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ISSN 1808-9305
VOOS
REVISTA
POLIDISCIPLINAR ELETRÔNICA DA FACULDADE GUAIRACÁ
Caderno de
Linguística, Letras
e Artes
Estudos Literários
VOOS
01
[JULHO 2009]
ARTIGOS A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES ................................................... Lucio Allemand Branco INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC ....................................................................................................................................... Paulo Sérgio Marques JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO ............................................................................................ Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa MOINHO DE FRUSTRAÇÕES ........................................................................................................... Iracy Conceição de Souza O GÓTICO LITERÁRIO SETECENTISTA: HISTÓRIA, RECEPÇÃO E A ARTE DA ESCRITA ............... Camila Mello O MITO, O IMAGINÁRIO E O ABSURDO NA OBRA DE ALBERT CAMUS ...................................... Maria Clara Dunck Santos 3 22 51 65 82 92 O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE ................................................. Luciano Marcos Dias Cavalcanti 103 OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL ...................................................................................................................................... Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA .............................................................. Alexandre Bonafim Felizardo OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR ....................................................................................................................................... Mariângela Alonso ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE ...................................................................................................................................... Sergio Romanelli 115 129 143 162 A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES Lucio Allemand Branco ∗
RESUMO: Este artigo aborda a relação dialética entre sujeito e objeto, sob o signo do trágico, em algumas peças de feição mais popular de Nelson Rodrigues (1912‐80) intituladas justamente de “tragédias cariocas”. Tópicos caros ao imaginário rodriguiano, como o amor, o sexo e venalidade intrínseca do homem são vistos, aqui, à luz das ponderações do sociólogo alemão Georg Simmel (1858‐1918) que tem, entre suas principais obras, a referencial A filosofia do dinheiro (1900). PALAVRAS‐CHAVE: Tragédia; Dialética; Sujeito; Objeto AS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” Segundo Nelson Rodrigues (1912‐80), durante o intervalo da estreia de A falecida, em 8 de junho de 1953, no corredor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, um jovem teria, então, pasmo, perguntado para a namorada: “Futebol no Municipal?” (1986, 121) A referência ao “violento esporte bretão” era apenas um dos componentes de um ciclo dramático que naquele momento se iniciava e que, anos mais tarde, mereceria do crítico Sábato Magaldi a alcunha de “tragédias cariocas”. Acostumado à rotina das redações de jornal desde os treze anos de idade, quando iniciou a carreira como repórter policial, em A Manhã, de seu pai, Mário Rodrigues, Nelson nunca foi indiferente aos temas de maior apelo popular. Daí, a sua arraigada afinidade com um universo de referências de uma dita “baixa cultura”, de gosto considerado “suspeito”. Não à toa, antes do advento deste “ciclo” de sua obra dramatúrgica, ele já havia redigido, sob pseudônimos femininos, uma seção de correio sentimental e um folhetim. (Mas é também verdade que, ao se tornar o principal nome do teatro nacional, em fins de 1943, com a consagrada primeira encenação de Vestido de noiva (sua segunda peça), Nelson passou a não esconder certo incômodo com essa sua condição de autor popular. Era preciso cultivar uma imagem mais culta, mas sem abandonar, evidentemente, a aura de artista intuitivo, ao modo da melhor tradição fin‐de‐siècle, que lhe conferiria o necessário status de escritor teatral de vanguarda.) ∗
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Rio de Janeiro Doutorando em Literatura Comparada; Orientador: Victor Hugo Adler Pereira [email protected] VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21]
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A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES De fato, Nelson Rodrigues inaugurou um tipo de drama de feição mais popular com o advento das ditas “tragédias cariocas” a partir mesmo de A falecida. Também aparentemente motivado por razões de ordem financeira, Nelson decidiu levar ao palco motivos, temas, tipos e falas do folclore urbano carioca já retratados pelos contos de A vida como ela é... – publicados diariamente no jornal Última Hora –, de grande repercussão na cidade que era então capital da República e, inquestionavelmente, centro cultural do país. Este novo tipo de dramaturgia reivindicava a inclusão de todo um repertório de maneirismos de fala e comportamento das classes mais populares, no intuito de reproduzir, em seus pormenores, a estrutura cultural da zona urbana periférica carioca – o que implicava, antes de tudo, uma remodelação radical dos aspectos formais e conteudísticos do texto teatral. Este passava, então, a ganhar uma dicção própria, deixando‐se permear por gírias e referências de um universo cotidiano ao qual a verve rodriguiana dera vida a partir de então fora de um programa ideologicamente concebido, como viria a ser parte do projeto de teatro engajado da geração do Teatro de Arena e seus contemporâneos. (O crítico Sábato Magaldi qualifica mesmo o lançamento de A falecida como um outro “marco em sua dramaturgia” [1990, 11] – tomando‐se mesmo por marco anterior, como se convencionou, a montagem de Vestido de noiva [1943].) Ao situar as peças no Rio de Janeiro, retratando valores e representações coletivas de uma estrutura cultural que ditava hábitos e modalidades de comportamento para o resto do país, Nelson Rodrigues demonstrou ter feito seu teatro evoluir numa direção que lhe angariaria uma popularidade que nenhum outro dramaturgo viria a conhecer no Brasil. Estimulado pelo êxito junto ao público com A vida como ela é..., ele optou por romper com o tom formal que caracterizava sua produção dramática anterior, onde figurava, sobretudo, um tratamento que buscava ficar à altura da gravidade dos temas explorados, muitos deles tomados de empréstimo ao rol daqueles que se convenciona classificar como clássicos, com sua inevitável aura mítica, sempre a lhes conferir um status artístico considerável. Esse período anterior às “tragédias cariocas”, mais precisamente iniciado com sua terceira peça, Álbum de família (1946), foi autointitulado como “desagradável”. Assim, novos procedimentos estilísticos – fosse exclusivamente na esfera da criação dramática literária, fosse na esfera da realização cênica a que se destina todo texto teatral – foram adotados por Nelson, a partir de A falecida, no intento de reproduzir as singularidades da referida estrutura cultural que, subitamente, irrompia no panorama do teatro brasileiro para, então, contribuir numa profunda remodelação de seus rumos. Não podemos deixar de referir, aqui, a pouco comentada descendência das “tragédias cariocas” de uma tradição genuinamente nacional de teatro a que também paga tributo um tipo peculiar de comédia musical de fundo político que se produziu nas décadas de 1960 e 70: a chanchada, e toda uma série de variações da “baixa” comédia de costumes (burleta, opereta, revista etc.), gêneros contra os VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 5 Lucio Allemand Branco
A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES quais Nelson não cansou de afiar a sua pena, principalmente quando da assunção da condição de artista dramático moderno que Vestido de Noiva lhe conferiria. Para Sábato Magaldi, a classificação de “tragédias cariocas” foi avalizada pelo próprio autor desse marco inicial de sua dramaturgia de cunho popular, pois o subtítulo de A falecida não é outro senão este: “tragédia carioca em três atos” (com o qual viria também a batizar outras duas deste mesmo ciclo, a saber: Boca de Ouro [1959] e O beijo no asfalto [1960]). Mas, quando é o crítico – ao ser contratado por uma editora, ao final da vida de Nelson – quem se incumbe de estender essa classificação a oito de um total de dezessete peças da obra rodriguiana, seus critérios tornam‐se necessariamente ainda mais passíveis de discussão. O fato é que tal classificação teve seus fins ditados mais por exigências do mercado editorial do que por méritos propriamente exegéticos (é preciso, porém, registrar aqui que o próprio organizador do Teatro completo de Nelson Rodrigues assume que essa questão taxionômica não se esgota tão facilmente, merecendo, assim, uma análise mais detida). Portanto, a sugestão que Magaldi fez a Nelson de arrolar as referidas oito peças sob o rótulo de “tragédias cariocas de costumes”, foi de pronto descartada por este, por conta da inevitável remissão ao gênero cômico contra o qual o “introdutor do teatro moderno no Brasil” havia elaborado seu projeto dramático. Nelson não queria ver seu nome associado a uma modalidade teatral que ele próprio ainda considerava menor, por sofrer tradicionalmente a acusação de não primar pelo devido esmero com a qualidade artística. Curiosamente, Nelson Rodrigues admite em suas memórias que, quando da composição da sua primeira obra teatral, A mulher sem pecado (1941), pretendia originalmente fazer rir, atendendo ao gosto da maioria do público da época, com vistas a um retorno financeiro tido como certo. E também não nos esqueçamos que, paradoxalmente, tem ele em seu currículo a “farsa irresponsável em três atos” Viúva, porém honesta (1957), cujo grotesco da caracterização de personagens e situações cômicas não poderia ter outro objetivo que não o riso largo e franco. Por se constituir inequivocamente na única incursão explícita de Nelson na comédia, esta obra ganhou de Magaldi a inusitada qualificação de “peça psicológica”, tal como Vestido de noiva. (Insinua‐se aqui uma dúvida: seria talvez pela presença em cena do personagem Dr. Lupicínio, “psicanalista de primeira água”?) Enfim, consideramos ainda que corremos o risco de cometer, aqui, a incorreção de tomar essa classificação (por si mesma um tanto questionável) pelo critério exclusivamente cronológico, já que Sábato Magaldi a definiu em termos do enfeixamento de uma suposta afinidade de forma e conteúdo entre peças escritas em datas distintas da produção dramática rodriguiana. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 6 Lucio Allemand Branco
A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES GEORG SIMMEL Georg Simmel (1858‐1918), na primeira frase de O conceito de tragédia da cultura (1911), estabelece que a relação dialética de sujeito e objeto é originalmente derivada da desvinculação e consequente oposição do homem à natureza: O homem não se ordena à realidade natural do mundo como o animal, antes ele se arranca dela e se contrapõe a ela, exigindo, lutando, violentando e sendo violentado – com este primeiro grande dualismo, inicia‐se o processo infindável entre o sujeito e o objeto. (2005: 77) Segundo Simmel, a condição humana, por si mesma, determina inicialmente o caráter desse conflito que, então, acaba por ganhar uma dimensão mais transcendente, quando conclui‐se que estamos lidando com um ente que é dotado da singularidade de ser portador de um espírito, categoria esta que o distingue dos demais entes da natureza. Trata‐se de um raciocínio que encontra afinidade com o pensamento rodriguiano, na medida em que também o autor de A falecida tem por princípio fundamental a crença de que são inconciliáveis o homem – em sua espiritualidade intrínseca – e o mundo empírico, factual, que lhe coube como morada: O mundo é a casa errada do homem. Um simples resfriado que a gente tem, um golpe de ar, provam que o mundo é um péssimo anfitrião. O mundo não quer nada com o homem, daí as chuvas, o calor, as enchentes e toda sorte de problemas que o homem encontra para a sua acomodação, que, aliás, nunca se verificou. O homem deveria ter nascido no Paraíso. (Rodrigues, 1997: 115) A dialética de sujeito e objeto, em Simmel, assume a forma do dualismo de espírito e formações (ou de vida e forma), o que define, então, os contornos da tragédia da cultura. Assim, entende‐se que o espírito é responsável pela produção das formações da vida cultural, que acabam por ganhar vida independente da sua matriz. Isto se dá através da conversão do elemento subjetivo original, que compõe o espírito, em objeto. O preço da autonomia decorrente dessa cristalização é o permanente embate entre essas duas instâncias – um antagonismo trágico que distancia inapelavelmente o homem e suas criações. Um fenômeno definido por Simmel da seguinte maneira: O sujeito vivencia incontáveis tragédias nesta profunda contradição de forma entre vida subjetiva infatigável, mas temporalmente finita, e seus conteúdos, que, uma vez criados, são estáticos, mas têm uma validade atemporal. A ideia de cultura encontra‐se no meio deste dualismo. (2005: 77) VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 7
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A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES Pode‐se afirmar então que, para Georg Simmel, o sujeito é uma categoria entendida como reflexo de seus conteúdos infinitos, mas que não tem eternidade (já que o homem é finito porque morre); enquanto que o objeto é o produto da subjetividade humana, portador que é de uma forma única e perene. Daí, os produtos espirituais objetivos assumirem as mais diversas formas, como: as criações artísticas, os credos religiosos, a ciência, a técnica e toda uma série de dados imanentes à vida social, como os conhecemos. Pode‐se dizer que, no mérito do espectro temático explorado por Nelson Rodrigues nas “tragédias cariocas”, os objetos que ganham mais vulto são: os costumes; o dinheiro e sua rede simbólica na ordem capitalista geral e mais particularmente na vida brasileira; as normas sociais; as instituições que as legitimam e resguardam; os valores morais que se sedimentam em tabus, com sua influência coercitiva sobre os indivíduos etc. Nas peças deste ciclo impera a realidade trágica da vida, a fatalidade de não se conseguir conciliar os conteúdos subjetivos inerentes à condição humana – que invariavelmente assumem uma inescapável dimensão passional (com uma qualidade não tão explicitamente à sombra do signo mítico, como em obras anteriores) – e a ordem ideal constituída pelas noções consagradas de moral, ética, bom senso, virtude etc. Este trágico entrechoque, que culmina sempre na explosão catártica de taras e obsessões – que Nelson atrela indelevelmente às atribuições humanas –, acaba por ferir a suscetibilidade das instituições responsáveis pelos valores oficialmente legitimados da cultura que acabam por concorrer, afinal, para a almejada estabilidade social. As instituições têm em seu poder os mecanismos de contenção do fluxo permanente de pulsões, sentimentos e emoções que habitam a psique humana e que anseiam por se desreprimir, para se converterem, afinal, em experiência concreta. São elas, por excelência, os objetos externos criados pela vida subjetiva que exercem o controle e a coerção sociais, mantendo‐se numa imobilidade monolítica que lhes outorga a devida validade, com seu caráter de portadoras de verdades universais invioláveis. Essa trágica relação dialética adquire um particular significado metafísico se considerarmos que muitas das abstrações que compõem a esfera objetiva da vida humana desempenham a função espiritual de representar a inevitabilidade da opressão contra a qual o indivíduo se choca eternamente. Ao tratar do papel da morte no esquema trágico rodriguiano – particularmente na fase das peças “desagradáveis” (o que não invalida sua pertinência teórica para a investigação que fazemos por ora do ciclo suburbano de sua dramaturgia) –, Victor Hugo Adler Pereira, em Nelson Rodrigues e a obs‐cena contemporânea (1999), destaca o depoimento do autor de Anjo negro, mencionado por Ângela Leite Lopes, em Nelson Rodrigues e o fato do palco, de que “o homem é sórdido porque morre. No seu ressentimento contra a morte, faz a própria vida com sangue e excremento” (1999: 118) (máxima coerente com uma outra de sua autoria, que diz que “o homem VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 8
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A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES é triste porque vive”1). Consequentemente, Pereira aponta para as implicações deste raciocínio com o conceito de vontade, tal como Schopenhauer o concebe, servindo assim como uma referência teórica pertinente para a legitimação artística obtida através da afinidade que o autor das peças “desagradáveis” mantinha com muitos dos cânones do pensamento moderno (Pereira ainda nos lembra que Nietzsche e Freud também viriam a deter‐se sobre o mesmo conceito [1999: 118‐
119]). Porém, no confronto com a específica perspectiva simmeliana que tomamos de empréstimo para a devida análise das “tragédias cariocas”, conclui‐se que a vontade, em Schopenhauer, tem uma dimensão irremediavelmente fatalista, por conta do seu arraigado pessimismo trágico. Neste, há “um sofrimento inerente à condição humana, que está acima de qualquer causa particular” (Id.: 119). Desse modo, Nem uma ordem moral, nem a vontade individual servem como explicação à prevalência da dor e do absurdo no mundo. E a tragédia revela a eclosão dessas forças que superam qualquer determinação individual e se abatem sobre qualquer indivíduo, sem critério ou razão. A concepção de vontade schopenhauriana não coincide com uma escolha individual; ao contrário, corresponde a uma força vital que atropela a consciência do sujeito e age a despeito desta. A integridade do sujeito dilui‐se pela ação dessa força, perspectiva que demonstra o cruzamento do biologismo com a herança metafísica em sua doutrina. (Ib.) O embate da subjetividade do homem com a ordem objetiva das formações abstratas da vida social ainda supõe, na leitura que fazemos de Nelson Rodrigues à luz de Georg Simmel, a possibilidade, mesmo que tênue (e embora situemo‐nos na esfera do trágico), do livre‐arbítrio. A vontade é uma atribuição humana, e sua realização no plano empírico tanto depende, em Nelson, dos expedientes a que recorre o indivíduo, desde que, obviamente, seja ele detentor de uma subjetividade que se oponha, pelo menos em princípio, à ordem vigente instituída pelas convenções e instituições sociais (motivo mais explícito nas tramas de O beijo no asfalto [1960] – aqui, o livre‐arbítrio é inapelavelmente punido – e Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária [1963] – nesta, o desfecho renega a fatalidade trágica). Adriana Armony afirma que, tanto no dramático quanto em Nelson Rodrigues, repertoriando os cruzamentos possíveis entre a obra deste e a de Dostoiévski, de forma distinta à concepção trágica clássica – que faz submeter tudo à Moira grega, donde resulta que “A vontade do herói é uma miragem, é parte de uma ordem superior, a do destino” (2002: 55) –, o conceito de vontade assume então uma 1
Ver Especial de TV Nelson Rodrigues: personagem de si mesmo. TVE, 1996. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 9 Lucio Allemand Branco
A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES conformação ao gosto do cristianismo, que assim “se ergue sobre um fundo de indiferenciação, sofrimento e melancolia” (Id.: 54) que caracteriza a ótica de Nelson e a do autor russo de sua particular predileção. Armony ainda assinala que, Segundo [Hanna] Arendt, a descoberta da vontade resultou de experiências tipicamente cristãs. Antes do surgimento do cristianismo, não encontramos qualquer noção de uma faculdade do espírito correspondente à ideia de liberdade. Para o cristianismo, há um criador no princípio dos tempos – “No princípio Deus criou os céus e a terra” – e um fim definido, o juízo final. Além disso, foi em ligação estreita com a preparação para a futura vida após a morte que a vontade e sua liberdade foram, em toda sua complexidade, descobertas primeiro por São Paulo. Essa liberdade não era mais a objetiva do eu‐posso, como no pensamento pré‐cristão, mas a do eu‐quero, um dado da consciência e do espírito só possível com a descoberta do homem interior. (Ib.) Mesmo não prescindindo do visível influxo da tradição trágica na fatura do drama rodriguiano (dado mais verificável no período “desagradável” de sua obra teatral), nota‐se que há, principalmente nas “tragédias cariocas”, a presença do livre‐arbítrio como um dos móveis das ações dos personagens em cena, cabendo a eles responderem pelo seu emprego sob a prevalência de uma ética baseada nas raízes morais da cristandade, ou, inversamente, na negação absoluta desta, mas sempre no interior de uma estrutura sócio‐cultural que a tem como uma referência paradigmática. Ou seja, essa vontade a que nos referimos é um valor determinante para a configuração dos conflitos que ditam a ação dramática, como mesmo da natureza psicológica dos dilemas que atormentam a consciência de determinados personagens. Adriana Armony, ainda no mérito específico da tradição cristã de que se serve Nelson na sua perspectiva ficcional, atenta para a questão da vontade atrelada à liberdade como um fator de peso para o delineamento das relações sociais (percebe‐se, aqui, um ponto de contato com Simmel): Mas, como conciliar as alegações de uma vontade livre com a fé em um Deus todo‐poderoso, ou com as leis da causalidade ou da História? Spinoza afirma que os homens são subjetivamente livres mas objetivamente assujeitados; eles acreditam ser livres simplesmente porque são conscientes de suas ações, sem ter consciência das causas pelas quais essas ações são determinadas. E, para Schopenhauer, a água que desce a montanha ou se ergue numa fonte, se tivesse consciência, também se julgaria livre. Daí a concepção schopenhauriana de Vontade como uma força metafísica geral. De qualquer forma, a ideia de vontade como instância de liberdade do indivíduo é parte do processo de construção de uma VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 10 Lucio Allemand Branco
A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES subjetividade cristã, fundada no homem interior, na culpa e na confissão. (Ib.) O sexo e o dinheiro No tocante à objetividade de ordem material, Nelson Rodrigues parece‐nos de uma elaboração sui generis, principalmente quando lida com dois temas que lhe são particularmente obsedantes: o sexo e o dinheiro. Eis aqui o elemento natural do canalha, tipo recorrente na galeria de personagens rodriguianos enquanto produto da opressiva preponderância destes dois objetos espirituais na vida moderna. 1. O SEXO Quanto ao sexo, é estabelecida uma dialética peculiar, que serve como o fundo e mesmo o motivo condutor de uma série de enredos. Nelson ainda nos lembra que, ao mencioná‐lo, não se pode negligenciar a dimensão do amor. Passemo‐lhe a palavra: A nossa tragédia começa quando separamos o sexo do amor. Vejam as doenças da carne e da alma, do câncer no seio às angústias sem consolo. Os nossos males têm, quase sempre, esta origem fatal: – o sexo sem amor. (1997: 15) O personagem Salim Simão, na “peça psicológica” Anti‐Nelson Rodrigues (1973), alerta sua filha, que sofre incansável assédio do chefe no ambiente de trabalho, de que “O sexo é uma selva de epilépticos. O sexo nunca fez um santo, o sexo só faz canalhas.” Daí, a conclusão rodriguiana de que a única redenção possível para o homem reside na sublime dimensão do amor. Platonicamente, esta dimensão constitui a essência da esfera da subjetividade, idealmente preservada do contágio da carne, que é, antes de tudo, a encarnação da vil materialidade do sexo, pertencente que é apenas à ordem objetiva do mundano, conspurcada pelos mais baixos instintos. Eis, então, o lugar a que Nelson condena inapelavelmente a pulsão da libido, pois entende ele que o sexo “nada tem a ver com o pobre e degradado ser humano. É um problema dos bezerros, vira‐latas e cabras” (Id.: 153) ou que “O sexo é o que restou da pré‐história, do vil passado do homem.” (Ib.) Devemos considerar que, em princípio – fora da ótica rodriguiana –, a condição intrinsecamente subjetiva da sexualidade humana sofre um coercitivo processo de fetichização, determinado sobremaneira por valores culturais que acabam por lhe remeter à esfera da objetividade. Desse modo, a condição básica de satisfação natural dos instintos a que se atrela por definição a sexualidade é transcendida, apontando para a configuração de uma noção objetivada e mesmo desnaturalizada do seu repertório de práticas, concorrendo afinal para uma espécie de autonomização da pulsão erótica. Vê‐se então que o referido fenômeno da VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 11 Lucio Allemand Branco
A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES preponderância deste específico objeto espiritual cumpre sua função ao fazer integrar à ordem empírica – estipulada como “natural” – das coisas, os valores do credo materialista referido ao âmbito da sexualidade. Em tese, segundo a concepção radical de Nelson Rodrigues, esse processo cultural de fetichização inexistiria, pelo simples fato de que a sexualidade, por si mesma, não teria relações com as atribuições da subjetividade, esta ficando assim sempre idealmente à sombra de uma incorruptibilidade integral. Sendo então o sexo, por natureza, “um problema dos bezerros, vira‐latas e cabras”, restaria ao Homem viver a tragédia dos conflitos que lhe inspiram as tentações dessa suposta distorção do seu caráter essencial. Os impulsos indomáveis referidos à esfera dicotômica amor/sexo, que se constituem na tônica do comportamento da maioria dos personagens da dramaturgia de Nelson – e não nos referimos exclusivamente às “tragédias cariocas”, aqui –, fazem com que não raro deparemo‐nos com as mais bruscas contradições, deslindando dessa maneira a possibilidade de uma coesão orgânica na sua caracterização geral, assim como das situações que o enredo lhes cria. Eis um tema caro ao ideário rodriguiano, que, considerando sua natureza eminentemente paradoxal, é de uma complexidade que exigiria uma análise à parte, fora deste trabalho. Limitamo‐nos a lembrar que o que afirma a primeira pessoa do autor, traindo sua parcialidade, pode muito bem não corroborar o que diz ou faz um ou outro personagem de sua obra, não garantindo assim a suposta coerência que se poderia atribuir, em princípio, à totalidade do seu pensamento singular, dentro ou fora do âmbito da criação ficcional. Por ora, referimo‐nos ao sexo, mas o mesmo se dá com outros temas de igual relevância tratados por Nelson. Em suma, estamos lidando com uma literatura dramática que prima – ironicamente, de forma coerente com a marca histórica deixada por Vestido de noiva – pela fragmentação de seus motivos e tipos, afetando até mesmo alguns aspectos de linguagem (no tocante às peças escritas após A falecida, lembremos da função desempenhada pelas falas entrecortadas dos personagens, como era do particular desagrado de Fernando Peixoto [Ver Peixoto, 1980: 262]). Leopoldo Waizbort (estudioso brasileiro do pensamento de Georg Simmel) se refere à dialética de sujeito e objeto como um fenômeno que oscila entre a nostalgia e a antecipação de uma reconciliação. Nostalgia que remete a um passado de indiferenciação, a uma “unidade originária, anterior à diferenciação” (Simmel), caracterizada por uma identidade inocente de sujeito e objeto, quando o espírito e a natureza não se distinguem. Antecipação de um futuro na verdade utópico, no qual a cisão radical de sujeito e objeto passa a ser superada; reconciliação que significa que a relação de espírito e natureza não se faz mais sob o signo da dominação. (2000: 119) VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 12 Lucio Allemand Branco
A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES Essa visão idealizada, algo rousseauniana, eivada de uma concepção de pureza original ainda não maculada pelos efeitos do fenômeno trágico moderno da preponderância do objeto sobre o sujeito, constitui uma das apologias mais caras ao referido ideário rodriguiano. Com sua passional adesão à perspectiva subjetiva em detrimento da objetiva, Nelson dá testemunho de um inabalável e particular humanismo, ao não admitir as “verdades” estipuladas pelos “idiotas da objetividade”, denominação sua para os engajados nos credos materialistas da era moderna. O seu sectarismo com relação à dimensão subjetiva do homem se estendia aos méritos mais insuspeitos, como, por exemplo, o advento dos recursos técnicos da indústria midiática, que marcaram época e são de uso corrente até hoje. Especificamente, a função do copy‐desk, responsável pela padronização estilística do texto jornalístico – a lhe abortar qualquer possibilidade de traço autoral –, e, mais radicalmente, o uso do video‐tape que, na sua reprodução empírica dos lances duvidosos de uma partida de futebol, expunha evidências que só eram refutadas pela temerária lógica subjetivista de Nelson. A já citada sentença “O homem devia ter nascido no Paraíso”, denuncia o entranhado moralismo – que poderíamos, talvez, chamar de anímico – de Nelson Rodrigues (moldado, em muito, pela sua particular leitura da obra de Dostoiévski), em que se nota o anseio pelo resgate do estágio da espiritualidade essencial que permanece sem mácula e ainda ao alcance do homem (não importando o quão raramente) que, lembramos, mesmo podendo ser “o mais degradado dos seres, há de ter uma nesga de azul, um momento de compaixão, um gesto de amor, ou de sonho, ou de pena.” (1997: 35) Uma postura que já levou Ruy Castro, seu biógrafo, a qualificá‐lo como “o autor que, até hoje, menos se conformou com o dito Pecado Original.”2 Conclui‐se, por essas colocações, porque Nelson não acreditava no “canalha integral”, sempre reservando à suposição da existência deste a possibilidade de uma dimensão de santidade. Afinal, “O vampiro de Düsseldorf não pode ter sido apenas o vampiro de Düsseldorf. Assim como o justo pode ter a nostalgia do reles, o pulha pode sentir a nostalgia do sublime” (Id.: 35), afirmava ele. A “tragédia carioca” que melhor trabalha a questão da dicotomia amor/sexo é Toda nudez será castigada (1965). Na peça, há visíveis pontos de contato com a produção dramatúrgica precedente de Nelson Rodrigues, e que denunciam seu arraigado apego a elementos da tradição da tragédia clássica. O de maior evidência é a presença de uma opressiva fatalidade que – qual um estigma quase sobrenatural – preside a vida da família do protagonista: o pudor carnal. Assim como em Dorotéia (1947), a responsabilidade de vigília sobre essa virtude vital fica por conta do coro, representado, especificamente nesta peça, pelas tias solteironas de Herculano. Mais uma vez fica comprovada a confluência peculiar de referências díspares no programa dramático das “tragédias cariocas” rodriguianas. 2
Ver Especial de TV Nelson Rodrigues: personagem de si mesmo. TVE, 1996. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 13
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A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES Os conflitos do enredo são elaborados por Nelson conforme as oscilações próprias da instabilidade emocional com que caracteriza os personagens centrais, todos eles reféns de impulsos irreprimíveis, inspirados exclusivamente pelas paixões às quais sucumbem como vítimas extremamente vulneráveis. A ânsia de uma pureza ideal, representada pelo sublime do sentimento amoroso, vai de encontro ao que há de mais sórdido da busca de satisfação dos desejos da carne. O viúvo Herculano, instigado por seu inescrupuloso e vingativo irmão Patrício (o canalha por excelência da peça), acaba por romper o voto de castidade feito em respeito à memória da esposa falecida, quando é fulminado pela paixão irresistível que lhe inspira a prostituta Geni. Amor e sexo, instâncias originalmente pertencentes à subjetividade humana, como nos convence o senso comum (e não ao autor da peça, inimigo declarado de muitas das suas facetas, e, talvez por isso mesmo, como já foi referido, exclua o segundo das atribuições da subjetividade), integram um amálgama no qual se torna quase impossível discernir nitidamente a natureza de cada uma delas. A súbita irrupção de sentimentos e atos os mais inesperados – e sempre dentro de uma particular dinâmica de recíproca atração e repulsa entre personagens cujos respectivos comportamentos podem ser caracterizados original e convencionalmente como apolíneo e dionisíaco –, dita o encaminhamento da trama, com o motivo do casamento do viúvo e da prostituta a lhe conferir mesmo sua razão de ser. A ideia do casamento parte do oportunista Patrício, receoso (juntamente com as tias solteironas) da falência da família, que parece vir se avizinhando desde que a esposa de Herculano faleceu vitimada por um câncer no seio. A depressão do viúvo só parece ter mesmo solução com esta insólita união, ardilosamente planejada por Patrício. Sabendo do interesse despertado por Geni em seu irmão, num determinado momento da ação ele chega a aconselhá‐la: “Você diz. Diz! (...) Só toca em mim casando! Só casando. Diz isso à besta do Herculano. (...) Só casando!” A manipulação das situações do enredo que o motivo do casamento propicia, dá a Patrício, embora não apareça tanto em cena como outros personagens, o papel de fundo da peça, que acaba por lhe determinar o arcabouço do seu desenho dramático (não deixa ele de ser uma espécie de Iago, talvez menos atuante que o original shakespeareano). Ele desempenha a função de antítese do “homem de bem”, tipo encarnado por Herculano, sempre cioso da observância ao legado de circunspecção da família, ainda mesmo quando se envolve com Geni (homem de bem era justamente o nome de outro personagem arquetípico das crônicas rodriguianas, contraponto moral do Palhares, e cuja personalidade ninguém suporta, por viver alardeando suas virtudes). Toda nudez será castigada ganhou as telas de cinema em 1973, sob a direção de Arnaldo Jabor, angariando sucesso de crítica e público. Fenômeno este explicável pela conjugação de determinada sobriedade estética – que viria a se provar pouco comum nas adaptações cinematográficas posteriores do teatro rodriguiano – com o respeito pelo texto original da peça. Jabor também é VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 14
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A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES responsável pela não tão feliz filmagem de O casamento, de 1975, romance escrito por Nelson em 1966, que, pelo menos, tem o mérito de também ser protagonizado pelo mesmo ator, Paulo Porto, o Herculano da versão cinematográfica de Toda nudez será castigada. Desempenho dramático este que reforça a impressão de que tais personagens têm, originalmente, uma profunda afinidade no seu conflito interior, que é marcado, sobretudo, pelo desejo e a interdição moral, onde a culpa acaba por ser a nota dominante na composição psicológica de ambos. Motivos semelhantes estão em A serpente, peça em um ato e última de sua lavra dramática, que também trata da dicotomia amor/sexo, só que através do velho tema rodriguiano da relação entre duas irmãs que disputam o amor do mesmo homem (na sua obra teatral, Vestido de noiva e Os 7 gatinhos [1958] são os exemplos que vêm mais imediatamente à lembrança). A propósito, Sábato Magaldi já destacou que a personagem Guida, em determinado momento da intriga, diz para a irmã: “O homem deseja sem amor, a mulher deseja sem amar.” “Nessa separação estaria a origem da queda paradisíaca – a tragicidade da condição humana.” (1990: 45) 2. O DINHEIRO O tópico da trágica preponderância do objeto sobre o sujeito parece ganhar mais vida, em Nelson, quando o objeto em questão é o dinheiro. Gastão, personagem de Anti‐Nelson Rodrigues, constata que “Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro”, definindo, assim, que o móvel primordial do comportamento humano é, de fato, o vil metal – “Há homens que, por dinheiro, são capazes até de uma boa ação”(Id.: 53), já concluiu Nelson em uma de suas crônicas, como nos lembra Magaldi. Particularmente em duas “tragédias cariocas” há, na caracterização de seus respectivos personagens‐título, claros indícios que vêm a explicitar essa preponderância. Trata‐se, sem dúvida, de um fenômeno que culmina num processo particular de reificação, já que assume fatalmente a forma de obsessão única a orientar suas vidas. Estes personagens acabam por incorrer em modalidades de comportamento anti‐social, consequência da voluntária assimilação de valores não legitimados – pelo menos em nível teórico – quase que arquetipicamente pela coletividade social. Referimo‐nos à Falecida e Boca de Ouro. Na primeira, a protagonista Zulmira sofre de um profundo complexo de inferioridade por conta de sua humilde origem suburbana. Para cura‐se desse complexo que tanto a constrange, busca garantir, obstinadamente – motivada por um peculiar mecanismo psíquico de compensação –, uma suntuosa cerimônia fúnebre que venha a ficar eternizada na memória da vizinhança, mas que, decididamente, não condiz com sua condição financeira. Para realizar essa fixação, trai o marido com um empresário de má reputação do ramo de transportes que ela sabe capaz de lhe custear o tão sonhado funeral. O adultério é o recurso mais VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 15 Lucio Allemand Branco
A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES indicado, consistindo numa falta que será devidamente punida pelo marido traído ao final do entrecho. Na segunda, o protagonista que dá nome à peça, um poderoso bicheiro de Madureira – também permanentemente à sombra de sua estigmatizada origem –, anseia por ser enterrado num caixão de ouro. Mas não se contenta apenas em se redimir do seu nascimento inglório (foi parido na pia do banheiro de uma gafieira, e, lá, abandonado pela mãe) através de seu dourado repouso eterno (como se fosse um “deus asteca”); ao longo da própria existência , sente uma necessidade premente de ser reconhecido, respeitado. Como nome de peso do submundo criminal, sabe a importância de sustentar seu poder; daí, a opção pela emblemática dentadura de ouro, que substitui uma perfeita dentição natural. Este artefato exótico (e de inconfundível “mau gosto”, coerentemente com a proposta estética do ciclo suburbano do teatro rodriguiano) é, antes de tudo, o objeto simbólico que lhe confere identidade própria no meio da contravenção – pois o rebatiza, como num rito de passagem. Tem, de fato, o valor de uma insígnia que o projeta hierarquicamente, outorgada pelo estágio final do consagrado processo de fetichização a que chegou seu desejo de externar a condição de homem proeminente do bairro de Madureira. Também não esqueçamos que, em Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária há a cena da festa na mansão dos Werneck, onde subitamente se inicia uma sessão de “psicanálise de galinheiro” em que a crença no espectro da influência da máxima que conduz a trama, “O mineiro só é solidário no câncer” (a significar simbolicamente que a condição humana é essencialmente venal), é finalmente exponenciada através da curra ritual das virgens, evento cuja impunidade é garantida pela intervenção do Poder Econômico (assim mesmo, com iniciais maiúsculas), como assegura Dr. Heitor Werneck, mestre‐de‐cerimônias dessa celebração hedionda, que não hesita em sentenciar: “Vou indenizar (...) pai, mãe, as pequenas. Tapo a boca da família (...) O negócio dá em nada.” Mais uma vez, impera a lógica de que “Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro”. Essa improvisada sessão de psicanálise grupal funciona, no entrecho, como o momento catártico por excelência através do qual se configuram, longe da dúvida instaurada pelo uso da máscara social, os caracteres em cena (com todos eles fatalmente implicados na aceitação ou não da referida máxima que sustenta a ação dramática da peça). Verifica‐se algo semelhante em Os 7 gatinhos, quando “Seu” Noronha promove o ritual de purgação de todos os recalques e complexos que habitam o seio da sua família. Ele, que já havia há tempos convertido as filhas em objetos de comércio sexual, decide agora que elas deverão atender seus clientes no sacrossanto recesso do espaço domiciliar, e não mais negociar seus michês na rua, assumindo sem medo que, tal como Peixoto declara a Edgard, em Bonitinha, mas ordinária, “toda família tem um momento em que começa a apodrecer”. O lar/bordel de filhas figura, na peça, como um tópico pertinente à cara questão da reificação, à luz de Simmel, apesar do sublime propósito inicial que justificava VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 16 Lucio Allemand Branco
A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES moralmente a prostituição das quatro irmãs mais velhas de Silene: preservá‐la virgem para um casamento redentor que viesse a livrar a todos da ameaça do “apodrecimento” da família. Fato que inevitavelmente se consuma quando se descobre que Silene está grávida. Esvai‐se, assim, a nobreza de um sacrifício cometido em nome de uma urgente pureza vital, restando agora apenas admitir que a ordem objetiva das necessidades materiais consiste no único horizonte que se estende à frente da família Noronha. Ao final, a perdição total da família é a única realidade tangível (algo próximo ao “assumir a própria lepra”, fórmula sintética rodriguiana, ao modo de “moral da estória”, que dá sentido ao acúmulo de excessos que permeia e estrutura o romance O casamento). O convencionado rótulo de “tragédia carioca” talvez venha mesmo a assentar melhor a Os 7 gatinhos (Nelson, na verdade, deu‐lhe o subtítulo de “divina comédia em três atos e quatro quadros”), pelo fato de que, na sua construção dramática, haja uma verificável observância a muitos dos pressupostos do gênero tais como verificados desde Aristóteles em sua Poética. Primeiramente, precisamos considerar que a maldição da família Noronha é primordialmente de ordem moral. Na condição arquetípica de emblema (algo mítico) da raça, seu destino é marcado pelas agruras que a faz sofrer a inescapável concupiscência humana. A reserva de beatitude que, por princípio, Silene encarna para a necessária redenção dos seus, funciona como a exata antítese da degradação a qual estamos todos fadados. Tal condenação é de um fatalismo tão opressivo que não permite quaisquer resistências, daí o malogro da empresa da família representado na falta de Silene: sua gravidez. Assim, dada a inconsequência de seu ato, talvez não seja ela a encarnação por excelência da heroicidade trágica conferida a quem protagoniza o enredo; este papel parece estar mesmo mais reservado ao patriarca dos Noronha, obcecado pelo que lhe dizem as profecias da sessões espíritas que frequenta. Eis o que ele comunica à família no segundo quadro do primeiro ato: Eu sempre senti que as meninas, aqui, eram marcadas e, ontem, eu finalmente soube por que vocês são umas perdidas! Isto é, soube de fonte limpa, batata! Quem me explicou tudinho (enfático) não mente! (...) O Dr. Barbosa Coutinho! (toma respiração) O Dr. Barbosa Coutinho, que morreu em 1872, é um espírito de luz! (...) Eu sempre senti que havia alguém atrás de minha família, dia e noite. Alguém perdendo as nossas virgens! E como eu ia dizendo, ontem, o Dr. Barbosa Coutinho me confirmou que existe, sim, esse alguém. (...) E, então, o Dr. Barbosa Coutinho mandou que eu olhasse no espelho antigo. (arquejante) Pois bem: olhei no grande espelho e vi dois olhos, vejam bem: dois olhos, um que pisca normalmente e outro maior e parado. (com súbita violência) O pior é que só o olho maior chora e o outro, não. (Rodrigues, 1966: 139‐140) Os augúrios que orientam “Seu” Noronha nessa busca de anular a perdição que arrasta os seus entes mais próximos ganham uma função de destaque no VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 17 Lucio Allemand Branco
A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES arcabouço de tipo trágico da peça. Eles acabam por lhe determinar o andamento da ação, que vem a ter na fatalidade seu móvel primordial. O desfecho segue à risca o roteiro trágico, por fazer surpreendentemente de “Seu” Noronha – de certo modo, tal como Édipo – o responsável involuntário pela desgraça que aflige sua família. Ao longo do entrecho, ele quis convencer a todos de que os sinais proféticos não falham, atentando para a punição daquele que chorava por um só olho. Na última cena, suas filhas preparam‐se para matá‐lo, após finalmente descobrirem que era ele de fato o único portador desta faculdade singular, assim como acenavam os augúrios. Esses foram alguns aspectos da trágica relação dialética entre sujeito e objeto investigados por Georg Simmel que parecem caber numa articulação com sua possibilidade de incorrência no ciclo das ditas “tragédias cariocas” de Nelson Rodrigues. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1999. ARMONY, Adriana. Nelson Rodrigues, leitor de Dostoiévski: a retórica do romance. Tese de Doutorado aprovada pelo Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ – 2002. BERRETINI, Célia. O teatro ontem e hoje. São Paulo: Perspectiva, 1980. BIRMAN, Joel. Mal‐estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. _______. “Nas bordas da transgressão” In: Transgressões. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002. BROMBERT, Victor. Em louvor de anti‐heróis: figuras e temas da moderna literatura moderna, 1830‐1980. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. CANDIDO, Antonio. “Dialética da malandragem” In: O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1992. CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: por uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] Página | 18
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A TRÁGICA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SUJEITO E OBJETO, SEGUNDO GEORG SIMMEL, EM ALGUMAS “TRAGÉDIAS CARIOCAS” DE NELSON RODRIGUES THE TRAGIC DIALECTIC RELATION BETWEEN SUBJECT AND OBJECT, ACCORDING TO GEORG SIMELL, IN SOME OF THE “CARIOCA TRAGEDIES”, BY NELSON RODRIGUES ABSTRACT: This article addresses the dialectic relationship between subject and object, under the sign of the tragic in some of the most popular plays by Nelson Rodrigues (1912‐80) precisely entitled "Carioca Tragedies." Topics dear to the rodriguian imaginarium, like love, sex and inherent venality of mankind are seen here, under the light of the ponderations by German sociologist Georg Simmel (1858‐1918) which has, among his major works, the referential The philosophy of money (1900). Keywords: Tragedy; Dialetics; Subject; Object Recebido em 30 de julho de 2009; aprovado em 29 de julho de 2009. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [3 – 21] INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC Paulo Sérgio Marques1 RESUMO: No romance O Médico Rural, Balzac atualiza a narrativa utópica, forma literária proposta pela cultura renascentista, na Utopia de Thomas More. Mantendo algumas características da tradição, o autor combina‐as a qualidades da forma ro‐
manesca para elaborar uma utopia do individualismo burguês. Este artigo busca definir e enumerar as características tradicionais da narrativa utópica, a partir das teorias de Raymond Trousson, Luigi Firpo, Lyman Tower Sargent, Émile‐Michel Cio‐
ran e outros, e mostrar como elas são coordenadas ou transcendidas pelo romance balzaquiano. Palavras‐Chave: Narrativa Utópica – Romance Burguês – Literatura Francesa – Ho‐
noré de Balzac. Em seu romance O Médico Rural, publicado em 1933, Honoré de Balzac pro‐
põe, na forma de uma narrativa ficcional, um modelo de sociedade perfeita, erigida segundo os valores da ascendente burguesia européia. Trata‐se, portanto, de uma obra que recupera, no século dezenove, um gênero surgido no Renascimento, pelas mãos do filósofo Thomas More, em seu A Utopia, que une ficção e ciência social: a narrativa utópica. O livro de Balzac conta a história de Pedro José Genestas, um militar do e‐
xército francês em viagem a um canto da França rural, para encontrar‐se com um famoso médico, o Sr. Benassis. Ali, ele se depara com uma utopia social realizada, erigida pelo esforço do médico, que então lhe narra, em longos trechos de discurso monológico, o percurso do aperfeiçoamento econômico e social do lugar. No final, já amigos, ambos confessam‐se mutuamente: Genestas, depois de ganhar confiança no médico, diz que vem até ele para lhe pedir tratamento ao filho doente; Benassis, por sua vez, conta sua vida passada, em que uma falta moral o fez recolher‐se ao campo e empreender o projeto de reconstrução rural. Para compreender as características da narrativa utópica e percorrê‐las no romance de Balzac, é preciso antes distinguir a utopia social da utopia como gênero literário. Lyman Tower Sargent, que criou uma tipologia para o gênero utópico, 1
Paulo Sérgio Marques é mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Ciências e Letras de Arara‐
quara, Universidade Estadual de São Paulo Júlio de Mesquita Filho (FCLAR/Unesp), onde cursa atu‐
almente o doutorado no mesmo programa, sob orientação da Prof. Dra. Ana Luiza Silva Camarani (Fomento: Capes). E‐mail para contato: [email protected]. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC também distingue utopismo (utopianism), que ele define como um “sonho social” (social dreaming), de utopia, “uma sociedade não‐existente descrita em detalhes consideráveis e normalmente localizada no tempo e no espaço” (SARGENT, 2005, p. 154). A tese de outro teórico do gênero, Raymond Trousson, também é a de que é preciso, primeiramente, distinguir entre o termo utopismo, cunhado por Alexandre Cionarescu para definir uma “atitude mental” ampla, que circula pela economia, pelo urbanismo, pela política, pela história e por outras ciências, além da própria literatura, da utopia propriamente dita, que designa uma categoria literária de ex‐
pressão. Ao primeiro sentido pode vincular‐se a definição de Bronislaw Baczko, para quem a consciência utópica constitui “‘uma visão global da vida social que é radi‐
calmente oposta à realidade social existente e, em conseqüência, radicalmente crí‐
tica’ e construtiva, pois favorece o desenvolvimento de um imaginário social” (TROUSSON, 2005, p. 127). Já o segundo termo designa um tipo de discurso ficcional com “procedimentos narratológicos específicos” (TROUSSON, 2005, p. 130). Na verdade, toda utopia revela‐se, portanto, como uma ficcionalização de um utopis‐
mo, isto é, a disposição em forma de narrativa ficcional de um ideal de sociedade utópica. Disposta em texto ficcional, a narrativa utópica revela peculiaridades discur‐
sivas, se comparada a outras formas narrativas, características que elenco a seguir, apontando‐as no texto de O Médico Rural. 1. CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO IDEAL COMO ALTERNATIVA AO REAL Toda narrativa utópica descreve um mundo ideal como proposta a um mun‐
do real compartilhado pelo autor e pelo leitor entre os quais ela circula, realidade e idealidade que se inscrevem, ambas, textualmente: Hitlodeu, personagem de Tho‐
mas More, fala de Utopia, falando de sua Inglaterra real, e mostra a Inglaterra real a partir do ideal de sua Utopia. A utopia é, portanto, uma ficção que se elabora a par‐
tir do diálogo entre o real e o ideal, entre o existente e o imaginado, ou, em última palavra, entre o real e o mito. O filósofo Émile‐Michel Cioran, num livro que busca estabelecer relações entre utopia e História, explica que o gênero utópico surge justamente de uma recusa da realidade imediata: “A sensatez, à qual nada fascina, recomenda a felicidade dada, existente; o homem recusa esta felicidade, e essa simples recusa faz dele um animal histórico, isto é, um amante da felicidade imagi‐
nada” (CIORAN, 1994, p. 101, grifos do autor). A idealidade, que cria os movimentos da História, é, pois, o móvel também do gênero utópico. Em cartas que acompanham a produção de O Médico Rural, Balzac chega a confessar essa idealidade, ao afirmar, por exemplo, que está trabalhando numa “I‐
mitação de Jesus Cristo poetizada” (RÓNAI, 1958:291), referindo‐se à obra do século XV, atribuída a Thomas de Kempis, que propunha o ascetismo como meio de se chegar a uma vida cristã ideal. Em outros momentos, diz que seu livro “é o Evange‐
lho em ação”, isto é, uma idealidade religiosa posta na prática (RÓNAI, 1958, p. 293). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC De fato, o encontro de Genestas com o médico rural, Sr. Benassis, inicia‐se por uma exposição deste sobre o rincão, num capítulo intitulado “O grande pro‐
blema de um lugar pequeno”, em que o médico vai apontar as falhas da realidade que ele precisou ajustar: fome, doença, ignorância, ociosidade são alguns dos males que Benassis enfrentou e baniu de seu mundo ideal, pelo prazer de intervir no mun‐
do e reinventá‐lo como esforço individual, segundo princípios de uma sociedade perfeita. Confessa o Sr. Benassis: As transformações a introduzir neste cantão, que a natureza fizera tão rico e que o homem tornara tão pobre, deviam ocupar toda a minha vida; elas me tentaram pela própria dificuldade de as execu‐
tar. [...] Oh! não me deixei levar por nenhuma ilusão, nem acerca do caráter da gente do campo, nem no que toca aos obstáculos que se encontram ao tentar melhorar os homens ou as coisas (BALZAC, 1958, p. 323)2. As pessoas que Benassis escolhe como agentes de seu projeto são homens falidos e destruídos, infelizes ou desesperados, que, contudo, melhoram depois de assumirem suas funções na nova sociedade em ascensão: o juiz era “um antigo no‐
tário de Grenoble, arruinado por uma falsa especulação”; o professor da escola rural era “um padre ajuramentado, repelido por todo o departamento”; a professora, “uma digna senhora arruinada que não sabia para que santo apelar”; o sapateiro, um “pobre músico ambulante” (BALZAC, 1958, p. 330‐332); e, acima deles, a “Fos‐
seuse”, importante e comovente personagem no enredo de Balzac, recolhida da orfandade e da perdição pelo generoso médico e acomodada numa idílica casa de campo para prestar serviços de costura à gente local. Como o Cândido de Voltaire, em seu jardim paradisíaco, Benassis recolhe os refugos humanos, os depositários individuais dos males e vícios, para mostrar como a imperfeição da realidade pode ser convertida, pelo idealismo social, em um mundo notável e sem defeitos. 2. ANTROPOCENTRISMO A conversão da realidade deficiente em mundo sem defeitos só é possível, na utopia, graças à crença de que o Mal não é um elemento irrecorrível presente na natureza das coisas, mas um desvio na ordem do mundo e dos homens, que o pró‐
prio homem, por sua força de superação e auto‐superação, pode transcender e eli‐
dir. Por isso, a utopia distingue‐se dos mitos do Paraíso Perdido: lembra Ray‐
mond Trousson que a intencionalidade construtiva elimina as narrativas nostálgicas sobre a idade de ouro, “de um tempo de antes da decadência e da queda”, pois es‐
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Utilizei, para este artigo, a tradução de Vidal de Oliveira, para O Médico Rural, publicada pela Edito‐
ra Globo, em 1958, no 13o volume da Comédia Humana. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC sa idade é uma “lei fixada pela divindade”, um mundo “dado ao homem e não edifi‐
cado por ele”. A utopia “olha para o porvir”, manifesta a “representação de uma felicidade obtida apesar da queda e vontade de modificar o curso da história”. Não constituem imagens utópicas, portanto, mundos como o medieval país da Cocanha, que se apresenta como uma “meta‐história impossível”, ou a Arcádia renascentista, que expressa “circunspecção e renúncia” à cidade e à sociedade organizada. Narra‐
tivas como estas “evocam o abrigo, o refúgio, a demissão frente ao real”, enquanto a utopia “recusa a submissão à transcendência” (TROUSSON, 2005, p. 129‐130, gri‐
