. E mesmo para os
poucos que os possuem, o método não proporciona uma proteção completa contra o sofrimento. Não cria
uma armadura impenetrável contra as investidas do destino e habitualmente falha quando a fonte do
sofrimento é o próprio corpo da pessoa.Enquanto esse procedimento já mostra claramente uma intenção
de nos tornar independentes do mundo externo pela busca da satisfação em processos psíquicos
internos, o procedimento seguinte apresenta esses aspectos de modo ainda mais intenso. Nele, a
distensão do vínculo com a realidade vai mais longe; a satisfação é obtida através de ilusões,
reconhecidas como tais, sem que se verifique permissão para que a discrepância entre elas e a realidade
interfira na sua fruição. A região onde essas ilusões se originam é a vida da imaginação; na época em
que o desenvolvimento do senso de realidade se efetuou, essa região foi expressamente isentada das
exigências do teste de realidade e posta de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a
termo. À frente das satisfações obtidas através da fantasia ergue-se a fruição das obras de arte, fruição
que, por intermédio do artista, é tornada acessível inclusive àqueles que não são criadores. As pessoas
receptivas à influência da arte não lhe podem atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e
consolação na vida. Não obstante, a suave narcose a que a arte nos induz, não faz mais do que
ocasionar um afastamento passageiro das pressões das necessidades vitais, não sendo suficientemente
forte para nos levar a esquecer a aflição real.
Um outro processo opera de modo mais energético e completo. Considera a realidade como a
única inimiga e a fonte de todo sofrimento, com a qual é impossível viver, de maneira que, se quisermos
ser de algum modo felizes, temos de romper todas as relações com ela. O eremita rejeita o mundo e não
quer saber de tratar com ele. Pode-se, porém, fazer mais do que isso; pode-se tentar recriar o mundo, em
seu lugar construir um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e
substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos. Mas quem quer que, numa atitude de
desafio desesperado, se lance por este caminho em busca da felicidade, geralmente não chega a nada.
A realidade é demasiado forte para ele. Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não
encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio. Afirma-se, contudo, que cada um de nós se
comporta, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto do mundo que lhe é
insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade. Concede-se especial
importância ao caso em que a tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o
sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade, é efetuada em comum por um
considerável número de pessoas. As religiões da humanidade devem ser classificadas entre os delírios
de massa desse tipo. É desnecessário dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece
como tal.
Não pretendo ter feito uma enumeração completa dos métodos pelos quais os homens se
esforçam para conseguir a felicidade e manter afastado o sofrimento; sei também que o material poderia
ter sido diferentemente disposto. Ainda não mencionei um processo - não por esquecimento, mas porque
nos interessará mais tarde, em relação a outro assunto. E como se poderia esquecer, entre todas as
outras, a técnica da arte de viver? Ela se faz visível por uma notável combinação de aspectos
característicos. Naturalmente, visa também a tornar o indivíduo independente do Destino (como é melhor
chamá-lo) e, para esse fim, localiza a satisfação em processos mentais internos, utilizando, ao proceder
assim, a deslocabilidade da libido que já mencionamos,ver [[1]]. Mas ela não volta as costas ao mundo
externo; pelo contrário, prende-se aos objetos pertencentes a esse mundo e obtém felicidade de um
relacionamento emocional com eles. Tampouco se contenta em visar a uma fuga do desprazer, uma
meta, poderíamos dizer, de cansada resignação; passa por ela sem lhe dar atenção e se aferra ao
esforço original e apaixonado em vista de uma consecução completa da felicidade. Na realidade, talvez
se aproxime mais dessa meta do que qualquer outro método. Evidentemente, estou falando da
modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo, que busca toda satisfação em amar e ser amado.
Uma atitude psíquica desse tipo chega de modo bastante natural a todos nós; uma das formas através da
qual o amor se manifesta - o amor sexual - nos proporcionou nossa mais intensa experiência de uma
transbordante sensação de prazer, fornecendo-nos assim um modelo para nossa busca da felicidade. Há,
porventura, algo mais natural do que persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos
pela primeira vez? O lado fraco dessa técnica de viver é de fácil percepção, pois, do contrário, nenhum
ser humano pensaria em abandonar esse caminho da felicidade por qualquer outro. É que nunca nos
achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente
infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Isso, porém, não liquida com a
técnica de viver baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade. Há muito mais a ser dito a
respeito. [Ver [1]].
Daqui podemos passar à consideração do interessante caso em que a felicidade na vida é
predominantemente buscada na fruição da beleza, onde quer que esta se apresente a nossos sentidos e
a nosso julgamento - a beleza das formas e a dos gestos humanos, a dos objetos naturais e das
paisagens e a das criações artísticas e mesmo científicas. A atitude estética em relação ao objetivo da
vida oferece muito pouca proteção contra a ameaça do sofrimento, embora possa compensá-lo bastante.
A fruição da beleza dispõe de uma qualidade peculiar de sentimento, tenuemente intoxicante. A beleza
não conta com um emprego evidente; tampouco existe claramente qualquer necessidade cultural sua.
Apesar disso, a civilização não pode dispensá-la. Embora a ciência da estética investigue as condições
sob as quais as coisas são sentidas como belas, tem sido incapaz de fornecer qualquer explicação a
respeito da natureza e da origem da beleza, e, tal como geralmente acontece, esse insucesso vem sendo
escamoteado sob um dilúvio de palavras tão pomposas quanto ocas. A psicanálise, infelizmente, também
pouco encontrou a dizer sobre a beleza. O que parece certo é sua derivação do campo do sentimento
sexual. O amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua finalidade.’Beleza’ e
‘atração’ são, originalmente, atributos do objeto sexual. Vale a pena observar que os próprios órgãos
genitais, cuja visão é sempre excitante, dificilmente são julgados belos; a qualidade da beleza, ao
contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais secundários.
A despeito da deficiência [de minha enumeração, ver ([1])], aventurar-me-ei a algumas
observações à guisa de conclusão para nossa investigação. O programa de tornar-se feliz, que o
princípio do prazer nos impõe,ver [[1]],não pode ser realizado; contudo, não devemos - na verdade, não
podemos - abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra.
Caminhos muito diferentes podem ser tomados nessa direção, e podemos conceder prioridades quer ao
aspecto positivo do objetivo, obter prazer, quer ao negativo, evitar o desprazer. Nenhum desses
caminhos nos leva a tudo o que desejamos. A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos
como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro
que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser
salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de
quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se
independente dele, e, finalmente, de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de
adaptá-lo
a
seus
desejos.
Nisso,
sua
constituição
psíquica
desempenhará
papel
decisivo,
independentemente das circunstâncias externas. O homem predominantemente erótico dará preferência
aos seus relacionamentos emocionais com outras pessoas; o narcisista que tende a ser auto-suficiente,
buscará suas satisfações principais em seus processos mentais internos; o homem de ação nunca
abandonará o mundo externo, onde pode testar sua força. Quanto ao segundo desses tipos, a natureza
de seus talentos e a parcela de sublimação instintiva a ele aberta decidirão onde localizará os seus
interesses. Qualquer escolha levada a um extremo condena o indivíduo a ser exposto a perigos, que
surgem caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre inadequada. Assim como o
negociante cauteloso evita empregar todo seu capital num só negócio, assim também, talvez, a sabedoria
popular nos aconselhe a não buscar a totalidade de nossa satisfação numa só aspiração. Seu êxito
jamais é certo, pois depende da convergência de muitos fatores, talvez mais do que qualquer outro, da
capacidade da constituição psíquica em adaptar sua função ao meio ambiente e então explorar esse
ambiente em vista de obter um rendimento de prazer. Uma pessoa nascida com uma constituição
instintiva especialmente desfavorável e que não tenha experimentado corretamente a transformação e a
redisposição de seus componentes libidinais indispensáveis às realizações posteriores, achará difícil
obter felicidade em sua situação externa,em especial se vier a se defrontar com tarefas de certa
dificuldade. Como uma última técnica de vida, pelo que menos lhe trará satisfações substitutivas, é-lhe
oferecida a fuga para a enfermidade neurótica, fuga que geralmente efetua quando ainda é jovem. O
homem que, em anos posteriores, vê sua busca da felicidade resultar em nada ainda pode encontrar
consolo no prazer oriundo da intoxicação crônica, ou então se empenhar na desesperada tentativa de
rebelião que se observa na psicose.
A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o
seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica
consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante - maneira
que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado de
infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas
pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém, algo mais. Existem, como dissemos, muitos
caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum que o faça
com toda segurança. Mesmo a religião não consegue manter sua promessa. Se, finalmente, o crente se
vê obrigado a falar dos ‘desígnios inescrutáveis’ de Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como
último consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão incondicional. E, se
está preparado para isso, provavelmente poderia ter-se poupado o détour que efetuou.
III
Até agora, nossa investigação sobre a felicidade não nos ensinou quase nada que já não
pertença ao conhecimento comum. E, mesmo que passemos dela para o problema de saber por que é
tão difícil para o homem ser feliz, parece que não há maior perspectiva de aprender algo novo. Já demos
a resposta,ver [[1]] pela indicação das três fontes de que nosso sofrimento provém: o poder superior da
natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os
relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade. Quanto às duas
primeiras fontes, nosso julgamento não pode hesitar muito. Ele nos força a reconhecer essas fontes de
sofrimento e a nos submeter ao inevitável. Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso
organismo corporal, ele mesmo parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma estrutura
passageira, com limitada capacidade de adaptação e realização. Esse reconhecimento não possui um
efeito paralisador. Pelo contrário, aponta a direção para a nossa atividade. Se não podemos afastar todo
sofrimento, podemos afastar um pouco dele e mitigar outro tanto: a experiência de muitos milhares de
anos nos convenceu disso. Quanto à terceira fonte, a fonte social de sofrimento, nossa atitude é
diferente. Não a admitimos de modo algum; não podemos perceber por que os regulamentos
estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário, proteção e benefício para cada um de nós.
Contudo, quando consideramos o quanto fomos malsucedidos exatamente nesse campo de prevenção
do sofrimento, surge em nós a suspeita de que também aqui é possível jazer, por trás desse fato, uma
parcela de natureza inconquistável - dessa vez, uma parcela de nossa própria constituição psíquica.
Quando começamos a considerar essa possibilidade, deparamo-nos com um argumento tão
espantoso, que temos de nos demorar nele. Esse argumento sustenta que o que chamamos de nossa
civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a
abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Chamo esse argumento de espantoso
porque, seja qual for a maneira por que possamos definir o conceito de civilização, constitui fato
incontroverso que todas as coisas que buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas
das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização.
Como foi que tantas pessoas vieram a assumir essa estranha atitude de hostilidade para com a
civilização? Acredito que seu fundamento consistiu numa longa e duradoura insatisfação com o estado de
civilização então existente e que, nessa base, se construiu uma condenação dela, ocasionada por certos
acontecimentos históricos específicos. Penso saber quais foram a última e a penúltima dessas ocasiões.
Não sou suficientemente erudito para fazer remontar a origem de sua cadeia o mais distante possível na
história da espécie humana, mas um fator desse tipo, hostil à civilização, já devia estar em ação na vitória
do cristianismo sobre as religiões pagãs, de uma vez que se achava intimamente relacionado à baixa
estima dada à vida terrena pela doutrina cristã. A penúltima dessas ocasiões se instaurou quando o
progresso das viagens de descobrimento conduziu ao contacto com povos e raças primitivos. Em
conseqüência de uma observação insuficiente e de uma visão equivocada de seus hábitos e costumes,
eles apareceram aos europeus como se levassem uma vida simples e feliz, com poucas necessidades,
um tipo de vida inatingível por seus visitantes com sua civilização superior. A experiência posterior
corrigiu alguns desses julgamentos. Em muitos casos, os observadores haviam erroneamente atribuído à
ausência de exigências culturais complicadas o que de fato era devido à generosidade da natureza e à
facilidade com que as principais necessidades humanas eram satisfeitas. A última ocasião nos é
especialmente familiar. Surgiu quando as pessoas tomaram conhecimento do mecanismo das neuroses,
que ameaçam solapar a pequena parcela de felicidade desfrutada pelos homens civilizados. Descobriuse que uma pessoa se torna neurótica porque não pode tolerar a frustração que a sociedade lhe impõe, a
serviço de seus ideais culturais, inferindo-se disso que a abolição ou redução dessas exigências
resultaria num retorno a possibilidades de felicidade.
Existe ainda um fator adicional de desapontamento. Durante as últimas gerações, a humanidade
efetuou um progresso extraordinário nas ciências naturais e em sua aplicação técnica, estabelecendo seu
controle sobre a natureza de uma maneira jamais imaginada. As etapas isoladas desse progresso são do
conhecimento comum, sendo desnecessário enumerá-las. Os homens se orgulham de suas realizações e
têm todo direito de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido
sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta
a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e
não os tornou mais felizes. Reconhecendo esse fato, devemos contentar-nos em concluir que o poder
sobre a natureza não constitui a única precondição da felicidade humana, assim como não é o único
objetivo do esforço cultural. Disso não devemos inferir que o progresso técnico não tenha valor para a
economia de nossa felicidade. Gostaríamos de perguntar: não existe, então, nenhum ganho no prazer,
nenhum aumento inequívoco no meu sentimento de felicidade, se posso, tantas vezes quantas me
agrade, escutar a voz de um filho meu que está morando a milhares de quilômetros de distância, ou
saber, no tempo mais breve possível depois de um amigo ter atingido seu destino, que ele concluiu
incólume a longa e difícil viagem? Não significa nada que a medicina tenha conseguido não só reduzir
enormemente a mortalidade infantil e o perigo de infecção para as mulheres no parto, como também, na
verdade, prolongar consideravelmente a vida média do homem civilizado? Há uma longa lista que poderia
ser acrescentada a esse tipo de benefícios, que devemos à tão desprezada era dos progressos
científicos e técnicos. Aqui, porém, a voz da crítica pessimista se faz ouvir e nos adverte que a maioria
dessas satisfações segue o modelo do ‘prazer barato’ louvado pela anedota: o prazer obtido ao se
colocar a perna nua para fora das roupas de cama numa fria noite de inverno e recolhê-la novamente. Se
não houvesse ferrovias para abolir as distâncias, meu filho jamais teria deixado sua cidade natal e eu não
precisaria de telefone para ouvir sua voz; se as viagens marítimas transoceânicas não tivessem sido
introduzidas, meu amigo não teria partido em sua viagem por mar e eu não precisaria de um telegrama
para aliviar minha ansiedade a seu respeito. Em que consiste a vantagem de reduzir a mortalidade
infantil, se é precisamente essa redução que nos impõe a maior coerção na geração de filhos, de tal
maneira que, considerando tudo, não criamos mais crianças do que nos dias anteriores ao reino da
higiene, ao passo que, ao mesmo tempo, criamos condições difíceis para nossa vida sexual no
casamento e provavelmente trabalhamos contra os efeitos benéficos da seleção natural? Enfim, de que
nos vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias, e tão cheia de desgraças que só a
morte é por nós recebida como uma libertação?
Parece certo que não nos sentimos confortáveis na civilização atual, mas é muito difícil formar
uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes, e sobre
o papel que suas condições culturais desempenharam nessa questão. Sempre tendemos a considerar
objetivamente a aflição das pessoas - isto é, nos colocarmos, com nossas próprias necessidades e
sensibilidades, nas condições delas, e então examinar quais as ocasiões que nelas encontraríamos para
experimentar felicidade ou infelicidade. Esse método de examinar as coisas, que parece objetivo por
ignorar as variações na sensibilidade subjetiva, é, naturalmente, o mais subjetivo possível, de uma vez
que coloca nossos próprios estados mentais no lugar de quaisquer outros, por mais desconhecidos que
estes possam ser. A felicidade, contudo, é algo essencialmente subjetivo. Por mais que nos retraiamos
com horror de certas situações - a de um escravo de galé na Antiguidade, a de um camponês durante a
Guerra dos Trinta Anos, a de uma vítima da Inquisição, a de um judeu à espera de um pogrom - para
nós, sem embargo, é impossível nos colocarmos no lugar dessas pessoas - adivinhar as modificações
que uma obtusidade original da mente, um processo gradual de embrutecimento, a cessação das
esperanças e métodos de narcotização mais grosseiros ou mais refinados produziram sobre a
receptividade delas às sensações de prazer e desprazer. Além disso, no caso da possibilidade mais
extrema de sofrimento, dispositivos mentais protetores e especiais são postos em funcionamento.
Parece-me improdutivo levar adiante esse aspecto do problema.
Já é tempo de voltarmos nossa atenção para a natureza dessa civilização, sobre cujo valor como
veículo de felicidade foram lançadas dúvidas. Não procuraremos uma fórmula que exprima essa natureza
em poucas palavras, enquanto não tivermos aprendido alguma coisa através de seu exame. Mais uma
vez, portanto, nos contentaremos em dizer que a palavra ‘civilização’ descreve a soma integral das
realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que
servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus
relacionamentos mútuos. A fim de aprendermos mais, reuniremos os diversos aspectos singulares da
civilização, tal como se apresentam nas comunidades humanas. Agindo desse modo, não hesitaremos
em nos deixar guiar pelos hábitos lingüísticos ou, como são também chamados, sentimento lingüístico,
na convicção de que assim estamos fazendo justiça e discernimentos internos que ainda desafiam sua
expressão em termos abstratos.
A primeira etapa é fácil. Reconhecemos como culturais todas as atividades e recursos úteis aos
homens, por lhes tornarem a terra proveitosa, por protegerem-nos contra a violência das forças da
natureza, e assim por diante. Em relação a esse aspecto de civilização, dificilmente pode haver qualquer
dúvida. Se remontarmos suficientemente às origens, descobriremos que os primeiros atos de civilização
foram a utilização de instrumentos, a obtenção do controle sobre o fogo e a construção de
habitações.Entre estes, o controle sobre o fogo sobressai como uma realização extraordinária e sem
precedentes, ao passo que os outros desbravaram caminhos que o homem desde então passou a seguir,
e cujo estímulo pode ser facilmente percebido. Através de cada instrumento, o homem recria seus
próprios órgãos, motores ou sensoriais, ou amplia os limites de seu funcionamento. A potência motora
coloca forças gigantescas à sua disposição, as quais, como os seus músculos, ele pode empregar em
qualquer direção; graças aos navios e aos aviões, nem a água nem o ar podem impedir seus
movimentos; por meio de óculos corrige os defeitos das lentes de seus próprios olhos; através do
telescópio, vê a longa distância; e por meio do microscópio supera os limites de visibilidade estabelecidos
pela estrutura de sua retina. Na câmara fotográfica, criou um instrumento que retém as impressões
visuais fugidias, assim como um disco de gramofone retém as auditivas, igualmente fugidias; ambas são,
no fundo, materializações do poder que ele possui de rememoração, isto é, sua memória. Com o auxílio
do telefone, pode escutar a distâncias que seriam respeitadas como inatingíveis mesmo num conto de
fadas. A escrita foi, em sua origem, a voz de uma pessoa ausente, e a casa para moradia constituiu um
substituto do útero materno, o primeiro alojamento, pelo qual, com toda probabilidade, o homem ainda
anseia, e no qual se achava seguro e se sentia à vontade.
Essas coisas - que, através de sua ciência e tecnologia, o homem fez surgir na Terra, sobre a
qual, no princípio, ele apareceu como um débilorganismo animal e onde cada indivíduo de sua espécie
deve, mais uma vez, fazer sua entrada (‘oh inch of nature’) como se fosse um recém-nascido
desamparado - essas coisas não apenas soam como um conto de fadas, mas também constituem uma
realização efetiva de todos - ou quase todos - os desejos de contos de fadas. Todas essas vantagens ele
as pode reivindicar como aquisição cultural sua. Há muito tempo atrás, ele formou uma concepção ideal
de onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses. A estes, atribuía tudo que parecia
inatingível aos seus desejos ou lhe era proibido. Pode-se dizer, portanto, que esses deuses constituíam
ideais culturais. Hoje, ele se aproximou bastante da consecução desse ideal, ele próprio quase se tornou
um deus. É verdade que isso só ocorreu segundo o modo como os ideais são geralmente atingidos, de
acordo com o juízo geral da humanidade. Não completamente; sob certos aspectos, de modo algum; sob
outros, apenas pela metade. O homem, por assim dizer, tornou-se uma espécie de “Deus de prótese”.
Quando faz uso de todos os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeiramente magnífico; esses órgãos,
porém, não cresceram nele e, às vezes, ainda lhe causam muitas dificuldades. Não obstante, ele tem o
direito de se consolar pensando que esse desenvolvimento não chegará ao fim exatamente no ano de
1930 A.D. As épocas futuras trarão com elas novos e provavelmente inimagináveis grandes avanços
nesse campo da civilização e aumentarão ainda mais a semelhança do homem com Deus. No interesse
de nossa investigação, contudo, não esqueceremos que atualmente o homem não se sente feliz em seu
papel de semelhante a Deus.
Reconhecemos, então, que os países atingiram um alto nível de civilização quando descobrimos
que neles tudo o que pode ajudar na exploração da Terra pelo homem e na sua proteção contra as forças
da natureza tudo, emsuma, que é útil para ele - está disponível e é passível de ser conseguido. Nesses
países, os rios que ameaçam inundar as terras são regulados em seu fluxo, e sua água é irrigada através
de canais para lugares onde ela é escassa. O solo é cuidadosamente cultivado e plantado com a
vegetação apropriada, e a riqueza mineral subterrânea é assiduamente trazida à superfície e modelada
em implementos e utensílios indispensáveis. Os meios de comunicação são amplos, rápidos e dignos de
confiança. Os animais selvagens e perigosos foram exterminados e a criação de animais domésticos
floresce. Além dessas, porém, exigimos outras coisas da civilização, sendo digno de nota o fato de
esperarmos encontrá-las realizadas nesses mesmos países. Como se estivéssemos procurando repudiar
a primeira exigência que fizemos, reconhecemos, igualmente, como um sinal de civilização, verificar que
as pessoas também orientam suas preocupações para aquilo que não possui qualquer valor prático, para
o que não é lucrativo: por exemplo, os espaços verdes necessários a uma cidade, como playgrounds e
reservatórios de ar fresco, são também ornados de jardins e as janelas das casas, decoradas com vasos
de flores. De imediato, constatamos que essa coisa não lucrativa que esperamos que a civilização
valorize, é a beleza. Exigimos que o homem civilizado reverencie a beleza, sempre que a perceba na
natureza ou sempre que a crie nos objetos de seu trabalho manual, na medida em que é capaz disso.
Mas isso está longe de exaurir nossas exigências quanto à civilização. Esperamos, ademais, ver sinais
de asseio e de ordem. Não concebemos uma cidade do interior da Inglaterra, na época de Shakespeare,
como possuidora de um alto nível cultural, quando lemos que havia um grande monte de esterco em
frente à casa de seu pai, em Stratford; também ficamos indignados e chamamos de ‘bárbaro’ (o oposto
de civilizado), quando nos deparamos com as veredas do Wiener Wald cobertas de papéis velhos. A
sujeira de qualquer espécie nos parece incompatível com a civilização. Da mesma forma, estendemos
nossa exigência de limpeza ao corpo humano. Ficamos estupefatos ao saber que o
emanava um odor
insuportável, meneamos a cabeça quando, na Isola Bella nos é mostrada a minúscula bacia em que
Napoleão se lavava todas as manhãs. Na verdade, não nos surpreende a idéia de estabelecer o emprego
do sabão como um padrão real de civilização. Isso é igualmente verdadeiro quanto à ordem. Assim como
a limpeza, ela só se aplica às obrasdo homem. Contudo, ao passo que não se espera encontrar asseio
na natureza, a ordem, pelo contrário, foi imitada a partir dela. A observação que o homem fez das
grandes regularidades astronômicas não apenas o muniu de um modelo para a introdução da ordem em
sua vida, mas também lhe forneceu os primeiros pontos de partida para proceder desse modo. A ordem é
uma espécie de compulsão a ser repetida, compulsão que, ao se estabelecer um regulamento de uma
vez por todas, decide quando, onde e como uma coisa será efetuada, e isso de tal maneira que, em
todas as circunstâncias semelhantes, a hesitação e a indecisão nos são poupadas. Os benefícios da
ordem são incontestáveis. Ela capacita os homens a utilizarem o espaço e o tempo para seu melhor
proveito, conservando ao mesmo tempo as forças psíquicas deles. Deveríamos ter o direito de esperar
que ela houvesse ocupado seu lugar nas atividades humanas desde o início e sem dificuldade, e
podemos ficar admirados de que isso não tenha acontecido, de que, pelo contrário, os seres humanos
revelem uma tendência inata para o descuido, a irregularidade e a irresponsabilidade em seu trabalho, e
de que seja necessário um laborioso treinamento para que aprendam a seguir o exemplo de seus
modelos celestes.
Evidentemente, a beleza, a limpeza e a ordem ocupam uma posição especial entre as exigências
da civilização. Ninguém sustentará que elas sejam tão importantes para a vida quanto o controle sobre as
forças da natureza ou quanto alguns outros fatores com que ainda nos familiarizaremos. No entanto,
ninguém procurará colocá-las em segundo plano, como se não passassem de trivialidades. Que a
civilização não se faz acompanhar apenas pelo que é útil, já ficou demonstrado pelo exemplo da beleza,
que não omitimos entre os interesses da civilização. A utilidade da ordem é inteiramente evidente.
Quando à limpeza, devemos ter em mente aquilo que também a higiene exige de nós, e podemos supor
que, mesmo anteriormente à profilaxia científica, a conexão entre as duas não era de todo estranha ao
homem. Contudo, a utilidade não explica completamente esses esforços; deve existir algo mais que se
encontre em ação.
Nenhum aspecto, porém, parece caracterizar melhor a civilização do que sua estima e seu
incentivo em relação às mais elevadas atividades mentais do homem - suas realizações intelectuais,
científicas e artísticas - e o papel fundamental que atribui às idéias na vida humana. Entre essas idéias,
em primeiro lugar se encontram os sistemas religiosos, cuja complicada estrutura já me esforcei por
esclarecer em outra oportunidade. A seguir, vêm as especulações da filosofia e, finalmente, o que se
poderia chamar de ‘ideais’do homem - suas idéias a respeito de uma possível perfeição dos indivíduos,
dos povos, ou da humanidade como um todo, e as exigências estabelecidas com fundamento nessas
idéias. O fato de essas criações do homem não serem mutuamente independentes, mas, pelo contrário,
se acharem estreitamente entrelaçadas, aumenta a dificuldade não apenas de descrevê-las, como
também de traçar sua derivação psicológica. Se, de modo bastante geral, supusermos que a força
motivadora de todas as atividades humanas é um esforço desenvolvido no sentido de duas metas
confluentes, a de utilidade e a de obtenção de prazer, teremos de supor que isso também é verdadeiro
quanto às manifestações da civilização que acabamos de examinar, embora só seja facilmente visível
nas atividades científicas e estéticas. Não se pode, porém, duvidar de que as outras atividades também
correspondem a fortes necessidades dos homens - talvez a necessidades que só se achem
desenvolvidas numa minoria. Tampouco devemos permitir sermos desorientados por juízos de valor
referentes a qualquer religião, qualquer sistema filosófico ou qualquer ideal. Quer pensemos encontrar
neles as mais altas realizações do espírito humano, quer os deploremos como aberrações, não podemos
deixar de reconhecer que onde eles se acham presentes, e, em especial, onde eles são dominantes, está
implícito um alto nível de civilização.
Resta avaliar o último, mas decerto não o menos importante, dos aspectos característicos da
civilização: a maneira pela qual os relacionamentos mútuos dos homens, seus relacionamentos sociais,
são regulados - relacionamentos estes que afetam uma pessoa como próximo, como fonte de auxílio,
como objeto sexual de outra pessoa, como membro de uma família e de um Estado. Aqui, é
particularmente difícil manter-se isento de exigências ideais específicas e perceber aquilo que é civilizado
em geral. Talvez possamos começar pela explicação de que o elemento de civilização entra em cena
com a primeira tentativa de regular esses relacionamentos sociais. Se essa tentativa não fosse feita, os
relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que equivale a dizer que o homem
fisicamente mais forte decidiria a respeito deles no sentido de seus próprios interesses e impulsos
instintivos. Nada se alteraria se, por sua vez, esse homem forte encontrasse alguém mais forte do que
ele. A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que
qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa
comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como
‘força bruta’. A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo
decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em
suas possibilidades de satisfação,ao passo que o indivíduo desconhece tais restrições. A primeira
exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não
será violada em favor de um indivíduo. Isso não acarreta nada quanto ao valor ético de tal lei. O curso
ulterior do desenvolvimento cultural parece tender no sentido de tornar a lei não mais expressão da
vontade de uma pequena comunidade - uma casta ou camada de uma população ou grupo racial -, que,
por sua vez, se comporta como um indivíduo violento frente a outros agrupamentos de pessoas, talvez
mais numerosos. O resultado final seria um estatuto legal para o qual todos - exceto os incapazes de
ingressar numa comunidade - contribuíram com um sacrifício de seus instintos, que não deixa ninguém novamente com a mesma exceção - à mercê da força bruta.
A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. Ela foi maior antes da existência de
qualquer civilização, muito embora, é verdade, naquele então não possuísse, na maior parte, valor, já que
dificilmente o indivíduo se achava em posição de defendê-la. O desenvolvimento da civilização impõe
restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições. O que se faz sentir numa
comunidade humana como desejo de liberdade pode ser sua revolta contra alguma injustiça existente, e
desse modo esse desejo pode mostrar-se favorável a um maior desenvolvimento da civilização; pode
permanecer compatível com a civilização. Entretanto, pode também originar-se dos remanescentes de
sua personalidade original, que ainda não se acha domada pela civilização, e assim nela tornar-se a base
da hostilidade à civilização. O impulso de liberdade, portanto, é dirigido contra formas e exigências
específicas da civilização ou contra a civilização em geral. Não parece que qualquer influência possa
induzir o homem a transformar sua natureza na de uma térmita. Indubitavelmente, ele sempre defenderá
sua reivindicação à liberdade individual contra a vontade do grupo. Grande parte das lutas da
humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação conveniente - isto é,
uma acomodação que traga felicidade - entre essa reivindicação do indivíduo e as reivindicações
culturais do grupo, e um dos problemas que incide sobre o destino da humanidade é o de saber se tal
acomodação pode ser alcançada por meio de alguma forma específica de civilização ou se esse conflito
é irreconciliável.
Permitindo que o sentimento comum assumisse o papel de nosso guia quanto a decidir sobre
quais aspectos da vida humana devem ser encarados como civilizados, conseguimos esboçar uma
impressão bastante clara do quadro geral da civilização; contudo, é verdade que, até agora, não
descobrimos nada que já não fosse universalmente conhecido. Ao mesmo tempo, tivemos o cuidado de
não concordar com o preconceito de que civilização ésinônimo de aperfeiçoamento, de que constitui a
estrada para a perfeição, preordenada para os homens. Agora, porém, apresenta-se um ponto de vista
que pode conduzir numa direção diferente. O desenvolvimento da civilização nos aparece como um
processo peculiar que a humanidade experimenta e no qual diversas coisas nos impressionam como
familiares. Podemos caracterizar esse processo referindo-o às modificações que ele ocasiona nas
habituais disposições instintivas dos seres humanos, para satisfazer o que, em suma, constitui a tarefa
econômica de nossas vidas. Alguns desses instintos são empregados de tal maneira que, em seu lugar,
aparece algo que, num indivíduo, descrevemos como um traço de caráter. O exemplo mais notável desse
processo é encontrado no erotismo anal das crianças. Seu interesse original pela função excretória, por
seus órgãos e produtos, transforma-se, no decurso do crescimento, num grupo de traços que nos são
familiares, tais como a parcimônia, o sentido da ordem e da limpeza - qualidades que, embora valiosas e
desejáveis em si mesmas, podem ser intensificadas até se tornarem acentuadamente dominantes e
produzirem o que se chama de caráter anal. Não sabemos como isso acontece, mas não há dúvida sobre
a exatidão da descoberta. Ora, vimos que a ordem e a limpeza constituem exigências importantes de
civilização, embora sua necessidade vital não seja muito aparente, da mesma forma que revelam
indesejáveis como fonte de prazer. Nesse ponto, não podemos deixar de ficar impressionados pela
semelhança existente entre os processos civilizatórios e o desenvolvimento libidinal do indivíduo. Outros
instintos [além do erotismo anal] são induzidos a deslocar as condições de sua satisfação, a conduzi-las
para outros caminhos. Na maioria dos casos, esse processo coincide com o da sublimação (dos fins
instintivos), com que nos achamos familiarizados; noutros, porém, pode diferenciar-se dele. A sublimação
do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é ela que torna
possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um
papel tão importante na vida civilizada. Se nos rendêssemos a uma primeira impressão, diríamos que a
sublimação constitui uma vicissitude que foi imposta aos instintos de forma total pela civilização. Seria
prudente refletir um pouco mais sobre isso. Em terceiro lugar, finalmente - e isso parece o mais
importante de tudo -, é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma
renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação (pela opressão, repressão, ou
algum outro meio?) de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo dos
relacionamentos sociais entre os seres humanos. Como já sabemos, é a causa da hostilidade contra a
qual todas as civilizações têm de lutar. Também ela fará exigências severas à nossa obra científica, e
muito teremos a explicar aqui. Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um
instinto. Não se faz isso impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar
certo de que sérios distúrbios decorrerão disso.
Mas, se quisermos saber qual o valor que pode ser atribuído à nossa opinião de que o
desenvolvimento da civilização constitui um processo especial, comparável à maturação normal do
indivíduo, temos, claramente, de atacar o problema. Devemos perguntar-nos a que influência o
desenvolvimento da civilização deve sua origem, como ela surgiu e o que determinou o seu curso.
IV
A tarefa parece imensa e, frente a ela, é natural que se sinta falta de confiança. Mas aqui estão
as conjecturas que pude efetuar.
Depois que o homem primevo descobriu que estava literalmente em suas mãos melhorar a sua
sorte na Terra através do trabalho, não lhe pode ter sido indiferente que outro homem trabalhasse com
ele ou contra ele. Esse outro homem adquiriu para ele o valor de um companheiro de trabalho, com quem
era útil conviver. Em época ainda anterior, em sua pré-história simiesca, o homem adotara o hábito de
formar famílias, e provavelmente os membros de sua família foram os seus primeiros auxiliares. Pode-se
supor que a formação de famílias deveu-se ao fato de ter ocorrido um momento em que a necessidade
de satisfação genital não apareceu mais como um hóspede que surge repentinamente e do qual, após a
partida, não mais se ouve falar por longo tempo, mas que, pelo contrário, se alojou como um inquilino
permanente. Quando isso aconteceu, o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea junto de si,
ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a fêmea, não querendo
separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no interesse deles, a permanecer com o macho
mais forte. Na família primitiva, falta ainda uma característica essencial da civilização. A vontade arbitrária
de seu chefe, o pai, era irrestrita. Em Totem e Tabu [1912-13], tentei demonstrar o caminho que vai
dessa família à etapa subseqüente, a da vida comunal, sob a forma de grupos de irmãos. Sobrepujando o
pai, os filhos descobriram que uma combinação pode ser mais forte do que um indivíduo isolado. A
cultura totêmica baseia-se nas restrições que os filhos tiveram de impor-se mutuamente, a fim de
conservar esse novo estado de coisas. Os preceitos do tabu constituíram o primeiro ‘direito’ ou ‘lei’. A
vida comunitária dos seres humanos teve, portanto, um fundamento duplo: a compulsão para o trabalho,
criada pela necessidade externa, e o poder do amor, que fez o homem relutar em privar-se de seu objeto
sexual - a mulher - e a mulher, em privar-se daquela parte de si própria que dela fora separada - seu filho.
Eros e Ananke [Amor e Necessidade] se tornaram os pais também da civilização humana. O primeiro
resultado da civilização foi que mesmo um número bastante grande de pessoas podia agora viver reunido
numa comunidade. E, como esses dois grandes poderes cooperaram para isso, poder-se-ia esperar que
o desenvolvimento ulterior da civilização progredisse sem percalços no sentido de um controle ainda
melhor sobre o mundo externo e no de uma ampliação do número de pessoasincluídas na comunidade. É
difícil compreender como essa civilização pode agir sobre os seus participantes de outro modo senão o
de torná-los felizes.
Antes de continuarmos a indagar sobre de que direção uma interferência poderia surgir, o
reconhecimento do amor como um dos fundamentos da civilização pode servir de pretexto para uma
digressão que nos capacitará a preencher uma lacuna por nós deixada num exame anterior,ver [[1]].
Mencionáramos então que a descoberta feita pelo homem de que o amor sexual (genital) lhe
proporcionava as mais intensas experiências de satisfação, fornecendo-lhe, na realidade, o protótipo de
toda felicidade, deve ter-lhe sugerido que continuasse a buscar a satisfação da felicidade em sua vida
seguindo o caminho das relações sexuais e que tornasse o erotismo genital o ponto central dessa mesma
vida. Prosseguimos dizendo que, fazendo assim, ele se tornou dependente, de uma forma muito
perigosa, de uma parte do mundo externo, isto é, de seu objeto amoroso escolhido, expondo-se a um
sofrimento extremo, caso fosse rejeitado por esse objeto ou o perdesse através da infidelidade ou da
morte. Por essa razão, os sábios de todas as épocas nos advertiram enfaticamente contra tal modo de
vida; apesar disso, ele não perdeu seu atrativo para grande número de pessoas.
Apesar de tudo, uma pequena minoria de pessoas acha-se capacitada, por sua constituição, a
encontrar felicidade no caminho do amor. Fazem-se necessárias, porém, alterações mentais de grande
alcance na função do amor antes que isso possa acontecer. Essas pessoas se tornam independentes da
aquiescência de seu objeto, deslocando o que mais valorizam do ser amado para o amar; protegem-se
contra a perda do objeto, voltando seu amor, não para objetos isolados, mas para todos os homens, e, do
mesmo modo, evitam as incertezas e as decepções do amor genital, desviando-se de seus objetivos
sexuais e transformando o instinto num impulso com uma finalidade inibida. Ocasionam assim, nelas
mesmas, um estado de sentimento imparcialmente suspenso, constante e afetuoso, que tem pouca
semelhança externa com as tempestuosas agitações do amor genital, do qual, não obstante, se deriva.
Talvez São Francisco de Assis tenha sido quem mais longe foi na utilização do amor para beneficiar um
sentimento interno de felicidade. Além disso, aquilo que identificamos como sendo uma das técnicas para
realizar o princípio do prazer foi amiúde vinculado à religião; essa vinculação pode residir nas remotas
regiões em que a distinção entre o ego e os objetos, ou entre os próprios objetos, é desprezada. De
acordo com determinado ponto de vista ético, cuja motivação mais profunda se nos tornará clara dentro
em pouco, essa disposição para o amor universal pela humanidade e pelo mundo representa o ponto
mais alto que o homem pode alcançar. Mesmo nessa etapapreliminar da discussão, gostaria de
apresentar minhas duas principais objeções a essa opinião. Um amor que não discrimina me parece
privado de uma parte de seu próprio valor, por fazer uma injustiça a seu objeto, e, em segundo lugar,
nem todos os homens são dignos de amor.
