PEN CLUBE DO BRASIL

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PEN CLUBE DO BRASIL
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Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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PEN CLUBE DO BRASIL
Fundado a 2 de abril de 1936
Filiado ao PEN Internacional de Londres
CONVIVÊNCIA
REVISTA DO PEN CLUBE DO BRASIL
Segunda Fase
Ano III - Número 3
Rio de Janeiro – 2013 - Brasil
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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PEN CLUBE DO BRASIL
DIRETORIA (Triênio 2011/2013)
Presidente: Cláudio Aguiar
Vice-Presidentes: Clair de Mattos e Cecília Costa
Conselho de Curadores
Antonio Carlos Secchin
Antonio Fantinato Neto
Délio Mattos
Godofredo de Oliveira Neto
Ivan Junqueira
Reynaldo Valinho Álvarez
Ronaldo Mourão
Conselho Fiscal
Ana Arruda Callado
Helena Ferreira
Francisco de Paula Souza Brasil
●
Sede Social Própria:
Praia do Flamengo, 172 – 11º Andar
Flamengo – Rio de Janeiro / RJ
CEP 22210-030 – Brasil
Tele-Fax: (21) 2556-0461
www.penclubedobrasil.org.br
[email protected]
●
Imagem da Capa: Clarice Lispector. Escultura de Dirce Cavalcanti
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CONVIVÊNCIA / REVISTA DO PEN CLUBE DO BRASIL
ISSN 1518-9996
EDITORA-RESPONSÁVEL
Cecília Costa
CONSELHO EDITORIAL
Alcmeno Bastos, Ana Arruda Callado,
Antonio Carlos Secchin, Cláudio Aguiar,
Délio Mattos, Geraldo Holanda Cavalcanti,
Godofredo de Oliveira Neto, Helena Ferreira,
Ivan Junqueira, Mary del Priore,
Reynaldo Valinho Alvarez, Ronaldo Mourão e
Tânia Zagury
CORRESPONDENTES
Ceará: Roberto Pontes
Paraíba: Elizabeth Marinheiro
Pernambuco: Lucila Nogueira
Bahia: Aleilton Fonseca
Minas Gerais: Ronaldo Werneck
Brasília: Fabio de Souza Coutinho
São Paulo: Raquel Naveira
Santa Catarina: Péricles Prades
Paraná: Miguel Sánchez Neto
Rio Grande do Sul: Flávio Loureiro Chaves
●
Pede-se permuta. We ask for exchange. Pide-se canje.
On demande l´échange. Man bitter um Austausch.
Chiedesi scambio.
Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.
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Sumário
EDITORIAL 7
ESPECIAL 8
PEN Clube comemora 77 anos de fundação e outorga medalhas de honra ao mérito
TÓPICO 10
Uugaretti e Bruna Bianco: “Conversando, Ungaretti gesticulava”, Francesca Cricelli
Ungaretti e Bruna Bianco: Ilumino-me de amor, Sebastiano Grasso
O Serchio, o Nilo, o Sena, o Isonzo, o Tibre e o Rio Tietê. A vida do poeta atravessa
as águas dos seis rios, Giuseppe Lupo
ENTREVISTA 20
Alfredo Pérez Alencart: Referência literária e cultural em Salamanca, Cyro de Mattos
POESIAS 24
Marcia Agrau
Tanussi Cardoso
Tereza Cristina Meireles de Oliveira
Francisco Caruso
CONTOS 34
Companhia, Jorge Sá Earp
O Relógio, Clair de Mattos
Dois contos de Laura Esteves
Invasão noturna, Márcia Agrau
CRÍTICA 49
Gregório de Matos e a edição de sua poesia, Paulo Roberto Pereira
Nos traços da história em Os mortos daquel verán, do escritor galego Carlos Casares,
Délia Cambeiro
O contista Aurélio Buarque de Holanda, Alcmeno Bastos
ARTIGOS 70
Kierkegaard dos trópicos, Sylvio Back
Eu não existo sem você (O primeiro centenário de Vinícius de Moraes),
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Fabio de Sousa Coutinho
O princípio da igualdade e a não discriminação, Ives Gandra
DESTAQUES 82
Stella Leonardos, Helena Ferreira | Marita Vinelli, Cláudio Aguiar
TEATRO 101
Monólogo para um ator, Maria Helena Kühner
COLABORADORES 107
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EDITORIAL
V
olta a circular Convivência, a
revista do PEN Clube do
Brasil, em segunda fase,
formato
digital,
mantendo
a
periodicidade anual e não a semestral
como inicialmente fora idealizada. As
condições objetivas, quase sempre,
impõem situações adversas. Apesar
disso, dois fatores chamam a atenção:
o interessse demonstrado por parte dos
sócios em colaborar espontanemanete
com a Revista e a alta qualidade dos
textos oferecidos à publicação. Esses
aspectos confirmam a trajetória de
Convivência e estimulam a direção do
Clube a manter o veículo como suporte
editorial destinado especificamente à
divulgação de ideias e pesquisas
literárias.
A aproximação cultural e
literária que o PEN Clube do Brasil
busca com os Centros italianos de
Milão e de Roma, merece destaque no
tópico dedicado ao poeta Giuseppe
Ungaretti, talvez um dos escritores
italianos que tenham vivido com mais
intensidade
o
sentimento
de
brasilidade. “O Brasil – disse o poeta
em Vita d’un uomo: viaggi e lezioni
(Milano, Mondadori, 2000) – mais do
que qualquer outra, é a terra que
subverteu minha linguagem e lhe deu o
timbre que ela tem hoje”. Assim, com
Ungaretti, o PEN Clube do Brasil
inicia esses “Encontros Literários
Brasil-Itália”, na esperança de que as
abordagens de Francesca Cricelli,
Bruna Bianco, Sebastiano Grasso e
Giuseppe Lupo funcionem como os
primeiros sinais de intercâmbios
capazes de promoverem no próximo
ano atividades não só vinculadas à
publicação em revistas, como ora
ocorre, mas, também, que ganhem
espaços nos dois países, e efetive-se
mediante a realização de simpósios
alternados entre os dois países.
Neste número, além da
entrevista que o poeta Alfredo Pérez
Alencart concedeu ao escritor Cyro de
Mattos, nosso associado, comparecem
os poetas Tanussi Cardoso, Marcia
Agrau, Laura Esteves, Tereza Cristina
Meireles de Oliveira e Francisco
Caruso com suas mais recentes
produções. A ficção ficou a cargo dos
contistas Jorge Sá Earp, Clair de
Mattos, Laura Esteves e Marcia Agrau.
No âmbito da crítica o poeta Gregório
de Matos, o escritor galego Carlos
Casares
eo famoso dicionarista
Aurélio
Buarque
de
Holanda,
respectivamente, pelos professores
Paulo Roberto Pereira,
Délia
Cambeiro
e
Alcmeno
Bastos.
Enquanto o cineasta Sylvio Back
revelou curiosa faceta do filõsofo
Kierkegaard, o jurista Ives Gandra
dissertou sobre o princípio da
igualdade e da não discriminação, o
escritor Fabio de Sousa Coutinho
lembrou o centenário de nascimento do
poeta Vinicius de Moraes, centenário,
aliás, também comemorado pelo PEN
Clube por ocasião da passagem dos 77
anos de sua fundação.
Homenagens foram prestadas
às associadas Stella Leonardos e
Marita Vinelli, vez que ambas
completaram 90 anos de idade.
Por fim, para confirmar o
permanente apoio que o PEN Clube
sempre tem dado à arte dramática, a
associada Maria Helena Kühner
publica o seu mais recente texto
teatral: Monólogo para um ator.
Cláudio Aguiar
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ESPECIAL
PEN C LUBE DO BRASIL COMEMORA 77 ANSO DE FUNDAÇÃO E
OUTORGA MEDALHAS DE HONRA AO MÉR ITO
A
ssociados e amigos do PEN Clube do Brasil comemoraram no dia 8 de abril
os 77 anos de fundação. A festa ocorreu em nossa sede social do Flamengo,
Rio de Janeiro. Na ocasião, além da outorga das medalhas de Honra a
personalidades que prestaram no ano
passado relevantes serviços ao Clube
Literário, o escritor e crítico musical
Ricardo Cravo Albin proferiu a
conferência "Vinicius, poeta da paixão
na MPB", em homenagem ao centenário
de nascimento do famoso poeta,
compositor e diplomata brasileiro
Vinicius de Moraes.
As medalhas de honra ao mérito, que
levam os nomes de Cláudio de Souza e Barbosa Lima Sobrinho, ambos ex-presidentes
deste Clube Literário, foram concedidas, respectivamente, ao Acadêmico Geraldo
Holanda Cavalcanti, Secretário-Geral da ABL, entregue por sua esposa, Dirce
Cavalcanti, e, ao Dr. Maurício Vicente Ferreira Júnior, Diretor do Museu Imperial de
Petrópolis, entregue pelo conferencista da solenidade, Ricardo Cravo Albin.
A concessão da Medalha de Honra ao Mérito Barbosa Lima Sobrinho coube
ao Embaixador e Acadêmico Geraldo Holanda Cavalcanti em reconhecimento a seu
constante apoio junto à Academia Brasileira de Letras, notadamente aos esforços que
são desenvolvidos por todos os que integram a direção e o quadro social do PEN
Clube do Brasil no sentido de solucionar pendências administrativas.
Já a Medalha de Honra ao Mérito Cláudio de Souza foi concedida ao Dr.
Maurício Vicente Ferreira Júnior, Diretor do Museu Imperial, de Petrópolis, por seu
trabalho de restauração da "Casa de Cláudio de Souza", integrante da estrutura
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daquele Museu e, também, por ter criado, no ano passado, as condições para a
formalização de Convênio de Cooperação entre o PEN Clube e o Museu Imperial.
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TÓPICO
Giuseppe Ungaretti e o Brasil
UNGARETTI E BRUNA BIANCO:
“CONVERSANDO, UNGARETTI
GESTICULAVA”
O poeta, de 79 anos, com a mulher
amada - a qual tinha 27 anos,
conhecida um ano antes em São Paulo.
Francesca Cricelli
E
m novembro de 1967, Giuseppe
Ungaretti viaja para Buenos
Aires, a convite da Olivetti
argentina, a qual também se incumbia
de promover apresentações culturais
entre literatos italianos e sulamericanos. Em sua companhia estava
Bruna Bianco, que Ungaretti havia
conhecido um ano antes em São Paulo.
ocasião a Universidade de São Paulo
lhe havia ofertado a cátedra de
Literatura
italiana.
O
poeta
prontamente aceitou-a e em seguida
mudou-se com toda a família para São
Paulo.
Permaneceu em São Paulo até
1942, quando retornou com a esposa
Jeanne e a filha Ninon para a Itália.
Após alguns dias, os dois de
Buenos Aires se deslocam para
Bariloche. A viagem foi documentada
por inúmeras fotografias, que foram
guardadas em uma arca por mais de
meio século. Essas fotos documentam
a chegada ao aeroporto e longos
passeios na idílica cidadezinha, situada
aos pés dos Andes. Temos notícia que
o cônsul italiano desta localidade havia
sugerido a Ungaretti adquirir um lote
na nova Bariloche, que estava
nascendo. A proposta havia suscitado
um razoável interesse no poeta que
expressou o desejo de fazer um
presente à sua amada, pois ela poderia,
em companhia de seus irmãos,
alcançar a “Courmayeur argentina”
durante os finais de semana.
O vínculo de Ungaretti com o
Brasil datava desde sua primeira
viagem à América Latina, que ocorreu
1936, na ocasião de um convite do
PEN CLUB argentino. Na mesma
Após trinta anos ocorre o encontro de
Giuseppe Ungaretti com Bruna
Bianco, em São Paulo. Um encontro
realmente extraordinário. Gostaríamos
de ouvir isto através do testemunho
pessoal de Bruna Bianco.
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Francesca Cricelli - Quando e aonde
você conheceu Ungaretti?
Bruna Bianco - No dia 26 de agosto de
1966, em São Paulo, no Hotel Cá
d´Oro, no centro da cidade, naquela
época ainda situado a rua Basílio da
Gama. Ungaretti tinha vindo ao Brasil
via marítima, e se deslocava para os
vários compromissos em companhia
do professor Bettarello, do Instituto
Italiano de Cultura. Naquela ocasião
do nosso primeiro encontro, Ungaretti
me apresentou o professor Bizzarri e
sua esposa, Paulo Emilio Salles e sua
companheira Lygia Fagundes Telles,
os pintores Flávio Carvalho e Emiliano
Di Cavalcanti. Com esses conhecidos e
principalmente com o Flávio Carvalho,
que era muito boêmio, fomos ouvir
samba, em bares próximos à Praça da
Republica. Conheci, outrossim, na
ocasião desse primeiro encontro,
Eunice Catunda, o professor Antonio
Cândido e Mario Schoemberg, um
físico, residente na Bahia.
FC – Por qual motivo Ungaretti se
encontrava no Brasil?
BB - Tinha vindo visitar a túmulo do
filho Antonietto, falecido em 1939,
com somente nove anos, devido a uma
apendicite mal curada. Esta fatalidade
lhe
proporcionou
profunda
e
incomensurável dor, que foi expressa
na poética do livro “Il dolore”.
FC – Que aconteceu nos dias que se
seguiram ao encontro de vocês?
BB - Ungaretti viajou para o Rio de
Janeiro, para se encontrar com alguns
amigos, entre outros Vinícius de
Moraes. Esta sua estadia no Rio
deveria durar uns dez dias, no entanto,
retornou a São Paulo, quase
imediatamente, para ficar em minha
companhia. E ficamos juntos esses dez
dias, até a sua volta à Itália.
FC – Como passavam o tempo juntos?
BB - Conhecemos toda a cidade de
São Paulo e, muitas vezes, íamos aos
jardins da Água Branca; e também ao
Bairro do Morumbi, que estava
nascendo. Algumas vezes almoçamos
no Restaurante Fasano, que se
encontrava na Avenida Paulista,
esquina com a Rua Augusta.
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FC – São Paulo, mas também Buenos
Aires e Bariloche...
BB - Em novembro de 1967, Ungaretti
e eu viajamos para a Argentina – antes
Buenos Aires e a seguir Bariloche -,
isto a convite da Olivetti.
FC – Você conhecia a poesia de
Ungaretti?
BB - Toda aquela que havia sido
editada.
FC – Quais as diferenças entre o poeta
e o homem?
BB - Nenhuma. A singularidade da
poesia de Ungaretti é inseparável da
singularidade de sua pessoa. Isso tudo
era evidente na harmonia de seus
movimentos e no seu sorriso, como
demonstram as fotos feitas durante esta
viagem. “ Vivo com a profunda
convicção que a vida merece todo o
esforço de ser um homem”, esta frase
foi dita a um jornalista do jornal de
Buenos Aires “Clarin”. E “ Vita d´un
uomo” foi o título de sua obra, editada
em 1966, um ano antes de sua viagem
para Argentina, editada por Arnoldo
Mondadori. Desta obra em edição de
bolso “pocket book” ( paper-back),
com 106 poesias, foram vendidas,
entre agosto e novembro do mesmo
ano: 300 mil cópias.
FC – Um volume considerável,
também naquela época...
BB - Sem dúvida. Ungaretti era
homem incansável e determinado. “ O
trabalho, o trabalho é a única salvação,
e prova irrefutável do espirito. Vivo,
muitas coisas acontecem, ilumino-me.
Quando me expresso, sinto-me
realizado”, assim explicava ao
jornalista
do Clarín, com aquela
indeturpável alegria infantil, mas
nunca separada de uma lucidez
claríssima.
FC – O que
Ungaretti?
era
poesia
para
BB - Pode-se responder com a
expressão também transmitida a uma
jornalista da revista argentina: “
CONFIRMADO” datada 23 de
novembro de 1967: “Uma missão e um
trabalho.
Creio
que
a
missão/incumbência do poeta seja
romper com tudo. Para mim em 1919,
tratava-se de quebrar o mundo dos
“endecasillabi”
(alexandrinos)
retumbantes, forjados por D´Annunzio.
Atualmente outras coisas devem ser
quebradas. D´Annunzio foi um grande
poeta, talvez um dos maiores da Itália.
Nunca o encontrei, mas se isto tivesse
ocorrido o teria sem dúvida
homenageado. No entanto, uma coisa é
uma homenagem pessoal, de pessoa a
pessoa, e a outra é o compromisso
artístico. Toda a minha primeira
poesia, quase todo o meu primeiro
volume, L´Allegria, é uma demolição
do verso “dannunziano”. É necessário
romper sempre, romper tudo, para que
o espírito possa prosseguir adiante. A
poesia se exaure em uma única
mensagem: é o espírito que atravessa a
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BB - Somente uma
anotação à margem de
uma sua fotografia,
datada dia 19 de
novembro de 1967: “
para a Bruna: o viajar
não é” un peu mourir”,
mas sim ” vivre” mais e
apreender
a
viver.
Ungà”.
FC – Por que ele não
escreveu algo sobre a
sua viagem?
palavra para alcançar a forma. Na
palavra estão escondidos segredos
misteriosos que afloram quando se
aproximam de outras palavras, em
virtude da colocação de um verso, e
muitas outras possibilidades casuais.
Tomamos como exemplo Apollinaire.
O leio há cinquenta anos , porem me
falta coragem para traduzi-lo para o
italiano. Non seus versos há uma
sonoridade parisiense inconfundível,
alguma coisa que vai além do
significado dos vocábulos. Quando
Apollinaire fala do bom ladrão e de
Maria Madalena, de forma quase
imperceptível a sua sonoridade é de
uma midinette de Paris, na ocasião da
catequese
dominical“.
Enquanto
conversava sobre esse assunto,
Ungaretti gesticulava no ar come se
estivesse trabalhando a argila.
FC – Natureza e razão, memória e
inocência.
BB - Ungaretti sempre reconheceu que
a oposição entre natureza e razão, nas
palavras de Leopardi, aliás melhor
entre a memória e inocência , como
insistia em dizer, era mais evidente no
Brasil, e sobretudo em São Paulo, onde
a natureza e a cidade se harmonizam
como uma orquestração barroca.
FC – Tem algum escrito inédito de
Ungaretti que lembre a sua viagem a
Argentina?
BB - A Argentina desde 1966
estava sob um regime de Ditadura
Militar, que dourou até 1973. Apesar,
deste não ter sido tão cruel, como o
posterior,
sempre
havia
uma
perseguição para os que eram
contrários ao regime. E esta situação
incomodava muito a Ungaretti. No
entanto ele escreveu poesias, as quais
em número limitado de 80 cópias
viriam a ser publicadas no ano de
1968, por ocasião das comemorações
dos seus 80 anos. O título dessa edição
foi Diálogo, pois continha também
poesias de Bruna como respostas às de
Unga. Recordo que este livro continha
um carvão do pintor Alberto Burri. O
poeta era muito conhecido na
Argentina. Quem havia divulgado a
sua obra? Acredito que um de seus
divulgadores tenha sido Gherardo
Marone,
figura
realmente
extraordinária: advogado e homem de
letras, nascido em 1891 na cidade de
Buenos
Aires
filho
de
pais
“salernitanos”. Havia se formado na
Itália em 1904, quando a sua família
havia retornado para o país de origem.
No ano de 1914 Marone fundou a
revista “A Diana” e através desta havia
colaborado concretamente na difusão
da obra de Ungaretti. No ano de 1939
Marone retorna a Buenos Aires, como
professor de Literatura italiana e
colaborador da Sociedade Dante
Alighieri. Dois anos antes de falecer
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ele funda, sempre a Buenos Aires, o
Instituto di Studi Danteschi. Durante a
nossa viagem à Argentina tivemos o
prazer de encontrar os representantes
deste Instituto. Nesta ocasião o poeta
lembrou saudosamente o amigo,
falecido em 1962 na cidade de Napoli.
