LER | Número 2| Abri, 2011 - iiLer - PUC-Rio

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LER | Número 2| Abri, 2011 - iiLer - PUC-Rio
Corpo editorial
Coordenadores Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio
Eliana Yunes
Luiz Antonio Coelho
Editor
Leonardo Pinto de Almeida — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Editoras assistentes
Renata Nakano — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Luciana Claro França — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Comissão executiva
Ricardo Oiticica — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Design gráfico
Luciana Claro França — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Romulo Matteoni — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Estagiária
Laís Dias — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Conselho editorial Brasil
Alberto Cipiniuk — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
André Moura — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Benedito Antunes — Universidade Estadual Paulista (UNESP)
César Pessoa Pimentel — Faculdade de Ciências Médicas e Paramédicas Fluminense (SEFLU)
Daniel Coelho — Universidade Federal do Sergipe (UFS)
Evando B. Nascimento — Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Goiandira O. de Camargo ­— Universidade Federal de Goiás (UFG)
Helena Calone — Secretaria de Cultura do Acre
Marcelo Santana Ferreira — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Marly Amarilha — Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Patrícia Constâncio — Prefeitura Municipal de Blumenau/AMEL
Patrícia Kátia Costa Pina — Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Paula Glenadel Leal — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Ricardo Oiticica — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Ricardo Salztrager — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Rogério da Silva Lima — Universidade de Brasília (UnB)
Rosana Kohl Bines — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Rui de Oliveira — Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
Santinho Ferreira de Souza — Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Sylvia Maria Trusen — Universidade Federal do Pará (UFPA)
Valéria da Silva Medeiros — Universidade Federal do Tocantins (UFT)
Vera Teixeira de Aguiar — Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)
Conselho editorial estrangeiro
Cecília Avenatti — Pontifícia Universidade Católica da Argentina (UCA – Buenos Aires)
David Acevedo Santiago — Secretaria de Educación Pública (México)
Ernesto Abad — Universidad de La Laguna (Canarias)
Fernando Avendaño — Universidad Nacional de Rosário (UNR – Rosário)
Jacques Leenhardt — L’École des Hautes Études en Sciences (EHESS – França)
Jorge Larrosa — Universidat de Barcelona (UB – Espanha)
Nicolás Extremeva Tapia — Universidad de Granada (Espanha)
Sumário
Editorial
Leitura como relação
7
Leonardo P. Almeida
Relato de experiência profissional
Projeto multiplicadores de leitura na escola pública
13
Elize Pires
Relatos de pesquisa
Cultura visual e educação: uma experiência interdisciplinar
21
Cristina Portugal e Rita Maria de Souza Couto
Estudo teórico
O caráter dialético e dialógico nas provas de redação do Enem
Graça Oliveira
Tradición y novedades en la literatura para niños en Cuba
86
Marcelo Buckowski
Monteiro Lobato e o leitor contemporâneo: do livro ao HQ
72
Maria Cristina Cardoso Ribas
De acordo com o diabo: uma paródia sobre Fausto, de Goethe
58
Mauro Cesar Bartolomeu & Mauri Cruz Previde
Trocas na margem: quando navegar é (im)preciso
44
Mirta Yáñez
A ciência crua de Augusto dos Anjos
37
Patrícia Pina e Heldina Pinto Fagundes
101
Utopias ou Heterotopias? A saída é se divertir na Casa da Mãe Joana
Augusto César de Oliveira
Analfabetismo e vergonha: em questão o filme “O Leitor”
123
135
Teresa Cristina Carreteiro, Paulo Fernando Oliveira dos Santos e
Bruna de Oliveira Santos Pinto
Aprender a leer, leer para aprender
Roger Chartier
La señora Ramsay y el cristal (Virgina Woolf – Gilles Deleuze)
163
Juan Carlos Gorlier
O corpo-texto: sobre a convergência entre leitura e biomedicina
144
180
César Pessoa Pimentel
Resenha
Reading the brain
Gislaine Machado Jerônimo
191
Leitura como relação
Leonardo P. Almeida1
Essências e poderes normalmente tangenciam os objetos analisados pelos intelectuais. A luta pelo
poder que exerce os livros é tão clara nos dias de hoje quanto se querem escondidas e superadas
essas questões.
A presente revista não está alheia às forças que territorializam os objetos científicos, principalmente, o seu: a leitura. No entanto, o olhar crítico que se quer interdisciplinar, demonstrado em nossa
missão, assinala a característica principal da leitura que é o de pôr em relação.
A leitura põe em relação os homens, as coisas, as diversas épocas e culturas, e os pensamentos. A
partir das críticas levantadas por pensadores do século passado que retomam a historicidade do
homem como algo constitutivo do mesmo, podemos apontar que os homens se inventam e reinventam no tecido sócio-histórico em que circulam e que principalmente não existem naturezas, essências, mas invenções e relações.
Não havendo essências, mas naturalizações forçadas por mecanismos hegemônicos que direcionam
nossa apreensão do mundo, o homem se encontra na tarefa contínua de escolher e com isso inventar e resistir às direções impostas. Essa resistência que é um pôr em relação com o mundo pode ser
exercida de várias maneiras. E uma delas é a leitura.
A leitura é um campo imanente onde somos levados à experiência de mudanças cognitivas e afetivas.
Somos afetados pelo que lemos. Somos modificados e modificamos o objeto obra constantemente
em nossa produção de sentido. Assim, não existe de antemão um leitor e uma obra, mas os dois são
criados e recriados no pôr em relação que a leitura proporciona.
Este número, permeado de modos de ler o mundo e consequentemente de se ler enquanto leitor
desse mundo, será apresentado por mim tateando nosso problema-objeto pelo viés da similitude imaginária que a leitura desses artigos me suscitou.
No entanto, antes de apresentar a minha leitura. Gostaria de render uma homenagem. Uma das funções da escrita alfabética grega era a produção de Kléos (da glória dos Heróis). Escrevia-se para render
homenagem, para pôr em relação os feitos de heróis com a memória do povo. Uso essa imagem para
contar-lhes um triste fato que foi sentido pela equipe de nossa revista. A morte é sempre algo que nos
choca, que nos põe em relação a algo inexplicável. A escrita foi inventada na luta incansável do homem
contra a morte, seja ela física ou imaginária. Render uma homenagem é pôr em relação à vida que permanece, mesmo não existindo mais. Paradoxo incansável da linguagem. A leitura tem esse poder de
dar vida aos pensamentos que estão inócuos no livro até serem tomados pelo leitor desatento ou não.
Esse longo preâmbulo nos serve para comunicarmos a morte de um grande intelectual, estudioso dos
livros infantis, que nos deixou um artigo no primeiro número de nossa revista para ainda podermos
nos pôr em relação com seus pensamentos. À Lawrence Sipe rendemos uma homenagem, seguida de
um silêncio simbólico.
1. Editor da Leitura em Revista e professor adjunto do curso de psicologia da SFC/UFF.
Após nossa pequena homenagem, gostaria de retomar minha leitura sobre os artigos contidos nesse
número. A ordenação que se segue — função de captura da leitura crítica exercida e sustentada pela
tarefa do editor — disponibiliza os artigos, resenhas e relatos de pesquisa e de experiência profissional não por sua funcionalidade e estrutura, mas pelas similitudes temáticas que demonstram.
Comecemos assim a tarefa propriamente do editor, a de pôr em relação a sua leitura com uma ideia
de ordem — real ou imaginária — para apresentar aos leitores a estruturação do número publicado. Neste texto, ordenamos as seções da seguinte forma: relato de pesquisa, relato de experiência
profissional, estudos teóricos e resenha. Essa ordenação segue o fio condutor das temáticas apresentadas pelo conjunto de textos.
Desse modo, organizei o presente número por quatro conjuntos amplos de temas que atravessam os
textos aprovados pelo comitê editorial da revista: leitura e educação, leituras literárias, leituras em
diferentes linguagens, e leitura e corpo.
Em relação à temática leitura e educação, estão associados três textos: um relato de experiência
profissional, um relato de pesquisa e um estudo teórico. O relato de experiência profissional “Projeto multiplicadores de leitura na escola pública”, escrito por Elize Huegel Pires, apresenta um projeto
desenvolvido no ano de 2008, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Anita Garibaldi, em Novo
Hamburgo que teve o intuito de promover a formação de alunos como multiplicadores de leitura.
O relato de pesquisa é o texto “Cultura visual e educação: uma experiência interdisciplinar” de Cristina Portugal e da Professora Rita Couto, ambas da PUC-Rio. Partindo de uma pesquisa interdisciplinar que associa educação e design, as autoras analisam as possíveis relações entre cultura visual
e educação com o objetivo de mostrar o desenvolvimento do jogo Multi-trilhas, material didático
derivado de sua pesquisa.
Já o terceiro texto que analisa implicações educacionais para a leitura é o artigo “O caráter dialético
e dialógico nas provas de redação do ENEM” de Maria das Graças de Oliveira Costa Ribeiro. Esse artigo abre a seção estudos teóricos. O texto analisa as propostas de redação do Enem dos anos 2006,
2007, 2008 e 2009 sob a luz das perspectivas dialéticas e dialógicas. A análise das redações, feita
pela autora sob a perspectiva tratada, conclui que as temáticas das redações do período circunscrito
exigiu a manifestação de competências e habilidades leitoras dos candidatos.
Sob a égide de leituras literárias, estão os textos de Mirta Yãnez, Maria Cristina Cardoso Ribas e
Mauro César Bartolomeu e Mauri Cruz Previde. O primeiro texto intitulado “Tradición y novedades
en la literatura para niños en Cuba” da professora Mirta Yãnez da Universidade de Havana, Cuba,
apresenta um pouco da literatura infantil cubana. Para tanto, a autora faz um panorama histórico da
literatura infantil em Cuba, mostrando suas tradições e peculiaridades marcantes.
A professora Maria Cristina Cardoso Ribas da PUC-Rio e da UERJ, em “Trocas na margem: quando
navegar é (im)preciso”, traz uma bela leitura de um conto de Guimarães Rosa. Nesse artigo, a autora
toma o conto de Rosa “A terceira margem do Rio” para propor uma análise sobre as pistas de leitura e o substrato teórico que atravessa o tecido textual rosiano. Através disso, ela se debruça sobre
questões relativas à margem, à minoria, à dependência e à dívida.
Já o texto de Mauro César Bartolomeu e Mauri Cruz Previde, intitulado “A ciência crua de Augusto
dos Anjos”, é uma análise crítica do livro Eu de Angusto dos Anjos. Os autores fazem um percurso de
releitura crítica do livro do poeta e de seus principais críticos, a partir de uma análise hermenêutica,
com o intuito de restabelecer o seu caráter cientificista.
Na temática leituras em diferentes linguagens, incluímos artigos que versam sobre paródia
televisiva, histórias em quadrinhos, cinema, história da leitura e de reescrita de texto literária.
Começamos assim esse grupo com o texto de Marcelo Buckowski sobre o divertido episódio
do programa de TV Chapolin Colorado, escrito por Roberto Bolaños, que parodia o Fausto de
Goethe. Nesse artigo, intitulado “De acordo com o diabo: uma paródia sobre Fausto de Goethe”, o autor faz uma boa apresentação da figura histórica de Fausto e da apropriação feita por
escritores da mesma. Sua análise se apresenta como uma leitura do episódio citado sob a luz
da noção de paródia.
O artigo “Monteiro Lobato e o leitor contemporâneo: do livro à HQ” da professora Patrícia
Kátia Costa Pina da UNEB faz uma ótima reflexão sobre a leitura como ação lúdica, discutindo sobre questões relativas aos conceitos de leitor histórico e leitor implícito. Ela analisa as
relações tecidas entre a leitura e a liberdade. Partindo de sua análise sobre a leitura, a autora
examina a adaptação do livro Dom Quixote das crianças de Monteiro Lobato para o HQ, mostrando sua estruturação e suas repercussões para os leitores contemporâneos.
O texto “Utopias e Heterotopias? A saída é divertir-se na Casa da Mãe Joana” do professor Augusto
César de Oliveira da UFF faz uma pertinente leitura da contemporaneidade, usando como foco e
instrumento ao mesmo tempo o filme de Hugo Carvana A Casa da Mãe Joana. O autor lê esse filme
como um holograma da sociedade atual, atravessada pelo suposto “fim das utopias”.
Em “Analfabetismo e vergonha: em questão o filme ‘o leitor’” de Teresa Cristina Carreteiro, professora da UFF, Paulo Fernando Oliveira dos Santos, professor da UNICAM, e Bruna de Oliveira Santos
Pinto, os temas do desejo, da leitura, da aprendizagem, do analfabetismo e da vergonha se entrelaçam em uma reflexão sobre as relações tecidas entre os personagens Michael e Hanna no filme “O
leitor” de Stephen Daldry. A partir de uma reflexão que mescla as perspectivas psicossociológica e
psicanalítica, os autores destacaram as temáticas que giram em torno da leitura, do analfabetismo e
da vergonha no filme supracitado.
Já o texto de Chartier, intitulado “Aprender a Leer, leer para aprender”, faz uma análise histórica
sobre a relação entre a aprendizagem e a leitura. Esse artigo foi originalmente uma palestra dada na
Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio em 2007. Chartier nos propõe um percurso reflexivo sobre as
relações entre leitura e conhecimento, mostrando as possiblidades da aprendizagem sem livros e as
imagens relativas aos perigos da leitura, desde o século XVI.
O jogo entre leitura e escrita pode ser fruto direto de um atravessamento nas nuanças da palavra.
Vemos que a escrita move a leitura, mas a leitura pode muitas vezes tornar-se escrita. Uma escrita
que não seria derivada do uso corriqueiro dos padrões da linguagem, mas pela paixão que a leitura suscitou nesse que é levado a escrever. Bom, essa é a impressão que temos ao ler “La señora
Ramsay y el cristal (Virgínia Woolf — Gilles Deleuze)” do professor Juan Carlos Gorlier. Esse texto
por sua leveza e fluidez nos leva a um passeio nas searas das possíveis conjunções entre filosofia,
literatura e leitura. O texto parte de um reescritura como jogo lúdico sobre o texto de Woolf para
depois ser permeado, entrelaçado, pelos tentáculos conceituais da obra do filósofo Gilles Deleuze.
Depois do texto de Juan Carlos Gorlier, entramos na temática leitura e corpo que circunscrevem o
artigo de César Pessoa Pimentel e a resenha de Gislaine Machado Jerônimo. O artigo do professor
César Pessoal Pimentel, “O corpo-texto: sobre a convergência entre leitura e biomedicina”, versa
sobre o entendimento do corpo como uma espécie de texto. A escrita é quando as palavras ganham
corpo e a leitura é quando esse corpo vem à luz por uma espécie de ressuscitação. E o que acontece
quando o corpo se torna texto? Esse artigo faz uma reflexão crítica sobre a construção histórica do
corpo-texto, a partir da equiparação do corpo à linguagem, mostrando às diversas leituras que a
biomedicina fez desse texto chamado corpo.
Seguindo esse mesmo fio está a resenha de Gislaine Machado Jerônimo sobre o livro “Reading the
brain: the Science and evolution of a human invention” de Dehaene. Ela indica em sua resenha como
o professor do Collège de France, Stanislas Dehaene mostra o processo de leitura a partir de estudos
sobre as bases neurais e as funções cognitivas.
Assim, chegamos ao fim deste editorial, para que os leitores usufruam dessa relação tão apaixonan­te
que é a leitura e a reflexão.
Desejo a todos uma boa recepção!
Projeto multiplicadores de leitura na escola pública
Project reading multiplying in public school
Proyecto multiplicadores de la lectura en la escuela pública
Elize Pires1
Resumo
O projeto Multiplicadores de Leitura foi desenvolvido durante o ano de 2008 na Escola Municipal de Ensino Fundamental Anita Garibaldi, em Novo Hamburgo, tendo como participantes alunos da quinta série do ensino fundamental.
A proposta teve como objetivo principal uma ação integradora da disciplina de Língua Portuguesa com outras áreas do
conhecimento e ferramentas tecnológicas. Os alunos foram motivados a se transformarem em multiplicadores da leitura
através do estudo de clássicos da literatura infanto-juvenil ocidentais. Após, elaboraram um conto infantil a partir de
propostas pré-estabelecidas. O processo de escrita e reescrita evoluiu para além da sala de aula, utilizando o laboratório
de informática educativa como espaço de criação e transformação do livro de papel em livro virtual. Ao final, cada grupo
montou uma hora do conto para alunos em séries antecedentes à quinta, utilizando o livro de papel e os recursos teatrais confeccionados ou o livro virtual como ferramenta.
Palavras-chave: projeto, leitura, interdisciplinaridade.
Abstract
The project Multiplicadores de Leitura was developed during the year of 2008 at the school Escola Municipal de Ensino Fundamental Anita Garibaldi, in Novo Hamburgo, having as participants students of the fifth grade of elementary
school. The project’s main objective was an integrative action of Portuguese Language class and other knowledge areas
and technologic tools. The students were motivated to become multipliers of reading through the study of classics of
the occidental juvenile literature. Then, they elaborated an infant’s tale from predetermined proposals. The process of
writing and rewriting evolved beyond the classroom, going to the computer’s educative room where they could create
and transform the paper book to a virtual book. After that, each group was responsible for a reading time to younger
students, using the book and theatrical resources or using the virtual book.
Keywords: project, reading, interdisciplinarity.
Resumen
El proyecto Multiplicadores de la Lectura fue desenvolvido durante el año de 2008 en la escuela departamental de
enseñanza fundamental Anita Garibaldi, ubicada en Novo Hamburgo. Participaron alumnos del quinto nivel de enseñanza fundamental. La propuesta tuvo como objetivo principal una acción integradora de la asignatura de Lengua Portuguesa con otras áreas del conocimiento y incluso herramientas tecnológicas. Los alumnos fueron motivados a transformárse
en multiplicadores de la lectura a traves del estudio de los clásicos de la literatura occidental infantil y juvenil. Luego
después, los alumnos elaboraron un cuento infantil según las propuestas anteriormente establecidas. El proceso de
escribir y volver a escribir evoluyó para más allá de las clases, donde fue utilizado el laboratorio de informática educativa
como espacio de creación y transformación del libro de papel en libro virtual. Al final, los grupos montarón una hora
del cuento para los alumnos de los niveles antecessores del quinto, utilizando el libro de papel y los recursos teatrales
confeccionados o el libro virtual como herramienta.
Palabras clave: proyecto, lectura, interdiciplinaridade.
1. Mestranda na PUC-RS. Contato: [email protected].
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Apresentação
O projeto Multiplicadores de Leitura foi desenvolvido no ano de 2008 com alunos de 5ª série da
Escola Municipal de Ensino Fundamental Anita Garibaldi2. A disciplina de Língua Portuguesa foi a
responsável pela organização das ações, articulando saberes, em busca de uma formação integral.
A ideia surgiu a partir do tema proposto para ser desenvolvido em todas as turmas da escola: “Eu
posso viver em um mundo melhor!”. Pensamos em um mundo melhor através da descoberta da
literatura pelos adolescentes, ou seja, a literatura funcionando como instrumento de modificação
do nosso mundo. Para isso, cada jovem se transformou em um multiplicador de leitura. Trata-se,
principalmente, da preparação de textos, pelos alunos, para serem utilizados em horas do conto e
saraus poéticos para alunos menores de outras turmas da nossa escola.
Objetivos
• Despertar o prazer pela leitura e escrita a partir da produção de obras literárias pelos
adolescentes.
• Valorizar a produção textual como instrumento de comunicação.
• Aprimorar a leitura e a escrita.
• Proporcionar um ambiente de cultura literária aos jovens.
• Construir o conhecimento de forma interdisciplinar.
• Desenvolver a expressão oral.
• Caracterizar diferentes gêneros textuais.
• Reconhecer a intencionalidade de cada gênero textual.
• Apropriar-se do uso de ferramentas tecnológicas.
Justificativa
Pensando em uma perspectiva de ensino da língua portuguesa baseada na exploração da literatura
como uma forma de interferir na qualidade do mundo em que vivemos, surgiu o projeto Multiplicadores de Leitura como uma alternativa para desenvolver em adolescentes suas potencialidades
de leitura e escrita. Conforme texto distribuído pelo Programa Pró-Letramento, do Ministério da
Educação, de autoria de Antônio A. Gomes Batista,
[...] em momentos posteriores do Ensino Fundamental, a necessária capacidade de dominar o sistema
ortográfico pode ser associada à produção de textos escritos com função social bem definida [...] (BATISTA,
2007:49).
Dessa forma, o projeto procura aliar o aprimoramento da escrita a uma função social, ou seja, o
aluno escreve pensando em um futuro leitor, no caso, alunos menores da escola. A produção passa
a ter um sentido além da simples avaliação pela professora. O texto precisa cumprir a função a que
foi destinado, sendo aqui a de prender a atenção dos espectadores na faixa etária entre cinco e sete
anos ou outros que possamos atingir.
2. EMEF Anita Garibaldi, na rua Mundo Novo, 222, bairro Canudos, Novo Hamburgo/RS. Equipe responsável pelo projeto: Mari Ângela
Timm (diretora); Raquel Exenberger Becker (coordenadora pedagógica); professora de Língua Portuguesa.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Além de garantir a função social da escrita, o projeto também viabiliza a construção do conhecimento, articulado entre os diferentes campos do saber. A interdisciplinaridade aparece como
uma espécie de trama que produz uma ressignificação no contexto da aprendizagem, isto é, o
aluno percebe que pode utilizar diversos conhecimentos para atingir um objetivo maior, rompendo, com o auxílio do professor, as fronteiras entre as disciplinas da quinta série.
Aliada a esta gama de possibilidades, a tecnologia aparece como grande parceira para a realização de um trabalho voltado para construção de sentido para a leitura e a escrita, visto que
oferece ferramentas que vão além do lápis e do papel. Os alunos envolvidos no referido projeto,
em sua maioria, não possuem, em seus contextos familiares, os recursos da informática. Mais
uma vez, a escola cumpre com a sua função de promover novas aprendizagens, em diferentes
espaços, além das salas de aula.
Metodologia
O projeto Multiplicadores de Leitura teve como base a disciplina de Língua Portuguesa. Partiu-se
da leitura de narrativas e de seu estudo teórico, analisando a construção desse tipo textual. Após
as leituras, passou-se à produção de textos narrativos com o intuito de serem utilizados em futuras horas do conto para alunos menores. O texto passou por um processo de aprimoramento e se
transformou em um livro de história infantil. Além do livro em papel, os alunos foram desafiados a
criar um livro virtual no laboratório de informática da escola. Para que este livro tomasse forma, o
trabalho ocorreu de modo interdisciplinar. Além das habilidades de leitura e escrita desenvolvidas,
foram usados os conhecimentos das disciplinas de Matemática, Geografia, Educação Artística e os
recursos disponíveis no laboratório de informática da escola.
Os conteúdos gramaticais do currículo de quinta série estão presentes durante o desenvolvimento do projeto, perpassando as etapas e sendo trabalhados de forma contextualizada. Acredita-se na importância do trabalho interdisciplinar, pois a leitura e a escrita estão presentes
nas diferentes disciplinas e o saber não acontece, desta forma, isolado, mas articuladamente.
Com o trabalho envolvendo duas ou mais disciplinas, interagindo com uma intencionalidade,
sem hierarquia de saberes, todos se fazem importantes para os objetivos do projeto. Como
afirma Sandra Lúcia Ferreira,
o que caracteriza uma prática interdisciplinar é o sentimento intencional que ela carrega. Não há interdisciplinaridade se não há intenção consciente, clara e objetiva por parte daqueles que a praticam. Não
havendo intenção de um projeto, podemos dialogar, interrelacionar e integrar sem, no entanto, estarmos
trabalhando interdisciplinarmente. (FERREIRA, 1991:35)
Considerando a citação acima, pode-se afirmar que o projeto aqui descrito está sendo uma
forma de aliar conhecimentos a fim de alcançar objetivos em comum. Além do texto narrativo,
os alunos estão interagindo com o texto poético, descobrindo as diferenças entre os dois gêneros, declamando poesias de autores consagrados e produzindo suas próprias poesias. O sarau
poético constitui um rico momento de sentir poesia como um gênero com suas peculiaridades
traduzidas em versos e estrofes.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Desenvolvimento
A partir da ideia de se multiplicar a leitura, abordada no tema amplo da escola definido como “Eu
posso viver em um mundo melhor”, o projeto Multiplicadores de Leitura começou a ser desenvolvido
na disciplina de Língua Portuguesa com a professora motivando os alunos para o objetivo maior que
era o de ler. A proposta iniciou em março de 2008, com uma turma de quinta série da escola. Primeiro, foi realizada a leitura, análise e reflexão do conto popular O caso do espelho3, selecionado do livro
didático da sala de aula. Foram estudadas questões referentes ao seu vocabulário, à sua compreensão e interpretação. A partir disso, foi realizado um estudo teórico acerca da construção narrativa,
considerando as especificidades dessa tipologia textual, tais como a escrita prosaica, as personagens,
o tempo, espaço e os momentos (situação inicial, conflito, clímax do conflito e desfecho). Este passo
foi importante para que os alunos percebessem que a arte de narrar histórias está associada a uma
boa elaboração das ideias do autor, ou seja, as ações das personagens devem estar descritas de forma
a prender a atenção do leitor. Para ilustrar estes aspectos teóricos, a professora narrou para a turma
a história de Jon Scieszka, A verdadeira história dos três porquinhos, na qual foi possível observar os
elementos constitutivos da narrativa e a importância do narrador na explicação dos fatos.
Partindo dessa premissa, os alunos reuniram-se e realizaram a leitura de uma narrativa do gênero
clássico infantil que foi escolhida por cada dupla. Os livros utilizados nesta etapa do projeto pertencem à mesma coleção e possuem uma linguagem bastante rica, sendo apropriada para alunos
de quinta série. Após a leitura, a professora sugeriu três propostas de produção textual, sendo que
cada dupla teve a liberdade de escolher aquela que mais lhe agradava, ressaltando que estes textos
servirão para serem apresentados aos alunos menores da escola. As propostas foram as seguintes:
1. M
odernizar o clássico, ou seja, narrar como aconteceriam os fatos na contemporaneidade.
2. Criar uma narrativa híbrida, utilizando personagens de diferentes clássicos infantis.
3. Mudar o foco narrativo, contando um dos clássicos sob o ponto de vista de outro narrador-personagem.
Não esquecendo que, após a escrita do texto, cada dupla teve a tarefa, com o auxílio da professora,
de aprimorar aspectos ortográficos e gramaticais para que seus textos tivessem a correção necessária dentro dos padrões da norma culta da língua.
Com o texto pronto, iniciou-se a elaboração de livro em cópia física. Foram utilizados conteúdos
de diferentes áreas do conhecimento para a montagem do mesmo. Na disciplina de Matemática,
os alunos descobriram que a geometria faz parte do mundo que os cerca e que poderiam desenhar a capa do livro com os conhecimentos de formas e medidas trabalhados. A distribuição destes
desenhos no tamanho da folha exigiu noções de espaço e organização, desenvolvidas na disciplina
de Geografia. A Educação Artística passou a ser fundamental para que as formas ganhassem vida
através do contraste de cores e sua significação no contexto da história. Também os conhecimentos
sobre perspectivas e pontos de referência foram utilizados a fim de transformarem simples desenhos em imagens mais próximas do real. Por fim, a língua portuguesa traduziu em palavras todo o
mundo imagético que envolveu o pensamento de cada aluno.
3. Conto popular recontado por Ricardo Azevedo. Retirado do livro didático. Tudo é linguagem: manual do professor,
distribuído pelo Programa Nacional Livro Didático – PNLD/2008.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Além do livro em cópia física, este também foi levado para o mundo virtual, onde foi utilizado o programa Power Point, do sistema operacional Windows, com seus inúmeros recursos. Esta etapa do
trabalho foi muito bem aceita pelos alunos, pois descobriram que poderiam ressaltar o significado
da escrita por meio de recursos disponíveis somente no ambiente virtual. A construção do livro virtual ocorreu com a escrita dos textos em slides que contaram com recursos visuais e auditivos. Cada
dupla pôde inserir imagens, links e a gravação de voz da história como meios de ilustrar o texto. O
trabalho, produzido no Laboratório de Informática Educativa4 da escola foi apresentado por quatro
alunos no I Fórum de Informática Educativa dos Alunos, durante Feira Multicultural, realizado pela
Rede Municipal de Ensino de Novo Hamburgo.
Com os livros prontos, os alunos foram desafiados a organizarem uma hora do conto com as suas
próprias histórias. Confeccionaram diferentes recursos para apresentá-las, tais como: varal didático, painéis e fantoches, utilizando, novamente, conhecimentos e habilidades de outras disciplinas
para a realização da proposta. Então, foi montado um cronograma de apresentações para os alunos
de turmas com crianças menores. Nossos jovens escritores passaram a multiplicar suas leituras na
biblioteca da escola. Em parceria com a professora responsável pela biblioteca escolar, cada dupla
teve a oportunidade de realizar a sua hora do conto para turmas que freqüentam o espaço.
Como a escola estava inscrita na Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, organizada
pelo Ministério da Educação, em parceria com a Fundação Itaú Social, o projeto passou a explorar
o gênero poesia. Aliando as atividades propostas na olimpíada ao projeto Mutiplicadores de Leitura, cada dupla de alunos escolheu duas poesias de poetas já conhecidos para serem declamadas à
turma do 2º ano em um sarau poético na biblioteca da escola. Para deixar este momento gostoso e
prazeroso, os alunos ofereceram aos seus ouvintes pipoca e refrigerante, pois, afinal, a poesia é uma
festa! Além disso, foram aplicadas oficinas de poesia, no formato de seqüência didática, nas quais
os alunos puderam explorar as especificidades do gênero e experimentar suas próprias produções.
Ao final, foi proposto que cada aluno escrevesse um poema com o tema “O lugar onde vivo”, a fim
de participar de concurso interno na escola. A produção escolhida representou a escola na etapa
municipal da Olimpíada.
Avaliação
Considerando todas as etapas do projeto, pode-se afirmar que houve um envolvimento satisfatório
na realização das atividades propostas. Salienta-se neste trabalho a importância da escola como
conquistadora de leitores, conforme as palavras de Juracy Saraiva,
as dificuldades enfrentadas pelo docente em conquistar e manter leitores decorrem, fundamentalmente,
do equívoco quanto à concepção de texto literário, que se conjuga à finalidade, também falaciosa, atribuída ao ato de ler. Despojada da extensão dos horizontes nela inscritos, a leitura do texto continua a ser
reduzida à apreensão do código, isto é, ao estabelecimento de uma relação binária entre significante e
significado. (SARAIVA, 2001:26)
Procura-se, portanto, uma alternativa para a formação de jovens leitores, usando propostas que dão
significação ao ato de ler e escrever. Como professora com formação em Letras, vejo o ensino da
4. O Laboratório de Informática Educativa (LIE) é coordenado pela professora Jaqueline Helena da Silva, que disponibilizou as ferramentas tecnológicas necessárias para a realização da proposta.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Língua Portuguesa no processo de produção de sentido para a leitura e na utilização da escrita com
uma função social, ou seja, o aluno escreve para um leitor com um objetivo definido. Além disso,
nessa perspectiva de ensino, o aluno se torna protagonista de sua própria aprendizagem, isto é, utilizando conhecimentos de diferentes áreas, é proporcionada a ele a oportunidade de mostrar suas
habilidades e competências de forma autônoma e emancipatória.
Além disso, a literatura constitui uma das possibilidades que a escola pode oferecer para que o
adolescente amplie seu conhecimento cultural, fazendo com que perceba um universo artístico que
retrata seus desejos e anseios. Por vezes, a literatura pode funcionar como uma forma de agente
transformador, revelando aos jovens uma outra visão de mundo, distante da realidade na qual estão
habituados a viver. Uma mudança de pensamento e atitudes pode estar relacionada ao prazer de
ler, sendo a literatura um instrumento importante de transformação social. Vale ressaltar aqui que
o envolvimento de outras turmas no projeto foi um ponto positivo, pois os alunos que foram espectadores da produção da quinta série também passaram a ser motivados a gostar de ler e a produzir
suas próprias histórias.
Envio: 7 jun. 2010
Aceite: 5 mar. 2011
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Referências bibliográficas
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BORGATTO, Ana Maria Trinconi. Tudo é linguagem: manual do professor. São Paulo: Ática, 2006.
COLEÇÃO Clássicos Infantis. São Paulo: Moderna, 1996.
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SARAIVA, Juracy Assmann. Literatura e alfabetização. Do plano do choro ao plano da ação. Porto
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SCIESZKA, Jon. A verdadeira história dos três porquinhos!, trad. Pedro Maia, 2. ed. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005.
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Cultura visual e educação: uma experiência interdisciplinar
Visual culture and education: an interdisciplinary experience
Cultura visual y educación: una experiencia interdisciplinaria
Cristina Portugal1 e Rita Maria de Souza Couto2
Resumo
Sendo o designer um produtor de cultura visual, é necessário que a importante questão dos efeitos que as tecnologias
têm provocado sobre a imagem e a linguagem seja discutida em sua área. Neste artigo, vamos apresentar uma experiência interdisciplinar entre Design e Educação, que resultou no desenvolvimento de um material didático denominado jogo
Multi-Trilhas, tendo por objetivo auxiliar a aquisição de uma linguagem. Neste artigo apresentaremos discussões sobre
cultura visual e educação através de um relato de pesquisa, sua metodologia e resultados alcançados.
Palavras-chave: design, cultura visual, linguagem.
Abstract
Once the designer is a producer of visual culture, it is necessary to discuss the important issue about the effects that
technology has caused over the image and language. In this paper, we present an example of an interdisciplinary experience between Design and Education, which resulted in the development of educational material called Game MultiTracks. We will also present discussions about visual culture and education by a research report, its methodology and
results.
Keywords: design, visual culture, language.
Resumen
Una vez que el diseñador es un productor de cultura visual, los efectos que la tecnología ha causado más de la imagen y
el lenguaje es un tema importante a tratar. En este artículo se presenta un ejemplo de una experiencia interdisciplinaria
entre el Diseño y Educación, que se tradujo en la elaboración de material educativo denominado Juego Multi-Camiños,
que tiene como objetivo ayudar a la adquisición de una lengua. Habiendo como guía las discusiones sobre la cultura
visual y la educación en este artículo se presenta un informe de investigación, su metodología y los resultados.
Palabras clave: diseño, cultura visual, lenguaje.
1. Doutora e mestre em Design e bacharel em Comunicação Visual pela PUC-Rio. É pesquisadora com vínculo de Bolsa CNPq de Pósdoutorado no Programa de Pós-graduação em Design do Departamento de Artes & Design da PUC-Rio. Contato: crisportugal@gmail.
com.
2. Pós-doutorado na Escola de Belas Artes da UFBA. Doutora e mestre em Educação e bacharel em Desenho Industrial e em Comunicação Visual pela PUC-Rio. Tem atuado regularmente como docente no âmbito da Graduação e da Pós-graduação no Departamento
de Artes e Design da PUC-Rio. Contato: [email protected]
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Introdução
Partindo de uma postura receptiva à inclusão — que por sinal caracteriza a área do Design —, neste artigo defendemos o grande potencial que há nessa área de realizar trabalhos conjuntos com a
Educação, tendo como foco atender as novas exigências da sociedade contemporânea. Esse entendimento conduziu as reflexões aqui realizadas sobre os efeitos que as novas tecnologias estão provocando na imagem e na linguagem.
Apresentaremos como exemplo de experiência interdisciplinar entre Design e Educação o desenvolvimento e aplicação de um jogo criado para auxiliar na aquisição de segunda língua por crianças surdas, denominado Multi-Trilhas. Este foi desenvolvido à luz de métodos e técnicas de Design, coordenado pela professora Dra. Rita Couto no Laboratório Interdisciplinar de Design/Educação (LIDE),
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil – PUC-Rio, em parceria com o Instituto
Nacional de Educação de Surdos no Rio de Janeiro (INES), Brasil.
Todo o projeto do jogo Multi-Trilhas passou por uma longa investigação sobre a linguagem visual a
ser utilizada em seus componentes, cenários, cartas etc. Foram também projetadas ilustrações em
Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), que resultaram no desenvolvimento de uma linguagem gráfica
inédita para representá-la.
A pesquisa que serviu como base para este artigo procurou identificar, também, artefatos que
tenham potencial pedagógico, caracterizando-os como recursos para o ensino e para a aprendizagem. Foi sob esta perspectiva que se tomou como fio condutor o projeto Multi-Trilhas, jogo finalizado no primeiro ano desta investigação e desenvolvido à luz de métodos e técnicas de Design
aplicados à solução de problemas, ao planejamento, à geração de ideias, análise e síntese, produção
e avaliação.
A opção por utilizar como objeto de estudo um artefato desenvolvido à luz do Design — registrando
e discutindo seu processo de configuração e vivenciando seu processo de desenvolvimento — foi
decisiva para compreender as diversas questões envolvidas em um projeto de Design em Situações
de Ensino-aprendizagem.
Outro ponto que merece destaque é a adequação da metodologia do “Design em Parceria”3, no
desenvolvimento de artefatos educacionais, pois um processo de configuração de um determinado
objeto, quando exposto a criterioso método de validação pelos futuros usuários, de fato promove
ao produto final uma maior eficiência na obtenção de seus objetivos. Constatamos o mérito dessa
metodologia ao analisar no âmbito educativo o engajamento das diferentes instâncias envolvidas
na construção do conhecimento — alunos, professores, profissionais especializados, consultores e
patrocinadores — em torno de um objetivo comum. Quando se incorpora no objeto final ideias de
todos os atores envolvidos, possibilita-se o amadurecimento e o enriquecimento da situação de uso.
Lançando mão das palavras de Maldonado (2007), constatamos que as competências exigidas para
desenvolver o projeto devem participar de todas as fases do ciclo produtivo, sendo frequentemente
necessário intercambiar reciprocamente papéis e tarefas.
Foi verificado também que a prática do Design em Situações de Ensino-aprendizagem possibilita aos
3. O Design em Parceria tem como característica básica a participação de um grupo social — parceiros — em praticamente todas as
etapas do processo de projeto.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
profissionais da área lidar com problemas complexos. Neste particular, a formação de equipes interdisciplinares é indispensável, uma vez que propicia a criação de artefatos educacionais eficientes ao
promover e sustentar relações educativas, propiciando o diálogo entre professor e aluno.
Pode-se observar que há um grande potencial na proposta do projeto Multi-Trilhas para auxiliar
o ensino-aprendizagem da LIBRAS e do Português escrito, bem como de outros conteúdos pedagógicos. Entretanto, como ocorre geralmente, existem algumas barreiras para a aceitação quando
se propõe inovar. E esse jogo exige a participação direta do professor. Por não trazer regras fixas e
fechadas, requer um mediador que compreenda, transforme, represente, selecione, adapte, ensine, avalie, reflita e obtenha novas maneiras de explorar o material de acordo com seus objetivos de
aula. O Multi-Trilhas valoriza o professor como mediador do conhecimento e a sua participação é
crítica, pois as atividades do jogo exigem planejamento antecipado.
Outro aspecto que deve ser considerado no desenvolvimento de um projeto como o Multi-Trilhas
é a necessidade de envolver outros atores da instituição, não apenas professor e aluno, para que a
nova ideia efetivamente tenha sucesso. Não foram encontradas resistências em relação ao interesse
de alguns professores de experimentar e utilizar o jogo em sala de aula. Contudo, percebemos que
o material apesar de ter sido experimentado, aprovado e doado ao INES/RJ, não recebeu nenhum
investimento de divulgação a outros professores e profissionais, por exemplo, de fonoaudiologia,
para que fosse usado como recurso pedagógico dentro de sala de aula e fora dela.
Metodologia do projeto do jogo Multi-Trilhas
A partir de encontros com profissionais da Divisão de Fonoaudiologia do INES/RJ, foi definido o
recorte do universo de pesquisa: crianças matriculadas em classes de alfabetização no Instituto.
Mais tarde, o recorte foi ampliado para incluir crianças de 1º a 4º anos do Ensino Fundamental do
Instituto. Foi tomada essa opção metodológica para possibilitar a escolha pelos alunos dos temas e
da linguagem a ser trabalhada.
A equipe de pesquisa fez reuniões semanais no LIDE, nas quais foram discutidas questões teóricas
de fundamentação e práticas para o desenvolvimento do jogo Multi-Trilha. Em função da natureza
qualitativa e exploratória da pesquisa, utilizou-se como instrumentos principais a observação participante e entrevista semiestruturada, preservando assim a flexibilidade desse tipo de enfoque,
quando presente nas pesquisas educacionais.
O método da pesquisa-ação que inspirou o processo desta investigação, fundamentado no Design
em Parceria, é um tipo de pesquisa participante engajada, em oposição à pesquisa tradicional que
é considerada independente, não reativa e objetiva. Como o próprio nome já diz a pesquisa-ação
procura unir a investigação à ação ou prática, isto é, desenvolver o conhecimento e a compreensão
como parte da prática.
A partir das entrevistas com consultores de LIBRAS, educadores e fonoaudiólogos do INES/RJ, da
análise de diversos materiais didáticos e da fundamentação teórica, foram projetados dois artefatos
educativos segundo a seguinte metodologia, comum a ambos os objetos, composta de seis grandes
etapas (Portugal, 2009): 1. escolha de tema; 2. problematização; 3. fundamentação teórica; 4.
configuração; 5. produção; 6. avaliação.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
1. Escolha do tema
Após longo processo de estudo em reuniões semanais de trabalho, por cerca de seis meses, foi
definida a natureza do objeto concreto: um jogo de trilha para ser montado pelas crianças no chão
ou na mesa. Já objeto multimídia ficou definido como sendo hipermidiático, no qual se utilizou uma
narrativa interativa com foco nos contextos a serem explorados e em personagens que servem de
guia na navegação pelas trilhas virtuais.
Basicamente, os aspectos comuns a ambos os objetos foram definidos como sendo: 1. cidade do
Rio de Janeiro desdobrada em três cenários — Pão de Açúcar, Jardim Zoológico e Quartel Central do
Corpo de Bombeiros; 2. personagens comuns; 3. tratamento gráfico comum para cenários; 4. perspectiva bilíngue, com a presença de duas línguas — LIBRAS e Português; 5. exploração de percursos, ações, repetições, deslocamentos, raciocínio, manipulação, interação, tomada de decisão, entre
outros; 6. apresentação de desafios a serem enfrentados; 7. nome comum para ambas as versões
— Multi-Trilhas: jogo para auxiliar a aquisição de segunda língua por crianças surdas.
2. Problematização
Existe grande quantidade e diversidade de material didático direcionado a crianças que frequentam
o ensino regular. Entretanto, há carência de estudos que determinem diretrizes para uma linha de
trabalho para a construção de material didático para as que possuem necessidades especiais. Isso
revela a fragilidade de uma conduta carente de critérios no desenvolvimento de recursos educacionais para o grupo em questão. A consequência direta é uma distância expressiva entre o ensino de
crianças na rede regular e o ensino de crianças no âmbito da educação especial, fazendo com que
estas últimas fiquem cada vez mais excluídas da sociedade.
3. Fundamentação teórica
A construção de fundamentação teórica foi realizada por meio de revisão de literatura ancorada no
Design em Situações de Ensino-aprendizagem aplicado à alfabetização de crianças surdas, e tem
como horizonte teórico, na configuração dos objetos de aprendizagem, o Bilinguismo, o Sociointeracionismo e a Alfabetização de Surdos segundo uma abordagem construtivista. Tem base, também, aspectos específicos do Design da Informação, Design Gráfico e de Design de Interface; Cultura
Visual, Imagem, Linguagem, Novas Tecnologias da Informação e Comunicação, Inclusão; Educação,
Jogos, entre outros temas.
Na pesquisa de campo, foi realizado um trabalho em sala de aula juntamente com professores e fonoaudiólogos do INES/RJ para recolher informações, observar, realizar entrevistas, fotografar, dialogar etc.
4. Configuração
O processo de projeto percorrido na configuração de cada um dos objetos educativos pode ser resumidamente descrito como sendo:
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Objeto concreto: 1. projeto e confecção de peças poligonais em EVA; 2. teste de encaixes e desenhos de trilhas em laboratório e com o universo de pesquisa; 3. definição da linguagem visual a ser
utilizada nas cartas e cenários do jogo; 4. estudo de materiais e processo de confecção das cartas; 5.
experimentação da 1ª versão das cartas em laboratório e com o universo de pesquisa; 6. redesenho
de toda a comunicação em LIBRAS; 7. definição das regras do jogo; 8. experimentação das regras do
jogo em laboratório e com o universo de pesquisa; 9. definição das peças do cenário; 10. experimentação do cenário do jogo em laboratório e com o universo de pesquisa.
Objeto multimídia: 1. organização de equipe de criação e produção, e distribuição de tarefas; 2.
captação de conteúdo; 3. modelagem estrutural; 4. desenho do protótipo básico do sistema lúdico (navegação); 5. definição de componentes de controle; 6. criação de elementos de cenários; 7.
desenvolvimento de interface gráfica para usuário.
5. Produção
A produção de cada um dos objetos educativos pode ser resumidamente descrita como sendo:
Objeto concreto: 1. definição de materiais e de processos de fabricação; 2. definição e fabricação
de embalagem para as peças do jogo; 3. experimentação do jogo completo em laboratório e com
o universo de pesquisa; 4. testes no contexto do INES/RJ; 5. análise de resultados; 6. preparação
de originais para gráfica; 7. impressão e provas; 8. registro dos resultados e do processo de projeto
percorrido em forma de relatório.
Objeto multimídia: 1. desenvolvimento do protótipo avançado do sistema lúdico; 2. finalização de
cenários e de animações interativas; 3. realização de testes de usabilidade; 4. teste de soluções; 5.
finalização de soluções; 6. testes do jogo no contexto do INES/RJ.
6. Avaliação
Durante todo o processo de projeto do jogo, foram realizados encontros com fonoaudiólogos, professores e alunos do INES/RJ, segundo metodologia do Design em Parceria. Nessas sessões, pretendeu-se estreitar o contato com esse grupo de pessoas e identificar seus interesses. Foram feitos
registros audiovisuais, fotográficos e escritos de todos os encontros, para análise e aprimoramento
do processo de projeto e dos objetos que estavam sendo configurados.
Após vivenciar e discutir a proposta no contexto onde ela seria inserida, sempre que necessário, realizaram-se sessões de discussão sobre o material que foi projetado com profissionais especializados,
no caso desta pesquisa, professores e consultores de LIBRAS do INES/RJ, com o objetivo de avaliar
os desenhos de LIBRAS, as palavras que compõem os jogos, a aceitação e a capacitação das crianças
surdas no processo inicial de aquisição do Português como segunda língua e de LIBRAS. Procurou-se,
com isto, aperfeiçoar e validar o material.
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Figura 1: Peças do jogo Multi-Trilhas Concreto
Figura 2: Cartas – representação gráfica de LIBRAS
Figura 3: Jogo Multi-Trilhas Multimídia
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Breve reflexão sobre cultura visual e educação
Um dos temas abordados no projeto que serviu como base para este relato de pesquisa estava relacionado aos conceitos de cultura visual, de que a experiência humana a cada dia está mais exposta
aos recursos visuais, e de que entendê-los nos tornará pessoas mais criteriosas e informadas em
nossas decisões. Nessa linha, o Design foi compreendido como portador de poder de influir sobre a
cultura visual dada sua natureza projetual de imagens e de objetos da cultura e a responsabilidade
do ensino de Design frente a esta nova demanda.
Ainda que, em geral, os diferentes meios visuais de comunicação estejam sendo estudados de forma
independente, agora surge a necessidade de interpretar a visualidade dos meios de comunicação
como parte da vida cotidiana. Os critérios adotados em disciplinas diferentes como a história da
arte, cinema, jornalismo, sociologia, entre outras, começaram a descrever este campo emergente
como cultura visual. Explica Mirsoeff (2003) que a cultura visual tem interesse pelos acontecimentos
visuais em que o consumidor procura informação e significado, ou lazer, conectado a tecnologia
visual. Este autor entende por tecnologia visual qualquer forma de artefato projetado, seja para ser
observado ou para aumentar a visão natural, desde a pintura a óleo até a televisão e a internet.
Por sua vez, Malcolm Barnard (1998), professor de Cultura Visual da Escola de Arte e Design da Universidade de Derby, afirma que o uso que os diferentes grupos sociais e culturais fazem e o modo
como definem o visual faz com que se torne relevante investigar e explicar este tema através de
estudos sobre cultura visual. Dito isto, o autor define o que o visual na cultura visual é tudo que
é produzido, pode ser visto, é interpretado e criado pelo ser humano que tenha ou produza uma
intenção funcional, comunicacional e/ou estética. Assim, para iniciar a discussão, ele afirma que é
necessário responder a seguinte questão: Que conceito de cultura nós podemos adotar para estudar
e explicar a cultura visual?
Assim como o autor, também consideramos importante para este trabalho discutir o tema cultura,
conceito complexo mas fundamental para o entendimento do Design, uma vez que ele tem influência direta na cultura como um todo e na cultura visual em particular.
Barnard (1998) afirma que há problemas para a definição de cultura quando aparece no termo
cultura visual. Ele então se propõe explicar que problemas são estes e que conceitos de cultura
poderão solucionar a questão. Citando Raymond Willians, intelectual galês, Barnard afirma que a
cultura visual é o sistema de significado de uma sociedade. Este sistema abrange instruções, objetos,
práticas, valores e crenças que são os recursos por meio dos quais uma estrutura social é produzida,
reproduzida e contestada por sua visualidade. Estas posições de poder e status são produtos de um
sistema específico econômico, qual seja o capitalismo. Esse aspecto da cultura visual, portanto, liga
ideologia e política. Está relacionado com os caminhos nos quais a cultura visual produz e reproduz
a sociedade, assim como os caminhos pelos quais identidades e posições dentro desta sociedade
podem ser contestadas e desafiadas. O importante desta discussão para o campo do Design é compreender a responsabilidade social do designer enquanto produtor e criador de sistemas funcionais,
comunicacionais e estéticos, os quais de alguma maneira irão influir para a construção da cultura
visual e por sua vez na estrutura de uma sociedade.
Mirsoeff (2003) afirma que a cultura visual deve ser tratada desde um ponto de vista muito mais
ativo e se baseia no papel determinante que ela desempenha na cultura mais ampla à qual pertence.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Ela realiza aqueles momentos nos quais o visual se põe no interdito, se debate e se transforma como
um lugar sempre desafiante de interação social e definição em forma de classe, gênero e identidade
sexual e racial.
O autor explica que a função principal da cultura visual é poder dar sentido à variedade infinita de realidade exterior mediante a seleção, interpretação e representação da dita realidade.
Uma parte importante desta explicação é que ela coloca visível as diferentes maneiras através
das quais a imagem foi se transformando gradualmente como representação, derivada de algo
real. Estas convenções são, entretanto, poderosas e significativas e por esta razão não será
suficiente expô-las como construções sociais apenas. Os designers como produtores da cultura
visual devem compreender porque um sistema prevalece sobre outro e sob que circunstância
pode mudar um sistema de representação e quando e como podem representar.
Para Kerry Freedman (2003), professora da Escola de Arte de Illinois, a tecnologia tem feito
com que a cultura visual seja muito mais accessível que as formas literárias da cultura. O poder
das tecnologias visuais sob uma perspectiva educativa é profundo e de extrema importância
para que os alunos possam compreender a forma visual.
A autora considera que a cultura visual pode facilitar o rompimento de limites e ensinar conceitos. Explica que as representações estão compostas por uma combinação de significados
possíveis, em vez de depender de apenas um, unificado, com uma intenção. Toda uma esfera
de significados se interpreta e se une debilmente a signos que construímos e ensinamos uns
aos outros informalmente, para facilitar a comunicação. Essa é a razão pela qual podemos
reconsiderar os exemplos da cultura visual e continuar desenvolvendo significado através de
novas experiências com eles, estejamos em um museu observando uma pintura renascentista,
ou sejamos fãs do filme Guerra nas Estrelas vendo-o pela décima vez na televisão.
Nesse particular, as possibilidades que o jogo Multi-Trilhas oferece ao professor e ao aluno de
trabalhar com a cultura visual é relevante, pois ele permite que o professor disponibilize os
conteúdos de diversas formas, utilizando recursos visuais. Os alunos podem, assim, aprender
através das imagens de uma forma mais eficaz. A esta característica do Multi-Trilhas soma-se
o fato de o mesmo estar inserido nos códigos culturais do indivíduo surdo. Segundo Burnet
(1995), as imagens visuais parecem conter não somente mensagens mas também os mapas
necessários para compreender essas mensagens. Ele afirma que, no momento em se realiza
um tipo particular de investimento na imagem, o contexto da comunicação adquire um significado cada vez maior. O resultado é um tipo diferente de imagem, que depende da especificidade cultural e da história local (Burnet, 1995:300 apud Ribeiro, 2008:24). Essa questão
pode ser amplamente vista no desenvolvimento do jogo Multi-Trilhas, quando foram estudadas e realizadas as ilustrações de LIBRAS, transformando uma linguagem visuoespacial em uma
representação gráfica impressa.
Ainda com referência a essa questão, dentro do contexto cultural do usuário de nosso projeto, frente a várias propostas de temas a serem trabalhados no jogo, foram escolhidos como recursos de
repertório os cenários do Quartel Central do Corpo de Bombeiros, os do Jardim Zoológico e do Pão
de Açúcar, locais identificados por professores do INES/RJ como próximos à realidade das crianças
surdas que frequentam o referido instituto.
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As representações visuais desenvolvidas no jogo Multi-Trilhas, como foi dito anteriormente, possuem toda uma gama de significados que pode ser interpretada e unir-se, para facilitar a comunicação, a signos que crianças e adultos ensinam uns aos outros informalmente. Podemos exemplificar
essa questão na analise das várias formas da linguagem visual utilizadas para compor os personagens do jogo, cuidadosamente escolhidos para representar a multipluralidade do biotipo, da cor
de pele, do tipo de cabelo de adultos e crianças brasileiras. Enfim, diversos recursos visuais para a
construção do jogo foram considerados para representar de forma mais adequada a cultura visual a
qual os alunos surdos estavam inseridos.
Para facilitar a introdução de novos temas, sejam eles ou não do conteúdo que está sendo trabalhado pelo professor, o jogo dispõe não somente de cenários e de cartas impressas com imagens, mas
também de componentes sem imagens para que o professor possa trabalhar com temas de outras
culturas, aplicando desenho, recorte de revista, fotografia etc., dependendo da região e da necessidade do conteúdo com o qual ele queira trabalhar. Complementarmente, para facilitar a elaboração de
novas peças do jogo, foi disponibilizado através da internet modelos de cartas, cenários, cartas-bônus
e outros componentes, permitindo que usuários possam construir um material totalmente personalizado com temas e conteúdos de cada escola, utilizando-se dos recursos da cultura visual de seu local.
O jogo Multi-Trilhas multimídia não oferece a possibilidade de manipulação de seu conteúdo pelo
professor, por ser um jogo fechado em termos de programação. Entretanto, ele proporciona ao aluno uma rica possibilidade de navegação pelos cenários do Quartel Central do Corpo de Bombeiros,
do Jardim Zoológico e do Pão de Açúcar, onde através de experiências visuais a criança surda pode
associar a imagem com o vídeo em LIBRAS e a palavra em português escrito. Neste objeto, foram
incorporadas atividades de arte, ligar pontos, associação de palavras e imagens, quebra-cabeça e
um dicionário de LIBRAS, a fim de proporcionar à criança um rico ambiente lúdico onde ela possa
aprender brincando.
Freedman (2003) constata que hoje aquilo que os estudantes sabem e como ficam sabendo rompe
as fronteiras tradicionais. Atualmente os alunos podem obter mais informações das imagens do
que dos textos, como consequência a educação artística — e aqui podemos incluir a educação em
design — tem uma responsabilidade cada vez maior. Enquanto os limites entre educação, além da
cultura e entretenimento se ampliam, os alunos aprendem cada vez mais a partir das formas visuais.
Neste contexto de mudança, devemos estudar os desafios e os limites da forma, do objeto e dos
conteúdos escolares.
Outro aspecto que a autora considera importante para a superação de limites está relacionado aos
limites culturais e educativos. Ensinar cultura visual inclui estudar muitas culturas visuais. Fundamentalmente, tem a ver com a inclusão das pessoas, das imagens e dos artefatos que concebem
e criam. A inclusão da cultura visual do passado é parte desta consideração de diversas culturas e
sub-culturas.
Freedman (2003) sugere para a educação atual que o inter-relacionamento das experiências da cultura
visual, através da educação infantil, fundamental, média e superior, seja cada vez mais accessível, interativa e dependente de hábitos mais amplos de visão. Ela, diz, ainda, que muitos adolescentes na busca de
entretenimento assistem aos mesmos programas de televisão que os adultos, assim como muitas crianças e jovens jogam os mesmo videogames que os primeiros. As crianças visitam museus com seus pais
possibilitando uma aproximação cada vez maior entre as gerações de pais e filhos, facilitando a comuni29
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cação entre eles. A cultura visual como conjunto deve ser vista como algo real no sentido de que é parte
destacada da experiência cotidiana. Uma responsabilidade essencial da educação no futuro será ensinar
aos alunos sobre o poder das imagens, e as liberdades e responsabilidades que vem com esse poder. Se
quisermos que os alunos compreendam o mundo pós-moderno no qual vivemos, o currículo terá que
prestar uma maior atenção ao impacto das formas visuais de expressão, para além dos limites tradicionais
de ensino-aprendizagem, incluindo os limites culturais, as disciplinas e as formas artísticas.
Freedman (2003) reúne os seguintes conceitos, que refletem este cruzamento de fronteiras, e que
são fundamentais para o ensino e o entendimento da cultura visual (Freedman, 2003:47- 9).
1. Reconceituação de campo: no passado, a educação artística — incluindo aqui o ensino em design
— centrava-se no objeto. Agora, é dada maior atenção à importância da relação entre criadores e
expectadores, ou seja, produtor e usuário, que se estabelece através da mediação dos objetos.
2. Estética com sentido: as formas visuais somente podem ser compreendidas em relação a seus
contextos e contemplação. Ao mesmo tempo, formas de cultura visual dão sentidos a esses contextos. A autora diz que os currículos estão começando a refletir melhor sobre os contextos das formas
visuais, incluindo informações relevantes para compreender a complexidade da cultural visual.
3. Perspectivas sociais: a cultura visual da vida social está sendo redefinida em uma escala mundial
à medida que se estabelecem culturas híbridas e as tecnologias visuais oferecem a liberdade de
informação que vai mais além das fronteiras internacionais. Nas democracias pós-industriais, as
formas visuais de expressão influem na vida social, já que é o reflexo dela mesma. A força educativa
de posições e opiniões expressadas por indivíduos e grupos sociais através das formas visuais recebe
uma nova ênfase para o ensino.
4. Cognição interativa: a nova investigação de base cognitiva permite que se faça mais evidente a
importância das relações entre pessoas e objetos com a aprendizagem, considerando-se as diferenças de construções individuais de conhecimento. Ao mesmo tempo, porém, os estudos de cognição
grupal dizem que as pessoas que relacionam-se em contextos humanos e ambientais constroem
conhecimento com maior eficiência. Os estudantes criam e interpretam baseados em representações prévias de conhecimento, reciclando as imagens e as ideias com as quais se identificam.
Chegam ao saber, em parte, através da investigação interdisciplinar e das estratégias de desenvolvimento e não deveriam ser ensinados baseando-se somente nas estruturas de disciplinas formais.
5. Resposta cultural: as questões multiculturais, transculturais e interculturais cada vez mais em
relação ao caráter visual de nossas vidas e entornos sociais são críticas da arte, e aqui podemos
incluir o design, e tornam-se os aspectos mais importantes que se deva ensinar. A criação e a interpretação são respostas individuais ou de grupo, significadas pela cultura na qual estão inseridas.
6. Interpretação interdisciplinar: com a crescente e a ampla influência da cultura visual na sociedade, o trabalho de educadores das formas visuais se converteu em algo vital para os alunos.
Além de ser competência da educação artística, aqui podemos incluir o ensino do design, o imenso alcance do impacto da cultura visual deveria aumentar sua importância em todo o currículo.
7. Experiência tecnológica: as tecnologias nos permitem criar, copiar, projetar, manipular, apagar e
reproduzir imagens com uma facilidade e velocidade que desafiam as concepções tradicionais do
talento e da técnica.
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8. Crítica construtiva: o conhecimento deriva-se de uma variedade de fontes externas a escola,
incluindo a cultura visual. Estas referências fragmentadas, frequentemente contraditórias, multidisciplinar e interculturais podem ter mais sentido de compreensão de uma matéria escolar por parte
dos alunos que o currículo baseado na estrutura de uma disciplina.
Em relação à educação, Freedman (2003) problematiza que um importante aspecto educativo da cultura
visual é seu efeito sobre a identidade, tanto a respeito da criação como da observação, que é a questão de
maior importância em educação. A educação é um processo de formação da identidade porque mudamos
à medida que aprendemos. Nossa aprendizagem muda nosso eu subjetivo. As imagens e os artefatos da
cultura visual se veem constantemente e se interpretam instantaneamente formando um novo conhecimento individual e grupal, onde as pessoas podem falar livremente, consentir visualmente, apresentar e
duplicar, manipular informaticamente, transmitir mundialmente etc.
As maneiras com que representamos através da esfera da cultura visual dão forma ao nosso pensamento. Do ponto de vista educativo, torna-se crítico compreender a importância da representação, porque
podemos ajudar a dirigir a construção do conhecimento enriquecendo as experiências dos alunos.
Essas ideias encontram eco nas palavras de Roger Chartier (1990) quando afirma que a problemática do
“mundo como representação moldado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam
conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que nos dão a ver e a pensar o real”. Reside aí, segundo o
autor, o interesse manifestado pelo intermédio do qual é historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação (Chartier, 1990:23-4).
Como foi dito anteriormente, as relações discursivas cada vez mais se fazem visuais, e os símbolos visuais amiúde se utilizam como uma forma de discurso. Em particular, para a educação de surdos é preciso
considerar a sua cultura e os muitos discursos da cultura dos ouvintes que lhes são impostas, como anúncios, programas de televisão, cartazes, peças de propaganda e outras tantas formas de imagens que vem
acompanhadas de um discurso escrito não necessariamente entendido por este sujeito. Torna-se então
necessário para a educação refletir sobre as articulações entre textos, imagens, leitores que nos possibilitam criar o real, dando significado ao mundo. O Design como produtor de imagem e linguagem deve
refletir como podem as representações afetar o mundo do ouvinte como também o mundo do surdo no
seu processo de ensino-aprendizagem.
O surdo tem uma linguagem própria e a partir dela que ele vê, entende e percebe o mundo. Seu entendimento passa por suas próprias experiências e não as que são conceituadas pelos ouvintes. Podemos
exemplificar essa questão com uma observação de uma professora do INES, por ocasião de uma das experimentações do jogo Multi-Trilhas. Ela comentou que em uma prova de avaliação continha a seguinte
frase: “a comida passa pelo esôfago”. A aluna surda entendeu que havia pelos dentro do corpo humano,
pois, relacionou a palavra homônima “pelo” preposição com o substantivo “pelo”. Na língua de sinais, não
existem preposições e, como outras línguas, se diferencia da língua portuguesa. A professora disse que foi
muito difícil explicar em LIBRAS ou em Português escrito este conceito. Depois de algum tempo discutindo
sobre o tema, chegamos a conclusão que através de um suporte visual teria sido muito mais fácil explicar
este conceito.
Essa e muitas outras questões estão presentes no ensino-aprendizagem de crianças surdas. O que
pudemos perceber trabalhando com elas é que seu comportamento e o universo de conhecimento
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
são diferentes, se comparados com o comportamento e universo de conhecimento de uma criança
ouvinte de mesma idade e de mesmo contexto social.
Constatamos em nossas experimentações que o ensino através das imagens oferece muitas possibilidades, como pudemos observar utilizando uma das cartas-bônus, componente do jogo MultiTrilhas pertencente ao conjunto de cartas ilustradas com os temas meio de transporte, alimentação
e vestuário. A carta mencionada fazia parte do tema vestuário e apresentava uma ilustração de
uma mochila. Esta única imagem desencadeou uma profusão de palavras, com as quais a professora conseguiu trabalhar objetos que normalmente estão presentes dentro de uma mochila escolar.
Complementarmente, pediu aos alunos que dissessem, além dos nomes dos objetos, quais as cores,
formas, usos etc. que eles possuíam.
Para finalizar esta discussão, valho-me de ideias de Arthur Efland et al. (2003), professor de Educação Artística na Universidade de Ohio, quando afirmam que a educação das artes visuais e através
das artes visuais, e aqui se pode acrescentar a educação em Design e através do Design, é necessária
para respaldar e, às vezes, colocar em julgamento a crescente e sofisticada cultura visual que vem
se desenvolvendo atualmente nos entornos. Nesses ambientes, a educação pode proporcionar uma
forma de enriquecer a vida dos alunos, ajudando-os a criticar e a propor ideias conectadas com a
cultura visual e seus significados.
Considerações finais
No desenvolvimento do projeto Multi-Trilhas, estávamos interessadas em investigar o papel do
Design na construção de objetos de aprendizagem, do Design em Situações de Ensino-aprendizagem e da mediação comunicativa desenvolvida a partir das novas tecnologias, para possibilitar uma
maior interação entre crianças surdas e seu meio social. Acreditamos ter cumprido nosso objetivo
com êxito, já que os objetos foram testados e aprovados pelos professores e alunos do INES/RJ.
Para finalizar, tendo por fio condutor as ideias de autores como Lino Macedo, Ana Lúcia Petty e
Norimar Passos (apud Portugal, 2009), apresentamos o percurso de projeto problematizado para
ambas as versões do Multi-Trilhas.
O trabalho com jogos, assim como qualquer atividade pedagógica ou psicopedagógica, requer uma
organização prévia e reavaliações constantes, segundo esses autores. Muitos problemas de ordem
estrutural podem ser evitados, ou pelo menos antecipados, se determinados aspectos relativos ao
projeto forem considerados (Macedo et al., 2000).
Alguns pontos fundamentais foram considerados e nortearam o projeto do jogo. Dentre eles merecem destaque os relacionados abaixo.
1. Objetivos: tendo por fio condutor os objetivos propostos, o processo de projeto dos objetos foi
sendo desenhado passo a passo. Com base nos objetivos, foram estabelecidas a extensão da proposta, o escopo das atividades e as conexões da área do Design com as áreas de Pedagogia e Informática. Neste momento a questão norteadora foi O quê?
2. Público alvo: o levantamento de informações e a interação com o público surdo, com professores e fonoaudiólogos do INES se estenderam ao longo do tempo que durou a pesquisa e o
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
processo de configuração dos objetos. Foi necessário, além de buscar conhecer o universo da
surdez e da pessoa surda dentro e fora do contexto escolar, estudar características do desenvolvimento da criança sob a ótica da Psicologia e da Pedagogia. Neste particular, a questão
norteadora foi Para quem?