O amor que fundou a família continua a operar na civilização, tanto em sua forma original, em
que não renuncia à satisfação sexual direta, quanto em sua forma modificada, como afeição inibida em
sua finalidade. Em cada uma delas, continua a realizar sua função de reunir consideráveis quantidades
de pessoas, de um modo mais intensivo do que o que pode ser efetuado através do interesse pelo
trabalho em comum. A maneira descuidada com que a linguagem utiliza a palavra ‘amor’ conta com uma
justificação genética. As pessoas dão o nome de ‘amor’ ao relacionamento entre um homem e uma
mulher cujas necessidades genitais os levaram a fundar uma família; também dão esse nome aos
sentimentos positivos existentes entre pais e filhos, e entre os irmãos e as irmãs de uma família, embora
nós sejamos obrigados a descrever isso como ‘amor inibido em sua finalidade’ ou ‘afeição’. O amor com
uma finalidade inibida foi de fato, originalmente, amor plenamente sensual, e ainda o é no inconsciente
do homem. Ambos - o amor plenamente sensual e o amor inibido em sua finalidade - estendem-se
exteriormente à família e criam novos vínculos com pessoas anteriormente estranhas. O amor genital
conduz à formação de novas famílias, e o amor inibido em sua finalidade, a ‘amizades’ que se tornam
valiosas, de um ponto de vista cultural, por fugirem a algumas das limitações do amor genital, como, por
exemplo, à sua exclusividade. No decurso do desenvolvimento, porém, a relação do amor com a
civilização perde sua falta de ambigüidade. Por um lado, o amor se coloca em oposição aos interesses da
civilização; por outro, esta ameaça o amor com restrições substanciais.
Essa incompatibilidade entre amor e civilização parece inevitável e sua razão não é
imediatamente reconhecível. Expressa-se a princípio como um conflito entre a família e a comunidade
maior a que o indivíduo pertence. Já percebemos que um dos principais esforços da civilização é reunir
as pessoas em grandes unidades. Mas a família não abandona o indivíduo. Quanto mais estreitamente
os membros de uma família se achem mutuamente ligados, com mais freqüência tendem a se apartarem
dos outros e mais difícil lhes é ingressar no círculo mais amplo da cidade. O modo de vida em comum
que é filogeneticamente o mais antigo, e o único que existe na infância, não se deixará sobrepujar pelo
modo cultural de vida adquirido depois. Separar-se da família torna-se umatarefa com que todo jovem se
defronta, e a sociedade freqüentemente o auxilia na solução disso através dos ritos de puberdade e de
iniciação. Ficamos com a impressão de que se trata de dificuldades inerentes a todo desenvolvimento
psíquico - e, em verdade, no fundo, a todo desenvolvimento orgânico.
Além do mais, as mulheres logo se opõem à civilização e demonstram sua influência retardante e
coibidora - as mesmas mulheres que, de início, estabeleceram os fundamentos da civilização pelas
reivindicações de seu amor. As mulheres representam os interesses da família e da vida sexual. O
trabalho de civilização tornou-se cada vez mais um assunto masculino, confrontando os homens com
tarefas cada vez mais difíceis e compelindo-os a executarem sublimações instintivas de que as mulheres
são pouco capazes. Já que o homem não dispõe de quantidades ilimitadas de energia psíquica, tem de
realizar suas tarefas efetuando uma distribuição conveniente de sua libido. Aquilo que emprega para
finalidades culturais, em grande parte o extrai das mulheres e da vida sexual. Sua constante associação
com outros homens e a dependência de seus relacionamentos com eles o alienam inclusive de seus
deveres de marido e de pai. Dessa maneira, a mulher se descobre relegada a segundo plano pelas
exigências da civilização e adota uma atitude hostil para com ela.
A tendência por parte da civilização em restringir a vida sexual não é menos clara do que sua
outra tendência em ampliar a unidade cultural. Sua primeira fase, totêmica, já traz com ela a proibição de
uma escolha incestuosa de objeto, o que constitui, talvez, a mutilação mais drástica que a vida erótica do
homem em qualquer época já experimentou. Os tabus, as leis e os costumes impõem novas restrições,
que influenciam tanto homens quanto mulheres. Nem todas as civilizações vão igualmente longe nisso, e
a estrutura econômica da sociedade também influencia a quantidade de liberdade sexual remanescente.
Aqui, como já sabemos, a civilização está obedecendo às leis da necessidade econômica, visto que uma
grande quantidade da energia psíquica que ela utiliza para seus próprios fins tem de ser retirada da
sexualidade. Com relação a isso, a civilização se comporta diante da sexualidade da mesma forma que
um povo, ou uma de suas camadas sociais, procede diante de outros que estão submetidos à sua
exploração. O temor a uma revolta por parte dos elementos oprimidos a conduz à utilização de medidas
de precaução mais estritas. Um ponto culminante nesse desenvolvimento foi atingido em nossa
civilização ocidental européia. Uma comunidade cultural acha-se, do ponto de vista psicológico,
perfeitamente justificada em começar por proscrever as manifestações da vida sexual das crianças, pois
não haveria perspectiva de submeter os apetites sexuais dos adultos, se os fundamentospara isso não
tivessem sido lançados na infância. Contudo, uma comunidade desse tipo de modo algum pode ser
justificada se vai até o ponto de realmente repudiar essas manifestações facilmente demonstráveis e, na
verdade, notáveis. Quanto ao indivíduo sexualmente maduro, a escolha de um objeto restringe-se ao
sexo oposto, estando as satisfações extragenitais, em sua maioria, proibidas como perversão. A
exigência, demonstrada nessas proibições, de que haja um tipo único de vida sexual para todos, não leva
em consideração as dessemelhanças, inatas ou adquiridas, na constituição sexual dos seres humanos;
cerceia, em bom número deles, o gozo sexual, tornando-se assim fonte de grave injustiça. O resultado de
tais medidas restritivas poderia ser que, nas pessoas normais - que não se acham impedidas por sua
constituição -, a totalidade dos seus interesses sexuais fluísse, sem perdas, para os canais que são
deixados abertos. No entanto, o próprio amor genital heterossexual, que permaneceu isento de
proscrição, é restringido por outras limitações, apresentadas sob a forma da insistência na legitimidade e
na monogamia. A civilização atual deixa claro que só permite os relacionamentos sexuais na base de um
vínculo único e indissolúvel entre um só homem e uma só mulher, e que não é de seu agrado a
sexualidade como fonte de prazer por si própria, só se achando preparada para tolerá-la porque, até o
presente, para ela não existe substituto como meio de propagação da raça humana.
Naturalmente, isso configura um quadro extremado. Todos sabem que ele se mostrou inxeqüível,
mesmo por períodos muito breves. Apenas os fracos se submeteram a uma usurpação tão ampla de sua
liberdade sexual, e as naturezas mais fortes só o fizeram mediante uma condição compensatória, que
será posteriormente mencionada. A sociedade civilizada viu-se obrigada a silenciar sobre muitas
transgressões que, segundo os seus próprios princípios, deveria ter punido. Mas, por um outro lado, não
devemos errar, supondo que, por não alcançar todos os seus objetivos, uma atitude desse tipo por parte
da sociedade seja inteiramente inócua. A vida sexual do homem civilizado encontra-se, não obstante,
severamente prejudicada; dá, às vezes, a impressão de estar em processo de involução enquanto
função, tal como parece acontecer com nossos dentes e cabelos. Provavelmente, justifica-se supor que
sua importância enquanto fonte de sentimentos de felicidade e, portanto, na realização de nosso objetivo
na vida, diminuiu sensivelmente. Às vezes, somos levados a pensar que nãose trata apenas da pressão
da civilização, mas de algo da natureza da própria função que nos nega satisfação completa e nos incita
a outros caminhos. Isso pode estar errado; é difícil decidir.
V
O trabalho psicanalítico nos mostrou que as frustrações da vida sexual são precisamente aquelas
que as pessoas conhecidas como neuróticas não podem tolerar. O neurótico cria em seus sintomas
satisfações substitutivas para si, e estas ou lhe causam sofrimento em si próprias, ou se lhe tornam
fontes de sofrimento pela criação de dificuldades em seus relacionamentos com o meio ambiente e a
sociedade a que pertence. Esse último fato é fácil de compreender; o primeiro nos apresenta um novo
problema. A civilização, porém, exige outros sacrifícios, além do da satisfação sexual.
Abordamos a dificuldade do desenvolvimento cultural como sendo uma dificuldade geral de
desenvolvimento, fazendo sua origem remontar à inércia da libido, à falta de inclinação desta para
abandonar uma posição antiga por outra nova. Dizemos quase a mesma coisa quando fazemos a
antítese entre civilização e sexualidade derivar da circunstância de o amor sexual constituir um
relacionamento entre dois indivíduos, no qual um terceiro só pode ser supérfluo ou perturbador, ao passo
que a civilização depende de relacionamentos entre um considerável número de indivíduos. Quando um
relacionamento amoroso se encontra em seu auge, não resta lugar para qualquer outro interesse pelo
ambiente; um casal de amantes se basta a si mesmo; sequer necessitam do filho que têm em comum
para torná-los felizes. Em nenhum outro caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser, o seu
intuito de, de mais de um, fazer um único; contudo, quando alcança isso da maneira proverbial, ou seja,
através do amor de dois seres humanos, recusa-se a ir além.
Até aqui, podemos imaginar perfeitamente uma comunidade cultural que consista em indivíduos
duplos como este, que, libidinalmente satisfeitos em si mesmos, se vinculem uns aos outros através dos
elos do trabalho comum e dos interesses comuns. Se assim fosse, a civilização não teria que extrair
energia alguma da sexualidade. Contudo, esse desejável estado de coisas não existe, nem nunca existiu.
A realidade nos mostra que a civilização não se contenta com as ligações que até agora lhe concedemos.
Visa a unir entre si os membros da comunidade também de maneira libidinal e, para tanto, emprega
todos os meios. Favorece todos os caminhos pelos quais identificações fortes possam ser estabelecidas
entre os membros da comunidade e, na mais ampla escala, convoca a libido inibida em sua finalidade,
demodo a fortalecer o vínculo comunal através das relações de amizade. Para que esses objetivos sejam
realizados, faz-se inevitável uma restrição à vida sexual. Não conseguimos, porém, entender qual
necessidade força a civilização a tomar esse caminho, necessidade que provoca o seu antagonismo à
sexualidade. Deve haver algum fator de perturbação que ainda não descobrimos.
A pista pode ser fornecida por uma das exigências ideais, tal como as denominamos, da
sociedade civilizada. Diz ela: ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo.’ Essa exigência, conhecida em
todo o mundo, é, indubitavelmente, mais antiga que o cristianismo, que a apresenta como sua
reivindicação mais gloriosa. No entanto, ela não é decerto excessivamente antiga; mesmo já em tempos
históricos, ainda era estranha à humanidade. Se adotarmos uma atitude ingênua para com ela, como se
a estivéssemos ouvindo pela primeira vez, não poderemos reprimir um sentimento de surpresa e
perplexidade. Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos trará? Acima de tudo, como
conseguiremos agir desse modo? Como isso pode ser possível? Meu amor, para mim, é algo de valioso,
que eu não devo jogar fora sem reflexão. A máxima me impõe deveres para cujo cumprimento devo estar
preparado e disposto a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa, ela tem de merecer meu amor de alguma
maneira. (Não estou levando em consideração o uso que dela posso fazer, nem sua possível significação
para mim como objeto sexual, de uma vez que nenhum desses dois tipos de relacionamento entra em
questão onde o preceito de amar meu próximo se acha em jogo.) Ela merecerá meu amor, se for de tal
modo semelhante a mim, em aspectos importantes, que eu me possa amar nela; merecê-lo-á também, se
for de tal modo mais perfeita do que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu (self). Terei
ainda de amá-la, se for o filho de meu amigo, já que o sofrimento que este sentiria se algum dano lhe
ocorresse seria meu sofrimento também - eu teria de partilhá-lo. Mas, se essa pessoa for um estranho
para mim e não conseguir atrair-me por um de seus próprios valores, ou por qualquer significação que já
possa ter adquirido para a minha vida emocional, me será muito difícil amá-la. Na verdade, eu estaria
errado agindo assim, pois meu amor é valorizado por todos os meus como um sinal de minha preferência
por eles, e seria injusto para com eles, colocar um estranho no mesmo plano em que eles estão. Se, no
entanto, devo amá-lo (com esse amor universal) meramente porque ele também é um habitante da Terra,
assim como o são um inseto, uma minhoca ou uma serpente, receio então que sóuma pequena
quantidade de meu amor caberá à sua parte - e não, em hipótese alguma, tanto quanto, pelo julgamento
de minha razão, tenho o direito de reter para mim. Qual é o sentido de um preceito enunciado com tanta
solenidade, se seu cumprimento não pode ser recomendado como razoável?
Através de um exame mais detalhado, descubro ainda outras dificuldades. Não meramente esse
estranho é, em geral, indigno de meu amor; honestamente, tenho de confessar que ele possui mais
direito a minha hostilidade e, até mesmo, meu ódio. Não parece apresentar o mais leve traço de amor por
mim e não demonstra a mínima consideração para comigo. Se disso ele puder auferir uma vantagem
qualquer, não hesitará em me prejudicar; tampouco pergunta a si mesmo se a vantagem assim obtida
contém alguma proporção com a extensão do dano que causa em mim. Na verdade, não precisa nem
mesmo auferir alguma vantagem; se puder satisfazer qualquer tipo de desejo com isso, não se importará
em escarnecer de mim, em me insultar, me caluniar e me mostrar a superioridade de seu poder, e,
quanto mais seguro se sentir e mais desamparado eu for, mais, com certeza, posso esperar que se
comporte dessa maneira para comigo. Caso se conduza de modo diferente, caso mostre consideração e
tolerância como um estranho, estou pronto a tratá-lo da mesma forma, em todo e qualquer caso e
inteiramente fora de todo e qualquer preceito. Na verdade, se aquele imponente mandamento dissesse
‘Ama a teu próximo como este te ama’, eu não lhe faria objeções. E há um segundo mandamento que me
parece mais incompreensível ainda e que desperta em mim uma oposição mais forte ainda. Trata-se do
mandamento ‘Ama os teus inimigos’. Refletindo sobre ele, no entanto, percebo que estou errado em
considerá-lo como uma imposição maior. No fundo, é a mesma coisa.
Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‘É precisamente porque teu
próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’.
Compreendo então que se trata de um caso semelhante ao do Credo quia absurdum.Ora, é muito
provável que meu próximo, quando lhe for prescrito que me ame como a si mesmo, responda exatamente
como o fiz e me rejeite pelas mesmas razões. Espero que não tenha os mesmos fundamentos objetivos
para fazê-lo, mas terá a mesma idéia que tenho. Ainda assim, o comportamento dos seres humanos
apresenta diferenças que a ética, desprezando o fato de que tais diferenças são determinadas, classifica
como ‘boas’ ou ‘más’. Enquanto essas inegáveis diferenças não forem removidas, a obediência às
elevadas exigências éticas acarreta prejuízos aos objetivos da civilização, por incentivar o ser mau. Não
podemos deixar de lembrar um incidente ocorrido na câmara dos deputados francesa, quando a pena
capital estava em debate. Um dos membros acabara de defender apaixonadamente a abolição dela e seu
discurso estava sendo recebido com tumultuosos aplausos, quando uma voz vinda do plenário exclamou:
‘Que messieurs les assassins commencent!
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a
repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem
defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em
conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas
um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a
sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem
o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo.
- Homo homini lupus. Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de
discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se
coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas
mais brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que
normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o
homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo
estranho. Quem quer que relembre as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as
invasões dos hunos, ou pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de Gengis Khan e Tamerlão,
ou na captura de Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou mesmo, na verdade, os horrores da recente
guerra mundial,quem quer que relembre tais coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade
dessa opinião.
A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com
justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o
nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de energia]. Em conseqüência dessa
mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada
de desintegração. O interesse pelo trabalho em comum não a manteria unida; as paixões instintivas são
mais fortes que os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de
estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por
formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a
identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí,
também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente
justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem. A despeito de
todos os esforços, esses empenhos da civilização até hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os
excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência
contra os criminosos; no entanto, a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais
cautelosas e refinadas da agressividade humana. Chega a hora em que cada um de nós tem de
abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes, e
aprende quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles. Ao
mesmo tempo, seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade humana a luta e a
competição. Elas são indubitavelmente indispensáveis. Mas oposição não é necessariamente inimizade;
simplesmente, ela é mal empregada e tornada uma ocasião para a inimizade.
Os comunistas acreditam ter descoberto o caminho para nos livrar de nossos males. Segundo
eles, o homem é inteiramente bom e bem disposto para como seu próximo, mas a instituição da
propriedade privada corrompeu-lhe a natureza. A propriedade da riqueza privada confere poder ao
indivíduo e, com ele, a tentação de maltratar o próximo, ao passo que o homem excluído da posse está
fadado a se rebelar hostilmente contra seu opressor.
Se a propriedade privada fosse abolida, possuída em comum toda a riqueza e permitida a todos
a partilha de sua fruição, a má vontade e a hostilidade desapareceriam entre os homens. Como as
necessidades de todos seriam satisfeitas, ninguém teria razão alguma para encarar outrem comoinimigo;
todos, de boa vontade, empreenderiam o trabalho que se fizesse necessário. Não estou interessado em
nenhuma crítica econômica do sistema comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade
privada é conveniente ou vantajosa. Mas sou capaz de reconhecer que as premissas psicológicas em
que o sistema se baseia são uma ilusão insustentável. Abolindo a propriedade privada, privamos o amor
humano da agressão de um de seus instrumentos, decerto forte, embora, decerto também, não o mais
forte; de maneira alguma, porém, alteramos as diferenças em poder e influência que são mal
empregadas pela agressividade, nem tampouco alteramos nada em sua natureza. A agressividade não
foi criada pela propriedade. Reinou quase sem limites nos tempos primitivos, quando a propriedade ainda
era muito escassa, e já se apresenta no quarto das crianças, quase antes que a propriedade tenha
abandonado sua forma anal e primária; constitui a base de toda relação de afeto e amor entre pessoas (
com a única exceção, talvez, do relacionamento da mãe com seu filho homem). Se eliminamos os direitos
pessoais sobre a riqueza material, ainda permanecem, no campo dos relacionamentos sexuais,
prerrogativas fadadas a se tornarem a fonte da mais intensa antipatia e da mais violenta hostilidade entre
homens que, sob outros aspectos, se encontram em pé de igualdade. Se também removermos esse
fator, permitindo a liberdade completa da vida sexual, e assim abolirmos a família, célula germinal da
civilização, não podemos, é verdade, prever com facilidade quais os novos caminhos que o
desenvolvimento da civilização vai tomar; uma coisa, porém, podemos esperar; é que, nesse caso, essa
característica indestrutível da natureza humana seguirá a civilização.
Evidentemente, não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa inclinação para a
agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis. A vantagem que um grupo cultural,
comparativamente pequeno, oferece, concedendo a esse instinto um escoadouro sob a forma de
hostilidade contra intrusos, não é nada desprezível. É sempre possível unir um considerávelnúmero de
pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua
agressividade. Em outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades com
territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que se empenham em
rixas constantes, ridicularizando-se umas às outras, como os espanhóis e os portugueses por exemplo,
os alemães do Norte e os alemães do Sul, os ingleses e os escoceses, e assim por diante. Dei a esse
fenômeno o nome de ‘narcisismo das pequenas diferenças’, denominação que não ajuda muito a explicálo. Agora podemos ver que se trata de uma satisfação conveniente e relativamente inócua da inclinação
para a agressão, através da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais fácil. Com
respeito a isso, o povo judeu, espalhado por toda a parte, prestou os mais úteis serviços às civilizações
dos países que os acolheram; infelizmente, porém, todos os massacres de judeus na Idade Média não
bastaram para tornar o período mais pacífico e mais seguro para seus semelhantes cristãos. Quando,
outrora, o Apóstolo Paulo postulou o amor universal entre os homens como o fundamento de sua
comunidade cristã, uma extrema intolerância por parte da cristandade para com os que permaneceram
fora dela tornou-se uma conseqüência inevitável. Para os romanos, que não fundaram no amor sua vida
comunal como Estado, a intolerância religiosa era algo estranho, embora, entre eles, a religião fosse do
interesse do Estado e este se achasse impregnado dela. Tampouco constituiu uma possibilidade
inexeqüível que o sonho de um domínio mundial germânico exigisse o anti-semitismo como seu
complemento, sendo, portanto, compreensível que a tentativa de estabelecer uma civilização nova e
comunista na Rússia encontre o seu apoio psicológico na perseguição aos burgueses. Não se pode
senão imaginar, com preocupação, sobre o que farão os soviéticos depois que tiverem eliminado seus
burgueses.
Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas
também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa
civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer restrições de
instinto. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por qualquer período de
tempo, eram muito tênues. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade
por uma parcela de segurança. Não devemos esquecer, contudo, que na família primeva apenas o chefe
desfrutava da liberdade instintiva; o resto vivia em opressão servil.Naquele período primitivo da
civilização, o contraste entre uma minoria que gozava das vantagens da civilização e uma maioria privada
dessas vantagens era, portanto, levada a seus extremos. Quanto aos povos primitivos que ainda hoje
existem, pesquisas cuidadosas mostraram que sua vida instintiva não é, de maneira alguma, passível de
ser invejada por causa de sua liberdade. Está sujeita a restrições de outra espécie, talvez mais severas
do que aquelas que dizem respeito ao homem moderno.
Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização, por
atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano de vida que nos torne felizes, e por
permitir a existência de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica
impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um
direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar efetuar, gradativamente, em
nossa civilização alterações tais, que satisfaçam melhor nossas necessidades e escapem às nossas
críticas. Mas talvez possamos também nos familiarizar com a idéia de existirem dificuldades, ligadas à
natureza da civilização, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma. Além e acima das
tarefas de restringir os instintos, para as quais estamos preparados, reivindica nossa atenção o perigo de
um estado de coisas que poderia ser chamado de ‘pobreza psicológica dos grupos’. Esse perigo é mais
ameaçador onde os vínculos de uma sociedade são principalmente constituídos pelas identificações dos
seus membros uns com os outros, enquanto que indivíduos do tipo de um líder não adquirem a
importância que lhes deveria caber na formação de um grupo. O presente estado cultural dos Estados
Unidos da América nos proporcionaria uma boa oportunidade para estudar o prejuízo à civilização, que
assim é de se temer. Evitarei, porém, a tentação de ingressar numa crítica da civilização americana; não
desejo dar a impressão de que eu mesmo estou empregando métodos americanos.
VI
Em nenhum de meus trabalhos anteriores tive, tão forte quanto agora, a impressão de que o que
estou descrevendo pertence ao conhecimento comum e de que estou desperdiçando papel e tinta, ao
mesmo tempo que usando o trabalho e o material do tipógrafo e do impressor para expor coisas que, na
realidade, são evidentes por si mesmas. Por essa razão, ficaria feliz em desenvolver o tema se isso
levasse à conclusão de que o reconhecimento de um instinto agressivo, especial e independente,
significa uma alteração da teoria psicanalítica dos instintos.
Veremos, no entanto, que a coisa não é bem assim, e que se trata simplesmente de focalizar de
modo mais nítido uma mudança de pensamento há muito tempo introduzida, seguindo-a até suas últimas
conseqüências. De todas as partes lentamente desenvolvidas da teoria analítica, a teoria dos instintos foi
a que mais penosa e cautelosamente progrediu. Contudo, essa teoria era tão indispensável a toda a
estrutura, que algo tinha de ser colocado em seu lugar. No que constituía, a princípio, minha completa
perplexidade, tomei como ponto de partida uma expressão do poeta-filósofo Schiller: ‘são a fome e o
amor que movem o mundo’. A fome podia ser vista como representando os instintos que visam a
preservar o indivíduo, ao passo que o amor se esforça na busca de objetos, e sua principal função,
favorecida de todos os modos pela natureza, é a preservação da espécie. Assim, de início, os instintos do
ego e os instintos objetais se confrontavam mutuamente. Foi para denotar a energia destes últimos, e
somente deles, que introduzi o termo ‘libido’. Assim, a antítese se verificou entre os instintos do ego e os
instintos ‘libidinais’ do amor (em seu sentido mais amplo) que eram dirigidos a um objeto. Um desses
instintos objetais, o instinto sádico, destacou-se do restante, é verdade, pelo fato de o seu objetivo estar
muito longe de ser o amar. Ademais, ele se encontrava obviamente ligado, sob certos aspectos, aos
instintos do ego, pois não podia ocultar sua estreita afinidade com os instintos de domínio que não
possuem propósito libidinal. Mas essas discrepâncias foram superadas; afinal de contas, o sadismo fazia
claramente parte da vidasexual, em cujas atividades a afeição podia ser substituída pela crueldade. A
neurose foi encarada como o resultado de uma luta entre o interesse de autopreservação e as exigências
da libido, luta da qual o ego saiu vitorioso, ainda que ao preço de graves sofrimentos e renúncias.
Todo analista admitirá que, ainda hoje, essa opinião não soa como um erro há muito tempo
abandonado. Não obstante, alterações nela se tornaram essenciais, à medida que nossas investigações
progrediam das forças reprimidas para as repressoras, dos instintos objetais para o ego. O decisivo
passo à frente consistiu na introdução do conceito de narcisismo, isto é, a descoberta de que o próprio
ego se acha catexizado pela libido, de que o ego, na verdade, constitui o reduto original dela e continua a
ser, até certo ponto, seu quartel-general. Essa libido narcísica se volta para os objetos, tornando-se
assim libido objetal, e podendo transformar-se novamente em libido narcísica. O conceito do narcisismo
possibilitou a obtenção de uma compreensão analítica das neuroses traumáticas, de várias das afecções
fronteiriças às psicoses, bem como destas últimas. Não foi necessário abandonar nossa interpretação
das neuroses de transferência como se fossem tentativas feitas pelo ego para se defender contra a
sexualidade, mas o conceito de libido ficou ameaçado. Como os instintos do ego também são libidinais,
pareceu, por certo tempo, inevitável que tivéssemos de fazer a libido coincidir com a energia instintiva em
geral, como C. G. Jung já advogara anteriormente. Não obstante, ainda permanecia em mim uma espécie
de convicção, para a qual ainda não me considerava capaz de encontrar razões, de que os instintos não
podiam ser todos da mesma espécie. Meu passo seguinte foi dado em Mais Além do Princípio do Prazer
(1920g), quando, pela primeira vez, a compulsão para repetir e o caráter conservador da vida instintiva
atraíram minha atenção. Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos,
concluí que, ao lado do instinto para preservar a substância viva e para reuni-la em unidades cada vez
maiores, deveria haver outro instinto, contrário àquele, buscando dissolver essas unidades e conduzi-las
de volta a seu estado primevo e inorgânico. Isso equivalia a dizer que, assim como Eros, existia também
um instinto de morte. Os fenômemos da vida podiam ser explicados pela ação concorrente, ou
mutuamente oposta, desses dois instintos. Não era fácil, contudo, demonstrar as atividades desse
suposto instintode morte. As manifestações de Eros eram visíveis e bastante ruidosas. Poder-se-ia
presumir que o instinto de morte operava silenciosamente dentro do organismo, no sentido de sua
destruição, mas isso, naturalmente, não constituía uma prova. Uma idéia mais fecunda era a de que uma
parte do instinto é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz como um instinto de agressividade
e destrutividade. Dessa maneira, o próprio instinto podia ser compelido para o serviço de Eros, no caso
de o organismo destruir alguma outra coisa, inanimada ou animada, em vez de destruir o seu próprio eu
(self). Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria fadada a aumentar
a autodestruição, a qual, em todo e qualquer caso, prossegue. Ao mesmo tempo, pode-se suspeitar, a
partir desse exemplo, que os dois tipos de instinto raramente - talvez nunca - aparecem isolados um do
outro, mas que estão mutuamente mesclados em proporções variadas e muito diferentes, tornando-se
assim irreconhecíveis para nosso julgamento. No sadismo, há muito tempo de nós conhecido como
instinto componente da sexualidade, teríamos à nossa frente um vínculo desse tipo particularmente forte,
isto é, um vínculo entre as tendências para o amor e o instinto destrutivo, ao passo que sua contrapartida,
o masoquismo, constituiria uma união entre a destrutividade dirigida para dentro e a sexualidade, união
que transforma aquilo que, de outro modo, é uma tendência imperceptível, numa outra conspícua e
tangível.
A afirmação da existência de um instinto de morte ou de destruição deparou-se com resistências,
inclusive em círculos analíticos; estou ciente de que existe, antes, uma inclinação freqüente a atribuir o
que é perigoso e hostil no amor a uma bipolaridade original de sua própria natureza. A princípio, foi
apenas experimentalmente que apresentei as opiniões aqui desenvolvidas, mas, com o decorrer do
tempo, elas conseguiram tal poder sobre mim, que não posso mais pensar de outra maneira. Para mim,
elas são muito mais úteis, de um ponto de vista teórico do que quaisquer outras possíveis; fornecem
aquela simplificação, sem ignorar ou violentar os fatos, pela qual nos esforçamos no trabalho científico.
Sei que no sadismo e no masoquismo sempre vimos diante de nós manifestações do instinto destrutivo
(dirigidas para fora e para dentro), fortemente mescladas ao erotismo, mas não posso mais entender
como foi que pudemos ter desprezado a ubiqüidade da agressividade e da destrutividade não eróticas e
falhado em conceder-lhe o devido lugar em nossa interpretação da vida. (O desejo de destruição, quando
dirigido para dentro, de fato foge, grandemente à nossa percepção, a menos que estejarevestido de
erotismo.) Recordo minha própria atitude defensiva quando a idéia de um instinto de destruição surgiu
pela primeira vez na literatura psicanalítica, e quanto tempo levou até que eu me tornasse receptivo a ela.
Que outros tenham demonstrado, e ainda demonstrem, a mesma atitude de rejeição, surpreende-me
menos, pois ‘as criancinhas não gostam’ quando se fala na inata inclinação humana para a ‘ruindade’, a
agressividade e a destrutividade, e também para a crueldade. Deus nos criou à imagem de Sua própria
perfeição; ninguém deseja que lhe lembrem como é difícil reconciliar a inegável existência do mal - a
despeito dos protestos da Christian Science - com o Seu poder e a Sua bondade. O Demônio seria a
melhor saída como desculpa para Deus; dessa maneira, ele estaria desempenhando o mesmo papel,
como agente de descarga econômica, que o judeu desempenha no mundo do ideal ariano. Mas, ainda
assim, pode-se responsabilizar Deus pela existência do Demônio, bem como pela existência da
malignidade que este corporifica. Em vista dessas dificuldades, ser-nos-á mais aconselhável, nas
ocasiões apropriadas, fazer uma profunda reverência à natureza profundamente moral da humanidade;
isso nos ajudará a sermos populares e, por causa disso, muita coisa nos será perdoada. O nome ‘libido’
pode mais uma vez ser utilizado para denotar as manifestações do poder de Eros, a fim de distingui-las
da energia do instinto de morte. Deve-se confessar que temos uma dificuldade muito maior em apreender
esse instinto; podemos apenas suspeitá-lo, por assim dizer, como algo situado em segundo plano, por
trás de Eros, fugindo à detecção, a menos que sua presença seja traída pelo fato de estar ligado a Eros.
É no sadismo - onde o instinto de morte deforma o objetivo erótico em seu próprio sentido, embora, ao
mesmo tempo, satisfaça integralmente o impulso erótico - que conseguimos obter a mais clara
compreensão interna (insight) de sua natureza e de sua relação com Eros. Contudo, mesmo onde ele
surge sem qualquer intuito sexual, na mais cega fúria de destrutividade, não podemos deixar de
reconhecer que a satisfação do instinto se faz acompanhar por um grau extraordinariamente alto de
fruição narcísica, devido ao fato de presentear o ego com a realização de antigos desejos de onipotência
deste último. O instinto de destruição, moderado e domado, e, por assim dizer, inibido em sua finalidade,
deve, quando dirigido para objetos, proporcionar ao ego a satisfação de suas necessidades vitais e o
controle sobre a natureza. Como a afirmação da existência do instinto se baseia principalmente em
fundamentos teóricos, temos também de admitir que ela não se acha inteiramente imune a objeções
teóricas. Mas é assim que as coisas se nos apresentam atualmente, no presente estado de nosso
conhecimento; a pesquisa e a reflexão futuras indubitavelmente trarão novas luzes decisivas para esse
tema.
Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão
constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-subsistente, e retorno à minha opinião,ver
[[1]] de que ela é o maior impedimento à civilização. Em determinado ponto do decorrer dessa
investigação ver [[1]], fui conduzido à idéia de que a civilização constituía um processo especial que a
humanidade experimenta, e ainda me acho sob a influência dela. Posso agora acrescentar que a
civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos
isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa únicagrande unidade, a unidade
da humanidade. Porque isso tem de acontecer, não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este.
Essas reuniões de homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade, as
vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas. Mas o natural instinto agressivo
do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse programa
da civilização. Esse instinto agressivo é o derivado e o principal representante do instinto de morte, que
descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o
significado da evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a
Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana.
Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser
simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que
nossas babás tentam apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o Céu.
VII
Por que nossos parentes, os animais, não apresentam uma luta cultural desse tipo? Não
sabemos. Provavelmente alguns deles - as abelhas, as formigas, as térmitas - batalharam durante
milhares de anos antes de chegarem às instituições estatais, à distribuição de funções e às restrições ao
indivíduo pelas quais hoje os admiramos. Constitui um sinal de nossa condição atual o fato de sabermos,
por nossos próprios sentimentos, que não nos sentiríamos felizes em quaisquer desses Estados animais
ou em qualquer dos papéis neles atribuídos ao indivíduo. No caso das outras espécies animais, pode ser
que um equilíbrio temporário tenha sido alcançado entre as influências de seu meio ambiente e os
instintos mutuamente conflitantes dentro delas, havendo ocorrido assim uma cessação de
desenvolvimento. Pode ser que no homem primitivo um novo acréscimo de libido tenha provocado um
surto renovado de atividade por parte do instinto destrutivo. Temos aqui muitas questões para as quais
ainda não existe resposta.
Outra questão nos interessa mais de perto. Quais os meios que a civilização utiliza para inibir a
agressividade que se lhe opõe, torná-la inócua ou, talvez, livrar-se dela? Já nos familiarizamos com
alguns desses métodos, mas ainda não com aquele que parece ser o mais importante. Podemos estudálo na história do desenvolvimento do indivíduo. O que acontece neste para tornar inofensivo seu desejo
de agressão? Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante óbvio. Sua
agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta para o lugar de onde
proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se
coloca contra o resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de ‘consciência’, está pronta para
pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre
outros indivíduos, a ele estranhos. A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é
por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização,
portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmandoo e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade
conquistada.
Quanto à origem do sentimento de culpa, as opiniões do analista diferem das dos outros
psicólogos, embora também ele não ache fácil descrevê-lo. Inicialmente, se perguntarmos como uma
pessoa vem a ter sentimento deculpa, chegaremos a uma resposta indiscutível: uma pessoa sente-se
culpada (os devotos diriam ‘pecadora’) quando fez algo que sabe ser ‘mau’. Reparamos, porém, em quão
pouco essa resposta nos diz. Talvez, após certa hesitação, acrescentemos que, mesmo quando a pessoa
não fez realmente uma coisa má, mas apenas identificou em si uma intenção de fazê-la, ela pode
encarar-se como culpada. Surge então a questão de saber por que a intenção é considerada equivalente
ao ato. Ambos os casos, contudo, pressupõem que já se tenha reconhecido que o que é mau é
repreensível, é algo que não deve ser feito. Como se chega a esse julgamento? Podemos rejeitar a
existência de uma capacidade original, por assim dizer, natural de distinguir o bom do mau. O que é mau,
freqüentemente, não é de modo algum o que é prejudicial ou perigoso ao ego; pelo contrário, pode ser
algo desejável pelo ego e prazeroso para ele. Aqui, portanto, está em ação uma influência estranha, que
decide o que deve ser chamado de bom ou mau. De uma vez que os próprios sentimentos de uma
pessoa não a conduziriam ao longo desse caminho, ela deve ter um motivo para submeter-se a essa
influência estranha. Esse motivo é facilmente descoberto no desamparo e na dependência dela em
relação a outras pessoas, e pode ser mais bem designado como medo da perda de amor. Se ela perde o
amor de outra pessoa de quem é dependente, deixa também de ser protegida de uma série de perigos.
Acima de tudo, fica exposta ao perigo de que essa pessoa mais forte mostre a sua superioridade sob
forma de punição. De início, portanto, mau é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos faz sentir
ameaçados. Por medo dessa perda, deve-se evitá-lo. Esta também é a razão por que faz tão pouca
diferença que já se tenha feito a coisa má ou apenas se pretenda fazê-la. Em qualquer um dos casos, o
perigo só se instaura, se e quando a autoridade descobri-lo, e, em ambos, a autoridade se comporta da
mesma maneira.
Esse estado mental é chamado de ‘má consciência’; na realidade, porém, não merece esse
nome, pois, nessa etapa, o sentimento de culpa é, claramente, apenas um medo da perda de amor, uma
ansiedade ‘social’. Em crianças, ele nunca pode ser mais do que isso, e em muitos adultos ele só se
modifica até o ponto em que o lugar do pai ou dos dois genitores é assumido pela comunidade humana
mais ampla. Por conseguinte, tais pessoas habitualmente se permitem fazer qualquer coisa má que lhes
prometa prazer, enquanto se sentem seguras de que a autoridade nada saberá a respeito, ou não poderá
culpá-las por isso; só têm medo de serem descobertas. A sociedade atual, geralmente, vê-se obrigada a
levar em conta esse estado mental. Uma grande mudança só se realiza quando a autoridade é
internalizada através do estabelecimento de um superego. Os fenômenos da consciência atingem então
um estágio mais elevado. Na realidade, então devemos falar de consciência ou de sentimento de culpa.
Nesse ponto, também, o medo de ser descoberto se extingue; além disso, a distinção entre fazer algo
mau e desejar fazê-lo desaparece inteiramente, já que nada pode ser escondido do superego, sequer os
pensamentos. É verdade que a seriedade da situação, de um ponto de vista real, se dissipou, pois a nova
autoridade, o superego, ao que saibamos, não tem motivos para maltratar o ego, com o qual está
intimamente ligado; contudo, a influência genética, que conduz à sobrevivência do que passou e foi
superado, faz-se sentir no fato de, fundamentalmente, as coisas permanecerem como eram de início. O
superego atormenta o ego pecador com o mesmo sentimento de ansiedade e fica à espera de
oportunidades para fazê-lo ser punido pelo mundo externo.