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UNGARETTI E BRUNA BIANCO.
ILUMINO-ME DE AMOR
Sebastiano Grasso
N
o ano de 1936, atendendo ao
convite do PEN Argentina,
Giuseppe Ungaretti
(18881970) faz a sua primeira viagem à
América Latina. Nesta ocasião a
Universidade de São Paulo o convida
para ocupar a cátedra de Literatura
italiana. O poeta aceita e se muda para
o Brasil, onde ficará até o ano de 1942,
no Piemonte na pequena cidade de
Cossano Belbo, a seis quilômetros de
Santo Stefano Belbo, cidade natal de
Cesare Pavese. Bruna havia ido morar
no Brasil com a família no ano de
1956. Entre o poeta e ela constrói-se
um alicerce de emoção profundamente
intenso, que para Ungaretti chega a ser
febril. Nas suas palavras, ele
reencontrou a juventude, e escreve na
poesia: 12 de setembro de 1966 “Sei
comparsa al portone/ in un vestito
rosso/ per dirmi che sei fuoco/ che
cosuma e riaccende/[...] percorremmo
la strada/ che lacera il rigoglio/ della
selvaggia altura./Ma già da molto
tempo/ sapevo che sofrendo con
temeraria fede,/l’età per vincere non
conta”. E o dia 13 de
setembro de 1966 Bruna
responde: “un vagante
raggio
ebbe
la
luce,/tenue
filo
dell’anima/ del mio
bacio donato/ solo da
desiderio./
Ma
dall’esilio ci libererà/
l’ostinato mio amore.”
Ungaretti retorna a
Roma. Entre os dois
apaixonados há uma
grande troca de cartas e
versos.
quando retornará à Itália devido à
guerra. Em agosto de 1966, retorna ao
Brasil e conhece Bruna Bianco durante
sua estadia na cidade de São Paulo.
Bruna atualmente é sócia do PEN
Itália. O poeta na época com 78 anos e
Bruna com 26. Ela, nascida em 1940,
Publicamos
a
página, a carta inédita
de Ungaretti, datada 8
de agosto de 1967,
enviada a Bruna Bianco,
de Roma para São Paulo. Ungaretti e
Bruna se reencontram o ano seguinte.
O poeta é convidado pela Olivetti
argentina para participar de um júri de
um premio literário e nessa ocasião ele
concede várias entrevistas à imprensa
argentina e encontra muitos poetas
italianos e sul americanos. Juntos
descobrem a beleza de Buenos Aires e
de Bariloche, na Patagônia argentina.
Destas viagens temos o testemunho
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através de várias fotografias inéditas
que publicamos com exclusividade. A
relação entre eles se faz sempre mais
intensa a medida que o tempo passa.
Em fevereiro de 1968, em homenagem
aos 80 anos do poeta, Fógola edita em
pequeno livro: Dialogo, poucas cópias,
destinadas a presentear os amigos, e
que contém 9 poemas de Ungaretti e 5
réplicas de Bruna, enriquecido com
uma “Combustione”(Combustão) de
Alberto Burri. Na apresentação o poeta
explica: “ [O livro] é constituído de
poesias minhas, nas quais, ao me dar
conta da minha idade, ouso declarar
que o amor só pode se extinguir com a
morte”. Ungaretti incluirá Dialogo
1966-1968
nos
MERIDIANI
MONDADORI: todas as poesias,
editado no ano de 1969. “Nove poesias
de amor, uma conclusiva era da poesia
de amor, mostrando-nos os sinais mais
elevados de seu trabalho” escreve na
introdução Leone Piccioni-.
amor por você arde sempre
debaixo das cinzas, Unga”.
“Pode-se
observar,
por
exemplo, uma composição
estupenda embora desesperada,
e feliz e dramática e tranquila,
no conjunto, em uma aceitação
serena, mas ainda em contraste
vital, como a de título La
conchiglia: não creio que
Ungaretti
tenha
outrora
alcançado tamanha grandeza
inventiva”. A forte ralação
continua também quando o
poeta retorna à Itália. Umas
duas vezes Ungaretti retorna ao
Brasil; e outras tantas a Bruna
viaja para a Itália. Ela desejava
fortemente que o poeta se
mudasse para São Paulo, mas
infelizmente os sinais da
doença começam a aparecer. A
derradeira mensagem vem
através de uma dedicatória
escrita num livro de edição
“não comercial”, com data de 6
de novembro de 1969: “ o meu
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O SERCHIO, O NILO, O SENA, O
ISONZO, O TIBRE E O RIO TIETÊ
A VIDA DO POETA ATRAVESSA A
ÁGUA DOS SEIS RIOS
Giuseppe Lupo
A
vida de Giuseppe Ungaretti
pode ser percorrida ao longo
dos seus rios, que são nada
menos que seis: Serchio, Nilo, Sena,
Tibre e Tietê. Cada um deles
corresponde a uma temporada da vida
do poeta e, também de um ou mais
tempos de poesia. O Serchio lembra as
origens dos pais do poeta que
emigraram da Toscana para o Egito.
Nesse país Ungaretti nasce em
fevereiro de 1888, ai permanecendo até
o ano de 1912, quando viaja pela
primeira vez para Paris, com o
propósito de seguir seus estudos na
Sorbonne. Durante sua estadia tem a
oportunidade de conhecer e frequentar
os
expoentes
da
Vanguarda:
Apollinaire, Boccioni, De Chirico,
Palazzeschi,
Papini,
Prezzolini,
Savinio, Soffici. Após o Nilo e o Sena
vem o rio Isonzo: de fato Ungaretti se
alista como soldado e participa da
Primeira Guerra mundial, lutando na
região da Itália: o Carso, aonde corre
o rio Isonzo. Desta experiência de
guerra nascem duas edições: Il porto
sepolto (1916) e Allegria di naufragi
(1919), edições essas que serão
consolidadas em 1931 no volume
l´Allegria. Este período, que marca a
primeira fase de realização de obra em
versos (definida por Ungaretti como “
allegro” ou “ carsico”), termina com o
retorno do poeta a París no ano de
1918. Aqui, após dois anos, se casa
com Jeanne Dupoix. O quinto rio que
segue a vida de Ungaretti é o Tibre. De
fato, o poeta se muda para Roma no
ano de 1921 e se torna amigo do grupo
de intelectuais que participam da
revista LA RONDA
(1919-1923); a seguir
ele
frequenta
os
ambientes da chamada
“ Scuola Romana” ,
constituída de artistas
ligados a galeria de
arte: “La Cometa”:
desde Scipione a Mafai,
da Raphaël a Cagli. Na
Roma de monumentos
barrocos,
de formas
presentes de Michelangelo, de pinturas
renascentistas, de cúpolas e de igrejas,
a poesia de Ungaretti desabrocha na
sua segunda temporada, cujo resultado
emerge na edição Sentimento del
tempo (1933), mais tradicional na
forma de linguagem que a anterior,
tendo adquirido expressões temáticas
da Mitologia e reflexões a respeito da
dimensão da memória, devido ao
contágio com a filosofia de Henri
Bergson. Em Roma, na qual o sentido
do apocalipse religioso margeia com a
redescoberta de uma antiga identidade
cultural, Ungaretti fica até o ano de
1937, quando se muda para o Brasil
aonde ensinará na Universidade de São
Paulo, retornado a Roma após cinco
anos em 1943, para a mesma cátedra
junto a Universidade: “La Sapienza”.
Apesar desse retorno à Itália, e dos
primeiros reconhecimentos de sua obra
(é nomeado Acadêmico), inicia o
período de maior tormento de sua
existência. Roma, ocupada pelas tropas
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alemãs nazistas, recém-saído de lutos
familiares (o irmão e o filho),
determinaram uma fase delicada da
vida de Ungaretti, que desafoga na
edição de Il dolore ( 1947): uma dor
pública e privada, de uma nação inteira
e de cada individuo que a compõe.
Este é também o momento em que a
conversão ao Cristianismo, ocorrido
em 1928, determina a visão de uma
humanidade protendida para um
ancoradouro final, que, na sua poesia
coincide com o despertar religioso para
a Terra promessa (1950): edição de
forte conotação bíblica, na qual
termina e abrange o grande tema do
nomadismo, chave de leitura da inteira
poesia de Ungaretti, expressão de uma
parábola que tem seu começo com o
paradigma do exílio, da viagem para
espaços desérticos e remotos até
concluir-se
em
uma
dimensão
salvadora e oportuna. Esta é a imagem
que define o epílogo da experiência
“ungarettiana”, contemplada na edição
última de Vita d´un uomo (1969),
publicada um ano antes de sua morte
ocorrida em Milano no mês de junho
de 1970.
INEDITI 3
UNGARETTI RETORNA A ITALIA
APAIXONADISSIMO E NO DIA 8
DE AGOSTO DE 1967 ESCREVE A
SUA “ PEQUENINA”
“Te amo, amor, e por motivos
que não são fúteis, nem é capricho,
nem por qualquer ímpeto bestial”.
Assinado Unga.”
Roma, 8 de agosto de
1967.
Pequenina,
Encontrará anexa a carta para a Vovó1.
É uma carta escrita como manda o
coração, e me permito dizer, a
gentileza. Sou uma pessoa agressiva às
vezes, e, quem me conheceu em outros
tempos, sabe que fui um homem de
uma intolerância e de uma violência,
que, hoje, ao lembrar-me disto, sinto
vergonha. Os anos, as amarguras –
também muitas alegrias hoje só
lembranças – me
fizeram, não
domesticado, mas me tornaram
infinitamente menos impulsivo. Na
verdade, porém, mais secreta então,
enquanto hoje tornou-se norma
observada de forma pública, a
gentileza – e talvez no passado eu
havia sido violento pela gentileza – é o
ímpeto interior que hoje regula a
minha vida: a gentileza. Gentil de
forma soberba, é você. Não tem um
olhar seu, uma sua sílaba, uma
1
A Vovó: Erothides de Barros Monteiro, avó de uma
colega e grande amiga de faculdade de Bruna, que assim a
chamava carinhosamente. A vovó acompanhou Bruna nas
primeiras viagens que esta fez com Ungaretti a Belo
Horizonte e Salvador – Bahia, quando pretendiam
descobrir juntos a diversidade do barroco mineiro e
baiano. Bruna havia solicitado a companhia da Vovó já
que não ousava pedir ao seu pai a permissão de viajar
sozinha. Já na viagem ao Peru, quem acompanhou Bruna
foi a querida amiga Cecilia de Barros Monteiro ( neta de
Erothides); na viagem a Venezia quem acompanhou Bruna
foi a prima Lauretta Bianco.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 18
expressão de sua alma que não sejam
ditados pela sua espontânea gentileza,
e pela sua sábia arte da gentileza.
Obrigado, amor. Te amo, amor, e por
motivos que não são – e você bem sabe
– nem fúteis, nem um capricho, nem
qualquer ímpeto bestial. Amo você.
Amor, alma e corpo. Um corpo que é a
medida certa e o cofre de uma alma
como jamais existiram.
Fiz a reserva em um vagãoleito para Genova. Chegarei às
primeiras horas do dia 20, descansarei
até a hora de ir para o porto, que está
próximo ao meu hotel, Hôtel Principe,
e verei novamente Bruno, mas em
Bruno verei novamente você, e é por
isso, para sentí-la mais perto – sempre
sinto você muito perto, dentro de mim
mesmo -, mas Bruno será como se
você estivesse aqui, como se também
você estivesse aqui, ele a deixou a
pouco tempo, e também Marco estará
lá. Os três estão no meu coração.
Acredito que Marco possa me buscar
no Hotel, já que é muito próximo do
porto – repito. Talvez pudesse me
acompanhar durante o almoço. E se
estivessem presentes outros familiares,
bem-vindos!
Chegando Bruno e Marco2 a
Roma, gostaria de lhes mostrar
diversas coisas. Aqui nasceu o
Barroco. Roma é a cidade barroca mais
extraordinária do mundo. Trabalharam
aqui Bernini e Borromini. De
Borromini gostaria de lhes mostrar
algumas obras. Foi o arquiteto mais
fantástico que o mundo teve, talvez o
maior em todos os sentidos. Vinha do
Ticino. Morreu jovem, suicidou-se.
Seus monumentos são poços de
equilíbrio, as diversas formas se
sustentam, com uma harmonia
insuperável, e também os objetos que
coloca um sobre outro, uma montanha
de objetos, um ilusionista de circo.
E ainda desejo que descubram
os Etruscos. Será que poderiam me
acompanhar até as escavações de
Pompei e Ercolano? Seriam visões
indeléveis para sempre. Também os
Museus de Napoli, são ricos até a
loucura.
Como ficaria feliz de lhes
mostrar como foi grande, como será
sempre grande a Itália, arte e
conhecimento. Não temos outros
caminhos, são caminhos-mestres
Não
endereço é:
esqueça
que
o
meu
Hôtel dei Congressi
Per Giuseppe Ungaretti
Roma, (Eur)
Viale Shakespeare, Italia
Meu amor, você sabe que o
meu amor por você aumenta a cada
segundo? Já não sei mais viver longe
de você. Você é a gentileza mais gentil
do mundo. Amo-a, amo-a, amo-a.
Beijo-a Unga’
Manda-lhe
uma
afetuosa Marianni3
saudação
Para Valdeoir Rego4 irei enviar
o livro assim que for ao centro e terei a
oportunidade de procura-lo
2
Marco e Bruno são os irmãos de Bruna. Marco estudava
engenharia na Universidade de Torino, e Bruno tinha
viajado por um mês para a Itália para visitar o irmão.
Ungaretti havia se afeiçoado muito a Marco, que era um
pouco poeta e tocava o piano de ouvido, tanto que chegou
a compor para ele alguns textos ( até o presente inéditos)
para a musica do mesmo.
3
Ariodante Marianni ( 1922 – 2007) foi secretário de
Ungaretti.
4
Rego ( 1930-2001), etnólogo, e pesquisador do folclore
brasileiro.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 19
ENTREVISTA
Alfredo Pérez Alencart:
Referência literária e cultural
em Salamanca
por Cyro de Mattos
V
amos conversar agora com
Alfredo Pérez Alencart, poeta
peruano-espanhol, profesor de
Direito do Trabalho da Universidade
de Salamanca, Espanha, colaborador
de revistas e jornais culturais
importantes, membro da Academia
Castelhana e Leonesa e da Poesia. Para
ele, devemos clamar contra qualquer
injustiça, impunidade ou atropelo da
dignidade humana, sem conivência
com as políticas que ferem os justos
direitos dos homens.
Cyro de Mattos – Você foi
homenageado por escritores e artistas
de quatro continentes por sua obra
poética e trabalho incansável em favor
da cultura. O que significa para você
A Arca dos Afetos?
Alfredo Pérez Alencart – Significa a
prova evidente de que existe a
generosidade do ser humano, de que
nem sempre triunfam as demandas e
as invejas no mundo das letras.
Também significa que algo bom terei
semeado no coração de tantos amigos e
conhecidos para que me tenham
dedicado formosos e profundos
poemas, ensaios, esboços biográficos e
pinturas. Arca dos Afetos é um volume
em que Verónica Amat, apoiada em
minha querida Jacqueline, soube aferir
todas as vertentes de minha escritura
poética. Com mais de duzentos e trinta
escritores e artistas que se reuniram
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 20
para dar-me esse abraço fraterno,
certamente isso me trouxe a lágrima de
uma emoção feliz. Devo permanente
gratidão aos que nesta Arca estão
presentes,
mas também a outros
muitos poetas e narradores que me
fazem chegar testemunhos e refelexões
sobre minha obra e pessoa, ao se
Inteirar através dos meios de
comunicação
desta
homenagem
gestada desde minha Salamanca.
CM – E a poesía? Para que serve?
Vale a pena fazer poesía hoje quando
a linguagem que prevalece na
sociedade é a da imagem, som e
meios computadorizados?
APA - A Poesia nada vale, por isso
mesmo se torna imprescindível. Como
não são todos que podem ter acesso
aos diamantes, é assim também a
Poesia, um bem raro, uma senhora
taciturna para seres que têm outras
prioridades
aparentemente
mais
importantes. Os poucos são muitos:
entenda-se isto como aquilo que
certas vozes poéticas enchem de
novos sentidos o mundo que
habitamos. Que fazer com os ruidos, as
imagens, as tecnologías que inundam
tudo? Nada, e eis que alguns desses
inventos
ajudam em parte a
divulgação da própria Poesía. Ressaltese que o poeta não carrega âncoras
porque sempre aguarda sinalizações
ou se encarrega de transmiti-las.
Sempre está na contracorrente das
modas e não se intimida ante o medo
que inunda cada época da História. Eis
que a poesía vale a pena porque desde
o Princípio permanece impregnada do
futuro: ela sabe piscar com seus
pressentimentos ao largo de séculos,
mas também transita na realidade
cotidiana
quando seus cultores
clamam contra
injustiças sociais,
proferem o fluxo de Eros e cortejam
companhias, elevam orações a Deus e
ao verbo encarnado, são líricos e
elegíacos ante o mundo que sangra e o
planeta se contamina… A Poesia é o
futuro, e o futuro é o resplendor de
uma criança; também o Amor soberbo
à altura de outro Gólgota com
linhagens nunca vistas. Poesia,
insondável permanência.
CM – Qual o compromisso do poeta
perante esse mundo que prioriza o
estômago, o sexo e o poder como
sentidos exclusivos da vida, desviandose cada vez mais dos valores éticos e
espirituais?
APA – O maior compromisso do Poeta
deve ser o de comunicar a poderosa
ilusão de sua mensagem. E para isto,
além de ser suficiente no clima de sua
Linguagem, primeiro deve romper as
fronteiras entre o corpo e o espírito:
nem estar flagelando a alma do outro,
nem atender apenas à fome da pele ou
do desejo amoroso: nada de alardes
superficiais nem retratos complacentes
ou desfigurados no mais íntimo do ser
humano. Bom frisar, o poeta deve
saber que o poder é uma mortalha
ávida para os que não acreditam nela
com o seu não valor. Em geral o poeta
descrê desse tipo de poder e se afasta
das cobiças e perversões que mais
oferecem essa forma de relevância
política, econômica e afins. Sempre
no Poeta autêntico o que deve ser
cultivado é o comportamento ético, a
prevalência do justo e o solidário, a
entrega por causas à primeira vista
perdidas. E, claro, ter uma exigência
suprema com relação a seus frutos: só
deixar degustar a excelência de sua
seiva,
não o que falta para
amadurecer.
Há que comover,
poeticamente, o coração dos outros.
CM - Nascido no Peru, radicado há
anos na Espanha,
como você
conseguiu se adaptar ao contexto
cultural e universitário de Salamanca?
APA – Vivo há cerca de vinte anos em
Salamanca. Mas antes, em minhas
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 21
raízes, a Espanha já estava muio
presente em razão da emigração de
meu avô paterno à Amazonia peruana.
Ele era de Asturias. Além disso, minha
avó vinha dos Troncoso da Galícia.
Quanto a mim tem sido uma nova
travessia até às origens , o retorno a
um chão que parcialmente me
pertencia. Salamanca converteu-se em
minha cidade-mãe. Penso que este
casamento vem se consolidando
porque eu a escolhi: estar em
Salamanca foi minha escolha antes de
de chegar a ela para realizar estudos
jurídicos. Isto quer dizer que não é
minha cidade de adoção, mas de
eleição. Aquí sou profesor de Direito
do Trabalho desde 1987. E aquí tenho
podido corresponder a tão grata
acolhida, dando parte de minhas
energias para estender pontes entre
Salamanca e a Iberoamérica. Também
entre Salamanca e outros países do
mundo. A Literatura, em geral, e a
poesía, em especial, têm sido os pilares
na consolidação desta plataforma
cultural de tão gratificantes frutos. Um
deles, o mais apreciável, é o Encontro
de Poetas Iberoamericanos, que no mês
de outubro celebrará a XVI Edição,
dessa vez para homenagear Fray Luís
de León. Sob o plano pessoal, devo
dizer que um bom número de
escritores passam em meu gabinete,
visitam-me, trazem-me suas obras
estimadas e levam algumas minhas. É
um intercambio fecundo para o meu
ser, muito generoso, que sensibiliza a
um simples provinciano universal.
