Fechar - Revista Voos

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Fechar - Revista Voos
LETRAS / LINGUÍSTICA
HISTÓRIA
GEOGRAFIA
POLIDISCIPLINAR ELETRÔNICA DA FACULDADE GUAIRACÁ
Caderno de
Linguística, Letras
e Arte
INTERDISCIPLINAR
ENGENHARIAS I
ISSN 1808-9305
VOOS
REVISTA
Estudos Literários
VOOS
Faculdade Guairacá
Guarapuava - PR
2.01
[JULHO 2010]
Os textos são de responsabilidade de seus autores. ARTIGOS ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS... Carlos Augusto Costa IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO ............................................................................................................................................. Rogério de Almeida LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS.................... Cláudio José de Almeida Mello A UCRANIEDADE NA POÉTICA DE TARÁS CHEVTCHENKO E HELENA KOLODY.......................... Rosana Gonçalves 3 21 38 52 Os textos são de responsabilidade de seus autores. ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS Carlos Augusto Costa 1 RESUMO: Este trabalho analisa e interpreta a narrativa ficcional Carapintada (1993), de Renato Tapajós, procurando avaliar a atitude de resistência das personagens e seu compromisso ético com a memória da violência provocada pela Ditadura Militar brasileira (1964‐1985). Palavras‐chave: Memória. Resistência. Violência. Testemunho. “Os autênticos artistas do presente são aqueles em cujas obras o horror mais extremo continua a tremer”. Theodor W. Adorno “O que seria de mim / se eu não tivesse o meu sonho / aprisionado no chão / que germinou esse medo”. Taiguara No momento em que escrevo este texto, três canais abertos de televisão exibem três programas de grande audiência. Eles têm em comum, em alguns quadros, o objetivo de testar a capacidade de resistência dos participantes em situações que lembram práticas de tortura. Em todos os casos, o apelo à violência física e psicológica é dominante, mesmo que esta seja escamoteada pelo efeito do espetáculo. Por dinheiro ou fama (na maioria das vezes efêmera) os participantes dançam por horas ininterruptas; são pendurados pelas roupas íntimas em guindastes até que elas se rompam; rastejam e andam de joelhos em movimento circular até que, com as pernas travadas, os pés calejados, os cotovelos e joelhos em “carne viva”, corpo e mente não resistem à dor e sucumbem, para o deleite e admiração dos espectadores. Indivíduos torturados ao vivo para pessoas do Brasil e do mundo assistirem sem comoção, apenas curtindo o saco de pipocas e o refrigerante ou cerveja que patrocina o programa. A lista de programas de entretenimento desta natureza é longa, incluindo‐se aí diversos filmes e desenhos animados, até mesmo quadros humorísticos que
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Aluno de Mestrado do Programa de Pós‐Graduação em Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Jaime Ginzburg. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq. Contatos: [email protected]. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS parodiam o sofrimento de grupos sociais, ou de uma nação inteira, como no caso do filme A taça do mundo é nossa, protagonizado pelos humoristas do programa Casseta e Planeta. No geral, essas produções não apenas incitam de alguma forma o ser humano a praticar violência e não refletir criticamente sobre ela, como também levam as pessoas a encarar a violência como algo banal, digno de piada. A expressiva audiência alcançada no momento de sua exibição ratifica a crise dos padrões de gosto e a falta de conscientização de grande parte da população brasileira em relação a diversas formas de violência que há algumas décadas foram usadas como instrumentos de repressão militar. Uma significativa parcela da recente produção cultural nacional tem contribuído substancialmente para a reprodução dessas práticas que, mesmo com o fim da ditadura, continuam presentes em diversos setores da sociedade. E muitos cidadãos não se dão conta dessa continuidade, tratando os casos aparentemente insignificantes como mero acaso do destino. Para o crítico Idelber Avelar, o que se observa muito disseminado nos países latino‐americanos que passaram por processos ditatoriais, especificamente no Brasil, é uma espécie de “luto triunfante” (AVELAR, 2003, p. 161). Com esta expressão o autor se refere à ilusão de se acreditar que se está recuperado das perdas provocadas pelas ditaduras na América Latina. Essa ilusão, muito alimentada pelo espírito festivo, impede que a sociedade tome consciência de que, na verdade, o luto ainda permanece. Trata‐se de um ofuscamento da visão e da memória que promove a repetição de práticas violadoras dos direitos humanos em escalas cada vez mais alarmantes. De acordo com Renato Janine Ribeiro (1999, p. 11‐12), o Brasil passou por dois traumas coletivos ao longo de sua formação: o violento processo de colonização e os atos de crueldade provocados pelo sistema de escravidão. Para ele, esses traumas ainda não foram completamente superados e continuam presentes nas estruturas de organização social brasileira, a espera do “ajuste de contas” com o passado. Além desses, outros eventos históricos ocorridos no Brasil podem ser apresentados a partir da perspectiva de Ribeiro, principalmente no que se refere ao trauma coletivo, entendido aqui como um acontecimento histórico que provoca descontinuidade no funcionamento das instituições sociais, e que pode acontecer quando há uma inadequação entre expectativas sociais e comportamentos institucionais em uma determinada sociedade. Partindo deste ponto de vista, é possível afirmar a Ditadura Militar ocorrida no Brasil entre os anos de 1964 e 1985 pode ser entendida como um evento que desestabilizou as relações entre sociedade e instituições. Suas práticas de repressão, censura e tortura promoveram descontentamento entre os setores de oposição. Para Roberto Da Matta, todas as formas de organização social são historicamente controladas por meio do uso da violência. Esta é parte constitutiva da condição humana e é praticada a partir dos mais variados instrumentos e mecanismos de manutenção do poder sobre a vida em sociedade. No caso VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS brasileiro, o sociólogo afirma que, além de constitutiva, a violência tem função normatizadora, com alto grau de valoração por diversos setores da sociedade que legitimam seu uso em situações específicas, principalmente quando o objeto de interesse se constitui a partir do ponto de vista das classes dominantes. Uma tomada de posição crítica em relação a esta questão não permite meio‐termo ou relativizações: “se não é denúncia, é elogio” (DAMATTA, 1982, p. 12‐13). O século XX é caracterizado por Eric Hobsbawm como uma “era de catástrofe” (HOBSBAWM, 1995, p. 16). Em uma dimensão planetária, viveu‐se a angústia da emergência de sistemas de governo fascistas e totalitários, o que gerou consequências devastadoras, como a destruição de cidades inteiras e a aniquilação de milhares de pessoas, dentre elas, aproximadamente seis milhões de judeus. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, assistiu‐se a ascensão de duas superpotências (Estados Unidos e União Soviética), que passaram a disputar o controle do mundo até o fim da década de 1980. O clima, nestas circunstâncias, só poderia ser de medo e perplexidade. Paralelo a esses acontecimentos, o Brasil passaria por dois momentos políticos caracterizados pelo autoritarismo e suas consequentes práticas de violência que provocaram desordem no funcionamento de suas instituições sociais. O primeiro diz respeito à implantação da ditadura do Estado Novo (1937‐1945), comandada por Getúlio Vargas. O segundo momento, o mais longo, refere‐se à Ditadura Militar iniciada em 1964 e que se estendeu até 1985. Momentos diferentes que possuem vários aspectos em comum, como a proibição da liberdade de expressão, cassação de mandatos políticos, censura dos meios de comunicação, tortura e assassinato de opositores ao regime. A restituição da democracia no Brasil não significou o desaparecimento das atrocidades provocadas principalmente pela última ditadura. Ao contrário, observa‐
se a continuidade de muitas de suas práticas nos diversos setores sociais, o que tem trazido para o centro das atenções da intelectualidade brasileira atual uma série de discussões pautadas nas atitudes a serem tomadas como forma de impedir a repetição dessas práticas. Com isso, uma pergunta se lança diante de nós: o que tem feito a produção cultural brasileira, sobretudo a voltada para o público infanto‐
juvenil, para a preservação da memória e conscientização sobre seu passado recente? No que concerne ao campo literário, é de se reconhecer o compromisso social de muitos escritores que produziram e têm produzido excelentes obras sobre os horrores do regime militar. Ao abordar questões relevantes sobre os violentos anos de ditadura, esses escritores desempenham um papel importante na formação do país, principalmente no tocante à recuperação mnemônica de um passado conflituoso, como forma de contribuir para o seu não esquecimento e, assim, evitar que se repita. É o caso de Milton Hatoum (Cinzas do Norte), Raduan Nassar (Lavoura Arcaica) e Luis Fernando Veríssimo (O condomínio, A mancha). Entretanto, há algumas décadas, parte considerável da crítica especializada vem minando o VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS campo de debates sobre o valor artístico de diversas obras exclusivamente canônicas, deixando à margem importantes textos nem sempre reconhecidos pelo seu valor cultural. É o caso notável da narrativa ficcional Carapintada (1993), do escritor e cineasta paraense Renato Tapajós, que apresenta um universo de questões provocadoras e, por este motivo, merece nossa atenção. O romance foi publicado pela primeira vez em 1993, um ano após o impeachment do ex‐presidente Fernando Collor de Melo. Em entrevista concedida à editora que publicou o livro, Renato afirma se tratar de uma tentativa de compreender como um jovem que participou da campanha para a deposição do governo Collor se comportaria em meio aos conflitos entre militares e estudantes durante a ditadura. Contudo, a narrativa ganha fôlego, e o que parecia se tratar de uma simples comparação entre o processo de resistência à ditadura e o levante dos cara‐pintadas contra a “corrupção”, foi se transformando em um conjunto de problematizações que envolvem questões pontuais: 1) mecanismos de tortura e a consequente destruição física e psicológica do torturado; 2) resistência à ditadura; e 3) políticas de memória e esquecimento. Dessa forma, este estudo pretende compreender como esses elementos sociais estão formalmente estruturados em Carapintada. Por conseguinte, procura‐
se avaliar a atitude de resistência das personagens e seu compromisso ético com a memória da violência provocada pela ditadura militar brasileira, estabelecendo juízos de valor sobre o livro. As reflexões aqui expostas se fundamentam na noção de historicidade do texto literário. A Teoria Estética de Theodor W. Adorno oferece possibilidades de compreensão das relações entre violência social e forma literária. Seu principal pressuposto, o que direciona a presente análise, é o de que “os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes de sua forma” (ADORNO, 1988, p. 16). Em seus estudos, o pensador alemão elabora uma concepção de epopéia diferente da construída por Hegel em sua Estética sobre a poesia épica. Na visão deste último, a violência é inerente à forma da obra literária. Entretanto, o herói épico hegeliano é levado a desenvolver sua disposição à violência para defender “interesses do caráter nacional” (GINZBURG, 2007, p. 2). Já para Adorno, a questão central não é saber se há coerência entre o ato violento do herói e os interesses de sua nação, ou mesmo se é legítima ou não sua atitude, uma vez que este sujeito se tornou fragmentado, “entregue à aniquilação de si, exposto à constante ameaça de catástrofe” (Idem, p. 2). Segundo Ginzburg, Adorno ocupa‐se em examinar a violência presente na epopéia como representação de um momento histórico caracterizado pelo conflito social, independente de qualquer forma de nacionalismo. Com isso, pode‐se avaliar a contribuição crítica de escritores para “o debate e a transformação do processo histórico” (Idem, p. 2). Um detalhe importante deve ser assinalado aqui. Renato Tapajós foi militante de esquerda durante a ditadura. Pertenceu à Ala Vermelha do PC do B, e participou VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS da luta armada. Foi preso duas vezes. A primeira em 1969, permanecendo cinco anos em vários presídios de São Paulo. Durante esse período sofreu diversas formas de tortura e teve vários colegas mortos pelos militares. A segunda foi em 1977, por conta da publicação do romance Em câmara lenta, escrito dentro da prisão. Ficou detido durante um mês, ficando quinze dias em situação de incomunicabilidade. De acordo com os relatores, o livro foi censurado por conter atos de subversão e agressão ao governo militar, e só voltou a ser publicado novamente em 19792. Essa experiência do escritor encontra ressonâncias não apenas em suas atuais concepções políticas, como igualmente em praticamente toda sua produção cultural (Renato também é um brilhante cineasta, tendo recebido vários prêmios nacionais e internacionais, como o prêmio de melhor filme do famoso Festival Internacional de Filme de Leipzig, na Alemanha, pelo documentário Vila da Barca, de 1968). Levando em conta essas colocações, Renato pode ser caracterizado, em certa medida, como um escritor engajado, considerando as devidas ressalvas feitas sobre o assunto por Benoît Denis no livro Literatura e engajamento. Segundo ele, “o escritor engajado é aquele que assumiu, explicitamente, uma série de compromissos com relação à coletividade, que ligou‐se de alguma forma a ela por uma promessa e que joga nessa partida a sua credibilidade e a sua reputação” (DENIS, 2002, p. 31). Por outro lado, o autor acrescenta que uma das várias contrapartidas do engajamento é a renúncia a certos prestígios e privilégios diretamente relacionados ao estatuto do escritor. Nessa perspectiva, um julgamento mais abrangente sobre o engajamento do escritor paraense exige um trabalho de investigação mais detido, com critérios de avaliação muito bem elaborados. Carapintada se passa em São Paulo, no ano de 1969. Durante dois dias, Rodrigo tem a experiência de participar ativamente de algumas ações armadas que se desenvolvem em torno do resgate da militante Kioko, personagem brutalmente torturada pelos militares. Misteriosamente, o protagonista é transportado no tempo. Um desmaio é o mecanismo de mediação entre o presente da narrativa e a realidade reconstituída no tempo. Com a descontinuidade do tempo, a atenção do leitor é redobrada, pois seu olhar é alternado entre os acontecimentos da ditadura e os protestos pelo impeachment. Narrada em 3ª pessoa, a história tem um ponto de vista observador, onisciente e praticamente livre de intromissões. Seria possível associar estes caracteres ao típico narrador do Realismo. Entretanto, a ausência de distanciamento entre narrador e matéria narrada elimina a possibilidade de contemplação totalizadora do objeto. Pouco se sabe sobre a subjetividade das personagens. Nessa perspectiva, a focalização também se fragmenta, sendo revezada principalmente entre o olhar de Rodrigo, de Cláudia, que assume a função “beatriceana” de introduzir e conduzir 2
Essas informações estão presentes na entrevista que realizei com o escritor no dia 11 de maio de 2009. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS Rodrigo no universo dos protestos e ações, e o de Kioko, testemunha direta da violência. De acordo com Ginzburg, na visão de Walter Benjamin, o crescimento das cidades tem influência nesse processo de encurtamento do olhar do indivíduo. Para ele, o ritmo acelerado da vida moderna intensifica a possibilidade do choque entre individualidades com valores e interesses diferentes. Torna‐se necessária, então, a convivência coletiva em constante estado de alerta, ou “esquivar‐se a essa convivência” (GINZBURG, 2007, p. 4). Para quem prefere conviver, a inquietação com a ameaça de catástrofe impede a contemplação distanciada (aurática) dos acontecimentos. Com isso, qualquer tentativa de observar, descrever ou comentar o objeto com profundo grau de intimidade se torna precária. Essas questões não podem ser dissociadas dos problemas relacionados à figura do narrador do romance moderno. Dois estudos paradigmáticos realizados sobre o assunto são bastante pertinentes para esta discussão. Walter Benjamin, ao discorrer sobre o narrador na obra de Nicolai Leskov, defende a existência de uma estreita relação entre o ambiente catastrófico vivido pela humanidade, principalmente ao longo das primeiras décadas do século XX, e o empobrecimento da “faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1994, p. 198). Este empobrecimento se faz perceber a partir do surgimento do romance moderno, cuja razão de existir está associada, afirma Benjamin, à invenção da imprensa. Segundo ele, a capacidade que tinha o narrador de dar conselhos e, com isso, transmitir sabedoria (seja de maneira a moralizar a sociedade ou, simplesmente, construir modos de vida) teria se perdido. Na distinção que faz entre narrativa e romance, Benjamin afirma que o narrador (especificamente o emigrante e o sedentário, representados por Benjamin nas figuras do marinheiro e do camponês, responsáveis pelas narrativas orais) é o único capaz de transmitir sua própria experiência, ou mesmo a experiência de outras pessoas, e associá‐las à experiência dos ouvintes. Já o romancista (neste caso, o narrador do romance) encontra‐se destituído da capacidade de narrar, pois se encontra solitário, sem interlocução. Como diz Benjamin, o que está na base do romance “é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá‐los” (Idem, p. 201). Nessa mesma linha de pensamento, Adorno apresenta uma questão que pensamos ser fundamental para os propósitos deste estudo. Em seu ensaio intitulado “Posição do narrador no romance contemporâneo”, o autor ratifica a ideia de empobrecimento da capacidade de transmissão de experiências por parte do narrador, ao afirmar que “não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração”, e que “o que se desintegrou foi a identidade da experiência” (ADORNO, 2003, p. 55‐56). Ele não apenas reconhece de maneira similar a Benjamin a influência dos eventos catastróficos do século XX na dificuldade de narrar, como também vê o romance como o gênero mais apropriado para falar da aniquilação do VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS indivíduo diante de um sistema excludente. Justamente porque o romance é fruto desse processo de aniquilação. Segundo Adorno, “a reificação de todas as relações entre os indivíduos, que transforma suas qualidades humanas em lubrificante para o andamento macio da maquinaria, a alienação e a auto‐alienação universais, exigem ser chamadas pelo nome, e para isso o romance está qualificado como poucas outras formas de arte” (Idem, p. 57). Assim como Benjamin, Adorno também se refere ao soldado que retorna da guerra, impossibilitado de narrar o que viveu. A guerra funcionaria como uma não‐