Nesse segundo estágio de desenvolvimento, a consciência apresenta uma peculiaridade que se
achava ausente do primeiro e que não é mais fácil de explicar, pois quanto mais virtuoso um homem é,
mais severo e desconfiado é o seu comportamento, de maneira que, em última análise, são precisamente
as pessoas que levaram mais longe a santidade as que se censuram da pior pecaminosidade. Isso
significa que a virtude perde direito a uma certa parte da recompensa prometida; o ego dócil e continente
não desfruta da confiança de seu mentor, e é em vão que se esforça, segundo parece, por adquiri-la. Far-
se-á imediatamente a objeção de que essas dificuldades são artificiais, e dir-se-à que uma consciência
mais estrita e mais vigilante constitui precisamente a marca distintiva de um homem moral. Além disso,
quando os santos se chamam a si próprios de pecadores, não estão errados - considerando-se as
tentações à satisfação instintiva a que se encontram expostos em grau especialmente alto -, já que, como
todossabem, as tentações são simplesmente aumentadas pela frustração constante, ao passo que a sua
satisfação ocasional as faz diminuir, ao menos por algum tempo. O campo da ética, tão cheio de
problemas, nos apresenta outro fato: a má sorte - isto é, a frustração externa - acentua grandemente o
poder da consciência no superego. Enquanto tudo corre bem com um homem, a sua consciência é
lenitiva e permite que o ego faça todo tipo de coisas; entretanto, quando o infortúnio lhe sobrevém, ele
busca sua alma, reconhece sua pecaminosidade, eleva as exigências de sua consciência, impõe-se
abstinência e se castiga com penitências. Povos inteiros se comportaram dessa maneira, e ainda se
comportam. Isso, contudo, é facilmente explicado pelo estágio infantil original da consciência, o qual,
como vemos, não é abandonado após a introjeção no superego, persistindo lado a lado e por trás dele. O
Destino é encarado como um substituto do agente parental. Se um homem é desafortunado, isso significa
que não é mais amado por esse poder supremo, e, ameaçado por essa falta de amor, mais uma vez se
curva ao representante paterno em seu superego, representante que, em seus dias de boa sorte estava
pronto a desprezar. Esse fato se torna especialmente claro quando o Destino é encarado segundo o
sentido estritamente religioso de nada mais ser do que uma expressão da Vontade Divina. O povo de
Israel acreditava ser o filho favorito de Deus e, quando o grande Pai fez com que infortúnios cada vez
maiores desabassem sobre seu povo, jamais a crença em Seu relacionamento com eles se abalou, nem
o Seu poder ou justiça foi posto em dúvida. Pelo contrário, foi então que surgiram os profetas, que
apontaram a pecaminosidade desse povo, e, de seu sentimento de culpa, criaram-se os mandamentos
superestritos de sua religião sacerdotal. É digno de nota o comportamento tão diferente do homem
primitivo. Se ele se defronta com um infortúnio, não atribui a culpa a si mesmo, mas a seu fetiche, que
evidentemente não cumpriu o dever, e dá-lhe uma surra, em vez de se punir a si mesmo.
Conhecemos, assim, duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do medo de uma
autoridade, e outra, posterior, que surge do medo dosuperego. A primeira insiste numa renúncia às
satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso exige punição, de uma vez que a
continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego. Aprendemos também o modo
como a severidade do superego - as exigências da consciência - deve ser entendida. Trata-se
simplesmente de uma continuação da severidade da autoridade externa, à qual sucedeu e que, em parte,
substituiu. Percebemos agora em que relação a renúncia ao instinto se acha com o sentimento de culpa.
Originalmente, renúncia ao instinto constituía o resultado do medo de uma autoridade externa:
renunciava-se às próprias satisfação para não se perder o amor da autoridade. Se se efetuava essa
renúncia, ficava-se, por assim dizer, quite com a autoridade e nenhum sentimento de culpa
permaneceria. Quanto ao medo do superego, porém, o caso é diferente. Aqui, a renúncia instintiva não
basta, pois o desejo persiste e não pode ser escondido do superego. Assim, a despeito da renúncia
efetuada, ocorre um sentimento de culpa. Isso representa uma grande desvantagem econômica na
construção de um superego ou, como podemos dizer, na formação de uma consciência. Aqui, a renúncia
instintiva não possui mais um efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é mais
recompensada com a certeza do amor. Uma ameaça de infelicidade externa - perda de amor e castigo
por parte da autoridade externa - foi permutada por uma permanente infelicidade interna, pela tensão do
sentimento de culpa.
Essas inter-relações são tão complicadas e, ao mesmo tempo, tão importantes, que, ao risco de
me repetir, as abordarei ainda de outro ângulo. A seqüência cronológica, então, seria a seguinte. Em
primeiro lugar, vem a renúncia ao instinto, devido ao medo de agressão por parte da autoridade externa.
(É a isso, naturalmente, que o medo da perda de amor equivale, pois o amor constitui proteção contra
essa agressão punitiva.) Depois, vem a organização de uma autoridade interna e a renúncia ao instinto
devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da consciência. Nessa segunda situação, as más
intenções são igualadas às más ações e daí surgem sentimento de culpa e necessidade de punição. A
agressividade da consciência continua a agressividade da autoridade. Até aqui, sem dúvida, as coisas
são claras; mas onde é que isso deixa lugar para a influência reforçadora do infortúnio (da renúncia
imposta de fora),ver [[1]] e para a extraordinária severidade da consciência nas pessoas melhores e mais
dóceis ver [[1]]?Já explicamos essasparticularidades da consciência, mas provavelmente ainda temos a
impressão de que essas explicações não atingem o fundo da questão e deixam ainda inexplicado um
resíduo. Aqui, por fim, surge uma idéia que pertence inteiramente à psicanálise, sendo estranha ao modo
comum de pensar das pessoas. Essa idéia é de um tipo que nos capacita a compreender por que o tema
geral estava fadado a nos parecer confuso e obscuro, pois nos diz que, de início, a consciência (ou, de
modo mais correto, a ansiedade que depois se torna consciência) é, na verdade, a causa da renúncia
instintiva, mas que, posteriormente, o relacionamento se inverte. Toda renúncia ao instinto torna-se agora
uma fonte dinâmica de consciência, e cada nova renúncia aumenta a severidade e a intolerância desta
última. Se pudéssemos colocar isso mais em harmonia com o que já sabemos sobre a história da origem
da consciência, ficaríamos tentados a defender a afirmativa paradoxal de que a consciência é o resultado
da renúncia instintiva, ou que a renúncia instintiva (imposta a nós de fora) cria a consciência, a qual,
então, exige mais renúncias instintivas.
A contradição entre essa afirmativa e o que anteriormente dissemos sobre a gênese da
consciência não é, na realidade, tão grande, e vemos uma maneira de reduzi-la ainda mais. A fim de
facilitar nossa exposição, tomemos como exemplo o instinto agressivo e suponhamos que a renúncia em
estudo seja sempre uma renúncia à agressão. (Isso, naturalmente, só deve ser tomado como uma
suposição temporária.) O efeito da renúncia instintiva sobre a consciência, então, é que cada agressão
de cuja satisfação o indivíduo desiste é assumida pelo superego e aumenta a agressividade deste (contra
o ego). Isso não se harmoniza bem com o ponto de vista segundo o qual a agressividade original da
consciência é uma continuação da severidade da autoridade externa, não tendo, portanto, nada a ver
com a renúncia. Mas a discrepância se anulará se postularmos uma derivação diferente para essa
primeira instalação da agressividade do superego. É provável que, na criança, se tenha desenvolvido
uma quantidade considerável de agressividade contra a autoridade, que a impede de ter suas primeiras -
e, também, mais importantes - satisfações, não importando o tipo de privação instintiva que dela possa
ser exigida. Ela, porém, é obrigada a renunciar à satisfação dessa agressividade vingativa e encontra
saída para essa situação economicamente difícil com o auxílio de mecanismos familiares. Através da
identificação, incorpora a si a autoridade inatacável. Esta transforma-se então em seu superego, entrando
na posse de toda a agressividade que a criança gostaria de exercer contra ele. O ego da criança tem de
contentar-se com o papel infeliz da autoridade - o pai - que foi assim degradada. Aqui, como tão
freqüentemente acontece, a situação [real] é invertida: ‘Se eu fosse o pai e você fosse a criança, eu
otrataria muito mal’. O relacionamento entre o superego e o ego constitui um retorno, deformado por um
desejo, dos relacionamentos reais existentes entre o ego, ainda individido, e um objeto externo. Isso
também é típico. A diferença essencial, porém, é que a severidade original do superego não representa ou não representa tanto - a severidade que dele [do objeto] se experimentou ou que se lhe atribui.
Representa, antes, nossa própria agressividade para com ele. Se isso é correto, podemos
verdadeiramente afirmar que, de início, a consciência surge através da repressão de um impulso
agressivo, sendo subseqüentemente reforçada por novas repressões do mesmo tipo.
Qual destes dois pontos de vista é correto? O primeiro, que geneticamente parecia tão
inexpugnável, ou o último, que de maneira tão bem-vinda apara as arestas da teoria? Claramente, e
também pelas provas de observações diretas, ambos se justificam. Não contradizem mutuamente e, até
mesmo, coincidem em determinado ponto, pois a agressividade vingativa da criança será em parte
determinada pela quantidade de agressão punitiva que espera do pai. A experiência mostra, contudo,
que a severidade do superego que uma criança desenvolve, de maneira nenhuma corresponde à
severidade de tratamento com que ela própria se defrontou. A severidade do primeiro parece ser
independente da do último. Uma criança criada de forma muito suave, pode adquirir uma consciência
muito estrita. No entanto, também seria errado exagerar essa independência; não é difícil nos
convencermos de que a severidade da criação também exerce uma forte influência na formação do
superego da criança. Isso significa que, na formação do superego e no surgimento da consciência,
fatores constitucionais inatos e influências do ambiente real atuam de forma combinada. O que, de modo
algum, é surpreendente; ao contrário, trata-se de uma condição etiológica universal para todos os
processos desse tipo. Pode-se também asseverar que, quando uma criançareage às suas primeiras
grandes frustrações instintivas com uma agressividade excessivamente forte e um superego
correspondentemente severo, ela está seguindo um modelo filogenético e indo além da reação que seria
correntemente justificada, pois o pai dos tempos pré-históricos era indubitavelmente terrível e uma
quantidade extrema de agressividade lhe pode ser atribuída. Assim, se passarmos do desenvolvimento
individual para o desenvolvimento filogenético, as diferenças entre as duas teorias da gênese da
consciência ficam menores ainda. Por outro lado, uma nova e importante diferença aparece entre esses
dois processos de desenvolvimento. Não podemos afastar a suposição de que o sentimento de culpa do
homem se origina do complexo edipiano e foi adquirido quando da morte do pai pelos irmãos reunidos
em bando. Naquela ocasião, um ato de agressão não foi suprimido, mas executado; foi, porém, o mesmo
ato de agressão cuja repressão na criança se imagina ser a fonte de seu sentimento de culpa. Nesse
ponto, não me surpreenderei se o leitor exclamar com raiva: ‘Então não faz diferença que se mate o pai
ou não - fica-se com um sentimento de culpa do mesmo jeito! Pedimos licença para levantar algumas
dúvidas. Ou não é verdade que o sentimento de culpa provém da agressividade reprimida, ou então toda
a história da morte do pai é uma ficção e os filhos do homem primevo não mataram os pais mais do que
as crianças o fazem atualmente. Além disso, se não for ficção, mas fato histórico plausível, seria o caso
de acontecer algo que todos esperam que aconteça, ou melhor, uma pessoa se sentir culpada porque
realmente fez algo que não pode ser justificado. E para esse evento, que afinal de contas, constitui uma
ocorrência cotidiana, a psicanálise ainda não forneceu qualquer explicação.’
Tudo isso é verdade, e temos de corrigir a omissão. Tampouco existe qualquer grande segredo
quanto ao assunto. Quando se fica com um sentimento de culpa depois de ter praticado uma má ação, e
por causa dela, o sentimento deveria, mais propriamente, ser chamado de remorso. Este se refere
apenas a um ato que foi cometido, e, naturalmente, pressupõe que uma consciência - a presteza em se
sentir culpado - já existia antes que o ato fosse praticado. Um remorso desse tipo, portanto, jamais pode
ajudar-nos a descobrir a origem da consciência e do sentimento de culpa em geral. O que acontece
nesses casos cotidianos é geralmente o seguinte: uma necessidade instintiva adquire intensidade para
alcançar satisfação, a despeito da consciência, que, afinal de contas, é limitada em sua força, e, com o
debilitamentonatural da necessidade, devido a ter sido satisfeita, o equilíbrio anterior de forças é
restaurado. A psicanálise encontra assim uma justificativa para excluir do presente exame o caso do
sentimento de culpa devido ao remorso, por mais freqüentemente que tais casos ocorram e por grande
que seja sua importância prática.
Mas, se o sentimento humano de culpa remonta à morte do pai primevo, trata-se, afinal de
contas, de um caso de ‘remorso’. Por ventura não devemos supor que [nessa época] uma consciência e
um sentimento de culpa, como pressupomos, já existiam antes daquele feito? Se não existiam, de onde
então proveio o remorso? Não há dúvida de que esse caso nos explicaria o segredo do sentimento de
culpa e poria fim às nossas dificuldades. E acredito que o faz. Esse remorso constituiu o resultado da
ambivalência primordial de sentimentos para com o pai. Seus filhos o odiavam, mas também o amavam.
Depois que o ódio foi satisfeito pelo ato de agressão, o amor veio para o primeiro plano, no remorso dos
filhos pelo ato. Criou o superego pela identificação com o pai; deu a esse agente o poder paterno, como
uma punição pelo ato de agressão que haviam cometido contra aquele, e criou as restrições destinadas a
impedir uma repetição do ato. E, visto que a inclinação à agressividade contra o pai se repetiu nas
gerações seguintes, o sentimento de culpa também persistiu, cada vez mais fortalecido por cada parcela
de agressividade que era reprimida e transferida para o superego. Ora, penso eu, finalmente podemos
apreender duas coisas de modo perfeitamente claro: o papel desempenhado pelo amor na origem da
consciência e a fatal inevitabilidade do sentimento de culpa. Matar o próprio pai ou abster-se de matá-lo
não é, realmente, a coisa decisiva. Em ambos os casos, todos estão fadados a sentir culpa, porque o
sentimento de culpa é expressão tanto do conflito devido à ambivalência, quanto da eterna luta entre
Eros e o instinto de destruição ou morte. Esse conflito é posto em ação tão logo os homens se defrontem
com a tarefa de viverem juntos. Enquanto a comunidade não assume outra forma que não seja a da
família, o conflito está fadado a se expressar no complexo edipiano, a estabelecer a consciência e a criar
o primeiro sentimento de culpa. Quando se faz uma tentativa para ampliar a comunidade, o mesmo
conflito continua sob formas que dependem do passado; é fortalecido e resulta numa intensificação
adicional do sentimento de culpa. Visto que a civilização obedece a um impulso erótico interno que leva
os seres humanos a se unirem num grupo estreitamente ligado, ela só pode alcançar seu objetivo através
de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa. O que começou em relação ao pai é completado
em relação ao grupo. Se a civilização constitui o caminho necessário de desenvolvimento, da família à
humanidade como um todo, então, em resultado do conflito inato surgido da ambivalência, da eterna luta
entre as tendências de amor e de morte, acha-se a ele inextricavelmente ligado um aumento do
sentimento de culpa, que talvez atinja alturas que o indivíduo considere difíceis de tolerar. Aqui, somos
lembrados da comovente denúncia dos ‘Poderes Celestes’, feita pelo grande poeta:
lhr führt in’s Leben uns hinein,lhr lasst den Armen schuldig werden,Dann überlasst lhr den
Pein,Denn iede Schuld rächt sich auf Erden.
E bem podemos suspirar aliviados ante o pensamento de que, apesar de tudo, a alguns é
concedido salvar, sem esforço, do torvelinho de seus próprios sentimentos as mais profundas verdades,
em cuja direção o resto de nós tem de encontrar o caminho por meio de uma incerteza atormentadora e
com um intranqüilo tatear.
VIII
Chegando ao fim de sua jornada, o autor se vê obrigado a pedir o perdão dos leitores por não ter
sido um guia mais hábil e por não lhes ter poupado as regiões mais ásperas da estrada e os
desconfortáveis détours. Não há dúvida de que isso poderia ter sido feito de forma melhor. Tentarei, já
findando o dia, proceder a algumas correções.
Em primeiro lugar, desconfio que o leitor tem a impressão de que nosso exame do sentimento de
culpa quebra a estrutura deste ensaio; que ocupa espaço demais, de maneira que o resto do tema geral,
ao qual não se acha sempre estreitamente vinculado, é posto de lado. Isso pode ter prejudicado a
estrutura do trabalho, mas corresponde fielmente à minha intenção de representar o sentimento de culpa
como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização, e de demonstrar que o preço que
pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de felicidade pela intensificação do
sentimento de culpa.Qualquer coisa que ainda soe estranha a respeito dessa afirmação, que constitui a
conclusão final de nossa investigação, pode ser provavelmente localizada no relacionamento bastante
peculiar - até agora completamente inexplicado - que o sentimento de culpa mantém com nossa
consciência. No caso comum de remorso, que encaramos como normal, esse sentimento se torna
claramente perceptível para a consciência. Na verdade, estamos habituados a falar de uma ‘consciência
de culpa’, em vez de um ‘sentimento de culpa’. Nosso estudo das neuroses, ao qual, afinal decontas,
devemos as mais valiosas indicações para uma compreensão das condições normais, nos leva de
encontro a certas contradições. Numa dessas afecções, a neurose obsessiva, o sentimento de culpa fazse ruidosamente ouvido na consciência; domina o quadro clínico e também a vida do paciente, mal
permitindo que apareça algo mais ao lado dele. Entretanto, na maioria dos outros casos e formas de
neurose, ele permanece completamente inconsciente, sem que, por isso, produza efeitos menos
importantes. Nossos pacientes não acreditam em nós quando lhes atribuímos um ‘sentimento de culpa
inconsciente’. A fim de nos tornarmos inteligíveis para eles, falamos-lhes de uma necessidade
inconsciente de punição, na qual o sentimento de culpa encontra expressão. Apesar disso, sua
vinculação a uma forma específica de neurose não deve ser superestimada. Mesmo na neurose
obsessiva há tipos de pacientes que não se dão conta de seu sentimento de culpa, ou que apenas o
sentem como um mal-estar atormentador, uma espécie de ansiedade, se impedidos de praticar certas
ações. Deveria ser possível chegar a compreender essas coisas, mas, até agora, não nos foi possível.
Aqui, talvez, nos possamos alegrar por termos assinalado que, no fundo, o sentimento de culpa nada
mais é do que uma variedade topográfica da ansiedade; em suas fases posteriores, coincide
completamente com o medo do superego. E as relações da ansiedade com a consciência apresentam as
mesmas e extraordinárias variações. A ansiedade está sempre presente, num lugar ou outro, por trás de
todo sintoma; em determinada ocasião, porém, toma, ruidosamente, posse da totalidade da consciência,
ao passo que, em outra, se oculta tão completamente, que somos obrigados a falar de ansiedade
inconsciente, ou, se desejamos ter uma consciência psicológica mais clara - visto a ansiedade ser, no
primeiro caso, simplesmente um sentimento -, das possibilidades de ansiedade. Por conseguinte, é
bastante concebível que tampouco o sentimento de culpa produzido pela civilização seja percebido como
tal, e em grande parte permaneça inconsciente, ou apareça como uma espécie de mal-estar, uma
insatisfação, para a qual as pessoas buscam outras motivações. As religiões, pelo menos, nunca
desprezaram o papel desempenhado na civilização pelo sentimento de culpa. Ademais - ponto que deixei
de apreciar em outro trabalho -, elas alegam redimir a humanidade desse sentimento de culpa, a que
chamam de pecado. Da maneira pela qual, no cristianismo, essa redenção é conseguida - pela morte
sacrificial de uma pessoa isolada, que, desse modo, toma sobre si mesma a culpa comum a todos -,
conseguimos inferir qual pode ter sido a primeira ocasião em que essa culpa primária, que constitui
também o primórdio da civilização, foi adquirida.
Embora talvez não seja de grande importância, não é supérfluo elucidar o significado de certas
palavras, tais como ‘superego’, ‘consciência’, ‘sentimento de culpa’, ‘necessidade de punição’ e ‘remorso’,
as quais é possível que muitas vezes tenhamos utilizado de modo frouxo e intercambiável. Todas se
relacionam ao mesmo estado de coisas, mas denotam diferentes aspectos seus. O superego é um
agente que foi por nós inferido e a consciência constitui uma função que, entre outras, atribuímos a esse
agente. A função consiste em manter a vigilância sobre as ações e as intenções do ego e julgá-las,
exercendo sua censura. O sentimento de culpa, a severidade do superego, é, portanto, o mesmo que a
severidade da consciência. É a percepção que o ego tem de estar sendo vigiado dessa maneira, a
avaliação da tensão entre os seus próprios esforços e as exigências do superego. O medo desse agente
crítico (medo que está no fundo de todo relacionamento), a necessidade de punição, constitui uma
manifestação instintiva por parte do ego, que se tornou masoquista sob a influência de um superego
sádico; é, por assim dizer, uma parcela do instinto voltado para a destruição interna presente no ego,
empregado para formar uma ligação erótica com o superego. Não devemos falar de consciência até que
um superego se ache demonstravelmente presente. Quanto ao sentimento de culpa, temos de admitir
que existe antes do superego e, portanto, antes da consciência também. Nessa ocasião, ele é expressão
imediata do medo da autoridade externa, um reconhecimento da tensão existente entre o ego e essa
autoridade. É o derivado direto do conflito entre a necessidade do amor da autoridade e o impulso no
sentido da satisfação instintiva, cuja inibição produz a inclinação para a agressão. A superposição desses
dois estratos do sentimento de culpa - um oriundo do medo da autoridade externa; o outro, do medo da
autoridade interna - dificultou nossa compreensão interna (insight) da posição da consciência por certo
número de maneiras. Remorso é um termo geral para designar a reação do ego num caso de sentimento
de culpa. Contém, emforma pouco alterada, o material sensorial da ansiedade que opera por trás do
sentimento de culpa; ele próprio é uma punição, ou pode incluir a necessidade de punição, podendo,
portanto, ser também mais antigo do que a consciência.
Tampouco fará mal que passemos mais uma vez em revista as contradições que nos
confundiram durante algum tempo, no correr de nossa investigação. Assim, em determinado ponto, o
sentimento de culpa era a conseqüência dos atos de agressão de que alguém se abstivera; em outro,
porém - exatamente em seu começo histórico, a morte do pai -, constituía a conseqüência de um ato de
agressão que fora executado,ver [[1]]. Encontrou-se uma saída para essa dificuldade, pois a instituição
da autoridade interna, o superego, alterou radicalmente a situação. Antes disso, o sentimento de culpa
coincidia com o remorso. (Podemos observar, incidentalmente, que o termo ‘remorso’ deveria ser
reservado para a reação que surge depois de um ato de agressão ter sido realmente executado.)
Posteriormente, devido à onisciência do superego, a diferença entre uma agressão pretendida e uma
agressão executada perdeu sua força. Daí por diante, o sentimento de culpa podia ser produzido não
apenas por um ato de violência realmente efetuado (como todos sabem), mas também por um ato
simplesmente pretendido (como a psicanálise descobriu). Independentemente dessa alteração na
situação psicológica, o conflito que surge da ambivalência - o conflito entre os dois instintos primitivos deixa atrás de si o mesmo resultado,ver [[1]]. Somos tentados a procurar aqui a solução do problema da
relação variável em que o sentimento de culpa se acha para com a consciência. Pode-se pensar que o
sentimento de culpa surgido do remorso por uma ação má deve ser sempre consciente, ao passo que o
sentimento de culpa originado da percepção de um impulso mau pode permanecer inconsciente.
Contudo, a resposta não é tão simples assim. A neurose obsessiva fala energicamente contra ela.
A segunda contradição se referia à energia agressiva da qual supomos dotado o superego.
Segundo determinado ponto de vista, essa energia simplesmente continua a energia punitiva da
autoridade externa e a mantém viva na mente,ver [[1]], ao passo que, de acordo com outra opinião, ela
consiste, pelo contrário, na própria energia agressiva que não foi uti lizada e que agora se dirige contra
essa autoridade inibidora,ver [[1]]. A primeira visão parecia ajustar-se melhor à história e a segunda à
teoria do sentimento de culpa. Uma reflexão mais adequada resolveu essa contradição aparentemente
irreconciliável de modo quase excessivamente completo; o que restou como fator essencial e comum foi
que, em cada caso, se lida com uma agressividadedeslocada para dentro. A observação clínica,
ademais, nos permite de fato distinguir duas fontes para a agressividade que atribuímos ao superego; ou
uma ou outra exerce o efeito mais forte em qualquer caso determinado, mas, em geral, operam em
harmonia.
É este, penso eu, o lugar para apresentar a uma consideração séria uma opinião que
anteriormente recomendei para aceitação provisória. Na literatura analítica mais recente, mostra-se
predileção pela idéia de que qualquer tipo de frustração, qualquer satisfação instintiva frustrada, resulta,
ou pode resultar numa elevação do sentimento de culpa. Acho que se conseguirá uma grande
simplificação teórica, se se encarar isso como sendo aplicável apenas aos instintos agressivos, e não se
encontrará quase nada que contradiga essa afirmação. Pois, como devemos explicar, em fundamentos
dinâmicos e econômicos, um aumento no sentimento de culpa que aparece no lugar de uma exigência
erótica não satisfeita? Isso só parece possível de maneira indireta se supusermos que a prevenção de
uma satisfação erótica exige uma agressividade contra a pessoa que interferiu na satisfação, e que essa
própria agressividade, por sua vez, tem de ser recalcada. Se as coisas se passam assim, é em suma,
apenas a agressividade que é transformada em sentimento de culpa, por ter sido recalcada e transmitida
para o superego. Estou convencido de que muitos processos admitirão exposição mais simples e mais
clara, se as descobertas da psicanálise sobre a derivação do sentimento de culpa forem restringidas aos
instintos agressivos. O exame do material clínico não nos fornece aqui uma resposta inequívoca, porque,
como nossa hipótese nos diz, os dois tipos de instinto dificilmente aparecem em forma pura, isolados um
do outro, e uma investigação dos casos extremos provavelmente apontaria para a direção por mim
prevista.
Sinto-me tentado a extrair uma primeira vantagem dessa visão mais restrita do caso, aplicando-a
ao processo da repressão. Conforme aprendemos, os sintomas neuróticos são, em sua essência,
satisfações substitutivas para desejos sexuais não realizados. No decorrer de nosso trabalho analítico,
descobrimos, para nossa surpresa, que talvez toda neurose oculte uma quota de sentimento inconsciente
de culpa, o qual, por sua vez, fortifica os sintomas, fazendo uso deles como punição. Agora parece
plausível formular a seguinte proposição: quando uma tendência instintiva experimenta a repressão, seus
elementos libidinais são transformadosem sintomas e seus componentes agressivos em sentimento de
culpa. Mesmo que essa proposição não passe de uma aproximação mediana à verdade, é digna de
nosso interesse.
Alguns leitores deste trabalho podem ainda ter a impressão de que já ouviram, de modo
demasiado freqüente, a fórmula sobre a luta entre Eros e o instinto de morte. Ela foi não só empregada
para caracterizar o processo de civilização que a humanidade sofre,ver [[1]],mas também vinculada ao
desenvolvimento do indivíduo ver [[1]] e, além disso, dela se disse que revelou o segredo da vida
orgânica em geral,ver [[1]]. Acho que não podemos deixar de penetrar nas relações existentes entre
esses três processos. A repetição da mesma fórmula se justifica pela consideração de que tanto o
processo da civilização humana quanto o do desenvolvimento do indivíduo são também processos vitais o que equivale a dizer que devem partilhar a mesma característica mais geral da vida. Por outro lado, as
provas da presença dessa característica geral, pela razão mesma de sua natureza geral, fracassam em
nos ajudar a estabelecer qualquer diferenciação [entre os processos], enquanto não for reduzida por
limitações especiais. Só podemos ficar satisfeitos, portanto, afirmando que o processo civilizatório
constitui uma modificação, que o processo vital experimenta sob a influência de uma tarefa que lhe é
atribuída por Eros e incentivada por Ananké - pelas exigências da realidade -, e que essa tarefa é a de
unir indivíduos isolados numa comunidade ligada por vínculos libidinais. Quando, porém, examinamos a
relação existente entre o processo desenvolvimental ou educativo dos seres humanos individuais,
devemos concluir, sem muita hesitação, que os dois apresentam uma natureza muito semelhante, caso
não sejam o mesmo processo aplicado a tipos diferentes de objeto. O processo da civilização da espécie
humana é, naturalmente, uma abstração de ordem mais elevada do que a do desenvolvimento do
indivíduo, sendo, portanto, de mais difícil apreensão em termos concretos; tampouco devemos perseguir
as analogias a um extremo obsessivo. Contudo, diante da semelhança entre os objetivos dos dois
processos - num dos casos, a integração de um indivíduo isolado num grupo humano; no outro, a criação
de um grupo unificado a partir de muitos indivíduos -, não podemos surpreender-nos com a similaridade
entre os meios empregados e os fenômenos resultantes.
Em vista de sua excepcional importância, não devemos adiar mais a menção de determinado
aspecto que estabelece a distinção entre os dois processos. No processo de desenvolvimento do
indivíduo, o programa do princípio do prazer, que consiste em encontrar a satisfação da felicidade, é
mantido como objetivo principal. A integração numa comunidade humana,ou a adaptação a ela, aparece
como uma condição dificilmente evitável, que tem de ser preenchida antes que esse objetivo de felicidade
possa ser alcançado. Talvez fosse preferível que isso pudesse ser feito sem essa condição. Em outras
palavras, o desenvolvimento do indivíduo nos parece ser um produto da interação entre duas
premências, a premência no sentido da felicidade, que geralmente chamamos de ‘egoísta’, e a premência
no sentido da união com os outros da comunidade, que chamamos de ‘altruísta’. Nenhuma dessas
descrições desce muito abaixo da superfície. No processo de desenvolvimento individual, como
dissemos, a ênfase principal recai sobretudo na premência egoísta (ou a premência no sentido da
felicidade), ao passo que a outra premência, que pode ser descrita como ‘cultural’, geralmente se
contenta com a função de impor restrições. No processo civilizatório, porém, as coisas se passam de
modo diferente. Aqui, de longe, o que mais importa é o objetivo de criar uma unidade a partir dos seres
humanos individuais. É verdade que o objetivo da felicidade ainda se encontra aí, mas relegado ao
segundo plano. Quase parece que a criação de uma grande comunidade humana seria mais bemsucedida se não se tivesse de prestar atenção à felicidade do indivíduo. Assim, pode-se esperar que o
processo desenvolvimental do indivíduo apresente aspectos especiais, próprios dele, que não são
reproduzidos no processo da civilização humana. É apenas na medida em que está em união com a
comunidade como objetivo seu, que o primeiro desses processos precisa coincidir com o segundo.
Assim como um planeta gira em torno de um corpo central enquanto roda em torno de seu
próprio eixo, assim também o indivíduo humano participa do curso do desenvolvimento da humanidade,
ao mesmo tempo que persegue o seu próprio caminho na vida. Para nossos olhos enevoados, porém, o
jogo de forças nos céus parece fixado numa ordem que jamais muda; no campo da vida orgânica, ainda
podemos perceber como as forças lutam umas com as outras e como os efeitos desse conflito estão em
permanente mudança. Assim também as duas premências, a que se volta para a felicidade pessoal e a
que se dirige para a união com os outros seres humanos, devem lutar entre si em todo indivíduo, e assim
também os dois processos de desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de colocar-se numa
oposição hostil um para com o outro e disputar-se mutuamente a posse do terreno. Contudo, essa luta
entre o indivíduo e a sociedade não constitui um derivado da contradição - provavelmente irreconciliável entre os instintos primevos de Eros e da morte. Trata-se de uma luta dentro da economia da libido,
comparável àquela referente à distribuição da libido entre o ego e os objetos, admitindo uma acomodação
final no indivíduo, tal como, pode-se esperar, também o fará no futuro da civilização, por mais que
atualmente essa civilização possa oprimir a vida do indivíduo.
A analogia entre o processo civilizatório e o caminho do desenvolvimento individual é passível de
ser ampliada sob um aspecto importante. Pode-se afirmar que também a comunidade desenvolve um
superego sob cuja influência se produz a evolução cultural. Constituiria tarefa tentadora para todo aquele
que tenha um conhecimento das civilizações humanas, acompanhar pormenorizadamente essa analogia.
Limitar-me-ei a apresentar alguns pontos mais notáveis. O superego de uma época de civilização tem
origem semelhante à do superego de um indivíduo. Ele se baseia na impressão deixada atrás de si pelas
personalidades dos grandes líderes - homens de esmagadora força de espírito ou homens em quem um
dos impulsos humanos encontrou sua expressão mais forte e mais pura e, portanto, quase sempre, mais
unilateral. Em muitos casos, a analogia vai mais além, como no fato de, durante a sua vida, essas figuras
- com bastante freqüência, ainda que não sempre - terem sido escarnecidas e maltratadas por outros e,
até mesmo, liquidadas de maneira cruel. Do mesmo modo, na verdade, o pai primevo não atingiu a
divindade senão muito tempo depois de ter encontrado a morte pela violência. O exemplo mais evidente
dessa conjunção fatídica pode ser visto na figura de Jesus Cristo - se, em verdade, essa figura não faz
parte da mitologia, que a conclamou à existência a partir de uma obscura lembrança daquele evento
primevo. Outro ponto de concordância entre o superego cultural e o individual é que o primeiro, tal como
o último, estabelece exigências ideais estritas, cuja desobediência é punida pelo ‘medo da
consciência’,ver [[1]]. Aqui, em verdade, nos deparamos com a notável circunstância de que, na
realidade, os processos mentais relacionados são mais familiares para nós e mais acessíveis à
consciência tal como vistos no grupo, do que o podem ser no indivíduo. Neste, quando a tensão cresce, é
apenas a agressividade do superego que, sob a forma de censuras, se faz ruidosamente ouvida; com
freqüência, suas exigências reais permanecem inconscientes no segundo plano. Se as trazemos ao
conhecimento consciente, descobrimos que elas coincidem com os preceitos do superego cultural
predominante. Neste ponto os dois processos, o do desenvolvimento cultural do grupo e o do
desenvolvimento cultural do indivíduo, se acham, por assim dizer, sempre interligados. Daí algumas das
manifestações e propriedades do superego poderem ser mais facilmente detectadas em seu
comportamento na comunidade cultural do que no indivíduo isolado.O superego cultural desenvolveu
seus ideais e estabeleceu suas exigências. Entre estas, aquelas que tratam das relações dos seres
humanos uns com os outros estão abrangidas sob o título de ética. As pessoas, em todos os tempos,
deram o maior valor à ética, como se esperassem que ela, de modo específico, produzisse resultados
especialmente importantes. De fato, ela trata de um assunto que pode ser facilmente identificado como
sendo o ponto mais doloroso de toda civilização. A ética deve, portanto, ser considerada como uma
tentativa terapêutica - como um esforço por alcançar, através de uma ordem do superego, algo até agora
não conseguido por meio de quaisquer outras atividades culturais. Como já sabemos, o problema que
temos pela frente é saber como livrar-se do maior estorvo à civilização - isto é, a inclinação, constitutiva
dos seres humanos, para a agressividade mútua; por isso mesmo, estamos particularmente interessados
naquela que é provavelmente a mais recente das ordens culturais do superego, o mandamento de amar
ao próximo como a si mesmo.Ver [[1].] Em nossa pesquisa de uma neurose e em sua terapia, somos
levados a fazer duas censuras contra o superego do indivíduo. Na severidade de suas ordens e
proibições, ele se preocupa muito pouco com a felicidade do ego, já que considera de modo insuficiente
as resistências contra a obrigação de obedecê-las - a força instintiva do id [em primeiro lugar] e as
dificuldades apresentadas pelo meio ambiente externo real [em segundo]. Por conseguinte, somos
freqüentemente obrigados, por propósitos terapêuticos, a nos opormos ao superego e a nos esforçarmos
por diminuir suas exigências. Exatamente as mesmas objeções podem ser feitas contra as exigências
éticas do superego cultural. Ele também não se preocupa de modo suficiente com os fatos da
constituição mental dos seres humanos. Emite uma ordem e não pergunta se é possível às pessoas
obedecê-la. Pelo contrário, presume que o ego de um homem é psicologicamente capaz de tudo que lhe
é exigido, que o ego desse homem dispõe de um domínio ilimitado sobre seu id. Trata-se de um equívoco
e, mesmo naquelas que são conhecidas como pessoas normais, o id não pode ser controlado além de
certos limites. Caso se exija mais de um homem, produzir-se-á nele uma revolta ou uma neurose, ou ele
se tornará infeliz. O mandamento ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo’ constitui a defesa mais forte
contra a agressividade humana e um excelente exemplo dos procedimentos não psicológicos do
superego cultural. É impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme de amor só pode
rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade. A civilização não presta atenção a tudo isso; ela
meramente nos adverte que quanto mais difícil é obedecer ao preceito, mais meritório é proceder assim.
Contudo, todo aquele que, nacivilização atual, siga tal preceito, só se coloca em desvantagem frente à
pessoa que despreza esse mesmo preceito. Que poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve
ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade! A ética ‘natural’,
tal como é chamada, nada tem a oferecer aqui, exceto a satisfação narcísica de se poder pensar que se
é melhor do que os outros. Nesse ponto, a ética baseada na religião introduz suas promessas de uma
vida melhor depois da morte. Enquanto, porém, a virtude não for recompensada aqui na Terra, a ética,
imagino eu, pregará em vão. Acho também bastante certo que, nesse sentido, uma mudança real nas
relações dos seres humanos com a propriedade seria de muito mais ajuda do que quaisquer ordens
éticas; mas o reconhecimento desse fato entre os socialistas foi obscurecido, e tornado inútil para fins
práticos, por uma nova e idealista concepção equivocada da natureza humana.Ver [[1].]
Creio que a linha de pensamento que procura descobrir nos fenômenos de desenvolvimento
cultural o papel desempenhado por um superego promete ainda outras descobertas. Apresso-me a
chegar ao fim, mas há uma questão a que dificilmente posso fugir. Se o desenvolvimento da civilização
possui uma semelhança de tão grande alcance com o desenvolvimento do indivíduo, e se emprega os
mesmos métodos, não temos nós justificativa em diagnosticar que, sob a influência de premências
culturais, algumas civilizações, ou algumas épocas da civilização - possivelmente a totalidade da
humanidade - se tornaram ‘neuróticas’? Uma dissecação analítica de tais neuroses poderia levar a
recomendações terapêuticas passíveis de reivindicarem um grande interesse prático. Eu não diria que
uma tentativa desse tipo, de transportar a psicanálise para a comunidade cultural, seja absurda ou que
esteja fadada a ser infrutífera. Mas teríamos de ser muito cautelosos e não esquecer que, em suma,
estamos lidando apenas com analogias e que é perigoso, não somente para os homens mas também
para os conceitos, arrancá-los da esfera em que se originaram e se desenvolveram. Além disso, a
diagnose das neuroses comunais se defronta com uma dificuldade especial. Numa neurose individual,
tomamos como nosso ponto de partida o contraste que distingue o paciente do seu meio ambiente, o qual
se presume ser ‘normal’. Para um grupo de que todos os membros estejam afetados pelo mesmo
distúrbio, não poderia existir esse pano de fundo; ele teria de ser buscado em outro lugar. E, quanto à
aplicação terapêutica de nosso conhecimento, qual seria a utilidade da mais corretaanálise das neuroses
sociais, se não se possui autoridade para impor essa terapia ao grupo? No entanto, e a despeito de todas
essas dificuldades, podemos esperar que, um dia, alguém se aventure a se empenhar na elaboração de
uma patologia das comunidades culturais.