fos do autor). A utopia precisa ser uma obra humana, uma crença no poder da humanidade de superar seus desafios e construir seu mundo ideal, o que faz desse gênero uma defesa do antropocentrismo na literatura de ficção: “Se a utopia – como o utopismo – supõe a vontade de construir, frente à realidade existente, um mundo outro e uma história alternativa, ela se revela essencialmente humanista ou antropocêntri‐
ca, na medida em que, pura criação humana, ela faz do homem mestre de seu desti‐
no” (TROUSSON, 2005, p. 128). Assim, “a utopia propõe uma redenção do homem pelo homem, nascida de um sentimento trágico da história e da vontade de dirigir seu curso. Procura de uma felicidade ativa, ela visa dar uma finalidade terrestre à aventura humana e testemunha uma consciência sociológica desperta” (TROUS‐
SON, 2005, p. 130). Benassis decide construir seu mundo ideal depois de sofrer com a impossibi‐
lidade de sua própria felicidade, levada à desgraça por suas ações de jovem incon‐
seqüente. Sua desventura desperta‐o para a necessidade de dar um sentido à pró‐
pria existência, o que ele consegue tornando‐se agente de um bem coletivo. A des‐
coberta do poder no Homem leva a consciência à idéia da reforma social. “Aqueles que sondaram mais fundo os vícios e virtudes da natureza humana são os que os estudaram em si mesmos, de boa‐fé”, prega o médico. “Nossa consciência é o pon‐
to de partida” (BALZAC, 1958, p. 442). O encontro com o Homem em si levou ao encontro com o Homem na coletividade e à compreensão de que faz parte de uma esfera maior: Tudo se torna grave na vida humana, quando a eternidade pesa so‐
bre a mais leve das nossas determinações. Quando essa idéia pesa com todo o seu poder sobre a alma de um homem, e lhe faz sentir em si não sei quê de imenso que o põe em contato com o infinito, as coisas mudam estranhamente. Desse ponto de vista, a via é bem grande e bem pequena. O sentimento de minhas faltas não me fez pensar no céu enquanto tive esperanças na terra, enquanto achei a‐
lívio aos meus males em algumas ocupações sociais (BALZAC, 1958, p. 462). Trata‐se de um sentimento religioso, que, porém, não transcende a existên‐
cia terrena. A consciência de Benassis não o faz se sentir divino, mas humano entre VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC homens, ao mesmo tempo com uma vida “bem pequena” e “bem grande”. De fato, notei como Balzac tomava seu romance como uma ficcionalização da Imitação de Cristo, pelo que Paulo Rónai chama a atenção para a freqüente presença dos princí‐
pios católicos nesta obra; entretanto, lembra o crítico, o catolicismo de O Médico Rural é “essencialmente prático e utilitário” (RÓNAI, 1958, p. 293), isto é, o evange‐
lho “em ação”, como quis seu autor. Depende, pois, do Homem a escolha por um caminho melhor, pois tudo, no mundo social, é resultado das ações humanas: “O homem que destrói e o homem que constrói são dois fenômenos de vontade” (BALZAC, 1958, p. 337). Outro sinal do antropocentrismo na obra é o valor que se dá à educação co‐
mo móvel do desenvolvimento individual e do aperfeiçoamento social. “Não basta ser homem de bem para civilizar o mais humilde canto da terra, é preciso ademais ser instruído”, defende Benassis (BALZAC, 1958, p. 336). Existe, pois, uma essência humana a ser aprendida, um conceito de humanidade em que todo indivíduo deve ser iniciado. A importância do antropocentrismo para a elaboração utópica fez Gerd Bor‐
nheim (1992, p. 255) afirmar que “só a cultura burguesa criou realmente utopias, ou melhor, a especificidade da utopia burguesa termina encontrando o fundamento de seu espaço de possibilidade no ateísmo”. De fato, antes do renascentista Thomas More – isto é, no início da ascensão burguesa –, conhecemos apenas a bem‐
aventurança apriorística do Paraíso original e da Jerusalém Celeste, mas não a soci‐
edade perfeita futura e possível, erigida por mãos humanas numa geografia terrena. Se bem e mal são obra humana, o Paraíso é um desejo exeqüível – este é o pressu‐
posto utópico. 3. CÓDIGO LEGISLATIVO Lyman Tower Sargent (2005, p. 157) estabelece dois aspectos centrais para a utopia: em primeiro lugar, a sociedade descrita não deve existir na realidade; em segundo, o autor deve, de algum modo, avaliar ou estimar (evaluate) essa socieda‐
de. Ou, como resume Trousson (2005, p. 130), “a utopia propõe a organização de uma sociedade feliz fundada na perfeição institucional”. Trata‐se, portanto, de uma ordem institucional para assegurar o bem‐estar público, o que faz da utopia um gê‐
nero literário elaborado em torno de um ideal normativo: L’utopiste se retranche dans l’abstrait, choisir d’effacer le réel pour le reconstruire en pensée, d’imaginer un monde conforme à ses désirs. Il ya a en lui un législateur impatient – mais frustré – d’oeuvrer dans le concret et d’arrêter les règles du bonheur social. Constatant ce qui est, obsédé par un « devoir‐être », il rêve du pouvoir qui lui permetrait de transformer sa théorie en réalité (TROUSSON, 2004, p. 35, grifo do autor). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC A lei é o grande mito do autor utopista, a possibilidade de transformar o “dever‐ser” em “ser”, realizar uma potencialidade que seu gênio enxerga, traduz em norma e inventa sua aplicação: L’utopiste [...] fait de la loi un véritable mythe, il est l’institutionnaliste, et c’est pourquoi il est à la recherche du meilleur des mondes possibles obtenu par un jeu subtil et compliqué de règlement et d’obligations. Le Législateur fera donc de bonnes lois qui, agissant sur un peuple neuf, feront des hommes dignes de ces lois immuables (TROUSSON, 2004, p. 35‐36, grifo do autor). Benassis, o utopista do romance de Balzac, reconhece, como todo legislador utópico, os defeitos de sua época: Perdemos com a monarquia a honra, com a religião de nossos pais, a virtude cristã, com os nossos infrutíferos ensaios de governo, o pa‐
triotismo. Esses princípios não existem mais, senão parcialmente, ao invés de animar as massas, porquanto as idéias nunca perecem. Ago‐
ra, para amparar a sociedade, não temos outro sustentáculo, senão o egoísmo. [...] Desgraçado do país assim constituído! (BALZAC, 1958, p. 336). A saída para os problemas é a legislação, pois “a lei é uniforme; os costumes, as terras, as inteligências não o são; ora, a administração é a arte de aplicar as leis sem ferir os interesses” (BALZAC, 1958, p. 338). Sob essa égide da legislatura reside, por outro lado, um materialismo próprio do imaginário burguês e sintetizado no pensamento positivista do século XIX, do qual se verificam vestígios na doutrina do médico, que assim a explica a Genestas: Quando me decidi religiosamente a esta vida de obscura resignação, hesitei muito tempo entre tornar‐me padre, médico rural ou juiz de paz. Não é sem motivo, meu caro senhor, que, proverbialmente, se reúnem os três roupas pretas, o padre, o homem de lei, e o médico: um cura as feridas da alma, o outro as da bolsa, e o terceiro as do corpo; eles representam a sociedade nos seus três principais termos de existência: a consciência, a propriedade e a saúde. Outrora, o primeiro, depois, o segundo, foram todo o Estado (BALZAC, 1958, p. 338). Está aí, reproduzida no discurso do médico, a teoria dos três Estados de Au‐
guste Comte: a sociedade teocrática do sacerdote; a racional do jurista; e a prática do positivista. Note‐se ainda que, no raciocínio de Benassis, o jurista é o defensor da “bolsa” e da “propriedade”. Por essas duas razões – o pragmatismo da lei e a justiça VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC como abono das atividades econômicas –, a legislação do médico para seu rincão utópico não é primeiramente social, mas comercial. O sonho de Benassis, conforme sua própria confissão a Genestas, era o de promover “uma terceira era comercial” na comunidade que o abrigou (BALZAC, 1958, p. 332), o que ele conseguiu insuflando em seus moradores o ideal do pro‐
gresso econômico e a moral do trabalho: “Fiz vir muitas famílias e gente laboriosa; dei‐lhes a todos o sentimento de propriedade [...] Os infelizes que aqui encontrara, levando, a pé, alguns queijos a Grenoble, iam agora em carroça, levando frutas, o‐
vos, galinhas, perus. Todos cresceram insensivelmente” (BALZAC, 1958, p. 331), mo‐
vidos pelo estímulo do capital: “A circulação do dinheiro fazia nascer em todos o desejo de ganhá‐lo; desaparecera a apatia, o burgo despertara” (BALZAC, 1958, p. 327). Sucedendo as melhorias fabris e comerciais ao burgo, este passa a viver eras de contínua evolução, fases que o médico nomeia por “eras industriais” (BALZAC, 1958, p. 328), responsáveis, por outro lado, pelo aumento da felicidade local, pois, se existe bem‐estar social e individual na utopia de Benassis, é, acima de tudo, por‐
que o comércio e a indústria foram bem encorajados e administrados, numa cadeia que une necessariamente a premissa do progresso comercial à conclusão do pro‐
gresso social: “A necessidade engendrava a indústria, a indústria engendrava o co‐
mércio, o comércio criava o lucro, o lucro o bem‐estar, e o bem‐estar idéias úteis” (BALZAC, 1958, p. 326). Essas “idéias úteis” conduzem à quarta característica da sociedade descrita nas narrativas utópicas. 4. PRINCÍPIO DA UTILIDADE Tudo, na sociedade do gênero utópico, tende para um fim e uma função: “Rien d’inutile et surtout rien de nuisible, mais tout dirigé vers un but d’utilité” (TROUSSON, 2004, p. 49). Instituições, bens e pessoas transformam‐se em peças de uma engrenagem social perfeita, em que nada pode escapar a uma destinação prá‐
tica e necessária. No caso de O Médico Rural, essa característica assume posição central na so‐
ciedade proposta, uma vez que o utilitarismo constitui um dos primeiros princípios da vida e do mundo burguês. O capítulo X, em que Benassis expõe a seu convidado a concepção de sociedade prefeita que ele buscou erigir em sua comunidade rural, intitula‐se “Tratado de Civilização Prática”, o que demonstra o pragmatismo dos ideais sociais do médico, em que o “Tratado” acaba sendo apenas uma exposição do uso dos bens e dos homens, pois “tais coisas são simples demais para compor‐se com elas uma ciência; nada têm de brilhante, nem de teórico; têm a desgraça de ser muito simplesmente úteis” (BALZAC, 1958, p. 335, grifo meu). Transformada em força de produção, a vida humana justa e desejável é aque‐
la dominada pelo trabalho: “A vida dos ociosos é a única que custa caro, é talvez um roubo social consumir sem nada produzir” (BALZAC, 1958, p. 366), defende Benas‐
sis, dispondo, assim, num aforisma um dos princípios capitais de uma “ética” bur‐
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC guesa (BORNHEIM, 1992, p. 250). Em O Médico Rural, a qualidade de vida das pes‐
soas é avaliada por sua saúde física e sua disposição para as atividades produtivas: A mulher, magra e pálida, que a princípio partilhava as preocupações e temores do patrão, engordou e está viçosa e bonita. As duas ve‐
lhas mães sentem‐se muito felizes e ocupam‐se com as minúcias da casa e do comércio. O trabalho produziu dinheiro, e o dinheiro, com a tranqüilidade que trouxe, restituiu a saúde, a abundância e a ale‐
gria. Realmente, esta família é para mim a história viva da minha co‐
muna e a de jovens Estados comerciantes. Esta olaria, que eu anti‐
gamente via sombria, vazia, suja, improdutiva, está hoje em pleno rendimento, bem habitada, animada, rica e abastecida (BALZAC, 1958, p. 375). São estas as unidades de medida do bem‐estar social: vigor para o trabalho, ocupação com as atividades laboriosas, engajamento no comércio, aquisição de capital e enriquecimento financeiro. Esta é a sociedade feliz, conforme o ideal bur‐
guês novecentista. Por isso, Benassis aconselha a seus protegidos: “Bem, meus fi‐
lhos, prosperidade! Continuem a fazer fortuna e gente” (BALZAC, 1958, p. 376). Ca‐
pital e mão‐de‐obra para fazer prosperar o negócio. Por isso, o casamento é um contrato cuja premissa não é o amor e o companheirismo humano, mas o cálculo de lucros e perdas: “Aqui, como em toda a parte na campanha, a paixão entra por pou‐
ca coisa nos casamentos. Em geral os camponeses querem uma mulher para ter filhos, para ter uma dona de casa que lhes faça uma boa sopa e lhes leve comida no campo, que lhes teça camisas e lhes remende as roupas” (BALZAC, 1958, p. 387). O sentimento é empecilho em todas as decisões que devem conduzir à prosperidade: “Os homens destinados a viver pelas inspirações do coração, ao invés de ouvir as ponderações que emanam da cabeça, permanecem muito tempo nessa situação” (BALZAC, 1958, p. 439). Não há progresso onde não há razão prática. 5. UNIFORMIDADE SOCIAL Uma sociedade absolutamente racionalizada é uma sociedade uniforme. Por isso, o enredo utópico não apresenta conflitos entre as personagens e seu meio social: L’idéal est que chaque citoyen soit assimilé, identifié à l’État. Il évitera donc à tout prix les divergences, les exceptions, les dissidences : ce qui frappe d’abord, en Utopie, c’est l’unanimité complète, quasi mécanique, des volontés nourries d’une même conviction et tendues vers un même but. De là, la suppression, ou plutôt l’inexistence de sources de conflits, des passions et des revendications ; il n’y a pas de minorités agissantes, pas de partis au VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC sens politique du terme, qui experimeraient des vues contradictoires et rompraient l’ordre et la norme (TROUSSON, 2004, p. 36). Duas características do pensamento de Balzac muitas vezes são vistas como contraditórias num homem que tão bem representou a classe burguesa em sua o‐
bra: o catolicismo e o monarquismo. Outras vezes, essas características são conside‐
radas posições particulares de um homem que, tendo nascido e se criado burguês, recusava sua classe por um ideal aristocrático. Mas é preciso também notar que a religiosidade e o partido monárquico não são tão avessos aos ideais burgueses co‐
mo se pode acreditar. Veja‐se este argumento de Benassis: “Religião quer dizer La‐
ço, e, certamente, o culto, ou, com outras palavras, a religião externada, constitui a única força capaz de unir as espécies sociais e lhes dar uma forma durável” (BAL‐
ZAC, 1958, p. 352, grifo do autor). A religião não é recusada pelo burguês, que jamais deixa de enxergar seu lado prático e utilitário de mecanismo de aglutinação das massas e uniformização cultural. Por outro lado, se o individualismo e a vida privada são valores fundamentais do projeto burguês, seu ideal é o de elevá‐los ao status de conduta coletiva e norma pública. Trata‐se, aqui, daquele paradoxo apontado por Boaventura de Sousa Santos (2000, p. 77‐78) para o projeto sócio‐cultural da mo‐
dernidade, que se apóia em dois pilares, o da emancipação e o da regulação: de um lado, o projeto individualista burguês pleiteia a liberdade de pensamento e ação, numa “aspiração de autonomia” para o sujeito; de outro, busca a “concretização de objetivos práticos de racionalização global da vida coletiva e da vida individual”. Perseguindo a máxima de que, “para o maire da aldeia, como para o conquis‐
tador, os mesmos princípios: a nação e a comuna são um mesmo rebanho”, pois, “por toda parte a massa á a mesma” (BALZAC, 1958, p. 339), Benassis oferece a fórmula para produzir uma sociedade “igualitária”: Todo poder tende para a conservação. Para viver, hoje como anti‐
gamente, os governos devem aliciar os homens fortes, trazendo‐os de onde quer que estejam, a fim de fazer deles seus defensores e subtrair das massas os indivíduos enérgicos que as agitam. Ofere‐
cendo à ambição pública caminhos simultaneamente árduos e fáceis, árduos para as veleidades incompletas, fáceis para as vontades reais, um Estado previne as revoluções causadas pelo constrangimento do movimento ascendente das verdadeiras superioridades para seu ní‐
vel. Nossos quarenta anos de tormenta devem ter demonstrado a um homem de bom‐senso que as superioridades são conseqüência da ordem social (BALZAC, 1958, p. 406). A ordem depende de converter possíveis desvios em força afinada com o projeto total e totalizador. Revoluções são sintomas de um projeto que falhou, por isso a utopia, completa em todas as suas arestas, não pode comportar a ação revo‐
lucionária. Da mesma forma, a direção deve ser uma só para todo o corpo social, daí VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC esta regra de legislação utópica na boca de Benassis: “Um povo que tem quarenta mil leis não tem lei” (BALZAC, 1958, p. 407). 6. DIRIGISMO O unidirecionamento social faz dos habitantes da utopia o “rebanho” em que os vê o médico de Balzac e é traço característico da organização utópica: L’utopie est par nature contraignante. La vertu, devenue réflexe conditionné, y enserre l’homme dans un carcan, fait des automates évoluant dans des ruches géométriques. Partout les décrets tombent comme des couperets dans une sorte d’ivresse de réglementation et d’uniformisation où rien n’est laissé au hasard ni à l’initiative personnelle (TROUSSON, 2004, p. 36). As utopias são “cidades que o mal não toca” (CIORAN, 1994, p. 103), de onde ele está “excluído por princípio e por razão de Estado”, lugar em que “as trevas es‐
tão proibidas, só a luz é admitida” e onde não se vê “nenhum vestígio de dualismo”, pois “a utopia é, por essência, antimaniqueísta. Hostil à anomalia, ao disforme, ao irregular, tende para o fortalecimento do homogêneo, do modelo, da repetição e da ortodoxia” (CIORAN, 1994, p. 107). Nas utopias, vemo‐nos “obrigados a uma felici‐
dade feita de idílios geométricos, de êxtases regulamentados, de mil maravilhas repugnantes: assim se apresenta necessariamente o espetáculo de um mundo per‐
feito, de um mundo fabricado” (CIORAN, 1994, p. 103, grifo do autor). Invertendo o lugar da utopia, Cioran a define como a edificação do Inferno na Terra, aquele ideal de Mara, de Ahriman e do Tentador, quando tentaram seduzir respectivamente Bu‐
da, Zoroastro e Cristo: “a supremacia sobre a terra” (CIORAN, 1994, p. 108), pois, planejar uma sociedade na qual, segundo uma etiqueta aterradora, nossos atos são catalogados e regulamentados, na qual, por uma ca‐
ridade levada até a indecência, se preocupam com nossos pensa‐
mentos mais íntimos, é transportar os tormentos do inferno para a idade de ouro, ou criar, com a ajuda do diabo, uma instituição filan‐
trópica. Solares, utópicos, harmônicos – seus nomes horríveis se pa‐
recem com seu destino, pesadelo que também nos está reservado, já que nós mesmos o transformamos em ideal (CIORAN, 1994, p. 111). A utopia é o discurso do sujeito pleno, um discurso sem o Outro, a mais re‐
quintada forma da hegemonia cultural. É por isso que Cioran atribui veracidade utó‐
pica apenas àquelas utopias que se revelam “falsas”, isto é, que recusam a ilusão de uma hegemoneidade. No caso de O Médico Rural, o dirigismo é ainda mais evidente do que em u‐
topias anteriores, uma vez que ali chegam a seu ponto máximo os valores individua‐
listas do pensamento burguês e o social torna‐se reflexo de uma visão particularista VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC de racionalidade e ordem. Bornheim (1992, p. 248) observa que “a proposta do pro‐
jeto burguês é essa aventura em tudo inédita do individualismo”. Na comunidade de Benassis, o conceito de bem‐estar é a visão particular do médico do que deve se considerar uma sociedade perfeita: “Para mim, os progressos intelectuais estavam inteiramente nos progressos sanitários. [...] Quem trabalha come, e quem come pensa” (BALZAC, 1958, p. 327). Eis a Shangri‐Lá de um médico burguês: o progresso está no trabalho, e este, na robustez do operário. Uma vez apartados os loucos e deficientes mentais e saneadas as habitações e os estábulos, o comércio e a indús‐
tria podem se instalar pela força da mão‐de‐obra útil e o médico conclui, satisfeito: “Meu empreendimento pôde então desenvolver‐se em todas as suas conseqüên‐
cias” (BALZAC, 1958, p. 329), frase que, iniciada pelo possessivo de primeira pessoa, não deixa esquecer que o projeto utópico burguês é um “empreendimento” indivi‐
dual. Se a utopia é um gênero preferivelmente burguês, é porque essa classe dis‐
põe a obediência nos próprios fundamentos da organização social e faz da hierar‐
quia familiar o modelo da hierarquia pública. Benassis argumenta: A base das sociedades humanas será sempre a família. No ponto em que começa a ação do poder e da lei, aí pelo menos deve aprender‐
se a obediência. [...] Ali os costumes são patriarcais: a autoridade do pai é ilimitada, sua palavra é soberana; ele come sozinho na ponta da mesa, a mulher e os filhos o servem, os que o cercam não lhe falam sem empregar certas fórmulas respeitosas, diante dele todos ficam de pé e descobertos. Criados assim, os homens têm o instinto da sua grandeza. Esses usos constituem, segundo o meu modo de pensar, uma nobre educação. Por isso, nessa comuna eles são geralmente justos, econômicos, laboriosos (BALZAC, 1958, p. 329). Se o desejo utópico da uniformidade social legitima a religião como ferra‐
menta burguesa, o dirigismo do pensamento individualista aplicado à coletividade justifica, no burguês balzaquiano, a autoridade monárquica. Pois, em que outro re‐
gime de governo o indivíduo é mais evidentemente legislador? É assim que vive Be‐
nassis, o benfeitor – como em um reinado: “Os reis, tivessem embora a terra, são condenados, como os demais homens, a viver num pequeno círculo a cujas leis es‐
tão sujeitos, e sua felicidade depende das impressões pessoais que sentem. Ora, Benassis, por toda a parte no cantão, só encontrava obediência e amizade” (BAL‐
ZAC, 1958, p. 396). Pelo ideal individualista, na utopia do médico rural não há lugar para o exercício eleitoral: “Quem vota discute”, alega Benassis. “Os poderes discu‐
tidos não existem” (BALZAC, 1958, p. 405), daí que “o princípio da eleição é um dos mais funestos à existência dos governos modernos”, pois permite ao “rebanho” pôr em risco a ordem racional da utopia, pelo que conclui o médico: “Os proletários parecem‐me os menores de uma nação e devem permanecer sempre sob tutela” (BALZAC, 1958, p. 406). O bom governo é um único pensamento conduzindo a uma VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC ação igualmente unívoca: “Supor que quinhentos homens, vindos de todos os can‐
tos do império, farão uma boa lei, não é isso um mau gracejo que os povos expiarão cedo ou tarde? Mudam então de tirano, isso é que acontece. O poder e a lei devem, pois, ser obra de um único, o qual, pela força das coisas, é obrigado a submeter in‐
cessantemente suas ações a uma aprovação geral” (BALZAC, 1958, p. 408). 7. SONHO DE FELICIDADE COLETIVA O bem‐estar coletivo é o indulto individual para o dirigismo social da utopia: L’utopiste préconise volontiers le collectivisme. “La plupart du temps, la famille a disparu du royaume d’Utopie. La cellule familiale, en effet, constitue aisément un noyau réfractaire à ordre social et fait préférer les intérêts particuliers à ceux de la cité” (TROUSSON, 2004, p. 36, grifo do autor). Por isso as utopias não se concen‐
tram em tramas da intimidade familiar, mas discutem a felicidade global: Le bonheur en Utopie est‐il un bonheur collectif, non une jouissance individuelle et partant suspecte. Chacun y sera heureux, mais à condition de l’être avec les autres, comme les autres et surtout sous les yeux des autres. L’utopiste rêve d’une transparence où chacun serait un miroir : tous se reflètent et se renvoient mille fois leur propre image heureuse, unanime et sans faille (TROUSSON, 2004, p. 36, grifo do autor). Benassis é o ideal de indivíduo utópico por excelência: nada ganha para si, seus honorários são investidos na melhoria do burgo e no progresso da comuna. Ele prega que “um homem deve desprender‐se de todo e qualquer interesse pessoal, para dedicar‐se a um pensamento social” (BALZAC, 1958, p. 336). Tomado pelo idea‐
lismo altruísta, o indivíduo está, então, pronto para converter outras individualida‐
des ao mesmo propósito comunitário: “A administração não consiste em impor às massas idéias ou vontades mais ou menos justas, e sim em imprimir às idéias boas ou más dessas massas uma direção útil, que as faça concorrer ao bem coletivo” (BALZAC, 1958, p. 337). Explicita‐se, aqui, a contradição do projeto burguês: a auto‐
nomia do sujeito deve abdicar de si para assegurar a autonomia de todos. A distin‐
ção se faz entre interesse pessoal e sentimento de solidariedade humana, o que o projeto da sociedade burguesa em ascensão, segundo Benassis, não considerava: “As grandes coisas sociais não se fazem senão pelo poder dos sentimentos, único capaz de reunir os homens, e o filosofismo moderno baseou as leis sobre o interes‐
se pessoal, que tende a isolá‐los” (BALZAC, 1958, p. 403). Assim, a contradição a‐
pontada por Boaventura de Sousa Santos evidencia‐se especialmente no gênero utópico, pois, se, de um lado, como vimos acima, este é um gênero preferivelmente burguês, graças ao princípio do ateísmo que permite a construção humana do “Pa‐
raíso” terrestre, de outro, confiar ao Homem seu destino é confiar a homens – no VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC plural – a construção de um ideal coletivo: quando um deus fala, sua voz é a de um grupo; mas, quando fala o Homem, ouve‐se a algaravia babélica de uma legião. 8. O HERÓI COLETIVO Absolutamente normativa, a utopia não admite divergências, a grande ameaça ao pensamento que se pretende universal. Por isso, “l’utopie ignore prudemment les personnalités exceptionnelles et les grandes individualités créatrices, précisément parce qu’elles sont inévitablement déviantes et en rupture avec les normes” (TROUSSON, 2004, p. 49‐50). Assim, um dos efeitos do discurso utópico é assegurar um distanciamento afetivo, uma vez que a natureza individua‐
lista da emoção ameaça a arquitetura racional da utopia: No utopismo a componente literária é fundamental exatamente porque deve recorrer à mensagem cifrada, a este disfarce de grande habilidade, para tornar aceitável as sugestões através de uma leitura não atenta. Pronto, talvez o segredo seja realmente este: alguém pode ler um romance utópico sem se sentir envolvido, sem o medo que aquela instituição lhe caia sobre as costas no dia seguinte atra‐
vés de uma revolução social. O lê como um capricho, uma estranhe‐
za, mas no entanto se habitua com a idéia, entra naquela ordem, primeiro com a fantasia, depois devagarzinho pensa sobre ela. Quando parar para analisar os males e desigualdades do mundo em que vive, lhe poderá voltar à mente que, veja só, em um livro que havia lido quando era jovem com ânimo leve, só por divertimento, aquele problema parecia ter encontrado uma solução. A utopia não é mais que uma pequena semente sepulta na terra, mas destina a germinar em um futuro melhor (FIRPO, 2005, p. 237). Ora, no romance tradicional e burguês, o enunciado privilegia o desenvolvi‐
mento de um caráter, a exposição de uma personalidade em jogo com o ambiente que a envolve, como afirma Letizia Zini Antunes, comentando as teorias do romance propostas por Hegel e Lukács: A condição da vida moderna [...] é caracterizada por uma cisão pro‐
funda e sofrida entre a essência e a substância, entre o eu e o mun‐
do, entre a vida e o seu significado. [...] Uma vez destruída a unidade entre a vida e sua essência, ou seja, o seu significado, não é mais possível recuperar a totalidade do ser na dimensão da filosofia. [...] As diferentes formas de romance expressam, portanto, maneiras distintas da busca de harmonia com o mundo, mediante a represen‐
tação da vida privada dos indivíduos e de um herói que é necessari‐
amente problemático (ANTUNES, 1998, p. 182‐183). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC Esta é, talvez, a maior originalidade da utopia de Balzac, que alia a exposição da sociedade perfeita possível à jornada de um herói que a constitui a partir de sua história pessoal. A emergência, na narrativa utópica, de um herói sofredor, é absolutamente singular. Trousson (2005, p. 132) observa: “Universo do tempo em suspensão, da temporalidade oca, não romance realista, mas esquematização da realidade, a uto‐
pia também não acolhe nenhum herói autônomo”. Cioran (1994, p. 115‐116), crítico acerbo do discurso utópico, chega a reconhecer que “o mais louvável nas utopias é haver denunciado os danos que causa a propriedade, o horror que representa, as calamidades que provoca”. Por isso não há lugar para individualidades, na narrativa utópica, que é uma narrativa sem heróis. Ao protagonista reserva‐se, em alguns ca‐
sos, o papel de testemunha ou educando nas normas da sociedade perfeita. Entre‐
tanto, nem isso fortalece a personalidade do herói, pois ele não sai transformado: “Os personagens são autômatos, ficções ou símbolos: nenhum é verdadeiro, ne‐
nhum ultrapassa sua condição de fantoche, de idéia perdida no meio de um univer‐
so sem referências” (CIORAN, 1994, p. 106). O que interessa às utopias é o plano coletivo que o enunciado deve expor, sua arquitetura tem por missão “dizer a cida‐
de”, fazer subsumir as particularidades perante o grande projeto comum: Archicteture colossale, grandiose, insérée dans un urbanisme géométrique, chargée de célébrer la grandeur, la vertu, les mérites d’une Cité qui ne doit rien qu’à elle‐même et à son fondateur mythique, et qui ne saurait s’avilir en se mettant au service des égoïsmes et des vanités. En Utopie, la cité substitue à l’homme, individualité irréductible, un citoyen qui n’existe que dans et par le groupe : c’est à lui seul que l’architecture et les arts sont censés rendre hommage (TROUSSON, 2004, p. 52‐53). Duas histórias pessoais se cruzam nas páginas de O Médico Rural: a do militar Genestas e a do médico Benassis. Ao contrário do que ocorre nas utopias tradicio‐
nais, as personagens em Balzac ganham cores individuais, sentimentos, idiossincra‐
sias. O militar é “desconfiado, propenso a violentos acessos de cólera, impertinente nas discussões”, “conhecia os hábitos sociais e as leis da cortesia”, “conhecia bem a tática, a manobra, a teoria da esgrima”, mas teve os estudos “descurados” (BAL‐
ZAC, 1958, p. 299); o médico, por sua vez, se tem seu caráter composto ao longo da exposição da comuna, possui, de início, uma caracterização física minuciosa, impró‐
pria à despersonalização da personagem utópica: Aquele homem tinha uma fisionomia semelhante à de um sátiro: a mesma testa levemente arqueada, mas cheia de proeminências, to‐
das elas mais ou menos significativas; o mesmo nariz arrebitado, es‐
pirituosamente rachado na ponta, as mesmas maçãs salientes. A bo‐
ca era sinuosa, os lábios grossos e vermelhos. O queixo dobrava‐se bruscamente para cima. Os olhos castanhos e animados por um o‐
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC lhar vivo, ao qual a cor nacarada do branco do olho dava um brilho, exprimiam paixões amortecidas. Os cabelos, outrora retos, e agora grisalhos, as profundas rugas da face e as espessas sobrancelhas já embranquecidas, o nariz que se tornara cheio de nódulos e de vênu‐
las, sua tez macilenta e sulcada de manchas vermelhas, tudo nele in‐
dicava a idade de cinqüenta anos e os rudes trabalhos de sua profis‐
são (BALZAC, 1958, p. 310). Como nesses olhos de “paixões amortecidas”, a figura misteriosa do médico filantrópico vai construindo, página a página, a expectativa da narração de sua vida pretérita, finalmente exposta na “confissão” da quarta parte do livro, o que impede que se desvie a atenção de sua pessoa durante toda a descrição da comuna. O encontro de Benassis e Genestas é que permite ao primeiro expor seu pro‐
jeto de sociedade utópica, realizado no meio rural da França. Entretanto, suas histó‐
rias não são apenas pretexto para a descrição da comuna, mas, especialmente a do médico, verdadeiro móvel da utopia descrita. Benassis não é, pois, apenas um herói de romance, como o definem Hegel e Lukács, mas a combinação deste com o herói fundador dos mitos antigos, pois, ao mesmo tempo em que luta contra a sociedade urbana de sua época, também funda, com sua dor e suas ações, uma nova cultura. A combinação de narrativa heróica com narrativa utópica, em O Médico Rural, faz da conversão da força heróica individual em força de benefício coletivo o eixo maior do enredo deste romance. “Todos nós temos as nossas inclinações, que é preciso sa‐
ber, ou combater, ou torná‐las úteis aos nossos semelhantes”, explica Benassis (BALZAC, 1958, p. 395). Enviado pelo pai a Paris, para estudar medicina e se tornar um homem de “virtude”, Benassis desvia‐se do caminho projetado, ferindo a honra e os sentimentos de uma mulher, a jovem Ágata, que morre depois de lhe deixar um filho. Ele tenta recompor a vida, aproximando‐se de Evelina, filha de família janse‐
nista, que, ao saber do passado do rapaz, recusa‐lhe a mão da moça. Em seguida morre‐lhe o filho e, desgostoso, ele se recolhe ao campo em busca de paz e de um trabalho social que o redima: Eu procurava entrar numa vida diferente daquela cujos pesares me haviam cansado. Veio‐me ao coração um desses pensamentos que Deus nos manda para nos fazer aceitar nossos infortúnios. Resolvi educar esta terra como um preceptor educa uma criança. Não faça um mérito da minha beneficência, pois estava muito interessado ne‐
la pela necessidade de distrações que sentia. Eu desejava, então, empregar o resto de meus dias numa qualquer empresa árdua (BAL‐
ZAC, 1958, p. 323). Fundem‐se, desse modo, o gênero utópico ao gênero romanesco, fazendo de um a decorrência necessária do outro. Diferentemente das utopias tradicionais, que são descritas em seu status quo, esta é narrada, isto é, exposta em seu trans‐
curso da imperfeição à perfeição, pelos atos do herói Benassis, que, para atingir VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC seus objetivos, precisa enfrentar oponentes, como todo protagonista de narrativa heróica: a resistência dos campônios contra a segregação dos “cretinos”, a ociosi‐
dade dos trabalhadores rurais, a rivalidade dos governantes e proprietários locais, a inércia dos costumes, dentre outros. É a força do herói, vencendo a oposição do caos e a resistência a sua vontade, que eleva a cidade utópica, pois só o respeito ao gesto heróico é capaz de ordenar o mundo: “Os camponeses, tanto como as pesso‐
as da sociedade, acabam por menosprezar o homem a quem enganam. Ser engana‐
do não é ter praticado um ato de fraqueza? Somente a força governa” (BALZAC, 1958, p. 340). Aqui, a vitória do indivíduo, isto é, da personagem heróica, é o bem coletivo e não apenas a redenção pessoal, numa leitura do cristianismo que o reata aos ideais burgueses, segundo este discurso de Benassis: A vida humana é sem dúvida uma última provação para a virtude como para o gênio, igualmente solicitados por um mundo melhor. A virtude e o gênio se me afiguram as duas mais belas formas daquele completo e constante devotamento que Jesus Cristo veio ensinar aos homens. O gênio permanece pobre iluminando o mundo, a vir‐
tude fica em silêncio ao sacrificar‐se pelo bem geral (BALZAC, 1958, p. 370). Esta não é a única passagem em que o benfeitor Benassis é associado a Jesus Cristo. Vimos que Balzac disse deste romance que seria uma “poetização” da Imita‐
ção de Cristo. Benassis é, pois, um Jesus Cristo do pragmatismo burguês. Quando, ao se aproximar do burgo, Genestas encontra uma velha camponesa, – O Sr. Benassis é um bom médico? – perguntou ele, finalmente. – Não sei, meu caro senhor, mas ele cura os pobres de graça (BAL‐
ZAC, 1958, p. 304). Mais tarde Benassis confessa ao novo amigo: “Quis tornar‐me o amigo dos pobres, sem esperar deles a mínima retribuição” (BALZAC, 1958, p. 323), e: “A afei‐
ção tácita dos habitantes é tudo o que pessoalmente ganhei nessas transforma‐
ções, além do prazer de ouvir todos dizerem‐me alegremente, quando passo: ‘Bom‐
dia, Sr. Benassis’” (BALZAC, 1958, p. 333). O trabalho de cura e o serviço voluntário, sem nada receber em troca, identi‐
ficam já inicialmente o médico com o herói cristão, o que acaba se confirmando pe‐
los capítulos V – “A Porta da Casa Dele” – e XIII – “Os Dois Quartos” –, quando, res‐
pectivamente, revela‐se o desapego do médico com seus próprios bens e a renúncia ao quarto luxuoso, em benefício de Genestas, para ocupar o cômodo mais modesto e desprovido de conforto, dois indicativos de seu desprendimento material, que, associados aos episódios que demonstram sua dedicação abnegada aos moradores da comuna, fazem dessa personagem a “imitação de Cristo” em ação. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC Outra personagem é incorporada, contudo, à identidade de Cristo e Benas‐
sis, no romance de Balzac: a do general e imperador francês Napoleão Bonaparte, introduzido no enredo para estabelecer a passagem de um a outro. Dividida em cin‐
co partes, a narrativa contém, exatamente no centro dessa estrutura – a terceira parte da trama, intitulada “O Napoleão do Povo” – uma espécie de excerto discursi‐
vo, em que Benassis e Genestas ouvem do peão Goguelat uma palestra sobre “esse deus do povo”, em que o operário da comuna, em tom ardoroso e encantado, faz a apologia do general francês. Em sua exaltada admiração por Napoleão, Goguelat fala de “sua parecença com o filho de Deus” (BALZAC, 1958, p. 418) e pontua sua palestra com um bordão que encerra cada episódio maravilhoso da vida deste Na‐
poleão popular: “Era natural isso?”, para indicar o espanto de seus feitos, impró‐
prios à natureza de um homem comum. Balzac reúne, pois, o mito, a história e a ficção, criando uma personagem he‐
róica com missão coletiva, como o foram o mítico Jesus e o histórico Napoleão. Ao realizar essa conjunção de jornada heróica com proposta de reforma cultural coleti‐
va, ele cria, em O Médico Rural, uma categoria híbrida, entre a narrativa utópica e o romance burguês. 9. AUSÊNCIA DO MAL O hibridismo literário de O Médico Rural estabelece também peculiaridades para outra característica da narrativa utópica: o status do Mal na ficção. Por definição, a utopia não permite a presença do Mal, pois ali o Mal é uma idéia errônea a ser vencida. O Mal narrativo é encenado por aquilo que se conven‐
cionou chamar de Oponente do herói ou de força antagonista. Não existem, porém, oponentes ou vilões na utopia, de onde todo o Mal foi afastado. Lembremos que, na primeira parte da Utopia de Thomas More, quando Rafael Hitlodeu defende suas idéias de um novo mundo, aprendidas no convívio com os utópicos, o próprio More, convertido, no texto, em interlocutor, e seu amigo Pedro Gil transformam‐se naque‐
les que duvidam das reformas e assentam a soberania de um Mal dificilmente erra‐
dicável. O primeiro afirma, por exemplo, sobre o socialismo defendido por Hitlodeu: “Longe de compartilhar vossas convicções, penso, ao contrário, que o país em que se estabelecesse a comunidade de bens seria o mais miserável de todos os países”; e Pedro Gil duvida de que exista um país perfeito como Utopia: “Não me persuadi‐
reis jamais que haja nesse novo mundo povos melhor constituídos do que neste” (MORE, 1988, p. 207, grifos meus). Esses opositores, entretanto, são apenas interlo‐
cutores introduzidos no texto para fortalecer o poder de argumentação central do narrador, que, a partir das contestações de seus adversários dialógicos, pode de‐
monstrar como a sociedade descrita é infalível, pois dá cabo das dúvidas mais em‐
baraçosas ao projeto utópico. Dessa forma, o Oponente, numa narrativa utópica, possui apenas o status de interlocutor, cuja ação reduz‐se à palavra dissonante que estimula ao representante utópico desenvolver sua descrição do mundo perfeito. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC Como O Médico Rural combina a narrativa utópica ao romance burguês, seu enredo apresenta, como já vimos, forças de oposição ao herói Benassis, no percurso da elaboração de sua comunidade ideal. A fase em que o Mal é expulso do espaço ordenado é, pois, narrada simultaneamente à descrição das conquistas existenciais e institucionais. O Bem e o Mal separados surgem no momento em que Genestas chega ao rio do povoado e percebe, na outra margem, os destroços de uma aldeia, e o narrador comenta: “Os cemitérios fazem pensar na morte, uma aldeia abando‐
nada faz meditar sobre os desgostos da vida” (BALZAC, 1958, p. 309). Mais tarde ele descobrirá que aquela era a aldeia miserável que existia antes da chegada de Benas‐
sis e agora está separada geograficamente, pelo rio, do rincão enriquecido pelas reformas. O Mal está ali, presente, para lembrar o passado caótico, ainda que rele‐
gado às margens dessa utopia, que não possui apenas uma existência estática, mas revelará sua história por meio da biografia de seu fundador e sua origem, no primei‐
ro ato de reforma, o isolamento e o controle dos deficientes mentais, o primeiro Mal local: As leis não proíbem os contatos sexuais entre esses infelizes, prote‐
gidos aqui por uma superstição cujo poder me era desconhecido, que a princípio condenei e mais tarde admirei. O cretinismo ter‐se‐ia estendido, pois, desde este lugar até ao vale. Não era prestar um grande serviço à região suprimir esse contágio físico e intelectual? Apesar de sua urgência, esse benefício podia custar a vida àquele que tentasse realizá‐lo (BALZAC, 1958, p. 314). A dificuldade e o risco de vida mostram o heroísmo da personagem na fun‐
dação da utopia, apresentada com dinamismo, por meio de ações que a constituem, e não apenas pelo discurso passivo de um contemplador externo. Na exposição do médico, enfrentam‐se os três tempos, mostrando a evolução local como obra de seu agenciamento: o Mal aparece no passado – “Quando vim estabelecer‐me neste burgo, havia nele [...]”, “nenhuma revolução alcançara esta região inacessível” (BALZAC, 1958, p. 322, grifos meus) – como força que o herói precisava vencer – “Tinha de enfrentar umas quantas coisas, esbarrava com umas quantas idéias” (BALZAC, 1958, p. 324, grifos meus); por outro lado, o presente, sim, é descrito, co‐
mo em toda narrativa utópica, como um lugar já livre das influências malignas: “Não há tipos viciados no nosso vale” (BALZAC, 1958, p. 388). 10. NARRADOR‐TESTEMUNHA Se o herói não é personagem cabível à narrativa utópica, o narrador é cate‐
goria fundamental para definir o gênero. A típica narrativa utópica conta com nar‐
radores‐testemunhas: o primeiro – heterodiegético – conta de seu encontro com um segundo – autodiegético –, que descreve àquele ouvinte intratextual as maravi‐
lhas de um país insuspeitado e conhecido em viagem. A função desse segundo nar‐
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC rador é atestar a existência do lugar utópico, de modo a defendê‐lo como uma soci‐
edade humana possível: “O ter estado em carne e osso nesse lugar inexistente, ou melhor, o contar ter estado, fornece a resposta factual, concreta, a qualquer obje‐
ção possível” (FIRPO, 2005, p. 232). O segundo, geralmente identificado intratextu‐
almente com o próprio autor do livro, também se posiciona no interior do discurso para dar maior credibilidade à narrativa do primeiro, para conferir‐lhe posição e si‐
tuação de realidade não apenas ficcional. O romance de Balzac apresenta alguma diferença com relação à narração u‐
tópica convencional. O Médico Rural também é um romance caracterizado pela pre‐
sença de discursos metadiegéticos, isto é, de narrações segundas no interior de nar‐
rações primeiras; entretanto, o primeiro narrador inicia a narração em focalização extradiegética, onisciente, apresentando em terceira pessoa as personagens princi‐
pais da trama: Genestas, Benassis, a cozinheira Jacquotte, etc. No final do capítulo VII, contudo, encontra‐se o seguinte parágrafo encerrando o primeiro diálogo entre Benassis e o militar: “Genestas manifestou uma interrogação tão visível na sua fisio‐
nomia e nos seus gestos, que o médico, enquanto caminhavam, contou‐lhe a histó‐
ria anunciada por aquele começo” (BALZAC, 1958, p. 313). O capítulo VIII, então, é todo narrado pelo médico, em primeira pessoa, para contar de sua chegada e de suas primeiras dificuldades na reforma do burgo. A narrativa de Benassis retorna no capítulo X, depois que o narrador onisciente reassumiu a narração no capítulo in‐
termediário, e assim segue a estrutura do romance, intercalando narração extradie‐
gética com intradiegética. No capítulo XXI, “O Serão” (terceira parte da obra), Be‐
nassis confere voz a um terceiro narrador, Goguelat, para falar, também pela focali‐
zação autodiegética, de seu convívio com Napoleão. A transferência da voz de Be‐
nassis a Goguelat, nesta metalepse, conduz da personagem ficcional à história e ao mito, como vimos, pois, na voz do povo, o benfeitor histórico Napoleão torna‐se celebridade mítica e a personagem individual de Balzac eleva‐se a um status de em‐
blema coletivo. Com essa passagem de focalizações e estados actanciais, a utopia, de existência ficcional, assume feição de possibilidade real e histórica, pois Benassis levou a cabo no espaço da ficção o que Napoleão buscou edificar na França pós‐
revolucionária e Cristo miticamente idealizou no início do cristianismo. Existem, pois, muitas testemunhas se pronunciando em O Médico Rural, para atestar a reali‐
dade utópica. Por outro lado, há que se observar que, como narrador autodiegético, Be‐
nassis está em posição privilegiada: não apenas testemunha a sociedade perfeita, mas é seu próprio idealizador e promotor. Sua exposição por meio da narrativa de seu percurso heróico evidencia o trabalho necessário à construção do Paraíso hu‐
mano. Ver não é o bastante; é preciso agir como personagem individual para elabo‐
rar a sociedade ideal burguesa. Apenas o homo faber pode habitar o novo mundo burguês. Finalmente, a voz de Goguelat cria um nível de leitura metalingüística, uma vez que exemplifica o processo de transcodificação do real em poético, pretendido VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC pelo próprio Balzac, quando fala da “poetização” da Imitação de Cristo e insere em seu romance o episódio do “Napoleão do Povo”. Confessa o narrador, a respeito do serão de Goguelat: “Era um quadro curioso no qual se manifestava a influência pro‐
digiosa exercida sobre todos os espíritos pela poesia. Ao exigir do narrador o mara‐
vilhoso sempre simples ou o impossível quase crível, não se mostra o camponês amigo da mais pura poesia?” (BALZAC, 1958, p. 412). Com isso, mostra o autor como a poesia, o lugar da ficção e do ideal, pode propor a crença no impossível, tornando‐
se espaço privilegiado do utópico. 11. VIAGEM DO REAL AO IDEAL Parafraseando Bronislaw Baczko, afirma Trousson (2005, p. 108): “A viagem utópica foi durante muito tempo a forma privilegiada do pensamento utópico”, de maneira a alguns críticos, como Vita Fortunati, apontarem a viagem no tempo ou no espaço como princípio constante a todas as utopias; “Simbolicamente, a viagem representaria o abandono dos antigos valores, seguido da descoberta e da aquisi‐
ção de valores novos. Aventura heróica e itinerário espiritual, ela permite ao viajan‐
te criar um ponto de vista de fora, encarnar valores que serão postos em discussão e é a sua presença, enfim, que cria a possibilidade da descoberta e do diálogo.” Os episódios da viagem têm função de ordenar, “como mostrou P. Ronzeaud [...], uma série de etapas na descoberta da alteridade radical” (TROUSSON, 2005, p. 131). Existem duas viagens no enredo de O Médico Rural, mas é a de Genestas, e não a de Benassis, seu expositor, que descobre a sociedade utópica. Benassis ape‐
nas descobriu um lugar potencialmente utópico; Genestas esbarrou no ideal reali‐
zado, a utopia por definição. É, pois, a viagem deste que inicia a trama do romance: “Em 1829, numa linda manhã de primavera, um homem de cerca de cinqüenta anos de idade seguia a cavalo por um caminho montanhoso que vai ter a uma grande povoação situada perto da Grande‐Chartreuse” (BALZAC, 1958, p. 295). A localiza‐
ção espaço‐temporal, como a deste excerto, é necessária para situar a viagem e mostrá‐la como realizável na realidade conhecida, de maneira a que a utopia não surja como lugar de transcendência, mas posicionada na geografia terrena: “Most utopias are located in time and space to provide verisimilitude, to make our suspen‐
sion of disbelief more willing. [...] Later utopias were placed in the future but with a defined past that led to that future” (SARGENT, 2005, p. 157‐158). Antes de conduzir Genestas ao topo de uma montanha, Benassis descreve os arredores da comuna com tal precisão geográfica que seria possível apontá‐la num mapa da província francesa: “Elevados a três mil pés, mais ou menos, acima do Mediterrâneo, veremos a Sabóia e o Delfinado, as montanhas do Lionês e o Ródano” (BALZAC, 1958, p. 352). Por outro lado, a escalada da montanha denuncia simbolicamente outra necessida‐
de da narrativa utópica: para encontrar a utopia, é preciso que haja uma evasão es‐
paço‐temporal. A utopia se apresenta como “como meta‐geográfica e meta‐
histórica; deve sair tanto fora da geografia quanto da História”, declara Luigi Firpo, VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC explicando que, “evidentemente, em um mundo conhecido surgiria instantanea‐
mente o desmentido”. Por isso, “vai‐se para fora da geografia para poder‐se sair da História. É necessário que seja um lugar que ninguém nunca tenha visto, não apenas para evitar o desmentido, mas para fugir ao confronto” (FIRPO, 2005, p. 230‐232). Como na proposta de Balzac, o gênero utópico nasce sob pressão religiosa, mas propõe modelos que escapem à sociedade cristã: Existe toda uma tradição relevante [...] sobre o tema do homem [...] “constitutus in puris naturalibus”, isto é, uma hipótese analítica de como seria o homem, e como se comportaria e raciocinaria, se não tivesse jamais recebido a Revelação. Esposar o modelo de Estado perfeito com a racionalidade humana, recuperada na sua dignidade pelo humanismo, é de fato a grande tentativa dos utopistas do sécu‐
lo de ouro, os mais criativos. Este mundo deve gerir‐se pela razão, sua comunidade deve atender a leis “rigorosamente racionais” (FIR‐
PO, 2005, p. 232‐233). Se a utopia é de inspiração religiosa, ela se eleva, contudo, como modelo al‐
ternativo à religião institucionalizada, por isso deve se localizar num espaço de pura racionalidade, isto é, superior ao real. Entretanto, esse lugar ideal também é concre‐
tizado, em O Médico Rural, por meio de generalizações que elegem o espaço nativo como locus perfeito para a construção da utopia, valor, aliás, que acompanha as utopias burguesas desde pelo menos o Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, e o Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint‐Pierre. Benassis diz da cidade: “Em Paris tudo são armadilhas e dores para as almas que nela querem achar sentimentos verdadeiros” (BALZAC, 1958, p. 448), e ainda: “Essa grande cidade parece ter tomado o encargo de encorajar somente os vícios” (BALZAC, 1958, p. 437). O espaço antípoda campes‐
tre já é denunciado pelo próprio Genestas, quando chega ao burgo: “Neste lugar a civilização está pouco adiantada, as religiões do trabalho estão em pleno vigor e a mendicância ainda não penetrou – pensou Genestas” (BALZAC, 1958, p. 307), sen‐
timento que depois é confirmado por Benassis: “Em verdade, a vida da campanha mata muitas idéias, mas enfraquece os vícios e desenvolve as virtudes. Com efeito, quanto menor for a aglomeração de homens num ponto, menor será nele o número de crimes, de delitos, de maus sentimentos. A pureza do ar contribui em muito para a inocência dos costumes” (BALZAC, 1958, p. 353‐354). A apologia da vida campes‐
tre de O Médico Rural constitui uma fórmula utópica com lugar pré‐determinado: o Paraíso é possível, mas, para encontrá‐lo, é preciso reencontrar a inocência primiti‐
va, hoje confinada no espaço rural. 12. O TEMPO PREMATURO Se a utopia retoma, muitas vezes, valores de inocência perdidos, por outro lado sua realização sempre aponta para um tempo futuro. Para Luigi Firpo (2005, p. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC 228), a característica mais importante para definir uma utopia é uma “lúcida consci‐
ência do seu caráter prematuro”. A utopia, diz o autor, “é historicamente uma men‐
sagem na garrafa, a mensagem de um náufrago”. O utopista é, na verdade, um rea‐
lista, sabe que sua mensagem não será aceita por seus contemporâneos (FIRPO, 2005, p. 229). “Esta é a motivação pela qual alguém se põe a escrever um texto utó‐
pico, e não, ao invés, um programa, uma proclamação às multidões, o manual de uma revolução, em suma, uma das tantas expressões e formulações simplesmente literárias que acompanham ou materializam uma ação política” (FIRPO, 2005, p. 230). É, aliás, o tempo um dos critérios de distinção entre a utopia como gênero narrativo e o utopismo: o utopismo só existe como ideal futuro e não apresenta concretização presente; a utopia, por sua vez, existe como sociedade presente fic‐
cionalmente, mas apontando para um futuro possível diante da realidade comparti‐
lhada por autor e leitor. A inserção do “Napoleão do Povo” no interior do romance de Balzac, por si já indica o sentimento de frustração diante do impedimento, a meio termo, do pro‐
jeto revolucionário, a cujo desvio a utopia de Benassis desponta como alternativa proposta. A este índice acrescentam‐se as frequentes referências à França “real”, como oposta ao que na comuna se logrou edificar, e vemos como a utopia de Be‐
nassis, ainda que no presente ficcional, assinala‐se temporalmente como um futuro “real” e possível. É o que indica esta congratulação de Genestas com Benassis: “Se, em todas as localidades, todos o imitassem, senhor, a França seria grande e poderia zombar da Europa – exclamou Genestas, exaltado” (BALZAC, 1958, p. 334), em que a oração no condicional indica a prematuridade do projeto do médico rural. O próprio discurso de Benassis anuncia a situação prematura de todo criador de utopias: O legislador, senhores, deve ser superior a seu século. Ele verifica a tendência dos erros gerais, e precisa os pontos para os quais tendem as idéias de uma nação; trabalha, pois, mais ainda para o futuro do que para o presente, mais para a geração que se está desenvolvendo do que para a que declina. [...] Muitas vezes a tendência das leis de‐
ve estar na razão inversa da tendência dos costumes (BALZAC, 1958, p. 407). Entretanto, a utopia de Balzac é uma edificação do trabalho e não pode, pois, existir para sempre na imutabilidade. Assim, haverá sempre um futuro intra‐
textual, além daquele relacionado ao universo “real”. Benassis reconhece: Essa boa gente, emancipada de ontem, não está apta ainda para a‐
preender as novas relações que a devem ligar a essas idéias gerais; por enquanto estão ainda nas que engendram a ordem e o bem‐
estar físico; mais tarde, se alguém continuar a minha obra, eles che‐
garão aos princípios que servem para conservar os direitos públicos (BALZAC, 1958, p. 351). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC Trata‐se de uma sociedade burguesa, isto é, com o progresso sempre em vis‐
ta, com o indivíduo laborioso e a história por móveis constantes. Essa utopia não pode, como outras que a precederam, estacionar, porque é fruto do trabalho e por‐
que só existe uma utopia burguesa: a da evolução e da mudança constante e inin‐
terrupta. 13. O ESPAÇO ARQUITETADO E GEOMETRIZADO Na narrativa utópica, o deslocamento das personagens deve ocorrer não a‐
penas entre o espaço real e ideal, mas no interior da própria utopia, para que esta se faça conhecida. Daí os constantes passeios de Genestas e Benassis pela comuna, como demonstram especialmente os capítulos da segunda parte do livro, adequa‐
damente intitulada “Campo Afora”. É que o espaço utópico é uma ordem geométri‐
ca de porções dispostas funcionalmente na estrutura da sociedade perfeita. O pro‐
grama utópico precisa de um lugar sobre o qual organizar‐se e a arquitetura é a di‐