CM - Dono de um discurso vigoroso,
sua linguagem transita
com
suficiência tanto no épico como no
lírico. Como você situa Cristo na Alma
no conjunto de sua obra, livro que
impressiona pela recorrência
à
metáfora e à imagen, na busca
incessante de um eco que salde dois
mil anos de todo o peso terrestre,
finitudes e contradições, dominações e
desigualdades. Fale um pouco desse
livro.
APA – É a mais completa de minhas
criações. Foi gestado em cinco anos,
mas o parto durou três meses. De fato
é um poema extenso, dividido em
cinco partes, que se fracionam em dez
textos de treze versos cada uma. Nele
está contida minha dupla fé: a crença
na Poesia e em Cristo. Por acaso isso
não é o mesmo, posto que o Amor
engloba tudo? Cristo é um Poeta cujas
parábolas atravessam séculos, cujos
exemplos calam no mais profundo dos
seres sensíveis, cuja missão é assumida
por aqueles que amam o próximo. Uso
um idioma mesclado de castelhano
antigo e certos neologismos deste
século: tem força e, ao mesmo tempo,
ternura, pode parecer
prosa, mas
possui o ritmo que faz dançar as
sílabas… Como poeta, dou-me o
direito ao divino e o exerço neste livro,
que é oração, mas também atrito
contra hipocrisias e fariseísmos
contemporáneos,
religiosidades
ociosas, que não cumprem com a
imensa
preocupação
social,
disseminada nos Evangelhos e nos
profetas. Corpo e alma não estão cada
um no seu lado, configuram um Todo,
que merece reviver com nova luz.
CM - Quais os poetas que mais lhe
influenciaram?
APA - Píndaro, Vallejo, Salomón,
Rilke, Romualdo, Cernuda, Job, Dario,
Bashô, Baquero, Horácio, Pessoa,
David, Quevedo, Isaías, Gangotena,
Hölderlin, Eclesiastes, Perse, Ovidio,
Tundidor, Nezahualcóyotl... Ampla
seria a relação de poetas que transitam
dentro de mim ou que me carregam em
suas costas: assumo como minha essa
linhagem e me considero um pequeno
elo na cadeia poética que não se funde
jamais.
CM - Com
uma obra reconhecida,
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varias vezes premiada, o que vocè
diría aos poetas que querem fazer de
sua vocação um projeto de vida?
APA - Que tenham os olhos como
faróis porque a Poesia é o sol dos
cegos. Fazê-la um projeto de vida é
saber que, ainda no meio do deserto,
saberão encontrar o oásis que salva.
Para isso, não se fixem nas ganâncias
materiais: nada de um iate poderá
levar o seu caixão, mas, sim, algum
lembrete no qual se anotem uns versos
do viajante ou o Cantar atribuído a
Salomão.
Tradução: Cyro de Mattos
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POESIAS
Laura Esteves
O POEMA
Ferido de mortal beleza
(Mário Quintana)
Um poema como a água do arroio, entre as pedras, no piquenique de domingo.
Como o som de um violino, rompendo a madrugada chuvosa, numa estreita
rua de Viena.
Um poema silêncio.
Sem outra condição que não a de ser apenas um poema.
Ferido de mortal beleza.
Nascendo para a vida.
Pronto.
Alçando voo.
URBANO
para Baudelaire e Drummond
tudo deságua nas calçadas:
o esgoto
o sangue
a chuva que caiu de madrugada
a urina do mendigo
o sonho da moça na sacada
tudo deságua nas calçadas:
o vômito do “bêbado noturno”
aquele plim-plim da TV
os ecos da gargalhada
as flores murchas de um buquê
tudo deságua nas calçadas:
o bandaid descartado
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restos do chinelo de plástico
o último capítulo da novela
as notícias do Fantástico
tudo a calçada devora
ela tem dentes caninos
fome de canibal e
te toma de assalto
mas a margaridinha teimosa
― que não é flor do mal ―
sem nem dar por isso
surge humilde
sorrateira
pela fresta
do asfalto
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Marcia Agrau
À SOMBRA DO BAOBÁ
Venho de estranhas árvores antigas:
londrinos plátanos, eretos maricás,
longilíneas palmeiras holandesas...
e o mais tradicional dos baobás.
Direis de mim: é louca e mentirosa;
se apoia nessa coisa fantasiosa,
seus direitos, liberdades da poesia.
Semeia pelo mundo, escandalosa,
se arvorando escrever em verso e prosa
contra-sensos naturais a cada dia.
Quem me conhece, entanto, compreende
quão verdadeira eu sou sobre esta história .
Faltam-me outras árvores à memória
mas a verdade permanece a quem me entende.
E é por isso que hoje estou aqui,
a reverenciar o velho baobá
plantado pelo avô de minha mãe,
enraizado aqui, em Paquetá.
Quanta gente passou à sua sombra !
Quanta gente parou, olhou, marcou ,
feriu o tronco que a todos assombra
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pelo tamanho e aqui deixou
“para sempre” gravado seu recado
ora de amor sincero, ora encantado,
apenas pelo impulso de deixar
seu nome “para sempre” eternizado
no tronco deste velho baobá.
Não passa na cabeça dessa gente
que a árvore não fala mas que sente
os cortes que a vêm desfigurar,
que mesmo que ela viva mais que a gente ,
nem ela é permanente ,
e um dia, no futuro, irá tombar.
Não são as árvores o que permanece.
Das atitudes é que não se esquece.
Dos gestos, das palavras. Dos princípios .
São eles que eternizam na verdade .
São eles traduzindo a qualidade
de uma existência honrada e sem vícios.
Dizem que em Paquetá, à lua cheia ,
as obras dos cientistas, dos artistas, dos poetas,
são murmuradas pelas águas inquietas
marulhando aos que as ouvirem, sobre a areia.
O velho Caetano, eu posso vê-lo,
na sombra deste imenso baobá :
os óculos, o branco do cabelo,
a voz que intuo firme e carinhosa
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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e as marcas do estudo e da bondade
que saem de seu rosto e se enraízam
no solo da pequena Paquetá...
(Rio,23/09/95)
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Três Poemas de Tanussi Cardoso
ANTES DO POEMA
soluço
sobressalto
salto sem rede
precipício
sede
sacrifício
início do improvável
imprevisível fio
cio de coxas
brilho
feira de peixe
fruto
surto de agonia
rinha
fogão de lenha
ferro quente
fogueira rompendo chão
margem sem beira
senha
capim crescendo
nos muros
em água parada
murro
adágio desafinado
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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relógio em hora errada
rosto em lago frio
insone noite
de breu
num beco vazio
eu
UM POETA
para Ricardo Alfaya
Olho a montanha.
Alguém me pergunta:
- O que é a montanha?
- Não sei... A montanha é só o que vejo.
O que se vê não se sabe.
- E o além da montanha?
- Ah, isso eu sei... É tudo o que posso tocar!
8 MOTIVOS DA CIDADE
Arpoador:
Miragem: sol no olho em viagem.
Aterro:
A lua alua alhures:
alva, olhos alumbra.
Botafogo:
O barco:
punhal abrindo o mar.
Jardim Botânico:
Sair por aí a exercitar pássaros.
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Pedra do Leme:
Pousada em cima do monte,
uma asa sem pássaro chora.
Praça dos Paraíbas:
Ninguém ouse dizer, “o amor não existe.”
O que fazem os velhos, nas tardes,
derramando ternura sobre os pombos?
Rocinha:
A pipa no ar dissimula o ato de cortar.
Ágil, baila ao vento o drible certeiro,
empinando o bico pro céu, moleque e vitoriosa.
Subúrbio:
O vento faz dançar
- bailarinas orientais –
as folhas nos quintais.
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Teresa Cristina Meireles de Oliveira
MULHER, PÉROLA E ESPELHO
– sobre quadro de Reynaldo Fonseca –
Circunscrita ao quadro,
ela, no entanto, movimenta
o olhar para fora dele:
ali reside seu interesse –
no que não vemos, apenas pressentimos,
senhora de seu gesto.
As pérolas dos brincos
compõem, em clássica postura,
o discreto levantar dos lábios, esse sorriso sério,
o fundo sóbrio,
a cardinalícia veste
que mal descreve qualquer decote.
E a mão que exibe o espelho
– firme, robusta, segura –
completa o cabelo colhido e tão
composto que mecha teimosa
quase desmente.
Tudo é aparente nesse mundo
de traços firmes e áureas vestes.
A mão que se levanta ostenta
lâmina embaçada que
pouco define no traço revelado:
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não sabemos ao certo de quem é a face
parcamente entremostrada.
Há silêncio nos elementos e nas
cores sobre a pulsação contida,
ininterrupto estrondo sob o
cosmo arrumado.
– A quem estendes, senhora,
o espelho guarnecido?
É a ti, senhora, que procuras, ou é de um outro que buscas
a imagem?
De quem queres, senhora,
reproduzir a face?
Onde encontrar, senhora,
a reta do teu olhar se a linha oblíqua
conduz à tua quase displicente, forjada emulação?
Enigma, ela também nos olha –
o poder que possuímos
quando olhamos um ponto e, ao mesmo tempo, seu entorno –
e contempla
mais o dentro que o fora,
paisagem interior,
e o olhar – esse –
se desdobra cheio de sinais
que apenas auscultamos
como quem pressente a tempestade
nas gotas que tilintam na janela.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 33
Francisco Caruso
FRAGMENTOS
À Cristina Silveira
Diante do teu corpo,
cedo, muito cedo, me dei conta
que, em teus poros, encontro
fragmentos de mim.
E os guardo silenciosamente.
À flor da pele, ao sentir pleno teu eu,
tento rastreá-lo antes que de mim se vá.
E a ele tento reunir meu íntimo.
Nesse momento de raro enlevo,
ao nosso suor, embriaga-me teu cheiro.
Sem que saibas, renovado e feliz,
reconstruo-me inteiro.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 34
CONTOS
COMPANHIA
Jorge Sá Earp
C
ê pode me trazer mais um?
Agora.
Só que não foi agora. Ele ainda atendeu outras pessoas, bateu um papo
com o colega e só aí veio trazer o seu uísque. Mas antes passou um pano
no balcão de fórmica preto.
- Hoje num tem muita gente.
- Ah isso depende. Tem noite que começa assim mas que depois enche. A gente
nunca sabe.
Ela se vira de novo pra pista de dança dando ligeiro giro no banco. Mordisca a
unha.
- Já sábado tava cheio.
- Ah... sábado sempre enche. – e ele começa a chacoalhar a coqueteleira. Ela
sempre achou charmoso essa performance dos garçons, quer dizer, dos barmen. É
como se eles tocassem uns instrumentos. Não maracas porque maracas me dá vontade
de rir. Não tem aquela música da Elis Regina...
- Conheço não. Como é que é?
- Ah... eu não sei cantar. – depois do ah... expressou um sorriso entre
encabulado e coquete.
- Então como é que eu posso saber? – ele despeja a mistura berrantemente
colorida dentro do copo e aplica uma cereja na borda.
- Deixa pra lá. – executa o mesmo meio giro com o banco e seus olhos vão
bater na esfera espelhada pendente do teto. Em seguida baixam para o único casal na
pista dançando sem-graça.
- Pôxa, mas tem tempo que a senhora não vem aqui. – ele se debruça no
balcão com um sorriso acanhado.
- Mas eu não vim no sábado?
- Mas ficou pouco tempo.
- Não gosto de multidão.
Ele se afasta do balcão e alarga o sorriso, mostrando os dentes bem alinhados.
Seu rosto mesmo fica mais bonito.
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Página 35
- Mas tava reclamando que hoje não tinha ninguém...
- Ah, nem oito nem oitenta, Carlos Eduardo...
- Amilton... Puxa, é a segunda vez que a sra. me trata de Carlos Eduardo. De
onde é que a sra. tirou esse Carlos Eduardo?
- Ah, desculpe. Nem eu sei. É... Amilton num tem nada a ver com Carlos
Eduardo. Que cabeça a minha! (dá um gole no uísque com gelo e soda) Sabe, eu sou
péssima pra nomes... Não consigo...
- Ah, eu também. Troco o nome de todo mundo! Já troquei até o da minha
mãe!
- Ah, não: de mãe não é possível trocar não; nome de mãe ninguém troca.
Os dois riem. Um homem grisalho pede um uísque, especificando a marca, pro
barman. Depois lança um sorriso malicioso pra ela. Ela vira o banco na direção
contrária ao homem grisalho e se vê no espelho entre dois assentos no fundo. Sentado
um casal se beija com furor.
- Falando nisso... já que a sra. costuma frequentar essa boate... será que eu
podia lhe perguntar o seu nome?
- Pode sim: mas só se você parar de me chamar de senhora. (Ao mesmo tempo
ela pensa que o homem grisalho até que não era tão mal assim. Acho que ele viu eu
conversando com essa intimidade com o garçom, quer dizer, o barman, e foi se sentar
nem sei onde. Azeite!)
- Odete.
- Prazer, D. Odete. Quer dizer: prazer em conhecer o seu nome. Nome bonito,
Odete.
- Era o nome de uma tia minha. Eu não gosto, não.
Ele se afasta reflexivo, quase se encosta nas prateleiras forradas de garrafas e
volta a sorrir. Só aí então debaixo daquele foco de luz indireta é que Odete percebeu
que Amilton quando sorria, exibia uma covinha. Será que ele tinha olhos verdes ou
era a iluminação da boate que provocava esse efeito, essa ilusão de ótica?
- Continuo gostando.
Ele cruzou os braços fortes.
- De que?
- Do nome, uai.
- Cê é mineiro?
- Nunca te contei, não?
- Não.
- Contei sim.
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Página 36
- De onde?
- De BH mesmo.
Aí Odete retrucou que gostava muito de BH apesar de ter ido lá só quando
pequena para visitar Ouro Preto e as grutas de Maquiné. Os pais queriam ver Ouro
Preto, mas tia Odete – que morreu solteirona – tinha loucura para conhecer as grutas
de Maquiné e Cordisburgo. Ela vivia me arguindo: “Qual a diferença entre estalactite
e estalagmite?” E eu tinha que responder, senão ela não saía do meu pé. Cordisburgo
por causa de Guimarães Rosa.
- Aquele cara escreve esquisito...
- Li há muito tempo no colégio. Obrigada pelo professor de Português. Achei
um saco. Acho que porque era obrigado.
- A gente não deve fazer nada obrigado.
- Concordo plenamente, Amilton: em gênero, número e grau. Cê pode me
servir outro?
- É pra já.
Odete ficou então com medo que Amilton fosse pensar que ela era alcoólatra.
Já era o terceiro. Não; depois desse chega; Odete vai pra casa que já é tarde e
descansa. Pra cama direto. Se é que ela vai conseguir dormir. Não; vai sim. Se não
conseguir, liga a televisão. Mas aí a Letícia ou o Diogo acorda e vem reclamar que a
televisão está alta. Às vezes podem vir os dois. Pelo menos ela não põe mais o som
alto. Afinal... é uma arte saber viver em comum... Onde é que ela leu isso? Ou viu
numa novela?
- Tá aqui o seu uísque.
- Brigada. (suspiro) Amilton. (o homem grisalho e de blazer voltou e também
pediu outro uísque. Sorriu de novo pra ela. Não, ela não era uma qualquer... Não ia
sorrir de volta que nem uma mariposa. O Amilton era simpático. E só. Garçom foi
feito pra fazer companhia. E só. Não quero ser classista, não, mas... mamãe já dizia...
- Olá.
- Boa noite.
- Tá sozinha?
- Tou esperando um amigo.
- O amigo tá demorando um bocado...
- Por favor, eu quero ficar tranquila.
O homem grisalho se afasta pedindo desculpas. Deve ser casado. Não vi
aliança no dedo dele, mas é claro que você só vem de aliança pra boate se vier com a
mulher ou com o marido. Eu até que com esse anelzinho aqui, de bijuteria... podia
dizer... só pra afastar os inconvenientes. Puxa! Mulher não consegue ficar em paz
numa boate, sozinha, sem que venha um chato desses... não, ele não é mal mas é que
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– sabe? – depois que eu me separei...
- A senhora... Desculpe. É, você me disse que era separada.
- Divorciada. - Ela roda o gelo no copo e abaixa a cabeça. Começa a gostar
daquele momento e daquele lugar, afinal tinha ido ali mesmo para espairecer, pra
ventilar a cabeça. Os filhos não gostavam muito dessas saídas, mas, puxa, a Letícia e
o Diogo tinham que entender. Mas Odete dizia que tinha ido ao cinema com a
Roberta. E que depois – diria amanhã – tinha ido tomar uns chopinhos no Bar Lagoa.
- Cê disse que tem dois filhos?
- É, um casal.
- E tem muito tempo que você se divorciou?
Odete hesita; acha que está dando intimidade demais pro barman.
- Seis meses.
- É coisa recente.
- Pode me dar mais outro? – Amilton sorri e pisca o olho. Será que minha voz
está pastosa? Ah não:depois desse eu vou. É o último. Definitivamente. Só faltava
essa agora: eu virar uma bêbada, divorciada, cotovelo no balcão de boates. E o pior:
amiga de garçom. Ah! Garçom e barman é tudo a mesma coisa!
“Se o Carlos Eduardo me visse aqui... E se de repente ele entra? Ele sempre
gostou do Jirau...”
- Brigada.
A partir de agora não trato ele mais pelo nome; só digo obrigada e pronto. Só
mais esse uisquezinho e vou me embora. Ih, estou ficando repetitiva. Mas comigo
mesma não tem importância. O que eu não posso... Olha só o cara grisalho me
encarando de novo. Não, não dá pra vir sozinha aqui. Se a Beta não tivesse arranjado
aquela desculpa esfarrapada para não sair com ela... A verdade é que a Beta queria ir
ao cinema, e Odete estava era com vontade de conversar. Tomar uns chopinhos. Mas
a Beta devia estar cheia dos seus desabafos, das suas histórias com o Carlos Eduardo,
dos chifres que ele tinha botado nela, primeiro com a colega de trabalho, depois com
aquela garotinha que ele tinha conhecido sabe-se lá como e onde.
- Tá muito pensativa...
- É. Tou cansada. Hoje é quarta-feira. Trabalhei muito.
- Trabalha em que?
Dois casais se acotovelaram dos dois lados dele. Atrás também alguém
empurrava. Pediram drinques ao Amilton, e ela nem pôde responder que tinha uma
loja de artigos para presentes. Bobagenzinhas, coisas de decoração, essências de
perfumes, bijuteria. Aquele anel mesmo...
Ai, Carlos Eduardo! Por que você foi tão filho da puta! – o grito ecoou na sua
cabeça, quase extravasou garganta afora. Mas já pensou uma mulher fina como eu
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soltar um berro dentro da boate, mesmo que ninguém ouça por causa da música alta e
depois cair de bruços bêbada sobre o balcão? Decadência. Não a “divine decadence”
da Liza Minelli mas outra horrível, nada divina.
- Desculpaí: demorei, né? É que o meu colega ali sozinho num dá conta desse
povo todo. – e Amilton apontou com o queixo o garoto alourado na outra extremidade
do bar, que realmente parecia atarantado com a súbita chegada da numerosa clientela.
- Então me dá mais um. Cê não pode brindar nem unzinho comigo? Não, eu
sei, cê tá trabalhando...
Amilton se achegou bem perto do rosto de Odete a tal ponto que ela sentiu o seu bafo
quente.