Por uma ampla gama de razões, está muito longe de minha intenção exprimir uma opinião sobre
o valor da civilização humana. Esforcei-me por resguardar-me contra o preconceito entusiástico que
sustenta ser a nossa civilização a coisa mais preciosa que possuímos ou poderíamos adquirir, e que seu
caminho necessariamente conduzirá a ápices de perfeição inimaginada. Posso, pelo menos, ouvir sem
indignação o crítico cuja opinião diz que, quando alguém faz o levantamento dos objetivos do esforço
cultural e dos meios que este emprega, está fadado a concluir que não vale a pena todo esse esforço e
que seu resultado só pode ser um estado de coisas que o indivíduo será incapaz de tolerar. Minha
imparcialidade se torna mais fácil para mim na medida em que conheço muito pouco a respeito dessas
coisas. Sei que apenas uma delas é certa: é que os juízos de valor do homem acompanham diretamente
os seus desejos de felicidade, e que, por conseguinte, constituem uma tentativa de apoiar com
argumentos as suas ilusões. Acharia muito compreensível que alguém assinalasse a natureza obrigatória
do curso da civilização humana e que dissesse, por exemplo, que as tendências para uma restrição da
vida sexual ou para a instituição de um ideal humanitário à custa da seleção natural foram tendências de
desenvolvimento impossíveis de serem desviadas ou postas de lado, e às quais é melhor para nós nos
submetermos, como se constituíssem necessidades da natureza. Também estou a par da objeção que
pode ser levantada contra isso, objeção segundo a qual, na história da humanidade, tendências como
estas, consideradas insuperáveis, freqüentemente foram relegadas e substituídas por outras. Assim, não
tenho coragem de me erguer diante de meus semelhantes como um profeta; curvo-me à sua censura de
que não lhes posso oferecer consolo algum, pois, no fundo, é isso que todos estão exigindo, e os mais
arrebatados revolucionários não menos apaixonadamente do que os mais virtuosos crentes.
A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu
desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto
humano de agressão e autodestruição. Talvez, precisamente com relação a isso, a época atual mereça
um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua
ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e
édaí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só
nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’ ver [[1]], o eterno Eros, desdobre suas forças
para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso
e com que resultado?
FETICHISMO (1927)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
FETISCHISMUS
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1927 Almanach 1928, 17-24.
1927 Int. Z. Psychoanal., 13 (4), 373-8.
1928 G.S., 11, 395-401
1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 220-7
1948 G.W., 14, 311-17
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Fetishism’
1928 Int. J. Psycho-Anal., 9 (2), 161-6. (Trad. de Joan Riviere.)
1950 C.P., 5, 198-204. (Edição revista da anterior.)
A presente tradução inglesa é uma versão modificada da publicada em 1950.
Este artigo, terminado no fim da primeira semana de agosto de 1927 (Jones, 1957, 146), foi
publicado quase simultaneamente, no mesmo outono, no Almanach 1928 e no último número de 1927 da
Zeitschrift.
Em seu primeiro estudo sobre o fetichismo, nos Três Ensaios (1905d), Edição Standard
Brasileira, Vol. VII, pág. 153-6, IMAGO Editora 1972, Freud escreveu que nenhuma outra variação do
instinto sexual que se aproxima do patológico pode reivindicar tanto nosso interesse quanto esta, e, na
realidade, não poucas vezes retornou à sua consideração. Nessa primeira descrição, ele não vai muito
além de sustentar que ‘a escolha de um fetiche constitui um efeito posterior de alguma impressão sexual,
via de regra recebida na primeira infância’ ficando o tema também nesse ponto, em alguns comentários
de passagem ao fetichismo do pé em seu estudo sobre a Gradiva (1907a), um ano ou dois mais tarde
(ibid., 9, 46-7). Sua abordagem seguinte ao assunto parece ter-se dado num artigo não publicado, ‘Sobre
a Gênese do Fetichismo’, lido para a Sociedade Psicanalítica de Viena em 24 de fevereiro de 1909
(Jones, 1955, 332), mas, infelizmente, não conseguimos acesso às atas da Sociedade. Nessa ocasião,
preparava a análise do ‘Homem dos Ratos’ (1909d) para publicação e nela mencionou um novo ponto - a
vinculação do fetichismo com o prazer em cheirar (ibid., 10, 247) - que ampliou emnota de rodapé
acrescentada aos Três Ensaios, em sua segunda edição de 1910 (ibid., VII). Mas, logo depois, uma nova
e mais importante vinculação deve ter-lhe ocorrido, pois essa mesma nota de rodapé acrescentada
continha a primeira afirmativa de que o fetiche representa o pênis que falta à mulher, que figurara de
modo proeminente entre as teorias sexuais infantis a que recentemente dedicara um artigo (1908c), Ibid.,
9, 215-18. Essa nova explicação do fetiche foi também mencionada (como Freud observa na pág. 180n,
adiante) em seu estudo sobre Leonardo (1910c), ibid, XI, publicado muito pouco depois da nota de
rodapé aos Três Ensaios.
A questão especial da origem do fetichismo do pé (mencionada no presente artigo,ver [1]) atraiu
a atenção de Freud alguns anos depois. A 11 de março de 1914, leu para a Sociedade Psicanalítica de
Viena outro artigo sobre ‘Um Caso de Fetichismo do Pé’. Este também não foi publicado, mas dessa vez,
afortunadamente, possuímos um resumo dele, da autoria de Ernest Jones (1955, 342-3). A explicação da
escolha do pé como fetiche - uma abordagem aos órgãos genitais da mulher de maneira deslocada - a
que nele se chegou, foi publicada como acréscimo posterior à mesma nota de rodapé aos Três ensaios,
em sua terceira edição de 1915. Outro caso clínico bastante semelhante foi comunicado muito
sucintamente por Freud na Conferência XXII de suas Introductory Lectures (1916-17). Entretanto, embora
o presente artigo seja importante enquanto reunião e ampliação das primeiras opiniões de Freud sobre o
fetichismo, seu principal interesse reside numa direção muito diferente, isto é, no novo desenvolvimento
metapsicológico que introduz. Por diversos anos Freud utilizou o conceito de ‘rejeição’ (‘Verleugnung’),
especialmente quanto às reações das crianças à observação da distinção anatômica entre os sexos. No
presente artigo, baseando-se em observações clínicas recentes, apresenta razões para supor-se que
essa ‘rejeição’ necessariamente acarreta uma divisão no ego do indivíduo. No fim da vida, Freud retomou
o tema e ampliou seu âmbito: em artigo inacabado e postumamente publicado sobre’ Splitting of the Ego
in the Process of Defence’ (1940e [1938]), e nos últimos parágrafos do Capítulo VIII de Esboço de
Psicanálise (1940a [1938], Livro 7 da Pequena Coleção das Obras de Freud, IMAGO Editora, 1974).
Entretanto, embora o fetichismo seja especialmente considerado em ambos esses trabalhos, Freud
assinala aí que essa ‘divisão do ego’ não é peculiar ao fetichismo, mas que, na realidade,pode ser
encontrada em muitas outras situações em que o ego se defronta com a necessidade de construir uma
defesa, e que ela ocorre não apenas na rejeição, mas também na repressão.
FETICHISMO
Nos últimos anos tive oportunidade de estudar analiticamente certo número de homens cuja
escolha objetal era dominada por um fetiche. Não é preciso esperar que essas pessoas venham à análise
por causa de seu fetiche, pois, embora sem dúvida ele seja reconhecido por seus adeptos como uma
anormalidade, raramente é sentido por eles como o sintoma de uma doença que se faça acompanhar por
sofrimento. Via de regra, mostram-se inteiramente satisfeitos com ele, ou até mesmo louvam o modo pelo
qual lhes facilita a vida erótica. Via de regra, portanto, o fetiche aparece na análise como uma descoberta
subsidiária.
Por motivos evidentes, os pormenores desses casos não podem ser publicados; não posso,
portanto, mostrar de que maneira as circunstâncias acidentais contribuíram para a escolha de um fetiche.
O caso mais extraordinário pareceu-me ser aquele em que um jovem alçou certo tipo de ‘brilho do nariz’ a
uma precondição fetichista. A explicação surpreendente para isso era a de que o paciente fora criado na
Inglaterra, vindo posteriormente para a Alemanha, onde esquecera sua língua materna quase
completamente. O fetiche, originado de sua primeira infância , tinha de ser entendido em inglês, não em
alemão. O ‘brilho do nariz’ [em alemão ‘Glanz auf der Nase‘] era na realidade um ‘vislumbre (glance) do
nariz’. O nariz constituía assim o fetiche, que incidentalmente, ele dotara, à sua vontade, do brilho
luminoso que não era perceptível a outros.
Em todos os casos, o significado e o propósito do fetiche demonstraram, na análise, serem os
mesmos. Ele se revelou de modo tão natural e me pareceu tão compelativo que me sinto preparado para
esperar a mesma solução em todos os casos de fetichismo. Ao enunciar agora que o fetiche é um
substituto para o pênis, decerto criarei um desapontamento, de maneira que me apresso a acrescentar
que não é um substituto para qualquer pênis ocasional, e sim para um pênis específico e muito especial,
que foi extremamente importante na primeira infância, mas posteriormente perdido. Isso equivale a dizer
que normalmente deveria ter sido abandonado; o fetiche, porém, se destina exatamente a preservá-lo da
extinção. Para expressá-lo de modo mais simples: o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe)
em que o menininho outrora acreditou e que - por razões que nos são familiares - não deseja
abandonar.O que sucedeu, portanto, foi que o menino se recusou a tomar conhecimento do fato de ter
percebido que a mulher não tem pênis. Não, isso não podia ser verdade, pois, se uma mulher tinha sido
castrada, então sua própria posse de um pênis estava em perigo, e contra isso ergueu-se em revolta a
parte de seu narcisismo que a Natureza, como precaução, vinculou a esse órgão específico. Na vida
posterior, um homem adulto talvez possa experimentar um pânico semelhante, quando se eleva o clamor
de que o Trono e o Altar correm perigo e conseqüências ilógicas semelhantes decorrerão disso. Se não
estou equivocado, Laforgue, nesse caso, diria que o menino ‘escotomiza’ sua percepção da falta de pênis
da mulher. Um termo técnico novo se justifica quando descreve um fato novo ou lhe dá ênfase. Nesse
caso, não é assim. A mais antiga palavra de nossa terminologia psicanalítica, ‘repressão’, já se relaciona
com esse processo patológico. Se quisermos diferenciar mais nitidamente a vicissitude da idéia como
distinta daquela do afeto, e reservar a palavra ‘Verdrängung’ [‘repressão’] para o afeto, então a palavra
alemã correta para a vicissitude da idéia seria ‘Verleugnung’ [‘rejeição’]. ‘Escotomização’ parece-me
particularmente inapropriada, por sugerir que a percepção é inteiramente apagada, de maneira que o
resultado é o mesmo que sucede quando uma impressão visual incide sobre o ponto cego da retina. Na
situação que estamos considerando, pelo contrário, vemos que a percepção continuou e que uma ação
muito enérgica foi empreendida para manter a rejeição. Não é verdade que, depois que a criança fez sua
observação da mulher, tenha conservado inalterada sua crença de que as mulheres possuem um falo.
Reteve essa crença, mas também a abandonou. No conflito entre o peso da percepção desagradável e a
força de seu contradesejo, chegou-se a um compromisso, tal como só é possível sob o domínio dasleis
inconscientes do pensamento - os processos primários. Sim, em sua mente a mulher teve um pênis, a
despeito de tudo, mas esse pênis não é mais o mesmo de antes. Outra coisa tomou seu lugar, foi
indicada como seu substituto, por assim dizer, e herda agora o interesse anteriormente dirigido a seu
predecessor. Mas esse interesse sofre também um aumento extraordinário, pois o horror da castração
ergueu um monumento a si próprio na criação desse substituto. Ademais, uma aversão, que nunca se
acha ausente em fetichista algum, aos órgãos genitais femininos reais, permanece um stigma indelebile
da repressão que se efetuou. Podemos perceber agora aquilo que o fetiche consegue e aquilo que o
mantém. Permanece um indício do triunfo sobre a ameaça de castração e uma proteção contra ela.
Também salva o fetichista de se tornar homossexual, dotando as mulheres da característica que as torna
toleráveis como objetos sexuais. Na vida posterior, o fetichista sente desfrutar de ainda outra vantagem
de seu substituto de um órgão genital. O significado do fetiche não é conhecido por outras pessoas, de
modo que não é retirado do fetichista; é facilmente acessível e pode prontamente conseguir a satisfação
sexual ligada a ele. Aquilo pelo qual os outros homens têm de implorar e se esforçar pode ser tido pelo
fetichista sem qualquer dificuldade.
Provavelmente a nenhum indivíduo humano do sexo masculino é poupado o susto da castração
à vista de um órgão genital feminino. Por que algumas pessoas se tornam homossexuais em
conseqüência dessa impressão, ao passo que outras a desviam pela criação de um fetiche, e a grande
maioria a supera, francamente não somos capazes de explicar. É possível que, entre todos os fatores em
ação, ainda não conheçamos os decisivos para os raros resultados patológicos. Temos de nos contentar
se pudermos explicar o que aconteceu, e deixar atualmente de lado a tarefa de explicar por que algo não
aconteceu.
Esperar-se-ia que os órgãos ou objetos escolhidos como substitutos para o falo ausente da
mulher fossem tais, que aparecessem como símbolos do pênis também sob outros aspectos. Isso pode
acontecer com bastante freqüência, mas certamente não constitui fator decisivo. Antes, parece que,
quando o fetiche é instituído, ocorre certo processo que faz lembrar a interrupção da memória na
amnésia traumática. Como nesse último caso, o interesse do indivíduo se interrompe a meio cominho,
por assim dizer; é como se a última impressão antes da estranha e traumática fosse retida como fetiche.
Assim, o pé ou o sapato devem sua preferência como fetiche - ou parte dela - à circunstância de o
menino inquisitivo espiar os órgãos genitais da mulher a partir de baixo, das pernas para cima; peles e
veludo - como por longo tempo se suspeitou - constituem uma fixação da visão dos pêlos púbicos,que
deveria ter sido seguida pela ansiada visão do membro feminino; peças de roupa interior, que tão
freqüentemente são escolhidas como fetiche, cristalizam o momento de se despir, o último momento em
que a mulher ainda podia ser encarada como fálica. Não sustento, porém, ser invariavelmente possível
descobrir com certeza o modo como o fetiche foi determinado.
Uma investigação do fetichismo é calorosamente recomendada a quem quer que ainda duvide da
existência do complexo de castração ou que ainda possa acreditar que o susto à vista do órgão genital
feminino possua outro fundamento, tal como, por exemplo, que ele derive de uma suposta rememoração
do trauma do nascimento.
Para mim, a explicação do fetichismo possui também outro aspecto de interesse teórico.
Recentemente, seguindo linhas inteiramente especulativas, cheguei à proposição de que a diferença
essencial entre a neurose e a psicose consistia em que, na primeira, o ego, a serviço da realidade,
reprime um fragmento do id, ao passo que, na psicose, ele se deixa induzir, pelo id, a se desligar de um
fragmento da realidade. Retornei a esse tema mais tarde. Logo depois, porém, tive motivo para lamentar
ter-me aventurado tão longe. Na análise de dois jovens aprendi que ambos - um quando tinha dois anos
de idade, e o outro, quando contava dez - não haviam conseguido tomar conhecimento da morte do
querido pai, haviam-na ‘escotomizado’, e, contudo, nenhum deles desenvolvera uma psicose. Desse
modo, um fragmento de realidade, indubitavelmente importante, fora rejeitado pelo ego, tal como o fato
desagradável da castração feminina é rejeitado nos fetichistas. Também comecei a suspeitar que
ocorrências semelhantes na infância de maneira alguma são raras, e acreditei ter sido culpado de um
erro em minha caracterização da neurose e da psicose. É verdade que havia uma saída para a
dificuldade. Minha fórmula precisava apenas ser válida onde houvesse um grau mais elevado de
diferenciação no aparelho psíquico; seriam permissíveis a uma criança coisas que acarretariam graves
prejuízos a um adulto.
Contudo, a pesquisa posterior conduziu-me a outra solução para a contradição. Tornou-se
evidente que os dois jovens não haviam ‘escotomizado’ a morte dos pais mais do que um fetichista
escotomiza a castração feminina. Fora apenas uma determinada corrente em sua vida mental que não
reconhecera a morte daqueles; havia outra corrente que se dava plena conta desse fato. A atitude que se
ajustava ao desejo e a atitude que se ajustava àrealidade existiam lado a lado. Num de meus dois casos,
a divisão constituíra a base de uma neurose obsessiva moderadamente grave. Em todas as situações da
vida, o paciente oscilava entre duas presunções: uma, de que o pai ainda estava vivo e atrapalhava suas
atividades; outra, oposta, de que tinha o direito de se considerar como sucessor do pai. Assim, posso
ater-me à expectativa de que, numa psicose, uma daquelas correntes - a que se ajustava à realidade esteja realmente ausente.
Retornando à minha descrição do fetichismo, posso dizer que existem muitas provas adicionais e
de peso quanto à atitude dividida dos fetichistas para com o tema da castração feminina. Em casos
bastante sutis, tanto a rejeição quanto a afirmação da castração encontram caminho na construção do
próprio fetiche. Assim ocorreu no caso de um homem cujo fetiche era um suporte atlético que também
podia ser usado como calção de banho. Essa peça cobria inteiramente os órgãos genitais e ocultava a
distinção entre eles. A análise mostrou que isso significava que as mulheres eram castradas e que não
eram castradas; e isso também permitiu a hipótese de que os homens eram castrados, porque todas
essas possibilidades podiam ser igualmente bem ocultas sob o suporte - cujo primeiro rudimento, em sua
infância, fora a folha de parreira de uma estátua. Um fetiche desse tipo, duplamente derivado de idéias
contrárias, é, naturalmente, especialmente durável. Em outros casos, a atitude dividida se mostra naquilo
que o fetichista faz com o fetiche, seja em realidade ou em sua imaginação. Assinalar que ele o
reverencia não é tudo; em muitos casos, trata-o de maneira obviamente equivalente a uma representação
da castração. Isso acontece particularmente, caso ele tenha desenvolvido uma forte identificação com o
pai e desempenha o papel deste último, pois foi a este que, em criança, atribuiu a castração da mulher. A
afeição e a hostilidade no tratamento do fetiche - que correm paralelas com a rejeição e o
reconhecimento da castração - estão mescladas em proporções desiguais em casos diferentes, de
maneira a que uma ou outra seja mais facilmente identificável. Parecemos aqui aproximar-nos de uma
compreensão, ainda que remota, do comportamento do ‘coupeur de nattes‘. Nele, a necessidade de
executar a castração, que ele mesmo rejeita, veio para o primeiro plano. Sua ação contém em si própria
as duas asserções mutuamente incompatíveis: ‘a mulher ainda tem um pênis’ e ‘meu pai castrou a
mulher’. Outra variante, que também constitui um paralelo ao fetichismo na psicologiasocial, poderia ser
encontrada no costume chinês de mutilar o pé feminino e, depois disso, reverenciá-lo como um fetiche.
Parece algo como se o homem chinês quisesse agradecer à mulher por se ter submetido a ser castrada.
Em conclusão, podemos dizer que o protótipo normal dos fetiches é um pênis de homem, assim
como o protótipo normal de órgãos inferiores é o pequeno pênis real de uma mulher, o clitóris.
O HUMOR (1927)
DER HUMOR
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1927 Almanach 1928, 9-16.
1928 Imago, 14 (1), 1-6.
1928 G.S., 11, 402-8.
1048 G.W., 14, 383-9.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Humour’
1928 Int. J. Psycho-Anal., 9 (1), 1-6. (Trad. de Joan Riviere.)
1950 C.P., 5, 215-21. (Reimpressão revista da anterior.)
A presente tradução inglesa é versão corrigida da publicada em 1950.
Freud escreveu este artigo em cinco dias, durante a segunda semana de agosto de 1927 (Jones,
1957, 146), e ele foi lido, em seu nome, por Anna Freud, a 1º de setembro, perante o X Congresso
Psicanalítico Internacional, em Innsbruck. Foi publicado pela primeira vez no outono do mesmo ano no
‘Almanaque’ psicanalítico referente a 1928.
O artigo retorna, depois de um intervalo de mais de vinte anos, ao tema examinado na última
seção do livro sobre os Chistes (1905c). Freud considera-o agora à luz de sua nova representação
estrutural da mente humana. Alguns pontos metapsicológicos interessantes surgem nas últimas páginas
do artigo e, pela primeira vez, encontramos o superego apresentado num estado de espírito afável.
O HUMOR
Em meu volume sobre Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente (1905c), na realidade
considerei o humor apenas do ponto de vista econômico. Meu objetivo era descobrir a fonte do prazer
que se obtém do humor e acho que pude demonstrar que a produção do prazer humorístico surge de
uma economia de gasto em relação ao sentimento. [Standard Ed., 8, 236.]
Há duas maneiras pelas quais o processo humorístico pode realizar-se. Ele pode dar-se com
relação a uma pessoa isolada, que, ela própria, adota a atitude humorística, ao passo que uma segunda
pessoa representa o papel de espectador que dela deriva prazer; ou pode efetuar-se entre duas pessoas,
uma das quais não toma parte alguma no processo humorístico, mas é tornada objeto de contemplação
humorística pela outra. Quando, para tomar o exemplo mais grosseiro [ibid., 201], um criminoso, levado à
forca numa segunda-feira, comentou: ‘Bem, a semana está começando otimamente’, ele mesmo estava
produzindo o humor; o processo humorístico se completa em sua própria pessoa e, evidentemente,
concede-lhe certo senso de satisfação. Eu, ouvinte não participante, sou afetado, por assim dizer, a longo
alcance, por essa produção humorística do criminoso; sinto, como ele talvez, a produção de prazer
humorístico.
Temos um exemplo da segunda maneira pela qual o humor surge, quando um escritor ou
narrador descreve o comportamento de pessoas reais ou imaginárias de modo humorístico. Essas
próprias pessoas não precisam demonstrar humor algum; a atitude humorística interessa apenas à
pessoa que as está tomando como seu objeto, e, tal como no primeiro exemplo, o leitor ou ouvinte
partilha da fruição do humor. Para resumir, então, podemos dizer que a atitude humorística - não
importando em que consista - é possível de ser dirigida quer para o próprio eu do indivíduo quer para
outras pessoas; é de supor que ocasione uma produção de prazer à pessoa que a adota, e uma
produção semelhante de prazer vem a ser a quota do assistente não participante.
Compreenderemos melhor a gênese da produção do prazer humorístico se considerarmos o
processo que se dá no ouvinte perante quem um outro produz humor. O ouvinte vê esse outro numa
situação que o leva a esperar que ele produza os sinais de um afeto, que fique zangado, se queixe,
expresse sofrimento, fique assustado ou horrorizado ou, talvez, até mesmo desesperado; e o assistente
ou ouvinte está preparado para acompanhar sua direçãoe evocar os mesmos impulsos emocionais em si
mesmo. Contudo, essa expectativa emocional é desapontada; a outra pessoa não expressa afeto, mas
faz uma pilhéria. O gasto de sentimento, que é assim economizado, se transforma em prazer humorístico
no ouvinte.
É fácil chegar até aí. Logo, porém, verificamos que é o processo que se realiza na outra pessoa o ‘humorista’ - que merece maior atenção. Não há dúvida de que a essência do humor é poupar os afetos
a que a situação naturalmente daria origem e afastar com uma pilhéria a possibilidade de tais expressões
de emoção. Até esse ponto, o processo no humorista tem de concordar com o processo no ouvinte - ou,
para dizê-lo mais corretamente, o processo no ouvinte deve ter copiado o do humorista. Mas, de que
modo este último ocasiona a atitude mental que torna supérflua a liberação de afeto? Qual é a dinâmica
de sua adoção da ‘atitude humorística’? Evidentemente, a solução do problema deve ser buscada no
humorista; no ouvinte, temos de supor que existe apenas um eco, uma cópia, desse processo
desconhecido.
Já é hora de nos familiarizarmos com algumas das características do humor. Como os chistes e o
cômico, o humor tem algo de liberador a seu respeito, mas possui também qualquer coisa de grandeza e
elevação, que faltam às outras duas maneiras de obter prazer da atividade intelectual. Essa grandeza
reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se
recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em
que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas
para ele não passam de ocasiões para obter prazer. Esse último aspecto constitui um elemento
inteiramente essencial do humor. Suponhamos que o criminoso levado para execução na segunda-feira
dissesse: ‘Isso não me preocupa. Que importância tem, afinal de contas, que um sujeito como eu seja
enforcado? O mundo não vai acabar por causa disso’. Teríamos de admitir que um discurso desse tipo
apresenta de fato a mesma magnífica superioridade sobre a situação real. É sábio e verdadeiro, mas não
revela traço de humor. Na verdade, baseia-se numa avaliação da realidade que vai diretamente contra a
avaliação feita pelo humor. O humor não é resignado, mas rebelde. Significa não apenas o triunfo do ego,
mas também o do princípio do prazer, que pode aqui afirmar-se contra a crueldade das circunstâncias
reais.
Essas duas últimas características - a rejeição das reivindicações da realidade e a efetivação do
princípio do prazer - aproximam o humor dos processos regressivos ou reativos que tão amplamente
atraem nossa atenção na psicopatologia. Seu desvio da possibilidade de sofrimento coloca-o entrea
extensa série de métodos que a mente humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer - uma
série que começa com a neurose e culmina na loucura, incluindo a intoxicação, a auto-absorção e o
êxtase. Graças a essa vinculação, o humor possui uma dignidade que falta completamente, por exemplo,
aos chistes, pois estes servem simplesmente para obter uma produção de prazer ou colocar essa
produção, que foi obtida, a serviço da agressão. Em que, então, consiste a atitude humorística, atitude
por meio da qual uma pessoa se recusa a sofrer, dá ênfase à invencibilidade do ego pelo mundo real,
sustenta vitoriosamente o princípio do prazer - e tudo isso em contraste com outros métodos que têm os
mesmos intuitos, sem ultrapassar os limites da saúde mental? As duas realizações parecem
incompatíveis.
Se retornarmos à situação em que determinada pessoa adota uma atitude humorística para com
outros, uma conceituação que já apresentei experimentalmente em meu livro sobre chistes se sugerirá
por si mesma em seguida. É que o indivíduo se comporta para com eles como um adulto o faz com uma
criança, quando identifica e sorri da trivialidade dos interesses e sofrimentos que parecem tão grandes a
esta última [ibid., 205]. Assim, o humorista adquiriria sua superioridade por assumir o papel do adulto,
identificar-se até certo ponto com o pai, e reduzir as outras pessoas a crianças. Essa conceituação
provavelmente abrange os fatos, embora dificilmente pareça ser conclusiva. Perguntamo-nos o que é que
faz o humorista arrogar-se esse papel.
Mas temos de recordar a outra situação de humor, provavelmente mais primária e mais
importante, na qual uma pessoa adota uma atitude humorística para consigo mesma, a fim de manter
afastados possíveis sofrimentos. Há sentido em dizer que alguém está-se tratando a si próprio como
criança e, ao mesmo tempo, desempenhando o papel de um adulto superior para com essa criança?
Essa idéia não muito plausível receberá apoio bastante forte, penso eu, se levarmos em
consideração aquilo que aprendemos das observações patológicas sobre a estrutura do ego. Esse ego
não é uma entidade simples. Abriga dentro dele, como seu núcleo, um agente especial: o superego. Às
vezes, acha-se fundido com o superego de maneira que não podemos fazerdistinção entre eles, ao passo
que, em outras circunstâncias, se acha nitidamente diferenciado dele. Geneticamente o superego é o
herdeiro do agente paterno. Freqüentemente ele mantém o ego em estrita dependência e, ainda,
realmente o trata como os genitores, ou o pai, outrora trataram o filho, em seus primeiros anos.
Obteremos uma explicação dinâmica da atitude humorística, portanto, se supusermos que ela consiste
em ter o humorista retirado a ênfase psíquica de seu ego, transpondo-a para o superego. Para o
superego, assim inflado, o ego pode parecer minúsculo, e triviais todos os seus interesses, e, com essa
nova distribuição de energia, pode tornar-se coisa fácil para o superego reprimir as possibilidades de
reação do ego.
A fim de permanecermos fiéis à nossa fraseologia habitual, teremos de falar, não de transportar a
ênfase psíquica, mas de deslocar grandes quantidades de catexia. A questão, então, é saber se temos o
direito de representar amplos deslocamentos como esse, de um agente do aparelho psíquico para outro.
Isso parece ser uma nova hipótese, construída ad hoc. Contudo, podemos lembrar-nos de que
repetidamente (ainda que não com suficiente freqüência) tomamos um fator desse tipo em consideração
nas nossas tentativas de representação metapsicológica dos acontecimentos mentais. Assim, por
exemplo, supomos que a diferença entre uma catexia objetal erótica normal e o estado de se achar
enamorado é que, neste último, uma catexia incomparavelmente maior se transfere para o objeto, e que
o ego se esvazia, por assim dizer, em favor do objeto. Estudando certos casos de paranóia, pude
estabelecer o fato de que idéias de perseguição se formam precocemente e existem por longo tempo
sem qualquer efeito perceptível, até que, em resultado de determinado acontecimento precipitante
específico, recebe quantidades de catexia suficientes para levá-las a se tornarem dominantes. Também a
cura de tais crises paranóicas residiria não tanto numa solução e correção das idéias delirantes, quanto
numa retirada delas da catexia que lhes foi emprestada. As alternações entre melancolia e mania, entre
uma cruel opressão do ego pelo superego e uma liberação do ego após essa pressão, sugerem um
deslocamento de catexia desse tipo; tal deslocamento, ademais, teria de ser introduzido para explicar um
grande número de fenômenos que pertencem à vida mental normal. Se, até o presente, isso só foi feito
em grau muito limitado, o fato deve-se à nossa cautela usual, algo que só merecelouvor. A região em que
nos sentimos seguros é a da patologia da vida mental; é aqui que efetuamos nossas observações e
adquirimos nossas convicções. Atualmente, só nos aventuramos a formar um juízo sobre a mente normal
na medida em que podemos discernir o que é normal nos isolamentos e deformações do material
patológico. Uma vez superada essa hesitação, reconhecermos quão grande é a contribuição efetuada à
compreensão dos processos mentais tanto pelas condições estáticas quanto pelas alterações dinâmicas
da quantidade da catexia energética.
Acho, portanto, que a possibilidade que aqui sugeri, a de que, numa situação específica, o
indivíduo subitamente hipercatexize seu superego, e então, a partir disso, altere as reações do ego,
merece ser retida. Ademais, o que sugeri sobre o humor encontra analogia digna de nota no campo
aparentado dos chistes. Quanto à origem destes, fui levado a supor que um pensamento pré-consciente
é entregue por um momento à revisão inconsciente [ibid., 166]. Um chiste é, portanto, a contribuição feita
ao cômico pelo inconsciente [ibid., 208]. Exatamente do mesmo modo, o humor seria a contribuição feita
ao cômico pela intervenção do superego.
Com respeito a outros assuntos, conhecemos o superego como um senhor severo. Dir-se-á que
não combina bem com tal caráter o fato de o superego condescender em capacitar o ego a obter uma
pequena produção de prazer. É verdade que o prazer humorístico jamais alcança a intensidade do prazer
do cômico ou dos chistes, que jamais encontra vazão no riso cordial. Também é verdade que,
ocasionando a atitude humorística, o superego está realmente repudiando a realidade e servindo a uma
ilusão. Entretanto (sem saber exatamente por quê), encaramos esse prazer menos intenso como
possuindo um caráter de valor muito alto; sentimos que ele é especialmente liberador e enobrecedor.
Além disso, a pilhéria feita por humor não é o essencial. Ela tem apenas o valor de algo preliminar. O
principal é a intenção que o humor transmite, esteja agindo em relação quer ao eu quer as outras
pessoas. Significa: ‘Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de
crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!’
Se é realmente o superego que, no humor, fala essas bondosas palavras de conforto ao ego
intimidado, isso nos ensinará que ainda temos muito a aprender sobre a natureza do superego. Ademais,
nem todas as pessoas são capazes da atitude humorística. Trata-se de um dom raro e precioso, e muitas
sequer dispõem da capacidade de fruir o prazer humorístico que lhes é apresentado. E finalmente, se o
superego tenta, através do humor, consolar o ego e protegê-lo do sofrimento, isso não contradiz sua
origem no agente paterno.
UMA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA (1928 [1927])
EIN RELIOGIÖSES ERLEBNIS
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1928 Imago, 14 (1), 7-10.
1928 G.S., 11, 467-70.
1928 Almanach 1929, 9-12.
1948 G.W., 14, 393-6.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘A Religious Experience’
1929 Int. J. Psycho-Anal., 10 (1), 1-4 (Tradutor não especificado.)
1950 C.P., 5, BDC-F. (Trad. de James Strachey.)
A presente tradução inglesa é reimpressão ligeiramente corrigida da publicada em 1950.
Este artigo, publicado em princípios de 1928, foi escrito, segundo Ernest Jones (1957, 151), em
fins de 1927. A visita de Viereck a Freud, ponto de partida dos acontecimentos que levaram à redação do
artigo, ocorreu, conta-nos Jones (ibid., 133), em fins de junho de 1926. Viereck (jornalista norteamericano bastante conhecido e interessado pela psicánalise) publicou seu relato da visita no outono do
ano seguinte, relato reimpresso num volume, Glimpses of the Great (1930, 28 e segs.), e do qual alguns
extratos são fornecidos por Jones (loc. cit.).
Note-se que o texto da carta do médico americano a Freud não concorda exatamente com a
versão alemã. A versão inglesa aqui fornecida constitui reimpressão da que foi originalmente apresentada
no International Journal, havendo razões para supor que os redatores deste utilizaram uma cópia do
autógrafo inglês da carta, da qual Freud não dera uma transcrição inteiramente exata. As diferença entre
as duas versões, contudo, são insignificantes.
UMA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
No outono de 1927. G.S. Viereck, jornalista teuto-americano que me fizera uma visita de boasvindas, publicou o relato de uma conversa comigo, no correr do qual mencionou minha falta de fé
religiosa e minha indiferença quando ao tema da sobrevivência depois da morte. Essa ‘entrevista’, como
foi chamada, foi amplamente lida e trouxe-me, entre outras, a seguinte carta de um médico americano:
‘…O que mais me impressionou foi sua resposta à pergunta sobre se acreditava numa
sobrevivência da personalidade depois da morte. Consta que o senhor disse: “Não penso no assunto.”
‘Escrevo-lhe agora para narrar-lhe uma experiência que tive no ano em que me formei na
Universidade de X. Certa tarde, ao atravessar a sala de dissecção, minha atenção foi atraída por uma
velhinha de rosto suave que estava sendo conduzida para uma mesa de dissecção. Essa mulher de rosto
suave me causou tal impressão que um pensamento atravessou minha mente: “Não existe Deus; se
existisse, não permitiria que essa pobre velhinha fosse levada a sala de dissecção.”
‘Quando voltei para casa naquela tarde, o sentimento que experimentara à visão na sala de
dissecção, fizera-me decidir não mais continuar indo à igreja. As doutrinas do cristianismo, antes disso, já
tinham sido objeto de dúvidas em meu espírito.
‘Enquanto meditava sobre o assunto, uma voz falou-me à alma que “eu deveria considerar o
passo que estava a ponto de dar”. Meu espírito replicou a essa voz interior: “Se eu tivesse a certeza de
que o cristianismo é verdade e que a Bíblia é a Palavra de Deus, então eu os aceitaria.”
‘No decorrer das semanas seguintes, Deus tornou claro à minha alma que a Bíblia era Sua
Palavra, que os ensinamentos a respeito de Jesus Cristo eram verdadeiros e que Jesus era nossa única
salvação. Após uma revelação tão clara, aceitei a Bíblia como sendo a Palavra de Deus, e Jesus Cristo,
como meu Salvador pessoal. Desde então, Deus Se revelou a mim por meio de muitas provas infalíveis.
‘Imploro-lhe, como um irmão na medicina, para refletir sobre esse tema tão importante e, posso
garantir-lhe, se considerá-lo com a mente aberta, Deus revelará a verdade à sua alma, assim como fez
comigo e com uma infinidade de outros.’Enviei-lhe uma resposta polida, dizendo que ficava contente em
saber que essa experiência o havia capacitado a manter sua fé. Quando a mim, Deus não fizera o
mesmo comigo. Nunca me permitira escutar uma voz interior e se, em vista da minha idade, não se
apressasse, não seria culpa minha se eu permanecesse até o fim de minha vida o que agora sou - ‘an
infidel jew’1 (um judeu infiel).
Quando de uma resposta amistosa, meu colega garantiu-me que ser judeu não constituía
obstáculo no caminho para a fé verdadeira e provou isso com diversos exemplos. Sua carta culminava
com a informação de que preces estavam sendo convictamente endereçadas a Deus, a fim de que me
concedesse a ‘faith to believe’ (fé para crer).
Ainda estou esperando o resultado dessa intercessão. Enquanto isso, a experiência religiosa de
meu colega fornece substância para reflexão. Parece-me exigir uma certa tentativa de interpretação
baseada em motivos emocionais, pois sua experiência é, em si mesma, enigmática, e baseada numa
lógica particularmente ruim. Deus, como bem sabemos, permite que aconteçam horrores nada
semelhantes à remoção para a sala de dissecção do cadáver de uma velhinha de aparência agradável.
Isso é verdade desde sempre, e também deve ter sido enquanto o meu colega americano conduzia seus
estudos. Tampouco, como estudante de medicina, pôde ficar tão abrigado do mundo, a ponto de nada
conhecer de tais males. Por que, então, sua indignação contra Deus irrompeu precisamente ao receber
essa impressão específica na sala de dissecção?