experiência, uma fissura entre sujeito e linguagem, ou, entre sujeito e possibilidade de articulação linear da linguagem. Falar da vida em constante conflito só é possível por meio de algo fadado ao próprio conflito. Nesse sentido, o romance torna‐se espaço de uma forma e de uma linguagem fragmentadas que, de acordo com Adorno, se aproximariam muito do que se pode observar no cinema, na indústria cultural em geral, e na reportagem. A distância estética do narrador torna‐se semelhante à do jornalista e a do produtor de cinema, que manipula o leitor/espectador de maneira vertiginosa: “o leitor é ora deixado do lado de fora, ora guiado pelo comentário até o palco, os bastidores e a casa das máquinas” (Idem, p. 61). Mas não é apenas a visão (o olhar), mas também a linguagem. Por isso, Adorno chama a atenção para o que seria previsível diante deste contexto: “Noções como a de ‘sentar‐se e ler um bom livro’ são arcaicas. Isso não se deve meramente à falta de concentração dos leitores, mas sim à matéria comunicada e à sua forma” (Idem, p. 56). De volta ao romance, outras personagens surgem ao longo da narração com funções secundárias, mas alcançam certo grau de importância porque estão diretamente ligadas com a resistência. É o caso de Xavier, espécie de coordenador da organização; Osvaldo, que havia participado das lutas camponesas pela posse da terra no interior do Nordeste; Carlos, Laura e João, lideranças do movimento estudantil secundarista; uma freira, um médico, o tio e o pai de Rodrigo. Para fins de organização, vamos nos deter na análise de Carapintada, a partir das três questões centrais apontadas anteriormente, sob o risco de perder de vista outros elementos e temas recorrentes no texto, igualmente relevantes para os estudos da produção cultural brasileira contemporânea. Como dissemos, o núcleo da história é o resgate da personagem Kioko de dentro do hospital onde se recuperava dos ferimentos causados pela violência sofrida pelos militares. Assim é descrita a cena do encontro entre a militante, ainda deitada no leito, e Rodrigo e a freira, ambos designados para resgatá‐la. A voz da freira era doce, quase um sussurro. O biombo claro refletia um pouco da luz da janela, criando um ambiente fantasmagórico. Kioko se virou na cama e olhou para ela. Rodrigo prendeu a respiração e precisou contrair os músculos para se controlar ao ver aquele rosto com imensas olheiras de sangue pisado, o canto da boca rasgado por um ferimento, o nariz coberto por um curativo, o cabelo aderindo à testa suada. O rosto VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS de quem havia apanhado sem piedade, muitas vezes seguidas (TAPAJÓS, 2007, p. 32). Após a ação, o narrador concentra a narrativa em uma sequência de páginas em que é apresentado o depoimento de Kioko. A personagem está dentro de um quarto, em uma casa que serve de esconderijo para a organização, juntamente com Rodrigo e Cláudia, que a escutam com perplexidade. – Eu nem mesmo sabia que estava grávida – contou Kioko. – No segundo dia, depois de me baterem muito, veio uma hemorragia muito violenta. Eu tinha abortado. [...] – É difícil falar de algumas coisas... – continuou Kioko baixinho. – É mais fácil contar que eles me penduraram no pau‐de‐arara e me deram choques do que... [...] – Eu preciso contar. – A voz de Kioko estava um pouco mais firme. – Acho que vou precisar contar tudo isso muitas vezes... até me livrar dessas lembranças. [...]. – Ele então começou a me chutar, ali no chão – continuou Kioko. – Tentei me defender, me encolhendo toda, mas não teve jeito. Vários chutes me pegaram na Barriga, eu senti uma pontada muito forte no ventre e, logo depois, o sangue escorrendo por baixo, numa hemorragia que me pintou as coxas de vermelho. [...] – Demorou algum tempo até que ele veio cambaleando para cima de mim. Começou a me bater totalmente sem controle, socos tapas, chutes. A violência das pancadas acabou me jogando no chão e ele continuou a me chutar, gritando coisas desconexas. [...] – Desmaiei. Acordei na cela, muito mais tarde. Notei que estava coberta com um lençol e que tinha febre. Febre alta, aliás. Daí pra frente as coisas se confundem. Não sei quanto tempo passou, não sei o que era delírio da febre e o que era realidade. Só fui recobrar a consciência naquela cama do hospital. [...] (Idem, p. 45‐47). Alguns pontos deste recorte merecem ser destacados com muito cuidado. Primeiramente, algumas práticas de tortura utilizadas pela ditadura, bem como suas conseqüências no torturado, são ficcionalmente reconstituídas no texto, como procedimento de destruição física da personagem. Kioko sente dificuldade de falar sobre o evento. Por duas vezes ela interrompe o próprio discurso, como se sua continuidade pudesse lhe causar mais dor e sofrimento: “– É difícil falar de algumas coisas...”; “– É mais fácil contar que eles me penduraram no pau‐de‐arara e me deram choques do que...”. Mais adiante, Kioko se refere à necessidade de falar constantemente sobre o acontecido, como maneira de esquecê‐lo: “Acho que vou precisar contar tudo isso muitas vezes... até me livrar dessas lembranças”. A tortura se torna mais intensa porque a personagem se recusa a falar nomes de outras pessoas envolvidas nas ações. O depoimento encerra com a descrição da destruição psicológica da personagem, e sua consequente relação precária com o tempo e a realidade: “Daí pra frente as coisas se confundem. Não sei quanto tempo passou, não sei o que era delírio e o que era realidade”. Sua fala é objetiva, não havendo VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS espaço para expressões próprias do discurso literário tradicional, como as figuras de linguagem. Para Seligmann‐Silva, os primeiros anos que sucederam o período da Segunda Guerra Mundial (1939‐1945) evidenciaram o “estabelecimento de uma nova abordagem da produção literária e artística” (SELIGMANN‐SILVA; NESTROVSKI, 2000, p. 7) no âmbito europeu, em especial, na Alemanha. Várias obras literárias foram produzidas à luz dos parâmetros da chamada literatura de testemunho. Os eventos catastróficos ocorridos durante a guerra se tornaram tema principal da representação literária de uma nova e, até aquela época, inimaginável realidade. O aspecto singular dessa emergente modalidade literária consiste na premente necessidade de narrar as experiências vividas pelos sobreviventes da Shoah que passaram por situações‐limite e, ao mesmo tempo, o reconhecimento da impossibilidade de narrá‐las, dado o caráter traumático dessas experiências. Seu discurso testemunhal corresponde, então, a uma tensão entre a linguagem (comprometida pela experiência traumática) e o “real” (a realidade vivenciada pelo sobrevivente de uma situação‐limite). Essa dificuldade de narrar o evento também está associada ao esforço do narrador (ou personagem) em dar testemunho de sua experiência e, ao mesmo tempo, precisar esquecê‐la. Segundo Seligmann‐Silva, duas características principais da literatura de testemunho derivam desta tensão: a literalização, como incapacidade de narrar por meio de metáforas, e a fragmentação, como manifestação de uma memória caracterizada pelo trauma. Na América Latina (mais especificamente na América espanhola), a literatura de testemunho (ou testimonio) foi desenvolvida principalmente a partir da institucionalização de regimes autoritários, iniciada com a revolução cubana. Seligmann‐Silva comenta que suas características são praticamente as mesmas daquela literatura produzida na Europa, sendo que a principal diferença entre ambas está na maneira como abordam suas temáticas. Enquanto a literatura de testemunho se ocupa em narrar as experiências dos sobreviventes da Shoah, a de testimonio procura denunciar os atos de violência e opressão provocados pelas ditaduras latino‐americanas. Pensando nessas duas categorias de representação literária, Seligmann‐Silva propõe um denominador comum entre elas, qual seja, um “teor testemunhal”, principalmente quando estamos diante de obras que têm como tema uma situação‐
limite. De acordo com o autor, A literatura expressa o seu teor testemunhal de modo mais evidente ao tratar de temas‐limite, de situações que marcam e “deformam” tanto a nossa percepção como também a nossa capacidade de expressão. O testemunho alimenta‐se, como vimos, da necessidade de narrar e dos limites dessa narração (subjetivos e objetivos, em uma palavra: éticos) (SELIGMANN‐SILVA, 2003, p. 40). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS Após a tortura, a personagem Kioko passa a demonstrar sinais próprios da pessoa que passa por situações traumáticas. A teoria psicanalítica freudiana define o trauma como uma “fixação no momento do acidente traumático” (apud SELIGMANN‐SILVA; NESTROVSKI, 2000, p. 66). De acordo essa definição, a fixação ocorre devido a uma incapacidade de elaboração da cena que provocou o trauma, gerando um efeito fantasmagórico na mente do indivíduo traumatizado. A estabilidade do aparelho psíquico é abalada ao entrar em choque com os estímulos excessivos de realidade, levando o indivíduo a estabelecer precárias relações com o mundo externo. Disso derivam algumas características constitutivas da pessoa traumatizada, como a incapacidade de enlutar, isto é, de superar o trauma, o abalo nas relações com o tempo, a dificuldade de narrar o evento vivido, bem como a incapacidade de narrá‐lo por meio de metáforas, o que leva o sujeito a produzir enunciados literais e fragmentados. No caso do discurso de Kioko, em certa medida, todas essas características são bastante visíveis. Visitando a história, encontramos referências diretas entre o depoimento de Kioko e testemunhos reais de pessoas que passaram pela experiência da tortura durante o regime militar. Em seu artigo Escritas da Tortura, Jaime Ginzburg faz referências a relatos de vítimas de tortura presentes nos livros Relatório Azul e Memórias do Silêncio. Citemos um pequeno trecho de um dos relatos: Vieram então socos de todos os lados [...] Aumentou a violência. Ligaram fios e vieram choques. Fiquei muda daí para frente [...] Fui colocada no pau‐de‐arara. Conheci o terror da dor física violenta, quase insuportável, e a dor de alma daquele horror que eu jamais imaginara que pudesse existir [...] Minha indignação cresceu violentamente quando resolveram queimar minha vagina e meu útero [...] E eu seguia muda. A raiva era tanta que não conseguia gritar (GINZBURG, 2001, p. 142). Neste depoimento, assim como acontece no romance de Tapajós, vários mecanismos e instrumentos de tortura são descritos, além da resistência da vítima em falar, em parte por seu compromisso ético com seus companheiros, em parte pela dor sentida. Outros relatos citados por Ginzburg no mesmo artigo também incorporam em seu conteúdo esses e outros atos de violência. Nesse sentido, podemos dizer que há homologia entre a cena de tortura da personagem Kioko e as práticas de tortura legitimadas pela ditadura militar. Outra questão relevante, ainda sobre o depoimento de Kioko, refere‐se à resposta dada por ela a Rodrigo, depois que este lhe pergunta sobre a validade de seu ato de resistência. Segue o trecho: – Claro que valeu, Rodrigo. Eles não tiraram nenhuma informação de mim. O Emílio ganhou tempo para sair de circulação, a Organização pôde reestruturar seus contatos. Além disso, e isso é muito pessoal, eu venci. Eu mostrei para eles que uma pessoa pode enfrentar a dor e até a morte, sem fraquejar. [...] VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS – Valeu a pena, sim [...]. – Nossos objetivos só vão ser alcançados com muito sacrifício. Vai ser preciso muita luta para construir os nossos sonhos (TAPAJÓS, 2007, p. 48). Em seu ensaio “Narrativa e resistência”, Alfredo Bosi sustenta a ideia de que o processo de resistência a forças dominantes não é apenas uma atitude ética, mas está presente tanto na forma quanto na escrita do texto literário. De acordo com o autor, embora resistência seja um termo essencialmente ético, ligado ao campo da filosofia, e forma e escrita relacionem‐se a questões estéticas, no processo criativo da construção literária, “fios subterrâneos poderosos” (BOSI, 2002, p. 119) são responsáveis pela articulação inteligível entre elementos éticos e estéticos da obra. Para Bosi, é possível que haja uma assimilação de aspectos éticos pela composição estética da narrativa, a partir do momento em que o narrador opta pela exploração de diversas categorias entendidas como seus valores. Cada elemento considerado positivo do ponto de vista do narrador se manifesta no tecido vivo da história contada, exercendo influência sobre sua constituição estética. A plasticidade desses valores é representada por imagens, sons, vozes carregadas de sentimentalismo, expressões faciais, corporais e gestos. Mas não são apenas os valores sugeridos em uma obra que possuem plasticidade. Também os antivalores, aquelas categorias contra as quais o detentor da palavra impõe seus valores, se materializam em tons e formas agressivas de expressão. Bosi ilustra essas situações com exemplos de obras universais. Em Le lys de la vallée, de Balzac, o autor aponta o despotismo (antivalor) patriarcal presente nas atitudes de um tirano. Em Rei Lear, de Shakespeare, traição e lealdade das personagens têm “voz, têm gesto, têm rosto” (Idem, p. 121). No romance, o gesto de silêncio de Kioko ao ser torturada; sua fala indignada com o comentário de Rodrigo sobre a não existência da tortura no Brasil; a firmeza das palavras de Rodrigo dirigidas aos cara‐pintadas; o entusiasmo de João, ao falar dos objetivos da luta armada urbana, são valores presentes na tessitura textual que imprimem uma estética de resistência. Por outro lado, a voz dos militares, que corresponde aos antivalores contra os quais é travado o combate, é pouco explorada. Essa estratégia de escrita, a de silenciar a voz do opressor, é legitimadamente caracterizada como atitude de resistência por parte do narrador (e por que não, do escritor?). Ao afirmar que a resistência se dá como tema da narrativa, Bosi recupera acontecimentos históricos que inevitavelmente passam a compor o universo ficcional. O crítico direciona suas considerações ao ambiente literário, exigindo do artista e, no caso específico deste estudo, do escritor, uma atitude de resistência, que não se faça presente somente no tema de suas produções, mas, igualmente, na configuração estética. De acordo com o autor, A resistência é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o sujeito ao seu contexto existencial e VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS histórico. Momento negativo de um processo dialético no qual o sujeito, em vez de reproduzir mecanicamente o esquema das interações onde se insere, dá um salto para uma posição de distância e, deste ângulo, se vê a si mesmo e reconhece e põe em crise os laços apertados que o prendem à teia das instituições (Idem, p. 134). Essas proposições parecem estar em sintonia com o texto “O tempo do contra”, de Antonio Candido. Nele, o autor fala de uma “cultura do contra” (CANDIDO, 2002, p. 369) que se criou dentro dos diversos segmentos sociais (e não apenas entre intelectuais) que se opõem à ideologia dominante, opressora e conservadora do capitalismo e de regimes autoritários. Aqui novamente a proposta é de combate, de resistência, de ser “do contra” as forças reacionárias. Veja‐se que este texto foi publicado em 1978, em plena ditadura militar no Brasil. Carapintada reivindica o status de arte revolucionária ao propor resistência à opressão, ao se comportar como “arte posta a serviço da revolução” (CAMUS, 2008, p. 292). Revolução esta que hoje se faz muito mais presente como processo de conscientização, do que como levante armado. Segundo Camus, o romance nasceu juntamente com a necessidade de o homem se revoltar, seja com o passado aniquilador, seja com o presente que insiste em perpetrar modelos de estruturas sociais tradicionais, ou mesmo com a própria maneira de representar esteticamente a sociedade. Por outro lado, o romance que trás em seu bojo o espírito de revolta acaba por estabelecer um pacto contra o esquecimento. Ainda de acordo com pensador francês, a arte do romance “alia‐se à beleza do mundo ou dos seres humanos contra as forças da morte e do esquecimento” (Idem, p. 307). Kioko estabelece resistência ao silenciar‐se diante da tortura brutal. Seu silêncio possui uma dupla interpretação (ou mais?). Por um lado, está associado ao caráter aniquilador da tortura, cujo objetivo principal é “provocar a explosão das estruturas arcaicas constitutivas do sujeito, isto é, destruir a articulação primária entre o corpo e a linguagem” (VIÑAR & VIÑAR, 1992, p. 73). Por outro lado, representa a atitude de resistência de quem é capaz de sacrificar a vida em nome de um ideal. Calar‐se diante da eminente possibilidade de morte, mesmo sabendo que, uma vez rompido o silêncio, sua vida pode ser poupada, sugere uma tomada de decisão eticamente coerente com as propostas da organização. O último ponto a ser abordado aqui se refere à questão das políticas de memória e esquecimento. O texto não faz referências diretas à necessidade de lembrar do evento, para que ele nunca mais se repita. Entretanto, acreditamos que esse dispositivo ético está nevralgicamente expresso na proposta do livro. Se isso não é suficiente para justificar sua importância para a discussão sobre memória, pensemos neste trecho: “–Tem um tio meu, irmão da minha mãe, que não acredita que houve tortura no Brasil” (TAPAJÓS, 2007, p. 44). Discursos como o do tio de Rodrigo apontam sinais de que políticas de esquecimento têm produzido efeitos profundamente eficientes na memória de muitos brasileiros. Isto só pode ser minimizado por meio da conscientização sobre o ocorrido. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS Em entrevista realizada com Renato Tapajós, o escritor demonstra preocupação com discursos que negam, negligenciam ou desconhecem o significado da tortura exercida contra militantes de esquerda durante a ditadura. Hoje em dia, as pessoas falam “não houve tortura; somos contra a tortura”, mas a tortura virou uma palavra, virou uma palavra desprovida de significado real, ela é uma abstração. O que eu quero mostrar nesse filme é que a tortura não é uma abstração. A tortura é alguma coisa muito concreta, muito dolorosa e profundamente desumana. Ou seja, quer dizer, o objetivo central do filme é a ideia de que não existe justificativa nenhuma pra tortura (COSTA, 2009, p. 9). Com base em Nietzsche e Benjamin, Seligmann‐Silva aponta duas necessidades constitutivas de todo ser humano, em relação ao passado: “lembrar de esquecer” e “não esquecer de lembrar” SELIGMANN‐SILVA, 2003, p. 60‐61). Entretanto, em oposição ao primeiro pensador, para quem a tarefa da memória é mecânica, o autor afirma que não se pode determinar o tempo certo para que o trabalho de lembrar e esquecer se realize. A memória não opera semelhante à historiografia, para a qual o passado é esquematicamente organizado. Ela é seletiva e fragmentária. “É evidente que não existe a possibilidade de uma tradução total do passado” (Idem, p. 64). Diante de fenômenos‐limite, o trabalho da memória se torna mais criativo, imaginário e, por isso mesmo, descontínuo. O caráter ético e político da memória é o testemunho, principal instrumento de combate ao esquecimento pleno. Para Paul Ricœur, na atividade viva do pensamento existe um trabalho de memória e um trabalho de luto que têm como ponto de interseção o dever de justiça. Ou seja, a necessidade de lembrar de eventos acabados implica em uma disposição ao ato de fazer justiça ao infortúnio do outro. De acordo com o autor, “o dever de memória é o dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não o si” (RICŒUR, 2007, p. 101). Ricœur assinala que parte do que nós somos se deve à herança recebida daqueles que de alguma forma contribuíram positivamente para a transformação da sociedade. Por isso, temos uma dívida com sua memória, que precisa ser quitada. Como dissemos, no caso específico do Brasil os traumas do passado ainda não foram superados. Depois dos desaparecimentos de presos políticos durante a ditadura militar, a Lei de Anistia de 1979 significou o primeiro passo legítimo de institucionalização das políticas de esquecimento. Essas ações não se limitam apenas ao poder do Estado. Em reportagem veiculada na Folha de São Paulo do dia 17 de fevereiro de 2009, o jornal usou a expressão “Ditabranda” para se referir ao regime militar brasileiro. Depois de muitas críticas, a Folha respondeu que “na comparação com outros regimes instalados [...] a ditadura brasileira apresentou VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS níveis baixos de violência política e institucional”3. Em debate sobre os 40 anos do golpe militar, exibido no dia 1º de abril de 2009, pela TV Brasil, o ex‐ministro Jarbas Passarinho diz não se arrepender de ter assinado o AI‐5 e declara estar de “mãos lavadas” por nunca ter cometido crimes de tortura4. O filme Tropa de Elite, à época de suas primeiras exibições, parece ter agradado boa parcela da população brasileira em relação aos métodos de tortura utilizados pelos policiais no combate ao crime organizado nos morros do Rio de Janeiro. Esse comportamento da sociedade legitima simbolicamente a prática da violência de Estado, e aumenta, na mesma medida, a ignorância sobre os violentos anos de ditadura, que são apagados da, ou nem se quer estão presentes na memória de muitas pessoas. O projeto Direito à Memória e à Verdade, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, vem desde 2006 trabalhando no sentido de recuperar fatos e divulgar as atrocidades cometidas pelo regime militar, de modo a fazer com que elas não se repitam. Entretanto, várias ações deste projeto têm sofrido resistência de setores conservadores da sociedade, principalmente de oficiais militares, que insistem em construir uma imagem positiva da ditadura. A imagem da Ditadura Militar no Brasil apresentada por Renato Tapajós no romance Carapintada está muito longe de uma sociedade ideal para se viver. Fazendo uso da ficção, a estratégia do escritor é interferir no processo histórico por meio da denúncia, acusação e do testemunho contra a violência institucionalizada. Com isso, defende valores sociais caros a uma sociedade que ele quer mais justa, com seus direitos fundamentais respeitados. Sobre este assunto, Ginzburg pontua que a construção de imagens do passado pode servir a interesses de dominação e exclusão. Essa construção pode se dar por diversos meios, tanto no campo legislativo e jurídico, em ações institucionais, como na indústria cultural, e no âmbito escolar e universitário. A reflexão sobre política da memória tem efeitos vertiginosos. Imagens seguras e estáveis do passado podem servir de referência para tomadas de decisões no presente. Se as imagens do passado forem deliberadamente manipuladas e distorcidas, os processos sociais no presente são condicionados pelos interesses dos responsáveis por essas manipulações (GINZBURG, 2006, p. 1). Como se percebe, os gestos de tentativa de apagamento da memória são muitos e assumem diversas formas capazes de envolver setores sociais, políticos e culturais. Em um tempo em que a sociedade brasileira é constantemente incitada a simpatizar com modelos fascistas de segurança da população; em que documentos 3
Estas informações foram obtidas a partir do endereço eletrônico: <http://www.nucleodenoticias.com.br/2009/02/27/leia‐na‐integra‐o‐polemico‐editorial‐da‐folha‐de‐s‐
paulo/>. O texto divulgado na Folha de São Paulo foi reproduzido na íntegra neste site, bem como as cartas dos leitores e a nota da redação do jornal, dando explicações sobre a expressão. 4
Assisti ao debate, a partir do qual uso essas informações.