- Unzinho até que eu posso. Mas tem que ser malocado.
Odete reparou então nas veias proeminentes do braço moreno de Amilton.
- Tou achando ocê muito triste hoje, Odete. No sábado ocê tava mais animada,
mais alegre.
- Alegre? eu?
- É... Tava até bem... assim... bem espevitada.
- Espevitada? Ai, meu Deus, e o que foi que eu fiz? Fiz alguma coisa demais?
- Fez nada... Tava só alegre. Espevitada foi maneira de falar.
- Ah bom...
- Ah bom... – o barman repetiu com um sorriso largo, franco, e tocou seu copo
no dela. Ele tinha os olhos brilhantes. Não devia ter sido o primeiro drinque que
bebia.
- Isso aqui não é uísque, não, uai.
- E é o que?
- É um coquetel que eu inventei eu mesmo. Eu chamei de Uai Not.
- Uai Not? – Odete soltou uma gargalhada e inclinou o corpo e a cabeça para
trás. Dessa vez não se sentiu mais vulgar. – e como é que é a receita?
- Olha: a senhora... desculpa... ocê conhece angostura? Pois é: é assim, desse
jeito ó:
O disk-jóquei aumentou a música: botou I will survive com Diana Ross. A
pista ficou lotada.
- Deixô provar um pouquinho.
- Tomaí.
Odete achou o coquetel doce demais e disse isso no ouvido de Amilton.
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- Uai e mulher gosta de bebida doce, sô.
- Mas eu não sou qualquer uma.
O riso franco de Amilton dominava a tela inteira àquela hora, que ela nem
sabia qual era, nem queria saber, nem pensava em hora, o rosto dele dominava a tela
inteira do seu filme com trilha sonora de Diana Ross.
E sobreviveu. Na manhã do dia seguinte sentada na borda da cama, com um
gosto amargo na boca, uma sede danada e uma mecha caída em cima de um dos
olhos, Odete não se lembrava do trecho da noite em que saíra do Jirau. A última cena
estampada na memória era ela dentro do carro do Amilton. Os dois em frente à
portaria do seu edifício na Barão da Torre em Ipanema. E do beijo. Do beijo se
lembrava. Dos lábios carnudos e quentes de Amilton, dos braços fortes dele
enlaçando-a e do coração disparado. Em seguida olhares ternos trocados e o hálito
dele.
- Cê é uma coroa gostosa, Odete.
Ela só gostou do adjetivo, do substantivo é claro que não. Pelo menos foi
sincero – se consolou.
- Sabe, Odete? – Amilton se debruçou no volante fazendo cara de vítima. – Eu
ando meio cheio daquela boate... É que trabalhar de noite cansa. Cansa muito. Cê num
dorme e dormir de dia num é a mesma coisa. A gente num descansa como se tivesse
dormindo de noite.
Apesar de bêbada, ela escutava os passos sorrateiros da voz de Amilton e
antevia a porta onde almejava penetrar.
- Quem sabe, cê num tá precisando de alguém assim pra te levar no teu
trabalho? Cê me disse mesmo que num gosta de dirigir... Eu sou fissurado em dirigir.
Odete o fulminou com o olhar. Amilton guardava uma expressão cândida de
espera.
- Eu podia ser seu chofer...
Subitamente eclodiu a cena na memória dela batendo com força a porta do
carro, lutando com as chaves, o dedo apertando fundo o interfone, o porteiro vindo
abrir sonado e o mergulho entre os lençóis.
Carlos Eduaaardooo! – agora podia gritar: mas ainda assim com a voz sufocada no
travesseiro.
Milão, 21 de agosto de 2013.
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O RELÓGIO
Clair de Mattos
- Nossa! O Alfredo vai me matar.
Deixa de onda mulher. Teu marido é um santo, comparado ao meu.
Até que nem. Quer saber? Eu acho o Beto fora de série. Além disso, um gato.
Quem dera eu, o Alfredo fosse um tico, do que o Beto é.
Você fala de boca cheia. Cuidado! Olha o buraco!
Cecília desviou o carro num repente. As rodas giraram como mariposas
míopes, mas a moça conseguiu recuperar o equilíbrio do Peugeot.
Mais uma dessas e a embreagem vai pro brejo. Sem falar nos amortecedores,
que já deram o que podiam e não podiam. Também, Matilde, só mesmo você pra me
fazer dirigir por essas estradinhas perdidas no fim do mundo.
Não exagera, Cília. Estamos seguindo direitinho o mapa que o pessoal do
Patrimônio Histórico cedeu. A Fazenda deve estar a poucos quilômetros. Você vai
ver que maravilha. Início do século dezenove, ainda com os afrescos de época. Claro
que mal conservada. Os proprietários, apesar da ascendência nobre, são muito pobres.
Vivem do leitinho de umas poucas vacas esquálidas. Mas vamos fazer uma bela
reportagem. Garanto.
E eu garanto que o Alfredo vai me dar a maior bronca por arrebentar o carro
desse jeito. Isso vai.
Como brotando do nada, surgiu numa curva do caminho um velho puxando sua
carroça de milho. Cecília tentou desviar, e na tentativa, o automóvel balançou,
rodopiou, rangeu os freios e caiu de bico no córrego que contornava a vereda
pedregosa.
Algum tempo passou baixo o silêncio costumeiro do entardecer na roça.
Matilde acordou primeiro. Tonta, desgrenhada, ainda sem entender direito o que
acontecera, sacudiu Cecília:
Acorda mulher. Acorda que entramos numa fria. Você bateu feio.
Cecília abriu os olhos atordoados:
- O que houve ?
Batemos, querida. Só isso. Está machucada ? Que sangue é esse, na sua
cabeça?
Sei lá. Acho que enfiei o crânio no painel. Mas, gozado, não está doendo. E
você? Também se feriu ?
Parece que sim. Estou sangrando no pescoço.
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E Agora? Cadê o velhinho na carroça?
Sumiu. Talvez tenha ido buscar ajuda. Desliga o carro criatura. Não vê que
está saindo fumaça do carburador? Pode explodir a qualquer hora. Vamos sair daqui
rapidinho.
As portas da frente estavam emperradas, mas Matilde conseguiu abrir um
pequeno vão na parte traseira, e por ali passaram as duas, espremidas, se arranhando
nas ferragens. Conseguiram subir o barranco circundante e atingiram o topo da colina
próxima. Exaustas, sentaram no capim úmido e observaram o estrago. O carro
adernado na vala era um montão de ferro e cromados retorcidos.
Perda total, disse Cecília.
E. Parece que não sobrou nada. Agora concordo com você. O Alfredo vai ficar
uma arara.
Começou a chover miúdo, aquela chuvinha rala que costuma descer sobre os
campos nas tardes de verão, alimentando a braquiária. As duas resolveram buscar
abrigo, patinhando sobre o capim, ralando pernas e braços.
Afinal encontraram, não muito longe, um antigo curral abandonado, parco de
telhas, cochos vazios acolhendo apenas folhas mortas e insetos.
Não é nenhum Copacabana Palace, mas bem melhor que o relento, disse
Cecília.
De pleno acordo, amiga. Será que o velhinho foi buscar ajuda?
Acho que sim. Ele deve ter visto o acidente.
Claro que viu.
Então, se for esperto, a essa hora Alfredo e Beto já foram informados.
Como?
Tonta! Então não deixamos as bolsas no carro? Endereço, telefone,CPF, está
tudo ali. É só procurar.
Está certa. Acho que fiquei meio burra, depois da batida na cabeça.
Deixa de bobagem Tilde. Estamos numa enrascada daquelas, e isso, minha
filha, deixa qualquer um de miolo mole. Na há neurônio que resista.
A noite caiu inteira, rápida como um tombo, sem luzes nem brilhos, nua feito
deusa pagã esquecida de adornos. Matilde espiou o céu negroso em busca de alguma
estrelinha. Nada. Somente aquele manto escuro vestindo a morraria deserta. Que
horas serão? Cecília perguntou.
Não sei. Meu relógio quebrou no momento do acidente.
O meu ... perdi. Deve ter caído quando batemos. Mas pelos meus cálculos, não
deve passar das nove. Só nos resta esperar por socorro, e isso deve acontecer somente
pela manhã, quando o sol surgir.
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Será ?
Lógico. Amanhece todos os dias desde tempos imemoriais.
Aconchegaram-se uma à outra, esperando as horas passarem. O tempo fluiu
lasso, lerdo, cheio de preguiça, escoando seus minutos gota a gota, sem pressa. As
moças não conseguiram dormir nem um minuto, presas da angústia e do medo.
Afinal, um sol mofino, tísico surgiu atrás das encostas espraindo parcas
réstias de luz por entre nuvens cinzentas. Cecília sacudiu a amiga:
Acho que estou ouvindo ruídos. Vozes. Presta atenção.
Puseram-se atentas, as duas. Ouviram com nitidez rumores e gritos. Gente.
Havia gente por perto. Certamente o carro fora encontrado.
Num átimo, desceram a encosta aos trancos e risos, resvalando nas encostas
do barranco úmido. Aproximaram-se do local do desastre. Gritaram frenéticas,
acenando como loucas:
Estamos aqui. Socorro! Aqui, na colina ! Ajudem,por favor
Nenhum sinal de atenção. Debruçavam-se, vários homens sobre os escombros
do veículo espatifado. Alguns tentavam retirar o carro do riacho. Outros buscavam
padiolas. Falavam alto, todos ao mesmo tempo, nervosos. Alguns choravam. Matilde
apertou o braço da amiga:
Olhe bem, Cília, aquele ali, de camisa listrada, não é o Beto?
É. Claro que é o Beto. Alfredo está logo adiante. Não percebe ? Mas, estão em
prantos. Por que? Por que choram?
Não sei. Vamos chegar mais perto.
Continuaram descendo. Aos gritos, em desespero. Estavam agora bem
próximas. Tão próximas que conseguiram ver, estendidos sobre o capim lamacento,
os dois corpos ensangüentados e decompostos no desalinho rígido da morte violenta.
Pouco adiante, reluzindo na parca luz do dia fosco, o relógio de Matilde.
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Dois contos de Laura Esteves
LOURA FANTASMA
– Diacho!
O grito de Guiomar tinha razão de ser. Tomar conta daquele velho tonto, só
podia ser castigo. Depois de todo estrepado, voltou para casa. Culpa dos três filhos
que a obrigaram. Bem que ela protestou.
***
– Não quero, também estou velha e cansada. Setenta e sete anos.
– Mãe, ele vai para o olho da rua. A outra já mandou o pai embora. A mala
ficou lá na portaria do prédio dele.
– Na hora do bem bom, a sem vergonha tirou Honório de mim. Agora, roa os
ossos. Velho doido !
– O pai não é doido, o que ele tem é uma doença degenerativa.
– Balela, está é maluquinho da silva. Esquece tudo. Soube que quase queimou
a casa da vigarista e que vive pelado com “as coisas” à mostra. Uma vergonha!
– Mãe, nós vamos buscar o nosso pai. Vamos ajudar você a olhar o velho.
– Outra mentira, vocês três vivem na rua, têm família. Vai é sobrar para mim.
E Guiomar tinha toda a razão: sobrou para ela.
Foi uma semana terrível! Honório era uma carga pesada. Vivia urinando nas
calças, não mais conseguia comer sozinho, esquecia a luz acesa e a torneira jorrando
água. Tentava fugir o tempo todo... vou para Buenos Aires , quero dançar um tango
― vivia repetindo.
– Viu mãe? Ele até lembra da viagem.
– A viagem não foi comigo, deve ter sido com a outra. Nunca sai do Brasil. E
dançar tango... velho tonto.
– Mãe, e o médico?
– Mãe, mãe... chega! Já marquei para quinta-feira.
O pior era a caça à loura. Pobre de Guiomar, tendo que responder a eterna
pergunta de Honório:
– Cadê a loura que morava aqui?
– O rato comeu. Foi embora, mas qualquer dia ela aparece, depravado ―
respondia a mulher, trincando os dentes.
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– A loura vai chegar? Eu gosto da loura bonita.
– Daqui a pouquinho ela entra por aquela porta. Miséria, ainda tenho que falar
de mulheres para este velho safado! Eu não merecia esse fim de vida.
– Tenha paciência ― pediam os filhos, preocupados com a situação, com
medo de Guiomar desistir e sobrar para eles.
– Não me venham falar de paciência. Paciência eu tive a vida toda. Foi ele
quem se enrabichou com a mariposa e largou a família. Sempre foi homem de
amantes.
– Melhor esquecer, mãe.
– Como esquecer , se ele me azucrina perguntando, dia e noite, pela
vagabunda loura? Uma vagabunda, repito. Um fantasma rondando a minha vida. A
loura fantasma!
***
Quinta-feira, Guiomar mais tranquila, conseguiu conversar com um desligado
Honório.
– Agora, vamos tomar um banho, botar uma roupa limpa , porque o doutor
nos espera.
– Minha loura também vai?
– Talvez ― respondeu ríspida .
Doutor Garrido ajudou muito. Pediu exames, deu instruções de como proceder
e falou, principalmente, de carinho e acolhimento.
– Acolhimento, só faltava essa. Vou ter que carregar essa cruz ― resmungou,
entre dentes, uma conformada Guiomar.
Alberto, o filho mais velho, logo apareceu para saber notícias.
– Está vendo meu filho? A casa parece uma sala de aula para crianças. Foi o
médico quem mandou colocar avisos em todos os lugares, lembretes escritos com
caneta colorida. Um horror! Nem sei se está adiantando. O doutor me disse, também,
que ele precisa estar com a família. Próximo sábado, faço um almoço. Josefa vem me
ajudar. Quero todo mundo aqui.
Sábado, conforme o prometido, vieram todos: filhos, noras e netos.
O doente, banho tomado, sorria um sorriso bobo, sentado na cadeira de
balanço. E só fazia perguntar: quem é você? quem é você?
Solícita, Guiomar apontava e falava o nome de cada um, bem devagarzinho:
Alberto, Mário, Celso, Antônia, Lúcia...
Depois, foram as fotos recentes e, finalmente, os álbuns antigos . Recordações
de tempos passados.
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– Aqui, você em São Lourenço com os meninos. Olha esta foto do Alberto
quando entrou para a Faculdade de Engenharia. E esta...
– A loura! A loura bonita! Um grito de felicidade saiu do fundo do peito de
Honório.
Todos se acercaram dos velhos. Álbum nas mãos, Guiomar, perplexa, olhava
a antiga fotografia tirada na primeira comunhão do filho caçula. Lá estava ela: linda,
jovem, vestido grená, sorriso radiante e cabelos louros pelos ombros.
MUNDO CÃO
– Belo par, feitos um para o outro! Linda família, perfeita!
Todos comentam sobre “os Queiroz de Almeida”. Ele, executivo de
multinacional. Ela, ótima dona-de-casa – um brinco, tudo nos seus lugares, uma
perfeição – diploma de jornalista no fundo da gaveta.
Presente? Uma festa: viagens para o exterior; jantares; apartamento sempre
cheio de amigos; roupas, muitas roupas; jóias, muitas jóias e colégios caros para o
casal de filhos. Até o cachorro combina. Um lulu branco e fofo! Cristina não desgruda
do cãozinho.
Futuro? O infinito e suas possibilidades. Só que o futuro chega cedo e
imprevisível. Vira agora. Afinal, vinte anos passam rápidos. Paulo Queiroz de
Almeida recebe uma boa indenização e é mandado embora do emprego.
– Novas diretrizes para a companhia, fusão... Grupo espanhol chegando...
Essas coisas.
A boa-vida continua como sempre.
– Nada de preocupações, mulher. Emprego o dinheiro em algum negócio,
numa livraria com café, restaurante... e “tudo como d’antes no quartel de Abrantes”.
O grande executivo adora citações e provérbios.
– Sou um intelectual! Um Queiroz!
Não perde oportunidade para falar de remoto parentesco – quem sabe? – com
o escritor de Póvoa do Varzim.
– Queiroz! Vocês são um Queiroz, de Póvoa! – diz, orgulhoso, para os filhos,
que pouco entendem daquela euforia paterna, pois nunca leram, absolutamente, nada.
E das cidades portuguesas? Nunca ouviram falar. Mas, apesar do suposto
parentesco, ele também pouco entende de livros, livrarias e correlatos. E o tal negócio
vai por água abaixo. A vida vai se desmontando, também. Os filhos adolescentes
procuram emprego em lojas de shopping. Cristina empenha as jóias.
– Eles aproveitam da nossa desgraça, pagam tão pouco... mas vai dar tudo
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certo, as vacas magras um dia terminam. Deus é pai – ela se queixa para a irmã mais
velha.
Cinco anos de penúria. Paulo se ajeita, como pode, na acanhada sala de um
primo.
– Qualquer hora fecho um bom negócio. Um Queiroz, de Póvoa, não se
entrega fácil!
Tentam manter as aparências. Difícil. O imenso apartamento os denuncia:
infiltrações na sala e no quarto do casal, portas empenadas, ladrilhos soltos nos quatro
banheiros, descarga que não funciona, goteiras... Cristina sente vergonha de sua nova
vida. Recolhe-se. O marido ainda encontra alguns poucos amigos na mesa do uísque
semanal.
– Faço questão de pagar a próxima rodada.
Fala bem alto para que todos o ouçam.
– Era o dinheiro da feira – reclama a mulher.
– Não podemos perder o humor e o status – responde Queiroz.
– Inferno! Não quero ver mais ninguém – grita a pobre.
É quando Cristina resolve comprar um cão.
– Um cão de verdade.
Um rotvailler preto. Em seguida, consegue dois pitbulls com um morador de
Jacarepaguá, amigo do porteiro.
– Umas gracinhas, dona Cris, acabaram de nascer, um mês de vida. Eles
acostumam logo. A mãe morreu. Veneno... Maldade dos vizinhos. Era brava,
ninguém chegava perto.
O fila é o próximo. Enorme! Cristina, agora, pouco sai.
– Os cães são a minha companhia, meus amigos fiéis – repete pelos cantos.
Os amigos desapareceram pouco a pouco. Os parentes desistiram de vez. E
não é para menos.
– No último jantar, ano passado, ninguém comeu. Passamos o tempo todo em
vigília, observando os quatro cães passeando pelas nossas pernas – quem me conta é o
próprio tio de Paulo, outro Queiroz.
Hoje, encontrei a irmã de Cris. Pedi notícias.
– Enlouqueceu de vez. Apesar dos arranhões e mordidas ela parece feliz e está
até aprendendo a linguagem dos cães. Late e uiva como ninguém – contou-me, num
misto de pena e deboche.
Tomei coragem. Amanhã vou visitar minha amiga Cristina. Afinal, o cão não
é o melhor amigo do homem? Você me acompanha?
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INVASÃO NOTURNA
Márcia Agrau
A
sala grande era bem iluminada. No meio de um tablado que se projetava
quarenta centímetros sobre o solo, o pequeno homem de barbas compridas
gesticulava nervoso. Vestia uma estranha casaca verde escura que parecia ser
feita de veludo, sobre calças marrons acamurçadas, suspensórios idem e camisas de
cetim roxo. Botas três quartos também marrons e um chapéu pontudo cintado com
uma grande fivela à maneira das bruxas do mesmo material da casaca completavam o
traje.
Gesticulava falando alto, com uma voz forte que não se imaginaria que fosse
dele.
Expunha os problemas com muita lógica e a audiência não lhe tirava os olhos
acompanhando suas palavras e movimentos respeitosamente.
A barba negra azulada, os olhinhos escuros brilhantes faiscavam conforme
aumentavam a sua indignação, a sua veemência e o volume de sua voz.
A platéia era composta de centenas de pessoas como o orador. Homens e
mulheres Os homens, vestidos como ele e as mulheres, pequeninas também, de
vestidos compridos em tons escuros e brilhantes portando os mesmos estranhos
chapéus sobre os cabelos longos.
