Um sonho para África: abolir a pena capital em todo o continente

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Um sonho para África: abolir a pena capital em todo o continente
2
suplemento
08.02.2008
Um sonho para África: abolir a
pena capital em todo o continente
- geografia da pena capital no continente africano
África ganhou um novo primado nestes últimos anos: é o
continente onde o progresso para a abolição da pena de
morte marcou novas e significativas conquistas. Um
exemplo disso é Moçambique, que aboliu a pena capital em
1990 com a emanação da nova Constituição. Esta, no artigo
70, significativamente diz: “ 1. Todo o cidadão tem direito À
vida. Tem direito à integridade física e não pode ser sujeito
a tortura ou tratamentos cruéis ou desumanos. 2. Na
República de Moçambique não há pena de morte”.
Moratória das execuções
A maioria dos países africanos, por lei ou por prática, não
aplica a pena capital. Embora haja 16 Estados que a mantêm
(30,18% do total), 14 Estados já têm cancelado nas suas
constituições o recurso à condenação capital (26,41%),
enquanto 23 países, 43,41%, são abolicionistas de facto: a
pena de morte, mesmo quando ainda prevista pela lei, não é
executada pelo menos há 10 anos e é geralmente comutada
em outros tipos de penas, como a prisão perpétua. Dois destes
países, Argélia e Mali, impuseram já por decreto há anos uma
moratória das execuções. Em diversos países os chefes de
estado, que devem assinar os mandatos de execução,
mostraram grande relutância em fazê-lo. E isto é principalmente
devido à consciência da confiança dúbia que têm a respeito do
inteiro processo judiciário, a partir do acto de prender até à
condenação.
África é portanto o continente que, dados em mão, conta
com o maior número de Estados abolicionistas de facto no
mundo. Sob alguns aspectos trata-se de uma situação mais
avançada em relação a outros continentes: como nas Américas,
onde numerosos países, Estados Unidos inclusive, mantêm a
vários títulos a possibilidade de executar condenações à
morte; mas sobretudo na Ásia, o continente com a percentagem
mais alta de países onde se mantêm o mais alto número de
execuções.
Geralmente o sistema judiciário em vigor nos países africanos
baseia-se em códigos ocidentais implantados e praticados
durante a época colonial. Nos países de maioria muçulmana,
onde o Islão se enraizou bastante para se tornar a religião de
Estado, sobre a lei ou sobre processos judiciários influencia de
maneira determinante a Sharia, a lei divina contida no Alcorão.
Todavia não se encontra uma correlação, pelo menos directa,
entre a aplicação da pena de morte e a forma do Direito em
vigor. Alguns países abolicionistas, de norma ou de facto,
apresentam ordenamentos jurídicos de influência ocidental ou
islâmica. Em algumas circunstâncias, até, existe uma mistura
entre estes dois sistemas. É o caso, por exemplo, da Tunísia,
país abolicionista de facto, ou a Argélia, que está a aplicar
desde 1993 uma moratória das execuções, decretada pelo ex
Presidente Zeroual.
Pelo contrário, países como a Líbia ou o Egipto, com
ordenamentos semelhantes, onde confluem as diversas
componentes jurídicas, mantêm a pena capital nas sentenças
dos seus próprios tribunais, utilizando-as às vezes de forma
ambígua para fins internos ou como instrumento de pressão
para com a comunidade internacional. Há países que a mantêm
nas áreas de maioria islâmica bem como naquelas com
ordenamentos mais semelhantes àqueles ocidentais. O mesmo
vale para os abolicionistas.
Em África a pena de morte é sempre mais residual: em 2004
foi activada em apenas quatro países – Uganda, Egipto, Sudão
e Somália – onde foram registadas pelo menos 16 execuções
contra as 56 de 2003 e as 63 de 2002 em todo o continente. Em
2005, regista-se uma retomada das execuções na Líbia e na
Eritreia. Em 2006 a Guiné Equatorial e o Botswana retomaram
as execuções, em triste companhia com o Egipto, a Somália,
a República Democrática do Congo e o Uganda. Oficialmente,
em 2006 registam-se 12 execuções. A Etiópia em 2007 praticou
a sua segunda condenação à morte em dez anos. Há alguns
anos, mais de 90 % das execuções de que se tem conhecimento
foram praticadas num restrito número de países, entre os
quais não consta nenhum país africano: Kuwait, China, Irão,
Iraque (até Abril de 2003; restabelecida em Agosto de 2004
após um ano de suspensão da queda do regime de Saddam
Hussein), Vietname, Estados Unidos. É oportuno, além disso,
assinalar mais um dado encorajador registado nos últimos três
anos: as numerosas comutações das condenações à morte
em pena de detenção; foram decretadas por diversos países
africanos, entre os quais, o Burundi, a Etiópia, o Gana, Marrocos,
a Nigéria, a República do Congo, a Tanzânia, a Zâmbia,
habitualmente por ocasião de festas nacionais, aniversários
da independência ou datas particulares. Centenas de
prisioneiros beneficiaram. São procedimentos emblemáticos
do processo de humanização da justiça, que leva a considerar
como intolerável o uso da morte como pena e contribuem a
levar toda África a grande passos para a definitiva libertação da
Itália: manifestação contra a pena de morte no mundo
utilização da condenação capital.
Portanto, África, apesar das suas feridas e os conflitos que
a assolam, distingue-se por um desenvolvimento positivo na
direcção abolicionista e se encaminha a assumir um papel
determinante nesta batalha, decisiva para a inteira humanidade.
Em 2007 foi lançado o significativo apelo do Primeiroministro italiano Romano Prodi aos líderes da União Africana,
em Addis Abeba a 28 de Janeiro, com vista a apresentação à
ONU da proposta de Moratória Universal da pena capital:
“Devemos ser pela vida e contra a morte da mesma maneira
como somos contra a injustiça e o sofrimento”. A transformação
da campanha por uma moratória da pena de morte, da iniciativa
global, com co-patrocinadores de todos os continentes foi a
primeira e mais importante chave do sucesso da resolução
aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas.
Determinante o papel do continente africano com 17 votos a
favor (mas também os 14 que abstiveram tiveram a sua
importância), em particular a África do Sul, Moçambique,
Gabão e Ruanda, onde o governo teve a grande coragem
política em abolir a pena de morte, num país que ainda traz
bem evidentes as marcas do genocídio de 1994.