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS importantes sobre a ditadura militar no Brasil são queimados; em que ex‐oficiais militares são absolvidos da acusação de crimes de tortura e assassinato durante a ditadura; e em que se observa um intenso trabalho de silenciamento das memórias do ocorrido, Carapintada promove o retorno da discussão dessas questões em um ambiente muito fértil para o processo de conscientização: a literatura. No importante ensaio “Educação após Auschwitz”, Adorno adverte sobre a necessidade de esclarecimento generalizado sobre os acontecimentos catastróficos da Segunda Guerra Mundial, especialmente sobre os horrores dos campos de concentração. De acordo com o pensador, É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos [...]. É necessário contrapor‐se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto‐reflexão críticai [Grifo nosso]. Quando falo em educação após Auschwitz, refiro‐me a duas questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; portanto, um clima em que os motivos que conduziram ao horror tornem‐se de algum modo conscientes. Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor‐se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização (ADORNO, 1995, p. 121‐127). Desse modo, a literatura, sendo parte integrante do processo educativo formal e informal, é uma das chaves para promover atitudes de auto‐reflexão crítica. Para Antonio Candido, a literatura é um “sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade” (CANDIDO, 1997, p. 11). Uma espécie de passagem ritualística da ignorância para o esclarecimento ocorre com Rodrigo no final da história. De volta ao ano de 1992, o protagonista passa a ver a realidade daquele momento além da euforia e dos entusiasmos que tomavam conta da maioria dos estudantes. Ainda estava um pouco surpreso de ter falado, ou pelo menos tentado falar, para aquelas pessoas. Tinha tentado dizer coisas que compreendia agora, depois de tudo pelo que havia passado. E que, talvez, os carapintadas de seu tempo não compreendessem totalmente. Percebia que tinha atravessado uma fronteira decisiva. De algum modo, sabia agora que havia um lugar para ele no mundo (TAPAJÓS, 2007, p. 96). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS Por fim, vale ressaltar aqui que Carapintada é um brilhante artefato cultural e pode ser perfeitamente utilizado como objeto de mediação entre seu público leitor, especialmente os jovens, e a história recente do Brasil. Mesmo se tratando de literatura infanto‐juvenil, o que exige um cuidado maior do escritor no trato da linguagem e da estrutura, o texto de Renato Tapajós é digno de atenção por parte da crítica porque impõe diante de nós a difícil tarefa de refletir sobre a relação entre questões éticas e estéticas da produção literária que tematiza contextos sociais de extrema violência, como a Ditadura Militar de 1964. E, por esta razão, ele é um importante instrumento de humanização e conscientização. Referências ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa: Martins Fontes, 1988. ______. “Educação após Auschwitz”. In: ______. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, pp. 119‐138. ______. “Posição do narrador no romance contemporâneo”. In:______. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, pp. 55‐63. AVELAR, Idelber. Alegorias da derrota: a ficção pós‐ditatorial e o trabalho do luto na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In:______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 197‐221. BOSI, Alfredo. “Narrativa e resistência”. In: ______. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 118‐135. CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2008. CANDIDO, Antonio. “O tempo do contra” (1978). In: ______. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002, pp. 369‐379. ______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. (vol. 1). Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 1997. (coleção Reconquista do Brasil, 2ª série). COSTA, Carlos Augusto C. “Militância política, pensamento e literatura: Renato Tapajós e o regime militar no Brasil” (entrevista). Literatura e Autoritarismo, Dossiê VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS “Cultura Brasileira Moderna e Contemporânea”. Disponível em: <http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie02/art_12.php>. Acesso em: 25 jan. 10. DAMATTA, Roberto. “As raízes da violência no Brasil”. In: PAOLI, Maria Célia; BENEVIDES, Maria Victória; PINHEIRO, Paulo Sérgio; DA MATTA, Roberto. A violência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. DENIS, Benoît. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. Bauru, SP: EDUSC, 2002. GINZBURG, Jaime. Escritas da tortura. Dialogos Latinoamericanos, Universidade de Aarhus, v. 3, 2001, pp. 131‐146. ______. Violência e forma: notas em torno de Benjamin e Adorno. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/enc2007/anais/54/1300.pdf>. Acesso em: 04 abr. 08. ______. Política da memória no Brasil: raça e história em Oliveira Vianna e Gilberto Freire. Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofia, Política e Humanidades. Año 8, nº 15, 1º sem. 2006. Disponível em: <http://www‐
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ÉTICA DA MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA EM CARAPINTADA, DE RENATO TAPAJÓS ETHICS OF MEMORY, VIOLENCE AND RESISTANCE IN CARAPINTADA, RENATO TAPAJÓS ABSTRACT: This paper analyzes and interprets the fictional narrative Carapintada (1993), by Renato Tapajós, seeking to evaluate the attitude of resistance of characters and their ethical commitment with the memory of violence caused by the Brazilian Military Dictatorship (1964‐1985). Keywords: Memory. Resistance. Violence. Testimony. Recebido em 30 de maio de 2010; aprovado em 05 de julho de 2010. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 20]
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Os textos são de responsabilidade de seus autores. IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO Rogério de Almeida1 RESUMO: O objetivo deste artigo é refletir sobre as transformações culturais e sociais vividas na pós‐modernidade, tomando o corpo, sua representação sócio‐
cultural e sua expressão mítica como referências para uma reflexão de cunho antropológico, tendo por base os fundamentos teórico‐metodológicos do paradigma do imaginário, de Gilbert Durand (1997), e do paradigma de complexidade, de Edgar Morin (1999). Palavras‐chave: Imaginário, Pósmodernidade, Corpo, Cultura e Educação. O momento contemporâneo pode ser assinalado como um momento de crise, e a palavra crise deve ser entendida, em seu sentido grego, como alteração, transformação, mudança. São muitos os nomes criados para batizar estes últimos 40 anos de transformação – modernidade líquida (Bauman), capitalismo tardio (Jameson), hiper‐realidade (Baudrillard), sociedade transparente (Vattimo), etc. –, e cada qual com matizes conceituais que não convêm discutir neste artigo, mas que parecem se acomodar bem sob o termo genérico de pós‐moderno, desde que se saliente que este momento se caracteriza como um momento de abertura, de transformações, mas não de ruptura. O pós‐moderno, como conceitua Louis Oliveira, surge como uma nova paisagem, consolidada com a desconstrução/transformação do mundo moderno, originando a fractalização dos sentidos, ou seja, surgem novos sentidos para o que antes possuía uma só razão. O pós‐moderno, assim, aparece como uma operação que diminui a força de certas estruturas modernas e, muito além de se caracterizar pelo termo fim ou destruição, faz aparecer outras paisagens desse mesmo mundo moderno. Essa operação rechaça as tiranias das totalidades e libera o espaço do domus, do insignificante, do pequeno (Oliveira, 1999: 219). A conseqüência disso é que “os sujeitos aprendem que o sublime pertence a cada um, segundo cada olhar, e que somente serão tocados por ele se estiverem
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Professor Doutor da Faculdade de Educação da USP, pesquisador do GEIFEC e do Lab_Arte. Graduado em Letras e Doutor em Educação, ambos pela USP. Site: www.rogerioa.com. Email: [email protected] VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO soltos” (Kodo, 2001: 86). Dessa forma, na paisagem pós‐moderna os sentidos se multiplicam e agenciam, conseqüentemente, novas escolhas de abordagens, que possibilitam a apreensão e a compreensão das mudanças em andamento. Com a ressalva de que o pós‐moderno2 é um termo em construção e, portanto, longe de consensos e conclusões, convém estabelecer de que forma, com essa abertura, os conceitos modernos são postos em xeque, assim como a lógica e o paradigma que os orientam. Convém revisitar as bases mesmas com que se faz ciência, os caminhos pelos quais se chega ao conhecimento. Inicialmente, é preciso rever a própria noção de teoria. Longe de aceitá‐la como um sistema fundado em princípios racionais objetivando a explicação de determinado fenômeno, definição esta consagrada pela modernidade, pode‐se revê‐la em seu sentido original, em que a teoria (do grego theoría) era a delegação sagrada que os Estados gregos da Antiguidade enviavam para representá‐los nos jogos, nas consultas aos oráculos ou mesmo para levar oferendas, eram deuses (theós) que se alcançavam com o pensamento. Esse caráter sagrado da teoria aponta para a relação do homem com o mundo (sua ordem cósmica assentava‐se nos deuses, expressava‐se por mitos – hoje se subordina à ciência: big‐bang, genética, etc.) –, e não para a explicação racional do mundo. Essa diferenciação marca uma posição que a partir de Descartes se tornou corrente no pensamento ocidental: o sujeito (e toda sua subjetividade) está apartado do mundo. Para conhecê‐lo, é preciso explicá‐lo, ou seja, desdobrá‐lo racionalmente para analisar cada uma de suas partes. A insistência nessa lógica possibilitou o veloz avanço técnico, tecnológico e científico dos últimos séculos, mas sua imposição (ou tentativa) totalitária (ou hegemônica, se se preferir), acabou por conduzi‐la ao seu esgotamento. As partes hoje não se comunicam com eficácia, o todo não é apreendido e o conhecimento se vê cindido em suas especialidades. A razão ousou sonhar o impossível, a conversão do mundo vivido na sua explicação racional, domínio da ciência sobre a Natureza, duplicação. Mas o mistério da existência e da morte perdura, os mitos sobrevivem (disfarçados, é verdade) e o homem continua aderindo ao mundo, expressando‐o e se expressando nele por outras vias, não restando à razão senão ser reconduzida ao seu espaço3, como uma 2
Umberto Eco (1985: 54) entende o pós‐modernismo como uma “forma de operar”; Lyotard (1996) como um domínio estético; Baudrillard (1991) como simulacro, fractal, hiperrealidade; Vattimo (1988, 1991) como um pensamento débil, que circula por uma sociedade de comunicação generalizada, sociedade dos mass‐media, portanto, uma sociedade transparente; Lipovetsky (1994: 109) como o que afirma “o equilíbrio, a escala humana, o regresso a si próprio (...). O pós‐modernismo é sincrético, simultaneamente cool e hard, convivial e vazio, psi e maximalista: aqui, uma vez mais, é a coabitação dos contrários que caracteriza o nosso tempo (...)”; Jameson (1985: 17) como um conceito de “periodização cuja principal função é correlacionar a emergência de novos traços formais na vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica”. Há mais conceitos e teóricos relevantes: Anderson (1999), Augé (1997), Eagleton (1993, 1998), Kumar (1997), entre outros. 3
Espaço orientado pelo princípio da recondutividade, entendido como a recondução dos princípios do paradigma clássico aos seus próprios limites (Paula Carvalho, 1986).
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Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO faculdade, entre outras, do conhecimento, ao lado do próprio corpo, das suas sensações, da intuição, da memória, da imaginação, instâncias que vêm sendo reabilitadas. A teoria, e o método nela imbricado como práxis, busca antes uma relação com o mundo, o homem, ou o objeto de estudo, se assim se quiser, do que a sua representação ou redução racional; a teoria é antes a explicitação de problemas, idéias‐problemas, do que a sua solução. Nesse sentido, a teoria não fecha seu campo de atuação, traçando regras para uma ciência que isola, mutila e universaliza em busca de provas, sínteses e unificações, mas abre seus espaços para que circulem novos e antigos sentidos, novos e antigos métodos, a mesma e sempre diferente inquietação do homem com o seu conhecimento. Trata‐se, portanto, de uma discussão epistemológica que estabeleça o solo paradigmático no qual se cultivarão as reflexões sobre o corpo, sua representação cultural e seu imaginário. Assim, podemos, juntamente com Morin, pensar em um conhecimento complexo em oposição ao paradigma predominante na modernidade, que o autor chama de clássico. Se o paradigma clássico “é um paradigma de simplificação, caracterizado por um princípio de generalidade, um princípio de redução e um princípio de separação” (Morin, 1999: 329), o paradigma de complexidade aponta para o “conjunto dos princípios de inteligibilidade que, ligados uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do universo” (Morin, 1999: 330). Nessa adoção de um novo paradigma surge a necessidade de ressignificar antigos conceitos, proporcionando uma abertura, no que antes se apresentava fechado, operando uma sutura no que antes havia de corte. “Fixar o campo teórico é, de início, desfazer‐se de correntes e de modelos e, ao mesmo tempo, apegar‐se a certas teorizações. Enfim, o campo da interpretação é o grande referencial” (Oliveira, 1999: 28). Isso porque presenciamos o “fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica” (Souza Santos, 1988: 47). Ou como pontua Bachelard: Os próprios conceitos científicos podem perder sua universalidade. Como o diz Jean Perrin, ‘todo conceito acaba perdendo sua utilidade, sua própria significação, quando nos afastamos progressivamente das condições experimentais em que foi formulado’. Os conceitos e os métodos, tudo é função do domínio da experiência; todo o pensamento científico deve mudar diante duma experiência nova; um discurso sobre o método científico será sempre um discurso de circunstância, não descreverá uma constituição definitiva do espírito científico (Bachelard, 1978: 158). Em termos mais exatos, podemos compreender o paradigma como “os conceitos fundamentais ou categorias mestras da inteligibilidade, ao mesmo tempo que o tipo de relações lógicas de atração/repulsão (conjunção, disjunção, implicação ou outras) entre estes conceitos ou categorias” (Morin, s/d: 188). Assim, o paradigma adotado aqui se fundamenta em uma ontologia pluralista, uma VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO epistemologia interativa, uma lógica polivalente (contraditorial), uma causalidade probabilística (em redes), uma metodologia fenomenológico‐compreensiva, uma análise estrutural e uma linguagem simbólica (Paula Carvalho, 1990). Como conseqüência desta posição, há que se ressignificar também a razão, que se abre ao acaso, à desordem, a aporias, brechas lógicas, oximoros, etc., alçando‐se a uma razão sensível, “sinergia da matéria e do espírito” (Maffesoli, 1998: 152), ou razão complexa, que “já não concebe em oposição absoluta, mas em oposição relativa, isto é, também em complementaridade, em comunicação, em trocas, em termos até ali antinômicos: inteligência e afetividade; razão e desrazão. Homo já não é apenas sapiens, mas sapiens/demens” (Morin, 1999: 168). Sob esta perspectiva, fica difícil pensar no corpo contemporâneo como um corpo único, pois a pluralidade inerente a essa mesma perspectiva nos mostra corpos, representações diversas do mesmo objeto, pois se temos, para escolher um dentre vários exemplos possíveis, o corpo genético, cujo funcionamento nos é explicado pelo código DNA, espécie de programa do que seremos enquanto corpo (com todos os riscos de uma visão determinista), temos também o corpo plástico, modelado e esculpido à base de cirurgias e outros controles externos, sem contar a permanência de determinações religiosas, que vêem o corpo em relação dicotômica com a alma ou o espírito, espécie de prisão ou de tentação, de onde se originam técnicas que vão desde a projeção astral, para o primeiro caso, até o autoflagelo punitivo, como maneira de exercer o domínio sobre o pecado, passando pela meditação, que pode servir tanto para um como para outro fim. Poderíamos estender a lista e encontrar outros corpos, vistos pela medicina, pela filosofia, pela educação, etc., em que dificilmente encontraríamos um consenso, mas sim uma pluralidade de abordagens, ora conflitantes, ora convergentes, que apontam a necessidade de se pensar o corpo a partir da escolha do referencial e, por sua vez, pensar o referencial a partir da escolha do objeto. Por essa razão, a abertura pós‐moderna e o saber complexo arrolado com ela nos intimam a uma análise mais antropológica, que revisite o homem em sua origem e possibilite uma análise também complexa, que procure a convergência dos saberes, em vez de se perder numa especificidade que, embora possa aprofundar nesta ou noutra faceta do homem, ficará longe da dar conta dele como um todo. Nesse sentido, a escolha epistemológica pode constituir uma estratégia eficaz para a análise e, no caso, a escolha pelo paradigma do imaginário parece munir o estudioso de uma boa instrumentalização para uma análise abrangente e profunda, que veja o homem além de suas vestes culturalmente determinadas, para buscar seu corpo nu, ou seja, situar a investigação, e seu objeto, no entrecruzamento da natureza e da cultura, aceitando, ao mesmo tempo, a impossibilidade de se isolar os pólos, uma vez que tanto o imaginário quanto o homem operam numa trajetividade, que Durand (1997) chama de “trajeto antropológico”, ou seja, a incessante troca entre os pólos das pulsões subjetivas e das intimações cósmico‐sociais. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO Partindo dessas noções, é possível então empreender uma análise que contemple o imaginário, a partir das conceituações de Durand (1997), segundo as quais há dois regimes do imaginário, um diurno e outro noturno, abrangendo as estruturas figurativas do herói, do místico e do drama. Essas estruturas associam‐se aos reflexos dominantes, que realizam esquemas, que por sua vez se cristalizam em arquétipos, que por fim agenciam os símbolos. Dessa forma, o imaginário enraíza‐se no próprio corpo e, diferentemente do racionalismo, não opera por cisão, em que somente a mente, situada no cérebro, seria o centro do saber racional. Assim, o imaginário atua incorporando a razão e promovendo a reabilitação dos símbolos como mediadores do gesto de conhecer. O conhecimento simbólico se define como “pensamento para sempre indireto, presença figurada da transcendência e compreensão epifânica” (Durand, 1988: 24). É certamente um caminho árduo apreender as potências desse conhecimento, pois o conhecimento simbólico, ao contrário dos racionalismos redutores, não faz da imagem uma anti‐