Tinham idades variadas mas todas de pequena estatura embora proporcionais.
As cores que usavam em suas roupas eram brilhantes e pareciam vivas.
Agora o homenzinho batia o pé no chão e insistia:
– Não podemos permitir que continue assim! Nosso dever é tomar
providências! Moramos todos no mesmo planeta e, se continuarmos deixando por
conta deles, brevemente tudo, absolutamente tudo estará acabado! Eles se destruirão
e, pior, nós também seremos exterminados. Primeiro eram as ações entre eles. Depois
e concomitante contra toda a Terra! Sempre convivemos paralelamente mas agora os
atos dos homens estão começando a interferir em nossas vidas! Na verdade, em nossa
sobrevivência! Portanto, acho que o único modo de agir é este que estou propondo!
Demorei noites e noites elaborando este plano e, de coração, sinto ter que
interferir mas se não o fizermos agora, não haverá depois!
A platéia aplaudiu fortemente e começaram a falar exaltados todos ao mesmo
tempo mas ele fez um sinal e silenciaram. Continuou:
– Começaremos por Paris. Cheguei à conclusão que é a cidade mais fácil de
chegarmos pois é praticamente ôca em seu subsolo e como é uma capital
relativamente pequena mas cujo comportamento dos residentes sempre teve muita
ressonância no mundo, começaremos por Paris, na França!
Novamente o homenzinho foi ovacionadísimo e, então, desenrolou um mapa
que prendeu na parede ao fundo e, sacando de uma varinha , começou a explicar
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detalhadamente como tomariam a dita “cidade luz”.
Quando terminou a entusiasmada e detalhada explanação, falou:
– Por tudo o que foi dito e explicado, dada a urgência, proponho que
executemos o plano nesta madrugada mesmo. Donde é preciso que os nossos que não
estão presentes sejam avisados. Conto com vocês! É uma questão de vida ou morte!
Assim, às três horas daquela madrugada, Paris adormecida não viu quando de
dentro dos vasos sanitários emergiram pequenas pessoas de roupas estranhas, cenhos
às vezes franzidos, às vezes olhares matreiros, mas atitudes determinadas, incólumes
de qualquer resquício de sujeira e magicamente secos.
Os vasos fechados eram abertos por dentro e depois de uma primeira olhada,
de um primeiro perscrustrar em torno, rapidamente saltavam dele, em grupos, na
quantidade que havia sido decidido. Nos locais aonde os vasos estavam sendo usados,
esperavam o momento certo. Quando saíam iam à procura das pessoas do lugar. Se
adormecidas, postavam-se ao lado delas e se transferiam para dentro das mesmas
para usar seus corpos enquanto mantinham seus espíritos adormecidos. A dificuldade
era com os insones mas eles sabiam esperar.
De manhã, a cidade praticamente inteira acordou mudada. Eram todos gentis
uns com os outros, muito menos apressados, muito mais alegres, vivendo com
consciência ecológica , construindo convivência pacífica no cotidiano real quando
influenciavam nos poucos que não haviam adormecido e construindo-a nos sonhos
dos que estavam em seu poder.
Outro grupo de elementais passou a agir em Nova York na madrugada
seguinte e outro em Londres e assim por diante até ocuparem os corpos de quase
todos os seres humanos do planeta.
Enquanto os homens dormiam, suas consciências aprendiam em meio ao sono.
Mas haviam deixado de viver suas vidas como antes e estavam perdendo tempo, a
coisa que mais detestavam fazer.
Os homenzinhos de chapéus compridos e suas mulheres, porém, não queriam perder
suas vidas, coisa muito mais valiosa do que o tempo, e até obterem sucesso em sua
missão, estavam ali para ficar. Sem guerras, sem poluição, na difícil tarefa de educar
as mentes adormecidas – quem sabe – até quando?
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CRÍTICA
GREGÓRIO DE MATOS E A EDIÇÃO CRÍTICA DE SUA POESIA
Paulo Roberto Pereira
G
regório de Matos é produto
típico do bifrontismo barroco
na
transgressão
da
fatura
estrutural do texto poético, ao refletir o
forte jogo de oposições que caracteriza
esse estilo, sombreado pela fugacidade
da vida, em versos que espelham o
cotidiano da Bahia no século XVII. O
gosto barroco encontrou ambiente
propício no fausto que a riqueza
lusitano da América. O mundo mental
açucareira proporcionou à primeira
da Colônia, sustentado pela economia
capital do Brasil. Natural, portanto,
açucareira, ofereceu condições para o
que a poesia gregoriana, obediente às
aparecimento de uma elite ilustrada de
regras e convenções que pretendiam
letrados, como o próprio Gregório,
atingir aos sentidos e à inteligência, ou
Antônio Vieira, Manuel Botelho de
seja, culterana e conceptista, articule
Oliveira,
uma contradição estrutural entre o
semovente mundo baiano de costumes
profano e o sagrado, num momento em
libertinos, alimentado pela escravidão,
que a arte servia de instrumento de
em que conviviam ritos animistas
difusão
africanos
do
cristianismo
da
que
conviveram
com
no
misticismo
contrarreforma. Nascido em Salvador,
contrarreformista, que o Boca de
Bahia, em 1636, e morto no Recife,
Inferno retratou em versos fesceninos.
Pernambuco, em 1696, Gregório viveu
entre as duas margens do oceano
Atlântico, no Brasil e em Portugal, em
época decisiva para a propagação da
cultura literária barroca no domínio
Depois da intensa difusão no século
XX dos seus poemas, Gregório de
Matos recebeu o justo reconhecimento
pela qualidade da fatura estética da sua
poesia, que o torna singular ante os
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mais destacados poetas do período
colonial. No Brasil, estudou com os
jesuítas em Salvador, seguindo depois
para a Universidade de Coimbra, onde
se formou em Direito, adquirindo
fortes traços da cultura clássica e
renascentista, que atingira excepcional
momento em Portugal sob o domínio
da poesia camoniana. Na Península
Ibérica
viveu
Gregório
32
anos,
participando do momento culminante
da
literatura
espanhola,
sofrendo,
naturalmente, a decisiva influência dos
escritores do Século de Ouro. No seu
retorno ao Brasil, pela virulência de
sua
sátira,
ficou
conhecido
pela
antonomásia de Boca de Inferno.
Como uma das figuras primaciais
desses tempos de luzes e sombras em
que os costumes eram o principal
motivo da sua sátira, Gregório foi
denunciado
ao
Santo
Ofício
da
Inquisição, mas o processo não teve
continuidade.
que
alvejara
Porém, seus inimigos,
em
versos
ferinos,
brasileira. A revelação de grande
número de poemas líricos, satíricos,
eróticos e religiosos que lhe foram
atribuídos criou uma barreira quase
intransponível para o estabelecimento
da edição crítica de sua obra, tornandose esta a principal preocupação em
torno do seu legado literário.
A poesia de Gregório de Matos,
produzida em um país que não tinha
tipografia, foi preservada através de
acabaram conseguindo o seu exílio em
manuscritos
Angola. Poucos anos permaneceu na
“cancioneiros
África. O perdão para voltar ao Brasil
diversos
proibia seu retorno à Bahia. Foi então
basicamente no século XVIII, que
viver no Recife, onde passou seus
foram utilizados para a preparação das
últimos anos de vida. Com o tempo,
duas edições básicas feitas no século
não foi a sátira de Gregório, de cunho
XX por Afrânio Peixoto, entre 1929-
erótico e pornográfico, que continuou a
1933; e James Amado, em 1969. A
apógrafos,
de
mão”,
códices,
formando
organizados
causar celeuma na história literária
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
os
Página 51
divulgação dessa poesia seiscentista
Uma acusação a Gregório que
atribuída ao nome de Gregório, pela
resistiu longo tempo é a de plagiário,
quantidade de apógrafos descobertos,
baseando-se, sobretudo, nos famosos
estimulou diversas polêmicas como,
versos: “Doutor Gregório Gadanha/
por exemplo, entre Antonio Candido e
pirata do verso alheio,/ Caco, que o
Haroldo de Campos, a respeito de sua
mundo tem cheio,/ do que de Quevedo
contribuição
apanha...”,
para
a
evolução
da
atribuídos
ao
Literatura Brasileira. Como grande
contemporâneo
parte da obra gregoriana é de cunho
Ribeiro, que o acusava de furtar
licencioso, o crítico Tristão de Athayde
poemas a Gôngora e a Quevedo. Essa
o tratou pelo cognome de “nosso
acusação foi adotada por aqueles que
Villon”, devido à constante sátira da
se
sua “musa praguejadora”, a demonstrar
originalidade e individualidade do
que é digno herdeiro não só de Villon,
Romantismo,
mas também de Rabelais e Aretino.
desconhecerem que a imitação dos
Contudo,
esquecer,
grandes mestres do passado, segundo a
conforme ressalta João Adolfo Hansen
mimese aristotélica, faz parte do
no seu livro sobre Gregório de Matos e
processo criador da arte, levado até
a Bahia no século XVII, que no
quase à exaustão na Renascença. O
Barroco a sátira visava a um fim moral
equívoco de interpretação da obra
na defesa dos valores da classe
poética
aristocrática. Mas o postulado retórico
aparecimento do estudo de João Carlos
da sátira barroca não é impedimento
Teixeira Gomes sobre plágio e criação
para se observar que na poesia de
intertextual, ao demonstrar que a
Gregório o discurso literário é o
influência recebida por ele não serviu
resultado da vivência na história social.
de impedimento para que criasse uma
Por isso, é notório como Gregório,
poesia original dentro dos postulados
filho da nobreza rural da Bahia,
do Barroco.
manifesta
não
o
se
deve
ressentimento
apoiavam
de
vigário
seu
nos
Lourenço
postulados
mas
Gregório
que
de
parecia
motivou
o
dos
A pesquisa em torno do cânon da
mazombos preteridos pelos reinóis que
poesia gregoriana parece que é ainda
administravam a economia açucareira:
“Que os brasileiros são bestas,/ e
estarão a trabalhar/ toda a vida por
hoje a principal tarefa a se realizar, fixando-se o corpus a partir dos cadernos manuscritos, os famosos códices
manter/ maganos de Portugal.”
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 52
apógrafos. Cumpre não esquecer que
servar sua poesia só contêm apógrafos
Gregório não deixou manuscritos e que
e nenhum autógrafo.
sua poesia só começou a ser publicada
Para tentar sanar essa lacuna
com regularidade a partir da antologia
da edição da poesia gregoriana, orga-
de Francisco Adolfo de Varnhagen de
nizaram-se duas publicações. A de
1850. Além da falta de originais, a bi-
Afrânio Peixoto, em seis volumes, ba-
ografia do poeta escrita pelo licenciado
seada em diferentes códices conheci-
Manuel Pereira Rabelo na primeira
dos até a sua época, perdeu a credibili-
metade do século XVIII sofreu muitas
dade devido à ausência de rigor crítico
críticas, chegando alguns estudiosos,
no confronto textual e pela postura pu-
como Adriano Espínola, a duvidar da
dica, censurando a parte considerada
existência de Rabelo, vendo-o “como
pornográfica da poesia do Boca de In-
persona literária, não como persona-
ferno. A edição James Amado, de
gem histórico”. Já para João Adolfo
1969, reeditada em 1990, é a melhor
Hansen, a Vida do excelente poeta lí-
por ter como fonte básica o principal
rico, o doutor Gregório de Matos e
códice conhecido, o Asensio-Cunha,
Guerra não passa de uma “ficção bio-
da
gráfica”. Contudo, a partir das pesqui-
Faculdade de Letras da UFRJ. Do
sas empreendidas particularmente por
mesmo modo como fizera o estudioso
Fernando da Rocha Peres, trazendo
espanhol Manuel de Faria e Sousa,
novos dados de cunho biográfico es-
editor das Rimas de Camões, que
sencial para o conhecimento de Gregó-
ampliou o seu legado lírico adotando a
rio de Matos, foram confirmadas mui-
máxima: “Yo doy a mi poeta todo lo
tas informações oferecidas por Pereira
que he hallado con sombra de suyo”,
Rabelo sobre a vida e a obra do princi-
James Amado tentou também, no seu
pal poeta barroco da língua portuguesa.
esforço meritório, reunir tudo o que foi
Como lembrava Antônio Houaiss em
possível alcançar atribuído a Gregório
“Tradição e problemática de Gregório
de Matos.
de Matos”, roteiro em que postulava
Biblioteca
Diante
Celso
do
Cunha
apelo
de
da
tantos
uma edição crítica do satírico colonial,
interessados, como Segismundo Spina
não se conhece autógrafo de Gregório
e Afrânio Coutinho, que reconheciam
de Matos; não há texto seu impresso
ser a edição crítica da obra poética de
em vida; e os códices que alegam pre-
Gregório
de
Matos
uma
tarefa
imperiosa para se estabelecer o que é
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 53
realmente de sua autoria, o pesquisador
gregoriano manuscrito e, ao mesmo
português Francisco Topa, professor
tempo, o único do século XVII.
de
Também em sua pesquisa sobre fontes
Literatura
Brasileira
da
Universidade do Porto, levou adiante o
impressas
projeto
corpus
especialista português identificou 41
gregoriano, elaborando um trabalho
documentos que trazem testemunhos
monumental de crítica textual: buscou,
sobre o escritor baiano. Mesmo que
até
surja algum códice
de
onde
se
foi
reunir
o
possível,
material
sobre
Gregório,
o
com poemas
manuscrito e impresso que fazia
atribuídos a Gregório, tem-se de
referência ao satírico baiano. Como
considerar que o inventário do corpus
fruto dessa investigação publicou O
realizado por Francisco Topa forma
mapa
inventário
hoje a estrutura basilar para o preparo
testemunhal da poesia atribuída a
da edição crítica do poeta e advogado
Gregório de Mattos. Nesse Mapa do
soteropolitano.
do
labirinto
labirinto:
o
ensaísta
português
É interessante notar que, apesar
apresenta o mais vasto levantamento
da existência de tantas antologias sobre
dos testemunhos manuscritos da obra
a obra de Gregório de Matos, ele,
poética atribuída a Gregório. Graças a
como o primeiro poeta representativo
essa
292
do Brasil, não mereceu a publicação de
manuscritos, entre os inéditos e os que
que sua poesia necessita. Talvez os
já eram conhecidos, dos quais sete
tempos sejam outros e uma bem
foram
cuidada edição crítica do heterodoxo
pesquisa
arrolaram-se
descobertos
pelo
próprio
professor Topa. Entre estes está o
escritor
códice do
de
embaraços ao vergastar o desconcerto
Fronteira que se encontra na Torre do
do mundo baiano colonial, não seja
Tombo em Lisboa, datado de 1700,
assunto que atraia o interesse dos
que passou a ser o mais antigo códice
letrados brasileiros do século XXI.
Arquivo
da Casa
seiscentista,
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
que
causava
Página 54
NOS TRAÇOS DA HISTÓRIA EM
OS MORTOS DAQUEL VERÁN, DO
ESCRITOR GALEGO CARLOS
CASARES
1. Algumas considerações iniciais
N
o
presente
ensaio,
Casares,
Carlos Casares (segundo, em pé, da esq. p/ direita) no Café
Novelty, em Salamanca, junto do escultor Fernando
Mayoral e do diretor da RAE, Victor García de la Concha,
por ocasião da inauguração da escultura em memória do
romancista Gonzalo Torrente Ballester.
apresentaremos
Assinalou 2012 os 10 anos do
resultados parciais de
falecimento, em 9 de março, de Carlos
estudos que temos realizado com
relação
Délia Cambeiro
às
om
obras
o
de
Carlos
objetivo
Casares (Orense 1941-Vigo 2002),
uma das vozes mais destacadas na
difusão da literatura, da língua, enfim,
de
da cultura galega, nem meados do
investigá-las na perspectiva do
século XX e no início do XXI, tanto na
vínculo com a História. Antes de
Galiza como no exterior. Escritor e
iniciarmos,
crítico literário, exerceu o cargo de
porém,
mencionaremos alguns detalhes
relativos ao escritor.
conselheiro de cultura, presidente da
Editorial Galaxia, também pertenceu à
Real
Academia
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Galega
e
Página 55
ao
Parlamento galego. Entre os anos de
denúncia do clima doloroso a pairar
1960 e 1990, fincaria seu nome como
sobre a Europa e as inúmeras obras
romancista. Além de Os mortos daquel
sobre o tema apontam momentos de
5
verán , citamos Vento ferido; Cambio
violentos choques de cunho político-
en tres; Xoguetes pra un tempo
ideológicos,
proibido; Deus sentado nun sillón azul
submetido por incontrolável vontade
e Ilustrísima; fora inúmeros títulos de
de poder de chefes dominadores.
literatura para crianças e artigos em
jornais. Seu último romance, O sol do
verán, foi entregue, definitivamente
para publicação, dois dias antes de sua
morte, em 2002. Segundo dados da
Fundación
Carlos
Casares,
sublinhamos, ainda, sua participação,
em 2000, no Expresso da Literatura
Europeia, junto com 80 escritores,
percorrendo vários países da Europa,
desde Lisboa até São Petersburgo.
em
um
continente
Com nosso estudo sobre o
escritor, voltam-nos à lembrança o que
a primeira metade do século XX
registrou, ao eternizar crises que
abalaram e envolveram quase todos os
povos, também deflagraram fortes
tensões sociais, que levariam muitos
países
industriais
a
graves
desequilíbrios econômicos. No período
do
entreguerras,
apareceriam
na
Europa, pouco a pouco, governos
A matéria desenvolvida em Os
autoritários na Itália, na Alemanha, em
mortos tem como tela o clima que já se
Portugal, na Espanha e na antiga União
anunciava da Guerra Civil Espanhola
Soviética. Pelos relatos de fontes e de
(1936-1939), remetendo-nos à Europa
documentos
dos anos 30 vividos em traumático
magnificamente
rastro
mundo
de
histórias
pessoais
e
diversos
encontrados
perpetuados
particular
da
ficção,
no
tais
familiares, irreversivelmente marcadas
ditaduras afrontaram valores caros à
pelos acontecimentos coletivos. As
democracia e à liberdade políticas,
tragédias políticas de então serviriam
desrespeitaram direitos essenciais do
de mote para as artes, em geral,
indivíduo e da humanidade. A ira de
assinadas por autores que participaram
que estavam investidas exterminaria
direta
dos
milhares de pessoas, algumas foram
acontecimentos. Tal acervo artístico é
cruelmente perseguidas e executadas
o registro da memória coletiva, a
por
ou
indiretamente
manifestarem
ideológica
5
aos
ou
oposição
regimes
Passamos a citar o romance como Os mortos.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 56
então
instalados ou diferenças raciais - e nem
certamente passível de se repetir, a
comentaremos
qualquer momento. As palavras de
as
cruzadas
de
extermínio aos judeus e perseguições
inúmeros
aos homossexuais, aos ciganos e tantos
representar os instantes abissais e
outros
extremos em que a dignidade e a
grupos
denominados
minoritários.
liberdade
Ao lermos Casares, revivemos,
em diálogo com lembranças de nossa
família de imigrantes galegos, todo
aquele desequilíbrio capaz de aniquilar
escritores
tentaram
humanas
estiveram
sacrificadas. Entre esses está Casares
uma aguçada voz lançada contra a
insanidade, a injustiça e a prepotência
de figuras centralizadoras do poder.
cruelmente grande parte da Europa,
No que se refere á memória
que, durante largo tempo, manteve a
coletiva e familiar, vale esclarecer o
liderança
do
fato de Carlos Casares não ter vivido
e
os primeiros dias da subida de
intelectual. O que deduzimos, não da
Francisco Franco, que permaneceria de
voz do autor galego, mas do que
1939 a 1972 no comando da Espanha.
sucedeu historicamente no quotidiano
Nascido em 1941, Casares tomaria
de um país massacrado, é que grupos
consciência do que se desenrolou e
empobrecidos se deixaram submeter
desenrolaria, certamente, pela história
ideologicamente
da
oficial e por dados relatados pelos seus
palavra de condutores do povo. Sob a
ou por outras famílias. Em sua
máscara
pátria,
bibliografia, constatamos que iniciaria
atualizavam, de maneira insana, o mito
a publicar em 1965 e, já no pós-
do chefe, do herói salvador, porém,
franquismo, inspirou-se nos duros
nada mais eram e foram do que
momentos em que se acirrou o ódio na
sanguinários ditadores - o que nos leva
Espanha, em especial, na Galiza, nos
a pensar na questão da servidão
primeiros instantes da Guerra Civil.
voluntária dos povos de que nos falou
Em Os mortos, obra de 1985, estão os
Etienne de La Boétie.
dias
no
centro
desenvolvimento
de
mundial
econômico
pela
protetores
sedução
da
A produção literária guardaria
rastros e reflexos de acontecimentos
que nos alertariam quanto àquela
terrível e trágica mancha na História,
de
cólera
demente
que
se
anunciavam e não presenciados pelo
autor. Colocamos em destaque tais
indicações,
pois
as
fontes
que
suscitariam a composição não só de Os
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 57
mortos, mas, de tantos outros títulos de
Casares e outros nomes da Literatura
na
Galiza,
provavelmente
provenientes
não
são
apenas
de
documentos escritos. Foram também,
sem dúvida, dados da chamada história
oral proveniente da memória familiar e
coletiva,
registrada
por
nascidas
após
instalação
a
gerações
do
franquismo.