3. Geração de ideias e Definição de materiais e técnicas: O processo de geração de ideias de solução
ocorreu em conjunto como o estudo de possíveis materiais e técnicas a serem empregadas na confecção dos objetos. A validação das ideias que foram sendo geradas ocorreu junto ao INES durante
todo o processo de projeto. Nessa etapa, foi fundamental considerar o número de usuários, a faixa
etária, a quantidade e o tamanho de peças e partes, para o jogo concreto, assim como questões
de interatividade, legibilidade, navegabilidade, entre outras, para o jogo virtual. Neste momento, a
questão norteadora foi Com o quê?
4. Adaptações: de acordo com os aspectos anteriormente citados, foi imprescindível realizar ao
longo do processo de projeto adaptações e modificações no seu curso e nos objetos que estavam
sendo projetados, visando simplificar, reprogramar, aumentar os desafios, propor novas situações
etc. A questão norteadora desta fase foi De que modo?
5. Tempo: conciliar o tempo disponível para a realização da pesquisa e o tempo necessário para
a configuração dos objetos foi um grande desafio, principalmente porque o processo de validação permanente dos objetos requereu tempo para avaliação, reavaliação, reconfiguração etc. Outro
aspecto relativo ao tempo que precisou ser considerado diz respeito à duração das atividades do
jogo, tanto na versão concreta quanto na multimídia. O público alvo apresenta problemas para fixar
a atenção, como mencionado anteriormente, e determinar a duração das atividades foi um trabalho
que demandou muito estudo e discussão. Neste particular, foram duas as questões norteadoras:
Quando e Quanto?
6. Espaço: os jogos foram projetados para serem utilizados no ambiente escolar, com a supervisão
de um profissional que tenha fluência em LIBRAS. O jogo concreto pode ser utilizado sobre uma
mesa ou no piso. O multimídia requer um computador para sua exibição. No tocante a este ponto, a
questão norteadora foi Onde?
7. Dinâmica: a flexibilidade que marcou todo o processo de pesquisa propiciou correções de
rumo e mudanças para melhor atingir os objetivos pretendidos. O cronograma foi revisto inúmeras vezes em função da complexidade do jogo concreto, principalmente no tocante ao desenho de palavras em LIBRAS. O processo de validação dos objetos levou a equipe de pesquisa a
abandonar partidos de solução em estágio de desenvolvimento avançado, o que só foi possível
com a flexibilização do cronograma e seu constante redesenho. Neste particular, a questão norteadora foi Como?
8. Papel do professor: como mediador na aplicação dos jogos, o professor tem um papel decisivo na
utilização dos objetos. As formas de exploração dos mesmos deverão ser definidas por ele, principalmente no jogo concreto, uma vez que este não apresenta regras rígidas. A melhor conduta, sem
dúvida, só pode ser definida por quem está atuando no jogo. A questão norteadora no tocante a
este ponto foi Qual a função?
9. Proximidade a conteúdos: a escolha dos conteúdos foi uma tarefa que se estendeu ao longo
do processo de projeto e foi realizada em conjunto com os professores e fonoaudiólogos do INES.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Foram considerados temas e conteúdos específicos, de acordo com as necessidades do público alvo.
Neste aspecto, a questão norteadora foi Qual o recorte?
10. Avaliação da proposta: o processo de validação foi desenhando os contornos da avaliação do
processo de pesquisa e dos objetos projetados. A avaliação se deu, também, ao longo do trabalho,
culminando com as experimentações finais de cada uma das versões do jogo, por meio das quais o
grupo de pesquisa pode avaliar o trabalho como um todo e sua verdadeira impressão junto ao público alvo. Neste aspecto, a questão norteadora foi Qual o impacto produzido?
11. Continuidade: a continuidade do trabalho passou a ser um desejo da equipe de projeto, em
função de sua aceitação junto ao público alvo. Além da avaliação dos objetos após um período de
uso a ser definido, para identificar pontos para reformulação que por certo surgirão, a aplicação da
metodologia de trabalho utilizada a outras situações será uma forma de testá-la mais uma vez.
Com a validação deste projeto, agora o que pretendemos é aprofundar o campo de Design em
Situações de Ensino-aprendizagem para construção de novos projetos. Neste momento, a questão
norteadora é Como continuar e O que fazer depois?
Como pode ser visto no tópico metodologia do projeto, passamos por todas as etapas propostas
apresentadas por Macedo et al. (2000). Entretanto, estes aspectos do processo requereram de nossa equipe do LIDE conhecimento e atuação em diversas áreas, como: de linguagem visual, percepção
visual, tecnologia, administração de recursos econômicos e humanos, meios e técnicas de avaliação,
sobre ensino-aprendizagem, sobre educação de surdos, sobre cultura e construção de significados e
inclusão social. Além dessas áreas, foi necessário lançar mão de nossas expertises em Design, para
tratar complexidade gráfica, definir o tamanho, a quantidade de cores, a quantidade de cópias, a
qualidade do suporte, os estudos preliminares, elementos tecnológicos, avaliação etc., e também foi
indispensável considerar que todo projeto requer decisões que precisam ser avaliadas também em
relação aos aspectos econômicos disponíveis e aos seus objetivos.
Envio: 26 mai. 2010
Aceite: 21 jan. 2011
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
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O caráter dialético e dialógico nas provas de redação do Enem
The dialectical and dialogic evidence in essay tests of Enem
El caracter dialecto y dialogico en las pruebas de redacción del Enem
Graça Oliveira1
Resumo
Este artigo constitui-se de uma análise investigativa sobre os temas propostos nas redações do ENEM, exigindo do candidato uma escrita dialética e dialógica. Assim, a matriz de competência do referido exame é devidamente direcionada,
a fim de avaliar o desempenho do participante como produtor de um texto no qual ele demonstre a capacidade de
reflexão sobre o tema proposto. Somando-se a isso, tem-se o caráter dialógico da escrita em que a linguagem é tomada
como uma interação, através de uma relação do “eu com o outro”. Nesse sentido, não há só um mero repassar de mensagens, mas uma implicação ideológica, numa visão bakhtiniana ao afirmar que “a palavra está sempre carregada de um
conteúdo e de um sentido ideológico ou vivencial” (BAKHTIN, 2006:95).
Palavras-chave: dialética, dialogismo, redação do Enem.
Abstract
This article consists of an investigative analysis about the proposed themes in the essays of ENEM, requiring the applicant a dialectical and dialogical writing. Thus, the competency matrix of this examination is properly directed in order
to evaluate the performance of the participant as a producer of a text in which he demonstrates the ability to reflect
about the theme. Adding to this proposal, there is the dialogic character of the writing in which language is taken as
an interaction, by conection of “self with others”. In this sense, there is not only a mere exchange of messages, but an
ideological implication in a Bakhtinian view by stating that “the word is always loaded from a content and an ideological
or experiential sense” (BAKHTIN, 2006:95).
Keywords: dialectic, dialogism, essay of Enem.
Resumen
Este artículo consiste en un análisis de investigación sobre los temas propuestos en las redacciones ENEM, exigir al solicitante por escrito dialéctico y dialógico. Así, la matriz de competencia de este examen está correctamente dirigido con
el fin de evaluar el desempeño de participar como productor de un texto en el que demuestra la capacidad de reflexión
sobre el tema. Agregando a esto, no es el carácter dialógico de la escritura en ese idioma se toma como una interacción,
a modo de auto con otro. “En este sentido, sólo hay una mera mensajes pasan, pero una implicación ideológica en una
vista bajtiniano al afirmar que “la palabra es siempre cargado de contenido y un sentido de ideológico o experiencial”
(BAKHTIN, 2006:95).
Palabras clave: dialéctica, dialógica, escritura Enem.
1. Mestre em Ciências pela UFRRJ. Atua no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – Campus Crato-CE. Contato: [email protected].
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Pautado num paradigma multifacetado e interrelacional das áreas de conhecimento, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) desde sua implantação no ano de 1998 pelo INEP/MEC, e até nos dias
de hoje, registra um aumento gradativo em que se constata uma progressiva e significante adesão
de várias universidades, utilizando-se desses resultados no seu processo seletivo. Nesse raciocínio, o
Enem ao mesmo tempo que funciona como um instrumento avaliativo e seletivo no ingresso da universidade, também provoca, implicitamente, uma redimensão didático-pedagógica no Ensino Médio.
Posto isso, este trabalho analisa as últimas provas de redação no que se refere às exigências feitas
pelo referido exame com relação à competência cognitiva do candidato referentes habilidades de
leitura e escrita.
Foi nossa preocupação em não dicotomizar, tampouco dissociar a leitura e a escrita, ainda que estejamos falando em redação, uma vez que o ato de redigir, requer, a priori, a leitura crítica e prospectiva na abordagem de toda e qualquer temática proposta. Ressaltamos, contudo, que o nosso
olhar se deteve na postura dialética e dialógica que se requer do candidato ao produzir seu texto no
Enem. Para essa discussão, necessário se faz tecermos algumas considerações no tocante ao ensino
de leitura e produção de texto.
Texto e ensino de Língua Portuguesa: parceria incontestável
Já não mais se discute que o ensino da língua materna deva priorizar o desenvolvimento da competência comunicativa do aluno, entendida como sendo a capacidade de ler, ouvir, falar e produzir
textos levando em conta o caráter interlocutivo e ideológico que esse ato encerra.
Nesse ínterim, é inconcebível a centralização das aulas de leitura e produção de texto somente em
intermináveis exercícios de interpretações estanques e escrita de textos sem propósitos sociais definidos. O que equivale a dizer que o ler e o escrever com fins estritamente didáticos, ou o que hegemonicamente a escola elege como sendo texto não pode e nem deve mais fazer parte do discurso e
das práticas atuais de ensino por simplesmente não garantir o pleno desenvolvimento do exercício
de cidadania tão defendida por nossos projetos pedagógicos e tão distantes de materializarem-se
em consequentes práticas.
Desse modo, as aulas de leitura terão o seu destacado espaço. A leitura entendida aqui como uma
interlocução entre sujeitos sócio e historicamente determinados, pois “quem lê também produz
sentidos. E o faz não como algo que se dá abstratamente, mas em condições determinadas, cuja
especificidade está em serem sócio-históricos” (ORLANDI, 1993:101).
Por ser a leitura uma atividade entre sujeitos, não se concebe mais que as aulas de leitura na escola
se detenham apenas na decodificação de textos, considerando o aluno enquanto leitor passivo e
reduzindo a leitura a uma mera atividade monológica, incapaz de suscitar no aluno a compreensão
das múltiplas funções sociais dessa habilidade, ocorrendo o que Antunes já denunciava: “muitas
vezes o que se lê na escola não coincide com o que se precisa ler fora dela” (2003:28).
Quando se parte para a questão da produção de texto no contexto escolar, a realidade não difere,
uma vez que a concepção dessa habilidade ainda mantém o velho propósito avaliativo de se escrever
para o professor aferir uma nota. O que vai de encontro com a proposta defendida nesta pesquisa e
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
tão bem assegurada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais em Língua Portuguesa (PCN, 2002:76):
“Ser produtor de textos falados ou escritos e atuar como interlocutor e leitor requer o desenvolvimento progressivo de diversas habilidades e competências”. E essas competências não podem ser
reduzidas apenas a produzir textos na escola e para a escola, desvinculando o ato da escrita das
condições sociais que lhe são inerentes.
Em seu livro Portos de passagem, Geraldi critica que a produção de texto na escola ainda não é
trabalhada como uma prática social, restringindo apenas à correção do professor e vai mais longe,
quando salienta a diferença entre redação e produção de texto, “na primeira produzem textos para
a escola; e na segunda produzem textos na escola” (1997:136). Para esse autor, na escola “há muito
escrita e pouco texto” porque: “para produzir um texto (em qualquer modalidade) é preciso que se
tenha o que dizer [...] para quem dizer [...] o locutor se constitui como tal, enquanto sujeito que diz
o que diz para quem diz”.
Dentro dessa perspectiva, importa ressaltar que o indivíduo enquanto ser histórico fala para ser
ouvido, escreve para ser lido, o que evidencia aí, o caráter dialógico da linguagem, ou seja, a presença de um eu e um tu, muitas vezes suprimida na escola e substituída por uma abstração, “preparando o aluno só para um tipo de interação linguística” (TRAVAGLIA, 2003:96). Ou seja, formando leitor
e produtor de um só tipo de texto, desconsiderando todas as diferentes formas enunciativas de um
discurso e os diferentes gêneros textuais correntes na sociedade.
É válido ressaltarmos que a expressão gêneros textuais refere-se a textos materializados, encontrados em nossa vida diária e que representam características sócio-comunicativas definidas por seus
conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição próprios. (MARCUSCHI, 2002).
A inserção dos gêneros textuais no ambiente escolar se explica, em primeiro lugar, por a escola ser considerada um espaço de comunicação em potencial, ocasião de produção/recepção
de textos o que implica uma série de atividades que promovam no aluno situações de enfrentamento dos desafios linguísticos demandados socialmente. Nessa perspectiva entendemos
que a escola deve oportunizar o contato com todas as formas discursivas que circulam socialmente, ou seja, os diferentes tipos de textos para as diferentes audiências em diferentes
instâncias comunicativas.
Dessa forma, ao se adotar uma escrita dialógica com vista a atingir os objetivos sócio-comunicativos,
manifestados em diferentes gêneros textuais se está garantindo a competência textual do alunado
e, principalmente, ativando a sua competência reflexiva, adquirida através de uma investigação mais
profunda do que se quer abordar numa postura mais propriamente a dialética.
Breve percurso da dialética
Entendida no início, na Grécia antiga, como uma “arte do diálogo”, a dialética adquririu, com o passar dos anos, várias concepções e utilizações no campo científico e filosófico. Platão já a utilizava
em seus diálogos, embora tomando-a na perspectiva da igualdade, da ausência do conflito, mas
já admitindo que é através da dialética que se passa da doxa (opinião) para a epistéme que seria o
conhecimento autêntico (COTRIN, 2006:90).
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Heráclito ampliando o conceito dialético, salienta que esse “diálogo” só podia existir entre os diferentes. A diferença assim entendida como uma contrariedade ou conflito, acrescentando a isso a
ideia de movimento. Não é a concórdia que diz o dialógo, mas a divergência a “exarcebação do
conflito” (NOVELI; PIRES, 1996). Assim a lógica dialética, segundo Konder (1981) é a possibilidade
da compreensão da realidade como essencialmente contraditória e em permante transformação.
No entanto, é com Hegel, filósofo alemão que viveu em 1770 a 1891 que a dialética foi tratada como
preocupação filosófica e como método, no desenvolver do princípio da contrariedade, destituindo a
visão dicotômica entre sujeito e objeto da lógica formal e preconizando que uma coisa é e não é ao
mesmo tempo sob o mesmo aspecto. Assim, além do princípio da contrariedade, Hegel apresenta
uma dimensão de totalidade e historicidade (NOVELI; PIRES, 1996).
Marx, ao criticar o idealismo do Hegel, confere o caráter material e histórico à dialética, conseguida
como sendo o “movimento do pensamento através da materialidade histórica da vida do homem
em sociedade”. O princípio de contradição presente nesta lógica, indica que para pensar a realidade
é possível aceitar essa contradição, partindo do empírico, (real aparente) para, através do abstrato
(teoria), chegar-se ao concreto que seria o real pensado. Assim, “a diferença entre o empírico e o
concreto são as abstrações (reflexões) do pensamento que tornam mais completa a realidade observada” (PIRES, 1997:4). Seria, então, o processo do senso comum para a reflexão teórica.
O caráter dialético nas propostas de redação do Enem
É desse processo do senso comum para a reflexão, próprio da dialética, que devemos nos utilizar
para aplicação no cotidiano escolar, e mais especificamente, nas aulas de redação. É essa prática
que implicitamente reclama as propostas de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
Prova que segundo o próprio documento propõe que “os alunos reflitam sobre temas diretamente
relacionados ao exercício de cidadania” (ENEM, 2009:89). Segundo o mesmo documento, a redação
é uma “avaliação de competências”. Os temas abordam questões de ordem política, econômica,
social, cultural e científica, apresentados como uma situação-problema “para qual o autor do texto
deverá propor soluções, respeitando os direitos humanos” (ENEM, 2009:81). Quanto à estrutura, é
exigida sempre a tipologia dissertativo-argumentativa.
Analisemos, então, os quatro últimos temas do ENEM como forma de investigar a concepção de
leitura e escrita implícita nesses temas.
No primeiro momento, temos um tema do ano de 2006, denominado O poder de transformação da
leitura. A proposta conduz o candidato para um viéis mais profundo da análise temática, não mais
admitindo a visão do sensocomum que “ler é uma viagem”, mas,sobretudo, a força transubjetiva
da leitura, o poder exercido por esse mecanismo de linguagem na relação do sujeito com o mundo.
Leva o indivíduo a conceber a habilidade leitora além do que se apregoa na escola, como uma atividade quase estritamente didática, provocando o redator a buscar convincentes argumentos, ao
valer-se das antíteses para confrontar ideias, ainda que não saia substancialmente da doxa.
Em 2007, o desafio de se conviver com a diferença foi o tema da redação do Exame. Como proposta, foram apresentadas letras de música – Ninguém = Ninguém, dos Engenheiros do Havaii, e Uns
Iguais Aos Outros, dos Titãs – além de declaração da UNESCO sobre diversidade cultural. Novamente
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
constatamos a exigência da capacidade de síntese da realidade na produção textual do candidato.
Ressaltamos, assim, que a banca não está propondo discursos óbvios que rezam sobre a importância da inclusão ou, muito menos, da necessidade de se conviver com as diferenças, mas, a partir
dessa consciência, o candidato fugir e adentrar numa questão mais premente que seria o desafio,
os problemas que temos de enfrentar no processo do discurso para a práxis social. Vale aqui salientar, que na estrutura proposta pelo Enem, de um texto dissertativo-argumentativo, exige-se que na
conclusão haja ideias de “intervenção”, ou seja, o candidato deve mostrar saídas para a “situaçãoproblema” por ele apresentada. O pensar, nesse sentido, não se restringe apenas ao âmbito da reflexão pela reflexão, mas a um refletir que traduza verdadeiras ações no meio em que se está inserido.
O candidato precisa apresentar uma determinada competência de leitura de mundo, valendo-se de
toda bagagem textual da escola e fora dela.
Em 2008, o tema foi o meio ambiente, com foco na preservação da Floresta Amazônica. Os textos
de apoio citaram a floresta como uma máquina de chuva e foram sugeridas três ações para manter
essa máquina funcionando. O candidato deveria escolher somente uma das ações sugeridas e, a partir daí, redigir um texto dissertativo. Também deveria ressaltar as possibilidades e as limitações da
ação escolhida. Nessa proposta, é claro o raciocínio dialético, quando provoca o candidato a dialogar
com elementos contrários, ou seja, possibilidades versus limitações, além do tema sugerir, não mais
um leitor-redator como espectador passivo das realidades que o circunda, mas um assumir do seu
protagonismo e de sua interferência social, ainda que no âmbito do expressar das ideias através de
fortes argumentos para comprovação da defesa dos posicionamentos.
Em 2009, propôs-se o tema o indivíduo frente à ética nacional. Os candidatos deveriam escrever um
texto de até 30 linhas, levando em consideração uma charge de Millôr Fernandes e dois textos sobre
indignação e corrupção.
Mais uma interpretação de mundo proposta ao candidato, para ser condicionada num código escrito. O poder da palavra é mais uma vez requisitado ao levar os egressos do ensino médio, a abordarem a relação indivíduo e sociedade a partir de um pensar elaborado. Conforme se constata, o tema
contempla várias áreas de conhecimento, direcionando o candidato para traçar diálogos com os
saberes acumulados nos seus anos de estudo e sem se dar conta de que estão, nada mais fazendo,
do que apresentando uma análise sistêmica do conhecimento ensinado, tão compartimentado ao
gosto da metodologia cartesiana escolar. No entanto, novamente se vê que já pressupõe a internalização dos conceitos de ética pelo candidato, não mais exigindo o conceito que dele tenha internalizado, mas o de associar o mesmo com a materialidade social. Vê-se que a tese já foi dada, o que se
requer do candidato é exatamente o conflito dessa tese com a antítese, para daí surgir uma síntese,
resultante de uma nova forma de ver e conceber a realidade social, partindo do concreto para o
abstrato, conforme a própria dialética marxista.
Compreendemos assim, que as propostas de redação do Enem requerem, a priori, competências e
habilidades leitoras do candidato, uma vez que é através de uma leitura crítica que se extrai as mais
diversas possibilidades e ângulos do tema a ser explorado, partindo, logo a seguir, para a seleção e
organização das ideias, advindas de todo esse processo dialógico e dialético.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Questionando o caráter dialógico na prova de redação do Enem
Outro aspecto a se discutir, nesse trabalho, seria o de ressaltar que além da dialética, o ato de redigir
apresenta um caráter dialógico, ou seja, pauta-se na concepção de linguagem enquanto interação
verbal preconizada por Bakhtin (2004), contrariando o subjetivismo idealista por conceber a linguagem como expressão do pensamento, ao conferir um caráter monológico ao ato comunicativo;
criticando igualmente, o objetivismo abstrato no racionalismo e no neoclassicismo que concebia a
língua como sistema estável e homogêneo, o que segundo Bakhtin nega o caráter sócio- histórico e
ideológico da linguagem. Assim, o referido autor propõe uma análise socioideológica da linguagem
assegurando que:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem
pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno
social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. (BAKHTIN, 2004:123)
Essa observação é bastante pertinente, quando nos propomos aqui, a questionar a proposta do
Enem por esse aspecto, enfatizando, desde já, o caráter dialógico implicitamente presente nos
temas propostos, ao elevar o candidato à categoria de um sujeito pensante. No entanto, o dialogismo deixa de existir no momento em que as propostas detêm-se em delimitar uma única tipologia
textual, no caso, a dissertação argumentativa, negando as múltiplas possibilidades de estratégia do
dizer, e mais ainda, quando na mesma proposta não deixa clara a audiência do texto, o para quem o
discurso deveria ser direcionado, como se a escrita fosse um ato monológico e mecânico em que a
presença ou não do interlocutor pouco afetaria o efeito de sentido do que se transmite. Afinal, compreendemos que dialética e dialogismo constituem habilidades comunicativas intrínsecas. Dissociálas correríamos o risco de uma análise parcial dos fatos, perdendo de vista a totalidade dos pólos
que dialogam ainda que com permanentes tensões.
Ao longo dessa discussão, podemos perceber que os temas do ENEM aqui referidos, exigem uma
grande postura crítica e analítica do educando, o que nos interroga se esse sujeito está preparado
para o mencionado tipo de prova que o leva a “inferir e interferir”, assumindo, inclusive, uma atitude
filosófica postulada por Chauí (1981). Afinal, não é só abordar o problema social, mas mostrar reais
intervenções em busca de soluções.
Outra inquietação seria a de verificar se os professores de Língua Portuguesa estão atentos para
essa realidade, ou se detêm ainda em preparar os alunos apenas para a parte formal do texto. Daí,
o estudante está ciente da macroestrutura e superestrutura de um texto dissertativo-argumentativo
e que não deve transgredir a norma culta. No entanto, demonstra discutível competência reflexiva,
por apenas repetirem ideias estereotipadas em que a obviedade ocupa os espaços discursivos em
detrimento de um pensamento lógico e aguçado.
Envio: 30 jun. 2010
Aceite: 30 jan. 2011
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
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Tradición y novedades en la literatura para niños en Cuba1
Tradição e novidade na literatura para crianças em Cuba
Tradition and news in children’s literature in Cuba
Mirta Yáñez2
Tradução de Madelon Faleh3
Resumo
A partir da vasta obra de José Martí, a literatura cubana para crianças e jovens formou um corpo literário de alto valor e transcendência que insiste no substrato ético alimentado tanto pela tradição martiana como por uma ótica humanista da sociedade
cubana atual. Em Cuba, está firmada a consciência de que a literatura para crianças deve passar pela prova de ser antes de tudo
Literatura, sem se descuidar da certeza de que toda obra artística está interessada e firma suas essências em uma determinada
vida espiritual, e também está condicionada pelo seu momento histórico e econômico. Junto a isso, distinguem-se e incorporam
os valores humanos eternos, presente no melhor da literatura infantil universal. Nas tendências atuais da literatura para crianças
e jovens em Cuba, é possível encontrar uma variedade de gêneros e vozes em cinco gerações.
Palavras-chave: infantil, Cuba, literatura
Abstract
From the huge work of José Martí, Cuban children’s literature has established a high value and transcendent literary
corpus that insist on ethic substrate supported both from martiniana tradition and humanist optic of Cuban society at
this moment. In Cube, it is settled the conscience that literature for children must pass throw the test of being Literature
before all, without forgetting the conviction that all artistic work is interested and establishes its essences in a specific
spiritual life, and is subjected by its historical and economic moment. It also differs and incorporate eternal human
values, presented on best of universal children’s literature. In present tendency of literature for children and young people in Cube, it is possible to find a variety of styles and voices in five generations.
Keywords: childish, Cube, literature
Resumen
A partir de la vasta obra de José Martí, la literatura cubana para niños y jóvenes ha ido conformando un cuerpo literario
de alto valor y trascendencia que insiste en el sustrato ético que se ha alimentado tanto de la tradición martiana como
de una óptica humanista de la sociedad cubana de hoy. En Cuba está muy afirmada la conciencia de que la literatura para
niños debe pasar la prueba de ser ante todo Literatura, sin descuidar el aserto de que toda obra artística es “interesada”
y asienta sus esencias en una determinada vida espiritual y condicionada por el momento histórico y económico en que
surge. Junto a ello, se distinguen y se incorporan a la suma, los valores humanos eternos, presentes en lo mejor de la
literatura infantil universal. En las tendencias actuales de la literatura para niños y jóvenes en Cuba es posible encontrar
una variedad de géneros y de voces en cinco generaciones en activo.
Palabras clave: infantil, Cuba, literatura
1. Texto apresentado pela primeira vez em 24 de junho de 2010, em palestra proferida para a Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio.
Foi conservado o caráter oral do texto.
2. Doutora em Ciências Filológicas e bacharel em Língua e Literatura Hispânica pela Universidad de la Habana. Estuda a literatura
latino-americana do século XIX e a literatura contemporânea cubana, em especial o discurso feminino. Contato: [email protected].
3. Graduada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e em Espanhol pelo Instituto Miguel de Cervantes. É professora de português e espanhol e pesquisadora na Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio.
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Tradición y novedades en la literatura para niños en Cuba
Mas de veinte años atrás, cerraba una charla sobre literatura infantil cubana, aquí mismo en Brasil,
afirmando que, “sin lugar a dudas, la literatura infantil cubana ya es mucho más que una promesa,
y sus creadores, todos, tienen en Cuba a su disposición el célebre espejo de Alicia, de Carroll, para
traspasar al mundo de la fantasía”.
En aquel recuento, o en cualquiera que se haga sobre literatura infantil cubana, tenía y tiene que encabezarse con el nombre de José Martí, excepcional precursor de este corpus literario en nuestro continente.
Afortunada la literatura que posea personajes que todos conozcan y sientan como cercanos, incluso
que llegan a la familiaridad no sólo a través de la lectura, sino de la tradición. Pero aún más afortunada es aquella literatura que se reconozca en un personaje que los niños recuerden para siempre
y lo tengan como un amigo cotidiano. Gracias a nuestro José Martí, en Cuba tenemos un personaje
así que es Pilar, la niña del poema “Los zapaticos de rosa”.
En l889, José Martí creo la revista para niños La Edad de Oro, texto fundacional de la literatura para
niños en Cuba, y pienso que igualmente lo es también de nuestra América de habla hispana.
Por supuesto, no existe ninguna presencia en nuestra escasa cultura prehispánica, aunque cabría
mencionar la recuperación muy tardía de los mitos arahuacos y otras referencias caribeñas; ni mayor
interés en la pobre literatura colonial dirigida a los niños; la solemnidad del tono romántico y las agudas preocupaciones sociales marcaron nuestro siglo XIX que no acudió para nada al pasado medieval
ni a las aventuras caballerescas, pero sí abusó del preceptismo, la retórica y la aplicación de un universo moral heredado de la tradición española y francesa. Fábulas hubo a montones, aunque dentro
de ellas valdría rescatar la aplicación bien intencionada ─y que correspondía con el proyecto social
de los liberales románticos latinoamericanos─ de defender “lo cubano”, en tiempos de búsqueda
de una identidad americana. Pero en nuestro siglo XIX brilla una sola estrella: “La Edad de Oro”, con
fuerte fulgor como para llegar a iluminar el presente.
El siglo XX se abrió con la flamante ─y falseada─ república. No eran tiempos propicios para las artes,
y hubo algunas que sufrieron con mayor rigor la avalancha neocolonial de Estados Unidos y los percances de una economía subdesarrollada. La literatura infantil, por su doble fragilidad ─literatura, y
dedicada a los niños─, no tuvo buena suerte y los intentos aislados, aunque no alcanzan a desbrozar
los enyerbados caminos de la mojigatería, sirven de tarjas indicadoras a la tradición, como El Romancero de la maestrilla, de la escritora Reneé Potts. Algunos autores, como Nicolás Guillén y Emilio
Ballagas, compartieron el área de su obra que se apropia de la tradición afrocubana con los intereses
infantiles, de igual manera la presencia de los temas folklóricos de la tradición oral se deja sentir en
recopilaciones y antologías de la época.
Junto a Nicolás Guillen que más tarde publicaría Por el mar de las Antillas anda un barco de papel y
Mirta Aguirre con su Juegos y otros poemas, debo mencionar a la inefable trovadora Teresita Fernández, quien, sin llegar a “escribir” una obra para niños, fue llenando, con sus canciones y personajes
muy cubanos, un vacío, y creo el personaje del gato “Vinagrito”, canción infantil que creo es la única
que puede ser coreada por varias generaciones. Así mismo, cabe distinguir algunos nombres en la
creación de un espacio de tradición que ha servido de base para toda la creación posterior: Eliseo
Diego, amen de ser uno de los más importantes escritores cubanos, dirigió y encaminó concep45
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
tualmente el Departamento de Literatura y Narraciones infantiles de la Biblioteca Nacional en los
tempranos años sesenta4 y de quien puede anunciarse la próxima edición de su excepcional versión
al español de Winnie The Pooh; Herminio Almendros ─ejemplar como educador y defensor de los
mejores valores de esta literatura─ autor entre otros textos, de su magnífico Oros viejos y Lecturas
ejemplares; Alga Marina Elizagaray, promotora de la literatura infantil y fundadora de la revista de
crítica “En julio como en enero” en 1979, la cual, por salir dos veces, fue bautizada por el propio
Eliseo con ese famoso verso de José Martí; y Dora Alonso ─ de quien se celebra este año su centenario─ con la creación del personaje Pelusín del Monte, la autora contemporánea más relevante.
Desde los primeros tiempos, y a pesar de las distintas polémicas dentro de la intelectualidad5, no ha
dejado de insistirse en el sustrato ético que se ha alimentado tanto de la tradición martiana como de
una óptica humanista de la sociedad a que se aspiraba a llegar. Cabría decir que, a pesar de todos los
problemas, no se ha perdido de vista esto. De hecho, la literatura infantil cubana se sostiene como
heredera de “La Edad de Oro” y de los presupuestos de una sociedad que sigue estableciendo como
una de sus prioridades la formación de las nuevas generaciones. De esta manera se confirma el relevo
generacional de escritores de una literatura para niños y jóvenes escrita en español que es reflejo y
resultado, como tendencia dominante, de este pensamiento, con liberad expresiva, ya que los parámetros que pudieran servir para crear límites a la literatura para niños en Cuba, solo se utilizan para
ajustar las cuentas a la seudoliteratura, al racismo, a la violencia y a otras manifestaciones que, desgraciadamente, se hacen presentes en algunos materiales para niños de nuestro complejo mundo de hoy.
En Cuba está muy afirmada la conciencia de que la literatura para niños debe pasar la prueba de ser
ante todo Literatura, sin descuidar el aserto de que toda obra artística es “interesada” y asienta sus
esencias en una determinada vida espiritual y condicionada por el momento histórico y económico
en que surge. Junto a ello, se distinguen y se incorporan a la suma, los valores humanos eternos,
presentes en lo mejor de la literatura infantil universal, reconocibles dentro de contextos sociales
dados y readaptados en épocas siguientes según la evolución de la humanidad. Así, tradición propia, nuevo mensaje, incorporación del lenguaje contemporáneo, a partir de la interpretación de la
identidad latinoamericana, rescate de la imaginación popular, todo ello se une en la literatura escrita
para niños en Cuba al empleo de la fantasía del creador como a cada cual le venga en ganas.
Y aunque no todo es color de rosa, algunos de los textos se regodean en un estilo he dado en llamar
“fantasía retórica”, o sea, el abuso de recursos que ya han probado su operatividad, sin lugar a dudas,
puede decirse que la literatura infantil en Cuba constituye un cuerpo con variedad de recursos expresivos, amplio registro temático y la coetaneidad de cinco generaciones de escritores que publican,
concursan, polemizan y tratan de encontrar el meollo mágico del acceso al interés de los niños.
Según Maria del Carmen Quiles Cabrera, especialista española, la literatura para niños y jóvenes en
Cuba, “en los últimos años, esta se ensalza como un corpus de textos universales donde la calidad
estética, el compromiso social, el aspecto psicológico y la fabulación se dan la mano en las plumas
de quienes se han consagrado ya como grandes autores cubanos” (2006).
4. Creador en aquel entonces de la serie “Textos para narradores” y “Teoría y técnica del arte de narrar”.
5. A veces, algunas de estas disquisiciones se vuelven verdaderos torneos o discusiones teóricas “medievales” mas cabe insistir que
lo que importa es la honradez al enfrentar el fenómeno literario y, en el caso de la literatura para niños, la defensa de una postura
ética que repudie las lacras del machismo, el racismo y otros malditos “ismos”.
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La necesidad ya reconocidas por la crítica ─y también por los escritores─ de abordar la realidad con
una mirada crítica, sin conformismos, más reflexiva sobre la sociedad cubana de hoy, va haciendo
que desaparezcan de nuestro panorama de la literatura escrita para niños ─al igual que de la literatura escrita para adultos─ los elementos de “pasatismo” o “escapismo”.
Bien es sabido que no basta el dominio del estilo, ni tan siquiera poseer en exclusivo un tema magnífico. Hay que añadir un ingrediente que, de buenas a primeras, parece amasado con la magia y
los polvos de Tinker Bell, mas si se le observa bien se ve que surge de la comprensión profunda del
universo del niño, de la exquisita sensibilidad y del dominio del quehacer literario.
En las tendencias actuales de la literatura para niños en Cuba es posible encontrar una variedad de
géneros y de voces. Poesía lírica y épica, la más abundante, pero también teatro, testimonio, relato
histórico ─que ha mantenido su intensidad a partir del interés por reflejar directamente nuestra
historia─, biografía, relatos policíacos y hasta en el comic; pero, a mi modo de ver, el género más
sobresaliente de todos estos años ha sido la narrativa de ficción, es decir, el cuento y la noveleta.
La decana de estos narradores es Renée Méndez Capote (1901-1989), autora de lo que es ya un
clásico dentro de la literatura cubana para jóvenes: Memorias de una cubanita que nació con el
siglo (1963), novela costumbrista sobre las primeras décadas del siglo XX, que rememora también
con desenfado y mirada risueña el pasado de la colonia y las luchas por la Independencia. Su tono
de memoria ─no pasatista, sino de nostalgia crítica─ acude al recuerdo que rescata las tradiciones
con humor, ternura, dominio de la sátira y del detalle cotidiano. El conjunto de su obra mantiene
con vitalidad ─igual que su autora lo fue─ la voz popular que salva lo hermoso del pasado y critica lo
caduco, con sensibilidad excepcional y agudo poder de observación. A mi modo de ver, este libro no
ha encontrado todavía un rival en cuanto a compartir experiencias vitales sin caer en el manido ego
o en excesivas alusiones teóricas.
Por su parte, Dora Alonso (1910-2001) es la autora cubana para niños más leída, publicada y laureada
de todos. Su obra es extensa y se remonta a textos y personajes inscritos en la memoria de los niños
que ahora tienen ya son abuelos. En l964 publicó la primera novela de aventuras para niños, Aventuras de Guille. Dora Alonso afirmaba que escribir para niños es “dos veces literatura” y ella lo puso
en práctica con una intención de profundidad conceptual sin abandonar la sencillez y un tratamiento
muy cubano del discurso literario. Con El valle de la pájara pinta obtuvo el Premio Casa de las Américas 1980 y posteriormente el Diploma Máximo Gorki (1985) que concede el IBBY y El cochero azul
se ha convertido en uno de sus libros para niños más estimados y original; sin moralejismo, esta obra
establece valores humanos eternos e incluso aborda la lucha contra el machismo, con mucha fantasía.
Pues, a pesar de todas las batallas libradas, el sexismo sigue siendo una de las asignaturas pendientes donde no es fácil encontrar personajes femeninos, niñas, que representen el cambio necesario
de perspectiva en ese sentido.
En la tendencia de utilizar al niño común y corriente como personaje para recrear un universo que
proviene directo de la memoria afectiva, portador de una visión del mundo inocente y lírica, se destaca Nersys Felipe, escritora que ha obtenido dos premios Casa de las Américas ─en l975 y en l976─
con sus libros Cuentos de Guane y Román Ele. Julia Calzadilla (l943) asimismo ganadora del premio
Casa de las Américas en l984 con su libro Los chichirikus del charco de la Jícara, autora además de
cuadernos de poesías para niños, ha centrado su interés en la reproducción de esencias latinoame47
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
ricanas, caribeñas, y, en este último texto, a la incorporación a la literatura de viejos mitos afrocubanos, con gracia, humor, desenfado y buen manejo del idioma. Por su parte, dentro de la temática
del folklore y rescate de las tradiciones afrocubanas que tuvo su iniciadora en los cuentos de Lydia
Cabrera, Teresa Cárdenas aborda en sus textos, cargados todos de autenticidad con una mirada
novedosa y audaz que transita del mito a la cruda realidad, los contextos de la raza negra en Cuba
con problemáticas crudas como el racismo y la marginalidad. También ganadora de un premio Casa
de las Americas con su libro Perro viejo, dirigida al lector juvenil y escrito con singular maestría, es
autora de otros excelentes libros como el premiado Cartas al cielo,
Ivette Vian (1944), otra autora con varios premios en su haber, es una humorista de nacimiento y de
ahí su peculiar prosa para niños que rompe con muchos de los esquemas establecidos. Sus narraciones se alimentan ─según ella misma ha expresado─ de la capacidad de asombro, de la curiosidad, la
ternura y la espontaneidad. Sus libros más atractivos son Marcolina, premio del concurso “La Edad
de Oro” en 1984 y, más actualmente, La isla y la nube. La popularidad de Ivette Vian ha alcanzado
su mayor altura en la creación de una serie televisiva con el uso del propio personaje de Marcolina,
llamado “La sombrilla amarilla”. En esta misma línea cabe mencionar a Olga Marta Pérez autora de
un gracioso libro Papatino y mamagorda.
En el narrador Luis Cabrera Delgado (l945), cabe detenerse por su fecunda labor que ha pasado de
sus libros Antonio, el pequeño Mambí (1985) y en l988 su hermoso texto Tía Julita, con el cual ha
obtenido varios premios y es, en mi opinión, una de sus obras mejor escritas e imaginativas. No en
vano su autor ─psicólogo de profesión es también un autor preocupado por la actualización y el
valor de la acumulación de lecturas. La mayor virtud de Tía Julita es la creación de un mundo mágico
dentro de la más absoluta cotidianidad de los niños de hoy, sin falsas ñoñerías líricas ni las menciones indiscriminadas de palmas o colibríes para ratificar la cubanía. Tía Julita es un libro muy cubano
por su esencia y por su punto de vista. Pero la trascendencia de Luis Cabrera es que no se contentó
con ello y siguió produciendo en esa misma línea, pero abordando problemas difíciles, al igual que
otros autores desprejuiciados, como la muerte, la homosexualidad, la discapacidad física, la soledad
y los conflictos familiares.
En 1988, decía yo de mi hermano Albertico: “por su parte, Alberto Jorge Yáñez (1957) tiene hasta
ahora un solo libro publicado, Cuentan que Penélope, varios premios en su haber y algunos libros
esperando en la gaveta. Los críticos consideran a su discurso literario como alucinado y desbordado,
y tienen razón. A ello se suma la utilización de un complejo juego de palabras, un humor conceptual,
junto a una visión satírica de la realidad que no lo hacen de fácil acceso. Su mayor virtud radica en
la unión de la cotidianidad más rasante al más exagerado disparate.” Por suerte, siguió publicando,
y dando rienda suelta a su enloquecida imaginación, en libros tales como Este libro horroroso y sin
remedio, el primer libro infantil en ganar el prestigioso “Premio de la Critica” en el año 19976. Aunque ya no está, la aparición de aquellos libros que esperaban en una gaveta y que siguieron incrementándose, aparecieron en un maletín.
Recientemente, otros libros para niños han ganado el premio de la Crítica, entre ellos, Josefina de
Diego con sus Rimas y divertimentos. Lo distingo por su excepcional presencia en el catálogo de
6. La fogata roja, testimonio para adolescentes ganó el Premio 1985, instaurado desde 1982. Perro viejo de Teresa Cár-
denas en el 2006, Pablo en la luna con las musarañas, de Denia García Ronda y Un gato siberian husky, de Josefina de
Diego en el 2007 y Cuentos del buen y mal amor, Nelson Simón, 2008, entre otros.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
libros cubanos de hoy, porque su autora ha logrado alcanzar un lenguaje sencillo y culto a la vez,
gracioso y ajeno a la vulgaridad cotidiana que tanto perjudica el comportamiento actual de nuestras
nuevas generaciones. Junto al uso de composiciones clásicas de la tradición literaria hispánica, como
la décima (por lo demás nuestra estrofa nacional del canto campesino cubano) Josefina de Diego
incursiona, con arrojo y tacto a la vez, en atraer al español formas nuevas, propias de otras culturas,
nunca usadas de manera original, que yo sepa, en la literatura cubana. Son los llamados “limericks”
que provienen del “nonsense”, del absurdo, el sin sentido, cuya lógica parece existir de alguna
manera muy particular, con muy pocos cultores entre nosotros, entre ellos el propio Albertico Yáñez,
así que por más de una razón sentimental, además de estética, disfruto estos versos que vienen de
aquellas poemas de Mamá Oca que yo carreteaba a mi kinder y que me hacen recordar la merienda
del Sombrero Loco y la Liebre Marceña, y algunos “bolotrucos” de Albertico.
Siempre bienvenidas las parábolas simples de las cuales se desprende alguna instrucción alegórica, fidelidad a las reglas del buen decir, el noble sentido de la vida y la naturaleza expresado con delicadeza,
homenajes a personajes clásicos de la literatura infantil, la intención de incubar un mensaje de bien con
humor, son algunas de las virtudes de algunos autores que ya he mencionado sus nombres. Entre ellos:
Esther Suárez Durán, Mildred Hernández Barrios, Enrique Pérez Díaz, Enid Vian, Emilia Gallegos, Celima
Bernal, Omar Felipe Mauri, Denia García Ronda, Maylen Domínguez, José Manuel Espino y Nelson Simón.
Revisando la obra inédita de mi hermano, me ha hecho pensar en algunas de las tantas paradojas
de nuestro planetico literario, dentro de la llamada literatura infantil, que suele ser coreada como
necesaria, priorizada (y un etcétera de calificativos), en tanto se le sigue mirando por encima del
hombro en lo que a su ELE mayúscula de Literatura se refiere.
La otra paradoja que bordea la anterior es que a pesar de recursos y empeños, no se logran libros
bellos, agradables a la vista y al tacto, y al olfato. Y si viene al caso a pasarles la lengua… ¿o es que
acaso no tuvimos la suerte de tener en nuestra infancia algunos libros que parecían tan hermosos
como para comérselos? La literatura para los niños debe entrar por todos los sentidos. Y estos papeles gacetas desvaídos, con caracteres de difícil lectura, con tipos de letras aburridos, sin colores, con
dibujos venidos a menos por la mala calidad de la impresión, no creo que puedan permanecer en el
recuerdo de ningún niño cubano. Y para colmo, en muchos de los textos, la calidad literaria, la precisión didáctica, el humor que debiera esperarse de libros para tal edad, se retuercen en lenguajes
simplones o pomposos, mensajes patidifusos y tratamientos soporíferos. Cabría la duda de si la literatura infantil no ha llegado a ser ese saco roto, pero bien amarrado, donde todo cabe porque todo
parece venderse con facilidad. Y otra pregunta a hacerse sería: ¿nuestros niños verdaderamente
leen la literatura escrita para niños o por desgracia les basta y les sobra atragantarse con la grosería
de las letras de canciones de adultos y los parlamentos de la telenovela de turno?
Y, mientras yo organizaba estos apuntes me vino a la memoria un libro de la niñez, uno de los primeros, de carátulas de pasta, grande, casi de mi tamaño de entonces y que yo quería mantener siempre
cerca, hasta lo carreteaba conmigo para el kinder cuando ni siquiera había aprendido todavía a leer.
Era un volumen de versos, letras de canciones, refranes, epigramas, dicharachos en versos pareados,
ilustrado por imágenes que todavía sobreviven a la desmemoria de tantos años. Qué fortuna, me
dije, es haber poseído un libro que lo acompañe a uno toda la vida. Pobre de aquellos que en la rispidez de la existencia no puedan contar con el asidero de un viejo poema o de un personaje inefable
de la literatura. Cabría preguntarse si mucha de la pobreza espiritual que a veces nos abofetea no
provenga de gente desprovista del mágico arsenal de la imaginación y de la poesía.
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Los criticos se detienen a veces en polémicas banales y se entretienen oponiendo realismo y fantasía, o equiparan falsamente el uso de la tendencia realista con las narraciones de las tragedias
del mundo. Estoy de acuerdo que los niños deben saber el sitio en que viven, pero el talento está
en mostrárselo sin perturbar el espíritu. Insisto en lo maravilloso y en lo mágico sustentados por lo
real., o lo que ya Cervantes antaño nos mostraba al diferenciar lo que luego Alejo Carpentier llamó
“lo real maravilloso” y Gabriel García Márquez “el realismo mágico”. Ya ambas formas de interpretar la realidad fueron descritas en Los trabajos de Persiles y Segismunda. Mundos alternos, pero
verosímiles. La verosimilitud es la clave de las grandes obras. Y cuando los niños salen volando en
sus bicicletas en ET no hay un solo espectador que no lo asuma como una “verdad” por muy entre
comillas que la escribamos.
Según yo lo veo, la trivialidad no tiene proporción directa con el realismo o la fantasía. La fantasía
no es sinónimo de “edulcoración” ni tampoco de ingenuidad. En los grandes clásicos el bien se la
juega con el mal, la belleza con la fealdad, la bondad con la crueldad. Algunos escritores se apuran
en incorporar las nuevas tendencias, pero la falsedad de ciertos recursos técnicos ─o “tecniquerías”
como las llamaba Unamuno─, el vano afán de mostrar audacias temáticas, a veces desembocan en
libros banales, aburridos o vulgares. O aún peor, confunden la literatura con niños, con literatura
para niños, y más grave: literatura para ser consumida entre los escritores mismos. Así pienso y así
me pronuncio en ese debate, siempre en defensa de la imaginación, de la ética y de la estética, en
nuestro caso con la presencia de una cubanía esencial y con la enseñanza que rehuya todos los vestigios de preceptismo.
Cabe desear, pues, que los niños sí lean y que los familiares, editores, educadores (entre otros) tengan buen cuidado de separar los granos dorados de la pajilla a la hora de dar a conocer un texto a
aquellos que todavía no puedan escoger por si mismos. Tengo la opinión de que la literatura escrita
con la mente creativa puesta en los lectores niños (tanto como la Otra) no tiene la obligación de
dejar establecido un mensaje explícito, pero a diferencia de la Otra se supone que asiente algún tipo
de magisterio. Aterra un tanto pensar que lo malo o lo bueno que le entreguemos sea para toda la
vida. Que la luna llena de la literatura no se les asemeje a un rancio queso lleno de hoyos.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Tradição e novidade na literatura infantil em Cuba
Há mais de vinte anos, aqui no Brasil, finalizava-se uma conversa sobre literatura infantil cubana,
afirmando-se que, “sem dúvidas, a literatura infantil cubana já é muito mais que uma promessa, já
que seus criadores têm à sua disposição, em Cuba, o célebre espelho de Alice, de Carroll, para transpassar ao mundo da fantasia”.
Naquela antologia, ou em qualquer outra que se faça sobre a literatura infantil cubana, é preciso registrar o nome de José Martí, um excepcional precursor desse corpus literário em nosso continente.
Afortunada é a literatura que possua personagens que todos conheçam e sintam como próximos,
que são familiares não apenas no mundo da leitura, mas também na tradição. Porém, é ainda mais
afortunada aquela literatura em que se reconheçam personagens que as crianças nunca se esqueçam e que o tenham como um amigo do dia a dia. Graças a nosso José Martí, temos em Cuba um
personagem assim: Pilar, a menina do poema “Los zapaticos de rosa”.
Em 1889, José Martí criou a revista infantil La Edad de Oro, texto fundador da literatura infantil em
Cuba, e acredito que também o é da nossa América Hispânica.
Obviamente, não existe nenhuma presença marcante da literatura infantil em nossa escassa cultura
pré-hispânica, ainda que mencionemos a recuperação bastante tardia dos mitos arahuacos e outras
referências caribenhas; não há também um maior interesse, na pobre literatura colonial, algo direcionado às crianças. A solenidade do tom romântico e as crescentes preocupações sociais marcaram
nosso século XIX, o que não recuperou em nada o passado medieval nem as aventuras de cavalaria.
Abusou-se, porém, do dogma, da retórica e da aplicação de um universo moral herdado da tradição
espanhola e francesa. Fábulas, havia aos montes, com aplicações bem-intencionadas e que correspondiam com o projeto social do liberais românticos latino-americanos — de defender “o cubano”,
em tempos de busca de uma identidade americana. Porém, no século XIX brilha uma só estrela: La
Edad de Oro, com um brilho tão intenso que ilumina até o presente.
O século XX inaugurou-se com a reluzente — e falsa — república. Não foi uma época propícia para
as artes, houve algumas que sofreram com maior rigor a avalanche neocolonial dos Estados Unidos
e os percalços de uma economia subdesenvolvida. A literatura infantil, por sua dupla fragilidade —
ser literatura, e dedicada às crianças —, não teve boa sorte, e as tentativas isoladas, ainda que não
o suficiente para limpar os caminhos nebulosos do conservadorismo, servem como setas que apontam para a tradição, como El Romancero de la maestrilla, da escritora Renée Potts. Alguns autores,
como Nicolás Guillén e Emilio Ballagas, compartilharam na temática de suas obras, que se apropriam
da tradição afrocubana, os interesses infantis. Do mesmo modo, a presença dos temas folclóricos da
tradição oral pode ser percebida nas coleções e antologias da época.
Junto a Nicolás Guillen, que mais tarde publicaria Por el mar de las Antillas anda un barco de papel,
e Mirta Aguirre com seu Juegos y otros poemas, devo mencionar a inefável trovadora Teresita Fernández, que mesmo sem chegar a “escrever” uma obra para crianças, preencheu um vazio com suas
canções e personagens cubanos, e acredito que a canção cujo personagem é o gato “Vinagrito” é
a única que pode ser lembrada por várias gerações. Ainda assim, cabe relacionar alguns nomes
na criação de um espaço de tradição que tem servido de base para toda a criação posterior: Eliseo
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Diego, que além de ser um dos mais importantes escritores cubanos, dirigiu e encaminhou conceitualmente o Departamento de Literatura y Narraciones infantiles da Biblioteca Nacional no início da
década de 19601 (e de quem se pode anunciar a próxima edição de sua excepcional versão em espanhol do Winnie The Pooh); Herminio Almendros (exemplar como educador e defensor dos melhores valores desta literatura), autor, entre outros textos, de seu magnífico Oros viejos e do Lecturas
ejemplares; Alga Marina Elizagaray, promotora da literatura infantil e fundadora da revista teórica
En Julio como en Enero em 1979, que, por ter saído duas vezes, foi batizada pelo próprio Eliseo com
esse famoso verso de José Martí; e Dora Alonso, com a criação do personagem Pelusín del Monte, a
autora contemporânea mais relevante.
Desde os primeiros tempos, e apesar das distintas polêmicas dentro da academia2, não se deixou de
enfatizar o substrato ético, que tem alimentado muito da tradição martiana, como uma perspectiva
humanista da sociedade que se desejava chegar. Pode-se dizer que, apesar de todos os problemas,
isso não se perdeu de vista. De fato, a literatura infantil cubana se afirma como herdeira da “Idade
do Ouro” e dos pressupostos de uma sociedade que segue estabelecendo a formação das novas
gerações como uma de suas prioridades. Desta maneira, confirma-se a importância dessa geração
de escritores de uma literatura para crianças e jovens em espanhol. Essa literatura é reflexo e resultado de uma tendência dominante de pensamento que tem liberdade expressiva, já que os parâmetros que serviam de limites à literatura para crianças em Cuba só são utilizados para ajustar as contas
com a pseudoliteratura, ao racismo, à violência e a outras manifestações que, infelizmente, se fazem
presentes em alguns materiais para crianças de nosso complexo mundo atual.
Em Cuba, afirma-se enfaticamente que a literatura para crianças deve passar pela prova de ser, antes
de tudo, Literatura, sem deixar de lado a afirmação de que toda obra artística tem um público, funda
suas essências em uma determinada crença e está condicionada ao momento histórico e econômico
em que surge. Junto a isso, distinguem-se e incorporam-se valores humanos, presentes no melhor
da literatura infantil universal, reconhecíveis dentro de contextos sociais pré-estabelecidos e readaptados em épocas posteriores segundo a evolução da humanidade. Assim, tradição própria, mensagem nova, incorporação da linguagem contemporânea, a partir da interpretação da identidade
latino-americana, resgate da imaginação popular, tudo isso se une na literatura escrita para crianças
em Cuba ao emprego da fantasia do criador como a cada um desejar.
E ainda que nem tudo seja cor-de-rosa, alguns dos textos usam um estilo chamado “fantasia retórica” [“fantasía retórica”], ou seja, um estilo que abusa de recursos discursivos para comprovar seu
funcionamento. Sem dúvida, pode-se dizer que a literatura infantil em Cuba constitui um corpo com
variedade de recursos expressivos, amplo registro temático e a coexistência de cinco gerações de
escritores que publicam, participam de concursos, polemizam e tratam de encontrar o acesso principal ao interesse das crianças.
Segundo Maria del Carmen Quiles Cabrera, especialista espanhola, a literatura para crianças e jovens em
Cuba, “nos últimos anos, apresenta um corpus de textos universais em que a qualidade estética, o compromisso social, o aspecto psicológico e a fabulação aplaudem aqueles a quem as consagraram” (2006).
1. Criador naquele momento da série “Textos para narradores” e “Teoría y técnica del arte de narrar”.
2. Às vezes, algumas dessas exposições se tornam verdadeiras competições ou discussões teóricas “medievais” mas cabe
insistir que o que importa é a honra ao enfrentar o fenômeno literário e, no caso da literatura para crianças, a defesa de
uma postura ética que repudie as marcas de machismo, o racismo e outros malditos “ismos”.
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A necessidade já reconhecida pela crítica — e também pelos escritores —, de abordar a realidade
com uma visão crítica, sem conformismo, que reflita mais sobre a sociedade cubana atual, vai fazendo com que desapareçam de nosso panorama da literatura escrita para crianças e jovens — assim
como da literatura escrita para adultos — os elementos de lazer.
Sabe-se que não basta o domínio do estilo ou sequer ter um tema magnífico. Deve-se acrescentar
um ingrediente que a princípio aparece misturado com a magia e o pó mágico de Tinker Bell, masque, se observarmos melhor, veremos que surge de uma compreensão profunda do universo da
criança, de uma refinada sensibilidade e do domínio do fazer literário.
Nas tendências atuais da literatura para crianças em Cuba, é possível encontrar uma variedade de
gêneros e de vozes. Poesia lírica e épica, a mais abundante, mas também teatro, testemunho, relato
histórico — que manteve sua intensidade a partir do interesse de refletir diretamente sobre nossa
história —, biografia, relatos policiais e até histórias em quadrinhos; mas, a meu modo de ver, o gênero que mais se sobressaiu em todos esses anos foi a narrativa ficcional , isto é, o conto e o romance.
O mais velho desses narradores é Renée Méndez Capote (1901-1989), autora de um clássico dentro
da literatura cubana para jovens: Memorias de una cubanita que nació con el siglo (1963), romance
de costumes sobre as primeiras décadas do século XX, que rememora também com facilidade e
olhares sorridentes o passado da colônia e as lutas pela Independência. Seu tom memorialista — de
nostalgia — resgata as tradições com humor, ternura, sátira e o detalhe cotidiano. O conjunto de sua
obra mantém com vitalidade — como a de sua autora — a voz popular que salva o belo do passado e critica o que já está ultrapassado , com uma sensibilidade excepcional e um agudo poder de
observação. A meu modo de ver, este livro ainda não encontrou um rival no sentido de compartilhar
experiências vitais sem cair no ego obsoleto ou em excessivas alusões teóricas.
Por sua vez, Dora Alonso (1910-2001) é a autora cubana mais lida por crianças, a mais publicada e
aclamada por todos. Sua obra é extensa e remonta a textos e personagens que estão na memória
das crianças que hoje já são avôs. Em 1964, publicou o primeiro romance de aventuras para crianças, Aventuras de Guille. Dora Alonso afirmava que escrever para crianças é “duas vezes literatura”
e ela o pôs isso em prática com uma profundidade conceitual sem abandonar a simplicidade e uma
abordagem totalmente cubana do discurso literário. Com El valle de la pájara pinta ganhou o Premio Casa de las Américas (1980) e posteriormente o Diploma Máximo Gorki (1985) concedido pela
IBBY e El cochero azul se tornou em um dos seus livros para crianças mais aclamados e originais;
sem moralismo, esta obra estabelece valores humanos eternos e inclusive aborda a luta contra o
machismo, com muita fantasia.
Então, apesar de todas as batalhas ganhas, o sexismo continua sendo um dos temas em que não é
fácil encontrar personagens femininos, meninas, que representem a mudança necessária de perspectiva nesse sentido.
Na tendência de utilizar a criança comum como personagem para recriar um universo que provém
direto da memória afetiva, portador de uma visão de mundo inocente e lírica, destaca-se Nersys
Felipe, escritora que obteve dois prêmios Casa de la Américas — em 1975 e em 1976 — com seus
livros Cuentos de Guane y Román Ele. Julia Calzadilla (1943) também venceu o prêmio Casa de las
Américas, em 1984, com seu livro Los chichirikus del charco de la Jícara, autora também de livros de
poesias para crianças, centrou seu interesse na reprodução de essências latino-americanas, caribe53
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
nhas e, neste último texto,na incorporação da literatura de antigos mitos afrocubanos, com graça,
humor, habilidade e muita competência linguística. Por sua vez, aborda em seus textos, dentro da
temática do folclore e resgate das tradições afrocubanas (que teve início nos contos de Lydia Cabrera, Teresa Cárdenas), os contextos da raça negra em Cuba com problemáticas ainda não amadurecidas sobre o racismo e a marginalidade, de um modo autêntico, com um olhar novo e audaz que
transita do mito à crua realidade. Também ganhadora de um prêmio Casa de las Americas com seu
livro Perro viejo, dirigido ao leitor juvenil e escrito com maestria singular, é autora de outros excelentes livros como o premiado Cartas al cielo.
Ivette Vian (1944), outra autora com vários prêmios em seu currículo, é uma humorista de nascimento, por isso sua prosa para crianças é peculiar, pois rompe com muitos dos esquemas estabelecidos. Suas narrações se alimentam — segundo ela mesma expressou — da capacidade de assombro,
da curiosidade, da ternura e da espontaneidade. Seus livros mais atraentes são Marcolina, prêmio
do concurso La Edad de Oro em 1984 e, mais atualmente, La isla y la nube. A popularidade de Ivette
Vian alcançou seu ápice na criação de uma série televisiva com o uso da própria personagem Marcolina, chamada “O guarda-chuva amarelo”. Nesta mesma linha cabe mencionar Olga Marta Pérez,
autora de um agradável livro Papatino y mamagorda.
No narrador Luis Cabrera Delgado (1945), vale a pena se deter no seus livro Antonio, El pequeno
Mambí (1985) e em seu belo texto Tía Julita (1988), com o qual obteve vários prêmios e é, na minha
opinião, uma de suas obras mais bem escritas e imaginativas. Não por acaso, pois o autor dela
era psicólogo de profissão e também um autor preocupado em atualizar e valorizar o acúmulo de
leituras. A maior virtude de Tía Julita é criar um mundo mágico dentro do universo cotidiano das
crianças de hoje, sem uma falsa lírica, nem as menções indiscriminadas a temas que recorrem a
“cubanidade”. Tía Julita é um livro totalmente cubano por sua essência e pelo seu ponto de vista.
Porém, a transcendência de Luis Cabrera não se contentou com ele. Por isso, seguiu produzindo na
mesma linha, mas abordando problemáticas difíceis sem preconceitos (assim como outros autores);
como a morte, o homossexualismo, a deficiência física, a solidão e os conflitos familiares.Em 1988,
eu já dizia do meu irmão Albertico: “ Alberto Jorge Yáñez tem até agora somente um livro publicado, Cuentan que Penélope, vários prêmios por seu trabalho e alguns textos na gaveta. Os críticos
consideram seu discurso literário alucinado e exagerado , e têm razão. A isso, ainda se acrescenta
a utilização de um complexo jogo de palavras, um humor conceitual, junto a uma visão satírica da
realidade que o tornam de difícil compreensão. Sua maior virtude está na união que faz do cotidiano
simples ao mais exagerado disparate”. Por sorte, seguiu publicando e dando corda a sua enlouquecida imaginação. No livro infantil Este libro horroroso y sin remédio, ganhou o prestigioso “Premio de
La Crítica” no ano de 19973. Ainda que tenha morrido em 2008, aos 50 anos, a publicação daqueles
textos que estavam na gaveta, e de outros cada vez melhores, apareceram aos montes.
Recentemente, outros livros para crianças ganharam prêmios, entres eles, Rimas y divertimentos,
de Josefina de Diego. A obra se distinguiu, e conquistou excepcional presença no catálogo de livros
cubanos, porque sua autora conseguiu utilizar uma linguagem sensível, culta, divertida e distante da
vulgaridade do dia a dia, que tanto prejudica o comportamento atual das novas gerações. Junto ao
uso de uma escrita clássica da tradição literária hispânica, como a décima (que é a estrofe cubana
3. La fogata roja é um testemunho para adolescentes que ganhou o prêmio em 1985, instaurado desde 1982. Perro viejo, de Teresa
Cárdenas, o ganhou em 2006, Pablo en la luna con las musarañas, de Denia García Ronda, e Un gato siberian husky, de Josefina de
Diego, em 2007, e Cuentos del buen y mal amor, de Nelson Simón, em 2008, entre outros.
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de canto camponês), Josefina de Diego explorou e trouxe para o espanhol, com ousadia e muito
cuidado, formas novas, próprias de outras culturas, nunca usadas de maneira original, que eu saiba,
na literatura cubana. São os chamados “limericks” que provêm do “nonsense”, do absurdo, do sem
sentido, cuja lógica parece existir de uma maneira muito particular. São pouquíssimos cubanos que
fazem uso do nonsense, entre eles o próprio Albertico Yáñez. Ele, talvez mais do que por uma razão
sentimental e estética, desfrutou desses versos, que vêm dos poemas de Mamá Oca — poemas,
aliás, que eu carregava na escola e que me fazem lembrar da merenda do Sombrero Loco y la Liebre
Marceña e de alguns “bolotrucos”4* de Albertico.
São sempre bem-vindas as parábolas simples, das quais se desprende alguma instrução alegórica,
com fidelidade ao que foi dito, ao nobre sentido da vida, à natureza expressa com delicadeza, às
homenagens aos personagens clássicos da literatura infantil, com a intenção de transmitir uma mensagem bem-humorada. Estas são algumas das virtudes de alguns autores que já mencionei o nome.
Entre eles: Esther Suárez Durán, Mildred Hernández Barrios, Enrique Pérez Díaz, Enid Vian, Emilia
Gallegos, Celima Bernal, Omar Felipe Mauri, Denia García Ronda, Maylen Domínguez, José Manuel
Espino e Nelson Simón.
Revisar a obra inédita do meu irmão me fez pensar em alguns dos tantos paradoxos do nosso planeta literário, dentro da chamada literatura infantil, que costuma ser coroada como necessária, priorizada (e um et cetera de qualitativos) mas que, ainda assim, é depreciada no que se refere à letra L
maiúscula da Literatura.
O outro paradoxo é que, apesar de todo o empenho, não se conseguiu alcançar êxito com livros
agradáveis à vista, ao tato e ao olfato. Não sei nem se vale a pena desejar degustá-los... Será que
não tivemos a sorte de termos em nossa infância alguns livros tão bonitos que sentíssemos vontade de devorá-los? A literatura para crianças deve percorrer por todos os sentidos. E estes papeis
desbotados, com caracteres de difícil leitura, com letras entediantes, sem cores, com desenhos mal
impressos, não creio que possam permanecer na lembrança da nenhuma criança cubana. E para
complementar, em muitos textos, a qualidade literária, a precisão didática e o humor, que deveria
estar presente nos livros para essa faixa etária, se resumem a uma linguagem simplória ou exagerada, com mensagens que nos deixam atônitos por sua forma monótona. Surge a dúvida de que se na
literatura infantil cubana não ficou a ideia de que tudo pode. Outra pergunta é: nossas crianças realmente lêem a literatura feita para crianças ou o que sobra para elas são apenas as letras de músicas
para adultos e as telenovelas?
Enquanto eu organizava estes apontamentos, veio-me a memória um livro da minha infância, um
dos primeiros, muito grande, quase do meu tamanho, e eu queria tê-lo sempre perto de mim, até o
levava comigo para a pré-escola quando eu sequer havia aprendido a ler. Era um volume de versos,
letras de canções, refrãos, epigramas, ditos em versos emparelhados, ilustrado por imagens que
ainda sobrevivem e não foram esquecidos, mesmo depois de tantos anos. Que riqueza é alguém ter
possuído um livro que o acompanhe por toda a vida. Pobres daqueles que na dureza da vida não
podem contar com o subterfúgio de um velho poema ou de um personagem genial da literatura.
Resta perguntar se muito dessa pobreza espiritual que às vezes nos esbofeteia não provem de gente
desprovida do mágico arsenal da imaginação e da poesia.
4. Objeto informe, que não se sabe bem para que serve [N.T.].
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Os críticos se detêm às vezes em polêmicas banais e se entretêm opondo realismo e fantasia, ou
equiparam falsamente o uso da tendência realista com as narrações das tragédias do mundo. Estou
de acordo de que as crianças devem conhecer sobre o espaço em que vivem, porém, o talento está
em que estes espaços sejam apresentados a elas m sem que com isso tenham seu espírito perturbado. Insisto no maravilhoso e no mágico sustentados pelo real; ao que Cervantes anteriormente
nos mostrava quando diferenciava o que Alejo Carpentier chamou de “o real maravilhoso”, e Gabriel
García Márquez, de “o realismo mágico”. Ambas as formas de interpretar a realidade foram descritas
em Los trabajos de Persiles y Segismunda. Mundos alternados, mas verossimilhantes. A verossimilhança é a chave das grandes obras. E quando as crianças saem voando em suas bicicletas em ET não
há somente um espectador que não assuma isso como uma verdade, por mais que a escrevamos
entre aspas.