nâmica organizacional da própria narrativa: La figure géométrique fige les formes et délimite sans équivoque un monde à part, car la cité utopique se replie sur elle‐même, souvent sans contact avec l’extérieur pour éviter la corruption. Fondés dans le même esprit, la plupart des centres utopiques se ressemblent, décrits selon un plan invariable : rues tracées au cordeau, ordre impeccable, fontaines, espaces verts, édifices publics colossaux. Rien n’est chaotique ni abandonné au hasard, mais réglé et prévu, puisque l’urbanisme et l’architecture sont censés refléter l’état moral de la cité. C’est l’univers de la rationalité heureuse, les formes carrées, rondes ou hexagonales et les lignes droites sont les signes visibles de l’ordre rationnel manifesté aussi dans la gestion de la cité et l’homme s’y fait par excellence zoon politikon, animal politique, à jamais extrait de l’ordre naturel. C’est pourquoi, vers quelque époque que l’on se tourne, se retrouve l’obsession d’une mathématisation spatiale qui traduit le refus de se soumettre à la nature et la volonté d’organiser le réel selon la raison (TROUSSON, 2004, p. 42). Nada, no espaço utópico, está fora do lugar, mas obedece a um plano. Trata‐
se da materialização de uma idéia, que, ao tomar forma real, ocupa e ordena sua própria geografia: Les cités utopiques représentent invariablement un progrès considérable sur les cités existantes. Toutes sont propres, débarrassées des immondices, aérées, salubres, littéralement aseptisées – la propreté matérielle étant la représentation visible VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC d’une morale immaculée. C’est au point que le lecteur a le sentiment de relire sans cesse le même chapitre dans un ordre presque immuable [...]. Rien n’est abandonné, cela va sans dire, à l’initiative ou au caprice individuels. Le plan sort tout armé du cerveau du Législateur, foudateur de l’Utopie (TROUSSON, 2004, p. 43). O espaço percorrido e descrito por Benassis é o de um sítio burguês. Depois de narrar o abandono da velha aldeia por casas saneadas e modernas, as primeiras instalações apresentadas pelo médico ao militar visitante são as indústrias e o co‐
mércio: Hoje temos cinco curtumes; eles absorvem todo o couro do depar‐
tamento, e vão mesmo algumas vezes buscá‐los na Provença, e cada um deles tem seu moinho para pulverizar. [...] O outro homem [...] descobriu o meio de fabricar, mais barato do que em qualquer outro lugar, os chapéus de abas largas usados na região; ele os exporta pa‐
ra todos os departamentos vizinhos, até para a Suíça e a Sabóia. Es‐
sas duas indústrias, fontes inesgotáveis de prosperidade, no caso do cantão poder manter a qualidade dos produtos e seu baixo preço, sugeriram‐me a idéia de fundar aqui três feiras anuais (BALZAC, 1958, p. 332‐333). Desenha‐se, então, o espaço urbano com sua geometria social e política pe‐
culiar: O principal ajudante de um notário de Grenoble [...] foi solicitar em Paris o estabelecimento de um cartório de notas; seu requerimento foi atendido. Seu cargo nada lhe custando, foi‐lhe possível construir uma casa em frente è do juiz de paz, na praça do novo burgo. [...] No próximo ano nos virá sem dúvida um farmacêutico, depois um relo‐
joeiro, um negociante de móveis e um livreiro, enfim, as superfluida‐
des necessárias à vida. Talvez acabemos tomando feitio de uma pe‐
quena cidade e tendo casas burguesas (BALZAC, 1958, p. 333). Novamente esbarramos em paradoxos constituintes do projeto burguês. Aqui, o apelo ao nativismo demonstra‐se, em essência, uma demanda por espaços selvagens para que recebam as cores da civilização, esta, sim, o maior escopo de todo projeto racionalista. Este é outro traço de parentesco entre burguesia e pen‐
samento utópico, pois, em toda utopia, o espaço é racionalizado, organizado, hierarquizado, de maneira a atender às necessidades das exigências do modelo ideal: La géometrisation de l’espace n’est pas innocente: en imposant au monde la rationalité humaine, elle organise en système un urbanisme qui conditionnera le mode de vie. Architecture et VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC construction utopique sont ainsi liées dès le début de l’histoire de l’utopie. Cet urbanisme suit les ordres de l’intelligence, domine le milieu originel, l’aménage et l’adapte aux besoins selon la logique. L’homme crée désormais son habitat et l’organise systématiquement et à sa guise (TROUSSON, 2004, p. 37). Nessa nova ordem, a hierarquia é necessária, ou a cidade não funciona. Daí que o ideal democrático do iluminismo burguês acaba tropeçando na necessidade de outras divisões sociais, como aponta Benassis em sua comuna “perfeita”: “Exis‐
tem na comuna doze casas ricas, cem famílias abastadas, duzentas que prosperam. O resto trabalha” (BALZAC, 1958, p. 333). Esta Metrópolis rural também tem seu quinhão de operários alienados dos ganhos sociais e ocultos em seu subsolo. 14. SUBORDINAÇÃO ESTILÍSTICA DA NARRAÇÃO À DESCRIÇÃO Notamos acima que a narrativa utópica recusa o herói romanesco. Trousson (2005, p. 132‐133) afirma que, no texto utópico, o romanesco só se desdobra nas passagens que precedem ou se‐
guem imediatamente a utopia propriamente dita. Nada surpreen‐
dente, já que, por natureza, a utopia subordina a narração à descri‐
ção, portanto nega o romance concebido como história, ou seja, uma seqüência de acontecimentos encadeados no tempo e segundo um princípio de causalidade [...]. Seu princípio estrutural é a adição de elementos demonstrativos, o mosaico, não o encadeamento sig‐
nificativo. Universo da harmonia, ela ignora a contestação e a dissi‐
dência: nela o romanesco só pode ser, portanto, elementar, descriti‐
vo, de uma identidade ontológica dos seres e das instituições. A es‐
trutura propriamente romanesca só mudará a partir da emergência da antiutopia moderna, em que se infiltra enfim uma visão individua‐
lista e contestadora ausente da utopia clássica. Com a oposição fun‐
damental entre o herói e o mundo se reconstituem enfim os compo‐
nentes primeiros do romance: ação, intriga, peripécias, tensão, de‐
senlace de uma história. Dessa maneira, a narração em seu estado mais puro, de ações encadeadas numa trama, de tensão e conflito entre personagens e ambiente, está de certa for‐
ma reduzida no enredo utópico, onde predomina o discurso descritivo. Não só é preciso apresentar a sociedade ideal, mas é fundamental apresentá‐la em detalhes: “O realismo da informação é um elemento fundamental do utopismo, porque é a‐
quilo que assegura credibilidade enquanto, aos olhos de um leitor não particular‐
mente astuto, dissocia o discurso político‐utópico do puro e simples romance de aventura. A minúcia das descrições é um fator decisivo em vista da credibilidade” (FIRPO, 2005, p. 231). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC O estilo de Balzac é reconhecidamente descritivo, qualidade que, se pode comprometer aos olhos de alguns leitores o andamento de outros romances, em O Médico Rural colabora para o êxito da obra. Descrições da localização espacial do burgo, dos cenários ordenados pela ação do médico, das comunidades “atrasadas” em comparação com as modeladas pelo ideal utópico, da bulha parisiense em con‐
traste com a serenidade do campo, das instalações comerciais, industriais e culturais que mantêm a comuna, da natureza que sustenta os dotes da região comunal, do trabalho regrado e dos ciclos produtivos no sítio rural, dos habitantes do campo e de seus costumes e eventos folclóricos, todas convergem para um edifício textual que atende perfeitamente à necessidade de completude estrutural para a exibição do projeto utópico. Capítulos inteiros, ou na sua quase totalidade, são dedicados às descrições de espaços e personagens: “A Terra”, “Uma Vida de Soldado como Há Poucas”, “O Burgo”, “A Porta da Casa Dele”, “Eis o Homem” estão na primeira par‐
te da obra e, mesmo antecipando a descrição da comuna por Benassis, que só se inicia no oitavo capítulo, dedicam‐se às descrições do cenário de viagem e das per‐
sonagens principais. A partir da chegada de Genestas, os excertos descritivos se multiplicam, pela explanação do médico ao visitante, como já pudemos verificar em outros momentos deste artigo. Resta observar que, não obstante a presença maciça da descrição na obra, ainda assim Balzac inaugura, deste ponto de vista, uma utopia moderna, em que a narração assume também posição central, com um protagonista em conflito, o que valoriza a ação na trama, tradicionalmente preterida no gênero utópico tradicional. 15. DIGRESSÕES SÓCIO‐POLÍTICAS Não são apenas as descrições que desviam o gênero utópico do estilo narra‐
tivo a rigor. Predominam também no texto utópico as digressões dissertativas para comentar as razões das instituições modelares da cidade utópica, responder às pro‐
vocações e às dúvidas dos interlocutores, pregar as soluções para os problemas que impedem o bom andamento social. Como nota Trousson (2004, p. 48), “dans l’ensemble, l’utopie, projet de société complexe, s’attarde avant tout sur les questions politiques et socioéconomiques”. É comum, portanto, Benassis pontuar seu discurso a Genestas e a outros in‐
terlocutores, com comentários pessoais explicativos de sua conduta no burgo, co‐
mo este, em que compara seu projeto à prática política de grandes nações antigas e modernas: Quando um país está em pleno rendimento e seus produtos em equi‐
líbrio com o seu consumo, é preciso, para criar novas fortunas e au‐
mentar a riqueza pública, fazer no exterior trocas que possam trazer um ativo constante na sua balança comercial. Esse pensamento de‐
terminou sempre os Estados sem base territorial, como Tiro, Carta‐
go, Veneza, a Holanda e a Inglaterra, a se apoderarem do comércio VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC de transportes. Procurei para a nossa pequena esfera um pensamen‐
to análogo, a fim de criar uma terceira era comercial (BALZAC, 1958, p. 332). Ou este outro, em que explica porque não dispõe suas experiências num manual para os governos aplicarem em seus respectivos domínios: Infelizmente, não se esclarece um governo, e, de todos os governos, o menos suscetível de ser esclarecido é aquele que julga difundir lu‐
zes. [...] Em matéria de comércio, encorajamento não quer dizer pro‐
teção. A verdadeira política de um país deve tender a libertá‐lo de todo tributo para com o estrangeiro, mas sem o auxílio vergonhoso das alfândegas e das proibições. [...] (BALZAC, 1958, p. 335). O excerto não está transcrito na íntegra, porque, no texto de Balzac, ele ga‐
nha algumas páginas. Além disso, são muitas as passagens como estas e as que aqui se registram servem apenas de ilustração a essa característica do gênero utópico altamente evidente neste romance de Balzac. Basta notar, como últimos indicativos desses excursos, que os capítulos X e XI, em que Benassis inicia a exposição de sua comuna para o militar, denominam‐se, respectivamente, “Tratado de Civilização Prática” e “Conclusão do Tratado”, o que demonstra o teor dissertativo de seu con‐
teúdo. Igualmente, o capítulo que antecede o serão de Goguelat, é nova oportuni‐
dade para Benassis expor suas idéias numa conversa com comensais em sua casa e, embora o capítulo se intitule “Palestra de Gente Boa”, a conversa se revela antes um monólogo, em que mais de dois terços do texto transcreve falas de Benassis. CONSIDERAÇÕES FINAIS Percorrendo as características que definem o gênero utópico, Balzac atualiza a utopia, combinando‐a ao gênero romanesco. Estabelecendo o que seria uma soci‐
edade perfeita segundo o princípio burguês do individualismo acentuado, marca especial do pensamento no século XIX, o autor francês traz para o gênero novos traços, que serão incorporados às utopias futuras: a presença de um herói em jor‐
nada pessoal, a multiplicação das vozes narradoras, a impossibilidade da fixação do movimento peculiar ao projeto utópico renascentista. Ao confrontar, na mesma narrativa, utopia coletiva e vontade individual, Bal‐
zac abre canal para a própria crítica do ideal utópico, tônica das narrativas utópicas do século XX, como a praticaram Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo, ou, entre nós, Darcy Ribeiro, com seu Utopia Selvagem. Multiplicando as vozes das tes‐
temunhas utópicas, ele denuncia os mitos que a edificam, pluraliza e relativiza o pensamento utopista. Optando pelo dinamismo, condena sua estabilidade congêni‐
ta. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC A introdução do indivíduo no espaço da utopia revela sua tirania racionalista e as contradições ocultas no projeto da modernidade. Como modelo apoteótico do ideal burguês, O Médico Rural desnuda suas falhas e anuncia seu fim. A verdadeira utopia parece estar mais além – é a conclusão final que resta a um bom leitor de Balzac. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Letizia Zini. Teoria da Narrativa: O Romance como Epopéia Burguesa. In: ANTUNES, Letizia Zini (org.). Estudos de Literatura e Lingüística. São Paulo: Arte & Ciência; Assis (SP): FCL/Unesp, 1998, p. 179‐220. BALZAC, Honoré de. O Médico Rural. Tradução de Vidal de Oliveira. Porto Alegre: Globo, 1958. BORNHEIM, Gerd. O Sujeito e a Norma. In: NOVAES, Adauto (org.). Ética. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 247‐260. CIORAN, Émile Michel. História e Utopia. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. FALCON, Francisco José Calazans. Utopia e Modernidade. In: MORUS: UTOPIA E RENASCIMENTO. Campinas: Unicamp, 2005, n. 2, p. 161‐184. FIRPO, Luigi. Para uma Definição de “Utopia”. Morus: utopia e renascimento. Cam‐
pinas: Unicamp, n. 2, 2005, p. 225‐237. MORE, Thomas. A Utopia. Tradução de Luís de Andrade. 4ª ed. São Paulo, Nova Cul‐
tural, 1988, Col. Pensadores. RÓNAI, Paulo. Introdução a “O Médico Rural”. In: BALZAC, Honoré de. O Médico Rural. Porto Alegre: Globo, 1958, p. 289‐294. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós‐
Modernidade. 7a ed. São Paulo: Cortez, 2000. SARGENT, Lyman Tower. What Is a Utopia? Morus: utopia e renascimento. Campi‐
nas: Unicamp, n. 2, 2005, p. 153‐160. TROUSSON, Raymond. La Cite, l’Architecture et les Arts em Utopie. Morus: utopia e renascimento. Campinas: Unicamp, n. 2, 2004, p. 35‐53. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
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INDIVIDUALISMO E UTOPIA: ELEMENTOS DA NARRATIVA UTÓPICA EM O MÉDICO RURAL, DE BALZAC TROUSSON, Raymond. Utopia e Utopismo. Morus: utopia e renascimento. Campi‐
nas: Unicamp, n. 2, 2005, p. 123‐135. INDIVIDUALISMO AND UTOPIA: ELEMENTS OF UTOPIAN NARRATIVA IN THE COUNTRY DOCTOR, BY BALZAC ABSTRACT: In his novel The Rural Doctor, Honoré de Balzac modernizes the utopian narrative, literary gender that Renaissant Culture proposed, by Thomas More’s work, Utopia. Keeping some tradition aspects, the writer blends them with aspects of romanesque gender in order to produce a utopia of burgeois individualism. This article intends to define and to specify traditional aspects of utopian narrative, through Raymond Trousson, Luigi Firpo, Lyman Tower Sargent, Émile‐Michel Cio‐
ran’s theories, and to show how these aspects are arranged or exceeded by Balzac’s novel. Keywords: Utopian Narrative – Burgeois Novel – French Literature – Honoré de Bal‐
zac. Recebido em 31 de maio de 2009; aprovado em 29 de junho de 2009. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [22 –50]
JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO Marcio Roberto Pereira∗ Sidney Barbosa** RESUMO: Este trabalho analisa a História da literatura brasileira, de José Veríssimo, a partir de ruptura com a crítica romântica ou com a interpretação cientificista ao adotar um ecletismo teórico que o faz desconfiar dos sistemas fechados e das classificações únicas. Da valorização etnológica ao sentimento nacionalista ou do cientificismo à defesa estética da construção do cânone literário, a trajetória de José Veríssimo é marcada por uma organicidade que gera o apuramento de seus critérios. Palavras‐Chave: Literatura brasileira; José Veríssimo; crítica literária; cânone, tradição O estudo da pátria brasileira não como simples agremiação política, mas como uma nacionalidade consciente deve ser o ponto de partida de todos os seus escritores, de todos os seus sábios e de todos os seus artistas, e a única base positiva para assentarem uma cultura verdadeiramente nacional. É esta a inspiração da minha obscuríssima vida literária e o espírito que dirige todos os meus trabalhos. José Veríssimo, Estudos brasileiros, 1889. 1. UMA GERAÇÃO CONTESTANTE O conjunto de escritores que compõem a chamada “Geração de 1870” construiu uma diversidade de olhares sobre as várias relações culturais e políticas que compõem a formação do caráter nacional brasileiro. Dessa forma o estudo de tais autores se faz necessário para a compreensão e revisão das relações entre cultura e o papel do intelectual frente uma sociedade que, poucos anos após a independência política, buscava uma outra independência: a cultural. ∗
Universidade Estadual Paulista ─ UNESP/Assis. Doutor em Letras, Professor do Departamento de Literatura. E‐mail: [email protected] **
Universidade de Brasília ─ UnB/ Brasília. Livre‐docente em Letras, Professor de Língua e Literatura e‐mail: francesa. [email protected]
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Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO Assim sendo, até 1870 a crítica literária brasileira era formada por escritores que, despojados de um instrumental teórico nomeadamente científico, reconheciam a história da literatura mais por seu lado histórico do que pelo literário. Fazem parte dessa fase, dentre outros, escritores estrangeiros e brasileiros como Friedrich Bouterwek (1765‐1828), Sismonde de Sismondi (1773‐1842), Ferdinand Denis (1798‐1890), Gonçalves de Magalhães (1811‐1882), Santiago Nunes Ribeiro (falecido em 1847), Francisco Adolfo de Varnhagen (1816‐1878), Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820‐1891). Tais escritores, estimulados pela fundação da Imprensa Régia no Brasil, pelo decreto de 1808, e pelo movimento de Independência e promoveram a discussão sobre a literatura brasileira e suas relações com o desenvolvimento da nação. A crítica literária feita no decorrer do Romantismo esboça as primeiras sistematizações da literatura brasileira, reconhecendo a “brasilidade” dos escritores que escrevem sobre o Brasil. Os críticos românticos ao recolher, catalogar e recuperar os textos que formam a literatura brasileira, fornecem as primeiras manifestações de uma cultura erudita que ratifica o desenvolvimento da nação brasileira configurando, assim, um corpus que será revalidado pelos críticos naturalistas a partir de uma variedade de modelos teóricos vindos da Europa. O efeito desse trabalho será a reconstituição do passado intelectual brasileiro através da formação de uma “genealogia” do pensamento literário nacional. O século XIX, marcado por grandes mudanças políticas e sociais que visam inserir o país na modernidade ocidental, desde 1808, com a chegada de D. João VI ao Brasil, inicia um processo de institucionalização da cultura e da política brasileira que redimensiona a esfera pública nacional e impõe, a partir da Independência (1822), novos rumos para a cultura brasileira. Como exemplo tem‐se a posição de Ferdinand Denis (cf. MOREIRA, 1991, p.30), e muitos outros historiadores românticos, que, associando historicismo e nacionalismo, fundam um sentido retrospectivo para a análise dos escritores brasileiros, aliando ao nacional, originalidade e cor local. Através dessa conciliação, o Brasil inicia uma tradição que, até o início do século XX, vincula literatura brasileira à expressão da nacionalidade e desenvolvimento da sociedade. O papel dos escritores românticos, ao reconstituir o passado nacional através de genealogias intelectuais, é iniciar uma organização intelectual. Isso os transformará em críticos‐historiadores, preocupados com o desenvolvimento da consciência da cultura feita no Brasil, através da efervescência dos ideais românticos, das concepções que legitimam o solo nativo e do sentimento nacional como forma de originalidade e afirmação da nacionalidade. A sistematização da literatura é feita a partir do ponto de vista cronológico, comprovando o enlace entre compromisso estético e cor local ao se estabelecer relações entre a formação da literatura nacional e o desenvolvimento do Brasil. Tendo seu ápice na Independência, os intelectuais da época identificam‐se com os VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
Página | 52 Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO grupos nativos ⎯ daí o indianismo ⎯ produzindo uma literatura relacionada com o mundo tropical. Através dos bosquejos, esboços, parnasos e florilégios surge, com o Romantismo, a sistematização cronológica da literatura brasileira alicerçada na biobliografia dos escritores mais representativos do Brasil. Ao longo do Segundo Reinado (1840‐1889) algumas instituições, como os Institutos Históricos e Academias, são encarregadas de elaborar um novo conceito de nação. Os escritores românticos, através de imagens brasileiras ⎯ como o índio, o passado heróico, a natureza ⎯ em conformidade com os críticos, que misturavam história e literatura na construção de um imaginário nacional, criam um discurso local apoiado em valores metropolitanos, tidos como universais. Após trezentos anos de colonização, o Brasil organiza um discurso, alicerçado na reordenação de um campo intelectual voltado para ideais de liberdade e originalidade, e, principalmente, de progressivo distanciamento dos modelos e valores portugueses. Estimulando a incipiente literatura nacional e promovendo o registro das letras no Brasil, os críticos românticos orientam o gosto literário dos leitores e ditam as regras para os jovens escritores, ao formar e delimitar o patrimônio literário que será objeto de estudo dos críticos naturalistas. Na História da literatura brasileira, de José Veríssimo, por exemplo, grande parte dos capítulos é formada por escritores do Romantismo, servindo de matéria‐prima para o crítico montar seu pensamento analítico. Se os românticos legitimam a literatura brasileira, através da definição do processo de desenvolvimento da autonomia do pensamento nacional, cabe aos críticos naturalistas rever via cientificismo o cânone proposto pelo romantismo. Assim sendo, por meio do pensamento de críticos brasileiros e estrangeiros ou da propagação das idéias literárias apresentadas em revistas e periódicos, os românticos debatem os rumos da literatura brasileira, destacando sua origem e caráter. Com os ventos da República, no entanto, busca‐se uma identificação com os grupos estrangeiros através de um sentimento cosmopolita que faz do Rio de Janeiro o centro da cultura, política e das idéias no Brasil. 2. UMA PERSPECTIVA DINÂMICA Segundo José Veríssimo o “bando de idéias novas” que formam o pensamento dos intelectuais da chamada “geração de 70” definia um “modernismo” capaz de desvendar as motivações da cultura nacional (VERÍSSIMO, 1916, p.45). A “geração de 70”, utilizando‐se das idéias do positivismo e do evolucionismo, difunde os debates intelectuais da época, como a Abolição e a República, desenvolvendo um conceito evolutivo de História, que rompe com o conceito de História natural do século XVIII, vinculado à Biologia, Economia e VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
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Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO Filologia, criando a ilusão de progresso e identidade com o novo Estado‐nação brasileiro, ao defender os ideais da República e provocar o distanciamento da situação de colônia. Os intelectuais da “geração de 70”, a partir de uma perspectiva dinâmica da história, discutem e contribuem para a formação de um novo pensamento na literatura e cultura brasileira, definindo uma elite intelectual que configura uma “ilustração” no desenvolvimento do ideário nacional. Machado de Assis, por exemplo, referindo‐se aos poetas da “nova geração”, acreditava que esse “bando de idéias novas”, não seria o principal responsável pela definição da qualidade literária nacional. Ao analisar essa “nova geração”, Machado de Assis observa: A geração atual tem nas mãos o futuro, contanto que lhe não afrouxe o entusiasmo. Pode adquirir o que lhe falta, e perder o que a deslustra; pode afirmar‐se e seguir avante. Se não tem por ora uma expressão clara e definitiva, há de alcançá‐la os idôneos. Um escritor de ultramar, Sainte‐Beuve, disse um dia, que o talento pode embrenhar‐se num mau sistema, mas se for verdadeiro e original, depressa se emancipará e achará a verdadeira poética. (MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 853) O entusiasmo a que se refere Machado de Assis pode ser caracterizado pela necessidade de formulação de um conceito de identidade nacional que produz um diálogo entre as matrizes européias e a cultura brasileira, consolidando o enlace entre arte, ciência e política. Com a recepção de modelos europeus, os pensadores da “nova geração” fazem uma interpretação da cultura brasileira, da raça e da natureza tropical a partir de um sincretismo de conceitos, noções e teorias que permeiam as relações entre cultura e sociedade. As idéias predominantes para essa revisão dos valores da cultura nacional vinham da Europa através das doutrinas positivistas de Auguste Comte (1798‐1857) e Émile Littrè (1801‐1881), do biologismo de Charles Darwin (1809‐1882), do evolucionismo de Herbert Spencer (1820‐1903), do determinismo de Hippolyte Taine, da concepção historiográfica de Buckle, da filosofia de Immanuel Kant (1724‐
1804) e Arthur Schopenhauer (1788‐1860), entre outros. A historiografia propõe um movimento de identidade e diferenciação na construção da inteligência brasileira, reproduzindo a experiência européia e sua relativa adaptação aos trópicos. Como afirma José Veríssimo: “o movimento que tenho chamado de modernismo e cujo mais evidente sinal foi, como o europeu de que se originou, o espírito crítico, deu à crítica outra direção e outros critérios.” (VERÍSSIMO, 1979, p. 275) Vinculados aos ideais do positivismo e do evolucionismo, os letrados brasileiros conheciam melhor a Europa, e, por conseguinte suas idéias e filosofias, do que o próprio Brasil. Tal vinculação trazia ao Rio de Janeiro, cenário da elite cultural brasileira, uma transformação no modo de vida e na mentalidade nacional. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
Página | 55 Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO Assim sendo, os intelectuais brasileiros, substituindo um pensamento calcado em relações sociais do tipo senhorial por outro do tipo burguês, buscam um cosmopolitismo que nega os elementos da cultura popular, promovendo uma “regeneração” da cultura brasileira, da cidade do Rio de Janeiro e da política nacional. No decorrer do tempo, no entanto, essas modificações geram um sentimento de isolamento e ceticismo naqueles intelectuais que, como José Veríssimo, acreditavam na construção de um novo Brasil, a partir da mudança de regime do governo e da valorização da ciência como um antídoto contra todas os problemas sociais que assolavam o país. Apesar da grande importância do Rio de Janeiro, considerado o principal centro cultural brasileiro, as idéias cientificistas encontram um terreno fértil em torno das academias de Direito e Medicina e dos grupos ou sociedades intelectuais de outras regiões. Entre esses grupos que faziam o movimento das idéias européias, podem‐se citar os de Fortaleza, Recife e Salvador. No Ceará destacam‐se pensadores como Capistrano de Abreu (1853‐1927), Rocha Lima (1879‐1917), Paula Nei (1858‐1897), Araripe Júnior e muitos outros, que formam a Academia Francesa. Não obstante, em Pernambuco, tendo como líder Tobias Barreto (1839‐1889), seguido por Sílvio Romero, a Escola do Recife. Desvinculando‐se de Portugal, o Brasil toma as idéias da França ⎯ também uma mediadora do pensamento inglês e alemão ⎯ como parâmetro para a criação de um processo civilizatório universal. As idéias cientificistas, vindas da França, consolidam a ruptura da colônia com a metrópole e promovem o reordenamento de uma sociedade que procura sustentar uma posição autônoma frente ao “mundo civilizado”. Ao se distanciar dos ideais de cultura de Portugal, desenvolvendo uma substituição dos ideais românticos por um “campo intelectual” centrado na ciência e no materialismo, os pensadores do século XIX redimensionam o papel do Brasil frente ao mundo. Na opinião de Afrânio Coutinho: Em 1880, o Romantismo, ou a “escola subjetiva”, estava morto. Começava‐se uma nova era, dominada pelo espírito filosófico, científico, de cunho materialista, naturalista, determinista. Por sua vez, o Brasil entrara num momento de grandes transformações sociais e econômicas. Era a própria estrutura da sociedade brasileira que mudara, dando início à industrialização, por sobre a tradicional composição agrária, latifundiária, aristocrática. (COUTINHO, 1969, p. 20) A estrutura da sociedade brasileira sofre transformações ao propiciar a ascensão da burguesia ao poder, substituindo o modelo agrário‐feudal, como centro de concentração política representada pelos senhores de engenho, por um modelo cuja importância das camadas urbanas é representado, posteriormente, pela figura do senhor do café. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO Seguindo as mudanças da sociedade brasileira, os intelectuais acreditavam na noção do aperfeiçoamento indefinido do indivíduo, conforme os ideais do evolucionismo, libertando o homem do determinismo teológico e inserindo‐o no materialismo. Nesse contexto, a literatura passou a ter como nota dominante a filosofia, o cientificismo ou as chamadas características realistas e naturalistas. José Veríssimo, em sua História da literatura brasileira, dedica um capítulo ao chamado Modernismo. Para o crítico paraense as “novas idéias” teriam sido marcadas por fatos de “ordem política e social e ainda de ordem geral, (que) determinaram‐lhe ou facilitaram‐lhe a manifestação aqui.” (VERÍSSIMO, 1916, p. 314) Entre esses fatos podem‐se citar a Guerra do Paraguai, as discussões entre uma visão religiosa ou laica do ensino, a guerra franco‐alemã, a revolução espanhola, a proclamação da República na França (1870) — que geraram uma agitação republicana no Brasil. Todos esses fatos, aliados ao “movimento das idéias”, contribuíram para a construção de novas abordagens da literatura e cultura brasileira. Segundo José Veríssimo, “foi nos próprios livros franceses de Litré, de Quinet, de Taine ou de Renan, influenciados pelo pensamento alemão e também pelo inglês, que começamos desde aquele momento a instruir‐nos de novas idéias.” (VERÍSSIMO, 1979, p. 347) As referências para os críticos do século XIX, via de regra, eram emprestadas da Histoire de la litterature anglaise (1864), de Hypolite Taine, que condicionava a produção literária a uma análise biológica. Taine desenvolve a idéia da faculté maitreisse, que explica o “gênio individual” dos escritores mais importantes para uma nação. Veríssimo, seguindo Taine, também escolherá para sua História aqueles escritores que possuem maior representatividade para a literatura brasileira. A faculdade‐mestra atua, portanto, como um princípio de valorização da individualidade dos escritores que, ao longo da história, tornaram‐se modelos de representação artística e literária, servindo como elo entre o escritor e seu contexto. Apesar do condicionamento da obra literária a conceitos biológicos, Taine não revela muito interesse pela história literária e a relação de continuidade ou totalidade da tradição literária na França, preferindo tratar as obras literárias a partir de suas características individuais. Aproximando o pensamento de Taine ao de Veríssimo, pode‐se afirmar que ambos reuniram em si idéias e teorias que adquirem um complexo, e até mesmo contraditório, caminho crítico. No caso de Taine é possível observar a combinação entre o ideal hegeliano e a fisiologia naturalista, senso histórico e idealismo, individualidade e determinismo universal, consciência moral e intelectual. São coordenadas que complementam o pensamento de Taine ao concatenar a sociologia ao individualismo dos grandes escritores. Precursor das relações entre sociologia e literatura, Taine procura relacionar o contexto social e político ao cenário artístico específico e suas relações com o VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
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Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO público literário específico. Dessa relação nasce a valorização da “representatividade” do escritor que será uma das bases do pensamento de Veríssimo ao montar a História. A representatividade assume, assim, o papel de vinculação entre o espírito individual das obras e a nação. Como observa Veríssimo: Não há na verdade nação sem literatura. Assenta a justeza deste conceito de Ferrero no postulado de que a literatura é a expressão da sociedade, a manifestação escrita do pensamento e do sentimento de um povo. Um povo que não os tivesse, dignos de serem exprimidos, e que não achasse em si os estímulos necessários à sua expressão, não seria uma nação. (VERÍSSIMO, 1979, p. 43) Para Veríssimo o elemento nacional adquire uma gradação de significado porque pode transformar‐se em critério “ideológico”, quando se trata do período colonial, ou em critério estético quando se trata dos escritores românticos. De certa forma, Veríssimo adota um ponto de vista analítico calcado no conservadorismo romântico que encara a literatura colonial como ramo da portuguesa e a literatura nacional como legitimação do caráter nacional brasileiro. Resta ao crítico, no entanto, a tensão de retratar a obra de Machado de Assis e inseri‐la num contexto universal que determina a valorização do critério estético como o “natural desenvolvimento” das letras nacionais. Para João Alexandre Barbosa, a História da literatura brasileira: Surgida sob o impacto poderoso que provocara no Brasil a difusão daquilo que ele mesmo (José Veríssimo) chamava de bando de idéias novas, sobretudo a partir dos anos 70, isto é, os princípios do positivismo, do evolucionismo e do determinismo, não apenas buscava fazer a crítica de princípios românticos que informara a atividade crítico‐histórica imediatamente anterior, mas fazia da história literária a expressão de uma interpretação de largo espectro da cultura no Brasil, a História de José Veríssimo já revelava o diálogo, sempre problemático para um homem de sua formação, em tudo semelhante à de Sílvio Romero, com os novos modelos de crítica, instaurados, como sempre acontece, a partir das próprias inovações literárias. (BARBOSA, 2002, p.116) Para se ter uma idéia da complexidade do campo intelectual do século XIX, José Veríssimo, ao escolher Machado de Assis para centro de seu cânone literário nacional, deixa de lado muitos escritores, como Euclides da Cunha (1866‐1909) e Lima Barreto (1881‐1922), que seriam conflitantes em relação aos propósitos do crítico. Assim sendo, o campo intelectual proposto por Veríssimo não poderia ser definido por escritores que mostrassem os problemas sociais do Brasil, mas por VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
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Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO escritores que, de certa forma, continuassem um padrão de “esfera pública” centrado nos ideais europeus de civilização. As escolhas de Veríssimo determinam uma utilização clássica da linguagem e não experimental, no caso Euclides da Cunha e Lima Barreto, cujo padrão de cultura seria desenvolvido pela elite intelectual que se concentrava na Academia Brasileira de Letras. Segundo João Alexandre Barbosa, a “História é muito mais obra de um crítico literário que adotava um ponto de vista histórico que obra específica de historiador literário, preocupado antes em julgar valores do que pesquisar origens ou consagrar opiniões.” (BARBOSA, 1974, p. 75) Sílvio Romero, por exemplo, tratava a crítica como uma forma de contribuição para a cultura nacional, ao passo que, Veríssimo buscava uma concepção crítica com base nas “boas e belas letras” aliadas ao contexto sócio‐
econômico do Brasil. Quando os intelectuais da “geração de 70” percebem que os ideais republicanos não atendem às expectativas dos pensadores que esperavam um modelo sócio‐político‐cultural progressista e engajado na solução de todos os problemas sociais, transformam o Brasil num campo de debates e polêmicas, conforme definição de Roberto Ventura: Ao longo das polêmicas entre Romero, Veríssimo, Araripe, Capistrano de Abreu e Teófilo Braga, surgem questões até hoje presentes na crítica literária: o predomínio da história ou da estética na interpretação literária, os destaques dos fatores extrínsecos ou intrínsecos da obra, a análise do tema e conteúdo ou da forma e linguagem, o conceito genérico ou específico de literatura. A história da crítica envolve, como observa René Wellek, uma série de debates sobre conceitos recorrentes e contestados. (VENTURA, 1991, p.11) Partido de conceitos centrados no positivismo e no cientificismo, José Veríssimo organiza um campo intelectual, convertendo a crítica literária num gênero, que traduz, legitima, e hierarquiza as obras literárias em fatores intrínsecos e extrínsecos ao campo intelectual de ação. Agindo ambiguamente como uma espécie de representante dos escritores e porta voz do público, o crítico literário elabora seu discurso por meio de um ponto de vista literário que está agregado ao discurso de sua esfera pública. Os conceitos dos críticos românticos, dessa forma, procuram um ponto de equilíbrio entre história e literatura, tendo o índio como principal representante. Sílvio Romero, por outro lado, elege o mulato — tipo variadíssimo — para a elaboração de uma identidade nacional, apontando não somente a mestiçagem racial, mas a mestiçagem moral como forma de sustentar a nacionalidade em bases científicas, mesológicas e etnológicas (ROMERO, 1943, p.441). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
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Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO Os conceitos que Veríssimo adota em sua História da literatura brasileira também possuem a característica da recorrência ou da contestação. Ao mesmo tempo em que renega algumas fontes como critério único de análise do processo de formação da literatura brasileira, o crítico procura acompanhar a evolução desta através de um sistema ou seqüência que se inicia com a transformação do nativismo em nacionalismo e, por fim, em universalismo. Veríssimo não pretende apenas historiar, como faziam os românticos, todos os escritores delimitados em escolas estéticas, mas relativizar a importância do escritor para a sociedade brasileira e selecionar aquelas obras que possuem traços diferenciais ⎯ ou passaram por uma seleção natural ⎯ fazendo parte do cânone literário nacional. José Veríssimo define que: Menos ainda do que qualquer dos gêneros literários aqui versados, não se constitui a crítica em aplicação particular da atividade literária. E como se não tivesse outra doutrina que o gosto pessoal dos que eventualmente a faziam, fosse pura externação de impressões, mais no intuito de louvor ou censura, que no de exame e explicação da obra, afetasse um tom retórico e ordinariamente se excedesse em divagações escusadas de trivialidades literárias ou em banalidades conceituosas, essa crítica, afora que é propriamente história literária feita por um Varnhagen, um Norberto, um Sotero e ainda um Fernandes Pinheiro, apenas deixou de si um outro documento estimável. Nada obstante foi útil e, ainda com as suas falhas e defeitos, serviu ao desenvolvimento das nossas letras. (VERÍSSIMO, 1916, p. 275) Sem adotar uma postura única, Veríssimo possui um senso de relatividade, que faz sua atividade crítica ser norteada por uma infinidade de princípios estéticos e filosóficos que aparentemente sugerem uma idéia de livre‐pensador, conforme Moisés Velinho ou Afrânio Coutinho, que na mesma direção considera que tal senso de relatividade é limitado ao processo de formação do campo intelectual proposto pelo crítico. Um processo de “antropofagia” toma conta do crítico literário ao traçar o percurso histórico da literatura brasileira através daquelas obras mais representativas para determinado público‐leitor. No caso de José Veríssimo, o “processo antropofágico” se faz presente na releitura de teóricos, matrizes e modelos europeus que ganham uma nova abordagem por parte do crítico pois, de certa forma, são aclimatados ao ambiente brasileiro. Apesar da vinculação ao método de Taine e seus discípulos, Scherer na Alemanha, Brandes na Dinamarca e Brunetière na França, o crítico paraense consolida suas idéias a partir da configuração de uma História da literatura brasileira que considera o “natural” desenvolvimento da cultura, vinculado a um aprimoramento estético, formado por idéias e conceitos muitas vezes VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
Página | 60 Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO contraditórios, moldados pela revisão de sua própria obra, de seus conceitos e, principalmente, de um horizonte de leituras extremamente abrangente. O resultado é a definição de um cânone literário interligado ao desenvolvimento de uma consciência nacional e à recuperação de uma cultura de fundo “iluminista”, que corre o risco de ser esquecida pela mudança das estruturas sociais. A tarefa de Veríssimo, dessa forma, não é apenas de acompanhar através dos tempos o percurso de um objeto chamado literatura, a partir de uma definição comum para todas as épocas, “literatura como arte literária” segundo Veríssimo. É também preservar uma seleção de obras que “evoluem” para a representação de uma autonomia entendida como o rompimento dos vínculos com a metrópole e, conseqüentemente, a concepção de uma identidade própria para a cultura brasileira. Essa identidade, por sua vez, estaria atrelada aos princípios da crítica de Brunetière ⎯ julgamento, classificação e explicação ⎯ cujo modelo literário, voltado para a tradição francesa, valoriza os ideais morais e clássicos do passado através de posições‐chave para o crítico: editor‐chefe na Revue des Deux Mondes, professor da École Normale e membro da Academia Francesa. Brunetière desenvolve uma visão pragmática da crítica e da história literária cujo papel deveria focalizar as obras literárias em si mesmas. Veríssimo utiliza‐se dos três conceitos de Brunetière ao estabelecer que o julgamento deve isentar‐se de qualquer preferência pessoal, impressão ou prazer subjetivo. Para o crítico francês, a crítica não deveria ser formada por uma rígida estrutura sistemática porque correria o risco de tornar‐se um ramo do conhecimento social, mas ter um arcabouço teórico que sustentasse concepções literárias e artísticas (BRUNETIÈRE, 1884, p. 35). Outra lição de Brunetière resgatada por Veríssimo se refere aos pressupostos de uma teoria da história literária capaz de recortar o passado através das obras e escritores mais importantes e não a partir da formação de uma história da literatura confundida com um dicionário literário ou com uma história dos costumes. Conforme Brunetière: Literatura, diríamos, move‐se por ação e reação, convenção e revolta. Esse movimento não é, decerto, automático, mas resultado de forças humanas; uma obra original muda a direção do desenvolvimento; uma obra convencional o continua ou o repete. A individualidade adquire assim um enorme papel histórico nesse esquema de um bom neoclássico; assim, a individualidade “introduz na história literária algo que não existia antes, que não existiria sem ela, que continuará depois dela. (WELLEK, 1973, p. 63) A lição sobre o cânone também servirá de parâmetro para as escolhas de Veríssimo ao montar sua História da literatura brasileira. É importante salientar que o conceito de evolução de Brunetière valoriza o “momento”, ou ponto de mudança, do aparecimento de uma obra singular inserida num “mapa geral” da evolução VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO literária. Ao escrever sua História num momento de mudanças na estrutura da sociedade brasileira, em que se tem a definição de uma sociedade industrial, tecnocientífica e urbana, Veríssimo valorizará o “momento passado” como modelo estético para a recuperação de um ideal clássico de literatura. O resultado da influência de Brunetière no pensamento de Veríssimo é a elaboração de uma história da literatura construída segundo uma herança cultural nacional filiada ao contexto do século XIX, que servirá como ponto de apoio para futuros historiadores. O ideal do crítico, portanto, seria apresentar uma totalidade de escritores e obras articuladas através da inter‐relação de elementos estéticos, históricos, sociais, culturais e filosóficos. Apesar de estar em contato com várias teorias e estéticas, José Veríssimo busca, em sua História, uma totalidade orgânica que entrelaça um ideal universal de beleza à manifestação de um espírito nacional original e independente. A constante busca por uma renovação de idéias e teorias, como define Heron de Alencar (VERÍSSIMO, 1963, p. 13), ou o amadurecimento do crítico através da distinção das três fases do crítico paraense feita por João Alexandre Barbosa (BARBOSA, 1974, p.40), mostram José Veríssimo estabelecendo uma conexão entre a formação de uma história liberal, calcada nos ideais da filosofia e arte clássica, e uma história da nação brasileira que tem como principio a definição de um povo e uma cultura independente e original. De certa forma seria a comprovação do resultado de um processo civilizatório que transforma a colônia em república independente. Carregado de tensões, o campo social está integrado ao campo intelectual na formação da identidade nacional: na primeira metade do século XIX a identidade nacional estava ancorada na noção de pátria, povo, língua e território. Na segunda metade do século XIX, as questões de raça e meio geográfico estão interligadas aos ideais de nação e construção da cultura brasileira. Essa construção, no caso de Veríssimo, será solidificada através da definição de um cânone literário que considera o Rio de Janeiro como o representante ideal da cultura nacional. Sintetizando suas preocupações intelectuais, José Veríssimo cria alguns pressupostos para sua História: a literatura brasileira é independente e reflete o pensamento de um povo porque adquiriu uma certa autonomia lingüística que cria obras com características inerentes a uma nação independente. A literatura brasileira é formada por dois períodos (colonial e nacional) que se vinculam ao “desenvolvimento” da sociedade brasileira. Literatura é arte literária: essa definição de Veríssimo será o ponto de partida para a utilização de um instrumental crítico que fará a separação entre uma visão histórica da literatura, presente no período colonial, de uma visão estética da literatura. Assim sendo, a História segue um caminho cronológico que expõe a “marcha” da literatura nacional a partir da “seqüência natural dos fatos literários” (VERÍSSIMO, 1916, p. 33) vinculados à “evolução” literária nacional, através da articulação entre o ponto de vista estético e o histórico em que os escritores são divididos em ”singular individualidade” ou “subsidiários”. O resultado de tal VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
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Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO compreensão, por parte de Veríssimo, é a idéia de que “desenvolvimento implica formação e vice‐versa” (VERÍSSIMO, 1916, p. 25) porque, a partir do Romantismo, a literatura brasileira sofre novos contatos e novas reações; a literatura é formada pela inter‐relação entre leitor/obra/público. Os escritores selecionados por José Veríssimo, dessa forma, nasceram no Brasil e a história da literatura deve estar preocupada apenas com aqueles escritores que sobrevivem na memória coletiva da nação. Outra característica importante para a seleção dos escritores que compõem a História da literatura brasileira é a definição de que, isolada ou em relação ao seu meio e seu tempo, a obra literária deve possuir “virtudes de pensamento e de expressão” (VERÍSSIMO, 1916, p. 33) possuir um interesse permanente e dar prazer intelectual aos leitores. Esses pressupostos entrelaçam‐se na busca de uma justificativa e significação para a obra de Veríssimo no contexto do século XIX. Não é por acaso, portanto, que o crítico inicia sua “Introdução” delineando o processo de emancipação cultural do Brasil: A literatura que se escreve no Brasil é já a expressão de um pensamento e sentimento que se não confundem mais com o português, e em forma que, apesar da comunidade da língua, não é mais inteiramente portuguesa. É isto absolutamente certo desde o Romantismo, que foi a nossa emancipação literária, seguindo‐se naturalmente à nossa independência política. Mas o sentimento que o promoveu e principalmente o distinguiu, o espírito nativista primeiro e o nacionalista depois, esse veio formando desde as nossas primeiras manifestações literárias, sem que a vassalagem ao pensamento e ao espírito português lograsse jamais abafá‐lo. É exatamente essa persistência no tempo e no espaço de tal sentimento manifestado literariamente, que dá à nossa literatura unidade e lhe justifica a autonomia. (VERÍSSIMO, 1916, p. 23) As palavras de Veríssimo demonstram sua persistência em valorizar o processo de formação da literatura brasileira a partir da criação de uma cultura peculiar ao Brasil e de uma língua, que se altera em contato com o meio e diversas culturas e, assim, sofre as modificações de seu tempo e espaço. Para o crítico, sua História representa a unidade de uma literatura que adquiriu características próprias e autonomia suficiente para selecionar aqueles escritores mais representativos ⎯ seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista estético ⎯ delimitando o campo de ação do crítico. Veríssimo pensa o Brasil segundo os postulados de uma História da literatura brasileira comprometida com o processo de desenvolvimento da nação e sistematização cronológico‐interpretativa em que a miscelânea de fontes utilizadas cumpre o papel de explicar o desenvolvimento das letras no Brasil. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO 3. CONCLUSÕES EM ABERTO Em suma, a definição da crítica literária enquanto gênero e como instância mediadora entre o público e o escritor, estabelece um poder centralizador capaz de vincular a literatura aos demais ramos do conhecimento, como define José Veríssimo, e aliar a história da literatura brasileira ao incremento das artes e ao desenvolvimento do meio; “nosso progresso literário, correlacionado com a nossa evolução nacional”. (VERÍSSIMO, 1916, p. 35) Gradativamente, a História vai abandonando o critério de nacionalidade, herdado da crítica romântica, substituindo‐o por noções estéticas que colocam a literatura nacional no plano universal. Aliado a essa valorização da “universalidade” da literatura nacional se constrói o campo de ação do crítico literário e a especialização do discurso sobre a literatura. É importante notar, também, que para o crítico a literatura brasileira vai abandonando a valorização das “escolas literárias” em nome de “individualidades”, superando, assim, o modelo naturalista. REFERÊNCIAS ALENCAR, H. Sobre José Veríssimo. In: VERISSIMO, José. História da literatura brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 4a. ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1963. BARBOSA, J. A. Alguma Crítica. Cotia‐SP: Ateliê Editorial, 2002. ______________. A tradição do impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo. São Paulo: Ática, 1974. BRUNETIÈRE, Ferdinand. Histoire et littérature. Paris: Calmann Lévy, 1884. COUTINHO, A. A literatura no Brasil. São Paulo: Global Editora, 1969. MACHADO DE ASSIS, J. M. A nova geração. In: MACHADO DE ASSIS, J. M. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994. MOREIRA, M. E. Nacionalismo literário e crítica romântica. Porto Alegre: IEL, 1991. ROMERO, S. História da literatura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943. tomo 5. TAINE, H. Histoire de la litterature anglaise. Paris: Hachette, 1864. 5 v. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
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Marcio Roberto Pereira Sidney Barbosa JOSÉ VERÍSSIMO: DA VALORIZAÇÃO ETNOLÓGICA À DEFESA ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO VENTURA, R. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil 1870 1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. VERÍSSIMO, J. Estudos brasileiros. II, Rio de Janeiro: Laemmert, 1894. ______________. História da literatura brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 1o milheiro. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves & Cia, 1916 ______________. A nossa evolução literária. In:⎯⎯⎯⎯. Últimos estudos de literatura brasileira: sétima série. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1979. JOSÉ VERÍSSIMO: FROM ETHNOLOGICAL VALORIZATION TO IMPORTANCE OF ESTHETICS IN THE BUILDING OF A BRASILIAN LITERARY CANON ABSTRACT: This essay analyses the História da literatura brasileira (1916), of José Veríssimo, that fixes a rupture among his criticism and the romantic one and scientific method of interpretation taking as a basis a theoretical eclecticism that makes him distrustful of enclosed methods or restricted classifications. From ethnological valorization to National sentiment or from scientificism to the support of his theories about the importance of esthetics in the building of a Brasilian literary canon, José Veríssimo’s critical works are based upon an organicity that leads him to refined criteria. Keywords: Brasilian literature; canon, José Veríssimo; literary criticism; tradition Recebido em 29 de maio de 2009; aprovado em 30 de junho de 2009. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [51 –64]
Página | 64 MOINHO DE FRUSTRAÇÕES Iracy Conceição de Souza*1 RESUMO: Este trabalho realiza a interpretação do conto de Eça de Queirós No Moi‐
nho (1880), visando abordar relação entre sujeito e desejo. O campo teórico que norteia nossa leitura é a psicanálise, na vertente de seu criador e do projeto de re‐
torno à obra freudiana empreendido por Jacques Lacan. No conto, teremos uma história de amor, que coloca em cena o drama crucial do homem, dividido entre o desejo e o dever. A escolha pelo dever, implicando a renúncia do desejo, faz com que a personagem masculina seja massacrada pela imposição moral do superego e pelo medo da mulher, a qual, como representantes do Outro sexo, permanecem enigmas sem decifração. Palavras – Chave: Desejo. Dever. Dissimulações. Decifração. Abordaremos em nossa leitura do conto No Moinho 2 de Eça de Queirós, a posição das personagens em relação ao amor e ao desejo. O campo teórico escolhido para nortear a interpretação dessa leitura é a psicanálise, na vertente de seu criador Sig‐
mund Freud, e do projeto de retorno à obra freudiana empreendido por Jacques Lacan. A introdução de novos conceitos, por Lacan, visa não aperfeiçoar as ideias de Sigmund Freud, mas formalizar a sua conceitualização, restituindo‐lhe a dinâmica com que o fundador da psicanálise as dotara. Portanto, retomar os verdadeiros fundamentos dos conceitos freudianos e enxergar seu sentido original significa lê‐
los a partir de instrumentos contemporâneos. Unir a literatura e a psicanálise é promover, no leitor, um leque de possibilidades. No desenvolvimento de nossa leitura fica claro que não pretendemos trazer à discussão a importância da escrita para a experiência psicanalítica, levando em conta que a psicanálise é essencialmente uma práxis fundada na fala. Embora, con‐
sideramos que a escrita de Eça chama atenção pelo modo como ele utiliza a lingua‐
gem. O modo como ele repete palavras, segmenta frase apresenta um modelo do inconsciente pensado como conjunto de letras, no qual estamos engajados pela via do sintoma.3 1
‐ Professora Substituta‐ Mestre em Literatura Portuguesa ‐ UERJ – Cidade do Rio de Janeiro ‐
[email protected] 2
Adotamos como UERJ texto‐base a edição do conto publicado in O Atlântico nº 7 p. [1 ] (28 Abr.), Lisboa, em 1880 BN J. 2213 G. Todas as notas sobre o conto são retiradas dessa edição. 3
Lacan grafa como Sinthoma, numa contração dos termos Santo homem, retirando‐o da condição de metáfora significante, efeito do recalque, para enraizá‐lo no real, na conjunção entre letra e gozo.