Cinco milhões em assinaturas
Muitos dos votos a favor dos Estados africanos à moção
apresentada às Nações Unidas, foram construídos durante
estes últimos anos pelo paciente trabalho da Comunidade de
Sant’ Egidio, com uma actividade de persuasão favorecida
pela longa história de amizade e presença da Comunidade em
África. No passado mês de Novembro, a Sant’ Egidio entregou
em Nova Iorque, nas mãos do Presidente da AssembleiaGeral, cinco milhões de assinaturas recolhidas em muitos
países do mundo, e muitas delas em África. Numerosas siglas
e organizações estão envolvidas na grande batalha pela
moratória, como se deduz pela composição da World Coalition
against Death Penalty. Todavia a Sant’Egidio nunca se quis
limitar apenas nas actividades de lobbying, para alcançar o
objectivo desejado. Achou necessário operar em profundidade
na sociedade, envolvendo os próprios africanos, os
responsáveis políticos e institucionais, mas também os simples
cidadãos e a opinião pública do continente. Esse trabalho tem
sido feito sobretudo pelas comunidade africanas de Sant’Egidio,
que se empenharam a falar contra a pena capital nas cidades
e nas aldeias, a recolher as assinaturas pela moratória nas
universidades e nos bairros populares, a falar com os chefes
tradicionais e com os juízes, com os presidentes de municípios
e com os líderes religiosos locais. O melhor testemunho do seu
esforço é, além do trabalho diário, a presença continua em
muitíssimas cadeias e nos corredores da morte.
Em muitas partes do mundo esta luta é associada com a
busca de um critério de justiça mais autêntico, não vingativo
mas sempre reabilitativo. Liga-se com a aspiração a um mais
alto nível de civilização e de defesa dos direitos humanos que
englobe todos, vítimas e culpados dos crimes. Em muitas
partes do mundo, assim como na consciência de uma multidão
de pessoas, a pena de morte é sempre sentida como uma
violação irreparável da sacralidade da vida e da dignidade
humana, que embrutece e não protege as sociedades que a
aplicam.
Africa for Life
Com a participação activa numa campanha “global” como
aquela por uma moratória universal da pena de morte, África
lançou ao mundo um forte sinal em sinergia com Europa.
Estamos plenamente imergidos numa época, onde a
consciência da interligação das relações a nível planetário
gera motivações e instâncias sempre mais alargadas de unidade
e cooperação. Euráfrica é um grande projecto – frisa Andrea
Riccardi, fundador da Comunidade de Sant’Egidio – onde
colocar as diversas identidades nacionais, europeias e
africanas: “Euráfrica pretende ser uma política, mas também
um conjunto de sentimentos e de ideias entre mundos que se
descobrem próximos”. É uma visão evocadora de sentimentos
de comunhão, que oferece “um quadro de digna reciprocidade
ao interesse com que os africanos olham para Europa”. Para
dar força a esta visão do futuro é preciso efectuar escolhas
políticas, que desenvolvam ideias e sentimentos numa
perspectiva de envolvimento dos países e das suas sociedades
civis. Há tempo que está convicta disso a Comunidade de Sant’
Egidio que, à distância de dois anos, em Novembro de 2005 e
Junho de 2007, promoveu em Roma dois colóquios
internacionais sob o nome «Africa for life», que viram a
participação de numerosos ministros da Justiça de países
africanos, abolicionistas ou não, para um confronto e uma
troca de experiências. Duas iniciativas surgidas da ideia de dar
voz às experiências africanas de legislação respeitosa da vida,
para que sirvam de modelo para os outros países do continente
e para apoiar os processos já em curso para a suspensão das
execuções e reforçar cada decisão nesse sentido.
A situação onde estamos, no limiar deste novo milénio, diznos que não existem direitos conquistados em qualquer lado e
para sempre. E que para tutelar e afirmar os direitos do homem
é necessário um empenho constante e uma contínua busca
dos meios mais apropriados. Se o direito à vida se tornar a
“língua franca” do século XXI, com a proposição de forma de
universalismo, capaz de vivificar as diversas identidades
culturais, religiosas., políticas existentes e de exaltar as
potencialidades de dignidade, liberdade e justiça em cada
uma, isto quererá dizer que o desafio lançado em Dezembro de
1948 – com a Declaração Universal dos Direitos Humanos –
será verdadeiramente ganha.
A pena de morte irá desaparecer. Não sabemos ainda
quando, mas acontecerá.
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A escolha capital
- o papel dos países africanos para a moratória da pena de morte
Andrea Riccardi *
Desde o dia 18 de Dezembro de 2007 é possível esperar que
a pena de morte se torne em breve história do passado. O êxito
positivo do voto da Assembleia das Nações Unidas sobre a
resolução que convida os Estados membros a aplicar uma
moratória das execuções capitais, é uma viragem da qual talvez
não consigamos ainda imaginar todas as consequências. É um
marco que indica um novo padrão moral largamente partilhado
e que será sempre mais difícil e embaraçoso ignorar a nível
internacional. Será isso, por exemplo, para um país como os
Estados de Unidos de América, que tem quase inscrito no seu
código genético a difusão no mundo dos valores de liberdade e
democracia. Talvez não se trate apenas de coincidências se só
após quatro dias depois do voto das Nações Unidas, o Estado
do New Jersey tenha abolido a pena de morte do seu
ordenamento; e um amplo debate na opinião pública esteja a
discutir os fundamentos da legitimidade das execuções capitais.
Os sonhos mostram o caminho
A Comunidade de Sant’ Egidio tem trabalhado por mais de
dez anos para este extraordinário e altíssimo objectivo. Em
1996, quando começámos, parecia mesmo apenas um sonho.
Os países que então tinham cancelado a pena de morte do seu
código eram apenas 59. Hoje são 95, pouco menos que o dobro.
A estes acrescentam-se os 30 que a aboliram de facto, isto é que
a mantêm por lei, mas não a aplicam pelo menos há uma
década. Muitas vezes são os sonhos a mostrarem o caminho a
percorrer e não é ilusório ou vão viver para eles tentando,
mesmo com os parcos meios que temos, de os transformarem
em realidade. Não era começada assim a aventura das
negociações de paz para Moçambique em Roma?
O sonho de um mundo sem a pena de morte agora parece
estar mais próximo da realidade. É uma conquista recente da
nossa civilização. Desde sempre, infelizmente, o mundo viveu
em companhia da pena de morte. As religiões do Mediterrâneo,
a cultura grega, e durante muito tempo o melhor do pensamento
ocidental, não só acharam que a pena de morte era correcta, mas
até oportuna. Só no século XVIII o pensamento ocidental chegou
ao limiar da sacralidade da vida de cada homem e de cada
mulher. Com Cesare Beccaria assistimos ao primeiro
questionamento sobre a pena de morte, considerada - não só
inútil – são as penas ligeiras, mas certas, afirma Beccaria, a
reduzir o crime – mas errada. É a premissa à primeira abolição
por parte de um Estado, por iniciativa de Pietro Leopoldo, Grãoduque da Toscânia: isto foi a 30 de Novembro de 1786. Hoje o dia
30 de Novembro se tornou, por iniciativa da Comunidade de
Sant´Egidio, a Jornada Internacional das Cidade pela Vida.