O que eu observo é que a trivialidade não tem proporção direta com o realismo ou com a fantasia.
A fantasia não é sinônimo de doçura extrema nem tão pouco de ingenuidade. Nos grandes clássicos,
o bem se mistura com o mal, o belo com o feio, a bondade com a crueldade. Alguns escritores se
apressam para incorporar novas tendências, no entanto, a falseabilidade de certos recursos técnicos
— ou “tecniquerías” como chamava Unamuno —, e o vã afã de mostrar audácias temáticas, às vezes
levam a livros banais, chatos e vulgares. E ainda pior, confundem a literatura com crianças, com literatura para crianças, e mais grave: literatura para ser consumida entre os próprios escritores. Assim
eu penso e assim me pronuncio neste debate, sempre em defesa da imaginação, da ética e da estética, em nosso caso com a presença de uma cubanidade essencial e com um ensino que se esquive
de todos os vestígios de preceptismo.
Desejo, pois, que as crianças sejam leitoras delas mesmas e que os familiares, editores, educadores
(entre outros) tenham o cuidado de separar o melhor da literatura quando apresentarem um texto
para os que ainda não podem escolher por si mesmos. Tenho a opinião de que a literatura entre as
crianças, escrita com a mente criativa, não tem a obrigação de estabelecer uma mensagem explícita.
Porém, diferença da outra, esta supõe a algum tipo de magistério. Assusta um pouco pensar que o
mal e o bom dessa literatura, que entregamos à criança, seja para toda a vida. Que a lua cheia da
literatura não se assemelhe para as crianças a um velho queijo cheio de buracos.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Referências bibliográficas
Cabrera, María del carmen Quiles. “Cuentan desde La Habana: autores, temáticas y estilos en la
narrativa infantil y juvenil actual”, Revista Unión, ano XVI, no. 63-64, jul.-dez., 2006 (publicado
originalmente na revisa espanhola Primeras noticias).
Díaz, Enrique Pérez. “Bienvenida la buena literatura”, Ambito. Havana, 1994.
Elizagaray, Alga Marina. “Panorama de la literatura y del libro infantil cubano”, En julio como en
enero, n. 4, Havana, 1988.
López, Waldo González. Escribir para niños y jóvenes. Havana: Ed. Gente Nueva, 1983.
Rodríguez, Excilia Saldaña y Antonio Orlando. “Revolución – edad de oro de la literatura cubana
para niños y jóvenes”, El Caimán Barbudo, n. 246, ano 22, Havana.
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A ciência crua de Augusto dos Anjos
The rough science of Augusto dos Anjos
La ciencia bruta de Augusto dos Anjos
Mauro Cesar Bartolomeu1 e Mauri Cruz Previde2
Resumo
José Escobar Faria (1996) questiona o monismo de Augusto dos Anjos (1884-1914), representante máximo da “poesia
científica” brasileira, atribuindo a ele um “espírito menos órfico que científico”. O presente artigo tem por objetivo uma
análise hermenêutica do seu único livro, Eu, de 1912, a fim de refutar o crítico e restabelecer o caráter cientificista do poeta.
Palavras-chave: Augusto dos Anjos, poesia científica, monismo.
Abstract
José Escobar FARIA (1996) questions the monism of Augusto dos Anjos (1884-1914), the highest representative poet of
the “scientific poetry” in Brazil, attributing him an “orphic spirit less than scientific”. This article aims to a hermeneutic
analysis of his book, Eu (“I”) (1912), to refute the critic and restore the scientistic character of the poet.
Keywords: Augusto dos Anjos, scientific poetry, monism.
Resumen
José Escobar FARIA (1996) cuestiona el monismo de Augusto dos Anjos (1884-1914), el máximo representante de la “poesia científica” en Brasil, atribuíndole un “espíritu menos órfico que científico”. Este artículo tiene por objetivo un análisis
hermenêutico de su livro, Eu (Yo), (1912), con el fin de refutar la crítica e restaurar el carácter cientificista del poeta.
Palabras clave: Augusto dos Anjos, la poesia científica, el monismo.
1. Mestrando em Estudos Literários (Teoria e Crítica da Poesia) na Faculdade de Ciências e Letras, na Unesp.
Contato: [email protected].
2. Doutorando em Estudos Literários na Faculdade de Ciências e Letras, na Unesp. Contato: [email protected].
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Ah! Dentro de toda a alma existe a prova
De que a dor como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca...
Assim também, observa a ciência crua,
Dentro da elipse ignívoma da lua
A realidade de uma esfera opaca.
(Monólogo de uma Sombra)
Augusto dos Anjos é reconhecidamente um poeta ímpar na literatura brasileira. O “mais original e
independente” de todos os poetas brasileiros, nos dizeres de Otto Maria Carpeaux (apud BANDEIRA, 1996:114), autor de pouco mais de duas centenas de poemas (56 dos quais constituem o único
volume que publicou em vida, Eu, de 1912, uma das obras poéticas mais reeditadas em nosso país),
o poeta paraibano não se encaixa perfeitamente em nenhuma corrente literária. Parnasiano no rigor
formal e na pretensa objetividade “científica”, como aponta Nelson Werneck Sodré (1979), influenciado pelo simbolismo, especialmente na primeira fase de sua produção, como mostram Alfredo
Bosi (1981) e Oliveiros Litrento (1984), também é considerado “pré-moderno” (GULLAR, 1978) e
encontram-se em seus versos traços do expressionismo, que o poeta, a rigor, não chegou a conhecer (BUENO, 1996; FREYRE, 1996; ROSENFELD, 1996 — que o compara aos expressionistas alemães
Heym, Benn e Trakl). José Paulo Paes (1985) chegou mesmo a vislumbrar nele uma estética da art
nouveau, em sua vertente decadentista. Antônio HOUAISS insere o poeta entre os “chamados, a um
tempo, cientificistas e filosofantes” (HOUAISS In ANJOS, 1960:9), tirando-lhe o rótulo de simbolista,
o que é plenamente confirmado pelo estudo minucioso apresentado por Márcia Peters SABINO
(2006), que filia o poeta à “poesia científica” da “Escola de Recife”, uma das vertentes poéticas do
último quartel do século XIX, época da derrocada do Romantismo, que não mais se constituía um
“meio legítimo de representação da nova mentalidade racionalista, relativista, materialista, naturalista, antimetafísica e antiteológica surgidas em meados do século” (SABINO, 2006:14). Informa a
autora que a “Escola de Recife”
representou um movimento cultural de ampla repercussão que surgiu em Pernambuco, na segunda metade do século XIX, atingindo todos os setores da atividade artística e intelectual e constituindo-se um
centro irradiador da doutrina positivista que, já na década de 60, logo após a morte de Comte, começava
a penetrar no pensamento brasileiro. (SABINO, 2006:19)
Em que consiste, pois, a “poesia científica” de Augusto dos Anjos? Ferreira Gullar (1978), ao tratar do
novo na poética augustiana, afirma que ele se encontraria na “atitude radical” de rompimento com
“as conveniências verbais e sociais da poesia”, a qual teria levado o poeta a
disputar o poético à podridão dos cemitérios e à vulgaridade dos prostíbulos, a mesclar a beleza ao asco
e, como uma espécie de defesa, a armar-se de um vocabulário ‘científico’, prestigioso, que impõe à sua
linguagem o selo da época e ameaça ‘datá-la’. (GULLAR, 1978:29)
De fato, no plano da expressão, o cientificismo do poeta traduz-se principalmente no abundante
vocabulário científico, extraído especialmente à biologia, como blastoderma, centrossomas, cinocéfalos, dartro (nome genérico para dermatoses, especialmente o herpes-zóster), dicotiledôneas,
encéfalo, filóstomo, endimenina, epigastro, eximenina, microcéfalo, microzima, morfogênese, noctâmbulo, neuroplastas, ontogênicos, ptialina, quimiotaxia, xantocroide, zoófito, zooplasma etc. Por
certo que, como aponta Ferreira Gullar, o vocabulário científico não é o único procedimento “de cho59
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
que” da poesia augustiana: sua maior tensão é obtida, na verdade, pela aproximação sempre irônica
desse vocabulário a coloquialismos, especialmente termos referentes ao grotesco3, como escarro,
podridão, carniçaria, carcaça, feder, vômito etc., bem ao gosto gótico. Nisso o poeta obedece ao preceito de Sílvio Romero segundo o qual a poesia científica deveria se encontrar num ponto de equilíbrio entre a objetividade clássica e a subjetividade do confessionalismo romântico (ROMERO, 1878,
apud SABINO, 2006:32). Com efeito, o poeta não cai em didatismos de nenhuma espécie, nem pratica
“ciência em versos”, como pretende Luciana Stegagno Picchio (1997:301), o que seria literariamente
banal, mas sim se utiliza de conceitos científicos e filosóficos para expressar sua particularíssima sensibilidade e visão de mundo. No mesmo erro incorreu Osório Duque Estrada (apud MAGALHÃES JR.,
1978:258) ao considerar que “vazar em um pequeno volume de versos todo o monismo de Haeckel e
grande parte do evolucionismo spenceriano não é, provavelmente, fazer obra de poeta e de artista”.
Equivoca-se, repetimos, pois isso é precisamente o que o poeta do Eu não faz… A fim de demonstrá-lo
é que pretendemos procurar seu cientificismo no plano do conteúdo.
José Escobar Faria afirma que “o equívoco fundamental do poeta foi o declarar-se monista”. Para
o autor, o poeta “quis ser monista, quando nele se adivinha o mais evidente dualista”, sendo que
a ciência apenas teria “confundido” seu “espírito menos científico que órfico” (1996:143). Foge ao
escopo do presente trabalho investigar a maneira pela qual Faria tenta “adivinhar” o que supõe
tão “evidente”. Pretendemos, da maneira mais breve possível, demonstrar que o poeta do Eu era
verdadeiramente monista, não se enganando quanto a isso, como gostaria que o fizesse seu crítico.
Parece, aliás, que Faria comete um grave equívoco ao caracterizar o monismo como sistema que,
“desacreditado na própria época, hoje mais que nunca se inclui no arquivo das teorias infundadas”
(1996:143). Equivoca-se, primeiro, porque a refutação de um sistema não implica o “esfacelamento” de uma poética cuja matéria se constitua de tais “pressupostos inteiramente falsos”, porque é
precisamente nisso que o discurso poético transcende o filosófico, o científico e o retórico: os próprios deuses se reduzem a mitologia, mas Homero nunca será refutado. E, em segundo lugar, parece
que o crítico toma o termo monismo num sentido mais amplo que o dado por Haeckel. O monismo
materialista de Haeckel (1908) não se confunde com o monismo panteísta de Spinoza (DURANT,
1962) ou com o monismo místico do neoplatonismo, por exemplo. Para o biólogo alemão, tratavase exclusivamente da atribuição do “caráter de realidade fundamental do universo” à matéria, ou
à “substância universal”, para usar sua terminologia. Em outras palavras, trata-se pura e simplesmente do materialismo, da negação do dualismo psícofísico platônico, e portanto da existência de
uma “alma” imaterial e imortal nos seres. Não nos parece que isso tenha sido refutado pela física
moderna, antes muito pelo contrário. Faria parece, no entanto, entender por “monismo” uma total
ausência de “dualismos” de qualquer natureza. Ora, como Fernando Pessoa nos lembra num dos
seus Textos Filosóficos,
O espírito humano, por sua própria natureza de duplamente — interiormente e exteriormente — percipiente, nunca pode pensar senão em termos de um dualismo qualquer; mesmo que chegue a uma concepção monística, dentro dessa concepção monística há um dualismo, mesmo que dos dois elementos
constitutivos da Experiência — matéria e espírito — se negue a realidade a um, não se lhe nega a existência como irrealidade, como aparência — o que transforma o dualismo espírito-matéria em dualismo
realidade-aparência; mas realidade-aparência é, para o pensamento, um dualismo. (PESSOA, 1990:523)
3. Sobre o conceito de grotesco, vide O grotesco: configuração na pintura e na literatura (KAYSER, 1986).
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Se, por contraditório que possa parecer, a afirmação de um dualismo no cerne mesmo do monismo
não constitui uma aporia, então a conclusão de Faria não passa de um sofisma, pois o reconhecimento de dualidades de todo tipo na natureza e no espírito não é contraditório com o ponto de
vista materialista. Suas constantes antíteses e contrastes não correspondem a um “orfismo”, mas
antes a um pleno domínio do lirismo, em que o poeta sempre foi profundamente pessoal e original.
Como dissemos, ele não fez “ciência em versos”; sua lírica, ao invés disso, apenas bebia, da ciência
da sua época, material que o poeta trabalhava com seu espírito perturbado e hipersensível. Mesmo
suas metáforas mais ousadas, ainda quando impliquem “erro científico” [?] não depõem, pelo fato
mesmo de que são figuras de linguagem, contra sua Weltanschauung haurida em Haeckel, Darwin e
Spencer. Vejamos então como se manifesta o materialismo em sua lírica.
Ao passo que encontramos no Eu o soneto Sonho de um Monista, a única ocorrência da palavra dualismo em toda a sua produção poética se dá no soneto Vítima do Dualismo, que não compõe o Eu,
mas que aparece nas Outras Poesias. Uma leitura atenta do poema, no entanto, mostra que o eulírico não denuncia nele nenhuma espécie de espiritualismo. O poeta se diz, sim, vítima do dualismo,
mas não se trata da crença na existência de uma alma imortal e imaterial, mas apenas dos “antagonismos irreconciliáveis” que ele carrega em suas “células sombrias”, em seu corpo físico, portanto. E
quem não haverá de reconhecer nessa “alma” que é “dada às bravias cóleras” apenas a “psique” (o
próprio termo aparece logo em seguida, claramente retomando “alma”), uma das metáforas mais
corriqueiras da história da literatura? E quem por acaso insistiria em ver na metáfora do “céu” e do
“inferno” a denotação dos conceitos cristãos, e não apenas a expressão metafórica do extremo das
contradições, da “antinomia” do sofrimento e do êxtase? Nenhuma evidência, portanto, de qualquer metafísica espiritualista.
A palavra alma ocorre 44 vezes ao longo do Eu. Em metade delas, designa claramente a psique: “cão!
– Alma de inferior rapsodo errante!” (Versos a um Cão), “de su’alma na caverna escura” (Monólogo de
uma Sombra), “Minh’alma se concentra” (O Morcego), “alma desordenada dos malucos” (As Cismas do
Destino – III), “dentro da alma aflita” (Sonho de um Monista), “minh’alma” (Gemidos de Arte – III, poema
que merecerá uma análise particular mais abaixo), “dentro d’alma” (Versos de Amor), “Minh’alma sai agoniada” (Queixas Noturnas), “o Tédio, batendo na alma”, “com a alma vencida” e “minh’alma” (em Noite de
um Visionário, onde ela é, aliás, o “sombrio personagem do drama panteístico da treva” e, mais adiante, a
“unidade calma que forma a coerência do ser vivo”), e ainda em versos como:
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh’alma!
(As Cismas do Destino – I)
Almas pigmeias! Deus subjuga-as, cinge-as
À imperfeição!
(As Cismas do Destino – I)
Ah! Dentro de toda a alma existe a prova
De que a dor como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca...
(Monólogo de uma Sombra)
Ah! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
(O Lupanar)
O fácies do morfético assombrava!
– Aquilo era uma negra eucaristia,
Onde minh’alma inteira surpreendia
A Humanidade que se lamentava!
(Solilóquio de um Visionário, VII)
E neste, finalmente, da primeira parte do poema, que Faria sente como “altamente órfico”, mas que
nos soa de um sabor muito mais profundamente nietzschiano:
Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!
Na maior parte das demais ocorrências, carrega apenas o sentido mais lato e abstrato de “essência”
ou de “natureza”, como em “alma dos movimentos rotatórios”, “alma crepuscular de minha raça”
(Monólogo de uma Sombra), “desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...” (Agonia de um Filósofo),
“alma embrionária” e “a alma dos animais” (As Cismas do Destino – II), “minh’alma americana” (Noite de um Visionário), “alma brasileira” e “manchou de opróbrios a alma do mazombo” (Os Doentes
– III), “respira com vontade a alma campônia” e “grita a satisfação na alma dos bichos” (Insônia),
“na tua clandestina e erma alma vasta”, em que o poeta se dirige à “cinza, síntese má da podridão”
(Mistérios de um Fósforo), “na alma da cidade” (As Cismas do Destino), ou ainda em versos como:
Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é, para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vermiformes.
(Versos a um Cão)
E a alma dos vegetais rebenta inteira
De todos os corpúsculos do pólen.
(Gemidos de Arte – II)
E também no soneto Mater Originalis, que sugere, sem dúvida, que a “Mãe original” é a própria
matéria (as duas palavras, aliás, pertencem à mesma raiz, de acordo com Antônio Geraldo da Cunha):
Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrômicos da vida;
O hierofante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.
Nenhuma ignota união ou nenhum nexo
À contingência orgânica do sexo
A tua estacionária alma prendeu...
Ah! De ti foi que, autônoma e sem normas,
Oh! Mãe original das outras formas,
A minha forma lúgubre nasceu!
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Finalmente, cabe analisar as raras ocorrências em que a palavra pode se referir ao conceito cristão,
entendido como aquela supositícia “parte imortal” exclusiva do ser humano. Um deles é o soneto A
Árvore da Serra, que se inicia com a fala de um pai, tentando convencer o filho:
— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!
A resposta do filho é imediata:
— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minha’alma!...
Na fala do filho, porém, a ambiguidade já se insinua. Afinal, a partir da perspectiva do pai, é impossível que a árvore possua uma alma, entendida como um privilégio humano em todas as religiões nãoanimistas. Não, porém, da perspectiva do filho, que se mostra íntima e emocionalmente ligado à
árvore, a qual não simplesmente possui uma alma, mas sim a própria alma do filho. É perfeitamente
legítimo, portanto, ler nas palavras deste um recurso retórico: ele se utiliza da mesma palavra que o
pai (o que, aliás, é destacado pela rima idêntica, em franca contradição com os princípios da poética
de Augusto, que prima sempre pela rima rica) a fim de convencê-lo, mas realiza, nesse passo, uma
ampliação do conceito empregado anteriormente pelo pai. Não há dúvida, além disso, da valorização desse conceito ampliado frente ao primeiro, o que é expresso na nobreza do gesto do filho, no
final desse poema que seria certamente um achado para a ecocrítica de Rueckert e Glotfelty:
— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate a árvore, pai, para que eu viva!”
E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!
Outra ocorrência remete novamente à figura do pai, no segundo soneto de A meu Pai doente:
Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!
Observe-se, nessa passagem, que se trata apenas de uma impressão do poeta, o que é expresso pelo
verbo transitivo indireto predicativo (“pareceu-me”) e pela figura da comparação (“como Elias”)
intensificada pelas metáforas (“estrelas flóreas” e “carro azul de glórias”), o que confere ao substantivo alma imprecisão suficiente para protegê-lo de interpretações religiosas empobrecedoras. Resta
uma única passagem a ser analisada, na qual o dualismo carne/alma é explicitamente citado:
Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Beija a peçonha, e não se contamina!
(Gemidos de Arte)
Passagem curiosa, tanto mais porque completamente discordante do restante do Eu. Tanto assim
que chega a parecer até uma interpolação, quando comparada com as estrofes que a sucedem, e
que retomam o tom até então predominante no poema:
Ser homem! escapar de ser aborto!
Sair de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pai que é morto!
E por trezentos e sessenta dias
Trabalhar e comer! Martírios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarias!
A estrofe em questão, dessa maneira, mais parece uma intromissão passageira de uma segunda voz,
distinta do eu-lírico, como se este a ouvisse de alguém. Como, porém, o poeta não a colocou entre
aspas, podemos pensar que essa voz seja dele mesmo, repetindo algo ouvido alhures, de maneira a expressar mais o seu conflito íntimo do que uma convicção metafísica qualquer. Lembre-se,
em favor dessa interpretação, que nesse mesmo poema a palavra alma aparece ainda outras duas
vezes, em cada uma das quais com um sentido diferente, como vimos acima.
O que ocorre com a palavra alma ocorre, de igual maneira, com a palavra espírito, menos frequente
embora (são apenas sete ocorrências ao longo do Eu). Em Versos de Amor, a palavra tem claramente
o sentido de “abstração”: “Porque o amor, tal como eu o estou amando, / É Espírito, é éter, é substância fluida”. Observe-se que mesmo neste caso o poeta define sucessivamente sua ideia platônica
de amor como Espírito (termo que também possui o significado químico de “álcool” ou “líquido obtido pela destilação”), em seguida éter (termo da física da época, mas que também significa simplesmente a “quintessência”), e por fim substância (que tanto remete para o conceito físico de “matéria” ou de “elemento químico”, quanto ao conceito aristotélico para a “realidade que se mantém
permanente” apesar das mudanças que chamava de “acidentais”). E lembre-se ainda que também
a palavra fluido, aqui usada adjetivamente, pertence à hidrostática, outro ramo da física. É ainda no
mesmo sentido de “abstração” ou “essência” que a palavra espírito (dessa vez sem inicial maiúscula)
é usada em Insônia: “Noite. Da Mágoa o espírito noctâmbulo / Passou de certo por aqui chorando!”.
E é assim também que aparece duas vezes, com inicial maiúscula, no citado poema Gemidos de Arte:
Fico a pensar no Espírito disperso
Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança,
Como um anel enorme de aliança,
Une todas as coisas do Universo!
E assim pensando, com a cabeça em brasas
Ante a fatalidade que me oprime,
Julgo ver este Espírito sublime,
Chamando-me do sol com as suas asas!
É evidente que não se trata, nesses versos, do “espírito” no sentido de “parte imortal do ser humano”, mas sim como uma metáfora para uma ideia pura, platônica, de uma essência ou substância
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
universal, que, na poesia augustiana é geralmente identificada com a dor, como veremos mais adiante. Por fim, três outras ocorrências da palavra remetem ao mesmo sentido de “psique”: a primeira,
no mesmo poema Gemidos de Arte: “E o espírito infeliz que em mim se encarna / Se alegre ao sol,
como quem raspa a sarna, / Só, com a misericórdia de um tijolo!...”; outra, em Mistérios de um Fósforo: “Então, do meu espírito, em segredo, / Se escapa […]/ O espectro angulosíssimo do Medo!”; e,
por fim, em As Cismas do Destino – III, na qual se verifica, aliás, o sentido mais clássico da palavra,
como “inteligência”:
Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostras a cárie dos teus dentes
Na anatomia horrenda dos detalhes!
Vejamos agora, sucintamente, como o poeta lida com os conceitos de divindade. Conquanto, segundo Manuel Bandeira, Augusto dos Anjos “acreditasse” em deus e “rezasse as preces católicas” (BANDEIRA, 1996:115), acresce que “na sua poesia a concepção do universo não é ortodoxa” e que “sua
aspiração suprema seria dominar todos os contrastes, resolvê-los na unidade do Grande Todo, que
sonhou culminar com a onipotência da divindade”, o que, embora reafirme seu dualismo, aponta
mais para uma teologia panteísta que para uma propriamente católica ou mesmo simplesmente
cristã. Houaiss, por sua vez, afirma que o poeta é “ostensivamente um ateu – pelo menos na sua
poesia” (HOUAISS in ANJOS, 1960:9), o que, evidentemente, está em conformidade com o “sistema
científico totalizador e ateu” ao qual aderiu, nos dizeres de Alexei Bueno (1996:27).
A palavra “deus” ocorre 21 vezes no Eu, se contabilizarmos as ocorrências no plural (“Invoco os
Deuses salvadores do erro”, em A Ilha de Cipango), como substantivo simples (“Eu maldizia o deus
de mãos nefandas”, na parte VIII de Os Doentes) e como simples interjeição (“Meu Deus! E este
morcego!”, em O Morcego, ou ainda “Por ventura, meu Deus, estarei louco?!”, no Poema Negro). A
palavra diabo é também usada uma vez no mesmo sentido, no verso “Diabo! não ser mais tempo de
milagre!” (Tristezas de um Quarto Minguante), em que a ironia não disfarça a heresia. É também em
tom de desafio que o poeta se refere a deus em versos como:
Eu tinha de comer o último bolo
Que Deus fazia para a minha fome!
(Os Doentes – II)
Nestes versos, deus aparece como o artífice da sua “angústia feroz”, e o “último bolo” lembra o proverbial “pão que o diabo amassou”. Ou nessas passagens de Cismas do Destino:
Ninguém compreendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus!
[…]
A vingança dos mundos astronômicos
Enviava à terra extraordinária faca,
Posta em rija adesão de goma laca
Sobre os meus elementos anatômicos.
Ah! Com certeza, Deus me castigava!
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Nesta passagem, o poeta como que nega a onibenevolência do deus cristão, além de sugerir uma
visão panteísta na identificação do castigo divino com a “vingança dos mundos astronômicos”. Tal
visão é, de fato, frequente na poética augustiana, como se pode observar nas passagens a seguir:
É a potencialidade que me eleva
Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
Minh’alma - este sombrio personagem
Do drama panteístico da treva!
(Noite de um Visionário)
No primeiro fragmento, o poeta fala explicitamente no “drama panteístico da treva”, em razão do
que não há que se questionar que deus, afinal, é esse que aparece precedido pelo adjetivo restritivo
“grande”. Não se trata, portanto, de qualquer deus, e não se trata, acima de tudo, do deus cristão.
E é esse mesmo deus que, ainda no mesmo poema, “lança no Cosmo” aquelas “formas” vingativas,
as quais o poeta elencara na estrofe imediatamente anterior, a saber, “o vibrião, o ancilóstomo, o
colpode/e outros irmãos legítimos da ameba”. Em Sonho de um Monista, esse mesmo deus é chamado de “mônada esquisita”, e identifica-se à Natureza, em seu papel de “coordenar” e “animar”,
da mesma maneira como aparece no último exemplo, em que seu papel é “espalhar” o “húmus”
que fecunda o reino vegetal. Finalmente, o exemplo máximo dessa concepção talvez se encontre
no soneto O Deus-Verme, no qual o neologismo criado pelo autor já é suficiente para sugeri-la. Em
consonância com estes exemplos, a palavra deus parece significar também o destino, conceito perfeitamente assimilado dentro do determinismo materialista:
Almas pigméias! Deus subjuga-as, cinge-as
À imperfeição!
(Cismas do Destino)
E também não são alheios a essa metafísica os versos “Vista de luto o Universo/E Deus se enlute no
Céu!”, de Barcarola, pois, ainda que os termos “deus” e “universo” (ambos grafados com iniciais maiúsculas) sejam unidos pela conjunção aditiva “e”, nem por isso se exclui a metáfora que faz com que
ambos se identifiquem numa única realidade. São raras as passagens em que a palavra questão faz
referência direta ao deus cristão, e, quando isso ocorre, como vimos, geralmente é em tom de heresia. Mesmo, porém, quando esse não é o caso, parece haver justificativa para seu uso, como nesses
versos A um Carneiro Morto, em que o objetivo é elevar o animal pela sua proverbial docilidade:
Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia de Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!
Novamente, recordemos o soneto A Árvore da Serra, pois ali é evidente que o filho, ao tentar demover o pai do seu intento de cortar a árvore (gesto, ademais, que pode ser lido psicanaliticamente
como uma castração), afirma que “Deus pôs almas nos cedros…”. É evidente, pois, a postura animista do filho (que não deve se confundir necessariamente com a do eu-lírico, por mais próxima
que esteja dela), o que já nega o caráter cristão do conceito de deus na sua fala, apontando, mais
uma vez, para uma teologia panteísta ou pantiteísta. E n’A Ilha de Cipango, nos defrontamos com os
versos: “Caio de joelhos, trêmulo... Ofereço / Preces a Deus de amor e de respeito”, os quais, lidos
no seu contexto, denotam mais um ato de desespero de um náufrago, que aliás, ao final do poema,
invoca “os Deuses salvadores do erro” e maldiz a ilha que “para todo o sempre me fez triste”, inver66
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tendo o final feliz dos contos infantis. Finalmente, as quatro últimas ocorrências que esperam nossa
análise se encontram no primeiro dos sonetos A meu Pai doente:
Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!
— Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!
Mais uma vez, a palavra surge em decorrência da relação entre pai e filho, o que sugere ser seu
emprego apenas uma tentativa de estabelecer comunicação com o pai. O eu-lírico, neste poema,
comete, novamente, uma heresia, ao ousar inquirir ao pai se a “mão sombria” que o “magoou” seria
a “mão de Deus”; mas, como que se arrependendo de cometer tal heresia na presença da autoridade paterna, repudia essa ideia, argumentando que, por ser esse deus “bom” e “justo”, tal ideia é
absurda. Cabe observar, a quem quer que insista em ler nesses versos uma denúncia do teísmo do
autor, que um dos argumentos mais arrasadores contra a existência de um deus “onibenevolente” é
o problema da existência do mal, proposto já no século I por Epicuro, naturalmente conhecido por
Augusto dos Anjos, tanto mais por se tratar de um filósofo atomista, isto é, materialista. Ao negar,
dessa forma, a possibilidade de que a “mão de Deus” pudesse magoar seu pai, o poeta pode estar
apenas expressando seu ateísmo. Se esse deus não existe, é natural que não possa magoar quem
quer que seja.
Dissemos mais acima que a dor é, em Augusto dos Anjos, a “substância” que permeia todo o Universo. De fato, um dos elementos centrais de sua poética é sua hiperestesia, e é apenas nessa sua
hipersensibilidade, que constitui sua ligação com todas as coisas do universo, que se pode ver nele
algum transcendentalismo. Mais uma vez, porém, não será excessivo lembrar que essa quase identificação da “substância universal” com a própria dor é, no interior da sua poesia, uma figura literária
que, por isso mesmo, não implica necessariamente uma contradição das doutrinas de pensamento
a que o autor se filiava. Pensar de outro modo equivaleria a afirmar que todos os poetas que se utilizam da metáfora do “coração” como sede dos sentimentos acreditam que eles de fato se produzem
nesse órgão, e não no cérebro. É preciso, pois, distinguir, na verdadeira poesia científica, tal como
a queria Sílvio Romero, o que é ciência e o que é poesia, ou tudo o que teríamos seria “ciência em
versos”, mas nunca poesia. E é desse ponto de vista que se pode identificar na lírica augustiana seu
mais legítimo ponto de contato com o cristianismo, que é precisamente seu culto masoquista à dor
e ao sofrimento. E é essa hipersensibilidade o que conecta o eu-lírico progressivamente ao pai, à
humanidade, à árvore da serra, aos seres vivos e finalmente a todas as coisas do universo (em Uma
Forja, poema que inserido nas Outras Poesias, o poeta chega a se condoer com “a dor do minério
castigado / Na impossibilidade de reagir!”). E é assim que a figura do Cristo, citada oito vezes no Eu,
pode ser também interpretada em sua lírica como símbolo dessa dor que perpassa por toda a matéria, e que Faria entende superficialmente como um “brado de fé cristã”:
De Jesus Cristo resta unicamente
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!
[…]
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!
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Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo... Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
E faz da cloaca uma urna de perfume.
(Poema Negro)
Observe-se que, se Jesus vive, é no “ar…, na molécula e no átomo”, e nisso se “resume a espiritualidade da matéria”. E, se pode parecer estranho que seja a dor capaz “embalar o corpo da miséria” e
“perfumar” a “cloaca”, basta comparar os versos acima com estes, das Queixas Noturnas, em que o
sentimento disfórico é exaltado:
Melancolia! Estende-me a tua asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!
Além disso, note-se que, se entendermos esse Jesus em sentido denotado, teremos uma heresia,
pois é ele que “faz da cloaca uma urna de perfume”, isto é, que incita à libertinagem. Se o entendemos, porém, como conotação da dor, a ideia encaixa com a visão do poeta, pois conhecemos também o seu asco pelo sexo, expresso em poemas como Versos de Amor, Idealismo, Queixas Noturnas,
e até n’As Cismas do Destino, em que compara “o Amor e a Fome”. Nesse caso, entenderemos que
é a “dor”, isto é, a carência, a fome, o desejo entendido como privação, a força que leva o indivíduo
a superar o “nojo”, a aversão pelo ato sexual, e a perceber a “cloaca” como “uma urna de perfume”.
É assim também que se pode compreender a imagem crística nessa passagem:
Se a carne individual hoje apodrece,
Amanhã, como Cristo, reaparece
Na universalidade do carbono!
(Os Doentes – III)
Em outras passagens, Cristo é, não apenas a dor, mas o símbolo máximo do sacrifício, no que o poeta, aliás, se lhe iguala:
“O poeta é como Jesus!
“Abraça-te à tua Cruz
“E morre, poeta da Morte!”
(Barcarola)
Uma vontade absurda de ser Cristo
Para sacrificar-me pelos homens!
(Gemidos de Arte – II)
Há outras passagens como estas em poemas que não compõem o Eu; vide, por exemplo, o soneto
No meu peito arde em chamas abrasada, Martírio Supremo e Mártir da Fome. Já no soneto Último
Credo, Cristo é apenas citado ao lado de Tibério, não sendo bastante evidente se em oposição a ele,
se em analogia:
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!
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Finalmente, em Mistérios de um Fósforo, Augusto usa a imagem de Cristo como símbolo do próprio
cristianismo enquanto sistema filosófico, uma vez que deprecia o próprio raciocínio:
Raciocinar! Aziaga contingência!
Ser quadrúpede! Andar de quatro pés
É mais do que ser Cristo e ser Moisés
Porque é ser animal sem ter consciência!
Assim, não se constata, pelo menos no Eu, sua obra mais bem acabada, nenhum elemento decisivamente desabonador do seu materialismo e mesmo do seu ateísmo. Não apenas a imagem do Cristo
é metafórica, representando o “deus triste” de que nos fala, pela mesma época, Ricardo Reis, como
também a dos demais deuses invocados ao longo da obra, como Siva e Arimã (As Cismas do Destino
– II), Tífon e Osíris (As Cismas do Destino – III) e finalmente Jeová, que aparece assim nomeado em
Gemidos de Arte. Trata-se, pois, de um erro hermenêutico desabonar sua perspectiva cientificista,
monista e ateísta.
Envio: 31 jan. 2011
Aceite: 18 fev. 2011
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
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70
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SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
71
Trocas na margem: quando navegar é (im)preciso
Trades at the margin: when navigating is (in)accurate
Cambios en la margen: cuando navegar es (im)preciso
Maria Cristina Cardoso Ribas1
Resumo
Este trabalho, resultado do convênio da UERJ com a Brown, foi apresentado na Seventh International Conference of the
American Portuguese Studies Association, em 2010. Ao teorizar sobre a terceira margem, realça o texto literário, busca
desentranhar do próprio discurso rosiano as pistas de leitura e o substrato teórico que o ilumina aos olhos dos leitores. Neste sentido a história do filho esperando o pai que não volta, a culpa por perder o modelo e preencher a vacância daquele
lugar dramatizam as inovações metodológicas do comparativismo. Livres do postulado da continuidade (FOUCAULT, 1989),
não mais rastreamos fontes e o antes entendido como dependência, dívida, torna-se reescritura (CARVALHAL, 1986). Nossa
leitura pretende rever a dívida, o que implica em questionar o conceito de superioridade (SILVANO, 1979) e sua contraface,
o assujeitamento ao modelo — aqui o pai —, convertendo o novo texto — o filho — em outro ponto de referência, espaço
em que marginalizados se instalam e constituem um observatório privilegiado.
Palavras-chave: margem, comparativismo, narrativa.
Abstract
This paper was presented at the 7th International Conference of the American Portuguese Studies Association at Brown
University in 2010, as a result of an agreement between that university and Rio Janeiro State University. By theorizing
about the third margin, the paper highlights the literary text and seeks to disentangle from the author’s discourse the
clues and the theoretical substratum that illuminate its reading. Thus the story of the son who waits in vain for his father,
as well as the guilt for losing the model and the need to fill the vacant space, dramatize comparativism methodological
innovations. Free from the paradigm of continuity (Foucault, 1989) we no longer track sources, and what was once
understood as dependence, debt, becomes rewriting (Carvalhal, 1986). Our reading aims at revising the debt, which
implies questioning the notion of superiority (Silviano, 1979) and its counterface, the submission to the model — here
the father — turning the new text — the son — into a new point of references, a space in which marginalized subjects
may constitute a privileged point of view.
Keywords: margin, comparativism, narrative.
Resumen
Este trabajo, resultado del convenio de la UERJ con la Universidad de Brown, fue presentado en la Seventh International
Conference of the American Portuguese Studies Association, en 2010. Al teorizar sobre la tercera margen, realza el texto
literario, busca desentrañar del propio discurso de Rosa las pistas de lectura y el sustrato teórico que lo alumbra a los ojos
de los lectores. En este sentido, la historia del hijo esperando el padre que no vuelve, la culpa por perder el modelo y ocupar la vacancia de aquel lugar dramatizan las innovaciones metodológicas del comparativismo. Libres del postulado de la
continuidad (Foucault, 1989), no rastreamos más fuentes y lo antes entendido como dependencia, deuda, se transforma en reescritura (Carvalhal, 1986). Nuestra lectura pretende rever la deuda, lo que significa indagar el concepto de
superioridad (Silviano, 1979) y su antítesis, la sumisión al modelo — aquí el padre —, convirtiendo el nuevo texto — el
hijo — en otro punto de referencia, espacio en que marginados se establecen y constituyen un observatorio privilegiado.
Palabras clave: margen, comparativismo, narrativa.
1. Professor-adjunto no depto. de Letras (Teoria Literária) da Faculdade de Formação de Professores da UERJ e de Comunicação Social
da PUC-Rio, com pesquisa em “Análise da rede conceitual em torno do pós-moderno e (re)leituras de literatura na contemporaneidade”. Contato: [email protected].
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Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.
(GUIMARÃES ROSA, 1994:409)
O discurso da minoria situa o ato de emergência no entrelugar antagonístico entre a imagem e o signo, o
cumulativo e o adjunto, a presença e a substituição.
(HOMI BHABBA, 2010:226)
Introdução
O conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, fala de um impasse insolúvel, traduzido
no estarrecimento e na incompreensão de familiares e (des)conhecidos, diante da atitude de um
homem simples e cordato que sem explicação desaparece das vistas e do convívio familiar; alguém
que, provavelmente sem querer ser encontrado, um dia constroi um barco, entra nele, e some num
rio — desses rios cuja dimensão não permite ver o seu limite.
Rosa já fala em Grande Sertão do seu amor pelos grandes rios, profundos como a alma do homem,
lugar da eternidade. E o tema volta, torrente incessante, águas que nunca param e transbordam (n)o
que hoje, século XXI, marca a nossa existência: uma tenebrosa sensação de sobrevivência, dentro de
descontinuidades espaço-temporais, como, por exemplo, o fato de viver nas fronteiras do presente
paradoxalmente nomeado pelo deslizamento do prefixo ‘pós’ (BHABBA, 2010).
A leitura do conto traz à tona a predileção de Rosa pela citada descontinuidade espaço-temporal,
pelo esmaecimento dos enquadres produzidos por pares de oposições e pelo deslocamento dos
sentidos e verdades fixas, nascente, leito, foz e transbordamento de um lugar — a margem terceira — que desliza do usual e previsível esquema binário. Aqui não se trata de margem esquerda ou
direita, tampouco a confortável síntese de espaços em jogo ou confronto; mas de uma configuração
que pode incluir ambos os lados, estar fora deles, em toda parte e dentro de cada um, conforme
Rosa expressa em Grande Sertão: Veredas. À semelhança de Riobaldo, o personagem do filho — no
conto em epígrafe — zela pelo papel de mediador ao ficar entre o pai e a família, entre o pai e os
outros. Um sujeito que começa menino e exerce, sem perceber, a função de mediar interesses e
culturas em confronto, durante uma travessia inconclusa.
A narrativa se abre prenunciando um relato testemunhal. Eis que a verdade chega pela informação
de pessoas marcadas pela sensatez, marcando ainda mais a incoerência da atitude paterna: “Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que
testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação” (ROSA, 1994:409). A
atitude de um homem equilibrado, afeito às rotinas diárias, nunca mal falado, que de repente “se
desertava para outra sina de existir” (1994:409) causa muito maior estranhamento do que se fosse
um sujeito aventureiro e instável. Ao mesmo tempo, porém, o leitor infere um possível estranhamento entre tal verdade garantida pelos outros sob a rubrica “informação” e a experiência vivida
pelo próprio narrador, em primeira pessoa, que se apresenta como filho. A advertência “Nosso pai
era...” (1994:409), com o possessivo à maneira regional e o verbo no pretérito permite ao leitor a
suposição de que algo diferente da postura confirmada tenha ocorrido, ou seja, “era” — não é mais.
Assim começa a história de um homem. Do que foi, do que não foi, do que poderia ter sido. Daqui para
frente, porém, não nos deteremos somente no pai que desaparece das vistas da família, dos conhecidos, inclusive dos nossos olhos de leitores: não falaremos deste pai que toma conta do cenário, do
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imaginário, e se presentifica pela ausência. Antes, queremos trazer à tona o estarrecimento daquele
que fica, espécie de guardião da memória paterna e que permanece na margem por toda a sua vida,
à espera do outro que não vem, filho que no auge do desespero, se pergunta: “Sou homem depois
desse falimento?” (ROSA, 1994:413) Queremos trazer ao proscênio o que ficou postado na aparente
imobilidade. Do sujeito ausente, do que se foi, interessa-nos o que representou pela ausência, os
efeitos da falta para os seus dependentes, a marca da orfandade súbita e não anunciada. “Ao escrever, o sujeito se ausenta da escrita, deixando-a percorrer por conta própria sempre o mesmo traçado. Ao se ausentar [...], entremostra em toda a sua fragilidade o inconsciente dele, tal qual figurado
no texto escrito, sobre o qual não tem mais controle” (SANTIAGO, 2006: 87-8).
A identidade deste filho — e narrador —, marcado pelo visível desaparecimento do pai, é produto
de uma vida inteira de meditação sobre vazio, rejeição, dependência, sobre a grandeza do desconhecido pari passu à própria impotência diante de certos eventos da vida.
Neste possível naufrágio em terra seca, traremos à tona não o leito cheio de águas, não a enchente,
mas a margem esvaziada pela presença ausente, o drama vivido por aquele filho que, no esforço de
ler o ilegível, vira um eco da imagem paterna e se instala na margem — do rio e da vida. Se há de fato
um transbordamento, é de lágrimas não vertidas, sonhos derramados, criança que passa da infância
à decrepitude sem ter escutado a própria voz. E em presença da ausência, a história deste órfão de
pai vivo progride.
O foco deste trabalho coincide com as palavras de Eagleton (2005) acerca da tarefa honrosa para
estudantes da cultura e da literatura, que é entender o espaço no qual marginalizados submergem,
soçobram, sobrevivem, navegam e ainda assim ocupam, em seu silêncio, uma condição paradoxal:
um posto de observação privilegiado, através da língua e da fala.
Leito e margem
O que são margens? Riscas pontilhadas, fronteiras, interstício. Traços imprecisos, linhas de múltiplo
contato, inclusive com aquilo que separam. A margem tem o ganho de tangenciar o diferente de si.
Ao mesmo tempo é o dentro e o fora, não configura território, mas à maneira de horizonte de expectativas, pode se alargar a ponto de constituir um espaço de observação privilegiado. Ali é possível
ver com maior abrangência as partes em confronto, vislumbrar o que está dividido e até mesmo os
mecanismos de poder que instauram essa divisão.
Ora, sabemos que as margens podem ser lugares indiscutivelmente dolorosos para se estar e, retomando a reflexão de Eagleton (2005), é trabalho digno para estudantes da cultura ajudarem a criar
um espaço no qual o descartado e o ignorado possam encontrar uma língua, uma fala. Diríamos que
a dignidade do estudo reside também em compreender que a margem aponta para um desejo não
só de encontrar, mas sim de reelaborar as próprias identidades, ainda que este procedimento elaborativo seja muito diverso do normatizado.
O desafio é entender a margem sem meramente identificá-la como lugar de fraqueza, perdição,
ignorância, exclusão e, ao mesmo tempo, redimensioná-la como outro lugar, substituindo a decantada fragilidade do sujeito que vive (n)a margem por uma possibilidade de ser esta uma opção, uma
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escolha: pelo fato de ele achar mais conveniente estar lá, possível tática para alargar horizontes,
constituir pontos diversos de observação, abrigo, defesa e ataque. Mesmo entendendo o lado intencional do ‘marginalizar-se’, ressalvamos aqui a ambivalência da intencionalidade: o ato de escolha
vem imbuído de eventual perda de controle por parte dos sujeitos que, muitas vezes, sucumbem
diante das circunstâncias. Queremos dizer que a opção vem entrelaçada à impossibilidade ou ao não
vislumbre de outras alternativas — o que de certa forma reduz a pujança do gesto, mas sem zerá-lo.
O primeiro passo, repetimos, é não pensar nas margens como reduto de minorias — essa leitura
incidiria sobre o ponto que queremos evitar. O senso de tradição e pertencimento daqueles que se
postam nas margens pode não ser o mesmo daqueles que se instalam, convictos, nos grandes centros. E o rótulo ‘minoria’ pode configurar uma estratégia redutora ou enfraquecedora do grupo que
na verdade é majoritário, não em termos de poder e voz, mas em presença e número.
Voltemos à palavra “margem”:
No dicionário, o verbete ‘marginal’ aponta, em sua materialidade, diferentes possibilidades de o sujeito
colocar-se fora da sociedade ou da lei: “Diz-se de pessoa que vive à margem da sociedade ou da lei...”. A
margem, que delimita o espaço, isola aquilo que está dentro (a sociedade, as leis) e exclui o que está fora
(o marginal). Ser marginal, nesse sentido, é estar fora da sociedade e de suas leis. Porém, ao nos confrontarmos com a opacidade dos sentidos ali formulados, deparamo-nos com a conjunção “como” que liga
(separando) a multiplicidade dos sentidos da palavra ‘marginal’ (“diz-se de pessoa que vive à margem da
sociedade”) com a restrição limitante da conformidade ou da comparação: “como vagabundo, mendigo
ou delinquente”. (BONAFFE, 2010:141)
Consideramos também, com Gisele Bonaffe (2010), outras formas de o sujeito colocar-se fora da
sociedade e de suas leis, as quais não significam, necessariamente, ser “vagabundo”, “mendigo” ou
“delinquente”. Nosso esforço, aqui, é compreender também pelo poético como a marginalidade é
formulada, ou melhor, sugerida, passando a ser — pelo viés literário — um objeto simbólico pelo
qual se coloca em resistência. Neste sentido, “o ser enfraquecido e consumado tem se mostrado
mais forte, resistente, ‘produtivo’ e libertador do que todos os poderosos e articulados projetos de
apropriação” (PECORARO, 2005:60). Isso porque hoje não precisamos mais de fundamentos únicos
e princípios supremos; já experienciamos a perda dos valores supremos, inclusive da verdade, a
morte de Deus, a dissolução do ser... E pari passu à desvalorização dos valores tidos como supremos,
é possível reivindicar outros valores — como os das culturas marginais, populares, com a reversão
dos cânones artísticos, literários...enfim, mecanismos de reviramento, reapropriação, substituição
do centro — sem, no entanto, transformá-lo em novo centro de poder.
Nessa perspectiva, a alusão a Noé, feita no conto, é, para nós, uma suspeita, uma elucubração na
busca do entendimento; porque algumas pessoas, na ânsia da decifração, supunham que o pai do
menino tivesse sido avisado “que nem Noé” — isto seria uma retomada do cânone, do que estava
escrito. Nossa leitura entende que a referência bíblica diz mais respeito aos personagens ansiosos
por uma resposta plausível — isto é, adequada aos seus anseios — e assim colocam a narrativa religiosa explicando eventos para eles sem entendimento e/ou solução.
Na mesma trilha observamos a busca de lógica por parte da recepção do conto. O leitor se une ao
desespero do filho e das tantas pessoas que ali viviam e clamam por uma explicação lógica da atitude
do “nosso” pai — além da questão regional, o possessivo convida à identificação. Curioso observar
que a expectativa de uma explicação racional não encontra respaldo no conto e acaba funcionado
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pelo oposto: ou seja, os leitores que têm esse desejo acabam entendendo a terceira margem como
o lugar da transcendência espiritual, da revelação mística, do enquadre religioso. Não questionamos
a validade da leitura, mas buscamos um enfoque mais paradoxal. Nosso esforço é constante para
não cair nas habituais dicotomias, mesmo porque Guimarães Rosa tem um trabalho em filigrana
com a linguagem e não a constroi de forma correlata ao real sensível; ele faz mais que descrever, ao
produzir realidades nas margens da palavra.
Do leito à margem, perguntamos: o que faz um homem ficar durante toda a sua vida na beira de um
rio “por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da
outra beira” (ROSA, 1994:409), águas brasileiras, (inter)nacionais, sintomas de fugaz eternidade, rios
que parecem mar, oceanos de palavras em que não encontramos o limite, a fronteira, a demarcação
geográfica precisa.
Um sujeito que se instala ali, na margem, podemos dizer que aparentemente se encontra — e talvez
esteja — exilado no seu ambiente doméstico, deslocado no próprio meio, um estranho no ninho,
alguém que não seguiu sua vida como os demais — fugiu? — e por isso não se pauta pelos padrões.
Experimentemos substituir fuga por resistência.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, parta uma cidade.
Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez,
residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar.
Eu permaneci, com as bagagens da vida. (ROSA, 1994:411)
Nosso esforço é entender sob outro prisma esse sujeito que começa o conto menino e fica vida afora
esperando o pai que não volta na margem visível do rio, contando que apontavam já em mim [nele,
filho] uns primeiros cabelos brancos (ROSA, 1994:411). Margem esquerda, margem direita, margem
terceira. Que espécie de tridimensionalidade seria esta? Um topos literário?
Dependência e dívida
O conto em análise, em termos de aliança com o passado, relação com o modelo, com a tradição,
filho e pai, não é linear, mas sim um processo conflitado de idas e vindas. Durante a leitura do conto,
confrontado à aparente estagnação desse filho, anônimo, o leitor não espera que ele mude de atitude. Acostumado a associar esperança à fantasia, silêncio à passividade, margem à exclusão, o leitor
autocentrado e filiado ao modelo, à norma, ao cânone, não consegue enxergar outras possibilidades interpretativas e por isso não lê a espera — e o desespero daquele personagem — como forma
de atuação, talvez de rebeldia, opção pela clandestinidade, um drible ao que não assimilou, nem
tampouco com o qual concordou. O leitor autocentrado não consegue ver a reação do filho como
atitude, resistência, presença de si; sequer considera a margem como um observatório privilegiado
e, conforme dissemos anteriormente, identifica a posição marginal à passividade ou à delinquência.
Nossa proposta de leitura da atitude do filho é o avesso, ou seja, a decantada passividade não como
fim, mas como modus operandi.
De surpresa em surpresa, ao atravessar o rio até o final do conto, o leitor se vê pressionado: tenta
criar um fim, uma solução para o conto, ou se desespera como o próprio personagem do filho. Isso
porque não encontrará um desfecho clássico que acalme seus anseios, preencha as expectativas. Ao
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contrário, Rosa, em perene intercâmbio com o álter, finaliza em gerúndio, termina continuando, o
rio pondo perpétuo (ROSA, 1994:411).
É justo o momento em que o homem recluso, persistente — sujeito obstinado em responder a questões que desconhece, um solitário esperando outro numa cadeia de estares espacejados —, formula
um pensamento ontológico, questão crucial para o homem do Ocidente:
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo
ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. (ROSA, 1994:411)
Nas relações entre sujeitos e culturas com marcas (pós)colonialistas a culpa pressupõe uma dívida e
esta, por sua vez, sinaliza alguma modalidade de dependência. Estar endividado aponta para órbita
de satélite, mas a dor e o incômodo da situação dizem respeito a alguém que está prestes a compreender os vínculos — ou grilhões- que o subjugam a outrem tido como centro de poder. A dívida
gera pavor ou desconforto e instiga o sujeito ao drible e ao álibi como alternativa para deslizar do
modelo e adiar ou desconstruir o xeque mate. Ocorre que o duelo não é frontal e o enfrentamento
vem pelas margens, na obliquidade, captado pela miopia da lente do observador.
Assim, o que era entendido como relação de dependência — a dívida — que o personagem/texto adquire
com seu pai/antecessor passa a ser entendido como reescrita de textos. (CARVALHAL, 1986) Trata-se de
metodologia que opta pela intertextualidade como diálogo, produto das forças em jogo e não busca rastrear fontes e influências, o que reforçaria a dependência e bloquearia a fertilidade da permuta.
Harold Bloom (1973) desmistifica os procedimentos pelos quais um poeta ajuda a formar outros poetas
através da “desleitura” (misreading), processo em cadeia de decupagem e apropriação, Édipo às avessas.
Nesta perspectiva, reversão da continuidade, o novo refaz a tradição, o filho reconstitui o pai. Borges, por
sua vez, fala da articulação ente os textos e defende a leitura como uma reescrita interminável — como
pretende em Pierre Menard, autor del Quijote (1956).
As inovações metodológicas relativas ao comparativismo analisam as obras literárias buscando não originalidade, mas as transformações que cada autor e contexto impõem a seus empréstimos. Livre do postulado da continuidade (Foucault, 1989), o analista não é mais rastreador de fontes; ao estabelecer um
diálogo das partes confrontadas, contesta sua hierarquização e o antes entendido como dependência — a
dívida —, torna-se reescritura (CARVALHAL, 1986). Por sua vez a revisão da dívida implica no questionamento do conceito de superioridade (SILVANO, 1979) e em sua contraface, o assujeitamento à matriz
modelar, convertendo o novo texto em outro ponto de referências que pode, inclusive, iluminar aquele
que se declarava matricial. Ao resgatar o que a cultura ortodoxa empurrou para as margens, os estudos
culturais operam um trabalho vital. Ao estabelecermos analogias, ao construirmos identidades de forma
não hierárquica e valorizarmos mais a diferença que a dependência, desinstala-se o débito. Este é um procedimento possível.
Urge, portanto, uma permeabilidade por parte do crítico, no sentido de deixar-se atravessar, abrir-se a
trocas, negociações e propor mudanças de pontos de vista, ainda que seja para entender a dimensão do
jugo e da dependência, percepção de limite necessária à sua transgressão.
Outra forma de atuação, não excludente à anteriormente citada, não pretende criar um novo texto, mas
macaqueia o modelo, exagera o limite, o contexto marginal, dramatiza a dependência e seus efeitos. Voltando a Silviano, quando cita Borges:
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A originalidade do projeto de Pierre Menard, a sua obra invisível, advém, portanto do fato de que, recusando nossa concepção tradicional do que seja invenção, faça com que negue a liberdade do criador e
instaure a prisão ao modelo, única justificação para o absurdo de seu projeto. (SANTIAGO, 1978:53)
Em Ficções (1956) — livro de Borges em que está Quixote, autor de Pierre Menard, conto analisado
por Silviano —, a originalidade é uma tática de transgressão ao modelo. Em outras palavras, reformula-se o que foi tomado de empréstimo e assim agride-se o original. E neste sentido o imaginário
do escritor trata-se não da manipulação de uma experiência nem do seu documentário, mas se propõe quase como metalinguagem. (SANTIAGO, 1978)
Nessa vertente, se a liberdade pretendida não existe, escancara-se a prisão como saída, desmascaramento. O assujeitamento e a repetição passam a ser lidos não como acaso, mas circunstância
histórica; e nem a originalidade é pretendida. Ocorre que o citado conjunto de procedimentos experienciados torna-se tática de apropriação e modo de arranhar o que se pretende matriz.
Herdeiro de si mesmo
No final do conto de Rosa, o personagem filho tem um encontro visceral para a sua constituição
identitária — ele relata, aos leitores surpresos, uma visão do pai. E conforme ao que imaginara ao
longo dos anos de espera: Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e
lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. (ROSA, 1994:411)
A desejada aparição é paradoxalmente um choque para quem se alimentava da espera. Como Hamlet, o
filho fala com a imagem do pai, tenta resgatar o que, de acordo com sua história de vida, teria perdido.
Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — “Pai, o
senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora
mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa! [...] E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo. (ROSA, 1994:411)
Um aporte psicanalítico fala do afã identificatório que nos evoca Narciso ao deparar-se com sua
imagem. Ou seja, uma metamorfose na qual tudo passa a ser idêntico e identificável a si mesmo,
círculo vicioso que aprisiona esta morfologia. Ao invés da trans-formação necessária à transmissão,
reeditamos Eco, a desolada apaixonada de Narciso, fadada a eternamente reproduzir a fala do amado (AZEVEDO, 2001).
Por breves momentos, a ausência é desfeita e o vazio fica sem razão de ser. Neste momento, ondas
de passado sacodem o personagem e ele tenta recuperar o mandato da tradição familiar, o que de
súbito lhe parecera mais certo — o filho assumir o lugar do pai. Principia-se um pretenso diálogo.
O velho do rio concorda — na fala do narrador — e o moço da margem amendronta-se: Ele me
escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de
repente. [...] A reação é imediata: Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num
procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além (ROSA, 1994:412).
O terror do filho ao ver a figura esperada durante toda a vida tem uma justificativa declarada: a
possibilidade de este pai, cuja concretude é, ao mesmo tempo, desejada e elidida, ‘vir do além’, ou
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seja, representar uma temida e ao mesmo tempo confortável fantasmagoria. Exemplo: Se não é
‘real’, pode ser delírio e eu estou louco, logo aquele incômodo não existe de fato; pode ainda ser a
imagem do meu desejo — quis encontrá-lo tanto a vida inteira que cheguei de fato a projetar uma
imagem interna... ou se é ‘real’, ele sempre esteve onde disse estar, eu que não o vi, procurei em
lugares errados, minha vida inteira na margem...
Esta cena, para o leitor, a imagem do pai espelhada no rio, para o filho, dirige mais uma vez o seu
olhar de narrador e personagem para dentro, para si, fazendo eclodir no texto a reincidente fala: Sou
o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro [...] E estou pedindo, pedindo, pedindo
um perdão (ROSA, 1994:411.).
É o retorno da culpa, da dívida mesclada a pecado e assim sugerindo, na ordem do pensamento,
um amálgama indivíduo/sociedade/religião. Noé foi o escolhido para o salvamento e recomeço do
mundo. No caso, a analogia se faz e desfaz: se o velho pai foi avisado, como ocorreu com Noé, não
sabemos, a não ser pelas suposições do ‘diz-que-disseram’ — como relata o narrador. Se há um
renascimento, é da identidade do filho que, para sobreviver ao dilúvio interno, precisa recolher os
destroços e reescrever sua história, longe do olhar paterno e de sua voz (DERRIDA, 1971).
Além disso, o mundo verdadeiro, que para ambos — pai e filho — se tornou uma fábula, aponta para
o dado de que não há um detentor do critério de verdade, nem do primado da aparência, ilusão,
falsidade. Desse ponto de vista, o negativo e o trágico transformam-se em signos de um percurso,
alavancam o renascimento, independente do fim da história — que não precisa, portanto, ser entendido somente como aniquilamento.
A fuga do filho, numa primeira leitura, pode pressupor retorno à prisão familiar, queremos dizer que
a dependência se reorganiza no cenário final. Mas, como vimos dizendo ao longo deste estudo, a
fuga pode ser lida como resistência, possibilidade da autonomia.
Ora, uma reflexão sobre a impotência do sujeito é etapa necessária ao desmascaramento e à superação. O aparente assujeitamento e estagnação — das águas e do homem -; a grandiosidade do rio
— não se vê a outra margem -; a alocação invisível do pai neste mesmo rio, em contraste à presença visível do filho do outro lado do leito, tudo é composição que desenha um cenário singular, um
chiaro-oscuro no impossível traçado, a margem terceira.
Margem esta que dizemos impossível, invisível, inexistente, por conta de apontar para um espaço
intersticial, moldado pela obliquidade, fluidez, imprecisão, ambivalência e, por que não dizer, clandestinidade. E mais, justamente por sua imprecisão espaço-temporal, constitui um posto privilegiado de observação que desliza dos mecanismos de poder e cuja visibilidade demanda a reversão do
cânone, do centro.
Importante ressaltar que a fuga do filho quando encontra a possibilidade de preencher a vacância
do lugar de paternidade, aponta para uma salutar reação a continuar sem identidade, diz respeito à
resistência em reproduzir por gerações o modelo dos antepassados.
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A relação de dependência: pai, filho, terceira margem, terceiro mundo
A leitura do conto, em questão, é delicada, envolvente, complexa; a terceira margem de um rio não
pode ser sequer imaginada e por isso sugere o lugar do silêncio, do desconhecimento, da salutar
ignorância mútua quando esta instiga nos povos em confronto não o julgamento e a exclusão, mas
o conhecimento e a valorização do outro. Modalizando a afirmação de Silviano de fins da década de
70 do século passado para os dias de hoje, vale lembrar que “a leitura fácil dá razão às forças neocolonialistas que insistem no fato de que o país se encontra na situação de colônia pela preguiça de
seus habitantes” (1979:28).
Queremos dizer que, analogamente, a preservação do vazio (latinoamericano), também identificado
ao “lamentável estágio da questão identitária das Américas do Sul, em contraste ao poder econômico daquela que está ao norte e é hegemônica no planeta globalizado” (SANTIAGO, 2006:164) pode
ser relido não apenas como marca de debilidade, impotência, nem como o tão criticado estigma da
preguiça; mas também pelo reverso: como reduto sempre preenchível, passível de ressignificações
e, como tal, lugar de fertilidade, potência, atuação, construção de múltiplas identidades.
A terceira margem, rompimento do estigma “sem saída”, do impasse insolúvel a que nos referimos
na introdução deste trabalho, fértil condição para diálogos, intercâmbios, enfim, equivale ao entrelugar do discurso latino-americano (SANTIAGO, 1979), alternativa discursiva de base identitária. De
constituição movediça, se alimenta do desejo e da prática, da autoestima cultivada em detrimento
do velho complexo de inferioridade.
Ora, sabemos que hoje até mesmo os centros de poder estão sujeitos a frequentes abalos. Em termos de rio, o leito, sujeito a secas e enchentes, a desvios para construção e abertura de barragens,
também não oferece segurança, não configura lugar inabalável.
Nesse ponto da leitura trazemos Boaventura Santos quando nos propõe
Pensar o Sul como se não houvesse Norte, pensar a mulher como se não houvesse homem, pensar o
escravo como se não houvesse o senhor. [...] esses componentes ou fragmentos tem vagueado fora da
totalidade como meteoritos perdidos no espaço da ordem e insusceptíveis de serem percebidos e controlados por ela. (SANTOS, 2004:786)
A reflexão do sociólogo nos dá subsídios para a consciência do pensamento dicotômico que organiza
o (nosso) senso comum em contexto brasileiro. Afirma que para entender o Brasil é preciso considerar a situação pós-colonial do país, no esforço de não meramente importar debates de outros
contextos sociais. Paralelamente, o sociólogo nos apresenta o conceito de ‘multiculturalismo emancipatório’ que reconhece a diferença entre culturas, superando o formalismo da mera adição de
elementos das culturas nas margens da cultura dominante, mas reconhece as diferenças internas de
cada cultura.
A insistência de Boaventura em entendermos a situação pós-colonial brasileira nos remete também a questões de ordem discursiva, como, por exemplo: por que continuamos insistindo nos
paradigmas que reforçam o velho complexo de colonizado que julgávamos desconstruído? Por que
ainda, quando nos sentimos perdidos, ficamos sem a matriz, sem o modelo em que nos obrigamos a espelhar, e traduzimos a sensação como desnorteio...Ficamos “desnorteados”, isto é, sem
norte... E sequer percebemos o quanto a nossa própria linguagem nos trai, o quanto ainda somos
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dependentes de condicionamentos presentes na nossa formação. Ainda com Boaventura (2003),
ele nos explica que uma questão crucial em termos de Brasil é que o colonizador, muitas vezes, foi
o colonizado interno, em outras palavras, elites internas, descendentes de portugueses e espanhóis
que funcionaram como agentes de colonização. Entender este processo endógeno exige o levantar
de véus, o desmascaramento das hipocrisias sociais, o enfrentamento de desbancar, dentre outros
mitos, o da democratização racial.
Se há alguma moral da história, dizemos que é preciso incluir em nosso programa de sobrevivência
— e isso é literalmente desesperador — a insegurança, o descentramento, a desistência da originalidade, a desilusão da hierarquia e sua imediata substituição. A alternativa é o diálogo, são as trocas
criativas, lidar com ininterrupta emergência de outros referenciais. E, simultaneamente, ter olhos
para desvendar os jogos da hipocrisia social.
Como o conto de Rosa pode nos remeter a essa reflexão teórica? Focalizando a relação do pai com
o filho e vice-versa. Ora, entender a margem e o filho postado nela como satélites na órbita solar do
pai/leito (do rio) é manter o par dicotômico centro/periferia, poder/submissão, além do que alude
ao representante da tradição — pai — com o seu necessário seguidor — filho —, pelo mandado
social de substituir o seu lugar, passo vital à constituição de uma identidade masculina. Processo
este que, ao final do conto, é tensionado ao ponto de desafinar o tom da narrativa e — corda de
violino esticada ao máximo —, é rompido pelo filho num gesto de pavor e fuga.
Este homem, filho dileto, herdeiro de um pai invisível, chega a se sentir órfão de si mesmo. A que
tipo de tradição se filiar? Como repetir o passado e assumir o lugar do pai que se tornou um vazio?
Como preencher a vacância, se a figura marca sua presença pela ausência e tenta controlar de longe
mesmo o contexto do qual não participa mais, lugar de pai que aparentemente abandonou? Como
— e principalmente por quê — seguir um modelo, e ao cumprir o mandado familiar, como substituir
o centro vazio, como herdar ou comparar-se ao inexistente, dialogar com o nada, lembrar o que
poderia ter sido?
Neste sentido trazemos a margem terceira, aquela que não pode sequer ser visualizada, mas que,
desenhada no texto literário, ultrapassa a racionalidade dicotômica a que enquadramos nosso olhar.
Dentre outros sentidos possíveis, a terceira margem é um drible, escapa ao nosso controle, aos paradigmas consensuais. Tomemos Barthes, quando se refere a
Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora de seu poder, no
esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. (BARTHES,
1992:16)
Por esta linha podemos dizer: a terceira margem, como espaço literário, mantém a potência sígnica,
a pulsão poética, porque paradoxalmente resvala no nosso desconhecimento, na nossa impotência
e esquiva-se dos mecanismos de poder que lhe aprisionam. Como tal, não se presta a significação
única, antes, desliza para significante em cadeia; uma dinâmica que permite ao significado ser sempre passível de ressignificação — daí nossa recusa em ‘decifrar’ a terceira margem.