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Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES A literatura, como escrita da fala do desejo, indica a existência de um sujeito singular, cindido, marcado por um significante que se faz representar pela via a me‐
táfora do nome próprio, ou seja, a nomeação de um autor. Pelo desejo de transcen‐
der a própria existência, o escritor, através do ato de criação, via literatura, tornará sem efeito a ação do tempo, o término de sua existência em um corpo decrépito e assegurará sua imortalidade. O Realismo, movimento artístico que se manifesta na segunda metade do século XIX, se propõe, em linhas gerais, a se inscrever numa Europa, cujo cenário político, social e econômico, se transforma em passo acelerado pelos avanços da segunda Revolução Industrial. Esse movimento se caracteriza, fundamentalmente, pela ênfase às questões sociais, e pela crítica ao Romantismo, que é identificado como uma literatura que privilegia o subjetivismo (individualismo) em detrimento do coletivismo (social). Eça de Queirós transcende o cenário literário, coerente aos princípios por ele tão claramente colocados nas Conferências do Cassino Lisbonense4, em 1871. Eça proferiu a quarta conferência cujo título é “A nova Literatura” e apresentou o Rea‐
lismo como expressão de arte. A aparente contradição Paixão e Realismo que se misturam e enriquecem seus contos se explica por seu bom gosto literário. Eça era um admirador da poesia romântica de Victor Hugo e que, ao mesmo tempo, tinha como seus escritores favoritos Edgar Allan Poe, Baudelaire e Flaubert. Freud promoveu uma ruptura no pensamento contemporâneo de tal ordem que é ainda pertinente que recorramos às suas ideias nos dias atuais. Reavivar o que ele escreveu é relê‐lo perante as múltiplas interpretações que a obra do mestre sus‐
citou. A psicanálise, desde Freud, parte da suposição de que o inconsciente é um saber falado. O inconsciente é efeito da linguagem que no real faz furo. O ponto de partida da psicanálise é que a linguagem é habitada por aquele que fala, onde os significantes, que se modulam na voz, imbricam‐se com os ditos e nos dizeres. Abordaremos as concepções de Desejo no pensamento de Jacques Lacan procurando mostrar, em linhas gerais, um modelo pautado na lei, na falta e na ne‐
gatividade. Partiremos do pressuposto de que é o pensamento de Hegel que baliza esta compreensão. Conforme Lacan, o desejo se manifesta a partir da demanda, e isto adquire grande significação no campo da literatura. A demanda é a articulação significante na qual devemos escutar o desejo como um aquém ou além dessa. Ou o texto se sustenta, através da sua consistência estético‐simbólica e ele se constitui nesse enunciado, ou fracassará. Perceber que o sentido de “desejo como falta”, em Lacan, é distinto do sen‐
tido de Kojève pelo uso que Lacan faz da ideia de outro. Descrever o “sujeito” é o 4
Eça de Queirós, na 4.ª Conferência do Casino Lisbonense afirma que "O Realismo é uma reacção contra o Romantismo: O Romantismo era a apoteose do sentimento; ‐ o Realismo é a anatomia do carácter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos ‐ para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade". VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
Página | 66 Página | 67 Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES que pretende Lacan. Desse modo, o sujeito (outro), em confronto com o Outro, é uma inclusão da aniquilação do ser, da sua própria morte, do seu desaparecimento, na formação da subjetividade. Ao começarmos a falar de um texto, que nos tocou de alguma forma, somos levados às questões fundamentais de nossa existência no mundo. O leitor interpre‐
ta os escritos de um autor a partir de sua afetação sintomática e desfruta um gozo. Portanto, precisamos redobrar nossa atenção para não transformar o texto em pre‐
texto. Ou seja, há no texto uma amarração significante que, ao mesmo tempo, limi‐
ta e amplia às possibilidades de interpretação. Lembramos imediatamente da fala contida de Caeiro: “O que não tem limites não existe!”5. Nossa principal preocupa‐
ção é ler o conto visando a apreender o que não é dito, no nível do enunciado, mas no nível da enunciação. Ler para refletir sobre a questão teórica que sustenta nosso trabalho, como as personagens do conto mencionado: Maria da Piedade, Adrião, se posicionam em relação aos seus próprios desejos e delimitar o que é estrutura sub‐
jetiva e, portanto é invariante, e o que se apresenta como resíduo contextual, ou seja, pura contingência. No conto de Eça de Queirós No moinho o destino de Maria da Piedade, pro‐
tagonista do conto, está circunscrito à época em que o conto foi escrito. Época essa em que as mulheres tinham dois caminhos a seguir: a beatitude ou a volúpia. A trama, que se concentra na construção da personagem D. Maria da Pieda‐
de, gira em torno da impossibilidade do amor. Essa é tecida minuciosamente com uma riqueza de detalhes, os quais se inscrevem em três momentos, três espaços, três visões, três homens e duas mulheres. O primeiro momento do conto apresenta Maria da Piedade solteira, em companhia de seus pais. Levando uma vida austera, sofrida e monótona, mergulha‐
da num estado de resignação passiva, a personagem ficava limitada a um espaço restrito e constrito. O narrador nos diz que sua existência foi triste: em um casebre hipotecado; “Maria da Piedade vivia assim, desde os vinte anos. Mesmo em solteira, em casa dos pais, a sua existência fora triste” (QUEIRÓS). O segundo momento será marcado por seu casamento com João Coutinho e a maternidade. Torna‐se mãe de três crianças: “Os filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes, crescendo pouco e com dificuldade, cheios de tumo‐
res nas orelhas, chorões e tristonhos”. Fase em que nossa personagem se mostra uma dedicada esposa, mãe afetuosa e sacrificada às doenças do marido e dos filhos, vivendo isolada do mundo sem vida social. Evidentemente, o espaço é a casa do marido. 5
PESSOA, 1974, p.249. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
Página | 68 Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES E quando João Coutinho pediu Maria em casamento, apesar de doente já, ela aceitou, sem hesitação, quase com reconhecimento, para salvar o casebre da penhora, não ouvir mais os gritos da mãe, que a faziam tremer, rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo te‐
lhado. Não amava o marido, decerto; e mesmo na vila tinha‐se lamentado que aquele lindo rosto de Virgem Maria, aquela figura de fada, fosse pertencer ao Joãozinho Coutinho, que desde rapaz fora sempre en‐
trevado. O Coutinho, por morte do pai, ficara rico; e ela, acostumada por fim àquele marido rabugento, que passava o dia arrastando‐se sombriamente da salapara a alcova, ter‐se‐ia resignado, na sua nature‐
za de enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem nascido sãos e robustos. (...) Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um dos pe‐
quenos choramingava, lá limpava os olhos, lá aparecia com a sua bonita face tranqüila, com alguma palavra consoladora, compondo a almofada a um, indo animar a outro, feliz em ser boa. Toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo bem tratado e bem acarinhado”(QUEIRÓS). Esse momento é especialmente marcado pela vinda do primo de seu marido, Adrião: “Foi por isso grande a excitação na casa, quando João Coutinho recebeu uma carta de seu primo Adrião, que lhe anunciava que em duas ou três semanas iria che‐
gar à vila. Adrião era um homem célebre (...)” (QUEIRÓS). Tal fato provocou uma reação inesperada em Maria da Piedade, já que, como dona de casa exemplar, tudo estava organizado e limpo, portanto, em condições de receber qualquer pessoa, a qualquer momento. Havia na reação de Maria da Pieda‐
de alguma coisa da ordem do desejo sexual que estava há muito tempo sufocada e, que, agora, insistia em se manifestar: “ficou aterrada com esta visita. Via já a sua casa em confusão com a presença do hóspede extraordinário”(QUEIRÓS). Portan‐
to, o dito escapou. Seu desagrado não poderia ser contra as desordens da casa. Na verdade, seu desagrado era um grito: Eu sou uma mulher, proteja‐me de mim mes‐
ma! Maria da Piedade olhava‐o assombrada: aquele herói, aquele fascina‐
dor por quem choravam mulheres, aquele poeta que os jornais glorifi‐
cavam, era um sujeito extremamente simples (QUEIRÓS). A terceira e última parte é, portanto, marcada pela renúncia do desejo: a par‐
tida de Adrião e a degradação de Maria da Piedade como esposa, mãe e mulher. No início do conto, Maria da Piedade é apresentada ao leitor como uma mu‐
lher pura e cumpridora dos deveres matrimoniais e domésticos: “Uma senhora mo‐
delo”. “Loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros de um tom de viole‐
ta, o brilho sombrio e doce” (QUEIRÓS). Essa imagem angelical, reconhecida pelos moradores da vila em que mora, se inscreve nos ideal ético e estético do século XIX, em que o Bem e Belo se tornam equivalente. Mas, sabemos que, para a psicanálise, a ética não se confunde com a moral. Muito pelo contrário, a ética se associa ao de‐
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Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES sejo. Lacan, em O Seminário VII: a ética da psicanálise, ilustra a ética da psicanálise com Antígona: aquela que não cede ao que é mais próprio de si mesmo, o desejo. Em contraposição ao sujeito do desejo, temos um superego tirânico que, por ter interiorizado a lei, se torna o guardião dos bons costumes: severidade, vigilância e necessidade de punição. Freud, em O Ego e o Id, 1923, coloca o superego equivalen‐
te ao ideal‐do‐eu. O superego se opõe ao inconsciente e é o principal responsável pelo sentimento de culpa. O superego se caracteriza pelo mecanismo da compul‐
são, manifestando‐se sob a forma de um imperativo categórico. Freud, no referido artigo, afirma que o superego (ou o ideal‐do‐eu) é o representante das relações que a criança estabelece com os pais. A função crítica do superego não só produz um efeito de dominação do ego, mas também é o agente causador do sentimento de culpa. Se, para Freud, os afetos são sempre conscientes, logo o sentimento de culpa só pode se situar no nível da consciência. O que é inconsciente é o desejo de puni‐
ção. Freud, no texto O problema econômico do masoquismo, 1924, afirma que o sofrimento, causado pela severidade voraz do superego, esconde a necessidade de punição. Nesse texto, Freud, identifica a crueldade do superego com o imperativo categórico de Kant. Necessidade inconsciente de punição e sentimento consciente de culpa geram um tipo de masoquismo, descoberto por Freud: o masoquismo mo‐
ral, em que o sadismo do superego se une ao masoquismo do ego para produzir um sofrimento sem fim... No masoquismo moral, o que importa é o próprio sofrimento e não as suas causas. O verdadeiro masoquista, diz Freud no referido artigo, é aquele que nunca perde a oportunidade de oferecer a face para receber um golpe. Só que ele não sa‐
be disso. No masoquismo moral, o sofrimento é expressão da necessidade inconsci‐
ente de punição. A renúncia do desejo não basta para exorcizar a culpa. No maso‐
quismo moral, o desejo de punição está diretamente articulado ao fato de que é proibido desejar. Diz Freud: A consciência e a moralidade surgiram mediante a superação, a desse‐
xualização do complexo de Édipo; através do masoquismo moral, po‐
rém, a moralidade mais uma vez se torna sexualizada, o complexo de Édipo é revivido e abre‐se o caminho para uma regressão, da morali‐
dade para o complexo de Édipo. Isso não é vantajoso nem para a mo‐
ralidade nem para a pessoa interessada. Um indivíduo pode, é verda‐
de, ter preservado a totalidade ou determinada medida de senso ético ao lado de seu masoquismo, mas, alternativamente, grande parte de sua consciência pode haver‐se desvanecido em seu masoquismo. No‐
vamente, o masoquismo cria uma tentação a efetuar ações ‘pecami‐
nosas’, que devem então ser expiadas pelas censuras da consciência sádica (como é exemplificado em tantos tipos caracterológicos rus‐
sos) ou pelo castigo do grande poder parental do Destino. A fim de provocar a punição desse último representante dos pais, o masoquista deve fazer o que é desaconselhável, agir contra seus próprios interes‐
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Página | 70 Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES ses, arruinar as perspectivas que se abrem para ele no mundo real e, talvez, destruir sua própria existência real. (FREUD, 1924). A personagem Maria da Piedade ilustra a tirania da imagem. Ou seja: a tirania do ideal‐do‐eu. É preciso renunciar aos seus desejos, para se tornar uma esposa e‐
xemplar. O dever no lugar do desejo produz um sofrimento com o qual se goza. As‐
sim, o eu de Maria da Piedade se molda as exigências do superego: casar com João Coutinho, não por amor mas para livrar o pai da hipoteca do casebre, cuidar zelosa‐
mente do marido doente, que fica entrevado e se dedicar aos três filhos doentes. Estamos diante de um verdadeiro desapossamento do sujeito. Ou seja, a sua afânise, fazendo com que o eu se aliene no desejo do Outro. O dever a ser cumprido é o imperativo do superego. Lacan, em O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud: ao dizer que a matriz do eu é imaginária está afirmando que tanto o eu – ideal quanto o ideal‐do‐eu são imagens cujo significado será dado pela palavra do Outro. Ou dito de outro modo, a precedência é sempre do simbólico. Em relação a essa distinção entre eu‐ideal e ideal‐do‐eu, diz Lacan: A distinção é feita nessa representação entre o Ideal‐ich e o Ich‐ideal, entre o eu‐ideal e o ideal do eu. O ideal do eu comanda o jogo das relações de que depende toda relação a outrem. E dessa relação a outrem depende o caráter mais ou menos satisfatório da estruturação imaginária. (LACAN, 1979, p.165). Nadiá, acrescenta: Amar uma miragem de si mesmo é o que funda a estrutura do narci‐
sismo e da Coisa como bem supremo. Essa miragem, que será marca‐
da no campo do Outro pelo traço unário, tem um nome; ideal do eu. A coisa é o que será procurado e nunca será encontrado. Ela não só an‐
tecede a entrada do significante, como também fica de fora das rela‐
ções tecidas pelo significante (FERREIRA, 2005, p 47). Nesse sentido, o ideal‐do‐eu é a ancoragem simbólica do eu–ideal, o qual se constitui a partir do desejo do Outro. Em outros termos, há uma relação permanen‐
te entre imaginário (eu/ideal) e simbólico (sujeito/desejo). Lacan afirma que a estru‐
tura do desejo é desejo do desejo do Outro (lugar do significante) e não, como dizia Hegel, desejo do desejo do outro (semelhante). Maria da Piedade, sob o jugo do ideal‐do‐eu, é uma mulher que não faz outra coisa na vida senão sofrer. Assim, essa personagem encarna o que Freud denomi‐
nou de masoquismo moral. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
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O DESEJO DO DESEJO DA MÃE A mãe é uma personagem sem nome. Ela é apresentada ao leitor a partir de uma função: a mãe de Maria da Piedade. O narrador nos apresenta a personagem, cuja função é a maternidade, como uma senhora desagradável, azeda, esposa sub‐
missa, que é espancada pelo marido, o pai de Maria da Piedade. A mãe como função é o primeiro representante do Outro e, como tal, cabe a ela nessa função transmitir ou não o Nome‐do‐Pai, sob a forma de Lei. E não pode‐
mos esquecer que, para Lacan, é a Lei que funda o desejo. O desejo da mãe, com‐
preendido como função materna, é o agente que irá inscrever a criança no caldeirão simbólico, cujo efeito, é o processo de humanização. Nesse processo, a constituição da subjetividade do recém‐nascido está diretamente ligada à sua impotência, já que depende do outro até para sua sobrevivência. A mesma história sempre se repete. Nasce uma criança : um ser vivo, inteiramente à deriva do gozo do Outro, sem trazer consigo nenhum saber genético sobre sua espécie. No lugar desse saber, uma ausência indica a ocorrência do real no imaginário. O que será colocado no lugar desse furo real no imaginário – tanto como referência fálica (primeira identificação) quanto como marca significante do campo do Outro (segunda identificação ou identificação com o traço unário) – falha. (FERREIRA, 2005, p.48). A psicanálise considera que o posicionamento da mãe em relação ao seu de‐
sejo e a Lei são determinantes para o exercício da função materna, nomeada por Lacan de desejo da mãe. A mãe de nossa protagonista se comporta como uma mu‐
lher aviltada no que diz respeito à sua posição como sujeito desejante. “Uma criatu‐
ra desagradável e azeda”(Queirós) que se submete aos maus tratos do marido e que deixa a filha no mais profundo desamparo. “(...) para salvar o casebre da pe‐
nhora, não ouvir mais os gritos da mãe, que a faziam tremer, reza, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo telhado.(...)” (Queirós). Quanto ao marido, o que temos é a imagem de um pai degradado e violento com as mulheres: (...) o pai, que se empenhara pelas tavernas e pelas batotas, já velho, sempre bêbedo, os dias que aparecia em casa passava‐os à lareira, num silêncio sombrio, cachimbando e escarrando para as cinzas. To‐
das as semanas desancava a mulher. (Queirós). Colette Soler, em Variáveis do fim da análise, afirma que existe uma equiva‐
lência imaginária entre esse ser batido, ser espancado com o ‘papel feminino’ na relação sexual. Essa equivalência contribuiria para a confusão que estabelece certa relação entre a posição feminina e o sacrifício. Gozar com o sofrimento (masoquis‐
mo moral) seria uma tendência das mulheres. Ou dito de outro modo: O gozo do VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
Página | 72 Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES sacrifício teria alguma relação com a posição feminina? Não podemos confundir sa‐
crifício com o feminino. A renúncia ao desejo é o procedimento que caracteriza, desde Freud, a neurose. Em relação a isso, diz Colette Soller, no referido livro: No sentido da tese da não‐afinidade entre a posição feminina e a do sacrifício encontramos a histeria, que reconhecemos ser tão freqüente nas mulheres, que nos leva, muitas vezes, a imaginar até que todas as mulheres sejam histéricas, o que não deixa de ser um erro. Há na his‐
teria o culto da falta, o desejo do desejo insatisfeito, que parece coin‐
cidir com um gozo, não o pulsional, mas da falta de desejo, parecendo que o sujeito está disposto a sacrificar exatamente o gozo pulsional no que ele tem de substancial. E, para bem situá‐lo, Lacan fornece refe‐
rências consistentes da distinção entre o objeto do desejo e a causa do desejo.(SOLER, 1995, p. 150). Sem dúvida, a mãe de Maria da Piedade goza com o sacrifício do seu desejo. Aviltação, humilhação e aniquilamento são as marcas que selam o seu casamento. Assim, a mãe de Maria da Piedade se torna símbolo do masoquismo moral. Haveria melhor forma de ilustrar o sacrifício dessa mulher que omitindo o seu nome pró‐
prio? Nos últimos séculos, o pai, como símbolo da lei, tem sofrido desgaste. Aliás, no final do século XIX, já temos sinais do enfraquecimento da função paterna. Quando nos referimos ao pai dessa forma, estamos nos baseando no que Lacan chama de posição metafórica do pai. Ou seja: o pai como “aquele que sanciona, por sua presença, a existência como tal do lugar da lei” (LACAN, 1985, p. 2002). Trata‐se de um legado que, como vimos, é transmitido pelo desejo da mãe. Nesse sentido, paternidade não se confunde com o pai biológico. Paternidade, para a psicanálise, é sempre da ordem simbólica e está diretamente relacionado com a origem e com a criação. Do ponto de vista da mãe, na medida em que a criança representa, ao nível imaginário, o objeto do seu desejo, isto é o falo, ela será desejada e amada. E, con‐
sequentemente, o filho sofrerá investimento libidinal. Disso resulta a inauguração do desejo que, nesse momento, está no Outro. A criança se vê imaginariamente como falo porque foi colocada nesse lugar pelo desejo da mãe. Maria da Piedade experimenta esse lugar imaginário de falo, sob a forma de frustração. Pensemos no que Lacan diz sobre o regime de a frustração: “consiste num dano, numa lesão, num prejuízo que é sempre da ordem do imaginário (LACAN, 1985, p. 12). O que está em jogo para Maria da Piedade é a reivindicação do amor materno. (LACAN, 1995, p. 101). O desamor materno a leva a repetir o destino de sua mãe. Mãe e filha são uni‐
das pelo sacrifício do desejo e pelo gozo masoquista. Não podemos nos esquecer que o pai da personagem é também apresenta‐
do de forma degradada: bêbado e violento. Logo sua mãe, como mulher, não pode VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
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Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES desejar um homem, destituídos de insígnias viris. Realiza‐se, então, um curto circui‐
to na operação que substitui a dimensão do desejo (materno) pela dimensão pater‐
na da lei. Eis a fórmula de Lacan sobre o enigma do desejo do Outro pela via da me‐
táfora paterna (LACAN, 1998, p. 563). PAI MÃE MÃE
x
⎡ A ⎤
NOME − DO − PAI
DESEJO DA MÃE
→ NOME − DO − PAI ⎢
⎥
DESEJO DA MÃE SIGNIFICADO DO SUJEITO
⎣ FALO ⎦
S S'
⎡1 ⎤
→ S⎢ ⎥
S' x
⎣s ⎦ A função do pai é a de um significante que substitui o significante materno. Ou seja, o pai vem no lugar da mãe: S em lugar de S’. A mãe (S’) como x deve ser lido: o valor que essa mãe tem para o sujeito. Esse valor (x) se relaciona com as per‐
guntas: O que essa mulher quer de mim? O que devo fazer para ser amado por essa mulher? A mãe com valor de x remete sempre para uma significação desconhecida. Logo esse x nada mais é do que o desejo da mãe,6 o qual é simbolizado no conto pela ausência do nome próprio da mãe de Maria da Piedade. A pergunta sem res‐
posta leva Maria da Piedade a repetir (automatismo de repetição) que ela interpre‐
tou como sendo o desejo da mãe. A naturalização das funções do corpo da mulher (maternidade) deixa poucas alternativas à Maria da Piedade. Submissa ao discurso do Outro, a personagem re‐
nuncia ao seu desejo, para cumprir o que a sociedade espera de uma mulher: casar e ter filhos. Logo, ela se casa com João Coutinho, que era doente desde pequeno, e tem três filhos que adoecem. O automatismo de repetição tece um destino sombri‐
o: como toda masoquista, renuncia a sua sexualidade para cuidar do marido e dos filhos doentes, como se fosse enfermeira: 6
Desejo da mãe é um conceito lacaniano, que tem como função a transmissão do Nome‐do‐Pai, sob a forma de Lei. Em relação a isto, afirma Nadiá: “Se o desejo da Mãe entrar em cena, esse ser vivo será marcado pelo Nome‐ do‐ Pai, ou seja será inscrito na Lei. O Nome‐ do‐ Pai, sob a forma de Lei, representa o falo como ausência. “O real não cessa de comparecer, agenciando o fracasso de qual‐
quer tentativa simbólica de harmonia” (FERREIRA, 2005, p. 48). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
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Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES (...) enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem nas‐
cido sãos e robustos. Mas aquela família que lhe vinha com o sangue viciado, aquelas existências hesitantes, que depois pareciam apodre‐
cer‐lhe nas mãos, apesar dos seus cuidados inquietos, acabrunhavam‐
na. (QUEIRÓS). Maria da Piedade insiste em não querer saber nada do seu desejo, o que contribui para a ruína de si mesma, já que não faz outra coisa senão se aniquilar como sujeito desejante, o que provoca as lágrimas enquanto costura:“Às vezes só, picando a sua costura, corriam‐lhe as lágrimas pela face: uma fadiga da vida invadia‐a, como uma névoa que lhe escurecia a alma.” Em O problema econômico do masoquismo, 1924, Freud descreve três tipos de masoquismo: erógeno primordial, feminino e moral. Até 1920, portanto antes da escrita de Além do Princípio do Prazer, Freud acreditava que os processos psíquicos eram governados pelo princípio de prazer. A descoberta de que havia processos mentais, que escapavam a dominância do princípio de prazer, levou Freud, quatro anos depois, a se dedicar ao estudo do masoquismo. Sem dúvida o cultivo da dor e do sofrimento contradiz a tendência do princípio do prazer que visa à eliminação do desprazer através da descarga de energia acumulada (excesso de estímulos). Em relação ao princípio do prazer, diz Freud: Consideramos que são os processos mais antigos, primários, resíduos de uma fase de desenvolvimento em que eram o único tipo de proces‐
so mental. O propósito dominante obedecido por estes processos primários é fácil de reconhecer; ele é descrito como o princípio de pra‐
zer‐desprazer [Lust‐Unlust], ou, mais sucintamente, princípio de pra‐
zer. Estes processos esforçam‐se por alcançar prazer; a atividade psí‐
quica afasta‐se de qualquer evento que possa despertar desprazer. (Aqui, temos a repressão.) Nossos sonhos à noite e, quando acorda‐
dos, nossa tendência a afastar‐nos de impressões aflitivas são resquí‐
cios do predomínio deste princípio e provas do seu poder (FREUD, 1911). Maria da Piedade se coloca na posição de vítima, procedimento, típico do masoquismo moral. Para ela, o que importa é a intensidade do sofrimento. Justa‐
mente por isto, no decorrer da história de sua vida, ela adquire tolerância à dor e à angústia. Aliás, a resignação era uma das qualidades exigidas para as mulheres na sociedade do século XIX. Para as mulheres, nessa época, existiam duas opções: as que seguiam a "natureza feminina" e, portanto, deviam se comportar como sub‐
missas, devotas, bondosas, comedidas, discretas, boas mães, boas filhas e boas esposas; e as que não seguiam a "natureza feminina" e não eram vistas com bons olhos pela sociedade. Ou seja, parodiando Camilo Castelo Branco, em Coração, Cabeça e Estômago, essas eram as mulheres que o mundo despreza. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
Página | 75 Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES Vendo‐a assim tão resignada e tão sujeita, algumas senhoras da vila a‐
firmavam que ela era beata, todavia ninguém a avistava na igreja, a não ser aos domingos, com o pequerrucho mais velho pela mão, rodo pálido no seu vestido de veludo azul. (QUEIRÓS). E nossa Maria da Piedade não era devota dos céus. Aliás, isto é dito de forma irônica pelo narrador, ao lançar mão de uma extraordinária metáfora: “Pregado, ela já possui o marido” (QUEIRÓS). Enfermeira e mãe zelosa, no lugar de mulher, já basta para o merecimento de comportamento cristão e exemplar: Com efeito, a sua devoção limitava‐se a estar a missa todas as sema‐
nas. A sua casa ocupava‐a muito para se deixar invadir pelas preocu‐
pações do Céu: naquele dever de boa mãe, cumprido com amor, en‐
contrava uma satisfação suficiente à sua sensibilidade; não necessitava adorar santos ou enternecer‐se com Jesus. Instintivamente mesmo pensava que toda a afeição excessiva dada ao Pai do Céu, todo o tem‐
po gasto em se arrastar pelo confessionário ou junto do oratório, seria uma diminuição cruel do seu cuidado de enfermeira: a sua maneira de rezar era velar os filhos e aquele pobre marido pregado numa cama, todo dependente dela, tendo‐a só a ela, parecia‐lhe ter mais direito ao seu fervor que o outro, pregado numa cruz, tendo para amar toda uma humanidade pronta (QUEIRÓS). 1.
INTERDIÇÃO DO GOZO Lacan encontra na expressão latina — Pater semper incertus est — uma ins‐
crição para pensar a função paterna. Essa função nos leva ao pai nomeado, ao pai nomeante e ao conjunto dos nomes do pai. O pai, como operador lógico, é um signi‐
ficante: o Nome‐do‐Pai. Esse significante (Nome‐do‐Pai) é o representante do Outro (lugar do significante) sob a forma de Lei. Como significante se multiplica em vários nomes, todos eles ligados aos mitos de origem do homem e do mundo. Assim, uma fonte, uma pedra, um animal, Deus e etc. são alguns dos Nomes‐do‐Pai. Jacques Lacan, a partir da abordagem freudiana dos complexos de Édipo e de castração, elabora uma teoria das três modalidades de falta do objeto: frustra‐
ção, castração, e privação. Essas três modalidades de falta do objeto se articulam com os três registros da estrutura: Real, Simbólico e Imaginário. O pai simbólico é introduzido pelo desejo da mãe como portadora da lei, a qual inaugura o desejo (Frustração). O pai real é aquele apreendido imaginariamente como pai proibidor da mãe e, como tal, é o pai terrível (Castração). O pai imaginário é aquele portador do dom (Privação). O pai simbólico, como agente da frustração, comparece de forma implícita no desejo da mãe, o qual tem por função inscrever o recém‐chegado na ordem sim‐
bólica, humanizando‐o. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
Página | 76 Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES O pai real, como agente na Castração, tem como função interditar a mãe pa‐
ra o filho. Justamente por isto, ele é apreendido, ao nível imaginário, como onipo‐
tente. Essa interdição só se torna eficaz se for ratificada pela palavra da mãe. Esse pai real pode ser encarnado por uma série de personagens. O pai imaginário, como agente da privação, é aquele que com suas insígnias viris se coloca no lugar de doador. O pai de nossa personagem nos é apresentado como um homem degradado pelo vício e, portanto, incapaz de sustentar a família. Estamos diante de um pai ima‐
ginário destituído de insígnias viris. Maria da Piedade escolhe para marido aquele que mais se identifica com seu pai. Só que a degradação do marido não se relaciona com o vício, mas com a saúde precária. Bêbado e doente são os homens que fazem parte da vida de Maria da Piedade. 2.
EIS QUE CHEGA ADRIÃO... Com a chegada de Adrião, primo de João Coutinho, Maria da Piedade sente, pela primeira vez, que alguma coisa acontece, apontando para o amor e para o de‐
sabrochar da sexualidade. A sua fama, que chegara até a vila, num vago de legenda, apresentava‐
o como uma personalidade interessante, um herói de Lisboa, amado das fidalgas, impetuoso e brilhante, destinado a uma alta situação no Estado. Maria da Piedade olhava‐o assombrada: aquele herói, aquele fascina‐
dor por quem choravam mulheres, aquele poeta que os jornais glorifi‐
cavam, era um sujeito extremamente simples, muito menos compli‐
cado, menos espetaculoso que o filho do recebedor! Nem formoso era: e com o seu chapéu desabado sobre uma face cheia e barbuda, a quinzena de flanela caindo à larga num corpo robusto e pequeno, os seus sapatos enormes, parecia‐lhe a ela um dos caçado‐
res de aldeia que às vezes encontrava, quando de mês a mês ia visitar as fazendas do outro lado do rio. Além disso não fazia frases; e a pri‐
meira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a única terra que não estava devorada, ou abominavelmente hipotecada, era a Curgossa, uma fazenda ao pé da vila, que andava além disso mal arrendada... O que ele desejava era vendê‐la. (QUEIRÓS). Adrião jamais poderia supor que iria encontrar na casa do primo inválido, uma mulher bela e radiosa, que não havia sido deformada pelo espartilho, cuja pele não conhecia pó de arroz... Uma mulher aprisionada entre quatro paredes impreg‐
nadas pelo bafo da doença. Uma mulher que apenas estava cumprido o seu dever de esposa. Adrião, diante desse quadro que o surpreende, se interroga: quais apeti‐
tes ou outras ambições poderiam haver naquele coração insatisfeito. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
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Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES No outro dia foram ver a fazenda. Como ficava perto, e era um dia de março fresco e claro, partiram a pé. Ao princípio, Acanhada por aquela companhia de um leão, a pobre senhora caminhava junto dele com o ar de um pássaro assustado: apesar de ele ser tão simples, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre rico da sua voz, nos seus olhos, nos seus olhos pequenos e luzidios alguma coisa de forte, de dominante, que a enleava (QUEIRÓS). Ele então lamentou‐a decerto poderia haver alguma satisfação nem dever tão santamente cumprido... Mas, enfim, ela devia ter momentos em que desejasse alguma outra coisa além daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo de doença... ‐ Que hei‐de eu desejar mais? — disse ela. Adrião calou‐se (QUEIRÓS). Adrião, voltando para onde estava hospedado, a estalagem do tio André, não consegue parar de pensar em Maria da Piedade. Aquela criatura tão triste e tão doce, que se apresentava diante de seus olhos, o tinha capturado: (...) impressionado, interessado aquela criatura tão triste e tão doce. Ela destacava sobre o mundo de mulheres que até ali conhecera, co‐
mo um perfil suave de ano gótico entre fisionomias da mesa redonda. Tudo nela concordava deliciosamente: o ouro do cabelo, a doçura da voz, a modéstia na melancolia, a linha casta, fazendo um ser delicado e tocante, a que mesmo o seu pequenino espírito burguês, certo fundo rústico de aldeã e uma leve vulgaridade de hábitos davam um encanto: era um anjo que vivia há muito tempo numa vilota grosseira e estava por muitos lados preso às trivialidades do sítio: mas bastaria um sopro para o fazer remontar ao céu natural, aos cimos puros da sentimenta‐
lidade... A vinda do primo Adrião, que tanto a tinha assombrado, agora, aos poucos, começa a encantá‐la, como se estivesse sendo germinada uma paixão. Ela e o primo ficam íntimos, em função dos negócios, o que faz com que ela passe a nutrir por ele alguma coisa indefinida. Ela passou a querer que ele estivesse sempre presente, já que ele foi o primeiro homem que fez com que ela se visse como mulher, embora uma mulher muito triste. E de repente, sem que ela resistisse, prendeu‐a nos braços, e beijou‐a sobre os lábios, dum só beijo profundo e interminável. Ela tinha ficado contra o seu peito, branca, como morta: e duas lágrimas corriam‐lhe ao comprido da face. Era assim tão dolorosa e fraca, que ele soltou‐a; ela ergueu‐se, apanhou o guarda‐solinho e ficou diante dele, com o be‐
icinho a tremer, murmurando ‐ É malfeito... É malfeito... Ele mesmo estava perturbado – que a deixou descer para o caminho: e daí a um momento, seguiam ambos calados para a vila. Foi só na esta‐
lagem que ele pensou: VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
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Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES ‐ Fui um tolo. Mas no fundo estava contente da sua generosidade. À noite foi a casa dela... (QUEIRÓS). Adrião vai jantar na casa do primo e vê Maria da Piedade com o pequerrucho no colo, lavando‐lhe em água de malva as feridas que ele tinha na perna. E então, pareceu‐lhe odioso distrair aquela mulher dos seus doentes. “Achava absurdo e in‐
fame fazer a corte à prima”. Adrião resolve ir embora, abandonando Maria da Pie‐
dade. Assim que ele se despede, Maria da Piedade, pálida, sem esboçar qualquer reação, se dirige para a janela, e fica olhando abstratamente a paisagem que escu‐
recia. Entre lágrimas, é claro. Somente então nossa personagem começa a perceber que sua existência é só infortúnio. Passando a se refugiar naquele amor frustrado, lê os romances que Adrião escrevera e se identifica com as personagens femininas. Amava – Desde os primeiros dias, a sua figura resoluta e forte, os seus luzidios, toda a virilidade da sua pessoa, se lhe tinham apossado na imaginação.. Lentamente, essa necessidade de encher a imaginação desses lances de amor, de dramas infelizes, apoderou‐se dela. Foi durante meses um devorar constante de romances. Ia‐se assim criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado( QUEIRÓS). Maria da Piedade, “Chorando as dores das heroínas de romance, parecia sen‐
tir alívio às suas”. Refugiou‐se no universo das páginas de ficção: “A realidade tor‐
nava‐se‐‐lhe odiosa, sobretudo sob aquele aspecto da sua casa onde se encontrava sempre agarrado às saias um ser enfermo...” Aos poucos “vieram as primeiras re‐
voltas”... VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
Página | 79 Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRUNO, Mario. Lacan e Deleuze: o trágico em duas faces do além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2004. CAL, Ernesto Guerra da, Lengua y Estilo de Eça de Queiroz. Coimbra, 1975. Tomo l. FERREIRA, Nadiá Paulo. Sob o véu da Castração ‐ Questão do Pai na Modernidade e na Contemporaneidade. In: O que é Um pai? David, Sérgio Nazar (org.). Rio de Janei‐
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lógicas completas de Sigmund Freud.Rio de janeiro: Imago, 2000. ______. Os Instintos e suas Vicissitudes. In: Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de janeiro: Imago, 2000. JORGE, Marco Antonio Coutinho. Freud – Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, volume 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. p.142, 148. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
Página | 80 Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES ______. Freud – O criador da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. p.40. LACAN, Jacques. Seminário I, Os escritos técnicos de Freud, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1979. p.165. ______. O Seminário 2. O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise; traduto‐
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Iracy Conceição de Souza MOINHO DE FRUSTRAÇÕES RESUME: Ce travail réalise l'interprétation de l'histoire d'Eça de Queirós, dans O Moinho (1880), en visant à aborder relation il entre sujet et désir. Le champ théorique qui guide notre lecture est à psychanalyse, dans la source de son créateur et du projet de retour à l'oeuvre freudiana entreprise par Jacques Lacan. Dans l'histoire, nous aurons une histoire d'amour, qui place dans scène le drame crucial de l'homme, divisé entre le désir et le devoir. Le choix pour le devoir, en impliquant la résignation du désir, fait avec qu'à personnage masculin il soit massacré par l'imposition morale de la superego et par la peur de la femme, lequel, comme représentatifs du D'autre sexe, restent des énigmes sans déchiffrement. Mots ‐ clé : Désir. Devoir. Dissimulations. Déchiffrement. Recebido em 16 de junho de 2009; aprovado em 20 de julho de 2009. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [65–81]
O GÓTICO LITERÁRIO SETECENTISTA: HISTÓRIA, RECEPÇÃO E A ARTE DA ESCRITA Camila Mello∗ RESUMO: Neste texto, busco apresentar uma coletânea de dados sobre a recepção dos primeiros e mais influentes romances góticos ingleses do século XVIII, e apresentar também algumas concepções interessantes que os autores de tais obras teceram sobre a arte de escrever. Para tal, começamos com o contexto histórico da Inglaterra no século XVIII, passamos para o nascimento da literatura realista e da literatura gótica, e terminamos com concepções dos autores góticos setecentistas sobre sua arte. Palavras‐chave: Inglaterra setecentista, recepção, romance realista, romance gótico. INTRODUÇÃO Muito sabe‐se sobre a situação da literatura na Inglaterra no século XVIII. Que os preceitos do Iluminismo e o advento da Revolução Industrial fomentaram certas mudanças na arte da escrita não é novidade. Que tais mudanças correspondiam aos anseios da emergente classe média também não nos espanta. Que os consagrados autores ingleses de tal cenário histórico indicaram em diversos prefácios o tom realista e prescritivo de suas obras não é informação nova. Em plena efervescência do espírito racionalista, o gênero gótico nasceu como uma resposta às limitações que tal ideologia prefigurava. Assim como seus contemporâneos realistas, os escritores de literatura gótica também pensavam sobre a escrita, também refletiam sobre o seu tempo, e também lidavam com a crítica e com seus demais leitores. O objetivo deste trabalho, portanto, é o de apresentar uma coletânea de dados sobre a recepção dos primeiros e mais influentes romances góticos ingleses do século XVIII, e apresentar também algumas concepções interessantes que os autores de tais obras teceram sobre a arte de escrever. Para tal, este trabalho está dividido nas seguintes partes: contexto histórico da Inglaterra no século XVIII, o nascimento da literatura realista e da literatura gótica, e concepções dos autores góticos setecentistas sobre sua arte. Ao final, uma pequena conclusão será ∗
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em literaturas de língua inglesa, doutoranda em literatura comparada. Professora e tradutora. [email protected]. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [82–91]
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Camila Mello O GÓTICO LITERÁRIO SETECENTISTA: HISTÓRIA, RECEPÇÃO E A ARTE DA ESCRITA. oferecida, na qual pretendo tecer alguns comentários fundados em minhas leituras sobre o conteúdo em questão. 1. E EIS QUE MUDANÇAS ACONTECEM: CONTEXTO HISTÓRICO DA INGLATERRA NO SÉCULO XVIII. A maior marinha do mundo. Uma das melhores condições de vida da Europa. Mobilidade social. Revolução Industrial. Império sólido. Comércio interno e externo prósperos. Expectativa de vida crescente. Mudanças em questões humanitárias. Não foi por acaso que os 8.8 milhões de ingleses do final do século XVIII se mostravam tão orgulhosos em relação a seu país já em meados de 1759 (McDowall, 2000: 109). Pela primeira vez na história da Inglaterra, foi no século XVIII que o Parlamento – composto por ministros que representavam uma parte ínfima da população – deteve o real poder de decisão no país. Não foi a primeira vez, no entanto, que Inglaterra e França entraram em uma disputa armada. Em 1756, oito anos após o fim do último conflito, os dois países brigaram mais uma vez por postos comerciais. Surpreendentemente, foi a atitude pacífica do rei George III – que assumiu o trono em 1760 – que realmente beneficiou os lucros mercantis da Inglaterra: George III se colocou contra o desperdício de lutar uma guerra e fez as pazes com a França, focando todos os seus esforços no alargamento do lucro inglês. Em território nacional, a receita da Revolução Industrial estava à mão: bastou juntar capital, força de trabalho, demanda por novos produtos, reformulações políticas e facilidade de transporte para que as antigas indústrias rurais se transformassem em poderosas fábricas onde o braço humano foi substituído pelos fios das máquinas. Efeitos sociais? Sim, vários. Desemprego, insatisfação, miséria, poluição, e a organização de trabalhadores abandonados em pequenas associações. Mais tarde, rebeliões armadas e, com elas, o medo se instalou no Parlamento: será que a população inglesa iria se revoltar como fizeram na França? Havia quatro principais grupos nas cidades da Inglaterra setecentista: os mercadores poderosos, os mercadores não tão bem‐sucedidos, os artesãos, e um número enorme de pessoas que não tinham habilidades específicas e que vagavam pelas ruas realizando trabalhos menores. Em 1700, a Inglaterra ainda era um país de pequenas vilas. Tais vilas já eram cidades formadas no fim do século – o que foi uma mudança extremamente rápida para os padrões da época. Todas as cidades tinham mau cheiro. Todas funcionavam como verdadeiros centros disseminadores de doenças. Nenhuma tinha sistema sanitário ou ruas pavimentadas ou iluminação adequada. Foi apenas na segunda metade do século XVIII que Londres recebeu seu primeiro sistema de iluminação. Depois de 1760, algumas cidades pediram ao VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [82–91]
Página | 84 Camila Mello O GÓTICO LITERÁRIO SETECENTISTA: HISTÓRIA, RECEPÇÃO E A ARTE DA ESCRITA. Parlamento que viabilizasse a cobrança de taxas populares para que ruas fossem pavimentadas. A classe média tornou‐se força influente na política, na economia e na cultura. Ela não só ocupava lugares no Parlamento e contribuía para o crescimento da nação, como também foi a maior representante e difusora dos ideais Iluministas. Um exemplo interessante é fornecido por David McDowall em An Illustrated History of Britain: diz‐se que foi no século XVIII que, pela primeira vez, as noções de afeto e carinho contaminaram a vida cotidiana das famílias inglesas de classe média. Esse fenômeno estaria ligado a concepção de que todo ser vivo é um corpo individual e que, portanto, merece certos cuidados (McDowall, 2000: 119‐20). Ora, essa idéia não alimentou apenas uma nova dinâmica familiar mas também uma nova percepção da classe média em relação a si própria. O individualismo gerou o desejo pelo privado, e isso mudou várias características da sociedade inglesa setecentista: toda a força de trabalho, a dinâmica das cidades e os acontecimentos culturais visavam celebrar o homem e suas qualidades. Vale ressaltar que para as classes mais pobres o individualismo não era uma realidade. Na verdade, a distância entre as classes mais prósperas e as mais miseráveis era exorbitante em vários outros aspectos. Um movimento religioso inédito, o Metodismo, apareceu no século XVIII oferecendo esperança e afeto para o novo proletariado – tanto ao indivíduo que trabalhava agora ao lado de máquinas, quanto ao que perdeu seu ofício por causa delas. Mesmo aqueles que não podiam votar por não atingirem o patamar econômico necessário, aqueles que administravam comércios menores, e até aqueles que se encontravam em condições piores, mesmo esses se interessavam pela vida política de seu país. Entre 1750 e 1770, a publicação de jornais aumentou consideravelmente. A pavimentação de estradas possibilitava a circulação de jornais e livros com uma velocidade nunca antes vista – podia‐se ir de Londres a Liverpool em dois dias. A leitura de jornais nutriu discussões políticas populares. Clubes de conversa se reuniam em diversas cidades para discutir questões nacionais. O Parlamento passou a permitir que repórteres presenciassem sessões e divulgassem imediatamente os assuntos abordados. A Inglaterra do século XVIII viu o surgimento da opinião pública. 2. NOVOS PARADIGMAS, NOVA LITERATURA: O NASCIMENTO DA LITERATURA DITA REALISTA E DA LITERATURA GÓTICA. O momento histórico que esbocei acima de forma resumida apresentou os ingredientes que ajudaram a expansão da publicação e da leitura de romances na Inglaterra setecentista: as inovações industriais impulsionaram a impressão de livros e o crescimento das cidades significou mais leitores, mais espaços para a leitura, e mais possibilidades de aquisição de livros. Mas além disso, não foi apenas a questão mercantilista dos livros que sofreu mudanças: a concepção de literatura e o fazer VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [82–91]
Página | 85 Camila Mello O GÓTICO LITERÁRIO SETECENTISTA: HISTÓRIA, RECEPÇÃO E A ARTE DA ESCRITA. literário também foram abalados. Vejamos, em termos gerais, de que forma as páginas dos romances ingleses do século XVIII refletiram um contexto em plena mutação. As manifestações literárias inglesas setecentistas que me interessam aqui são os romances ditos realistas e os romances góticos. Gostaria de discutir apenas um autor de cada gênero e uma obra de cada autor, por uma questão de objetividade do presente trabalho. Acredito que Tom Jones (1749) de Henry Fielding e The Mysteries of Udolpho (1794) de Ann Radcliffe sejam obras bastante representativas, e portanto me apoiarei nelas. Na Introdução de seu Tom Jones, Fielding afirma que um autor deve considerar‐se um homem público, e não alguém que escreve para apenas um indivíduo, ou para uma quantidade muito reduzida de leitores. Fala também sobre a matéria de sua obra: a vida comum, o homem comum, a linguagem comum. Já prevendo que tal escolha poderia provocar críticas, Fielding afirma que é a forma como o escritor trata assuntos triviais que dá ou não boa reputação à obra. Em suas palavras, mesmo que o leitor tenha restrições sobre a ficção que aborda eventos tão triviais, ele ou ela ficará muito feliz ao ler sobre os “princípios mais elevados da nossa nação” (Fielding, [1749] 2000)∗. O que me parece interessante no conteúdo que pontuei na Introdução de Tom Jones é que Fielding cria novas definições e oferece novos padrões literários: ele não só redefine o que um autor deve ser, como também explica e justifica sobre quais temas ele deve escrever. No livro IX, capítulo V, o autor define um herói da seguinte forma: “Os heróis, apesar da concepção elevada que possam ter de si, ou que o mundo lhes atribui, certamente tem mais do mortal que do divino em si” (Fielding, 2000). Considero esse pequeno fragmento muito interessante, pois ele corresponde perfeitamente à ideia da escrita do e sobre o homem comum, mencionada na introdução do romance. E Fielding repete esse tipo de comentário em outros momentos do livro, como se quisesse sussurrar no ouvido do leitor Percebam, estou escrevendo sobre o homem comum, não há nada de extraordinário, infundado ou místico aqui. Já no livro XVIII, capítulo X, no meio de uma conversa, o personagem Allworthy diz a Jones: [...] mas a vilania, meu garoto, quando descoberta é irreparável; as marcas que tal ato deixa, tempo algum apaga. Os censores da humanidade perseguirão o desgraçado, seu julgamento o abaterá em público; e se a vergonha o exilar, ele irá para o refúgio com todos os terrores de uma criança medrosa que, apavorada por monstros, se despede de todos e vai dormir. Então, sua consciência suja o atormentará (Fielding, 2000). ∗