Novembro de 2007: marco histórico
Mas é com a Segunda Guerra Mundial que começa uma
recusa mais radical da pena de morte e se criam as premissas
para que a Europa seja o primeiro continente no mundo sem a
pena capital. A viragem das Nações Unidas, cuja resolução viu
104 Estados votar a favor, 54 contra e 29 abster-se, confirma
uma situação muito encorajadora, mesmo se entre os países que
ainda a mantém, para além dos Estados árabes e com maioria
muçulmana, fiquem grandes nações como os Estados Unidos, a
Índia, a China e o Japão: a discriminante entre a pena de morte
Andrea Riccardi, discursando no encontro "Homens e Religiões", em Nápoles, em Outubro passado
e outras formas de justiça, não é, evidentemente, a democracia.
Também a tortura e a escravidão pareciam naturais,
necessárias, insubstituíveis. Mas não era assim. Hoje também
a pena de morte pode fazer parte do depósito ideológico do
passado. Há tempo a Igreja católica tornou-se – em particular
com o pontificado de João Paulo II – a primeira grande “agência”
moral internacional a opor-se em cada instância, também nos
casos individuais, contra a pena capital. E existe um movimento
de relevo em todas as culturas e as religiões que deseja uma
justiça sempre capaz de respeitar a vida, como mostra também
o apelo para a moratória universal promovida pela Comunidade
de Sant´Egidio e que até hoje foi subscrito por quase cinco
milhões de pessoas em 145 países do mundo.
A pena de morte acrescenta sempre uma morte a uma morte
já ocorrida e nunca devolve a vida. Congela no ódio as famílias
das vítimas durante anos e promete uma recuperação impossível.
Não é dissuasiva, não faz diminuir o número dos crimes, mas
reduz o Estado ao nível de quem mata. Mesmo querendo
afirmar uma cultura de vida, afirma uma cultura de morte a nível
mais alto, ao do Estado e da comunidade civil. Atinge muitas
vezes inocentes: eu os vi pessoalmente entrando nos braços da
morte. Atinge os opositores políticos e as minorias sociais e
religiosas em países totalitários, mas também democráticos.
Custa muitas vezes mais do que as outras formas de justiça.
Não é por acaso que, cinquenta anos depois da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, o Tribunal Penal Internacional
Atrás das grades
não prevê mais a pena de morte mesmo em caso de crimes
contra a humanidade.
Uma frente internacional polifónica
Os países que se opuseram à Resolução sobre a moratória
tentaram afirmar que ela foi fruto de uma ingerência neocolonialista dos valores ocidentais em detrimento das outras
culturas e civilizações. Mas desta vez as teses de Huntigton
foram clamorosamente desmentidas: países-guia de mundos
diferentes alinharam-se na primeira fila, não só para defender,
mas também para sufragar com grande energia as razões dos
abolicionistas, ao lado dos europeus e contribuindo para alimentar
uma frente internacional variada e extraordinariamente polifónica.
Papel dos países africanos
África desempenhou um papel decisivo. É um continente que
sobre a pena de morte está a mudar mais rapidamente que os
outros. Mesmo esgotada por conflitos e pobreza, distingue-se
por uma tendência positiva, seja na diminuição constante do
cômputo das execuções (oficialmente em 2006 contaram-se 12
em seis países), seja no aumento dos países abolicionistas ou
que pratiquem a moratória da pena capital. As últimas boas
notícias chegam do Ruanda, cujo Parlamento votou a 8 de Junho
passado o cancelamento da pena de morte do seu ordenamento
jurídico e do Gabão, que o fez em Novembro.
Actualmente a situação no continente vê 15 países
abolicionistas de jure (além do Ruanda e o Gabão, a África do
Sul, Angola, Cabo-Verde, Costa de Marfim, Djibouti, Guiné
Bissau, Libéria, Maurícias, Moçambique, Namíbia, São Tomé e
Príncipe, Senegal e Seicheles); outros 23 abolicionistas de facto
(Argélia, Benin, Burkina Faso, Camarões, Comores, Etiópia,
Gambia, Gana, Quénia, Lesoto, Madagáscar, Malawi, Mali,
Mauritânia, Níger, República Centro Africana, República do
Congo, Suazilândia, Tanzânia, Togo, Tunísia e Zâmbia); em
dois países (Argélia e Mali) a moratória foi accionada por lei; 16
são os países que a mantém. Em mais de metade dos países
africanos ninguém é já condenado à morte.
A resposta africana à cultura da vida faz esperar para um
futuro melhor do continente e do mundo. Todos precisamos de
África, para dar respiro a um humanismo mais apaixonado e com
mais vitalidade. Em África existe abundância de vida. É uma
ameaça? Não. É uma grande reserva de esperança.
É necessário dar voz a multíplices experiências africanas
para que sirvam de modelo para todos: cedo África pode tornarse o segundo continente no mundo sem a pena de morte.
Gosto de salientar a exemplaridade, num acontecimento
como este, de Moçambique, que aboliu a pena de morte em
1990: um grande país, há muitos anos exemplo continental
sobre as grandes perspectivas da paz, da justiça e dos direitos
humanos. Sinto-me emotivamente envolvido nesta bela aventura
sob o signo da renascença, começada, pode-se dizer, a 4 de
Outubro, há quinze anos atrás dentro das paredes de um antigo
convento no bairro de Trastevere em Roma. Aquela “paz romana”
foi verdadeiramente a origem de uma nova esperança para
África inteira. Hoje faz da nação moçambicana um modelo a
imitar.
* Andrea Riccardi é o
fundador da Comunidade
de Santo Egídio
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Autoretrato de um condenado à morte
— Dominique Jerome Green
“Gostava muito se a primeira
coisa que a gente reparasse
em mim fosse um sorriso
luminoso. As condições em que
vivo hoje privaram-me de
qualquer traço de alegria que
dantes eram o centro da minha
existência. As únicas coisas que
encontras aqui são cabeças
baixas, caras tristes e pessoas
derrotadas. Por isso só o facto
de poder sorrir e levar-me pouco
a sério faz de modo que eu
possa atrair a atenção dos
outros rapazes, mas não é uma
coisa fácil.
O terço das 101 contas
As pessoas são, pelo contrário, atraídas pelo rosário azul
e preto que trago no pescoço,
composto de 101 contas. Tragoo fora da roupa, e, cumprido
como é, acaba sempre por atrair
a atenção. Todos aqueles que
falam comigo acabam por me
perguntar sobre o meu colar.