Em A terceira margem do rio — esta complexa configuração desenhada por palavras —, a imagem
não é finalizada, não é perfeita. Sinaliza uma oportunidade de olhar longe para ver — ou supor —
de perto como o outro (sobre)vive, fala, suporta o tempo, existe. Nesse ínterim é preciso se libertar
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do postulado da continuidade e um de seus efeitos, as noções de origem e influência; descentrar-se
para ouvir o diferente e desconstruir a hierarquia como forma única de organização. E depois de
todo o processo reflexivo insistir na pergunta de Guimarães Rosa: De que é que eu tinha tanta, tanta,
tanta culpa? [...] Sou homem, depois desse falimento? (ROSA, 1994:413).
A culpa e a dívida são produto do estigma de dependência e inferioridade, assimiladas pelo sujeito à
ordem social que integra, recebe e, ao mesmo tempo, o constitui. Este estigma distancia os sujeitos,
elide as produções culturais e artísticas do olhar do outro.
Na cena final do conto, quando o filho foge, a atitude identificada como covardia pode ser ressignificada. O exílio voluntário, a ruptura da tradição é tão intensa que vem pintada como erro, medo
de assumir um lugar. Mas ele se fixa em seu lugar de margem, quer manter-se imóvel, onde permaneceu grande parte da vida, espaço que sente como seu. O personagem assume seu posto, sua
fala e sua forma de atuação: Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo
abreviar com a vida, nos rasos do mundo (1994:412).
Na conclusão do filho — Sou o que não foi, o que vai ficar calado — os tempos se mesclam, expressando outra cronologia. Decompondo a fala, temos: (1) Sou — condição presente e, pela carga de
culpa que apresenta, faz-se um presente vivido como definitivo —; (2) o que não foi — etapa de
algum tempo passado em que ele não constituiu identidade, ou melhor, constituiu-a pela negação,
pela ausência de si mesmo, enfim, pronunciou-se pelo silêncio.
Este filho, previsível herdeiro, vai se tornando, a duras penas, outro pai de si mesmo — paternidade
imperfeita que se inaugura em duplo movimento: não querer ser o mesmo e não pretender nascer
original. O impasse pode suscitar estranhamento e ir além do paradoxo. Nessa espécie de crônica
da orfandade anunciada, qual a alternativa social para não submergir no círculo vicioso? Como não
estar no mesmo lugar do que se foi não se sabe onde, nem arvorar-se do estatuto de original, da
fundação de um território, da posse das águas? Como sair da margem visível em que está postado
e ficar na margem invisível, imerso em alguma memória de passado, na imaterialidade de algo que
não se apresenta como imagem, mas insiste em se afirmar como o mesmo sujeito que partira? Se
neste momento a narrativa promove a visão do pai como retorno e reconhecimento de alguém que
“desertava para outra sina de existir” (ROSA, 1994:409), resta — ao filho e ao povo/leitor —, lidar
com uma sombra entre a “imagem e sua significação como um signo diferenciador do Eu, distinto do
Outro ou do Exterior” (BHABBA, 2010:209).
Compreendemos, assim, que o entrelugar não é somente o ponto de suspensão do pai, mas também
o interstício, no filho, entre a imagem do pai e a própria identidade, em outras palavras, a divisão
entre ele e ele próprio. A questão dramatizada, portanto, não é somente a individualidade do filho
em relação a outras alteridades, mas a cisão instaurada em seu interior, as suas contradições internas, a ambivalência do seu discurso, do seu desejo, da sua práxis, enfim, a disjunção dos significados.
Ao fugir do papel, que, tradicionalmente, lhe cabia, o filho desconfiava, de alguma forma, que “os
objetos e as marcas trazidas pelo passado não traziam em si mesmos seu sentido, o passado não era o
documento [...], mas a compreensão da trama histórica em que estavam envolvidos” (ALBUQUERQUE
JR., 2007). Neste esforço de compreensão da sua história, há um projeto ambíguo de formação de
identidade. E a declaração — Sou o que não foi, o que vai ficar calado — toma feições conclusivas na
reflexão do personagem, na sua intensa busca do que pode representar nesse mundo. E se a atitude
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pode soar ao leitor convencional como trágico mutismo engendrado pela alienação (AZEVEDO, 2001),
propomos seu entendimento pelo avesso, ou seja, como tática de (auto)preservação, de consciência
e de dramatização intencional do limite, corda de violino esticada ao grau quase máximo.
Neste movimento de reversão da leitura, propomos que ambivalência e contradição, modalidades
usualmente identificadas com fraqueza, insegurança, ignorância podem, diversamente, representar
estratégia de enfrentamento, pausa para elaborar alguma ação, outra temporalidade que “forneceria
a referência do tempo apropriada para representar aqueles significados e práticas residuais e emergentes [localizadas] nas margens da experiência contemporânea da sociedade.” (BHABBA, 1998:210)
Analogamente a Bhabba quando se refere à figura do povo, dizemos que, no conto de Rosa, a figura
do filho “emerge na ambivalência narrativa de tempos e significados disjuntivos” (1998:216).
Voltando aos Senderos que se bifurcan borgiano, encontramos “a escolha consciente por parte do
autor diante de cada bifurcação e não mero produto do acaso da invenção.” (BORGES, 1966:52) A
ambivalência, também aqui é uma opção, uma estratégia de sobrevivência. O propalado sonho de
identidade original, genuína é substituído antropofagicamente pela apropriação, quando o filho, no
momento derradeiro, se obriga a repetir o mandato “assumir o lugar do pai”, mas reverte tal desiderato e, tomado pela dúvida e pelo medo, foge desse lugar. Um não saber cercado de temor que o
adoece na trilha do falimento, mas que ao mesmo tempo o impele na busca de alguma identidade
paralela — aí reside a ambivalência. Entendemos que o questionamento não é uma retórica repetitiva do fim, mas uma reflexão sobre outra disposição espaço temporal a partir da qual a identidade
— do sujeito e da nação — deve começar.
“A terceira margem do rio” é uma história de ausências: a do pai, mais óbvia no relato; a do filho,
mais sutil. Ambos presentes por ausências, cada um a seu modo, abre à leitura cicatrizes, feridas,
palavras não pronunciadas, mesmo aquelas das quais não tinham consciência. A escritura ilumina o
silêncio, esclarece/contesta o drama familiar.
Arriscamos dizer: pai e filho, ambos desceram aos infernos, mas se detiveram no Estige. Filho e pai,
imagens invertidas no espelho, discursos simétricos. Na viagem da circularidade espaço-temporal —
convívio, separação, espera, reencontro, perda — que o relato do filho constitui, a história se desenvolve na união dos extremos que não se podem tocar, mas que, numa súbita reversão de eventos e
expectativas se entrelaçam.
E por isso redesenhamos a circularidade aqui descrita no símbolo do infinito e propomos algumas
alterações no nosso próprio traçado: substituímos ‘convívio’ por ‘solidão partilhada’; ‘separação’ por
‘distanciamento’; ‘espera’ por ‘tempo’; ‘reencontro’ por ‘enfrentamento’, e ‘perda’ por ‘encontro
(de si)’. Em lugar da aventura circular convívio, separação, espera, reencontro, perda, encontramos
o processo infinito de solidão partilhada, distanciamento, tempo, enfrentamento e encontro (de si).
Acrescentamos ainda à imagem do rio — que já funcionara como berço, lugar de acolhimento —, a
função de ataúde, marcada pela forte solicitação do narrador no último parágrafo do conto:
Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.
(ROSA, 1994:413)
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Barqueiros de si mesmos na trajetória da vida, pai e filho conduziram-se, cada um de seu jeito, cada
um na sua margem, unidos e separados pelo desejo de ir e permanecer.
[...] a terceira margem é — será? — essa possante maquinaria de produzir sentidos, este (não)-lugar atravessado por todos aqueles que realizam o gesto precípuo — e corajoso — de instaurar outras ordens de
valores existenciais, desordenando uma ordem estabelecida. Lugar da literatura, da arte. Lugar de João
Guimarães Rosa que nos oferta a possibilidade de renovadas travessias. (HOISEL, 2011:1)
No conto de Rosa, são muitos os enlaces; pares fluidos, forças em permanente atrito, não se excluem,
não se diluem, não se opõem e produzem outros sentidos de maneira paradoxal. Eros e thânatos,
sanidade e loucura, real e fantasia, concreto e transcendente, universal e regional, filho e pai, nosso
pai — aliando irmãos, desconhecidos, leitores, todos filhos —, margem terceira, margens da palavra, como na inconclusão final do conto: separados e juntos — nessa água que não para, de longas
beiras: [...] rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio (ROSA, 1994:413).
Envio: 18 jan. 2011
Aceite: 23 mar. 2011
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De acordo com o diabo: uma paródia sobre Fausto, de Goethe
Agreement with the devil: a parody about Faust, by Goethe
Acuerdo con el diablo: una parodia de Fausto, de Goethe
Marcelo Buckowski1
Resumo
No presente artigo, visa-se analisar a paródia feita pelo programa de televisão Chapolin Colorado sobre “Fausto”, de
Goethe. Partindo da gênese — figura histórica de Fausto —, o artigo inicialmente mapeia o mito apresentado e representado em diversas artes: na música, no cinema, na literatura e na pintura. Levantam-se dados sobre a obra de Goethe
e sobre a figura do Chapolin Colorado, com o intuito de contextualizar o leitor. Utiliza-se a teoria de Linda Hutchen, porque a autora amplia e define as fronteiras do conceito de paródia. Por fim, a partir da obra de Goethe Fausto, a primeira
parte, realiza-se uma leitura analítica e comparativa, aproximando a obra de Goethe à paródia do programa de televisão,
com o objetivo central de analisar a intencionalidade da paródia realizada.
Palavras-chave: Fausto, Chapolin, paródia.
Abstract
The present article aims to analyze the parody made ​​by a television program about Chapolin Colorado’s “Faust” by
Goethe. Starting from the genesis — from the historical figure of Faust — this article initially maps the myth presented
and represented in distinct arts: music, cinema, literature and painting. Some informations about Goethe and about
Chapolin Colorado were necessary to contextualize the reader. We use the theory of Linda Hutchen because the author
expands and defines the boundaries of the concept of parody. Finally, from the work of Goethe’s Faust, the part one, we
make an analytical and comparative reading, bringing the work of Goethe’s parody of the television program, with the
central aim of analyzing the intent of parody performed.
Keywords: Fausto, Chapolin, parody.
Resumen
El presente artículo tiene como objetivo analizar la parodia hecha por un programa de televisión sobre Chapolin Colorado “Fausto” de Goethe. A partir de la génesis — la figura histórica de Fausto — el artículo inicialmente presenta el mito
en distintas artes: la música, el cine, la literatura y la pintura. Se levantan los datos de la obra de Goethe y sobre la figura
de Chapolin Colorado, con el fin de contextualizar al lector. Utiliza la teoría de Linda Hutcheon, porque el autor amplía
y delimita lo concepto de parodia. Por último, desde el trabajo de Fausto de Goethe, la primera parte, hacemos una
lectura analítica y comparativa de la obra de Goethe y la parodia del programa de televisión, con el objetivo central del
análisis de la intención de la parodia realizada.
Palabras clave: Fausto, Chapolin, parodia.
1. Graduado em Letras e mestre em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), o pesquisador visa temáticas que possibilitem a interface entre linguagens, relacionando a literatura a outra forma de expressão. Contato:
[email protected].
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A origem do mito
A figura de Fausto surgiu no século XVI em diversas narrativas e também em relatos históricos. A
figura dele não é apenas ficcional, existiu uma pessoa com o mesmo nome, isso comprovado por
documentos históricos. Segundo Erwin Theodor, em seu prefácio para a obra Fausto, de Goethe,
traduzido por Jenny Klabin Segall, teria nascido, aproximadamente em 1480, um homem chamado
Georg Faust, em Knittlingen, Alemanha e teria morrido de forma horrenda e violenta, aproximadamente em 1540, em Staufen. Iam Watt, na obra Mitos do individualismo moderno2, acrescenta que
Fausto “era um mágico errante que atendia pelo nome Jörg, em alemão, Georgius em latim” (WATT,
1997:19), conforme documentos importantes encontrados na época que eram ainda escritos em
latim. André Dabezies, no dicionário de mitos, afirma, ainda em relação ao nome, que a pessoa
histórica se chamava Jorge ou João. Não há uma certeza do nome dele, cada autor cita um ou dois
nomes diferentes, mas entre esses, todos citam Georg, Georgius ou Jorge.
Fausto, durante sua vida, entrou em conflitos constantes com os humanistas acadêmicos da época.
Em uma pesquisa mais aprofundada, Iam Watt descobre treze referências a Jorge Fausto: “cartas de
eruditos adversários, registros públicos diversos, testemunhos memorialísticos e reações de inimigos pertencentes ao clero protestante” (WATT, 1997:19). O relato mais completo data 1507, uma
carta escrita por um adversário de Fausto, Johannes Tritheim — conhecido erudito beneditino, abade de um mosteiro em Würzburg — que se esclarece em certa medida o motivo dos conflitos com
os eruditos. Na carta, Johannes afirma que Fausto se auto-intitulava “o Fausto mais jovem, o líder
dos nigromantes, astrólogo, o segundo Mago, salmista e adivinho” (WATT, 1997:20). Watt explica
que quando “chamava a si mesmo de nigromante, Fausto estava dizendo ser um praticante da magia
negra, capaz de ver o futuro através da comunicação com os espíritos dos mortos; um astrólogo,
como ainda hoje, é alguém que sabia interpretar a influência dos planetas e estrelas nos assuntos
humanos” (WATT, 1997:20). Também ao se intitular “o Fausto mais jovem” e “o segundo”, estaria
ele sugerindo que pertencia a uma tradição herética muito mais perigosa (WATT, 1997). Talvez aí
estejam os motivos dos conflitos com os acadêmicos humanistas que se interessavam pelo assunto
da magia e desacreditavam no aspirante a mágico.
Isso se confirma em outra carta, essa data 1513, escrita por Conrad Mutianos Rufos — eminente
humanista e clérigo de grande influência na cidade de Erfurt —, denunciava um “certo adivinho que
atende pelo nome de Jorge Fausto, um mero fanfarrão e um desajuizado”, ainda na mesma carta
ele dizia “O nignorante deslumbra-se dentro dele. Deixemos que os teólogos se ergam contra ele...”
(WATT, 1997:23).
Ainda que Fausto se intitulasse nigromante, mágico, adivinho e astrólogo, muitas pessoas ficavam
insatisfeitas com a sua atuação profissional, o que resultava em suspeita de charlatanice. Em relato
publicado em 1539, “o médico Philipp Begardi refere-se as ações ‘verdadeiramente insignificantes
e fraudulentas’ do Fausto. [...] para receber — ou mais corretamente, para tomar — dinheiro, ele
era rápido [...] quando foi embora [...] deixou muitos a suspirar pela volta do seu dinheiro” (WATT,
1997:25).
2. Nesta obra, há um estudo muito detalhado sobre a figura do Fausto histórico. Muitos registros da época são mencionados. Ver nas
referências.
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No entanto, nem todos pareciam odiar Fausto. Há relatos de clientes que ficaram satisfeitos com o
trabalho dele. São três documentos que atestam os êxitos do mágico:
[...] o primeiro é o do Bispo de Bamberg, cujo tesoureiro anota o fato de ter pago dez guilders (quantia
respeitável na época), em 12 de fevereiro de 1520, ao “Doutor Fausto, o filósofo”, por ter levantado o
“horóscopo” do bispo e ter feito “prognósticos”. Mais tarde a Waldeck Chronicle registrava: o “Dr. Fausto”
havia previsto corretamente “que a cidade de Münster seria sem dúvida nenhuma tomada” dos seus ocupantes anabadistas “naquela mesma noite”, ou seja, 25 de junho de 1535. [...] Philipp Von Hutten, primo
do famoso humanista Ulrich, e líder de uma expedição à Venezuela. No início de 1540, em carta ao irmão
Moritz ele dizia sentir-se no dever de “admitir que o filósofo Fausto acertou na mosca” ao prognosticar
“um ano muito ruim”. (WATT, 1997:24-5)
É muito provável que Fausto tenha estudado arte e também tenha frequentado uma universidade,
mas não há prova alguma de que tenha obtido alguma graduação (WATT, 1997). Existe um livro de
registros da Universidade de Heidelberg, onde é mencionado “em 1509 o fato de um tal ‘Johannes
Faust ex simen’ ter obtido uma licenciatura em teologia” (WATT, 1997:24). Mas o autor relembra
o fato de Fausto, conforme na carta de Tritheim, datada em 1507, dois anos antes, já andava se
proclamando o chefe dos nigromantes e portando o título de Doutor tenha lhe sido dado como um
tratamento de cortesia, apesar de, na origem, ele o utilizar como propaganda pessoal (WATT, 1997).
Portanto, Fausto era um astrólogo, adivinho e nigromante que às vezes era apreciado, às vezes era
suspeito de charlatanice, era desprezado pela maioria dos humanistas e personagens eruditos que
o mencionam. Levou uma existência errante na Alemanha meridional e nas regiões banhadas pelo
Reno. Teria morrido degolado de maneira cruel, essa morte teria impressionado muito as imaginações e logo foi atribuída ao Diabo (DABEZIES, 1998). Só em 1580, uma crônica menciona pela primeira vez a palavra decisiva: “Fausto concluíra um pacto formalizado com o demônio, do que resultaram
seus poderes, mas também sua morte apavorante” (DABEZIES, 1998:334). Todavia, o autor, não cita
o nome da crônica, nem mesmo o local onde ela possa ser encontrada. Contudo, foi por causa da sua
morte horrenda e da atribuição dela ao Diabo que a sua história inspirou muitos artistas.
O mito nas diversas artes
Histórias e lendas surgiram em torno da figura de Fausto, na literatura muitas obras foram compostas. Em 1587, o editor Spiess publica, em Frankfurt am Main, o Volksbuch3 (Livro Popular), de autoria
anônima. A obra relata “a vida do homem que celebra acordos com o Diabo (Historia Von D. Johann
Fausten dem weibeschreyten Zauberer und Schwarzkünstler4)” (THEODOR, 1991:2). A temática não
desaparece, na Alemanha e em parte da Europa é muito citada oralmente. Em 1685, é apresentada a primeira dissertação universitária sobre o assunto na Universidade de Wittenberg, de título
Disquisitio Historia de Fausto Praestigiatore5, visava “examinar a vida do grande mágico e concluir
por bani-lo ‘academicamente’ da vida real, uma vez que o transfere, juntamente com o chamado
‘romance mágico’, ao campo da ‘pura imaginação’” (THEODOR, 1991:2). A dissertação foi traduzida
para o idioma alemão e, em livro, publicada anonimamente em 1725. Nesse um livro conta de for3. No dicionário de mitos literários, organizado por Pierre Brunel, há uma descrição crítica sobre o Livro Popular, feita por André
Dabezies.
4. “História do Doutor Johann Faustus, o amplamente falado feiticeiro e nigromante”, tradução de Marcus Vinícius Mazzari (GOETHE, 2008:9).
5. “Investigação sobre a história do enganador Fausto”, tradução feita pelo autor deste artigo.
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ma sucinta as histórias de Fausto e devido às muitas edições que recebeu, percebe-se que agradou
bastante ao gosto da época (THEODOR, 1991). Depois, é importante citar a obra do escritor alemão
Thomas Mann, Doktor Faustus. O autor, segundo o colunista Alcino Leite Neto, iniciou a escrita
do livro em “23 de maio de 1943 e terminou 29 de janeiro de 1947”.6 Nesta obra, Fausto é Adrian
Leverkühn, “um artista genial — portanto um doente condenado. Sua vida por um lado evoca a de
Nietzsche; por outro, está calcada na história de Fausto, não o de Goethe, mas aquele do Livro Popular primitivo” (DABEZIES, 1998:339). Além de Thomas Mann, cabe lembrar da obra do poeta Francês
Paul Valéry, Mon Faust, inacabada. Em Le Sollitaire, conforme Dabezies, “Fausto debate o problema
do mal com um eremita encarniçado, novo Zaraustra, depois acaba se sentindo quase tão pessimista
quanto ele diante das lindas fadas que estariam dispostas a dar-lhe a vida e a juventude. Em Lust ou
La Demoiselle de Cristal, comédia, Fausto é um velho sábio que hesita entre ‘os jogos do amor e do
espírito’” (1998:339). O autor francês pensava em aprofundar o texto, mas acabou morrendo antes
e deixou os dois fragmentos em 1945. Também há a obra “Fausto: tragédia subjectiva” ou “Primeiro
Fausto7” de Fernando Pessoa. Machado de Assis também se rende ao mito fazendo uma menção
explícita a Fausto em seu conto A Igreja do Diabo: “Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu
o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos”.8
Além de obras literárias, a história sobre a temática envolvendo a figura de Fausto serviu de inspiração a artistas de todos os campos da arte:
No teatro cabe citar a obra de Christopher Marlowe. Da tradução inglesa do Volksbuch, o Autor
inspirou-se para compor um de seus dramas: The Tragical History of Doctor Faustus9. A peça de
teatro tem por base a história de Fausto, que vende sua alma ao Diabo por poder e conhecimento.
Peça é escrita em 1592.
Na ópera, há diversas menções e representações do mito de Fausto. Cabe citar a Ópera Faust, composta pelo francês Charles Gounod, em cinco atos, estreada em março de 1859, em Paris. O Libreto
foi escrito por Jules Barbier e Michel Carré, inspirado na obra de Goethe. A Ópera Mefistofele, composta pelo italiano Arrigo Boito, que também compôs o libreto, baseando-se na tragédia de Johann
Wolfgang von Goethe. O autor distribuiu a ópera em quatro atos e fez a sua primeira apresentação em
março de 1868, em Milão.
Na pintura, a figura de Fausto aparece na tela do pintor holandês Rembrandt van Rijn. Feita em
1652, em dimensões de 21 x 16 centímetros, sob o título original Faust. Nela aparece um homem
velho em seu quarto de trabalho, olhando em direção a uma claridade que irradia em frente a
janela. Nesta claridade se percebe um círculo com algumas letras, que lidas do centro para fora
pode se formar palavras como INRI e ADAM, outras mais que não são palavras muito claras. Ainda
nesta claridade, à diagonal inferior direita do círculo identifica-se nitidamente o surgimento de
uma mão.
6. Disponível em <www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult682u99.shtml>. Acesso em: 26 jan. 2010.
7. Cita-se os dois nomes porque em alguns lugares há o primeiro nome, entretanto a versão lida para este artigo foi a que se encontrou em domínio público, “Primeiro Fausto”, obra em versos.
8. O conto lido para a elaboração deste artigo foi o que está disponível em Domínio Público <http://machado.mec.gov.br/arquivos/
pdf/contos/macn004.pdf> — Capítulo II, Entre Deus e o Diabo — Página 3.
9. “História trágica do Doutor Fausto”, tradução do título feita por Erwin Theodor (1991:3).
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No cinema há diversos filmes, alguns inspirados na obra de Marlowe, outros na obra de Mann e ainda os que se inspiraram na obra de Goethe. O filme alemão “Fausto”, filmado em 1926 pelo diretor
F. W. Murnau, é baseado na obra de Goethe, recria o pacto de Fausto com Mefistofoles. Em 1967, o
filme “Doctor Faustus”, dos diretores Richard Burton e Nevil Coghill, foi o primeiro baseado na obra
de Christopher Marlowe. Em 1994, na República Tcheca, foi lançado o “Faust”, do diretor Jan Svankmajer, traz elementos tanto da obra de Goethe quanto na de Marlowe, é filmado com marionetes.
Também há o “Doktor Faustus”, baseado na obra de Thomas Mann, lançado em 2003 e dirigido por
Franz Seitz. Esse se divide em dois DVDs, o primeiro contem o filme, o segundo o seriado.
Na televisão muitas menções a Fausto são inseridas em novelas, em seriados, em especiais etc. No
programa de televisão mexicano “El Chapulín Colorado”, seriado exibido pela Televisa, no México,
e no Brasil, pelo SBT (Sistema Brasileiro de Televisão), o mito de Fausto é usado como temática de
um episódio intitulado “De acordo com o Diabo”10, programa escrito pelo ator e diretor mexicano
Roberto Bolaños. Esse episódio parodia a obra de Goethe, paródia na qual é o tema central deste
artigo, ela será descrita e analisada com minúcia mais adiante.
O Fausto de Goethe
Johan Wolfgang von Goethe nasceu em 28 de agosto de 1749, em Frankfurt am Main, na Alemanha
(mesma cidade onde fora publicado o Volksbuck, o Livro Popular) e morreu em Weimar, em 21 de
março de 1832. Filho de família burguesa, aos 16 anos, o Autor iniciou seus estudos de Direito na Universidade de Leipzig, e nos três anos finais interessou-se principalmente por literatura. Para finalizar a
sua obra-prima Goethe levou mais de 60 anos da sua vida. Em 1775, residindo na corte do Grão-Duque
Karl August, de Weimar, Goethe levou consigo considerável parte da obra que apresentou em diversas
reuniões, todavia foi incumbido dos mais variados cargos e obrigado a desenvolver tarefas que nem
sempre o ajudavam com o seu trabalho literário, muitas vezes o atrapalhavam (THEODOR, 1991).
Leu todos os relatos acessíveis, relativos a Fausto. O registro nos arquivos da Biblioteca Weimar comprova que, em 1801, Goethe tomou de empréstimo o “Livro Popular” (THEODOR, 1991), provavelmente estudando para a elaboração da obra. Não apenas esta obra, mas várias outras serviram de modelo
e inspiração para Goethe. Na introdução, Prólogo no teatro, teria o autor se inspirado em um antigo
drama da literatura hindu “Sakuntala: drama em sete atos e um prólogo”, de autoria de Kãlidãsa, nessa
obra há as figuras do diretor, do poeta e do bufo, as mesmas que Goethe similarmente acrescentou na
tragédia (MAZZARI, 2008).
Goethe compôs a obra primitiva entre 1771-1775, escrita parcialmente em prosa, num estilo bastante shakespeareano, essa não chega a ser publicada (DABEZIES, 1998). Não há um consenso sobre
o ano de início dos trabalhos voltados ao livro “Fausto”, uns autores citam 1772, outros 1771, 1775,
há ainda os que afirmam Goethe ter começado um ano após ter concluído a graduação na Universidade de Leipzig, em 1769. Opto por 1772, porque a maioria dos autores afirmam essa data. Ao se
hospedar na casa do Duque de Weimar, Goethe leva consigo os manuscritos e discute a obra com
diversas pessoas. Luise Von Göchhausen pede o manuscrito emprestado e o copia quase integralmente, omitindo apenas uma referência a Lutero na qual lhe pareceu um pouco lisonjeira. Mais
tarde Goethe teria destruído os originais dessa versão escrita na sua juventude e ela é dada como
10. Assim foi feita a tradução do título deste episódio para a exibição no Brasil.
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perdida até 1887, quando o pesquisador Erich Schimidt encontra o texto copiado por Luise e publica
sob a designação Urfaust, ou o “Fausto Primitivo” (MAZZARI, 2008).
Goethe muitas vezes parou e retomou a escrita da obra. Pouco se sabe o motivo destas pausas
repentinas, mas muitas suposições se fazem sobre o assunto. O século dezoito era o período iluminista, descobertas eram feitas, o Diabo e a Magia Negra haviam perdido a credibilidade, assim como
havia diminuído a distância entre Deus e o Homem. A magia tornada ciência deixava de ser pecado,
portanto uma atitude mental que possibilitava a redenção de Fausto. Ademais, havia uma enorme
dificuldade de apresentar um Mefistófeles que fosse admissível para o público da época, exigindo de
Goethe novas experiências, ou seja, ele precisava amadurecer (THEODOR, 1991).
Mas só em 1795, encorajado por Friedrich Schiller (um grande amigo de Goethe), o Autor retoma e
modifica a forma da obra, amplia os horizontes do drama. O pacto toma a forma de uma aposta; a
obra, originalmente em prosa, é reorganizada em versos, algumas cenas são reestruturadas, outras
são acrescentadas — o “Prólogo no céu”, por exemplo. Por fim, no dia 13 de abril de 1806, Goethe
anotava no diário o encerramento dos seus trabalhos na tragédia, somente em 1808, durante a
feira de livros da Páscoa, a obra chega ao público sob o título “Faust: eine Tragödie — Erster Teil”
(MAZZARI, 2008).
O livro “Fausto” é dividido em duas partes, dois livros; a primeira, Goethe publicou ainda vivo, é a
mais conhecida e a maioria dos críticos consideram-na melhor, dentre as duas partes. Nela Fausto
conhece Mefistófeles e o pacto se concretiza e a partir dele, o Diabo se dispõe a acompanhar Fausto
em diversos lugares, concede-lhe a juventude e o amor de Margarida, e ensina-o a gozar a vida de
forma surreal. A segunda parte, a continuação, foi também escrita por Goethe, no entanto, o autor
morreu antes de ver a sua obra publicada e é nela que acontece o desfecho.
O Fausto, representado no Drama de Goethe, é um personagem que:
está desencantado, já não acredita no saber humano, e é por desespero que aceitará as propostas de Mefistófeles, convencido de que elas não serão capazes de satisfazê-lo. Rejuvenescido, seduzirá e em seguida
abandonará Margarida, que morrerá em conseqüência disso. (DABEZIES, 1998:336)
Também, o autor, teria empregado passagens autobiográficas no texto, algumas delas são identificáveis:
Goethe, encarnou em seu Fausto muito de si mesmo, de seu frenesi por experimentar tudo, seus sonhos
desmesurados e suas revoltas, seu gosto pela magia ou pela alquimia e até mesmo a lembrança de seus
amores por uma linda alsaciana. (DABEZIES, 1998:336)
O livro escolhido para o estudo é o “Fausto” do Goethe, traduzido por Jenny Klabin Segall, da editora
34, do ano 2008. Vou utilizar esta publicação para comparar alguns aspectos da primeira parte da
obra, em sua totalidade, mas principalmente comparar elementos das duas cenas “Quarto de Trabalho”. Mais especificamente, comparar o pacto da obra literária com o pacto feito na paródia do
episódio “De acordo com o Diabo”, escrito por Roberto Bolaños. Antes da análise, faz-se necessário
saber quem é o Chapolin e um pouco sobre a história deste programa de televisão.
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O programa “Chapolin Colorado” e o herói
O programa “Chapolin Colorado” ou “El Chapulín Colorado”, no México, foi ao ar pela primeira vez,
em 1970, como um quadro do programa Chesperito na TV TIM (Televisión Independiente de México).
Em 1972, acontece a fusão das emissoras de televisão Telessistema Mexicano e a TIM, originandoa
Televisa. O programa, então, é transformado em uma série, gravada nos estúdios da Televisa, e
ganha um horário próprio.
O SBT foi criado em 1981, mas só em 1984 o Chapolin Colorado foi exibido, no Brasil. Alguns episódios do programa foram comprados, juntamente com o programa Chaves e outras novelas da Televisa. Inicialmente, era transmitido no programa do Bozo, mas logo fez tanto sucesso que ganhou um
horário próprio na rede.
Chapolin, Vermelhinho, Polegar Vermelho, todos esses nomes se referem a um dos heróis mais
engraçados da história da televisão, criado pelo escritor, ator e diretor Roberto Gomes Bolaños. Vestido de uniforme escarlate, com um escudo amarelo em forma de coração no peito (com as letras
“CH” no centro do coração), bermuda e tênis amarelos e duas “anteninhas de vinil”, o herói conquistou gerações de crianças, jovens e adultos.
O personagem é interpretado pelo seu criador, Roberto Bolaños, ator de estatura muito baixa. Ele
também é estabanado, muitas trapalhadas lembram as do Gordo e do Magro, e também as dos personagens de Charles Chaplin (veja-se a semelhança entre o nome do herói mexicano e a do humorista inglês). Às vezes, o Chapolin é medroso, mas luta contra o seu medo para resolver o problema.
Ele sempre ajuda aos que dizem: “Oh, e agora, quem poderá me defender?, por vezes a tradução
também modifica a frase com “Oh, e agora, quem poderá me ajudar?”, mas a partir dessas frases ele
entra em cena para solucionar o problema do personagem em apuros.
O Herói é locutor de algumas frases como: “Sigam-me os bons!”, “Não contavam com minha astúcia!”, “Suspeitei desde o princípio!”, “Calma, calma, não criemos pânico!” que em momentos de
apreensão são trocadas por “Palma, palma, não priemos cânico!”. Ao contrário dos heróis das epopéias, os heróis invencíveis e perfeitos, o Chapolin nem sempre ganha, assim como qualquer ser
humano ele às vezes perde e às vezes ganha. Ele também possui armas, as principais são a Marreta
Biônica Buzina Paralisadora e Pílulas de Nanicolina, sempre ajudam o herói a desvendar os mistérios.
As “anteninhas de vinil” servem de rádio comunicador e podem detectar o perigo que se aproxima.
O Chapolin Colorado é detentor de certa moral, ensina os outros personagens por meio de histórias,
característica que poderia ser relacionada a forma como alguns pais educam os filhos, contando
histórias. Transforma as histórias clássicas em histórias de cunho pedagógico, ou seja, as conta e
ao final delas sempre menciona o que é certo ou o que é errado. Isso acontece, por exemplo, no
episódio “De acordo com o Diabo”11, o Vermelhinho conta a história de Fausto para ensinar o vilão
sobre a ambição.
Como a análise é realizada em obras de linguagens distintas é necessário estudar o alcance da paródia moderna, bem como, atentar para as suas especificidades, como é demonstrado no tópico a
subsequente.
11. Para uma melhor compreensão do artigo é importante que o leitor assista o episódio de televisão.
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A paródia e seu alcance pragmático
A paródia é uma prática artística, uma forma de discurso muito antiga ainda praticada na Grécia
antiga. Ela é um processo de intertextualidade, tendo em vista que pressupõe sempre a existência
de um outro texto, o texto parodiado.
A paródia não se limita a ser uma transferência da prática da literatura: literatura parodia literatura,
como afirmava Bakhtin (HUTCHEON, 1985). Ela é extramural, a paródia abrange mais que os limites
do texto escrito, outras obras de arte não literárias também podem ser parodiadas: a pintura, a
música, o teatro... O seu alcance, de forma mais geral, é sempre outra obra de arte ou forma de discurso codificado (HUTCHEON, 1985). Neste sentido, a paródia não se limita ao discurso intramural,
literatura parodia literatura, textos parodiam textos, ela é muito mais ampla, podendo misturar diferentes linguagens, verbal e não verbal. Na literatura, geralmente as obras parodiadas são as clássicas
e canônicas, as obras desconhecidas dificilmente são os alvos dos parodistas.
Na paródia, há uma forte relação entre o autor e o leitor. O autor, ao escrever a obra, deixa uma
série de sinais para o leitor, esses expressos através de ironias, críticas, hipérboles e zombarias. Estas
informações podem conduzir o leitor a reconhecer e decodificar a paródia de forma mais explícita
ou mais sutil. Ele irá sobrepor os dois planos — colocar paródia sobre a obra parodiada — e assim
a descodificará, causando-lhe uma espécie de estranhamento que poderá causar diferentes formas
reações, desde um riso contido até uma gargalhada (HUTCHEON, 1985).
Se o leitor não tiver uma bagagem de leituras, não identificará os sinais que o autor deixar no texto,
nesse sentido, a paródia perde a sua função. O leitor comum absorve apenas o sentido literal do
texto, perdendo todas as alusões, citações e ironias. Além disso, o texto12 parodiado, geralmente, é
uma obra canônica da literatura. Portanto, a paródia pode ser considerada uma forma de discurso
elitista, pois não pressupõe um receptor qualquer, mas um com bagagem de leituras — clássicas
principalmente — um leitor intelectual, contextualizado, que já conheça a obra parodiada, esse
compreenderá e apreciará até a mais sutil ironia.
Para muitos autores, a paródia deve ridicularizar o seu alvo, a paródia que faça outra coisa é considerada falsa paródia. Para outros estudiosos ela, sobretudo a paródia moderna, transcende esse
âmbito de atuação. Esta intencionalidade da paródia varia de acordo com a vontade do autor.
Theodor Verweyen separa “as teorias da paródia em duas categorias: a primeira, as que definem
a paródia pela sua natureza cômica; a segunda, as que preferem acentuar a sua função crítica”
(HUTCHEON, 1985:70). Paralelamente, segundo Linda Hutcheon, o conceito de paródia é visto em
dois conceitos, o primeiro tradicional e antiquado que ridiculariza e vai contra o seu texto alvo, o
desconstrói. O segundo conceito de paródia — principalmente a moderna, mais precisamente as
obras de arte do século XX — não se limita a imitação burlesca e deformadora, ao contrário, ela pode
criticar o texto parodiado, mas também pode criticar algo alheio a ele, pode reconstruí-lo através de
uma nova interpretação, pode ampliar o sentido dele, bem como homenageá-lo (HUTCHEON, 1985).
Para entender melhor o sentido de paródia, a autora analisa a etimologia do termo: “A maioria dos teóricos da paródia remontam a raiz etimológica do termo ao substantivo grego parodia, que quer dizer ‘con12. Refiro-me a texto aqui, todavia — repito — a paródia tem um alcance muito mais abrangente, não se limitando apenas a linguagem verbal. Poderia ser uma imagem parodiada, uma música parodiada etc.
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tra-canto’” (HUTCHEON, 1985:50). O sufixo odos significa canto e o prefixo para tem dois significados,
mas, geralmente, mencionam apenas o primeiro deles que é o de “contra ou oposição”. Aí estaria a razão
pela qual a paródia é, quase sempre, pela sua intencionalidade ridicularizadora. “Este é, presumivelmente,
o ponto de partida formal para a componente de ridículo pragmática habitual da definição: um texto é
confrontado com outro, com a intenção de zombar dele ou de o tornar caricato” (HUTCHEON, 1985:51).
Porém o prefixo para pode significar “ao logo de”, portanto amplia o alcance do termo. Nesse significado de para “existe uma sugestão de um acordo ou intimidade, em vez de contraste” (HUTCHEON,
1985:51). E é este segundo sentido que, para ela, classificariam as paródias modernas, as do século XX.
Acrescenta que não se deve mais insistir que a paródia somente imita de forma burlesca o texto
parodiado, isso é aceitável para o sentido tradicional de paródia, todavia, hoje é ultrapassado e
antiquado (HUTCHEON, 1985). Serve de ilustração a obra de James Joyce, Ulysses, uma paródia da
Odisséia, de Homero, considerada uma paródia moderna pela autora Linda Hutcheon.
A paródia moderna não se restringe apenas à literatura, ou as mesmas linguagens — literatura parodia literatura, música parodia música, pintura parodia pintura. Ela é muito mais ampla e há diversas
formas de parodiar. É possível que haja paródia entre diferentes linguagens: uma música parodiar
uma obra literária: o grupo gaúcho, Engenheiros do Hawaii, parodiou um clássico da literatura, “Dom
Quixote”, música de mesmo nome com o refrão “Tudo bem, até pode ser que os dragões sejam moinhos de vento. Tudo bem seja o que for, se for por amor as causas perdidas...” — uma homenagem
a obra de Cervantes. Um programa de televisão também pode parodiar uma obra literária: como o
“Chapolin Colorado” fez com a obra Goethe, no episódio “De acordo com o Diabo”.
Fecha-se o tópico com uma justificativa sobre a escolha desta teoria. Ela se fez necessária para que
se possa compreender um pouco mais sobre o campo de atuação da paródia, além disso, é relevante
tentar entender, principalmente, a intencionalidade da paródia realizada pelo programa humorístico.
Episódio
Entra um inventor (Professor Inventivo é o nome dado pela tradução ao inventor) em cena pedindo a
filha (personagem anônimo) que o ajudasse a encontrar três parafusos pequenos que havia perdido
pela casa, ela aceita. Ele diz que vai procurá-los na rua, no entanto alerta a filha que não deixe ninguém
entrar no seu laboratório, pois há muitas pessoas invejosas que adorariam ter acesso aos segredos
profissionais do inventor. Ao sair pela porta, o noivo (personagem anônimo) da filha entra em cena, ela
pede ajuda e ele diz que vai ajudá-los procurando os parafusos no laboratório do seu sogro. Ao notar
que o noivo foi ao laboratório de seu pai, a mulher se lembra das palavras do pai e então o evoca “Oh,
e agora quem poderá me defender?”, “O Chapolin Colorado!”. O Herói a aparece e ela explica o problema. O Chapolin, primeiramente, tenta ajudar a encontrar os parafusos, mas quando todos saem de
cena, com exceção do Chapolin, o noivo aparece com todas as fórmulas secretas do Professor Inventivo e diz que “elas podem o tornar poderoso o suficiente para dominar o mundo inteiro”. O Chapolin,
então, dá uma surra nele com sua marreta biônica. Ao se recuperar dos machucados, o noivo pergunta
“por que havia apanhado?”, e o Vermelhinho responde “por sua ambição!” e pergunta se ele “conhece
a história de Fausto e Mefistófeles?”, o noivo responde que “não” conhece e o Chapolin começa a contar a história. Trecho descrito aqui é a primeira parte do episódio, a história 1. A segunda é a paródia
da obra de Goethe, ambas vão se entrelaçar como será visto.
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O Fausto de Goethe, na primeira cena, aparece sentado à mesa de estudo, em um quarto Gótico,
não um quarto de arquitetura Gótica, mas sim um quarto sufocante, atravancado, de elementos
heterogêneos e disparatados (MAZZARI, 2008). No episódio de televisão, ele também aparece na
posição descrita por Goethe, entretanto o ambiente é grande e possui móveis bastante antigos e
clássicos. Mesmo com a diferença dos móveis e o espaço maior, Bolaños conseguiu recriar a cena
inicial — Noite — da tragédia de Goethe de forma bastante fiel. O Chapolin, enquanto os atores
entram em cena, narra que Fausto era “um sábio que desejava adquirir todos os conhecimentos do
mundo para poder se tornar poderoso. E como não era nem muito jovem e nem muito simpático...
Pra ser sincero suas primeiras ambições eram a juventude e o amor de uma mulher.” Margarida, é
representada como uma governanta, aparece a moça acompanhando o velho até a sua mesa de
estudos. Ao sentar-se, Fausto pergunta se ela casaria com ele, negando ela argumenta a idade avançada do protagonista. Margarida sai de cena e Fausto se pergunta, “Quem poderia me tirar quarenta
ou cinquenta anos de cima?”, eis que surge, como um espírito, Mefistófeles.
Note que a narração feita pelo Chapolin sintetiza muito bem a trama do drama de Goethe, isso é
uma forma de respeito à obra parodiada, pois se preocupa em mostrar uma trama verossímil, dentro dos limites, pois está trabalhando com uma linguagem diferente da literária. Fausto “desejava
adquirir todos os conhecimentos do mundo” de fato estava cansado de tanto estudar e pouco sentir
a evolução de sua sabedoria, essa era uma das principais razões do seu conflito pessoal. Roberto
Bolaños não menciona de forma explícita ter se inspirado na obra de Goethe, fica implícito através
da trama, da caracterização do protagonista, do cenário, dos personagens secundários, principalmente ao colocar o personagem Margarida no episódio.
Ao narrar ele menciona “suas primeiras ambições eram a juventude e o amor de uma mulher”. Essas que
serão problematizadas na trama de todo o episódio. Estes fatos, a ânsia pela juventude e o amor de Margarida, acontecem apenas na primeira parte da obra de Goethe, a que foi lançada em 1806. Nos versos
do poeta alemão, depois de visitar a “Taberna de Auerbach”, em Leipzig, Mefistófeles leva o nosso herói a
“Cozinha da Bruxa” para tomar a poção que irá lhe tirar “trinta anos de cima”. A cena seguinte, “Rua”, inicia
a série de acontecimentos em torno de Margarida. Por escolher apenas a primeira parte da tragédia —
como foi visto na análise da trama — e por retratar tudo com tanta cautela e fidelidade, pode-se pressupor
que o autor mexicano provavelmente tem uma preferência pela primeira parte da obra de Goethe.
O Diabo, no drama de Goethe, aparece primeiramente sob forma de um cachorro, enquanto Fausto caminha com Wagner em um parque. O cachorro misteriosamente segue os dois e Fausto convida o perro a entrar em sua casa. A sós com ele, em seu quarto de trabalho, o perro, em meio
a uma neblina, toma a forma de um jovem viajante com roupas de estudante que mais tarde se
apresenta como o Diabo. No episódio do Chapolin, ele simplesmente surge a frente de Fausto,
como um gênio da lâmpada, quando esse se questiona “Quem poderia me tirar uns quarenta ou
cinquenta anos de cima?”.
Mefistófeles, na paródia, surge a frente de Fausto vestindo um smoking preto e possui chifres e rabo, como a imagem clássica e caricata do Diabo. Após o questionamento de Fausto,
o Demônio surge e diz: — “Falou comigo?”. Fausto, sem saber quem é, conversa com o ser
que aparece a sua frente. Conta que deseja ficar mais jovem e deseja casar-se com Margarida. O Diabo diz que pode ajudá-lo, que pode conceder ao Herói qualquer desejo e apresenta
o Chirrin-Chirrión do Diabo. Um instrumento, semelhante a uma varinha mágica, entretanto
ela funciona da seguinte maneira: quando se quer que algo apareça, diz-se Chirrin, quando se
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deseja que algo desapareça, evoca-se Chirrión. Ele faz uma demonstração fazendo aparecer e
desaparecer uma garrafa de vinho. Depois, o Diabo tira os anos que Fausto deseja, pede que o
Herói assine um contrato e depois some.
Na paródia feita pelo autor mexicano, por diversos motivos, todas as etapas da tragédia são
executadas de forma resumida. Enquanto na tragédia de Goethe o pacto leva praticamente as
duas cenas do quarto de trabalho para acontecer, na paródia, Fausto assina o contrato como
se ele não fosse tão importante, e logo Mefistófeles desaparece. Há uma cena inteira — A cozinha da bruxa — com vários detalhes de bruxaria, poções, para que o protagonista perca a idade que deseja, na paródia, isso acontece momentaneamente com algumas palavras. Há uma
seqüência de cenas que relaciona Fausto à Margarida, mas na paródia tudo se resume a alguns
instantes, eliminando todos os detalhes elaborados pelo autor alemão. Friso que isto ocorre
por diversos motivos, um deles, por exemplo, é o formato do programa, episódios de aproximadamente vinte minutos. Além disso, o Chapolin Colorado é um programa de televisão, lida
com outros tipos de linguagem, a visual e auditiva, e é feito para família toda, crianças, jovens
e adultos o assistem, o escritor mexicano se obriga a selecionar bem o que pode ou não aparecer na tela. Também pelo fato de o programa ter um caráter humorístico e a obra de Goethe
ser uma tragédia, são propostas diferentes com intencionalidades diferentes, a primeira tem
a intenção e obrigação de fazer o interlocutor rir a segunda não, então diversas adaptações se
fazem necessárias. Ademais, o programa visivelmente trabalha com baixo orçamento e pouco
investimento, isso implica em mais limitações e, possivelmente, mais adaptações.
A cena do pacto, foi uma das cenas mais difíceis para Goethe, foi uma das últimas a serem
acrescentadas na versão final da tragédia. Nela o pacto assume uma forma de aposta, diferente da proposta apresentada pela televisão, que o pacto se consolida mediante a assinatura de
um contrato. Na tragédia, Mefistófeles se dispõe a acompanhar Fausto na sua jornada:
[...] Não sou lá gente da mais alta;
Mas, se te apraz, a mim unido,
Tomar os passos pela vida,
Pronto estou sem medida,
A ser teu, neste instante;
Companheiro constante,
E se assim for do teu agrado,
Sou teu lacaio, teu criado! (GOETHE, 2008:165)
Logo em seguida Fausto, por julgar saber com quem estava lidando, pergunta “E com que ofício
retribuo os teus?” (GOETHE, 2008:165). Acreditando poder retribuí-lo com algum ofício humano e
logo Mefistófeles responde “Tens tempo que isso não se paga à vista” (GOETHE, 2008:165). Fausto
argumenta contra o Diabo, que estava tentando empregar no diálogo um suspense:
Não, não! O Diabo é um egoísta
E não fará, só por amor a Deus,
Aquilo que a algum outro assista.
Dize bem clara a condição;
Traz servo tal perigos ao patrão. (GOETHE, 2008:165)
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Com este argumento, Fausto faz com que Mefisto expresse a condição explicitamente, na fala seguinte:
Obrigo-me, eu te sigo, eu te secundo,
Aqui, em tudo, sem descanso ou paz;
No encontro nosso, no outro mundo,
O mesmo para mim farás. (GOETHE, 2008:167)
Mefistófeles acrescenta ainda “[...] Com gosto o cimo de minha arte, Dou-te o que nunca viu humano ser” (GOETHE, 2008:167). Note que a condição do pacto vem explícita na fala dele. Ele promete a
Fausto uma nova vida, convencendo-o de que viverá experiências que nunca um humano seria capaz
de viver, no entanto, em troca, no outro mundo, o Herói terá de seguir o Demônio. No episódio, o
escritor mexicano consegue fazer o pacto de maneira semelhante, Mefistófeles promete realizar
qualquer desejo de Fausto (também oferece aparatos sobrenaturais), assim que ele assinar o contrato, todavia não diz qual a condição expressa no contrato, simplesmente desaparece com uma risada
“diabólica” exagerada, caricaturando a figura do Demônio; e não acompanha o herói, como acontece na tragédia. E o Fausto representado na comédia, também não se interessa em saber a condição,
então ela fica suspensa só aparecendo no final, ele parece tão ansioso em usar o “brinquedo novo”
e pouco dá importância ao desaparecimento de Mefistófeles e o contrato com a assinatura, pois ele
ficou com tudo o que precisava: o Chirrin-Chirrión. O leitor da paródia, geralmente, necessita traçar
estes paralelos para entender a representação dos personagens e consequentemente para entender
a informação embutida na figura do personagem.
Dando continuidade ao episódio, agora, Fausto está livre para utilizar o Chirrin-Chirrión como bem
entender. A primeira coisa que o personagem deseja é que Margarida retorne a casa. Ao reaparecer
na casa, ela fica confusa, sem entender como voltou. Fausto explica que agora possui poderes mágicos, uma vez que pode realizar qualquer desejo. Convida-a para jantar alguns “pratos deliciosos”,
pede uma mesa com serviço para duas pessoas, o pedido é realizado e Margarida, deslumbrada,
propõe que jantem um peru. Ao desejar um peru, o animal aparece na mesa, vivo.
Analisando o enunciado, ele diz: “Um peru, Chirrin!” Ele pede um peru pressupondo que ele fosse
aparecer cozido, assado etc. No entanto, o mecanismo de ação do Chirrin-Chirrión se mostra complexo e burro. Complexo ao analisar o aparato através do conceito saussureano de língua. Para ele,
a língua é de natureza homogênea, poderia ser vista como uma instituição social e como um acervo
linguístico. Instituição social porque ela não está completa em nenhum indivíduo, e sim na massa.
Como acervo linguístico seria o conjunto de hábitos que permitem uma pessoa compreender e
fazer-se compreender (SAUSSURE, 1989). Em outras palavras, como se cada sujeito tivesse um dicionário e uma gramática em seu cérebro, cuja extensão é proporcional ao conhecimento de língua do
falante. Partindo destas citações de Saussure, percebe-se que o aparato Chirrin-Chirrión possui um
acervo lingüístico, primeiro porque ele compreende o pedido feito, segundo porque ele seleciona
o sentido do desejo que vai realizar, portanto faz se compreender ao realizar o pedido, mesmo que
realize o pedido de forma equivocada. Aí se faz necessário outra contextualização. Partindo do princípio de língua e fala de Saussure, Émile Benveniste pensa o signo como forma e sentido. O signo
lingüístico possui um significante, representação visual do signo, para Benveniste este significante
equivale a forma. Ou seja, a palavra vela tem o significante/forma ‘vela’. Para cada significante/
forma existe um ou mais significados que, para Émile, equivale a sentido. O significado/sentido da
palavra vela pode ser a ‘vela que ilumina o escuro’ como pode ser a vela que move a embarcação.
Os significados/sentidos das palavras são utilizados no episódio como forma de alcançar o humor,
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Bolaños brinca com os possíveis sentidos das palavras em diversos momentos. Principalmente quando o Chirrin-Chirrión é utilizado, pois algo lhe é pedido e ele geralmente seleciona o que aparentemente é o mais óbvio. Em outras palavras, o mecanismo é burro, porque realiza os pedidos de forma
literal, não pressupondo a vontade do Herói e da audiência que assiste o programa. Note a relação
entre autor e leitor para a apreensão do humor, nesta parte do episódio, ao pedir um peru, isso se
torna engraçado, pois o público erra com o personagem — atitude intencional do autor para gerar o
humor — todos acreditam que aparecerá um animal pronto para o consumo e, ao aparecer o animal
vivo, é gerado o efeito da comicidade.
Há uma sucessão de acontecimentos semelhantes aos do peru, que foi mencionado anteriormente.
Cabe atentar, neste artigo, o episódio analisado é a adaptação brasileira, dublada para o Português
brasileiro, de forma que, o original em espanhol pode haver algumas mudanças. Os outros serão dissertados aqui de forma breve. A síntese é mais ou menos assim: após o pedido do peru, Fausto fica
sem jeito e faz com que o animal desapareça — Peru, Chirrión! — mas nota que há falta de talheres
e pergunta se Margarida prefere garfos e facas de ouro ou de prata. Preferindo ouro ele pede: —
Um (L)ouro, Chirrin! Devido a semelhança dos signos ouro e louro, eis que surge a ave. Margarida
começa a ficar irritada, acha a brincadeira de mal gosto e o Herói promete que vai resolver: — Esse
bicho emplumado, Chirrión. Ao falar isso desaparece Margarida. Confuso, ele diz: — Papagaio, Chirrión! — e o louro some. Então ele pede: — Que volte depressa a rainha do meu coração, Chirrin! — e
aparece a carta, uma Dama de Copas, mas, irritado, ele a joga no chão. E evoca novamente: — Que
regresse Margarida com o homem que ama, Chirrin! — e Margarida reaparece com o seu noivo.
Fausto pede uma explicação à moça e não satisfeito olha para o noivo de Margarida e diz: — Este
idiota, Chirrion! Então, o próprio Fausto desaparece. O casal que fica a sós na cena, vão se abraçar
eis que retorna o Herói no meio dos dois, Margarida, ofendida, o chama de atrevido. Por fim, Fausto
faz os dois sumirem e fica só.
Ele se arrepende e confessa que de nada adiantou o Chirrin-Chirrión do Diabo. Neste momento Mefistófeles surge e diz que a ele adiantou muito, para levá-lo ao inferno e mostra o contrato assinado.
Note que, só neste momento, o Diabo fala a condição do contrato. Então Fausto diz: — Contrato,
Chirrión! O Herói que até o final do episódio parecia um personagem atrapalhado e desatencioso,
terminou a história com uma atitude inteligente. Ao desaparecer o contrato o Diabo começa a chorar.
Algumas alusões são feitas pelos personagens. O choro de Mefistófeles é uma alusão ao tempo presente, pois é o mesmo choro que o ator Ramon Valdéz utiliza para o personagem Seu Madruga, da
série “El Chavo Del Ocho” (Chaves), série da mesma época do Chapolin. Uma característica da paródia satírica, uma discrepância entre nobre do tempo passado e a vulgaridade do tempo presente.
Além do choro, outra alusão é feita pelo mesmo personagem é no início da história de Fausto, quando o Herói pergunta se o Diabo é casado, porque o Diabo dispunha de chifres. Então Mefistófeles
diz: — Que que foi, que que foi, que que há! Mais uma alusão a fala do personagem Seu Madruga.
Estas alusões necessitam de uma consideração. O personagem Mefistófeles, apresentado por Goethe, é um Demônio poderosíssimo, está acima de qualquer humano. Ele tem o controle de tudo e
todos os seres mortais, é um ser que jamais seria enganado. Para Bakhtin, no discurso paródico,
o autor fala a linguagem do outro, revestindo-a de orientação semântica diametralmente oposta à orientação do outro. A segunda voz, uma vez instalada no discurso do outro, entra em hostilidade com o seu
agente primitivo e o obriga a servir a fins diametralmente opostos. (BAKHTIN, 2008:221)
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ao fazer com que Mefistófeles chore, com que ele seja enganado por um mortal, Roberto Bolaños,
rebaixou o personagem, igualou o Demônio a qualquer ser mortal, o humanizou. A voz instalada
no discurso do Mefistófeles da paródia é hostil ao personagem primitivo, vai de encontro ao personagem primitivo, uma vez que ele é superior a qualquer humano. Pelo fato de ser um programa
humorístico, o personagem foi rebaixado para que se alcançasse a comicidade.
Por fim, se encerra a história 2, paródia de Fausto, e retorna à história 1. Chapolin mostra que Fausto
ficou sem a garota, sem o poder, mas admite que o Herói se salvou, mas só por um motivo, porque se
arrependeu. Neste instante, o noivo se identifica com o Fausto apresentado pela paródia e diz estar
arrependido, acrescenta que nunca mais ambicionará o poder para o benefício próprio. Entra o Professor Inventivo gritando: — Eureka! Vejam, até que enfim terminei o meu invento. Veja! Veja! — e
apresenta o mesmo Chirrin-Chirrión do Diabo. E dessa forma surpreendente, a paródia é concluída.
Considerações finais
O episódio de televisão “De acordo com o Diabo” por ser uma adaptação da obra literária (feita para
o formato de vídeo) faz com que se percam os detalhes da obra parodiada, pois ambas trabalham
com diferentes linguagens, têm diferentes formatos — o vídeo trabalha com menos tempo. Logo,
acredita-se que o programa tenha conseguido abarcar de forma geral a temática de Fausto, embora,
por terem diferentes intenções e públicos, tenham diferenças cruciais.
A intenção da paródia apresentada por Roberto Bolaños, no programa Chapolin Colorado, por um
lado é meramente pedagógica. O programa visa públicos de todas as idades, crianças, jovens e adultos, ou seja, tem a responsabilidade de formar pessoas. Ao colocar o personagem Vermelhinho
contando a história de Fausto com o intuito de ensinar o noivo, ele indiretamente está ensinando
as pessoas em casa, transmitindo a mensagem de que “não se deve ambicionar ser poderoso para
benefício próprio”, do contrário algo de ruim pode acontecer, como quase aconteceu a Fausto que
só não teve um final trágico porque se arrependeu. Por outro lado, Bolaños fez essa paródia com o
intuito de levar através da mídia televisiva, de massa, uma cultura letrada, assim, homenageando o
trabalho de Goethe, que, ainda hoje, é constantemente referido pelo herói mexicano nas telas dos
lares mundo à fora.
Envio: 1 jun. 2010
Aceite: 11 mar. 2011
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Monteiro Lobato e o leitor contemporâneo: do livro ao HQ
Monteiro Lobato and the contemporary reader: from book to comic strips
Monteiro Lobato y el lector contemporáneo: del libro a las historietas
Patrícia Pina1 e Heldina Pinto Fagundes2
Resumo
Este artigo discute alguns dos desafios que cercam a leitura de literatura, efetuada por crianças e jovens, na contemporaneidade, em face das novas, diferentes e sedutoras mídias que nos cercam, tendo como objeto de estudo a narrativa
lobatiana Dom Quixote das crianças, em sua versão literária e em HQ. Para tanto, discutir-se-ão as reflexões de Iser,
Aguiar, Yunes, entre outros, no sentido de se definir o ato da leitura como ação lúdica, que envolve uma interação autor/
editor-texto/imagem-leitor e que prevê inúmeras possibilidades de mediação.
Palavras-chave: Monteiro Lobato, leitor contemporâneo, HQ.
Abstract
This article discusses some of the challenges surrounding reading literature, performed by children and young people,
today, in the face of new, different and alluring media surrounding us, having as its object of study Lobato’s narrative
Dom Quixote das crianças, in it literary and comics version. To this end, it discusses the reflections of Iser, Aguiar, Yunes,
among others, to define the Act of reading as playful action that involves an interaction between author/editor-text/
image-reader, providing countless possibilities of mediation.
Keywords: Monteiro Lobato, contemporary reader, comics.
Resumen
Este artículo aborda algunos de los desafíos que rodean la literatura de lectura, interpretada por los niños y jóvenes, hoy
en día, frente a los medios nuevos, diferentes y seductor que nos rodea, mediante el estudio de la narrativa lobatiana
Dom Quixote das crianças, en su versión literaria y la de HQ. Con este fin, vamos a debater las reflexiones de Iser, Aguiar,
Yunes, entre otros, para definir las bases de la lectura como lúdica acción que implique a un interacción autor/editortexto/imagen-lector, y que oferta innumerables posibilidades de mediación.
Palabras clave: Monteiro Lobato, lector contemporaneo, HQ.
1. Pós-doutora em Letras Vernáculas e doutora em Literatura Comparada pela UERJ. É professora titular de Literatura Brasileira da
UNEB, onde pesquisa questões relativas à leitura, formação do leitor e formação docente. Contato: [email protected].
2. Doutora em Educação e bacharel em Pedagogia pela UCSAL. Atualmente é professora adjunta UNEB, onde pesquisa currículo, cultura, leitura e comunidade negra. Contato: [email protected].
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Ler é inscrever-se no mundo como signo, entrar na cadeia significante, elaborar continuamente interpretações que dão sentido ao mundo, registrá-las com palavras, gestos, traços. Ler é significar e, ao mesmo
tempo, tornar-se significante. A leitura é uma escrita de si mesmo, na relação interativa que dá sentido ao
mundo. (YUNES, 2009:53)
O ato da leitura coloca o sujeito leitor no mundo, reconstruindo ambos. Ler dá ao mundo gamas
novas de significação. Ler é transformar e transformar-se. O leitor torna-se Outro em relação a si
mesmo. Não há neutralidade no ato da leitura — ler é uma travessia das múltiplas textualidades
inscritas na palavra/som/imagem. E atravessá-las significa pôr em diálogo os repertórios previstos
no texto/obra e os repertórios pertinentes a cada leitor/interlocutor empírico — ou seja, ler pode
ser entendido como um dos jogos de poder possíveis na sociedade.
Em A reprodução, Bourdieu e Passeron descrevem e discutem as ações pedagógicas (AP) como atos
de violência simbólica, nos quais estariam implícitos e mascarados artifícios de coerção e imposição
de valores e ideais como elementos “naturais” da vida social e da aprendizagem escolar:
[...] essas AP tendem sempre a reproduzir a estrutura da distribuição do capital cultural entre esses grupos
ou classes, contribuindo do mesmo modo para a reprodução da estrutura social; com efeito, as leis do
mercado em que se forma o valor econômico ou simbólico, isto é, o valor enquanto capital cultural, dos
arbitrários culturais reproduzidos pelas diferentes AP e, por esse meio, dos produtos dessas AP (indivíduos
educados), constituem um dos mecanismos, mais ou menos determinantes segundo os tipos de formações sociais, pelos quais se encontra assegurada a reprodução social [...] (BOURDIEU; CHAMBOREDON;
PASSERON, 2010:32)
As ações pedagógicas, dentre as quais se inclui o letramento, em todas as suas formas e especificidades, reproduzem arbitrários culturais que não se desvelam a um primeiro olhar. Entende-se,
neste artigo, a leitura como um desses arbitrários culturais impostos pela sociedade e pela escola,
esvaziada que é de seu teor lúdico/crítico, com fins a uma reprodução da ordem social e cultural que
interessa a cada comunidade.
Pode-se deduzir, então, que o ato de ler é um ato de liberdade, mas também um ato de ruptura com
uma ordem passada, de natureza oral. Ao deparar-se com uma obra impressa, o indivíduo põe em
diálogo as contingências que cercam seu cotidiano e o mundo do texto, abrindo seu imaginário para
as vivências Outras que lhe são apresentadas a cada página.
Ler, seja um texto literário, seja um filme, um outdoor, um jornal, um quadro, então, parece poder
ser definido como um momento em que o leitor inscreve, em si, o texto. Mas o processo tem uma
contrapartida: ele também se inscreve no texto, uma vez que, ao se deixar ocupar pela palavra/
imagem, apropria-se dela, torna-a sua e torna-se ela mesma. Ler implica interpretar e criticar. As
associações que estabelecemos ao ler nos revelam quem somos no e a partir do texto lido. Elas nos
constroem como leitores e como cidadãos.
Outro aspecto importante a salientar é o fato de que é a estrutura do texto, por seu caráter dialógico, que
determina a polifonia, problematizando o leitor, na medida que reage ao seu código. O autor vê a literatura, portanto, como uma provocação ao leitor, levando-o a constituir novos sentidos e, consequentemente,
crescer como ser humano. (AGUIAR, 2008:24)
No fragmento acima, retirado do texto “Da Teoria à Prática: Competências de Leitura”, de Vera T.
de Aguiar, ressalto dois aspectos que conduzem o início deste artigo. O primeiro deles diz respeito
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
ao fato de que a estrutura textual problematiza o leitor. A que noção de leitor estaria Vera Aguiar
se referindo? Entendo que ela esteja trabalhando com a ideia de leitor empírico, isto é, o leitor de
carne e osso que lê, no cotidiano concreto, livros, revistas, jornais, anúncios, bulas de remédio.
Neste artigo, trabalho basicamente com duas ideias de leitor, as quais interagem entre si: a de leitor
empírico e a de leitor implícito, e esta última me remete a já antiga Teoria do Efeito de Wolfgang Iser
— antiga, mas extremamente relevante para os estudiosos da leitura literária.
Iser traz para o campo literário a investigação sobre os mecanismos textuais que conduzem a interação da obra com o leitor empírico. A obra responde às necessidades de uma dada época, de uma
dada cultura, segundo a ótica de um indivíduo que responde por sua autoria. O leitor de carne e
osso nem sempre partilha esse mesmo contexto original e, mesmo que o faça, constitui-se em um
indivíduo outro, uma subjetividade diferente daquela que engendrou o texto.
Há, portanto, entre ambos — o texto com seu leitor implícito e o mundo com seus leitores históricos
— uma assimetria que, longe de impedir o trânsito de sentidos, viabiliza o diálogo, pois provoca o
desejo de interação: o leitor real sempre quer entender o que lê, consequentemente, sempre envida
esforços para aproximar-se do mundo que lhe é dado pelo impresso. Nesse processo, vai negociando com a obra e com as suas próprias expectativas.
Para Iser, por meio da ficção, o leitor empírico pode atravessar as fronteiras do mundo instituído,
uma vez que ele o refaz, antropofagizando a realidade. Segundo o teórico alemão, o texto ficcional
não é pleno em si, carrega lacunas que desenham uma implicitação do leitor imaginado pelo autor e
pelos editores, ilustradores etc., essa projeção tem um forte potencial de provocação.
Parece-nos que as brechas textuais que promovem o diálogo da obra com esse leitor de verdade
constroem uma representação de leitor — o referido leitor implícito — que se quer e que se sabe
imprecisa, incompleta, apenas textual, exatamente para gerar sensações e sentimentos surpreendentes no leitor de carne, osso, óculos, levando-o a aproximar-se mais e mais da obra.
Essa representação, ou melhor, o leitor implícito, viabiliza um outro tipo de representação: a das
cenas e práticas de leituras, as quais balizam a interação da palavra impressa com o leitor real. Essas
representações, nem sempre explícitas, ensinam o leitorado, em sua heterogeneidade de repertórios, a entrar no texto e a dialogar com ele. Elas aparecem, por exemplo, em cenas em que algumas
personagens lêem e discutem livros, ou, no caso que me interessa diretamente, o dos quadrinhos,
na ordem dos quadros e dos balões na página. Nos jornais e revistas, essas representações podem
ser percebidas a partir da relação entre texto e anúncios, ou entre textos e fotos.