Todas as obras aqui citadas foram traduzidas por mim VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [82–91]
Página | 86 Camila Mello O GÓTICO LITERÁRIO SETECENTISTA: HISTÓRIA, RECEPÇÃO E A ARTE DA ESCRITA. Nessa passagem, podemos ver concretamente como a ideologia de uma era marca presença nas páginas de um romance: o tema da conversa entre os dois personagens – de fato, o tema de inúmeros diálogos em Tom Jones – é a discussão sobre a moral, os bons costumes, os bons exemplos a serem seguidos. É devido a essa característica que Tom Jones é também designado como um romance prescritivo. Em outras palavras, a ideia de retratar o indivíduo e de exaltar a vida comum – mas sem esquecer que é o padrão da classe média que interessava difundir – está presente em diversos diálogos moralistas, como o do fragmento acima. Na Introdução de The Mysteries of Udolpho, Terry Castle esboça uma justificativa para o sucesso da obra: “Uma dica pode estar na palavra chave do título: mistérios. [Radcliffe] desejava despertar nos leitores uma sensibilidade para o sobrenatural – para forças invisíveis agindo no mundo” (Radcliffe, 1998: xxi). Sabemos que alguns preceitos Iluministas resultaram na racionalização de sentimentos e na substituição de um imaginário fantástico por outro mais realista e ligado ao cotidiano do homem comum. O autor da Introdução de Udolpho aponta exatamente para a inovação de uma escritora como Radcliffe. Contra a corrente do racionalismo, impulsionada por Fielding e outros realistas, os autores góticos setecentistas exaltavam o inexplicável, o sensório, o sublime. Como um exemplo do último, é dessa forma que é retratada a reação da protagonista Emily perante os Alpes: “Mesmo sendo selvagens e românticos, esses cenários tinham muito menos do sublime em si que os Alpes que guardam a entrada da Itália. Emily sentia‐se elevada, mas não foi tomada por aquela emoção de admiração indescritível que vivenciou continuamente em sua passagem pelos Alpes” (Radcliffe, [1794] 1998: 226). Eis aí uma pequena prova de que o questionamento dos preceitos do Iluminismo contaminou a obra de Radcliffe: a autora não camuflou as volúpias emocionais da frágil personagem perante magníficas montanhas – e essa mesma estratégia está presente em diversos outros romances góticos setecentistas. É o que acontece novamente quando Emily vê o castelo de Montoni: “Silencioso, solitário e sublime, parecia o soberano daquele lugar, e desafiava todos aqueles que ousavam invadir seu reino. Quanto mais a luz do entardecer se aprofundava, suas paredes ficavam mais terríveis, e Emily continuava a olhar” (Radcliffe, 1998: 227). Mais uma vez, percebemos que a autora abre diversas brechas em sua narrativa para a descrição de sentimentos e reações exaltadas, mesmo que tais descrições não possam ser racionalmente justificadas. 3. O QUE ELES TINHAM A DIZER: CONCEPÇÕES DOS AUTORES GÓTICOS SETECENTISTAS SOBRE SUA ARTE. Passemos agora a focar os romances e contos góticos mais influentes da Inglaterra setecentista, que também são objeto de estudo de minha tese de VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [82–91]
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Camila Mello O GÓTICO LITERÁRIO SETECENTISTA: HISTÓRIA, RECEPÇÃO E A ARTE DA ESCRITA. doutorado, em andamento. Essas obras são: The Mysteries of Udolpho (1794) de Ann Radcliffe, The Castle of Otranto (1765) de Horace Walpole, Vathek (1787) de William Beckford, e The Monk (1796) de Matthew Lewis. Em primeiro lugar, para termos uma ideia da circulação de textos góticos no século XVIII na Inglaterra, “Os contos ou fragmentos góticos começaram a aparecer em revistas logo após a publicação de The Castle of Otranto de Horace Walpole em 1764, e ficaram muito comuns após 1790, quando a loucura pelo gótico literário atingiu seu auge na Grã‐Bretanha” (Polidori, 1997: xvi). A efervescência da publicação de livros aumentou o trabalho dos críticos da época. Sabemos que a ideia do ofício de um crítico literário sofreu transformações ao longo dos tempos. No século XVIII, podemos perceber que os autores já consideravam o julgamento dos críticos e até dialogavam com eles em seus prefácios e introduções: A escolha de Lewis de incluir uma paródia na edição revisada de The Monk sugere sua consciência sobre a posição inconsistente de muitos de seus detratores que, assim como Coleridge, admiravam sua poesia e ao mesmo tempo insistiam que o romance todo deveria ser resultado das perversões de seu autor (Wilson, 1997). [...] então sinto‐me bastante interessado em vossa decisão sobre os méritos deste trabalho. [...] Prossigam, incríveis e generosos árbitros do gosto nacional, em suas carreiras gloriosas e esplêndidas, direcionem sua raiva sob aqueles que degradam a literatura com suas discussões e vãs filosofias (Beckford, 1993: 157/9). A questão da autoria, percebe‐se, também aparece como tema ainda em discussão. Ao abrirmos um romance gótico do século XVIII, é quase certo que iremos encontrar uma quantidade elevada de citações e epígrafes. Isso é um fenômeno que não cabe analisar aqui, mas seria muito interessante lidar especificamente com a intertextualidade nessas obras. O que cabe trazer à tona agora é que a paródia e o pastiche acabaram levantando uma discussão entre autores góticos e críticos sobre a autoria. O cuidado com tal tema é ressaltado nessa análise sobre uma coletânea organizada por Lewis: A autoria na editoração de Tales of Wonder, uma coletânea de baladas, expõe sua relação com a ideologia do gênio Romântico. O cuidado com o qual atribui cada poema da obra sugere sua percepção aguçada da importância crescente da originalidade e, portanto, do ato de nomear como meio para assegurar a posse autoral dos textos literários em circulação (Wilson, 1997). E essas discussões não ocorreram apenas em torno da autoria dos fragmentos, mas também em torno da conduta dos autores. É muito interessante VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [82–91]
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Camila Mello O GÓTICO LITERÁRIO SETECENTISTA: HISTÓRIA, RECEPÇÃO E A ARTE DA ESCRITA. observar que Matthew Lewis teve sua vida pessoal confundida com a vida do monge de seu romance, a ponto de ser conhecido como e chamado de “Monk” Lewis: Lewis escreveu nos primórdios do Romantismo, quando as ideias de auto‐expressão na arte e a conexão tênue entre a vida do artista e seu trabalho eram novas e excitantes. Para nós, pode parecer ingênuo que ele tenha ficado satisfeito em ser identificado com sua ficção e seu herói, mas naquela época, tal identificação oferecia uma nova forma de ler e novas maneiras de ver o mundo e o lugar do indivíduo nele, mesmo que fosse um lugar perturbador (Wilson, 1997). Também é interessante observar as características de um gênero ainda prematuro sendo elaboradas nas palavras dos próprios autores góticos da época. A inovação do gótico literário fica evidente, por exemplo, na introdução de The Castle of Otranto. Há o claro embate entre manter as estratégias e estruturas que evocam o imaginário gótico (as imagens sublimes, os momentos de horror, os personagens ambíguos) ou justificá‐las ao leitor, torná‐las mais digeríveis: Qualquer que sejam suas opiniões, ou qualquer que sejam os efeitos causados, esta obra só pode ser apresentada ao público como um meio de entretenimento. Mesmo assim, um pedido de desculpas faz‐se necessário. Milagres, visões, necromancia, sonhos, e outros eventos sobrenaturais foram abolidos dos romances hoje em dia. Não era esse o caso quando o autor escreveu, e muito menos quando a história em si aconteceu. [...] Se esse ar miraculoso for perdoado, o leitor não encontrará nada mais que seja indigno de sua atenção. Permitam a possibilidade dos fatos, e todos os atores se comportarão como pessoas se comportariam nas devidas situações (Walpole, 1996). Ann Radcliffe nos deixou uma coletânea de correspondências que, inicialmente, não foram destinadas ao público mas que passaram por um processo de arrumação e seleção. Um determinado grupo de escritos da autora compõe o On The Supernatural in Poetry, que pode ser caracterizado como um ensaio crítico. Nesse documento, dois personagens, Mr. S. e W., discutem sobre a obra de Shakespeare. Em meio a comentários bastante interessantes, Radcliffe insere algumas ideias sobre a utilização de elementos sobrenaturais em um texto literário: [...] em se tratando de superstição popular, está certo usar noções corriqueiras e vestir suas bruxas como velhas senhoras da cidade na qual devem ter aparecido. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [82–91]
Página | 89 Camila Mello O GÓTICO LITERÁRIO SETECENTISTA: HISTÓRIA, RECEPÇÃO E A ARTE DA ESCRITA. Desde que tais noções nos prepare para a surpresa que o poeta deseja provocar, concordo; mas para esse objetivo, tudo o que for familiar e comum deve ser evitado. Então o que acontece quando cenas violentas de terror nos chocam demasiadamente por aparecerem em momentos de alegria, como, por exemplo, na cena do banquete em Macbeth? Elas chocam, nesse caso, pela força do contraste, mas o efeito, apesar de forte, é raso: é o arrepio do horror que elas comunicam em vez do sentimento solene e profundo induzido por situações mais elaboradas (Radcliffe, 2002). A partir desse fragmento, podemos elucubrar com mais segurança sobre a relação entre uma das maiores autoras do gótico literário e o próprio gênero: a utilização de determinadas estratégias da narrativa gótica correspondia a toda uma reflexão sobre tais estratégias. Assim como as correspondências de William Beckford, organizadas em The Red Copy Book, podem servir como base para sugerirmos que a escrita gótica não era apenas uma questão de estilo literário, mas também uma expressão fiel da maneira como o autor vivia, um resultado do modo como entendia seu mundo: Uma névoa constante ronda meus olhos, e, através dela, vejo objetos tão embaçados e volúveis, que suas cores e formas me enganam. [...] Resolvi usufruir dos meus Sonhos, minhas fantasias e toda minha singularidade, ainda que isso seja pesado e muito inovador para o Mundo ao meu redor (Beckford, 1997). Mesmo tomado por uma disposição fantasiosa, Beckford também foi extremamente cuidadoso ao defender sua obra, assegurando que “não economizou esforços na composição” de Vathek, e que, sabendo que o indivíduo setecentista “moderado, honrável e iluminado, julgaria” o uso de sentimentos escandalosos como algo “execrável”, seu “principal cuidado foi o de manter a obra livre de tais elementos” (Beckford, 1993: 157‐8). Isso que forma um paradoxo com a citação anterior. A meu ver, uma explicação plausível para tal paradoxo é que, a fim de viabilizar a publicação, compra e circulação de uma obra, o seu autor ou autora utilizavam artifício diversos, e um deles poderia ser a falsa concordância com os padrões estilísticos e conceituais da época. CONCLUSÃO O cenário literário da Inglaterra setecentista foi extremamente movimentado e inovador. Inúmeros conceitos e hábitos literários já consolidados hoje ainda eram bastante incipientes naquela época. Além disso, fica evidente que cada autor lidou com tais mudanças de forma particular. Mesmo assim, podemos perceber que, em sua grande maioria, todos apresentavam uma consciência madura VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [82–91]
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Camila Mello O GÓTICO LITERÁRIO SETECENTISTA: HISTÓRIA, RECEPÇÃO E A ARTE DA ESCRITA. sobre a faceta mercantilista da literatura: inúmeros autores parecem explicar o teor de suas obras como uma espécie de “jogada de marketing”. Mas os prefácios, introduções e correspondências que serviram a esse objetivo acabaram se tornando espaço para a discussão de inúmeros conceitos inéditos. Em relação a literatura gótica, especificamente, é bem interessante perceber que os autores setecentistas já pareciam ter a percepção de que suas obras divergiam do sistema vigente, isto é, que sua escrita não estava seguindo os preceitos racionalistas que as outras obras exaltavam. Os relatos em prefácios também mostram que a forma como os autores escolheram escrever era uma opção feita de acordo com objetivos específicos: contar uma estória usando estratégias narrativas que evocavam o fantástico, por exemplo, era uma escolha norteada pela função que a escrita tinha para cada autor. Duas últimas observações me parecem ser pertinentes aqui: a primeira é que não podemos esquecer que os autores setecentistas também eram os leitores setecentistas. É fácil encontrar em páginas da internet alguns depoimentos de Coleridge, por exemplo, sobre Udolpho e The Monk. Lewis assume a enorme influência que Radcliffe e Walpole tiveram em sua obra. A habilidade fenomenal de Lewis em lidar com fragmentos poéticos influenciou inúmeros autores (dentre eles, Walter Scott) e inaugurou uma nova maneira de ler e entender a poesia. Considero essa interligação importante, pois ela é retrato da efervescência cultural e intelectual da época, e acredito que é a partir do diálogo entre autores e obras que os gêneros literários se solidificam e, mais tarde, se modificam. Outro fato que chama a atenção: todas as obras góticas do século XVIII fascinaram e também repeliram seus leitores. Uma ótima recepção da obra combinada com uma enxurrada de críticas negativas e protestos explícitos por parte dos leitores era fenômeno recorrente e usual. Todas as obras góticas que citei neste trabalho tiveram imenso impacto e foram lidas por um vasto público (dentro dos limites da época), mas também foram alvo de inúmeros ensaios que atacavam, em geral, a falta de realismo e de verossimilhança na narrativa. De qualquer forma, amados ou detestados, os romances góticos da Inglaterra setecentista contribuíram, e muito, para a formação de uma nova era literária no mundo ocidental. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECKFORD, William. Vathek and Other Stories. London: Penguin, 1993. ______. Red Copy Book. Beckford.c18.net, 1997. Disponível em: <http://beckford.c18.net/wbrcbindex.html>. Acesso em: 06 jan. 2008. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [82–91]
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Camila Mello O GÓTICO LITERÁRIO SETECENTISTA: HISTÓRIA, RECEPÇÃO E A ARTE DA ESCRITA. FIELDING, Henry. The History of Tom Jones, a Foundling. Vols. I & II. Harvard Classics Shelf of Fiction. New York: P.F. Collier & Son, 1917; Bartleby.com, 2000. Disponível em <www.bartleby.com/301/>. Acesso em: 05 jan. 2008. LEWIS, Matthew. The Monk: A Romance. London: Penguin, 1998. MCDOWALL, David. An Illustrated History of Britain. Essex: Longman, 2000. POLIDORI, John. The Vampyre and Other Tales of the Macabre. New York: Oxford University Press, 1997. RADCLIFFE, Ann. The Mysteries of Udolpho. New York: Oxford University Press, 1998. ______. On The Supernatural in Poetry. The New Monthly Magazine and Literary Journal, vol 16, no. 1, 1826, 145‐152. Litgothic.com, 2002. Disponível em: < http://www.litgothic.com/Texts/radcliffe_sup.pdf>. Acesso em 09 fev. 2008. WALPOLE, Horace. The Castle of Otranto. Gutenberg.org, 1996. Disponível em: < http://www.gutenberg.org/etext/696>. Acesso em: 09 fev. 2008. WILSON, Lisa M. “Monk' Lewis as Literary Lion”. Ron.umontreal.ca, 1997. Disponível em: <http://users.ox.ac.uk/~scat0385/literary.html>. Acesso em: 03 jan. 2008. EIGHTEENTH‐CENTURY GOTHIC: HISTORY, RECEPTION AND THE ART OF WRITING. ABSTRACT: In this article, I try to present a collection of information about the reception of the first and most influential eighteenth‐century Gothic novels, as well as some interesting ideas that the authors of such works have formed about the art of writing. In order to do so, we begin with the historical context of eighteenth‐
century England, then we move to the rise of the English realistic and Gothic novels, and finish with what Gothic authors had to say about their art. Keywords: Eighteenth‐century England, reception, realistic novel, Gothic novel. Recebido em 13 de junho de 2009; aprovado em 30 de junho de 2009. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [82–91]
O MITO, O IMAGINÁRIO E O ABSURDO NA OBRA DE ALBERT CAMUS Maria Clara Dunck Santos1 RESUMO: O presente artigo apresenta as conclusões de um estudo que teve como objetivo identificar os mitos, os símbolos e a filosofia que permeia a obra do escritor argelino de expressão francesa Albert Camus. Buscou‐se também compreender o que é a literatura do absurdo e de que forma o tema da revolta contribuiu para o desenvolvimento desse movimento filosófico‐literário, que tem como precursores o romancista Franz Kafka e os dramaturgos Eugène Ionesco e Samuel Beckett. Palavras‐chave: Camus, existencialismo, mito, imaginário, absurdo. Segundo a mitologia grega, Sísifo, filho de Éolo, pertencente à raça de Deucalião, foi condenado pelos deuses a rolar uma pedra até o alto de uma montanha, sem cessar, de onde voltaria a cair, arrastada pelo próprio peso, infinitas vezes (GRIMAL, 1998, p. 60). Para Albert Camus (1913‐1960), escritor argelino de expressão francesa, este trabalho inútil e sem esperança é símbolo do destino do homem absurdo: aquele que tem consciência da própria solidão e, não acreditando em nada que o transcenda, aposta apenas na vivência em um mundo perecível em que busca um significado para o ato de estar vivo. E o que sente e pensa esse homem? Uma possível resposta que poderia traçar o perfil desse homem é oferecida pela moderna filosofia existencialista, inicialmente proposta por Sören Kierkegaard (1813‐1855), importante filósofo dinamarquês, mas amplamente aprofundada por Jean‐Paul Sartre (1905‐1980), filósofo francês engajado nas causas políticas e que, assim como Camus, apostou na literatura para contextualizar suas ideias. Para Sartre, tudo parte da questão de que a existência do homem precede a essência e, através da liberdade, ele possui a capacidade de produzir a si mesmo, construindo seu próprio destino. Em O existencialismo é um humanismo, Sartre afirma que “[o] homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo” (1978, p. 6). Ele declara que, ao contrário de um objeto que é pensado pelo homem a partir de uma utilização definida antes de sua criação, o ser humano que não admite a existência de um ser superior que o tenha criado, primeiro se percebe homem e depois busca conceituar‐se. Portanto, a existência precede a essência. 1
Graduanda em Letras da Universidade Federal de Goiás, Goiânia. E‐mail: [email protected] VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [92–102]
Maria Clara Dunck Santos O MITO, O IMAGINÁRIO E O ABSURDO NA OBRA DE ALBERT CAMUS Mas, para o existencialismo, mesmo sendo dotado de liberdade, o homem não goza de uma satisfação de espírito. Há certo incômodo no que diz respeito às escolhas por ele realizadas, em virtude da carga de responsabilidade de suas ações, de suas dúvidas e das possíveis consequências que lhe são impostas. Em síntese, a liberdade que possui gera nesse homem uma profunda angústia existencial. Firmada como uma diferente ideia de humanismo, essa ética existencialista tornou‐se a teoria sociofilosófica das literaturas do primeiro e do segundo pós‐
guerra, teoria essa desenvolvida por autores renomados como o romancista Franz Kafka (1883‐1924) e os dramaturgos Samuel Beckett (1906‐1969) e Eugène Ionesco (1909‐1994). A indisposição, característica de povos assolados pela guerra, foi estudada e tida como justificativa genuína do pessimismo e da desesperança que essa literatura revela. Em plena Segunda Guerra Mundial, Camus escreveu, por exemplo, o romance O estrangeiro e o ensaio O mito de Sísifo, ambos de 1942, no auge da ocupação nazista em terras francesas, e a peça O Equívoco, de 1943. Segundo Rolland Barthes, O estrangeiro é o primeiro romance clássico do que chamou de literatura do pós‐guerra. As principais características da chamada literatura do absurdo aparecem envoltas num individualismo exagerado em que a ideia de livre‐arbítrio exemplifica a ideia da vida como uma série de escolhas. As decisões que o homem pode ou não tomar, são recheadas de consequências negativas e, simplesmente, há coisas absurdas (algo que acontece e não deveria acontecer) e irracionais (sem explicação), e ele, ao assumir sua carga de responsabilidade, deve seguir sua inclinação até o fim. Se na tradição racionalista o homem era colocado no centro de uma ordem social equilibrada, na literatura do absurdo o homem é tido como um indivíduo solitário, destituído de qualquer moral, já que não mais existe uma ordem eficaz na qual ele possa se inserir, e a angústia de não saber como proceder nem para onde ir o assola sempre. Portanto, as personagens da literatura do absurdo enfrentam um mundo no qual nada tem valor ou sentido, o que as leva a situações incompreensíveis em que não se acha saída. Para explicitar sua filosofia, Camus utiliza‐se da arte, criando personagens a partir das observações que faz do homem real. Ele trabalha mediante a crença de que somente partindo do particular para o universal, sem a pretensão de criar teorias e verdades absolutas, o filósofo pode se fazer entender: “[a] ficção aparece como o suporte concreto do pensamento abstrato” (BARRETO, 1997, p. 144). A história de Sísifo, conforme é relatada na tradição grega, é uma narrativa mítica que apresenta características próprias desse tipo de texto. Camus utilizou o simbolismo nela contido para produzir outro tipo de discurso – o filosófico. Uma diferença essencial separa os dois tipos de relato: o relato mítico é assertivo e dogmático; o filosófico caracteriza‐se pela indagação e pela dúvida. Por seu turno, VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [92–102]
Página | 93 Maria Clara Dunck Santos O MITO, O IMAGINÁRIO E O ABSURDO NA OBRA DE ALBERT CAMUS as narrativas ficcionais de Camus têm características da literatura do absurdo, com suporte numa visão filosófica e não mítica da existência. O estudo integrado da mitologia, da simbologia, do imaginário, da filosofia e da literatura do absurdo serve de suporte para análise da obra de Camus. O mito de Sísifo permeia o desenvolvimento deste estudo e com base em teóricos cujas ideias são pertinentes ao assunto aqui abordado. Cabe ainda destacar que as percepções pessoais formam mais uma fonte de pesquisa e estudo a respeito de um dos mais importantes autores de nosso tempo, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1957 e humanista que defendeu o direito à vida, o que até a suposta salvação esquerdista não fez nos tempos dos regimes totalitários. Camus foi o único intelectual que advertiu o mundo a respeito da bomba atômica dois dias antes do ataque de Hiroshima. Ele lutou contra o suicídio e o homicídio, contra a indiferença do mundo e contra seu próprio desespero, sua angústia e sua vontade de viver intensamente a vida. Trabalhar um dos autores mais importantes do século XX faz com que o arsenal de possibilidades de pesquisa seja vasto. Muitos já se debruçaram sobre a obra de Camus, mas ele ainda é uma personalidade pouco conhecida, se comparado a outros autores de sua época, sobretudo os chamados existencialistas. Camus não se situa no cânone literário, e isso se deve, principalmente, pela publicação do ensaio O homem revoltado, em 1951, em que critica os regimes totalitários, atribuindo a eles uma carga de culpa pela violência de sua época, o que lhe rendeu muitos problemas, entre eles, o fim de sua amizade com Sartre e as contínuas críticas pejorativas do ex‐amigo a seu trabalho. Some‐se a isso o fato de muitas críticas, análises e outros trabalhos acadêmicos realizados sobre esse grande autor de nosso tempo não terem sido publicados. Chama a atenção, quando se pesquisa a respeito de Camus, o fato de se encontrar trabalhos desenvolvidos apenas sob a ótica filosófica, e não literária. Não se pode descartar esse importante viés de estudo, pois “[p]ara Camus a ficção foi o meio utilizado para expressar a relação absurda encontrada entre o homem e os mecanismos sociais” (BARETTO, 1997, p. 143). Camus chegou a escrever “[...] que se alguém desejasse ser filósofo deveria escrever romances [...]” pois eles são “[...] escritos para demonstrar alguma coisa, nem que seja o absurdo da existência humana [...]” (BARRETO, 1997, p. 144). I. O MITO No que concernem os mitos presentes na obra de Camus, cabe esclarecer a nova roupagem que assumem, já que têm relação com o homem moderno e não mais com sociedades primitivas ou arcaicas. Destaca‐se na sua obra o mito do “Deus está morto” num enfoque antropológico e não teológico. Segundo esse ponto de VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [92–102]
Página | 94 Maria Clara Dunck Santos O MITO, O IMAGINÁRIO E O ABSURDO NA OBRA DE ALBERT CAMUS vista, o homem não possui mais uma consciência religiosa com bases morais, psicológicas e emocionais, tampouco vive em busca de uma transcendência. Raphael Patai (1972, p. 149) relata que o mito do “Deus está morto” se manifestou inicialmente na Grécia Antiga, com a morte do deus Pã, que “[p]sicologicamente, [...] tinha por efeito reforçar a proximidade, a estreita relação entre deus e o homem”. O fato de essa concepção ter origem na Antiguidade e perpassar alguns mitos de religiões antigas de um Oriente próximo, atesta que, ao contrário do que muito se pensa, não foi o famoso filósofo Friedrich Nietzsche (1844‐1900) que criou o mito do “Deus está morto”, mas quem lhe deu grande relevância: “Contrariamente ao que pensam alguns de seus críticos cristãos, Nietzsche não meditou o projeto de matar Deus. Ele o encontrou morto na alma de seu tempo” (CAMUS, 2005a, p. 89). Em A Gaia Ciência, Nietzsche (2002, p. 154) expõe seu pensamento de forma clara: Deus está morto. Nós o matamos. [...] Como nos consolar, nós, os assassinos dos assassinos? Aquilo que o mundo possuía até agora de mais sagrado e de mais poderoso perdeu seu sangue sob nossos punhais. [...] Quem quer que nasça depois de nós pertencerá, em virtude dessa mesma ação, a uma história superior a tudo o que foi história até agora! O que Nietzsche e outros estudiosos pensam a esse respeito é que, com a ajuda da ciência, da metafísica e das consequências desastrosas das grandes guerras mundiais, além da ideia de um mundo abandonado por Deus, acreditou‐se que o Todo‐Poderoso só poderia estar morto. O filósofo alemão baseou‐se no fato de que o homem o matou, pois foi ele mesmo quem o criou. Há ainda a ideia de alguns teólogos, de que aquele que dissemina essa ideia matou Deus dentro de si mesmo. Tais justificativas, de forma direta ou indireta, contribuíram para a formação de filosofias modernas, como o niilismo e o existencialismo. No que concerne à filosofia desenvolvida por Camus em sua ficção, mesmo que ele não se considere niilista ou existencialista, existem marcas dessa concepção da morte de Deus, principalmente ao negar que existe uma transcendência: “Neste mundo liberado de Deus e das idéias morais, o homem se acha atualmente sozinho e sem senhor” (CAMUS, 2005b, p. 91). Não que Camus pregue uma filosofia ateísta, mas, para ele, crer em Deus dá sentido a algo que ele julga sem sentido – a vida –, pois é assim, absurda, que ela se apresenta: “[o]u não somos livres e o responsável pelo mal é Deus todo‐poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo‐poderoso” (CAMUS, 2005b, p. 68). As personagens de Camus demonstram indiferença acerca dos acontecimentos ocorridos ao seu redor – tanto no que se refere ao sentimento amoroso quanto no que diz respeito à morte de pessoas próximas, ao sofrimento ou ao seu próprio infortúnio –, o que indica uma descrença, uma não preocupação VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [92–102]
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Maria Clara Dunck Santos O MITO, O IMAGINÁRIO E O ABSURDO NA OBRA DE ALBERT CAMUS com a hipótese de que essa vida seja uma espécie de preparação para outra, como prega o cristianismo. Para Camus, ao admitir a existência do absurdo, o homem vive sua vida, tentando combatê‐lo, isso sem a adoção de qualquer espécie de moralidade ou crença, porque, se ele optar por alguma delas, estará sob o jugo de leis e não será mais livre. Em A peste, o médico Rieux não acredita em Deus. E quando questionado pela sua falta de fé, diz [...] que já respondera e que, se acreditasse num Deus todo‐
poderoso, deixaria de curar os homens, deixando a ele esse cuidado. Mas que ninguém no mundo, não, nem mesmo Paneloux, que julgava acreditar, acreditava num Deus desse gênero, já que ninguém se entregava totalmente, e que nisso ao menos ele, Rieux, julgava estar no caminho da verdade, lutando contra a criação tal como ela era. – No momento, há doentes e é preciso curá‐los. (CAMUS, 1947, p.112). Em O estrangeiro, já preso e condenado pelo crime de assassinato, Mersault enfim recebe a visita de um capelão após o ter recusado três vezes. Ao ser questionado por isso, diz com toda a sua indiferença: “Respondi que não acreditava em Deus. Quis saber se tinha certeza disso e eu respondi que não valia a pena fazer‐
me tal pergunta: parecia‐me sem importância” (CAMUS, 1995b, p. 116). Feita a leitura da obra de Camus, e do que escrevem autores a ele contemporâneos como Nietzsche, Sartre e Kafka, é perceptível que a atmosfera de seus escritos é perpassada pelo mito do “Deus está morto”. II. O IMAGINÁRIO O imaginário, segundo Sartre (1978), aparece na literatura em razão do domínio que o homem tem de criar imagens e de sua liberdade absoluta de criação. Para ele, a liberdade pura da consciência é invadida e povoada pelo objeto material, mas no exercício da imaginação permanece aquilo que é totalmente livre. Portanto, Sartre defende a ideia de que o ofício último da arte consiste em dar aos homens a raiz da liberdade criadora, como escreve em O imaginário. Estudar o imaginário e os arquétipos na obra literária é importante para se entender a origem e a significação mais profunda dos elementos narrativos utilizados pelo autor. Essa escolha, que não é arbitrária, esconde peculiaridades que podem ser analisados sob a égide do estudo investigativo dos símbolos. Em relação ao estudo do imaginário da obra de Camus, torna‐se relevante observar de que forma as personagens camusianas são afetadas por elementos VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [92–102]
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Maria Clara Dunck Santos O MITO, O IMAGINÁRIO E O ABSURDO NA OBRA DE ALBERT CAMUS recorrentes em sua obra. No ápice da trama de O estrangeiro, temos a personagem Mersault, que se encontra na praia: Pensei que bastava dar meia‐volta e tudo estaria acabado. Mas, atrás de mim, comprimia‐se toda uma praia vibrante de sol. […] A ardência do sol ganhava‐me as faces e senti gotas de suor se acumularem nas minhas sobrancelhas. […] Mas dei um passo, um só passo à frente. E, desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como se uma longa lâmina fulgurante me atingisse na testa. No mesmo momento, o suor acumulado nas sobrancelhas correu de repente pelas pálpebras, recobrindo‐as com um véu morno e espesso. […] Foi, então, que tudo vacilou […]. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho, ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol” (CAMUS, 1995b, p. 63) Em O avesso e o direito: [p]ara corrigir uma indiferença natural, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol. A miséria impediu‐me de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na história; o sol ensinou‐me que a história não é tudo. (CAMUS, 1995a, p. 18). No romance Núpcias: “[e]m seu céu, mesclado de lágrimas e de sol, aprendi a submeter‐me à terra e a deixar‐me abrasar na chama sombria de seus festejos” (CAMUS, [19‐‐], p. 50). E em A queda: “Mas suas reflexões, e também o sol, haviam feito com que saísse um pouso do seu estado normal” (CAMUS, 1997, p. 94). Percebe‐se, pelos excertos, que o sol é um elemento recorrente. Como uma volta à pátria Argélia, o autor coloca a miséria e o sol como entidades que influenciaram a sua formação artística. Camus relaciona o sol (uma imagem sensorial) à morte (algo inevitável) quando trabalha a ideia do absurdo. Pinto (2007) fala de pensamento solar, se referindo à visita que Camus fez ao Brasil em 1949, em que revive “sentimentos e paisagens de sua experiência mediterrânea” (p. 28). III. O ABSURDO O estudo do absurdo é a questão‐chave deste estudo. Camus trabalhou toda a sua vida buscando compreender o absurdo e lutar contra ele. Nenhum autor de ficção trabalhou com esse tema tantas vezes e sob formas tão variadas. São romances, peças de teatro, contos, ensaios etc., que expressam a consciência e a angústia do ser humano diante daquilo que o humaniza e o esmaga, de forma VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [92–102]
Página | 97 Maria Clara Dunck Santos O MITO, O IMAGINÁRIO E O ABSURDO NA OBRA DE ALBERT CAMUS inevitável, mas, segundo o próprio Camus, combatível. Se o absurdo é mesmo uma das marcas que representam a contemporaneidade, e é o pilar mais importante da obra de um dos autores mais representativos do século XX, se faz imprescindível um estudo mais acurado. O absurdo, na obra de Camus, é o ponto de partida e ponto de chegada de sua reflexão filosófica. Com personagens indiferentes ao mundo e às outras pessoas, cenários carregados de rumores trágicos do passado, tramas indissolúveis e episódios fatídicos, o autor preocupou‐se em trabalhar o tema sob diversas formas. Martin Esslin (1968, p. 19) conceitua o que, para ele, é o absurdo: [...] parece ser a atitude que mais autenticamente represente nosso próprio tempo. A principal característica dessa atitude é a da sensação de que as certezas e pressupostos básicos e inabaláveis de épocas anteriores desapareceram, foram experimentados e constatados como falhos, foram desacreditados e são agora considerados como ilusões baratas e um tanto infantis. Em O mito de Sísifo, Camus (2005b, p. 20) dá uma idéia exata daquilo que ele entende como absurdo: [q]ual é então o sentimento incalculável que priva o espírito do sono necessário para a vida? Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está povoado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do Absurdo. Camus trabalha todo o ensaio com autores existencialistas para depois contradizê‐los propositalmente. Estudiosos não poucas vezes chamam Camus de existencialista e é ele mesmo quem faz a recusa dessa nomenclatura, pois afirma e atesta em toda sua obra que se dedica mais à questão do absurdo e da revolta, em que o homem devia recusar os pensamentos irracionais e não apenas ter consciência do abandono, da solidão e da ausência de Deus, sem atitudes motivadoras. Nesse longo ensaio Camus diz que “começar a pensar é começar a ser atormentado [...] pois cultivamos o hábito de viver antes de pensar” (p. 8). Um belo dia o homem se dá conta que vive uma vida maquinal, pois se sente cansado da rotina que leva e vem o assombro por tal constatação. Ele se conscientiza, se desperta, e tem de escolher entre continuar sua vida maquinal ou se libertar: o restabelecimento ou o suicídio. O suicídio de que Camus fala é o suicídio filosófico, VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [92–102]
Página | 98 Maria Clara Dunck Santos O MITO, O IMAGINÁRIO E O ABSURDO NA OBRA DE ALBERT CAMUS que segundo ele, são cometidos por existencialistas como Heidegger, Jaspers, Shestov, Kierkegaard e Husserl, dos quais chamou seus pensamentos de irracionais ou religiosos, pois aceitam o absurdo como uma verdade sem se revoltarem contra ela: “Como não perceber o parentesco profundo entre esses espíritos? Como não ver que eles se agrupam em torno de um espaço privilegiado e amargo onde a esperança não tem lugar?” (p. 40). Para Camus, se não há esperança não pode haver o absurdo, pois perdidas as esperanças o homem se suicida e sem o homem não há o sentimento do absurdo. É aí que se encontra a maior contradição dos filósofos existencialistas para Camus: “O absurdo depende tanto do homem quanto do mundo. Por ora, é o único laço entre os dois. (p. 35)”. O sentimento do absurdo também se revela quando o homem passa a reconhecer o tempo como seu inimigo e não mais projeta todas as suas forças no que virá: “O amanhã, ele ansiava o amanhã quando tudo em si deveria rejeitá‐lo. Essa revolta da carne é o absurdo” (CAMUS, 2005b, p. 28). Em A morte feliz, Mersault espera que sua felicidade se engendre no dinheiro que roubou de Zagreus, após matá‐lo. Mas o amanhã, que tanto ansiava, se transforma numa espera dolorida para a morte: Uma terrível suavidade vinha‐lhe à boca, diante de tanto abandono e solidão. Por sentir‐se tão longe de tudo e até mesmo de sua febre, por experimentar tão claramente o que há de absurdo e de miserável no âmago das vidas mais ordenadas, nesse quarto, erguia‐
se diante dele a imagem vergonhosa e secreta de uma espécie de liberdade que nasce da dúvida e da fraude. (CAMUS, 1971, p. 62). Todo homem deseja a felicidade e a razão: o absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo. “[o] irracional, a nostalgia humana e o absurdo surgem de seu encontro, eis os três personagens do drama que deve necessariamente acabar com toda a lógica de que uma existência é capaz” (CAMUS, 2005b, p. 41). Apesar de toda sua obra engendrar‐se no absurdo, no sentimento do absurdo e no homem absurdo, diante de toda sua indiferença e melancolia, Camus acha que o mais importante não está na constatação dessa característica da vida. Por isso, ele condena as teorias existencialistas, alegando que elas caem no que chama de niilismo ético e numa violência revolucionária. Se não há esperança, não pode haver o absurdo, pois, quando perdida a esperança, o homem se suicida e sem o homem não há o sentimento do absurdo. É aí que se encontra a maior contradição dos filósofos existencialistas, segundo Camus (2005b, p. 35): “[o] absurdo depende tanto do homem quanto do mundo. Por ora, é o único laço entre os dois”. Em O homem revoltado, Camus (2005a) estuda a revolta e a revolução contra o absurdo, em que a segunda não deve ser usada a qualquer custo, pois não considera que os fins justificam os meios: “Os pensamentos que pretendem VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [92–102]
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Maria Clara Dunck Santos O MITO, O IMAGINÁRIO E O ABSURDO NA OBRA DE ALBERT CAMUS conduzir nosso mundo em nome da revolução tornaram‐se na realidade ideologias de consentimento, não de revolta. Eis por que nosso tempo é a era das técnicas privadas e públicas de aniquilação” (CAMUS, 2005a, p. 287). Enquanto O mito de Sísifo fala da morte voluntária, O homem revoltado fala da morte imposta aos outros. Da mesma maneira que o suicídio nega a liberdade, pois acaba com a possibilidade de escolhas futuras, a morte imposta aos outros como forma de revolução nega também esse direito. A revolução violenta também é o absurdo: [h]á crimes de paixão e crimes de lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que invocam a desculpa do amor. São, ao contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável: a filosofia pode servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes. (CAMUS, 2005a, p. 13). A partir da obra de Camus, a literatura do absurdo deixou de ser vista apenas sob o viés do pessimismo e da desesperança. Instigando os homens a se revoltarem contra o absurdo, o autor concedeu um sopro de vida em tempo de catástrofes: “A reivindicação da revolta é a unidade, a reivindicação da revolução histórica, a totalidade. [...] A revolução histórica obriga‐se a agir sempre na esperança, incessantemente decepcionada, de um dia existir (CAMUS, 2005a, p. 288). Ao contrário do que se prega nas políticas totalitaristas, a filosofia camusiana não se prende a uma ideologia, muito pelo contrário, ela parte da realidade para desmascarar a violência que se apoia na ilusão. Por fim, as palavras de Francis (apud ESSLIN, 1968, p. 8) corroboram as de Camus: “[o] absurdo é, quando muito, um meio, nunca um fim, nunca um objetivo a ser alcançado pela espécie humana, a menos que a última tenha desistido de sobreviver”. Do contato com a obra de Camus, imediatamente descobrem‐se os elementos que se sobressaem em sua ficção, quais sejam, o absurdo e a revolta. Ao exercitar sua filosofia, Camus leva consigo o leitor que, pouco a pouco, apreende as intenções do texto literário, pois “[o]s textos literários sempre se relacionam com os contextos; é por esta relação que o texto alcança sentido concreto de sua estruturação, ou seja, o sentido concreto de seu uso” (ISER, 2002, p. 940). Convém reiterar, para o escritor argelino, que o contexto em que vive, traça um roteiro marcante em sua vida. A miséria, a fome, a intolerância, a morte prematura do pai, as perseguições, e as calamidades ocasionadas pela Segunda Guerra Mundial, obrigam‐no a lutar pela sobrevivência desde a infância. Posteriormente, as dificuldades financeiras e de saúde fazem com que valorize suas poucas chances de desenvolvimento intelectual, dedicando‐se avidamente aos estudos. Amadurecido, a percepção da irracionalidade do mundo em que vive desperta a necessidade de compreensão da existência humana. Quando o dogma religioso não atende às suas expectativas, ele VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [92–102]
Página | 100 Maria Clara Dunck Santos O MITO, O IMAGINÁRIO E O ABSURDO NA OBRA DE ALBERT CAMUS se dá conta de que não pode confiar na espera de uma transcendência como forma de suportar os absurdos da vida. É por essa razão que, em tal contexto, o comunismo foi apontado como um caminho viável para combater a ocupação nazista, caminho seguido por Camus durante um pequeno espaço de tempo. Porém, quando a busca pela liberdade sufoca a vida, de que adianta lutar por uma contradição em que uma violência é substituída por outra? Camus, portanto, busca na forma de viver livre, intensa e responsavelmente, o modo pelo qual se alcança a felicidade e é isso o que confunde sua vida e sua obra. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARRETTO, Vicente. Camus: vida e obra. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1997. 213 p. CAMUS, Albert. A morte feliz. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1971. 147 p. CAMUS, Albert. A peste. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1993. CAMUS, Albert. A queda. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1997. CAMUS, Albert. Núpcias, o verão. Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo: Círculo do Livro, [19‐‐]. 140 p. CAMUS, Albert. O avesso e o direito. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1995a. CAMUS, Albert. O estrangeiro. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1995b. CAMUS, Albert. Calígula/O Equívoco. Tradução Raul de Carvalho. Lisboa: Editora Livros do Brasil, 2002. CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2005a. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2005b. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [92–102]
Página | 101 Maria Clara Dunck Santos O MITO, O IMAGINÁRIO E O ABSURDO NA OBRA DE ALBERT CAMUS ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. ISER, Wolfgang. Problemas da teoria da literatura atual: o imaginário e os conceitos‐
chave da época. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da literatura em suas fontes. v. 2. Tradução de Luis Costa Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 927‐951. NIETZSCHE, Freidrich Wilhelm. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SARTRE, Jean‐Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores). SARTRE, Jean‐Paul. A imaginação. São Paulo: Abril, 1978. (Os pensadores). PATAI, Raphael. O mito e o homem moderno. Tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1974. PINTO, Manuel da Costa. O mediterrâneo é aqui. Entrelivros, São Paulo, v. 26, p. 28‐
31 Jun. 2007. MYTH, IMAGINARY AND ABSURD IN ALBERT CAMUS ABSTRACT: This article presents the conclusions of a study about myth, symbols and philosophy in the literature by Albert Camus, an Algerian writer biased by the French. On the other side, it investigated what the absurd literature is and how the theme of revolt contributed to the development of the philosophic‐literary movement, which has the novelist Franz Kafka and the playwrights Eugène Ionesco and Samuel Beckett as its pioneers. Keywords: Camus, existentialism, myth, imaginary, absurd. Recebido em 19 de julho de 2009; aprovado em 23 de agosto de 2009. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [92–102]
Página | 102 O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. Luciano Marcos Dias Cavalcanti ∗ RESUMO: Este ensaio busca verificar como Chico Buarque utiliza o motivo do carnaval brasileiro na elaboração de sua poética. Palavras‐Chave: Chico Buarque, carnaval, poética. A presença da temática do carnaval é uma constante nas canções de Chico Buarque, situação que não causa nenhum estranhamento, já que se trata de um compositor de Música Popular Brasileira e, portanto, de alguém que está diretamente ligado à cultura popular, aos sambistas e à própria tradição do samba – estilo musical que é a essência do carnaval. Chico Buarque, além de contemplar em diversas composições a temática do Carnaval, tem ainda um LP com o nome significativo de Quando o carnaval chegar (1965), no qual se dedica especificamente ao tema. Para discutir o tema do carnaval nas canções de Chico Buarque analisaremos algumas canções do compositor que se referem diretamente à temática do carnaval e o contexto cultural brasileiro em que esta festa se insere. A festividade do carnaval pode ser considerada um ritual nacional por excelência, isso porque este rito dramatiza valores globais da nação brasileira. No Brasil, o carnaval é generalizado, não pertence apenas a uma cidade ou Estado, mas a todo o país. Neste ritual, a sociedade está orientada para o evento que centraliza toda a atividade nacional, sendo decretado feriado nacional na época da festa; consequentemente, todos os cidadãos abandonam o trabalho e uma grande parte vai “pular” o carnaval. O carnaval apresenta uma particularidade em relação aos demais ritos (como o religioso, o da parada militar, o do dia da independência, etc.), ele se realiza preponderantemente de modo informal, sendo caracterizado por uma situação de espontaneidade. O cotidiano massacrante do dia‐a‐dia é substituído por um momento extraordinário, marcado por transformações no comportamento das pessoas. A rotina maçante é trocada por momentos de alegria e descontração, e a vida diária passa a ser vista como negativa, pois nesta sofre‐se, vive‐se em uma rotina maquinal, em um mundo hierárquico com comportamentos ditados pelas normas morais vigentes. No desfile carnavalesco, quem participa ativamente das escolas de samba como componentes são as pessoas das camadas mais baixas e marginalizadas da ∗
Doutor em Teoria e História Literária UNICAMP/IEL – E‐mail: [email protected] VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [103–114]
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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. sociedade. Embora as escolas reúnam, além de pobres, milionários, astros do futebol, da televisão e do cinema. Mas o que chama “atenção, nesses desfiles (a inversão constituída entre o desfilante, um pobre, geralmente negro ou mulato) é a figura que ele representa no desfile (um nobre, um rei, uma figura mitológica)” (DA’MATTA, 1997: 58). O carnaval talvez seja o único momento em que o pobre marginalizado e desrespeitado pode se sentir importante e respeitado como os astros de TV e as pessoas ricas. Neste momento, através do processo de inversão carnavalesca, o subalterno se iguala aos seus dominadores e passa, mesmo que por um curto período, a não se sentir inferior. Agora, os marginalizados podem ocupar lugares privilegiados, estão altamente conscientes do fato de que nos seus ensaios e durante o carnaval são eles os “doutores”, os “professores”. Com essa possibilidade, podem inverter sua posição na estrutura social, compensando sua inferioridade social e econômica, com uma visível e indiscutível superioridade carnavalesca. Essa superioridade se manifesta no modo “instintivo” de dançar o samba que o senso comum brasileiro considera um privilégio inato da “raça negra” como categoria social. (DA’MATTA, 1997: 167) Os pobres e os negros marginalizados, que em seu cotidiano costumam portar‐se de cabeça baixa, receber ordens, sofrer diversos tipos de preconceitos, no carnaval podem se exibir como fazem os ricos com suas roupas, carros importados, etc., mas de maneira mais nobre: eles se exibem com sua capacidade de dançar, sambar com extrema habilidade, sensualidade e criatividade. Como bem exemplificam os seguintes versos da canção de Chico: E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando Que eu vou aturar Tou me guardando pra quando o carnaval chegar E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar Tou me guardando pra quando o carnaval chegar (“Quando o carnaval chegar”) O Brasil é caracterizado como o país do Carnaval. No carnaval, as posições sociais são invertidas. Em uma sociedade, como a brasileira, marcada pela desigualdade social, pelo preconceito racial velado, o carnaval se torna uma festa nacional de grande importância porque é somente nesta festa popular e, talvez, no futebol (quando a seleção participa de jogos internacionais) que uma grande parcela da nação brasileira, pode‐se dizer, se une em uma mesma “corrente” de confraternização. A utilização do samba, uma forma musical vinda de “baixo”, para o relacionamento social também se mostra muito significativa para se pensar como se VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [103–114]