É
ressaltarmos
o
quanto a narrativa oral registraria para
a memória da Galiza, assim é também
que opina a crítica e historiadora da
Literatura galega, Dolores Vilavedra,
quanto a certos autores. Segundo ela,
nesse rol, inclusive Casares, estão os
que não viveram a Guerra Civil, pois,
não eram ainda nascidos, mas que
fatos
presenciados,
Devido,
matéria
apontamos
então,
explorada
-
ao
no
sem
veio
da
romance,
agora
discutir
teoricamente, pois tomaríamos espaço
excessivo - Os mortos como uma obra
em que a História percorre as páginas
do texto, em um intrigante e instigante
entrecruzamento
interdisciplinar
de
ciência histórica e de criação literária.
oportuno
narraram
medo, a violencia e arbitrariedades”.
não
vividos
sendo-lhes
nem
passados
No cerne de tudo vigora a
observação sobre o homem, sujeito da
obra literária, por isso, sem dúvida, a
narrativa literária e o discurso histórico
se entrecruzam de maneira sutil. A
meada é melhor destrinçada a partir da
observação de que a simples e possível
diferenciação inicial estaria no caráter
de objetividade vinculado à História e
no de subjetividade ligado à Literatura.
oralmente pela família e também por
Ao longo de estudos até agora
participantes antifascistas. Na Galiza e
efetuados em romances cuja matéria
em língua galega, aponta Vilavedra,
verse sobre os tempos da Guerra Civil
surgiria,
Espanhola
portanto,
uma
literatura
e
do
franquismo,
produzida por uma segunda geração
depreendemos, em Casares, que a
não
narrativa
espectadora,
que
daria
literária
casareana
e
o
conflito,
discurso histórico se entrecuzam e
produzindo obras de surpreendente
dialogam de forma magnífica. Em
espectro. Para a historiadora, esses
futuros
autores “[...] desenvolveron en clave
resultados mais desenvolvidos no que
ficcional historias que oíran contar, [..]
toca à obra do ourense e, a seguir,
e que lles serviron para codificar o
antes de entrarmos na exposição
configuração
literária
ao
trabalhos,
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
divulgaremos
Página 58
sintetizada
do
reproduzimos
romance
o
juízo
proposto,
crítico
de
Manuel Forcadela, expresso nas Atas
Simposio
Internacional
História sendo transmitida a partir dos
passos de personagens moradoras em
um vilarejo da Galiza.
Carlos
Casares, quanto à obra e ao papel de
Casares para as letras e a cultural
galegas:
Em síntese, o ponto crítico a
realçar é o estratagema ficcional
marcado pela aparição do cadáver do
farmacêutico Ernesto Vilariño Dacal,
[...] Resulta especialmente significativo
que as tres grandes novelas que Carlos Casares
achega á narrativa de fin de século sexan
novelas vinculadas ao queaquí denominaremos
novelas de reconstrución histórica. Tanto
Ilustrísima como Os mortos daquel verán
como Deus sentado nun sillón azul
preséntannos a recreación dun tempo que vai
desde o inicio de século ata a Guerra Civil. Un
dos temas reiterados vai ser o da lateralidade
da ortodoxia, isto é, a posición de límite que
debe adoptar o intelectual perante os grandes
discursos do nosso tempo.
no início da Guerra Civil, e as
investigaçõesquanto às circunstâncias
ocorridas em torno da morte desse
comerciante. As indagações policiais
apresentariam inúmeras controvérsias
e desmentidos, surgiriam contrastes
entre a versão oficial, de morte por
acidente resultante da queda de um
cavalo, e a razão provável de a vítima
2. O passado da Galaiza em
Os Mortos daquel Verán
ter sido “paseada”. No “paseo”, o
preso político era conduzido à noite em
uma viatura, para ser levado ao local
Em Os mortos, a narrativa está
centrada nos dias que anunciavam o
movimento
de
militares
de sua execusão, derivando daí, seu
último passeio.
rebeldes,
No romance de Casares, o tempo
investidos contra a Segunda República
espanhola e que culminaram, em 1939,
na tomada do poder por Franco. Ao
longo
da
narrativa,
desfilam
personagens fictícias, que resistem às
investidas da nova causa fascista e que
se insurgem contra o cura e os
milagres acontecidos por intermédio de
uma fanática. A trama ocorre entre
novembro de 1935 e agosto-setembro
de 1936, nela ouvimos os rumores da
vem marcado de forma vaga e dispersa
no título, porém, logo no primeiro
capítulo, insinua-se o ano das fúrias
falangistas, encarregadas de plantar,
com sangue, terror e medo, o respeito
ao enfurecido poder, que já se avistava.
Já se insinua no início do texto haver
um
morte
caráter
do
político-ideológico
boticário,
forçando
na
a
presença do relator, já que os fatos se
alinhavam com o propósito de se
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 59
“destruír a honra de determinadas
julho de 1936. A obra se compõe de
persoas [...] polo seu entusiasmo,
dez capítulos-informes, escritos em
adhesion e axuda à nova causa”, clara
linguagem forense por um funcionário,
sugestão à causa franquista e aos
que, encarregado de esclarecer o caso,
rebeldes engajados.
envia seu relato a um superior.
No primeiro e segundo relatos,
Trata-se de uma forma de narrar
além de datas, lemos uma denúncia
marcadamente inovadora, em que o
sobre
relato oficial empresta um cunho de
o
possível
assassinato
mandante
do
do
faramacêutico,
verdade
ao
que
“parece”
ter
informando-nos o narrador, ou “o
acontecido. Os relatos das declarações
funcionário que subscrive”, que:
e diligências sobre o “acidente” são
En relacion co último escrito desa
xefatura, de data do cinco de agosto que corre,
[...] esta dependencia informa que o día vinte e
sete do mes de xullu próximo pasado, sendo as
dezaseis horas e vinte e cinco minutos,
presentou-se un individuo o cal denunciou que
oíra dicir que o matara don Andrés Fuentes
Vilariño, o dono da Fábrica [...].
A carga semântica do título, Os
mortos daquel verán, está cheio das
lembranças que provocam, sugerem a
histórica de uma estação umbrosa,
apesar de ser pleno verão. Através da
investigação da morte suspeita e
denunciada,
dos
enfrentamentos
empregados
de
relatos
entre
patrão
Vilariño
e
de
e
dos
desentendimentos ocorridos, vamos
tendo
notícia
dos
fatos
que
se
passavam na vila. Ficam marcadas, por
exemplo,
referências
históricas
à
greve, à “Folga Xeral Revolucionaria
de novembro de mil novecentos e
trinta e cinco [...]”, próxima aos
embates entre militares e civis, em
feitos pelo citado funcionário-narrador,
que filtra as opiniões das várias
personagens,
sem
interferir
expressar juízos nem
nem
sentimentos
quanto ao caso. Não temos nenhuma
indicação da identidade, nem da
procedência do narrador-escrevente,
ele se nomeia, nos relatórios, “o
instrutor asinante”, “o funcionario
informante”, o “funcionario dicente”.
As fórmulas são de alguém que se
deva mostrar neutro, não participante
dos acontecimentos, com o foco
narrativo externo, passando sempre em
terceira pessoa estritamente o que
diziam os habitantes chamados a
depor, preocupando-se em transmitir
as
declarações
com
precisão
de
informes e devido afastamento. Aponta
M. Forcadela que
En Os mortos daquel verán
unha neutralización da enunciación a
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 60
través da linguaxe xudicial dispón na ficción
a crueldade da represión fascista desde oque
poderiamos denominar asepsia narrativa. Nin
connivencia cos executores nin solidariedade
coas vítimas. Só a verdade literaria, que como
a verdade xudicial, remata por ser un puro
efecto da palabra.
não simpatizantes “com a nova causa”
denunciam
marcas
extremadas
do
comportamento humano em busca do
poder - nem que seja pela violência.
Para completar o que sugerimos,
Apesar de sua posição de cunho
em relação à matéria de Os mortos,
imparcial, o relator participaria no
Tucho Calvo estima a obra de Casares
papel de testemunha ao encontrarem o
pertencente “a um ciclo narrativo de
corpo trucidado de outra vítima das
temática
brigadas executoras. Tratava-se de um
concentrada na violência do poder, [...]
operário, que, durante sua declaração,
sobre o pensamento dogmático, o
não poupou críticas pesadas a Andrés
fanatismo,
Fuentes Iglesias, o dono da Fábrica,
intolerancia”, já para Forcadela a obra
afirmando todos saberem ser “adepto
do escritor contribuiu para que a
da nova causa”:
narrativa galega
[...] o señor Fuentes Iglesias tiña
guardado no seu despacho, ben á vista de todos
e metido nunca caixa de cristal, un puro
habano para ser fumado desde o balcón do
concello o día que caera a República; e que ese
habano llo vira fumar o pobo enteiro o pasado
día vinte pola noite, cando se fixo a
concentración na Praza Maior e el falou desde
o balcón.
de fin de século sexan novelas
vinculadas ao que aquí denominaremos
novelas de reconstrución histórica. [...] Os
mortos daquel verán [...] preséntannos a
recreación dun tempo que vai desde o inicio de
século ata a Guerra Civil. [..] [a] neutralización
da enunciación a través da linguaxe xudicial
dispón na ficción a crueldade da represión
fascista desde o que poderiamos denominar
asepsia narrativa.
O afrontamento ligado à coragem
em denunciar o simpatizante com o
regime e provável mandante de crimes
na vila, custaria-lhe a vida, seria mais
um
“paseado”.
personagens
fugido,
trabalhistas
e
acusadoras
anteriormente,
participarem
quando
Essa
das
durante
dirigiam
outras
haviam
depois
de
reivindicações
a
República,
o
comité
revolucionário de 1935. A atmosfera
geral e o assassinato político de dois
histórica
a
e
política,
violencia
e
a
Para concluir esse breve ensaio,
sustentamos
que
as
obras
de
apropriação da História, como as de
Casares, motivaram-se na projeção de
um espaço narrativo de resistência
frente à hegemônica força política em
que viviam milhares de cidadãos. São
obras
direcionadas
às
desgraças
acontecidas em um tempo ligado à
história da Galiza. No caso de Os
mortos, encontramos aspectos da busca
da legitimidade histórica para a Galiza,
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 61
no esforço estético de apropriação do
derrotado, à mercê da intolerância, da
passado traumatizante, marcado por
injustiça e da repressão, pulsando nas
confrontos com o presente a ser
entrelinhas
constantemente construído. Ainda o
sentimento de absurdo existencial. A
crítico e historiador da Literatura
partir da estratégica utilização da
galega M. Forcadela concebe que
temática
O saber histórico [...] parte dunha
relación dialéctica entre pasado e futuro,
entendida como un proceso de continuidade e
ruptura, de cohesión e loita. [...] Unha das
consecuencias desta transformación ou ruptura
epistémica sería, por unha banda, unha lectura
histórica do presente e, por outra, unha
interpretación política do pasado. Como é ben
sabido, o discurso histórico representa unha
área privilexiada de conflito entre os estados,
as nacións e os grupos étnicos. Tentaríase, por
tanto, unha nova imaxinación histórica. [...] A
literatura galega reflicte un esforzo estético por
apropiar unha dobre historicidade: a do pasado
(representada pola memoria xenealóxica) e a
do presente (entendida en termos dunha
imaxinación histórica proxectiva).
ficcionais
brutal
da
um
velado
Guerra
Civil
Espanhola, o escritor galego denunciou
a incapacidade de a lei atuar com
justiça em todo seu vigor em períodos
de crise, durante os quais dominem
forças do crime, do autoritarismo, do
totalitarismo.
Ao partir do regional para o
universal, a narrativa de Casares
reitera a importância do escritor,
revela
considerável
capacidade
Antes de fechar o presente
inventiva, forma um marco referencial
estudo, com referência ao trançamento
na literatura galega contemporânea, ao
História
lembramos
optar pela recriação imaginativa de
palavras de Mario Vargas Llosa, em
referentes históricos, para nela situar
La verdad de las mentiras:
carências não só do homem galego,
e
Literatura,
A recomposição do passado que opera a
literatura é quase sempre falaz em termos de
objetividade histórica. A verdade literária é
uma, e outra a verdade histórica. Porém,
mesmo que esteja repleta de mentiras - ou
melhor, por isso mesmo - a mentira conta a
história que a história, que escrevem os
historiadores, não sabe nem pode contar. [...]
Só a literatura dispõe de técnicas e de poderes
para destilar esse delicado elixir da vida: a
verdade escondida no coração das mentiras
humanas. Porque nos enganos da literatura não
há nenhum engano.
mas de toda a humanidade. Por um
certo ângulo, repetimos, Casares nos
passa uma visão negativa e ascética
das sociedades, que, sob seu olhar
questionador,
humano
apresenta-nos
frequentemente
o
ser
derrotado
pela intolerância, injustiça e repressão.
Se lateja em algumas de suas páginas
um sentimento de absurdo existencial,
Em Casares, apreendemos uma
em outras, entretanto, desenha-nos
visão pessimista e cética da sociedade,
personagens íntegras, em oposição às
nela o indivíduo aparece quase sempre
venáveis e desprovidas de qualquer
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 62
sentimento ético.
confirmar a crescente recepção de suas
Aqui nos apoiamos apenas em
um título de Carlos Casares, por isso,
em
nossa
coda
final,
devemos
obras e a importância de seu nome
para as letras galega e mundial.
Alguns romances de Casares já estão
traduzido em várias línguas modernas.
REFERÊNCIAS
CALVO, Tucho. Carlos Casare: o conto da vida. A Coruña: La Voz de Galicia, 2003. p.135.
CASARES, Carlos. Os mortos daquel verán. Vigo: Editorial Galaxia, 2004.
CHAO, Nacho. “Entrevista con Carlos Casares”. El Mundo. (14-IV-1996). p.5.
FORCADELA, Manuel. “Novela e política en Galicia de 1968 á fin de século: ficción e ideoloxía en
Carlos Casares”. In: Actas Simposio Carlos Casares.Ourense: Fundación Carlos Casares, 2007. pp.
126-149.
VARGAS LLOSA, Mario. La verdad de las mentiras. Madrid: Alfagarra, 1992. pp.15-18.
VILAVEDRA, Dolores. “A Guerra Civil na narrativa galega. Un ámbito moral”. Grial. Revista Galega
de Cultura, 170, 2006. pp.128-133.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 63
O CONTISTA AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA
Alcmeno Bastos
F
rente
ao
lexicógrafo,
professor, tradutor, crítico e
organizador de antologias, o
contista Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira (1910-1989) ocupa posição
naturalmente secundária. Seu único
livro
de
contos,
Dois
mundos,
publicado em 1942, foi reeditado em
positiva, façamos uma visita, “de
1956,
e
médico”, aos 15 contos reunidos na
aumentada”, não por iniciativa sua,
edição de Dois mundos de 1956.
mas por “culpa” de “meia dúzia de
Pareceu-lhe conveniente eliminar um
amigos”, como fez questão de dizer, e
conto que aparecia na edição de 1942,
novamente editada em 1974, agora
“O escritor Alberto Barros”, por ele
com o título mudado para O chapéu de
mesmo
meu pai, que é o de seu conto mais
piores”, substituindo-o por um conto
conhecido;
novo, “O balão de São Pedro”.
numa
edição
“revista
curiosamente,
numa
“edição revista e reduzida” (grifo
meu).
considerado
“o
pior
dos
A nota dominante na contística
de Aurélio Buarque de Holanda é a
Certamente há muito de autocrítica no
sobriedade.
voluntário recolhimento de Aurélio
predominantemente “de atmosfera”,
Buarque de Holanda. Convivendo com
fundados na evocação de momentos
gerações de notáveis romancistas e
passados na vida do narrador ou de
contistas,
suas
alguém a ele muito próximo, retratos
inúmeras outras funções no campo da
criteriosamente elaborados de figuras
língua e da literatura, talvez se tenha
que não têm maior relevo do ponto de
convencido dessa menoridade literária.
vista da ação. A rigor, não há lances de
Daí ser inevitável perguntar se o
impacto, nem finais surpreendentes,
contista Aurélio Buarque de Holanda
daqueles
não
crítica
expectativa do leitor. É bem verdade
brasileira. Em favor de uma resposta
que em dois desses contos há um
e
merece
ocupado
atenção
com
da
Seus
capazes
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
contos
de
sacudir
Página 64
são
a
assassinato. Em “Filho e pai”, o crime
que priva da amizade do protagonista,
já ocorrera quando a ação começa: o
é
narrador chega a um povoado na
“revolucionárias”
companhia de um jovem advogado
Descreve, por exemplo, seu processo
contratado para defender, no júri, um
de escrita, que envolve consultas
coronel
de
frequentes aos bons dicionários: para
homicídio. Tudo está preparado, de
“uma expressão menos velada, mais
forma
o
crua, Morais é excelente” (p. 82); já
coronel, que oficialmente está preso,
“Aulete, mais pudico, é ótimo para os
mas que, de fato, goza de completa
casos de regência” (p. 82-83). Esse Dr.
liberdade.
é
Amâncio é apenas um inofensivo
cercado de muitas atenções, não tanto
escritor de província, mas de pretende
porque
as
ser um revolucionário e pensa fazer de
esperanças de absolvição do coronel,
sua literatura uma “picareta” com que
afinal de contas todos sabem que o
abaterá as instituições. Ocorre, porém,
julgamento é uma farsa, mas porque
que os pruridos estilísticos do Dr.
ele é também emissário político do
Amâncio o levam a exagerar na
governo. Está ali para acertar a eleição
sutileza da crítica às instituições: “Não
de um irmão do coronel para a
é certo criticar maus regimes sem dar
prefeitura da cidade. Como era de
bons exemplos.” (p. 83). Por isso nota,
esperar, o coronel é absolvido. O conto
com
está, portanto, impregnado da intenção
seguinte à publicação de um artigo
de crítica social, mas sem alarde, como
incendiário, que o texto não produzira
que a dizer que a situação fala por si,
o efeito esperado. Pelo contrário, o
sem
o
autor recebe cumprimentos efusivos
primarismo dos costumes. O segundo
até de um policial, que o acha um
plano em que se coloca o narrador,
“homem
apenas companheiro de viagem do
regime”, exatamente o oposto da
advogado, aponta para essa mediania
imagem que o Dr. Amâncio pretendia
de tom.
deixar de si mesmo.
do
lugar,
acintosa,
O
nele
acusado
para
jovem
se
necessidade
absolver
advogado
depositem
de
verberar
Não falta humor aos contos de
Dois
mundos.