razão, nem da irracionalidade argumento para uma nova concepção de saber, mas busca antes a integração dessas duas esferas, no que Maffesoli (1998) chamou de razão sensível, para um certo tipo de gnose, entendida como “processo de mediação através de um conhecimento concreto e experimental” (Durand, 1988: 35), que envolve, portanto, não só a mente, mas o corpo todo como sede do saber. Esse conhecimento simbólico, por ser dinâmico e aberto, por vezes contraditório, tende a se solucionar em narrativas, também dinâmicas, que constituem os mitos, os quais podemos entender como a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas. As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais das ciências e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito (Campbell, 1993: 15). De modo mais pontual, o mito é a forma de conhecimento que se efetua com a mediação dos arquétipos e a elaboração do imaginário, através de narrativas dinâmicas de símbolos, operadas por uma lógica polivalente, que estruturam e projetam a sensibilidade, em relação recursiva com o evento social, para a realização da existência, amplificada pela (auto)criação de sentido(s). Uma das principais características do mito é que ele se destina a interligar níveis diferentes de existência, presta‐se tanto a uma abordagem macro quanto micro, está na criação do cosmos, mas também no código do DNA. É por isso que Campbell (apud Keleman, 2001: 25) pôde afirmar que “a mitologia é uma função da biologia [...] um produto da imaginação do soma. O que os nossos corpos dizem? E o que eles estão nos contando? A imaginação humana está enraizada nas energias do corpo”. Segundo Keleman (2001: 33), “nosso corpo é um processo. Sua estrutura tem uma forma de pensar, de sentir, de perceber e de organizar suas experiências, VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO um modo inato de formar as suas respostas. Sendo criaturas corporificadas, poderíamos dizer que o nosso corpo é o nosso destino”. Portanto, encaminhando a análise para uma leitura que contemple o imaginário do corpo, podemos notar que, contemporaneamente, o corpo encarna, ou atualiza, certas estruturas arquetípicas que se afinam com as narrativas de antigos mitos. Sem estender demais as análises, pontuaria três mitos que, contemporaneamente, convivem nas representações culturais dadas ao corpo: Dioniso, Narciso e Hermes. Dioniso é o deus que nasce duas vezes, a primeira do ventre de Sêmele, que não termina sua gestação, e a segunda da coxa de Zeus. Durante a infância, é perseguido, dilacerado, cozido e devorado, mas morto renasce, o que o aproxima de Deméter e dos símbolos de renascimento vegetal. Também conhecido como Baco (do grego Bákkhos, que significa videira, vinho), é com o vinho que lhe oferecem cultos, sendo um de seus epítetos o Pyrísforos, ou nascido do fogo úmido (Ferreira Santos, 1998: 138). Voluptuoso e cruel ao mesmo tempo, o culto a Dioniso acontece sob o efeito da mania, do delírio, da possessão divina, como mostram as mulheres que o seguem, conhecidas como Mênades ou Bacantes. Nesses ritos noturnos, o êxtase era atingido com “danças violentas acompanhadas de flautas, loucas correrias através dos montes e perseguições de animais selvagens” (Martínez et al., 1997: 118). A orgia (rito) báquica tem três etapas: a oribasia, perseguição das mulheres na montanha, o diasparagmos, sacrifício através do dilaceramento, e a omofagia, a devoração da carne crua (Brunel, 1998: 235). Nietzsche associa a paixão de Dioniso ao nascimento da tragédia e, tomando a natureza de sua potência como afirmação, liga‐o à música para concluir que dado esse estreito parentesco entre música e mito, é de se supor, do mesmo modo, que a uma degenerescência ou depravação deste estará ligada uma atrofia daquela; de resto, no enfraquecimento do mito em geral se exprime uma debilitação da faculdade dionisíaca (Nietzsche, 1983: 21). A faculdade dionisíaca é, portanto, uma faculdade criadora, é música e harmonia, está ligada a uma loucura sábia, à mistura de alegria e fúria, à embriaguez sagrada. A união do homem à natureza, da forma como a funde Dioniso, nos remete à simbologia corporal desta estrutura mística, simbologia que é valorizada na feminilidade de Afrodite, deusa do amor, da sedução e da beleza, nascida da espuma do mar e do esperma de Urano emasculado. Um mitema interessante de Afrodite encontra‐se no episódio das três deusas e a maçã de ouro. No pomo atirado pela Éris, a deusa da discórdia, a inscrição: “À mais bela.” Atena, Hera ou Afrodite? Páris julgará, não pelo que vê, mas pelo que o seduz. Atena lhe oferece vitória e sabedoria, Hera a soberania, mas é Afrodite a eleita. Eis suas palavras: “Se preferires a mim, serás o sedutor completo, tudo o que houver de mais belo no VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO plano feminino será teu e, muito em especial, a bela Helena, cuja fama já se espalhou por toda parte.” (Vernant, 2000: 89) O final dessa história? É a opção pela sedução e pela beleza feminina que desencadeia a ação guerreira dos heróis da Guerra de Tróia. As ofertas de Atena e Hera, inclusive pelas suas características diurnas, estavam ligadas a realizações heróicas; é de Afrodite a promessa de torná‐lo sedutor e, em conseqüência, de desfrutar os prazeres da beleza, aqui, beleza do corpo e da cópula, do amor e do casamento. Nos mitos de Afrodite, seja qual for a narrativa, a variante ou a interpretação, sempre encontramos símbolos que constelam em torno da estrutura de sensibilidade mística. É assim que, com o nome de Vênus Anadiomene, Rimbaud (1995: 81) a reatualiza na prostituta do final do século XIX. Que cada um se sinta à vontade na escolha das imagens; à despeito da beleza degradada própria à paisagem mental dos poetas da Décadence, não há como não ver o gosto pelo continente, pela rotundidade, pelos pormenores, enfim, pela substancialidade do corpo: Qual de um verde caixão de zinco, uma cabeça Morena de mulher, cabelos emplastados, Surge de uma banheira antiga, vaga e avessa, Com déficits que estão a custo retocados. Brota após grossa e gorda a nuca, as omoplatas Anchas; o dorso curto ora sobe ora desce; Depois a redondez do lombo é que aparece; A banha sob a carne espraia em placas chatas; A espinha é um tanto rósea, e o todo tem um ar Horrendo estranhamente; há, no mais, que notar Pormenores que são de examinar‐se à lupa... Nas nádegas gravou dois nomes: Clara Vênus; – E o corpo inteiro agita e estende a ampla garupa Com a bela hediondez de uma úlcera no ânus. Hoje, essa imagem da prostituta e de sua bela fealdade não encontra ressonância na sociedade, pelo menos não de maneira relevante, e é mais do que comum encontrarmos, na publicidade, por exemplo, inúmeras atualizações de Afrodite, seja na ondulação dos cabelos que vendem xampu, nos cavados decotes das propagandas de cerveja ou em inúmeros outros produtos. No cinema, idem. Poderíamos, com razão, acusar o interesse mercadológico que vende produtos, inclusive culturais, a partir da apelação erótica do corpo. Mas não poderíamos, igualmente, deixar de constatar essa valorização de Eros e das práticas dionisíacas atreladas a ele. Prostitutas travestidas de grandes damas e “meninas de família” vestidas como putas circulam pelos mesmos shoppings centers e é difícil decompor VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO a vida sexual de uma ou de outra simplesmente pela representação cultural. Bom exemplo disso é o filme Beleza Americana, com a adolescente fatal e... virgem! Em A Sombra de Dioniso (Maffesoli, 2005), temos um extenso estudo dos valores ligados ao mito de Dioniso e de seu renascimento nas sociedades contemporâneas, fortemente marcadas, em quase toda a modernidade, pela figura hegemônica de Prometeu. Mesmo discordando dessa leitura, Lipovetsky (2008) não deixa de conceder que, ainda que não de forma suprema, Dioniso inspira determinados comportamentos sociais, como a busca de prazeres desregrados e a valorização do corpo erótico. De resto, vale assinalar que esses valores dionisíacos são uma constante antropológica e, com maior ou menor ênfase, sempre participaram das sociedades, ao longo do tempo. Se hoje vemos esses valores retomarem força, é porque outros deixam de ser vitais e, mesmo sem desaparecerem, voltam a um segundo plano. Um exemplo disso é o uso de instrumentos eróticos. Maffesoli nos mostra como, espalhados por diversas culturas e ao longo de diferentes épocas, esses utensílios tiveram espaço nas práticas sociais, sejam de cunho profano ou religioso. Nesse sentido, podemos acusar a exploração desses instrumentos pela indústria e pelo comércio, os cada vez mais numerosos sex‐shops, mas o que essa exploração mostra é que o interesse existe e sempre existiu. Dessa forma, seria um equívoco atribuirmos uma erotização da sociedade por conta do interesse econômico; o que ocorre é uma relação mais complexa, em que o interesse pelo erótico gera uma demanda enquanto, no sentido inverso, a produção facilita e incentiva o consumo. Dioniso é uma figura forte das sociedades pós‐modernas, dá conta dessa relação do corpo com o prazer, do seu uso sexual, dos desregramentos desse uso e das práticas excessivas. Em outra obra, Maffesoli (2003) aponta a pós‐modernidade como sendo justamente a sinergia entre o arcaico e o tecnológico, em que as festas raves, a Internet, a tribalização, o interesse crescente por horóscopos, por esoterismos, etc., seriam exemplos disso. No entanto, ao lado dessa figura, é possível encontrar outra, que também apresenta grande relevância: Narciso. Há diversas variantes envolvendo o mito de Narciso. Em uma delas, teria desprezado o amor de Amínias, enviando‐lhe uma espada com a ordem de se matar. A ordem foi cumprida, mas antes de morrer, Amínias amaldiçoa Narciso que, ao passar perto de uma fonte e ver sua própria imagem refletida nas águas, apaixona‐
se e, diante da impossibilidade de concretizar sua paixão, termina também por se matar. Em outra versão, já mais racionalizada, Narciso era apaixonado por sua irmã gêmea; quando ela morre, seu desgosto é tão grande que se consola observando o reflexo de seu próprio rosto, como se a contemplasse (Martínez et al., 1997: 251). Mas é a versão de Ovídio a mais complexa e a mais difundida. Narciso era um rapaz belo a quem o adivinho Tirésias tinha vaticinado um triste fim, ao revelar à sua mãe que ele só viveria uma longa vida se nunca chegasse a se conhecer. Muitos se apaixonaram por Narciso, como a ninfa Eco, que foi rejeitada. Certa vez, ao contemplar sua imagem refletida nas águas, apaixona‐se por VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO si e, desesperado por não poder alcançar o objeto de sua paixão, permanece junto à fonte até se consumir, dando origem à flor que leva seu nome. Desconsiderando os detalhes que pontuam uma ou outra versão, o que parece estruturar o mito de Narciso é o conflito entre a identidade e a dualidade do homem. Narciso apaixona‐se por seu reflexo e não, de fato, por si mesmo, uma vez que contempla apenas a superfície da água e, conseqüentemente, sua própria superfície, ou seja, sua aparência. No entanto, essa aparência é o seu próprio duplo, um outro ele mesmo, a projeção de uma imagem que deseja e que é a sua. Imagem emblemática dos tempos atuais, reforçando, em sua própria estrutura, a questão da crise de identidade. De fato, o homem contemporâneo parece cada vez mais apaixonado pela idealização de sua própria imagem. Mas, quando se olha no espelho, parece não se contentar com o que vê e lança mão de diversos recursos para retocar a própria imagem. Clínicas de estética, cirurgias plásticas, lipoaspiração, aplicações de silicone, etc., sem contar as tatuagens, piercings e outros recursos de embelezamento. É verdade que isso não é novo na história humana e basta uma rápida visita pelas tribos indígenas para se confirmar isso. Mas o que salta aos olhos é a busca por uma beleza artificialmente construída e que parece prometer a emergência de uma identidade que não se encontra na pessoa, por ela não se reconhecer no espelho. Daí a necessidade de continuar a olhá‐lo e, se possível, esculpindo o corpo que aparece lá, diante da pessoa que o vê, mas como se fosse uma outra. Culto ao corpo, culto à imagem, culto ao simulacro. Outro ponto importante a se acrescentar, e que complexifica a situação, é o fato de que a imagem buscada não é, necessariamente, a própria imagem, ainda que melhorada, mas uma imagem aceita socialmente, que represente algum ideal de beleza, ditado, evidentemente, pelo establishment midiático. Intervenções cirúrgicas para que o nariz se pareça com o da atriz, a boca da apresentadora de TV, os peitos da cantora, etc. Há quem chegue a escolher um modelo a ser copiado. Esse desejo de se parecer com o ídolo reforça, sem dúvida, uma identificação com figuras arquetípicas (cujos resíduos sobrevivem sob o brilho fácil dos estereótipos), as quais servem de motor para o processo de individuação. No entanto, a identificação aqui parece se dar apenas no plano da superfície, desconsiderando a profundidade dos próprios arquétipos e da própria individuação para se ficar com o estereótipo. A conseqüência disso é o fascínio pelo simulacro, pelo espelhamento, pela superfície, pela identificação com o que é plasticamente reverenciado pela sociedade. Machado de Assis, há mais de um século, desenvolveu sua teoria da alma humana no conto intitulado O Espelho. Nele, um alferes, após alguns dias em isolamento e privado do reconhecimento de sua família e da própria sociedade, encontra a solução para sua crise de identidade vestindo sua farda de alferes e olhando‐se no espelho por meia hora ao longo do dia. Descobriu não só um VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO paliativo para sua solidão e sua crise de identidade, como também a própria explicação para a alma humana. Somos o papel que desempenhamos na sociedade. Atualizando Machado, diríamos que, como não desempenhamos um papel muito claro na sociedade, uma vez que há uma multiplicidade de papéis que se desempenham em sucessão ou simultaneamente, cuja transição ou convivência é líquida, embaralhada, complexamente vulnerável, somos a ressonância que a beleza da imagem refletida por nós encontra na sociedade. Dioniso e Narciso figuram na representação contemporânea do corpo, e de maneira bem acentuada, porém a pluralidade que é marca do pós‐moderno não se deixa fixar somente nessas figuras, de onde a insurgência justamente de Hermes, não como uma figura a mais, mas como o próprio arquétipo dessa pluralidade móvel que ata e desata nós e busca se estabelecer justamente pela harmonização dos contrários. Mas antes de o abordarmos, faz‐se necessário recordar, ainda que brevemente, esse contrário, exposto anteriormente pelo paradigma clássico, em que a razão predominava e se encarnava na figura de Prometeu. Embora em franca decadência, é ainda esse modelo de visão‐de‐mundo (Weltanschauung) que preside o método científico e os próprios fundamentos da ciência, embora as descobertas da física que datam do começo do século passado tenham posto em xeque esse mesmo método e esses fundamentos. Sem aprofundar a questão, podemos tomar como exemplo a reflexão de José Gil que, abordando a medicina, nos mostra como, cada vez mais, ela tem operado uma dessubjetivação, ao tratar a doença dissociada do próprio corpo. A doença pertenceria aos genes, viria do interior, estaria, portanto, em latência. Em decorrência disso, começa‐se a cria uma medicina sem médico e sem doente, em que a preocupação se volta para o futuro, para a antecipação, para a prevenção, a higiene da vida. Essa visão dissocia a doença do sujeito moral, de sua fala, de sua identidade. Só há um corpo, um órgão, tecidos ou células doentes (Gil, 1997: 219‐220). Ora, essa racionalização da doença que a cinde do próprio sujeito é decorrência de uma prática e de um pensamento estritamente prometeicos. Mas é preciso assinalar que, paralelamente a essa tendência, hoje voltam à pauta projetos como o médico de família, tratamentos em casa, onde o paciente se sente mais à vontade e motivado a se restabelecer, procedimentos que envolvem a valorização do afetivo (basta lembrarmos dos doutores da alegria), sem contar a medicina alternativa, que vai desde a homeopatia até a acupuntura, passando por outros tratamentos que, por vezes, beiram o esotérico (cromoterapia, cristais, cirurgias espirituais, etc.). Novamente, a pluralidade e a relativização dos valores e caminhos. Dessa forma, o que se vê é uma abertura do conceito de identidade, em que a própria noção de homem é posta em xeque. E a tentativa de se reencontrar o homem e, portanto, recriá‐lo, vem insuflando os estudos antropológicos de novo ânimo, que reabilita a figura de Hermes, como o mediador dessas contradições. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO Por um lado, ele é o guia, o pastor, o condutor; por outro, é portador de um certo tipo de conhecimento, saber hermesiano4, dado ao domínio retórico e interpretativo. É o responsável pela realização da coincidentia oppositorum alquímica, pelo tertium datum, pela hermenêutica, pelo hermetismo, pela hermetica ratio, pela condução das almas, seja levando‐as ao mundo dos mortos, seja dele trazendo‐as. A mitanálise durandiana nos mostra Hermes ressurgindo no século XX, como angelos, mensageiro, deus da comunicação, não só dela mas também da diferença entre os comunicantes, portanto deus das encruzilhadas, divindade dos limites, enfim, arquétipo do sentido de toda linguagem (Durand, 1979: 227) Dentro da extrema variedade de representações folclóricas, artísticas, literárias, o imaginário ocidental insistiu nesse aspecto relacional, denominador comum de atributos que vão da travessia das almas ao furto, passando pelo comércio, pela magia, pela poesia e pelo saber. (...) É o mestre de um certo saber, ou melhor, de uma maneira de alcançar o conhecimento (divino, gnóstico, eclético, ‘transdisciplinar’ – dependendo do enfoque, ou tudo ao mesmo tempo) (Brunel, 1998: 449). Como é mais uma maneira de saber do que propriamente um saber, a Hermes liga‐se o importante símbolo da estrada, não como elo entre dois pontos, mas mundo em si, caminho onde o acaso e o imprevisto serpenteiam, labirinto de provas, mais do que viagem a um destino, a jornada constante, o constante trajeto, a mediação. Hermes não só é responsável pela pluralidade, mas é ele próprio plural, como atestam seus correlatos, Mercúrio romano, mercúrio alquímico, Tot egípcio, Hermes Trimegisto, Wotan germânico, além de uma série de outros disfarces, como o nabi (profeta) islâmico Idris, o boto brasileiro, o São Francisco cristão, o Virgílio de Dante, e tantas outras personagens, literárias ou não, além de estar presente também em uma série de obras, como nos volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, ou mesmo em Jung. Hermes é conhecido como o puer aeternus, ao mesmo tempo puer (criança) e senex (velho), é também sermo (discurso, língua) e ratio (razão, inteligência); alude‐se a um Hermes crióforo (o que carrega um carneiro aos ombros), é o psicopompo, o condutor de almas; “ora ele aparece como reflexo de Cristo‐logos, ora como soldado das legiões infernais!” (Brunel, 1998: 453); logo após nascer, fez‐
se ladrão do rebanho de seu irmão Apolo, com quem comercia a lira que acabara de inventar; quando preparou o sacrifício das vacas de Apolo, “com a esperança de ter reconhecidos todos os seus direitos de olímpico, divide as vítimas em doze porções, 4
Sigo, para hermesiano e hermético, a mesma distinção estabelecida por Ferreira Santos (1998: 70), em que hermesiano se refere às configurações que são homólogas ao mito de Hermes, enquanto hermético qualifica as degradações e usuras simbólicas do seu mito, como são encontradas nas especulações místico‐esotéricas. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO como há doze deuses ao todo, isto é, quando formam uma totalidade” (Sissa; Detienne, 1990: 196). É essa busca de totalidade, de um saber complexo, que Hermes preside e isso se enraíza contemporaneamente num corpo cada vez mais infantil, quando não infantilizado, num intercâmbio entre o masculino e o feminino, em que os homens cada vez mais se utilizam de recursos femininos de embelezamento, enquanto as mulheres assumem posturas, às vezes até mesmo vestimentas, masculinas. O Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite, também é figura presente, tanto nos travestimentos como na noção, cada vez mais difundida, do unissex. Também é cada vez mais comum a busca por um autoconhecimento, ainda que deturpado por orientalismos, arcaísmos descontextualizados, esoterismos superficiais e guias de auto‐ajuda. Mas se suspendermos os juízos de valor, ainda que momentaneamente, não será difícil reconhecermos essa tendência ao cuidado de nós mesmos, assim como dos diversos mediadores que facilitam ou dificultam esse cuidar. Em resumo, ainda que em emergência, Hermes deixa cada vez mais de ser latente para se tornar figura patente na contemporaneidade pós‐moderna. Leiamos um poema de Fernando Pessoa para exemplificar as questões levantadas: Eros e Psique ... E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade. DO RITUAL DO GRAU DE MESTRE DO ÁTRIO NA ORDEM TEMPLÁRIA DE PORTUGAL Conta a lenda que dormia Uma princesa encantada A quem só despertaria Um infante, que viria De além do muro da estrada. Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida, E orna‐lhe a fonte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado. Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino – Ela dormindo encantada, Ele buscando‐a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora. E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia. FERNANDO PESSOA (s/d: 93‐4) A lenda, à maneira dos contos de fadas, parece relatar a conhecida história da princesa encantada à espera de seu salvador. A primeira surpresa nos vem quando descobrimos que o príncipe descobre ser ele mesmo a própria princesa. Mas se depois do espanto e do silêncio, retorna‐se ao poema, vê‐se que o infante é, etimologicamente, aquele que não fala; mais do que criança, aqui ele é o que não fala porque não sabe (“Sem saber que intuito tem”). Só saberá quando, depois de trilhar um longo caminho, jornada de todo herói5, acordar, já não mais como infante, já não mais como princesa, mas como iniciado. Os dois – o herói e seu deus último, aquele que busca e aquele que é encontrado – são entendidos, por conseguinte, como a parte externa e interna de um único mistério auto‐refletido, mistério idêntico ao do mundo manifesto. A grande façanha do herói supremo é alcançar o conhecimento dessa unidade na 5