No começo parecia-me
esquisito mas estava errado.
As perguntas são de vária
natureza; simples curiosidade.
Troças, perguntas sobre a
minha religião, perguntas
sarcásticas. Habitualmente não
respondia às perguntas, ou, se
respondia, fazia-o com piadas
para tentar mudar de assunto.
As razões pelas quais uso
aquele rosário há assim tanto
tempo são razões pessoais,
algo que pertence só a mim.
Chegou o momento de explicar cada coisa.
Quando entrei no braço da morte era apenas um mocinho,
confuso, agressivo e provocador. Pode comunicar com homens
que viram em mim algumas possibilidades de crescimento. Estes
homens falaram comigo, guiaram-me, ajudaram-me a reencontrarme. Mostraram-me como abrir os olhos e a mente.
Hoje já não é assim. Hoje os ambientes comuns são nos
negados e a possibilidade de crescer é negada a quem entra no
braço da morte, gente que precisa de alguém que lhes ajude, de
alguém que os guie e os ajude a crescer. Guias espirituais que
lhes façam compreender que entrar aqui não o fim da vida mas
simplesmente uma segunda oportunidade.
No começo pensava: “Como se pode só apenas dizer que viver
no braço da morte no Texas é uma segunda oportunidade?” Mas
no fim, o que me fez
verdadeiramente perceber,
foi quando a um amigo meu,
uma daquelas pessoas
especiais que me ajudavam, foi comunicada a data
da execução.
Ele disse-me que, desde
que ele não estaria mais
vivo eu terei a possibilidade
de transmitir tudo aquilo que
ele me explicara aos outros
condenados, para fazer
mudar a sua vida também.
Estas palavras mudaram
também a minha vida.
É mesmo daquele momento que comecei a fazer
o meu rosário, conta após
conta. Cada conta representa um dos meus amigos,
guias e mestres, que já
morreram, e que me deram
a possibilidade de usar os
seus conhecimentos e a sua
sabedoria para tocar a vida
dos outros prisioneiros.
Nunca terei acreditado
que o meu rosário se
tornasse tão cumprido.
Vistos os erros e a confusão
que faz o sistema judiciário
texano, esperaria que
alguém teria feito algo para
travar o que estava acontecer aqui... mas não aconteceu.
E 11 anos depois o
número das execuções
continua a aumentar. Desde
a minha chegada, foram
mortas 250 pessoas...
conhecia-as quase todas. Escolhi de parar o meu rosário a 101
porque mesmo naquela altura percebi finalmente como tocar a
vida dos outros e marcar a diferença.
Muitos homens aqui não têm tido a possibilidade de aprender
o auto controlo e a disciplina por pessoas como Paul Rougeau;
poder rir e brincar também quando as coisas não poderiam ser
piores como fazia sempre Rick Jones; falar a nações inteiras, fazêlas lutar pela libertação da cadeia como Odel Barnes; tornar-se
amigos, irmãos mais velhos mais de quem ninguém como fazia
Vincent Cooks; fazer com que este lugar não destrua a tua cabeça,
o teu corpo e teu espírito como Emerson Rudd; ser um guia sem
comandar sobre ninguém como Ponchai Wilkerson; fazer mudar
a muitos a sua opinião sobre a pena de morte, como no caso da
injusta execução de Gary
Graham; olhar a este lugar
como a uma segunda possibilidade, como me ensinou
David Atwood.
Estas são as vidas que
compõem o meu rosário.
Por isso não me aflijo se
as pessoas não ficam atraídas
pelo meu sorriso… e se o
meu sorriso não será nunca a
mesma coisa em que reparam…no fundo o esplendor
do meu rosto vem daquilo que
está à volta do meu pescoço.”
(Carta da cadeia do braço da
morte – Livingstone, Texas)
As suas últimas palavras
“Há um montão de gente
que me acompanhou até este
ponto e não posso agradecêlos todos. Mas obrigado pelo
vosso amor e pelo vosso
apoio. Permitiram-me de fazer
muito mais daquilo que teria
conseguido fazer sozinho.
Conquistei muito. Não
estou zangado, estou ressentido porque me foi negada
justiça. Mas estou feliz que
me foram dados amigos como
uma família.
Amo-vos a todos.
Por favor, mantenham viva
a minha memória.”
Marco Gnavi, de Sant'Egídio, em visita ao braço da morte
Poesia
Levaram mais um
Encontrei uma mão que me
ajuda
Um ombro forte onde me
encostar
Um sorriso gentil que me dá
alegria
Uma amizade boa da qual
depender
Às vezes tenho medo que se
possa dissolver
Mesmo estando sempre nos
meus pensamentos
Enquanto passo os meus dias
Embarrilado na escuridão
Levaram mais um
Um amigo que nunca mais verei
Sou fraco, estou a enlouquecer
O que posso fazer?
Demasiadas coisas, em cadeia,
não funcionam
Em demasia para as poder
contar
Não consigo mais suportá-las
… e tu?
Dominique Green, 9 de
Fevereiro de 1996
Do braço da morte do contado
de Harris – Hudston (EUA)
suplemento
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Para além da morte
- História da amizade entre a Comunidade de Santo Egídio e Dominique Green, o jovem afro-americano
executado a 27 de Outubro de 2004, depois ter vivido durante 13 anos no braço da morte
A amizade e a fraternidade que ligam a Comunidade
de Sant’ Egidio a Dominique Green, revelaram-se em
toda a sua força nos dias dramáticos precederam a
sua execução, nos quais nos uniu uma extraordinária
e intensa oração. Contar sobre Dominique é um
gesto de afecto por um jovem que se tornou nosso
irmão e para o qual temos uma grande dívida: foi ele
que, convidando-nos primeiro a entrar nos braços da
morte e pedindo-nos para sermos seus
companheiros na resistência contra o mal, empurrounos a engajar-nos a batalha contra a pena de morte,
que hoje prossegue com maior determinação,
também em nome dele.
Tinha pouco mais de 18 anos quando entrou na
cadeia; pouco mais de 31 na noite em que foi morto.
Conhecemo-nos há dez anos, respondendo a uma
carta dele publicada num diário italiano. Pedia-nos uma
mão estendida para além das grades para não ceder às
leis de embrutecimento que regulam e esmagam a vida
dos condenados. Dominique quis “conquistar-nos”,
recordando a ele mesmo e a nós, que a sua vida valia
muito, mesmo se muito esgotada. Muitas vezes, aos
contos da sua adolescência (a família, a mãe que sofria
de problemas psíquicos e o pai alcoólatra, sobre os dois
irmãos mais novos para proteger, os pequenos bandos
de afro-americanos de Houston, a vida de rua),
entrelaçou-se o conto dos esforços para manter – na
cadeia – a sua dignidade.