Para quem quer que esteja acostumado a encarar analiticamente as experiências internas e as
ações dos homens, a explicação é muito óbvia - tão óbvia, que na realidade se insinuou em minha
rememoração dos próprios fatos. Certa vez, quando me referia à carta de meu piedoso colega no
decorrer de um debate, disse que ele escrevera que o rosto da mulher morta fizera-o lembrar-se do rosto
de sua própria mãe. Na realidade, essas palavras não constavam de sua carta e uma curta reflexão
bastará para mostrar que elas não tinham possibilidade de estar lá. Mas essa é a explicação a que
somos irresistivelmente forçados por sua descrição afetuosamente enunciada da ‘sweetfaced dear old
woman’ (velhinha de rosto suave). Dessa maneira, a fraqueza de julgamento demonstrada pelo jovem
médico deve ser explicada pela emoção nele despertada pela lembrança de sua mãe. É difícil fugir ao
mau hábito psicanalítico de apresentar como prova pormenores que também permitiriam explicações
mais superficiais - e fico tentado a recordar o fato de que posteriormente meu colega se dirigiu a mim
como ‘brother physician’ (irmão na medicina)Podemos supor, portanto, que foi assim que as coisas
aconteceram. A visão de um cadáver de mulher, nu ou a ponto de ser despido, recordou ao jovem sua
mãe. Despertou nele um anseio pela mãe que se originava de seu complexo de Édipo, e isso foi
imediatamente completado por um sentimento de indignação contra o pai. Suas idéias de ‘pai’ e ‘Deus’
ainda não se tinham separado inteiramente, de modo que seu desejo de destruir o pai podia tornar-se
consciente como dúvida a respeito da existência de Deus e procurar justificar-se aos olhos da razão
como indignação com o mau trato dado a um objeto materno. Naturalmente, é típico do filho considerar
como mau trato o que o pai faz à mãe nas relações sexuais. O novo impulso, deslocado para a esfera da
religião, constituía apenas uma repetição da situação edipiana e, conseqüentemente, logo se defrontou
com uma sorte semelhante, ou seja, sucumbiu a uma poderosa corrente oposta. Durante o conflito real, o
nível do deslocamento não foi sustentado: não há menção de argumentos em justificação de Deus, não
nos é dito quais foram os sinais infalíveis pelos quais Deus provou sua existência ao que duvidava. O
conflito parece ter-se desdobrado sob a forma de uma psicose alucinatória: escutaram-se vozes interiores
que enunciaram advertências contra a resistência a Deus. Mas o resultado da luta foi mais uma vez
apresentado na esfera da religião, e era de um tipo predeterminado pelo destino do complexo de Édipo:
submissão completa à vontade de Deus Pai. O jovem tornou-se crente e aceitou tudo o que desde a
infância lhe havia sido ensinado sobre Deus e Jesus Cristo. Tivera uma experiência religiosa e
experimentaria uma conversão.
Tudo isso é tão simples e direto que não podemos deixar de nos perguntar se pela compreensão
desse caso lançamos qualquer luz sobre a psicologia da conversão em geral. Posso indicar ao leitor um
admirável livro sobre o assunto, de autoria de Sante de Sanctis (1924), o qual, incidentalmente, leva em
consideração todas as descobertas da psicanálise. O estudo dessa obra confirma nossa expectativa de
que, de modo algum, todos os casos de conversão podem ser compreendidos tão simplesmente quanto
esse. Em aspecto algum, contudo, nosso caso contradiz as opiniões sobre o assunto a que se chegou
pela pesquisa moderna. O ponto que nossa observação presente coloca em relevo é a maneira pela qual
a conversão se ligou a um evento determinante específico, o qual fez com que o ceticismo do indivíduo
flamejasse uma última vez, antes de se extinguir finalmente.
DOSTOIEVSKI E O PARRICÍDIO (1928 [1927])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
DOSTOJEWSKI UND DIE VATERTÖTUNG
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1928 Em Die Urgestalt der Bruder Karamasof, ed. R. Fülöp-Miller e F. Eckstein, Munique.
Págs. xi-xxxvi.
1929 Almanach 1930, 9-31.
1934 G.S., 12, 7-26.
1948 G.W., 14, 399-418.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
‘Dostoevski and Parricide’
1929 The Realist, 1 (4), 18-33. (Trad. de D. F. Trait.)-’Dostoevski and Parricide’
1945 Int. J. Psycho-anal, 26 (1 & 2), 1-8. (A mesma que a anterior, consideravelmente
revista e com título ligeiramente modificado.)
1945 Partisan Review, 12 (4), 530-44.(Reimpre-ssão da anterior.)
1947 Em Stavrogin’s Confession, de F.M. Dostoevsky, trad. de V. Woolf e Koteliansky,
Nova Iorque, Lear Publications, 87-114. (Reimpressão da anterior.)
1950 C.P., 5, 222-42. (Nova revisão da anterior.)
A presente tradução inglesa é reimpressão ligeiramente corrigida da de 1950.
A partir de 1925, Fülöp-Miller e Eckstein começaram a lançar uma série de volumes
suplementares à grande edição alemã completa da obra de Dostoievski, a qual, coordenada por Moeller
van den Bruck, tinha sido completada alguns anos antes. Os novos volumes, uniformes com a edição
completa, continham trabalhos póstumos, esboços inacabados e material oriundo de diversas fontes a
lançar luz sobre o caráter e as obras de Dostoievski. Um desses volumes deveria conter uma compilação
de rascunhos e esboços preliminares referentes a Os Irmãos Karamassovi e um estudo das fontes do
livro, e os editores estavam ansiosos por persuadir Freud a contribuir com uma introdução que tratasse
da psicologia tanto do livro quanto de seu autor. Parece que o abordaram em princípios de 1926, e ele
começou a escrever o ensaio por volta do fim de junho do mesmo ano. Foi dele desviado, contudo, pela
necessidade urgente de redigir seu opúsculo sobre a análise leiga (1926e) em vista do processo iniciado
contra Theodor Reik (Standard Ed., 20, 180). Depois disso, parece ter perdido o interesse pelo ensaio
sobre Dostoievski, particularmente, conforme Jones nos conta (1957, 152), após ter-se deparado com um
livro sobre o mesmo assunto, da autoria de Neufeld (1923), o qual, como diz em,ver
([1]) - com
considerável modéstia, é de se notar -, continha a maioria das idéias que ele mesmo estava
apresentando. Não fica claro quando retomou o ensaio. Jones (loc. cit.) sugere que foi acabado em
princípios de 1927, mas parece pouco provável, visto a história de Stefan Zweig a que a última parte do
ensaio se refere só ter aparecido em 1927. O volume ao qual o ensaio de Freud serviu de introdução (A
Versão Original de Os Irmãos Karamassovi) só foi publicado no outono de 1928.
O ensaio divide-se em duas partes distintas. A primeira trata do caráter de Dostoievski em geral,
de seu masoquismo, seu sentimento de culpa, seus ataques ‘epileptóides’ e sua dúplice atitude no
complexo de Édipo. O segundo debate o tema especial de sua paixão pelo jogo e conduz à de um conto
de Stefan Zweig que lança luz sobre a gênese desse vício. Como se verá por uma carta subseqüente de
Freud a Theodor Reik, que imprimimos como apêndice ver ([1]), as duas partes do ensaio estão mais
estreitamente relacionadas do que superficialmente parece.
O presente ensaio pode apresentar sinais de ser uma peça ‘ocasional’, mas contém muitas
coisas de interesse, tais como, por exemplo, o primeiro exame realizado por Freud das crises histéricas,
desde seu primeiro artigo sobre o assunto, escrito vinte anos antes (1909a), um reenunciado de suas
últimas opiniões sobre o complexo de Édipo e o sentimento de culpa, e um esclarecimento sobre o
problema da masturbação que não se encontra em sua descrição anterior do assunto (1912f). Acima de
tudo, porém, Freud teve aqui a oportunidade de expressar seus pontos de vista sobre um escritor que
considerava como um dos primeiros entre todos.
DOSTOIEVSKI E O PARRICÍDIO
Quatro facetas podem ser distinguidas na rica personalidade de Dostoievski: o artista criador, o
neurótico, o moralista e o pecador. Como encontrar o caminho nessa desnorteadora complexidade?
O artista criador é o menos duvidoso: o lugar de Dostoievski não se encontra muito atrás de
Shakespeare. Os Irmãos Karamassovi são o mais grandioso romance jamais escrito; quanto ao episódio
do Grande Inquisidor, um dos pontos culminantes da literatura mundial, dificilmente qualquer valorização
será suficiente. Diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem de depor suas armas.
O moralista em Dostoievski é o aspecto mais facilmente acessível. Se procurarmos colocá-lo
num elevado plano enquanto moralista, alegando que só um homem que passou pelas profundezas do
pecado pode atingir o mais alto cume da moralidade, negligenciaremos uma dúvida que surge. O homem
moral é aquele que reage à tentação tão logo a sente em seu coração, sem submeter-se a ela. Um
homem que alternadamente peca e depois, em seu remorso, erige altos padrões morais, fica exposto à
censura de tornar as coisas fáceis demais para si. Não alcançou a essência da moralidade, a renúncia,
pois a conduta moral de vida é um interesse humano prático. Faz-nos lembrar dos bárbaros das grandes
migrações, que matavam e faziam penitência por matarem, até que a penitência se transformou numa
técnica real para permitir que o homicídio fosse cometido. Ivan, o Terrível, comportava-se exatamente
desse modo; na verdade, essa transigência com a moralidade constitui um traço russo característico.
Tampouco o resultado final das batalhas morais de Dostoievski foi muito glorioso. Depois das mais
violentas lutas para reconciliar as exigências instintuais do indivíduo com as reivindicações da
comunidade, veio a cair na posição retrógrada de submissão à autoridade temporal e à espiritual, de
veneração pelo czar e pelo Deus dos cristãos, e de um estreito nacionalimo russo - posição a que mentes
inferiores chegaram com menor esforço. Esse é o ponto fraco dessa grande personalidade. Dostoievski
jogou fora a oportunidade de se tornar mestre e libertador da humanidade e se uniu a seus carcereiros. O
futuro da civilização humana pouco terá por que lhe agradecer. Parece provável que sua neurose o tenha
condenado a esse fracasso. A grandeza de sua inteligência e a intensidade de seu amor pela
humanidade poderiam ter-lhe aberto outro caminho de vida, um caminho apostólico.Considerar
Dostoievski como pecador ou criminoso desperta oposição violenta, que não precisa basear-se numa
apreciação filistéia dos criminosos. O motivo real para essa oposição logo se torna visível. Num
criminoso, dois traços são essenciais: um egoísmo sem limites e um forte impulso destrutivo. Comum a
ambos, e condição necessária para sua expressão, é a ausência de amor, a falta de uma apreciação
emocional de objetos (humanos). Imediatamente nos recordamos do contraste que a isso é apresentado
por Dostoievski - sua grande necessidade de amor e sua enorme capacidade de amar, que podem ser
constatadas em manisfestações de bondade exagerada e que o levaram a amar e a ajudar onde tinha
direito de odiar e ser vingativo, tal como, por exemplo, em seus relacionamentos com a primeira esposa e
o amante dela. Assim sendo, é lícito perguntar por que ficar tentado a classificar Dostoievski entre os
criminosos. A resposta é que isso provém não só de sua escolha de material, que isola de todas as
outras as personagens violentas, homicidas e egoístas, indicando assim a existência de tendências
semelhantes dentro dele próprio, como também de certos fatos de sua vida, tais como sua paixão pelo
jogo e sua possível confissão de um ataque sexual a uma garotinha. A contradição é solucionada pela
compreensão de que o instinto destrutivo muito intenso de Dostoievski, que facilmente poderia tê-lo
transformado num criminoso, foi, em sua vida real, dirigido principalmente contra sua própria pessoa
(para dentro, em vez de para fora), encontrando assim sua expressão como masoquismo e sentimento
de culpa. Não obstante, sua personalidade reteve traços sádicos em abundância, os quais se mostram
em sua irritabilidade, em seu amor de atormentar e em sua intolerância inclusive para com as pessoas
que amava, aparecendo também na maneira pela qual, como autor, ele trata seus leitores. Assim, nas
coisas mínimas, era um sádico para com os outros, e, nas maiores, um sádico para consigo mesmo, na
verdade,
um
masoquista,
vale
dizer,
a
pessoa
mais
branda,
bondosa
e
prestimosa
possível.Selecionamos, da complexa personalidade de Dostoievski, três fatores, um quantitativo e dois
qualitativos: a extraordinária intensidade de sua vida emocional, sua disposição instintual inata e
pervertida, que inevitavelmente o marcava para ser um sado-masoquista ou um criminoso, e seus dotes
artísticos inanalisáveis. Essa combinação poderia muito bem existir sem neurose: há pessoas que são
masoquistas completas sem serem neuróticas. Não obstante, o equilíbrio de forças entre suas exigências
instintuais e as inibições que se lhes opunham (mais os métodos disponíveis de sublimação) tornariam
mesmo assim necessário classificar Dostoievski como sendo aquilo que é denominado de ‘caráter
instintual’. Contudo, a posição é obscurecida pela presença simultânea da neurose, a qual, como
dissemos, não era, nas circunstâncias, inevitável, mas que surge à existência tão mais prontamente
quanto mais rica é a complicação que tem de ser dominada pelo ego, pois a neurose, afinal de contas, é
apenas um indício de que o ego não conseguiu fazer uma síntese, e de que, ao tentar fazê-la, perdeu
sua unidade.
Como, então, falando estritamente, se apresenta sua neurose? Dostoievski considerava-se
epiléptico e era encarado como tal por outras pessoas, por causa de suas graves crises, acompanhadas
por perda de consciência, convulsões musculares e depressão subseqüente. Ora, é altamente provável
que essa chamada epilepsia constituísse apenas um sintoma de sua neurose e devesse, por
conseguinte, ser classificada como histeroepilepsia, ou seja, como histeria grave. Não podemos ter
certeza absoluta sobre esse ponto por dois motivos: em primeiro lugar, porque os dados anamnésicos da
suposta epilepsia de Dostoievski são deficientes e imerecedores de confiança; em segundo, porque
nossa compreensão dos estados patológicos combinados com crises epileptiformes é imperfeita.
Tomando o segundo motivo em primeiro lugar, é desnecessário reproduzir aqui toda a patologia
da epilepsia, já que ela não lançaria uma luz decisiva sobre o problema; pelo menos, porém, pode-se
dizer o seguinte. O antigo morbus sacer ainda está em evidência como entidade clínica ostensiva, a
misteriosa enfermidade com as suas crises convulsivas incalculáveis e aparentemente não provocadas,
sua transformação do caráter em irritabilidade e agressividade, e sua diminuição progressiva de todas as
faculdades mentais. Mas falta muito em precisão aos traços gerais desse quadro. As crises, tão
selvagens em seu início, acompanhadas por mordidas de língua, incontinência de urina, e evoluindo para
o perigoso status epilepticus, com seu risco de graves autodanos, podem, não obstante, ser reduzidas a
rápidos períodos de absence, crises de vertigem que passam logo, ou ser substituídas por curtos
espaços de tempo durante os quais o paciente faz algo que está fora de seu caráter, como se se achasse
sob o controle do inconsciente. Essas crises, embora via de regra determinadas, de uma maneira que
não compreendemos, por causas puramente físicas, podem, entretanto, dever seu primeiro aparecimento
a alguma causa puramente mental (um susto, por exemplo), ou reagir sob outros aspectos a excitações
mentais. Embora uma deterioração intelectual característica possa acontecer na maioria esmagadora dos
casos, pelo menos nos é conhecido um caso (o de Helmholtz) em que a moléstia não interferiu na mais
elevada realização intelectual. (Outros casos a cujo respeito a mesma afirmação foi feita são discutíveis
ou abertos às mesmas dúvidas que o caso do próprio Dostoievski.) As pessoas vítimas de epilepsia
podem dar uma impressão de obtusidade e desenvolvimento interrompido, tal como a enfermidade
freqüentemente acompanha a idiotia mais palpável e os mais grosseiros defeitos cerebrais, ainda que
não como componente necessário do quadro clínico. Mas essas crises, com todas as suas variações,
também ocorrem em outras pessoas que apresentam um desenvolvimento mental completo e, se algo
mais, uma vida emocional excessiva, via de regra insuficientemente controlada. Não é de admirar que,
nessas circunstâncias, tenha sido considerado impossível sustentar que a ‘epilepsia’ constitui uma
entidade clínica isolada. A semelhança que encontramos nos sintomas manifestos parece exigir uma
visão funcional deles. É como se houvesse sido disposto organicamente um mecanismo para a descarga
instintual anormal, de que se poderia fazer uso em circunstâncias inteiramente diferentes, tanto no caso
de distúrbios de atividade cerebral devido a graves afecções histolíticas ou tóxicas, quanto no de um
controle inadequado sobre a economia mental, e, às vezes, quando a atividade da energia que opera na
mente atinge o ponto de crise. Por trás dessa dicotomia, temos um vislumbre da identidade do
mecanismo subjacente de descarga instintual. Tampouco pode esse mecanismo estar afastado dos
processos sexuais, fundamentalmente de origem tóxica: os antigos médicos descreviam o coito como
uma pequena epilepsia, reconhecendo assim no ato sexual uma mitigação e adaptação do método
epiléptico de descarregar estímulos.
A ‘reação epiléptica’, como esse elemento comum pode ser chamado, também está
indubitavelmente à disposição da neurose, cuja essência reside em livrar-se, através de meios somáticos,
de quantidades de excitação com as quais não pode lidar psiquicamente. Assim, a crise epiléptica se
transforma num sintoma de histeria, sendo por ela adaptada e modificada, tal como é pelos processos
sexuais normais de descarga. É, portanto, inteiramente correto distinguir entre epilepsia orgânica e
epilepsia ‘afetiva’. A significação prática disso é a de que uma pessoa que sofre do primeiro tipo tem uma
moléstia do cérebro, ao passo que a que padece do segundo é neurótica. No primeiro caso, sua vida
mental está sujeita a uma perturbação estranha, oriunda de fora; no segundo, o distúrbio é expressão de
sua própria vida mental.
É extremamente provável que a epilepsia de Dostoievski tenha sido do segundo tipo. Falando
estritamente, isso não pode ser provado. Para fazê-lo, precisaríamos estar em posição de inserir o
primeiro aparecimento das crises e suas flutuações subseqüentes no encadeamento de sua vida mental,
e, para tanto, conhecemos muito pouco. A descrição das próprias crises nada nos informa, e nossas
informações sobre as relações entre elas e as experiências de Dostoievski são deficientes e, com
freqüência, contraditórias. A suposição mais provável é a de que as crises remontavam muito atrás em
sua infância, que seu lugar foi ocupado, de início, por sintomas mais brandos e que não assumiram forma
epiléptica até depois da experiência dilaceradora de seu décimo oitavo ano de vida: o assassinato de seu
pai. Viria muito a propósito se pudesse ser estabelecido que elas cessaram completamente durante seu
exílio na Sibéria, mas outros relatos contradizem isso.
A inequívoca vinculação existente entre o assassínio do pai em Os Irmãos Karamassovi e a sorte
do próprio pai de Dostoievski já impressionou mais de um de seus biógrafos e os levou a se referirem a
‘certa moderna escola de psicologia’. Do ponto de vista da psicanálise (pois é a ela que se referem),
somos tentados a ver nesse acontecimento o trauma mais severo e a encarar a reação de Dostoievski a
ele como o ponto decisivo de sua neurose. Mas se eu empreender dar substância psicanalítica a essa
opinião, correrei o perigo de me tornar ininteligível para todos os leitores que não estão familiarizados
com a linguagem e as teorias da psicanálise.
Dispomos de um ponto de partida seguro. Conhecemos o significado das primeiras crises que
Dostoievski sofreu em seus primeiros anos, muito antes da incidência da ‘epilepsia’. Essas crises tinham
a significação de morte; eram anunciadas por um temor da morte e consistiam em estados sonolentos,
letárgicos. A moléstia o acometeu pela primeira vez quando ainda menino, sob a forma de uma
melancolia súbita e infundada, uma sensação, como mais tarde contou a seu amigo Soloviev, de que iria
morrer ali mesmo. E, na realidade, seguia-se um estado exatamente semelhante à morte real. Seu irmão
Andriei conta que, mesmo quando ainda muito moço, Fiodor costumava deixar espalhadas pequenas
anotações antes de dormir, dizendo que tinha medo de poder cair, durante a noite, num sono semelhante
à morte; assim, implorava que seu enterro fosse adiado por cinco dias. (Fülöp-Miller e Eckstein, 1925, lx.)
Conhecemos o significado e a intenção dessas crises semelhantes à morte. Significam uma
identificação com uma pessoa morta, seja com alguém que está realmente morto ou com alguém que
ainda está vivo e que o indivíduo deseja que morra. O último caso é o mais significativo. A crise possui
então o valor de uma punição. Quisemos que outra pessoa morresse; agora somos nós essa outra
pessoa e estamos mortos. Nesse ponto, a teoria psicanalítica introduz a afirmação de que, para um
menino, essa outra pessoa geralmente é o pai, e de que a crise (denominada de histérica) constitui assim
uma autopunição por um desejo de morte contra um pai odiado.
O parricídio de acordo com uma conceituação bem conhecida, é o crime principal e primevo da
humanidade, assim como do indivíduo. (Ver meu Totem e Tabu, 1912-13.) É, em todo caso, a fonte
principal do sentimento de culpa, embora não saibamos se a única; as pesquisas ainda não conseguiram
estabelecer com certeza a origem mental da culpa e da necessidade de expiação. Mas não lhe é
necessário ser a única. A situação psicológica é complicada e exige elucidação. O relacionamento de um
menino com o pai é, como dizemos, ‘ambivalente’. Além do ódio que procura livrar-se do pai como rival,
uma certa medida de ternura por ele também está habitualmente presente. As duas atitudes mentais se
combinam para produzir a identificação com o pai; o menino deseja estar no lugar do pai porque o admira
e quer ser como ele, e também por desejar colocá-lo fora do caminho. Todo esse desenvolvimento se
defronta com um poderoso obstáculo. Em determinado momento, a criança vem a compreender que a
tentativa de afastar o pai como rival seria punida por ele com a castração. Assim, pelo temor à castração
- isto é, no interesse de preservar sua masculinidade - abandona seu desejo de possuir a mãe e livrar-se
do pai. Na medida em que esse desejo permanece no inconsciente, constitui a base do sentimento de
culpa. Acreditamos que o que aqui descrevemos, são processos normais, o destino normal do chamado
‘complexo de Édipo’; não obstante, exige uma importante amplificação.
Uma outra complicação surge quando o fator constitucional que denominamos de bissexualidade
se acha, comparativamente, fortemente desenvolvido numa criança, porque então, sob a ameaça à
masculinidade do menino, por meio da castração, sua inclinação é fortalecida a divergir no sentido da
feminilidade, a colocar-se no lugar da mãe e a assumir o papel desta como objeto do amor do pai. Mas o
temor à castração torna essa solução também impossível. O menino entende que também deve
submeter-se à castração, se deseja ser amado pelo pai como se fosse uma mulher. Dessa maneira,
ambos dos impulsos, o ódio pelo pai e o amor pelo pai, experimentam repressão. Há uma certa distinção
psicológica do fato de o ódio pelo pai ser abandonado por causa do temor a um perigo externo
(castração), ao passo que o amor pelo pai é tratado como um perigo interno, embora, fundamentalmente,
remonte ao mesmo perigo externo.
O que torna inaceitável o ódio pelo pai é o temor a este; a castração é terrível, seja como punição
ou como preço do amor. Dos dois fatores que reprimem o ódio pelo pai, o primeiro, ou seja, o medo direto
da punição e da castração, pode ser chamado de anormal; sua intensificação patogênica só parece surgir
com o acréscimo do segundo fator, o temor à atitude feminina. Dessa maneira, uma forte disposição
bissexual inata se torna uma das precondições ou reforços da neurose. Uma disposição desse tipo deve
ser certamente suposta em Dostoievski, e ela se mostra sob forma viável (como homossexualismo
latente) no importante papel desempenhado pelas amizades masculinas na vida dele, em suas atitudes
estranhamente ternas para com rivais no amor e em sua notável compreensão de situações que só são
explicáveis pelo homossexualismo reprimido, como muitos exemplos extraídos de seus romances
demonstram.
Lamento, embora não possa alterar os fatos, que essa exposição das atitudes de amor e ódio
para com o pai e as transformações delas sob a ameaça da castração pareça desagradável e incrível a
leitores não familiarizados com a psicanálise. Eu deveria esperar que era precisamente o complexo de
castração que estava fadado a despertar o repúdio mais geral. Mas posso apenas insistir em que a
experiência psicanalítica colocou especificamente esse assunto para além do alcance da dúvida e nos
ensinou a reconhecer nele a chave para toda neurose. É essa chave, então, que temos de aplicar à
chamada epilepsia de nosso autor. Como são estranhas à nossa consciência as coisas pelas quais nossa
vida mental inconsciente é governada!
Mas o que foi dito até agora não esgota as conseqüências da repressão do ódio pelo pai no
complexo de Édipo. Há algo de novo a ser acrescentado, a saber: que, apesar de tudo, a identificação
com o pai finalmente constrói um lugar permanente para si mesma no ego. É recebida dentro deste, mas
lá se estabelece como um agente separado, em contraste com o restante do conteúdo do ego. Damoslhe então o nome de superego e atribuímos-lhe, como herdeiro da influência parental, as funções mais
importantes. Se o pai foi duro, violento e cruel, o superego assume dele esses atributos e nas relações
entre o ego e ele, a passividade que se imaginava ter sido reprimida é restabelecida. O superego se
tornou sádico e o ego se torna masoquista, isto é, no fundo, passivo, de uma maneira feminina. Uma
grande necessidade de punição se desenvolve no ego, que em parte se oferece como vítima ao destino e
em parte encontra satisfação nos maus tratos que lhe são dados pelo superego (isto é, no sentimento de
culpa), pois toda punição é, em última análise, uma castração, e, como tal, realização da antiga atitude
passiva para com o pai. Mesmo o Destino, em última instância, não passa de uma projeção tardia do pai.
Os processos normais da formação da consciência devem ser semelhantes aos anormais, aqui
descritos. Ainda não conseguimos fixar a linha limítrofe entre eles. Observar-se-á que, aqui, a parcela
maior no resultado é atribuída ao componente passivo de feminilidade reprimida. Além disso, deve ser de
importância, como fator acidental, que o pai, que é temido em qualquer caso, seja também especialmente
violento na realidade. Isso foi verdadeiro no caso de Dostoievski e podemos fazer remontar a origem de
seu extraordinário sentimento de culpa e de sua conduta de vida masoquista a um componente feminino
especialmente intenso. Assim, a fórmula para Dostoievski é a seguinte: uma pessoa com uma disposição
bissexual inata especialmente intensa, que pode defender-se com intensidade especial contra a
dependência de um pai especialmente severo. Essa característica de bissexualidade surge como
acréscimo aos componentes de sua natureza que já identificamos. Seus sintomas precoces de crises
semelhantes à morte podem ser assim compreendidos como uma identificação paterna por parte de seu
ego, a qual é permitida pelo superego como punição. ‘Você queria matar seu pai, a fim de ser você
mesmo o pai. Agora, você é seu pai, mas um pai morto’ - o mecanismo regular dos sintomas histéricos.
E, além disso: ‘Agora, seu pai está matando você’. Para o ego, o sintoma da morte constitui uma
satisfação, em fantasia, do desejo masculino e, ao mesmo tempo, uma satisfação masoquista; para o
superego, trata-se de uma satisfação punitiva, isto é, uma satisfação sádica. Ambos, o ego e o superego,
levam avante o papel de pai.
Resumindo, a relação entre o indivíduo e o seu objeto paterno, embora retando seu conteúdo, foi
transformada numa relação entre o ego e o superego - um novo cenário num novo palco. Reações
infantis oriundas do complexo de Édipo como essas podem desaparecer se a realidade não lhes
proporciona novo alimento. Mas o caráter do pai permaneceu o mesmo, ou melhor, se deteriorou com os
anos, e assim o ódio de Dostoievski pelo pai e seu desejo de morte contra esse pai malvado foram
mantidos. Ora, é algo perigoso a realidade atender a tais desejos reprimidos. A fantasia tornou-se
realidade e todas as medidas defensivas são imediatamente reforçadas. As crises de Dostoievski
assumiram então um caráter epiléptico; ainda, indubitavelmente, significavam uma identificação com o
pai como punição, mas se tinham tornado terríveis, tais como a própria morte assustadora do pai. Qual
outro conteúdo absorveram, especificamente qual conteúdo sexual, foge à conjetura.
Uma coisa é digna de nota: na aura da crise epilépsia, um momento de felicidade suprema é
experimentado. Pode bem ser um registro do triunfo e do sentimento de liberação experimentados ao
escutar as notícias da morte, seguidos imediatamente por uma punição ainda mais cruel. Imaginamos
exatamente essa seqüência de triunfo e de pesar, de alegria festiva e de luto, nos irmãos da horda
primeva que mataram o pai, e encontramo-la repetida na cerimônia da refeição totêmica. Se se provasse
que, no caso de Dostoievski, ele se libertou de suas crises na Sibéria, isso simplesmente daria
substância à opinião de que elas eram sua punição. Não necessitava mais delas quando estava sendo
castigado de outra maneira. Isso, porém, não pode ser provado. Essa necessidade de punição por parte
da economia mental de Dostoievski antes explica o fato de ele ter passado inabalado por esses anos de
tormento e humilhação. A condenação de Dostoievski como prisioneiro político foi injusta e ele deve ter
sabido disso, mas aceitou o imerecido castigo das mãos do Paizinho, do Czar, como um substituto da
punição que merecia por seu pecado contra o pai real. Em vez de se punir a si mesmo, conseguiu fazerse punir pelo representante paterno. Temos aqui um vislumbre da justificação psicológica das punições
infligidas pela sociedade. É fato que grandes grupos de criminosos desejam ser punidos. O superego
deles exige isso; assim se poupam a si mesmos a necessidade de se infligirem o castigo.
Quem quer que esteja familiarizado com a complicada transformação de significado
experimentada pelos sintomas histéricos, compreenderá que aqui não se pode fazer tentativa alguma
para acompanhar o significado das crises de Dostoievski além desses começos. Basta podermos supor
que seu significado original permaneceu inalterado por detrás de todos os acréscimos posteriores.
Podemos com segurança dizer que Dostoievski nunca se libertou dos sentimentos de culpa oriundos de
sua intenção de matar seu pai. Esses sentimentos também determinaram sua atitude nas duas outras
esferas em que a relação paterna constitui o fator decisivo, ou seja, sua atitude para com a autoridade do
Estado e para com a crença em Deus. Na primeira delas, findou pela completa submissão a seu
Paizinho, o Czar, que outrora desempenhara com ele, na realidade, a comédia de matar que suas crises
tão freqüentemente haviam representado em brincadeira. Aqui, a penitência levou a melhor. Na esfera
religiosa, ele reteve mais liberdade: de acordo com relatórios aparentemente fidedignos, oscilou, até o
último momento de sua vida, entre a fé e o ateísmo. Seu grande intelecto tornava-lhe impossível
desprezar qualquer das dificuldades intelectuais a que a fé conduz. Através de uma recapitulação
individual de um desenvolvimento da história mundial, esperou descobrir uma saída e uma libertação da
culpa no ideal cristão e, mesmo, fazer uso de seus sofrimentos como reivindicação de estar
representando um papel semelhante ao de Cristo. Se, em geral, não conseguiu a liberdade, tendo-se
tornado um reacionário, isso se deveu ao fato de a culpa filial, que se acha presente nos seres humanos
em geral e sobre a qual o sentimento religioso é construído, ter atingido nele uma intensidade
superindividual e permanecido insuperável inclusive à sua grande inteligência. Escrevendo isso, expomonos à acusação de termos abandonado a imparcialidade da análise e sujeitado Dostoievski a julgamentos
que só se podem justificar do ponto de vista particular de uma Westanschauung específica. Um
conservador tomaria o partido do Grande Inquisidor e julgaria Dostoievski de modo diferente. A objeção é
justa e só se pode dizer como desculpa que a decisão de Dostoievski tem toda a aparência de ter sido
determinada por uma inibição intelectual devida à neurose.
Dificilmente pode dever-se ao acaso que três das obras-primas da literatura de todos os tempos Édipo Rei, de Sófocles; Hamlet, de Shakespeare; e Os Irmãos Karamassovi, de Dostoievski - tratem
todas do mesmo assunto, o parricídio. Em todas três, ademais, o motivo para a ação, a rivalidade sexual
por uma mulher, é posto a nu.
A mais direta é certamente a representação na tragédia da lenda grega. Nesta, ainda é o próprio
herói que comete o crime. Mas, sem suavização e disfarce, o tratamento poético é impossível. A
admissão nua de uma intenção de cometer parricídio, tal como aquela a que chegamos na análise,
parece intolerável sem preparação analítica. O drama grego, embora mantendo o crime, introduz
magistralmente a atenuação indispensável, projetando o motivo inconsciente do herói na realidade, sob a
forma de uma compulsão por parte de um destino que lhe é estranho. O herói comete o ato sem intenção
e, aparentemente, sem ser influenciado pela mulher; esse último elemento, contudo, é levado em
consideração na circunstância de o herói só poder obter a posse da mãe-rainha depois de ter repetido
seu feito sobre o monstro que simboliza o pai. Após sua culpa ter sido revelada e tornada consciente, o
herói não faz qualquer tentativa de se eximir apelando para o expediente artificial da compulsão do
destino. Seu crime é reconhecido e punido como se fosse um crime integral e consciente, algo fadado a
parecer injusto à nossa razão, mas, psicologicamente correto.
Na peça inglesa, a apresentação é mais indireta; o herói não comete o crime ele próprio; este é
executado por outra pessoa, para quem não constitui parricídio. O motivo oculto da rivalidade sexual pela
mulher, portanto, não precisa ser disfarçado. Ademais, vemos o complexo de Édipo do herói sob uma luz
por assim dizer refletida, tomando conhecimento do efeito causado sobre ele pelo crime do outro. Deveria
vingar esse crime, mas, de modo bastante estranho, descobre-se incapaz de fazê-lo. Sabemos que é seu
sentimento de culpa que o paralisa, mas, de modo totalmente de acordo com os processos neuróticos, o
sentimento de culpa é deslocado para a percepção de sua inaptidão em cumprir sua missão. Há sinais de
que o herói sente essa culpa como superindividual. Ele despreza os outros não menos do que a si
mesmo: ‘Dê a cada homem o que merece, e quem escapará do açoite?’ O romance russo vai um passo
além na mesma direção. Aí também o homicídio é cometido por um outro. Esse outro, contudo, está, para
com o assassinado, na mesma relação filial que o herói, Dimitri; no caso desse outro, o motivo da
rivalidade sexual é abertamente admitido; trata-se de um irmão do herói e constitui fato digno de nota que
Dostoievski lhe tenha atribuído sua própria doença, a suposta epilepsia, como se estivesse procurando
confessar que o epiléptico, o neurótico nele próprio, era um parricida. Depois, então, no discurso de
defesa no julgamento, ocorre a famosa zombaria da psicologia, como sendo uma ‘faca de dois gumes’,
um disfarce esplêndido, pois basta invertê-lo para descobrir o significado mais profundo da visão que
Dostoievski tinha das coisas. Não é a psicologia que merece a zombaria, mas o processo de investigação
judicial. É indiferente saber quem realmente cometeu o crime; a psicologia se interessa apenas em saber
quem o desejou emocionalmente e quem o recebeu com alegria quando foi cometido. E, por esse motivo,
todos os irmãos, exceto a figura contrastada de Aliocha, são igualmente culpados - o sensual impulsivo, o
cínico cético e o criminoso epiléptico. Em Os Irmãos Karamassovi há uma cena particularmente
reveladora. No decorrer de sua conversa com Dimitri, o Padre Zossima reconhece que aquele está
preparado para cometer parricídio e se ajoelha a seus pés. É impossível que isso possa ser entendido
como expressão de admiração; tem de significar que o santo homem está rejeitando a tentação a
desprezar ou detestar o assassino e, por isso, se humilha perante ele. A simpatia de Dostoievski pelo
criminoso é, de fato, ilimitada; vai muito além da piedade a que o infeliz tem direito e nos faz lembrar do
‘temor sagrado’ com que os epilépticos e os lunáticos eram encarados no passado. Um criminoso, para
ele, é quase um Redentor, que tomou sobre si próprio a culpa que, em outro caso, deveria ter sido
carregada pelos outros. Não há mais necessidade de que alguém mate, visto que ele já matou, e há que
ser-lhe grato; não fosse ele, ver-nos-íamos obrigados a matar. Isso não é apenas piedade bondosa, mas
uma identificação com base em impulsos assassinos semelhantes - na realidade, um narcisismo
ligeiramente deslocado. (Afirmando isso, não estamos discutindo o valor ético dessa benignidade.) Este
pode talvez ser, de modo bastante geral, o mecanismo da simpatia benigna por outras
pessoas,mecanismo passível de se discernir com facilidade especial no caso extremo de um romancista
dominado pela culpa. Não há dúvida de que essa simpatia por identificação constituiu fator decisivo na
determinação da escolha de material de Dostoievski. Ele tratou primeiramente do criminoso comum
(cujos motivos são egoístas) e do criminoso político e religioso, sendo somente ao fim de sua vida que
retornou ao criminoso primevo, ao parricida, e utilizou-o, numa obra de arte, para efetuar sua confissão.
A publicação dos documentos póstumos de Dostoievski e do diário de sua esposa lançaram uma
luz ofuscante sobre determinada fase de sua vida, a saber, o período na Alemanha, quando se mostrou
obcecado pela mania do jogo (cf. Fülöp-Miller e Eckstein, 1925), impossível de ser considerada senão
como um acesso inequívoco de paixão patológica. Não faltaram racionalizações para essa conduta fora
do comum e indigna. Como freqüentemente sucede com neuróticos, o sentimento de culpa de
Dostoievski tinha assumido forma tangível com se fosse um ônus de dívidas, e ele pôde refugiar-se no
pretexto de estar tentando, com seus ganhos nas mesas de jogo, possibilitar a volta à Rússia sem ser
preso pelos credores. Mas isso não foi mais do que um pretexto, e Dostoievski era suficientemente
perspicaz para reconhecer o fato e bastante honesto para admiti-lo. Sabia que o importante era o jogo
pelo amor ao jogo - le jeu pour le jeu. Todos os pormenores de sua conduta impulsivamente irracional
demonstram isso, e algo mais também. Ele nunca descansava antes de ter perdido tudo. Para ele, o jogo
era também um método de autopunição. Seguidamente fez à sua jovem esposa a promessa, ou deu-lhe
sua palavra de honra, de não jogar mais ou de não jogar mais naquele dia específico, e, informa ela,
quase sempre as rompeu. Quando suas perdas os reduziam à mais extrema necessidade, extraía disso
uma segunda satisfação patológica. Podia então censurar-se e humilhar-se diante dela, convidá-la a
desprezá-lo e a se lamentar por se ter casado com um velho pecador; quando havia assim aliviado sua
consciência, recomeçava tudo no dia seguinte. A jovem esposa se acostumou a esse ciclo, porque
observara que a única coisa que oferecia qualquer esperança real de salvação - a produção literária dele
- nunca ia tão bem como quando perdiam tudo e empenhavam suas últimas posses. Naturalmente, ela
não compreendia a conexão. Quando o sentimento de culpa dele ficava satisfeito pelos castigos que se
havia infligido, a inibição incidente sobre seu trabalho se tornava menos grave e ele se permitia dar
alguns passos ao longo da estrada do sucesso.