Joseph Campbell (1993), em seu O Herói de Mil Faces, mostra, através da noção joyceana de monomito, os vários passos da jornada do herói, tanto o guerreiro do plano físico quanto o sacerdote do espiritual. Sua concepção mítica nos ajuda, desse modo, a enxergar com maior clareza a relação entre as narrativas, em qualquer nível de desdobramento artístico ou religioso, e a vida – seja no âmbito externo da ação cotidiana, seja no interno, das formulações oníricas às psíquicas. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO multiplicidade e, em seguida, torná‐la conhecida (Campbell, 1993: 43). Importante notar que a epígrafe, com suas verdades opostas que no fundo são as mesmas, aponta para a coincidentia oppositorum, expressa na figura do neófito e do adepto. Sem a menor necessidade de entrarmos nos hermetismos de certas confrarias, que aliás o eram principalmente por precaução, e ficando com as categorias hermesianas, percebe‐se que o poema salienta a importância da estrada. É ela um processo divino. Mas que processo? Primordialmente o de (auto)conhecimento, gnose. Uma leitura psicológica, em conformidade com esses elementos que levantamos, assinalaria o encontro do animus com sua anima na tomada de consciência do self, processo de individuação. No campo religioso da mitologia, a afirmação da hierogamia, o casamento sagrado, seria um bom começo interpretativo. É nessa acepção que reencontramos o título, em referência ao longo caminho de provas iniciáticas que Psique teve de percorrer para reconquistar os cuidados de Eros, denunciando ao mesmo tempo a distância e a possibilidade de união entre o humano e o divino. Esse poema, a despeito da figura central de Eros e Psique, é fundado pelo mito de Hermes, embora escrito no modernismo do século XX e com uma roupagem medieval. Afinal, como não ver no infante a agilidade e o poder do ínfimo? Como negar a mediação que a estrada, que é, lembremo‐nos, processo divino, opera no (re)conhecimento? Como ignorar o caráter psicagogo do infante, que acorda em si sua psique? Não é difícil ver que o infante que percorre a estrada não é o herói que enfrenta o monstro, mas o andarilho quase distraído, sem intuito e tino, que vence o mal e o bem, para cumprir‐se em seu destino iniciático, para operar a união do que caminha e do que espera, do animus e da anima, de Eros e Psique, de quem “sonha em morte a sua vida” com quem busca “sem tino”, numa complexio oppositorum. Além disso, o poema reproduz um tema gnóstico, em que o conhecimento é apresentado como despertar: “O ‘despertar’ implica a anamnesis, o reconhecimento da verdadeira identidade da alma, ou seja, o reconhecimento de sua origem celestial. Somente depois de havê‐lo despertado é que o ‘mensageiro’ revela ao homem a promessa da redenção e finalmente lhe ensina como deve comportar‐se no Mundo.” (Eliade, 1972: 115) Em resumo, Hermes participa também da figuração que a pós‐modernidade dá ao corpo, considerando‐o como uma abertura para o conhecimento e o autoconhecimento, um organismo complexo em que as partes estão em interação e, afastando‐o da dualidade corpo/alma, carne/espírito, busca uma integração que é, ao mesmo tempo, humana e divina, corpórea e espiritual, concreta e subjetiva, seguindo a lógica da harmonização dos contrários e reatualizando o corpo como centro (axis mundi) da existência e do seu sentido. Essas considerações nos fazem pensar em uma outra atitude frente aos desafios abertos pela contemporaneidade, em que a estátua da modernidade cede VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO lugar ao corpo pulsante pós‐moderno (Almeida, 2002: 11‐21). E se é verdade que a identidade hoje não atende mais às implicações do pensamento moderno, em contrapartida parece se encaminhar para uma outra forma de ser, em que o sujeito, não mais preso ao dever de ser único, torna‐se plural: “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente” (Hall, 2000: 13). Uma nova representação para a idéia de homem. E um outro corpo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Rogério de; DIAS, Alexandre. Metamorfopsia e Educação: hiatos de uma aprendizagem real. São Paulo, Zouk, 2002. BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, s/d. CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: Mitologia Primitiva. São Paulo, Palas Athena, 1992. DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo, Martins Fontes, 1997. EAGLETON, Terry. A Ideologia da Estética. Rio de Janeiro, Zahar, 1993. EAGLETON, Terry. As Ilusões do Pós‐Modernismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1998. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo, Perspectiva, 1972. FERREIRA SANTOS, Marcos. Práticas Crepusculares: Mytho, Ciência & Educação no Instituto Butantan – Um Estudo de Caso em Antropologia Filosófica. São Paulo, FEUSP, Tese de Doutoramento, 2 vols., 1998. GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa, Relógio D’Água, 1997. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós‐Modernidade. São Paulo, DP&A, 2000. JAMESON, Frederic. Pós‐Modernidade e Sociedade de Consumo. São Paulo, Novos Estudos CEBRAP, nº 12, 1985. KODO, Louis L. Blefe: o gozo pós‐moderno. São Paulo, Zouk, 2001. KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós‐Industrial à Pós‐Moderna. Rio de Janeiro, Zahar, 1997. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Rogério de Almeida
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IMAGINÁRIO E PÓS‐MODERNIDADE: ESTUDO MÍTICO DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CORPO IMAGINARY AND POST‐MODERNITY: MYTHICAL STYDY OF THE SOCIAL REPRESENTATION OF THE BODY ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss about the cultural and social transformations experienced in the post‐modernity, taking the body, its social and cultural representation and its mythical representation as references for an anthropological approach, based on theoretical and methodological founding of the paradigm of imaginary, of Gilbert Durand (1997), and the paradigm of complexity, of Edgard Morin (1999). Key‐words: Imaginary, Post‐modernity, Body, Culture and Education Recebido em 30 de maio de 2010; aprovado em 01 de julho de 2010. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 03 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [21 – 37] Os textos são de responsabilidade de seus autores. LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS Cláudio José de Almeida Mello* RESUMO: Com o objetivo de contribuir para um ensino de literatura nas escolas centrado no leitor e na promoção da leitura literária, este artigo analisa o livro didático Literatura brasileira, de Faraco & Moura. Mostra que a obra afasta‐se das premissas dialógicas de orientações pedagógicas que valorizam o saber escolar como prática social, para aproximar‐se de uma concepção de literatura centrada no caráter hermético do texto literário. A relevância do estudo está em propiciar uma visão crítica dos manuais didáticos para o ensino de literatura. Palavras‐chave: Formação do leitor; promoção da leitura literária; ideologia no livro didático. Não há dúvidas de que o ensino de literatura, no Brasil, tem sido realizado em grande parte em livros didáticos e manuais escolares. Essa prática, supostamente justificada em décadas passadas em vista da falta de obras para leitura, encontra‐se ainda presente nas escolas de Educação Básica Brasileira, ainda que hoje as bibliotecas escolares estejam minimamente supridas com acervo de qualidade, sem contar o acesso a obras completas por meio da internet. De qualquer forma, a leitura literária, em si, ainda é aquém das possibilidades que o ensino de literatura poderia ou deveria propiciar. É fato da forte presença do livro didático como suporte para o trabalho com a literatura nas salas de aula que deu origem a este artigo, que analisa o livro Literatura Brasileira (FARACO & MOURA, 1998), livro didático destinado ao Ensino Secundário, atual Ensino Médio. Tendo em vista a necessidade de concisão, foi selecionado o 18o. capítulo da obra, intitulado “Modernismo: terceira fase (1945‐
1960)”, além do primeiro e segundo, de cunho mais conceptual, intitulados “O que é literatura” e “Estilos, períodos literários, intertextualidade” O objetivo é levantar aspectos positivos e limitadores do uso do livro didático, para o que pretende‐se mostrar a concepção de literatura nele existente e as fontes nas quais os autores buscaram suporte; apresentar as metodologias utilizadas no livro; investigar a ideologia e a concepção de ensino subjacente nessas *
Universidade Estadual do Centro‐Oeste, Guarapuava. Doutor em Letras, professor adjunto do Departamento de Letras. E‐mail: [email protected] VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS metodologias; comparar essas metodologias à concepção dos autores. Desta forma, pretende‐se contribuir para uma utilização mais crítica de livros didáticos e manuais escolares destinados ao ensino da literatura. Deve‐se ter muita cautela quando se trabalha com livros didáticos em sala de aula, pois, conforme o próprio nome, trata‐se de um livro “para educar”. Nele estão contidas ideologias que atuarão na formação do homem‐aluno. Nesse raciocínio esse manual, já que contém valores, normas, modelos a serem seguidos, é co‐
responsável pelo sistema de ensino e pelo direcionamento pedagógico nas escolas. Se se pensar que ele será seguido não apenas por algumas pessoas, mas por dezenas em apenas uma sala de aula, por centenas em uma única escola, milhares em um município pequeno que seja, milhões em um só estado, e por toda uma geração do país, se se pensar nesses números, aquele ingênuo e simpático livro que só parecia querer ajudar adquire grandes proporções. É por causa disso que iniciaremos nossa análise pela concepção de literatura subjacente em Literatura Brasileira. Sabendo que há professores que adotam um livro didático e raramente utilizam outros recursos, nem mesmo a obra literária, então esse material deve propiciar uma visão ampla, portanto crítica, da literatura e da sociedade. O primeiro item do primeiro capítulo trata do conceito de literatura, apresentando as diferenças entre texto literário e não‐literário em sete tópicos: mundo real e mundo ficcional, verdade e coerência, linguagem não‐
literária/linguagem literária, denotação e conotação, significado único e significados múltiplos, mera compreensão e interpretação, e finalmente norma culta x norma literária. Na seleção obviamente não casual desses aspectos foram privilegiados elementos intrínsecos do texto, com destaque para a linguagem. Apesar de os autores colocarem na composição do sistema literário autor, obra e público (FARACO & MOURA, 1998, p. 32), na prática em seu livro o texto fica hermético, sem a reconstrução da obra no momento da leitura, ofuscando a recepção; há pouca possibilidade de interação leitor‐texto, assim como pouca contextualização histórica. Quando mostram as diferenças entre mundo real e mundo ficcional, os autores resumem que “a linguagem do texto literário refere‐se a coisas e fatos que existem exclusivamente no texto”, e que “[...] ficção é o resultado da imaginação, da invenção, da fantasia [...]” (FARACO & MOURA, 1998, p. 15), podendo fazer pensar a ficção nada tem a ver com o mundo real. Os autores dizem que “obviamente, o texto literário mantém relação com o mundo real [...] mas o escritor não é obrigado a se ater a essa realidade. Ele pode criar a partir dessa realidade” (FARACO & MOURA, 1998, p. 15), como se a diferença fosse apenas a existência dos fatos no mundo empírico (o que pode ser problematizado, pois, conforme Eagleton (1989, p. 1‐2), o que em determinada época é visto como história, em outra pode ser lido como ficção . Para nós, o autor não só pode criar a partir da realidade. Talvez esse seja o ponto ideal para explorar com os alunos aquela função libertária da literatura, que leva o leitor à desalienação, conhecendo‐se melhor a à sua realidade, encoberta pelas relações desumanizadas pelo sistema. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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Página | 40 LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS Apesar do título, não existe nesse item uma definição do conceito de literatura, o que, apesar de não ser tarefa fácil para alunos do Ensino Médio, nem por isso deve ser evitada. Acreditamos que uma maneira adequada, por ser melhor assimilada pelos alunos, seria deixá‐los construir coletivamente um conceito de literatura, sob a orientação do professor, a partir das obras literárias. De qualquer maneira, o que para nós não poderia escapar nesse importante item é que, em uma síntese do pensamento de Eagleton (1989, p. 1‐17), os juízos de valor, que atribuem literariedade a determinados textos, não só são variáveis historicamente, como, mais que isso, estão fundados em ideologias que asseguram os valores da classe dominante em cada época. Em alguns pontos os autores apresentam teorias que privilegiam a comunicação, considerando a obra literária como um texto vivo. Por exemplo, citando Marisa Lajolo: “a obra literária é um objeto social. Para que ela exista, é preciso que alguém a escreva, e que outro alguém a leia. Ela só existe enquanto obra neste intercâmbio social” (apud FARACO & MOURA, 1998, p. 32). Ou que “[...] escritor, obra, público ‐ relacionam‐se num processo de trocas de influências” (FARACO & MOURA, 1998, p. 32). Mas, contraditoriamente, já no segundo capítulo, consideram o barroco na cronologia de estilos de época FARACO & MOURA, 1998, p. 44‐45), sem fazer ou propor a reflexão acerca da famosa contenda literária sobre a formação da literatura brasileira entre Haroldo de Campos e Antonio Cândido, para quem, para funcionar como um sistema literário, a literatura depende “da existência do triângulo ‘autor‐obra‐púlico’, em interação dinâmica, e de uma certa continuidade da tradição” (CANDIDO, 1985, p. 16). Percebe‐se, então, um descompasso entre a teoria e a prática. Por exemplo, voltando ao primeiro capítulo, quando os autores abordam a questão da história, fundamental para a concepção e a compreensão da literatura, em um sub‐tópico de uma só página entitulado “Literatura, cultura, momento histórico” (FARACO & MOURA, 1998, p. 30), afirmam que o leitor pode apreciar um texto ou não, “de acordo com seu gosto pessoal”. Esta afirmação deveria ser problematizada, a fim de evitar a suposição de uma interpretação impressionista totalmente desvinculada das influências sociais. O “gosto pessoal” não é tão pessoal assim, pois os juízos de valores, por mais independentes que sejam, são formados segundo e revelam visões de mundo e ideologias de que o leitor participa. Claro, quanto mais leituras tiver e mais crítico for o leitor, tanto mais rico será o seu horizonte de expectativas, tornando o seu “gosto pessoal” mais crítico em função da experiência acumulada. Em seguida, despertam o aluno: “Até que ponto as obras literárias se relacionam com o momento histórico em que foram produzidas?”. Primeiro, dizem que “Uma obra literária sempre participa de um processo que se relaciona com os demais fatos culturais de uma comunidade”, mas depois dizem que é apenas “conveniente” relacionar na análise esses fenômenos culturais à obra, e que o texto literário pode “ilustrar” (FARACO & MOURA, 1998, p. 30) características de uma época. Para nós, em qualquer análise não é apenas “conveniente” levar o contexto social ‐ cultural e histórico ‐ em consideração, mas fundamental; o texto literário não VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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Página | 41 LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS serve apenas para “ilustrar” características de uma época, mas é uma maneira de levar o leitor a conhecer a realidade com mais profundidade. Em outro tópico, “Para que serve a literatura?” (FARACO & MOURA, 1998, p. 32‐34), ainda do primeiro capítulo, são apresentadas posições antagônicas sobre a função da literatura, sem, contudo, mostrar os pressupostos concernentes a cada uma delas. Podemos indicar, que de modo geral, que a teoria literária é pouco utilizada para orientar os alunos a construir uma reflexão sobre a ideologia existente tanto nas obras quanto no sistema por literário. Por exemplo, no tópico “Literatura e indústria cultural”, afirma‐se que “qualquer tipo de produto artístico [...] obedece às regras da chamada indústria cultural”, e que “o grande risco representado por esse mecanismo é a uniformização do gosto [...]” (FARACO & MOURA, 1998, p. 35). O risco não é tão pequeno assim; talvez um dos maiores ingredientes fornecidos pela indústria cultural seja a contribuição para uma cultura de massa, pouco afeita à postura crítica. Como diz Baudrillard (1994, p. 12), “a massa é o que resta quando se esqueceu tudo do social [...] [ massa é] a caixa preta de todos os referenciais, de todos os sentidos que não admitiu, da história impossível, dos sistemas de representação inencontráveis [...]”. A abordagem de um tema importante como a indústria cultural em apenas nove linhas denota no livro um conteúdo fragmentado e superficial. Isso também acontece com a apresentação do tema estilo de época, sem fundamentação, por exemplo, da origem desses estilos. As inovações estéticas acompanham a transformação da sociedade, do pensamento do homem, de suas preocupações, de seus conflitos. Isso é importante, sem o que o ensino de literatura fica esquemático. Nesse ponto, seria o caso de abordar as relações entre arte e história, necessário para a compreensão dos estilos e de sua periodização. Lembre‐se que a obra em análise destina‐se ao Ensino Médio, e é nessa fase que os alunos têm acesso às teorias da literatura, e que a leitura literária pode adquirir uma maior profundidade ― muitos alunos, é a última oportunidade. Já foi comprovado que o estudo dos gêneros literários é fundamental para o bom leitor. Cristina Mello apurou, em uma pesquisa com alunos do curso secundário em Portugal, que o problema da leitura literária reside na compreensão do texto, e que uma boa compreensão do texto literário prescinde de conhecimentos genológicos. Segundo ela, os alunos "apresentam uma compreensão limitada, e, portanto, empobrecedora da complexidade da obra literária e também das possibilidades de desenvolver as suas capacidades de leitura, não só consolidando as aprendizagens anteriores, mas sobretudo realizando um trabalho de maior profundidade e exigência" (MELLO, 1998, p. 321). Nessa obra, a autora faz uma investigação aprofundada nas fontes teóricas da genologia, mas são suas propostas metodológicas concretas, alternativas de estratégias que unem a teoria à prática, que pretendemos esboçar, inicialmente, apontando alguns dados da pesquisa de campo realizada pela autora; em seguida, VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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Página | 42 LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS apresentando a importância para o ensino da literatura dos modos e gêneros literários detectada em sua pesquisa empírica; e, finalmente, apresentando suas propostas metodológicas, para voltarmos, então, ao Literatura brasileira, de Faraco & Moura. Ao final deste artigo, apresentamos um exemplo de guia de leitura (ANEXO), extraído do livro didático de Mello (1998), a fim, de um lado, de permitir uma visão mais crítica do livro didático analisado, e, de outro, de instigar professores a um aprofundamento dos estudos genológicos no ensino da literatura. A partir de uma pesquisa empírica, com testes de compreensão de leitura com alunos de escolas, a autora buscou fazer um diagnóstico geral sobre o funcionamento da percepção genológica no processo da leitura literária, e estudar a representação elaborada pelo leitor na escola, analisando como e se a questão dos gêneros literários influem e de que maneira nessa reconstrução literária, que é a recepção. Os testes respondidos pelos alunos mostraram uma confusão generalizada com relação aos aspectos genológicos, revelando que os alunos ficam em um nível de compreensão superficial ‐ confundindo por exemplo eu‐lírico com autor, ou mostrando descuido para com a forma. Em sua observação ‐ feita com alunos do 8.° ao 12.° ano (últimos do Ensino Secundário de Portugal, correspondente ao Ensino Médio do Brasil), ela percebeu que a representação do conteúdo semântico das obras deixa muito a desejar. Em geral, o professor auxilia os alunos a verbalizarem, ligando pontos, esclarecendo, dando ênfase, de modo que quando o aluno chega ao final do Ensino Secundário, tem uma grande dificuldade de representação semântica, e também (talvez conseqüentemente) teórica, no caso de seu estudo, com relação aos modos e gêneros literários. Assim, partindo da preocupação com a realidade do ensino da literatura, a autora apurou que, apesar da ênfase no leitor nas recentes teorias semiológica e recepcional, na prática, na sala de aula mesmo, o ensino continua tradicional. Por meio do conhecimento sobre elementos genológicos e modais, o leitor pode, conforme a autora, ter uma compreensão da construção estético‐literária e também dos aspectos histórico‐culturais que o motivaram. Se quando pensamos em convenção literária, pensamos em normas, em um meio social, em um sistema literário, temos que as convençoes remetem à historicidade das obras, e esta à evolução (histórica) dos gêneros, em uma relação dialética. Assim, a compreensão dos gêneros e modos leva a uma maior compreensão dos procedimenos literários, como por exemplo, categorias genológicas, tais como espaço, tempo, personagem, etc., e se traduz em facilidade na interpretação da obra. Quando o leitor inicia a leitura de um texto, ele ativa o seu horizonte de expectativas, checando seus conhecimentos prévios. Uma boa compreensão da obra, então, está diretamente ligada ao entendimento das convenções estéticas. Segundo Mello, "esta questão hermenêutica foi dilucidada, entre outros, por Thomas Kent, para quem a teoria dos géneros se relaciona com a interpretação literária e pode ser estudada como uma subcategoria da semiótica" (MELLO, 1998, VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS p. 132. Para ela, "[...] a percepção genérica das categorias dos modos e géneros é fundamental para a leitura da obra literária em níveis que ainda são de aprendizagem de processos e estratégias discursivas" (MELLO, 1998, p. 130). Partimos da noção do acto de leitura aceite por diversos autores (Iser, Eco, Todorov, Boissinot) como uma operação de aplicação de conhecimentos, considerando que a representação genológica consiste num investimento em categorias dos modos e géneros literários, como pré‐condição da compreensão literária, assim desncadeando procedimetos e estratégias discursivas". (MELLO, 1998, p. 130) De fato, o problema da leitura reside na compreensão do texto, e é exatamente por esta via que a autora justifica sua proposta: uma boa compreensão do texto literário prescinde de conhecimentos genológicos. Para ela, os alunos "apresentam uma compreensão limitada, e, portanto, empobrecedora da complexidade da obra literária e também das possibilidades de desenvolver as suas capacidades de leitura, não só consolidando as aprendizagens anteriores, mas sobretudo realizando um trabalho de maior profundidade e exigência" (MELLO, 1998, p. 321). Cristina Mello propõe então um ensino baseado na noção de integração dos saberes, um processo vivo, portanto nunca acabado, mas sim construído pelos agentes do saber (no