O milagre de um sorriso
Era orgulhoso do seu sorriso: “um milagre” do qual
era orgulhoso e que foi importante para muitos outros
companheiros de cadeia. Sorrir apesar da trágica escola
de dor e sofrimento que foi a “Polansky Unit” (este é
nome da cadeia onde ficou detido Dominique): aqui viu
morrer um a um mais de 150 pessoas, muitas das quais
se tinham tornado seus amigos.
O segundo “milagre” foi para ele o amor da
Comunidade: no coração da sua batalha pela vida e
contra o desespero encontrou o consolo de uma nova
família. Através do rosto e das palavras de alguns de
nós tornou-se irmão de todos. Ficamos surpreendidos
uns dos outros: Dominque, em descobrir a
Comunidade…. Era curioso, simpático, interessavalhe tudo de nós. Gostava de ouvir sobre as escolas da
paz, sabia do nosso empenho nas cadeias africanas.
emoções que corriam, pensei: e agora? Enquanto a
minha alma sofria a miséria, as sensações de solidão e
vazio enchiam o meu inteiro ser, fazendo-me sentir o
mundo inteiro sobre as minhas costas, e uma lágrima
rolou nos meus olhos. Como o morto pede a ressurreição
a minha alma rogava a Deus, mesmo se não quisesse
acreditar em nenhum deus, pelo menos o Deus que me
foi dado quando era criança. A mente confusa, nenhum
senso de paz, não posso repousar porque vejo a morte
atrás da esquina. Estando aqui a pensar ao longo de
toda a noite pergunto-me como encontrar uma casa
para a minha alma, onde as noites sejam quietas e os
dias não sejam longos, e não tenha de viver sozinho.”.
A amizade e a fidelidade, o amor e a oração são uma
casa para a alma destes prisioneiros, onde as noites
sejam quietas e os dias não sejam longos e onde
ninguém tenha de viver mais sozinho; é o amor que
protege os pobres, e muitas vezes os condenados à
morte são entre os mais pobres, derrubados do futuro.
Dominique Green no braço da morte
Ficou grato pela defesa legal, fruto dos esforços de
todos nós, também dos mais pobres.
E nós ficamos surpreendidos com ele. Ficamos
abismados da sua capacidade de amizade, da sua
tenaz vontade de combater, da sua sensibilidade.
Começou a estudar Direito, queria viver a qualquer
custo e, apesar de muitos períodos trágicos e de
desconforto, tinha sempre recomeçado a esperar. Nunca
renunciou a sorrir e a rir. Meteu-nos à prova muitas
vezes. Queria estar certo de um amor fiel, que o estimava
por aquilo que era e que o teria acompanhado através
de todas as provas. Finalmente percebeu que nunca o
teriam abandonado e encontrou a confiança.
Em busca de uma luz
Das suas cartas, dos seus poemas, dos seus
desenhos transparece a profundidade do seu ânimo de
jovem, obrigado a medir-se a cada dia com o problema
da morte, em busca de uma luz de esperança.
Dominique tornou-se
uma referência e um amigo
para muitos detidos, com
as palavras trocadas entre
uma cela e a outra, na
hora de ar, e no raro tempo
comum concedido aos
prisioneiros. O tempo, num
braço da morte assume
um sentido diferente, e
com o tempo cada palavra,
cada carta, cada visita
torna esses momentos
mais importantes e
decisivos. Kenneth é um
destes amigos que
Dominique salvou do
desespero, escrevendo
com ele algumas poesias
e ajudando-o a vencer a
raiva. Esta, escrita a duas
mãos por ambos, conta do
primeiro dia de Kenneth
no corredor da morte: “A
minha chegada no braço
da
morte
ocorreu
repentinamente, sentiame possuído por um mortal
chamamento à paz.
Sentei-me na cela n. 2
como um morto vivo, com
a mente sem repouso com
Um grande povo de mitos, de homens e mulheres
O episódio violento que conduzira Dominique ao
braço da morte (um roubo de poucas moedas conduzido
juntamente com três outros jovens, durante o qual
perdeu a vida um outro afro-americano), não foi a última
palavra da sua existência. De si próprio dizia: “entrei
que era um jovem violento, da língua afiada, raivoso”…
Mas Dominique lutou para se desarmar da violência e
armar-se da palavra e da amizade. Tornou-se “sábio”.
Fez de maneira que o traço de bem que está escrito
dentro dele não fosse cancelado pelo isolamento e pela
brutalidade da detenção e tornou-se plenamente
membro de um grande povo de mitos, de homens e
mulheres determinados a lutar pela salvação da própria
e da vida de outrem. Um povo que se revelou na noite
de 27 de Outubro de 2004. Dominique rezou e nós com
ele. A oração foi um grito de rebelião contra o mal; um
grito que não se resigna perante da brutalidade das
lógicas retributivas, vingativas, homicidas que invadem
o nosso tempo. O Salmo 101 diz: “ um povo novo dará
louvor ao Senhor. O Senhor debruçou-se do alto do seu
santuário, do céu olhou para a terra para ouvir o gemido
do prisioneiro, para libertar os condenados à morte”. É
neste povo que Dominique recebeu consolo: dos
condenados à morte de Tchollirè nos Camarões que
rezaram para ele, dos idosos, dos jovens, das nossas
comunidades. A oração foi como um abraço que infundiu
tenacidade e esperança em Dominique, ajudando-o a
entrever, além da morte, a visão da Jerusalém celeste,
da qual tanto tinha falado com Marco Gnavi, durante a
última visita. A batalha entre a morte e a vida, encontrou
Dominique confiante também nos últimos instantes.
A derrota dolorosa da sua morte revelou o mal em
toda a sua brutalidade: um mal sem justificações: pela
graça pedida pela família da vítima, pela revisão negada
do seu processo apesar o empenho dos seus advogados
e as muitas dúvidas sobre a sua culpabilidade, por uma
parte da opinião pública texana, impressionada por
Dominique, homem expressivo, doce, capaz de envolver
quem o circundava, transformado e amadurecido no
sofrimento, apesar da desumanidade dos seus
carcereiros.
Após a morte de Dominique, Kenneth escreveu-nos:
“ quero chorar mas não consigo…Só Deus pode
perceber a minha dor. Como posso ficar firme perante
tantas mortes? A única maneira para não enlouquecer
é amar até o último fôlego. Repousa em paz Dominique
Green”
Podemos ajudar a resistir, amando até o último
fôlego, porque pela cruz podemos chegar à Ressurreição
e com Dominique trabalhar e esperar porque a pena de
morte seja cancelada para sempre. A batalha da
Comunidade de Sant’ Egídio contra a pena de morte no
mundo, a correspondência com mais de mil condenados,
o nosso empenho são um fruto desta história
apaixonante e viva para além da morte.