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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. faz a união popular no Brasil. Essa forma musical, que segundo nossa mitologia nasceu em áreas fronteiriças da sociedade brasileira – nos porões e senzalas, nas favelas, em meio à pobreza dos seus negros e miseráveis habitantes – tornou‐se uma forma de unir pessoas de todas as classes. Assim, a união dos cidadãos brasileiros é significativamente feita por “baixo”, já que o samba, então, como tudo o que vem de “baixo”, adquire uma aura sedutora e abrangente. Tanto o samba quanto os grupos do carnaval (sobretudo as escolas de samba) estão voltadas para “cima” na busca da conversão, aprovação e legitimação dos segmentos superiores da sociedade. Assim, o sistema se integra também nesse nível, quando a sociedade se individualiza. Pois agora, dividida em grupos bem visíveis, ela se integra novamente adotando como forma generalizável e universal tudo o que nasceu “embaixo”. (DA’MATTA, 1997: 143‐4) Após estas breves considerações a respeito do carnaval podemos, então, começar a refletir sobre o tema do carnaval a partir de algumas canções de Chico Buarque. Uma canção que talvez se assemelhe ao mesmo ambiente de libertação e tolerância quanto aos anseios do ser humano, proporcionado por uma situação utópica própria do carnaval é sua marcha carnavalesca intitulada “Não existe pecado ao sul do equador”: Não existe pecado do lado de baixo do equador Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor (Vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor) 1 Me deixa ser teu escravo, capacho, teu cacho Um riacho de amor Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo Que eu sou professor (grifos nossos) O primeiro verso da canção já nos revela o ambiente libertário onde o Brasil está situado: “do lado de baixo do equador”, espaço onde não existe pecado. Esta composição também nos remete a uma espécie de paraíso perdido ou Idade de Ouro nos trópicos, já que nos situa geograficamente abaixo da linha imaginária do equador. Um mundo permissivo, da liberdade sexual, da alegria, por muito tempo acreditado pelos viajantes europeus que, provavelmente, vêem, até hoje, o Brasil como uma nação exótica de mulheres seminuas prontas para o sexo sem pudor. A exemplo de Pero Vaz de Caminha que há 500 anos descreve o ambiente paradisíaco encontrado no Brasil com suas belezas naturais e exuberantes e suas índias nuas, com suas “vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de 1
Verso original, vetado pela Censura. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [103–114]
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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.” (Apud CORTESÃO, s/d:143). Nesse ambiente paradisíaco não pode haver tristeza. Deixa a tristeza prá lá, vem comer, me jantar Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá Vê se me usa, me abusa, lambuza Que tua cafuza Não pode esperar Deixa a tristeza prá lá, vem comer, me jantar Sarapatel, caruru, tucupi, tacaca Vê se me esgota, me bota na mesa Que tua holandesa Não pode esperar Misturado a alimentos estritamente pertencentes à culinária nacional, alimentos afrodisíacos “sarapatel, caruru, tucupi, tacacá”, portanto eróticos, o convidado é chamado a comer o alimento e a mulher; é um ambiente tipicamente semelhante ao bacanal, festa de Baco em que se come, se bebe e se pratica o ato sexual em todas as suas potencialidades. Segundo José Miguel Wisnik, “a frase‐título é de um viajante renascentista do século XVI (...). Para a Europa colonialista as colônias tropicais podiam ser o cu‐
do‐mundo, mas eram o lugar utópico onde o corpo se libertava das sanções da cara européia, protestante ou contra‐reformista”. (Apud CARVALHO, 1984: 65) O erotismo, portanto, é uma temática de extrema importância para a realização do rito dionisíaco que é representado pelo carnaval; nesse ambiente, não há lugar para o amor espiritual e romântico, como diria Manuel Bandeira em seu poema Arte de amar: “Se queres sentir a felicidade de amor, esquece a tua alma./A alma é que estraga o amor./ (...) /As almas são incomunicáveis.//Deixa o teu corpo entender‐se com outro corpo/Porque os corpos se entendem, mas as almas não.” Em “Sonho de um carnaval”, o carnaval é visto como um momento temporário de libertação e é, por isso, que temos, na primeira estrofe, o significado de carnaval atrelado ao desengano. Carnaval, desengano Deixei a dor em casa me esperando E brinquei e gritei e fui vestido de rei Quarta‐feira sempre desce o pano. (grifos nossos) A oposição entre a rua (onde se vai brincar e gritar) e a casa (onde a dor fica esperando) é de fundamental importância, podendo nos servir como instrumento de análise desta canção. Da’Matta chama a atenção para o fato de que VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [103–114]
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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. a categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões, ao passo que a casa remete a um universo controlado, onde as coisas estão nos seus devidos lugares (...). Na casa, temos associações rígidas e formadas pelo parentesco e relações de sangue; na rua, as relações têm um caráter indelével de escolha, ou implicam essa possibilidade. (DA’MATTA, 1997: 90) É por isso que somente na rua o folião pode ser feliz. Na rua, o rei é o folião, diferentemente de quando está em casa onde o rei é o seu pai ou seus parentes mais velhos, aqueles que expressam maior autoridade. Em casa as relações são regidas pela hierarquia familiar que se ordena seqüencialmente da seguinte forma: o pai (o rei), a mãe (a rainha), o irmão mais velho (o primogênito sucessor do rei), etc. No carnaval de rua, o indivíduo veste a fantasia que quiser, rompendo com essa hierarquia rígida da família. Mas esse sonho de um carnaval é fugaz, pois logo a quarta‐feira de cinzas chega e o folião está consciente disso. A realização do carnaval brasileiro em quatro dias cria um momento especial, mágico, momento relativamente curto para quem só tem neste período a possibilidade de diversão, de vestir a fantasia e de ser rei. No carnaval tudo pode acontecer, pois a inversão de papéis sociais traz um período de liberdade que possibilita uma satisfação muito grande, por isso muito eufórica. Como nos diz o poeta, na quarta‐feira de cinzas tudo acaba, tudo morre. Diferentemente do carnaval – que é a festa da vida, na qual os foliões, os bailes de fantasias, as escolas de samba abusam de enfeites e do colorido exuberante das cores fortes e brilhantes, metaforizando a própria vida – a quarta‐feira de cinzas representa o luto, a morte. Inicia‐se o período da quaresma, tempo da abstinência e da contenção. É o rito religioso hierárquico, opressor e dogmático que representa a morte. O carnaval é o rito da vida, da união entre as pessoas, da transformação da tristeza em alegria, do adulto racional na criança instintiva. Neste momento, o que se busca é a alegria, a música, a felicidade, o prazer sexual. Juntos, homens e mulheres buscam esse momento de libertação; são iguais, sem distinção de classes, credos e raças eles realizam o sonho de união em um único cordão: em que todas as pessoas estejam irmanadas, realizando‐se em um mundo utópico no qual não existiriam os diversos tipos de preconceitos sociais, raciais, sexuais. E é por isso que o carnaval, no primeiro verso da última estrofe da canção, já não é mais ilusão, mas esperança, pois somente no carnaval é possível esta total união popular: Carnaval, desengano Essa morena me deixou sonhando Mão na mão, pé no chão VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [103–114]
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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. E hoje nem lembra não Quarta‐feira sempre desce o pano. Era uma canção, um só cordão E uma vontade De tomar a mão De cada irmão pela cidade. No carnaval, esperança Que gente longe viva na lembrança Que gente triste possa entrar na dança Que gente grande saiba ser criança. (grifos nossos) A canção “Vai passar”, de Chico, faz uma espécie de síntese do significado global do carnaval para muitos de seus participantes. E um dia, afinal Tinham direito a uma alegria fugaz Uma ofegante epidemia Que se chamava carnaval O carnaval, o carnaval (Vai passar) Palmas pra ala dos barões famintos O bloco dos napoleões retintos E os pigmeus no bulevar Meu Deus, vem olhar Vem ver de perto uma cidade a cantar A evolução da liberdade Até o dia clarear Ai, que vida boa, olerê Ai, que vida boa, olará O estandarte do sanatório geral vai passar Ai, que vida boa, olerê Ai, que vida boa, olará O estandarte do sanatório geral Vai passar. (grifos nossos) Como podemos ver, o carnaval é considerado um direito do povo sofredor, que pelo menos em um dia do ano tem “direito a uma alegria fugaz” que se transforma em uma epidemia em que toda cidade vai cantar junta a conquista da liberdade. Uma liberdade que dura pouco, até o amanhecer, mas uma liberdade de direito do povo que comumente vive todo seu tempo em condição antagônica à liberdade. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [103–114]
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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. Outro tema relevante que podemos notar em relação ao carnaval diz respeito à questão das máscaras utilizadas como fantasia nos bailes carnavalescos e no carnaval de forma geral. Como elementos que compõem a fantasia, podemos ver sua presença na canção “Noite dos Mascarados”. Nesta canção, podemos notar um diálogo entre um mascarado e uma mulher em um baile de carnaval, o que mostra que a composição se utiliza do fato de as personagens estarem mascaradas como contexto para reflexões acerca das relações pessoais fora do cenário carnavalesco. Quem é você? Adivinhe, se gosta de mim Hoje os dois mascarados Procuram os seus namorados Perguntando assim: Quem é você, diga logo Que eu quero saber o seu jogo Que eu quero morrer no seu bloco Que eu quero me arder no seu fogo. De acordo com Bakhtin, na época renascentista começa a desenvolver‐se a cultura festivo‐cortês da mascarada que reúne em si toda uma série de formas e símbolos carnavalescos. Em seguida, começa a desenvolver‐se uma linha mais ampla (não mais cortês) de festejos e divertimentos, que o autor denomina de linha mascarada. “Esta conserva algumas liberdades e reflexos distantes da cosmovisão carnavalesca. Muitas formas carnavalescas foram arrancadas de sua base popular e saíram da praça pública para essa linha camaresca da mascarada que existe até hoje”. (BAKHTIN, 1997: 131) Em torno de 1550 instala‐se a commedia dell’arte que possui uma integridade de leis estéticas especiais, um critério próprio de perfeição não subordinado à estética clássica da beleza e do sublime. A função da commedia dell’arte era servir como instantes de diversão e como fórmula de catarse. “Através do riso e da caricatura, o pobre podia rir do rico e da autoridade, numa inversão carnavalizante. A violência social se mistura à violência erótica, dentro da melhor linha da sátira popular.” (SANT’ANNA, 1995: 218) No carnaval, a vestimenta apropriada é a fantasia, um artefato que nos revela um duplo sentido, pois tanto se refere às ilusões e idealizações da realidade quanto aos paramentos utilizados somente no carnaval. Assim, “a fantasia carnavalesca revela muito mais que oculta, já que uma fantasia representa um desejo escondido, faz uma síntese entre o fantasiado, os papéis que representa e os que gostaria de representar”. (DA’MATTA,1997: 61) Mais explicitamente, podemos ver nesta canção de Chico Buarque a possibilidade da multiplicidade do “eu” a partir do ambiente fantasioso proporcionado pelo carnaval. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [103–114]
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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. Eu sou seresteiro Poeta, cantor O meu tempo inteiro Só zombo do amor Eu tenho um pandeiro Só quero um violão Eu nado em dinheiro Não tenho um tostão Fui porta‐estandarte Não sei mais dançar Eu modéstia parte Nasci para sambar Eu sou tão menina Meu tempo passou Eu sou Columbina Eu sou Pierrot (grifos nossos) Bakhtin diz que o motivo do uso da máscara é o mais completo, mais carregado de sentido da cultura popular. A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais da ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna o princípio do jogo da vida, está baseada numa peculiar interpretação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos risos e espetáculos.(BAKHTIN,1987: 35) No caso do carnaval brasileiro, suas fantasias carnavalescas revelam uma dissolução dos papéis e posições sociais, já que são, freqüentemente, invertidos, podendo assim, homem se vestir de mulher, um policial de bandido, um homem rico de mendigo, os homens de crianças, etc. e vice‐versa. Revelam assim, a união da multiplicidade dos vários segmentos que geralmente são excluídos na sociedade brasileira. Esta inversão ocorrida no carnaval propicia a quebra dos posicionamentos e das funções sociais, já que os foliões fantasiados perdem as próprias identidades contidas na rigidez do cotidiano e estão na festa da libertação e do excesso. As identidades pessoais e sociais só serão retomadas no final do rito, quando se voltar a viver no cotidiano novamente: Mas é carnaval Não me diga mais quem é você Amanhã tudo volta ao normal Deixe a festa acabar VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [103–114]
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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. Deixe o barco correr Deixe o dia raiar Que hoje eu sou Da maneira que você me quer O que você pedir Eu lhe dou Seja você quem for Seja o que Deus quiser Seja você quem for Seja o que Deus quiser. (grifos nossos) O carnaval, como pudemos notar, é uma festa de extrema euforia e se realiza em um momento muito curto para quem durante o ano todo espera ansiosamente este momento de libertação. O término do carnaval faz com que as pessoas sintam‐se angustiadas por terem deixado um mundo sonhado e festejado com tanta exaltação. Deixamos de ser meros cidadãos, com suas vidas banais, para vivermos plenamente um momento de utopia; uma utopia tão grande que até uma das maiores arbitrariedades construídas pela razão humana, o tempo cronológico, pode se render à magia do carnaval: Não chore ainda não Que eu tenho a impressão Que o samba vem aí E um samba tão imenso Que eu às vezes penso Que o próprio tempo Vai parar prá ouvir (“Ole, Olá” – grifos nossos) Se até uma convenção abstrata como a do tempo, que controla as pessoas ditando‐lhes a hora de acordar, de trabalhar, regressar ao lar, dormir, pode sofrer uma mudança enlouquecedora – que transferiria as pessoas para uma espécie de tempo utópico, um paraíso eterno de libertação, alegria, igualdade, etc. –, como o homem simples suportaria o término do carnaval? Certamente com muita angústia, chegando alguns a enlouquecer, não suportando mais o cotidiano maquinal e infeliz, como acontece na canção “Ela desatinou”: Ela desatinou Viu chegar a Quarta‐feira Acabar a brincadeira Bandeira se desmanchando E ela inda está sambando VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [103–114]
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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. Ela desatinou Viu morrer alegrias Rasgar fantasias Os dias sem sol raiando E ela inda está sambando Ela não vê que toda gente Já está sofrendo normalmente Toda a cidade anda esquecida Da falsa vida da avenida onde Ela desatinou Viu morrer alegrias Rasgar fantasias Os dias sem sol raiando Ela inda está sambando Quem não inveja a infeliz Feliz no seu mundo de cetim Assim debochando Da dor, do pecado Do tempo perdido Do jogo acabado Diante disso, Da’Matta reforça que somos obrigados a abrir mão de todos os papéis tradicionais. “Deixamos de ser e passamos a existir e viver o momento de ‘communitas’. No carnaval, no seu espaço típico, o instante supera o tempo e o evento passa a ser maior que o sistema que o classifica e lhe empresta um sentindo normativo”. (DA’MATTA, 1997: 117‐8) Após o momento de extrema euforia, uma mulher enlouquece com a chegada da quarta‐feira de cinzas, momento que inicia o término do carnaval, e como dissemos anteriormente, representa o rito da abstenção e da morte, vê “morrer as alegrias, rasgar as fantasias”, as pessoas “sofrendo normalmente”. A presença da temática do carnaval é constante nas canções de Chico Buarque. Esta presença se faz de maneira explícita, tratando especificadamente do tema, como por exemplo, quando o compositor fala do carnaval de maneira geral, nos bailes carnavalescos, de personagens típicos como Arlequim, Columbina, Pierrot, Baco, Momo, Vênus, a mascarada, fantasias, escolas de samba, blocos, Quarta‐feira de cinzas, etc. Mas também existem referências ao carnaval, ou pelo menos ao espírito carnavalesco, quando o compositor se refere a situações proporcionadas pelo carnaval: quando é explorado o amor erótico e carnal, a união das pessoas através do rito aglutinador, da utopia vista como momento de igualdade e libertação do ser humano para o mundo melhor do que o vivido no dia‐
a‐dia, etc. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [103–114]
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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. Em síntese, o carnaval é trabalhado por Chico Buarque principalmente como um rito de libertação popular, catarse, um momento de purgação das emoções populares. Desse modo, a festa carnavalesca é identificada como um momento de fuga do cotidiano. Esta situação também revela, nas entrelinhas, o caráter crítico apontado pelo compositor já que este período de libertação pode também ser visto como um momento de alienação geral e que, neste sentido, pode ser utilizado pelo “poder institucionalizado” como um instrumento de controle ideológico. Quer como festa tradicional popular, quer como processo de elaboração poética com elementos característicos da carnavalização como a intertextualidade, a utopia, a profanação, evidencia‐se o caráter dionisíaco do ritual carnavalesco. Elementos que contribuem para a criação de uma “cosmovisão” carnavalizadora dotada de poderosa força vivificante e transformadora de uma vitalidade indestrutível, como nos diz Bakhtin, são plenamente representados, como pudemos notar, em algumas canções de Chico Buarque. Situação que reforça a valorização da cultura popular e de seu povo, características que entendemos serem marcantes na obra do compositor. BIBLIOGRAFIA: BANDEIRA, Estrela da vida inteira: poesias reunidas e poemas traduzidos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. BAKTHIN, M. M. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BAKTHIN, M. M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, Brasília: Editora da UNB, 1987. CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque: análise poético musical. 2.ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1982. CAVALCANTI, Luciano Marcos Dias. Música Popular Brasileira e Poesia: a valorização do “pequeno” em Chico Buarque e Manuel Bandeira. Belém – Pará: Paka‐Tatu, 2007. CORTESÃO, J. A carta de Pero Vaz de Caminha. Rio de Janeiro: Ed. Livros de Portugal, s/d. 143: 209 DA’MATTA, Roberto da. O carnaval como um mito de passagem. In: Ensaios de antropologia estrutural. Petrópolis: Vozes, 1973. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [103–114]
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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. DA’MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. GALVÃO, Walnice Nogueira. Uma análise ideológica da MPB. Saco de gatos: ensaios críticos. São Paulo: Duas Cidades, 1976. HOLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque: letra e música. (Humberto Werneck, org.) São Paulo: Companhia das Letras, 1989. (Songbook) NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. PERRONE, Charles A. Letras e letras da MPB. Rio de Janeiro: ELO, 1988. SANT’ANNA, Afonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980. SANT’ANNA, Afonso Romano de. O canibalismo amoroso. São Paulo: Brasiliense, 1995. VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Ed. UFRJ, 1995. WISNIK, José Miguel. Anos 70 – música popular. Rio de Janeiro: Europa, 1979/80. THE CARNIVAL IN THE SONGS OF THE CHICO BUARQUE. ABSTRACT: This essay aims at verifying how Chico Buarque making use of the brazilian carnival theme the elaboration of its poetry. Keywords: Chico Buarque, carnival, poetry. Recebido em 11 de maio de 2009; aprovado em 30 de junho de 2009. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [103–114]
OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira* RESUMO: Este trabalho1 tenciona estudar o modo como a ficção machadiana representa o personagem Aires em Esaú e Jacó (1904) e no Memorial de Aires (1908), enfocando como o conselheiro atua tal qual um conciliador entre as pessoas, diante de relevantes fatos históricos, a mudança do regime político e a abolição da escravatura, que fizeram surgir uma nova face do país, no século XIX, com um ceticismo disfarçado em ironia e humor, o que revela uma postura crítica contundente na escritura desses romances. Palavras‐chave: Conselheiro Aires – observação – ceticismo – ficção machadiana – história INTRODUÇÃO Machado de Assis é um artista singular na história da Literatura Brasileira. Sendo o nosso primeiro escritor moderno, iniciou sua vida literária no século XIX, escrevendo numa língua praticamente desconhecida do resto do mundo. Segundo o crítico norte‐americano Harold Bloom, a escrita de Machado possui a “liberdade tanto em relação a suas dívidas literárias quanto a seu contexto nacional, liberdade esta que adviria da combinação precisa de ceticismo e humor” (apud BERNARDO, 2003: 02) Propomo‐nos a estudar aqui os dois últimos romances machadianos, Esaú e Jacó(1904) e Memorial de Aires(1908) ( no primeiro há várias menções do Memorial ).Essas narrativas encontram‐se interligadas pela presença sábia e conciliadora do conselheiro José da Costa Marcondes Aires, arguto observador das sutilezas do comportamento humano e da visão social e política do país: *
Mestre em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura pela Universidade Federal Fluminense – UFF (Niterói/RJ). Membro do Grupo de Estudos Nação‐narração – UFF/ CNPq. www.uff.br/nacaonarracao abrahao‐[email protected] Telefone: (24) 22635842 1
Este artigo foi apresentado no I Seminário Machado de Assis, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, em agosto de 2008.
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Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL “ Às noites passeava pelas praias, ou pelas ruas do bairro. O mais do tempo era gasto em ler e reler, compor o Memorial ou rever o composto, para relembrar coisas passadas. Estas eram muitas e de feição diversa, desde a alegria até a melancolia, enterramentos e recepções diplomáticas, uma braçada de folhas secas, que lhe pareciam verdes agora.” (Machado de Assis, 2001, p. 68) 1. ESAÚ E JACÓ No romance Esaú e Jacó, em cujo enredo dá‐se a passagem da Monarquia à República, o diplomático Aires não tem uma postura clara em relação à política nacional: não é monarquista nem republicano. Não assume também a posição de narrador do romance. O leitor, logo no início da obra, depara‐se com a “Advertência”2, que tenciona esclarecer que a narrativa foi extraída dos papéis que Aires deixara após a sua morte: “Quando o Conselheiro Aires faleceu, acharam‐se‐lhe na secretária sete cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão. Cada um dos primeiros seis tinha o seu número de ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V e VI, escritos a tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último. A razão dessa designação especial não se compreendeu então nem depois. Sim, era o último dos cadernos, com a particularidade de ser mais grosso, não fazia parte do Memorial, diário de lembranças que o conselheiro escrevia desde há muitos anos e era matéria dos seis. Não trazia a mesma ordem das datas, com indicação da hora e do minuto, como usava neles. Era uma narrativa: e posto figure aqui o próprio Aires, com seu nome e título de conselho, e por alusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha à matéria de seus cadernos. Último, por quê?” (MACHADO DE ASSIS, 1999: p.90) Dessa forma, inferimos que Aires é o autor do romance, apesar de não se colocar na posição de narrador. É o autor e o narrador. Não há na narrativa um personagem‐narrador; há um personagem‐autor, que não admite ser confundido com o primeiro. É nessa atmosfera de ambigüidade que se dará a disputa ardilosa entre os gêmeos Pedro e Paulo, o primeiro, monarquista; o segundo, republicano, exatamente no momento histórico de transição de um regime a outro. Os gêmeos eram rivais em tudo, desde o ventre da mãe, Natividade, o que ela mesma já ouvira da cabocla do castelo, advinha de quem escutou a confirmação do embate que haveria entre os dois garotos. “E não foi sem grande espanto que lhe ouviu perguntar se os meninos tinham brigado antes de nascer.” (Machado de 2
Essa “Advertência” não está presente em todas as edições da obra. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Página | 116 Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL Assis, 2001: p.16) É nessa expectativa do futuro dos gêmeos que surge o personagem Aires, diplomata licenciado, recém‐chegado da Europa e que fora pretendente de Natividade em tempos idos. Porém, não era dado a paixões. Fora casado, mas era como se não fosse. Casou‐se somente pela necessidade do ofício. Enviuvou e isso não lhe causou dor alguma porque sempre quisera mesmo era estar solteiro: “Esse Aires que aí aparece(...) era um belo tipo de homem. Diplomata de carreira, chegara antes do Pacífico, com uma licença de seis meses. (...) Mas esse Aires(...) tinha nas controvérsias uma opinião dúbia ou média que pode trazer a oportunidade de uma pílula, e compunha as suas de tal jeito que o enfermo, se não sarava, não morria, e é o mais que fazem as pílulas. (...) a droga amarga engole‐se com açúcar” (2001: pp.36‐37) Esse “feitio de solteirão” (2001:p.37) dava a Aires uma postura de neutralidade que fazia com que se tornasse um astuto observador dos problemas daqueles que o cercavam – em especial, aqueles que afligiam a mãe dos gêmeos – e dos acontecimentos em geral. No início da juventude, a rivalidade doméstica dos gêmeos é transposta para o âmbito da política. Paulo já é republicano e Pedro, monarquista. Na narrativa machadiana, entretanto, não há a preocupação em fazer tomar vulto um debate, cujo tema principal seria a politização num momento de transição, mesmo de caráter duvidoso, tão importante na vida política do país; mas sim, uma banalização da rivalidade política, fazendo‐se um paralelo entre o surgimento dos primeiros pêlos das barbas dos gêmeos e suas respectivas posturas em relação à mudança do regime. Nem as barbas nem os pareceres acerca da política apresentavam consistência: “As barbas não queriam vir, por mais que chamassem o buço com o dedos, mas as opiniões políticas vinham e cresciam. Não eram propriamente opiniões, não tinham raízes grandes nem pequenas. Eram (mal comparando) gravatas de cor particular, que eles atavam ao pescoço, à espera que a cor cansasse e viesse outra. Naturalmente, cada um tinha a sua. Também se pode crer que a de cada um era, mais ou menos, adequada à pessoa. Como recebiam as mesmas aprovações e distinções nos exames, faltava‐lhes matéria a invejas; e se a ambição os dividisse algum dia, não era por águia nem condor, ou sequer filhote; quando muito, um ovo.” (2001: p.53) É com escárnio e ironia que o narrador compara as opiniões políticas com a deficiência fisiológica, desqualificando assim, a maturidade dos jovens. “(...) com a VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Página | 117 Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL velha inveja infantil revelando robustez em detrimento da fragilidade das pretensões à maturidade e à coerência esboçadas no caráter dos dois gêmeos.” (Araújo: 1999, pp. 96‐97) Aires sempre se mostra como um conciliador, ouve pacientemente quem o interpela e dá suas respostas de forma meio indefinida, com certa ironia e, às vezes, sem nenhuma modéstia. É o que acontece no momento em que a mãe dos gêmeos o aborda na rua: “ Ou o passado ou a pessoa [Aires, no caso] com suas maneiras discretas e espírito repousado, ou tudo isso junto, dava a sua pessoa, uma confiança que ela não achava agora em ninguém, ou acharia em poucos. (...) (...) contou primeiro a rivalidade dos filhos, já manifestada na política, e tratando especialmente de Paulo (...) _Então crê que Paulo será sempre isto? _Sempre não digo; mas também não digo o contrário. Baronesa, a senhora exige respostas definitivas, mas diga‐me o que há de definitivo neste mundo a não ser o voltarete de seu marido?(...) só os solteirões podem avaliar as idéias das mulheres. Um viúvo sem filhos como eu, vale por dois ou três. Quanto ao jovem Paulo, não pense mais no discurso. Também eu discursei quando rapaz. (...) (...) _ (...) os meus dois gêmeos não combinam em nada (...) pensei que um amigo, um homem moderado, (...) hábil, fino, cauteloso, inteligente, instruído... _ (...) é o meu retrato em pessoa. _ Pode corrigí‐los com boas maneiras, (...) _ (...) eu nasci para servir, ainda que inutilmente. Baronesa, o seu pedido equivale a nomear‐me aio ou preceptor... (...) _ Uma pessoa de autoridade como o senhor, pode muito. (...) Aires concorda rindo(...) basta saber que ele prometeu o que ela quis e também prometeu calar‐se; foi a condição que a outra lhe pôs. Tudo isso polido, sincero e incrédulo.” (2001: pp. 75‐78) grifo nosso 2. A ABOLIÇÃO E A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA EM ESAÚ E JACÓ O 13 de maio de 1888 foi encarado de forma singular para os irmãos Pedro e Paulo. Os gêmeos discordavam em tudo, exceto num ponto: a libertação dos escravos. Essa concordância dava‐se, é verdade, com pontos de vista diferentes. Para Pedro, era uma questão de justiça; para Paulo, um ato revolucionário. Este último chegou a concluir seu discurso, proferido em São Paulo: “A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco” (2001: p. 74), palavras que, para sua mãe, Natividade, era certamente, uma VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Página | 118 Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL ameaça ao imperador e ao regime monárquico. No que toca à mudança de regime propriamente, o narrador mostra‐se mais uma vez, irônico e despretensioso, como se pode ver nos capítulos XLIX, LXIII – respectivamente intitulados, “Tabuleta velha” e “Tabuleta nova” ‐ e nos seguintes. O dono da “Confeitaria do Império” sente‐se desorientado por ter de mudar o nome de seu estabelecimento, já que a República fora proclamada. Tinha acabado de mandar pintar a tabuleta com o nome que era uma homenagem ao governo monárquico. Temia uma retaliação por parte do novo governo e solicita um conselho de Aires: “_ Mas o que há? Perguntou Aires. _ A República já está proclamada. _ Já há governo? _ Penso que já, mas diga‐me V. Exª: Ouviu alguém acusar‐me jamais de atacar o governo? Ninguém. Entretanto... Uma fatalidade! Venha em meu socorro, Excelentíssimo. Aires propôs‐lhe um meio termo, um título que iria com ambas as hipóteses, ‐ 'Confeitaria do Governo'. _ Tanto serve para um regime como para outro. (...) Aires não admirou menos a sagacidade de um homem que em meio a tantas tribulações, contava os maus frutos de um equívoco. (...) a não ser que se preferisse o seu próprio nome 'Confeitaria do Custódio' (...) Um nome, o próprio nome do dono, nada que chamasse a atenção dos dois regimes (...) as revoluções sempre trazem despesas.” (2001: pp. 121‐124) O último baile ocorrido no regime monárquico – o baile da Ilha Fiscal ‐ também não passou incólume ao olhar atento do conselheiro. Não que se preocupasse com a conotação política de tão rico e grandioso evento. Mas, ironicamente, fala a respeito do ato de dançar ou do prazer que proporciona a dança aos olhos de quem vê, dirigindo‐se especificamente às leitoras e, mais adiante, elogiando a atitude do governo que proporcionou tão requintada festa, dirigindo‐se então, ao leitor em geral: “Não envelheças, amiga minha, por mais que os anjos te convidem a deixar a primavera; quando muito, aceita o estilo. (...) Assim, dançarás sempre. (...) Foi uma bela idéia do governo, leitor. Dentro e fora, do mar e da terra, era como um sonho veneziano; toda aquela sociedade viveu algumas horas suntuosas, novas para uns, saudosas para outros, e de futuro para todos, (...) (2001: pp.92,94) Aires não havia acreditado verdadeiramente na queda do Império. Porém, Santos, seu amigo monarquista e pai dos gêmeos, veio ratificar a notícia da VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Página | 119 Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL Página | 120 mudança do regime. O conselheiro, de maneira sutil, alega não crer em transformações profundas e chama a atenção para a atitude passiva da população que não reagiria, segundo ele, de forma contundente diante da chegada da República: “_ É verdade conselheiro, vi descer tropas pela Rua do Ouvidor, ouvi aclamações à República. (...) É uma calamidade. Aires quis aquietar‐lhe o coração. Nada mudaria, o regime sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. (...) Aires tirou‐lhe o terror da cabeça. As ocasiões fazem as revoluções. (...) Depois lembrou a índole branda do povo. O povo mudaria de governo sem tocar nas pessoas. Haveria generosidades.”(2001: pp. 121‐125) grifo nosso lances de Para os gêmeos Paulo e Pedro (principal foco dos olhares do conselheiro), a República representava interesses opostos: para o primeiro, era algo que satisfazia os seus anseios. Entretanto, a ironia machadiana manifesta‐se claramente nos pensamentos do jovem, já que a República fora proclamada por um grupo de militares que pensavam apenas em seus próprios interesses. Não houve a participação popular. Os interesses do povo não foram levados em conta. Assim, refletia Paulo, diante da chegada do novo regime: “Como diabo é que eles fizeram pra isto, sem que ninguém desse pela coisa? (...)Podia ter sido mais turbulento. Conspiração houve, decerto, mas uma barricada não faria mal. Seja como for, venceu‐se a campanha. (...) o regime estava podre e caiu por si”(p. 130) grifo nosso Enquanto isso, Pedro, o monarquista, enxergava o advento da República como um crime: “_ Um crime e um disparate, além de ingratidão; o imperador devia ter pegado os principais cabeças e mandá‐los executar. Infelizmente, as tropas iam com eles. Mas nem tudo acabou. Isso é fogo de palha; daqui a pouco está apagado, e o que antes era, torna a ser.” (p.130) O narrador ao referir‐se ao Marechal Deodoro da Fonseca, utilizava a palavra “generalíssimo” e via a Proclamação da República como um golpe aplicado pelos militares. Escreve sobre as atitudes e reflexões da esposa de um monarquista desesperado: “ Antes de tudo,o golpe de Estado podia ser um benefício. Serve‐se muita vez a liberdade parecendo sufocá‐la. Depois, era o mesmo homem que a havia proclamado que convidava agora a nação a dizer o que queria, e a emendar a constituição, salvo nas partes essenciais. A palavra do generalíssimo,como a sua espada,bastava a defender e consumar a obra principiada.(2001: p. 136) grifo nosso 3. O MEMORIAL DE AIRES Como em Esaú e Jacó, o Memorial inicia‐se com uma “Advertência”: VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL (...) “Tratando‐se agora de imprimir o Memorial, achou‐se que a parte relativa a uns dois anos (1888‐1889), se for decotada de algumas circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões – pode dar uma narração seguida, que talvez interesse, apesar da forma de diário que tem. Não houve pachorra, nem habilidade.Vai como estava, mas desbastada e estreita, conservando só o que liga o mesmo assunto. O resto aparecerá um dia, se aparecer algum dia. M. A.” (MACHADO DE ASSIS, 2003: p. 5) O Memorial de Aires é um diário que se inicia no dia 09 de janeiro de 1888 (abrange os anos de 1888 e 1889, até o mês de agosto) quando o conselheiro, já sexagenário, havia retornado da Europa há um ano, após passar grande parte de sua vida como diplomata em vários países. Quem redige um diário relata precisamente os diversos momentos de sua existência, volta‐se sobre si mesmo quando escreve. Segundo Rousset, as páginas de um diário são: “(...) escritas de si para si, na clandestinidade, (...) excluem o olhar alheio (...) o que é um texto 'escrito só para si' senão um texto sem destinatário? Essa realização narcisística daria ao diário um estatuto à parte na instituição literária: discurso fechado sobre si mesmo, solilóquio sem ouvinte.”(apud Miranda, 1992, p. 34) Entretanto Blanchot descreve o escritor moderno como alguém que sente vertigem diante da objetividade e da impessoalidade da linguagem e para quem o recurso do diário é uma “fuga” diante de tal “perigo”. O memorial seria uma inusitada objetivação ao diário, para fugir de outra estranha objetivação, a da linguagem ficcional: “(...) a partir do momento em que a obra se converte (...) em literatura, o escritor sente cada vez mais a necessidade de manter uma relação consigo. É que ele experimenta uma repugnância extrema ao renunciar a si mesmo em proveito dessa potência neutra, sem forma, sem destino, que está por trás de tudo o que se escreve, repugnância e apreensão que se revelam na preocupação, característica de tantos autores, de redigir o que eles chamam o seu Diário. (...) O Diário não é essencialmente confissão, relato na primeira pessoa. É um Memorial (...) daí que, entretanto a verdade do Diário não esteja nas observações e comentários interessantes, de recorte literário; mas nos detalhes insignificantes que se prendem à realidade cotidiana (...).” (apud Miranda,1992, p.34) Esse caráter experimental da narrativa do autor que toma para si o desafio de VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Página | 121 Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL escrever um romance‐diário, insere‐se no conjunto de experiências inovadoras próprias da ficção de Machado de Assis desde Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), coma narração feita pelo “herói” morto – o “defunto‐autor” ‐, contando suas aventuras do além‐túmulo. Logo no início do Memorial, Aires acompanha a irmã Rita ao cemitério para dar graças pelo regresso do conselheiro há cerca de um ano ao Brasil, o que ele achava totalmente desnecessário, mas, para não desagradá‐la, concorda. Conversaram sobre os entes queridos que já se foram: o cônjuge de Rita e a esposa de Aires, que havia sido enterrada na Europa. Deparam‐se com a jovem e bela viúva Fidélia, que rezava fervorosamente no túmulo do marido. Aires a observa atentamente e encanta‐se por ela. Sentindo‐se atraído pela viúva, comparece às bodas de prata do casal Aguiar – pessoas amigas e agradáveis – para reencontrá‐la. Descobre que Fidélia casou‐se com o falecido marido, Noronha, contra a vontade dos pais de ambos, inimigos políticos. Estando o casal na Europa, morre o esposo. Ao regressar ao Brasil, o pai não a aceita e é acolhida então pelo tio, o desembargador Campos, antigo colega de faculdade de Aires e pelo casal Aguiar, que a considera como filha, na ausência de Tristão, afilhado do casal. Este havia partido para a Europa e não mantinha mais contato. “ Ao vê‐la agora, não a acha menos saborosa que no cemitério (...) Parece feita ao torno, sem que esse vocábulo dê idéia de rigidez; ao contrário, é flexível. (...) tem a pele macia e clara, com uns tons rubros nas faces (...)” (Machado de Assis, 2003: p. 23) No decorrer da narrativa, Aires observa, cético, a vida alheia, ‐ especialmente a de Fidélia – as agruras na velhice (o que já aparece na cena do cemitério), as relações da idade madura com a juventude, a relação entre vida e morte e lança um olhar diferente, mais crítico acerca da questão da escravidão negra. O conselheiro explica como suas leituras se anulam e se complementam concomitantemente e mais adiante, relaciona‐as com o que sente por Fidélia. “Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente alguma coisa de Shelley e também de Thackeray. Um consolou‐me do outro, este desenganou‐me daquele; é assim que o engenho completa o engenho, e o espírito aprende as línguas do espírito.”(2003:p.20) Aires procura sempre mostrar‐se neutro e impassível, entretanto, deseja Fidélia, chega a desejar casar‐se com ela. Para ela transfere sua impassibilidade, ao imaginá‐la à luz dos versos do poeta romântico inglês Shelley, que havia relido dias antes: “ 'I can not what men call love'. Assim disse comigo em inglês, mas logo repeti em prosa nossa a confissão do poeta, com um fecho de minha composição: 'Eu não posso dar o que os homens chamam amor' ...e é pena!” (2003: p.23) O velho diplomata, após saber que Fidélia despertara os amores de um jovem, reflete tanto sobre o assunto que sonha que a viúva vai lhe pedir um conselho e que o aceita não mais como amigo, mas como futuro marido: “Esta manhã como eu pensasse na pessoa que terá sido mordida VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Página | 122 Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL pela viúva, veio a própria viúva ter comigo, consultar‐me se devia curá‐la ou não (...) _ Conselheiro, disse ela graciosa e séria, que acha que eu faça? Que case ou fique viúva? _ Nem uma cousa nem outra. _ Não zombe, conselheiro. _ Não zombo, minha senhora. Viúva não lhe convém, assim tão verde; casada sim, mas com quem a não ser comigo? _ Tinha pensado justamente no senhor. Peguei‐lhe nas mãos, e enfiamos os olhos um no outro, os meus a tal ponto que lhe rasgaram a testa, a nuca, o dorso do canapé, a parede e foram pousar no rosto do meu criado, única pessoa existente no quarto, onde eu estava na cama. Na rua apregoava a voz de quase todas as manhãs: "Vai... vassouras! vai espanadores!” (2003: pp.46‐
47) Na narrativa são tecidas muitas considerações sobre a vida, especialmente no 'contraste' entre a mocidade e a velhice, como na cena em que Aires encontra‐se com Fidélia e escreve no Memorial, palavras que ainda mostram o quão acesa está a chama do desejo que sente por ela.“Estive com ela hoje, e se não a arrebatei comigo não foi por falta de braços nem de impulsos.(...) Ao cabo eu já me vou conformando com a viuvez perpétua da dama, se não é ciúme ou a inveja de a ver casada com outro.”(2003: pp.51‐54) O conselheiro observa e dialoga, na maioria das vezes, com aquele que se tornou o seu maior confidente, aquele com quem poderia exteriorizar tudo o que via e o que sentia: o papel, e como se sentia incomodado com o fato de passar alguns dias sem redigir anotação alguma: “Fique isto confiado somente a ti, papel amigo, a quem digo tudo o que penso e tudo o que não penso.(...) 13 de julho Sete dias sem uma nota, um fato, uma reflexão: posso dizer até oito dias, porque hoje não tenho o que apontar aqui. Escrevo isto só para não perder o costume. Não é mau escrever o que se pensa e o que se vê, e dizer isso mesmo quando não se vê nem pensa nada.” (2003: pp. 54‐62) Mais adiante, traz à luz a verdadeira significação do ato de escrever, não sem, logo depois, entrar numa atmosfera de pura hesitação: continuar ou não a escrever o Memorial? Entretanto, dias depois, num rompante decisivo, redige sobre a imperiosa necessidade de escrever e de refletir sobre o comportamento humano, aventurando‐se também a penetrar no universo feminino, mais uma vez aludindo à figura de Fidélia: “Estou cansado de ouvir que ela vem, mas ainda não cansei de o VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Página | 123 Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL escrever nestas páginas de vadiação. Chamo‐lhes assim para divergir de mim mesmo. Já chamei a este Memorial um bom costume. Ao cabo, ambas as opiniões se podem defender e, bem pensado, dão a mesma cousa. Vadiação é bom costume. (...) Talvez seja melhor parar. Velhice quer descanso. Bastam já as cartas que escrevo em resposta e outras mais, (...) (...) (...) não posso interromper o Memorial; aqui me tenho outra vez com a pena na mão (...) Desta vez o que me põe a pena na mão é a sombra da sombra de uma lágrima... Creio tê‐la visto anteontem(...) na pálpebra de Fidélia, referindo‐me eu à dissidência do pai e do marido. (...) Eu nasci com tédio aos fracos. Ao cabo as mulheres são menos fracas que os homens – ou mais pacientes, mais capazes de sofrer a dor e a adversidade...Aí está; tinha resolvido não escrever mais, e lá vai uma página com a sombra da sombra de um assunto.” (2003: pp. 65‐