âmbito da escola não só o professor, mas também alunos), sempre revisto, suscinto de aperfeiçoamento à luz da realidade pedagógica e das novas teorias, num processo dialético entre teoria e prática. Concretamente, ela sugere um "quadro conceptual" para a integração dos conhecimentos didáticos, sustentado em "três princípios que servem de orientação teórica, metodológica e prática: o princípio da aprendizagem integrada (já citada acima), o da interactividade pedagógica (concernente ao papel ativo do aluno na planificação e acompanhamento de todo o processo de ensino‐aprendizagem) e o da construção da aprendizagem ('autonomia intelectual do aluno')" (MELLO, 1998, p. 328‐9). A autora defende uma metodologia baseada na programática e na estética da recepção, pois a ênfase do processo ensino‐aprendizagem proposto está na comunicação. Do mesmo modo que o foco naquelas está centrada no leitor, o foco no processo ensino‐aprendizagem defendido pela autora está no aluno: "privilegiar a lógica da aprendizagem significa prever formas de ensinar a aprender, a pensar o processo de aprendizagem", (...) "sem que, nas diversas formas de trabalho, o professor abdique da sua função de ensinar, cabendo‐lhe, pois, um papel de orientador, de organizador das estratégias de ensino‐aprendizagem" 9MELLO, 1998, p. 345‐354). Em suas propostas, a autora diz que "o princípio da construção da aprendizagem estará presente sobretudo na forma como respeitaremos o processo da sua progressão, pelo lugar que há‐de assumir a metacognição dos processos de compreensão e interprertação nas nossas estratégias, dando‐se especial atenção à VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS aprendizagem dos métodos de leitura, de acordo com a natureza dos textos" (MELLO, 1998, 354). O prazer na leitura deve ser valorizado, mas cabe ao professor munir o aluno de estratégias que o auxiliem a captar o conteúdo semântico dos textos, trabalhar aspectos pragmáticos e submeter o aluno a uma diversidade de textos e discursos, afim de que ele se torne cada vez mais competente. As estratégias de leitura devem ser introduzidas no processo pelo professor, de modo que o aluno vá adquirindo competência para utilizá‐las sozinho, tornando‐se um bom leitor. A autora cita algumas estratégias que demandam a compreensão global dos textos (holísticas), como o resumo e o comentário. Se se conseguir trabalhar também com a estrutura formal do texto literário, a leitura ganhará em qualidade, posto que utilizará elementos concretos constituintes do texto. Outra alternativa importante é a contextualização histórica do gênero, que além de ampliar a visão histórica, possibilita uma gradativa consolidação dos conhecimentos sobre os fenômenos literários. Do mesmo modo, a verbalização ‐ a socialização do conhecimento ‐ em sala de aula são instrumentos importantes para a construção do saber por parte do aluno. Em suas propostas, a autora apresenta como medida prática, simples, os guiões de leitura, material didático e pedagógico que acompanham todo o processo, que nada mais são que instrumentos práticos de projetos de leitura, a serem elaborados em concomitância com os tradicionais planos de unidades de ensino. Diferente da ficha de leitura, outro instrumento utilizado normalmente para avaliar o conhecimento do aluno sobre um texto, os guiões, além disso, servem também para auxiliar a leitura durante o seu desenvolvimento, orientando estratégias para que o aluno capte o maior número de informações possível. Cristina Mello comenta dois tipos de guiões: um, de natureza teórico‐prática, a ser utilizado para um determinado tipo de texto, mas não para uma única obra em particular, e outro a ser utilizado para acompanhar o percurso do aluno, numa determinada obra, mesmo antes de sua leitura. O exemplo de guião de leitura ao final deste artigo (ANEXO) é deste último tipo, elaborado pela autora para a leitura prévia d’Os Maias. Isto significa que, quando for iniciada a análise do romance em sala de aula, os alunos já terão feito uma leitura prévia em casa, individualmente. Conforme indicação da autora, as questões levantadas no guião devem ser respondidas por escrito (em fichas, cadernos, etc.). Em nossa opinião, o desafio do professor nessa proposta está em convencer os alunos a utilizarem essas estratégias, no caso, o guião, encorajá‐lo, estimulá‐lo, pois, feito isso, a análise da obra será produtiva. Infelizmente, não encontramos essa aprofundamento com a leitura literária em Literatura brasileira. Ao contrário; voltando à análise, no capítulo “Modernismo: terceira fase(1945‐1960)”, encontramos vários aspectos que prejudicam o ensino da literatura. Para começar, o aluno‐leitor fica relegado a segundo plano, ao invés de VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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Página | 45 LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS ser o centro do processo ensino‐aprendizagem. Ele não escreve, não constrói o significado do texto, não problematiza, não socializa o conhecimento, não conhece outros pontos de vista ‐ aliás, nem tem ponto de vista, pois a participação dos alunos fica restrita às respostas dos exercícios, cujas perguntas são objetivas. Não tem sequer sugestão da leitura integral da obra. Nem dicionário os agentes do saber são estimulados a utilizar: os textos já vêm sinônimos das palavras “difíceis”, ao lado. A nosso ver, ao mesmo tempo em que poupa o trabalho, isso prejudica a formação do leitor, pois este não tem o prazer da descoberta, não pode interpretar, escolher significados em um dicionário, não tem uma experiência real de leitura (afinal, as obras literárias não vem com glossário). Os textos trabalhados nesse capítulo são excelentes: Grande sertão: veredas, de Graciliano Ramos, o conto “Mal‐estar de um anjo”, de Clarice Lispector, o conto ”A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, e alguns poemas de João Cabral de Melo Neto. Mas não foi feito um trabalho de comparação dos textos da mesma fase, uma exploração estética e sua motivação. Não remetem para o social, explorando a cultura ‐ qual o drama, o conflito desse homem, que ideologia transmite o foco do narrador. Ao invés de recomendar a leitura integral das obras, dizem que “trata‐se de uma literatura complexa[...]”(FARACO & MOURA, 1998, p. 367). Do romance de Guimarães Rosa foi trabalhado apenas um fragmento, o que, como se sabe, prejudica a autonomia do leitor, o que acontece também por haver pistas para o entendimento do texto, retirando o prazer da descoberta durante a leitura: “Trata‐se de um extenso monólogo do personagem‐narrador, que se dirige a um interlocutor ausente (talvez o próprio leitor) [...]” (FARACO & MOURA, 1998, p. 346). Se se considerar o ensino de poesia em Literatura brasileira, e lembrando que a escola é o único lugar de contato com a literatura para a maioria das pessoas, estas tem razão de não entender e de não gostar de poesia. Nos poemas de João Cabral não é explorada a riqueza da linguagem, a forma, a musicalidade, nem sequer os temas, que são ricos (nem uma simples “quem é esse Severino?”). Não há nenhum trabalho com os poemas, nem nos exercícios; só a leitura, que não é recomendada em voz alta, sem dramatização. E isso tudo para alunos, muitos dos quais não conhecem nenhum livro de poesia. Nesse capítulo, outras informações que ficam perdidas: informa‐se que a terceira fase do modernismo também é chamada de pós‐modernismo, mas não por quê; os autores destacam alguns outros poetas, mas sem informar nada sobre eles ou suas obras. Quando estão apresentando os poemas de João Cabral, aparece que “A rebeldia de Frei Caneca é o assunto de O auto do frade”, ponto final. Nas biografias dos autores, são apresentados dados circunstanciais, sem mencionar o que eles pensaram ou o que foi importante para a obra. Percebe‐se, portanto, uma gama variada de informações dispersas que certamente serão perdidas pelos alunos após o estudo. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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Página | 46 LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS Se o conteúdo é trabalhado no sentido da transmissão, os exercícios, divididos em dois tópicos, “Estudo do Texto”, imediatamente após o texto literário, e “Exercícios”, ao final do capítulo, não levam a uma compreensão maior do texto. Primeiro, por que são extremamente fáceis. As perguntas, com raras excessões, são objetivas e simples, com respostas alternativas (de marcar “x”, como no vestibular) e instruções de “copie do texto”. As questões subjetivas desses exercícios vêm com respostas no livro do professor, o que pode inviabilizar as respostas diferentes dos alunos. Acreditamos que a construção e fixação do conhecimento deve ser individual e coletiva, sem respostas prontas do tipo certo ou errado, dada a relação dialética entre a plurissignificação do texto literário e o horizonte de expectativas dos leitores. A avaliação deve ser formativa, de modo contínuo durante a aprendizagem, de forma democrática entre os agentes do saber, alunos e professores, estes como responsáveis pelo processo. A intertextualidade é um dos pontos altos do livro, por meio da qual as artes plásticas (pintura, escultura, ilustração), a música, a arquitetura e a propaganda são bastante exploradas. Como atividade prática, é proposta a escrita criativa aos alunos: “Agora você vai escrever seu intertexto para o seguinte poema de Vinícius de Moraes” (FARACO & MOURA, 1998, p. 54). Também colabora para as relações interartes a apresentação do livro, bonito, colorido, com boa diagramação. Conforme a apresentação do livro, seu objetivo é a “apresentação da cronologia dos estilos de época de nossa literatura e a análise dos diferentes recursos expressivos de cada um desses estilos” (FARACO & MOURA, 1998, p. 5). Por se tratar de um livro didático, infere‐se desse objetivo uma concepção hermética do texto literário. Não se verifica, ao longo dos capítulos, aquela importância dada ao aluno‐leitor na teoria, conforme demonstrado no início deste artigo, de modo que não só o aluno, mas também o professor, exercem um papel passivo no processo ensino‐aprendizagem, e a ênfase vai toda para o texto, desconsiderando o leitor e mesmo o contexto histórico ‐ da produção e da recepção da obra. Para nós, essa característica hermética do texto aproxima‐se da orientação metodológica intrínseca de análise literária, na qual o crítico, ou o aluno‐leitor no do livro didático, deve ater‐se apenas ao texto como um objeto autônomo, sem levar em conta os aspectos sociológicos, filosóficos, políticos, culturais e ideológicos de que provém. Considerações finais Infelizmente, a metodologia e a subjacente concepção de literatura e ensino utilizada em Literatura brasileira não é exclusividade dessa obra; ao contrário, proliferaram nos livros didáticos e estão enquadradas em uma tradição resistente a novas propostas para o ensino da literatura, o que já foi constatado por Vera Teixeira de Aguiar (1994, p. 8): VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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Página | 47 LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS A análise dos livros didáticos em circulação nas escolas permitiu o esboço das concepções de literatura e educação veiculadas. A noção de autonomia do texto, a dissociação entre conhecimento histórico, estético e literário e a noção fragmentada de estilos de época acentuam a interpretação evolucionista dos fatos e sua descontextualização histórica. O arranjo de informações não referenciais e previamente valoradas e a apresentação de exercícios reprodutivos, individuais e dirigidos denotam um projeto educacional disposto a contribuir para o crescimento da massa e a pulverização do indivíduo. Em contraposição a esse paradigma de livro didático e consequente concepção de ensino de literatura, apresentamos, além das propostas de Mello (1998), o método recepcional e o método semiológico para o ensino da literatura, de Bordini & Aguiar, que colocam o aluno‐leitor em lugar de destaque, como sujeito ativo no processo de ensino‐aprendizagem. Serviremo‐nos novamente de uma citação que contém os pressupostos políticos de nossa concepção de literatura e ensino: A concepção de educação que [os métodos recepcional e semiológico] defendem está ligada à noção de transformação sócio‐cultural, que só se viabiliza através de um ensino eminentemente voltado para a realidade do aluno e que deseja alcançar, como dividendo final, uma postura crítica ante o mundo e a práxis social. Toda a atividade de literatura deve, em conseqüência dessas premissas, resultar num fazer transformador: numa leitura em que o aluno descobre os sentidos e reelabora aquilo que ele é e o que pode ser. (BORDINI & AGUIAR, 1988, p. 43) Este trabalho contém muitas críticas, as quais acreditamos serem construtivas. Se fomos rigorosos, a justificativa está na importância da literatura na formação do homem, e na eleição do pressuposto de que a obra analisada destina‐
se ao ensino da literatura. ANEXO Guião de leitura prévia d’Os Maias (MELLO, 1998, p. 371‐373) Capítulo I (pp. 5‐31) ‐ 1.° dia Prestar atenção ao primeiro período do texto: “A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela Casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete” (p. 5). Os elementos por nós sublinhados no trecho citado destacam‐se neste breve início do romance e dizem respeito a três categorias VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS da narrativa: espaço, personagem e tempo. Notar, ao longo da leitura deste primeiro capítulo, o desenvolvimento dado, pelo narrador, a este incipit do romance. Depois de lido o capítulo, procurar explicar as duas seguintes questões: a) Quem eram os Maias? (responder elaborando fichas com o registo de todos os elementos que permitam identificar as personagens representadas no capítulo); b) Que importância é concedida ao Ramalhete? (responder com referências a elementos físicos e simbólicos da descrição). Capítulo II (pp. 32‐52) ‐ 2.° dia Partindo da leitura da primeira página, do segundo capítulo, inferir qual o assunto nele desenvolvido. Após a sua leitura, completar a caracterização de Pedro da Maia e de Maria Monforte. Capítulo III (pp. 53‐86) ‐ 3.° dia O capítulo III apresenta o espaço de Santa Olávia, para onde vão viver, depois do suicídio de Pedro, o protagonista do romance, Carlos Eduardo da Maia e seu avô, Afonso da Maia,. Retirar informações do texto sobre a educação de Carlos. Capítulo IV (pp. 87‐112) ‐ 4.° dia Indicar a função deste capítulo, considerando o que, até este momento, é dado a conhecer a respeito de Carlos. Reflectir sobre o texto seguinte: “Carlos, naturalmente, não tardou a deixar pelas mesas, com as folhas intactas, os seus expositores de medicina. A Literatura e a Arte, sob todas as formas, absorveram‐no deliciosamente” (p. 90). Que espécie de personagem se nos afigura? Que relações podemos deduzir entre o Carlos que o avô educara para “ser útil aos seu país”(p.88) e o Carlos que começa a revelar‐se um dandy e um ocioso diletante? (pp. 98 e 128 ss.) Capítulo V (pp. 113‐144) ‐ 5.° dia Retirar elementos do capítulo que permitam compreender a vida de Carlos em Lisboa, caracterizada pelo mesmo diletantismo que revelara enquanto estudante em Coimbra. De que se ocupa Carlos em Lisboa? Nomear as suas relações sociais. Capítulo VI (pp. 145‐185) ‐ 6.° dia Referir o acontecimento crucial, neste capítulo, para o evoluir da intriga principal. Indicar espaços e ambientes significativos no respeitante à representação de mentalidades. Capítulo VII (pp. 186‐217) ‐ 7.° dia Reler os elementos registados a propósito do capítulo anterior. Inferir VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS sentidos sobre a intriga amorosa. Pôr hipóteses sobre a sua evolução, isto é, as direcções que poderá tomar. Capítulo VIII (pp. 218‐251) ‐ 8.° dia Seleccionar uma passagem significativa do ponto de vista semântico e estilístico. Capítulo IX (pp. 252‐299) ‐ 9.° e 10.° dias Tendo em conta a importância dos ambientes, comentar a cena mais significativa do Baile dos Cohens e a imagem que Carlos captou dos condes de Gouvarinho, no dia em que fora ao chá na sua residência. Capítulo X (pp. 300‐344) ‐ 11.° e 12.° dias Explicar a importância do episódio de natureza social que ocupa um grande espaço neste capítulo. Capítulo XI (pp. 345‐380) ‐ 13.° e 14.° dias Mencionar os factos que fazem avançar a intriga neste capítulo. Capítulo XII (pp. 381‐419) ‐ 15.° dia Indicar os acontecimentos mais importantes da intriga principal. Capítulo XIII (pp. 420‐446) ‐ 16.° dia Carlos e Maria Eduarda visitam a Quinta dos Olivais. Comentar este momento da narrativa. Capítulo XIV (pp. 447‐502) ‐ 17.° e 18.° dias Que planos fazem Carlos e Maria Eduarda para o seu futuro? Referir o propósito e as conseqüências da visita de Castro Gomes a Carlos, no Ramalhete. Capítulo XV (pp. 503‐581) ‐ 19.°, 20.° e 21.° dias Redigir sínteses provisórias relativas à intriga principal e à vida social ao redor de Carlos, implicando personagens, atitudes, planos e acontecimentos. Capítulo XVI (pp. 582‐625) ‐ 22.° dia Antever as conseqüências da peripécia que tem lugar no Sarau do Teatro da Trindade. Capítulo XVII (pp. 626‐687) ‐ 23.° e 24.° dias Referir, por tópicos, os principais acontecimentos deste capítulo, relacionados com a intriga principal. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS Capítulo XVIII (pp. 688‐716) Este capítulo dá‐nos a conhecer a vida de Carlos depois da separação de Maria Eduarda e da morte de Afonso. Reflectir e comentar a posterior tragectória de Carlos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, Vera Teixeira. “Um livro didático para a pós‐modernidade”. Porto Alegre: PUC, 1994. Relatório de Pesquisa (mimeo). BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. BORDINI, Maria da Glória & AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. CÂNDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira; momentos decisivos. São Paulo: Martins Editora, 1985. COUTINHO, Afrânio (dir.). A literatura no Brasil.Vol. I. Rio de Janeiro: Sul Americana, 1968. EAGLETON, Terry. “Introdução: o que é Literatura?” In:___ Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 1‐17. FARACO, Carlos Emílio & MOURA, Francisco Marto. Literatura Brasileira. 9. ed. São Paulo: Ática, 1998. MELLO, Cristina. O ensino da literatura e a problemática dos géneros literários. Coimbra: Almedina, 1998. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
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LEITURA LITERÁRIA E ENSINO DE LITERATURA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS LITERARY READING AND TEACHING LITERATURE: ANALYSIS OF TEXTBOOKS ABSTRACT: Aiming to contribute to teaching literature in schools focused on the reader and on the promotion of literary reading, this article analyzes the Brazilian literature textbook of Faraco & Moura. Shows that the work deviates from the assumptions on dialogic pedagogical orientations that value to schooling as a social practice, to get closer to a conception of literature focused on the hermetic character of the literary text. The relevance of the study lies in providing a critical view of the textbooks for the teaching of literature. Keywords: Formation of the reader, promoting literary reading, ideology in the textbook. Recebido em 12 de maio de 2010; aprovado em 25 de junho de 2010. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [38 – 51]
Os textos são de responsabilidade de seus autores. A UCRANIEDADE NA POÉTICA DE TARÁS CHEVTCHENKO E HELENA KOLODY Marta Beló1 Dra.Rosana Gonçalves2 RESUMO: Busca‐se acentuar pontos de consonância entre a poesia de Tarás Chevtchenko e Helena Kolody, principalmente em relação ao sentimento de ucraniedade que ambos os poetas expressaram em seus poemas. O poeta ucraniano e a poeta brasileira revelaram, resguardadas as suas particularidades e seus momentos de expressão, um amor incondicional pelo povo e pela cultura ucranianos, demonstrando aguda sensibilidade poética. PALAVRAS‐CHAVE: ucraniedade; lírica; Helena Kolody; Tarás Chevtchenko. Introdução. Este artigo pretende acentuar o tom patriótico da poesia de Tarás Chevtchenko e Helena Kolody, ressaltando suas características individuais, discutindo a temática da nacionalidade ucraniana do sentimento de exílio em seus poemas e buscando pontos de ressonância entre eles. Tarás Chevtchenko é considerado o poeta maior da Ucrânia e sua refinada arte ajudou a redimir a língua ucraniana e a firmá‐la no âmbito da literatura universal. Pela poesia, Tarás encorajou seus compatriotas, intimidados com a cruel opressão dos czares russos, a reagirem contra a servidão a que estavam submetidos pelos nobres, incentivando‐os a lutarem pela independência da Ucrânia. Embora tenha nascido no Brasil, Helena Kolody foi criada em um ambiente que procurava preservar a cultura ucraniana. Habitando em colônias de imigrantes ucranianos, ela teve como primeira língua a ucraniana, presente nas conversações familiares, nos ritos religiosos e no dia‐a‐dia de sua infância. Em muitos de seus poemas, Helena demonstra compreender os sentimentos que perpassaram o povo ucraniano, arrancado de suas terras por inúmeras guerras, e que, mesmo sendo acolhidos em terras brasileiras, conservaram o amor e a saudade pela terra natal, daí a luta pela preservação da sua cultura. Muitos dos seus poemas remetem à lembrança de Tarás Chevtchenko, o poeta revolucionário, ícone da resistência humana ao czarismo. A presença de consonâncias entre os dois poetas será verificada a partir do método comparativo, essencial para os estudos literários, porque, por meio dele obtém‐se resultados mais sólidos e juízos de valor mais convincentes.