Num
deles,
“Dr.
Amâncio, revolucionário”, o narrador,
irônico
quanto
surpresa,
às
do
na
equilibrado,
pretensões
protagonista.
segunda-feira
amigo
do
Em “João das Neves e o
condutor”, o humor se reveste de
melancolia,
na
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
constatação
Página 65
da
dualidade de tratamento que um
João das Neves aproxima-o de várias
homem merece conforme pareça ter
outras personagens aurelianas, homens
esta ou aquela condição social. O
deserdados da sorte, que não chegam
protagonista, João das Neves, é um
exatamente ao fundo do poço, mas
homem
trabalhador,
à
pouco se elevam acima desse limite. O
família,
numerosa,
enfrenta
exemplo mais expressivo está no conto
dedicado
e
dificuldades financeiras, precisando
“Molambo”.
fazer trabalhos extras para equilibrar o
homem de apenas 25 anos, solteiro,
orçamento
desses
luta contra o vício da bebida. Quer ser
empreendimentos é um café, que ele
forte, esquecer a amada, Mariana, e
abre, no Méier, por conta de um
está ameaçado de ser despedido do
empréstimo. Levado pela necessidade
emprego. Promete a si mesmo parar de
de gerir de perto o negócio, volta
beber. Na noite em que recebe a última
sempre para casa tarde da noite, já de
advertência do patrão, volta mais cedo
madrugada. O condutor do bonde,
para casa, mas os versos de um samba
doméstico.
da
loja,
com
protagonista,
um
“ar
– “por que bebes tanto assim, rapaz...”,
indisfarçável de dono, apesar de seu
“Se é por causa de mulher, é bom
feitio avesso a ostentações” (p. 108),
parar/ porque nenhuma delas sabe
trata-o, a princípio, com deferência,
amar”, parecem persegui-lo, e ele sai à
chamando-o de “doutor” e acordando-
rua. Após uma luta interior contra a
o quando o bonde chega ao ponto final.
tentação
Por honestidade, João das Neves diz-
embebedando outra vez. O narrador
lhe que não é “doutor” coisa nenhuma,
acompanha a progressiva perda da
é apenas um homem pobre. É o que
razão por parte dele até o desfecho,
basta para que o condutor, agora
quando o protagonista, transtornado,
sabedor da verdadeira condição do
joga o copo de bebida contra o que
passageiro noturno, deixe de lado as
supõe seja uma “imensa boca universal
gentilezas e o acorde com maus
que se escancarava diante de seus
modos: “ - ... Lugar de dormir é em
olhos desvairados.” (p. 76). Durante o
casa.” (p. 110). A situação, como se
relato, parece inevitável a queda do
pode ver, é de gosto acentuadamente
protagonista, o que se confirma, mas o
machadiano.
conto
vendo-o
sair
Um
O
Essa condição desfavorável de
do
não
álcool,
desce
acaba
a
se
abismos
dosteivskianos, como a condição de
“molambo” do protagonista dá a
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 66
entender.
polícia, foge, o que parece confirmar
Outro pobre diabo da galeria de
personagens aurelianas é Zé Bala, do
conto do mesmo nome. Zé Bala fora
incumbido de levar o cavalo do patrão
para dar banho no rio (coisa, aliás, que
ele não fazia a si mesmo há dias...).
Por pura preguiça, não cumpre a
ordem e simplesmente volta para a
fazenda.
Na
incapaz
de
presença
mentir,
do
patrão,
confessa
seu
deslize. Zé Bala é aquele tipo de quem
todos zombam e que apanha da
mulher, Noca. Um dia, fica sabendo,
pela própria mulher, que um sujeito
ter sido ele o assassino de Milonguê. O
tempo passa, Noca chega a sentir certo
orgulho de Zé Bala, dado que ele
matara um homem por ciúme dela, e
chega a proibi-lo de tocar de novo no
assunto. Zé Bala finalmente deixa de
beber e é beneficiado pelo mal
entendido: embora não saiba mentir,
não volta a confessar o crime. Nada
mais acontece nesse conto que guarda
certo tempero rosiano e ao qual não
falta,
também,
algum
condimento
machadiano, na captação da dualidade
do feito e da fama.
passara em frente à sua casa e a
Em alguns contos, a tônica é,
desrespeitara. Toma-se de alguma
sem dúvida, a memória afetiva, que
coragem, muito por conta da bebida,
não desfigura o passado com uma
aliás, e acaba por matar o tal homem,
camada excessivamente edulcorada,
um negro chamado Milonguê. Volta
mas que o recobre de uma pátina de
pra casa, de madrugada, não consegue
bonomia. Em “A primeira confissão”,
dormir e resolve entregar-se à polícia.
o narrador, adulto, evoca uma cena de
Contudo, pela manhã o corpo é achado
infância, a da sua primeira confissão,
e a culpa é jogada num valentão do
na qual assume o pecado de haver
lugar, chamado Gigante, que dias antes
furtado uma banana, arrancada do
jurara Milonguê de morte. Assim, a
cacho de uma bananeira na vizinhança
confissão de Zé Bala é recebida com
de sua casa. As reflexões do narrador
escárnio por todos, inclusive pelo
adulto contrapõem-se à inocência do
delegado. Noca, que fora até a
menino de 8 anos, que nem mesmo
delegacia, ao ouvir a reprimenda do
sabe direito o que é pecado. O
delegado em Zé Bala, aproveita-se da
desfecho do conto mostra que a
situação e leva o marido embora.
confissão, sem que ele o percebesse,
Gigante, sabendo das suspeitas da
fora feita em voz alta, daí as risadas
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 67
dos outros meninos, que certamente
conto, como no outro, a matriz terá
teriam em seu passivo pecado bem
sido,
mais escabrosos. Se o “pecado” já
lembrança de infância do próprio
carecia de relevância, a interrogação
Aurélio,
que o menino faz à professora, à vista
destacadamente
da caixa de esmolas para as almas: “-
como o prova o habilidoso emprego do
Fessora, para que é que a alma quer
discurso indireto livre para dar conta, a
dinheiro, hem?” fecha o conto pondo
um só tempo, tanto de recuperação
em relevo a candura do protagonista.
memorialística do episódio quanto da
Ao mesmo grupo pertence o
conto “Manga de defunto”, relato bem
humorado da excursão que um grupo
muito
mas
provavelmente,
o
uma
tratamento
literário,
é
ficcional,
integridade das emoções vividas pelos
meninos, em seu misto de destemor
curioso e fragilidade infantil.
de meninos faz às proximidades do
Também marcado pelo tom
cemitério, onde havia uma mangueira
rememorativo é, sem dúvida, o conto
cujos frutos os habitantes da vila não
“O chapéu de meu pai”. O mais
ousavam colher, já que se tratava de
conhecido conto do autor centra-se nas
“manga de defunto”. Os meninos saem
reflexões do narrador, que contempla,
de casa muito cedo, mas em certo
durante o velório, o chapéu do pai,
momento, depois de vencerem o medo
como que abandonado pelo dono no
inicial, um rumor os faz fugir em
porta-chapéus,
disparada, perdida toda a coragem que
chapéus, dos vivos. A atenção do
até então os movera. Um dos meninos,
narrador fixa-se naturalmente nele,
chegando à casa, arrependido da
metonímia da presença querida, agora
aventura, toma a decisão de ir até a
ausência sofrida: “um pedaço daquele
casa do líder do grupo, o Chico, que
que se encontra ali perto estendido,
todos haviam deixado para trás, e
morto”. “alguma coisa dele que a
contar a verdade ao pai do amigo, mas
morte não destruiu” (p. 43). A partir da
é
recepção
visão do chapéu, detona-se o processo
galhofeira do pai de Chico, que já
evocativo da figura paterna, não
sabia de tudo. Assim o dado de
apenas em relação às lembranças
possível
e
familiares de que faz parte o narrador,
consequente terror é diluído numa
mas com os tempos que antecedem seu
engraçada excursão de pivetes. Neste
próprio nascimento. O pai ressurge,
surpreendido
pela
sobrenaturalidade
junto
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
aos
outros
Página 68
então,
ainda
solteiro,
Manuel está à morte, no leito de um
participante privilegiado dos pastoris
hospital, acompanhado pelo filho José,
do seu tempo, por merecer as atenções
pelo médico e, por vezes, por uma
da Contramestra (a futura mãe do
enfermeira, uma religiosa. A captação
narrador?), seu desempeno durante o
dos momentos finais do enfermo é
namoro, o pedido de casamento. Por
feita
fim, a volta ao presente da enunciação,
entremeando-se a representação do
ao velório e, com emoção, ao chapéu
momento presente, o da agonia de
do pai, “abandonado, triste, esquecido
Manuel, e suas lembranças. A visão de
–
acenando,
um balão, pela janela do quarto, detona
chamando por alguém...” (p. 57)
esse processo evocativo, mas a morte
Poucas
se aproxima e se intromete mesmo nos
como
se
vezes
temperar
tão
jovem,
estivesse
um
autor
logrou
brandamente
com
extrema
habilidade,
o
trechos que representam o pensamento
sentimento filial de perda, e a adoção
da personagem, até com destaque
do ponto-de-vista interno não inibe o
gráfico, especialmente a escuridão
mergulho num passado que o próprio
crescente. Finalmente, Manuel morre:
narrador não viveu, como que a
“(uma coisa vai fugindo... A voz é um
prenunciar a memorialística de Pedro
fiozinho
Nava.
escuridão! Meus filhi...” (p. 234)
de
nada.
–
“Ah!
Que
A figura paterna é também
Outro aspecto notável da fatura
objeto de saudosa evocação no conto
literária dos contos de Aurélio Buarque
“Dois mundos”, centrado na figura do
de Holanda é o trato da linguagem, não
pai do narrador, que tinha por hábito
fora ele, é claro, profundo estudioso e
fazer a leitura de romances para um
conhecedor dos meandros todos da
casal de amigos. A mulher é reticente à
língua portuguesa. Releva notar, antes
emoção, contrariamente ao pai do
de qualquer coisa, a rigorosa fidelidade
narrador, que chorava por tudo. O
na captação dos registros linguísticos
menino acompanhava o pai nessas
absolutamente
visitas, comportava-se de acordo com
condição das personagens, qualquer
as regras. É bem um conto de
que seja a faixa de idade, qualquer que
atmosfera, pois, a rigor, nada acontece.
seja a condição social. Sem que isso
Também a morte é presença
relevante em “O balão de São Pedro”.
consentâneos
à
naturalmente constitua o interesse
maior do elenco de contos reunidos em
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 69
Dois
mundos,
abundam
os
ditos
portuguesa por parte do autor quanto a
populares, as expressões coloquiais, a
ausência de preconceitos quanto a
representação das nuanças de prosódia,
palavras e expressões coloquiais.
além dos trechos de canções populares,
toadas folclóricas, gírias, empréstimos
linguísticos etc., tudo situado no
âmbito privilegiado de diálogos vivos
e detonadores da ação. Esse elenco
numeroso de registros linguísticos
atesta
tanto
a
variedade
do
conhecimento dos usos da língua
Talvez valha essa pequena
amostra como testemunho de que o
contista Aurélio Buarque de Holanda
parece ter sido vitimado pela grandeza
dos outros Aurélios, mas o leitor que
se dedicar à leitura dos contos não
sairá decepcionado com este “outro”
Aurélio Buarque de Holanda.
Referência bibliográfica:
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Dois mundos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1942.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 70
ARTIGOS
KIERKEGAARD DOS TRÓPICOS
Sylvio Back
A
lgo que pareceria impensável
deixou
soberbos
rastros
históricos e não só acabou
acontecendo, como está registrado em
dezenas de livros e anotações ainda por
serem publicadas. Da gélida e sombria
Copenhagen à friorenta e luminosa
Curitiba (PR), Soren Kierkegaard
(1813-1855), praticamente um século
depois, teve seu tormentoso périplo
existencial introjetado e reimaginado
por um brasileiro nos anos 1950/1980,
fato único na América Latina.
Na hora em que se assinalam os 200
anos de nascimento (ocorrido dia 05 de
maio último) do genial escritor,
teólogo e filósofo dinamarquês, mote
de importante seminário sobre sua vida
e obra, recém-concluído na Academia
Brasileira de Letras (RJ), coordenado
pelo poeta Marco Lucchesi, com
brilhantes palestras dos acadêmicos
Eduardo Portella e Sérgio Paulo
Rouanet, e dos professores Emmanuel
Carneiro Leão e Vamireh Chacon, o
nome de Ernani Reichmann (19201984), hoje desconhecido, mas a
propósito dessa “data redonda” vem a
lume com sua multifacetada obra
(quase cinquenta títulos), tanto de
ensaios, memórias e diários, quanto
ficcional.
Obra pioneira
Natural de Erechim (RS),
escritor,
filósofo,
professor
universitário e homem público no
Paraná (secretário de Estado do
governo Ney Braga (1961-1965),
Reichmann é o primeiro biógrafo de
Kierkegaard no Brasil e do continente
americano, como também aquele que,
de forma inédita e inaudita, arriscou-se
a reviver seus “temor e tremor”
debaixo da linha do Equador,
inclusive, aprendendo a língua do
mestre para lê-lo e reinterpretá-lo no
original.
Publicada em 1972 pela
Edições Jr., de Curitiba, com sua
alentada biografia (403 págs.) “Soren
Kierkegaard” (cuja pronúncia castiça
do nome Kierkegórd foi sublinhada
pelo crítico e ensaísta, Eduardo
Portella), Ernani Reichmann entrou
para a história da cultura brasileira e
mundial.
Ainda
que
muitos
kierkegaardianos, desde então, venham
bebendo em seus textos e traduções,
registra-se um triste hiato em
reconhecer-lhe a estatura intelectual e
o investimento sensorial nas volições,
medos e sonhos de seu mestre.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 71
kierkegaardianos,
muitos
deles
publicados no suplemento literário
“letras e/& artes”, dirigido por mim, e
recém-replicado em edição fac-similar
coincidindo com os cinquenta anos de
sua edição (2011).
Mesmo que tanto criador como
suas
criaturas
permaneçam
na
obscuridade e à luz somente para
eméritos kierkegaardianos como o
Álvaro Valls, um dos fundadores da
Sociedade Kierkegaard do Brasil (que
Reichmann
alcunhava
de
“kiekegaardiano de escola”, já que
ninguém experimentara como ele
“transfigurar-se” na angústia de
Kierkegaard); Jorge Miranda de
Almeida, Márcio Gimenes de Paula,
entre outros, são do crítico Alceu
Amoroso Lima (1893-1983), então
membro da Academia Brasileira de
Letras, os primeiros escritos sobre
Kierkegaard no Brasil. Seu livro “O
existencialismo e outros mitos do
nosso tempo” (1951), pelo que me
lembro das conversas com Ernani
Reichmann, havia um grande respeito
pelo mestre católico, mas a diferença
entre
ambos
devia-se
a
um
agnosticismo militante do filósofo
curitibano, fruto de seu, digamos, viés
contestatória diante da vida em
sociedade.
“letras e/& artes”
Amigo cotidiano de Ernani Reichmann
naquelas quadras, à época, jornalista
iniciante, almejando ser escritor e
cineasta, tive a alegria e a recompensa
poética de conviver com ele e seus
estimulantes ensaios de fundo e forma
Os que o frequentavam, éramos todos
jovens,
belos
e
irreverentes.
Irreverentes, sim, mas nem tanto, visto
de hoje, há que reconhecer, uma
rebeldia, digamos, às avessas, já que
nos alinhávamos a Jean-Paul Sartre,
neomilitante do comunismo, tentando
conciliar o irreconciliável, liberdade e
socialismo real. Coube a Ernani
Reichmann,
literalmente,
nosso
“professor”
de
Kierkegaard
e
existencialismo francês, também,
apaixonado por Albert Camus (do
qual, aliás, com sua morte em 1960, o
suplemento publicou o discurso de
posse ao receber o Prêmio Nobel de
Literatura em 1957), colocar-se como
um pertinente contraponto à nossa
heroica
radicalidade,
que
não
enxergava o pretume assassino à raiz
de toda utopia.
Eu, pessoalmente, era ainda o
mais inconteste na defesa de Sartre,
cujos romances me conflagraram
durante anos (através deles, inclusive,
aperfeiçoei meu francês...), pois, como
filho de pai judeu húngaro, sua diatribe
contra a criminosa invasão de
Budapeste pelos soviéticos em 1956
me comoveu durante anos. Até quando
Sartre, nos anos 1970, distribuindo
jornais maoistas pelas ruas de Paris, foi
pejorativamente alcunhado de cochon
maoïste... Mesmo assim, com o tempo
demolindo certezas pétreas, meu amor
por este herdeiro ateu de Kierkegaard
jamais arrefeceu!
O Outro
O poeta e crítico paranaense,
Sérgio Rubens Sossélla (1942-2003),
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 72
ele próprio um “reichmanniano” de
carteirinha, como eu, mais pela
amizade e respeito pela originalidade
de Ernani Reichmann do que
propriamente pelo alinhamento à sua
ciclópica e perturbadora estante,
escreve que o autor “... envolve o leitor
na mesma sedução de buscar o Outro
de si mesmo”. Era um autor, arremata
Sossélla, lastreado em Fernando
Pessoa, que não finge a si mesmo.
Na verdade, bem no diapasão
metafísico de Soeren Kierkegaard é
quando Reichmann tenta “incorporar”
feito médium, eu diria, material e
espiritualmente, a Angst (angústia) do
poeta nórdico, aliás, palavra de sentido
multinacional,
segundo
Vamireh
Chacon em sua palestra, pois tanto
vale em alemão quanto na Dinamarca,
Noruega e Holanda. O gesto lúdico e
performático de Reichmann é uma
façanha
irrepetível,
jamais
empreendida por ninguém, nem antes
nem depois!
Lemos numa autoentrevista,
Reichmann tinha consciência que seria
reconhecido em algum futuro: “Minha
experiência não poderá ser ignorada”.
Sabia que o leitor do seu tempo não o
lia, não tinha editor, não tinha livreiro,
era um autor de seis mil páginas
praticamente inédito. Quem sabe os
kierkegaardianos
brasileiros
programem para em 2014 um revival
editorial e biográfico de Reichmann na
comemoração dos seus trinta anos de
morte.
Como homem cordial e
conversador, alegre e femeeiro (a ver e
haver com o clássico “Diário de um
sedutor”, do seu mestre?), era também
um renitente solitário. Com as mãos
cruzadas atrás, paletó tipo jaquetão, e
arqueado para frente, andava a passos
curtos pelas ruas de Curitiba como um
monge, o chapéu frouxo sobre a
cabeça, remoendo um ralo bigode que
fazia questão de cultivar aparado.
kierkegaardianas
O espectro da paixão de
Reichmann pelo chamado “pai do
existencialismo”, além do volume
biográfico fundador, se espelha (não
haverá termo melhor que “espelho”
quando se trata de Kierkegaard!) por
dezenas de cadernos, mas é nos três
volumes de “Intermezzo LíricoFilosófico”, anos 1960, que ele resume
toda “kierkegaardiana” de sua lavra e
fruto de seu mergulho no universo
trágico do autor. Infelizmente, essa
ciclópica
estante
de
ensaios,
memorialística e romances está fora de
mercado, sendo apenas encontrável em
sebos, físicos e virtuais, o que não
deixa de ser, sim, um atestado de
permanência, segundo o poeta,
acadêmico e bibliófilo, Antonio Carlos
Secchin e, de forma randômica,
disponível
em
bibliotecas
de
universidades, especialmente, do sul
do país.