6
08.02.2008
suplemento
Etapa histórica por um mundo sem pena de morte
Antonio Salvati
“Regozijo-me que o ano passado, a 18 de Dezembro, a
Assembleia Geral das Nações Unidas tenha adoptado uma
resolução chamando todos os Estados a instituir uma
moratória sobre a aplicação da pena de morte e eu faço voto
que tal iniciativa estimule o debate público sobre o carácter
sagrado da vida humana”: assim o papa Bento XVI saudou
um dos acontecimentos mais bonitos destes últimos tempos,
falando para o corpo diplomático acreditado junto da Santa
Sé a 7 de Janeiro.
A aprovação da Resolução por uma Moratória Universal
da pena capital na Assembleia-geral das Nações Unidas
representa sem dúvida uma viragem histórica de enorme
valor moral e marca uma etapa decisiva para a afirmação de
uma justiça capaz de respeitar sempre a vida; de uma justiça
sem morte.
A resistência tenaz de muitos Estados, testemunhada
pelo grande número de alterações contrárias, as campanhas
por moratórias longas e esforçadas de muitos organismos
não governamentais, que por mais de quinze longos anos
têm mobilizado milhares de pessoas, são sinais
inequivocamente da envergadura do acontecimento.
O voto das Nações Unidas é um contributo decisivo para
acelerar um processo que viu já a partir dos anos noventa
mais de cinquenta países renunciar ao uso da pena de morte
e o seu uso restringir-se em muitos países chamados
“retencionistas”, leva um aumentado respeito pela vida
humana e mostra como as crescentes dúvidas sobre a
eficácia e correcção da sua aplicação, também nos sistemas
judiciários mais evoluídos, fossem plenamente legítimos.
É uma vitória do mundo e da vida, uma vitória da dignidade
do homem e da defesa dos seus direitos fundamentais. A
Comunidade de Sant’ Egidio tem trabalhado intensamente,
há anos, juntamente com outros protagonistas históricos da
campanha mundial, ou ao lado da Coligação Mundial contra
a Pena de Morte (WCADP).
A resolução indica novos e mais altos padrões de respeito
da vida humana e uma cultura da vida que abre caminhos em
todos os cantos do planeta. O caminho tem sido tortuoso,
contrariado especialmente pelos Estados que têm tentado
fazer passar a histórica decisão como uma ingerência nas
questões internas dos países e como uma visão “eurocêntrica”
dos direitos humanos.
Cinco milhões de assinaturas
Não foi assim. As mais de cinco milhões de assinaturas
recolhidas em mais de 153 países em todos os continentes
pela Comunidade de Sant’ Egidio, a criação de uma frente
mundial inter religiosa e inter cultural, tornada evidente pela
cerimónia de entrega das assinaturas nas mãos do Presidente
da Assembleia Geral Srgjan Kerim por parte de uma
delegação da Comunidade de Sant’ Egidio e pela WCADP a
2 de Novembro passado, no dia após da apresentação da
resolução por parte de trinta e sete países, um número muito
elevado de co-patrocinadores, testemunharam o carácter
universal e inter-regional do texto da Resolução e também o
sentimento de mudança de grande parte do planeta.
A Resolução por uma Moratória Universal é agora uma
proposta dirigida a todos os países membros das Nações
Unidas e representa uma ponte também para os países
que não votaram nela e que até a contrariaram, indicando
uma justiça capaz de combater o crime mantendo intacto o
limite absoluto do respeito da vida em todas as
circunstâncias. Garante melhor o sistema judiciário,
tornando-o imune contra os seus próprios erros. Permite
introduzir medidas alternativas, sempre abertas à
reabilitação do condenado, capaz ao tempo de ressarcir a
a África do Sul, que saiu do regime brutal do apartheid sem
pena de morte e indicando o caminho de uma justiça sem
vingança.
Um grande reconhecimento deve ser dirigido aos países
que têm generosamente apoiado, nos cinco continentes, a
Resolução: ao governo italiano, que se empenhou de forma
determinante e à presidência da União Europeia, ao México,
Brasil, Filipinas, Timor Leste, Croácia, Nova Zelândia,
Albânia, Gabão e a quantos, durante os últimos meses ou
Mario Marazziti da Comunidade de Sant’ Egídio e Sister Helen Prejan entregam as mais de 5 milhões de assinaturas ao
Presidente da Assembleia-Geral das Nações Unidas, Srgjan Kerim.
vítima do crime e de desencorajar qualquer sentido de
vingança.
Não se pode tirar o que não se pode devolver. Não se
pode acrescentar uma morte à morte já ocorrida. Não se
pode por um lado legitimar, por parte do Estado, o direito
a infligir a morte, enquanto se queria por outro apoiar o
direito à segurança e à vida. O Estado e a sociedade civil
não podem nunca descer ao nível de quem mata. Uma
justiça capaz de reconciliar países inteiros e povos após
guerras sangrentas e sofrimentos atrozes, como mostra a
opção decidida contra a pena capital de países como o
Ruanda, o Burundi ou o Cambodja, que têm sofrido na sua
história recente um verdadeiro genocídio; ou como indica
Inauguração do Parque para Dominique Green no bairro de Primavalle, Roma.
há anos, têm operado para aproximar países, culturas e
mundos. A aprovação da Resolução representa a vitória da
sinergia entre culturas diferentes, entre governos e
organizações não governamentais; uma vitória que, por
isso, não humilha ninguém, mas até marca o caminho por
uma possível pacífica coabitação mundial, com a ambição
de cancelar a guerra como instrumento de resolução de
conflitos.
Não há justiça sem vida
A comunidade de Sant’ Egidio, de Roma, lançou em 2002
a iniciativa da Jornada Mundial contra a pena de morte a
cada 30 de Novembro, “Cidades pela vida – Cidades contra
a pena de morte. NO JUSTICE WITHOUT LIFE”. Durante
estes cinco anos chegou a envolver mais de 750 cidades do
mundo, entre as quais 33 capitais em 55 países, uma rede
mundial em crescimento e que em 2007 teve momentos
importantes em Barcelona, em Toronto, Bruxelas, nas
Filipinas, em África, além de Roma, em grande parte de
Itália e da Europa.
Através das cidades, também em países que mantêm a
pena capital, é a própria sociedade civil a se tornar
protagonista desta batalha, dando vida a milhares de
manifestações, assembleias, protestos pacíficos, concertos,
sessões públicas de administrações de conselhos
municipais, realizando assim a maior mobilização
internacional jamais realizada para travar em qualquer
lugar todas as execuções capitais. O ano de 2007 foi
assinalado, a poucos dias do voto afirmativo da Terceira
Comissão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, por
uma Moratória Universal da pena capital e que acompanhou
o processo até à votação definitiva na Assembleia-Geral.