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UNICENTRO ‐ [email protected] VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
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Esta afirmação encontra respaldo na definição de Claude Pichois e André Rousseau, presente no artigo “Para uma definição da literatura comparada”, que justifica tal prática: A literatura comparada é a arte metódica, pela busca de laços de analogia, de parentescos e de influência, de aproximar a literatura dos outros domínios da expressão ou do conhecimento, ou então os fatos e os textos literários entre si, distantes ou não no tempo ou no espaço, desde que pertençam a várias línguas ou culturas, que façam parte de uma mesma tradição, para melhor descrevê‐
los, compreendê‐los e saboreá‐los. (APUD CARVALHAL & COUTINHO, 1994, p.216). Vê‐se, com isso, que pode‐se, por meio da comparação, estabelecer analogias e buscar uma assimilação entre os diversos pontos, divergentes ou não, existentes entre determinados autores, assim como as peculiaridades que perpassam determinadas obras. Segundo Tânia Franco Carvalhal (1994), o surgimento da Literatura Comparada presente no século XX, está relacionado com a corrente cosmopolita do século XIX, que faz referência à pessoa que vive em diversos países, julgando‐a ser cidadã do mundo inteiro. Os pensadores mais destacados dessa área são Jean–
Jacques Ampere, Villemain, Quinet, grandes escritores cosmopolitas da Idade Média, porém, o livro Comparative Literature, de M. H. Posnett, publicado em 1886, é o grande marco de inauguração das pesquisas comparatistas. O grande impulso nos estudos comparativos aconteceu a partir da segunda metade do século XX e, no Brasil, foi marcado pela criação e admissão da Literatura Compada como disciplina constante nos curso de Letras, por iniciativa dos professores La Fayette Cortes e Antonio Candido, na Universidade da Guanabara e na USP Alguns acontecimentos dos anos 80 são pertinentes para melhor entendermos as origens da Literatura Comparada. Dentre os quais, Sandra Nitrini (2000), destaca: a criação da ABRALIC‐Associação Brasileira de Literatura Comparada no ano de 1986, em Porto Alegre, por ocasião do I Seminário Latino–
Americano de Literatura Comparada; também o I Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, em 1988 na UFRGS ‐ Universidade Federal de Rio Grande do Sul e o II Simpósio de Literatura Comparada na UFMG ‐ Universidade Federal de Minas Gerais. De grande renome foi a publicação do livro Literatura Comparada de Tânia Franco Carvalhal, em 1986, destinado ao uso acadêmico. Nesse contexto comparativo os escritores podem apoiar‐se em fontes de outros escritores, estrangeiros até, com os quais têm a oportunidade de trocar ideias sobre os costumes, a política e as temáticas de uma forma geral, pois, conforme as palavras de Coutinho e Carvalhal (1994, p.225), “(...) a literatura comparada tece uma espécie de teia de aranha entre os autores de diversas VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
Marta Beló (G)/ UNICENTRO Dra.Rosana Gonçalves/ UNICENTRO A UCRANIEDADE NA POÉTICA DE TARÁS CHEVTCHENKO E HELENA KOLODY Página | 54 literaturas (...)”, proporcionando com isso maior conhecimento e interação entre as literaturas de diversas nações. Para Jean Marie Carre, estudar de forma comparada não é apenas levantar pontos em comum entre os autores, mas segundo Mario François Guiard, é levantar “(...) relações espirituais entre as nações, relações que de fato existiram, (...) entre as obras, as inspirações, até as vidas de escritores pertencentes a várias literaturas” (APUD CARVALHAL & COUTINO, p.7‐8). ou seja, comparar, para ele, não é simplesmente confrontar temas ou ideias, mas é refletir os fatos históricos destacados por mais de uma obra e, a partir de então, torná‐los mais visíveis. Há anos, escritores e críticos vêm questionando a importância da Literatura Comparada para o ensino da literatura. São questões não apenas referentes a “o que é “ou “para que serve” esta literatura, mas sim questionamentos mais complexos e polêmicos como os levantados por Nitrini, nas considerações finais da sua obra Literatura Comparada, e que dão impulso para seu desenvolvimento: Como ela está contribuindo efetivamente para o avanço e aprimoramento dos estudos, reflexões e leituras comparatistas que venham a ter desdobramentos frutíferos também no ensino? Estará ela contribuindo para o resgate do gosto de leituras de obras literárias e para o interesse em penetrar no mundo de outras culturas, pelo domínio da língua dessas culturas? Tem ela uma função humanista em nossos dias? Se não tiver, valerá a pena resgatá‐la? Possui ou não um campo específico ou, pelo menos uma visada própria? Convém mantê‐la como mera etiqueta? Tem ela futuro e perspectivas promissoras? Enfim, existe ainda uma razão para sua existência?” (NITRINI, 2000, p.289). Por seu caráter mutável, adaptável e eclético, a literatura comparada pode ser ajustada às diferentes correntes ou áreas literárias presentes em cada época. Seu terreno, além de amplo, é fértil, por proporcionar uma interação entre autores de diversas tempos, espaços, gêneros, etc. Em síntese, Tânia Carvalhal diz que (...) a literatura comparada compara não pelo procedimento em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita a esse estudo literário uma exploração adequada de seus campos de trabalho e do objetivo a que se propõe (CARVALHAL, 1986, P.7). A partir dessas perspectivas arroladas e pactuando com as mesmas reflexões e inquietações sobre as formas comparativas de se abordar o fenômeno literário, pretendemos estabelecer comparações entre o poeta ucraniano romântico Tarás Chevtchenko (1814‐1861) e a poeta brasileira, de origem ucraniana, Helena Kolody (1912‐2004), principalmente no que se refere ao sentimento de ucraniedade presente em seus poemas. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
Marta Beló (G)/ UNICENTRO Dra.Rosana Gonçalves/ UNICENTRO A UCRANIEDADE NA POÉTICA DE TARÁS CHEVTCHENKO E HELENA KOLODY Página | 55 2) Um poeta da Ucrânia. Filho de pobres camponeses ucranianos, Tarás Chevtchenko nasceu no dia 9 de março de 1814, na aldeia Mórynstsi, na região de Zvenyghorod. Sendo o terceiro filho do casal, antes dele, nasceram Meketa e Katarena e, mais tarde, veio ainda Iarena, Ossep e Maria, que nasceu cega. Desde criança, Tarás teve uma vida sofrida. Aos nove anos de idade perdeu sua mãe, fato que o deixou muito abalado. Posteriormente, escreveu recordando aqueles tempos difíceis à margem da vila, numa vida excluída da sociedade: Chego a tremer quando recordo Aquela casinha à margem da vila. ........................................................ Ali minha mãe me agasalhava E em panos enrolando‐me cantava, Transferindo seus sentimentos de amargura Para seu filho; naquele bosque, O inferno eu via... (CHEVTHENKO,apud CZAIKOWSKI, 1999, p 07) O lar familiar, por sua vez, tornou‐se mais infernal quando seu pai casou‐se com uma viúva que não o suportava. Inúmeras vezes, o pequeno Tarás precisou fugir e passar dias e noites escondido no bosque sem ter o que comer nem lugar para dormir. Sabendo disso, o pai começou a levá‐lo junto nas viagens marcadas pelo seu patrão. Além de um leitor assíduo, seu pai era convicto de que só a alfabetização poderia propor um futuro melhor para seus filhos, por isso, matriculou Tarás na escola da aldeia. na qual um sacristão lecionava. A disciplina era rígida demais para Tarás, um menino esperto e inquieto. Por causa disso, mal sabendo ler, abandonou a escola. Com onze anos de idade, Chevtchenko perdeu o pai. Para não morar com a madrasta e, sabendo que viera outro sacristão para a aldeia, foi morar com ele, tornando‐se seu auxiliar em todas as tarefas. Nos ofícios fúnebres, cabia‐lhe recitar os salmos que, de tanto repeti‐los, sabia‐os de cor. Com esse novo jeito de viver, Tarás familiarizou‐se ainda mais com os livros, com as palavras poéticas presentes nos salmos. Certa vez, o sacristão ficou embriagado, e Tarás cansado de ser injustiçado, deu‐lhe uma bela surra abandonando‐o e levando consigo apenas um livrinho de ilustrações feito com dobras de folhas de papel, compradas com a moeda que havia roubado do próprio professor; pois não era pago pelo serviço que realizava. Sonhando em ser artista, em 1829 com quinze anos, viajou junto com seu senhor, um oficial de justiça do exército russo, para Varsóvia, porém, antes passaram por Vilma, na Lituânia e ficaram acomodados num palácio. O jovem artista impressionado com os quadros do palácio resolveu copiá‐los, à luz de vela, mas foi VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
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flagrado pelo severo patrão, que lhe deu uma tremenda surra. Em Varsóvia, seu patrão Pavló Engelhardt, encaminhou Tarás para estudar pintura pensando em, futuramente, tirar proveito próprio. Com o passar do tempo, o aprendiz fez amizades com outros artistas, dentre os quais Ivan Sochenko, estudante da Academia de Artes, e Ievhen Hreleinka, com a ajuda do qual Tarás teve acesso à mais completa biblioteca de São Petersburgo, podendo estudar os autores ucranianos, seus escritores prediletos. Sendo ainda servo, não era totalmente livre para usufruir da Academia, mas seus amigos arrecadaram dinheiro com a rifa de um quadro para conseguir a sua liberdade. Escrevendo incansavelmente, logo publicou “Poslanei” (Mensagem), no qual, sem rodeios, critica os ricos e nobres que maltratam o povo e, sem medo, escreveu muitos outros nesta linha. Porém, as consequências não tardaram a chegar. No dia 5 de abril de 1847, quando chegou em Keyv para o casamento de seu amigo Kostomariv foi preso, incriminado pelos próprios poemas. Na prisão, enquanto aguardava o julgamento, escreveu 13 poemas, dedicando‐os aos seus amigos que também tinham sido presos. Foi condenado a 10 anos de prisão e exílio para a cidade de Orenburg, obedecendo a mais severa disciplina, sendo até proibido de escrever e pintar. Mesmo assim, escrevia enquanto todos dormiam. Em maio de 1848, o militar e geólogo russo Butakov, levou Chevtchenko para uma viagem científica até o mar Aral, para que este lhe desenhasse as paisagens daquela região. Tratado como profissional, o artista, desenhou e pintou livremente, aproveitando para escrever – compor poemas. Em outubro de 1851, retornou ao cárcere, porém, já tendo conquistado o comandante, conseguiu continuar escrevendo. Finalmente, no dia 21 de julho de 1857 foi libertado, retornando para a Academia de Artes e especializando‐se na arte da gravura. Junto com seus amigos, continuou trabalhando para o bem do povo ucraniano, editando livros e um jornal na língua ucraniana. Além desses, publicou a obra intitulada Poesias de Taras Chevtchenko. No entanto, a censura tzarista, temendo maiores problemas com o governo, fez vários recortes na obra do poeta, mudando inclusive o título para Kobzar, publicada em janeiro de 1860, bastante desfigurada e incompleta. Conseguiu voltar à Ucrânia em 25de maio de 1859, pretendendo resgatar seus familiares da servidão. Por onde passava, Chevtchenko ia documentando sua passagem em obras poéticas. Estando com sua irmã Iarena, dedica‐lhe o poema “Sestri” (a irmã), confortando‐a. Visitando seu primo Varfolomei, Chevtchenko, encontrou‐se com o polonês Kozlóvski e, após uma longa conversa foi acusado pelo mesmo de difamação contra a religião e blasfêmia contra as autoridades. Após o julgamento, foi mandado de volta para São Petersburgo, sendo proibido de voltar para Ucrânia. Sobreviveu os primeiros anos vendendo as suas pinturas e, somente em fins de 1859, a censura aprovou a publicação de seus poemas podendo aumentar a sua renda. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
Marta Beló (G)/ UNICENTRO Dra.Rosana Gonçalves/ UNICENTRO A UCRANIEDADE NA POÉTICA DE TARÁS CHEVTCHENKO E HELENA KOLODY Página | 57 Em 1860, publicou seu novo Kobzar aumentando ainda mais a sua fama. Em seus escritos, revelou‐se preocupado com a libertação do povo, sempre desejando divulgar a história da Ucrânia, conscientizando e instruindo sua nação; por isso, com o seu dinheiro publicou uma cartilha chamada Bukvar (abecedário) para contribuir na alfabetização do povo. Nesta época, sua saúde estava bastante debilitada. Morreu em 11 de março de 1861, após ter completado 47 anos no dia 10 do mesmo mês. 3) Helena Kolody: vida e poética. “São as palavras que decidem a sorte dos homens e o destino das nações.”(Helena Kolody) Filha de imigrantes ucranianos, Helena Kolody, nasceu no dia 12 de outubro de 1912, na colônia de Cruz Machado. Seu pai Miguel Kolody, natural da Galícia Oriental, veio para o Brasil em 1894, um ano depois da grande epidemia de cólera que castigou a Ucrânia. Em 1911, sua mãe, Victória Szandrowska, também chegou ao Brasil. Ambos conheceram‐se, casando‐se em janeiro de 1912. Em 1980, Helena escreveu o poema “Saga”, no qual enaltece suas raízes e sua infância: Vim da Ucrânia valorosa, que foi Russ e foi Rutênia. (...) vim de meu berço selvagem, lar singelo à beira d’água, no sertão paranaense.(...) Feliz menina descalça, Vim das cantigas de roda, dos jogos de amarelinha, Do tempo do “era uma vez...” (KOLODY, 1980, p.65) Como se pode notar, a poesia de Helena traz à luz certa nostalgia, isto é, lembranças passadas de suas raízes da terra mãe – Ucrânia. Além disso, o eu poético rememora saudosamente os tempos de infância. Tempos onde as brincadeiras saudáveis realizavam e alegravam as crianças, porém, assim como Tarás, Helena enfrentou dificuldades na sua infância, vivendo situações parecidas, em momentos de crises financeiras enfrentadas na cidade, onde cada um cuida apenas de si sem preocupar‐se com o próximo. Este contexto é narrado no poema “Reminiscência”: Ai, como a casa pesava Na minha infância sombria!(...) VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
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A venda sempre vazia, De teias toda se enchia E o pó crescia no chão. Aquela gente não via. Aquela gente sem coração (...) (KOLODY,1941, p.148) Nos versos seguintes do mesmo poema, temos a presença paterna que, assim como o pai de Tarás, que foi lutador e herói, da mesma forma o foi Miguel Kolody, nos momentos difíceis da sua família: O Pai quase não falava Só fumava, só fumava! E já quase não sorria (...). Calado, o Pai refletia. Refletia e suspirava. (...) À noite o Pai recontava A magra féria do dia (...) Pai lutou, até que um dia, com ar de quem se matava, vendeu a casa sombria(...)” (KOLODY,1941,p.148) Helena estudou piano, pintura e com 12 anos escreveu seus primeiros versos. Aos 16 anos, seu poema “A Lágrima” é publicado pela revista Marinha, de Paranaguá, em 1928. Conta a poeta em seu livro Viagem no Espelho, que aos vinte anos de idade já trabalhava como professora do Ensino Médio e na escola de professores de Jacarezinho. E também como inspetora de um colégio público. Em 1941 publica Paisagem Interior, com haikais, forma poética de origem japonesa e tanka, que tem a mesma estrutura do haikai, porém, acrescida de dois versos heptassílabos. É considerada a mulher pioneira na publicação deste tipo de poemas no Brasil nos anos de 1941. Recebe o título de poeta mais importante do estado do Paraná, revelando pela poesia, sentimentos de solidariedade para com o povo inquieto diante da condição humana em que estavam. Paisagem Interior contém 45 poemas, dentre os quais “Arco‐íris”, “Prisão” e “Felicidade” eram haikais, sendo o primeiro o mais apreciado pelos seus leitores. Entre as inúmeras temáticas presentes em suas obras. ressalta‐se: a brevidade da vida, a qual ora é exaltada, ora é recusada, o amor, a morte, a solidão e seus sentimentos de solidariedade para com seus antepassados. Essa ilustre estrela que iluminou a todos seus irmãos ucranianos foi vencedora de vários concursos, tema de filme, peça teatral e teses universitárias; faleceu em Curitiba,em 15 de fevereiro de 2004, com 92 anos de idade, porém, deixou para nós os seus valorosos ensinamentos sobre o valor da vida, a busca dos ideais e a necessidade do sonho. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
Marta Beló (G)/ UNICENTRO Dra.Rosana Gonçalves/ UNICENTRO A UCRANIEDADE NA POÉTICA DE TARÁS CHEVTCHENKO E HELENA KOLODY Página | 59 4) Um paralelo temático entre :Chevcthenko e Kolody O poeta, em certas ocasiões, pode ser visto como aquele que de forma particular clama pelo seu povo, denunciando as injustiças, a falta de amor e solidariedade com o ser humano. Através de poemas, temos o conhecimento da história e dos acontecimentos passados, porém, para realizar esta tarefa, muitos desses corajosos poetas acabam entregando as suas vidas em prol de um povo, de uma nação. Por meio de seus poemas, é possível dizer que, Chevtchenko e Kolody, cantam e encantam com suas poesias, narrando as alegrias e tristezas não só de suas vidas particulares, mas, sobretudo, de todo o povo ucraniano. A partir de suas biografias e de seus poemas, procuraremos ilustrar, por meio da análise comparativa, reflexões que tratam do exílio e da imigração ucraniana na perspectiva de ambos os poetas. Livre, Tarás, finalmente conseguiu frequentar a Academia de Artes. A partir de então, tudo o que pensava e sentia sobre a sua Pátria, ele registrava em folhas de papel, guardando‐as em uma caixinha. Certa vez, vem à casa de Hrebinka, na qual morava Tarás, o nobre ucraniano Petro Martos. Passando pelo ateliê do nosso poeta encontra ali uns versos manuscritos e encanta‐se com o patriotismo do poema “Tarassova Nitch” (Noite de Tarás): [...] (...) Ukraína entristeceu‐se ‐‐ esta é a sua sina! Entristeceu‐se e chora, como criança pequena, ninguém a consola... Se os cossacos morrem, morre a glória, morre a pátria, não há como defender‐se. [...] Triste minha Ucrânia, pelos inimigos espezinhada! Ukraína, Ukraína! Minha mãe, querida! Quando de ti eu me lembro, o meu coração chora... [...] Aquelas glórias do passado jamais apagaremos (...) [...] As suas mãos não mais tocam. E, ao redor, meninos e raparigas VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
Marta Beló (G)/ UNICENTRO Dra.Rosana Gonçalves/ UNICENTRO A UCRANIEDADE NA POÉTICA DE TARÁS CHEVTCHENKO E HELENA KOLODY Página | 60 as lágrimas enxugam. Perambulando pelos caminhos e, vez em quando, tocar a kobza ele queria para espantar a sua sorte fria! (CHEVTHENKO,apud CZAIKOWSKI, 1999) Martos pega esse e mais sete poemas encarregando‐se de publicá‐los. Esta coletânea é lançada em 1840 com o nome de KOBZAR. Esses momentos de tristeza vivenciados pelo povo ucraniano, certamente, acompanharam‐no por muitos anos de lutas e guerras. Tarás Chevtchenko é considerado um profeta por seus poemas com temática nacional. Nos versos de “Testamento”, escrito no final de sua vida, o poeta deseja permanecer na memória do povo, com a esperança de conseguir mudar as mentes humanas através da sua poesia. Vendo o povo injustiçado é explícita a revolta de Tarás, até com Deus, a quem diz não conhecer. É forte, também, o seu amor pela pátria mãe, onde, mesmo morto deseja permanecer: Quando eu morrer, sepultem‐me numa colina em meio à estepe ampla, na amada Ucrânia, Para que eu possa ver os vastos campos semeados, o Dnipró, as escarpas e ouvir como ruidoso, ele ruge! Quando for levado da Ucrânia ao mar azul, o sangue inimigo... eu tudo deixarei, campos, montes .... e até a Deus voarei para rezar. mas até então... a Deus desconheço! Sepultem‐me e levantem‐se, quebrem as algemas e com o mau sangue inimigo reguem a liberdade! E não deixem de recordar‐me na grande família, na família livre, nova, com uma boa, suave palavra! ((CHEVTHENKO,apud CZAIKOWSKI, 1999, p 14). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