66,73) A certa altura da narrativa, o conselheiro dá indicações de que sua carreira diplomática nunca saiu do “gabinete” e de que nada realizou de relevante em seu ofício. O seu trabalho era “ouvir'. Ouvia com ponderação e pouco falava, tecia reflexões acerca de si mesmo e dos outros. O seu gênio “complacente” já vinha desde a infância: “A diplomacia que exerci em minha vida era antes função decorativa que outra cousa;não fiz tratados de comércio nem de limites, não celebrei alianças de guerra; podia acomodar‐se às melodias de sala ou de gabinete. Agora vivo do que ouço aos outros. (...) (...) tive de os ouvir com aquela complacência, que é uma qualidade minha e não das novas. Quase que a trouxe da escola, se não foi do berço (...) Na escola não briguei com ninguém, ouvia o mestre, ouvia os companheiros, e se alguma vez estes eram extremados e discutiam, eu fazia da minha alma um compasso, que abria a ponta aos dois extremos. Eles acabavam esmurrando‐me e amando‐me. (...) A diplomacia me ensinou a aturar com paciência uma infinidade de sujeitos intoleráveis que este mundo nutre para seus propósitos.” (2003: pp. 75‐86 e 109) grifo nosso 4. O MEMORIAL E A ABOLIÇÃO No Memorial, Aires é mais contundente no que concerne à libertação dos VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Página | 124 Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL negros do que em Esaú e Jacó. E registra no dia 19 de abril de 1888: “Venha que é tempo. Ainda me lembra que li lá fora, a nosso respeito por ocasião da famosa proclamação de Lincoln: 'Eu, Abraão Lincoln, presidente dos Estados Unidos da América...' mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele e acabasse também com seus escravos. (2003: p.41) E no dia 13 de maio escreve com entusiasmo e até mesmo cogita a possibilidade de seguir o cortejo para ovacionar a regente. Só não o fez devido a seus hábitos “moderados” de diplomata: “Enfim, lei. Nunca fui nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do senado e da sanção da regente. Estava na Rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral. (...) Estive quase, quase a aceitar tal era o meu atordoamento, mas meus hábitos quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro e recusei. Recusei com pena. (...) Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia.” (2003: pp. 41, 42) As palavras de Aires em relação à Abolição fogem do seu estilo sempre comedido e diplomático. As declarações convictas do conselheiro fazem com que não pairem quaisquer dúvidas quanto ao seu envolvimento emocional com a questão. Entretanto, no dia seguinte, o conselheiro ameniza o tom emocionado de 13 de maio: “Não há alegria pública que valha uma alegria particular.” (2003: p.42) Referia‐se aqui à alegria do casal Aguiar ao receber uma carta do afilhado Tristão, após longo tempo sem contato. “Eis aí como, no meio do prazer geral, pode aparecer um particular, e dominá‐lo (...) Era devida a carta; como a liberdade dos escravos, ainda que tardia, chegava bem.” (2003: p.43) Ainda acerca da Abolição, Aires reflete sobre a decisão de Fidélia sobre doar a fazenda do pai, agora falecido, aos escravos recém libertos. Ela decide sozinha, mas o faz seguindo a orientação de Tristão, com quem iria se casar. Não há uma sugestão explícita da parte dele, há sim uma insinuação, que ela acata sem questionar. E ouve da madrinha do rapaz as prováveis razões da doação da fazenda. Além disso, o narrador cria uma oportunidade para criticar uma discussão em torno VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Página | 125 Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL da questão literária tão em voga em nossas letras no século XIX, numa exclamação irônica: “ O que ouvi depois é que Tristão, sabendo da resolução da viúva, formulou um plano e foi comunicar‐lho. Não o fez nos termos claros e diretos, mas por insinuação. Uma vez que os libertos conservam a enxada por amor da sinhá‐moça, que impedia que ela pegasse da fazenda e a desse aos seus cativos antigos? Eles que a trabalhem para si. (...) (...) dona Carmo (...) mo contou acrescentando: _ Tristão é capaz da intenção e do disfarce, mas eu também acho possível que o principal motivo fosse arredar qualquer suspeita de interesse no casamento (...) _ E andam críticos a contender sobre romantismos e naturalismos!” (2003: pp.139‐140) CONSIDERAÇÕES FINAIS: A obra machadiana captou como poucos a triste “comédia humana”, utilizando para isso, sofisticadas lições de lucidez crítica. Todo o ceticismo encontrado em suas páginas, a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, é representado de modo evasivo e bem humorado. Os narradores sabem esquivar‐se das mais inusitadas situações, fugindo do assunto, utilizando do disfarce, fazendo troça, para desse modo, distrair o leitor e, muitas das vezes, conquistar‐lhe a simpatia.Aparentemente aceitam sem restrições, os valores das classes dominantes; no entanto, pretendem agir como hipócritas, tencionando encenar a hipocrisia da elite, nas relações sociais com o intuito de desmascará‐la. É o “narrador enganoso” (GLEDSON, 2005: p. 19) , que não dá oportunidade ao leitor de questionar seu modo gentil e cortês. Aires passou da Monarquia à República, do regime escravista à Abolição, destilando ironia e desacreditado de que haveria alguma mudança significativa no cenário sócio‐político do Brasil. As idéias liberais e modernas tão em voga na Europa do século XIX não se coadunavam com a nossa herança colonial e com a escravidão vigente no país. Como falar em Modernidade num país em que vigorava o regime escravocrata? Nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda:“Trazendo de países distantes nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão de mundo, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos uns desterrados em nossa terra” (apud Schwarz, 2005: p. 61) Como assinala Schwarz, numa arguta reflexão sobre a obra machadiana: “(...)vimos que a sua fórmula narrativa atende meticulosamente às VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Página | 126 Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL questões ideológicas e artísticas do Oitocentos brasileiro, ligadas à posição periférica do país. (...) A notável independência e amplitude de Machado no trato literário com a tradição do Ocidente depende da solução justa que ele elaborou para imitar a sua experiência histórica. (...) E se uma parte dos nossos imaginou que o mais avançado e universal dos escritores brasileiros passava ao largo da iniqüidade sistemática mercê da qual o país se inseria na cena contemporânea, terá sido por uma cegueira também ela histórica, parente mais ou menos longínqua da desfaçatez que Machado imitava.” (Schwarz, 2000: pp. 241‐243) grifo do autor. Um século depois da morte do grande escritor, as transformações sociais e políticas ainda estão longe de serem realizadas em sua plenitude. “Mudar de roupa sem mudar de pele”, como disse Aires uma vez, com relação à mudança de regime... É uma análise do poder e de seus mecanismos ideológicos e sociais, representados por meio de conselhos e registros num diário. São situações simples que podem explicar problemas complexos do país de ontem e de hoje, o que mostra a marca ética da atualidade da ficção do nosso Bruxo do Cosme Velho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Homero Vizeu. “Esaú e Jacó: irmãos quase siameses e Flora”. In: Nonada Porto Alegre: Revista da Faculdade de Educação, Ciências e Letras Ritter dos Reis, nº 2, pp. 90‐99, 2005. BERNARDO, Gustavo. “Conselhos do conselheiro”. In: Revista Eletrônica Polêmica. Rio de Janeiro: www.polemica.br, nº 10, pp. 1‐10. Acesso em 20 de janeiro de 2008. GLEDSON, John. “A narrativa”. In: GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e realismo. Tradução: Fernando Py. São paulo: Cia das Letras, 2005. MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Esaú e Jacó. São Paulo: Martin Claret, 2001. ____________ Memorial de Aires São Paulo: Martin Claret, 2003. MIRANDA Wander Melo. “A ilusão autobiográfica”. In: MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos. Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Belo Horizonte: Editora da Universidade federal de Minas Gerais, 1992. SCHWARZ, Roberto. “As idéias fora do lugar” In: SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2005. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Página | 127 Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira OBSERVAÇÃO, CETICISMO E HISTÓRIA: O PERSONAGEM AIRES EM ESAÚ E JACÓ E NO MEMORIAL ________ “Acumulação literária e nação periférica” In: SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 4ª edição. São Paulo: Editora 34, 2000. OBSERVATION, SCEPTICISM AND HISTORY: THE CHARACTER AIRES IN ESAÚ E JACÓ AND IN MEMORIAL DE AIRES ABSTRACT: This article intends to study how Machado de Assis’ fiction represents the character Aires in Esaú e Jacó (1904) and in Memorial de Aires (1908), emphasizing how the councilor is a conciliatory element between the people, in the presence of relevant historical facts, the change of political regime and the abolition of slavery, wich have created a new face of the country in the nineteenth century, with a scepticism disguised in irony and humour. It reveals a critical posture in writing these novels. Keywords: Councilor Aires – observation – scepticism – Machado de Assis’ fiction ‐ history Recebido em 12 de junho de 2009; aprovado em 22 de julho de 2009. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [115–128]
Página | 128 ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA Alexandre Bonafim Felizardo1 RESUMO: A palavra de Orides Fontela margeia os limites da realidade, numa busca desenfreada pelo ser em oposição ao nada. Seus poemas de extrema concisão demonstram a luta da autora em torno da expressão, em que o branco da página e o silêncio ganham dimensões ontológicas e transformam‐se em matéria da própria lírica. Com efeito, essa luta torna aguda a consciência, intensifica a percepção da existência, levando a poeta a enunciar, pela poesia, os desacertos da realidade. Palavras‐Chave: fenomelogia, poesia, existencialismo, simbologia Quando Orides Fontela lançou seu primeiro livro, Transposição, em 1966, sua voz poética já se encontrava completamente amadurecida e formada. Tal fato quebrou um clichê recorrente na crítica literária, ou seja, a expectativa de que o autor iniciante, por ser inexperiente, ainda tem de maturar sua voz ao longo de um percurso, no qual a aprendizagem, adquirida nas diversas publicações de outros livros, contribui para a formação de uma poesia mais acabada e, portanto, mais perfeita. Isso não ocorreu com Fontela que, desde a sua estréia até o seu último livro, manteve‐se sempre fiel à sua própria voz, construindo uma obra cuja coerência e unidade foi pontuada pela qualidade estética. Para tanto, a poeta utilizou‐se de um conjunto limitado de recursos formais e temáticos que muito contribuiu para a formação dessa homogeneidade que caracteriza toda a sua poesia. Por outro lado, isso não significa que todo esse equilíbrio não possua diferenças estruturais. A cada livro, a poeta de “Trevo” soube introduzir novos recursos e diferentes técnicas que singularizaram cada uma de suas obras. A constante fidelidade às suas diretrizes estéticas, fundadoras de sua arte, mesclava‐
se, a cada publicação, a inovações que, longe de imprimir uma descontinuidade ou desarmonia ao todo, adequavam‐se perfeitamente à estrutura do conjunto. Assim, paradoxalmente, o velho e o mesmo apresentavam‐se com nova face, com frescor sempre renovado. Junqueira (1988, p.124) afirma: “todo grande escritor se renova 1
Universidade de São Paulo, São Paulo, mestre em literatura brasileira, doutorando em literatura portuguesa, e‐mail: [email protected], TELEFONE: 011‐33318309 VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA na repetição, na obsidiante insistência com que aborda seus temas e problemas”. Se não fosse dessa forma, “como poderíamos apreender a sua identidade ou seu périplo ontológico?”. Dessa maneira, pode‐se perceber, ao longo de toda a obra de Fontela, a presença dessa identidade, desse périplo ontológico apontado por Junqueira, que dá um mesmo tom a toda lírica orideana. Fontela congregou em sua poesia uma série de influências, concentrando‐as em um estilo ímpar e largamente criativo. Ao acatar o que vinha do outro, ou melhor, ao tresmalhar em sua escrita as influências advindas da tradição, ela imprimiu sua face, sua individualidade no seu fazer artístico, transformando o assimilado em algo completamente diferente, em uma obra poética toda sua, em que se pode reconhecer sua presença ontológica. Sobre essa assimilação criativa da tradição empreendida por Fontela, assim afirma Candido (apud FONTELA, 1983, p.5): Um poema de Orides tem o apelo das palavras mágicas que o pós‐
simbolismo destacou, tem o rigor construtivo dos poetas engenheiros e tem um impacto por assim dizer material de vanguarda recente. Mas não é nenhuma dessas coisas, na sua integridade requintada e sobranceira; e sim a solução pessoal que ela encontrou. Parecendo tão inseridos numa certa tradição da poesia moderna, e sendo tão originais como invenção, os seus versos possuem em geral uma carga de significado que não é freqüente. Convém pontuar, agora, algumas características da poesia de Fontela que permeiam o conjunto de sua obra. Para tanto, serão arrolados, nesse breve ensaio, temas e recursos estilísticos, não todos, mas pelo menos aqueles que se constituem fundamentais para essa lírica. Utilizar‐se‐á textos de importantes críticos que, com precisão e sensibilidade, captaram as particularidades dessa lírica tão rara e original. De acordo com Candido[1] (1988), Fontela “tem um dos dons da modernidade: dizer densamente muita coisa por meio de poucas, quase nenhumas palavras”. A lírica de Fontela assenta‐se nesse paradoxo, ou seja, a expressão verbal concentra‐se ao máximo, expandindo‐se em uma intensa carga semântica, advinda justamente da economia ascética dos recursos expressivos. Tal poesia restringe‐se, assim, de acordo com Junqueira (1998, p.135) à “essência da linguagem”. Nessa lírica, nenhuma palavra flutua inadvertidamente, sem uma justificativa. Todo signo adequa‐se com harmonia e precisão ao contexto do poema e é explorado em suas profundidades semânticas e expressivas. Conforme salienta Junqueira (1998, p.135): [...] o segredo dessa altíssima poesia reside justamente [...] nessa linguagem de essencialidades, nesse discurso cuja limpidez dói até no próprio espírito, nessa dicção exata e cristalina na qual o que e o como da expressão poética convivem num diálogo de harmonia e organicidade absolutas. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA Essa concisão altamente expressiva guarda, por outro lado, parentesco com o haikai, gênero da poesia japonesa, em que a economia dos recursos lingüísticos atinge alta carga semântica. No dizer de Paz (2003, p.163), o haikai “é uma palavra cápsula carregada de poesia”. Cerne da expressão, é um poema densamente breve, “linguagem altamente concentrada e vigorosa”, “artefato lingüístico sucinto e altamente tensionado”(CAMPOS, 1977, p. 55‐56). É importante notar que, apesar do estilo de Fontela possuir parentesco com esse tipo de poesia japonesa, a poeta de Trevo (1988) nunca se dedicou ostensivamente ao feitio de haikais. Há, sobretudo, semelhanças de estilo e técnica entre o lirismo de Fontela e aquele praticado pelos haikaístas. Assim, em um texto como “Aurora”, pode‐se perceber, na estrutura sintética do poema, a presença do imensurável: o infinito nascer do sol. Paradoxalmente, a pequenez da rosa liga‐se ao espaço infinitamente vermelho da aurora. Eis um texto muito semelhante ao haikai: Rosa, rosas. A primeira cor. Rosas que os cavalos esmagam (FONTELA, 1988, p.191). Mesmo nos poemas mais extensos, de feitio mais longo, em que não se pode perceber de maneira alguma o formato canônico do poema japonês, tem‐se esse mesmo corte sucinto das palavras, a mesma brevidade intensa capaz de atingir o leitor com um denso lirismo, características típicas do haikai, tal como podemos perceber em “Tempo”: O fluxo obriga qualquer flor a abrigar‐se em si mesma sem memória. O fluxo onda ser impede qualquer flor de reinventar‐se em flor repetida. O fluxo destrona qualquer flor de seu agora vivo e a torna em sono. O universofluxo repele entre as flores estes cantosfloresvidas. ‐ Mas eis que a palavra VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA cantoflorvivência re‐nascendo perpétua obriga o fluxo cavalga o fluxo num milagre de vida (FONTELA, 1988, p.14). Nesse poema, cada estrofe fecha‐se em si mesma, formando uma unidade que muito lembra a estrutura do haikai. As aliterações em “f” e “v” expressam a voragem do tempo, a sua dinamicidade, na qual cada instante jamais se torna “flor repetida”. O formato circular da flor simboliza o movimento incessante e giratório do fluxo, ritmo esse capaz instaurar o renascimento contínuo e milagroso da vida. Há nesse poema, como em toda a obra orideana, um apelo imagístico muito intenso. Como afirma Arrigucci Júnior, a poesia de Fontela “tem uma garra no concreto muito forte”[2] A autora empreende uma intensa observação do mundo sensível, captando objetos e seres, tais como pássaros, espelhos, fontes, flores, dentre outros, que se transformam em imagens poéticas de intenso poder visual. Tal lírica, assim, possui forte plasticidade, possui uma dimensão pictórica que também faz lembrar o haikai. De acordo com o Oda (apud ARRUDA, 2003, p.9‐10), “o haikai é um flash, um recorte, uma espécie de registro fotográfico do cotidiano”, em que o mundo sensível é captado pelo olhar em um instante de iluminação. Dessa maneira, o haikai constitui‐se em um registro da realidade, através do qual se torna possível desvelar nuanças do mundo objetivo que se encontravam até então ocultas. Afirma Teruko Oda sobre o haikai: “A prática, diária e disciplinada, nos leva a concluir que, muito mais que um exercício de síntese, o haikai é um exercício de desautomatização do olhar, ou, de reeducação dos sentidos” . Da mesma maneira, pode‐se perceber, na obra de Fontela, esse olhar renovado que capta a realidade com “A primeira cor”. Um olhar inaugural que desvela o mundo como se o contemplasse sempre pela primeira vez. A realidade é posta sob o foco de uma sensibilidade em constante êxtase e encantamento: Abrir os olhos. Abri‐los como da primeira vez ‐ e a primeira vez é sempre (FONTELA, 1988, p.143). É interessante também notar que esse olhar primevo, sempre revificado, está constantemente associado, na lírica orideana, às percepções da infância. A poesia de Fontela possui uma fixação pelas origens, pelas fontes, pelo início da existência. Afirma Baudelaire (apud PAES, 1988, p.6): “O gênio é somente a infância VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA redescoberta” (os itálicos pertencem ao próprio poeta francês). Com essa expressão, Baudelaire quis modular uma sensibilidade aguçada, pertencente aos adultos e metaforizada pelo retorno à infância, capaz de vislumbrar o mundo em sua pureza total. Por outro lado, ao prosseguir em suas reflexões sobre a sensibilidade da “infância redescoberta”, o poeta de “Les fleurs du mal” empreende, outrossim, uma reflexão sobre a convalescença, ligando‐a ao olhar ultra‐sensível da criança. Ao meditar em torno ao conto de Poe, “O homem das multidões”, em que um convalescente fita a multidão com surpresa e espanto, Baudelaire afirma que o olhar daquele que escapa à morte “aspira com deleite todos os indícios e eflúvios da vida”, tal como a percepção da criança. Sobre essas reflexões do escritor francês, assim exprime Paes (1988, p.6): Daí tira Baudelaire a conclusão de que a “convalescença é uma volta à infância”. Isso porque a sede de vida de quem acaba de escapar da morte traz consigo uma aguçamento das percepções, que adquirem um grau de intensidade bem maior que o das percepções habituais. Tal intensidade as aparenta às percepções da criança, para a qual o mundo que apenas começa a conhecer é uma perene “novidade”. O grifo é do próprio Baudelaire, e ele também grifa o adjetivo ao dizer que a criança está sempre “inebriada” com o espetáculo do mundo, percorrida por um “estremecimento nervoso” que é típico de uma idade em que “a sensibilidade ocupa quase todo o ser”. Portanto, o que se pode perceber na obra de Fontela é a constante presença desse eu lírico alumbrado, um eu “em que a sensibilidade ocupa todo o ser”. Esse aguçamento da percepção, metaforicamente representada pela infância, é o que se pode notar no poema “Revelação”: A porta está aberta como se hoje fosse infância e as coisas não guardassem pensamentos formas de nós nelas inscritas. A porta está aberta. Que sentido tem o que é original e puro? Para além do que é humano o ser se integra e a porta fica aberta. Inutilmente (FONTELA, 1988, p.35). As coisas do mundo são captadas em sua pureza, sem máculas da presença do eu nos objetos. A porta aberta metaforiza esse olhar especial, totalizador, capaz de vislumbrar um universo paradisíaco, um universo irradiante que se estende além VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA da casa, além do eu. Mesmo que essa visão seja inútil, ela é a conquista daqueles que se entregam ao alumbramento diante da vida. Outro tema tratado pela poeta é o silêncio, ou seja, o momento anterior ao ato da escrita que, metaforicamente, transforma‐se em uma espécie de nada absoluto. A página em branco, correlata desse silêncio total, ganha relevância semântica, ela se transforma em uma ausência imensa contra a qual o sujeito lírico trava um combate vigoroso. Assim, instaura‐se na lírica de Fontela uma dialética entre a inexpressão e a expressão, em que o fazer poético passa a profanar uma pureza, ou seja, a limpidez da página em branco. Essa brancura do papel transmuta‐
se em símbolo da ausência dos sofrimentos que dilaceram o existir humano. É por isso que a palavra poética faz um contraponto a esse vazio, a essa brancura. O nada transforma‐se em lucidez plena, consciência agudíssima da existência humana e, por isso, intensa dor que avassala a vida. Sobre essa fixação com o nada presente em tal lírica, aponta Candido (apud FONTELA 1983, p.3): Os seus poemas partem da fixação com o nada, na tentativa de afirmar o ser, ‐ que é o eu do poeta, mas sobretudo o poema realizado, atrás do qual ele se eclipsa. No entanto, guardam uma dúvida: não estaria no nada a plenitude imperturbada, a compenetração sem mediação? Candido discute essa oposição entre o ser e o nada na obra de Fontela, tomando como exemplo um texto intitulado, simplesmente, “Poema”. Afirma o crítico que, nesse texto: [...] a produção aparece como superação do silêncio, mas em vez de ser triunfo da fatura, triunfo sobre o inexistente, arrisca em redundar em profanação, em quebra de um possível estado ideal, que comporta a renúncia ao poema e, portanto, privilegia o não‐ser (que é o único “ser absoluto”, dizia Antero de Quental) [...] (CANDIDO apud FONTELA 1983, p.3). Eis o “Poema” de Fontela (1988, p. 144): Saber de cor o silêncio diamante e/ou espelho o silêncio além do branco. Saber seu peso seu signo ‐ habitar sua estrela impiedosa. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA Saber seu centro: vazio esplendor além da vida e vida além da memória. Saber de cor o silêncio ‐ e profaná‐lo, dissolvê‐lo em palavras. Nesse texto, a poeta buscou imagens de objetos sólidos e densos com as quais ela designa, sinestesicamente, o silêncio. A ausência de todo som ganha dimensão metafórica, em “Poema”; transforma‐se em elementos concretos e luminosos como diamante, espelho e estrela. Nessa última imagem, a da estrela, o silêncio irradia‐se, ganha luz, preenche‐se, portanto, de um valor positivo. Com isso, o nada passa a ser superior ao ser, pois se o primeiro é luz, o outro é escuridão. O nada ganha luminosidade, pois simboliza a ausência de todo drama humano, de todo sofrimento e dor. Eis que resta ao poeta a tarefa de profanar essa luz, dissolvendo‐a em palavras. Também o poema, conforme muito bem notou Candido, é visto sob uma ótica negativa, pois ele é o avesso da luz, a sombra que resta de um paraíso impossível. Diante do fazer poético, centelha de lucidez e sofrimento, o eu lírico revela um tom angustiado e sofrido: “A vida é lúcida e impossível.” (FONTELA, 1988, p.34). Esse drama faz com que a poeta tencione o formato do poema, esgarçando‐o no branco da página. Ao utilizar esse procedimento, Fontela passa a explorar espaços inusitados do papel, em uma tentativa de enlaçar a palavra ao branco da página, ou melhor, em uma tentativa de fazer a palavra perder‐se no silêncio primordial de onde ela se originou. Esse recurso faz lembrar o poema “Un coup de dés” de Mallarmé, obra na qual o escritor francês constela os signos em diversas direções da página, quebrando a linearidade do discurso. Esse efeito também foi explorado pelos poetas concretistas, poetas que, inclusive, foram lidos pela autora de Trevo (1988). Ao explorar o branco da página, fragmentando o poema em direções novas, Fontela imprime um apelo visual à sua arte, fazendo com que a palavra passe “a render mais do que estava previsto”. Com esse recurso, a autora “multiplica os níveis de significado” para “além do puramente semântico”, potencializando o poder sugestivo do signo poético (CANDIDO, 1983, p.6). Eis um exemplo de poema, intitulado “Ciclo”, cuja estrutura expande‐se pela página, formando um texto‐
caleidoscópio: Sob o sol sob o tempo (em seu próprio agudo ritmo) VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA dispersaram‐se intercruzaram‐se ‐ em ciclo implacável – pássaros. Sob o sol sob o tempo reinventa‐se (esplendor cruel) o ritmo. Sob o sol sob o tempo automáticas flores inauguram‐se Sob o sol sob o tempo a vida se cumpre autônoma (FONTELA, 1988, 103). O poema possibilita leituras em várias direções. Como os pássaros que se “intercruzam”, os olhos do leitor também trançam significações em diversos pontos. Pode‐se perceber na forma correlata “Sob o sol/ sob o tempo” um paralelismo entre a luz do sol e o passar do tempo. As horas são identificadas com o dia, ou seja, o movimento deste corresponde à fuga dos instantes. Por outro lado, esse paralelismo revela a condição existencial do homem, ou seja, é nesse lugar, debaixo do sol, que o homem existe e sofre com o passar do tempo. Os pássaros que se dispersam representam a própria fuga da vida e do tempo. Há também no poema a presença de um ritmo que lembra a agitação monótona de uma máquina, daí a fusão de um termo da mecânica como “automáticas” a outro do campo semântico da natureza “flores”. O tempo natural tem o compasso monótono das máquinas, a artificialidade dos tempos modernos. A síntese da linguagem de Fontela, em que o mínimo de palavras possui alta voltagem semântica, também se relaciona com essa busca do silêncio presente em sua lírica. Ao escavar a linguagem, desnudando‐a de tudo aquilo que não seja apenas essência, a poeta empreende uma busca do silêncio. A concisão da linguagem, corte incisivo realizado no próprio ato da comunicação, nada mais é do que um não à própria linguagem. A poeta visa a apagar sua escrita, empreendendo um resumo, em que o próprio silêncio imiscui‐se entre as palavras. Assim, paradoxalmente, é pelo som, pela palavra, que a poeta atinge o silêncio. Isso faz lembrar a música silenciosa inventada por Mallarmé, muito bem expressa pelo oxímoro com o qual o autor encerra um de seus poemas “Musicienne du silence” (MALLARMÉ apud GOMES, 1989, p. 64). O poeta francês deu forma a uma musicalidade dos versos que não se atinha apenas aos recursos sonoros da linguagem. Ele criou uma poesia cuja musicalidade pertencia também ao intelecto, harmonia só perceptível pela razão, ou melhor, pelos “ouvidos do espírito”, tal como explicita Gomes. Conforme sublinha esse autor, o “sonho órfico de conquistar a linguagem essencial, a linguagem sem palavras, instância significante, representação do mundo em seu momento mesmo de alma, sempre acalentou a VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA imaginação dos poetas [...] (GOMES, 1989, p.51). É com esse sonho órfico que Fontela deu forma à sua obra, criando uma poesia repleta de “som e fúria” que, paradoxalmente, esgarça‐se no próprio silêncio. Esse ritmo silencioso, criação ímpar de Mallarmé, transpassa a lírica orideana. Eis o que Gomes (1989, p.63) exprime sobre essa “música em si”: Ao contrário de Verlaine, Mallarmé pensava na música de um ponto de vista puramente intelectual, pensava na idéia da música em si. Talvez por isso, quando Debussy lhe disse que ia musicalizar “L´aprés midi d’un faune”, tinha respondido da seguinte maneira “mas eu pensei que já tinha feito isso...”. Debussy não podia ouvir a musicalidade interna, que correspondia a um arranjo mais livre das palavras na frase, que correspondia a uma libertação dos nexos sintáticos explícitos. É com essa música sutil que Fontela captou o silêncio primordial, nada no qual o ser se modela e se constitui. Dessa forma, nessa lírica, o “silêncio, aparentemente negação da poesia, é sua afirmação” (GOMES, 1989, p.65). Outro recurso estilístico importante na obra de Fontela é a fragmentação. Candido afirma que desde os românticos, a poesia passou a ter a aparência de algo não acabado, de texto que se finaliza em aberto, ou melhor, de texto que não se finaliza. Assim, o poema torna‐se “fragmento elaborado e considerado forma suficiente de expressão” (CANDIDO apud FONTELA, 1983, p.6). Com esse procedimento, a poesia passou a ter forte carga de contenção e, contraditoriamente, intensa expansão advinda de sua abertura para significados que se encontram sugestivamente além do fragmento. Sobre a fragmentação da poesia de Fontela, Moutinho (1983, p.4)afirma: A página branca, mais do que mero repositório do poema, é tabuleiro em que se desfere o jogo do existir. Ora, sendo a existência naturalmente fragmentária, feita de alternâncias, de instantes de altitude e depressão, de pleno sentido do estar aqui e de vazios que confinam com o não‐ser, com o nada, a poesia de Orides Fontela, esposando no íntimo esse movimento ondulatório, faz‐se necessariamente fragmentária. Seus poemas nunca têm a aparência de completos, de encerrados em si: ela deixa sempre uma fresta entreaberta, a espera de uma metáfora que silencie para sempre as metáforas. Essa metáfora só pode ser o silêncio. É do próprio movimento do existir, portanto, que nasce essa fragmentação. A vida, em si, é embate e pacificação, ritmo e repouso, êxtase e infelicidade, daí a total adequação formal da fragmentação ao demasiado humanismo da lírica orideana. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA Outra característica importante da poesia de Fontela é a presença de símbolos que potencializam os poderes sugestivos de sua poesia. Elementos simbólicos transpassam toda a sua obra; eles formam um repertório com o qual a poeta sonda temas universais como a morte, a consciência e a própria poesia. Sobre o símbolo, afirma Ferreira (2002, p.39): o “símbolo [...] realiza a fusão dos contrários e significa muitas coisas ao mesmo tempo, tanto que exprime o indizível, ou seja, o que não pode ser traduzido pelas palavras da linguagem quotidiana, porque seu sentido escapa à razão – é infinito e inesgotável”. Dessa forma, ao utilizar os símbolos, Fontela potencializa ainda mais o poder semântico de sua linguagem concisa. A poesia da autora passa a remeter o leitor a verdades indizíveis, transcendentes, repletas de significados que dão a medida do mistério inerente à vida humana. O símbolo, assim, torna‐se intraduzível, pois representa um complexo de sentimentos que se interligam a um objeto. Sobre esse poder subjetivo do símbolo sugere Spitzer (2003, p.68): “[...] um símbolo representa a identificação emocional de um complexo de sentimentos a um objeto exterior, o qual, uma vez que se tenha estabelecido a identificação original, produz imagens sempre novas, com ritmo e desenvolvimento próprios, nem sempre passíveis de tradução”. O símbolo, portanto, espelha uma subjetividade em um dado objeto do mundo. É o que acontece, por exemplo, com os poemas de Fontela em que há a presença da simbologia do pássaro. Essas imagens do pássaro estão repletas de sugestões que se ligam a aspirações e sentimentos muito particulares da poeta. O pássaro transforma‐se em motivo temático com o qual a autora de Trevo (1988) problematiza o seu estar no mundo. São vários os instantes em que a simbologia dos pássaros atinge plenitude na obra de Fontela. Eis alguns poemas que poderão dar um exemplo da importância desse tema: GÊNESIS Um pássaro arcaico (com sabor de origem) pairou (pássaro arcano) sobre os mares. Um pássaro movendo‐se espelhando‐se em águas plenas, desvelou o sangue. Um pássaro silente abriu as VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA asas ‐ plenas de luz profunda – sobre as águas. Um pássaro invocou mudamente o abismo (FONTELA, 1988, p.122). Em “Gênese”, um pássaro irrompe nos céus e paira estático nos ares, um pássaro mítico, primevo, com “sabor de origem”, invocando “mudamente” o mistério profundo do abismo. As asas abertas do pássaro, irradiadas pela luz, inauguram uma paisagem esplêndida, uma paisagem imaculada distante do mundo vilipendiado pelo capitalismo, em que a origem e o mito não possuem lugar. Um traço vertical se delineia nesse poema: nas alturas temos as asas abertas, epifania plena da vida, abaixo temos as águas profundas, o abismo. Todavia, as águas são o espelho em que essa beleza cósmica se reflete. Água e ar entrelaçam‐se delineando, nesse poema, uma dialética entre a vida e a morte. Um outro exemplo da plenitude que a simbologia dos pássaros ganha na obra de Fontela é o poema “Vigília”: Momento pleno: pássaro vivo atento a. Tenso no instante ‐ imóvel vôo – plena presença pássaro e signo (atenção branca aberta e vívida). pássaro imóvel. pássaro vivo atento a (FONTELA, 1988, p.145). Nesse poema, temos a presença, tão cara à Fontela, do momento total, instante fulgurante da existência: “momento/ pleno”, “plena presença”. Chama a VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA atenção o paradoxo com o qual a autora designa o vôo: “imóvel vôo”. Temos nesse oxímoro um instante de epifania, momento em que a vida se revela em plenitude. Outro fator importante na lírica orideana é o ritmo circular que interliga, em uma única teia, todos os seus poemas e todas as suas obras. Assim, um livro ou um poema sugere o seguinte. A cada novo texto percebe‐se a presença de outro anteriormente lido. O fim de uma leitura remete‐nos sempre à gênese da obra, ao seu princípio fundador. Tal estrutura circular encontra‐se muito bem representada nos títulos que a autora deu aos seus livros: Trevo, Rosácea, Helianto. Sobre Trevo, assim o designou Hazin: “podemos dizer que esse é um livro inconsútil: no sentido de que não há costura entre as partes – é todo um só cristal” (HAZIN, 1988, p.3). Como o trevo, o helianto e a rosácea, objetos de formato circular, a obra de Fontela forma um todo indivisível, um círculo perfeito, em que o mesmo perde‐se sempre na origem. Dessa forma, como afirma Hazin (1988, p. 2), a obra de Fontela funciona como um caleidoscópio, em que uma palavra se interliga a outra: O caleidoscópio é metáfora do seu fazer poético. Escrever em caleidoscópio seria uma maneira especial de organizar formalmente um texto: algo já escrito anteriormente repetir‐se‐á mais adiante, gerando um novo ícone. O que faz Orides senão baralhar os mesmos signos – o pássaro, o sangue, o espelho, a luz, o branco, o silêncio – num jogo lúcido e agudo? As palavras giram, ganham matizes e formas diferentes, modificando o vitral – belíssimo – que se mostra ao leitor: estrela, geometria de espelhos, rosácea, girassol, bizantino. A fragmentação dos poemas que, por tal motivo, sempre possuem a aparência de inacabados, faz com que a autora sempre retrabalhe fragmentos, sempre retome um texto, renovando‐o e transformando‐o em outro. Às vezes, esses textos possuem o mesmo título, porém com números que os diferenciam. Sobre essa retomada de um texto em outro, afirma novamente Hazin (1988, p 3): Ao ler [...] o poema “Águas” [...] descubro – fascinada – tratar‐se da primeira parte de um outro poema lido anteriormente em “Transposição” [...]. Existe, dessa vez, a tentativa de abolir a temporalidade, de vez que o poema conseqüente precede o antecedente. O jogo atinge, então, o seu ponto culminante, e o livro como um todo metamorfoseia‐se na “absoluta palavra que nos pertence integralmente”. A obra de Fontela, portanto, transforma‐se inteira em uma palavra total, com o qual a poeta aventura‐se pelo existir humano. Trevo (1988) juntamente com Teia (1996) formam a rosácea “de cinco/ tempos em um mesmo ponto” “que se acende/ no infinito” (FONTELA, 1988, p.77). Bachelard em sua obra A poética do espaço (2000) VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA empreende uma reflexão sobre o formato redondo do ser. O filósofo francês retoma a seguinte afirmação de Van Gogh; “Provavelmente, a vida é redonda” (VAN GOGH apud BACHELARD, 2000, p.235). Fontela, assim, soube dar à sua obra a forma do ser. No centro dessa poesia está a busca da essência do homem e do mundo. Também Eliade reflete sobre o formato circular, ao mencionar a meditação tântrica, em que o corpo humano transforma‐se em uma mandala. De acordo com o historiador das religiões, esse “termo quer dizer ‘círculo’, as traduções tibetanas o definem tanto como ‘centro’ como por ‘o que rodeia’” (ELIADE, 1991, p.48). A obra orideana forma, portanto, uma perfeita mandala, em cujo centro está o ser. Com uma obra total e plena, fonte de lirismo puro e vigoroso, Fontela conseguiu, assim, dar forma ao seu ser, às suas indagações, às suas vivências existenciais, ao dizer um sim à poesia e aos perigos da vida. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRUDA, Eunice. Há estações. São Paulo: Escrituras, 2003. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 5 ed. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável e outros ensaios. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1977. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: Ensaio sobre o simbolismo mágico religioso. Tradução de Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991. FERREIRA, Letícia Raimundini. A lírica dos símbolos em Orides Fontela. Santa Maria: Associação Santa‐mariense de Letras, 2002. – (Série Ensaios). FONTELA, Orides. Alba. São Paulo: Roswitha Kempf, 1983. __________. Trevo: (1969 – 1988). São Paulo: Duas Cidades, 1988. GOMES, Álvaro Cardoso. O poético: Magia e iluminação. São Paulo: Perspectiva, 1989. HAZIN, Elizabeth. A essência do espelho. Folha de São Paulo, São Paulo: 3/dez./88, Folhetim, p. 2‐4. JUNQUEIRA, Ivan. O fio de Dédalo: ensaios. Rio de Janeiro: Record, 1998. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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ORIDES FONTELA: A PALAVRA ENTRE O SER E O NADA MOUTINHO, Nogueira. Versos que soam o silêncio impudico. Folha de São Paulo, 31jul. 83. PAES, José Paulo. Infância e poesia. Folha de São Paulo, São Paulo, 9 ago. 98, Mais, p.6‐8. ________. Os perigos da poesia e outro ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. 4 ed. Tradução de Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 2001. SPITZER, Leo. Três poemas sobre o êxtase. Tradução de Samuel Titan. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. [1] Essa afirmação de Candido encontra‐se nas orelhas da obra Trevo [2] Entrevista inédita de Arrigucci Jr. dada às professoras Cleri Aparecida Biotto Buciloli e Laura Beatriz Fonseca de Almeida. ORIDES FONTELA: THE WORD BETWEEN THE BEING AND THE NOTHING ABSTRACT: Orides Fontela’s words edge the margins of reality, in an unbridled quest for the being in antagonism to the nothing. Her extremely concise poems display the author’s struggle for expression. Therefore the whiteness of the page and the silence develop ontological dimensions and are transformed into the matter of the lyric text itself. In fact such a struggle brings about an acute consciousness and intensifies the perception of existence which takes the poet to convey, through her poetry, the delusions of reality. Keywords: phenomenological, poetry, hai‐kai, existentialism, symbolism Recebido em 04 de junho de 2009; aprovado em 30 de junho de 2009. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [129–142]
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Faculdades Integradas Fafibe, Bebedouro‐SP, Mestre em Estudos Literários pela UNESP‐
Araraquara, professora de Literatura Brasileira, [email protected] VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR de aspecto existencial. Assim, tais narrativas assemelham‐se às narrativas míticas, na medida em que recriam o mundo através de símbolos. O herói assume um percurso, no qual o tempo exterior não é relevante, uma vez que o interesse recai sobre o tempo interiorizado, com suas angústias e seus gestos. Por sua vez, o espaço é caracterizado principalmente por imagens, contando com a representação de lugares específicos e simbólicos. Nestes cenários, numa relação por vezes muito estreita com a personagem, cada imagem suscita a própria subjetividade do homem. Imerso nesses lugares, o lirismo narrativo propõe uma reflexão acerca da condição humana. Neste sentido, a busca interior do narrador assemelha‐se à busca de um poeta, permeando o mundo e o ser. Conforme Freedman (1963: 1): [...] Lyrical poetry, [...] suggests the expression of feelings or themes in musical or pictural patterns. Combining features of both, the lyrical novel shifts the reader’s attention from men and events to a formal design. The usual scenery of fiction becomes a texture of imagery, and characters appear as personae for the self .1 A narrativa poética surge oferecendo possibilidades de questionamento, numa busca incessante e eterna. Nessa espécie de narrativa, residem questões de ordem filosófica e mítica, acerca do próprio “eu”. Assim, somados todos esses elementos, o presente artigo tenta percorrer o perfil da narrativa de Clarice Lispector, no que tange ao espaço, acentuando um olhar sobretudo lírico. 1. OS ESPAÇOS DO APARTAMENTO: REVELAÇÕES Para compreender a personagem é preciso segui‐la no trajeto até o quarto da empregada, caminho escolhido por ela para contar o que acontecera no dia anterior. A personagem não conhece onde quer chegar, mas sabe, de antemão, do que tem de desconfiar. De acordo com Benedito Nunes (1988: 25), o seu percurso apresenta “[...] o sentido de uma peregrinação da alma, à semelhança de um itinerário espiritual”. Ao rememorar o acontecido, ao descrevê‐lo, a protagonista tem consciência dos riscos aos quais se expõe: “É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno.” (LISPECTOR, 1998: 22). A personagem G.H. vai fazendo revelações acerca de si mesma na medida em que assinala gradativamente o percurso que a fez chegar ao quarto da empregada. 1
“A poesia lírica sugere a expressão de sentimentos ou de temas em formas musicais ou pictóricas. Combinando traços de ambos, o romance lírico transfere a atenção do leitor de homens e eventos para um desenho formal. O habitual cenário de ficção torna‐se uma textura de imagem e os personagens aparecem como personas do eu”. (FREEDMAN, 1963: 1, tradução nossa). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR Ela nos apresenta o que fazia no dia anterior, em seu apartamento, mais precisamente na sala de jantar: Eram quase dez horas da manhã, e há muito tempo meu apartamento não me pertencia tanto. No dia anterior a empregada se despedira. [...] Eu me atardava à mesa do café, fazendo bolinhas de miolo de pão __ era isso? Preciso saber, preciso saber o que eu era! Eu era isto: eu fazia distraidamente bolinhas redondas com miolo de pão, e minha última ligação amorosa dissolvera‐se amistosamente com um afago, eu ganhando de novo o gosto ligeiramente insípido e feliz da liberdade. (LISPECTOR, 1998: 24) Ao rememorar o dia anterior, em que se atardava à mesa do café, a personagem menciona a última ligação amorosa que se dissolvera “com um afago” e afirma‐se uma pessoa agradável, independente, sem marido ou filhos. Enfim, apresenta sua vida bem estruturada até o dia em que enfrentou a experiência‐limite na qual se operou a desorganização de seu ser. Na narrativa poética, o espaço é parte integrante de uma dilatação interior marcada por imagens e percepções das personagens. Por meio das imagens suscitadas, há nestas narrativas uma significativa imagem do mundo e do ser, ou seja, a representação de espaços essencialmente simbólicos. A trajetória de G.H. ao longo de seu apartamento, vai sendo construída paralelamente à construção de um “eu”, ou seja, a partir do momento em que ela traça um itinerário dentro de sua casa, percebemos o início de uma viagem rumo a um autoconhecimento. Ao caracterizar a noção de espaço, Tadié (1978: 67) discute tais questões: “L’itinéraire, le voyage dans le récit poétique, représente ainsi la dernière étape dune évolution qui va du voyage extérieur au voyage intérieur, et du voyage intérieur à un voyage à travers ces grands espaces vacants que les mots suffisent à engendrer”.2 Ao rememorar a experiência do dia anterior, G.H. percorre os espaços de seu apartamento, adentrando regiões de intimidade. Benedito Nunes (1969: 114), ao comentar a obra de Clarice Lispector, já identificara: “no universo da romancista, o ambiente é Espaço, e o Espaço meio de inserção da existência”. Definindo a topoanálise como “o estudo psicológico sistemático dos lugares físicos de nossa vida íntima” (BACHELARD, 1976: 24), a noção de casa é apresentada por Bachelard como sendo vivida não apenas no momento presente, mas também por meio de pensamentos e sonhos, inserida em qualquer espaço essencialmente habitado. Oniricamente visitada, a casa constitui uma das maiores integrações para 2
“O itinerário, a viagem na narrativa poética, representa assim a última etapa de uma evolução que vai da viagem exterior à viagem interior, e da viagem interior a uma viagem através destes grandes espaços vagos que as palavras bastam para engendrar”. (TADIÉ, 1978: 67, tradução nossa). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR os pensamentos e sonhos do ser. Nela prevalecerão os valores de intimidade do espaço interior de seus narradores. A personagem não nos oferece detalhes sobre os espaços da sala de jantar. Osman Lins (1976: 72) afirma que o espaço no romance tem sido: [...] tudo que intencionalmente disposto, enquadra a personagem e que, inventariado, tanto pode ser absorvido como acrescentado pela personagem, sucedendo, inclusive, ser constituído por figuras humanas, então coisificadas ou com a sua individualidade tendendo para zero. Apesar de a personagem não oferecer detalhes acerca de sua sala de jantar, é possível imaginar seu cenário, por exemplo, quando há referência à vida de “semiluxo” da escultora. Bachelard (1976: 27) também atenta para o fato de que os desenhos vividos não necessitam ser exatos, basta que “sejam tonalizados pelo modo de ser do nosso espaço interno”. A situação do “pitoresco excessivo” pode muitas vezes esconder a intimidade da casa. Esta repousa mais em uma evocação onírica do que na descrição conclusa e minuciosa. (BACHELARD, 1976: 27). O silêncio impera nos espaços do apartamento. A empregada, por razões não reveladas, despedira‐se no dia anterior, motivo pelo qual a protagonista vai ao seu quarto. Essa experiência comum do cotidiano é que trará a revelação, o processo de reconquista da personagem. A visão limitada do mundo tende a desaparecer na medida em que a personagem de Clarice Lispector reescreve os objetos, possibilitando‐lhes uma nova dimensão. As palavras de Affonso Romano de Sant’anna (1973: 187) esclarecem‐nos esta questão ao tratar da “inusitada revelação” ocorrida nas narrativas da autora: É a percepção de uma realidade atordoante quando os objetos mais simples, os gestos mais banais e as situações mais cotidianas comportam iluminação súbita na consciência dos figurantes, e a grandiosidade do êxtase pouco tem a ver com o elemento prosaico em que se inscreve o personagem. Ao apropriar‐se da realidade de maneira epifânica, como bem observa Affonso Romano de Sant’anna, Clarice Lispector multiplica os sentidos dos objetos e seres, ou seja, dos gestos e situações, as mais “banais”. Ao comentar seu apartamento, ou seja, a casa onde em "semiluxo" vive, localizada no último andar de um prédio de treze pavimentos, na cobertura, G.H. explicita um espaço de contrastes (“penumbras e luzes úmidas”) e de poder: O apartamento me reflete. É no último andar, o que é considerado uma elegância. Pessoas de meu ambiente procuram morar na chamada ‘cobertura’. É bem mais que uma elegância. É um verdadeiro prazer: de lá domina‐se uma cidade. [...] Como eu, o VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR apartamento tem penumbras e luzes úmidas, nada aqui é brusco: um aposento procede e promete outro. [...] Tudo aqui é a réplica elegante, irônica e espirituosa de uma vida que nunca existiu em parte alguma: minha casa é uma criação apenas artística. (LISPECTOR, 1998: 30) A caracterização do apartamento revela “um estado de alma” da protagonista, retratada no aspecto interior de sua casa. O teórico Frederick Karl (1985: 340) define a técnica do fluxo de consciência em semelhança com o que chama de “clausura”: “é de clausura uma literatura que, ao mesmo tempo que acentua a interioridade, transforma essa interioridade numa cultura própria”. O movimento de clausura poderia proporcionar, de acordo com o autor, uma visão diferente da vida do personagem, em que passividade e interioridade seriam pontos de partida e desenvolvimento da consciência. Nesta perspectiva, ao afastar‐se do mundo rotineiro dentro do próprio apartamento, G.H. o apresenta numa perfeita situação de clausura, contida na série de imagens operadas. Ralph Freedman (1963: 21) observa esta questão no que diz respeito às narrativas líricas: “The ‘world’ is part of the hero’s inner world; the hero, in turn, mirrors the external world and all its multitudinous manifestations”.3 A existência de G.H., à semelhança de seu apartamento, revela‐se como “penumbras e luzes úmidas”. O espaço do apartamento reflete o interior obscuro da protagonista. Contando com o recurso das imagens, na narrativa poética, esta instância representa, muitas vezes, uma viagem orientada e simbólica: “l’espace a un langage, une action, une fonction, et peut‐être la principale; son écorce abrite la révélation”4 (TADIÉ, 1978: 10). O caráter hermético e íntimo de G.H. reflete‐se na pouca luz do apartamento que contrasta com a visão escancarada da cobertura: “de lá domina‐se uma cidade [...]” (LISPECTOR, 1998: 30). Produto do imaginário, as imagens dizem algo sobre a protagonista, na medida em que espelham na caracterização do espaço a condição humana de G.H., que se vê refletida nos cômodos do apartamento. A morada da protagonista desperta‐a para um “verdadeiro prazer”, uma vez que o alto do edifício lhe dá ilusão de possuir a paisagem da cidade. A função de habitar é reforçada pela evocação desta “posse”, que suscita o crescimento do valor da habitação de G.H. Protegida por “penumbras”, a protagonista encontra abrigo em sua intimidade para revelar‐se. Na medida em que essa série de imagens vai sendo atribuída ao apartamento, a personagem sente‐se protegida, deixando entrever sua interioridade. De acordo com Bachelard (1976: 50), a realidade primeira da casa corresponde a uma estrutura sólida, o que leva à associação de uma análise 3
“O mundo é parte do mundo interior do herói; o herói por sua vez, espelha o mundo externo e todas as suas manifestações multitudinais”. (FREEDMAN, 1963: 21, tradução nossa). 4
“O espaço possui uma linguagem, uma ação, uma função e, talvez a principal; sua aparência abriga a revelação”. (TADIÉ, 1978: 10, tradução nossa).