Muitíssimas têm sido as iniciativas, também de grande
sugestão e impacto, como iluminar os monumentos mais
significativos das cidades que aderiram: a partir do Coliseu
em Roma, foram iluminados muitos outros lugares símbolo,
como a Plaza de Santa Ana em Madrid, o obelisco central
em Buenos Aires, o Palácio da Moeda em Santiago do
Chile, o Atomium em Bruxelas, a catedral em Bukavu. Em
Roma, também, pela primeira vez um parque público foi
dedicado à memória de um condenado à morte, como tal:
Dominique Green, vítima da pena capital no Texas. A
presença de centenas de estudantes do liceu no evento é
um dos outros sinais de grande esperança para o futuro.
suplemento
7
08.02.2008
Escrever a um condenado à morte
através da Comunidade de Sant’Egidio
interesse, dignidade, afecto. A carta para um detido e
sobretudo para um condenado à morte é muitas vezes o
único relacionamento humano, o único fio com o Bem que
parece perdido, é a confirmação que Deus não o esqueceu:
“Caro Mauro, o meu primeiro dia no braço da morte foi
como passar através de toda a minha vida. Estava sentado
num quarto e era como se estivessem presentes duas
pessoas, o bem e o mal... Desde que começaste a escreverme sinto-me em paz com a mente...” (Frank, Arizona)
A falta de compaixão assinala todos os braços da morte:
o serem tratados como lixo, o ser chamados monstros, a
impossibilidade de resgatar a própria vida, a negação do
futuro. “...sou um branco de 22 anos. Fui preso quando tinha
17 anos e condenado à morte aos meus 18. Fui o mais novo
a receber uma sentença de morte naqueles anos. Lisa, quer
dizer muito para mim teres escolhido escrever-me. Todos
aqui na Virgínia desprezam o braço da morte como o pior
dos piores.” (Steve, Virgínia )
Criou-se um movimento internacional muito grande, uma
rede de amizade e de ajuda individual para o prisioneiro e
ao mesmo tempo uma rede de apoio que atinge muitos
outros. Muitos condenados à morte projectaram-se para a
vida através de ligações que se têm tornado muito fortes e
resistem ao tempo, como acontece às amizades mais
verdadeiras. Para alguns, que infelizmente nos deixaram,
duraram até ao último dia.
Receber uma carta agrada a todos. Ainda mais se esta for
a ocasião para começar uma amizade duradoura e sincera,
de outra forma impossível. Ao mesmo tempo, quem recebe
uma carta do braço da morte sente nascer sentimentos
novos, compreende melhor o valor daquilo que cada um
pode fazer. Também uma pequena coisa como escrever
uma carta pode levar longe e fazer entrar o sonho de abolir
a pena de morte em todo o mundo.
Tino Veneziano
Em qualquer lado no mundo nos braços da morte estão
muitos pobres. Muitos rapazes são semi analfabetos,
alguns deles aprendem a ler e escrever durante a detenção,
mesmo pelo desejo de corresponder-se com alguém.
Alguns deles não são nunca visitados por ninguém. Os
parentes: mães, esposas, maridos, irmãs, irmãos, filhos
muitas vezes vivem em localidades muitos distantes, tão
longe que lhes é extremamente difícil até fazer uma visita.
Muitas vezes os condenados à morte nem sequer têm
família e antes da detenção nem tinham uma casa. Atrás
deles, histórias de emigração ou problemas de álcool e de
droga. Nos braços da morte estão também deficientes
mentais e pessoas com distúrbios físicos.
“...venho de uma família muito grande com 9 filhos,
assim, sendo só o meu pai a trabalhar, crescemos na
pobreza. Só uma das minhas irmãs vem visitar-me de vez
em quando, minha mulher está doente e não pode viajar.
A viagem para chegar aqui é muito cara: é preciso apanhar
o avião e arranjar estadia e comida...” Paul, (Alabama)
O primeiro passo para garantir os direitos vitais aos
homens e às mulheres nos braços da morte é quebrar o
isolamento. Nada é inútil, os esforços de todos são
preciosos.
No sítio da Comunidade de Sant’Egidio abrimos uma
página para ajudar a realizar a correspondência com os
condenados à morte.
Através desta página milhares de pessoas vindas de 60
países do mundo, puderam ler, reflectir e conhecer melhor
a realidade dos braços da morte e da solidão e da dor em
que vivem muitos condenados.
São mais de mil aqueles que decidiram aderir à proposta
de gastar um pouco de tempo na amizade com uma pessoa
que não se conhece e da qual só se sabe que está
condenada à morte. Receberam um nome, um endereço,
escreveram uma carta e entraram em contacto epistolar
com outros tantos condenados à morte que se encontram
nos braços da morte nos Estados Unidos, nos Camarões,
na Guiné, na Zâmbia, na Rússia, e nas Caraíbas.
Receberam uma resposta e se criou uma intensa corrente
de cartas que percorreram o norte e o sul do mundo em
todas as direcções, passaram pelos portões das prisões,
mas, sobretudo, abateram o muro de desespero que o
abandono tinha construído à volta de muitos condenados
à morte.
Esta “amizade de papel” é simples mas concreta:
fotografias, notícias e sobretudo palavras que indicam
Carta do braço da morte
de uma prisão africana
Queridas Joana, Júlia e Margarida,
Bom-dia! As vossas palavras tãos gentis chegaramnos da Itália. Eu agradeço-vos com todo o meu coração.
Como vós mesmo dizeis, encontrar um amigo é algo de
maravilhoso e raro. Seja louvado o nosso Senhor.
Como pudestes constatar eu cá tenho um amigo, um
irmão na fé com o qual partilho tudo. Com efeito
encontramo-nos em 1985 na cadeia central da capital do
nosso País, e juntos, fomos transferidos em 1990 para
esta cadeia.
Não saberiamos como continuar esta carta sem dizervos que fomos condenados à morte e a pena foi comutada
em prisão perpétua no ano passado. Para nós a vida não
é fácil pois que fomos abandonados por todos e em tudo.
Programa de ajuda nas cadeias
Esta cadeia só acolhe condenados à morte. As visitas
são raras por causa da distância e também por causa da
triste reputação desta cadeia. Isto faz com que a vida
aqui seja terrível! Todo o nosso vestuário está
esfarrapado, consumido pelo tempo. Falta-nos o
indispensável, a alimentação é problemática, sem falar
dos cuidados médicos, do sabão etc... Tudo isto é muito
triste.
os detidos e levam-lhes comida. Este tipo de ajuda, no
começo ligado às festas de Natal ou Páscoa, tornou-se
um intervento regular, que atinge numerosas pessoas.