Qual é a parte da infância, há muito tempo enterrada, de um jogador que força seu caminho à
repetição na obsessão pelo jogo? A resposta pode ser percebida sem dificuldade numa história da
autoria de um de nossos mais jovens escritores. Stefan Zweig, que, incidentalmente, dedicou ele próprio
um estudo a Dostoievski (1920), incluiu em sua coletânea de três histórias, Die Verwirrung der Gefühle
[Confusão de Sentimentos] (1927), uma a que denominou ‘Vierundzwanzig Stunden aus dem Leben einer
Frau’ [‘Vinte e Quatro Horas na Vida de Uma Mulher’]. Essa pequena obra-prima dispõe-se,
ostensivamente, apenas a demonstrar que criatura irresponsável é a mulher, e a que excessos,
surpreendentes inclusive para ela, uma experiência inesperada pode impulsioná-la. Mas a história conta
muito mais do que isso. Se for submetida a uma interpretação analítica, descobrir-se-á que representa
(sem qualquer intenção apologética) algo inteiramente diferente, algo universalmente humano, ou antes,
algo masculino. E essa interpretação é tão extremamente óbvia, que a ela não se pode resistir. É
característico da natureza da criação artística que o autor, amigo pessoal meu, tenha podido garantir-me,
quando lhe perguntei, que a interpretação que lhe apresentava era completamente estranha a seu
conhecimento e intenção, embora alguns dos pormenores entremeados na narrativa parecessem
expressamente destinados a fornecer a pista para um segredo.
Nessa história, um senhora distinta e já idosa narra ao autor uma experiência que tivera, mais de
vinte anos antes. Ficara viúva ainda jovem e mãe de dois filhos, que não mais precisavam de seus
cuidados. Aos 42 anos, nada mais esperando da vida, aconteceu-lhe, numa de suas viagens sem
destino, visitar o Cassino de Monte Carlo. Aí, entre todas as notáveis impressões produzidas pelo lugar,
ficou logo fascinada pela visão de um par de mãos que pareciam revelar todos os sentimentos do infeliz
jogador, com uma sinceridade e intensidade terrificantes. Essas mãos pertenciam a um belo jovem - o
autor, como que sem intenção, dá-lhe a mesma idade que a do filho mais velho da narradora - que,
depois de perder tudo, abandonou os salões de jogo no mais profundo desespero, com a intenção
evidente de pôr fim à sua vida sem esperança nos jardins do Cassino. Um inexplicável sentimento de
simpatia compeliu-a a segui-lo e a fazer todo esforço para salvá-lo. Ele a tomou por uma das importunas
mulheres tão comuns naquele lugar, e tentou livrar-se dela, mas ela permaneceu com ele e se viu
obrigada, da maneira mais natural possível, a ir encontrá-lo em seu apartamento no hotel e, finalmente, a
partilhar de seu leito. Depois dessa improvisada noite de amor, ela exigiu do rapaz, que agora
aparentemente se acalmara, um juramento solene de que nunca mais jogaria de novo, forneceu-lhe
dinheiro para sua viagem de volta e prometeu encontrá-lo na estação, antes da partida do trem dele.
Agora, contudo, ela começava a sentir uma grande ternura pelo jovem, dispunha-se a sacrificar tudo o
que era seu a fim de preservá-lo, e tomou a decisão de partir com ele, em vez de lhe dizer adeus. Vários
contratempos a retardaram, de maneira que ela perdeu o trem. Em seu anseio por aquele que acabava
de perder, retornou aos salões de jogo e aí, para seu horror, viu mais uma vez as mãos que
primeiramente tinham despertado sua simpatia: o infiel rapaz retornara ao jogo. Ela o fez lembrar-se de
sua promessa mas, obcecado por sua paixão, o jovem a chamou de desmancha-prazeres, disse-lhe que
fosse embora, arremessando-lhe o dinheiro com que tentara resgatá-lo. Em profunda mortificação, ela
partiu às pressas. Mais tarde, descobriu que não conseguira salvá-lo do suicídio.
Essa história, brilhantemente narrada e impecavelmente motivada, é, naturalmente, completa em
si mesma, sendo certo produzir um efeito profundo no leitor. A análise, porém, nos mostra que sua
invenção se baseia fundamentalmente numa fantasia plena de desejo pertencente ao período da
puberdade, fantasia de que uma série de pessoas, na realidade, se lembra conscientemente. Ela
corporifica o desejo do menino de que a própria mãe o inicie na vida sexual, a fim de salvá-lo dos
temíveis danos causados pela masturbação. (As numerosas obras criativas que tratam do tema da
redenção têm a mesma origem.) O ‘vício’ da masturbação é substituído pela inclinação ao jogo e a
ênfase dada à atividade apaixonada das mãos revela essa derivação. Na verdade, a paixão pelo jogo
constitui um equivalente da antiga compulsão a se masturbar; ‘brincar’ é a palavra real utilizada no quarto
das crianças para descrever a atividade das mãos sobre os órgãos genitais. A natureza irresistível da
tentação, as resoluções solenes, que, não obstante, são invariavelmente rompidas, de nunca fazê-lo de
novo, o prazer entorpecedor e a consciência má que diz ao indivíduo que ele está se arruinando
(cometendo suicídio) - todos esses elementos permanecem inalterados no processo de substituição. É
verdade que a história de Zweig é contada pela mãe, não pelo filho. Deve ser lisonjeiro ao filho pensar:
‘se minha mãe soubesse em que perigos a masturbação me envolve, com certeza me salvaria deles,
deixando que eu derramasse toda minha ternura em seu próprio corpo’. A igualização da mãe a uma
prostituta, feita pelo rapaz da história vincula-se à mesma fantasia. Traz a mulher inatingível para um
alcance fácil. A consciência má que acompanha a fantasia provoca o final infeliz da história. É também
interessante observar como a façade que lhe é dada pelo autor parece disfarçar seu significado analítico,
pois é extremamente discutível que a vida erótica das mulheres seja dominada por impulsos súbitos e
misteriosos. Pelo contrário, a análise revela uma motivação apropriada para a surpreendente conduta
dessa mulher, que até então se afastara do amor. Fiel à lembrança do marido morto, armara-se contra
todas as atrações semelhantes, mas - e aqui a fantasia do filho se mostra correta - não escapou, como
mãe, de sua transferência inteiramente inconsciente do amor para com seu filho, e o Destino pôde
apanhá-la nesse ponto sem defesa.
Se a inclinação ao jogo, com as lutas mal-sucedidas para romper o hábito e com as
oportunidades que proporciona para autopunição, constitui uma repetição da compulsão a se masturbar,
não nos surpreenderemos em descobrir que ela tenha ocupado um espaço tão grande na vida de
Dostoievski. Afinal de contas, não encontramos casos de neurose grave em que a satisfação auto-erótica
da primeira infância e da puberdade não tenha desempenhado um papel, e a relação entre os esforços
para suprimi-la e o temor ao pai são por demais conhecidos para precisarem mais do que uma menção.
APÊNDICE: UMA CARTA DE FREUD A THEODOR REIK
[Alguns meses após a publicação do ensaio de Freud sobre Dostoievski, um exame dele, da
autoria de Theodor Reik, apareceu em Imago (no segundo número de 1929, 15, 232-42). Embora os
comentários de Reik fossem, em geral, favoráveis, argumentou com considerável amplitude que o
julgamento de Freud sobre a moral de Dostoievski era injustificadamente severo e discordou também do
que Freud escrevera sobre moralidade no terceiro parágrafo do ensaio. Também, incidentalmente,
criticou a forma do ensaio, com sua conclusão aparentemente desvinculada. Após ler essas críticas,
Freud enviou a Reik uma carta em resposta, e quando, não muito depois, este reimprimiu o artigo num
livro de trabalhos coligidos (1930), Freud concordou com que sua carta também fosse incluída. Uma
tradução inglesa da crítica e da resposta a ela foram posteriormente publicadas em From Thirty Year with
Freud (Nova Iorque, 1940, e Londres, 1942), da autoria de Reik. É com a gentil permissão do Dr. Theodor
Reik que publicamos a carta que Freud lhe dirigiu, numa tradução revisada.]
14 de abril de 1929
… Li a sua resenha crítica de meu estudo sobre Dostoievski com grande prazer. Todas as suas
objeções merecem consideração e, em certo sentido, devem ser reconhecidas como apropriadas. Posso
apresentar algo em minha defesa, mas, naturalmente, não se tratará de saber quem está certo ou errado.
Acho que você está aplicando um padrão excessivamente alto a essa trivialidade. Foi escrita
como um favor a outra pessoa, e escrita com relutância. Atualmente sempre escrevo com relutância. Não
há dúvida de que você percebeu isso. Naturalmente, não vai aí qualquer intenção de desculpar juízos
apressados ou falsos, mas simplesmente a descuidada arquitetura do ensaio como um todo. Não posso
discutir o desarmonioso efeito produzido pelo acréscimo da análise de Zweig, mas um exame mais
profundo talvez apresente certa justificação para ela. Se não tivesse sido atrapalhado por considerações
a respeito do lugar em que meu ensaio deveria aparecer, certamente teria escrito: ‘Podemos esperar que,
na história de uma neurose acompanhada por um sentimento de culpa tão severo, um papel especial seja
desempenhado pela luta contra a masturbação. Essa expectativa é completamente atendida pela
inclinação patológica de Dostoievski ao jogo, pois, como podemos ver num conto de autoria de Zweig (…)
etc.’ Isso equivale a dizer que o espaço concedido ao conto não corresponde à relação ZweigDostoievski, mas a outra: masturbação-neurose. De qualquer maneira, o desfecho ficou desgracioso.
Atenho-me com firmeza a uma avaliação social da ética cientificamente objetiva e, por esse
motivo, não desejaria negar ao excelente filisteu um certificado de boa conduta ética, ainda que esta lhe
tenha custado pouca autodisciplina. Ao lado disso, porém, consinto na validade da visão psicológica
subjetiva da ética que você apóia. Embora concorde com seu julgamento do mundo e da humanidade, tal
com hoje são, não posso, como bem sabe, encarar sua rejeição de um futuro melhor como justificada.
Como você sugere, incluí Dostoievski psicólogo sob o artista criador. Outra objeção que poderia
ter levantado contra ele, seria que sua compreensão interna estava muito restrita à vida mental anormal.
Considere seu espantoso desamparo frente às manifestações do amor. Tudo de que realmente tomamos
conhecimento são o desejo bruto e instintual, a submissão masoquista e o amor por piedade. Você tem
razão, também, em desconfiar de que, a despeito de toda minha admiração pela intensidade e
preeminência de Dostoievski, de fato não gosto dele. Isso se deve a que minha paciência com as
naturezas patológicas está exaurida na análise. Na arte e na vida, não as tolero. Trata-se de traços
caracterológicos que me são pessoais e não obrigam a outros.
Onde vai publicar seu ensaio? Considero-o de alta qualidade. Só a pesquisa científica não deve
possuir presunções. Em qualquer outra espécie de pensamento, a escolha de um ponto de vista não
pode ser evitada, e, naturalmente, existem muitos deles …
ALGUNS SONHOS DE DESCARTES: UMA CARTA A MAXIME LEROY (1929)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
ÜBER DIE WEIBLICHE SEXUALITÄT
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1931 Int. Z. Psychoanal., 17 (3), 317-22.
1934 G.S., 12, 120-40.
1948 G.W., 14, 517-37.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
‘Female Sexuality’
1932 Psychoanal. Quart., 1 (1), 191-209. (Trad. de E. B. Jackson.)
1932 Int. J. Psycho-Anal., 13 (3), 281-97. (Trad. de Joan Riviere.)
1950 C.P., 5, 252-72. (Reimpressão revista da anterior.)
A presente tradução inglesa é versão modificada da publicada em 1950.
O primeiro rascunho deste artigo parece ter sido escrito por volta do fim de fevereiro de 1931,
mas só foi terminado no verão desse ano (Jones, 1957, 176).
O presente estudo constitui um reenunciado das descobertas anunciadas por Freud seis anos
antes, em seu trabalho sobre ‘Some Psychical Consequences of the Antomical Distinction between the
Sexes’ (1925j), do qual um certo exame será encontrado na Nota do Editor Inglês àquela obra, Standard
Ed., 19, 243. A publicação desse trabalho anterior provocou consideráveis repercussões entre os
psicanalistas, especialmente, talvez, na Inglaterra, e elas podem ter estimulado Freud a retornar ao
assunto. A última seção do presente artigo contém - coisa bastante fora do comum nos trabalhos de
Freud - algumas críticas de uma série de outros artigos. E é curioso que ele pareça tratá-los como se
esses trabalhos tivessem surgido espontaneamente e não, como era claramente o caso, como reação a
seu próprio artigo um tanto revolucionário de 1925 - ao qual, na verdade, não faz aqui qualquer
referência.
Existem, contudo, um ou dois aspectos sob os quais esta obra amplia sua predecessora. Dá
nova ênfase (obviamente com base em material clínico recente) à intensidade e longa duração da ligação
pré-edipiana da menina à mãe. Contudo, de mais interesse, talvez, é o longo exame do elemento ativo na
atitude da menina para com a mãe e na feminilidade em geral.Aproximadamente um ano depois do
aparecimento deste artigo, Freud retornou ao tema da sexualidade feminina na Conferência XXXIII das
New Introductory Lectures (1933a), que trata do assunto em linhas muito semelhantes às presentes,
ainda que de maneira bastante menos técnica; termina, ademais, por um certo estudo das características
das mulheres na vida adulta.
ALGUNS SONHOS DE DESCARTES: UMA CARTA A MAXIME LEROY
Ao considerar sua carta, em que me pede para examinar alguns sonhos de Descartes, o que
primeiro senti foi uma impressão de desalento, pois trabalhar com sonhos sem poder obter da própria
pessoa que sonhou quaisquer indicações sobre as relações passíveis de vinculá-los uns aos outros ou
ligá-los ao mundo externo - e esse é claramente o caso quando se trata dos sonhos de uma figura
histórica -, via de regra proporciona apenas um resultado pobre. No caso, minha tarefa mostrou ser mais
fácil do que tinha previsto; não obstante, o fruto de minhas investigações sem dúvida lhe parecerá muito
menos importante do que teria o direito de esperar.
Os sonhos de nosso filósofo são aquilo que é conhecido como ‘sonhos vindos de cima’ (‘Traume
von oben’), o que equivale a dizer que constituem formulações de idéias que poderiam ter sido criadas
tão bem num estado de vigília quanto durante o estado de sono, e que apenas em certas partes
derivaram seu conteúdo de estados mentais de nível comparativamente profundo. Por isso, esse sonhos,
na maioria, oferecem um conteúdo que tem forma abstrata, poética ou simbólica.
A análise de sonhos desse tipo geralmente nos conduz à seguinte posição: não podemos
compreender o sonho, mas aquele que sonhou - ou o paciente - pode traduzi-lo imediatamente e sem
dificuldade, dado que o conteúdo do sonho se aproxima muito de seus pensamentos conscientes.
Restam então certas partes do sonho sobre as quais aquele que sonhou não sabe o que dizer, e
precisamente essas partes pertencem ao inconsciente, sendo, sob muitos aspectos, as mais
interessantes.
Nos casos mais favoráveis, explicamos essa [parte] inconsciente com a ajuda das idéias que
aquele que sonhou lhe acrescentou.
Essa maneira de julgar os ‘sonhos vindo de cima’ - e essa expressão deve ser entendida em
sentido psicológico, não em sentido místico - é a que deve ser seguida no caso dos sonhos de Descartes.
O próprio filósofo os interpreta e, de acordo com todas as regras da interpretação de sonhos,
temos de aceitar sua explicação, mas se deveria acrescentar que nenhum outro caminho, que nos leve
mais adiante, se abre para nós.
Em confirmação da explicação dele, podemos dizer que os obstáculos que o impediram de se
movimentar livremente nos são perfeitamente bem conhecidos: constituem a representação, por parte do
sonho, de um conflito interno. O lado esquerdo representa o mal e o pecado, e o vento, o ‘gênio mau’
((animus).
As diferentes figuras que aparecem no sonho não podem, naturalmente, ser por nós
identificadas, embora Descartes, se fosse interrogado, não teria deixado de identificá-las. Os elementos
bizarros, dos quais, incidentalmente, existem poucos, e que são quase absurdos - tais como ‘o melão de
uma terra estrangeira’ e os pequenos retratos - permanecem inexplicados.
Quanto ao melão, aquele que sonhou teve a idéia - original - de ver nele ‘os encantos da solidão,
mas apresentados por incentivos puramente humanos’. Isso decerto não é correto, mas poderia fornecer
uma associação de idéias que conduzisse a uma explicação correta. Se se correlacionar com seu estado
de pecado, a associação poderia representar um quadro sexual que ocupasse a imaginação do jovem
solitário.
Sobre a questão dos retratos, Descartes não lança luz alguma.
O PRÊMIO GOETHE (1930)
GOETHE-PREIS, 1930
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
Brief an Dr. Alfons Paquet
1930 Psychoanal. Bewegung, 2 (5) (set.-out), 419.
1934 G.S., 12, 406-7.
1948 G.W., 14, 545-6.
Ansprache im Frankfurter Goethe-Haus
1930 Psychoanal. Bewegung, 2 (5) (set.-out.), 421-6.
1934 G.S., 12, 408-11.
1948 G.W., 14, 547-50.
A presente tradução, a primeira em inglês, é de autoria de Angela Richards.
Em 1927, a cidade de Frankfurt criou o ‘Prêmio Goethe’, que deveia ser anualmente concedido a
‘uma personalidade de realizações já firmadas cuja obra criadora fosse digna de uma honra dedicada à
memória de Goethe’. Os primeiros três prêmios foram concedidos a Stefan George, o poeta; a Albert
Schweitzer, o músico e missionário médico; e a Leopold Ziegler, o escritor filosófico. O valor do prêmio
era de 10.000 marcos alemães, equivalentes na ocasião, a cerca de 500 libras ou 2.500 dólares.
Por sugestão de Alfons Paquet, homem de letras bem conhecido e secretário dos Curadores do
Fundo, decidiu-se conceder o prêmio de 1930 a Freud, o que foi anunciado a este (que, na ocasião, se
encontrava em férias no Salzkammergut) numa carta de Paquet datada de 26 de julho de 1930 (impressa
no Psychoanalytische Bewegung, 2, 417-18), a que Freud respondeu a 3 de agosto. Era costume, como
Paquet explicava em sua carta, que o prêmio fosse entregue a 28 de agosto de cada ano, numa
cerimônia realizada na casa de Frankfurt em que Goethe nascera, e que o contemplado aí fizesse um
discurso, ilustrando sua própria relação interna com Goethe. Devido à sua doença, Freud não pôde fazêlo ele próprio, mas o discurso que preparou foi lido por Anna Freud na cerimônia na Casa de Goethe, a
28 de agosto.
CARTA AO DR. ALFONS PAQUET
Grundlsee, 3.8.1930.
Prezado Dr. Paquet,
Nunca fui mimado por sinais públicos de honra e adaptei-me tanto a esse estado de coisas, que
me foi possível passar sem eles. Não gostaria de negar, contudo, que a concessão do Prêmio Goethe da
cidade de Frankfurt deu-me grande prazer. Há nele algo que inflama especialmente a imaginação, e uma
de suas estipulações dissipa o sentimento de humilhação que, em outros casos, é concomitante a tais
distinções.
Desejo particularmente agradecer-lhe por sua carta; ela me comoveu e espantou. À parte sua
penetração simpática da natureza de minha obra, nunca antes encontrara as intenções pessoais e
secretas por trás dela identificadas com tal clareza como o senhor o fez, e gostaria muito de lhe perguntar
como veio a ter esse conhecimento.
Lamento saber, por sua carta dirigida a minha filha, que não poderei encontrá-lo em futuro
próximo, e, com meu tempo de vida, o adiamento é sempre algo de arriscado. Naturalmente, estarei
pronto a receber o cavalheiro (Dr. Michel) cuja visita me anuncia.
Infelizmente, não poderei estar presente à cerimônia em Frankfurt; estou muito fraco para tal
empreendimento. Nada perderão por isso; minha filha Anna sem dúvida é mais agradável de ver e ouvir
do que eu. Proponho que ela leia algumas frases minhas que tratam das vinculações de Goethe com a
psicanálise e defendem os próprios analistas da censura de terem ofendido o respeito devido ao grande
homem por causa das tentativas analíticas que sobre ele fizeram. Espero que seja aceitável que eu
assim adapte o tema que me foi proposto - minhas ‘relações internas, como homem e cientista, com
Goethe’ -, ou então que o senhor tenha a gentileza de me comunicar que não.
Muito sinceramente seu,
Freud
DISCURSO PRONUNCIADO NA CASA DE GOETHE EM FRANKFURT
O trabalho de minha vida se dirigiu a um só objetivo. Observei os mais sutis distúrbios da função
mental em pessoas saudáveis e enfermas e procurei inferir - ou, se preferirem, adivinhar -, a partir de
sinais desse tipo, como o aparelho que serve a essas funções é construído e quais as forças
concorrentes e mutuamente oponentes que nele se acham em ação. O que nós - eu, meus amigos e
colaboradores - conseguimos aprender seguindo esse caminho pareceu-nos de importância para a
construção de uma ciência mental que torna possível compreender tanto os processos mentais normais
quanto os patológicos como partes do mesmo curso natural de eventos.
Fui motivado a tão estreitas considerações pela surpreendente honra que me conferistes. Ao
evocar a figura da grande personalidade universal que nasceu nesta casa e passou sua infância nestas
salas, vossa distinção incita, por assim dizer, à justificação perante ele, e suscita a questão de saber
como ele teria reagido se seu olhar, atento a toda inovação na ciência, houvesse recaído na psicanálise.
Goethe pode ser comparado em versatilidade a Leonardo da Vinci, o mestre da Renascença,
que, como ele, tanto foi artista quanto investigador científico. Mas as imagens humanas nunca se podem
repetir, e não faltam profundas diferenças entre os dois grandes homens. Na natureza de Leonardo, o
cientista não se harmonizou com o artista, interferiu neste e, ao final, talvez o tenha abafado. Na vida de
Goethe, ambas as personalidades encontram lugar lado a lado: em diferentes épocas, cada uma permitia
à outra predominar. Em Leonardo, é plausível associar seu distúrbio àquela inibição em seu
desenvolvimento que afastava tudo o que era erótico, e, daí, a psicologia também, de sua esfera de
interesse. A esse respeito, o caráter de Goethe pôde desenvolver-se mais livremente.
Penso que Goethe não teria rejeitado a psicanálise num espírito inamistoso, como tantos de
nossos contemporâneos fizeram. Ele próprio dela se aproximou numa série de pontos; identificou,
através de sua própria compreensão interna, muita coisa que pudemos confirmar, e certas opiniões, que
nos acarretam crítica e zombaria, foram por ele expostas como evidentes por si mesmas. Assim, estava
familiarizado com a força incomparável dos primeiros laços afetivos das criaturas humanas. Celebrou-as
na Dedicatória de seu poema Fausto, em palavras que poderíamos repetir para cada uma de nossas
análises: Ihr naht euch wieder, schwankende Gestalten,
Die früh sich einst dem trüben Blick gezeigt,
Versuch’ ich wohl, euch diesmal festzuhalten?
.......................................................................
Gleich einer alten, halbverklungenen Sage
Kommt erste Lieb’ und Freundschaft mit herauf
Explicou a si mesmo o impulso mais forte de amor que experimentou como homem maduro,
apostrofando sua bem-amada: ‘Ach, du worst in abgelebten Zeiten meine Schester oder meine Frau.
Assim, não negou que essas primeiras inclinações perenes assumem figuras de nosso próprio
círculo familiar como seu objeto.
Goethe parafraseia o conteúdo da vida onírica nas evocadoras palavras:
Was von Menschen nicht gewusst
Oder nicht bedacht,
Durch das Labyrinth der Brust
Wandelt in der Nacht
Por detrás dessa magia identificamos o antigo, venerável e incontestavelmente correto
pronunciamento de Aristóteles - que o sonhar é a continuação de nossa atividade mental no estado de
sono - combinado com o reconhecimento do inconsciente que a psicanálise pela primeira vez lhe
acrescentou. Somente o enigma da deformação onírica não encontra solução aqui.
No que constitui talvez sua mais sublime criação poética, Iphigenie, Goethe nos apresenta um
notável exemplo de expiação, da libertação de uma mente sofredora do fardo da culpa, e faz com que
essa catarse se dê atravésde uma apaixonada irrupção de sentimento, sob a influência benéfica da
simpatia amorosa. Na verdade, repetidas vezes ele efetuou tentativas de fornecer auxílio psicológico, tal
como, por exemplo, ao desafortunado homem que, nas Cartas, é denominado de Kraft, e ao Professor
Plessing, de quem nos fala em Campagne in Frankreich [Campanha na França], e o processo que aplica
vai além do método da confissão católica, aproximando-se, em alguns pormenores dignos de nota, da
técnica de nossa psicanálise. Há um exemplo de influência psicoterapêutica que é descrito por Goethe
como um gracejo, mas que eu gostaria de citar na íntegra, visto que talvez não seja bem conhecido,
embora seja muito característico. É extraído de uma carta a Frau von Stein (Nº 1.444, de 5 de setembro
de 1785):
‘Ontem à noite realizei uma façanha psicológica. Frau Herder ainda se achava num estado de
tensão do tipo mais hipocondríaco, por causa de todas as coisas desagradáveis que lhe haviam
acontecido em Carlsbad, particularmente por da causa mulher que fora sua companheira na casa. Fiz
com que ela me dissesse e me confessasse tudo, as más ações de outras pessoas e suas próprias faltas
com suas mais minuciosas circunstâncias e conseqüências, e, ao final, absolvi-a e tornei-lhe claro,
gracejando, nessa fórmula, que aquelas coisas agora tinham passado e sido arrojadas às profundezas do
mar. Ela própria achou graça em tudo e está realmente curada.’
Goethe sempre teve Eros em alta consideração, nunca tentou menosprezar seu poder,
acompanhou suas expressões primitivas e até mesmo licenciosas com não menos atenção que as mais
elevadamente sublimadas, e, segundo me parece, expôs sua unidade essencial através de todas as suas
manifestações de modo não menos decisivo do que Platão o fez no passado remoto. Na verdade, talvez
ocorra mais que uma coincidência fortuita quando, em Die Wahlverwandtschaften [As Afinidades
Eletivas], aplica ao amor uma idéia extraída da esfera da química - vinculação de que o nome da própria
psicanálise dá testemunho.
Estou preparado para a censura de que nós, os analistas, perdemos o direito de nos colocar sob
o patrocínio de Goethe, por termos ofendido o respeito que lhe é devido ao tentarmos aplicar a análise a
ele próprio, por termos degradado o grande homem à posição de objeto de investigação analítica.
Discutirei, porém, em seguida se qualquer degradação tenha sido intentada ou nisso esteja implícita.
Todos nós, que reverenciamos Goethe, nos submetemos, sem demasiado protesto, aos esforços
de seus biógrafos, que tentam recriar-lhe a vida a partirdos relatos e indicações existentes. Mas o que
podem essas biografias proporcionar-nos? Mesmo a melhor e mais integral delas não pode responder às
duas perguntas que, somente elas, parecem merecer serem conhecidas. Ela não lançaria luz alguma
sobre o enigma do dom miraculoso que faz um artista, e não poderia ajudar-nos a compreender melhor o
valor e o efeito de suas obras. E, contudo, não há dúvida de que uma biografia desse tipo satisfaria uma
poderosa necessidade existente em nós. Sentimos isso muito distintamente se o legado da história, sem
generosidade, nos recusa a satisfação dessa necessidade, como no caso de Shakespeare, por exemplo.
Inegavelmente, é penoso para todos nós que ainda hoje não saibamos quem foi o autor das Comédias,
Tragédias e Sonetos de Shakespeare, se foi de fato o filho inculto do cidadão provinciano de Strattford,
que atingiu uma modesta posição como ator em Londres, ou se foi ao contrário, o aristocrata, de
nascimento e alta instrução, apaixonadamente inconstante, até certo ponto declassé, Edward de Vere,
Décimo Sétimo Conde de Oxford, Grande Lorde Camareiro Hereditário da Inglaterra. Mas como podemos
justificar uma necessidade desse tipo, a de obter conhecimento das circunstâncias da vida de um
homem, quando suas obras se tornaram tão plenas de importância para nós? As pessoas geralmente
dizem que se trata de nosso desejo de nos aproximarmos de tal homem também de maneira humana.
Aceitarmos isso; trata-se, então, da necessidade de adquirir relações afetivas com esses homens,
acrescentá-los aos pais, aos professores, aos exemplos que conhecemos ou cuja influência já
experimentamos, na expectativa de que suas personalidades sejam tão belas e admiráveis quanto as
obras de arte deles que possuímos.
Mesmo assim, podemos admitir que existe ainda outra força motivadora em ação. A justificação
do biógrafo também contém uma confissão. É verdade que ele não deseja rebaixar seu herói, mas quer
trazê-lo para mais perto de nós. Isso, contudo, significa reduzir a distância que o separa de nós; tende
ainda, efetivamente, no sentido de degradação. E é inevitável que se aprendermos mais a respeito da
vida de um grande homem, ouviremos também falar de ocasiões em que ele, de fato, não se saiu melhor
do que nós, em que, na realidade, se aproximou de nós como ser humano. Não obstante, penso que
podemos considerar os esforços do biógrafo como legítimos. Nossa atitude para com os pais e
professores é, afinal de contas, uma atitudeambivalente, visto que nossa reverência por eles via de regra
oculta um componente de rebelião hostil. Trata-se de uma fatalidade psicológica; não pode ser alterada
sem a suspensão, pela força, da verdade, e está fadada a se estender às nossas relações com os
grandes homens cujas vidas queremos investigar.
Quando a psicanálise se põe a serviço da biografia, tem naturalmente o direito de não ser tratada
com mais rudeza do que essa última. Ela pode fornecer certas informações às quais não é possível
chegar por outros meios, logrando assim demonstrar novos fios vinculadores na ‘obra-prima do tecelão’,
disseminados entre os dotes artísticos, as experiências e as obras de um artista. Visto ser uma das
principais funções de nosso pensamento dominar psiquicamente o material do mundo externo, pareceme que agradecimentos são devidos à psicanálise se, quando aplicada a um grande homem, ela
contribui para a compreensão de sua grande realização. Omito, entretanto, que no caso de Goethe não
avançamos muito longe, porque Goethe, como poeta, não foi apenas um grande revelador de si mesmo,
mas também, a despeito da abundância de registros autobiográficos, um cuidadoso ocultador de si
mesmo. Aqui, não podemos deixar de pensar nas palavras de Mefistófeles:
Das Beste, was du wissen kannstDarfst du den Buben doch nicht sagen.
APÊNDICE: RELAÇÃO DOS TRABALHOS DE FREUD QUE TRATAM PRINCIPALMENTE OU
EM GRANDE PARTE DE ARTE, LITERATURA OU TEORIA DA ESTÉTICA.
[A data ao início de cada item é a do ano durante o qual a obra referida foi provavelmente escrita.
A data ao final é a da publicação, e sob essa data, pormenores mais completos da obra poderão ser
encontrados na Biblio-grafia e Índice de Autores. Os itens em colchetes foram publicados
postumamente.]
[1897 Sobre Édipo Rei e Hamlet, na Carta 71 a Fliess, de 15 de outubro de 1897. (1950a)]
[1898 ‘Die Richterin’ (‘A Juíza’), na Carta 91 a Fliess, de 20 de junho de 1898. (1950a)]
1898 A Interpretação de Sonhos, Capítulo V, Seção D (
), sobre Édipo Rei e Hamlet. (1900a)
1905 Os Chistes e sua Relação com o inconsciente. (1905c)
[1905-6 ‘Caracteres Psicopáticos no Palco’. (1942a)]
1906 Delírios e Sonhos na ‘Gradiva’ de Jensen. (1907a)
1907 ‘Contribuição a um Questionário sobre Leitura’.(1907d)
1907 ‘Escritores Criativos e Devaneio’. (1908e)
1910 Uma Lembrança Infantil de Leonardo da Vinci. (1910c)
1913 ‘O Tema dos Três Cofres’. (1913f)
[1913 ‘As Reivindicações da Psicanálise ao Interesse Científico’, Parte II, Seção F. (1913j)
1914 ‘O Moisés de Michelangelo’. (1914b)
1915 ‘Sobre a Transitoriedade’. (1916a)
1916 ‘Alguns Tipos de Caráter Encontrados no Trabalho Psicanalítico’. (1916d)
1917 ‘Uma Recordação Infantil de ‘Dichtung und Wahrheit‘. (1917b)
1919 ‘O “Sinistro”.’ (1919h)
1927 Pós-escrito a ‘O Moisés de Michelangelo’. (1927b)
1927 ‘O Humor’ (1927d)
1927 ‘Dostoievski e o Parricídio.’ (1928b)
1929 Carta a Reik sobre Dostoievski. (1930f)
1930 ‘O Prêmio Goethe’. (1930d e e)
1933 Prefácio a Edgar Allan Poe, de Marie Bonaparte. (1933d)
TIPOS LIBIDINAIS (1931)
ÜBER LIBIDINOSE TYPEN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS
1931 Int. Z. Psychoanal., 17 (3), 313-16.
1934 G.S., 12, 115-19.
1948 G.W., 14, 509-13.
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
‘Libidinal Types’
1932 Psychoanal. Quart., 1 (1), 3-6. (Trad. de E. B. Jackson.)
1932 Int. J. Psycho-Anal., 13 (3), 277-80. (Trad. de Joan Riviere.)
1950 C.P., 5, 247-51. (Reimpressão revista da anterior.)
A presente tradução inglesa constitui versão corrigida da publicada em 1950.
Tal como o artigo seguinte (‘Sexualidade Feminina’), este foi iniciado em princípios de 1931 e
terminado durante o verão. Constitui acréscimo tardio ao número muito pequeno de artigos de Freud que
tratam da caracterologia. Embora o tópico aflore à superfície num certo número de seus trabalhos (tal
como, por exemplo, na primeira metade do Capítulo III de The Ego and the Id (1923d), Standard Ed., 19,
28 e segs.), apenas duas de suas obras anteriores se haviam explicitamente relacionado com ele:
‘Caráter e Erotismo Anal’ (1909b) e ‘Alguns Tipos de Caráter Encontrados no Trabalho Psicanalítico’
(1916d). No presente trabalho, o assunto é considerado à luz do conceito posterior, estrutural, de Freud
sobre a mente.
TIPOS LIBIDINAIS
A observação nos ensina que cada ser humano, individualmente, entende o quadro geral da
humanidade conforme uma variedade quase infinita de maneiras. Se nos submetermos à multiplicidade,
teremos inicialmente de escolher quais as características e os pontos de vista que tomaremos como base
de nossa diferenciação. Para esse fim, as qualidades físicas indubitavelmente servirão não menos bem
do que as mentais; as distinções mais valiosas serão aquelas que prometam apresentar uma combinação
regular de características físicas e mentais.
É de duvidar que já nos encontremos em posição de descobrir tipos que atendam a esse
requisito, como decerto seremos capazes de fazer mais tarde, sobre alguma base que ainda ignoramos.
Se limitarmos nosso esforço a estabelecer tipos puramente psicológicos, a situação libidinal terá um
primeiro direito a servir de base para nossa classificação. Pode-se com justiça exigir que essa
classificação não seja meramente deduzida de nosso conhecimento ou nossas hipóteses sobre a libido,
mas que seja facilmente confirmada pela experiência real e que contribua para o esclarecimento da
massa de nossas observações e nos auxilie a apreendê-las. Pode-se imediatamente admitir que esses
tipos libidinais não precisam ser os únicos possíveis, mesmo no campo psíquico, e que, se partirmos de
outras qualidades, poderemos talvez estabelecer todo um conjunto de outros tipos psicológicos. Deve-se,
porém, exigir de todos esses tipos que não coincidam com quadros clínicos. Pelo contrário, devem
abranger todas as variações que, de acordo com nosso juízo prático incidem dentro dos limites do
normal. Em seus desenvolvimentos extremos, contudo, podem aproximar-se de quadros clínicos e dessa
maneira, ajudar a unir o abismo que se supõe existir entre o normal e o patológico.
De acordo, portanto, com que a libido seja predominantemente atribuída às províncias do
aparelho psíquico, podemos distinguir três tipos libidinais principais. Fornecer nomes a esses tipos não é
particularmente fácil; seguindo as linhas de nossa psicologia profunda, gostaria de chamá-los de tipo
erótico, tipo narcísico e tipo obsessivo.
O tipo erótico é facilmente caracterizado. Eróticos são aqueles cujo principal interesse - a parte
relativamente maior de sua libido - está voltado para o amor. Amar, mas acima de tudo ser amado, é a
coisa mais importante para eles. São dominados pelo temor da perda do amor e acham-se, portanto,
especialmente dependentes de outros que podem retirar seu amor deles. Mesmo em sua forma pura,
esse tipo é muito comum. Variantes suas ocorrem segundo se ache mesclado com outro tipo, e
proporcionalmente à quantidade de agressividade nele presente. Do ponto de vista social e cultural, esse
tipo representa as exigências instintuais elementares do id, a que os outros agentes psíquicos se
submeteram.
O segundo tipo é o que denominei de obsessivo, nome que, a princípio, pode parecer estranho.
Distingue-se pela predominância do superego, que se separa do ego sob grande tensão. As pessoas
desse tipo são dominadas pelo temor de sua consciência, em vez do medo de perder o amor.
Apresentam, por assim dizer, uma dependência interna, em vez de externa. Desenvolvem um alto grau
de autoconfiança e, do ponto de vista social, são os verdadeiros e predominantemente conservadores
veículos da civilização.
O terceiro tipo, com justiça chamado de narcísico, deve ser principalmente descrito em termos
negativos. Não existe tensão entre o ego e o superego (na verdade, se predominasse esse tipo,
dificilmente se teria chegado à hipótese de um superego), e não há preponderância de necessidades
eróticas. O principal interesse do indivíduo se dirige para a autopreservação; é independente e não se
abre à intimidação. Seu ego possui uma grande quantidade de agressividade à sua disposição, a qual
também se manifesta na presteza à atividade. Em sua vida erótica, o amar é preferido ao ser amado. As
pessoas pertencentes a esse tipo impressionam os outros como ‘personalidades’; são especialmente
apropriadas a atuarem como apoio para outros, a assumirem o papel de líderes e a darem um novo
estímulo ao desenvolvimento cultural ou a danificarem o estado de coisas estabelecido.
Esses tipos puros dificilmente escaparão à suspeita de terem sido deduzidos da teoria da libido.
Mas nos sentimos no terreno firme da experiência quando nos voltamos para os tipos mistos, que podem
ser observados com mais freqüência do que os não mistos. Esses novos tipos - o erótico-obsessivos, o
erótico-narcísico e o narcísico-obsessivo - parecem realmente permitir uma boa classificação das
estruturas psíquicas individuais que viemos a conhecer através da análise. Se estudarmos esses tipos
mistos encontraremos neles quadros de caracteres com que há longo tempo estamos familiarizados. No
tipo erótico-obsessivo, parece que a preponderância da vida instintual é restringida pela influência do
superego. Nesse tipo, a dependência simultânea de objetos humanos contemporâneos e de resíduos dos
pais, educadores e exemplos é levada a seu mais alto grau. O tipoerótico-narcísico é talvez aquele que
devamos encarar como o mais comum de todos. Ele une opostos, que nele podem moderar-se
mutuamente. Pode-se aprender com esse tipo, quando comparado com os outros dois eróticos, que a
agressividade e a atividade vão de par com uma predominância do narcisismo. O tipo narcísicoobsessivo, finalmente, produz, do ponto de vista cultural, a mais valiosa variação, pois soma à
independência do mundo externo e à consideração pela exigência da consciência uma capacidade de
ação vigorosa, e fortalece o ego contra o superego.