A leitura surge, então, como uma atividade comandada, sim, pelo texto, mas dependente das possibilidades de interlocução do leitorado histórico que com ele entra em contato:
[...] a relação entre texto e leitor só pode ter êxito mediante a mudança do leitor. Assim o texto constantemente provoca uma multiplicidade de representações do leitor, através da qual a assimetria começa a dar
lugar ao campo comum de uma situação. Mas a complexidade da estrutura do texto dificulta a ocupação
completa desta situação pelas representações do leitor. O aumento da dificuldade significa que as representações devem ser abandonadas. Nesta correção, que o texto impõe, da representação mobilizada,
forma-se o horizonte de referência da situação. Esta ganha contornos, que permitem ao próprio leitor
corrigir suas projeções. Só assim ele se torna capaz de experimentar algo que não se encontrava em seu
horizonte. (ISER, 1979:88-9)
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Tal problematização do leitor empírico, empreendida pela obra em sua própria gênese e em seu
processo de interação com o mundo, através da divulgação e da leitura, provoca uma relação texto/
leitor que abre incontáveis possibilidades de comunicação, as quais dependem de alguns mecanismos textuais de controle como os vazios, as negações, as supressões, as cesuras, as imagens, os cerzidos do texto, enfim, todos construindo o lugar do leitor de verdade, através dessa implicitação de
um leitor desejado pelos autores e editores, quebrando o fluxo textual, interrompendo a articulação
discursiva sequencial. Dessa forma, o texto pode provocar o imaginário de seu interlocutor, dinamizando o impresso, por meio de elementos capazes de suscitar uma leitura ativa.
É aqui que entra o segundo aspecto do trecho em epígrafe a ser discutido: o autor provoca o leitor
para transformá-lo pelo processo da leitura. Essa provocação me remete ao conceito de jogo de
Huizinga, o qual investiga a importância do jogo na vida social:
As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início, inteiramente marcadas pelo
jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem
forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas,
defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito.
Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se
o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda
expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão
à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza. (HUIZINGA, 2001:7)
Refletir, então, acerca das relações entre a obra literária e o leitor empírico, através desse conceito
de jogo, permite pensar que a tensão que o preside é que funcionaria como instrumento de provocação e de sedução dos interlocutores textuais, transformando-os a partir da interação com o lido.
Tal tensão própria do jogo literário remete às estratégias textuais de implicitação do leitor — e de
provocação de sua face empírica —, bem como de condução da leitura, discutidas por Iser.
Essa ludicidade da linguagem literária abriria caminho para que o leitor, histórica e socialmente
localizado, interagisse com o texto. Mas pensamos que a ludicidade da linguagem quadrinhística
também faz isso e, talvez, de forma mais eficaz, dependendo do público e do repertório de que
dispõe, uma vez que é uma linguagem híbrida, que mescla recursos verbais e não verbais, brincando com os mais diferentes sentidos daquele que joga com ela.
Entendemos, assim, que não há neutralidade no ato da leitura — ler é uma travessia das múltiplas textualidades inscritas na palavra/imagem impressa. E atravessá-las significa pôr em diálogo os repertórios previstos no texto/obra e os repertórios pertinentes a cada leitor empírico
— ou seja, ler pode ser entendido como um dos jogos possíveis na sociedade. Recorremos a
Huizinga, novamente:
O caráter especial e excepcional do jogo é ilustrado de maneira flagrante pelo ar de mistério em que frequentemente se envolve. Desde a mais tenra infância, o encanto do jogo é reforçado por se fazer dele um
segredo. Isto é, para nós, e não para os outros. [...]. Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da vida
quotidiana perdem validade. Somos diferentes e fazemos coisas diferentes. (HUIZINGA, 2001:15)
O mistério do jogo preside o ato da leitura: entramos sozinhos no texto e saímos dele modificados,
mesmo quando a leitura é coletiva, pois cada um joga com a sua individualidade, ainda que de acordo com regras gerais. E melhor, cada um joga porque quer jogar.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Podemos deduzir, então, que o ato de ler é um ato de liberdade, o que é confirmado por Bordini e
Aguiar: “A riqueza polissêmica da literatura é um campo de plena liberdade para o leitor...” (1988:15)
Ao deparar-se com uma obra impressa, o indivíduo põe em diálogo as contingências que cercam seu
cotidiano e o mundo do texto, abrindo seu imaginário para as vivências Outras que lhe são apresentadas a cada página.
Relação transitiva, cada ato de leitura deve processar uma pessoalização do lido: “Não nos é possível
penetrar nos textos que lemos, mas estes podem entrar em nós; é isso precisamente o que constitui
a leitura” (SCHOLES, 1999:22). Ler literatura, então, parece poder ser definido como um momento
em que o leitor inscreve, em si, o texto. Mas o processo tem uma contrapartida: ele também se
inscreve no texto, uma vez que, ao se deixar ocupar pela palavra/imagem, apropria-se dela, torna-a
sua e torna-se ela mesma. Ler implica interpretar e criticar. As associações que estabelecemos ao ler
nos revelam quem somos no e a partir do texto lido.
O ato da leitura, portanto, não se constrói por um mero processo de decodificação do impresso, pois
esse trânsito entre texto e leitor está situado histórica, cultural, politicamente, envolvendo, ainda,
condicionamentos menores, de ordem psicológica, social, econômica, enfim.
Ler uma obra artística impressa pode ser entendido como um ato que aciona e constrói mundos
e vontades. Nós não nascemos leitores de literatura ou de HQ (Histórias em Quadrinhos), sequer
nascemos leitores do mundo, precisamos ser educados para ler os livros e a vida. Essa educação,
familiar, a princípio, escolar, a posteriori, não é, também, um processo natural, um processo fácil e
facilitador. Nós nos formamos leitores, se formos adequadamente provocados para isso.
Aguiar propõe, ao debruçar-se sobre as contribuições das Estéticas da Recepção e do Efeito, que a
conquista do prazer estético no ato de ler é capaz de construir o gosto pela leitura literária:
O prazer estético nasce, pois, da compreensão do sujeito com respeito à prática que vive, envolve participação e apropriação. Na atitude estética, o leitor deleita-se com o objeto que lhe é exterior. Descobre-se,
apropriando-se de uma experiência do sentido do mundo. Diante da obra percebe sua própria atividade
criativa de recepção da vivência alheia. (AGUIAR, 1988:21)
Ao compreender-se interagindo com o texto, o leitor empírico se percebe numa intimidade dantes
inimaginada, intimidade esta que pode levá-lo a querer repetir a experiência e a gostar do desafio.
É nessa perspectiva que este artigo quer trabalhar, enfocando as relações entre a obra de Monteiro
Lobato e o leitor de verdade contemporâneo, cujos padrões de gosto foram condicionados pelas
mídias audiovisuais, pela Internet etc.
O corpus escolhido é bastante significativo: uma adaptação feita por Monteiro Lobato para crianças,
a partir do livro D. Quixote, de Cervantes, e a adaptação do livro D. Quixote das crianças, de Lobato,
para HQ. Explicamos: significativo por discutir, em primeiro lugar, a literatura e a formação do gosto
pela leitura; em segundo lugar, o papel da adaptação nesse processo formativo; em terceiro e último lugar, por trazer para o mundo do cânone literário as histórias em quadrinhos, que marcaram o
impresso novecentista e têm lugar garantido no mundo infantil e no mundo adulto nesse século XXI.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
HQ e leitura na contemporaneidade
A leitura não é prática neutra. Ela é campo de disputa, é espaço de poder.
(ABREU, 2002:15)
O espaço da leitura é um espaço de poder. A que tipo de poder referir-se-ia Márcia Abreu, no fragmento em epígrafe? A leitura, podemos inferir a partir do que afirma a pesquisadora, é fruto de um
confronto entre a obra e o leitor, entre o imaginário da obra e o de seus interlocutores. Na verdade,
a leitura é o próprio confronto. Que poder estaria em jogo? Entendemos que não é apenas uma
única esfera de poder: há o poder da circulação da obra impressa no mercado, o poder de dominar
e formar padrões de gosto e de consumo do impresso, o poder de determinar sentidos privilegiados
para a obra etc.
Esse processo tenso não tem nada de inocente: autores, editores e demais mediadores do livro e de
outros bens culturais impressos desenham simbolicamente seus alvos — os leitores —, introjetando-os, de diversas maneiras, nas páginas que lhes são destinadas. O jogo de desafio/sedução construído pelas variadas instâncias autorais e editoriais que circundam o impresso é sempre lançado
sobre o público de maneira estratégica. As armadilhas do texto/livro/revista/jornal são engendradas
de forma a interagir com o segmento do leitorado que as citadas instâncias de poder desejam transformar em consumidores do produto oferecido. Há, portanto, uma construção simbólica — e, claro,
ideológica — de um mercado consumidor e essa construção se dá através de estratégias textuais e
editoriais que se mascaram.
Este artigo se propõe a estudar como a adaptação do livro Dom Quixote das crianças, de Monteiro
Lobato, para HQ, suporte cuja linguagem híbrida joga com as habilidades do jovem leitor contemporâneo, pode funcionar como instrumento de formação do gosto pela leitura literária, ou seja, como
a referida adaptação pode virar o jogo do descaso pelo impresso, tão alardeado nas diferentes instâncias sociais.
O Dom Quixote das crianças da Editora Globo é uma apropriação do livro lobatiano, o qual, por sua
vez, é uma apropriação do livro de Cervantes. Não há, na capa, indicação do nome do roteirista nem
do ilustrador. Nas indicações bibliográficas, a ilustração é atribuída a uma equipe, a da Cor e Imagem, e o roteiro a André Simas. Essas informações não são supérfluas: ela indiciam que a Editora,
até pelo título geral da publicação — Monteiro Lobato em quadrinhos — quer enfatizar a autoria de
Lobato, talvez como garantia de boas tiragens e boas vendas.
Quando aborda questões relativas ao processo de apropriação dos textos impressos, Roger Chartier
aponta a presença de instruções que funcionam como...
[...] uma dupla estratégia de escrita: inscrever no texto as convenções, sociais ou literárias, que permitirão a sua sinalização, classificação e compreensão; empregar toda uma panóplia de técnicas, narrativas
ou poéticas, que, como uma maquinaria, deverão produzir efeitos obrigatórios, garantindo a boa leitura.
Existe aí um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da escrita, puramente textuais, desejados pelo
autor, que tendem a impor um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma maneira de ler que
lhe é indicada, seja fazendo agir sobre ele uma mecânica literária que o coloca onde o autor deseja que
esteja. (CHARTIER, 1996:95-96)
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Se, do lado do autor, há dispositivos textuais inscritos na obra impressa para servirem de guia ao
leitor, do lado do editor, há instruções que também se fazem presentes: ilustrações, diagramação,
divisão dos textos e seções são fatores que dirigem o olhar sobre o impresso. A Editora da obra aqui
estudada tem uma estratégia básica: quer convencer o consumidor infantil ( e seus pais ou responsáveis, claro) de que aquele volume de HQ está intimamente ligado a toda a obra de Lobato que a
criança conhece, seja pela TV, seja pelo livro. É um processo de múltiplas e variadas referências ao
limitado repertório infantil.
Essas estratégias de escrita e publicação balizam o processo de leitura, ainda que não o constranjam, mas direcionam possíveis apropriações, tanto por parte de leitores com vasto repertório, como
por parte dos neófitos das letras impressas. As adaptações constituem apropriações que cristalizam
determinadas formas de interação do escritor/editor com o texto-fonte. Isso significa que as adaptações trazem sentidos e valores agregados ao texto original, os quais o atualizam e transformam-no
em um novo texto.
O adaptador é uma espécie de consumidor primeiro do texto e, como afirma Martín-Barbero, em
Dos meios às mediações (2003, p. 302), o consumo é o lugar de uma luta que implica mais que a
posse do objeto, implica seus usos sociais e as competências culturais com que objeto e consumidor
interagem. O consumo é objeto de discursos/atos de poder. A apropriação lobatiana da obra de Cervantes conta com uma cúmplice poderosa: Dona Benta, a encantadora avó de Narizinho e Pedrinho,
que toma para si a dificultosa tarefa de educar os netos brincando, exatamente nos períodos de
férias de Pedrinho, menino urbano, que escapole poucos dias por ano para seu Sítio.
Wolfgang Iser afirma que “Toda interpretación transforma algo em outra cosa.” (2005:29) Lobato lê
Cervantes e leva sua leitura, isto é, sua interpretação, na voz de Dona Benta, para seus pequenos leitores. Nesse processo, ele transforma o texto-fonte em outro texto. O mesmo ocorre na adaptação
da Editora Globo, o que é potencializado pelo jogo entre verbal e não verbal próprio das HQs.
As histórias em quadrinhos que se apropriam de obras literárias promovem certo direcionamento
do ato de ler, como apontamos acima, exatamente por concretizarem, no papel impresso, uma leitura já feita. Mas, também, permitem que os leitores, que ainda não têm um grande repertório a
ser posto em ação no ato da leitura, se identifiquem mais intensamente com as personagens e suas
ações, com a trama e suas ideias.
As obras-fonte imprimem aos jovens leitores contemporâneos uma série de obstáculos que os quadrinhos relativizam. A representação visual é uma alternativa muito interessante nesse sentido.
Segundo Martine Joly,
Seja ela expressiva ou comunicativa, é possível admitir que uma imagem sempre constitui uma mensagem
para o outro, mesmo quando esse outro somos nós mesmos. Por isso, uma das precauções necessárias
para compreender da melhor forma possível uma mensagem visual é buscar para quem ela foi produzida.
(JOLY, 1996:55)
Para quem a adaptação da obra lobatiana para HQ foi criada? É claro que, pela relação com a obrafonte, escrita e publicada para o leitor criança, essa adaptação dirige-se a um público entre os oito
e os doze anos de idade, mas não há um mecanismo censor que impeça, por exemplo, esta doutora
em literatura que escreve este estudo de comprar e ler a referida apropriação.
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No entanto, o leitor desejado pelas editoras, a fatia do mercado que elas pretendem alcançar, corresponde às crianças que, nas escolas, devem ser preparadas para que se tornem leitoras dos grandes clássicos da literatura brasileira e universal. O interessante é que nesse jogo de construção simbólica e empírica do gosto pela leitura e de hábitos de consumo do impresso, essa adaptação propõe
uma nova obra e viabiliza novas formas de se pensar e ler literatura.
O leitor que lê os quadrinhos toma conhecimento de uma história adaptada, ou seja, ele é conduzido pelo olhar de uma alteridade que nem sempre se revela, ou que faz parecer irrelevante seu próprio lugar de alteridade. Mas o jogo instaurado pelos quadrinhos pode convidá-lo a sair do circuito
da visualidade e a entrar no campo da palavra, da imagem verbal. Ou melhor: pode fazê-lo conjugar,
numa diferente experiência de percepção, o visual e o verbal (daí, repito, a linguagem dos quadrinhos ter um caráter híbrido), aproximando o impresso das mídias com as quais essa criança já está
habituada em seu cotidiano. E a própria visualidade pode permitir-lhe reinventar o lido e reinventarse a partir do lido.
Para fazer um leitor, isto é, para criar em alguém o gosto pela leitura literária, tornando-o um
consumidor de livros, revistas etc., os escritores e os editores precisam jogar com o público
que pretendem alcançar, criando um mundo à parte, um mundo mágico, composto de aventuras fantásticas, ou um mundo de aventuras históricas ressignificadas, ou, ainda, um mundo já
ficcional, mas que, reinventado no processo de adaptação para uma linguagem híbrida, tornase novo e sedutor. Assim, os adaptadores dos clássicos para HQ — e aqui incluímos, por compreender que Monteiro Lobato escreveu os grandes clássicos da LIJ brasileira, a equipe que fez
as ilustrações e o roteirista André Simas — desafiam os variados possíveis interlocutores, mostrando que ler é diversão, que é uma prazerosa brincadeira, para adultos, jovens e crianças. E,
como em toda brincadeira, a tensão de reinventar a vida é fundamental: a tensão gerada pela
representação visual/verbal preside o jogo e funciona como instrumento de provocação dos
leitores, como meio de fazê-los gostar de ler.
Monteiro Lobato em HQ: as crianças morando no impresso
Ando com ideias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças, um livro é todo um mundo. [...]. Ainda acabo fazendo livros
onde as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar [...]
(LOBATO, 1961:293)
Relacionar criança e literatura, no Brasil, implica necessariamente recorrer a Monteiro Lobato. Mais
que nenhum teórico da literatura e da cultura, Lobato entendeu de discutir e concretizar tudo o que
pudesse aproximar a infância do texto literário.
No fragmento em epígrafe, retirado de uma de suas cartas a Godofredo Rangel, recolhidas em A
barca de Gleyre, ele dá a chave do tamanho da interação entre a arte literária e os pequenos leitores: ela deve ser a casa da criança, seu habitat privilegiado, deve ser confortável e acolhedora,
despertando-lhe a confiança, provocando-lhe prazer, desafiando-a para um crescimento infinito,
rumo a estrelas imaginárias, mas nem por isso inalcançáveis, como o pé de feijão daquela história
antiga, que conhecemos quando éramos miúdos.
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Outro aspecto ressalta do trecho destacado: a criança é um público diferente, escrever para meninos
e meninas exige do escritor uma preparação específica, que lhe permita configurar simbolicamente
um mundo, capaz de interagir com aquele que os pequenos conhecem empiricamente, não para
repeti-lo, mas para levá-los a um reconhecimento reflexivo, ou melhor, a um outro conhecimento
do já visto e já vivido. Escrever, então, para crianças, sempre vai ter a marca do processo de ensinoaprendizagem.
Teresa Colomer aponta que a literatura infantil responde à visão da infância que cada sociedade e
cada época constroem: “Nos livros infantis o poder das relações entre autor e leitor é mais evidente que na literatura produzida e lida entre adultos; sua função educativa é muito óbvia e torna-se
também muito visível que os autores e editores estão constrangidos por pressões sociais de diversos
tipos” (COLOMER, 2003:117).
Percebe-se, pela afirmação da pesquisadora, que não se trata de um processo de ensino-aprendizagem ingênuo, se é que isso é possível. Escrever para crianças, fazê-las morar nos livros, levá-las a
gostar do literário, implica levar-lhes marcas culturais e ideológicas que tanto se expõem, como se
mascaram. Mas o que importa a este artigo é como estabelecer o contato entre os miúdos e o livro
e como fazê-los gostar dessa brincadeira.
A questão da ludicidade do ato de ler e da compreensão da escrita literária como espaço de imaginação livre, tanto no que se refere ao ato da criação, quanto no que cerca o ato da leitura, é básica para
a reflexão que aqui se desenvolve. Monteiro Lobato, ao conjugar sua vocação pedagógica, empresarial e literária, escrevendo, publicando e vendendo livros para crianças, reagiu à precariedade do
mercado livreiro voltado para essa faixa etária no Brasil, precariedade esta histórica, decorrente de
nossas práticas culturais desde a Colônia. Segundo Yunes e Pondé,
A questão da leitura, no Brasil, data da época colonial, cujo sistema de dominação impedia que a educação
se popularizasse, como forma de manter o povo alienado da informação e do poder. Em consequência, o
acesso à participação ficava restrito às elites culturais e econômicas, que enviavam seus filhos para estudar na Europa colonizadora. Assim, durante o período colonial inexistia um sistema de difusão cultural,
uma vez que a imprensa local era proibida, as raras bibliotecas eram guardadas nos mosteiros e não havia
uma massa de leitores que pudesse levar os escritores a modificar seus padrões europeus. Entre os intelectuais, educados no exterior, havia uma sensação de desenraizamento, que os impedia de identificar-se
com os valores de sua terra natal, senão simbolicamente. (YUNES; PONDÉ, 1989:26)
Nossa independência política não construiu do nada, de um ano para outro, uma sociedade caracterizada pela autonomia intelectual. No século XIX brasileiro, ao que parece, independentemente de
o escrito circular no livro ou no jornal, sua transformação em moeda cultural de troca cotidiana foi
o objetivo comum de toda a nossa elite intelectual.
O consumo da cultura impressa tornou-se capital nessa época. Aumentá-lo era prioridade. Para isso,
era preciso tornar essa cultura impressa não apenas um instrumento de educação distensa, informal
(PINA, 2002): o consumidor educado dentro de determinados padrões passaria a exigir a permanência desses mesmos padrões. Ele teria as marcas dos textos que lhe eram impostos, até porque essa
imposição não era explícita, ela se fazia através de um processo de desafio/sedução, muitas vezes
imperceptível aos olhos desacostumados com o mundo letrado.
Escritores, editores e receptores eram partes distintas, mas complementares, do mesmo sistema
intelectual, apenas não partilhavam o mesmo saber prévio. Essa assimetria foi usada pelas elites
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para a construção simbólica e empírica do leitorado brasileiro. Daí, o leitor aparecer como uma criação quase ficcional dos escritores e demais produtores de bens culturais, daí sua constante introjeção nos textos: buscavam-se estratégias de educação dessa nova espécie cultural.
E uma das consequências desse processo é que não aprendemos a usar o impresso como mediador
de nossas relações sociais até que o século XX chegasse e trouxesse, com seus conflitos de natureza variada e avassaladora, as mudanças tecnológicas necessárias para nos empurrarem, bastante
abruptamente, no mundo das letras.
É nesse cenário novecentista turbulento e modernoso que Monteiro Lobato escreve literatura — e
lê, publica, divulga, vende livros e revistas. Ele se inscreve na antiga tradição oitocentista de escritores que precisavam plasmar imaginária e empiricamente seu público leitor. Mas acrescenta às velhas
estratégias uma visão empresarial lúcida, explícita e eficaz, no que tange à divulgação e circulação
do impresso.
Na apresentação dos volumes A barca de Gleyre, denominada “Escusatória”, ele define a literatura
como uma atitude, “[...] a nossa atitude diante desse monstro chamado Público, para o qual o respeito humano nos manda mentir com elegância, arte...” (1968ª:17) A afirmação, escrita nos primeiros anos do novecentos, dá conta da incômoda situação do escritor: ele se insere nos seus textos,
inscreve e reinventa seu mundo e suas expectativas em cada frase que constrói, mas precisa fazer
com que essas inscrições cheguem a um assustador desconhecido — aquele leitor empírico, imaginado, mas sempre surpreendente.
Metaforicamente, arma-se um cabo de guerra, cujas pontas são desiguais, sob quaisquer óticas. A
disputa pelo poder da significação textual — volto à afirmação de Márcia Abreu anteriormente discutida – implica entender que a criação e a recepção de cada obra são processos complementares,
mas que se constroem em direções opostas, num desequilíbrio necessário. É aquela assimetria da
qual Iser trata, assimetria necessária para a interação obra/leitor.
Monteiro Lobato entende que o livro é potencialmente um objeto de consumo: para ele, trata-se de
uma mercadoria fundamental para o progresso da nação. Escrevendo ao amigo Godofredo Rangel,
em 8 de dezembro de 1921, afirma: “O nosso sistema não é esperar que o leitor venha; vamos onde
ele está, como o caçador. Perseguimos a caça. Fazemos o livro cair no nariz de todos os possíveis
leitores desta terra. Não nos limitamos às capitais, como os velhos editores. Afundamos por quanta
biboca existe” (1961:239).
Lobato tinha uma perspectiva ampla do processo de escrita/publicação/leitura exatamente por
conhecer as duas faces da moeda, militando em ambas: ele era escritor e era empresário, dono de
editora. Tal processo, bastante invasivo, se construía, para ele, posso deduzir, de duas formas complementares e indispensáveis uma a outra: de um lado, a invasão do texto, algo íntimo e pessoal; de
outro, a invasão do livro, algo material, concreto, visível.
Essa percepção da cultura como mercado de circulação de bens conjuga economia, pedagogia e
literatura. Se o livro, para ele, é objeto a ser consumido, o leitor é o consumidor e exige uma série de
ações que o convençam de que vale a pena comprar e ler aquele produto cultural. Assim, é preciso
que a mercadoria oferecida ao leitor seja interessante, desde a capa até o conteúdo. Esse objeto não
pode ser atrativo apenas aparentemente, pois isso significaria vendê-lo apenas uma vez. Cada livro
publicado, consequentemente, precisa ter atrativos internos, pertinentes à composição literária e
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à própria composição da página. Para finalizar, o livro deveria ser preparado para formar hábitos
de consumo e padrões de gosto, capazes de agradar ao segmento do leitorado ao qual se dirigiria.
Ideias novecentistas herdadas de um processo oitocentista de construção utópica, simbólica e frustrada do leitorado brasileiro.
Como empresário que dependia duplamente do mercado, Lobato parece se propor a criar segmentos específicos e fiéis de consumidores para os bens culturais que produzia, como afirma ao mesmo
amigo, no trecho posto em epígrafe e repetido abaixo, em função de sua relevância: “Ando com
ideias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei.
Bichos sem graça. Mas para as crianças, um livro é todo um mundo. [...]. Ainda acabo fazendo livros
onde as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar...” (1961:293).
A importância dessa afirmação lobatiana prende-se à percepção que esse escritor-empresário tem
de que o imaginário é fundamental na formação do gosto pela leitura literária. A leitura, na ótica de
Lobato, parece agregar aos valores maiores para o Brasil novecentista burguês — conhecimento e
renda — um valor diferenciado e que, em se tratando de processos educativos, era visto com desconfiança e preconceito — o valor da imaginação, do lúdico, da aprendizagem como diversão, como jogo.
Na narrativa lobatiana, adaptada da obra de Cervantes e que serve de objeto de interesse a este
estudo, Emília, personagem mais irrequieta, sedutora e malandra da ficção infantil do escritor paulista, carrega o Visconde de Sabugosa para mais uma de suas peraltices. Quero ressaltar a leitura que
fazemos dessas duas personagens: Emília representa o poder do imaginário, o Visconde, o poder do
conhecimento. Grandes e fortes poderes, que juntos mudam o mundo...
Dona Benta arrumava a estante de livros, colocando nas prateleiras mais baixas os que supunha —
com base em critérios de valor não explicitados, mas facilmente identificáveis como aqueles que
regem a formação do cânone literário ocidental e nacional — serem de melhor compreensão para
os meninos e, nas mais altas, aqueles que leriam quando tivessem habilidades para isso. Essa arrumação da estante parece simbolizar os níveis gradativos de formação do bom leitor. A boneca, insubordinada e teimosa, quer exatamente os que estão nas prateleiras mais altas.
Tal ordem dos livros no Sítio parece-nos representar o poder do impresso, isto é, a força da palavra
concreta sobre aqueles que estão além da página. Insatisfeita, Emília convoca, então, o Visconde
para auxiliá-la numa desobediência: ela quer ajuda para pegar uns volumes grossos e grandes:
Emília estava na sala de Dona Benta, mexendo nos livros. Seu gosto era descobrir novidades — livros de
figura. Mas como fosse muito pequenina, só alcançava os da prateleira debaixo. Para alcançar os da segunda, tinha de trepar numa cadeira. E os da terceira e quarta, esses ela via com os olhos e lambia com
a testa. Por isso mesmo eram os que mais a interessavam. Sobretudo uns enormes. (LOBATO, 1967:12)
Emília não aceita apenas contemplar a obra, vê-la à distância, “lambê-la com a testa” — para ela, a
simbologia da formação do bom leitor não funciona, ela desarranja essa ordem superior e questiona
os valores que lhe dão forma e substância: acabou tomando o volume que lhe interessava, com o
socorro do sabugo de milho falante. Este, no entanto, foi quem mais sofreu com a desordem instalada pela boneca que, ao pegar Dom Quixote, deixa-o cair e esmaga o Visconde. O desejo impositivo
de Emília quase custa a vida de seu sogro. Tudo por querer ler aquilo que lhe estava vetado, por um
censor abstrato e autoritário.
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Na adaptação quadrinhística da Editora Globo, a capa traz a imagem do Dom Quixote, representado
pelo Visconde de Sabugosa, ocupando todo o lado direito, sendo o lado esquerdo destinado a alguns
dos quadros que marcam as partes da história escolhidas pelos editores para comporem o volume.
Logo após, há uma apresentação verbal-imagética denominada “Aventuras Quixotescas” (imagem
1). A apresentação dessa adaptação é feita por Emília, vestida de Dom Quixote, com uma bacia
na cabeça e uma vassoura na mão. Sorridente, a bonequinha de macela começa apelando para o
caráter aventureiro das narrativas que envolvem as personagens da obra lobatiana. A seguir ela dá
a motivação dessa empreitada editorial: “Claro que eu não podia deixar vocês de fora dessa. Foi por
isso que fizemos este livro, para que todo mundo pudesse conhecer o grande cavaleiro andante.”
(LOBATO, 2007:3)
Imagem 1
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“Todo mundo” deve ler, “todo mundo” deve conhecer Lobato e Cervantes. “Todo mundo” deve
aprender a gostar de ler. Na mesma página, logo abaixo, Emília pergunta: “Ficou com sede de aventura? Então, está no lugar certo!” (2007:3). O livro de HQ é o lugar certo, talvez aquele em que as
crianças de hoje poderão morar, como as de ontem moraram nos livros de Monteiro Lobato.
Segundo Nelyse Salzedas e Pedro Padovini,
O texto de Lobato foi adaptado primeiramente no período inaugural da televisão brasileira e, desde então,
suas narrativas são editadas sob novos contextos históricos e sociais, com intervalos entre uma produção
e outra. Em todos os casos de edição, abrem-se novas audiências, que determinam novas interpretações.
(SALZEDAS; PADOVINI, 2008:247)
Trazendo a reflexão dos pesquisadores para o campo da produção impressa atual, com as histórias
em quadrinhos abrem-se novos modos e tipos de leitura da obra lobatiana, talvez não tão amplos
geográfica e socialmente quanto os abertos pela TV, que chega aos mais distantes vilarejos do país,
mas, ainda assim, os quadrinhos agregam ao texto-fonte novos segmentos de consumidores. DJota
Carvalho, em A educação está no gibi, afirma:
Seja pela atraente mistura de texto e desenho, seja pelos diversos tipos de histórias ou, ainda, por heróis
(e super-heróis) inesquecíveis, os quadrinhos sempre foram uma mídia sedutora para o público infantojuvenil. Assim, naturalmente, as HQs são também um instrumento potencial para educar. (CARVALHO,
2006:31)
A adaptação criada pela Editora Globo não traz exatamente um super-herói, mas coloca como centro
das atenções Emília e o Visconde Sabugosa, dando às demais personagens um espaço secundário.
Eleger essas duas personagens para a condução da narrativa verbal-visual é uma intervenção tanto
na obra-fonte, como nas adaptações televisivas e parece-me apontar o caminho da apropriação quadrinhística: são duas personagens-boneco, mas que associam a irreverência do lúdico à seriedade do
conhecimento, valores fundamentais para a formação infantil.
A primeira página da HQ traz exatamente a cena em que Emília convoca a ajuda do Visconde (imagem 2). É curioso observar a construção da página: trata-se de um único quadro, plano geral, vista
frontal, com colorido vivo, balões de fala com letras normais. A estante escalada por Emília traz
títulos preciosos para a formação de um sólido e canônico gosto pela leitura literária: Moby Dick,
Bambi, Peter Pan, Hércules e, pasmem, Urupês, do próprio Lobato, dividem a prateleira com o Dom
Quixote. A gradação de cores é sugestiva: Urupês em azul, com letras em forte tom amarelo, e Dom
Quixote em forte vermelho, com grandes letras amarelas. Essa última prateleira é muito significativa: os demais livros são coloridos em azul escuro, marrom escuro, as letras das lombadas estão em
amarelo ou branco, ganhando grande destaque.
Nas prateleiras inferiores, surgem títulos como Odisseia, Ilha do Tesouro, Cinderela, Iracema, Alice no país das Maravilhas, O Alienista, O morro dos ventos uivantes etc. A construção estratégica
da imagem segue o mesmo padrão: os mais relevantes para o cânone ocidental, como a Odisseia,
trazem as letras mais visíveis, os menos relevantes, mas também considerados necessários pela
Editora, suponho, trazem o título visível, mas truncado pela escada, ou pelas perninhas de Emília.
Vale ressaltar que o título Cinderela se repete, em outra cor e meio oculto pelos cabelos da boneca.
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Imagem 2
Como sugere Núbio Delanne Ferraz Mafra, “O enquadramento, o lugar e o olhar de quem narra são
fundamentais numa HQ” (MAFRA, 2003:98). Embora plano de fundo, a imagem da estante parece
desenhar o cânone ocidental e brasileiro, como afirmei acima. Estranho isso, se pensarmos como
os preconceituosos estudiosos do impresso, que relegam as HQs ao domínio da marginalidade; mas
não é estranho, se pensarmos no propósito lobatiano de construir um país de cidadãos leitores,
tendo a criança como base dessa sociedade desejada. A Editora Globo mostra, aí, que todo mundo
pode subir os degraus da escadinha da Emília...
Esse quadro inicial direciona o leitor, inserindo-o de imediato num ambiente em que a literatura
viável é aquela referendada pela Escola, pela Academia. Estariam os editores usando a HQ como
simples trampolim para a criança leitora se sentir interessada pela literatura de verdade?
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De acordo com Ianonne e Ianonne, “Os tipos de plano variam de acordo com o destaque que o artista quer dar ao cenário ou aos personagens. Parece que o desenhista usa uma lente zoom, como no
cinema ou na fotografia, para aproximar uma figura ou mostrar uma visão geral da cena” (IANONNE;
IANONNE, 1994:63). A equipe de ilustração, ao compor esse primeiro quadro da adaptação destaca
o saber das elites, o cânone ocidental e brasileiro, levando o leitor a imaginar que ler é ler essa literatura. A organização da imagem traz os elementos que traçam o jogo saber/poder: as cores intensas
que alternam com os tons pastéis podem ser estratégias provocadoras do imaginário do leitor.
Retomando o livro de Monteiro Lobato, Dona Benta, na tentativa de saciar a curiosidade de Emília e
a dos meninos, se propõe a fazer uma leitura seletiva da obra de Cervantes, na verdade, a fazer uma
interpretação das histórias de D. Quixote e Sancho Pança. Ela conta os episódios que julga mais interessantes e adequados ao tipo de repertório e de expectativas que seus netos e os bonecos teriam
— ela reduplica o processo de censura e controle da leitura observado na arrumação da estante.
A mediação necessária de Dona Benta enfatiza a distância que o mundo da escrita e do impresso
ainda guarda em relação ao auditório composto pelos meninos, pela cozinheira e pelos bonecos.
Talvez de forma bastante crítica, Lobato metaforize, aí, a ação dos escritores e demais intelectuais,
no que tange à divulgação da cultura impressa: ele facilita o acesso à obra. Essa marca da adaptação
é responsável pelo preconceito que a cerca. Mas, por outro lado, essa facilitação do acesso ao texto
pode funcionar como instrumento de formação do gosto pela leitura literária. Amaya Prado, ao estudar o livro lobatiano aqui enfocado, afirma:
Lobato elaborou suas adaptações de modo que ficassem fortemente vinculadas, amalgamadas, à produção de obras originais. Para tanto, lançou mão de dois importantes artifícios. Em primeiro lugar, há a
configuração de um universo narrativo facilitador da inserção de outras histórias e da construção de uma
instância narrativa propícia à apresentação de outros textos. É a criação do Sítio do Picapau Amarelo como
o local por onde transitam livremente as mais diversas personagens. Em segundo lugar, há a participação
de Dona Benta como leitora que se torna narradora-adaptadora, mediando as leituras de seus netos e, por
extensão, dos leitores em geral. (PRADO, 2008:331)
No Brasil do primeiro novecentos, ainda eram poucos os que podiam ter em mãos os grandes livros
da humanidade. Dona Benta tinha, era uma senhora culta, versada em diferentes assuntos. E esse
saber erudito dava-lhe uma autoridade mascarada sobre os netos e os demais habitantes das páginas lobatianas, bem como sobre a criança que se debruçasse sobre a obra em questão.
Se, por um lado, ela relativiza a simbólica arrumação da estante e cede aos desejos dos netos e da
boneca, ao adaptar o livro para seu auditório, por outro lado, coloca todos em seus lugares, apontando a necessidade da mediação, por não terem os interlocutores o repertório que lhes permitiria
compreender o livro e ressaltando, de forma indireta, a relevância de uma assimetria entre leitores
comuns, leitores preparados e obra, implicitamente definindo o ato da leitura como uma atividade
adequada apenas a iniciados.
A vantagem é que sua intervenção é lúdica e interativa: Dona Benta interpreta, na verdade, o que lê.
Essa apropriação/adaptação é passada aos netos e aos demais ouvintes. Embora a associação entre
leitura, interpretação e poder fique clara, através das intervenções das crianças e das diferentes
formas de apropriação das histórias representadas no livro, ressalta nesse processo a viabilização de
certa liberdade imaginária.
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Alessandra El Far, em O livro e a leitura no Brasil, aponta que as maneiras de ler e os tipos e objetos
de leitura são práticas culturais que respondem a provocações históricas. Segundo ela, “Se alguns
tomam um livro entre as mãos para melhor conhecer o mundo ao seu redor, [...], muitos entregamse ao prazer da leitura por diversão ou simplesmente pelo gosto de ver impresso no papel um arranjo ilimitado de tipos gráficos.” (EL FAR, 2006:64) Essas diferentes maneiras de apropriação de cada
produto impresso resultam de um processo de interlocução não apenas com o texto, mas com seu
suporte também.
Muito se discute ainda hoje no Brasil, e fora do Brasil, a questão da pouca ou nenhuma leitura literária que compõe o repertório das crianças e dos jovens, acusando-se a TV, a HQ, o cinema, a internet
de serem os vilões malvados que corrompem o gosto de nossos pequenos e potenciais grandes leitores. Há, implícita nessa discussão, uma gama enorme de valores seletivos e hierarquizantes, que
excluem do campo artístico-literário as novelas, as minisséries, os filmes, as narrativas híbridas das
histórias em quadrinhos, os blogs, os chats etc.
Essas vozes preconceituosas que se multiplicam pelas famílias, igrejas, escolas e universidades, definem o leitor como aquele que lê da lírica trovadoresca à obra de Proust e Joyce, passando por Cervantes, é claro, e pela Bíblia Sagrada, podendo, após a leitura, encetar edificantes discussões sobre
o sentido de cada texto. Tal forma de definir leitor e leitura arrasta-se há alguns séculos.
O início do século XX brasileiro, com suas incessantes rupturas com as tradições, aproximou-se de
algumas práticas culturais não eruditas, desenvolvendo um processo iniciado por estudiosos oitocentistas da cultura, como Sylvio Romero. Foi também nesse início de século XX, em suas primeiras
décadas, que o irrequieto intelectual paulista resolveu fazer do Brasil um país de livros e de homens
— e mulheres — leitores (as). A princípio, Monteiro Lobato, esse jovem empreendedor das Letras,
interagiu com o público adulto, assumindo, a seguir a feliz tarefa de formar um público consumidor
do impresso literário entre as crianças e os jovens.
Quando esse moço de Taubaté afirma que quer fazer com que as crianças morem nos livros, conforme o fragmento posto em epígrafe, como ele próprio o fez em sua infância, na verdade, ele está se
propondo a produzir uma obra infantil que prime pela provocação ao imaginário infantil e juvenil,
que se sustente no incentivo à criatividade da criança e do adolescente que se aventurar a invadir as
páginas por ele criadas e editadas.
Monteiro Lobato ressentia-se das traduções de obras clássicas que circulavam por aqui e dois de
seus projetos editoriais eram publicar boas traduções e boas adaptações para crianças. É o que ele
afirma a Godofredo Rangel, em carta de 11 de janeiro de 1925: “Pobres crianças brasileiras! Que
traduções galegais! Temos de refazer tudo isso — abrasileirar a linguagem.” (1961:275) Em março,
ele convida o amigo para participar dessa empreitada:
Andas com tempo disponível? Estou precisando de um D. Quixote para crianças, mais correntio e mais em
língua da terra que as edições do Garnier e dos portugueses. Preciso do D. Quixote, do Gulliver, do Robinson, do diabo! Posso mandar serviço? É uma distração e ganhas uns cobres. Quanta coisa tenho vontade
de fazer e não posso! (1961:276).
Fazer boas traduções/adaptações para crianças é uma ação nada inocente: se um pequeno leitor
toma o volume de Cervantes e lê por sua própria conta, sendo atravessado somente pela tradução,
vai negociar com o texto, no processo de construção de significados, tendo como parâmetros seu
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repertório, suas expectativas — isso implica afirmar que a criança vai insinuar-se na obra de acordo
suas possibilidades.
Por outro lado, ao ler uma adaptação da obra, ela não estará dialogando com o Quixote de Cervantes, nem com o Quixote do tradutor (que não tem tanta liberdade assim em sua ação), mas com o
Quixote do adaptador, que introjetará na obra seus valores, seu mundo, sua percepção da vida. É
muito mais que “abrasileirar a linguagem”: é construir um outro Quixote, jogando com o texto-base,
de maneira a dar conta da perspectiva desse novo construtor.
Cirne afirma que “Transpor uma obra de uma dada prática estética para outra prática estética implica assumir semiologicamente os signos de uma nova linguagem” (CIRNE, 1972:93). A adaptação
do texto lobatiano para HQ implica, então, é claro, uma leitura terceira, feita após a tradução e a
adaptação do próprio Lobato, uma apropriação do que já foi lido e já foi objeto de apropriação, e
uma “tradução” dos sentidos produzidos para as estratégias que as novas mídias/suportes, e suas
respectivas linguagens, envolvem.
As HQ concretizam palavras em imagens, hibridizando essas duas linguagens. Logo no início dessa adaptação, aqueles que conhecem a obra-fonte reconhecem Emília e o Visconde de Sabugosa,
reconhecem, pela expressão da boneca, que ela está dando ordens ao Visconde, está sendo irreverente como sempre. Uma das estratégias dos adaptadores, para jogar com as expectativas dos que
conhecem e dos que não conhecem o texto-fonte, é já iniciar toda a narrativa quadrinizada pela
percepção dessa irreverência. E já centralizarem, desde a capa e da Apresentação, a ação na Emília
e no Visconde.
Na HQ aqui enfocada, a imagem de Dom Quixote corresponde à imagem do Visconde Sabugosa
(Imagem 3), o que nos sugere um apelo à memória da criança que viu as séries de TV e a seu imaginário, construindo um herói tão ou mais cativante que o de Cervantes e o de Lobato. A página apresenta três quadros de formato irregular, sendo menores os dois de cima, em formato de peças de
quebra-cabeça — o que propõe a junção dos quadros, dando a sequência da leitura —, e o de baixo,
maior, apenas com um balão contendo o título das aventuras, sendo que este balão corresponde à
fala das personagens lobatianas que habitam o quadro superior.
O quadro maior da página traz um Dom Quixote/Visconde de Sabugosa de formas um pouco arredondadas, e com um grande sorriso, convidando os pequenos à aventura de ler. O uso das cores
entre os quadros muda explicitamente: nos quadros em que as personagens lobatianas mantêm sua
identidade, as cores são intensas, girando entre vermelho, amarelo, azul, verde etc. Nos quadros
correspondentes à história narrada, as cores surgem apagadas, constituindo-se em tons pastéis.
De acordo com Mendo, “Em muitas das pessoas, na maioria das culturas, o vermelho tende a causar
excitação e o verde denota um sentimento mais relacionado à calma. A gama de vermelhos e amarelos é mais ‘quente’ que a dos azuis e verdes. O autor faz-se valer desse princípio para construir o
clima da narrativa” (MENDO, 2008:53). É possível, então, observarmos que os ilustradores fizeram
uma seleção cromática capaz de ensinar sutilmente aos pequenos leitores como devem ler os diferentes níveis da ficção quadrinhística: cores vivas e fortes indicam o mundo de Lobato, cores fracas
apontam o mundo de Cervantes. Essa distinção cromática me parece uma estratégia pedagógica dos
ilustradores para formarem modelos de leitura — uma espécie de implicitação do leitor desejado
pela Editora e sua equipe.
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Se, no livro de Monteiro Lobato, encontramos vozes narrativas que conduzem a leitura, mostrando
aos pequenos como as associações devem ser feitas para que se potencializem e relacionem as
brechas textuais, destacando-se a voz de Dona Benta dentre todas as outras, na adaptação da Cor
e Imagem e de André Simas, as vozes narrativas se dissolvem em estratégias múltiplas, que jogam
com o incipiente repertório do público desejado pela Editora, tais como a organização dos quadros
como peças de quebra-cabeças, o colorido mutante, os balões que invadem os diferentes planos
narrativos. São instrumentos da linguagem quadrinhística que as crianças de hoje, exatamente por
terem seus padrões de gosto formados pela TV, pelo cinema, pelos desenhos, pela internet, pela
HQ, conhecem e dominam.
Imagem 3
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Considerações finais
Não nos é possível penetrar nos textos que lemos, mas estes podem entrar em nós; é isso precisamente
o que constitui a leitura.
(SCHOLES, 1991:22)
Esvaziar-se de si e deixar-se preencher pelo Outro — um desconhecido assustador. Isso é ler, intensa
e potencialmente. E Scholes, de quem tomo emprestadas as palavras postas em epígrafe, também
se refere ao tipo de leitura que, quando ocorre, provoca um deslocamento no sujeito que lê e no
mundo que o cerca e com o qual ele interage.
Como aponta Jean Foucambert, “Ler é um comportamento integrado aos diversos aspectos da vida e
que é aprendido através deles...” (FOUCAMBERT, 2008:154). Para ser leitora, a criança — e mesmo o
adulto — não tem que apenas ler o livro, ela pode ler gibis, cordel, jornal etc. Ler é parte da vida contemporânea. Ou, pelo menos, pode vir a ser. Inclusive ler literatura, qualquer que seja seu suporte.
A leitura é uma atividade criativa, criadora, aberta. Ela...
[...] tem duas faces e orienta-se para duas direcções distintas, uma das quais visa a fonte e contexto original dos sinais que se decifram, baseando-se a outra na situação textual da pessoa que procede à leitura.
Pelo facto de a leitura constituir sempre matéria de, pelo menos, dois tempos, dois locais e duas consciências, a interpretação mantém-se infinitamente fascinante, difícil e essencial. (SCHOLES, 1991:23)
Assim, a leitura é centrípeta e centrífuga, tanto implica compreender e incorporar, como implica
ceder e doar. Ler é trocar com o lido as experiências, as do leitor empírico com as da obra e viceversa. As associações que estabelecemos ao ler nos constroem para nós mesmos, nos moldam no e
a partir do texto lido.
Na adaptação do livro de Monteiro Lobato para quadrinhos, a Editora Globo introjetou em cada
página o pequeno leitor contemporâneo, jogando com suas expectativas e com seu repertório em
construção, sem abandonar o projeto do escritor de Taubaté — ele mostra à criança quem ela é na
HQ e a partir da HQ.
A leitura desse volume de HQ me parece estabelecer um saudável confronto entre a literatura, os
seus diferentes suportes e o leitorado de agora, imerso num mundo que transita entre a concretude
do impresso e a virtualidade da Internet. As novas mídias, dentre as quais a TV, o cinema, os quadrinhos, entram no circuito da formação do gosto pela leitura literária construindo um espaço paradoxal, mas eficiente. Os quadrinhos invadem a criança e deixam-se invadir por ela, estabelecendo
caminhos alternativos, lúdicos, de ler a ficção, o mundo e a si mesmo no mundo.
Benjamin, ao traçar uma “História Cultural do Brinquedo”, em seu livro Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação (BENJAMIN, 1984:67-70), coloca a criança não como indivíduo à parte do mundo,
mas como ser que transita pelas práticas culturais de sua comunidade, de seu grupo social, étnico
etc. A criança pertence ao universo de sua família e de seus amigos, ela é engendrada por ele, tanto
quanto o engendra, relendo-o através de seu imaginário. Para efetivar esse processo de releitura e
de apropriação do mundo, a criança conta com alguns instrumentos, dentre os quais os brinquedos
se destacam, aproximando-a dos padrões sociais desejáveis para cada época e sociedade: carrinhos,
casinhas, bonecos, trens, peões, bolas, enfim, o universo liliputiano (BENJAMIN, 1984:71) destinado
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às crianças vem carregado da ideologia dos pais, das escolas, dos países, das igrejas etc. Os livros e
as histórias em quadrinhos também compõem esse mundo infantil.
Emília e o Visconde, personagens eleitas pela equipe da Editora na construção da HQ estudada aqui,
simbolizam na obra de Lobato essa ideologia, ao mesmo tempo em que a atravessam: são feitos de
material comum, tirado dos restos da vida na casa e da terra. Mas subvertem essa relação direta
com a matéria cotidiana, introduzindo a diferença pelo uso da fala, do raciocínio — nem sempre
dentro da lógica normal, mas com uma lógica particular —, pela iniciativa, pela ação nas narrativas.
Eles instauram a tensão entre o imaginário e a razão. Vale destacar que nas diferentes contendas, o
imaginário tem mais vitórias que derrotas ou empates. Isso se adéqua à obra lobatiana e à adaptação pra HQ.
O leitor empírico, ao abrir um livro, um jornal, uma revista, ou ao acessar sites de natureza variada,
depara-se com o novo, o desconhecido. O texto, gigantesco em sua concretude e suposta completude, desafia o leitor a invadir seus domínios, a redimensioná-los, tornando-os seus. Ler, então, pode
ser configurado como um ato que depende da tensão e da reflexão que ela suscita – processo que
se intensifica quando a linguagem da obra é híbrida e joga com a pluralidade dos sentidos do leitor.
Assim, entendemos que as adaptações dos clássicos para HQ podem, sim, entrar com grandes vantagens no infinito jogo da formação do gosto pela leitura literária na contemporaneidade, acercandose não apenas dos pequenos leitores, mas viabilizando a interação com diferentes segmentos etários
e sociais do potencial leitorado brasileiro. A visualidade, casada à verbalidade, configuram-se como
instrumentos de contato com a criança acostumada aos games, à internet. A linguagem híbrida dos
quadrinhos se acerca com muito mais intensidade do pequeno leitor de hoje do que a palavra por
si só. E essa linguagem quadrinhística provoca o imaginário infantil, tornando os pequenos leitores
mais interessados pelo papel impresso.
Os quadrinhos criam uma tensão entre o visual e o verbal que se mantém e desdobra no ato da
leitura. Tal processo pode levar o jovem leitor a entrar e sair do objeto lido nas asas de um pó de pirlimpimpim contemporâneo, em viagens imaginárias que se ancoram no visto e no lido, que nascem
da escolha das cores, por parte dos adaptadores, do tipo de traço usado nos desenhos, das formas
das vinhetas e dos balões etc. A linguagem híbrida quadrinhística viabiliza novas e diferentes formas
de ler e de gostar de ler.
Envio: 31 jan. 2011
Aceite: 11 abr. 2011
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Utopias ou Heterotopias? A saída é se divertir na Casa da Mãe Joana
Utopias or Heterotopias? The way is having fun in Casa da Mãe Joana
¿Utopías o Heterotopias? La salida es divertirse en Casa da Mãe Joana
Augusto César de Oliveira1
Resumo
A partir do filme de Hugo Carvana, A Casa da Mãe Joana (2008), este artigo reflete sobre o tema do suposto “fim das
utopias”, visto aqui como inseparável de outros dois debates: a questão do consumo e as novas dimensões daquilo que
chamamos “juventude”.
Palavras-chave: utopia, juventude, Pós-modernidade.
Abstract
This article discuss, from Hugo Carvana`s movie A Casa da Mãe Joana (2008), about the supposed “end of utopia”, which
is understood here as inseparable from other two topics: the consumption as a way of life and the new dimension of
what we call “youth”.
Keywords: utopia, youth, Post-modernity.
Resumen
A partir de la película de Hugo Carvana, A Casa da Mãe Joana (2008), este artículo refleje sobre el tema del supuesto “fin
de las utopías”, sin duda inseparable de otros dos debates: la cuestión del consumo y las nuevas dimensiones de aquello
que llamamos “juventud”.
Palabras clave: utopía, juventud, Posmodernidad.
1. Mestre e doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Atualmente, é professor em
Teoria Social do PUCG da Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: [email protected].
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Uma introdução, um debate e um novo conceito
O termo “heterotopia”, em oposição ao termo “utopia” no título desse artigo, é um neologismo
presente no livro Culturas Extremas: mutações juvenis nos corpos das metrópoles, de M. Canevacci
(2005). O autor usa o termo para se referir à perspectiva de mundo que organiza as chamadas “tribos
urbanas” juvenis, que passam a ser assunto recorrente, dentro e fora do debate acadêmico, a partir
da década de 1980.
Para Canevacci, as atuais tribos urbanas juvenis não são herdeiras da assim chamada contracultura, pois
não partem do reconhecimento crítico de certa cultura oficial a ser revirada ao avesso; se existe uma
cultura oficial, as tribos ignoram sua existência. Canevacci as qualifica como apolíticas por faltar a elas
qualquer noção de totalidade e qualquer pretensão de universalidade: a cultura das tribos é formada
de escombros encontrados e reunidos a esmo. Para ele, não existe mais uma contracultura pois teria
morrido “a política como utopia que transforma o mundo empenhando o futuro próximo” (2005:15).
A cultura das tribos também não é uma subcultura, pois não é uma versão alternativa ou periférica
de uma cultura hegemônica. Segundo Canevacci, as condições sociais promovidas por uma produção industrial policêntrica de símbolos culturais em fins do século XX praticamente implodiu a
pertinência de falarmos de uma cultura hegemônica: “[...] a clássica dicotomia cultura hegemônica/
culturas subalternas exauriu-se definitivamente” (2005:15).
Tais tribos portanto não se orientam por nenhuma utopia, na medida em que identificamos o sentido forte de utopia como o reconhecimento do elemento trágico da história e da própria existência
humana: a capacidade de avistar um horizonte de redenção que poderia existir concretamente2. As
tribos, por não terem noção de totalidade e pretensão de universalidade, não podem operar criticamente e, portanto, não há por que imaginar que elas coloquem lá no horizonte (ou seja, no lugar
que está lá onde a vista alcança mas que não existe aqui e agora) o “tempo significativo” que elas
organizam. As atuais tribos urbanas juvenis são heterotópicas na medida em que trocam qualquer
fascínio pelo futuro “em favor do fluir no presente... uma libertação aqui e agora” (2005:35). Para
Canevacci, o contexto das tribos é tão incrivelmente outro, em contraste com a crítica cultural desde
meados do século XIX, que a própria noção de indivíduo precisa ser repensada.
Fim do trabalho fordista, estilos móveis de vida, tratamentos e modificações do corpo, cirurgias estéticas,
práxis estáticas, quedas demográficas, desmoronamento das hegemonias, aumento da idade universitária
(bolsas, aperfeiçoamentos, mestrados, doutorados), valores descentralizadas, identidades múltiplas que exigem indivíduos diferentes entre si a remodelar-se em continuidade, de acordo com aqueles padrões in progress com os quais as pessoas se definem jovens a cada vez. Mas ainda é adequado esse termo — indivíduo
— para designar o sentido heterogêneo e heterotópico desse sujeito? (CANEVACCI, 2005:37, grifos nossos)
Canevacci enxerga esse fenômeno como uma espécie de abismo no qual ele nos convida a pular:
decifrar a “cosmogonia” das tribos urbanas não seria apenas fazer mais um estudo etnográfico mas
concluir que as tribos têm uma espécie de epistemologia que considera mais adequada que a própria tradicional epistemologia das ciências sociais para nos relacionarmos com o mundo atual —
uma epistemologia na qual a noção de fluxo randômico assuma a centralidade das antigas noções
de indivíduo e de estrutura.
2. Uso aqui de forma um pouco heterodoxa a formulação original e clássica de K. Mannheim sobre o conceito de utopia (1976).
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Por outro lado, um autor que Canevacci certamente qualificaria como “antiquado” chega a resultados semelhantes. Herbert Marcuse, num pequeno e instigante artigo, dirá que as condições sociais
de uma sociedade opulenta da produção obtusa de mercadorias (destinadas a serem consumidas
numa relação que supostamente libera o “princípio do prazer” do julgo do “princípio de realidade”)
e, ainda por cima, totalmente administrada por uma quantidade de aparatos (destinados a produzir
satisfação sistematicamente de tal forma que as instituições sociais ganham a aparência de amigo
íntimo no coração dos indivíduos ainda mais afável que as pessoas de carne e osso) mina os processos de formação do sujeito psicológico individualizado enquanto cria as condições de proliferação do
sujeito despsicologizado, o indivíduo-massa (MARCUSE, 1998).
Para Marcuse, tal fenômeno deve ser entendido como a efetivação da condição na qual a própria
socialização afetiva do indivíduo é produzida mediante a vigência das instituições sociais (Estado e
mercado), em que a comunicação direta entre aparatos institucionais (incluso mercado e sua imensa
rede difusa de publicidade) e indivíduo se torna onipresente desmoronando a família como grupo
intermediário e instaurando uma “integração social total”, ou seja, totalitária.
Aqui não será discutido exaustivamente as diferenças inconciliáveis entre tais autores: onde Canevacci enxerga o fluxo irresistível criado pela produção industrial policêntrica de símbolos culturais e
a realidade randômica que inebria seus expectadores a ponto de eles se abandonarem na “festa que
nunca acaba”, Marcuse destaca que esse processo está a serviço de instituições (mercado e Estado)
que operam satisfazendo unicamente suas próprias razões internas (circulação de mercadorias e
reprodução das condições sociais). Além disso, se pensamos na maneira pela qual opera a empresa
capitalista na oferta de mercadorias, a condição do consumidor é de absoluta passividade e nenhum
controle sobre o imenso aparato que promove a relação íntima (uma amizade de infância) entre
esse consumidor, a mercadoria vistosa que é destinada a ele, a fábrica que a produziu com carinho
e a secretaria de Estado que atestou a segurança do gozo dessa mercadoria com a atenção de um
irmão cuidadoso.
Pessoalmente, creio que a abordagem de Marcuse ao historicizar as instituições que ensejam a
situação descrita por Canevacci me parece uma “terra firme” na qual a sociologia pode caminhar.
No entanto, tomo o termo heterotopia, sem necessariamente endossá-lo ou refutá-lo totalmente,
como uma referência em relação a qual tento analisar certo cenário. Pretendo analisar certa narrativa cinematográfica usando exatamente as categorias que discuti nesta breve introdução: contracultura, subcultura, utopia e heterotopias.
Um filme-caleidoscópio
O cenário em questão é o filme A Casa da Mãe Joana, que além de ótima comédia é um caleidoscópio
da história do cinema brasileiro dos últimos cinquenta anos. Nele estão presentes elementos da
chanchada dos anos 1950, o Cinema Novo da década de 1960, a narrativa marginal da década de
1970, a pornochanchada das décadas de 1970 e 1980 e até o caráter ascético do cinema televisivo pós
19903. É lógico que para fazer tal afirmativa atenho-me a formas estereotipadas de cada um desses
“estilos”. De certa maneira, o filme é um resumo de seu diretor, Hugo Carvana, cuja impressionante
3. Tomo a liberdade de criar tal tipologia para me referir a certo tipo de cinema feito a partir de meados da década de 1990 por atores
diretores de televisão que seguem em filmes o estilo corriqueiro naturalista da narrativa televisiva.
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carreira cinematográfica tem em torno de oitenta filmes como ator e sete como diretor. Carvana
talvez seja um caso único de ator que trabalhou muito com todas as “turmas” do cinema brasileiro
dos últimos cinquenta anos, inclusive com a “turma” das televisões (D’ÁVILA, 2002).
Lá no filme, está a comédia de costumes apresentada em tipos e situações cheias de picardia e
malandragem leve (chanchada). Lá estão, escondidos, tipos intelectuais barrocos, confusos e autodestrutivos (Cinema Novo). Lá está uma trama de eventual mau gosto na qual se elogia comportamentos antissociais como o crime, a prostituição e a vagabundagem capturada em ângulos sem
glamour (Cinema Marginal). Lá estão elementos de apelo ao sexo como passatempo e como disputa
por (ou uso do) status social (pornochanchada). Tudo isso é misturado e, de certa forma, neutralizado e banalizado numa linguagem leve que nunca chega a chocar ou provocar angústia no expectador (típico do cinema televisivo pós 1990). Afinal, é uma comédia! Essa não é uma crítica negativa
ao filme, pelo contrário. Afinal, para o grande público, trata-se somente de uma comédia — muito
divertida por sinal. No entanto, inicio agora, através dessas e outras considerações, uma análise sintomal dos elementos menos aparentes do filme que, espero, seja proveitosa ao leitor para a reflexão
de certas características da sociedade atual.
Quero somar a todos os elementos que destaquei até aqui o fato de que a principal locação do filme, a
sala do apartamento onde vivem os personagens principais, tem em posição de destaque o pôster do
filme A Noite Americana4. Esse elemento faz dele, por trás de toda comédia de lances absurdos, um filme inegavelmente nostálgico dos “tempos utópicos” da década de 1960 mas que lida com essa nostalgia de maneira inédita e peculiar. A Casa da Mãe Joana é um filme utópico representativo dos tempos
de vazio utópico e seus personagens são representativos da passagem do “utópico” ao “heterotópico”.
Os personagens fora do mundo: os tipos contraculturais
O filme narra basicamente as peripécias de três amigos tentando arrumar dinheiro para cobrir um
golpe dado por um quarto amigo (o mais novo do grupo) no qual eles foram cúmplices e vítimas:
todos eles participam de um golpe a um joalheiro mas, ao final, um engana os demais e foge com o
produto do golpe deixando-os sem dinheiro e perseguidos pela polícia e pelo joalheiro. Na prática, o
filme se baseia nesses três homens adultos que vivem de forma divertida e cuja principal atividade
é obter dinheiro sem trabalhar para sustentarem a si mesmos e o belo apartamento em que vivem
juntos e costumam dar festas animadas. Quero apresentar esses três amigos em apuros: cada um
deles é remanescente de um mundo que não existe mais.
O primeiro amigo é apresentado como um homem que beira os 1960 anos. Temos notícia de que
ele era jornalista, escritor bissexto, e, segundo ele mesmo diz em tom de autoironia, teria chegado a escrever horóscopos para pagar contas. Está constantemente acompanhado de uma dose de
whisky. Suas tiradas e comentários nos mostram se tratar de um homem cuja formação cultural o
transformou em cético brincalhão e incrédulo humanista. No seu quarto, entre uma foto de Trotsky
e um pôster de Picasso, uma bíblia da Playboy se destaca na estante de livros. Mais um detalhe: ele
traga um cigarro da forma peculiar em referência, creio eu, ao personagem principal de Acossado,
clássico dos anos 1960 em que barroco cineasta comunista Jean Luc Godard ajustava contas com sua
influência estadunidense.
4. Famoso filme dirigido por François Truffaut em 1973 e cultuado como filme de arte que conseguiu obter sucesso nos EUA.
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Apesar de tudo isso surgir como cenário do filme, ou seja, como elemento absolutamente acessório e
secundário que não atinge a trama principal, tais fragmentos arqueológicos nos autorizam pensar nesse personagem como aquilo que Jacoby chamaria de boêmio intelectual, uma minoria profética, “de
inteligência simples, expressiva, notável por sua generosidade e entusiasmo” cujas bases sociais são
“pobreza, liberdade e ódio à burguesia” (1990:39). Jacoby usa essas palavras para definir uma geração
de intelectuais, situados nos EUA entre a década de 1950 e 1960, que ele chama de últimos intelectuais. Ele se refere à transformação dos intelectuais críticos em acadêmicos contidos que, em vez de
estarem em contato com as grandes questões sociais, se voltam unicamente a seus afazeres institucionais — estando entre esses afazeres escrever em linguagem acadêmica para os demais acadêmicos.
Se o “intelectual” no caso é um jornalista, podemos pensar o quanto ele está distante da figura
sóbria tão vendida aos estudantes de comunicação para que eles acreditem piamente em algo chamado isenção da informação, acreditem na capacidade de informar a sociedade em reportagens de
30 segundos televisivos ou 30 linhas impressas e creiam que não exista nenhuma ironia no fato de
que grandes aparatos de informação, ou seja, grandes empresas capitalistas atuando por meio de
grandes concessões políticas, sejam tidas como firmes defensores da assim chamada democracia e
do homem comum. Nosso personagem não só é irônico na vida pessoal como o é na profissão: em
um momento do filme, ele retoma o jornalismo escrevendo uma coluna de conselhos sentimentais
usando pseudônimo feminino.
Poderíamos ir ao limite de dizer, por causa de sua forma de tragar o cigarro somada ao seu hábito
alcoólico, que existam aí elementos que definam um dândi, ou seja, aquele indivíduo que critica a
vida social imposta a tal ponto que inventa um estilo artificial de ser, ao mesmo tempo representação
da sua recusa e exercício da liberdade possível, da crítica e da evasão voluntariamente praticada. O
(ex-atual) jornalista do filme provavelmente gostaria de ter sido, nos anos 1960, um Jean Paul Sartre
mas, por falta de talento, por excesso de dignidade pessoal, por excesso de álcool ou por pura vagabundagem5, chega ao século XXI reduzido a um golpista simpático, inteligente mas um tanto patético6.
Um segundo personagem dessa casa é um hippie (não um ex-hippie!) acima dos 50 anos que passa
os dias apertando baseados em seu quarto decorado com motivos orientais e um pôster da banda
The Who; bem-humorado e observador, ele domina a cozinha da casa na qual prepara refeições
sendo observado por um pôster de Bob Marley e onde trabalha vestindo exclusivamente um avental
que deixa suas nádegas de fora7. Esse personagem é apresentado como alguém com uma memória
bem lenta, nenhum talento para ganhar dinheiro e uma filha já adulta que ele nunca havia procurado por puro desleixo, mas que ele encontra e acolhe com algum espanto, alegria e sem maiores dramas de consciência — sem stress! A fuga do trabalho, o uso de drogas, o elogio da espontaneidade
e o acolhimento de formas não convencionais de relação afetiva são alguns dos elementos do hippismo. Como fenômeno jovem de massas da década de 1960-70, o hippismo teve várias inspirações
— como, por exemplo, um movimento artístico-existencial dos EUA da década de 1950-60 chamado
Beatniks, que se baseava na aversão à burocratização/racionalização da vida social como um todo
imposta pelo conjunto das instituições modernas. Os hippies somaram a esse ponto o orientalis5. No apartamento dos três amigos, temos uma parede decorada com o pôster do filme Vai trabalhar vagabundo!, um clássico no
cinema brasileiro dirigido e protagonizado pelo mesmo Hugo Carvana.
6. No limite, podemos misturar ator e personagem e notar que o ator traga seu cigarro à Belmondo apagado, provavelmente por ter
sido fumante e não querer correr o risco de voltar a fumar.
7. Provável referência ao Naked Lunch, famoso livro do escritor beatnik Willian Burroughs.
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mo Zen, o anarquismo gestáltico, o apocalíptico misticismo corporal e o narcisismo impenetrável
(ROSAK, 1972:73). A crítica social dos hippies “torna-se surrealista e psicodélica [...] sondando as
profundezas em que se inscrevem os pesadelos, tentando atingir as raízes emaranhadas da conduta
e da opinião” (1972:73).