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Da mesma forma, entre os inúmeros poemas de Helena podemos encontrar alguns dedicados aos antepassados de sua nação, como forma de amor e carinho aos seus co‐irmãos ucranianos. Exemplo disso, é o poema “Atavismo”, onde a própria palavra significa ‐ reaparição, em um descendente, de certos caracteres de um antepassado. Quando estou triste e só, e pensativa assim, É a alma dos ancestrais que sofre e chora em mim. A angústia secular de uma raça oprimida Sobe da profundeza e turva a minha vida. Certo, guardo latente e difusa em meu ser, A remota lembrança dos dias amargos Que eles viveram sem a ansiada liberdade. Eu que amo tanto, tanto, os horizontes largos, Lamento não ser águia ou condor, para voar Até onde a força da asa alcance a me levar. Ante a extensão agreste e verde da campina, Não sei dizer por que, muitas vezes, senti Saudade singular da estepe que não vi. Pois, até o marulhar misterioso e sombrio Da água escura a correr seu destino de rio, Lembra, sem o querer, numa impressão falaz, O soturno Dnipró, cantado por Tarás... Por isso é que eu surpreendo, em alta intensidade, Acordada em meu sangue, a tara da saudade (KOLODY, 1941, p. 182). Neste poema, são expressos os sentimentos e os conflitos de Helena em terras estrangeiras, bem como as suas ligações sanguíneas com os antepassados. Faz memória também, à natureza da Ucrânia, especialmente ao rio Dnipró já cantado por Tarás Chevtchenko, de quem, inclusive, traduziu versos. A respeito deste poema, é importante conhecermos o que nos diz Nicolas Hec, o prefácio à Luz Infinita: Em algumas poesias, começando pela primeira coletânea de 1941 (Paisagem Interior), Helena frisa claramente sua conexão sangüínea e espiritual‐atávica com a pátria de origem, a Ucrânia, com sua história, com seu povo, sua vontade de liberdade e, finalmente, com a imigração ucraniana e sua luta. Aquela pátria original com seu povo sofredor e sedento de liberdade VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
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acorda na alma da poeta, na lembrança de seu sangue, um sentimento pungente de dor, de sofrimento. “A alma dos ancestrais sofre e chora em mim”. Porém, a imaginária paisagem ucraniana “estepes de urzes floridas”, “bosques de bétulas”, o “Dnipró” cantado por Tarás” e os cânticos ucranianos enchem a poeta com saudade antiga e aquecem seu coração com ternura e alegria (HEC, 1987). Naturalmente, percebemos a forma diferenciada que cada um dos poetas narra sobre a mesma temática. Tarás descreve sobre o exílio contando, inclusive, as próprias experiências vividas e da mesma forma o faz com as lutas e guerras enfrentadas pelo povo ucraniano, as quais presenciou. Helena, porém, poetiza os fatos e histórias que ouviu de imigrantes ou nas leituras dos versos de Tarás, os quais traduziu, e a partir desse conhecimento expressou seus sentimentos diante do povo que viveu oprimido na Ucrânia. Através do seu poema “Lição”, dedicado em memória à avó Nastácia, é possível perceber que o sentimento de exílio sempre acompanhou a poeta, a qual vivia em sua terra natal ‐ o Paraná, aprendendo as tradições e as memórias da família eslava, conforme deixa descrito nos versos: A luz da lamparina dançava frente ao ícone da Santíssima Trindade. Paciente, a avó ensinava a prostrar‐se em reverência, persignar‐se com três dedos e rezar em língua eslava. De mãos postas, a menina fielmente repetia palavras que ela ignorava, mas Deus entendia. (KOLODY, 1980, p.31) Durante a sua carreira de poeta, Chevtchenko sofreu influência do Romantismo, porém, tratou seus versos a seu próprio modo e meio de expressão. Iniciou os primeiros versos no exílio, em folhas dobradas em forma de caderninho, as quais eram escondidas dentro das suas botas, por isso, seus poemas foram chamados de “Zahallávni” = “dentro do cano da bota”. Poemas meus, poemas meus! Sois só o que me resta! Ao menos vós não me abandoneis Na hora da desgraça!... (CHEVTHENKO,apud CZAIKOWSKI, 1999, p.23) VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
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Nos versos acima, Tarás deixou claro o seu espírito poético e o seu grande amor pela escrita ‐ a sua única amiga fiel companheira até na hora do exílio com a qual pode humanizar e ensinar o mundo. Além dos temas folclóricos, inspirou‐se de forma particular na trágica história da Ucrânia a qual vivenciou, diferentemente de Helena, que apenas a conheceu pelos outros. Para o poeta, segundo o que nos fala Mariano Czaikowski’’ O passado da Ucrânia era para ele não só uma fonte de tristes recordações e melancólica meditação, como também uma ferida aberta que não parava de sangrar. ’’(CZAIKOWSKI, 1999, p.38). No poema “O Sonho”, vemos em alguns versos o poeta querendo livrar‐se de toda essa tristeza: “Voa tu, meu canto, meu cruel castigo, /Leva junto mágoas lágrimas e dor, /Tua companhia, teu amor amargo”. Seus sentimentos de angústia e dor perpassam também o poema “Pensamentos”, no qual, a questão da indiferença entre as nações foi bem trabalhada: Ninguém indagaria por que choro, Por que arrasto essa angústia pelo mundo E meu destino triste assim deploro. Ninguém me chamaria vagabundo, Rindo da minha dor com riso alvar (CHEVTHENKO,apud CZAIKOWSKI, 1999, p.29). Nos versos acima, vislumbramos um poeta solitário, angustiado, porém, nos versos de “O Sonho”, é marcante o desejo de confraternização entre as nações, embora Tarás revolte‐se contra os tiranos, não importando se eram estrangeiros ou nacionais: Aos empurros ‐ um patrício. Dei uma topada Nos botões de zinco. “Donde Vieste, camarada?” “Da Ucrânia.” “Não conheces A fala erudita Das pessoas cá do Norte?” “A linguagem dita Sei falar, porém não quero”. “És estranho, vejo, Mas eu sirvo aqui e conheço Todos os manejos (CHEVTHENKO,apud CZAIKOWSKI, 1999, p 43). Em visita à Ucrânia, em 1845, o poeta ficou decepcionado com a questão social. O povo já havia esquecido o passado e vivia apenas preocupado com o materialismo. Revoltado com o império dos tzares russos, que haviam destruído a VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
Marta Beló (G)/ UNICENTRO Dra.Rosana Gonçalves/ UNICENTRO A UCRANIEDADE NA POÉTICA DE TARÁS CHEVTCHENKO E HELENA KOLODY Página | 64 liberdade do povo, começou a escrever mais criticamente. Escreveu, nessa época, o poema ‘’Cáucaso’’, expressando a sua idéia e revolta sobre a política: Além das montanhas ‐ montanhas veladas, De dores cobertas de sangue regadas. Uma águia potente Ao titã injura, O coração despedaça, O peito perfura, Dilacera. (...). (CHEVTHENKO,apud CZAIKOWSKI, 1999, p.30). Nestes versos, é possível perceber toda a pressão da Rússia tzarista sobre a Ucrânia: a águia do poema é uma metáfora usada para designar Rússia com todos seus poderes que oprimia e dilacerava a Ucrânia, nomeada no poema como titã por ser eterna. Segundo Mariano Czaikowski (1999), Chevtchenko tinha o sonho de tornar a língua ucraniana uma língua universal. Referindo‐se à universalidade e à ideia de transitoriedade do poeta, Helena Kolody afirma: Seu livro ‐ Kobsar ‐ passa de pais a filhos, como herança sagrada; a tradição oral transmite seus poemas de geração em geração como se fossem orações. Repassados de acendrado amor, seus versos mantém vivo no coração ucraniano o sentimento da pátria, o anseio de liberdade, a lembrança do passado heróico. Poder‐se‐ia dizer que seus poemas fazem ecoar na alma dos ucranianos, dispersos por todos os quadrantes do mundo, as palavras do Hino Nacional: “A Ucrânia ainda não morreu” (KOLODY, 1962, p. 2). Os poema “Cáucaso” e “O Sonho” foram os que tiveram maior peso para que o exílio de Tarás se concretizasse. No último, é nítida a crítica ao sistema político, que, conforme o poeta, age com extrema falsidade: Cada qual tem seu destino, Seu caminho vasto; Um constrói, um destrói: Com olhar nefasto Os confins do mundo mede, Busca a terra nova Para espoliar e consigo Levar para cova. Um descasca com baralho Uma casa amiga, Um afia as escondidas A arma fratricida. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
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Um, quietinho, piedoso, Manso, mas atento, Como um gato se aconchega, Aguarda o momento ‐ Zás!Teu fígado perfuram Garras venenosas; Não adianta choros‐rogos Dos filhos, da esposa. (...) (CHEVTHENKO,apud CZAIKOWSKI, 1999, p.58) Tarás sonhava em ajudar seus compatriotas a reagirem contra a servidão e a lutarem pela sua independência e, por isso, dizia incentivando‐os: “Lutai irmãos, e vencerei! Esta é nossa cina: Conosco esta a liberdade E a verdade divina”. ( CHEVTHENKO,apud CZAIKOWSKI, 1999, p.30) Também Helena faz alusão aos dominadores da Ucrânia no poema “Saga”, quando refere‐se aos Vikings, que foram os primeiros a dominarem o país deixando marcas inesquecíveis para o povo ucraniano: Vim dos vikings navegantes, Cujas naus aventureiras Traçaram rotas nos mapas. Ousados conquistadores Fundaram Kiev antiga, Plantando um marco na história De meus ancestrais (...). E, ainda na 3ª estrofe, nos dois primeiros versos, fala da formação da Ucrânia como Estado: “Vim da Ucrânia valorosa, / que foi Russ e foi Rutênia.”. Nos dois versos seguintes, a poeta lembra a luta enfrentada pelos imigrantes que saíram do seu berço de origem à procura de melhora, movidos pelos sentimentos de esperança e saudade : Vim das levas imigrantes Que trouxeram na equipagem A coragem e a esperança. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
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Em sua luta sofrida, Correu no rosto cansado, Com o suor do trabalho, O quieto pranto saudoso (...). (KOLODY, 1980, p.65) Nos versos de “Imigrantes eslavos”, temos o encontro do avô, certamente imigrante, com seu neto, ao qual vai contando as experiências vividas, numa língua confusa, contudo, compreendida pelo neto que se alegra e aprende sobre a sua cultura com essas histórias: Cabeça branca do neto. Cabeça branca do avô. Luar noturno e geada, Que é orvalho da madrugada. Vão conversando... E se entendem Numa língua difusa: O mesmo vago sorriso, A mesma fala confusa. (KOLODY, 1951, p.146) O poema intitulado “Emigrante” trata das problemáticas dos imigrantes ao deixarem a sua terra natal ‐ a saudade: Treme, na lágrima de olhar, A paisagem da pátria. O mar o envolve e acorda no emigrante o desejo de aventura, de partir em “busca duma terra prometida. Quem dilacera assim, entre a saudade e a esperança, o coração do emigrante? É a vida... é a vida... é a vida. (KOLODY,1991, p.75) Outro poema seu que faz alusão ao imigrante é “Origem”, pois na 1ª estrofe temos a metáfora “na memória do sangue” usada para falar da consanguinidade da poeta e também relembra as canções eslavas no quarto verso: Na memória do sangue, há bosques de bétulas, estepes de urzes floridas, canções eslavas. Arde o trópico nos nervos. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
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Crepita a alegria da jovem pátria. A alma se aquece na chama das cores. Dança o coração em ritmo sincopado. (KOLODY, 1988, p.82) Seguindo a mesma temática, os poemas históricos da obra chevtchenkiana são os mais significativos. Os mesmos eram contados pelo velho Kobzár como nos diz o poema “Perebendia’’: Quem não o conhecia? Anda por todo lugar E a Kobza toca. Pois, quem toca é conhecido E o povo lhe agradece. (CHEVTHENKO,apud CZAIKOWSKI, 1999). Tentando agradar seu vasto público, o Kobzar‐Trovador, geralmente um ex‐
guerreiro cego, que declamava poemas épicos ao som da Kobza contava diversas histórias de antigos cossacos ou cantigas de saudade e religiosas. O romantismo de Tarás destaca‐se, essencialmente, pelo ardente amor ao passado ucraniano, rememorando a vida dura e amarga de um povo que não mediu esforços para conquistar a independência. E tudo isso foi sendo registrado em sua língua mãe formando a coleção de versos “Kobzar”, que é a grande referência da literatura ucraniana. O poema “Hamaliya” ou “Gamaliya” narra as lutas dos comandantes com sobrenome HamaIiya contra Üsküdar ‐subúrbio de Estambul: [...] Canhões, em trovoada, sobre Üsküdar ‐ o inimigo geme, de raiva se desfaz como fumaça; como se fora uma montanha insuperável e invencível dos kozaky a força destruidora e destemida avança. – Por fim, renderam‐se os soldados, rolando sós, abandonados pelos campos. Hamaliya sobre a Üsküdar – como se pelo inferno passeasse, ele próprio masmorras rebenta… “Voem, pássaros cinzentos, ao quinhão da pátria!” Agitaram‐se os falcoeiros, já há muito não se ouvia – dos cristãos a língua nobre. Também, a noite agitou‐se: jamais tinha visto tanto festim dos kozaky. Não! Não se apavorem, vejam – este é o banquete dos kozaky… VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
Marta Beló (G)/ UNICENTRO Dra.Rosana Gonçalves/ UNICENTRO A UCRANIEDADE NA POÉTICA DE TARÁS CHEVTCHENKO E HELENA KOLODY Página | 68 […] (CHEVTHENKO,apud CZAIKOWSKI, 1999) “É‐me indiferente”, de 1847, além de ser um desabafo de todo desânimo de Chevtchenko diante dos problemas que ele não conseguia resolver, mostra, também, a convicção do poeta de ter nascido no exílio e de não importar‐se em nele morrer. Já não me importa... É‐me indiferente Que eu morra na Ucrânia, ou algures, Que alguém me lembre, ou me olvide Sozinho entre as neves do exílio, Ai, não me importa, não me importa! Cresci no exílio, como escravo, Pois, exilado morrerei E tudo levarei comigo. Não deixo nem um rasto leve Em nossa Ucrânia tão gloriosa, Em nossa pátria escravizada. Não lembrará o pai ao filho, Não lhe dirá: “Ai, reze, filho, Pois, pelo amor que teve à Ucrânia, Outrora, foi sacrificado...” E não me importa que esse filho Reze, ou não reze por minh'alma. O que me dói é que homens maus A Ucrânia embalam com mentiras E um dia a acorde o incêndio e o roubo. Ai, isso, sim é que me importa! (CHEVTHENKO, apud CZAIKOWSKI, 1999) Considerações finais. Tendo por certo que a Literatura Comparada permite a aproximação de literaturas distintas ou não, foi possível realizar a leitura dos poemas de Helena Kolody e Tarás Chevtchenko e perceber o grande amor que ambos sentiram pela Ucrânia. Suas obras tornaram‐se expressões artísticas de valores e tradições de um povo, nas quais encontramos histórias de vida com significativa profundidade. Suas ideias e seus anseios eram os mesmos: lutar pelo seu povo e preservar a sua cultura. O eu lírico de ambos é projetado para o exterior tornando‐se conhecido pelos leitores. Tarás foi exilado por ter exposto ao mundo as suas ideias, a sua visão diante da crueldade vivenciada pelo povo ucraniano. O poeta ucraniano pretendia, de uma forma poética e singela, acordar os sentimentos de solidariedade humana acovardados pelos czares, assim como incentivar o povo ucraniano a lutar pelo que lhe pertencia, a independência do país. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
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Tarás, além, de grande poeta‐historiador, foi também um pedagogo que conseguiu reavivar no coração do povo ucraniano a chama a liberdade e ao nacionalismo. Em alguns dos seus poemas, Tarás desabafa, contando as amargas e terríveis lutas deste povo, porém, nada lhe abala, nem mesmo os terríveis exílios, aos quais foi submetido. Com este grandioso poeta podemos aprender a amar e a valorizar ainda mais a nossa pátria e a nossa cultura. Influenciada pelos versos de Tarás, Helena conhece o sofrimento do seu povo e, abismada com essa realidade, dedica alguns de seus poemas homenageando seus antepassados. Neles, perpassa o grande amor e a saudade pela pátria de seus antepassados, tão injustiçada e sofrida, numa linguagem simples, clara e cativante, nem por isso menos profunda e reflexiva. Enfim, a partir da lição desses dois poetas, seus leitores são levados à percepção de que é possível aprender a dar mais valor a sua própria cultura, inclusive porque, em um dos poemas, Tarás aconselha: “Estudem meus irmãos!/Pensem, leiam/ aprendam o que é dos outros, /não se afastem do que é seu”. Seu conselho é de caráter universal e atemporal, valendo para todos os povos de diferentes épocas e culturas. Referências bibliográficas e obras consultadas. BARBOSA, João Alexandre: As Ilusões da Modernidade: notas sobre historicidade da lírica moderna. São Paulo. Perspectiva, 1986. CARVALHAL, Tânia Franco & COUTINHO, Eduardo. Literatura Comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro, 1994. CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada, Ática, São Paulo, 1986. CZAIKOWSKI, Mariano. Taras Chevtchenko, o poeta da Ucrânia. Curitiba: 1999. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991. HEC, Nicolas. Helena Kolody: biografia. In: KOLODY, Helena. Luz infinita. Curitiba: Museu‐Biblioteca Ucranianos em Curitiba da União Agrícola Instrutiva, Clube Ucraíno‐Brasileiro, Organização Feminina, 1997. [bilíngüe: português e ucraniano] In: Boletim Informativo da Congregação Mariana da Paróquia Imaculado Coração de Maria de Irati, ano 1,n 9, de 28 de out. a 24 de nov. de 2006. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
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http://mykszoma.wordpress.com/2009/03/25/taras‐h‐shevchenko‐hamaliya/ http://pt.wikipédia.org/wiki/Haicai‐acesso:09/02/2009/10:00hr http://www.rcub.com.br/index.php?pag=detalhe&codconteudo=321&codmenu=94 In: www.comunidadeucraniana.com.br/.../9_edicao.pdf KOLODY, Helena. Ontem Agora: poemas inéditos. Curitiba: SEEC, 1991. _____. Paisagem interior. Curitiba: Escola Técnica de Curitiba, 1941. _____. Sinfonia da vida. Organização: Teresa Hatue de Rezende. Ed. letraviva /Pólo Editorial do Paraná, 1997 _____. Infinito Presente.Curitiba: Repro‐set, 1980. _____ . Luz infinita. Curitiba: Museu‐Biblioteca Ucranianos em Curitiba da União Agrícola Instrutiva, Clube Ucraíno‐Brasileiro, Organização Feminina, 1997. [texto bilíngüe: português e ucraniano] _____ . Sinfonia da vida. REZENDE, Tereza Hatue de. (org.) Curitiba: Pólo Editorial do Paraná, 1997. _____ . Viagem no espelho. Curitiba: Criar, 1988. Luísa Cristina dos Santos Fontes. (UEPG‐UFSC). Alteridade Eslava em Helena Kolody. In:www.uesc.br/.../LUISA%20CRISTINA%20DOS%20SANTOS%20FONTES. NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. 2ª ed. São Paulo: EDSP, 2000. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]
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ABSTRACT: We intend to emphasize the consonance points between Tarás Chevtchenko's poetry and Helena Kolody's poetry, mainly in relation to ucranian feelings that both poets has expressed in their poems. The ucranian poet and the brazilian poet has revealed with their particularities and their expression moments an incondicional love for the nation and the ucranian culture, showing high poetic sensibility. Recebido em 24 de maio de 2010; aprovado em 31 de junho de 2010. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 02 Ed. 01 (Jul. 2010) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [52 – 71]

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