Poder-se-ia pensar que estamos gracejando, se perguntássemos por que não se fez aqui
menção alguma de outro tipo misto teoricamente possível, a saber, o tipo erótico-obsessivo-narcísico.
Mas a resposta ao gracejo é séria. De modo algum esse tipo seria um tipo; seria a norma absoluta, a
harmonia ideal. Assim, damo-nos conta de que o fenômeno dos tipos surge precisamente do fato de que,
das três principais maneiras de utilizar a libido na economia mental, uma ou duas foram favorecidas às
expensas das outras.
Pode-se também suscitar a questão de saber qual é a relação desses tipos libidinais com a
patologia; se alguns deles possuem uma disposição especial de passar à neurose e, em caso afirmativo,
quais os tipos que conduzem a que formas de neurose. A resposta é que a fixação desses tipos libidinais
não lança luz nova sobre a gênese das neuroses. A experiência nos mostra que todos esses tipos podem
existir sem qualquer neurose. Os tipos puros, assinalados pela preponderância indiscutida de um agente
mental isolado parecem ter melhor possibilidade de se manifestarem como quadros caracterológicos
puros, ao passo que podemos esperar que os tipos mistos forneçam um solo mais favorável para as
condições que conduzem à neurose. Penso, porém, que não devemos tomar uma decisão sobre esses
assuntos até que tenham sido submetidos a um exame cuidadoso e especialmente dirigido.
Parece fácil inferir que, quando pessoas do tipo erótico caem doentes, elas desenvolverão
histerias, assim como as do tipo obsessivo desenvolverão neuroses obsessivas; mas essas inferências
também partilham da incerteza que acabei de acentuar. As pessoas do tipo narcísico que se expõem a
uma frustração do mundo externo, embora sob outros aspectos independentes, estão particularmente
dispostas à psicose, e também apresentam precondições essenciais para a criminalidade.
Constitui fato familiar que as precondições etiológicas da neurose ainda não são conhecidas com
certeza. As causas precipitantes dela são frustrações e conflitos internos: conflitos entre os três principais
agentes psíquicos;conflitos que surgem dentro da economia libidinal em conseqüência de nossa
disposição bissexual e conflitos entre os componentes instintuais erótico e agressivo. É trabalho da
psicologia das neuroses descobrir o que faz com que esses processos, pertencentes ao curso normal da
vida mental, se tornem patogênicos.
SEXUALIDADE FEMININA (1931)
NOTA DO EDITOR INGLÊS
BRIEF AN MAXIM [sic] LEROY: ÜBER EINEN TRAUM DES CARTESIUS
(a) EDIÇÕES FRANCESAS:
1929 Em Descartes, le philosophe au masque, de Leroy, 1, 89-90, Paris, Editions Rieder.
(Em francês.)
1934 G.S., 12, 403-5. (Reimpressão da carta de Freud e extratos do livro de Leroy. Em
francês.)
1948 G.W., 14, 558-60. (Reimpressão da anterior.)
A presente tradução, a primeira em inglês, é da autoria de Angela Richards.
Nenhum original alemão desta carta subsistiu. A versão francesa foi, quase certamente, feita por
Leroy e fornece, na melhor das hipóteses, uma base insatisfatória para a tradução inglesa.
Enquanto Maxime Leroy preparava seu livro sobre Descartes (1929), submeteu a Freud uma
série de sonhos do filósofo, para que os comentasse. Não podemos dizer exatamente qual a descrição
dos sonhos que Leroy forneceu a Freud, pois as edições alemãs não imprimem o texto de sua carta,
citando simplesmente a descrição dos sonhos conforme no livro publicado por Leroy, onde este também
incluiu a tradução da resposta de Freud à sua indagação.
A descrição original e a interpretação dos sonhos de Descartes parecem ter ocupado as páginas
iniciais de um manuscrito conhecido como ‘Olympica’, provavelmente escrito durante o inverno de 1619,
e hoje perdido. Foi visto, entretanto, pelo abbé Adrien Baillet (século XVII), que publicou uma tradução
parafraseada, contendo algumas citações do latim original, em sua Vie de Monsieur Des-Cartes (Paris,
1691, 1). A descrição dos sonhos está nas págs. 81-5. Foi nessa versão que Leroy buscou seu relato,
mas parece certo que Freud estudou o texto integral de Baillet, já que, em sua resposta, fala do ‘melão de
uma terra estrangeira’, frase que aparece na transcrição de Baillet, ao passo que, em seu livro, Leroy
menciona simplesmente ‘um melão’.
O manuscrito ‘Olympica’ foi visto também por Leibniz, que fez uma cópia de extratos dele.
Infelizmente, as notas de Leibniz contêm apenas uma breve referência aos sonhos: ‘Somnium 1619, nov.
in quo carmen 7 cujus initium: Quod vitae sectabor iter?… Auson. Como não faz menção de ter visto a
‘explicação’ dos sonhos, Leroy inclinou-se a pensar que se tratava, em grande parte pelo menos, de uma
invenção do abbé Baillet, opinião que expressa em seu livro, embora nenhuma sugestão dela pareça ter
chegado a Freud.
A descrição dos sonhos publicada por Leroy (1929, 1, 84) - paráfrase da versão de Baillet - que
aparece (em francês) como nota de rodapé nas edições alemãs de Freud, é a seguinte:
‘Então, durante a noite, quando tudo era febre, trovões, pânico, fantasmas se ergueram diante
daquele que sonhava. Tentou levantar-se para expulsá-los, mas caiu de novo, envergonhado de si
mesmo, sentindo-se perturbado por uma grande fraqueza em seu lado direito. De repente, uma janela do
quarto se abriu. Com terror, sentiu-se carregado pelas rajadas de um vento violento, que o fez girar
diversas vezes sobre o pé esquerdo.
Arrastando-se, a cambalear, chegou aos prédios da faculdade em que fora educado. Tentou
desesperadamente entrar na capela, para fazer suas orações. Nesse momento, algumas pessoas
passaram. Tentou detê-las, a fim de lhes falar; notou que uma delas conduzia um melão. Mas um vento
violento o empurrou de volta para a capela.
‘Acordou então, com pontadas de dor do lado esquerdo. Não sabia se estava sonhando ou
acordado. Semidesperto, disse a si mesmo que um gênio mau estava tentando seduzi-lo, e murmurou
uma prece para exorcizá-lo.
‘Adormeceu outra vez. Um estrondo de trovão o acordou novamente, enchendo o quarto de
relâmpagos. Mais uma vez se perguntou se estava adormecido ou desperto, se aquilo era um sonho ou
um devaneio, abrindo e fechando os olhos como para se certificar. Então, tranqüilizado, readormeceu,
levado pela exaustão.
‘Com o cérebro em fogo, excitado por esses rumores e vagos sofrimentos, Descartes abriu um
dicionário e, depois, uma coletânea de poema. O intrépido viajante sonhou com o seguinte verso: “Quod
vitae sectabor iter?” Outra viagem à terra dos sonhos? Então, de súbito, apareceu um homem que não
conhecia, pretendendo fazê-lo ler uma passagem de Ausônio que começava com as palavras “Est et
non”. Mas o homem desapareceu e um outro tomou o seu lugar. O livro, por sua vez, se esvaneceu, para
depois reaparecer decorado com retratos em talho-doce. Por fim, a noite se acalmou.
A explicação dos sonhos, que Leroy (ibid., 85) cita de Baillet (e também impressa como nota de
rodapé nas edições alemãs de Freud), é a seguinte:
‘Ele [Descartes] considerava que o “dicionário” significava simplesmente todas as Ciências
combinadas e que a “coletânea de poemas”, intitulada Corpus Poetarum, indicava de modo específico e
mais distintamente a Filosofia e a Sabedoria unidas… M. Descartes, continuando a interpretar o sonho
enquanto dormia, pensou que o fragmento poético sobre a incerteza do tipo de vida que se deve escolher
e começando por “Quod vitae sectabor iter?”, indicava um bom conselho de uma pessoa sábia, ou
mesmo a Teologia Moral…
‘Pelos poetas reunidos na coletânea, ele entendeu a Revelação e o Entusiasmo, de cujo favor
não desesperava. Pelo fragmento de verso “Est et non” (que é o Sim e o Não de Pitágoras) entendeu a
Verdade e a Falsidade no saber humano e nas ciências profanas. Vendo que a aplicação de todas essas
coisas era tão de seu gosto, atreveu-se a se convencer de que fora o Espírito da Verdade que decidira
abrir-lhe todos os tesouros da ciência através daquele sonho. E já que nada lhe restava a explicar, a não
ser os pequenos Retratos em talho-doce [taille douce] que encontrara no segundo livro, não procurou
mais sua explicação depois que um pintor italiano lhe fez uma visita exatamente no dia seguinte.
‘Esse último sonho, que não continha nada, mas era muito doce [doux] e agradável, indicava o
futuro, pensou ele, e referia-se apenas ao que lhe deveria ocorrer durante o resto de sua vida. Tomou os
dois primeiros, entretanto, como advertências ameaçadoras em relação à sua vida passada, que poderia
não ter sido tão inocente aos olhos de Deus quanto aos dos homens. E pensou que era esse o motivo
para o terror e o susto com que os dois sonhos se tinham feito acompanhar. O melão com que tentaram
presenteá-lo no primeiro sonho significava, disse ele, os encantos da solidão, mas apresentados por
incentivos puramente humanos. O vento que o carregava na direção da Igreja da faculdade, onde sentira
uma dor no lado direito, nada mais era do que o Gênio mau tentando arrojá-lo à força para um lugar em
que era sua intenção entrar voluntariamente. Fora por isso que Deus não lhe permitira avançar mais, ou
se deixar ser carregado, mesmo a um lugar santo, por um Espírito que não havia enviado - embora
estivesse bastante convencido de que fora um Espírito de Deus que o levara a fazer suas primeiras
abordagens a essa Igreja. O terror de que foi acometido no segundo sonho, indicava em sua opinião, sua
sindérese, isto é, o remorso de sua consciência em relação aos pecados que poderia ter cometido no
decorrer de sua vida até então. O trovão cujo troar ele ouvira, era o sinal do espírito da verdade descendo
sobre ele, para dele tomar posse.’
SEXUALIDADE FEMININA
I
Durante a fase do complexo de Édipo normal, encontramos a criança ternamente ligada ao
genitor do sexo oposto, ao passo que seu relacionamento com o do seu próprio sexo é
predominantemente hostil. No caso do menino, isso não é difícil de explicar. Seu primeiro objeto amoroso
foi a mãe. Continua sendo, e, com a intensificação de seus desejos eróticos e sua compreensão interna
mais profunda das relações entre o pai e a mãe, o primeiro está fadado a se tornar seu rival. Com a
menina, é diferente. Também seu primeiro objeto foi a mãe. Como encontra o caminho para o pai? Como,
quando e por que se desliga da mãe? Há muito tempo compreendemos que o desenvolvimento da
sexualidade feminina é complicado pelo fato de a menina ter a tarefa de abandonar o que originalmente
constituiu sua principal zona genital - o clitóris - em favor de outra, nova, a vagina. Agora, no entanto,
parece-nos que existe uma segunda alteração da mesma espécie, que não é menos característica e
importante para o desenvolvimento da mulher: a troca de seu objeto original - a mãe - pelo pai. A maneira
pela qual essas duas tarefas estão mutuamente vinculadas ainda não nos é clara.
É bem sabido que existem muitas mulheres que possuem uma forte ligação com o pai, e para
isso não precisam ser, de qualquer maneira, neuróticas. Foi em tais mulheres que efetuei as observações
que me proponho comunicar aqui e que me conduziram a adotar um ponto de vista específico sobre a
sexualidade feminina. Dois fatos sobretudo me impressionaram. O primeiro foi o de que onde a ligação
da mulher com o pai era particularmente intensa, a análise mostrava que essa ligação fora precedida por
uma fase de ligação exclusiva à mãe, igualmente intensa e apaixonada. Com exceção da mudança de
seu objeto amoroso, a segunda fase mal acrescentara algum aspecto novo à sua vida erótica. Sua
relação primária com a mãe fora construída de maneira muito rica e multificada. O segundo fato ensinoume que a duração dessa ligação também fora grandemente subestimada. Em diversos casos, durara até
os quatros anos de idade - em determinado caso, até os cinco -, de maneira que abrangera, em muito, a
parte mais longa doperíodo da primeira eflorescência sexual. Na verdade, tínhamos de levar em conta a
possibilidade de um certo número de mulheres permanecerem detidas em sua ligação original à mãe e
nunca alcançarem uma verdadeira mudança em direção aos homens. Assim sendo, a fase pré-edipiana
nas mulheres obtém uma importância que até agora não lhe havíamos atribuído.
De uma vez que essa fase comporta todas as fixações e repressões a que podemos fazer
remontar a origem das neuroses, talvez pareça que deveríamos retratar-nos da universalidade da tese
segundo a qual o complexo de Édipo é o núcleo das neuroses. Se, contudo, alguém se sentir relutante
em efetuar essa correção, não há necessidade de que a faça. Por um lado, podemos ampliar o conteúdo
do complexo de Édipo de modo a incluir todas as relações da criança com ambos os genitores, e, por
outro, levar na devida conta nossas novas descobertas dizendo que a mulher só atinge a normal situação
edipiana positiva depois de ter superado um período anterior que é governado pelo complexo negativo.
De fato, durante essa fase, o pai de uma menina não é para ela muito mais do que um rival causador de
problemas, embora sua hostilidade para com ele jamais alcance a intensidade característica dos
meninos. Há muito tempo, afinal de contas, já abandonamos qualquer expectativa quanto a um
paralelismo nítido entre o desenvolvimento sexual masculino e feminino.
Nossa compreensão interna dessa fase primitiva, pré-edipiana, nas meninas, nos chega como
uma surpresa, tal como a descoberta, em outro campo, da civilização mino-miceniana por detrás da
civilização da Grécia.
Tudo na esfera dessa primeira ligação com a mãe me parecia tão difícil de apreender nas
análises - tão esmaecido pelo tempo e tão obscuro e quase impossível de revivificar - que era como se
houvesse sucumbido a uma repressão especialmente inexorável. Mas talvez tenha ficado com essa
impressão porque as mulheres que estavam em análise comigo podiam aferrar-se à própria ligação com
o pai em que se tinham refugiado da fase primitiva em questão. Na verdade, parece que as analistas
femininas - tais como, por exemplo, Jeanne Lampl-de Groot e Helene Deutsch - foram capazes de
perceber esses fatos mais fácil e claramente por terem sido auxiliadas, ao lidarem com as que se
achavam em tratamento com elas, pela transferência a uma substituta materna adequada. Tampouco
alcancei sucesso em divisar completamente o caminho em qualquer caso; portanto, me limitarei a relatar
as descobertas mais gerais e fornecerei apenas alguns exemplos das novasidéias a que cheguei. Entre
estas acha-se a suspeita de que essa fase de ligação com a mãe está especialmente relacionada à
etiologia da histeria, o que não é de surpreender quando refletimos que tanto a fase quanto a neurose
são caracteristicamente femininas, e, ademais, que nessa dependência da mãe encontramos o germe da
paranóia posterior nas mulheres, pois esse germe parece ser o surpreendente, embora regular, temor de
ser morta (devorada?) pela mãe. É plausível presumir que esse temor corresponde a uma hostilidade que
se desenvolve na criança, em relação à mãe, em conseqüência das múltiplas restrições impostas por
esta no decorrer do treinamento e do cuidado corporal, e que o mecanismo de projeção é favorecido pela
idade precoce da organização psíquica da criança.
II
Comecei por enunciar os dois fatos que me impressionaram como novos: que a intensa
dependência de uma mulher quanto ao pai simplesmente assume a herança de uma ligação igualmente
forte com a mãe , e que essa fase primitiva demora um período de tempo inesperadamente longo.
Voltarei agora um pouco atrás, a fim de inserir essas novas descobertas no quadro do desenvolvimento
sexual feminino com que estamos familiarizados. Assim, será inevitável uma certa repetição. Ajudará
nossa exposição se, enquanto progredirmos, compararmos o estado de coisas nas mulheres como nos
homens.
Antes de tudo, não pode haver dúvida de que a bissexualidade, presente, conforme acreditamos,
na disposição inata dos seres humanos, vem para o primeiro plano muito mais claramente nas mulheres
do que nos homens. Um homem, afinal de contas, possui apenas uma zona sexual principal, um só órgão
sexual, ao passo que a mulher tem duas: a vagina, ou seja, o órgão genital propriamente dito, e o clitóris,
análogo ao órgão masculino. Acreditamos que estamos justificados em supor que, por muitos anos, a
vagina é virtualmente inexistente e, possivelmente, não produz sensações até a puberdade. É verdade
que recentemente um crescente número de observadores tem comunicado que os impulsos vaginais
estão presentes mesmo nesses primeiros anos. Nas mulheres, portanto, as principais ocorrências
genitais da infância devem ocorrer em relação ao clitóris. Sua vida sexual é regularmente dividida em
duas fases, a primeira das quais possui um caráter masculino, ao passo que apenas a segunda é
especificamente feminina. Assim, no desenvolvimento feminino, há um processo de transição de uma
fase para a outra, do qual nada existe de análogo no homem. Uma outra complicação origina-se do fato
de o clitóris, com seu caráter viril, continuar a funcionar na vida sexual feminina posterior, de maneira
muito variável e que certamente ainda não é satisfatoriamente entendida. Não conhecemos,
naturalmente, a base biológica dessas peculiaridades das mulheres e, menos ainda, podemos atribuirlhes qualquer intuito teleológico.
Paralela a essa primeira grande diferença existe a outra, relacionada com o encontro do objeto.
No caso do homem, a mãe se torna para ele o primeiro objeto amoroso como resultado do fato de
alimentá-lo e de tomar conta dele, permanecendo assim até ser substituída por alguém que se lhe
assemelhe ou dela se derive. Também o primeiro objeto de uma mulher tem de ser a mãe; as condições
primárias para uma escolha de objeto são, naturalmente, as mesmas para todas as crianças. Ao final do
desenvolvimento dela, porém, seu pai - um homem - deveria ter-se tornado seu novo objeto amoroso.Em
outras palavras, à mudança em seu próprio sexo deve corresponder uma mudança no sexo de seu
objeto. Os novos problemas que agora exigem investigação são a maneira pela qual essa mudança
ocorre, quão radical ou incompletamente é efetuada, e quais as diferentes possibilidades que se
apresentam no decurso desse desenvolvimento.
Já aprendemos também que ainda existe uma outra diferença entre os sexos, a qual se relaciona
com o complexo de Édipo. Temos aqui a impressão de que o que dissemos sobre o complexo de Édipo
se aplica de modo absolutamente estrito apenas à criança do sexo masculino, e de que temos razão ao
rejeitarmos a expressão ‘complexo de Electra’, que procura dar ênfase à analogia entre a atitude dos dois
sexos. É apenas na criança do sexo masculino que encontramos a fatídica combinação de amor por um
dos pais e, simultaneamente, ódio pelo outro, como rival. No caso dela, é a descoberta da possibilidade
de castração, tal como provada pela visão dos órgãos genitais femininos, que impõe ao menino a
transformação de seu complexo de Édipo e conduz à criação de seu superego, iniciando assim todos os
processos que se destinam a fazer o indivíduo encontrar lugar na comunidade cultural. Após o agente
paterno ter sido internalizado e ter-se tornado um superego, a tarefa seguinte consiste em desligar este
último das figuras de quem originalmente constituiu o representante psíquico. Nesse notável curso de
desenvolvimento, é precisamente o interesse narcísico do menino por seus órgãos genitais - seu
interesse em preservar o pênis - que é transformado numa restrição de sua sexualidade infantil.
Uma das coisas que remanesce nos homens, da influência do complexo de Édipo, é um certo
desprezo em sua atitude para com as mulheres, a quem encaram como castradas. Nos casos extremos,
isso dá origem a uma inibição em sua escolha de objeto e, se apoiado por fatores orgânicos, ao
homossexualismo exclusivo.
Inteiramente diferentes são os efeitos do complexo de castração na mulher. Ela reconhece o fato
de sua castração, e, com ele, também a superioridade do homem e sua própria inferioridade, mas se
rebela contra esse estado de coisas indesejável. Dessa atitude, dividida, abrem-se três linhas de
desenvolvimento. A primeira leva a uma revulsão geral à sexualidade. A menina, assustada pela
comparação com os meninos, cresce insatisfeita com seu clitóris, abandona sua atividade fálica e, com
ela, sua sexualidade em geral, bem como boa parte de sua masculinidade em outros campos. A segunda
linha a leva a se aferrar com desafiadora auto-afirmatividade à sua masculinidade ameaçada. Até uma
idade inacreditavelmente tardia, aferra-se à esperança de conseguir um pênis em alguma ocasião. Essa
esperança se torna o objetivo de sua vida e a fantasia de ser um homem, apesar de tudo,
freqüentemente persiste como fator formativo por longos períodos. Esse ‘complexo de masculinidade’ nas
mulheres pode também resultar numa escolha de objeto homossexual manifesta. Só se seu
desenvolvimento seguir o terceiro caminho, muito indireto, ela atingirá a atitude feminina normal final, em
que toma o pai como objeto, encontrando assim o caminho para a forma feminina do complexo de Édipo.
Assim, nas mulheres, o complexo de Édipo constitui o resultado final de um desenvolvimento bastante
demorado. Ele não é destruído, mas criado pela influência da castração; foge às influências fortemente
hostis que, no homem, tiveram efeito destrutivo sobre ele e, na verdade, com muita freqüência, de modo
algum é superado pela mulher. Por essa razão, também, nela as conseqüências culturais de sua
dissolução são menores e menos importantes. Provavelmente não estaríamos errados em dizer que é
essa diferença na relação recíproca entre o complexo de Édipo e o de castração que dá seu cunho
especial ao caráter das mulheres como seres sociais.
Vemos, portanto, que a fase de ligação exclusiva à mãe, que pode ser chamada de fase préedipiana, tem nas mulheres uma importância muito maior do que a que pode ter nos homens. Muitos
fenômenos da vida sexual feminina, que não foram devidamente compreendidos antes, podem ser
integralmente explicados por referência a essa fase. Há muito tempo, porexemplo, observamos que
muitas mulheres que escolheram o marido conforme o modelo do pai, ou o colocaram em lugar do pai,
não obstante repetem para ele, em sua vida conjugal, seus maus relacionamentos com as mães. O
marido de tal mulher destinava-se a ser o herdeiro de seu relacionamento com o pai, mas, na realidade,
tornou-se o herdeiro do relacionamento dela com a mãe. Isso é facilmente explicado como um caso óbvio
de regressão. O relacionamento dela com a mãe foi o original, tendo a ligação com o pai sido construída
sobre ele; agora, no casamento, o relacionamento original emerge da repressão, pois o conteúdo
principal de seu desenvolvimento para o estado de mulher jaz na transferência, da mãe para o pai, de
suas ligações objetais afetivas.
Com muitas mulheres, temos a impressão de que seus anos de maturidade são ocupados por
uma luta com os maridos, tal como suas juventudes se dissiparam numa luta com suas mães. À luz do
exame anterior, concluiremos que sua atitude hostil para com a mãe não é conseqüência da rivalidade
implícita no complexo de Édipo, mas se origina da fase precedente, tendo sido simplesmente reforçada e
explorada na situação edipiana. E o exame analítico concreto confirma essa opinião. Nosso interesse
deve dirigir-se para os mecanismos em ação em seu afastamento da mãe, que era um objeto tão intenso
e exclusivamente amado. Estamos preparados para descobrir, não um fator único, mas um grande
número deles operando juntos para o mesmo fim.
Entre esses fatores, alguns são determinados pelas circunstâncias da sexualidade infantil em
geral e, assim, valem igualmente para a vida erótica dos meninos. Primeiro e acima de tudo, podemos
mencionar o ciúme de outras pessoas - de irmãos e irmãs, rivais, entre os quais também o pai encontra
lugar. O amor infantil é ilimitado; exige a posse exclusiva, não se contenta com menos do que tudo.
Possui, porém, uma segunda característica; não tem, na realidade, objetivo, sendo incapaz de obter
satisfação completa, e, principalmente por isso, está condenado a acabar em desapontamento e a ceder
lugar a uma atitude hostil. Mais tarde, na vida, a falta de uma satisfação suprema pode favorecer um
resultado diferente. Esse mesmo fator pode garantir a continuidade ininterrupta da catexia libidinal, tal
como acontece com as relações amorosas inibidas em sua finalidade. Na tensão dos processos de
desenvolvimento, porém, acontece regularmente que a libido abandona sua posição insatisfatória, a fim
de descobrir outra nova.Outro motivo muito mais específico para o afastamento da mãe surge do efeito
do complexo de castração sobre a criatura que não tem pênis. Numa ocasião ou noutra a menina
descobre sua inferioridade orgânica, mais cedo e mais facilmente, é natural, se existirem irmãos ou
outros meninos a seu redor. Já observamos os três caminhos que divergem a partir desse ponto: (a) o
que leva à cessação de toda sua vida sexual; (b) o que leva a uma desafiadora superenfatização de sua
masculinidade; (c) os primeiros passos no sentido da feminilidade definitiva. Não é fácil determinar aqui o
momento exato ou o curso típico dos eventos. Mesmo o momento em que a descoberta da castração é
efetuada varia, e uma série de outros fatores parece ser inconstante ou depender do acaso. A situação
da própria atividade fálica da menina desempenha um papel, bem como a questão de saber se essa
atividade foi descoberta ou não, e quanta interferência na mesma ela experimentou posteriormente.
As meninas geralmente descobrem por si próprias sua atividade fálica característica, a
masturbação do clitóris, e, de início, isso sem dúvida não se faz acompanhar pela fantasia. O papel
desempenhado, em seu começo, pela higiene infantil reflete-se na fantasia muito comum que transforma
a mãe ou a babá em sedutora. Que as meninas se masturbem com menos freqüência e, desde o
princípio, com menos energia que os meninos, não é certo; possivelmente, assim acontece. A sedução
real também é bastante comum; é iniciada quer por outras crianças, quer por alguém encarregado da
criança que deseja acalmá-la, pô-la para dormir ou torná-la dependente dele. Onde intervém, a sedução
invariavelmente perturba o curso natural dos processos de desenvolvimento e com freqüência deixa atrás
de si conseqüências amplas e duradouras.
A proibição da masturbação, como vimos, transforma-se num incentivo para abandoná-la, mas
torna-se motivo para rebelar-se contra a pessoa que a proíbe, ou seja, a mãe, ou o substituto materno
que, mais tarde, normalmente se funde com esta. Uma persistência desafiadora na masturbação parece
abrir o caminho à masculinidade. Mesmo onde a menina não conseguiu suprimir sua masturbação, o
efeito da proibição aparentemente vã é visto em seus esforços posteriores para se libertar, a todo custo,
de uma satisfação que lhe foi estragada. Quando atinge a maturidade, sua escolha de objeto ainda pode
ser influenciada por esse intuito persistente. Seu ressentimento por ser impedida de uma atividade sexual
livre desempenha grande papel em seudesligamento da mãe. O mesmo motivo entra em funcionamento
após a puberdade, quando a mãe assume seu dever de guardiã da castidade da filha. Não nos
esqueceremos, naturalmente, de que, de forma semelhante, a mãe se opõe à masturbação do menino,
fornecendo-lhe assim, também, um forte motivo de rebelião.
Quando a menina descobre sua própria deficiência, por ver um órgão genital masculino, é
apenas com hesitação e relutância que aceita esse desagradável conhecimento. Como já vimos, aferrase obstinadamente à expectativa de um dia também ter um órgão genital do mesmo tipo, e seu desejo
por ele sobrevive até muito tempo após sua esperança ter-se expirado. Invariavelmente a criança encara
a castração, em primeira instância, como um infortúnio peculiar a ela própria; só mais tarde compreende
que ela se estende a certas outras crianças e, por fim, a certos adultos. Quando vem a compreender a
natureza geral dessa característica, disso decorre a feminilidade - e com ela, naturalmente, sua mãe sofrer uma grande depreciação a seus olhos.
A descrição de como as meninas reagem à impressão da castração e à proibição da
masturbação, provavelmente impressionará o leitor como confusa e contraditória. Não é, inteiramente,
falha do autor. Na verdade, é quase impossível fornecer uma descrição que possua validade geral.
Encontramos as mais diferentes reações em diferentes indivíduos e, no mesmo indivíduo, as atitudes
contrárias coexistem lado a lado. Com a primeira intervenção da proibição, o conflito se forma e,
doravante, acompanhará o desenvolvimento da função sexual. A compreensão interna do que ocorre é
tornada particularmente difícil pelo fato de ser muito difícil distinguir os processos mentais dessa primeira
fase dos posteriores, pelos quais são cobertos e deformados na memória. Assim, por exemplo, uma
menina pode posteriormente interpretar o fato da castração como sendo uma punição por sua atividade
masturbatória, e atribuirá a efetivação dessa punição ao pai; nenhuma dessas idéias, porém, pode ter
sido primária. Do mesmo modo, os meninos normalmente temem a castração por parte do pai, embora
também em seu caso a ameaça provenha mais geralmente da mãe.
Seja como for, ao final dessa primeira fase de ligação à mãe, emerge, como motivo mais forte
para a menina se afastar dela, a censura por a mãe não lhe ter dado um pênis apropriado, isto é, tê-la
trazido ao mundo como mulher. Uma segunda censura, que não remonta tão atrás, é bastante
surpreendente. É que sua mãe não lhe deu leite bastante, não a amamentou o suficiente. Nas condições
da civilização moderna, isso freqüentemente pode ser bastante verídico, embora decerto não tão
freqüentemente quanto é asseverado nas análises. Pareceria antes que essa acusação dá expressão à
insatisfação geral dos filhos, que, em nossa civilização monogâmica, são desmamados após seis ou nove
meses, ao passo que a mãe primitiva se devota exclusivamente ao filho por dois ou três anos. É como se
nossos filhos tivessem permanecido para sempre insaciados, como se nunca tivessem sugado por tempo
suficiente o seio de sua mãe. Contudo, não estou seguro de que, se analisássemos crianças que
tivessem sido amamentadas por tanto tempo quanto as dos povos primitivos, não nos depararíamos com
a mesma queixa, tão grande é a voracidade da libido de uma criança!
Quando, passamos em revista toda a gama de motivos para se afastar da mãe que a análise traz
à luz - que ela falhou em fornecer à menina o único ou órgão genital correto, que não a amamentou o
suficiente, que a compeliu a partilhar o amor da mãe com outros, que nunca atendeu às expectativas de
amor da menina, e, finalmente, que primeiro despertou a sua atividade sexual e depois a proibiu -, todos
esses motivos, não obstante, parecem insuficientes para justificar a hostilidade final da menina. Alguns
deles decorrem inevitavelmente da natureza da sexualidade infantil; outros aparecem como
racionalizações imaginadas posteriormente, para explicar a mudança incompreendida no sentimento.
Talvez o fato real seja que a ligação à mãe está fadada a pe
recer,
precisamente
por
ter
sido
a
primeira e tão intensa, tal como freqüentemente se pode ver acontecer nos primeiros casamentos de
mulheres jovens, que ingressaram neles quando estavam mais apaixonadamente amorosas. Em ambas
as situações, a atitude de amor provavelmente passa para a de pesar pelos inevitáveis desapontamentos
e pela acumulação de ocasiões para a agressão. Via de regra, os segundos casamentos se mostram
muito melhores.
Não podemos chegar ao ponto de afirmar que a ambivalência de catexias emocionais seja uma
lei universalmente válida, e que seja absolutamente impossível sentir grande amor por uma pessoa sem
que esse amor seja acompanhado por um ódio talvez igualmente grande, ou vice-versa. Sem dúvida, os
adultos normais conseguem separar essas duas atitudes uma daoutra, e não estão obrigados a odiar
seus objetos amorosos ou a amar seus inimigos tanto quanto a odiá-los. Isso porém, parece resultar de
desenvolvimentos posteriores. Nas primeiras fases da vida erótica, a ambivalência é evidentemente a
regra. Não poucas pessoas retêm esse traço arcaico durante toda sua vida. É característico dos
neuróticos obsessivos que, em seus relacionamentos objetais, o amor e o ódio se contrabalancem
mutuamente. Também nas raças primitivas podemos dizer que a ambivalência predomina. Concluiremos,
então, que a intensa ligação da menina à mãe é fortemente ambivalente, sendo precisamente em
conseqüência dessa ambivalência que (com a assistência dos outros fatores que aduzimos) sua ligação
se afasta à força da mãe mais uma vez, isto é, em conseqüência de uma característica geral da
sexualidade infantil.
A explicação que tentei fornecer defronta-se em seguida com uma pergunta: ‘Como é, então, que
os meninos podem manter intacta sua ligação com a mãe, que decerto não é menos forte do que a das
meninas?’ A resposta chega com igual presteza: ‘Porque os meninos podem lidar com seus sentimentos
ambivalentes para com a mãe dirigindo toda sua hostilidade para o pai.’ Em primeiro lugar, porém, não
devemos dar resposta até que tenhamos efetuado um estudo atento da fase pré-edipiana nos meninos,
e, em segundo lugar, provavelmente é mais prudente, em geral, admitir que ainda não dispomos de uma
compreensão clara desses processos, com os quais só recentemente nos familiarizamos.
III
Uma outra pergunta surge: ‘O que é que a menina exige da mãe? Qual é a natureza de seus
objetivos sexuais durante a época da ligação exclusiva à mãe?’ A resposta que obtemos do material
analítico é exatamente a que esperaríamos. Os objetivos sexuais da menina em relação à mãe são tanto
ativos quanto passivos e determinados pelas fases libidinais através das quais a criança passa. Aqui, a
relação da atividade com a passividade é especialmente interessante. Pode-se facilmente observar que
em todo campo de experiência mental, não simplesmente no da sexualidade, quando uma criança recebe
uma impressão passiva, ela tende a produzir uma reação ativa. Tenta fazer ela própria o que acabou de
ser feito a ela. Isso faz parte do trabalho que lhe é imposto de dominar o mundo externo e pode mesmo
levar a que se esforce por repetir uma impressão que teria toda razão para evitar, por causa de seu
conteúdo aflitivo. Também o brinquedo das crianças é realizado para servir ao fim de suplementar uma
experiência passiva com um comportamento ativo, e desse modo, por assim dizer, anulá-la. Quando um
médico abre a boca de uma criança, apesar da resistência dela, para examinar-lhe a garganta, essa
mesma criança, após a partida daquele, brincará de ser o médico ela própria e repetirá o ataque com
algum irmão ou irmã menor que esteja tão indefeso em suas mãos quanto ela nas do médico. Temos
aqui uma revolta inequívoca contra a passividade e uma preferência pelo papel ativo. Essa oscilação da
passividade à atividade não se realiza com a mesma regularidade ou vigor em todas as crianças; em
algumas pode não ocorrer de modo algum. O comportamento de uma criança a esse respeito pode
capacitar-nos a tirar conclusões quanto à intensidade relativa da masculinidade e feminilidade que ela
apresentará em sua sexualidade.
As primeiras experiências sexuais e sexualmente coloridas que uma criança tem em relação à
mãe são, naturalmente, de caráter passivo. Ela é amamentada, alimentada, limpa e vestida por esta
última, e ensinada a desempenhar todas as suas funções. Uma parte de sua libido continua aferrando-se
a essas experiências e desfruta das satisfações e elas relacionadas: outra parte, porém, esforça-se por
transformá-las em atividade. Em primeiro lugar, a amamentação ao seio dá lugar ao sugamento ativo.
Quanto às outras experiências, a criança contenta-se quer em se tornar auto-suficiente - isto é,
executando com ela própria com sucesso o que até então fora feito para ela -, quer em repetir suas
experiências passivas, sob forma ativa, no brinquedo, ou, então, transforma realmente a mãe em objeto e
comporta-se para com ela como sujeito ativo. Por muito tempo não consegui acreditar nesse último
comportamento, que se realiza no campo da ação real, até que minhas observações removeram todas as
dúvidas sobre o assunto.
Raramente ouvimos falar numa menina que quer lavar ou vestir sua mãe, ou que lhe diga para
efetuar suas funções excretórias. Às vezes, é verdade, ela diz: ‘Agora vamos brincar que eu sou a mãe e
você é a filha’; geralmente, porém, realiza esses desejos ativos de maneira indireta, em seu brinquedo
com a boneca, brinquedo em que representa a mãe, e a boneca, a filha. A predileção que as meninas
têm por brincar com bonecas, em contraste com os meninos, é comumente encarada como sinal de uma
feminilidade precocemente desperta, e isso não sem razão; não devemos, porém, desprezar o fato de
que o que nisso encontra expressão é o lado ativo da feminilidade e que a preferência da menina por
bonecas provavelmente constitui prova da exclusividade de sua ligação à mãe, com negligência completa
do objeto paterno.
A atividade sexual bastante surpreendente de meninas em relação à mãe manifesta-se
cronologicamente em inclinações orais, sádicas e, por fim, até fálicas, dirigidas no sentido desta. É difícil
fornecer uma descrição pormenorizada dessas inclinações, porque freqüentemente elas constituem
impulsos instintuais obscuros que era impossível à criança apreender psiquicamente por ocasião de sua
ocorrência, e que, portanto, só foram por ela interpretados posteriormente, aparecendo então na análise
sob formas de expressão que decerto não foram as originais. Às vezes, nos deparamos com elas como
transferências para o objeto paterno posterior, ao qual não pertencem, e onde interferem seriamente em
nossa compreensão da situação. Encontramos os desejos orais agressivos e sádicos da menina sob uma
forma a eles forçada pela repressão precoce, como um temor de ser morta pela mãe, temor que, por sua
vez, justifica seu desejo de morte contra a mãe, se este se torna consciente. É impossível dizer quão
freqüentemente esse temor da mãe é apoiado por uma hostilidade inconsciente por parte desta,
hostilidade que é pela menina. (Até aqui, foi apenas em homens que encontrei o temor de ser comido.