Tanto a boemia crítica-intelectual quanto o hippismo são elementos contraculturais ou aquilo que Jameson chama de “Utopianismo dos anos 60” (JAMENSON, 2004:273). Pode-se dizer que ambos estão mortos há muito tempo. O hippismo talvez esteja “menos” morto que a crítica intelectual na medida em que
teria sido absorvido pelo fulgurante mercado — enquanto o ativismo da crítica intelectual fora cooptado
pelos robustos orçamentos universitários que, desde a década de 1960, só cresceram na Europa Ocidental, EUA e, creio não ser ousado dizer, Brasil. Elementos soltos do hippismo sobrevivem em artigos de
consumo que emulam o comportamento rebelde, no consumo recreativo de drogas.
Se pensarmos bem, o viver a vida que nos hippies significava a alegria da flor combatente da sisudez
das armas deu ensejo ao comportamento social inconsequente que é hoje moeda de troca comum
em vários segmentos sociais do Ocidente, a tal ponto de ser considerado como etapa da vida à
qual todos deveriam ter acesso — quem sabe em breve não se estará reivindicando uma bolsaadolescência capaz de munir o jovem da possibilidade de não trabalhar e ir a festas com colegas do
colégio? No entanto, o hippismo como contracultura (ou seja, uma noção crítica da totalidade social)
e como ideário utópico (horizonte de redenção que poderia existir e que exige ações práticas de seus
adeptos coerentes com o atingimento desse horizonte) está morto.
Dizendo isso de outra forma, poderíamos pensar que o hippismo (como movimento contracultural) se
esvazia na exata medida de seu “sucesso” como elemento de renovação do status quo. A situação descrita por Canevacci com respeito às tribos urbanas jovens me parece ser a apoteose de uma situação
“apontada” pelo hippismo: a evasão, a diversão, o lazer e mesmo a subversão são dimensões irredutíveis da vida cotidiana, especialmente se trata da vida cotidiana produzida pelo capitalismo no qual o
tempo de trabalho costuma ser brutalizante e/ou idiotificante (ADORNO, 2007). Uma vez que o capital
disponível, a tecnologia e as estratégias de uma indústria de consumo já estavam se organizando em
novos termos desde a década de 1950 (MANDEL, 1982), pode-se dizer que o hippismo “ensinara” a
essa indústria nascente como chegar a seus consumidores: recriar sob forma mercantil desejos e fantasias confessáveis (como o desejo pelo automóvel), inconfessáveis (como a indústria pornográfica),
sociáveis e antissociais (como as roupas, músicas e ícones que evocam rebeldia, confronto e ataque às
instituições — como a famosa e onipresente camiseta de Che Guevara).
Um grande incremento para este laço entre juventude ávida por evasão e mercado viria ainda na
forma das tecnologias da “acumulação flexível” (HARVEY, 1992) especializadas na customização, na
fusão aparente entre consumo e produção, na transformação do fluxo e do trânsito em fins em si
mesmos (tanto da atividade capitalista propriamente dita quanto também da elevação deles à condição de valores de vida, como aliás está expresso no conceito de heterotopia de Canevacci). Não é,
porém, minha atenção esgotar o assunto aqui.
Pretendo encerrar essa seção em que lancei luzes sobre os personagens de origem “contracultural”
apenas apontando para a metamorfose de ambos da posição de críticos sociais num passado remoto — suposto pelos fragmentos que surgem no filme — para a posição de personagens evadidos em
um mundo de diversão como fim em si mesma: ao fazerem isso, eles não só realizam uma transição
pessoal mas representam uma transição coletiva.
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Começamos esta seção dizendo que eles eram remanescentes de um mundo que não existe mais.
Isso é verdade. No entanto, nessa transição para a evasão e diversão, eles fazem uma transição ao
menos parcial para a heterotopia que as tribos jovens urbanas representam. Apesar de terem mais
de cinquenta anos, eles são o que Canevacci chamaria de “jovens intermináveis”.
Outro personagem fora do mundo: o tipo subcultural
O terceiro tipo da casa é menos universal e mais especialmente carioca; trata-se do bon vivant galanteador que, apesar de não ser muito criativo em suas investidas, usa seu poder de sedução sobre
as mulheres para obter pequenos favores, tudo de forma muito sutil, elegante e bem educada. A
sobrevivência desse tipo está ligada à vigência de certa modalidade de jogo amoroso: aquele na qual
homem e mulher agem como se acreditassem na sedução masculina sendo resultado do domínio
exercido por ele das belas palavras e dos galanteios românticos — que a mulher “acredita” serem
representativos de um sentimento profundo e perene por parte do homem e que, finalmente, por
tão envaidecida, ela se deixa “dominar”. Resumindo a ideia do bon vivant galanteador educado e
sutil, vamos chamá-lo aqui de cafajeste.
Pode-se pensar nesse cafajeste como uma subcultura brasileira e sobretudo carioca. Enquanto a
“cultura dominante” era o velho modelo do “pai de família” sério, responsável e chefe de uma família assexuada (dessexualização que abrangia o bom marido e a santa esposa), a subcultura cafajeste
se apresentava como uma modalidade marginal que incluía a figura de um homem sensual despertando a sensualidade (supostamente escondida) da mulher com finalidades outras que não a constituição da família. A sociabilidade entre ambos permitia o exercício da sensualidade de ambos que,
nas formas oficiais de ação, estavam ausentes — espaço esse criado pelo protagonismo do homem,
ou seja, do cafajeste e sua suposta sedução. Insisto que a sedução do cafajeste seja considerada uma
“suposta sedução” pelo fato de que, nesse filme como em diversos outros, a rendição da mulher aos
seus encantos não parece ser efetivamente uma conquista da força masculina. No filme, a senhora
que se deixa seduzir pelo cafajeste logo nas primeiras cenas age superficialmente como se estivesse
sendo ludibriada mas está claramente “jogando o jogo” com alguém que está disponível para o sexo
casual — assim como ela. Faz parte desse “jogar o jogo” para ela agir como se fosse uma vítima inocente desse sedutor. É conveniência sua agir como se o cafajeste fosse “irresistível”.
Curiosamente, analisando a tríade de amigos do filme, pode-se dizer que a contracultura representada pelos dois primeiros amigos teve como seu possivelmente único legado perene determinadas
transformações sociais que minaram as condições sociais de sobrevivência do amigo cafajeste —
pelo menos enquanto cafajeste. Esse legado pode ser resumido na:
ênfase na sociedade civil diferenciada e democrática desde o direito de organização até a defesa das
diferenças sexuais, religiosas e culturais... essa herança diz respeito às mulheres, aos homossexuais, à ecologia, aos diversos grupos étnicos e culturais, enfim , à variedade da vida social e histórica como riqueza e
contradição. (BUENO, 2002:146)
Ora, se a proliferação dos estilos de vida, que se toma aqui como legado da contracultura, implode
o modelo único de “família santa ancorada num homem e numa mulher quase assexuados”, e, ao
implodi-lo, impõe que todos os demais estilos sejam tomados com igualmente válidos, as condições
sociais para a atuação do cafajeste estão feridas de morte. Se homens podem ser sensuais e galante129
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adores à vista pública e mulheres podem aceitar ou recusar parceiros segundo seus próprios termos,
a lógica cafajeste deixa de estar à margem e deixa de ter razão de existir como uma “subcultura”.
Como seus amigos, ele é parte de um mundo que não existe mais. No entanto, ele é o único que,
durante o filme, está claramente tentando lugar para si no mundo atual mantendo-se enquanto
cafajeste. Sua saída: tornar-se parceiro sexual pago de senhoras (movido a estimulantes de ereção).
Não é por acaso que, no filme, apesar de ser o mais novo dos três amigos, ele possa ser entendido
como o mais “velho” no sentido de que ele é sempre ele mesmo. Estou dizendo que ele pode ser
entendido como o mais “velho” simplesmente por que ele é o mais coerente e tiro essa observação
de uma cena inicial do filme. Há uma grande festa que os três amigos criam para tentar espantar a
tristeza do golpe sofrido pelo quarto amigo. Nessa festa, vemos os dois colegas contraculturais se
divertindo ao som do funk carioca, incompatível com a provável música da preferência deles (como
o citado grupo de rock inglês The Who ou algo do tipo), a ponto de um dos colegas paquerar uma
“popozuda do funk”8. Deve-se levar em conta ainda que, para um boêmio intelectual ou mesmo para
um hippie, a fria decisão de dar um golpe envolvendo uma joalheria é bem pouco coerente com o
modo de ser original desses personagens. Enquanto isso, o amigo cafajeste (que também participa
do golpe à joalheria) é sempre mais ou menos coerente consigo mesmo, com seu bigode à Omar
Shariff em Doutor Givago, seu ar sedutor discreto e intenções inconfessas.
No mundo heterotópico das tribos e dos jovens intermináveis, coerência pode ser entendida como
velhice (no sentido de decrepitude). Mais coerência significa, no atual contexto, “fluir” menos, “aproveitar” menos, estar menos “antenado”, enfim, um apego antiquado a si mesmo. O diagnóstico é
reiterado pela teorização de Marcuse oposta de Canevacci. Para Marcuse, a situação do indivíduomassa é resultado de uma socialização que se faz pelos aparatos sociais antes que pela família e que,
por isso, desenvolve um “eu fraco” que caracteriza a horda em vez do “eu forte” que caracteriza a
individualização completa (MARCUSE, 1998). O resultado é um indivíduo que, em grande parte do
tempo, está alheio a si mesmo na medida em que segue mimeticamente a horda, ou seja, o comportamento alheio.9
A questão utópica
Já abordei anteriormente (OLIVEIRA, 2004) meu entendimento a respeito do tema enfrentado por
Jacoby (2001) sobre o “fim da utopia”: pessoalmente prefiro pensar o tema sob a ótica de um decréscimo das utopias sociais e/ou políticas em progressivo desuso em favor de utopias individuais e/ou
afetivas cada vez mais buscadas, praticadas, recriadas e reinventadas. Normalmente esquecemos
o ponto evidente muito bem lembrando por Jameson que também as utopias (horizontes imaginários de redenção de uma situação que poderia existir mas não existe ainda) devem, assim como as
8. A expressão se refere a certo tipo de frequentadora (que eventualmente tenha nádegas protuberantes) dos chamados “bailes
funks”. O fenômeno largamente retratado na mídia e em trabalhos acadêmicos é um evento de massa da diversão adolescente na
cidade do Rio de Janeiro de longa permanência, que regularmente se expande e se retrai além de seus limites tradicionais. Tomo aqui
seu valor de face atual em 2009: uma diversão adolescente semelhante ao fenômeno da discoteca onde massas de reúnem para anonimamente dançarem por horas a fio em grandes ambientes ao som de uma música alta cuja eventual letra elogia o “estilo de vida”
de evasão, diversão, negação ao trabalho, uso dispendioso do dinheiro e sexo causal.
9. Não seria exagero usar esse princípio para tentar desvendar episódios sociais intrigantes como eventos de extrema violência dentro
das escolas que ocorrem aparentemente sem razão ou para serem gravados pelos telespectadores e retransmitidos publicamente
pela internet.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
ideologias, ser tomadas como parte integrante de uma superestrutura determinada pelo momento
histórico das relações de produção e das instituições sociais (JAMESON, 2004).
Nesse sentido, não deveríamos estranhar a situação utópica atual. Individualização extrema e apelo
a agradabilidade fácil de caprichos banais são o modus operandi central da produção e circulação de
mercadorias, assim como quase todas as instituições (mercado, mídia, publicidade, escola, hospital,
Estado...) e discursos (político, religioso, pedagógico, familiar...) de alguma maneira incorporam essa
lógica até como forma de legitimação social. Não ser capaz de se divertir na sociedade atual ganha a
conotação de inadequação, incapacidade ou ignorância pessoal.10 Nessa situação, seria de se estranhar que as utopias do mundo atual fossem trágicas, heroicas e convidassem as pessoas a grandes
causas que demandassem esforços e/ou renúncias em nome da conquista de um futuro distante,
em suma, a situação é pouco afeita às utopias sociais e/ou políticas. Como o jogo de significantes
no qual os discursos e práticas são criados sempre produz mais do que o necessário para se dizer e
fazer o que se quer dizer e fazer, as utopias sociais e/ou políticas podem surgir em meio às condições
estruturais atuais, mas como elemento residual improvável e inverossímil. Assim como o tempo de
circulação do capital da “acumulação flexível”, o tempo das utopias hegemônicas é só um: agora!
Nesse sentido, não consigo deixar de me lembrar da condição “política” de dois principais atores do
filme. O José Wilker, que faz um dos três amigos, já disse em entrevistas ser de origem humilde e ter
começado sua carreira artística nos anos 1970 em grupos de teatro popular ligados à politização de
trabalhadores e camponeses. Paulo Betti, outro dos amigos, também de origem humilde, usou seu
prestígio de ator televisivo para dar apoio ao Partido dos Trabalhadores durante muitos anos entre
as décadas de 1980 e 90. Hoje, ambos são figuras públicas muito distantes de tais posicionamentos;
como seus personagens e como o tempo em que vivem, eles se despolitizaram.
No fim do filme, os amigos ficam sem apartamento e acampam, com seus pertences, em plena
Avenida Altântica11. O caso vira assunto de telejornal a ponto de receberem, na trama, apoio do
Movimento dos Sem Teto — que interpreta erroneamente a condição dos amigos como um protesto
sério. Na forma leve e surreal como esse momento é retratado no filme, pode-se dizer que é uma
ironia misturada a autoironia: o diretor Hugo Carvana retrata a “política” presente nesse simulacro
de protesto seguido de um simulacro de informação televisiva séria e acompanhada de um simulacro de aliança política exatamente como elemento residual improvável e inverossímil. Assim como
os amigos da casa, o ponto de vista do filme como um todo também corrobora que a “política”,
assim como as utopias sociais e/ou políticas, acabaram.
Vamos nos divertir!
Nossos três amigos de A Casa da Mãe Joana, de certa forma, devem ser brindados por terem sido
capazes de, em vida, pularem da antiga para a nova onda. Apesar de oriundos de um mundo que
não existe mais, e não existindo mais pertinência para continuarem agindo como agiam no passado,
nossos adoráveis trapaceiros não se fazem de rogados, eles entram em qualquer onda. No filme,
10. Essa é a conotação dada por Giddens em seu livro As transformações da intimidade, no qual ele afirma que o apego exagerado do
indivíduo a certas formas sociais (tradicionais ou não) é uma atitude compulsiva que se deve unicamente ao individuo e a seu “medo
de ter de escolher” (GIDDENS, 1994).
11. Nome da rua que corta a internacionalmente famosa praia de Copacabana.
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eles se divertem com jovens e adolescentes (de fato) ao embalo sexista do funk carioca. Note-se que
o sexismo do funk é obviamente diferente daquele das pornochanchadas do cinema e da lógica cafajeste que citamos nesse artigo. Enquanto nos primeiros, o sexo é um elemento perigoso cujo caráter
extracotidiano (além-social ou antissocial) é dado pela crença de que o tema e a prática sejam “proibidos”, nas letras de funk e na interação entre a música e o público (observada nos chamados bailes
funks), o sexo surge como mais uma onda entre outras nas quais se deve pular para se aproveitar o
máximo possível — sendo que essa onda é tomada como equivalente a qualquer outra.12
Aliás, falando em “sexo”, Jameson destaca que as grandes utopias clássicas desde Thomas Morus
eram lugares nos quais a perfeição das formas sociais — decorrentes de escolhas e decisões humanas longamente amadurecidas e amplamente debatidas — tornaria dispensáveis comportamentos
antissociais e de evasão como vícios, crueldades, caprichos e todos os demais tipos de delírio entre
os quais o devaneio sexual é geralmente colocado. Supostamente, quando o mundo se torna aquilo que de melhor existe na imaginação, essa imaginação não se comportaria mais como uma fera
aprisionada agindo apenas na calada da noite de forma perigosa — assim como o vilão da trama do
antigo filme da produtora inglesa Hammer, Assassinatos da Rua Morgue. Pois bem, essa é uma premissa que não pode ser testada: as utopias sociais e/ou políticas, sendo a sociedade que não existe
ainda que pudesse existir, nunca saberemos se a realização utópica baniria o escapismo antissocial
do delírio ou pelo menos neutralizaria seus efeitos deletérios. Utopias como a descrita no famoso
livro O Senhor das Moscas, no qual uma sociedade utópica é fundada por garotos náufragos, fazem
crer no oposto: a sociedade utópica é onde os efeitos deletérios do delírio tomam conta de tudo e
tornam a vida impossível.
Seria então a “liberação sexual” (seja lá o que isso signifique), associada ao rescaldo dos Utopianismo de
fins da década de 1960, uma exceção? Na verdade, o aparente paradoxo se resolve na correta colocação
do problema. Hobsbawn, em texto também dedicado a refletir sobre 1968, mostra que relaxamento moral
e ebulição revolucionária nunca estiveram juntos durante todo o século XX. Pelo contrário, tradicionalmente grupos revolucionários demandam uma disciplina férrea e um controle moral rigoroso, posto que não
aceitam a base costumeira da disciplina e moral socialmente circulantes (HOBSBAWN, 1982). No entanto, como se pode concluir da leitura do excelente tratado sobre a contracultura de T. Rosak aqui citado,
somando a esse livro uma teoria social da mídia e do espetáculo que ele não desenvolveu, deve-se ressaltar que a revolução contracultural foi a primeira da era do espetáculo, a primeira da era da mercadoria
tornada imagem (e vice-versa). Portanto, é fundamental, na análise do rescaldo do utopianismo e da contracultura de fins da década de 1960, considerar que o que os rebelados reais faziam era imediatamente
tornado mercadoria-imagem-espetáculo de gozo do grande público13.
Se a condição real de universitários rebelados, líderes políticos radicais, artistas e intelectuais divergentes, evadidos em comunidades experimentais e rebelados14 em grupos clandestinos era a de
viver intensamente a ruptura com a sociedade, ruptura que demandava a reinvenção diária das
12. É curioso como certas pessoas, inclusive algumas supostas “especialistas no tema” continuam declarando e agindo como se sexo
fosse um assunto “tabu” ou uma “escapada esperta” das regras sociais entre os atuais “jovens intermináveis”. O tema exige uma análise comparativa que ainda não foi realizada e que poderia ser feita no contraponto entre o sexo nas pornochanchadas das décadas
de 70/80 e nas letras do chamado funk atual.
13. Rosak faz uma excelente análise a respeito de como, por meio dos manuais simplificados editados por pequenas gráficas, o orientalismo introduzido nos EUA com forte elemento de crítica ao american way of life se tornou rapidamente um elemento de consumo
incorporado ao cotidiano de pessoas sem nenhuma intenção de ruptura com o conjunto de valores socialmente hegemônicos.
14. Aqui uso evasão e rebelião com o sentido forte dado aos termos pela teoria da anomia de Robert Merton.
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noções de moralidade, disciplina e valor, o simulacro imagético dessas ações a atitudes permite aos
consumidores dessas imagens o consumo tranquilo, passivo e seletivo dessas atitudes simuladas
que eles também, como consumidores das imagens, passam a simular. Se a herança forte da contracultura é aquela que destacamos anteriormente, a politização de uma série de questões cotidianas
relevantes, sua herança fraca terá sido exatamente a ampliação gigantesca do repertório de possibilidades de evasão (evasão enquanto diversão reparadora) copiadas mimeticamente das representações imagéticas da efetiva experimentação dos rebelados reais. Um repertório que, explorado pela
mídia, é tão grande que só mesmo “jovens intermináveis” podem fruí-lo.
Envio: 2 fev. 2011
Aceite: 1 mar. 2011
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
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Analfabetismo e vergonha: em questão o filme “O Leitor”
El analfabetismo y la vergüenza: en discusión la película “The Reader”
Illiteracy and shame: in question the film “The Reader”
Teresa Cristina Carreteiro1, Paulo Fernando Oliveira dos Santos2
e Bruna de Oliveira Santos Pinto3
Resumo
Este artigo analisa o filme “O leitor”, uma coprodução germânico-americana do diretor Stephen Daldry, baseado no
romance “Der Vorleser”, de 1995, do escritor alemão Bernhard Schlink. A discussão centra-se na vergonha associada
ao analfabetismo, tema pregnante do filme. A “banalização do mal” também é um ponto discutido no trabalho. Usa-se
como aporte teórico autores como Freud, Lacan, Hannah Arendt e Vincent de Gaulejac.
Palavras-chave: analfabetismo, vergonha, invisibilidade.
Abstract
This article analyzes the film “The Reader”, a co-production of German-American director Stephen Daldry, based on the
novel “Der Vorleser”, 1995, the German writer Bernhard Schlink. The discussion focuses on the shame associated with
illiteracy, pregnant theme of the film. The “banality of evil” is also a point discussed at the work. It is used as the theoretical authors such as Freud, Lacan, Hannah Arendt and Vincent Gaulejac.
Keywords: illiteracy, shame, invisibility.
Resumen
Este artículo analiza la película «The Reader», una co-producción alemana-estadounidense del director Stephen Daldry,
basada en la novela “Der Vorleser”, de 1995, del escritor alemán Bernhard Schlink. La discusión se centra en la vergüenza
asociada al analfabetismo, tema de importancia de la película. La «banalidad del mal» es también un punto discutido en
el trabajo. Se utiliza autores teóricos como Freud, Lacan, Hannah Arendt y Vicente Gaulejac.
Palabras clave: analfabetismo, vergüenza, invisibilidad.
1. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do
CNPq, psicanalista e psicossocióloga. Contato: [email protected].
2. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da
UCAM/RJ e psicanalista da Escola Brasileira da Psicanálise Movimento Freudiano. Contato: [email protected].
3. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: bru-
[email protected].
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Este texto analisa o filme “O Leitor” (“The Reader”) articulando duas temáticas: a leitura e a vergonha.
Trata-se de uma coprodução germânico-americana de 2008, dirigido por Stephen Daldry e baseado no
romance “Der Vorleser”, de 1995, do escritor alemão Bernhard Schlink.
A película pode ser interpretada sob diversos ângulos: político, histórico, sociológico, psicológico, entre
outros. Aborda de modo não maniqueísta uma situação complexa e aponta a imbricação existente entre a
pluralidade de dimensões que atravessam a história. Por este motivo tal filme se presta a várias discussões
e análises. A partir de uma abordagem ora psicossociológica, ora psicanalítica, optamos destacar o tema
da leitura e do analfabetismo vinculados a questão da vergonha por pensarmos que eles perpassam marcantemente a obra. Por este motivo, o Holocausto, tema tão pregnante na obra, assim como na história da
humanidade, não será o foco central de nossa análise.
Sobre o filme
A história tem início com Michael Berg, então advogado alemão, relembrando o passado através da passagem de um bonde. O ano é 1995. Já nas suas lembranças, o ano é o de 1958 e o cenário, a cidade de Neustadt, na Alemanha Ocidental. Na ocasião ele, um jovem adolescente, passa mal na rua e Hanna Schimtz,
uma mulher de aproximadamente 36 anos, séria e firme, o ajuda.
O jovem é diagnosticado com escarlatina e meses depois, já recuperado, retorna ao local de moradia de
Hanna, a fim de agradecê-la. Sempre demonstrando certa insegurança diante dela, ele estabelece pequenos diálogos com Hanna que parece não lhe dar atenção, até o momento em que Michael afirma que
durante seu período de convalescença, não teve vontade de fazer nada, nem mesmo ler. Estas últimas
palavras dele despertam o interesse da mulher.
Inicia-se entre eles uma aventura, marcada por forte vínculo sexual e pontuado por leituras. Os encontros
acontecem no apartamento de Hanna e passam, então, a ter sempre uma sessão de leitura seguida de
uma relação sexual. As obras literárias lidas são livros estudados pelo jovem no colégio, como a “Odisséia”,
de Homero, “A Dama do Cachorrinho”, de Anton Checkhov (1890), e “As aventuras de Huckleberry Finn”,
de Mark Twain (1884).
Os dois amantes pertencem a horizontes sociais bastante diferentes. Hanna exerce a função de fiscal de
bonde conferindo se os passageiros são portadores do ticket de transporte; mora em um simples apartamento, em um modesto bairro. Ele, ao contrário, pertencendo a uma família burguesa para a qual a educação é um capital muito valorizado, mora em uma residência muito confortável.
O romance entre os dois se desenrola de maneira secreta. Ele foge para vê-la nos intervalos entre a escola
e suas outras atividades. Isso provoca um distanciamento entre Michel e seus amigos que têm sua idade e
também com relação à sua família.
Hanna não demonstra muita curiosidade sobre a vida do jovem, o que o incomoda. No entanto, o
interesse dela é grande pelo que ele lê a cada dia quando estão juntos. Excetuando nas relações sexuais, ela é fria e até mesmo dura com ele em determinadas situações. Mesmo assim, o relacionamento
ganha um cotidiano e o casal chega a fazer uma pequena viagem de bicicleta. Hanna sempre demonstra emoção com as histórias lidas para ela e, na viagem, chora ao ver um coro de crianças cantando.
Michael parece apaixonado.
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Por exercer bem suas atividades profissionais, Hanna recebe uma promoção: doravante ela teria uma
função administrativa, em escritório. Ao receber a notícia, a mulher demonstra um semblante de
preocupação, não de contentamento. Ao retornar à sua casa, encontra Michael. É a ocasião do aniversário dele. Motivados pela reclamação dele sobre a frieza dela os dois brigam. Reconciliam-se
em seguida e o jovem sai para comemorar o aniversário com amigos. Hanna arruma suas coisas e
deixa sua residência, sem avisar nada a ninguém, nem mesmo a ele. Desaparece sem deixar rastro
algum. Michael, ao se deparar com o fato de sua partida, fica muito triste e não o compreende. Neste momento, há um corte temporal no filme. Não há esclarecimento do que acontece com Hanna;
subentende-se que Michael não torna a vê-la, o que é confirmado posteriormente.
Oito anos se passam e em 1966, Michael, enquanto estudante de Direito da prestigiosa Universidade
de Heidelberg, participa de seminários especiais com um grupo de alunos, ministrados pelo professor
Rohl, sobrevivente de um campo de concentração na Segunda Guerra. Eles lêem um texto de Karl
Jaspers, “A questão da culpa germânica” e acompanham como ouvintes o julgamento de mulheres
que são acusadas de deixarem morrer queimadas aproximadamente 300 judias, num incêndio em
uma igreja, no ano de 1944, na Alemanha. Michael se surpreende ao perceber que entre as acusadas
está Hanna. O estudante passa a acompanhar com muita atenção o julgamento, observando-a em
especial. Ela parece não ter qualquer ajuda de advogados. Hanna relata em detalhes e com aparente
naturalidade o que acontecia no trabalho que realizava na SS (Schutvstaffiel — Esquadrão do Exército
Alemão).
Durante o julgamento, uma das sobreviventes narra que Hanna tratava as prisioneiras de modo diferente do que as outras funcionárias: algumas eram escolhidas para ler para a guarda que tinha então
cuidados para com estas; tais cuidados faziam crer que elas não seriam escolhidas para a morte. Mas,
ao contrário disso, Hanna geralmente indicava aquelas que eram suas leitoras para a câmara de gás.
A evidência chave do julgamento é o depoimento da sobrevivente judia Ilana Mather, que escrevera
um livro contando como ela e sua mãe conseguiram sobreviver ao extermínio. Diferente das outras
rés presentes, Hanna admite perante a corte que Auschwitz era um campo de extermínio e que dez
mulheres eram “selecionadas” e enviadas à câmara de gás a cada mês. Ela é então acusada pelas
outras rés de ser a autora de um relatório sobre o episódio das 300 mortes, chamado “Marcha da
Morte”; Hanna nega tal autoria, apesar da insistência daquelas que a acusavam. Entretanto, quando
o juiz lhe solicita uma amostra de sua caligrafia para comparar com a do relatório, Hanna prefere confessar a autoria a mostrar sua escrita. É neste momento que Michael, assistindo a tudo, desvela seu
segredo: ele conclui que Hanna escolhe não demonstrar que, na verdade, é analfabeta, tendo ocultado tal fato por toda a vida. Ele relembra uma série de ocasiões nas quais a mulher esquivou-se a ler.
É tão caro a Hanna a revelação deste segredo que ela prefere pagar com sua condenação na corte a
ter que demonstrar-se analfabeta. Ela escolhe aceitar a acusação da responsabilidade do documento,
o que representa dizer que foi ela quem ordenou que não se abrissem as portas da igreja, deixando
morrer todas as mulheres, à confessar publicamente em uma grande platéia que não sabia ler.
Michael diz a seu professor que possui uma informação importante, favorável a uma das rés,
mas não sabe se faz a revelação, já que a mesma havia optado por escondê-la. O professor lhe
responde que, se ele, jovem estudante de Direito, não havia aprendido nada com o que ocorreu
com os judeus, então qual seria o propósito do seminário que ele, professor, coordenava? Michael
mantém o silêncio.
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Hanna é condenada à prisão perpétua. As demais rés recebem penas menores. A vida de Michael
segue seu curso. Torna-se advogado, casa-se com uma colega de faculdade, tem uma filha e, depois
de certo tempo, o casal se separa.
Após seu divórcio, revendo seus livros e notas de aula lembra-se de Hanna. Michael decide gravar em fitas
cassete textos literários e enviá-los a ela na prisão, junto com um toca-fitas. Tudo é feito anonimamente.
Com o tempo, Hanna recorrendo aos livros da biblioteca do presídio e às fitas recebidas acaba aprendendo
a ler e a escrever. Passa então a remeter cartas a Michael — mensagens muito breves, contendo geralmente uma locução. Na primeira carta consta a frase: “Obrigada pela última menino, adorei”. Após recebê-la
Michael cessa o envio de fitas e nunca responde as cartas, apesar de guardá-las.
No momento de Hanna sair da prisão, após revisão de sua pena, Michael, respondendo ao apelo da assistente social penitenciária, vai ao presídio. Tal funcionária pede que ele a ajude na vida fora do cárcere já
que ela não tem ninguém além dele. Após a conversa com a assistente social, Michel se encontra com
Hanna. Mesmo mantendo distância dela, ele afirma que tomará as providências extra muros relativas à
habitação e que a auxiliará também para que ela receba os auxílios sociais. Hanna não chega a sair da prisão, pois se suicida usando uma pilha de livros para se enforcar.
Vergonha e desejo
A vergonha de Hanna sobre sua incapacidade de ler é tão profunda que ela prefere a prisão perpétua a ter que revelar este segredo. Sua escolha em assumir a culpa perante a corte é um esforço
caríssimo para corresponder ao que se espera dela. Mas e Michael? Por que ele se silenciou quando
percebeu o segredo de Hanna? Teria ele, estudante de Direito, também sentido vergonha de ter
amado (ou de ainda amar) uma ré que contribuiu para o Holocausto? A ameaça de emergir seu caso
amoroso com pessoa considerada tão nefasta naquele momento o impediu de revelar o que ele
sabia sobre ela? Teria a vergonha o paralisado?
A vergonha é paralisante do sujeito — é um sofrimento social que produz efeitos na psiquê. Ela é
um sentimento produzido socialmente pelo olhar do outro (Gaulejac: 2006) que traz uma avaliação
negativa sobre sua existência. O olhar é reatualizado cada vez que o sujeito enfrenta uma situação
que lembre a vergonha. No entanto, uma série de mecanismos de defesa são construídos buscando
negar ou recalcar o embaraço sentido. Isto permite que o sujeito se proteja de situações geradoras
de sofrimento. No filme, por exemplo, Hanna mostra no julgamento como prefere confessar a autoria do relatório a enfrentar, o que ela considera como uma humilhação pública: ser analfabeta. Ela
sempre se valeu de posições de poder para ter acesso a leitura e escamotear seu analfabetismo. Foi
assim enquanto guarda SS e no romance com o adolescente Michael.
Hanna decide pagar o preço de sua vergonha com a prisão perpétua, mas já presa, consegue finalmente aceder ao aprendizado de leitura. Em seu máximo de imobilidade, presa para o resto da vida,
somente nesta circunstância, ela consegue aprender a ler. Mas parece que esta aprendizagem solitária, não foi tão solitária assim: o movimento de Michael, ao enviar-lhe gravações, ativa nela uma
centelha desejante. E é esta centelha que faz fogo quando ela consegue unir as gravações aos livros
da biblioteca. Neste sentido, é algo do desejo de Michael — algo que não fica circunscrito a um só
sentimento — que dispara um movimento em Hanna.
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Podemos tecer outra dimensão de análise a partir do conceito de gozo na psicanálise. Lacan vai mostrar
que o que Freud tenta nomear como estando além do princípio do prazer é o gozo, isso que captura o
sujeito e que não cabe na definição de prazer enquanto diminuição do nível de energia do aparelho psíquico (Lacan, 1988). Se Freud fala de pulsões a partir de zonas privilegiadas corporais tais como a boca, o
ânus e o falo (Freud, 1980), Lacan vai incluir nos rol das pulsões a pulsão invocante e a orelha (Lacan, 1985).
No filme podemos pensar que Hanna goza escutando a leitura de um outro a ela. Isso já vinha ocorrendo
antes de Michael, na época da guerra com algumas prisioneiras eleitas por Hanna. Podemos supor que até
certo ponto esta forma de gozar contribuiu para que ela não se mobilizasse para aprender a ler. Por sua vez
Michael, jovem adolescente na explosão da sexualidade que emerge nesta época da vida, fascina-se por
aquela mulher que lhe abre as portas da vida sexual carnal. Neste sentido, Hanna, experiente do mundo
carnal, goza escutando seu jovem amante lendo-lhe histórias, goza ao adentrar a um outro mundo que
não o carnal pelo som da voz do amante e ele, em contrapartida, de seu mundo acadêmico e letrado, tem
acesso ao gozo sexual, propriamente desconhecido até então, pelo corpo de sua amante.
Nesta dimensão pulsional, a voz e o silêncio marcam a história. Inicialmente, a voz dele a faz gozar ao ler
as histórias e ela permanece em silêncio. No tribunal, surpreendentemente escutar a voz da amante o
desperta para tudo o que viveu e Michel titubeia em seu silêncio: ele falará ou não sobre aquilo que sabe
sobre ela? No momento de impasse, quando o juiz a convoca a mostrar sua caligrafia, ela falará ou não
sobre a marca de analfabetismo que ela carrega consigo? Diante desses silêncios marcados pela vergonha, dentre outros sentimentos, sela-se o destino de Hanna: a prisão perpétua. Depois, em um terceiro
momento, Michael, de alguma forma responde ao silêncio dela no tribunal colocando-se em trabalho ao
retomar a ação de ler histórias para ela, mas dessa vez algo acontece de diferente: presa, longe do corpo
físico ou do calor da convivência de Michael, a voz dele lança Hanna a finalmente aprender a ler. Gozar com
a voz dele não é mais suficiente a Hanna — ela quer mais, quer outra coisa. Mexe-se desejantemente para
ir em direção aquilo que lhe envergonha. Confronta-se com a vergonha e o desejo de ler. Ela já não tenta
mais invisibilizar aquilo que causa vergonha, ou seja, o analfabetismo, em face de uma sociedade onde a
leitura é um capital importante. De certo modo, o sentimento que move Michael a fazer as gravações para
Hanna dispara nela uma dimensão de desejo que a leva a aprender a ler; o que faz Hanna ler é o desejo
que é acionado nela quando não tem mais nada. Neste sentido, é a falta que aciona o desejo e, para aprender é fundamental que haja desejo.
Talvez essa seja uma questão interessante para pensarmos no analfabetismo: o desejo envolvido na situação de aprendizagem: como se pode disparar um impulso que se desdobre em alfabetização?
Mas o que ocorre na relação quando ela envia a Michael a sua primeira carta? Esta mensagem condensa
várias dimensões que marcaram a relação dos dois: Hanna chama Michael da forma que sempre o denominou, “kid”, traduzido por menino. Esta forma de nomeá-lo existente desde o começo da relação pode
apontar a diferença que havia entre eles: de idade e de experiência da vida. A evocação “kid” representa
ao mesmo tempo uma forma afetiva e superior, marcando que ela era uma mulher e ele um menino.
Deveria ser também um modo de sempre significar ao jovem e a ela própria os lugares correspondentes
que cada um ocupava, povoados por diferenças de idade, sociais, culturais, intelectuais. A palavra “kid” era
o balizador do limite da relação.
Mas ao mesmo tempo a missiva de agradecimento a Michael, agora não mais um “kid” mas um
homem, rompe o vínculo do tempo da prisão. Ele interrompe qualquer tipo de correspondência, não
responde às suas cartas e não remete mais gravações. Muitas hipóteses podem ser evocadas. Ele se dá
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conta que Hanna é alfabetizada. Seria ela alfabetizada anteriormente? Poderia ele ter alguma suspeita
sobre o relatório da matança na Igreja, durante a guerra? Ou a partir do momento em que ela sabe ler
ele estaria liberado da função de ser seu leitor? Algo muda com o fato dela poder ser doravante uma
leitora. Estaria rompido o jogo desejante/gozante que antes existia? Estas são algumas das questões
que colocamos, mas há outras relativas à questão histórica e ao Holocausto.
A banalidade do mal e a vergonha
Do julgamento no filme destacamos dois momentos importantes e decisivos do modo de Hanna se conduzir. Ela foi trabalhar em um campo de concentração na Cracóvia, pois soube que estavam recrutando
guardas. Este campo, depois de existir por algum tempo, é fechado. No inverno de 1944, Hanna ajuda a
levar as prisioneiras para o oeste, o que foi denominado no julgamento como “Marcha da Morte”. Muitas
mulheres morreram devido às péssimas condições da viagem. Uma noite pararam em uma igreja e, no
relato de uma das sobreviventes, houve satisfação por passarem a noite em um lugar fechado. No entanto,
a igreja foi bombardeada na madrugada. Todos os que estavam dentro correram para as portas, buscando
escapar do fogo. Era impossível sair, visto estarem trancadas. Ninguém abriu as portas e todas morreram.
Durante o julgamento o juiz pergunta a Hanna porque as portas não foram abertas e ela responde com
um tom de voz forte e convicto, apoiando-se em argumentos profissionais: “éramos guardas, nossa
tarefa era vigiar as prisioneiras. Não podíamos deixá-las escapar”. E continua “se saíssem seria o caos.
Como restabeleceríamos a ordem? Não podíamos deixá-las sair; éramos responsáveis por elas!”.
Neste aspecto podemos recorrer a Hannah Arendt no livro “Eichmann em Jerusalém” (1999) quando analisa o processo de Eichmann e diz que ele se comporta como um funcionário: executa o que compõe a sua
tarefa. Hanna, como Eichmann, não pensou em nenhum momento na desumanidade e crueldade que era
deixar morrer as mulheres, na responsabilidade que ela e outras guardas tiveram por aquelas mortes. Suas
argumentações são de dois níveis: afirma, por um lado, que se as deixasse partir não estaria executando
sua tarefa — aqui o humano é reduzido ao plano da burocracia; por outro lado, alega a desordem que seria
liberar as mulheres. O mundo do genocídio do qual Hanna fez parte pretendia exterminar tudo que era
considerado mal, que causava transtorno. O ato de não abrir as portas situava-se no próprio pensamento
do Holocausto: um mundo purificado poderia surgir pela exterminação dos judeus e o encontro da raça
pura. Tudo isto a encaminhou para a impossibilidade de abrir as portas e liberar as mulheres da morte.
Hanna, como Eichmann, pronuncia frases que são vividas como verdades absolutas, como clichês, e representam a normalização inquestionável da filosofia nazista, encaradas na guarda da SS.
Em outro momento do julgamento Hanna é inquirida pelo juiz se, quando na Cracóvia, tinha conhecimento de estar selecionando prisioneiras para irem para Auschwitz para serem enviadas para a morte.
Ela novamente responde com afirmativas burocráticas dizendo: “A toda hora outras prisioneiras chegavam e as antigas tinham que dar lugar às mais novas. Não podíamos guardar todas. Não havia espaço”.
Este argumento apresentado por Hanna não se refere ao extermínio de seres humanos, mas à necessidade de espaço. Era insensível à questão do extermínio. Mais tarde esta questão ressurge, quase no final do
filme, em um dos únicos diálogos que Michael teve com ela quando estava preste a sair da prisão.
Michael indaga o que ela pensa do passado. Ela inquire o “passado com você?” Ele lhe responde que não e ela acrescenta: “antes do julgamento eu não tinha necessidade de pensar
no passado”. Diz ainda que os mortos estão mortos e, num tom quase vitorioso, lhe conta ter
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aprendido a ler. Os atos cometidos, as atrocidades das quais participou não tiveram peso na
vida de Hanna. O importante para ela foi ter acedido a uma outra condição: não era mais uma
cidadã analfabeta. Dizer que tinha aprendido a ler é como se estivesse afirmando não precisar
mais se envergonhar da condição desvalorizada que tinha anteriormente. Agora ela podia confessar que antes não sabia ler. Talvez, a partir de então, ela se sentisse igual a todos os outros
— todos aqueles que participam do mundo dos letrados e alfabetizados. Mas a pergunta de
Michael referia-se ao que havia apreendido e refletido sobre os atos cometidos enquanto
guarda do campo de concentração. A pergunta voltava-se para a condição de humanidade
dela. A construção subjetiva de Hanna é fruto do regime nazista e, por isso, ela não entra em
sintonia com a indagação de Michael; sua resposta enfatiza uma perspectiva unicamente individual: ela havia aprendido a ler.
Sobre os livros
Um detalhe interessante percebe-se quando nos damos conta dos livros que Michael, aos 15 anos, lia
para Hanna. “As aventuras de Huckleberry Finn” (2008) foi escrito por Mark Twain representa uma das
primeiras grandes novelas estadunidenses. Conta a história de um menino pleno de coragem que desce
o rio Mississipi com o objetivo de chegar a Ohio em companhia de Jim, amigo e escravo fugitivo. Vivem
muitas aventuras no caminho. A aventura juvenil recheada de sátiras trata de questões vinculadas ao
racismo e à amizade — uma história sobre a relação entre um escravo e um rapaz. São temas que, de
certa forma, circulam na relação entre Hanna e Michael — ela uma simples fiscal de transporte urbano
e ele, jovem adolescente de outro horizonte social. Ela numa vida sem excessos; ele de família abastada.
Ela vinda de uma trajetória com marcas pesadas de guarda de campo de concentração e ele descobrindo o mundo, tendo uma aventura sexual com muitas outras, sexuais ou não, despontando em seu
horizonte. Ela com uma história de oprimida e opressora e ele com a liberdade de fazer muitas escolhas.
Outra leitura de Michael a Hanna foi a “Odisséia” (2010), poema épico da Grécia Antiga, atribuído a
Homero. Na história, o herói grego Odisseu (ou Ulisses, como era conhecido na mitologia romana) faz
sua longa viagem para casa depois da queda de Tróia. Odisseu leva dez anos para chegar à sua terra natal,
Ítaca, depois da Guerra de Tróia, que também havia durado dez anos. Vale notar que a palavra “Odisséia”
passou a ter um sentido no léxico em diferentes línguas que significa “longa viagem cheia de aventuras,
peripécias e eventos inesperados”. Num certo sentido, a estrutura de viagem de aventuras se repete nestes dois livros citados. Poderíamos pensar na vida de Hanna como uma Odisséia? Ou, diferentemente, o
quanto isso era um dos elementos que fascinava Hanna, que abria a Hanna um mundo diferente do seu
tão contido, opressor e oprimido? O quanto, na verdade, a vida de Michael parecia a Hanna uma futura
viagem de aventuras, com tantos destinos e experiências distintas? E o quanto era a capacidade de leitura
que, no imaginário de Hanna, proporcionaria a Michael esse descortinar do mundo?
Um elemento interessante na obra atribuída a Homero que faz conexão com Hanna e Michel são
as sereias, ninfas do mar que seduzem os navegantes para a sua ilha com um canto magnífico para
depois devorá-los. O canto da sereia é um exemplo interessante do que falávamos acima sobre a
pulsão invocante e o gozo aí atrelado. Só que na história aqui debatida, o canto da sereia parece
estar na voz de Michel que seduzia e encantava Hanna. Entretanto, ao final, os dois personagens são,
de algum modo, devorados por aquilo que viveram — Hanna acaba se suicidando e Michel parece
viver num estado melancólico sem fim.
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Vale a pena ressaltar que o poema “Odisséia” foi composto originalmente seguindo a tradição oral, e
destinava-se mais a ser cantado do que lido — o que faz-nos pensar que não foi escolhido pelo pelo
escritor alemão Bernhard Schlink, autor do romance que deu origem à película, por acaso. É nessa
conjunção entre oralidade e texto que o filme tem a sua chave.
Outro detalhe interessante quanto ao livro é o fato de que os eventos narrados dependem tanto
das escolhas feitas por mulheres, criados e escravos quanto dos guerreiros, ou seja, transportando
a história para os ouvidos de Hanna em 1958, posições sociais semelhantes às desempenhadas por
ela — mulher exercendo função pouco instigante — estariam no mesmo patamar de influenciar a
história que os guerreiros, os poderosos.
Por último, o livro “A Dama do Cachorrinho” também é apresentado como uma das leituras de
Michael a Hanna. Trata-se de um conto de Anton Checkhov que narra a história de um caso de
adultério entre um banqueiro russo e uma jovem que ele conhece enquanto tirava férias. Depois de
retornarem às suas respectivas vidas cotidianas, cada qual com seu cônjuge, o banqueiro não consegue esquecer a moça que vive em outra cidade. Acaba indo em busca de um re-encontro com ela,
pois percebe que, pela primeira vez na vida, ele realmente está apaixonado. Finalmente se encontram e se perguntam como podem continuar juntos; o conto acaba sem resolução.
Quanto a este livro, podemos pensar o quanto Michael, jovem de família abastada, era o banqueiro
na vida de Hanna, simples fiscal de trem, o homem que amava a moça e que estava disposto a apostar muito para tê-la ao seu lado. O fato de o conto terminar sem solução parece ser um prenúncio
do caso entre Hanna e Michael.
À guisa de conclusão
Por fim, certamente os efeitos da vida de Hanna, suas limitações, medos, vergonhas e gozos marcam
Michael para o resto de seus dias. Dentre esses elementos que caracterizam a vida desta mulher
encontramos o analfabetismo e a vergonha — não poderia ter sido diferente?
Hanna internalizou a vergonha do analfabetismo toda durante a sua vida. A vergonha se enquista
no aparelho psíquico destruindo toda a possibilidade de reação (Gaulejac, 2006:60). No entanto
Hanna provavelmente invejava muito os que sabiam ler, aqueles que tinham a faculdade de poder,
através da leitura, viajar imaginariamente a mundos distantes e dispares, conduzidos pelos romances, seus personagens e intrigas. Ela, enquanto guarda SS do campo, enviava para a morte as suas
leitoras que eram, talvez, as possíveis sabedoras de seu analfabetismo. Usava o seu poder para fazer
cinzas do que as outras tinham: a capacidade de leitura. Hanna eliminava todas aquelas que poderiam desvendar o seu segredo, o analfabetismo. Isto é provavelmente uma de suas marcas psíquicas
mais fortes, o que a fazia se sentir diferente dos outros. Hanna concentrou sua vida a invisibilizar seu
analfabetismo. Este lhe causava vergonha e a fazia se sentir diferente dos outros. No entanto, ela
participou de um dos momentos mais cruéis da historia da humanidade: o Holocausto. Este fato não
a fazia se envergonhar pois ela, como muitos outros, compartilhavam a ideologia nazista.
Envio: 14 fev. 2011
Aceite: 20 mar. 2011
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Referências bibliográficas
ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.
FREUD, S. “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), v. VII. In ESB. Rio de Janeiro: Imago,
1980. pp. 129-250.
GAULEJAC, V. de. As origens da vergonha. São Paulo: Via Lettera, 2006.
HOMERO. Odisseia. São Paulo: Martin Claret, 2010.
LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
________ . O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1985.
SCHLINK, B. O leitor. Rio de Janeiro: Record, 2010
TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho. Porto Alegre: LP&M, 2010.
TWAIN, M. As aventuras de Huckleberry Finn. São Paulo: Nacional, 2008.
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Aprender a leer, leer para aprender1
Aprender a ler, ler para aprender
Learning how to read, reading to learn
Roger Chartier2
Tradução de Leonardo P. Almeida3
Resumo
Esta conferência explora as diversas relações tecidas entre a leitura e o conhecimento. Insiste-se no paradoxo que reconhece desde o século XVI tanto a possibilidade de aprender sem livro graças à palavra oral e as imagens quanto os riscos
da leitura quando se torna loucura ou perigo. Seguindo a trajetória histórica imposta pela leitura de livros como um
instrumento privilegiado de acesso ao conhecimento, esta reflexão tenta situar-se dentro do deste quadro de mutações
da cultura escrita introduzida pela revolução digital.
Palavras-chave: leitura, aprendizagem, conhecimento.
Abstract
This conference explores several relations between reading and knowledge. It urges on paradox that recognizes since
XVI century both the learning possibilities without books thanks to oral word and images and the reading risks when
it becomes madness or dangerous. Following the historical trajectory imposed by the reading of books as a privileged
instrument of knowledge access, this thoughts tries to place itself inside of this mutation panel of reading culture introduced by digital revolution.
Keywords: reading, learning, knowledge.
Resumen
Esta conferencia analiza las diversas relaciones anudadas entre lectura y conocimiento. Hace hincapie en la paradoja que
reconoce desde el siglo XVI tanto la posibilidad de aprender sin libro gracias a la palabra oral y los imágines como los riegos de leer cuando se vuelve locura o peligro. Siguiendo la trayectoría histórica que impuso la lectura de los libros como
instrumento privilegiado del acceso al conocimiento esta reflexión intenta sitúar dentro deste marco las mutaciones de
la cultura escrita introducida por la revolución digital.
Palablas clave: lectura, aprender, conocimiento.
1. Texto proferido em palestra de inauguração da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio em 2007. Foi conservado o caráter oral do texto.
2. Atualmente é professor no Collège de France e diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Contato:
[email protected].
3. Editor da Leitura em Revista e professor adjunto do curso de psicologia da SFC/UFF.
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Aprender a leer, leer para aprender
Leer para aprender. Esta fórmula nos parece una evidencia hoy en día. Desde el siglo XIX el saber leer
y la práctica de la lectura definen las condiciones del acceso a los conocimientos. Leer es el instrumento imprescindible sin el cual aprender es imposible. Para nosotros analfabetismo e ignorancia
se han vuelto sinónimos.
Elefantes y corderos
Como historiador, es mi deber recordar que no fue siempre así. En primer lugar las formas de transmisión oral y visual de los saberes se mantuvieron durante mucho tiempo. La imitación de los gestos,
la escucha de las palabras, la adquisción de un saber transmitido por las imágenes constituyeron
modalidades dominantes de los aprendizajes, no solamente de las conductas prácticas sino también
de los conocimientos abstractos. Como lo ha mostrado José Emilio Burucúa, citando a San Gregorio
Magno, “El divino discurso de la Sagrada Escritura es un río delgado y profundo a la vez, en el cual
deambula un cordero y nada un elefante”, duradera fue la percepción de la oposición entre la cultura de los “elefantes”, es decir los sabios y letrados, que doman el leer y el escribir, y la cultura de los
“corderos” iletrados. Pero esta oposición no borraba ni negaba la capacidad de conocimiento de los
ignorantes. La sabiduría de los humildes, que no sabían leer, ejemplificó la reinvendicación de una
docta ignorancia opuesta a los falsos saberes de las autoridades. La inocencia de los “corderos” fue
movilizada para rechazar los dogmas heredados, la aceptación ciega de la tradición, el sometimiento
al orden impuesto por los libros. Encarnaron en los textos este saber de los iletrados las figuras del
salvaje (por ejemplo, los Indios Tupinambas de Montaigne), del campesino (los Marcolfo y Bartoldo
de la Italia renacentista), o los animales más sabios que los hombres que aparecen en las utopias
y las estampas del mundo al revés. Tal como Cristo, los niños pueden enseñar a los ancianos, los
simples a los doctos, las mujeres a los hombres. En este sentido el mundo al revés designaba paradojicámente el inesperado pero verdadero orden de la sabiduría.
Además, aún para quienes no sabían escribir ni siquiera leer, no era imposible entrar en el mundo
de la cultura escrita. Fernando Bouza ha propuesto un inventario de los diversos soportes que aseguraban en los siglos XVI y XVII este “elevado grado de familiaridad con la escritura que tenían los no
letrados”: la presencia sobre los paredes y las fachadas de los carteles, edictos, anuncios o graffiti,
la importancia de la lectura en voz alta que permitía transmitir lo escrito a los iletrados (pensémos
en los segadores del Quijote escuchando la lectura de las novelas de caballería y las crónicas) o la
creación de un nuevo mercado y de un nuevo público para los textos impresos. Los pliegos de cordel, vendidos por los buhoneros (ciegos o no) difundían en las capas más humildes de la sociedad
romances, coplas, relaciones de suceso y comedias. Para los iletrados, la permanencia de las formas
tradicionales de la transmisión de los conocimientos e informaciones iba de par con una fuerte familiaridad con lo escrito — por lo menos en las ciudades.
Si la cultura escrita no borró el papel de la oralidad o de las imágenes es sin duda porqué se mantuvieron altos porcentajes de analfabetismo hasta el siglo XVIII (y salvo en la Europa del Norte).
Pero, como lo observa Fernando Bouza, existe otra razón. En los siglos XVI y XVII los tres modos de
la comunicación (las palabras habladas, las imágenes pintadas o grabadas, la escritura manuscrita
o tipográfica) estaban considerados como formas igualmente validas del conocimiento. Semejante
equivalencia no ignoraba el caracter propio de cada una estas modalidades de comunicación: así la
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
fuerza “performativa” de la palabra que maldice, conjura o convence, la capacidad de la imagen de
hacer presente lo ausente, o las posibilidades de reproducción y conservación sólo otorgadas por lo
escrito. Sin embargo, la equiparación entre palabras vivas, imágenes, y escritos permitía eligir uno u
otro de los lenguajes disponibles, no en función del mensaje, sino del público o de las circunstancias.
Aseguró la permanencia de la fuerza cogniscitiva pocurada por las voces y las imágenes en el mundo
de los alfabetizados, letrados y doctos tal como en los medios sociales que ya no habían conquistado
el saber leer.
Oficio y ocio
Este diagnóstico no debe ocultar, no obstante, que desde los siglos XVI y XVII, y quizás ya antes la
invención de la imprenta en algunas partes de Europa, leer libros era la práctica dominante para
aprender no solamente conocimientos y saberes, sino técnicas y prácticas. Lo muestra la presencia
de los libros en las casas o los talleres de los tenderos y artesanos. En Amiens en el siglo XVI, 12%
de los artesanos poseían libros, tanto libros de devoción (particularmente libros de horas) como
libros utilizados en el ejercicio del oficio tal como las colecciones de modelos y planchas útiles para
los varios artes. En Barcelona, durante el mismo siglo, también aparecen libros entre los bienes
poseídos por la población artesanal y también puede observarse, como lo hace Manuel Peña, la
importante difusión de una literatura técnica consultada en el ejercicio del oficio. Se establece así en
el mundo de las profesiones manuales una relación fuerte entre la práctica profesional y la posesión,
consulta y lectura de libros — una relación que caracterizaba desde los tiempos del manuscrito a los
clérigos, los juristas, los médicos y cirujanos.
Tal observación requiere dos matices. Por un lado, no podemos concluir que un libro práctico fue
necesariamente leído para la práctica. Por ejemplo, los manuales epistolares que proponían reglas y
ejemplos para escribir cartas conocieron en toda la Europa de los siglos XVII y XVIII una muy amplia
difusión impresa, particularmente porque entraron en el repertorio de las ediciones populares,
baratas y vendidas por los buhoneros. Sin embargo, es claro que sus lectores populares, que conformaban la mayoría de sus compradores, cuando escribieron cartas no se encontraban en las situaciones epistolares propias de los élites descritas por los manuales impresos y no respetaron las
convenciones que les enseñaban. Debemos pensar, entonces, que estos manuales que tenían una
clara finalidad didáctica y práctica fueron leídos sin preocupación de utilidad y por otras razones :
como descripción de un mundo aristocrático exótico, como esbozos de ficciones epistolares gracias
a las correspondencias ficticias propuestas como modelos, o como aprendizaje de un orden social
donde las fórmulas de urbanidad, epistolares o no, debían siempre expresar las desigualdades de
los estamentos y rangos.
Por otro lado, no podemos limitar lo que se aprende leyendo a los requisitos del oficio. Desde el
siglo XIII, como lo indica Armando Petrucci, toda una clase de “alfabeti liberi”, lectores que quieren
leer fuera de las obligaciones de la profesión, buscan libros y copian o hacen copiar los textos que
desean leer para su diversión, sin respetar los repertorios canónicos, las técnicas intelectuales o las
normas de lectura impuestas por el método escolástico o la glosa jurídica. En el Tesoro de la lengua
castellana, en 1611, Covarrubias define así la palabra “ocio” : “No es tan usado vocablo como ociosidad, latine otium. Ocioso, el que no se ocupa en cosa alguna. El ocioso es el desocupado, el que
no se detiene o se embaraza [sic] en ninguna cosa, que no tiene ocupación”. Los “ratos ociosos y
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desocupados” son momentos de tiempo libre, disponibles para sosegarse, divertirse o aprender. El
“desocupado lector” a quien se dirige el Prólogo del Quijote es, tal como el “otiosius lector” de la
tradición clásica, un lector libre de su tiempo, que no lee por necesidad, sino por el placer estético
o el interés intelectual. En este sentido, el “desocupado lector” no es solamente un lector que es el
dueño de su tiempo, sino también un lector liberado de las lecturas profesionales. Pero este ocioso lector es un desocupado bien ocupado, ya que “deja los negocios y, por descansar, se ocupa en
alguna cosa de contento”. Contentarese y aprender no son incompatibles si se define aprender en
un largo sentido, tal como lo propone Covarrubias : “Aprender es aprehender en el entendimiento y
conservar en la memoria alguna cosa”.
Normas escolares, literatura industrial y lecturas instructivas
En el siglo XIX, los manuales escolares afirman fuertemente que el verdadero saber se encuentra
en los libros. Un método de enseñanza de lectura y escritura francesa para las escuelas primarias,
publicado por Eugène Cuissart en 1882, se dirige así a los alumnos que ya aprendieron a leer : “Ahora
sabes leer, y pronto serás capaz de leer solo buenas historias en los libros. Todo el saber humano
está en los libros. Si sabes leer, puedes volverte sabio”. Los enemigos contra los cuales debe hacerse
el aprendizaje escolar son las prácticas empíricas, las supersticiones arcaicas, los falsos conocimientos que transmite la tradición oral. La lectura es la única manera de aprender. De ahí, la ambición de
la escuela primaria, según el modelo francés: proponer un manual escolar, un libro de lecturas que
es como un libro de los libros, constituido por textos breves y extractos de obras que transmite múltiples saberes (historia, geografía, moral, ciencias físicas y naturales, economia doméstica, higiene
etc.). Por lo tanto, es menester procurar a los alumnos las competencias de lectura (y de escritura)
que les permitarán transformar en un instrumento de conocimiento un aprendizaje escolar cuyo fin
es aprender a leer según las reglas y normas.
Con los progresos de la alfabetización y la diversificación de la producción impresa, el siglo XVIII y aún
más el XIX conocieron una gran dispersión de los modelos de lectura. Fuerte es el contraste entre,
por un lado, la imposición de las normas escolares que tendían a definir un modelo único, codificado
y controlado de la lectura y, por otro, la extrema diversidad de las prácticas de las varias comunidades de lectores, tanto las que estuvieron anteriormente familiarizadas con la cultura impresa como
las conformadas por recientes llegados al mundo de lo escrito : niños, mujeres, obreros. El acceso
de casi todos a la capacidad de leer, tal como se estableció a finales del siglo XIX en varios partes de
Europa, instauró por lo tanto una muy fuerte fragmentación de las prácticas de lectura.
Tal fragmentación condujó a reforzar dos elementos encontrados en los primeros siglos de la modernidad. Por un lado, se multiplicaron los productos impresos dirigidos a los lectores populares: colecciones baratas, publicaciones por entregas, revistas ilustradas, literatura de estación, etc. Desde este
punto de vista, la producción y circulación de la cultura impresa muestra las mismas mutaciones
fundamentales en todas partes de Europa: la autonomización de la profesión del editor que se distingue tanto del librero como del impresor; la entrada en una economía del mercado que produce
un nuevo público lector a partir de la oferta de nuevos productos editoriales; la multiplicación de las
bibliotecas “públicas” vinculadas con el fenómeno asociativo de las “sociedades de hablar”: ateneos, círculos, casinos.
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En la España diecimonónica, por ejemplo, la permanencia de altos niveles de analfabetismo, tal
como los presentan las estadísticas basadas en los porcentajes de firmas, no deben hacer olvidar la
creciente presencia de los impresos efímeros y baratos dentro de las capas populares, inclusive analfabetas. En las ciudades por lo menos, la amplia circulación de los periódicos, pliegos, almanaques,
y folletines permitía una fuerte familiarización con la cultura impresa, posiblemente transmitida por
las lecturas en voz alta. No debemos entonces limitar la población de los “lectores” unicámente a
los alfabetizados. No debemos tampoco aislar los objetos impresos (libros o periódicos) de las otras
formas de presencia de lo escrito: carteles manuscritos, inscripciones grabadas, escrituras pintadas.
Se encuentran en las calles, los cementerios, los edificios públicos, las casas. En el paisaje escrito
urbano, esta omnipresencia de los textos escritos produce “una especie de aculturación por impregnación ambiental”, según la expresión de Jean-François Botrel.
Otro rasgo común en toda Europa es la constitución en el siglo XIX de un “campo literario” polarizado entre la “literatura industrial” dirigida al creciente mercado de los lectores y las formas cultas del
“arte por el arte” o del saber erúdito cuyas creaciones circulan dentro del público restringido de los
“happy few”. Se estableció un fuerte vínculo entre la reivindicación de una cultura “pura”, sustraída
de las leyes de la producción económica, distanciada de las diversiones “populares”, gobernada por
la complicidad estética e intelectual entre los autores y sus lectores y, por otra parte, los progresos
de una literatura comercial, dominada por el capitalismo editorial y dirigida al “grán público”. Semejante polarización introdujo una diferencia contundente entre los escritores que trataban de vivir de
su pluma y que no podían sobrevivir sino poniéndose al servicio de los editores que publicaban los
géneros impresos más populares y los autores cuya existencia no dependía de la escritura, sino de
otro oficio: profesor, abogado, empleado de la administración. Parecía establecerse una incompatibilidad radical entre los libros instructivos y los impresos de amplia circulación, la transmisión de los
conocimientos y los placeres de la ficción.
Debe, sin embargo, matizarse esta oposición fuertemente percibida por los contemporáneos. En
primer lugar, la definición escolar de las obras legítimas multiplicó la lectura por parte de lectores
populares de obras transformadas en un patrimonio común. Antologías y colecciones dieron una
forma editorial a un conjunto de obras y autores que identificaron la producción literaria nacional.
Lo hicieron a partir de elecciones y exclusiones que delimitaron un repertorio literario canónico,
definido por José-Carlos Mainer como “el elenco de nombres que se constituye en repertorio referencial de las líneas de fuerza de una literatura, y en tal sentido, es una permanente actualización del
pasado”. Gracias a las bibliotecas populares y a las colecciones baratas de obras clásicas o recientes,
los lectores artesanos u obreros, compartieron, aún más que en los siglos XVI y XVII, los mismos textos que los miembros de las élites. Pero como lo muestran las autobiografías obreras, leyeron estas
obras canónicas de una manera intensiva basada en la repetición y la memorización. Releían más
que leían ; compartían a menudo los textos leídos en voz alta ; y los copiaban y memorizaban. Movilizaron para la paropicación de la literatura sabia las prácticas lectoras características de su relación
con los pliegos de cordel.
Se multiplicaron también los libros instructivos dirigidos a estos mismos lectores. Pura Fernández
describe así las características formales de los libros de utilidad: “cubiertas y papel resistentes, formatos manejables, tendencia a la agrupación de títulos en colecciones o bibliotecas de aspecto
sobrio pero cuidado, el acicate de las ilustraciones que orientan la lectura”. En toda Europa, semejantes “bibliotecas” propusieron a los lectores volúmenes de divulgación del saber científico o
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histórico. En Francia, la Bibliothèque Charpentier inauguró en 1828 este tipo de colección con su
pequeño formato (in-8° Jésus), su bajo precio (3, 50 francs cada libro) y sus varias series dedicadas a la publicación de autores clásicos y contemporáneos: la “Biblioteca francesa”, (dividida entre
“Literatura antigua” (es decir medieval), “Memorias y correspondencias”, “Clásicos de los siglos XVI,
XVII y XVIII”, “Escritores contemporáneos”), las “Bibliotecas” inglesa, alemana, italiana, española,
las “Bibliotecas” griega y latina (en traducción), la “Biblioteca filosófica” (dividida entre “Filosofía
medical”, “Filosofía y Ciencias”, “Filosofía y Religión”). La dimensión de conocimiento entraba así en
un proyecto que fundamentalmente trataba de construir un repertorio de obras literarias canónicas
para los lectores sin muchos recursos. Ya antes de la Bibliothèque Charpentier, en 1825, otra colección se había dedicado a la divulgación de las ciencias y artes, l’Encyclopédie portative ou Résumé universel des sciences, des lettres et des arts. El título mismo, que hace hincapiéé en el carácter portatil
y la dimensión de sumario de los conocimientos de los volúmenes, indica claramente que el proyecto se inscribe en la herencia de modelo enciclopédico de los diccionarios de la Ilustración. Tres años
después, l’Encyclopédie populaire, ou les sciences, les arts et les métiers mis à la portée de toutes
les classes propuso una serie de tratados sobre las diversos conocimientos humanos, traducidos del
inglés a partir de la Library of Useful Knowledge inspirada por la filosofía utilitarista y publicada por
la Society for the Diffusion of Useful Knowwledge. Numerosas bibliotecas enciclopédicas siguieron,
cuyos títulos subrayaban la utilidad de los conocimientos que proponían o la universalidad social de
su público: así, la Bibliothèque populaire en 1832, la Bibliothèque des connaissances utiles en 1842,
la Bibliothèque pour tout le monde en 1849. En España las lecturas instructivas pudieron apoderarse
en la segunda mitad del siglo de los 75 volúmenes de la Biblioteca enciclopédica popular ilustrada,
publicados en Madrid entre 1877 y 1884, o de los 136 volúmenes de la Biblioteca universal ilustrada.
Colección de obras históricas y literarias editada en Barcelona a partir de 1887.