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR racional. Mas, ao ser tomada por um lugar de conforto e intimidade, a transposição ao humano é logo realizada, fugindo de toda racionalidade. No interior do apartamento, G.H. vive uma experiência dramática a que tenta dar forma por meio de seu discurso. Bachelard (1976: 37) chama os edifícios de “casas oniricamente incompletas”, em que a relação com o espaço se torna fictícia, contando com uma simples horizontalidade que desconhece os abrigos fundamentais para os valores de intimidade : “[...] tudo é máquina e a vida íntima foge por todos os lados. A moradia passa a não conhecer mais as chamas do universo e o medo é pouco presente”. No caso da morada de G.H., Clarice Lispector reinventa esses medos, conferindo ao apartamento as situações de intimidade. Não se trata de uma relação fictícia com o apartamento, há uma cumplicidade nos momentos indivisíveis da consciência sendo exercida em cada cômodo revisitado pela protagonista que vai trilhando caminhos no sacrifício de buscar sua identidade de encontro a uma experiência que transgride limites. As coordenadas espaciais articulam‐se neste apartamento remetendo a personagem ao estado constante de ser e não‐ser. 2. O LIVING Da sala de jantar, cômodo no qual a personagem está instalada, outro espaço é apenas observado e comentado em dois momentos do texto. Trata‐se do living: “[...] Da minha sala de jantar eu via as misturas de sombras que preludiavam o living.” (LISPECTOR, 1998: 30). O living é um local com uma luminosidade indefinida, delineado por “misturas de sombras”. Um espaço em que os valores são definidos por emoções obscuras, ensombreadas, que se misturam. Depois de limpar o quarto da empregada, G.H. "subiria" horizontalmente ao lado oposto do apartamento ‐ o living: “Depois da cauda do apartamento, iria aos poucos "subindo" horizontalmente até o seu oposto que era o living, onde ‐ como se eu própria fosse o ponto final da arrumação e da manhã ‐ leria o jornal, deitada no sofá, e provavelmente adormecendo”. (LISPECTOR, 1998: 34). Neste local indefinido, no qual as emoções se misturam, G.H. projeta o outro cômodo a ser penetrado, como experiência de quem procura por si mesma. O living, ainda que seja um ponto de chegada, de entrada no apartamento, para G.H. é o ponto final de seu projeto, iniciado pelo lado oposto, ou seja, pelo quarto da empregada ‐ um espaço de encontro entre o mundo exterior (o da empregada) e a intimidade da protagonista. De acordo com Bachelard (1976: 47), a casa não constitui um pólo justaposto, podendo exercitar‐se em “devaneios contrários”. A singularidade do trajeto da personagem está justamente nessa peregrinação pelo avesso, conforme a autora especificou na nota introdutória do livro aos “possíveis leitores” advertindo que “[...] a aproximação, do que quer que VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR seja, se faz gradualmente e penosamente ‐ atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar” (LISPECTOR, 1998: 7). O living encerra também um outro ponto de encontro entre o mundo exterior (social), uma vez que é a entrada do apartamento, com o mundo interior (subjetivo) de G.H., em que as emoções se misturam, como as “misturas de sombras”. Como um ser enquadrado, entre aspas, G.H. circula pela casa como uma personagem citada: “Levantei‐me enfim da mesa do café, essa mulher.” (LISPECTOR, 1998: 33). O pronome demonstrativo promove a idéia da imagem de G.H. como um ser criado, sem autonomia, como se ela não fosse ela mesma. Neste sentido, escapa à protagonista a delimitação de seu ser, suscitando esta e outras “configurações ou formações que cruzam, que se interpenetram, subsumindo cada uma as suas determinações figurativas” (TASCA, 1988: 264). 3. A COZINHA E A ÁREA DE SERVIÇO A cozinha não chega a ser caracterizada, é apenas um cômodo que G.H. atravessa para poder exercer sua “única vocação verdadeira”: arrumar a casa: “[...] atravessei a cozinha que dá para a área de serviço.” (LISPECTOR, 1998: 34). Ao tentar arrumar a casa ou, como artista escultora que é, dar uma forma a esta casa, G.H. começa pelo quarto da empregada, supondo que este cômodo, que abrigara uma figura estranha em seu ambiente íntimo, seja o mais “sujo” do apartamento: Começaria talvez por arrumar pelo fim do apartamento: o quarto da empregada devia estar imundo, na sua dupla função de dormida e depósito de trapos, malas velhas, jornais antigos, papéis de embrulho e barbantes inúteis. Eu o deixaria limpo e pronto para a nova empregada. (LISPECTOR, 1998: 34) G.H. dirige‐se ao espaço entre a cozinha e o corredor, ou seja, à área de serviço. Na murada da área encosta‐se para acabar de fumar, arriscando um gesto proibido ao jogar o cigarro pela janela. A proibição burlada encerra o ato de transgressão de quem está experimentando estar livre para viver o desejo interdito, de arrumar a casa: Joguei o cigarro aceso para baixo, e recuei um passo, esperando esperta que nenhum vizinho me associasse ao gesto proibido pela portaria do edifício. Depois, com cuidado, avancei apenas a cabeça, e olhei: não podia adivinhar sequer onde o cigarro caíra. O despenhadeiro engolira‐o em silêncio. Estava eu ali pensando? pelo menos pensava em nada. Ou talvez na hipótese de algum vizinho me ter visto fazer o gesto proibido, que sobretudo não combinava com a mulher educada que sou, o que me fazia sorrir. (LISPECTOR, 1998: 36) VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR Esta transgressão encerra também, a experiência de risco do exercício da linguagem de Clarice Lispector na tentativa de transgredir os limites da escrita para narrar a revelação, ou seja, o caminho penoso rumo a uma outra verdade, “[...] desenterrar o pior e o melhor de nossa condição humana [...]” (GOTLIB, 1988: 161). O olhar de G.H. dirige‐se à área interna de seu edifício. Lá constata a visão do prédio na parte de fora: Por fora meu prédio era branco, com lisura de mármore e lisura de superfície. Mas por dentro a área interna era um amontoado oblíquo de esquadrias, janelas, cordames e enegrecimentos de chuvas, janelas arreganhadas contra janelas, bocas olhando bocas. (LISPECTOR, 1998: 35). De acordo com Bachelard (1976: 30), a casa apresenta diferenciações quanto às reservas de intimidade. A área interna do prédio parece apresentar o que Bachelard chama de “consciência de centralidade”, ou seja, uma condensação de intimidade que chama a personagem para um centro de força irradiado pela imagem das riquezas de urânio e petróleo referida pela protagonista. Tudo o que G.H. observa neste espaço só será compreendido ou tomar forma, depois da casa arrumada: O que eu estava vendo naquele monstruoso interior de máquina, que era a área interna de meu edifício, o que eu estava vendo eram coisas feitas, eminentemente práticas e com finalidade prática. Mas algo da natureza terrível geral __ que mais tarde eu experimentaria em mim __, algo da natureza fatal saíra fatalmente das mãos de centenas dos operários práticos que havia trabalhado canos de água e esgoto, sem nenhum saber que estava erguendo aquela ruína egípcia para a qual eu agora olhava com o olhar de minhas fotografias de praia. Só depois eu saberia que tinha visto; só depois, ao ver o segredo, reconheci que já o vira. (LISPECTOR, 1998: 36) Transformado em uma “ruína egípcia”, o edifício contém já em sua descrição, muitos elementos que emanam dos olhos de G.H. Mais do que uma simples olhada à área interna, a personagem está iniciada a uma viagem interior, a busca de sua identidade. Na peregrinação em sua própria casa, a artista escultora se procura, fazendo alusão à arte egípcia, tentando encontrar sua melhor forma, seu melhor ângulo ‐ o retrato do mundo e de si mesma. Esta falta de sentido de que fala a personagem encerra o processo de desagregação narrado pela sua função iniciática na busca pela sua identidade. Tal processo realiza‐se não pela via da razão, mas por forças que levam G.H. ao agônico VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR encontro de si mesma “[...] destituindo‐se da máscara, do individual inútil, pela despersonalização: perda de tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser” (GOTLIB, 1995: 362). 4. O CORREDOR G.H. vê‐se a si mesma neste espaço interior de "coisas feitas" e segue pelo espaço de travessia, para o cômodo a ser arrumado: o quarto da empregada: “Depois dirigi‐me ao corredor escuro que se segue à área.” (LISPECTOR, 1998: 36). Segundo Affonso Romano de Sant'anna (1988: 243), o corredor é uma “espécie de conduto de um umbigo simbólico entre um mundo e outro. Um lugar de passagem. Um corredor, mas escuro, que ao mesmo tempo separa e une.”. Metáfora da travessia experimentada em sua escuridão, o corredor permite o ingresso da protagonista no espaço revelador de suas experiências mais profundas: os fundos de sua casa. Por enquanto, G.H. não vive ainda a experiência de sua transfiguração, assim, está de alguma maneira dentro de seu cotidiano. Este espaço constitui o passo principal para adentrar os espantos desconhecidos da personagem. A respeito deste demorado itinerário, Olga de Sá (1988: 259) justifica que se trata da “[...] paixão do homem, a sua via‐crucis, a matéria de sua vida”. Vivendo a sensação de “pré‐clímax”, na peregrinação em seu apartamento, a personagem nota que este espaço de travessia apresenta duas portas: “No corredor, que finaliza o apartamento, duas portas indistintas na sombra se defrontam: a da saída de serviço e a do quarto da empregada. O bas‐fond de minha casa [...]” (LISPECTOR, 1998: 37). O corredor comporta apenas os “pedaços” de G.H., ou seja, antes de adentrar o cômodo escolhido, partes do seu ser são deixadas nesta travessia obscura, como o seu passado, por exemplo. Os outros pedaços viverão um futuro, quando o quarto for “arrumado”. A sensação de imensidão buscada pela personagem ao chegar ao quarto da empregada, imaginando poder esvaziá‐lo, reflete um mundo infinito de valores buscado por G.H. Segundo Bachelard (1976: 139), “a imensidão está em nós. Está presa a uma espécie de expansão do ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que volta de novo na solidão”, por isso, a urgência de esvaziar aquele quarto pequeno: “A primeira coisa que eu faria seria arrastar para o corredor as poucas coisas de dentro.” (LISPECTOR, 1998: 43). G.H. procura abrir espaço para não se sentir sufocada no corredor escuro que atravessa. Não se sente acolhida pelo espaço que parece resistir a ela, mas é preciso ir até o fim e abrir a porta. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR 5. O QUARTO DA EMPREGADA Abri a porta para o amontoado de jornais e para as escuridões da sujeira e dos guardados. Mas ao abrir a porta meus olhos se franziram em reverberação e desagrado físico. É que em vez da penumbra confusa que esperava, eu esbarrava na visão de um quarto que era um quadrilátero de branca luz; meus olhos se protegeram franzindo‐se. (LISPECTOR, 1998: 37) Para a surpresa e desagrado de G.H., o quarto não estava sujo, como imaginou encontrá‐lo, e, ao contrário dos demais cômodos da casa, era iluminado, “um quadrilátero de branca luz”, o oposto de sua ampla sala de “penumbras e luzes úmidas”. Ao abrir portas a protagonista entra em um universo diferente, desconhecido em sua própria casa. Ela é expulsa de sua familiaridade. Segundo Bachelard (1976: 164): “A porta esquematiza duas possibilidades fortes, que classificam claramente dois tipos de devaneios. Às vezes, ei‐la bem fechada, aferrolhada, fechada com cadeado. Às vezes, ei‐la aberta, ou seja, escancarada”. Ao final do corredor, G.H. encontrou portas fechadas e sentiu‐se tentada a abri‐las. Este cômodo sugere uma dimensão de intimidade que se esconde. Porém, ao ser aberta, a porta revela a dimensão desta intimidade, que pode ser infinita. Este ato de abrir a porta encerra o ser de G.H. como a manifestação de algo em que contraditoriamente reinam as sensações de esconder‐se e manifestar‐se, ou seja, os movimentos de fechamento e abertura vivenciados também pelo relato gradual de seu processo de autoconhecimento. Essa identidade que G.H. procura exprimir assinala ao mesmo tempo os limites da introspecção e da linguagem: o ato de abrir portas indica a abertura de um hiato no qual há uma distância refreada pela própria linguagem. Há seis meses G.H. não adentrava aquele cômodo. As imagens encontram um ponto focal na consciência de G.H., que se sente decepcionada diante do quarto surpreendentemente limpo e arrumado pela empregada. O local enclausurado é penetrado por uma série de impressões sensoriais: Esperava encontrar escuridões, preparara‐me para ter que abrir escancaradamente a janela e limpar com ar fresco o escuro mofado. Não contara é que aquela empregada, sem me dizer nada, tivesse arrumado o quarto à sua maneira, e numa ousadia de proprietária o tivesse espoliado de sua função de depósito. (LISPECTOR, 1998: 37) Neste cômodo, situado nos fundos do apartamento, G.H. vai simultaneamente ao encontro do outro e de si mesma, numa espécie de felicidade difícil aliviada pela experiência de libertação. Para Nádia Battella Gotlib (1995: 359), a constatação de VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR que o quarto é claro e límpido, encerra o fato de que também “[...] a linguagem que tem aparência codificada, pré‐fabricada, revela possibilidades de inovação e revigoramento de sentido”. Assim, esta narrativa de Clarice Lispector trabalha, no percurso da personagem G.H., a busca pelos sentidos e concepções que se encontram escondidos. G.H. se vê em uma incessante busca das coisas através das palavras. Desta forma, a narrativa traz à tona sua dificuldade em desenvolver um texto utilizando a linguagem. Embora os ângulos fossem desiguais, a interioridade do quarto era perfeita: limpeza e ordenação. Essa interioridade perfeita choca G.H., que a associa à sua irregularidade, à fragilidade. A irregularidade do espaço se contrapõe à base solidificada do exterior do edifício. Interiormente, G.H. teme um desmoronamento, teme a perda de sua “montagem humana”. Neste sentido, o espaço do quarto vai se abrindo em um elenco de imagens, alegorias de um processo de busca por uma nova verdade, um novo sentido das coisas. Ao adentrar o quarto, o mundo de G.H. vai sendo transcendido. O cômodo transforma‐se, então, em sua própria intimidade. De acordo com Bachelard (1976: 166), “o quarto está em nós. Não o vemos mais. Ele não nos limita mais, pois estamos no fundo mesmo de seu repouso [...]”. O percurso de G.H., passo a passo pelo apartamento, vai dispondo‐se em imagens que se relacionam como espelhos em sua consciência. Assim, a geografia do apartamento só é referida acidentalmente, de maneira simbólica, meramente aspectual. De acordo com Norma Tasca (1988: 263), o quarto instala “um processo discursivo aberto, em que uma figura gera valorizações (ou determinações) que suscitam novas figuras e valorizações sucessivas”. A descrição deste espaço determinará o aparecimento da figura “minarete”, que por sua vez leva a um campo semântico de “sol”, “sombra”, “secura”, “deserto”, ou seja, trata‐se de uma rede figurativa que transcende os enunciados da personagem. É possível relacionarmos a observação de Norma Tasca aos apontamentos acerca do estilo presente nas narrativas poéticas. Tadié (1978: 191) recorre aos estudos de Valéry: La métaphore [...] marque dans son principe naïf un tâtonnement, une hésitation entre plusieurs expressions d’une pensée [.... ]. L’ objet propre de la poésie est ce qui n’a pas un seul nom; ce qui en soi provoque et demande plus d’une expression. Ce qui suscite pour son unité devant être exprimée une pluralité d’expressions.5 (VALÉRY apud TADIÉ, 1978: 191) 5
“A metáfora [...] marca em seu princípio ingênuo uma percepção, uma hesitação entre várias expressões de um pensamento [...]. O objeto real próprio da poesia é o que não tem um único nome; o que em si provoca e exige mais de uma expressão. O que suscita para sua unidade devendo ser expressa uma pluralidade de expressões”. (VALÉRY apud TADIÉ, 1978: 191, tradução nossa). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR Numa nova cadência, o discurso articula os signos de modo a esvaziar os significados convencionais, estabelecendo, assim, diferentes interações com os significantes. Nas narrativas poéticas, a imagem possui uma força rítmica, dotada de um movimento de busca a todo momento. Como em um poema, gerando uma nova rede de sentido, as imagens se procuram, transformando a visão do objeto. O sol que iluminava o quarto, dividia‐o em dois planos: “o teto pelo meio e o chão pelo terço” (LISPECTOR, 1998: 38). A invasão de luz no espaço reflete‐se na interioridade de G.H. que se divide em emoções obscuras. As paredes brancas do quarto que a cercam contrastam com a experiência obscura que a personagem vai viver naquele espaço. Segundo Bachelard (1976: 168), “a brancura das paredes, por si só, protege a cela do sonhador. Ela é mais forte que toda a geometria e vem inscrever‐se na cela da intimidade”. Nesse cômodo onde tudo estava gasto e empoeirado, a protagonista vive intimamente a imagem de uma vida escondida. Seu olhar percorre o ambiente e ela então observa: “[...] de encontro a uma das paredes, três maletas velhas.” (LISPECTOR, 1998: 42). As maletas estavam empilhadas em ordem; nelas estavam inscritas as iniciais G.H. Tais maletas "em nada alteravam o vazio do quarto" e estavam empoeiradas. Por mais que existisse poeira, a ordem interna ainda estava presente naquele espaço. Com o exterior marcado pelas iniciais “G.H.”, tais maletas guardavam a interioridade vazia de G.H., que ela insistia em preservar. Estas maletas, como modelos da vida íntima de G.H., encerram pistas de uma vida envolta pelas aspas. A personagem, incomodada, nota a presença de um outro espaço. 6. O GUARDA‐ROUPA Nesse mesmo quarto, um outro espaço – esconderijo –, o guarda‐roupa, armário que trará a mais profunda revelação para G.H., é estreito e da altura da protagonista. De acordo com Bachelard (1976: 70), o armário constitui órgão de vida psicológica secreta, revelador de intimidade. Dentro dele há uma ordem protetora da casa contra uma desordem: “E havia também o guarda‐roupa estreito: era de uma porta só, e da altura de uma pessoa, de minha altura” (LISPECTOR, 1998: 42). A descrição do guarda‐roupa, com apenas uma porta e “da altura de uma pessoa” nos conduz à imagem de um féretro. Isso se confirmará posteriormente, quando surgirá no relato da personagem a alusão a um “sarcófago”. Portanto, este móvel pode representar o espaço que guarda a morte da protagonista, mas ao mesmo tempo, promove a imersão em uma nova vida, já que de seu interior surgirá a barata, inseto desencadeante de toda a revelação. A redescoberta do quarto incomoda a protagonista: “[...] estava descobrindo com irritação que o quarto não me irritava apenas, eu o detestava, aquele cubículo que só tinha superfícies: suas entranhas haviam esturricado. Eu o olhava com VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR repulsa e desalento”. (LISPECTOR, 1998: 43). O aspecto “esturricado” desse espaço condiz com a interioridade de G.H. que superficialmente também vivia entre seus pares, não necessitando despir‐se de suas características individuais até o dia em que conheceu a experiência‐ limite. O quarto vazio expandia‐se aos olhos de G.H., tornava‐se “indelimitado”. Segundo Bachelard (1976: 139), a sensação de imensidão estimula o espaço íntimo e o exterior, encerrando valores de grandeza. A personagem está em contato com uma expansão refreada pela vida, ligada ao diálogo de sua solidão___ sabe que perderá tudo o que possui no domínio da identidade que lhe será entreaberta: “Passei os olhos pelo guarda‐roupa, ergui‐os até a rachadura do teto, procurando apossar‐me um pouco daquele enorme vazio” (LISPECTOR, 1998: 45). Se o teto dá a idéia de liberdade, claridade e amplitude, há, porém, nesse espaço uma rachadura, uma fenda em sua edificação e esta fenda convoca a interioridade de G.H. como imagem de uma racionalidade rompida, vazada por emoções que começam a desmoronar suas certezas. Ao cuidar do guarda‐roupa, a protagonista criaria uma película de proteção para amenizar a secura de sua madeira. Neste ato as aspas protegeriam o guarda‐roupa dando‐lhe uma outra superfície do quarto: Animei‐me com uma idéia: aquele guarda‐roupa depois de bem alimentado de água, de bem enfartado nas suas fibras, eu o enceraria para dar‐lhe algum brilho, e também por dentro passaria cera pois o interior devia estar ainda mais esturrado. (LISPECTOR, 1998: 45) O desejo de limpeza que toma conta de G.H. relaciona‐se à necessidade de passar a limpo a sua vida íntima, e por isso era preciso abrir o guarda roupa e escancará‐lo à procura de algum resíduo. Como a metáfora de algo que esconde um outro sentido, uma outra visão da vida, o armário é visitado pela protagonista, já que “não é um móvel cotidiano. Não se abre todos os dias” (BACHELARD, 1976: 71). G.H. não hesita em tentar abrir a porta do guarda‐roupa. Porém, essa porta estreita é difícil de ser aberta. Essa segunda fresta revela a entrada de G.H. em um universo ainda mais profundo e íntimo. O empenho em vencer a dificuldade, em abrir a porta desse móvel traduz o impasse de G.H. entre revelar‐se e proteger‐se. Segundo Bachelard (1976: 164): [...] nessa região onde o ser quer manifestar‐se e quer esconder‐se, os movimentos de fechadura e abertura são tão numerosos, tão freqüentemente invertidos, tão carregados também de hesitação, que poderíamos concluir por esta fórmula: o homem é o ser entreaberto. G.H. vê, então, para seu espanto, a barata que surge do fundo do guarda‐
roupa. A viagem até o quarto da empregada e o embate com esse inseto, levam VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR G.H. passo a passo a uma outra verdade, à procura de sua própria imagem. A busca da personagem apresenta um caráter metafísico. O crítico Massaud Moisés (1991: 6) reconhece nela o percurso de quem se faz poeta, análogo ao percurso do místico, quando este ascende à transcendência: “Do contrário, a barata não passaria de um mísero inseto, desprovido de carga simbólica, e a narrativa tombaria no ridículo, no exagero das práticas naturalistas de mau gosto”. Diante do cotidiano infamiliar do quarto, G.H. sente o medo que faz recuar sua personalidade e a expressão de sua linguagem. A angústia desnuda‐se, sobrevindo a náusea da existência. O quarto revela‐se aqui como o espaço dessa náusea, o grande outro que cede lugar à penosa experiência da desagregação da personagem. Segundo Benedito Nunes (1995: 63), este estado nauseante, produz‐
se como uma ascese, em que “[...] a personagem desprende‐se do mundo e experimenta, após gradual redução dos sentimentos, das representações e da vontade, a perda do eu”. Em torno da barata, G.H. conhecerá os mais contraditórios sentimentos. A personagem não se sente acolhida naquele espaço que ela quer recuperar como seu. O quarto é “deserto”, “sarcófago”, ou seja, é a representação de algo que sufoca e aprisiona. De acordo com Norma Tasca (1988: 264), no que refere a este espaço, existe a “[...] suspensão da oposição aqui vs algures, o que transforma a paisagem exterior em ‘delírio’, ou seja, numa descrição heteróclita e diversificada que mistura tempos e lugares os mais distantes, convocando‐os em sincretismo”. É neste sentido que cessam as noções temporais, assim como a idade e a identidade de G.H: “[...] o presente eterniza‐se, ou o eterno presentifica‐se” (MOISÉS, 1991: 6). Sentindo medo, a personagem tropeça no pé da cama e no guarda‐roupa. O quarto parece retê‐la, já está nela: Uma possível queda naquele quarto de silêncio constrangeu‐me o corpo em nojo profundo __ tropeçar fizera de minha tentativa de fuga um ato já em si malogrado __ seria esse o modo que “eles”, os do sarcófago tinham de não me deixar mais sair? (LISPECTOR, 1998: 49) Ao atentarmos para o simbolismo contido no termo “sarcófago”, notamos: “símbolo da terra, enquanto receptáculo das forças da vida e local de suas metamorfoses” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1997: 804). Ao transferirmos esta significação à experiência de G.H., percebemos que seria impossível para a protagonista sair do quarto, já que iniciara a experiência da procura de si mesma. O confronto com a barata marca o começo de uma ruptura, ou seja, o início de uma “metamorfose”. Sem este confronto, dividida entre as preocupações de ordem artística e alguns casos banais de amor, G.H. não teria iniciado o percurso à procura da própria existência: VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR Eu já havia conhecido anteriormente o sentimento de lugar. Quando era criança, inesperadamente tinha a consciência de estar deitada numa cama que se achava na cidade que se achava na terra que se achava no Mundo. Assim como em criança, tive então a noção precisa de que estava inteiramente sozinha numa casa e que a casa era alta e solta no ar, e que esta casa tinha baratas invisíveis. (LISPECTOR, 1998: 50) G.H. sente o espaço oniricamente ampliado no mundo. A disposição desta cena doméstica, familiar, de uma mulher que se coloca perante o mundo, converte‐
se em uma imagem poética. Em sua solidão, a personagem vê seu próprio “eu” como um centro, ou seja, como participante de um lugar no mundo. Neste momento G.H. é despersonalizada: à expansão de sua figura, segue‐se o olhar ao mundo. Ela vê o mundo exterior, mas são estas imagens que nos levam ao seu mundo interior. De acordo com Ralph Freedman (1963: 220): “This manner of transmuting associations or inner speech into well‐organized images affects both the monologues of individual characters and the vision of the omniscient poet”6. A abstração do espaço traduz o mundo circundante de que participa a protagonista situada antes de tudo como “ser‐no‐mundo”, descobrindo sua solidão e seu isolamento. A respeito desta questão, o crítico Benedito Nunes (1969: 115) sinaliza: o quarto de G.H. está dentro do edifício, o edifício na cidade, a cidade no país, o país no continente, o continente no universo, o universo etc. Os lugares são pontos que só existem em relação a outros pontos, e todos formam imagens permutantes, que representam uma totalidade indivisa, vasta e indefinida. G.H. localiza seu espaço exterior no mundo, na casa alta e solta no ar, o que contrasta com seu espaço interior, limitado ao quarto dos fundos: “Anteriormente, quando eu me localizava, eu me ampliava. Agora eu me localizava me restringindo ‐ restringindo‐me a tal modo que, dentro do quarto, o meu único lugar era entre o pé da cama e a porta do guarda‐roupa”. (LISPECTOR, 1998: 50). Nesse contraste dos espaços, G.H. expõe sua existência conflituosa. A personagem encontra‐se encurralada no canto e os móveis representam barreiras que tolhem sua mobilidade. Segundo Bachelard (1976: 108), “o canto ‘vivido’ recusa a vida, restringe a vida, esconde a vida. O canto é, então, a negação do universo.” No canto, o ser não fala a si mesmo, há uma espécie de momento de silêncio: a personagem traça um espaço de imobilidade em que se sente restringida, limitada. 6
“Esta forma de transmutar associações ou monólogo interior dentro de imagens bem organizadas, afeta ambos, o monólogo de personagens individuais e a visão do poeta onisciente”. (FREEDMAN, 1963: 220, tradução nossa). VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR A função de habitar para G.H. é sentida apenas entre “o pé da cama e a porta do guarda‐roupa”: Mas para poder sair do canto onde, ao ter entreaberto a porta do guarda‐roupa, eu mesma me encurralara, teria antes que fechar a porta que me barrava contra o pé da cama: ali estava eu sem passagem livre, encurralada pelo sol que agora me ardia nos cabelos da nuca, num forno seco que se chamava dez horas da manhã. (LISPECTOR, 1998: 50) Neste espaço estreito, que faz da personagem prisioneira em sua própria casa, o embate com o inseto consuma o processo de busca interior já iniciado nos outros cômodos do apartamento. A consciência de G.H. neste espaço se traduz pela sua imobilidade que se acentua com a luz do sol que faz arder os cabelos da nuca. É preciso achar uma saída, escapar e/ou enfrentar o que a ameaça: o quarto, o armário, a barata: “Minha mão rápida foi à porta do guarda‐roupa para fechá‐lo e me abrir caminho ‐ mas recuou de novo. É que lá dentro a barata se movera.” (LISPECTOR, 1998: 50). O gesto malogrado de G.H. em fechar a porta do guarda‐roupa associa‐se à consciência da personagem que se recusa estar frente ao mundo desconhecido que se abre a sua frente. O ato de fechar a porta encerra a postura amedrontada da personagem para impedir a si mesma de alcançar a verdadeira e própria realidade. A personagem reescreve as coordenadas do quarto, na medida em que o seu espaço muda de foco: O deserto diurno estava à minha frente. E agora o oratório recomeçava mas de outro modo, agora o oratório era o som surdo do calor se refratando em paredes e tetos, em redonda abóbada. O oratório era feito dos estremecimentos do mormaço. (LISPECTOR, 1998: 95) Lúcida e consciente de si, G.H., como uma beduína, começa a transpor este quarto‐deserto, no questionamento a respeito de sua própria alma. Neste cômodo aberto para o alto, a protagonista encontra‐se próxima a uma espécie de mundo divino. No décimo terceiro andar de um edifício, a mulher escultora, ao atentar para as formas de sua casa, inicia a tomada de consciência da altura infinita, sagrada, a qual coincide com a procura de sua própria forma. Em estado de devaneio G.H. experimenta o quarto como um espaço “familiar” e adormece. De acordo com Bachelard (1976: 108), “em toda retirada da alma existem figuras de refúgio”. Esse estado de refúgio é aqui a imobilidade da consciência da personagem nesse espaço que já é seu próprio ser: “[...] fui‐me deitando no colchão áspero e ali toda crispada, adormeci tão imediatamente assim VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR como uma barata adormece na parede vertical [..] Quando acordei, o quarto tinha um sol ainda mais branco e mais fervidamente parado [...]” (LISPECTOR, 1998: 104). O quarto, com a sua iluminação proporcionará a revelação de uma outra verdade a G.H. Ela observa outros espaços que parecem transcender: “Daquele quarto escavado de um edifício, da janela do meu minarete, eu vi a perder‐se de vista a enorme extensão de telhados e telhados tranqüilamente escaldando ao sol. Os edifícios de apartamentos como aldeias acocoradas”. (LISPECTOR, 1998: 105) Oniricamente, os lugares que são observados ganham uma amplidão e o quarto resiste a esses pontos, a essas imagens que se permutam. O “eu” de G.H., como o “eu‐lírico” e a máscara de um poeta, é revelado como o outro que quer reencontrar sua casa: “Ah, quero voltar para a minha casa, pedi‐me de súbito, pois a lua úmida me dera saudade de minha vida.” (LISPECTOR, 1998: 107). CONCLUSÃO Apoiando‐se na leitura analítica de A paixão segundo G.H., buscou‐se apresentar a aplicação prática da teoria da narrativa poética, na medida em que a autora projeta a interioridade da personagem G.H., que, com alma de poeta, busca‐
se a todo momento na peregrinação que faz pelo próprio apartamento. Na projeção das imagens, G.H. vê‐se a si mesma, experimentando sentimentos incongruentes, que acabam por gerar um clima alucinatório, que permanece ao longo da narrativa. Nos espaços assinalados, G.H. desencadeia um processo gradual de auto revisão de vida. O edifício de treze andares, no qual se encontra o apartamento de cobertura, funciona como a base empreendedora da viagem interior da protagonista. A decisão de limpar o apartamento, começando pelo fim ‐ a área de serviço ‐ , leva G.H. a penetrar um espaço até então desconhecido em sua própria casa, o quarto da empregada. Neste cenário, ao contrário da ação de arrumar, ocorre o confronto e a revelação de seus espantos mais vedados e desconhecidos. O espaço ordenado do quarto da empregada reflete a ordem interior que G.H. procurava em seu modo de ser. A personagem projeta‐se neste cenário, reconfigurando‐o de modo subjetivo, mediante um processo de exaltação dos seus sentidos. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca, 1976. (Coleção Quid). CHEVALIER, Jean ; GHEERBRANT, Alain . Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Tradução Vera da Costa e Silva et al. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. FREEDMAN, Ralph. The lyrical novel : studies in Hermann Hesse, André Gide and Virginia Woolf. New Jersey: Princeton University Press, 1963. GOTLIB, Nádia Batella. Um fio de voz: histórias de Clarice. In: ______. A paixão segundo G.H. Ed. Crítica/Benedito Nunes, coordenador. Paris: Association Archives de la littérature latino américaine, des Caraibes et africaine du XX e siècle; Brasília, DF: CNPQ, 1988. p. 164‐195, (Arquivos, 13). ______. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995. KARL, Frederick. Fluxo de Consciência e Clausura: infinidade e labirinto. In: ______. O moderno e o modernismo (a soberania do artista 1885‐1925). Rio de Janeiro: Imago, 1985. p. 329‐376, (Série Logoteca). LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. LINS, Osman . Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976 (Ensaios, 20). MOISÉS, Massaud. Clarice Lispector: Introspecção e Lirismo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 20 jul. 1991 p. 05‐06. NUNES, Benedito. O drama da linguagem. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995. ______. Introdução do coordenador. In: ______. A paixão segundo G.H. Ed. Crítica/Benedito Nunes, coordenador. Paris: Association Archives de la littérature latino‐americaine, des Caraibes et africaine du XXe siècle; Brasília, DF: CNPQ, 1988. p. 24‐33, (Col. Arquivos, 13). ______. O mundo imaginário de Clarice Lispector. In: ______. O dorso do tigre: ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1969. p. 93‐139. SANT’ANNA, Affonso Romano de. O ritual epifânico do texto. In: ______A paixão segundo G.H. Ed. Crítica/Benedito Nunes, coordenador. Paris: Association Archives VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
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OS ESPAÇOS LÍRICOS DA PAIXÃO: UMA LEITURA DE A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR de la littérature latino‐américaine, des Caraibes et africaine du siècle XXe; Brasília, DF: CNPQ, 1988. p.237‐257, (Col.Arquivos, 13). ______. Laços de Família e Legião Estrangeira. In: ______. Análise Estrutural de Romances Brasileiros. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 180‐211. TADIÉ, Jean‐Yves. Le récit poétique. Paris: Presses Universitaires de France, 1978. TASCA, Norma. A lógica dos efeitos passionais. In: ______. A paixão segundo G.H. Ed. Crítica/Benedito Nunes, coordenador. Paris: Association de la littérature latino‐
américaine, des Caraibes et africaine du siécle XXe; Brasília, DF: CNPQ, 1988. p. 258‐
288, Col. Arquivos, 13). THE LYRICS SPACES OF PASSION: A READING OF THE PASSION ACCORDING TO G.H., BY CLARICE LISPECTOR ABSTRACT: Discussion and analysis about the work The passion according to G.H. by Clarice Lispector, specially the space. In description of each running space by G.H., Lispector chooses the language and the poetic structures, promoting the analysis of the work based in the theory of the lyrical novel, postulated by Jean‐Yves Tadiè and Ralph Freedman. Keywords: space; lyrical novel; The passion according to G.H. Recebido em 30 de maio de 2009; aprovado em 30 de junho de 2009. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [143–161]
ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE Sergio Romanelli1 RESUMO: Este trabalho pretende abordar as traduções brasileiras do conto The Black Cat do escritor e poeta americano Edgar Allan Poe do ponto de vista dos Estudos Descritivos da Tradução. Tentar‐se‐á, especificamente, mostrar, através do esquema para descrever traduções desenvolvido por Josè Lambert (1985) como seja possível encontrar nos textos traduzidos, considerados à guisa de originais, as recorrências e as marcas de normas de vário tipo que influenciam o tradutor e produzem diferentes tipos de textos de chegada. Analisar‐se‐ão duas traduções, a de Pietro Nassetti de 2001 e a de William Lagos de 2002, nos seus níveis preliminar, macro‐estrutural e micro‐estrutural, voltando, só numa fase final, à comparação com o texto de partida. Palavras‐chave: Literatura Traduzida, Análise Descritiva, Estudos Descritivos da Tradução. 1. INTRODUÇÃO Ao se analisar um texto traduzido deve‐se levar em conta a importância do contexto literário, cultural, editorial e social do texto de partida e de chegada, mostrando como a tradução e o tradutor façam parte daquilo que Even‐Zohar (1990) chama de polissistema. Nenhuma tradução e nenhum tradutor trabalham de forma isolada do contexto e dos meta‐textos ‐ no caso, outras traduções e outros autores ‐ mas encontram‐se numa rede densa de influências e contrições que influenciam de forma marcante o produto final. Evitar‐se‐á então formular julgamentos de qualquer tipo acerca das traduções, limitando‐se a descrever e levantar recorrências e normas que possam nos ajudar compreender o trabalho do tradutor, considerado como o autor de um novo texto. 1
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Departamento de Língua e Literaturas Estrangeiras – PGET, Pós‐graduação em Estudos da Tradução, Florianópolis, Brasil, Professor Doutor, Adjunto I, [email protected]. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [162–173]
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ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE 2. O CORPUS O corpus a ser estudado constitui‐se de duas traduções em língua portuguesa do conto The Black Cat de Edgar Allan Poe. A primeira, O gato preto,traduzida por Pietro Nassetti, está contida no livro intitulado Historias extraordinárias, publicado em 2001 pela editora Martin Claret de São Paulo. A segunda, O gato preto, traduzida por William Lagos, encontra‐se na coletânea Assassinatos na Rua Morgue e outras histórias, publicada em 2002 pela editora L&PMPocket de Porto Alegre. Cabe aqui lembrar que o texto de partida, The Black Cat, foi publicado em 1843 pela editora Graham na coletânea editada ‘em partes’, The Prose Romances of Edgar Allan Poe. Edgar Allan Poe (Boston 1809 – Baltimore 1849) é considerado um dos maiores literatos de todos os tempos, ainda que somente depois de meio século após sua morte foi reconhecido seu valor nos Estados Unidos. Escritor com um gênio muito poderoso, criador e precursor de gêneros literários inéditos, do policial à ficção cientifica, aparentemente distante da sociedade americana de seu tempo, foi um interprete muito lúcido dos seus pesadelos, negados ou removidos. Enquanto na Europa nascia, graças ao apoio de Baudelaire e dos simbolistas franceses, o mito de Poe como poeta maldito com traços tipicamente românticos, ou como simbolista ante litteram, ou como teórico da Arte para a Arte, a América o considerava à guisa de um estrangeiro, de um desviado, de um palhaço. Somente graças aos estudos de T. S. Eliot e de A. Tate sua obra foi recolocada dentro da tradição americana. Hoje se reconhece a grandeza e a unicidade de sua fascinante indagação no mundo do mistério e se considera Poe um dos precursores da literatura contemporânea mundial. Sua fama se deve sobretudo aos seus contos, dentre os quais se assinalam: The fall of the house of Usher, William Wilson, The tell‐tale heart, Murders in the Rue Morgue, The purloined letter ,The man of the crowd (um retrato da metropole moderna). Os módulos utilizados por Poe decorrem, por um lado, e, sobretudo, da tradição’gótica’ inglesa, por outro, dos contos fantásticos de E. T. A. Hoffman. Os temas recorrentes da narrativa de Poe, nutridos de obsessões pessoais, são transcritos em figuras, situações e ou símbolos que transcendem a origem psíquica para tornar‐se linguagem. Exemplo dessa escrita do imaginário é o romance, o único de sua produção, The narrative of Arthur Gordon Pym de 1838. Poe não somente foi um grande escritor de contos, mas também um original teórico da literatura, como atestam os seguintes textos: The rationale of verse, 1843; The philosophy of composition, 1846; The poetic principle, 1850. Traduzidos, parcialmente, e retomados, na Franca, por Baudelaire, esses ensaios tiveram um papel fundamental na crítica dirigida pela cultura moderna contra os conceitos românticos de inspiração e de espontaneidade criativa. De uma forma, as vezes provocatória, e paradoxal, Poe destacava a possibilidade de construir o texto literário pedaço por pedaço como em uma montagem, testando previamente seus VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [162–173]
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ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE efeitos no leitor. Sua poesia foi considerada logo na Europa entre as mais importantes antecipações da experiência simbolista por causa de sua potência sugestiva e também pela busca exata de uma arquitetura verbal. 3. UM MÉTODO PARA DESCREVER TRADUÇÕES As traduções portuguesas do conto de Poe serão analisadas tendo como fundamentação teórica de referência e como método prático de análise, a Teoria dos polissistemas de Itamar Even‐Zohar e os Estudos descritivos de Josè Lambert. A teoria dos polissistemas tem origem no trabalho de um grupo de teoristas literários russos; o conceito de “polissistema” recebeu uma atenção considerável no trabalho de um certo grupo de estudiosos de tradução a partir dos anos 70. De modo específico, foi o israelense Itamar Even‐Zohar quem desenvolveu o modelo dos polissistemas na base do seu trabalho sobre literatura judia. Partindo da teorização dos formalistas russos, Even‐Zohar desenvolveu a teoria dos polissistemas caracterizada pela concepção do polissistema como um conglomerado (ou sistema) heterogêneo, hierarquizado de sistemas que interagem para realizar um processo dinâmico de evolução dentro do polissistema como um todo. Por exemplo, o polissistema de uma dada literatura nacional é considerado com um dos elementos de um polissistema sócio‐cultural maior, que por sua vez inclui outros polissistemas além do literário, como o artístico, o religioso ou o político. Nessa perspectiva, a literatura passa e ser considerada não somente uma simples coletânea de textos, mas como um conjunto de fatores que governam a produção, a promoção e a recepção dos textos. A noção essencial da teoria dos polissistemas é a de que os vários extratos e subdivisões que caracterizam um polissistema estão em constante competição uma com o outro para alcançar a posição dominante. Especificamente no caso do sistema literário existe um contínuo estado de tensão entre o centro e a periferia, no qual os diferentes gêneros literários visam a dominar a posição central. O termo gênero é usado aqui no sentido mais amplo, e não é restrito às formas “altas” ou “canônicas”, mas inclui também gêneros “baixos” ou “não canônicos”2. Essa nova, não elitista e não prescritiva abordagem com a sua rejeição de julgamentos de valor, teve conseqüências importantes que se refletiram no campo dos estudos da tradução. Não obstante as formas assim chamadas de baixa tenderem a ficar na periferia, elas dão um estímulo às formas canônicas para tomarem posse determinando assim um dos modos principais através dos quais o polissistema evolui. Por conseguinte, para Even‐Zohar a evolução literária não é guiada por um objetivo específico, mas é uma conseqüência da inevitável competição gerada pelo 2
Consideram‐se gêneros “baixos” ou “não canônicos” a literatura infantil, a ficção popular e obras traduzidas, nenhuma das quais foi jamais incluída no âmbito dos estudos literários. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [162–173]
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ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE estado de heterogeneidade. Grande parte da obra de Even‐Zohar é voltada para a discussão quer do papel que a literatura traduzida desenvolve num específico polissistema literário, quer para as implicações teóricas mais amplas que a teoria dos polissistemas tem sobre os estudos da tradução em geral. É importante, segundo ele, reconhecer relações sistemáticas limitadas entre os semelhantes textos traduzidos isolados que existem em um singular dado polissistema literário. Essas relações seriam, por exemplo, as dos princípios de seleção imposta pela poética dominante e também as causadas pela conformidade do texto traduzido às normas do sistema de partida. A literatura traduzida pode, segundo o israelense, assumir uma grande variedade de papéis no polissistema de partida, quer conformando‐se a sistemas já existentes, quer introduzindo elementos originais dentro do sistema; ao mesmo tempo, porém, as formas nas quais a tradução é praticada em uma dada cultura são também ditadas pela posição que a literatura traduzida ocupa dentro do polissistema. Por isso, para Even‐Zohar tradução não é mais um fenômeno facilmente e definitivamente definível nas suas características e nos seus objetivos, mas é uma atividade que depende das relações com um dado sistema cultural. Essa nova abordagem contribuiu para ampliar a definição também de tradução, superando definitivamente as concepções prescritivas até então prevalecentes. Segundo Even‐Zohar, então, os parâmetros com os quais o processo tradutório é desenvolvido numa dada cultura são eles mesmos ditados pelos modelos que são operativos dentro do polissistema literário padrão. Essa abordagem fundamentalmente não prescritiva levou a três conceitos importantes: o primeiro é que é mais proveitoso olhar para a tradução como um aspecto específico de um fenômeno mais geral de transferência intersistêmica; o segundo diz respeito à concepção do texto traduzido. Não se pensa mais no texto em termos de equivalência entre target text e source text, mas se considera o texto como uma entidade existente no polissistema padrão com as suas próprias características e não isoladamente, mas resultado dos procedimentos gerais de tradução determinados por esse polissistema. O terceiro aspecto diz respeito aos próprios procedimentos tradutórios. Uma vez estabelecido que o texto de chegada não é só o produto de opções lingüísticas, mas também culturais e de gênero, podem se explicar os fenômenos tradutórios no contexto mais geral de transferência intersistêmica. 3.1 o surgimento dos estudos descritivos Os conceitos introduzidos pela teoria dos polissistemas foram desenvolvidos a partir da primeira metade dos anos 80 por vários estudiosos3. 3
Vários teóricos desenvolveram e aprofundaram as concepções da teoria dos polissistemas: Gentzler (1993), por exemplo, sustentou que a influencia do formalismo russo foi muito forte e que a teoria dos polissistemas precisava libertar‐se de algumas concepções rígidas. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [162–173]
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ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE O desenvolvimento mais significativo desse modelo se encontra em Gideon Toury (1980) que consolida a abordagem enfatizando a prevalência do texto de chegada. Ele pretende estabelecer com a sua teoria uma hierarquia de fatores interligados (constrições) que determinam o produto da tradução. De fato, segundo ele, o papel da teoria da tradução deve ser alterado, cessando buscar um sistema do qual julgar o produto, mas ao contrário focalizar o desenvolvimento de um modelo que ajude a explicar o processo que determina a versão final. Esse processo seria influenciado por leis que ele chama de translation norms. Essas normas mediariam entre sistemas potencialmente equivalentes. Cada sociedade possui múltiplas e conflitantes normas, todas interligadas com outros sistemas, mas se algumas situações ocorrem com uma certa regularidade, é possível estabelecer alguns padrões comportamentais. Nos anos 80 os Estudos da Tradução focalizaram de forma mais precisa o aspecto prático da tradução através de uma abordagem descritiva. A maioria dos debates concentrou‐se sobre os métodos mais proveitosos para descrever a tradução literária e para determinar comportamentos normativos no âmbito tradutório, voltando só numa segunda fase ao aspecto teórico. Um dos principais teóricos do grupo, José Lambert (1985), sugere que todos os aspectos funcionalmente relevantes da atividade tradutória devem ser observados cuidadosamente no contexto histórico. Assim o autor, o texto e as normas literárias em um dado sistema literário são justapostos a um autor, um leitor e outras normas literárias de outro sistema. Dever‐se‐ão procurar, segundo Lambert, as regularidades nos fenômenos tradutórios em uma situação cultural real. Isso levará a uma evolução da teoria da tradução e à redefinição de algumas concepções e do próprio conceito de texto traduzido. Partindo dos posicionamentos da teoria dos polissistema, Lambert desenvolve uma nova metodologia para descrever melhor traduções: ele focaliza mais a observação dos dados sem considerá‐los à luz de pressuposições a priori4. 3.2. Um esquema hipotético para descrever traduções No modelo descritivo de Lambert e van Gorp, os autores consideram a equivalência o fator central da pesquisa. É necessário observar que tipo de equivalência existe entre os termos da comparação: uma equivalência target‐
oriented (isto é, aceitável) ou source‐oriented (adequada). Essa questão deverá ser abordada do ponto de vista das normas dominantes: ou seja, desde que a tradução seja essencialmente o resultado da seleção de estratégias dentro de um 4
Outros teóricos dos Estudos da Tradução na Inglaterra e na América como Susan Bassnet e Maria Tymoczko, distanciaram‐se ainda mais da teoria dos polissistemas que consideram muito formalista e restritiva. Fundamentando‐se mais nos estudos culturais, consideraram como elementos básicos da análise descritiva a influência das instituições mais conceituadas e potentes em uma dada cultura e os padrões na tradução literária. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [162–173]
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ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE determinado sistema comunicativo, a principal tarefa do pesquisador será a de estudar as prioridades – as normas e os padrões dominantes ‐ que determinam essas estratégias. Como o próprio Lambert afirma, essa pesquisa se baseia em um esquema que contém os parâmetros básicos dos fenômenos tradutórios como são apresentados por Even‐Zohar e Gideon Toury no âmbito do polissistema. Nesse esquema a ligação comunicativa entre source e target text não se pode predizer, mas é uma relação aberta cuja natureza dependerá das prioridades estabelecidas pelo tradutor, que devem ser consideradas em função das normas do sistema de chegada. A vantagem desse esquema, destaca Lambert, é o de superar definitivamente concepções radicadas e antigas no âmbito da tradução como a de “fidelidade” e a de “qualidade”, que são mais source oriented e inevitavelmente normativas. O esquema que o próprio Lambert define teorético e hipotético, apresenta mais ou menos os mesmos pontos abordados por Toury. Pretende superar uma visão binária da análise da tradução e alcançar uma visão mais complexa para avaliar as relações entre target text e source text. O modelo de Lambert, como o de Toury, visa a superar os limites da análise contrastiva assim como a elaborar um modelo prático para um tipo de análise textual na qual tenta se descrever e verificar as estratégias tradutórias. Nesse modelo o primeiro passo a ser feito é o de recolher informações preliminares sobre a tradução: título, presença ou ausência da indicação de gênero, nome do autor, nome do tradutor, etc.; meta‐texto (na página inicial, no prefácio, nas notas de rodapé, no texto ou separadas?); estratégias gerais (tradução integral ou parcial?). Essa primeira indagação já deveria viabilizar a localização de uma possível estratégia geral de tradução subjacente ao texto. Deve‐se assumir como hipótese central ‐ visto que a tradução é determinada por mecanismos de tradução em vários níveis textuais ‐ que um texto traduzido, que é mais ou menos adequado ao nível da macro‐estrutura, será geralmente adequado também ao nível da micro‐estrutura. Por isso, faz‐se necessário utilizar vários textos ou diferentes fragmentos de textos no macro‐nível e no micro‐nível. Essa segunda etapa prevê a análise da macro‐
estrutura: divisão do texto (em capítulos, atos ou cenas, etc.); relações entre os tipos de narração, diálogo, descrição, entre diálogo e monólogo; estrutura interna da narração (prólogo, clímax, epílogo, etc.); estrutura poética (por exemplo, relação entre tercetos e quartetos num soneto); comentários do autor. Todos os fragmentos escolhidos deverão ser analisados, segundo Lambert, do ponto de vista de específicas regras textuais: o tradutor traduziu palavras, metáforas, seqüências narrativas, parágrafos, etc? A etapa sucessiva focaliza a atenção na micro‐estrutura, isto é: deslocamentos nos níveis fônico, gráfico, micro‐sintático, léxico‐semântico, estilístico, locutório, etc. Analisar‐se‐á, então, a seleção das palavras, os padrões gramaticais dominantes e as estruturas literárias formais (metro, rima), formas de VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [162–173]
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ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE reprodução do discurso (direto, indireto, etc.), registro da língua etc. Esses dados das estratégias micro‐estruturais levarão a uma nova comparação com as estratégias macro‐estruturais e a uma suposição da concepção geral de tradução que permeia o texto. A última etapa prevê a análise das oposições entre micro e macro‐níveis e entre texto e teoria (normas e padrões); relações intertextuais (com outras traduções ou com escritos criativos); relações intersistêmicas (estruturas de gênero, códigos estilísticos, etc.). O objetivo desse esquema é, então, o de superar uma abordagem atomística na análise de textos traduzidos, optando por uma abordagem sistemática que permita distinguir entre normas individuais e coletivas de tradução: é absurdo, segundo Lambert, que numa pesquisa não se considere que uma tradução possui ligações (positivas ou negativas) com outras traduções ou tradutores. A visão do pesquisador e da pesquisa no âmbito da tradução deve ser, pois, mais ampla: considerando todas as questões levantadas pelos estudos descritivos e seus teóricos não se pode mais continuar falando ‐ afirma Lambert ‐ simplesmente de análise de textos traduzidos, pois, como diz “Our object is translated literature, that is to say, translational norms, models, behaviour and systems. The specific T1 and T2 analysis should be part of a larger research programe focusing on all aspects of translation” (LAMBERT,1985, p. 51). 4. ANÁLISE DESCRITIVA 4.1 informações preliminares sobre a tradução Começar‐se‐á então a análise descritiva das duas traduções do conto de Edgar Allan Poe a partir das informações preliminares sobre os textos em questão. O primeiro texto, Historias Extraordinárias, foi publicado em 2001 pela editora Martin Claret. Na capa aparecem somente o titulo do livro, o nome do autor e a indicação que se trata da edição integral do texto. Na folha de rosto se repetem as mesmas informações e somente na folha sucessiva dedicada aos créditos aparece, dentre os outros colaboradores, o nome do tradutor, Pietro Nassetti. Existe um prefácio de seis folhas trazendo notícias sobre a história do livro e, especificamente, sobre a coleção em questão chamada de ‘A Obra‐Prima de Cada Autor’. Nas orelhas do livro se faz referência sucintamente aos objetivos e às características da publicação e, no verso do livro, existem ainda referências meta‐
textuais ao autor e sua poética. No verso do livro informa‐se o leitor que o texto que tem em mãos é semelhante quase em tudo à coletânea de 1848 organizada por Baudelaire. No final do livro há, ainda, um perfil do autor Edgar Allan Poe, enquanto não existem dados biográficos do tradutor. O segundo texto, Assassinatos na Rua Morgue e outras historias, foi publicado em 2002 pela editora L&PM POCKET. Na capa aparecem em evidência o VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [162–173]
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ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE nome do autor e o título da coletânea, na contra‐capa se repetem as mesmas informações e somente na folha de rosto aparece, após o nome do autor e o título, o nome do tradutor, William Lagos. O livro apresenta um índice e contém seis contos traduzidos. No final do livro há uma cronologia da vida de Poe e no verso se informa o leitor que se trata de uma edição integral dos contos e se oferece um pequeno resumo da atividade poética e de sua biografia. Resumindo essa analise preliminar, pode‐se afirmar que em ambos os textos se dá mais ênfase ao papel do autor e à importância da obra, enquanto o tradutor aparece pouco e quando aparecer é considerado um dentre os tantos colaboradores que possibilitaram a edição e publicação do livro. Não se percebe então a função fundamental de seu trabalho nem, por conseqüência, as editoras acham importante colocar os critérios que os tradutores seguiram ao longo de seu trabalho para chegar ao texto entregue ao público. Na edição Martin Claret o leitor pode contar com uma introdução bastante aprofundada acerca da importância da leitura e do livro como meio de conhecimento e com suficientes esclarecimentos acerca da proposta da editora: “Nosso objetivo principal é oferecer, em formato de bolso, a obra mais importante de cada autor, satisfazendo o leitor que procura qualidade [...]” e ainda “O critério empregado para selecionar os títulos foi o já estabelecido pela critica especializada”. No segundo texto, o publicado pela L&PM POCKET, não temos, ao contrário, nenhuma menção a critérios de qualquer tipo. Pode‐se concluir que ainda uma vez o papel do tradutor não é considerado tão relevante pela editoras, ou melhor, que as editoras não acham que o leitor possa estar interessado em conhecer a figura do tradutor e seu trabalho, contribuindo dessa forma à manutenção de preconceitos e estereótipos bastante radicados no imaginário coletivo sobre a presumida facilidade e marginalidade do trabalho do tradutor. 4.2 Análise macro‐estrutural A análise macro‐estrutural visa a indagar mais o texto literário buscando as recorrências que levem a hipotizar alguma estratégia específica do tradutor. No caso em questão, ambos os tradutores optaram para uma tradução continua e homogênea, isto è, sem divisões em capítulos, do texto de partida. No que diz respeito à estrutura do texto, cabe destacar que ambas as traduções mantêm a divisão em 32 parágrafos do texto de partida. Em relação à narração, a história é contada sempre na primeira pessoa por um narrador intra‐
diegetico em ambos os textos. Não há diálogos, mas sim uma descrição ininterrupta dos acontecimentos. A estrutura interna da narração apresenta um prólogo – a advertência do autor ao leitor acerca da peculiaridade de sua história, e sua biografia até quando o acontecimento principal do conto acontecer – , um clímax – VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [162–173]
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ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE o assassinato do primeiro gato, o encontro com o segundo gato e o homicídio da esposa do protagonista ‐, e o epílogo – a descoberta terrificante e inesperada do corpo murado da vitima. Ambas as traduções se revelam bastantes ortodoxas em relação à narração e à estrutura descritiva do texto de partida, não há de fato por parte dos tradutores, tentativas de recriações ou modificações. Isso se justificaria pelo fato de que o objetivo das edições é pouco pretensioso: alcançar um público maior, popularizando clássicos da literatura estrangeira pouco conhecidos no Brasil e também pouco acessíveis economicamente pela maioria das pessoas. 4.3 Análise micro‐estrutural A terceira etapa de uma análise descritiva visa a destacar os deslocamentos nos níveis fônico, gráfico, micro‐sintático, léxico‐semântico, estilístico, locutório, etc. das traduções. No caso de nossa indagação, os dois textos se, por um lado apresentam estratégias diferentes no que diz respeito ao estilo gráfico, por outro se assemelham bastante em relação ao estilo literário. Como se falou no parágrafo dedicado à análise macro‐estrutural, os dois tradutores não recriaram muito a narrativa do texto de partida; essa mesma atitude encontra confirmação na análise micro‐estrutural. De fato, o registro utilizado aparece bastante formal quer sintática, quer morfologicamente, assim como nas escolhas lexicais. Destacam‐se alguns exemplos que resultam, a nosso ver, enfáticos e decididamente formais: Texto 1 – NASSETTI: Não espero nem peço que se de crédito à história sumamente extraordinária e, contudo, bastante domestica que vou contar [...] mas amanha posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar meu espírito. Texto 2 – LAGOS: Não espero nem peço que acreditem nesta narrativa ao mesmo tempo estranha e despretensiosa que estou a ponto de escrever [...] Mas amanha morrerei e quero hoje aliviar minha alma. Em outros casos as orações e os períodos resultam muito tortuosos e pouco naturais ao leitor brasileiro, talvez pelo fato de apresentar também, freqüentemente, termos bastante arcaicos e obsoletos: Texto 1 – NASSETTI: Aos que já experimentaram afeto por um cão fiel, não preciso dar‐me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode te com isso [...] Coro, estremeço, abraso‐me de vergonha ao falar aqui dessa atrocidade. Texto 2 – LAGOS: Todos aqueles que estabeleceram uma relação de afeto com VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [162–173]
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ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE um cão inteligente e fiel dificilmente precisarão que eu me dê ao trabalho de explicar a natureza da intensidade da gratificação que deriva de tal relacionamento [...] Encho‐me de rubor e meu corpo todo estremece enquanto registro esta abominável atrocidade. Esses são somente uns dos tantos exemplos desse tipo que poderiam confirmar nossa impressão de que as traduções em questão sejam mais source‐oriented. De fato, não apresentam nem no estilo, nem no léxico, aproximações à cultura e língua de chegada. Existem, porém, algumas diferenças estilísticas entre as duas traduções: a de Lagos apresenta, ao longo do texto, uma variedade de termos destacados em itálico que aparentam ter a finalidade de dar mais ênfase à narrativa do autor, ou, pelo menos, facilitar a compreensão da narrativa por parte do leitor. Lagos utiliza, ainda, freqüentemente maiúsculas para destacar alguns termos e, em outros casos, (o de FORÇA, por exemplo) usa a caixa alta para enfatizar ulteriormente o discurso do narrador. Já o texto de Nassetti apresenta‐se bastante neutro no que diz respeito a essas características enfáticas. Existe, porém, uma contradição na estratégia tradutória de Lagos: se por um lado se serve desses meios gráficos para guiar o leitor na percepção da narrativa, por outro, em outros casos, mantém‐se, muito ortodoxo em suas escolhas. É o caso do termo bas relief, no original em francês, que Nassetti opta por traduzir em português (baixo‐relevo), e que Nassetti opta por manter. Ambos, porém, preferem não colocar em caixa alta dois termos que Poe, ao contrário, tinha destacado: PERVERSENESS, GALLOWS. Ainda que ambas possam ser consideradas traduções source‐oriented, a de lagos revela‐se afinal mais contraditória apresentando estratégias ao mesmo tempo source e target oriented. Finalmente, após os três níveis de analise, faz‐se necessário voltar e tomar e considerações características estilísticas do texto de partida. A narrativa e o estilo de Edgar Allan Poe respeitam de fato os cânones literários da época em que o livro foi escrito. A novidade de Poe não reside tanto no aspecto lingüístico, quanto no narrativo: uma estrutura intrigante – aparentemente distanciada, até glacial nos trechos mais ricos em horror – que envolve o leitor no plano emotivo e, contemporaneamente, o impressiona utilizando as técnicas que se tornaram clássicas do gênero policial: a suspense, o processo de identificação com o protagonista, o jogo sutil dos raciocínios e as atmosferas alucinadas. O estilo utilizado por Poe é geralmente formal e enfático, não há espaço por muitas variações sobre o tema como se observa no trecho inicial do conto: For the most wild, yet most homely narrative which I am about to pen, expect nor solicit belief. Mad indeed would I be to expect it, n a case where my very senses reject their own evidence. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [162–173]
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ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE CONCLUSÕES Concluindo essa análise das traduções brasileiras do conto The black cat, faz‐
se oportuno retomar alguns desses pontos par considerá‐los criticamente. O objetivo que se almejava alcançar mediante essa leitura critica era dúplice: por um lado, oferecer uma análise descritiva dos textos traduzidos que pudesse fornecer esclarecimentos acerca dos produtos apresentados pelas editoras e seu processo de constituição, por outro desmistificar alguns preconceitos ainda existentes em relação ao trabalho do tradutor e à pratica tradutória. O método desenvolvido pelos Estudos Descritivos possibilitou realizar ambos os objetivos prepostos graças à eficácia e criteriosidade de sua análise. Mostrou‐se que os produtos entregues ao público ainda continuam omitindo notícias relativas ao tradutor e seu papel; sendo essa uma política especifica das editoras e não uma atitude dos próprios tradutores. Além disso, o escopo da tradução e, sobretudo, o público alvo a ser atingido influenciaram fortemente o trabalho do tradutor e sua estruturação não somente estilística e formal, mas também cultural. No caso em questão vimos como o fato de serem edições econômicas e populares tenha lavado os tradutores a optarem por versões mais source‐oriented, recriando pouco o texto de Poe, devido à natureza da edição e talvez a prazos e também, não menos importante, à escassa remuneração que trabalhos desse tipo prevêem. O tradutor, muito freqüentemente julgado rápida e injustificadamente, encontra‐se no meio de ‘sistemas’ ou, como afirmado por Even‐Zohar, polissistemas, normativos, culturais, editoriais, econômicos, que direcionam e condicionam, muitas vezes, o seu trabalho moldando o produto final. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ENCICLOPEDIA DELLA LETTERATURA GARZANTI. Milano: Garzanti, 2002, p. 818‐19. EVEN‐ZOHAR, Itamar. Polysistem Studies. Poetics Today. International Journal for Theory and Analysis of Literature and Communication, Vol. 11, Number 1 Spring 1990. LAMBERT, José; GORP, Hendrik von. On describing Translations. In: HERMANS Theo (ed.). The Manipulation of Literature. Studies in Literary Translation. London & Sidney: Croom Helm, 1985, p. 42‐53. LAMBERT, José & ROBYNS, Clem. Translation. In: POSNER, Roland; ROBERING, Klaus and SEBEOK, Thomas A. (eds.). Semiotics. A Handbook on the Sign‐Theoretic Foundations of Nature and Culture. Berlin/New York: de Gruyter, 1995, p. 1‐23. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [162–173]
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ANÁLISE DESCRITIVA DAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO CONTO THE BLACK CAT DE EDGAR ALLAN POE MILTON, J. Translating Classic Fiction for Mass Markets The Brazilian Clube do Livro. The Translator, volume 7, number 1, 2001, p. 43‐69. POE, E. Allen. The Black cat. [s.l], 1843. Disponivel no site < http://bau2.uibk.ac.at/sg/poe/works/blackcat.html >. POE, E. Allen. Histórias extraordinárias. São Paulo: Martin Claret, 2001. POE, E. Allen. Assassinatos na Rue Morgue e outras histórias. L&PM Pocket: Porto Alegre, 2002. RONCORONI, F. Testo e contesto. Guida all’analisi delle opere e degli autori nel loro tempo. Milano: Mondadori, 1984. TOURY, Gideon. In Search of a Theory of Translation. Tel Aviv University: The Porter Institute for Poetics and Semiotic. 1980. DESCRIPTIVE ANALYSES OF THE BRAZILIAN TRANSLATIONS EDGAR ALLAN POE'S NOVEL THE BLACK CAT ABSTRACT: This article intends to analyze the Brazilian translation of the novel The Black Cat of American writer and poet Edgar Allan Poe from the Descriptive Translation Studies point of view. We'll try, specifically, to show, using José Lambert (1985) methodology to describe translations how it's possible to find in translated text, as they were originals, recurrences and index of norms of different type that influenced the translator and produces different types of target texts. We'll analyze two translations, the first by Pietro Nassetti (2001) and the second by William Lagos (2002) in their preliminary, macro‐structural and micro‐structural levels, comparing them only in the final moment with the source text. Keywords: Translated Literature, Descriptive Analyses, Descriptive Translation Studies. Recebido em 30 de maio de 2009; aprovado em 30 de junho de 2009. VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 www.revistavoos.com.br [162–173]

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