4. a ajudasanitária:
Juntamente com a comida, o direito à saúde, também
através de condições higiénicas humanas e garantendo a
possibilidade de cura, é um outro direito inalienável de
cadaum. A Comunidade intervém para melhorar as
condições de saúde dos detidos através de pequenos
projectos. Em algumas prisões foram possíveis interventos
estruturais, como por exemplo, os dois postos de saúde,
com 17 camas, construídos nas cadeias de Lichinga e
Cuamba; a restruturação das 12 latrinas e a reabilitação
da inteira canalização, e por fim, a instalação de algumas
“cisternas”para recolher a água.
Não obstante tudo, na nossa miséria, o Senhor nos
procurou e passo a passo, nos conduziu ao baptismo
para o meu amigo e ao Crisma para mim. Disto nasceu
um grupo de oração e, a seguir o milagre de Sant’Egidio.
Temos que vos dizer que esta Comunidade é muito
presente aqui onde vivemos. Sejam benditos o seu
fundador Andrea Riccardi e todas as almas de boa
vontade que as animam.
A oração e a leitura ocupam um lugar importante na
nossa vida quotidiana. Lembrem-se que nós somos
essencialmente francófonos, portanto se vos é possível
mandem-nos alguns livros de literatura francesa, por
favor. Antecipadamente vai o nosso agradecimento.
Tino Veneziano
Nas cadeias de muitas cidades de Moçambique, as
locais Comunidade de Sant’Egidio estão presentes há
muitos anos. Trabalham para melhorar a vida dos detidos,
garantir e promover o respeito dos direitos humanos,
começar projectos de formação e reabilitação, para
prevenir o regresso às cadeias. Mas tentam também
assegurar os direitos fundamentais de cada homem e de
cada mulher, para garantir a sobrevivência e a dignidade:
alimentar-se, vestir-se, curar a higiene.
1. direitos
humanos:
A presença nas cadeias, a visita, é o primeiro importante
intervento de tutela dos direitos humanos, que permite
tomar conhecimento de eventuais violações, detectar as
necessidades mais urgentes, apoiar, onde for o caso, um
processo
legal.
Não é raro que, por motivos sempre ligados à pobreza,
alguns detidos fiquem na cadeia “esquecidos”, durante
anos, à espera de julgamento ou já com pena cumprida,
por falta de tutela legal. O intervento da Comunidade
permitiu tomar conhecimento da situação e contribuir
para resolver centenas de casos dessa natureza.
2. formação:
Um outro direito fundamental é o da dignidade pessoal
e da promoção da pessoa. Por isso são organizados:
- cursos de alfabetização, que se concluem com um
exame de nível elementar,efectuado nas escolas oficiais;
- cursos profissionais para sapateiros, carpinteiros,
trabalhadores de zinco, trabalhadores de terracotta. Esta
formação profissional prepara a reinserção da pessos na
sociedade quando acabar o cumprimento da pena.
3. a ajuda alimentar:
A denutrição e a má nutrição representam uma pena
acrescida, um surplus de injustiça. A comida pois é o
primeiro direito a garantir, fundamental para a
sobrevivência. Por isso, em muitas prisões africanas, as
locais Comunidade de Sant’Egidio visitam regularmente
E vocês o que fazem? Gostariamos que nos
conhecessemos melhor.
Terminamos por aqui e para hoje não falta que
desejar-vos os nossos melhores votos de longa vida, de
prosperidade e de todas ricas graças do Espírito Santo.
Com desejos de ter vossas notícias e em grande
comunhão sorridente dos doces corações de Jesus e
Maria
Por favor mandem-nos selos!
Obrigado
amiza
os co
quem
8
suplemento
08.02.2008
Cidades pela vida
- não há justiça sem vida
Em todo o mundo, 700 CIDADES PELA VIDA iluminam um
monumento-símbolo contra a pena de morte para declarar a
sua adesão à iniciativa “NO JUSTICE WITHOUT LIFE” (Não
há justiça sem vida)
Cidades pela Vida - 30 de Novembro
Há poucos dias do voto positivo na Assembleia geral da ONU,
da resolução por uma Moratória Universal das esecuções
capitais, e na véspera da ratificação da Assembleia geral, a 30
de Novembro, mais de 700 cidades do mundo, 33 capitais, em
51 países de cinco continentes, deram vida à Festa pela
Moratória Universal com a maior mobilitação internacional até
então realizada para parar todas as esecuções capitais em
todo o lado.
A Jornada Internacional de 30 de Novembro: “Cidade pela
Vida- Cidade contra a Pena de Morte” recorda o aniversário
da primeira abolição da pena de morte do ordenamento de um
estado europeu, por parte do Grão Duque de Toscânia em
1786.
A iniciativa – já na sua sexta edição – foi promovida pela
Comunidade de Santo Egidio em 2002 e é hoje apoiada pelas
principais associações internacionais para os direitos
humanos, reunidas na Coligação Mundial contra a Pena de
Morte (entre as quais Amnistia Internacional, Ensemble contre
la Peine de Mort, International Penal Reform, FIACAT).
Roma, Bruxelas, Madrid, Toronto, Berlim, Barcelona, Cidade
do México, Buenos Aires, Puerto Rico, Austin, Dallas,
Antuérpia, Viena d’ Áustria, Paris, Copenhaga, Stocolmo,
Bogotà, Santiago do Chile, Abidjan, Lomè, Conakry, Windhoek,
Dakar, Praia, Nápoles, Florença, Reggio Emilia, Veneza…
700 cidades pequenas e grandes de 51 países do mundo
tornaram-se “Cidades pela Vida – Cidades contra a Pena de
Morte”!
Todos os monumentos “ símbolo” foram iluminados – desde
o Coliseu de Roma à Plaza de Santa Ana de Madrid, o
Obelisco central de Buenos Aires eo Palácio da Moneda em
Santiago, o Atomium de Bruxelas e a Praça da Sé de Barcelona
- formando uma ampla frente moral mundial para pedir de
parar
todas
as
esecuções
capitais.
No sítio www.santegidio.org é possível encontrar todas as
indicações para aqueles que queiram aderir com a sua cidade
e está disponível a lista constantemente actualizada das
Cidades pela Vida – Cidades contra a pena de morte. Serão
fornecidas todas as actualizações, as imagens e as notícias
que nos chegarem, para tornar visível o seu empenho por
ocasião do dia 30 de Novembro
Cidades pela vida - Moçambique
Beira
Chimoio
Manjacaze
Maputo
Mocuba
Mueda
Nampula
Pemba
Quelimane
Tete
Xai-Xai
Gent
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