Los peligros del leer
En el siglo XIX el crecimiento de la producción impresa dirigida a los lectores que querrían aprender
tenía su peligroso doble: la invasión de las lecturas por los “malos libros” o, peor, los impresos de
diversión que no son libros, pliegos de cordel, publicaciones por entregas, revistas ilustradas. De ahí,
las condenas y censuras de estos textos que alejan del conocimiento, transmiten malos ejemplos y
corrumpen a los lectores. Con una insistancia aún más fuerte; se repiten las denuncias tan frecuentes en el siglo XVIII de las malas lecturas y de los malos lectores — o lectoras. Los diagnósticos de los
tiempos de la Ilustración designaban los efectos físicamente desastrosos de la captura del lector por
la ficción. Enunciaban de manera nueva, apoyándose en las categorías de la psicología sensualista,
las denuncias más antiguas de los peligros que amenazan al lector de las obras de imaginación. Por
ejemplo, en la Castilla del Siglo de Oro, un lazo fuerte unía tres elementos: la referencia reiterada
al motivo platónico de la expulsión de los poetas de la República, el empleo de un léxico de la alienación (embelesar, maravillar, encantar) para caracterizar el olvido del mundo real por el lector de
fábulas, y la conciencia de que los progresos de la lectura en silencio y en soledad favorecían, mucho
más que las lecturas hechas en voz alta, para los otros o para uno mismo, la confusión entre el mundo del texto y el del lector.
En el siglo xviii, el discurso se medicalizó y construyó una patología del exceso de lectura considerado
una enfermedad individual o una epidemia colectiva. La lectura sin control es peligrosa porque
asocia la inmovilidad del cuerpo con la excitación de la imaginación. Por lo tanto, produce los peores
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males: la obstrucción del estómago y de los intestinos, el desarreglo de los nervios, el agotamiento
físico. Los profesionales de la lectura, los hombres de letras, son los más expuestos a tales desarreglos,
fuentes de la enfermedad que es por excelencia la suya: la hipocondría. El ejercicio solitario de la
lectura conduce a un desvío de la imaginación, al rechazo de la realidad, a la preferencia otorgada a
la quimera. De ahí proviene la cercanía entre el exceso de lectura y los placeres sexuales solitarios.
Las dos prácticas producen los mismos síntomas: la palidez, la inquietud, la postración. El peligro es
máximo cuando la lectura es lectura de una novela y el lector, una lectora retirada en la soledad. La
relación con lo escrito fue así pensada a partir de sus efectos corporales. Semejante “somatización”,
que indica una fuerte mutación de las representaciones de la relación con los libros, permanecerá
durante el siglo XIX y fundamentará el enfoque, particularemente en los aprendizajes escolares, sobre
las lecturas “correctas”, tanto por el contenido de los textos como por las posturas de los lectores.
Es contra tales representaciones, que multiplicaban las advertencias contra los peligros de las “malas
lecturas”, que se afirmó la definición de la lectura como instrumento privilegiado o único del acceso
al conocimiento del mundo, del pasado, de la sociedad o de sí mismo. La certidumbre que todo el
saber se encuentra en los libros, por los menos en los “buenos libros”, no fue solamente una idea de
las autoridades o de los doctos sino que movilizó los esfuerzos de “nuevos lectores” que conquistaron la lectura y la escritura para entender y posiblemente transformar el mundo injusto en el cual
vivían. Una tensión que atraviesa toda la historia de la cultura escrita es la que enfrenta a las autoridades, que intentan imponer el control o monopolio sobre lo escrito, contra todos aquellos y, áun
más, aquellas para quienes el saber leer y escribir fue la promesa de un mejor control de su destino.
Los enfrentamientos entre el poder establecido por las poderosos sobre la escritura y el poder que
su adquisición confiere a los más débiles oponen a la violencia ejercida por lo escrito su capacidad
de fundamentar, tal como lo enunciaba Vico en 1725, “la facultad de los pueblos de controlar la
interpretación dada por los jefes a la ley”.
Impreso o manuscrito, el escrito ha sido investido de forma duradera con un poder a la vez deseado
y temido, necesario y peligroso. Es posible leer el fundamento de tal ambivalencia en el texto bíblico,
con la doble mención del libro comido tal como aparece en el Apocalipsis de Juan, X, 10 (“Y tomé el
librito de la mano del ángel, y lo devoré; y era dulce en mi boca como la miel; y cuando lo hube devorado, fue amargo en mi vientre”). El libro dada por Dios es amargo, como el conocimiento del pecado, y dulce como la promesa de la redención. La Biblia, que contiene este libro de la Revelación, fue
ella misma considerada como un libro poderoso, que protege y conjura, aparta las desgracias, aleja
los maleficios. En toda la Cristiandad, el libro sagrado fue objeto de usos propiciatorios y protectores
que no suponían necesariamente la lectura de su texto, pero que exigían su presencia material lo
más cerca posible de los cuerpos.
El libro es, de este modo, el depositorio de conocimientos poderosos pero temibles. Calibán, que lo
sabe, piensa que el poder de Próspero será destruido si se capturan y queman sus libros: “Burn but
his books”. Pero los libros de Próspero no son más que un único libro: el que le permite someter a
su voluntad a la Naturaleza y a los seres. Este poder demiúrgico representa una terrible amenaza
para quien lo ejerce, y copiar no siempre alcanza para conjurar el peligro. El libro debe desaparecer,
ahogado en el fondo de las aguas: “Y allí donde jamás bajó la sonda/ yo ahogaré mi libro [I’ll drown
my book]”. Tres siglos más tarde, Borges nos enseña que es en otras profundidades, aquellas de los
anaqueles de la biblioteca de la calle México en Buenos Aires, donde debió ser sepultado un libro
que, para ser de arena, no era menos inquietante. Si, por supesto, se debe leer para aprender, es
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menester también aprender lo que se debe leer y cómo leerlo. Lo expresa de manera contundente
dos temores contradictorios que han habitado la Europa moderna, y que todavía nos atormentan:
por un lado, el temor ante la proliferación indomable de los escritos, la multiplicación de libros
inútiles o corruptores, el desorden del discurso, y, por otro, el miedo a la pérdida, la falta, el olvido.
Leer y aprender frente a la pantalla
Es una tensíon comparable que caracteriza nuestros tiempos confrontados a los desafios lanzados
por una nueva forma de inscripción, comunicación y lectura de los textos. La revolución digital de
nuestro presente modifica todo a la vez, los soportes de la escritura, la técnica de su reproducción y
diseminación, y las maneras de leer. Tal simultaneidad resulta inédita en la historia de la humanidad.
La invención de la imprenta no modificó las estructuras fundamentales del libro, compuesto, tanto
antes como después de Gutenberg, por pliegos, hojas y páginas reunidos en un mismo objeto. En
los primeros siglos de la era cristiana, esta nueva forma del libro, la del codex, se impuso a costa del
rollo, pero no estuvo acompañada por una transformación de la técnica de reproducción de los textos, siempre asegurada por la copia manuscrita. Y si bien la lectura ha conocido varias revoluciones,
señaladas o discutidas por los historiadores, todas ocurrieron durante la larga duración del codex: tal
como son las conquistas medievales de la lectura silenciosa y visual, la fiebre de lectura que caracterizó el tiempo de las Luces, o incluso, a partir del siglo xix, como lo hemos visto, la entrada en la
lectura de recién llegados: los medios populares, las mujeres y los niños.
Al romper el antiguo lazo anudado entre los textos y los objetos, entre los discursos y su materialidad, entre los dos sentidos del libro entendido, a la vez, como soporte y como obra, la revolución
digital obliga a una radical revisión de los gestos y nociones que asociamos con lo escrito. A pesar
de la inercia del vocabulario, que intenta domesticar la novedad denominándola con palabras familiares, los fragmentos de textos que aparecen en la pantalla no son páginas, sino composiciones
singulares y efímeras. Y, contrariamente a sus predecesores, rollo o codex, el libro electrónico no se
diferencia de las otras producciones de la escritura por la evidencia de su forma material. La ruptura
existe incluso en las aparentes continuidades. La lectura frente a la pantalla es una lectura discontinua, segmentada, atada al fragmento. ¿Acaso no resulta, por este hecho, la heredera directa de
las prácticas permitidas y suscitadas por el codex? En efecto, éste último invita a hojear los textos,
apoyándose en sus índices o bien a “sauts et gambades” como decía Montaigne. El codex invita
también a comparar diferentes pasajes, como lo quería la lectura tipológica de la Biblia, o a extraer y copiar citas y sentencias, así como lo exigía la técnica humanista de los lugares comunes. Sin
embargo, la similitud morfológica no debe engañar. La discontinuidad y la fragmentación de la lectura no tienen el mismo sentido cuando están acompañadas de la percepción de la totalidad textual
contenida en el objeto escrito, tal como la propone el codex, y cuando la superficie luminosa donde
aparecen los fragmentos textuales no deja ver inmediatamente los límites y la coherencia del corpus
de donde fueron extraídos.
La decontextualización de los fragmentos y la continuidad textual que no diferencia más los diversos
discursos a partir de su materialidad propia parecen contradictorios con los procederes tradicionales
del aprender leyendo, que supone tanto la comprensión inmediata, gracias a la forma de su publicación, como del valor del conocimiento procurado por los diversos discursos como la percepción
de las obras como obras, es decir en su totalidad y coherencia. Las mutaciones contemporáneas no
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son sin riesgos como lo muestra la inquitante capacidad del mundo digital a dar credibilidad a las
falsificaciones o errrores, a someter la jerarquía de los conocimientos a la lógica económica de las
más poderosas empresas multimedia, o a establecer la dominación cada día más fuerte del inglés
como única lengua del saber. Estos temores son plenamente legítimos y deben inspirar posibles
maneras de limitar sus efectos desastrosos. Sin embargo, no se deben olvidar otras realidades más
prometedoras.
El sueño de la biblioteca universal parece hoy más próximo a hacerse realidad que nunca antes,
incluso más que en la Alejandría de los Ptolomeos. La conversión digital de las colecciones existentes promete la constitución de una biblioteca sin muros, donde se podría acceder a todas las obras
que fueron publicadas en algún momento, a todos los escritos que constituyen el patrimonio de la
humanidad. La ambición es magnífica, y, como escribe Borges, “cuando se proclamó que la Biblioteca abarcaba todos los libros, la primera impresión fue de extravagante felicidad”. Pero, seguramente, la segunda impresión debe inspirar una reflexión sobre lo que implica la conversión digital que
propone a los lectores contemporáneos textos cuyas formas materiales no son más aquellas donde
sus lectores del pasado los leyeron. Semejante transformación no carece de precedentes, se podría
decir, y fue en códices, y ya no en los rollos de su primera circulación, que los lectores medievales y
modernos se apropiaron de las obras antiguas o, al menos, de aquellas que han podido o querido
copiar. Seguramente. Pero para comprender las significaciones que los lectores del pasado han dado
a los textos de los que se apoderaron, es necesario proteger, conservar y comprender los objetos
escritos que los han transmitido. La “felicidad extravagante” suscitada por la biblioteca universal
podría volverse impotente amargura si se traduce en la relegación o, peor aún, la destrucción de los
objetos impresos que han alimentado a lo largo del tiempo los pensamientos y sueños de aquellos y
aquellas que los han leído. La amenaza no es universal, y los incunables no tienen nada que temer,
pero no ocurre lo mismo con las más humildes y recientes publicaciones, sean o no periódicas. Es
la razón por la cual las bibliotecas deben mantenerse en el mundo de la red como un lugar y una
institución fundamental donde los lectores seguirán aprendiendoen los libros.
Al mismo tiempo que modifica las posibilidades del acceso al conocimiento, la revolución digital
transforma profundamente las modalidades de las argumentaciones y los criterios o recursos que
puede movilizar el lector para aceptarlas o rechazarlas. Por un lado, la textualidad electrónica permite desarollar las argumentaciones o demostraciones según una lógica que ya no es necesariamente
lineal ni deductiva, tal como lo implica la inscripción de un texto sobre una página, sino que puede
ser abierta, expansiva y relacional gracias a la multiplicación de los vínculos hipertextuales. Por otro
lado, y como consecuencia, el lector puede comprobar la validez de cualquiera demostración consultando por sí mismo los textos (pero también las imágenes, las palabras grabadas o composiciones
musicales) que son el objeto del analísis si, por supuesto, están accesibles en una forma digitalizada.
Semejante posibilidad modifica profundamente las técnicas clásicas de la prueba (notas del pie de
páginas, citas, referencias) que suponían que el lector hiciese confianza al autor sin poder colocarse
en la misma posición que éste frente a los documentos analizados y utilizados. En este sentido, la
revolución de la textualidad digital constituye también una mutación epistemológica que transforma
las modalidades de construcción y acreditación de los discursos del saber. Puede así abrir nuevas
perspectivas a la adquisición de los conocimientos otorgada por la lectura, cualquiera que sea la
modalidad de inscripción y transmisión del texto.
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Como siempre es el “ingenio lego”, Cervantes, el que puede aclarar las contradicciones apuntadas
por este texto. Sancho, que no sabe ni leer ni escribir, es sin embargo el depositario de una sabiduría sentencial transmitida por los refranes y cuentos de su pueblo. Sancho aprendió sin leer. Don
Quijote, que ha leído hasta la locura, muestra la profunda ambivalencia de la lectura — y de los
libros. Pueden hacer al hombre más sabio, cuerdo y discreto, como le indica el hidalgo al caballero
del verde gabán, pero pueden también hacerle perder el juicio. En este sentido, Don Quijote leyó
sin aprender, por lo menos sin aprender lo que requieren el entendimiento y la prudencia. Leer para
aprender, pero sabiendo que existen conocimientos que no se encuentran encerrados en las páginas
de los libros; aprender a leer, pero trazando su propio camino en la selva o los jardines de los textos:
tales son, hoy en día, las advertencias que nos dejan don Quijote, un elefante que era “seco de carnes”, y Sancho, un cordero que tenía “la barriga grande y las zancas largas”.
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Aprender a ler, ler para aprender
Ler para aprender. Esta fórmula nos parece uma evidência hoje em dia. Desde o século XIX, o saber
ler e a prática da leitura definem as condições de acesso aos conhecimentos. Ler é um instrumento
imprescindível sem o qual aprender é impossível. Para nós, alfabetismo e ignorância se tornaram
sinônimos.
Elefantes e cordeiros
Como historiador, devo recordar que não foi sempre assim. Em primeiro lugar, durante bastante tempo,
se mantiveram as formas de transmissão oral e visual dos saberes. A imitação dos gestos, a escuta das
palavras, a aquisição de um saber transmitido por imagens constituiram modalidades dominantes das
aprendizagens, não somente de condutas práticas, mas também de conhecimentos abstratos. Como
o havia mostrado José Emilio Burucúa, citando São Gregório Magno, “O divino discurso da Sagrada
Escritura é um rio delgado e profundo de uma só vez, no qual anda um cordeiro e nada um elefante”.
Duradoura foi a percepção de oposição entre a cultura dos “elefantes”, ou seja, a dos sábios e entendidos, que dominam a leitura e a escrita, e a cultura dos “cordeiros” iletrados. Mas essa oposição não
apaga nem nega a capacidade de conhecimento dos ignorantes. A sabedoria dos mais humildes, que
não sabiam ler, exemplificou a reinvendicação de uma douta ignorância oposta aos falsos saberes das
autoridades. A inocência dos “cordeiros” foi mobilizada para rejeitar os dogmas herdados, a aceitação
cega da tradição, a submissão à ordem imposta pelos livros. Encarnaram nos textos este saber dos
iletrados, as figuras do selvagem (por exemplo, os índios Tupinambás de Montaigne), do camponês (o
Marcolf e Bartold do Renascimento italiano), ou os animais mais sábios que os homens que aparecem
nas utopias e nas impressões do mundo ao inverso. Tal como Cristo, as crianças podem ensinar aos idosos, os simples aos doutores, as mulheres aos homens. Nesse sentido, o mundo ao inverso designava
paradoxamente a inesperada, mas verdadeira, ordem da sabedoria.
Além disso, mesmo para quem não sabia ler nem escrever, não era impossível entrar no mundo da cultura escrita. Fernando Bouza propôs um inventário dos diversos suportes que asseguravam, nos séculos XVI e XVII, esse “alto grau de familiaridade com a escrita que tinham os não-letrados”: a presença
nas paredes e nas fachadas dos cartazes, propagandas, anúncios ou grafites, a importância da leitura
em voz alta que permitia transmitir o escrito aos iletrados (pensemos nas cegadoras de Dom Quixote
escutando a leitura de romances de cavalaria e crônicas) ou a criação de um novo mercado e de um
novo público para textos impressos. A literatura de cordel, vendida por ambulantes (cegos ou não),
difundiam romances, canções, relações de sucesso e comédias nas regiões mais humildes da sociedade. Para os iletrados, analfabetos, a persistência de formas tradicionais de transmissão de conhecimento e informação fazia par com uma grande familiaridade com o escrito — pelo menos nas cidades.
Se a cultura escrita não apagou o papel da oralidade ou das imagens, é sem dúvida porque permaneceram altos índices de analfabetismo até o século XVIII (exceto no Norte da Europa). Mas, como foi
observado por Fernando Bouza, existe outra razão. Nos séculos XVI e XVII, os três modos de comunicação (as palavras faladas, as imagens pintadas ou gravadas, a escrita manuscrita ou tipográfica)
foram considerados formas igualmente válidas de conhecimento. Tal equivalência não ignorava o
caráter próprio de cada um desses modos de comunicação: assim a força “performativa” da palavra
que maldiz, conjura ou convence, a capacidade da imagem de fazer presente o ausente, ou as possibilidades de reprodução e conservação só concedidas pela escrita. No entanto, a comparação entre
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as palavras vivas, imagens e escritos permitia escolher uma ou outra das linguagens disponíveis, não
em função da mensagem, mas do público ou das circunstâncias. Assegurou a permanência da força
cognitiva, procurada pelas vozes e pelas imagens no mundo dos iletrados, letrados e doutos como
meios de comunicação social que não haviam ganhado a habilidade de ler.
Ofício e ócio
Este diagnóstico não deve esconder, entretanto, que desde os séculos XVI e XVII, e talvez até mesmo antes da invenção da imprensa, em algumas partes da Europa, a leitura de livros era a prática
predominante de aprender não só o conhecimento e saberes, mas as técnicas e práticas. Isso mostra a presença dos livros em casas ou nas lojas dos comerciantes e artesãos. Em Amiens, no século
XVI, 12% dos artesãos tinham livros, tanto os livros devocionais (especialmente os livros de horas)
como livros usados no exercício da profissão, tal como coleções de modelos e de lâminas úteis para
as várias artes. Em Barcelona, durante o mesmo século, livros também aparecem entre os bens da
população artesanal. Também pode ser observada, como faz Manuel Peña, a importante divulgação
da literatura técnica que é consultada no exercício do ofício. Estabelece-se, assim, no mundo de
profissões manuais, uma forte relação entre a prática profissional e a posse, consulta e leitura de
livros — uma relação que caracterizava, desde os tempos do manuscrito, os clérigos, os advogados,
os médicos e os cirurgiões.
Essa observação exige duas nuanças. Por um lado, não podemos concluir que um livro prático foi
necessariamente lido para a prática. Por exemplo, os manuais epistolares que propunham regras e
exemplos para escrever cartas conheceram, em toda a Europa dos séculos XVII e XVIII, uma ampla
difusão escrita, especialmente porque entraram no repertório das edições populares, baratas e vendidas por ambulantes. No entanto, é claro que seus leitores populares, que constituem a maioria
dos compradores, quando escreveram cartas não se encontraram nas situações epistolares típicas
da elite, descritas pelos manuais impressos, e não respeitaram as convenções ensinadas. Pensamos,
então, que esses manuais, de clara finalidade educativa e prática, foram lidos sem a preocupação
com sua utilidade mas por outras razões: como pela descrição de um mundo aristocrático exótico,
pelos esboços de ficções epistolares graças às correspondências fictícias propostas como modelos,
ou pela aprendizagem de uma ordem social onde as fórmulas de polidez, epistolares ou não, deviam
sempre expressar as desigualdades das propriedades e classes sociais.
Por outro lado, não podemos limitar o que se aprende lendo aos requisitos do trabalho. A partir do século
XIII, como indicado por Armando Petrucci, uma classe inteira de “alfabeti liberi”, de leitores que querem
ler fora das obrigações da profissão, buscam livros e copiam ou fazem copiar os textos que desejam ler por
diversão, sem respeitar os códigos canônicos, as técnicas intelectuais ou as normas de leitura impostas
pelo método de leitura escolástica ou a glosa jurídica. No Tesoro de la lengua castellana, em 1611, Covarrubias define assim a palavra “ócio”: “Não é tão usado como ociosidade, latine otium. Ocioso é o que
não se preocupa com coisa alguma. O ocioso é o desocupado, o que não se detém ou se perturba com
nenhuma coisa, que não tem ocupação”. Os “períodos ociosos e desocupados” são momentos de tempo
livre, disponíveis para descansar, divertir-se ou aprender. O “leitor ocioso” para quem se dirige o prólogo
de Dom Quixote é, tal como o “otiosius lector” da tradição clássica, um leitor livre de seu tempo, que não
lê por necessidade, mas por prazer estético e por interesse intelectual. Nesse sentido, o “leitor ocioso” não
é apenas um leitor que é o dono do seu tempo, mas também um leitor liberado das leituras profissionais.
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Mas este leitor ocioso é um desocupado bem ocupado, já que “deixa os negócios e, para descansar, se
ocupa com uma coisa que o deixa contente.” Agradar-se e aprender não são incompatíveis, se o aprender
é definido em sentido amplo, tal como foi proposto por Covarrubias: “Aprender é apreender na compreensão e conservar na memória alguma coisa.”
Normas escolares, literatura industrial e leituras instructivas
No século XIX, os livros didáticos afirmam enfaticamente que o verdadeiro conhecimento se encontra nos
livros. Um método de ensinar a leitura e escrita francesa para as escolas primárias, publicado por Eugène
Cuissart em 1882, se dirige assim aos alunos que já aprenderam a ler: “Agora você pode ler, e em breve
você será capaz de ler sozinho boas histórias nos livros. Todo o saber humano está nos livros. Se você pode
ler, você pode tornar-se sábio.” Os inimigos contra os quais deve-se fundar a aprendizagem escolar são práticas empíricas, as superstições arcaicas, os falsos conhecimentos transmitidos pela tradição oral. A leitura
é a única maneira de aprender. Daí a ambição da escola primária, segundo o modelo francês: oferecer um
livro didático, um livro de leituras que é como um livro dos livros, constituído de breves textos e extratos de
obras que transmitem múltiplos saberes (história, geografia, ciências morais, físicas e naturais, economia
doméstica, higiene, etc.). Portanto, é necessário procurar nos alunos as habilidades de ler (e escrever) que
lhes permitam transformar a aprendizagem escolar em uma ferramenta de conhecimento, cujo objetivo é
aprender a ler segundo regras e regulamentos.
Com os progressos da alfabetização e a diversificação de produtos impressos, o século XVIII e, ainda
mais, o XIX conheceram uma grande dispersão dos modelos de leitura. Forte é o contraste entre,
por um lado, a imposição das normas escolares que tendem a definir um modelo único, codificado e
controlado de leitura e, por outro lado, a extrema diversidade das práticas de várias comunidades de
leitores, tanto as que tiveram anteriormente familiarizadas com a cultura impressa como as formadas por recém-chegados ao mundo da escrita: crianças, mulheres, trabalhadores. O acesso de quase
todos à capacidade de ler, tal como estabelecido no final do século XIX, em várias partes da Europa,
instaurou uma forte fragmentação das práticas de leitura.
Essa fragmentação levou a reforçar dois elementos encontrados nos primeiros séculos da modernidade. Por um lado, se multiplicaram produtos impressos voltado para os leitores populares: coleções baratas, folhetins, revistas ilustradas, literatura de época etc. Desse ponto de vista, a produção
e a circulação da cultura impressa mostra as mesmas mudanças fundamentais em todas as partes da
Europa: a autonomia da profissão de editor, que se distingue tanto do livreiro como do impressor;
a entrada em uma economia de mercado que produz um novo público leitor a partir da oferta de
novos produtos editoriais; o crescimento das bibliotecas “públicas”, vinculadas ao fenômeno associativo das “sociedade do falar”: ateneus, círculos e casinos.
Na Espanha novecentista, por exemplo, a manutenção de altos níveis de analfabetismo, tal como se apresentam nas estatísticas, baseadas nos percentuais de assinaturas, não devem fazer esquecer a crescente presença de impressos efêmeros e baratos dentro das camadas populares, incluindo analfabetos. Nas
cidades, pelo menos, a grande circulação de jornais, catálogos, almanaques e brochuras permitiu uma
grande familiaridade com a cultura impressa, possivelmente transmitida através da leitura em voz alta.
Então, não devemos limitar a população de “leitores” unicamente aos alfabetizados. Não devemos tampouco isolar os objetos impressos (livros ou revistas) das outras formas de presença da escrita: cartazes
manuscritos, inscrições gravadas, os escritos pintados. Encontrados nas ruas, nos cemitérios, nos edifícios
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públicos, nas casas. Na paisagem escrita urbana, esta onipresença dos textos escritos produz “uma espécie
de aculturação por impregnação ambiental”, nas palavras de Jean-François Botrel.
Outra característica comum em toda a Europa é a constituição, no século XIX, de um “campo literário”
polarizado entre a “literatura industrial”, voltada para o mercado crescente de leitores, e das formas cultas,
da “arte pela arte”, ou do saber erudito cujas criações circulam dentro do público restrito dos “happy few”.
Estabelece-se um vínculo forte entre a reinvindicação de uma cultura “pura”, subtraída das leis econômicas
de produção, distanciada do entretenimento “popular”, governada pela cumplicidade estética e intelectual entre autores e leitores, e, por outra parte, os progressos de uma literatura comercial, dominada pelo
capitalismo editorial e dirigida ao “grande público”. Esta polarização introduziu uma forte diferença entre
os escritores que tentaram viver de sua pena e que não poderiam sobreviver sem se porem a serviço dos
editores que publicavam os gêneros mais populares, e autores cuja existência não dependia da escrita,
mas de um outro trabalho: professor, advogado, administrador. Parecia estabelecer-se uma incompatibilidade radical entre os livros instrutivos e os impressos de grande circulação, a transmissão de conhecimentos e os prazeres da ficção.
Convém, no entanto, analisar essa oposição fortemente percebida pelos contemporâneos. Em primeiro lugar, a definição escolar das obras legítimas multiplicou a leitura por parte de leitores populares de obras transformadas em patrimônio comum. Antologias e coleções deram uma forma editorial a uma série de obras e autores que identificavam a produção literária nacional. A partir de
eleições e exclusões, eles compuseram um repertório literário canônico, definido por José Carlos
Mainer como “a lista de nomes que constitui o repertório referencial das linhas de força de uma
literatura e, como tal, é uma permanente atualização do passado”. Graças às bibliotecas populares
e às coleções baratas de obras clássicas ou recentes, os leitores artesãos ou trabalhadores comuns
compartilharam, ainda mais nos séculos XVI e XVII, os mesmos textos que os membros da elite. Mas,
como mostramos, os trabalhadores liam essas obras canônicas de uma forma intensiva baseada na
repetição e na memorização. Reliam mais que liam, compartilhavam ao menos os textos lidos em
voz alta; e os copiavam e memorizavam. Mobilizavam-se para apropriar a literatura sábia com as
práticas de leitura que haviam duradouramente caracterizado sua relação com os livros de cordel.
Multiplicou-se também livros instrutivos dirigidos a esses mesmos leitores. Pura Fernández descreve assim as características formais dos livros úteis : “capas e papel resistente, formato manejável, tendência ao agrupamento de títulos em coleções e bibliotecas de aspecto sóbrio, mas
cuidado, o estímulo das ilustrações que orientam a leitura”. Em toda a Europa, essas “bibliotecas” propuseram aos leitores volumes de divulgação científica ou histórica. Na França, a Bibliothèque Charpentier inaugurou em 1828 esse tipo de coleção com seu pequeno formato (in-8°
Jesus), seu preço baixo (3,50 francos por livro) e suas várias séries dedicadas à publicação de
autores clássicos e contemporâneos: A “Biblioteca francesa” (dividida entre “Literatura antiga”
(ou seja, medieval), “Memórias e Correspondências”, “Clássicos do XVI, XVII e XVIII”, “Escritores
contemporâneos”), as “Bibliotecas inglesa, alemã, italiana, espanhola”, as “Bibliotecas” gregas
e latinas (na tradução), a “Biblioteca filosófica” (dividida em “filosofia médica”, “Filosofia e
Ciência”, “Filosofia e Religião”). A dimensão do conhecimento entrava assim em um projeto
que fundamentalmente tratava de construir um repertório de obras literárias canônicas para o
leitor sem muitos recursos. Mesmo antes da Bibliothèque Charpentier, em 1825, outra coleção
foi dedicada à divulgação da ciência e das artes, l’Encyclopédie portative ou Résumé universel
des sciences, des lettres et des arts. O próprio título insiste no caráter portátil e a dimensão de
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resumo dos conhecimentos dos livros indica claramente que o projeto se inscreve na herança
do modelo enciclopédico dos dicionários do Iluminismo. Três anos depois, L’Encyclopédie populaire, ou les sciences, les arts et les métiers mis à la portée de toutes les classes propôs uma série
de tratados sobre os diversos conhecimentos humanos, traduzidos do inglês a partir da Library
of Useful Knowledge, inspirada na filosofia utilitarista e publicada pela Society for the difussion
of useful knowledge. Muitas bibliotecas enciclopédicas seguiram, cujos títulos destacavam a
utilidade do conhecimento que propunham ou a universalidade social de seu público: assim, a
Bibliothèque populaire em 1832, a Bibliothèque des connaissances utiles em 1842, a Bibliothèque pour tout le monde, em 1849. Na Espanha, as leituras instrutivas apoderaram-se na segunda metade do século dos 75 volumes da Biblioteca enciclopédica popular ilustrada, publicadas
em Madrid, entre 1877 e 1884, ou os 136 volumes da Biblioteca universal ilustrada. Coleção de
obras históricas e literárias editada em Barcelona a partir de 1887.
Os perigos do ler
No século XIX, o crescimento da produção impressa dirigida aos leitores que queriam aprender tinha
duplo perigo: a invasão das leituras por “livros maus” ou, pior ainda, os livros de entretenimento que
não são livros, livros de cordel, publicações por entregas, revistas ilustradas. Assim, as condenações
e as censuras desses textos que afastam o conhecimento, transmitem maus exemplos e corrompem
os leitores. Com uma insistência ainda mais forte, repetem-se denúncias tão comuns no século XVIII,
das más leituras e dos maus leitores — ou leitoras. Os diagnósticos da época do Iluminismo designavam os efeitos fisicamente desastrosos da captura do leitor pela ficção. Enunciavam de maneira
nova, apoiando-se nas categorias da psicologia sensualista, as denúncias mais antigas dos perigos
que pesavam sobre o leitor das obras de imaginação. Por exemplo, em Castilla del Siglo de Oro, um
forte laço unia três elementos: a referência repetida do motivo platônico da expulsão dos poetas da
República, o uso de um léxico de alienação (extasiar, maravilhar, encantar) para caracterizar o mundo real esquecido pelo leitor de fábulas, e a consciência de que os progressos da leitura em silêncio
e a solidão favoreciam muito mais do que as leituras feitas em voz alta, para os outros ou para si
mesmo, a confusão entre o mundo do texto e o do leitor.
No século XVIII, o discurso se medicalizou e construiu uma patologia do excesso de leitura, considerado
uma enfermidade individual ou uma epidemia coletiva. A leitura sem controle é perigosa porque associa
a imobilidade do corpo com a excitação da imaginação. Portanto, produz os piores males: a obstrução do
estômago e dos intestinos, a desordem dos nervos, o esgotamento físico. Os profissionais da leitura, os
homens de letras, são os mais expostos a esses efeitos, fontes da enfermidade que é por excelência sua:
a hipocondria. O exercício solitário da leitura conduz a um desvio da imaginação, à rejeição da realidade,
à preferência outorgada à quimera. Daí provém a proximidade entre os excessos de leitura e os prazeres
sexuais solitários. Ambas práticas produzem os mesmos sintomas: palidez, inquietação, prostração. O perigo é maior quando a leitura é a leitura de um romance e o leitor, uma leitora retirada à solidão. A relação
com o escrito foi assim pensada a partir dos seus efeitos corporais. Semelhante “somatização”, que indica
uma forte mutação das representações da relação com os livros, permanecerá durante o século XIX e fundamentará o enfoque particularemente nas aprendizagens escolares, sobre as leituras “corretas”, tanto
pelo conteúdo dos textos quanto pelas posturas dos leitores.
É contra essas representações, que multiplicaram as advertências contra os perigos das “más
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leituras”, que se afirmou a definição da leitura como ferramenta privilegiada ou única de acesso
ao conhecimento do mundo, do passado, da sociedade ou de si mesmo. A certeza de que todo
o conhecimento se encontra nos livros, pelo menos nos “bons livros”, não foi unicamente uma
ideia das autoridades ou dos doutos, porém esta mobilizou os esforços dos “novos leitores”, que
conquistaram a leitura e a escrita para entender e, possivelmente, transformar o mundo injusto
no qual viviam. Uma tensão que atravessa toda a história da cultura escrita é a que enfrenta as
autoridades, que tentam impor o controle ou o monopólio sobre o escrito, contra todos aqueles
e, mais ainda, aquelas para quem o saber ler e escrever foi a promessa de um melhor controle de
seu destino. Os confrontos entre o poder estabelecido pelos poderosos sobre a escrita e o poder
que a sua aquisição confere aos mais fracos se opuseram à violência exercida pelo escrito em sua
capacidade de fundamentar, como Vico enunciou em 1725, “a faculdade dos povos de controlar a
interpretação dada pelos chefes da lei”.
Impresso ou manuscrito, o escrito tem sido permanentemente investido com um poder ao mesmo tempo desejado e temido, necessário e perigoso. É possível ler o fundamento de tal ambivalência no texto biblíco, com a dupla menção do livro comido como aparece no Apocalipse de João,
X, 10 (“E tomei o livrinho da mão do anjo e o devorei, e era doce na minha boca como o mel; e
quando o havia devorado, foi amargo na minha barriga”). O livro dado por Deus é amargo, como
o conhecimento do pecado, e doce como a promessa de redenção. A Bíblia, que contém o livro do
Revelação, foi ela mesma considerada como um livro poderoso, que protege e conjura, aparta as
desgraças, afasta as maldições. Em toda Cristandade, o livro sagrado foi objeto de usos propiciatórios e protetores que não supunham necessariamente a leitura de seu texto, mas que exigiam
sua presença material o mais próximo possível dos corpos.
O livro é, portanto, o depositório de conhecimentos poderosos mas terríveis. Caliban, que o sabe,
pensa que o poder de Próspero será destruído se forem capturados e queimados seus livros:
“Burn but his books”. Mas os livros de Próspero não são mais do que um único livro que lhe
permite submeter a sua vontade a natureza e os seres. Esse poder demiúrgico representa uma
terrível ameaça para quem o exerce, e copiar nem sempre permite afastar o perigo. O livro deve
desaparecer, afundado nas profundezas das águas: “E aí onde jamais caiu a sonda/eu vou afundar
o meu livro [I’ll drown my book]”. Três séculos mais tarde, Borges nos ensina que é em outras profundidades, aquelas das prateleiras da Biblioteca na Rua México, em Buenos Aires, onde deveria
ser enterrado um livro que, por ser de areia, não era menos inquietante. Se, evidentemente, se
deve ler para aprender, é necessário também aprender o que se deve ler, e como se deve lê-lo.
Expressa-se de maneira contundente dois temores contraditórios que habitaram a Europa moderna, e que todavia nos atormenta nos dias de hoje: por um lado, o medo diante da proliferação
incessante de escritos, a multiplicação de livros inúteis ou corruptores, a desordem do discurso e,
por outro, o medo da perda, da falta, do esquecimento.
Ler e aprender face à tela
É uma tensão comparável que caracteriza os nossos tempos em confronto com os desafios de
uma nova forma de inscrição, comunicação e leitura dos textos. A revolução digital de nosso
presente modifica tudo a uma só vez, os suportes da escrita, a técnica de sua reprodução e
disseminação, e as maneiras de ler. Essa simultaneidade é inédito na história da humanidade.
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A invenção da imprensa não modificou as estruturas fundamentais do livro, composta, tanto
antes como depois de Gutenberg, por folhas e páginas reunidas em um mesmo objeto. Nos
primeiros séculos da era cristã, esta nova forma de livro, o códice, foi imposta à custa do rolo,
mas não esteve acompanhada por uma transformação da técnica de reprodução de textos,
sempre garantida pela cópia manuscrita. Mesmo a leitura tendo conhecido várias revoluções,
assinaladas ou discutidas por historiadores, todas ocorreram durante a longa duração do
códice: tal como são as conquistas medievais da leitura silenciosa e visual, a febre da leitura que
caracterizou a época do Iluminismo, ou inclusive, a partir do século XIX, como vimos, a leitura
da entrada de novos agentes; os meios populares, as mulheres e as crianças.
Ao romper o antigo laço atado entre os textos e os objetos, entre os discursos e sua materialidade,
entre os dois sentidos do livro entendido, de uma vez, como suporte e como obra, a revolução
digital exige uma revisão radical dos gestos e noções que nós associamos com a escrita. Apesar
da inércia do vocabulário, que tenta domesticar a novidade nomeando-a com palavras familiares,
os fragmentos de texto que aparecem na tela não são páginas, mas composições singulares e
efêmeras. E, ao contrário de seus antecessores, rolo ou códice, o livro eletrônico não se difere das
outras produções de escrita pela evidência de sua forma material. A ruptura existe mesmo nas
continuidades aparentes. A leitura face à tela é uma leitura descontínua, segmentada, presa ao
fragmento. Por isso, não seria ela a herdeira direta das práticas permitidas e suscitadas pelo códice? De fato, o códice nos convida a ver os textos, com base em seus índices, ou em seus “sauts et
gambades”, como dizia Montaigne. O códice também convida a comparar diferentes passagens,
como o queria a leitura tipológica da Bíblia, ou para extrair e copiar citações e sentenças, bem
como exigia a técnica humanista dos lugares comuns. No entanto, a semelhança morfológica não
deve enganar. A descontinuidade e a fragmentação da leitura não tem o mesmo sentido quando
estão acompanhadas da percepção da totalidade textual contida no objeto escrito, tal como propõe o códice, e quando a superfície luminosa donde aparecem os fragmentos textuais não deixa
ver imediatamente os limites e a coerência do corpus de onde foram extraídos.
A descontextualização dos fragmentos e a continuidade textual, que não diferencia mais os vários discursos a partir de sua própria materialidade, parecem contraditórios com os procedimentos tradicionais de
aprender lendo, que supõe tanto a compreensão imediata, graças à forma da sua publicação, do valor
do conhecimento procurado pelos diversos discursos como a percepção das obras como obras, isto é,
em sua totalidade e coerência. As mutações contemporâneas não são sem riscos como o mostram a
inquietante capacidade do mundo digital para dar credibilidade às falsificações ou aos erros, a submeter à hierarquia dos conhecimentos à lógica econômica das empresas mais poderosas relacionadas aos
meios de comunicação, ou a estabelecer a dominação mais forte a cada dia do inglês como única língua
do saber. Esses receios são totalmente legítimos e devem inspirar possíveis maneiras de limitar os seus
efeitos desastrosos. No entanto, não devem obscurecer outras realidades mais promissoras.
O sonho da biblioteca universal parece agora estar mais próximo da realidade do que nunca, ainda
mais do que na Alexandria dos Ptolomeus. A conversão digital de acervos existentes promete a
constituição de uma biblioteca sem muros, onde se poderia aceder a todas as obras que foram
publicadas em algum momento, a todos os escritos que são património da humanidade. A ambição
é grande e, como Borges escreve: “quando se proclamou que a biblioteca continha todos os livros,
a primeira impressão foi de extravagante felicidade.” Mas, certamente, a segunda impressão deve
inspirar uma reflexão sobre o que implica a conversão digital que propõe aos leitores contemporâneos
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textos cujas formas materiais não são mais aquelas de onde os leitores do passado os liam. Essa
transformação não é sem precedentes, pode-se dizer, e estava nos códices, e não mais nos rolos de
sua primeira circulação, que os leitores medievais e modernos se apropriaram das obras antigas,
ou, pelo menos, daquelas que teriam ou queriam copiar. Claro que sim. Mas, para compreender
os significados que os leitores do passado tinham dado aos textos dos quais se apoderaram, é
necessário proteger, preservar e compreender os objetos escritos que os tinham transmitido. “A
felicidade extravagante”, suscitada pela biblioteca universal, poderia tornar-se impotente amargura
se se traduzisse em desprezo, ou pior ainda, na destruição dos objetos impressos que tinham
alimentado ao longo do tempo os pensamentos e os sonhos dos homens e das mulheres que os
tinham lido. A ameaça não é universal, e os incunábulos não têm nada a temer, mas não ocorre o
mesmo com as humildes e recentes publicações, sejam elas periódicas ou não. É a razão pela qual as
bibliotecas devem permanecer no mundo e na rede como um lugar e uma instituição fundamental
de onde os leitores poderão seguir aprendendo nos livros.
Ao mesmo tempo que modifica as possibilidades de acesso ao conhecimento, a revolução digital transforma profundamente as modalidades relativas às argumentações e aos critérios ou recursos que podem
mobilizar o leitor a aceitá-las ou refutá-las. Por um lado, a textualidade eletrônica permite desenvolver
os argumentos ou demonstrações segundo uma lógica que já não é necessariamente linear nem dedutiva, tal como o implica a inscrição de um texto sobre uma página, mas que pode ser aberta, expansiva
e relacional graças à proliferação de links de hipertexto. Por outro lado, e como consequência, o leitor
pode comprovar a validade de qualquer demonstração, consultando os textos (mas também as imagens,
as palavras gravadas ou as composições musicais) que são o objeto de análise se, obviamente, estão
acessíveis em um formato digitalizado. Tal possibilidade altera profundamente as técnicas clássicas de
ensaio (notas de rodapé, citações, referências) que supunham que o leitor confiaria no autor somente
quando este não se colocasse na mesma posição que os documentos analisados e utilizados. Nesse sentido, a revolução da textualidade digital constitui também uma mutação epistemológica que transforma os
modos de construção e de acreditação dos discursos do conhecimento. Pode assim abrir novos caminhos
para a aquisição de conhecimentos proporcionados pela leitura, seja qual for o modo de inscrição e de
transmissão do texto.
Como sempre é o “engenho leigo”, Cervantes, que pode esclarecer as contradições apontadas por
este texto. Sancho, que não sabe nem ler nem escrever, é no entanto o repositório de uma sabedoria
sentencial, transmitida por provérbios e histórias de seu povo. Sancho aprendeu sem ler. Dom Quixote, que tinha lido até à loucura, mostra a profunda ambivalência de leitura — e dos livros. Eles podem
tornar o homem mais sábio, sensato e discreto, tal como indicado pelo fidalgo, o cavalheiro de casaco
verde, mas também podem fazê-lo perder o juízo. Nesse sentido, Dom Quixote leu sem aprender, pelo
menos, sem aprender o que exigem o entendimento e a prudência. Ler para aprender, mas sabendo
que existem conhecimentos que não se encontram nas páginas dos livros; aprender a ler, mas traçando seu próprio caminho na floresta ou nos jardins dos textos: estes são, hoje, as advertências que nos
deixam Dom Quixote, um elefante que era “seco de carnes” , e Sancho, um cordeiro que tinha “uma
grande barriga e pernas longas”. Envio: 26 jan. 2011
Aceite: 15 fev. 2011
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
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La señora Ramsay y el cristal (Virginia Woolf – Gilles Deleuze)
A Sra. Ramsay e o cristal (Virginia Woolf – Gilles Deleuze)
Mrs. Ramsay and the crystal (Virginia Woolf – Gilles Deleuze)
Juan Carlos Gorlier1
Ricardo Oiticica2
Resumo
Este trabalho rastreia a concepção de “escritura” no pensamento francês contemporâneo como sendo um construto singular,
onde corpo e sentido — o material e o imaterial — se roçam, sem nunca se confundir. A tarefa é facilitada pela vasta produção
de filósofos que pensam a literatura e de escritores que se arrojam em reflexões filosóficas. Este ensaio é parte da mencionada
exploração e pretende entrelaçar, sem atar, um personagem literário — suas percepções e afetos — com um conceito filosófico.
O ensaio tem três partes: a primeira traz variações sobre o primeiro capítulo de Rumo ao farol (WOOLF, 1927); a segunda, uma
seleção de reflexões da autora sobre a criação literária; a terceira expõe ideias básicas de Deleuze sobre a noção de “cristal”.
Palavras-chave: escritura impressionista, momento de ser, moldar-modular.
Abstract
This work traces the “writing” conception in contemporary French thoughts as being a singular build, where material body and
immaterial mean touches each other, never confounding. The task is smoothed by the vast production of philosophers who
think literature and by writers who fling in philosophical though. This essay is part of the exploration mentioned and intends to
interlace, without tieing, a literary character — its perceptions and affections — with a philosophic concept. The essay has three
parts: firstly, presents some variations about the first chapter of Rumo ao farol (WOOLF, 1927); secondly, a selection of thoughts
of the author about literary creation; thirdly, exposes Deleuze basic ideas about his notion of “crystal”.
Keywords: impressionist writing, moment of being, molding-modulating.
Resumen
Este trabajo rastrea la concepción de la “escritura” en el pensamiento francés contemporáneo como un ámbito singular, donde
el cuerpo material y el sentido inmaterial se rozan, sin llegar a fusionarse. La tarea se ve facilitada por la vasta producción de
filósofos que reflexionan sobre literatura y de escritores que se embarcan en reflexiones filosóficas. Este ensayo es parte de la
mencionada exploración e intenta entrelazar, sin anudar, un personaje literario, sus percepciones y afectos, con un concepto
filosófico. El ensayo tiene tres secciones: la primera presenta algunas variaciones sobre la primera parte de Al faro (Woolf,
1927); la segunda consiste en una selección de reflexiones de la autora inglesa sobre la creación literaria; la tercera sección está
dedicada a una exposición de algunas ideas básicas de Deleuze sobre la noción de “cristal”.
Palabras clave: escritura impresionista, momento de ser, moldear-modular.
1. Pós-doutor em Sociologia pela University of Massachusetts, mestre em Trabalho Social Clínico pela Boston University. Leciona cursos de pós-graduação em diversas instituições. Contato: [email protected].
2. Doutor em Letras pela PUC-Rio e professor adjunto do Centro Universitário da Cidade.
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
La señora Ramsay y el cristal (Virginia Woolf – Gilles Deleuze)
There is a coherence in things, a stability;
something is immune from change and shines out
in the face of the flowing, the fleeting, the spectral, like a ruby.
Virginia Woolf
Les événements son comme les cristaux
ils ne deviennent et ne grandissent
que par les bords, sur les bords.
Gilles Deleuze
La señora Ramsay ve un rubí1
Ante ella se extendía la enorme masa de agua azul, el faro distante, rodeado de niebla, y a la derecha, hasta donde podía alcanzar su mirada, las dunas, en pliegues suaves y bajos, como parte de un
paisaje lunar, inhabitable. Pero desde la llegada de los artistas, todo el mundo parecía ver lo mismo,
el mar, el faro, veleros en el horizonte, mujeres en la playa.
Con un gesto de ligera impaciencia, dejó las agujas y dio un suave sacudón a las medias de lana roja.
Todavía eran demasiado cortas, debía tejer por lo menos dos centímetros más. Si podía terminarlas
esta noche, si mañana navegaban al faro, se las regalaría al hijo del cuidador. Cómo podían vivir tan
aislados, con tan mal tiempo, sobre una roca pelada, del tamaño de una cancha de tenis, las olas
rompiendo día y noche, las ventanas cubiertas de agua, los pájaros golpeándose contra la enorme
lámpara. Su esposo le había dicho que no se apresurara terminar el tejido, que mañana no podrían
navegar hasta el faro, pues se avecinaba mal tiempo. Eso la impacientó. Le preguntó cómo podía
estar tan seguro; él respondió que el viento venía del oeste, la peor dirección para llegar al faro.
Pensó, sin decirlo, que el viento iba y venía libremente, era imprevisible.
Una interrupción repentina de la conversación, en la que no participaba, le permitió oír el monótono
vaivén de las olas que parecían repetir una canción de cuna, canturreada por la naturaleza. Pero por
momentos un murmullo estridente se elevaba por encima del canturreo, advirtiendo que todo era
efímero como un arco iris, anunciando la destrucción de la isla, el poder arrasador del mar, perforándole los oídos.
No era, como le había dicho su esposo, pesimista. Era que tenía la vida ante sus ojos. Cincuenta
años de vida, ocho hijos, frente a sí. Sentía la presencia de la vida como algo que no compartía ni
compartiría con nadie. Entre la vida y ella, entre ella y la vida, había un intercambio constante, cada
una intentando obtener algo de la otra. Con tensiones, con reconciliaciones. Pero la mayor parte del
tiempo sentía la vida hostil, terrible, siempre lista a golpear al desprevenido, y una siempre está desprevenida. Sin embargo, les insistía a sus hijos que había que perseverar, vivir la vida. Pero al verlos
1. Variaciones sobre la primera parte de Al faro, de Virginia Woolf (1955[1927]). La novela se desarrolla en la casa de verano de la
familia Ramsay. La primera parte, titulada La ventana, relata un día en que los Ramsays invitan a un grupo de huéspedes, entre los
que se encuentran una joven pintora y algunos intelectuales. El relato comienza con la señora Ramsay asegurándole a uno de sus hijos
que la mañana siguiente, si hay buen tiempo, visitarán el faro, algo que el señor Ramsay niega, afirmando que habrá mal tiempo. Esto
provoca cierta tensión en la pareja, que se prolonga a lo largo de todo el relato. El relato termina con la descripción de una cena que
reúne a todos en una larga mesa.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
se preguntaba porqué debían crecer tan rápido y perder todo tan pronto. Nada de lo que pudieran
ganar compensaría lo que iban a perder. Los miraba sabiendo que nunca volverían a ser tan felices.
Todos tenían sus pequeños tesoros, cosas insignificantes, que habían encontrado en la playa, el jardín o el invernadero, ¿Porqué deben pasar por todo lo que van a pasar? Cuando se lo dijo, él frunció
el seño y la acusó de ser pesimista.
La tarde ya estaba cayendo. Miró a través de la bahía lo que había visto innumerables veces, las olas
llegando rítmicamente, una, dos olas breves y una tercera más prolongada. Habían encendido la luz
del faro. En las noches de insomnio la veía atravesar el dormitorio, bañar el lecho, inundar el piso,
anónima, despiadada. Cuando vieran la luz, sus hijos volverían a preguntarle si mañana irían al faro,
ella les respondería que no, que su padre había dicho que no.
Toda la actividad, expansiva, reluciente, sonora, se evaporó. Se había encogido hasta ser sólo un
fragmento de oscuridad. En momentos así, cuando la vida se hunde, cuando cesan los apegos, los
contornos se desdibujan, hasta volverse ilimitados. Estaba exhausta, el tráfico con los otros la había
dejado sin fuerzas y no le quedaba más que la cáscara vacía de sí misma. Vio su propio índice pasear
por las hojas del libro, presa del abandono, sintió en su cuerpo la vibración del relato, los destellos
fugaces de una creación lograda y comenzó a plegarse sobre sí misma, como un pétalo cubriendo
otros pétalos.
Mientras ayudaba a servir la cena la invadió la sensación de estar fuera de todo. Como si un velo
hubiera caído, exponiendo la verdad incolora de las cosas. No había belleza en ningún lado. La falta
de armonía reinaba por doquier. Todos estaban separados, aislados. Sentía que el esfuerzo de armonizar, de crear, caía sobre sus hombros. Sintió, sin hostilidad, cuán estériles son los hombres. Si ella
no lo hacía, ninguno de ellos lo haría. No era la primera vez que lo sentía. Se dio un leve sacudón,
como quien mueve un reloj que resiste seguir andando y continuó ayudando. Como un navegante
que siente el viento en las velas, que ya no desea navegar y sabe que si el barco se hubiera hundido
estaría descansando, luego de algunos espasmos, en el fondo del mar.
Les pidió a los niños que encendieran las velas. Luego de vacilar unos momentos, las llamas se
irguieron iluminando las caras de los comensales. Se había creado un conjunto armónico, sostenido
por paneles de cristal que provocaban una extraña distorsión en la visión. Adentro parecía reinar
el orden de la tierra firme, afuera todo ondulaba y se desvanecía como si estuviera hecho de agua.
Se sintió suspendida en la altura, como un halcón, flotando en una dicha que aunque brotaba de
su cuerpo no le pertenecía, que inundaba a su esposo, a los niños, a los invitados. Una quietud
profunda elevándose como un humo transparente. Veía y oía, pero todo lo que veía y oía tenía esa
cualidad. Las palabras parecían tener vida propia, brotar sin que nadie las pronunciara. Percibió, en
un destello fugaz, como el que produce un rubí, una conjunción entre las cosas y los seres. Sintió que
todo estaba en su lugar, que no iba a durar, que ya había desaparecido.
Momentos de ser
Hay momentos en que el escudo de la conciencia se resquebraja dando paso a sensaciones visuales,
auditivas, táctiles, de intensidad y textura singulares. Son experiencias que no están sujetas a los
hábitos del sentido común. Parecen recuerdos de vivencias remotas, pero son mucho más reales
que los objetos que alguien puede captar aquí y ahora. Como si el pasado se volviera más presen165
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te que el presente. El sujeto siente que está flotando fuera del tiempo cronológico. Tal vez estos
“momentos de ser”, fugaces, discontinuos, sean lo único que existe, lo único que queda grabado, lo
único realmente eterno.
Muchos colores brillantes; muchos sonidos distintivos, algunos seres humanos, caricaturas, varios momentos de ser violentos, siempre incluyendo el círculo de la escena que recortan; y envueltos por un
vasto espacio [...] Estas escenas no son un artificio literario, un medio de resumir y hacer visibles detalles
innumerables en un cuadro concreto [...] somos naves selladas flotando sobre lo que por conveniencia llamamos realidad; en algunos momentos, sin razón, sin esfuerzo, la materia que sella se quiebra; la realidad
inunda; eso es una escena. (Woolf, 1985:79; 142)
¿Cómo dar forma a esas sensaciones dispersas, fragmentarias? Parecería que, en vez de apresurarse
a interpretarlas, hay que hacerles un lugar, custodiar un vasto espacio vacío, para que el contenido
pueda adoptar su propia forma. Acaso no hay que tratar de imprimirles una coherencia artificial,
sino dejar que la forma brote de las sensaciones mismas, aceptando que puede no brotar, que el haz
de sensaciones puede no llegar a configurarse en una escena. Entonces, no sería tanto una cuestión
de inspiración sino de experimentación, de explorar y observar si una forma fluye del contenido, si
un contenido se va modelando a partir de la forma, si del caos emerge un orden.
Incluso a los seis años, ya pertenecía a ese gran clan para los que cualquier giro en la rueda de la sensación
tiene el poder de cristalizar y transfigurar el momento.2
Hay una coherencia en las cosas, una estabilidad; inmune al cambio, que destella ante lo que fluye, a lo
fugaz, a lo espectral, como un rubí [...] En tales momentos, hay algo que perdura. (Woolf, 1955:158)
[...] era imposible resistir el extraordinario estímulo a ir de aquí allá buscando algún bien absoluto, algún
cristal de intensidad, ajeno a los placeres conocidos y a las virtudes familiares, extraño a los procesos de
la vida doméstica, único, duro, brillante, como un diamante en la arena, que da seguridad al que lo posee.
(Woolf, 1955:199)
La cristalización alude a un cambio de estado y a una fusión entre forma y contenido, como cuando
una materia ígnea fluye libre y se solidifica gradualmente. Por extensión, el término puede también
referirse al procedimiento artístico que permite la creación de algo perdurable a partir de impresiones momentáneas.
En la tradición del impresionismo literario tal procedimiento suele estar asociado a un recorte del
campo visual. El procedimiento apuesta a lograr un estado de atención flotante e intensa a la vez,
con la expectativa de que acontezca una suerte de transfiguración que cristalice infinidad de detalles
casi imperceptibles y aparentemente insignificantes, formando un piedra preciosa, única, perdurable, un momento de ser.
La novela convencional tiende a representar los eventos siguiendo una secuencia cronológica y a
reforzar esa representación con el uso de una trama narrativa donde pueden discernirse tres fases:
principio, desenvolvimiento, fin.
Sin embargo, hay quienes se rebelan contra esta forma convencional y comienzan a experimentar
con otras. Una de las estrategias consistiría en producir relatos cortos, pequeños cuadros impresio-
2. La señora Ramsay refiriéndose a James, uno de sus hijos (Woolf, 1955:9).
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nistas, donde se trata de registrar las impresiones tal como sobrevienen, sin esforzarse por darles
sentido ni por incluirlas en un conjunto mayor que las englobaría.
A partir de estos experimentos se van gestando distintas alternativas frente a la novela tradicional,
aunque no hay acuerdo sobre el diseño novelístico capaz de incorporar la multiplicidad de relatos.
Una opción sería establecer un símbolo maestro que funcione como centro de irradiación, sustituyendo el desenvolvimiento lineal característico de la novela convencional, pero sin abandonar su
ideal totalizador. Sin embargo, tal opción corre el peligro de desvirtuar el carácter esencialmente
vago, inconcluso y discontinuo de esos relatos, anclándolos a un sentido unificador que por añadidura sería externo a ellos. “En Al faro no traté de significar nada. Es que hay que tener una línea central
en medio del libro para que el diseño se sostenga” (Woolf, 1975-80, v. 3:385).
Ciertamente, tampoco se trata de acortar la novela o de alargar los relatos. Sin duda, para una Virginia Woolf, si la escritura literaria tiene sentido, es a partir del intento, que tal vez nunca llegue a
consumarse, de capturar la forma de esos momentos en que infinidad de sonidos y resplandores
brotan, se expanden en todas direcciones y se cristalizan, como ocurre con el estallido sonoro y visual provocado por la caída al agua de un objeto pesado. Si lo único real son esos “momentos de ser”,
se trataría más bien de idear un diseño novelístico capaz de conjugarlos usando puentes, engarces o
interludios que en lugar de ocultar la discontinuidad, el abismo existente, entre un momento de ser
y otro, lo hagan más evidente. Según la escritora inglesa, si los creadores de “la ficción moderna” se
libraran de las convenciones literarias y se aplicaran a escribir lo que acontece, no tendrían necesidad de idear una trama. Si la vida no es así, ¿porqué la novela, la escritura literaria, debería ser así?
[...] a veces nos asalta una duda momentánea, un espasmo de rebelión. ¿La vida es así? ¿Deben las novelas ser así? Si miramos adentro nuestro, si miramos la vida, nada “es así”. La mente recibe una miríada de
impresiones — triviales, fantásticas, evanescentes o grabadas con la agudeza del metal. Vienen de todos
lados, una lluvia incesante de átomos innumerables; y mientras caen, adoptan la forma de la vida del lunes
o el martes [...] si el escritor fuera un ser libre y no un esclavo [...] no habría trama, ni comedia, ni tragedia
[...] la vida no es una serie de lámparas de posición, simétricamente dispuestas, es un halo luminoso, un
envoltorio semitransparente que nos rodea desde el comienzo hasta el final de la conciencia. (Woolf,
1984:61)
Cristal
La materia, cualquiera sea su estado, gaseoso, líquido o sólido, es materia que está, que estuvo,
que puede llegar a estar en movimiento, a expresarse en distintas formas. Las formas no existen
separadas de la materia, sino que son recursos propios de ella. No hay nada parecido a una materia
completamente carente de forma. Por ejemplo, la arcilla usada para producir vasijas a través de la
técnica del moldeo está formada por partículas microscópicas de superficie lisa.
En este proceso, como en tantos otros, lo más interesante suele pasar desapercibido y ocurrir a nivel molecular, en una zona intermedia que se crea a partir de los intercambios entre
la superficie de contacto de la arcilla en estado líquido con la superficie del yeso usado para
fabricar el molde. A pesar de que el proceso es rápido, la solidificación de la arcilla no es instantánea sino gradual, en capas sucesivas. La materia fluida que se solidifica antes, se convierte en continente para la materia que está todavía en flujo. Esas capas pueden concebirse como
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estados de equilibrio inducidos por el molde de yeso. Alcanzado un estado de equilibrio, ya no
es necesario un molde o continente externo.
Hay que tener también en cuenta que un molde no es una forma pura, sino el resultado de un moldeo, de un equilibrio previo alcanzado por la materia-energía usada para producir el molde. Asimismo, del mismo modo que la madera sirve de materia para la producción de listones, los listones pueden servir de material para la construcción de una casa. Es decir que en estas operaciones habría dos
umbrales: un umbral inferior definido por la materia preparada para el moldeo y un umbral superior,
definido por la forma que se quiere imprimir, pero los umbrales no son absolutos y un umbral siempre tiene, o puede tener, otros umbrales por encima o por debajo de él.
[...] como si cada operación estuviera comprendida entre dos umbrales: un infra-umbral que define la
materia preparada para esa operación y un supra-umbral que define la forma que se quiere comunicar a
través de esa operación. Ciertamente, la forma a la que se llega a través de la operación puede servir de
material para una forma distinta. (Deleuze, 1979, clase del 27 de febrero)
Es entonces posible pensar la materia no ya como una sustancia universal y estática sino como haces singulares de energía expansiva; como si la materia tuviera vida, en el sentido de estar animada por un potencial
de infinitas evoluciones e innovaciones que la empujan a adoptar distintas formas de individuación.
Los cristales no son sólo objeto de la ciencia, aparecen también en las artes visuales, la literatura y la filosofía. La perfección de sus formas y su transparencia los hacen parecer inertes, sin embargo fluyen, crecen y
se multiplican, tienden a replicarse indefinidamente, extendiéndose en todas direcciones.
El flujo circula por diferencia entre intensidades, como ocurre con las masas de aire que se mueven
de acuerdo a la resistencia que le oponen otras masas circundantes. La intensidad acumulada en el
núcleo del cristal busca los puntos donde la resistencia que opone el medio amorfo es mínima y se
expande a través de ellos interiorizando la materia del medio y exteriorizándose en las formas que
adopta en la superficie. De este modo, la singularidad albergada en el núcleo se expresa en los bordes.
[...] la forma del cristal se expande en todas direcciones, pero siempre en función de la capa superficial
de la sustancia, que puede ser vaciada de la mayor parte de su interior sin interferir con el crecimiento.
(Deleuze; Guattari, 1980:60)
Lo singular aparece en la superficie. Todo ocurre en la superficie, en un cristal que no se desarrolla sino por
los bordes. (Deleuze, 1969, Serie 15)
Los acontecimientos son como los cristales, no ocurren, no crecen sino por los bordes, sobre los bordes.
(Deleuze, 1969, Serie 2)
El modelo del cristal puede facilitar una concepción, pero también una percepción, distinta del tiempo.
Desde esta nueva perspectiva, el tiempo ya no aparece como tiempo lineal en el que las cosas existen
como pura presencia, sino como un tiempo en que el pasado se constituye al mismo tiempo que el
presente, dislocándolo. Visto así, el cristal aparece como un acontecimiento que fractura la continuidad del tiempo cronológico. Como consecuencia de esta fractura cada momento está internamente
dividido, o tensado, en dos direcciones heterogéneas, una apuntando al pasado y otra al futuro.
[...] el tiempo tiene que fracturarse en dos en cada momento, como presente y como pasado, que por naturaleza difieren uno del otro, tiene que dividir el presente en dos direcciones heterogéneas, una lanzada
hacia el futuro y otra cayendo en el pasado. (Deleuze, 1985:108-9)
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La tensión puede aumentar o disminuir pero nunca cesa. Extrañamente, el corte entre el presente
y el pasado o mejor, entre lo actual y lo virtual, nunca llega a producirse. Lo virtual irrumpe en lo
actual, lo actual revela lo virtual; este vaivén entre “la imagen actual” y “la imagen virtual” hace que
ambas imágenes, sin dejar de diferenciarse, se tornen indiscernibles. Como resultado de ese vaivén
se van cristalizando nuevas capas de sentido; puede entonces vislumbrarse porqué el cristal ofrece
una imagen del tiempo.
¿Qué es una imagen-cristal? [...] la imagen-cristal es la condición para captar una imagen-tiempo directa,
en el sentido que es el Tiempo en persona lo que se ve en el cristal [...] se podría definir la imagen-cristal
como la consolidación de una imagen actual y una imagen virtual [...] Si hay una coalescencia entre una
imagen actual y su imagen virtual es necesario que, de alguna manera, la imagen virtual se haga actual y
la imagen actual se haga virtual. (Deleuze, 1983-84, clase del 15 de Mayo)
Cabe todavía preguntarse en qué condiciones es posible una experiencia de esta índole, o qué condiciones están asociadas a una experiencia así. Hay situaciones que no parecen sujetas a la cadena
habitual de los estímulos y las reacciones que provocan nuevos estímulos. Son situaciones en las que
cesa toda actividad, todo movimiento; momentos en los que “ya no hay nada que hacer”, sea que la
expresión aluda a una sensación de hastío o a una experiencia límite, a un estar totalmente expuesto
y al borde de la muerte. Parecería que en situaciones así las barreras que separan una cosa de otras y
el pasado del presente se resquebrajan, el sujeto experimenta la sensación de estar flotando y siente
que todo, por fin, está en su lugar. Obviamente, no cabe afirmar si la experiencia es real o irreal, si
lo que se percibe es verdadero o falso. De hecho, por más cerca que alguien esté del que tiene esa
experiencia cree que el otro ve visiones.
Se espera. La acción que ya no soy capaz de realizar es reemplazada por una extraña facultad de videncia
— falsa o verdadera — tengo la impresión de “ver” algo ¿acaso, todo mi pasado? En esta situación me
descubro como un vidente, como un visionario. (Deleuze, 1983-84, clase del 15 de Mayo)
Notas bibliográficas
La señora Ramsay ve un rubí. La novela Al faro de Virginia Woolf (1882-1941) fue publicada en Londres en 1927. El relato tiene 3 partes, La ventana, El tiempo pasa y El faro, transcurriendo en dos
días, separados por diez años, con la segunda parte suministrando una suerte de puente sobre la
grieta que separa esos dos días. Las “variaciones” presentadas en esta sección suponen una reescritura relativamente creativa, en la línea de lo sugerido por Roland Barthes al acuñar, en el prefacio a
S/Z (1970), la oposición entre “legible/escribible” (lisible/scriptible en francés), habría ciertos relatos
que, por su singular textura, sólo pueden leerse re-escribiéndolos. Material de consulta: Virginia
Woolf Al Faro (Davies, 1989) y Al Faro de Virginia Woolf (Raitt, 1990).
Momentos de ser. En Al faro hay significativas alusiones al proceso de cristalización que pueden ser
abordadas como aproximaciones a una forma fiel al flujo de las impresiones y los afectos. En sus textos de ficción, en sus ensayos y en sus notas cotidianas, Virginia Woolf ha reflexionado ampliamente
sobre los desafíos de una escritura de sesgo impresionista, libre tanto de la noción de trama (sobre
la distinción entre trama y relato, plot y story, en inglés, véase Foster, 1927 y Herman y Vervaeck,
2005) como de un significado maestro. En Ficción moderna, ensayo escrito en 1919, siete años antes
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de la publicación de Al faro, Woolf adopta una distancia crítica ante la novela convencional. Al parecer, en la época de redacción de Al faro, estaba leyendo a Proust (1954 [1913-1927]) e incorporando algunas intuiciones sobre el carácter involuntario y fragmentario de ciertos recuerdos (Woolf,
1985 [1907-1940]). Material de consulta: El tiempo pasa. Virginia Woolf y el post-impresionismo…
(Banfield, 2003); Salto al vacío: las dos estéticas de Al faro (Caracciolo, 2010); Proust, Woolf y
la ficción moderna (Lewis, 2008); y Fuegos y señales en la bruma: El faro de Virginia Woolf (Serres;
Adler, 2008).