Esse medo se refere ao pai, mas provavelmente constitui o produto de uma transformação da
agressividade oral dirigida para a mãe. A criança deseja comer a mãe, de quem recebe seu alimento, no
caso do pai, não existe um determinante assim tão óbvio para o desejo.)Todas as pacientes que
mostravam uma intensa ligação com a mãe em quem pude estudar a fase pré-edipiana, disseram-me
que, quando suas mães lhes aplicavam clisteres ou lavagens retais, elas costumavam oferecer a maior
resistência e reagiam com medo e gritos de raiva. Esse comportamento pode ser muito freqüente ou
mesmo habitual em crianças. Só vim a compreender o motivo para essa oposição especialmente violenta
através de uma observação feita por Ruth Mack Brunswick, que estava estudando esses problemas ao
mesmo tempo que eu, observação segundo a qual se mostrava inclinada a comparar a irrupção de raiva
após a aplicação de um clister com o orgasmo que se segue à excitação genital. A ansiedade
acompanhante, pensava ela, deveria ser interpretada como uma transformação do desejo de agressão
que fora despertado. Acredito que é realmente assim e que, em nível anal-sádico, a intensa excitação
passiva da zona intestinal é respondida por um desencadeamento do desejo de agressão que se
manifesta quer diretamente, como raiva, quer, em conseqüência de sua repressão, como ansiedade. Em
anos posteriores, essa reação parece cessar.
Quanto aos impulsos passivos da fase fálica, é digno de nota que as meninas regularmente
acusem as mães de seduzi-las. Isso ocorre porque elas necessariamente recebem suas primeiras, ou, de
qualquer modo, suas mais fortes sensações genitais quando estão sendo limpas e tendo sua toalete
auxiliada pela mãe (ou por alguém, como uma babá, que tomou o lugar desta). Mães me contaram com
freqüência, a título de observação, que suas filhinhas de dois e três anos de idade têm prazer com essas
sensações e tentam conseguir que suas mães as tornem mais intensas através do tocar e do esfregar
repetidos. O fato de assim a mãe inevitavelmente iniciar a filha na fase fálica, constitui, penso eu, o
motivo por que, nas fantasias posteriores, o pai tão regularmente aparece como o sedutor sexual.
Quando a filha se afasta da mãe, transmite também ao pai sua introdução na vida sexual.Por fim,
impulsos cheios de desejo, intensos e ativos, dirigidos no sentido da mãe, também surgem durante a fase
fálica. A atividade sexual desse período culmina na masturbação clitoriana. Esta é provavelmente
acompanhada por idéias referentes à mãe; não consegui, porém, descobrir, a partir de minhas
observações, se a criança liga um objetivo sexual à idéia, ou qual seja esse objetivo. Somente quando
todos os seus interesses receberam novo ímpeto pela chegada de um bebê, irmão ou irmã, podemos
identificar claramente esse objetivo. A menina deseja crer que deu à mãe o novo bebê, tal como o
menino também quer; e sua reação a esse acontecimento e sua conduta para com o bebê é exatamente
a mesma que a dele. Não há dúvida de que isso soa absurdo, mas talvez seja apenas por soar tão pouco
familiar.
O afastamento da mãe constitui um passo extremamente importante no curso do
desenvolvimento de uma menina. Trata-se de algo mais do que uma simples mudança de objeto. Já
descrevemos o que nele acontece e os muitos motivos apresentados para ele; podemos agora
acrescentar que, de mãos dadas com o mesmo, deve ser observado um acentuado abaixamento dos
impulsos sexuais ativos e uma ascensão dos passivos. É verdade que as tendências ativas foram mais
intensamente afetadas pela frustração; revelaram-se totalmente irrealizáveis e, portanto, são mais
prontamente abandonadas pela libido. Mas tampouco as tendências passivas escaparam ao
desapontamento. Com o afastamento da mãe, a masturbação clitoriana não raro cessa também, e, com
bastante freqüência, quando a menina reprime sua masculinidade prévia, uma parte considerável de suas
tendências sexuais em geral fica também permanentemente danificada. A transição para o objeto paterno
é realizada com o auxílio das tendências passivas, na medida em que escaparam à catástrofe. O
caminho para o desenvolvimento da feminilidade está agora aberto à menina, até onde não se ache
restrito pelos remanescentes da ligação pré-edipiana à mãe, ligação que superou.
Se agora passarmos em revista a fase do desenvolvimento sexual na mulher que acabamos de
descrever, não poderemos resistir a tirar uma conclusão definida sobre a sexualidade feminina como um
todo. Descobrimos em ação nessa fase as mesmas forças libidinais que na criança do sexo masculino, e
pudemos convencer-nos de que, durante algum tempo, essas forças seguem o mesmo curso e têm o
mesmo desfecho em ambos.
Subseqüentemente, fatores biológicos desviam essas forças libidinais [no caso da menina] de
seus objetivos originais, inclusive conduzindo as tendências ativas e, em todo sentido, masculinas, para
canais femininos. Visto não podermos afastar a noção de que a excitação sexual deriva do
funcionamento de certas substâncias químicas, parece plausível, a princípio, esperarque a bioquímica um
dia nos revele uma substância cuja presença produza uma excitação sexual masculina e outra substância
que produza uma feminina. Mas essa esperança parece não menos ingênua do que aquela outra - hoje
felizmente obsoleta -, a de ser possível, ao microscópio, isolar os diferentes fatores excitantes da histeria,
da neurose obsessiva, da melancolia, e assim por diante.
Mesmo na química sexual, as coisas devem ser muito mais complicadas. Para a psicologia,
contudo, é indiferente que exista no corpo uma única substância sexualmente excitante, duas, ou um
número incontável delas. A psicanálise nos ensina a lidar com uma libido única, a qual, é verdade, possui
objetivos (isto é, modalidades de satisfação) tanto ativos quanto passivos. Essa antítese e, acima de
tudo, a existência de tendências libidinais com objetivos passivos, contém em si mesma o restante de
nosso problema.
IV
Um exame da literatura analítica sobre o assunto mostra que tudo que aqui foi dito por mim, já
pode ser encontrado nela. Teria sido supérfluo publicar este artigo, não fosse pelo fato de que, num
campo de pesquisa de acesso tão difícil, todo relato de experiências de primeira mão ou de pontos de
vista pessoais pode ser de valor. Ademais, existe uma série de pontos que defini mais nitidamente e
isolei com mais cuidado. Em alguns dos outros trabalhos sobre o tema, a descrição é obscurecida porque
eles lidam simultaneamente com os problemas do superego e do sentimento de culpa. Evitei fazer isso.
Também, ao descrever os diversos desfechos dessa fase de desenvolvimento, abstive-me de debater as
complicações que surgem, quando uma criança, em resultado de um desapontamento com o pai, retorna
à ligação com a mãe que abandonara, ou quando, no decorrer de sua vida, ela repetidamente muda de
uma posição para a outra. Precisamente, porém, por meu artigo constituir apenas uma contribuição entre
outras, posso poupar-me de fazer um levantamento exaustivo da literatura e limitar-me a apresentar os
pontos mais importantes a respeito dos quais concordo com esses outros trabalhos ou deles discordo.
A descrição feita por Abraham (1921) das manifestações do complexo de castração na mulher
ainda não foi ultrapassada, mas teria sido motivo de satisfação que ela tivesse incluído o fator da ligação
original exclusiva da menina com a mãe. Concordo com os principais pontos do importante artigo de
Jeanne Lampl-de Groot (1927). Nele, a total identidade da fase pré-edipiana em meninos e meninas é
reconhecida, e a atividade sexual (fálica) da menina para com a mãe é afirmada e substanciada por
observações. O afastamento da mãe tem sua origem remontada à influência do reconhecimento da
castração por parte da menina, fato que a obriga a abandonar seu objeto sexual e, com freqüência, a
masturbação junto com ele. O desenvolvimento completo é resumido na fórmula de que a menina
atravessa uma fase negativa de complexo de Édipo, antes de poder ingressar na positiva. Um ponto
sobre o qual acho a descrição da autora inapropriada é o que representao afastamento da mãe como
sendo simplesmente uma mudança de objeto e não examina o fato de ele ser acompanhado pelas
manifestações mais diretas de hostilidade. A essa hostilidade justiça plena é feita no último artigo de
Helene Deutsch, sobre o masoquismo feminino e sua relação com a frigidez (1930), artigo em que ela
também reconhece a atividade fálica da menina e a intensidade de sua ligação à mãe. Helene Deutsch
afirma, ainda, que o voltar-se da menina para o pai se realiza via suas tendências passivas (que já tinham
sido despertadas em relação à mãe). Em seu livro anterior (1925), a autora ainda não se tinha libertado
do afã de aplicar o modelo edipiano à fase pré-edipiana e, portanto, interpretara a atividade fálica da
menina como sendo uma identificação com o pai.
Fenichel (1930), corretamente, dá ênfase à dificuldade de reconhecer, no material produzido na
análise, quais as partes dele que representam o conteúdo não modificado da fase pré-edipiana e quais
as partes que foram deformadas pela regressão (ou por outros modos). Não aceita a afirmativa de
Jeanne Lampl-de Groot quanto à atitude ativa da menina na fase fálica. Rejeita também o ‘deslocamento
para trás’ do complexo de Édipo, proposto por Melanie Klein (1928), que situa seus primórdios já no
começo do segundo ano de vida. Essa aposição de data, que necessariamente acarretaria também uma
modificação de nossa opinião sobre todo o restante do desenvolvimento da criança, não corresponde, na
realidade, ao que aprendemos nas análises de adultos, sendo especialmente incompatível com minhas
descobertas quanto à longa duração da ligação pré-edipiana da menina à mãe. Um meio de suavizar
essa contradição é proporcionado pela reflexão de que ainda não estamos capacitados a distinguir,
nesse campo, entre o que é rigidamente fixado por leis biológicas e o que se acha aberto ao movimento e
à mudança, sob a influência acidental. O efeito da sedução há muito tempo nos é familiar, e, exatamente
da mesma maneira, outros fatores - tais como a data em que os irmãos e as irmãs da criança nasceram
ou a ocasião em que ela descobre a diferença entre os sexos, ou, ainda, suas observações diretas de
relações sexuais ou a conduta dos pais em incentivá-lo ou repeli-lo - podem apressar o desenvolvimento
sexual da criança e conduzi-la à maturidade.
Alguns autores inclinam-se a reduzir a importância dos primeiros e mais originais impulsos
libidinais da criança em favor de processos desenvolvimentais posteriores, de maneira que - para colocar
esse ponto de vista sob sua forma mais extrema - o único papel deixado aos primeiros é simplesmente o
de indicar certos caminhos, ao passo que as intensidades [psíquicas] que fluem ao longo dessas vias são
abastecidas por regressões e formações reativas posteriores. Assim, por exemplo, Karen Horney (1926)
é de opinião que superestimamos grandemente a inveja do pênis primária da menina e que a intensidade
da tendência masculina que mais tarde ela desenvolve deve ser atribuída a uma inveja do pênis
secundária, utilizada para desviar seus impulsos femininos e, em particular, sua ligação feminina com o
pai. Isso não concorda com minhas impressões. Certa como é a ocorrência de reforços posteriores
através da regressão e da formação reativa, e por difícil que seja estimar a força relativa dos
componentes libidinais confluentes, penso, não obstante, que não devemos desprezar o fato de os
primeiros impulsos libidinais possuírem uma intensidade que lhes é própria, superior a qualquer outra que
surja depois, e que pode ser verdadeiramente chamada de incomensurável. Sem dúvida é verdade que
existe uma antítese entre a ligação ao pai e o complexo de masculinidade; trata-se da antítese geral que
existe entre atividade e passividade, masculinidade e feminilidade. Mas isso não nos dá direito a supor
que apenas uma delas seja primária e que a outra deva sua intensidade simplesmente à força da defesa.
E, se a defesa contra feminilidade é tão enérgica, de que outra fonte pode ela haurir sua força senão da
tendência masculina que encontrou sua primeira expressão na inveja do pênis da criança e que, portanto,
merece ser denominada segundo esta?
Uma objeção semelhante aplica-se à opinião de Ernest Jones (1927) de que a fase fálica nas
meninas constitui mais uma reação secundária, protetora, do que um estágio desenvolvimental genuíno.
Isso não corresponde quer à posição dinâmica quer à posição cronológica das coisas.
BREVES ESCRITOS (1928-1931)
DR. REIK E O PROBLEMA DO CHARLATANISMO UMA CARTA À NEUE FREIE PRESSE
(1926)
Prezado senhor,
Num artigo de seu número de 15 de julho, que trata do caso de meu aluno, Dr. Theodor Reik, ou,
mais precisamente, numa seção dele intitulada ‘Informações dos Círculos Psicanalíticos’, há uma
passagem sobre a qual gostaria de fazer algumas observações, a título de correção.
A passagem diz: ‘…durante os últimos anos ficou convencido de que o Dr. Reik, que angariou
uma vasta reputação por seus trabalhos filosóficos e psicológicos, possui um dom muito maior para a
psicanálise do que os médicos ligados à escola freudiana, e confiou os casos mais difíceis apenas a ele e
a sua filha Anna, que se mostrou especialmente hábil na difícil técnica da psicanálise.’
O próprio Dr. Reik seria, penso eu, o primeiro a rejeitar uma descrição desse tipo de base de
nossas relações. É verdade, contudo, que me vali de sua perícia em casos particularmente difíceis, mas
isso só aconteceu quando os sintomas residiam numa esfera muito afastada da física. E jamais deixei de
informar um paciente de que ele não é médico, mas psicólogo.
Minha filha Anna dedicou-se à análise pedagógica de crianças e adolescentes. Jamais, até
agora, lhe encaminhei um caso de doença neurótica grave em adulto. Incidentalmente, o único caso com
sintomas moderadamente graves, a beirar o psiquiátrico, de que ela até o presente tratou, recompensou
o médico que a ela o encaminhou com seu completo sucesso.
Aproveito a oportunidade para lhe informar que acabei de mandar imprimir um pequeno trabalho
sobre A Questão da Análise Leiga [1926e].Nele tentei demonstrar o que é uma psicanálise e quais
exigências ela faz ao analista. Considerei as relações, muito longe de serem simples, entre a psicanálise
e a medicina, e tirei a conclusão de que qualquer aplicação mecânica, a analistas formados, da seção
contra o charlatanismo [do código penal] está aberta a graves dúvidas.
Visto que abandonei minha clínica de Viena e limitei minha atividade ao tratamento de alguns
estrangeiros, confio em que esse anúncio não me envolva também num processo por propaganda contra
a ética profissional.
Seu,
Professor Freud
O DR. ERNEST JONES (SOBRE SEU 50º ANIVERSÁRIO) (1929)
O primeiro trabalho que coube à psicanálise desempenhar foi a descoberta dos instintos comuns
a todos os homens que hoje vivem - e não apenas aos que hoje vivem, mas aos dos tempos antigos e
pré-históricos. Portanto, não exigiu grande esforço à psicanálise ignorar as diferenças surgidas entre os
habitantes da Terra devido à multiplicidade de raças, linguagem e países. Desde o início ela foi
internacional, sendo bem sabido que seus seguidores superaram os efeitos divisórios da Grande Guerra
mais cedo de que quaisquer outros.
Entre os homens que estavam em Salzburg na primavera de 1908, para o primeiro congresso
psicanalítico, proeminente foi um jovem médico inglês, que apresentou um pequeno trabalho sobre a
‘Racionalização na Vida Cotidiana’. O conteúdo desse primeiro fruto ainda é válido até hoje: nossa jovem
ciência se enriqueceu com um importante conceito e um termo indispensável.
Dessa época em diante, Ernest Jones nunca descansou. Primeiro em seu cargo de professor em
Toronto, depois como médico em Londres, como fundador e professor de uma sociedade, como diretor
de uma editora, redator-chefe de um periódico e diretor de um instituto de formação, trabalhou
incansavelmente pela psicanálise, tornando, através de palestras, suas descobertas correntes
conhecidas geralmente, defendendo-a contra os ataques e as incompreensões de seus oponentes
através de críticas brilhantes severas, mas justas, mantendo sua difícil posição na Inglaterra contra as
exigências da ‘profession’ (profissão) com tato e moderação, e, juntamente com todas essas atividades
externamente dirigidas, realizando, em leal cooperação com o desenvolvimento da psicanálise no
Continente, a obra científica da qual, entre outros trabalhos, seus Papers on Psycho-Analysis e Essays in
Applied Psycho-Analysis dão testemunho. Agora, na plenitude da vida, ele não apenas é,
indiscutivelmente, a principal figura entre os analistas de fala inglesa, mas também é reconhecido como
um dos representantes de proa da psicanálise em geral - um sustentáculo para seus amigos e, tanto
quanto sempre foi, uma esperança para o futuro de nossa ciência. Agora que o Diretor deste periódico
rompeu o silêncio a que se condenou - ou a que tem direito - devido a sua idade, a fim de saudar o
amigo, permita-se-lhe que conclua, não com um desejo - pois não acreditamos na onipotência dos
pensamentos -, mas com a admissão de que não pode pensar em Ernest Jones, mesmo após seu
qüinquagésimo aniversário, como outro que não o de antes: zeloso e enérgico, combativo e devotado à
causa.
O PARECER DO PERITO NO CASO HALSMANN (1931 [1930])
Até onde sabemos o complexo de Édipo está presente na infância em todos os seres humanos,
sofre grandes alterações durante os anos de desenvolvimento e, em muitos indivíduos, é encontrado em
graus variáveis de intensidade, mesmo em idade madura. Suas características essenciais, sua
universalidade, seu conteúdo e seu destino foram reconhecidos, muito antes dos dias da psicanálise, por
aquele agudo pensador, Diderot, tal como mostra uma passagem de seu famoso diálogo, Le Neveu de
Rameau: ‘Si le petit sauvage était abandoné à lui-même, qu’il conservât tout son imbécilité, et qu’il reunît
au peu de raison de l’enfant au berceau la violence des passions de l’homme de trente ans, il tordrait le
cou à son père et coucherait avec sa mère’.
Se tivesse sido objetivamente demonstrado que Philipp Halsmann assassinara seu pai, haveria,
em todo caso, alguns fundamentos para introduzir o complexo de Édipo, a fim de fornecer um motivo
para um ato de outro modo inexplicável. Visto que nenhuma prova desse tipo foi aduzida, amenção do
complexo de Édipo possui um efeito desorientador; é, na melhor das hipóteses, ociosa. Discordâncias
como as que se revelou existirem pela investigação na família de Halsmann entre o pai e o filho são
inteiramente inapropriadas para fornecer uma base sobre a qual presumir no filho um mau
relacionamento com o pai. Mesmo que fosse de outra maneira, seríamos obrigados a dizer que há uma
grande distância entre isso e a causação de tal feito. Precisamente por estar sempre presente, o
complexo de Édipo não é apropriado para fornecer uma decisão sobre a questão da culpa. A situação
considerada por uma anedota bem conhecida poderia ter sido facilmente apresentada. Houve um roubo
com arrombamento. Um homem que tinha um pé-de-cabra entre suas posses foi julgado culpado do
crime. Depois que o veredicto foi pronunciado e que lhe perguntaram se tinha algo a dizer, implorou que
fosse sentenciado por adultério ao mesmo tempo, já que carregava o instrumento consigo também para
isso.
No grande romance de Dostoievski, Os Irmãos Karamassovi, a situação edipiana se situa no
ponto focal de interesse. O velho Karamassovi fez-se detestar pelos filhos através de uma opressão
cruel; aos olhos de um deles é, além disso, um poderoso rival quanto à mulher que deseja. Esse filho,
Dimitri, não faz segredo de sua intenção de vingar-se do pai pela força. É, portanto, natural que, depois
de o pai ter sido assassinado e roubado, ele seja acusado como seu homicida e, apesar de todos os seus
protestos de inocência, condenado. Contudo, Dimitri é inocente; foi outro irmão seu quem cometeu o ato.
Uma frase que se tornou famosa ocorre durante a cena do julgamento nesse romance: ‘A psicologia é
uma faca de dois gumes’.
O Parecer da Faculdade de Medicina de Innsbruck parece inclinado a atribuir um ‘efetivo’
complexo de Édipo a Philipp Halsmann, mas se abstém de definir a medida dessa efetividade, visto que,
sob a pressão da acusação, as condições necessárias para uma ‘exposição irrestrita’ por parte de Philipp
Halsmann não foram atendidas. Quando a Faculdade prossegue recusando, mesmo ‘na suposição de o
acusado ser culpado, procurar a raiz do ato num complexo de Édipo’, estão levando sua negação longe
demais, sem necessidade alguma.
No mesmo Parecer, deparamo-nos com uma contradição que de modo algum é sem significação.
A possível influência do choque emocional sobreo distúrbio da memória com referência a impressões
antes e durante a ocasião decisiva é minimizada ao extremo, em minha opinião injustamente. As
suposições quanto a um estado mental excepcional ou de doença mental são decisivamente rejeitadas,
mas a explicação de uma ‘repressão’ ter ocorrido em Philipp Halsmann após o ato é prontamente
admitida. Devo dizer, contudo, que uma repressão desse tipo, a cair do céu sobre um adulto que não
indica neurose grave - a repressão de uma ação que certamente seria mais importante do que quaisquer
pormenores discutíveis de distância e a passagem do tempo, e que ocorre num estado normal ou num
estado alterado apenas pela fadiga física -, seria uma raridade de primeira ordem.
INTRODUÇÃO AO NÚMERO ESPECIAL DE PSICOPATOLOGIA DE THE MEDICAL REVIEW
OF REVIEWS(1930)
O Dr. Feigenbaum pediu-me para escrever algumas palavras para [um número] da Revista de
que é o responsável e aproveito a oportunidade para desejar o melhor êxito a seu empreendimento.
Freqüentemente escuto que a psicanálise é muito popular nos Estados Unidos e que aí não se
defronta com a mesma obstinada resistência que na Europa. Minha satisfação por isso, contudo, é
turbada por diversas circunstâncias. Parece-me que a popularidade do nome da psicanálise nos Estados
Unidos não significa uma atitude amistosa para com a coisa em si, nem qualquer conhecimento
especialmente amplo ou profundo dela. Como prova do primeiro fato posso apontar que, embora apoio
financeiro possa ser fácil e abundantemente conseguido para toda espécie de empresas científicas e
pseudocientíficas, nunca alcançamos êxito em obter respaldo para nossas instituições psicanalíticas.
Tampouco é difícil encontrar provas para minha segunda afirmação. Embora os Estados Unidos possuam
diversos analistas excelentes e, no Dr. A. A. Brill, pelo menos uma autoridade, as contribuições à nossa
ciência provindas desse imenso país são exíguas e pouco apresentam que seja novo. Psiquiatras e
neurologistas fazem uso freqüente da psicanálise como método terapêutico, mas, via de regra, mostram
pouco interesse por seus problemas científicos e sua significação cultural. Particularmente com
freqüência encontramos nos médicos e autores americanos uma familiaridade muito insuficiente com a
psicanálise, de modo que só conhecem seus termos e algumas palavras de engodo - embora isso não os
abale na certeza de seu discernimento. E esses mesmos homens misturam a psicanálise a outros
sistemas de pensamento, que dela podem ter-se desenvolvido, mas que com ela são atualmente
incompatíveis. Ou, então, fazem uma miscelânea com a psicanálise e outros elementos, e citam esse
procedimento comoprova de sua broad-mindedness (tolerância), ao passo que isso só prova sua lack of
judgement (falta de critério)
Muitos desses males que mencionei com pesar indubitavelmente se originam do fato de existir
nos Estados Unidos uma tendência geral a abreviar o estudo e a preparação e a passar tão rápido
quanto possível à aplicação prática. Há uma preferência também a estudar um tema como a psicanálise
não a partir das fontes originais, mas de relatos de segunda mão e, com freqüência, inferiores. A
perfeição está fadada a sofrer com isso.
É de esperar que trabalhos do tipo que o Dr. Feigenbaum pretende publicar em sua Revista
sejam um poderoso incentivo ao interesse pela psicanálise nos Estados Unidos.
INTRODUÇÃO A ELEMENTOS DE PSICANÁLISE, DE EDOARDO WEISS(1931[1930])
O autor destas conferências, meu amigo e aluno, Dr. Edoardo Weiss, expressou o desejo de que
eu lançasse sua obra com algumas palavras de recomendação. Assim fazendo, estou plenamente ciente
de que tal recomendação é supérflua. A obra fala por si mesma. Todos que sabem apreciar a seriedade
de um esforço científico, valorizar a honestidade de um investigador que não procura diminuir ou negar
as dificuldades, e auferir prazer da perícia de um mestre que traz luz à escuridão e ordem ao caos,
através de sua exposição, deverão formar uma alta estima deste livro e partilhar de minha esperança de
que ele desperte, entre os círculos cultos e eruditos da Itália, um interesse duradouro pela jovem ciência
da psicanálise.
Sigm. Freud
PREFÁCIO A TEN YEARS OF THE BERLIN PSYCHO-ANALYTIC INSTITUTE (1930)
As páginas seguintes descrevem a fundação e as realizações do Instituto Psicanalítico de Berlim,
ao qual estão destinadas três importantes funções dentro do movimento psicanalítico. Em primeiro lugar,
ele se esforça por tornar nossa terapia acessível à grande multidão que padece com suas neuroses não
menos do que os abastados, mas não está em condições de enfrentar o custo de seu tratamento. Em
segundo, procura fornecer um centro em que a análise possa ser teoricamente ensinada e no qual a
experiência de analistas mais antigos possa ser transmitida a alunos ansiosos por aprender. Por fim, visa
a aperfeiçoar nosso conhecimento das doenças mentais e nossa técnica terapêutica, por sua aplicação e
verificação sob novas condições.
Um Instituto dessa espécie era indispensável, mas teríamos esperado em vão pela assistência
do Estado ou pelo interesse da Universidade em sua fundação. Aqui, foram a energia e o auto-sacrifício
de um analista, individualmente, que tomaram a iniciativa. Dez anos atrás, o Dr. Max Eitingon, hoje
Presidente da Associação Psicanalítica Internacional, criou um Instituto como este com seus próprios
recursos, e desde então o manteve e dirigiu por seus próprios esforços. Esse Relatório sobre a primeira
década do Instituto de Berlim constitui um tributo a seu criador e diretor - uma tentativa de lhe prestar
agradecimentos públicos. Todos aqueles que, em qualquer sentido, partilham da psicanálise, se unirão
em assim agradecer-lhe.
PREFÁCIO A GENERAL THEORY OF THE NEUROSES ON A PSYCHO-ANALYTIC BASIS, DE
HERMANN NUNBERG, (1931[1931])
Este volume da autoria de Hermann Nunberg contém a mais completa e conscienciosa
apresentação de uma teoria psicanalítica dos processos neuróticos que atualmente possuímos. Quem
quer que esteja ansioso por ter simplificados e reduzidos os problemas pertinentes, dificilmente achará
satisfação nesta obra, mas todos os que preferirem o pensamento científico e puderem apreciar como
mérito o fato de a especulação nunca abandonar a linha diretriz da experiência, bem como todos os que
puderem fruir da bela diversidade dos acontecimentos mentais, valorizarão esta obra e a estudarão
assiduamente.
VIENA, outubro de 1931.
CARTA AO BURGOMESTRE DE PRIBOR (1931)
Apresento meus agradecimentos ao Burgomestre da cidade de Príbor-Freiberg, aos
organizadores desta homenagem e a todos aqueles que a estão assistindo, pela honra que me prestaram
em assinalar a casa em que nasci com esta plaqueta comemorativa, saída das mãos de um artista - e
isso no decorrer de minha vida e enquanto o mundo ao redor de nós ainda não chegou a um acordo em
sua estimativa a respeito de minha obra.
Deixei Freiberg com a idade de três anos e visitei-a quando contava dezesseis, durante minhas
férias escolares, como hóspede da família Fluss, nunca mais a ela retornando. Desde essa época, muita
coisa me aconteceu; meus trabalhos foram muitos, experimentei algum sofrimento e também felicidade, e
tive minha quota de sucesso - a mistura comum da vida humana. Aos setenta e cinco anos de idade, não
me é fácil colocar-me de novo naqueles tempos; de suas ricas experiências, apenas algumas relíquias
permanecem em minha lembrança. Mas de uma coisa posso estar certo: profundamente enterrada dentro
de mim ainda vive a criança feliz de Freiberg, o primeiro filho de uma mãe ainda moça, que recebeu suas
primeiras e indeléveis impressões deste ar e deste solo. Assim, seja-me permitido terminar minhas
palavras de agradecimento por um voto sincero pela felicidade deste lugar e daqueles que nele vivem.
Novas conferências introdutórias sobre
psicanálise e outros trabalhos
VOLUME XXII
(1932-1936)
Dr. Sigmund Freud
NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS SOBRE PSICANÁLISE (1933 [1932])
NOTA DO EDITOR INGLÊS
NEUE FOLGE DER VORLESUNGEN ZUR EINFÜHRUNG IN DIE PSYCHOANALYSE
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1933
Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 255 págs.
1934
G.S., 12, 149-345.
1940
G.W., 15, iv + 206 págs.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
New Introductory Lectures on Psycho-Analysis
1933
Londres: Hogarth Press e Institute of Psycho-Analysis.xi + 240 págs. (Tr. de W. J.
H. Sprott)
1933
Nova Iorque: Norton. xi + 257 págs. (Reimpressão da anterior.)
A presente tradução inglesa é uma nova tradução feita por James Strachey.
Partes das Conferências XXX e XXXI do texto original foram incluídas em Almanach 1933 (9-30 e
35-58); e parte da Conferência XXXIV, em Psychoanal. Bewegung, 4 (novembro-dezembro, 1932), 48197. A Conferência XXX, na tradução inglesa de 1933, foi incluída em Devereux, Psychoanalysis and the
Occult (Nova Iorque, 1953), 91-109. Um resumo da parte inicial da Conferência XXX, escrito pelo próprio
Freud, apareceu numa tradução húngara na edição de Magyar Hirlap, Budapeste, de 25 de dezembro de
1932 (Freud 1932d).
Sabemos, de Ernest Jones, (1957, 186-7), que, embora o volume levasse a data ‘1933’ no seu
frontispício, ele foi realmente publicado em 6 de dezembro de 1932 - com isso repetindo a história de A
Interpretação de Sonhos (ver [1]).
No início de 1932, a situação financeira do quadro editorial psicanalítico (a‘Verlag’) estava difícil,
e Freud teve a idéia de vir em seu auxílio com uma nova série (‘Neue Folge’, no título em alemão) de
Conferências Introdutórias. A primeira e a última conferências estavam prontas no fim de maio, e o livro
todo estava completo em fins de agosto.
Estas conferências diferem da série original em diversos aspectos, e não apenas no fato de que
jamais se cogitou em pronunciá-las. Conforme assinala Freud, no prefácio que ele mesmo escreveu, elas
não possuem vida própria; são, na sua essência, suplementos. Aspecto especialmente digno de nota
nestas conferências, porém, é a forma pela qual diferem, nas suas características, umas das outras. A
primeira conferência, sobre sonhos, não é muito mais do que um resumo da seção sobre sonhos da série
anterior. Por sua vez a terceira, a quarta e a quinta conferências (sobre a estrutura da mente, sobre a
ansiedade e a teoria dos instintos, e sobre a psicologia feminina) introduzem material e teorias
inteiramente novos e, ao menos no que respeita à terceira e à quarta conferências, aprofundam-se em
discussões metapsicológicas e teóricas de uma dificuldade que havia sido diligentemente evitada, quinze
anos antes. As três conferências restantes - a segunda e as duas últimas - abordam conjuntamente
assuntos diversos, apenas indiretamente relacionados à psicanálise; e os abordam, acima de tudo,
segundo o que se poderia quase descrever como uma forma popular. Isto não sugere que sejam
destituídas de interesse - longe disso -, mas exigem espécie e grau de atenção muito diferentes, por
parte do leitor, em comparação com as demais conferências. Se o leitor desejar ouvir o que Freud pensa
sobre telepatia, educação, religião e comunismo, ou se deseja conhecer os últimos pontos de vista de
Freud sobre o superego, sobre a ansiedade, sobre o instinto de morte e sobre a fase pré-edipiana das
meninas, certamente encontrará abundante material com que se ocupar nestas conferências.
PREFÁCIO
Minhas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise foram proferidas durante os dois períodos
de inverno de 1915-16 e 1916-17, em uma sala de conferências da Clínica Psiquiátrica de Viena, perante
ouvintes provenientes de todas as faculdades da Universidade. As conferências da primeira metade
foram improvisadas, sendo providenciada a sua redação logo após; as das segunda metade foram
delineadas num esboço feito durante as férias do verão desse intervalo, em Salzburg, e lidas palavra por
palavra no inverno seguinte. Naquela época eu ainda tinha o dom de uma memória fonográfica.
Estas novas conferências, diferentemente das anteriores, nunca foram proferidas. Minha idade,
nesse ínterim, havia-me liberado da obrigação de expressar minha condição de membro da Universidade
(que, de qualquer modo, era uma condição periférica) fazendo conferências; e uma operação cirúrgica
havia-me impossibilitado de falar em público. Se, portanto, mais uma vez tomo o meu lugar na sala de
conferências, durante os comentários que se seguem, é somente por um artifício de imaginação; isto
pode ajudar-me a não me esquecer de levar em conta o leitor, à medida que me aprofundar mais em meu
tema.
As novas conferências de modo algum pretendem ocupar o lugar das anteriores. Em nenhum
sentido elas formam uma entidade independente, com a expectativa de encontrar um círculo de leitores
apenas seus; são continuações e suplementos que, em relação à série anterior, se dividem em três
grupos. Um primeiro grupo contém novas abordagens de assuntos que já haviam sido discutidos, há
quinze anos, mas que, em conseqüência de um aprofundamento de nosso conhecimento e de uma
modificação em nossos pontos de vista, requerem atualmente uma exposição diferente, ou seja, revisões
críticas. Os dois outros grupos contêm o que na verdade são ampliações, pois tratam de coisas que não
existiam na psicanálise à época das primeiras conferências, ou que estavam muito pouco em evidência
para justificar que constituíssem título de capítulo. É inevitável, mas não é de se lamentar, que algumas
das novas conferências reúnam características de mais de um desses grupos.
Também assinalei a dependência destas novas conferências em relação às Conferências
Introdutórias, dando-lhes uma numeração contínua com a destas últimas. A primeira conferência deste
volume, por conseguinte, tem o nº XXIX. Assim como as suas predecessoras, oferecem ao analista
profissional pouca coisa nova; são endereçadas à multidão de pessoas instruídas às quais talvez
possamos atribuir um interesse benévolo, ainda que cauteloso, pelas características e descobertas da
jovem ciência. Também desta vez, meu objetivo principal foi o de não fazer concessões que visassem a
dar uma aparência de que as coisas sejam simples, completas, acabadas, procurei não camuflar
problemas e não negar a existência de lacunas e de incertezas. Em nenhum campo de trabalho científico
seria necessário proclamar tais intenções modestas. São universalmente consideradas evidentes por si
mesmas; o público não espera nada diferente. Nenhum leitor de um artigo sobre astronomia se sentirá
desapontado e desdenhoso em relação à ciência quando lhe são mostradas aquelas fronteiras em que
nosso conhecimento do universo se transforma em nebulosidade. Somente na psicologia isto é diferente.
Nesta, a inabilidade constitucional da humanidade para a investigação científica surge inteiramente à
mostra. O que as pessoas parecem exigir da psicologia não é o progresso no conhecimento, mas
satisfações de algum outro tipo; todo problema não resolvido, toda incerteza reconhecida é transformada
em vitupério contra ela.
Todo aquele que zela pela ciência da vida mental deve aceitar também essas injustiças que a
acompanham.
FREUD
VIENA, verão de 1932.
CONFERÊNCIA XXIX
REVISÃO DA TEORIA DOS SONHOS
SENHORAS E SENHORES:
Depois de um intervalo de mais de quinze anos, se eu os reuni novamente para discutir com os
senhores quais novidades, e quais melhoramentos, talvez, o tempo intercorrente possa ter introduzido na
psicanálise, é correto e adequado, sob mais de um ponto de vista, que devamos voltar nossa atenção
primeiramente para a posição que ocupa a teoria dos sonhos. Esta ocupa um lugar especial na história
da psicanálise e assinala um ponto decisivo; foi com ela que a psicanálise progrediu de método
psicoterapêutico para psicologia profunda. Também, desde aí, a teoria dos sonhos permaneceu o que é
mais característico e peculiar na jovem ciência, algo em relação ao qual não há similar no restante de
nosso conhecimento, uma área de território novo que foi reavido das crenças populares e do misticismo.
O caráter exótico das asserções que ela foi obrigada a apresentar, fê-la desempenhar o papel de senha,
cujo uso decidiu quem poderia tornar-se seguidor da psicanálise e a quem ela permaneceria para sempre
incompreensível. Eu próprio considerei a teoria dos sonhos âncora de salvação durante aqueles tempos
duros nos quais os fatos não-reconhecidos das neuroses costumavam confundir meu julgamento
inexperiente. Sempre que eu começava a ter dúvidas com referência à correção de minhas conclusões
hesitantes, a transformação exitosa de um sonho absurdo e intrincado em processo mental inteligível da
pessoa que teve o sonho vinha renovar minha confiança de estar no caminho certo.
Portanto, é de especial interesse para nós, no caso particular da teoria dos sonhos, por um lado,
seguir as vicissitudes por que passou a psicanálise durante este intervalo, e, por outro lado, verificar que
progressos fez para ser compreendida e valorizada pelo mundo contemporâneo. Posso dizer-lhes desde
logo que os senhores ficarão desapontados em ambos esses sentidos.
Examinemos os volumes da Internationale Zeitschrift für (ärztliche) Psychoanalyse [Revista
Internacional de Psicanálise (Médica)], na qual, desde 1933, os escritos de peso em nossa área de
trabalho têm sido reunidos. Nos volumes iniciais, os senhores encontrarão um título de seção que se
repete, ‘Sobre a Interpretação de Sonhos’, contendo numerosas contribuições sobre diferentes pontos da
teoria dos sonhos. No entanto, quanto mais prosseguirem cronologicamente nesse exame, mais raras se
tornam essas contribuições e, por fim, o título de seção desaparece completamente. Os analistas fazem
como se não tivessem nada mais a dizer acerca de sonhos, como se nada mais houvesse a ser
acrescentado à teoria dos sonhos. Se os senhores, contudo, perguntarem quanto da interpretação de
sonhos foi aceito pelos intrusos - pelos muitos psiquiatras e psicoterapeutas que aquecem sua panela de
sopa em nosso fogo (aliás, sem serem muito agradecidos à nossa hospitalidade), por aqueles que são
catalogados como pessoas cultas, que têm o hábito de assimilar os achados mais surpreendentes da
ciência, pelos literatos e pelo público em geral -, a resposta dá poucos motivos para se ficar satisfeito.
Algumas fórmulas passaram a ser do conhecimento geral, entre elas algumas que nós nunca
apresentamos - tal como a tese de que todos os sonhos são de natureza sexual -, mas coisas realmente
importantes, como a fundamental diferença entre o conteúdo manifesto dos sonhos e os pensamentos
oníricos latentes, a percepção de que a função de realização de desejos dos sonhos não é contradita
pelos sonhos de ansiedade, a impossibilidade de interpretar um sonho a menos que se tenha à
disposição as respectivas associações do sonhador, acima de tudo a descoberta de que o essencial nos
sonhos é o processo da elaboração onírica - tudo isso ainda parece quase tão alheio ao conhecimento da
maioria das pessoas, como o era há trinta anos. Estou em condições de dizer isto, pois, no decorrer
desse período, tenho recebido inumeráveis cartas cujos autores apresentam seus sonhos para
interpretação, ou pedem informações acerca da natureza dos sonhos, e declaram que leram o meu

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