Cristal. Como suele ocurrir con otros conceptos deleuzianos, las reflexiones del autor francés sobre
el “cristal” están esparcidas en distintos lugares, pero hay dos o tres textos que parecen concentrar
lo fundamental. Entre ellos se destaca Cristales del tiempo, capítulo 4 del libro Cine 2: La imagen
tiempo (Deleuze, 1985); a él cabe agregar dos fuentes más: la Geología de la moral, capítulo 3
de Mil mesetas (Deleuze; Guattari, 1980) y tres formulaciones breves pero muy importantes
en las Series 2, 15 y 22 de la Lógica del sentido (Deleuze, 1969); puede también consultarse un
resumen de la noción de “imagen-cristal” presentado en una clase del curso sobre Cine (Deleuze,
1983-1984). Por último, sobre la distinción entre “moldear” y “modular” puede verse la clase Metal,
metalurgia, música, Husserl, Simondon en el curso sobre El Anti Edipo y Mil Mesetas (Deleuze,
1979). Material de consulta: Caos y control (Kearnes, 2006); Woolf y Deleuze: cine, literatura y
tiempo viajero (Skeet, 2008) y El proyecto de film bergosiano de Gilles Deleuze (Totaro, 1999).
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A Sra. Ramsay e o cristal (Virginia Woolf – Gilles Deleuze)
There is a coherence in things, a stability;
something is immune from change and shines out
in the face of the flowing, the fleeting, the spectral, like a ruby.
Virginia Woolf
Les événements sont comme les cristaux,
ils ne deviennent et ne grandissent
que par les bords, sur les bords.
Gilles Deleuze
A Sra. Ramsay vê um rubi1
Diante dela, estendia-se a grande massa de água azul, o farol distante, rodeado de névoa, e à direita,
até aonde podia ir sua vista, as dunas, as dobras suaves e rasteiras, como parte de uma paisagem
lunar, inabitável. Porém, desde a chegada do grupo de artistas, todo mundo parecia ver o mesmo, o
mar, o farol, veleiros no horizonte, mulheres na praia.
Com um gesto de breve impaciência, deixou as agulhas e sacudiu suavemente as meias de lã vermelha. Ainda estavam muito curtas, devia tricotar ao menos dois centímetros a mais. Se pudesse
terminá-las esta noite, daria de presente ao filho do faroleiro, caso fossem amanhã ao farol. Como
podem viver assim tão isolados, com esse mau tempo, em cima de uma pedra lisa do tamanho de
uma quadra de tênis, as ondas quebrando dia e noite, as janelas cobertas de água, os pássaros
batendo contra o enorme holofote? Seu marido tinha dito que não valia a pena terminar o tricô,
pois com a previsão de mau tempo não poderiam mesmo navegar até o farol, amanhã. Isso a impacientou. Perguntou como ele podia estar tão certo. Ele respondeu que o vento batia de oeste, o pior
caminho para se chegar ao farol. Pensou, calada, que o vento ia e vinha livremente, imprevisível.
Uma pausa repentina da conversa ao lado lhe permitiu ouvir o monótono vai e vem das ondas, parecendo repetir uma canção de ninar, cantarolada pela natureza. Mas às vezes um murmúrio estridente se elevava por cima da cantoria, advertindo que tudo era efêmero como um arco-íris, anunciando
a destruição da ilha, o poder arrasador do mar, perfurando-lhe os ouvidos.
Ao contrário do que havia dito seu marido, ela não era uma pessimista. Apenas, tinha a vida diante
dos olhos. Cinquenta anos, oito filhos na cara. Sentia a presença da vida como algo que não compartilhava e nem compartilharia com ninguém. Entre a vida e ela, entre ela e a vida havia uma negociação constante, cada uma tentando obter algo da outra. Com tensões, com reconciliações. Mas a
maior parte do tempo sentia a vida hostil, terrível, sempre pronta a bater sem prevenir, e estamos
sempre desprevenidos. Mesmo assim, de vez em quando frisava a seus filhos que era preciso perseverar, viver a vida. Mas ao vê-los, perguntava-se por que deviam crescer tão rápido e perder tudo tão
já. Nada do que pudessem ganhar compensaria o que iriam perder. Olhava-os sabendo que nunca
1. O romance Rumo ao farol, de Virginia Woolf (1882-1941), foi publicado em Londres em 1927 e tem três capítulos, “A janela”, “O
tempo passa” e “O farol”. Ele se desenvolve na casa de praia da família Ramsay, em dois dias separados por dez anos, sendo o segundo
capítulo uma espécie de ponte sobre esse tempo. A narrativa começa no dia em que o casal recebe um grupo de hóspedes, entre os
quais uma jovem pintora e alguns intelectuais, e a Sra. Ramsey garante a um de seus filhos que na manhã seguinte visitariam o farol.
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voltariam a ser tão felizes. Todos tinham seus pequenos tesouros, coisas insignificantes que haviam
encontrado na praia, no jardim ou na estufa. Por que devem passar por tudo o que vão passar?
Quando ela disse isto, ele franziu o cenho e a acusou de pessimista.
Já caía a tarde. Olhou ao largo da baía o que tantas vezes viu, as ondas chegando ritmicamente, uma,
duas ondas curtas e uma terceira mais longa. Haviam acendido o farol. Nas noites de insônia, via
a luz atravessar o quarto, banhar a cama, inundar o chão, anônima, insensível. Quando também a
notassem, seus filhos voltariam a perguntar se amanhã iriam ao farol, ela lhes responderia que não,
que o pai havia dito que não.
Toda a atividade, expansiva, reluzente, sonora, evaporou. Encolheu-se até ser apenas um fragmento
de escuridão. Em momentos assim, quando a vida derrete, quando tudo é desapego, os contornos
se dissipam até não se divisarem limites. Estava exausta, o trato com os outros a tinha deixado sem
forças e não lhe restava mais que a casca vazia de si mesma. Viu seu dedo indicador passear pelas
folhas do livro, presa de abandono, sentiu em seu corpo a vibração do relato, a centelha fugaz de
uma criação e começou a dobrar-se sobre si mesma, como pétala cobrindo outras pétalas.
Enquanto ajudava a servir o jantar, invadiu-a a sensação de estar fora de tudo. Como se um véu houvesse caído, expondo a verdade incolor das coisas. Não havia beleza em nada, a falta de harmonia
reinava por toda parte. Todos estavam separados, isolados. Sentia que o esforço de harmonizar, de
criar caía sobre ela. Sentiu, sem hostilidade, o quanto estéreis são os homens. Se ela não o fizesse,
ninguém mais o faria. Não era a primeira vez que sentia isto. Deu um tranco em si mesma, como
num relógio que quisesse emperrar, e continuou trabalhando. Como um navegante que percebe o
vento nas velas, mas já não quer navegar, e sabe que se o barco tivesse afundado estaria descansando, após uns espasmos, no fundo do mar.
Pediu às crianças que acendessem as velas. Depois de hesitar alguns instantes, as chamas espicharam, iluminando os rostos em torno da mesa. Criara-se um conjunto harmônico, sustentado por
paredes de vidro que provocavam uma estranha distorção visual. Parecia reinar lá dentro a ordem
da terra firme, lá fora tudo ondulava e esmaecia como se feito de água. Sentiu-se nos ares como um
falcão, flutuando em um bem-estar que não lhe pertencia, mesmo vindo de seu corpo, que inundava
a tudo e a todos, a seu esposo, às crianças, aos convidados. Uma calma profunda elevando-se como
fumaça transparente. Via e ouvia, mas tudo o que via e ouvia tinha esta característica. As palavras
pareciam ter vida própria, brotar sem que ninguém as pronunciasse. Percebeu uma centelha fugaz,
como a que produz um rubi, uma conjunção entre as coisas e os seres. Sentiu que tudo estava em
seu lugar, que não vai durar muito, que já desapareceu.
Momentos de ser
Há momentos em que o escudo da consciência racha, dando lugar a sensações visuais, auditivas,
tácteis de intensidade e textura singulares. São experiências que não estão sujeitas aos hábitos do
senso comum. Parecem lembranças de vivências remotas, mas são muito mais reais que os objetos
que alguém pode captar aqui e agora. Como se o passado se tornasse mais presente que o presente. O sujeito sente que está flutuando fora do tempo cronológico. Talvez estes “momentos de ser”,
fugazes, descontínuos, sejam o único que exista, o único que fica gravado, o único realmente eterno.
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Muitas cores brilhantes, muitos sons característicos, alguns seres humanos, caricaturas, vários momentos
de ser violentos, sempre incluindo o círculo da cena que recortam; e envoltos por um vasto espaço [...]
estas cenas não são um artifício literário, um meio de resumir e fazer visíveis detalhes inumeráveis em um
quadro concreto [...] somos cascos impermeáveis flutuando sobre o que por conveniência chamamos realidade; em alguns momentos, sem razão, sem esforço, a matéria isolante se quebra; a realidade inunda;
isto é uma cena. (Woolf, 1985:79; 142)
Como dar forma a estas sensações dispersas, fragmentárias? Em vez da ânsia de interpretá-las,
devemos lhes dar um lugar, reservar um vasto espaço vazio para que o conteúdo possa adotar sua
forma própria. Não se trata de forjar uma coerência artificial, mas deixar que a forma brote das
sensações mesmas, aceitando que pode até não brotar, que o feixe de sensações pode não chegar
a configurar-se em uma cena. Logo, não seria tanto uma questão de inspiração, mas de experimentação, de explorar e observar se uma forma flui do conteúdo, se um conteúdo se vai modelando a
partir da forma, se do caos emerge uma ordem.
Mesmo aos seis anos, já pertencia a esse grande família dos que, a qualquer giro da roda das sensações,
têm o poder de cristalizar e transfigurar o momento.
Há uma coerência nas coisas, uma estabilidade; imune às mudanças, que fulgura diante do que flui, do
fugaz, do espectral, como um rubi [...] Em tais momentos, há algo que perdura. (Woolf, 1955:158)
[...] era impossível resistir ao extraordinário estímulo de ir de lá para cá, buscando alguma coisa absoluta,
algum cristal de intensidade, alheio aos prazeres conhecidos e às virtudes familiares, estranho aos processos da vida doméstica, único, duro, brilhante, como um diamante na areia, que dá segurança a quem
o possui. (Woolf, 1955:199)
O processo de cristalização alude a uma mudança de estado e a uma fusão entre forma e conteúdo, como quando uma matéria ígnea flui livre e se solidifica gradualmente. Levado a seu termo,
isto pode ser estendido ao procedimento artístico que permite a criação de algo durável a partir de
impressões momentâneas.
Na tradição do impressionismo literário, tal procedimento costuma estar associado ao recorte de
um campo visual. Sua aposta é conseguir um estado de atenção flutuante e ao mesmo tempo intensa, com a expectativa de que aconteça uma espécie de transfiguração que cristalize uma infinidade
de detalhes quase imperceptíveis e aparentemente insignificantes, formando uma pedra preciosa,
única, duradoura, um momento de ser.
O romance convencional tende a representar os acontecimentos seguindo uma sequência cronológica e a reforçar essa representação com o uso de uma trama narrativa de que se podem discernir
três fases: introdução, desenvolvimento, conclusão.
No entanto, há quem se rebele contra essa forma convencional e tente outras experiências. Uma das
estratégias consiste em produzir relatos curtos, pequenos quadros impressionistas, em que se trata
de registrar as impressões tal como surjam, sem procurar lhes dar sentido ou torná-las parte de um
conjunto maior.
A partir destes experimentos se vão gestando diferentes alternativas ao romance tradicional, ainda
que não haja consenso sobre o desenho narrativo capaz de incorporar a multiplicidade de relatos.
Uma opção seria estabelecer um núcleo simbólico que funcione como centro de irradiação, substituindo o desenvolvimento linear característico do romance convencional, mas sem abandonar seu
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ideal totalizante. Por isso mesmo, a opção corre o perigo de desvirtuar o caráter essencialmente
vago, inconcluso e descontínuo desses relatos, subordinando-os a um sentido unificador que por
acúmulo seria externo a eles. “Em Rumo ao farol não procurei significar nada. Apenas, deve haver
uma linha central no livro para que o desenho se sustente” (Woolf, 1975-80, v. 3:385).
Também não se trata, certamente, de encurtar o romance ou ampliar os relatos. Sem dúvida, para
uma Virgínia Woolf, se a escritura literária tem sentido, é a partir da intenção, que talvez nunca chegue a se consumar, de capturar a forma desses momentos em que uma infinidade de sons e clarões
brotam, se expandem em todas as direções e se cristalizam, como ocorre com o impacto sonoro e
visual provocado pelo tombo na água de um objeto pesado. Se o único real são esses “momentos de
ser”, seria o caso de se pensar em um desenho narrativo capaz de conjugá-los com pontes, engates
ou interlúdios e que em vez de ocultar a descontinuidade, o abismo existente entre um momento de
ser e outro, o deixem mais evidente. Segundo a escritora inglesa, se os criadores da “ficção moderna” se livraram das convenções literárias, dedicando-se a escrever o que acontece, não teriam por
que idealizar uma trama. Se a vida não é assim, por que o romance, a escritura literária deveria ser
assim?
[…] às vezes nos assalta uma dúvida momentânea, um espasmo de rebelião. A vida é assim? Devem os
romances ser assim? Se olhamos para o interior de nós mesmos, se olhamos para a vida, nada “é assim” A
mente recebe uma miríade de impressões — triviais, fantásticas, evanescentes ou gravadas con a agudeza
do metal. Vem de todos lados uma chuva incessante de átomos inumeráveis; e enquanto caem, adotam a
forma de vida de uma segunda ou terça-feira [...] se o escritor fosse um ser livre e não um escravo [...], não
haveria trama, nem comédia, nem tragédia [...] a vida não é uma série de luzes de pista, simetricamente
dispostas, é um halo luminoso, um envoltório semitransparente que nos rodeia do começo ao final da
consciência. (Woolf, 1984:61)
Cristal
A matéria, qualquer que seja seu estado, gasoso, líquido ou sólido, é matéria que está, que esteve
ou pode chegar a estar em movimento, a expressar-se em variadas formas. As formas não existem
separadas da matéria, são recursos dela mesma. Não há possibilidade de matéria completamente
isenta de forma. Por exemplo, a argila usada para produzir vasos através da técnica de modelagem
é formada por partículas microscópicas de superfície lisa.
Neste processo, como em tantos outros, o mais interessante costuma passar despercebido e ocorre
em nível molecular, em uma zona intermediária que se cria a partir das trocas entre a superfície de
contato da argila em estado líquido com a superfície do gesso usado para fabricar o molde. Apesar de
ser um processo rápido, a solidificação da argila não é instantânea, mas gradual, em camadas sucessivas. A matéria fluida que se solidifica primeiro se converte em recipiente para a matéria que está
ainda em fluxo. Essas camadas podem conceber-se como estados de equilíbrio induzidos pelo molde
de gesso. Alcançado um estado de equilíbrio, já não é necessário um molde ou recipiente externo.
Há que se levar em conta também que um molde não é uma forma pura, mas o resultado de uma
modelagem, de um equilíbrio prévio alcançado pela matéria-energia usada para produzir o molde.
Do mesmo modo que a madeira serve de matéria para a produção de piso, o piso pode servir de
material para a construção de uma casa. Quer dizer que nesses processos de produção haveria duas
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
bases superpostas: um umbral inferior, definido pela matéria preparada para a modelagem, e um
umbral superior, definido pela forma que se quer imprimir. Mas os umbrais não são absolutos e um
umbral sempre tem, ou pode ter, outros umbrais por sobre ou sob ele.
[...] como se cada operação estivesse compreendida entre dois umbrais: um infra-umbral que define a
matéria preparada para essa operação e um supra-umbral que define a forma que se quer comunicar
através dessa operação. Certamente, a forma a que se chega através da operação pode servir de material
para uma forma distinta. (Deleuze, 1979, aula de 27 de fevereiro)
É possível então pensar a matéria não como uma substância universal, mas como feixes singulares
de energia expansiva; como se a matéria tivesse vida, no sentido de estar animada por um potencial
de infinitas evoluções e inovações que a motivam a adotar distintas formas de individualização.
Os cristais não são somente objeto da ciência, aparecem também nas artes visuais, na literatura, na
filosofia. A perfeição de suas formas e transparências os faz parecer inertes, e no entanto fluem, crescem e se multiplicam, tendem a replicar-se indefinidamente, estendendo-se em todas as direções.
O fluxo circula por força da diferença entre intensidades, como ocorre com as massas de ar que se
movem de acordo com a resistência que lhes opõem outras massas circundantes. A intensidade acumulada no núcleo do cristal busca os pontos onde a resistência que o meio amorfo opõe é mínima,
e se expande através deles, interiorizando a matéria do meio e exteriorizando-se nas formas que
adota na superfície. Deste modo, a singularidade guardada no núcleo se expressa nas bordas.
[...] a forma do cristal se expande em todas as direções, mas sempre em função da camada superficial da
substância, que pode ser esvaziada da maior parte de seu interior sem interferir no crescimento. (Deleuze; Guattari, 1980:60)
O singular aparece na superfície. Tudo ocorre na superfície em um cristal, que só se desenvolve por suas
bordas (Deleuze, 1969, Série 15)
Os acontecimentos são como os cristais, não ocorrem, não crescem senão por suas bordas, sobre as bordas. (Deleuze, 1969, Série 2)
O modelo do cristal pode facilitar uma concepção, mas também uma percepção distinta de tempo.
Por essa nova percepção, o tempo já não aparece como tempo linear em que as coisas existem
como pura presença, mas como um tempo em que o passado se constitui ao mesmo tempo que o
presente, deslocando-o. Visto assim, o cristal aparece como um acontecimento que fratura a continuidade do tempo cronológico. Em consequência dessa fratura, cada momento está internamente
dividido, ou tensionado, em duas direções heterogêneas, uma apontando para o passado, a outra,
para o futuro.
[...] o tempo tem que se fraturar em dois a cada momento, como presente e como passado, que por natureza diferem um do outro, tem que dividir o presente em duas direções heterogêneas, uma projetada no
futuro e a outra tombando no passado. (Deleuze, 1985:108-9)
A tensão pode aumentar ou diminuir, mas nunca cessa. Estranhamente, o corte entre o presente e o
passado, ou melhor, entre o atual e o virtual nunca chega a produzir-se. O virtual irrompe no atual,
o atual revela o virtual; este vaivém entre “a imagem atual” e “a imagem virtual” faz com que ambas
as imagens, sem deixar de se diferenciar, se tornem indiscerníveis. Como resultado desse vaivém,
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vão se cristalizando novas camadas de sentido; podemos vislumbrar assim por que o cristal oferece
uma imagem do tempo.
O que é uma imagem-cristal? [...] a imagem-cristal é a condição para captar uma imagem-tempo direta, no
sentido de que é o Tempo em pessoa o que se vê no cristal [...] se poderia definir a imagem-cristal como
a consolidação de uma imagem atual e uma imagem virtual [...] Se há uma correspondência entre uma
imagem atual e sua imagem virtual, é necessário que, de alguna maneira, a imagem virtual se faça atual e
a imagem atual se faça virtual (Deleuze, 1983-84, aula de 15 de maio)
Cabe ainda perguntar em que condições é possível uma experiência dessa natureza, ou que condições estão associadas a uma experiência assim. Há situações que não parecem sujeitas à cadeia
habitual de estímulos e reações que provocam novos estímulos. São situações em que cessa toda
atividade, todo movimento; momentos em que “já não há nada o que fazer”, seja porque a expressão aluda a uma sensação de fastio ou a uma experiência limite, um estar totalmente sem defesa e
à beira da morte. Parece que em situações assim as barreiras que separam uma coisa das outras e o
passado do presente se romperam, o sujeito experimenta a sensação de estar flutuando e sente que
tudo, enfim, está em seu lugar. Obviamente, não cabe afirmar se a experiência é real ou irreal, se o
que se percebe é verdadeiro ou falso: na hora em que uma pessoa passa por essa experiência, quem
quer que esteja por perto vai pensar que ela está tendo uma alucinação.
Se espera. A ação que já não sou capaz de realizar é substituída por uma estranha faculdade de vidência
— falsa ou verdadeira —, tenho a impressão de “ver” algo, acaso todo meu passado? Nesta situação me
descubro como um vidente, como um visionário. (Deleuze, 1983-84, clase del 15 de Mayo)
Notas bibliográficas
A Sra. Ramsay vê um rubi. Variações sobre o primeiro capítulo de Rumo ao farol, de Virginia Woolf
(1955[1927]). As “variações” apresentadas neste capítulo supõem uma reescritura relativamente
criativa, na linha do sugerido por Roland Barthes ao cunhar, no prefácio de S/Z (1970), a oposição
entre “legível/escrevível” (lisible/scriptible em francês): haveria certas narrativas que, por sua singular textura, só se dão a ler reescritas. Material de consulta: Virginia Woolf Al Faro (Davies, 1989) e
Al Faro de Virginia Woolf (Raitt, 1990).
Momentos de ser. Em Rumo ao farol há significativas alusões ao processo de cristalização que podem ser
abordadas como aproximações a uma forma fiel ao fluxo das impressões e dos afetos. Em seus textos
de ficção, em seus ensaios e em suas anotações cotidianas, Virginia Woolf refletiu amplamente sobre os
desafios de uma escritura de viés impressionista, livre tanto da noção de trama (sobre a distinção entre
trama e enredo, plot e story, em inglês, veja-se Forster, 1927, e Herman e Vervaeck, 2005), quanto de
um significado central. Em Ficção moderna, ensaio escrito em 1919, sete anos antes da publicação de
Rumo ao farol, Woolf adota uma distância crítica do romance convencional. Ao que parece, na época da
redação de Rumo ao farol, ela estava lendo Proust (1954 [1913-1927]) e incorporando algumas intuições
sobre o caráter involuntário e fragmentário de certas recordações (Woolf, 1985 [1907-1940]). Material
de consulta: El tiempo pasa. Virginia Woolf y el post-impresionismo… (Banfield, 2003); Salto al vacío:
las dos estéticas de Al faro (Caracciolo, 2010); Proust, Woolf y la ficción moderna (Lewis, 2008); e
Fuegos y señales en la bruma: El faro de Virginia Woolf (Serres; Adler, 2008).
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Cristal. Como costuma acontecer com outros conceitos deleuzianos, as reflexões do autor francês
sobre o “cristal” estão espalhadas em vários lugares, mas há dois ou três textos que parecem concentrar o fundamental. Entre eles se destaca Cristales del tiempo, capítulo 4 do livro Cine 2: La imagen tiempo (Deleuze, 1985); a ele, acrescentar duas outras fontes: a Geología de la moral, capítulo
3 de Mil mesetas (Deleuze; Guattari, 1980) e três formulações breves mas muito importantes
nas Séries 2, 15 e 22 de Lógica del sentido (Deleuze, 1969); pode-se consultar também um resumo
da noção de “imagem-cristal” apresentado numa aula do curso sobre Cine (Deleuze, 1983-1984).
Por último, sobre a distinção entre “moldar” e “modular” pode-se ver a aula Metal, metalurgia,
música, Husserl, Simondon no curso sobre El Anti Edipo y Mil Mesetas (Deleuze, 1979). Material de
consulta: Caos y control (Kearnes, 2006); Woolf y Deleuze: cine, literatura y tiempo viajero (Skeet,
2008) e El proyecto de film bergosiano de Gilles Deleuze (Totaro, 1999).
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
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O corpo-texto: sobre a convergência entre leitura e biomedicina
The “body-text”: about the convergence between reading and biomedicine
El “cuerpo de texto”: la convergencia entre la lectura y la biomedicina
César Pessoa Pimentel1
Resumo
O artigo pretende analisar a aproximação entre corpo e texto em algumas ramificações da cultura contemporânea, notadamente aquelas que integram o campo biomédico. Trata-se de uma reflexão de caráter teórico apoiada nas possibilidades e interseções entre as obras de Ulrich Gumbrecht, Michel Foucault e Georges Canguilhem. A perspectiva aberta
pelos autores permite que o “corpo-texto”, no qual a medicina contemporânea busca doenças virtuais, seja considerado
uma construção histórica, e a leitura do código genético, uma prática de poder com consequências importantes para o
modo como os indivíduos se relacionam com a doença, o prazer e a morte.
Palavras-chave: corpo, leitura, biomedicina.
Abstract
The article intends to analyze the links between body and text in some branches of the contemporary culture, especially the ones which integrate the biomedical field. It is a reflection of the theoretical possibilities and the intersections
between the works of Ulrich Gumbrecht, Michel Foucault, and Georges Canguilhem. The perspective opened by the
authors allows the “body-text”, in which contemporary medicine searches for virtual diseases, considers it as a historical
building and the genetic code reading, as a practice of power with considerable consequences on how people relate
themselves with the disease, pleasure and death
Keywords: body, reading, biomedicine.
Resumen
El artículo analiza los vínculos entre el cuerpo y el texto en algunas ramas de la cultura contemporánea, en particular
los que integran el campo biomédico. Esto es un desarollo de las posibilidades teóricas y de las intersecciones entre las
obras de Ulrich Gumbrecht, Michel Foucault y Georges Canguilhem. La perspectiva abierta por los autores permite que
el “cuerpo-texto” en que la medicina contemporánea investiga enfermedades virtuales, se considera un edificio histórico y la lectura del código genético, una práctica del poder con consecuencias importantes sobre cómo los individuos se
relacionan con enfermedad, el placer y la muerte.
Palabras clave: cuerpo, lectura, biomedicina.
1. Psicólogo, pós-doutor em Teoria da Comunicação da Escola de Comunicação da UFRJ, professor visitante do Instituto de Psicologia
da UFRJ e professor do curso de psicologia da SEFLU. Contato: [email protected].
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Não é difícil perceber como as noções de código, transcrição, mensagem e informação, tão fundamentais para o estudo e compreensão da linguagem humana, vêm migrando para o campo das
ciências naturais. A força notável do encontro entre biologia molecular, genética e uma orientação
médica preventiva vem fazendo com que a vida e o corpo equiparem-se à informação codificada
geneticamente. Em vez de um conjunto de órgãos e tecidos que degeneram, teríamos uma espécie
de texto que quando mal escrito ou mal interpretado desencadearia enfermidades. Se a comparação
parece forçada, a sentença de François Jacob, renomado biólogo francês, indica sua homologação
científica e cultural: “assim como uma frase constitui um segmento de texto, um gene corresponde
a um segmento de ácido nucleico” (1983:277). Com sutileza, tais categorias foram penetrando na
linguagem cotidiana de modo que se fale correntemente em “código da vida” e de sua “decifração”
sem qualquer surpresa para o indivíduo leigo.
As consequências da aproximação entre corpo e texto vêm sendo observadas e criticadas por uma
gama de historiadores, antropólogos e filósofos. Sem a intenção de explicitar as minúcias de seus
argumentos, mais vale notar o vigor da discussão. O filósofo Georges Canguilhem (1995) pergunta se
a noção de doença hereditária, marcadamente produto do acaso, ou melhor, de uma interpretação
“errada” do código genético, poderia estar nos levando a uma atitude de pura resignação perante a
doença e a morte, instâncias contras as quais a medicina desde sua origem se moveria. Já o antropólogo David Le Breton (2007) denuncia ressonâncias entre o código genético e as ideias platônicas,
onde o corpo com suas fissuras, reentrâncias e fluidos orgânicos, que apontam para a finitude humana, deixa de ter valor. Sociólogos interessados em atualizar a obra foucaultiana no campo biomédico, como Nikolas Rose (2007), consideram médicos geneticistas e aconselhadores genéticos novas
autoridades do “poder pastoral”, mecanismo de dominação ao mesmo tempo piedoso e cruel, pois
ajuda os indivíduos com o custo de lhes manter sob tutela indefinidamente adiada. Dissipando a
inocência com que muitas vezes as descobertas científicas são recebidas, tais questões recobrem de
importância e urgência uma reflexão sobre as equiparações entre corpo e texto.
O presente artigo pretende contribuir para tais reflexões, tornando visível o trabalho de construção
histórica desse “corpo-texto”, bem como de sua versão contemporânea, o “corpo-informação”, que
transborda os limites dos laboratórios ganhando o cotidiano mediante aplicações médicas e meios
de comunicação. O primeiro passo é desfazer a impressão muito presente na atualidade de uma
grande revolução, que desvela os segredos da vida segundo as noções de código, transcrição etc. O
“corpo-texto” é anterior à biologia molecular, já aparecendo nas práticas sociais do século XIX. Em
seguida, trata-se de notar os deslocamentos entre essa versão do “corpo-texto” e a contemporânea,
movida a partir de outro campo semântico e tecnocientífico. E por último, vamos delinear reverberações do “corpo-informação” sobre o modo como os indivíduos passam a se relacionar com a
doença, o prazer e a expectativa de sua morte.
Em todas essas etapas, a leitura, o “ler” o corpo, se evidencia não como prática neutra onde a verdade é trazida à luz, mas em seus aspectos normativos. No ato de diagnosticar sinais e sintomas de
uma doença, ou de mapear seus riscos genéticos, circunscreve-se claramente o normal e o anormal,
se delineando, portanto, a distância entre aquilo que o indivíduo é e aquilo que deveria ser. Daí sua
normatividade: a leitura dos signos e, mais atualmente, dos códigos hereditários não se resume à
constatação daquilo que existe, dizendo simultaneamente como os indivíduos deveriam cuidar de
seu corpo, adiando o prazer através de dietas ou exercícios mediante um contínuo automonitoramento (ORTEGA, 2008a; ROSE, 2007).
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Corpo e linguagem
A leitura do código genético costuma ser tratada como revolução tecnológica, cujas promessas principais residem no aumento da expectativa de vida, detecção de doenças ainda no plano genético,
aprimoramento de drogas terapêuticas e mesmo elucidação das bases orgânicas de alguns transtornos psiquiátricos (ROSE, 2007; LEITE, 2006). Curiosamente não é apenas a ciência e os meios de
comunicação que insistem na associação entre vida e texto; a reflexão acadêmica contemporânea
também o faz. Tornou-se popular certa leitura da obra de Michel Foucault, onde se afirma que
o corpo e os discursos se equivalem2. Interpretações desse teor são frequentemente usadas por
estudiosos de gênero, como Judith Butler, para quem o corpo nada mais seria do que o conjunto
de proposições efetivadas acerca de sua constituição e funcionamento (ORTEGA, 2008b). Antes que
matéria, dotado de sensações, como dor e prazer, o corpo tende a ser desmaterializado e equiparado à linguagem.
Com maior rigor, podemos assinalar algumas diferenças entre a concepção construtivista do corpo
e abordagens científicas, pois a primeira investe criticamente contra a neutralidade do olhar experimental. Onde as pesquisas científicas acreditam descobrir e visualizar, as abordagens construtivistas
apontam os códigos e convenções que, ao mesmo tempo, limitam e fazem ver. Não obstante as
distâncias que os separam, há uma coincidência entre os dois campos: linguagem e corpo aparecem
tão intimamente atrelados a ponto de se confundir em uma espécie de “corpo-texto”.
A delicadeza dessa coincidência e, sobretudo, de seus impasses, vem recebendo particular atenção
na obra de Hans Ulrich Gumbrecht (2010). O autor alemão, originário dos estudos literários sobre
a cultura medieval, vem desenvolvendo novas perspectivas para a compreensão da relação entre
corpo e texto, entre matéria e significado. Seu diagnóstico de base é que a oposição entre uma
dimensão material e corporal e outra que remonta ao significado e ao mental aparece em determinado momento histórico profundamente entrelaçado com a relação dos homens com o texto e
a leitura. Gumbrecht (2010) acredita que na cultura medieval, o conceito de símbolo e, sobretudo,
de representação, não integrava as bases da vida cotidiana3. Estes conceitos somente ganham força
com uma determinada invenção técnica: a prensa de Gutenberg. Permitindo a disseminação dos
textos escritos, a prensa modificou em profundidade uma cultura orientada pela apresentação oral
das criações literárias. Compreende-se melhor o processo pela análise do trovador, figura típica da
Idade Média. Ao invés de ler um texto, o trovador se empenhava em captar a atenção do público
com seu corpo e voz que compareciam enquanto elementos tão importantes quanto as palavras. O
significado não era decifrado, nem apreendido, mas apresentado, contando com a materialidade do
corpo e da entonação daquele que falava.
2. Essas leituras desconsideram a bifurcação estabelecida pelo autor ao final de História da sexualidade, v. I, entre uma abordagem
preocupada com as representações que a cultura faz do corpo e outra que frisa o papel do poder de ampliar, anular ou criar sensações: “não uma ‘história das mentalidades’, portanto, que só leve em conta os corpos pela maneira como foram percebidos ou
receberam sentido e valor; mas ‘história dos corpos’ e da maneira como se investiu sobre o que neles há de mais material, de mais
vivo” (FOUCAULT, 2005:142).
3. Em Produção de presença, o autor apresenta vários indícios dessa ausência, dentre os quais cabe destacar as cerimônias religiosas.
No Cristianismo medieval, cada missa mais do que representar ou simbolizar a Última ceia, apresentava os acontecimentos passados,
de modo a presentificá-los. O passado não era representado, mas experimentado. Outro exemplo contundente é o da cenografia do
teatro medieval. Não havia ainda uma separação nítida entre os corpos dos atores e os corpos da plateia; por isso os atores costumavam pedir licença para entrar e se retirar daquele espaço, que ainda era bem material e não tanto simbólico como se tornará a partir
da introdução das cortinas no palco teatral (GUMBRECHT, 2010).
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
A partir do século XV, a difusão dos textos impressos se acelera e, com isso, a relação entre matéria e
sentido se altera. A importância do corpo declina com a possibilidade de leitura privada, assim como
se acentua a distância entre autor e público. Nesse novo cenário, Gumbrecht (2010) acredita configurar-se uma noção difusa de hermenêutica que aparece na vida cotidiana mesmo antes de o termo
“hermenêutica” se institucionalizar como método e disciplina dedicada à interpretação de textos.
A noção difusa de hermenêutica traz à realidade o que o autor chama de campo hermenêutico. Nele
estão alojados dois eixos: um primeiro, vertical, opõe profundidade e superfície, sendo o organismo
e os objetos que afetam os sentidos meros índices ou superfícies que apresentam imperfeitamente uma essência que habita um espaço aquém ou além do superficial, onde reside o significado. A
expressão depreciativa “isso é superficial” como sinal de mau gosto ou ausência de refinamento
expressa a orientação normativa em jogo. Como se tornará explícito na obra de Descartes, o significado é algo da ordem imaterial, produzido pela mente, enquanto o corpo é composto por uma
outra espécie de substância, dita extensa, a mesma que compõe os objetos no mundo. Esse primeiro
eixo converge com o eixo horizontal, que separa sujeito e objeto. Há igualmente normatividade nesse eixo, sendo desejável o distanciamento entre conhecedor e mundo conhecido para a produção
do saber científico. Convêm notar o ajuste harmonioso entre os dois eixos, de modo que atingir a
essência oculta dos objetos do mundo (seu significado) passa pelo necessário distanciamento tanto
dos corpos físicos exteriores, como da colocação em dúvida das sensações fornecidas pelo corpo
fisiológico do observador.
Corpo e linguagem no século XIX
Ao invés de desmaterializar o corpo sob a forma de discurso, como algumas abordagens construtivistas pretendem, a orientação de Gumbrecht (2010) é resgatar a materialidade do sentido a partir
do corpo e dos suportes tecnológicos implicados na difusão do conhecimento. A importância de sua
análise é dar historicidade ao “corpo-texto”. Não parte da comunhão desses domínios, mas a examina de uma perspectiva histórica. Segundo sua análise, o corpo como superfície a ser lida só passou
a existir com a constituição do campo hermenêutico. Na cultura medieval, ao contrário, o corpo não
significava nem simbolizava; tratava-se de uma presença tão plena de sentido quanto um livro ou
um pensamento.
Enquanto Gumbrecht (2010) estudou a constituição do campo hermenêutico em uma série de práticas que envolvem relações entre corpo, leitura e a invenção da prensa, Michel Foucault (2004)
fez semelhante exploração em relação às práticas médicas. Segundo o autor, a medicina a partir
do século XIX tornou-se profundamente enraizada nos achados da anatomia, não apenas de modo
teórico, mas nas práticas diagnósticas e terapêuticas. O procedimento de abertura dos cadáveres, a
autópsia, tornou-se o eixo central destas práticas, permitindo aos médicos determinar a presença e
desenvolvimento de processos patológicos. Dentro desse modo de pensar e agir, denominado por
Foucault (2004) método anatomo-clínico, as causas de enfermidades, que se expressam na superfície corporal, estão sempre alojadas no interior do corpo. Essa distribuição atende plenamente aos
princípios do campo hermenêutico, com suas noções de interpretação e expressão. A superfície do
corpo não define o que é a doença, na medida em que sua causa habita menos o espaço aparente
e visível do que a profundidade que exigirá a autópsia. Como um intérprete, o médico define um
quadro patológico não somente pela observação dos sinais e sintomas, mas indo além do visível e
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
estendendo o conhecimento pelo exame dos processos inicialmente invisíveis. Por outro lado, as
inflamações dos órgãos internos se expressam na superfície do corpo, fazendo o percurso contrário
da interpretação. Enquanto essa é orientada do exterior para o interior, a expressão, quer se refira
a um afeto, pensamento ou processo patológico, segue fluxo inverso. Não importa sua natureza,
aquilo que se expressa sempre se desloca de um espaço interior recôndito para se refletir em uma
superfície visível.
O alcance desse modelo de conhecimento certamente extrapola a medicina. Em um texto de grande
erudição, Carlos Ginzburg (2007) mostrou que no século XIX três autores provenientes de campos do
saber muito distintos (embora todos tenham tido formação médica) formularam propostas bastante
similares para o estudo do comportamento humano e de suas obras. Um primeiro, Giovanni Morelli,
propôs um método para descoberta de falsificações em obras artísticas, especialmente aplicável
à pintura. Ao invés de se ater aos atributos mais vistosos, o método detinha-se nas características
menores, nos pequenos detalhes, como os lóbulos das orelhas ou unhas. O segundo autor, também
ligado às artes, mas com formação médica é Conan Doyle, conhecido por sua criação literária, o
detetive Sherlock Holmes. Nos livros de Doyle, as investigações seguem os preceitos de Morelli: a
importância está nos pequenos detalhes, indícios imperceptíveis ao observador comum que tem
maior valor do que os grandes atributos. Curiosamente, a orelha é dotada de grande importância
em ambos os métodos, como se pode perceber nesse trecho onde a medicina é evocada: “na sua
qualidade de médico o senhor não ignorará, Watson, que não existe parte do corpo humano que
ofereça maiores variações do que uma orelha” (DOYLE apud GINZBURG, 2007:146). O terceiro autor
é Freud, que não somente tomou contato com a obra de Morelli, como a menciona explicitamente
em “O Moises de Michelangelo”. Freud traça analogias entre seu trabalho clínico de interpretação e
a atenção que Morelli dedica aos traços quase imperceptíveis nas pinturas: “Creio que o seu método
está estreitamente aparentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem por hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco notados ou desaparecidos” (FREUD
apud GINZBURG, 2007:147).
Essas observações confirmam a ideia de aproximação entre corpo e linguagem. Todos os três autores
tentaram mediante pequenos detalhes visíveis chegar ao invisível, ou seja, à intenção, ao desejo, aos
pensamentos daquele que age. É certamente Freud o mais representativo do modelo interpretativo,
onde o os sintomas histéricos inscritos no corpo, como uma cegueira, uma afasia ou uma paralisia,
são remontados a outro domínio que extrapola o corpo. Portanto, já no século XIX encontramos o
“corpo-texto”, que se apresenta enquanto portador de sinais para os quais a cultura designa autoridades capazes de interpretar e decifrar o sentido. E pode-se perceber o vigor de tal modelo observando a variedade de profissionais e ciências direcionadas para interpretação dos sinais inscritos
no corpo e comportamento do indivíduo: craniometria, frenologia, testes projetivos e expressivos,
decifração da personalidade através da escrita, interpretação dos sonhos e sintomas; métodos com
os quais estão envolvidos não somente médicos e detetives, mas também psicanalistas e psicólogos
(SENNETT, 1989).
Corpo e linguagem na atualidade
No século XX, as relações entre linguagem e doença continuam a se intensificar. A concepção do corpo como arquivo legível se radicaliza através da aplicação da teoria da informação à fisiologia. Essa
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teoria tem em Claude Shannon um de seus expoentes, sendo desenvolvida na primeira metade do
século XX. Trata-se de uma concepção instrumental da linguagem, onde se visa somente comunicar,
tornar transparente uma mensagem transmitida por uma fonte e destinada à outra pessoa ou dispositivo técnico4. Muito longe se está da experiência de abertura do mundo relacionada pelos filólogos do século XIX, que atribuindo à linguagem o papel de formar uma visão de mundo, tornavam
a tradução uma tarefa ética, colocando em contato duas formas de agir e compreender o mundo
radicalmente diferentes (HABERMAS, 2000).
A partir da concepção da linguagem como atividade puramente instrumental será moldado um novo
entendimento das patologias. Com ela, surge a noção de doença como erro de informação, causada
por uma “má interpretação” do código genético. Cabe notar que a formação do “corpo-informação”,
a versão cibernética do “corpo-texto” do século XIX, vai sendo paulatinamente moldada segundo
três etapas. Como esclarece Georges Canguilhem (1995), a teoria da informação possui um papel
importante, mas não exclusivo em sua manufatura. Não bastou que a natureza fosse concebida
como sistema que porta códigos e mensagens para que a medicina aproximasse corpo e linguagem
de modo inovador. O processo de construção do “corpo-informação” no século XX se deu modo
paulatino e necessitou de várias ciências para ser efetivado.
O processo que conduz à construção do “corpo-informação” é paralelo ao entendimento das doenças como erro de interpretação. Até então as doenças seguiam dois grandes modelos: o do desequilíbrio interno, amparado na tradição hipocrática dos humores, e o de agente patogênico, presente
desde as práticas rituais que retiravam do corpo do paciente um objeto ao qual se atribuía a causa
do adoecimento. A partir da primeira metade do século XX, uma nova concepção do patológico
começa a se impor (CANGUILHEM, 1995).
O primeiro passo de sua constituição tem raízes na fisiologia de Cannon, divulgada por volta de 1930
na obra “A sabedoria do corpo”. Cannon expõe o conceito de homeostasia, ou seja, a necessidade
de um constante restabelecimento das funções da vida orgânica através de sistemas de autorreguladores. Nesse estágio de elaboração, a concepção de erro não aparece explicitamente, mas a base
de seu aparecimento está preparada, ou seja, o entendimento do corpo como um sistema dotado
de inteligência capaz de corrigir abalos provocados por perturbações provindas do meio exterior. É
também uma fase nas quais analogias entre organismos e sociedades estão muito presentes.
Na etapa seguinte, desenvolvida por volta de 1950, tal inteligência é acolhida de forma mais crítica:
o corpo pode ser sábio, autorregulado, mas comete enganos com muita frequência. Canguilhem
(1995) considera Hans Seyle e Reilly os responsáveis por essa elaboração. Ambos os pesquisadores
conferem pouca importância à localização espacial do agente patogênico, dando maior ênfase à
noção de perturbação de funções. O trabalho de Seyle versa sobre síndromes patológicas não específicas, nas quais os sintomas são gerados pela reação adaptativa a qualquer tipo de estimulação
brusca, seja interna, como uma descarga hormonal, externa, como um traumatismo, ou psíquica,
como uma emoção reiterada. O organismo adoece pelo prolongamento de seu estado de prontidão.
De início, tais reações visam um estado de defesa, uma restauração do equilíbrio, no entanto, a busca constante desse estado gera um esgotamento.
4. Nessa concepção, há cinco termos importantes: a fonte, que produz uma mensagem, o codificador ou emissor, que transforma a
mensagem em sinais, o canal, o meio utilizado na transmissão da mensagem; o decodificador ou receptor, que reconstrói a mensagem
a partir dos sinais e finalmente, a destinação, pessoa ou aparelho ao qual a mensagem é destinada (Matellart; Mattelart, 2008).
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Com essas constatações, a noção de sabedoria do corpo é discutida, pois é o próprio sistema de autorregulação que conduz às síndromes estudadas por Seyle. Intuitivamente, os patologistas começaram
a se referir a esses fenômenos como erros fisiológicos, atribuindo ao organismo uma espécie de finalidade ou de cálculo que não foi bem realizado. Nessa segunda etapa, o termo erro já aparece explicitamente, ainda que sob forma intuitiva. Somente quando o vocabulário da biologia moldar-se segundo
os princípios da teoria da comunicação e da cibernética, a noção de erro assumirá sua maturidade.
Deve-se ponderar a originalidade dessa concepção do patológico: desde 1909, o termo erro hereditário já era usado para designar alterações inatas do metabolismo. Entretanto, ainda repousava na
engenhosidade de uma metáfora, sendo promovido a uma consistente analogia, depois dos estudos
célebres de Francis Crick e James Watson sobre a dupla hélice do DNA. Tais pesquisas sobre a dupla
hélice enviaram a biologia para o plano molecular, saindo da escala dos órgãos e tecidos para a da
célula e molécula. Nesta escala, encontram-se sequências de bases nitrogenadas que constituem o
código genético de cada indivíduo. O enquadramento da vida é nitidamente inspirado pela teoria da
informação: noções, como código, mensagem e tradução orientaram, e há sinais que ainda orientam, o entendimento dos mecanismos de transmissão da hereditariedade.
Não tardou para que a patologia fosse enviada ao plano molecular através do arsenal teórico da teoria da informação. Assim, uma doença como anemia falciforme segue uma lógica, que não é mais a
da degradação, mas a da má interpretação do código, já que se desenvolve pela substituição de um
único aminoácido na cadeia da proteína que forma a hemoglobina, tornando-a disforme.
O problema reside, portanto, na transmissão de informação, na decodificação das mensagens inscritas no material hereditário. Submetida aos princípios da comunicação, a saúde é concebida sob
nova normatividade, como correção genética, enquanto a patologia resultaria de uma má interpretação, alertam Georges Canguilhem (1995) e Lucien Sféz (1996).
Corpo e indivíduo
A comparação entre corpo e linguagem vem sendo ampliada dentro de alguns desenvolvimentos
contemporâneos das ciências biológicas, conduzidos pelo encontro entre biologia molecular, genética e uma orientação preventiva em medicina. Para a compreensão da singularidade do presente, é
interessante comparar dois textos que tratam da possibilidade de se tratar a enfermidade genética.
O primeiro publicado originalmente em 1963, do filósofo Georges Ganguilhem é bastante cético em
relação à possibilidade de a medicina agir sobre os mecanismos genéticos. O “corpo-informação”
seria a ruína do ímpeto que moveu a medicina desde sua origem e que lhe confere um estatuto ético: combater a doença e adiar a morte. É desse modo que o autor expressa sua resignação:
Uma hemoglobina pode transmitir informações erradas, assim como um manuscrito pode também transmitir informações erradas [...], a doença deixa de ter qualquer relação com a responsabilidade individual.
Não há mais imprudência, não há mais excesso a recriminar, nem mesmo responsabilidade coletiva, como
em caso de epidemia. (CANGUILHEM, 1995:253)
Concebendo a doença como erro, a carga afetiva é dissipada: no erro, não há nada contra o que
lutar, o mal é tão radical que não está relacionado a qualquer contingência que possa ser evitada.
Como se no fundo, não houvesse qualquer má intenção, mas somente um grande mal entendido. É
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muito interessante notar o contraste entre a conclusão de Canguilhem e outro texto, publicado exatamente trinta anos depois. Neste último, voltado para a medicina preditiva, o tom é bem mais otimista:
A medicina preditiva não se dirige a doenças, mas a sujeitos sãos. Seu alvo: conduzir cada indivíduo, levando em conta a natureza de seu patrimônio hereditário e de seu ambiente, a conservar uma boa saúde até
a idade mais avançada de suas vidas. (RUFFIÉ, 1993:61)
A ideia de medicina preditiva é bastante intrigante. Predizer e prevenir não teriam, segundo o médico Jacques Ruffié, o mesmo sentido. A prevenção implica intervir ou diagnosticar precocemente
doenças já formadas, como por exemplo, detectar através do exame do líquido amniótico uma trissomia do cromossomo 23, que irá gerar sintomas da Síndrome de Down. O exercício de predizer
constituiria um avanço frente à prevenção: trata-se de detectar enfermidades que ainda não se formaram e que talvez jamais venham a se formar. Enquanto o exame do líquido amniótico produziria o
saber antecipado de um evento que irromperá no futuro, o instrumental da medicina preditiva, com
seus testes genéticos, não aborda doenças já constituídas, mas estipula probabilidades. Em suma,
ela é uma medicina de doenças possíveis ou virtuais.
Trata-se aqui de uma medicina do risco, mais especificamente do risco genético. A leitura dos códigos
genéticos não pretende decifrar uma profundidade orgânica anormal, mas estipular probabilidades
de adoecimento. O saber que é extraído da leitura do “corpo-informação” não aborda um evento
presente ou um cenário futuro evidente. Os cenários futuros da medicina preditiva são permeados
pela incerteza. Informada sobre a probabilidade de desenvolver câncer de mama, uma mulher deveria optar por extirpar seus seios mesmo sabendo que o quadro patológico é meramente provável?
Aqueles que sabem que seus pais foram dependentes de álcool deverão evitar qualquer contato
com bebidas? Os casais nos quais algum membro tenha histórico de doenças genéticas deverão
evitar ter filhos?
Se todo indivíduo porta genes “defeituosos”, a leitura do “corpo-informação” nos coloca sob constante ameaça, implicando monitoramentos cada vez mais precoces5. É com a dimensão de incerteza
que somos confrontados e impelidos a cuidar com grande antecipação de nossos hábitos. Se a finitude é inexorável, a medicina preditiva nos incita a pensá-la como adiável, colocando a responsabilidade pelo adoecimento sob os ombros dos indivíduos. Mesmo inapelável, a degradação biológica
se abre tremendamente, ainda que em pequenos pontos, à ação humana.
A possibilidade de controle das doenças é contrabalançada com o dever de intervir; a responsabilidade aumenta juntamente com o poder técnico de ler o “corpo-informação”. Quanto mais detalhes
for possível obter dessa leitura, maior a obrigação individual de construir seu futuro e adiar a finitude. É intrigante como essa leitura envolve relações complexas com a responsabilidade e o prazer.
Quando o corpo se aproxima de ser uma realização da vontade, nos tornamos simultaneamente
onipotentes e frágeis. Onipotentes, porque o domínio biológico é visto como um projeto individual;
frágeis porque tudo é referido ao nosso controle e responsabilidade e o fracasso não é mais descul5. O mercado dos testes genéticos está proliferando, com valores menores, permitindo o uso para um maior número de indivíduos.
Empresas como a “23andme” fornecem o mapeamento dos riscos genéticos por aproximadamente quinhentos dólares. Um dos fundadores de uns dos programas mais populares de busca na internet, Sergey Brin, após realizar o procedimento pela “23andme”, foi
informado que portava uma mutação no gene LRRK2 que amplia a probabilidade de ser acometido pela doença de Parkinson. Mesmo
a probabilidade estar situada em uma gradiente entre 20% e 80%, Sergey optou por modificar sua dieta e aderir a exercícios que,
segundo estudos, previnem a doença (CINQUEPALMI, 2010).
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pável. Mas deve-se ponderar que, ao mesmo tempo, as explicações genéticas podem oferecer uma
libertação da responsabilidade, como frisa Costa (2004). Quando hipóteses científicas enviam o comportamento ao plano genético, o indivíduo pode muito bem se sentir ileso de acusações morais. Caso
uma explicação genética para o homossexualismo adquira consistência no campo científico e cultural,
é provável que os indivíduos culpados pela orientação de seu desejo experimentem maior alívio.
O imperativo de cuidado está imerso em semelhantes complicações. Se o adoecimento informado
pela leitura do código genético é apenas provável, a abdicação do prazer torna-se um dilema, sobretudo na cultura contemporânea orientada por uma satisfação quase imediata dos desejos. Vaz indica uma dupla incerteza que acomete o indivíduo frente ao risco: “de um lado, o sofrimento futuro é
meramente possível; de outro, nada garante ao agente no presente que ele terá o mesmo sistema
de valor do observador que ele será no futuro” (2006:54). Dado que o controle do corpo envolve
sempre uma renúncia, poderá haver arrependimento pela constrição efetuada no presente, pois
esta projeta não somente uma situação futura, mas também o sistema de valores daquele que faz
abdicações. Em outros termos, o asceta em um determinado momento de sua vida poderá se converter em hedonista e, dessa forma, o indivíduo que abdica de seu prazer em troca da longevidade
sempre estará assombrado pela decisão tomada no passado.
Neste sentido, podemos dizer que a leitura do “corpo-informação” desencadeia certas mudanças da
relação do indivíduo frente à morte, doença e prazer. Em torno da nova articulação entre corpo e linguagem, gravitam decisões orientadas não somente pela expectativa da degradação biológica, mas
igualmente pelo temor de um gozo insuficiente, de um desperdício das oportunidades de se ter prazer.
Envio: 2 fev. 2011
Aceite: 3 mar. 2011
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Evidências da neurociência sobre a habilidade de leitura
Gislaine Machado Jerônimo1
DEHAENE, Stanislas. Reading in the Brain: The Science and Evolution of a Human Invention. Nova York:
Viking Penguin, 2009.
Neste exato momento, você está movendo os seus olhos sobre uma página branca cheia de marcas
pretas e o seu cérebro está realizando uma fantástica façanha — a leitura. Reading in the Brain: The
Science and Evolution of a Human Invention [Leitura no cérebro: a ciência e evolução de uma invenção humana] descreve uma pesquisa pioneira da neurociência, a respeito dessa habilidade linguística, que é relativamente recente, datando de uns 5 ou 10 mil anos.
O livro foi escrito por Stanislas Dehaene — professor do Collège de France e diretor da Unidade de
Neuroimagem Cognitiva do INSERM, na França. Dehaene dedica-se ao estudo das funções cognitivas
humanas, bases neurais da leitura e consciência. Segundo o autor, nossos cérebros não evoluíram
para ler e, por meio dessa obra, ajuda a solucionar tal mistério.
O texto faz uso de recursos visuais, para guiar a leitura, através de figuras que mostram a anatomia
cerebral e orientam sobre as divisões dos lobos e regiões do cérebro. São oito capítulos, divididos
em subseções, que compõem o corpo do livro. O primeiro deles parte do questionamento de como
nós lemos. O segundo, a partir de evidências das técnicas de neuroimagem, mostra quais as regiões
cerebrais estão envolvidas no momento da leitura. O paradoxo da leitura é tratado no Capítulo 3.
Os capítulos 4 e 5 versam a respeito da invenção e aprendizado da leitura. Já no Capítulo 6, o foco é
uma patologia dessa habilidade: a dislexia. Por fim, o sétimo e oitavo capítulos retratam a leitura e
simetria, assim como a natureza da relação entre o aprendizado cultural e o cérebro. Esses capítulos
vêm precedidos de uma introdução que aborda a nova visão científica da leitura e são finalizados
com uma conclusão que faz referência acerca do futuro da mesma. A seguir, serão tecidas algumas
discussões mais detalhadas a respeito de cada capítulo, seguidas de uma apreciação geral.
Na introdução, o autor instaura alguns questionamentos sobre a forma como são captadas as palavras, as dificuldades e estratégias de leitura, a relação que se estabelece entre o sistema biológico
das sinapses e o universo das invenções culturais humanas, o enigma da leitura feito pelo cérebro
primata, entre outros. Ainda nesse tópico, é exposto o propósito do livro de estender os conhecimentos sobre os recentes avanços da ciência da leitura, a fim de que pais, professores e políticos
percebam que há uma lacuna entre os programas educacionais em relação ao que dizem os achados
mais recentes da neurociência e, desse modo, possam ter acesso a tais informações, a fim de que
elas não fiquem restritas à comunidade científica. Por fim, são tecidas considerações sobre as questões que serão trabalhadas ao longo dos capítulos, através de um guia de leitura.
O Capítulo 1 intitulado “How do we read?” (Como nós lemos?) trata da forma como a leitura é feita.
Primeiro, apresenta o modo como os olhos decodificam as letras e aborda o problema das invariantes da leitura. Ao mesmo tempo em que trata das semelhanças, diferenças e limitações dos sons
das palavras, observa o fenômeno da leitura silenciosa. Como exemplo da rivalidade entre o ler pelo
1. Mestranda em Linguística na PUC-RS. Contato: [email protected].
LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
som e pelo significado que reflete no cérebro do leitor, cita o caso do Mandarin, em que cada sílaba
pode se referir a dezenas de diferentes conceitos. Encerra o capítulo com explicações referentes ao
dicionário mental e diferentes modelos de acesso ao léxico.
No Capítulo 2 “The Brain’s Letterbox” (A caixa de letras do cérebro), um capítulo extenso, o autor
parte da descoberta do ano de 1862, pelo neurologista Joseph-Déjerine, referente às áreas cerebrais
recrutadas à leitura e vai ao encontro de observações mais recentes. Dehaene, ao longo do capítulo, discorre sobre o funcionamento de uma área cerebral bastante específica que recebe grande
ativação no momento da leitura e fica localizada no hemisfério esquerdo do córtex. Essa área é
visualizada por meio das modernas técnicas de neuroimagem, as quais permitem que in vivo (no
momento da leitura) seja mostrada a ativação de diferentes áreas cerebrais. Em seguida, apresenta
as vantagens da técnica de Imageamento por Ressonância Magnética Funcional (FMRI) em relação a
Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET). Por fim, Dehaene postula duas rotas cerebrais de leitura,
uma para sons da fala e outra para palavras escritas. Porém, no reconhecimento visual, identifica,
em leitores do inglês e japonês, idênticas áreas ativadas.
O Capítulo 3 “The Reading Ape” (A leitura do macaco) focaliza o paradoxo da leitura, ou seja, a relação entre o que seria preciso e os mecanismos que estão biologicamente disponíveis no cérebro do
leitor. Trata das imperfeições dessa relação, revelando que as características peculiares ao sistema
visual do primata explicam o porquê a leitura não opera como um escâner rápido e eficiente.
No Capítulo 4 “Inventing Reading” (Inventando a leitura), Dehaene segue explanando o desenvolvimento histórico da escrita, que vai das inscrições sumerianas, dos hieróglifos egípcios até os alfabetos gregos e romanos, e os caracteres chineses. Fato curioso é que no alfabeto semítico, apenas as
consoantes eram transcritas e isso tornava a leitura complicada e até mesmo ambígua. Entretanto,
quando as vogais foram incorporadas à escrita alfabética, o sistema ficou mais compreensível, facilitando assim um pouco a leitura.
Já no Capítulo 5 “Learning to Read” (Aprender a ler), o autor se atem ao exame de como uma criança
aprende a ler. Neste capítulo, Dehaene explica os três principais estágios que permeiam a aquisição
da leitura: estágio pictórico, fonológico e ortográfico. Destaca ainda que os circuitos do cérebro se
alteram durante estes estágios, de especial modo aqueles ligados à área de caixa de letras. Orienta,
por fim, a escola a explorar esse conhecimento, apresentando sugestões não só para professores,
mas também para pais que se empenham na tarefa de ensinar a leitura a seus filhos. Sugere que os
esforços se concentrem na compreensão, por parte da criança, dos diferentes fonemas que representam cada letra ou grafema do alfabeto.
O capítulo seguinte (seis) “The Dyslexic Brain” (O cérebro disléxico) trata de um problema do aprendizado da leitura — a dislexia. Aborda o conceito, assim como seus dramáticos sintomas e efeitos,
trata ainda da sua base cerebral e das possibilidades de cura.
“Reading and Symmetry” (Leitura e simetria), Capítulo 7, diz respeito às inversões esquerda-direita.
Escrita espelhada é a forma como se denomina a inversão das letras, isto é escrever de trás para
frente. Tal processo ocorre em todas as culturas, incluindo China e Japão, pelas crianças nos primeiros estágios de letramento e não é uma confusão específica aos disléxicos. Mais tarde, para aprender a ler e processar as diferenças de “b” e “d” como letras distintas, no caso da escrita alfabética,
elas devem desaprender as generalizações espelhadas. Dehaene cita Leonardo da Vinci como um
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
dos maiores peritos nas imagens espelhadas e, ao longo do capítulo, explica como se dá o processamento visual e a simetria dos cérebros para a ocorrência desse fenômeno.
Por fim, o Capítulo 8 “Toward a Culture of Neurons” (Em direção à cultura dos neurônios) retorna à
ideia de que, mesmo com as dificuldades, a espécie humana é a única capaz de ler. Dehaene argumenta que a leitura é limitada por estruturas cerebrais inatas, fixas, com pouca flexibilidade, apenas
o suficiente para permitir o surgimento dessa habilidade sem precedentes; em oposição ao que
dizem os modelos da ciência social, os quais pregam que é por meio da cultura que todo o conhecimento é transmitido ao cérebro, visto este ser uma tabula rasa.
Na conclusão, intitulada “The Future of Reading” (O Futuro da leitura), o autor reitera o caráter
introdutório da obra. Reafirma o objetivo de estender os novos achados da neurociência à comunidade escolar, a fim de que pesquisadores e professores possam juntamente desenvolver experimentos pedagógicos apropriados às reais características dos educandos e as salas de aula possam ser
laboratórios de pesquisa. Como fechamento, ele instiga o pensamento do leitor para a produção de
novas formas de ensino — a “neuropsicopedagogia”, visando assim uma aproximação mais concisa
entre ciência e ensino.
As referências bibliográficas da obra são um bom índice para aqueles que desejam se aventurar mais
intensamente no conhecimento da leitura. Também é disponibilizado no final da obra um glossário
com terminologias características do tema.
Cada capítulo inclui exposição dos fenômenos de forma detalhada e por meio de exemplos. Dehaene mostra as drásticas diferenças dos cérebros letrados e iletrados, assim como o impacto dos
ganhos cognitivos que advêm do ato de ler. Ato esse, que, ao mesmo tempo, pode caracterizar a
perda da habilidade do diálogo interativo. Sócrates, na antiguidade clássica, já temia por isso e, de
fato, os meios de comunicação formados pela fala foram drasticamente remodelados pelo advento
da escrita. Entretanto, nada impede que os dois formatos coexistam.
Ressalta-se que este livro parte de questionamentos bem pontuais, os quais servem de guia para o
desenrolar da obra e sem abrir mão da densidade teórica, apresenta estudos da neurociência cognitiva de forma didática e pertinente. Tal transparência permite que Reading in the Brain seja uma
obra sedutora, indicada não só a especialistas da área, mas, sobretudo, a um público empenhado
em compreender mais a respeito do assunto.
Para finalizar, salienta-se que Stanislas Dehaene concedeu uma entrevista à revista Scientific American de 17 de novembro de 2009, disponível na internet (http://www.scientificamerican.com/article.
cfm?id=your-brain-on-books) e o autor também possui um site (www.readinginthebrain.com)com
informações sobre o livro, onde podem ser encontradas as figuras utilizadas — em colorido e de
tamanho ampliado. Ambos os recursos servem de apoio ao leitor que tenha interesse em obter mais
informações a respeito da pesquisa sobre como se dá a leitura no cérebro.
Envio: 27 set. 2010
Aceite: 21 jan. 2011
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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.
Consultores AD HOC (número 1)
Constam da lista abaixo: (1) os consultores que avaliaram os trabalhos publicados no primeiro número (2010) da LER, independentemente da data da emissão da avaliação; (2) os consultores que avaliaram trabalhos que receberam, durante o ano de 2010, parecer final de rejeição para publicação
por parte da Comissão Editorial, independentemente da data da emissão da avaliação. (Números
entre parênteses após o nome indicam o número de pareceres emitidos pelo consultor, caso tenha
emitido mais de um no período.)
Alberto Cipiniuk (2) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Ana Elisa Ribeiro – Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG)
Ana Maria Sá de Carvalho – Universidade Federal do Ceará
André Moura (2) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Barbara Jane Necyk – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Benedito Antunes – Universidade Estadual Paulista
Carla Glavão Spinillo– Universidade Federal do Paraná
César Pessoa Pimentel (3) – Faculdade de Ciências Médicas e Paramédicas Fluminense Clea de Oliveira – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Daniel Coelho – Universidade Federal de Sergipe
Denise Portinari – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Ebe Maria de Lima Siqueira – Universidade Estadual de Goiás
Eliane Hatherly Paz – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Evando Nascimento – Universidade Federal de Juiz de Fora
Goiandira Ortiz – Universidade Federal de Goiás
Guilherme Xavier (2) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Henrique Rodrigues – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Hugo Ferreira (2) – Universidade Federal Rural de Pernambuco
Índia Mara Martins – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Janet Sternberg – New York University
Jorge de S. Araújo – Universidade de Feira de Santana
José Hélder P. Alves – Universidade Federal de Campina Grande
Leandro Salgueirinho – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Leonardo Trotta (2) – Unicarioca e Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Lidia Eugenia Cavalcante – Universidade Federal do Ceará
Luciana Claro – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Marcelo Santana – Universidade Federal Fluminense
Marcelo Soares de Andrade – ONG Humanizante
Maria Afonsina Ferreira Matos – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Maria Cristina Monteiro Pereira de Carvalho – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Maria Elizabeth Chaves de Mello – Universidade Federal Fluminense
Maria Elvira Charria – Centro Regional para el Fomento del Libro en América
Maria Lilia Simões – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Maria Zaira Turchi – Universidade Federal de Goiás
Marly Amarilha – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Marta Morais da Costa – Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Monica Moura – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
Nanci Gonçalves da Nóbrega – Universidade Federal Fluminense
Nilton Gamba Junior – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Patrícia Constâncio – Prefeitura Municipal de Blumenau/AMEL
Patrícia Kátia da Costa Pina (2) – Universidade do Estado da Bahia
Paula Grenadel Leal – Universidade Federal Fluminense
Pedro Sagae – Universidade de São Paulo
Priscila Farias – Universidade de São Paulo
Rafaela Teixeira Zorzanelli (2) – Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Renata Junqueira – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
Ricardo Artur Pereira de Carvalho – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Ricardo Oiticica (2) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Ricardo Triska – Universidade Federal de Santa Catarina
Rogério da Silva Lima – Universidade de Brasília
Romulo Matteoni (2) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Rosana Kohl Bines – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Rubén Pérez-Buendía – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Sandra Maria Pereira do Sacramento – Universidade Estadual de Santa Cruz
Santinho F. de Souza (2) – Universidade Federal do Espírito Santo
Sylvia Maria Trussen (2) – Universidade Federal do Pará
Tânia Cristina F. Ulhoa (2) – Faculdade UNIPAC de Educação, Estudos Sociais e Ciências Jurídicas de Uberaba
Valéria S. Medeiros (2) – Universidade Federal de Tocantins
Vera Aguiar – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Virgínia Cavalcanti – Universidade Federal de Pernambuco
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