À época jornalista iniciante,
almejando ser escritor e cineasta, e
amigo cotidiano de Reichmann, tive a
alegria e a recompensa poética de
conviver com ele e seus estimulantes
ensaios
de
fundo
e
forma
kierkegaardianos,
muitos
deles
publicados no suplemento literário
“letras e/& artes”, dirigido por mim, e
replicado em edição fac-similar
coincidindo com os cinquenta anos de
sua edição (2011).
Estirpe moral
Ernani Reichmann era da
mesma estirpe moral de Kierkegaard,
avesso ao “espírito de horda”,
equidistante da igreja e da política
(ainda que na juventude simpatizante
da Ação Integralista Brasileira), e
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 73
como ele, afeito a pseudônimos e
codinomes, antes que aos heterônimos
de Fernando Pessoa, como adverte o
filósofo Sérgio Paulo Rouanet, para
dizer-se múltiplo, controverso, certo
“Outro” fake: um homem em
permanente estado de graça &
desgraça, até nas suas relações afetivas
e amorosas, muitas delas marcantes
que lhe matizam a própria escrita, toda
ela de corte confessional e dialógica
como se jamais fosse dada à leitura e à
fruição de terceiros.
Há quem diga que Ernani
Reichmann é hoje um autor esquecido.
Mas, como não lembrar do seu seminal
livro, “O trágico em Octávio Faria”, de
1978, onde se detém na expiação da
culpa de inspiração “kiergaardiana” em
“A tragédia burguesa”? Ou, de “A
poética de Carlos Nejar” (1973),
coassinado pelo crítico paranaense,
Temístocles Linhares (1905-1993),
uma rigorosa exegese do fabro do
poeta gaúcho, que ressume laivos da
angústia do filósofo dinamarquês?
Seria, então, como dizer que
Kierkegaard o é também, quando é
cada vez mais estudado e reverenciado
na academia e fora dela, tal qual sua
obra traduzida, lida e relida (como
neste potente ciclo de conferências
luminares da Academia Brasileira de
Letras), sempre mais intensa e
extensivamente.
E mais, raro estudo sobre
Kierkegaard no Brasil e na América
Latina que não o cite e se derrame em
loas pelo seu pioneirismo, ousadia e
contundência literária e filosófica,
materializada em dezenas de livros que
vieram a lume por conta própria, ou
pela editora da Universidade Federal
do Paraná, onde dava aula de
economia política no curso de Ciências
Econômicas (e fui seu aluno...).
Febre d’alma
A própria Dinamarca ficou
pasma ao se dar conta que nos
longínquos trópicos alguém tentava
reproduzir a nebulosa febre d’alma de
Kierkegaard, a sua incontornável
angústia do existir, o irredutível
conflito entre ética e estética, ceticismo
e fé, racionalidade e transcendência, o
indivíduo e a impessoalidade do
coletivo. Como numa gangorra,
Reichmann também se comprazia entre
pessimismo e melancolia corrosivos,
mas que acabaram por tornar longevos
sua vida-e-obra, inesgotável manancial
de atualizadas indagações.
É,
portanto,
através
da
literatura e do comprometimento com
a alta subjetividade de Kierkegaard,
seu igual-desigual europeu ( “... ousar
é
perder
o
equilíbrio
momentaneamente, não ousar é perderse”), que o Brasil urge reverenciar o
gaúcho-paranaense Ernani Reichmann,
outorgando sobrevida ao seu engenho
e à consciência mítica e crítica
protagonizada por ele.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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EU NÃO EXISTO SEM VOCÊ
(O primeiro centenário de Vinícius de Moraes)
Fabio de Sousa Coutinho
U
ma das grandes injustiças que se cometem contra Vinícius de Moraes, talvez a
maior, é referir-se a ele como "poetinha". Por mais que se lhe pretenda
atribuir conotação afetuosa, o tratamento fica muito aquém de refletir a
dimensão intelectual, humana e cultural do formidável escritor carioca.
Nascido na Rua Lopes Quintas nº
114 (casa já demolida), na então
Freguesia da Gávea, em meio a forte
temporal, na madrugada de 19 de
outubro de 1913, Vinícius teve seus
contatos iniciais com a poesia e com
a música no seio da própria família.
Seu pai, Clodoaldo, era poeta e sua
mãe,
Lydia,
tocava
piano,
circunstâncias que encontraram, no
primogênito dos Moraes, território fértil e inesgotável potencial.
Aluno dos jesuítas, no Colégio Santo Inácio, Vinícius de Moraes ali
desenvolveu sólida amizade com seus colegas Paulo e Haroldo Tapajós. Com eles,
ainda de calças curtas, compôs suas primeiras canções ("Loura ou morena" e "Canção
da noite"), executadas em festas e saraus familiares e de vizinhança.
Em 1930, ingressou na célebre Faculdade de Direito da Rua do Catete, onde se
associou ao CAJU, Centro Acadêmico de Estudos Jurídicos e Sociais, que reunia uma
verdadeira plêiade de jovens futuros bacharéis, com destaque, além do próprio
Vinícius, para San Tiago Dantas, Octávio de Faria, Thiers Martins Moreira e Plínio
Doyle. Todos, sem exceção, viriam a ser, tempos depois, figuras de projeção
nacional, nas respectivas esferas de atuação.
Data do ano da formatura de Vinícius, 1933, a edição de seu primeiro livro de
poesia, O caminho para a distância. A ele sucederam o premiado Forma e exegese
(1935) e Ariana, a mulher (1936), que também estampavam a influência do
pensamento transcendental, místico e cristão na formação estética do poeta. Ao
organizar sua Antologia Poética, em 1954, Vinícius de Moraes nela incluiu
apenas um poema de O caminho para a distância, o belíssimo "A uma mulher":
(...)
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não perder o único instante
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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Em que foste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente foste a serenidade."
É de 1943, quando Vinícius completou 30 anos de idade, o livro Cinco
elegias, amplamente considerado uma das mais relevantes obras da moderna
poesia brasileira. Nessa época, ingressou, por concurso, na carreira
diplomática, passando a viver longos períodos no exterior, em missões permanentes
(Los Angeles, Paris, Montevidéu).
Em paralelo, intensificou a produção poética e tornou-se, sobretudo, um
extraordinário letrista, compositor e autor teatral. Sua consagração nesse segmento
das artes veio com a peça musical Orfeu da Conceição, encenada em 1956, no Teatro
Municipal do Rio de Janeiro, para uma atenta, entusiasmada e sempre crescente
plateia.
Com a implantação da ditadura militar que se seguiu ao golpe de Estado de 1º
de abril de 1964, Vinícius de Moraes sofreu intensa perseguição política em sua
repartição funcional, culminando com truculenta expulsão do serviço público,
juntamente com outros colegas diplomatas, após a decretação do famigerado AI-5, de
13 de dezembro de 1968.
Dedicou-se, a partir de então, em regime integral, à vida artística, criando
algumas das mais lindas pérolas da música brasileira, a exemplo da que serve de título
deste artigo. Teve vários parceiros de enorme peso, sendo o principal deles o genial
Tom Jobim, autor de um depoimento sobre Vinícius que encerra síntese lapidar,
datado de abril de 1959 e publicado na contracapa do disco Por toda minha vida, de
Lenita Bruno:
"Vinícius de Moraes é um grande poeta. No entanto, isto não é
condição para se fazer uma bela letra. Uma palavra, além do sentido verbal,
tem uma sonoridade e um ritmo. Só um indivíduo como Vinícius, que conhece
a música da palavra, que poderia ter sido um músico profissional, poderia ter
feito as letras que fez.
Vinícius é o poeta que sabe comungar com um crioulo de morro e bater um
samba com a faca na garrafa. Educado em Oxford, diplomata em Paris, triste em
Strasburgo, escrevendo "Pátria Minha" em Los Angeles, falando muitas línguas e sem
deixar que se perceba isto, é sempre o homem que vê o lado humano das coisas.
A versatilidade do meu amigo é espantosa: - tanto compõe um samba de
morro ("Eu e o meu amor") como uma valsa romântica e sinfônica ("Eurídice") ou
ainda uma "Serenata do Adeus"; tanto escreve um soneto ("de Fidelidade" ou "de
Separação") como uma "História Passional, Hollywood, California" -; faz cinema, faz
teatro e escreve crônicas deliciosas. Tem o sentimento nato da forma que transcende o
que possa ser ou foi aprendido.
Estas são umas poucas facetas do poliedro cujo número de faces tende para o
infinito e que se chama Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes."
Na passagem do primeiro centenário de seu luminoso nascimento, Vinícius de
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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Moraes é sobejamente merecedor da admiração generalizada de seus patrícios e de
milhões de estrangeiros, de múltiplas gerações. Sua obra se incorporou
definitivamente à nossa fisionomia cultural. Vinícius não passará. Será, daqui a
séculos, uma expressão do Brasil.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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JÓ
Raquel Naveira
Q
uando falamos sobre Jó, lembramos de frases como “a paciência de um Jó”,
“pobre feito Jó”, “a perseverança de um Jó”. Jó é um personagem virtuoso e
com um caráter bastante complexo.
Satanás, o Adversário, recebeu poderes para arruinar Jó. Deus autorizou-o a
afligir Jó com sofrimentos e calamidades para testá-lo em sua sinceridade e piedade.
Provando sua retidão, Jó finalmente é recompensado com redobrada prosperidade.
Com restauração de sua posição material e social. Ao logo de sua provação, Jó não
rejeitou a Deus, ao contrário, agarrou-se a Ele com desespero, com intimidade
renovada.
A história de Jó mostra a insignificância do homem diante de Deus, a
fugacidade e a ignorância da vida humana, o propósito disciplinador do infortúnio, o
louvor a Deus, a felicidade do penitente.
Como são fortes as palavras de Jó: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu
voltarei para lá. O Senhor deu, o Senhor o tirou. Bendito seja o nome do Senhor.”
Deus inverte constantemente as fortunas dos homens e a verdadeira sabedoria é
muitas vezes inacessível.
Jó, que por um momento desejou não ter nascido, que expressou seu desejo de
morte com paixão descontrolada, tornou-se porta-voz dos desgraçados e miseráveis da
terra.
O escritor gaúcho, Carlos Nejar, radicado agora na sua “Casa do Vento”, na
Urca, Rio, membro da Academia Brasileira de Letras escreveu um longo poema
intitulado “O Derradeiro Jó”, um monólogo em que o poeta se põe na pele da
personagem dizendo: “Sou Jó/o que não sabe,/o que não viu/o nome/e é ninguém.”
Nejar lembra que, embora a mulher de Jó, em uma áspera e irônica discussão,
tenha sugerido que ele amaldiçoasse a Deus e morresse de uma vez, Jó resistiu e não
negou a seu Deus: “E se quiseram que negasse/ Deus, não/ O neguei./ Pois o consigo
ter debaixo dos escombros/ dos cacos surdos/ que da pele caem.”
O poeta continua seu canto doloroso, agônico, repetindo: “Sou Jó/ Eu, Jó/ Já
sem amarras/ de algum possível vento”; “E eu, Jó,/ Sento-me à beira/ para colher
prosódias e alfazemas”; “Eu, Jó, tiro o chapéu/ ao velho homem/ procurando a
infância”. Lirismo puro, entre o sagrado e o profano. O poeta conclui: “Sou ninguém
e Jó”.
Nejar também se refere aos amigos de Jó. Amigos acusadores, que zombaram
dele, que o culparam, que alegaram que o seu sofrimento deveria ter sido resultados
de algum pecado grave contra Deus e que Jó precisava arrepender-se de seus atos.
Mas Jó tinha consciência de sua retidão e apanha os amigos de surpresa com uma
rebelião apaixonada contra o julgamento de Deus: “Zombas tu que sabes/ quanto
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doem palavras”.
Jó torna-se a personificação da dor: “A dor tem rosto de homem./ A dor é Jó”.
Nascidos para a miséria, quando sofremos, somos Jó. Mas a dor não é maior que a
esperança e que o sonho: “Jó, o que recebeu/ em dobro de bens e soldo. O que
não/deixou que a dor/ fosse maior que o sonho,/Com a fé acima/das estrelas/e sobre o
firmamento./ E cuja sorte/ mudada foi,/quando orava/por seu povo.”
Também eu, num momento de dor extrema, escrevi este desabafo com a voz
de um Jó:
Por que ele se tornou meu adversário,
Meu inimigo íntimo,
Ele, o mais belo dos arcanjos,
O mais privilegiado de meus frutos,
O mais chegado a meu seio?
Por que discordou,
Não seguiu o caminho indicado
E inventou artes de guerra contra mim?
Foi fogo que caiu do céu
E consumiu minhas ovelhas?
Furacão do deserto
Que arrastou minha casa?
Nuvem,
Eclipse,
Redemoinho?
Não vejo mais as estrelas da madrugada,
Minha vida é um barco de junco
No mar salgado.
Alimento-me de suspiros,
Bebo a água de meus gemidos,
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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Mostra-me, Senhor, em que falhei,
Sou escravo exausto
Suplicando por sombra.
Ele cravou setas de veneno em meu espírito,
Dá-me paciência para suportar
Tamanha agitação,
Tamanha angústia:
Ele se tornou meu adversário,
Meu inimigo íntimo,
Justo ele.
Quando nos resignamos e percebemos que somos poeira e cinza diante da
grandeza cósmica, Deus pode sorrir e reverter a nossa sorte
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A NÃO DISCRIMINAÇÃO
Ives Gandra
D
esde
os
bancos
acadêmicos luto
pelo
princípio da igualdade, que
implica a eliminação de toda a espécie
de discriminações, de ordem social,
religiosa ou de qualquer outra
natureza.
O dia 13 de Maio deveria ser
considerado o dia do princípio da
igualdade, pois todos nós nascemos
iguais, independentemente da etnia a
que pertencemos.
É
o
que
se
encontra consagrado na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, cujo
artigo VII tem a seguinte dicção:
“Todos são iguais perante a lei e tem
direito, sem qualquer distinção, a igual
proteção da lei. Todos tem direito a
igual proteção contra qualquer
discriminação que viole a presente
Declaração
e
contra
qualquer
incitamento a tal discriminação”.
Essa
norma
veicula,
nitidamente, princípio de direito
natural, como acentuou René Cassin,
um dos inspiradores do referido texto.
Consagra, pois, princípio daqueles que
não cabe ao Estado criar, mas apenas
reconhecer. De rigor, há princípios que
são inerentes ao ser humano. Não
decorrem apenas de sua evolução
histórico-axiológica, mas sim da
própria natureza humana. E , por esta
razão, não pode o Estado violá-los.
À evidência, a “declaração
universal dos direitos humanos” não
instituiu nenhum direito. Apenas
reconheceu todos aqueles que, há
milênios,
grandes
filósofos
e
jurisconsultos
(Sócrates,
Platão,
Aristóteles,
Ulpiano,
Gaio)
já
perfilavam como sendo a essência do
direito natural , e que os grandes
pensadores consideravam a espinha
dorsal de qualquer regime jurídico
justo (“ut eleganter Celsus definit: just
est ars boni et aequi”).
Ora, na essência dos direitos
fundamentais, está o direito à
igualdade, que os fundadores da pátria
americana
afirmaram,
em
sua
declaração de independência (“We
hold these truth to be self evident that
all men are created equal”), em 1776.
Os franceses, fizeram o mesmo, no art.
1º de sua declaração de direitos do
homem de 1789 (“Les hommes
naissent et desseurent libres et egaux
en droits”).
No Brasil, a Constituição de
1824, no art. 179, inciso 19, aboliu
qualquer forma de tratamento ou penas
cruéis; a Constituição de 1891, no art.
72, § 2º, declarava que “todos são
iguais perante a lei”; a de 1934, no
artigo 113, inciso I, reproduziu
idêntico princípio, o mesmo ocorrendo
com os artigos 122, §1º, da Carta
Magna de 1937, 141, da Lei Suprema
de 1946, 150, § 1º, da Lei Maior de
1967 e 153, § 1º, da E.C. n. 1/1969.
Por fim, a Constituição de
1988 , em
diversos
dispositivos , assegura a igualdade,
lembrando que o art. 5º reproduz o
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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princípio três vezes, ou seja, duas no
“caput” e uma no inciso I, ambos
assim redigidos: “Art. 5º Todos são
iguais perante a lei,” sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: I - homens e mulheres são
iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta Constituição; ” (grifos
meus), assim como no inciso IV do
artigo 3º: “Art. 3º Constituem objetivos
fundamentais da República Federativa
do Brasil: ...IV - promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação”.
Como se percebe, o princípio
de direito material é hoje reconhecido
universalmente, sempre temperado
pelo princípio da desigualdade entre os
desiguais, para que se obtenha a
verdadeira igualdade. Cálicles, no
diálogo Górgias de Platão, não
o reconhecia . Para ele, a lei, ao dar
força ao mais fraco, contrariaria o
direito natural pois o forte tinha
direito a sua fortaleza e o fraco a sua
fraqueza.
Sócrates,
entretanto,
rebateu essa
argumentação,
no
referido diálogo, dizendo que a lei, ao
dar força ao mais fraco, fortalece-o
perante o mais forte, sem enfraquecer
o mais forte, suprimindo as
desigualdades
e
gerando
uma
igualdade mais ampla.
O certo é que o princípio,
reconhecido universalmente em 1948,
é inerente ao ser humano e está na
própria essência da aventura do
homem sobre a terra, não admitindo
qualquer espécie de discriminação seja
de que natureza for, em face de raça,
sexo, religião, posição política ou outra
forma de segregação.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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DESTAQUES
STELLA LEONARDOS
Helena Ferreira
T
eresa Cristina (Meireles de Oliveira) e Sílvia (Jacintho) me incumbiram de
falar de uma estrela. (Não, elas não perderam o senso! Talvez imaginassem,
levando em conta uma coincidência etimológica, que eu poderia fazê-lo à
moda de Olavo Bilac, com as devidas e modestas proporções... Mas claro que não.
Sabem, como todo o mundo, que só Bilac tinha essa faculdade de conversar com
estrelas e até ouvi-las, já que seu estelar soneto confere-lhe originalidade e
primazia...)
No entanto, é evidente que ambas se
referiam a uma estrela especial, àquela
de nome comprido, amiga de um
mundão de gente, inclusive de nós aqui
presentes. (Aliás − diga-se de passagem
− que se trata de um astro de muitas
rarezas, porquanto não é visto apenas
em céu noturno. Tampouco precisa da
ajuda de algum aparelho astronômico ou
recurso sideral para fazer-se perceptível,
ou melhor, visível a olho nu. E sequer
exige horário específico para ser
encontrado. Ora, mas se se parafraseasse
o poeta, até que se poderia dizer: −
“Amai para entendê-la!/ Pois só quem
ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e
entender Stella”.
Por conseguinte,
nenhuma adivinhação, o
aludo leva o nome, nada
Stella Leonardos da
Cabassa.
não sendo
astro a que
científico, de
Silva Lima
Eis uma estrela singular: não tem milhões de anos, pois nasceu em 1923, e
completou 90 no passado primeiro dia de agosto. Essa estrela-d´alva, como costumo
chamá-la, há muitas e muitas décadas vem iluminando o caminho de inúmeros poetas,
romancistas, cronistas, ensaístas, teatrólogos e jornalistas iniciantes, ou não, nascidos
em diferentes estados brasileiros.
Quando a citei como astro de muitas rarezas foi porque ela também tem sabido
brilhar em todos os gêneros literários e tornou-se um destaque especial desde a
terceira geração do Modernismo brasileiro à qual pertence. Uma exceção na literatura
do Brasil!
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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Autora multiforme, paladina de um neotrovadorismo incomum e uma
brasilidade nunca vista, sobretudo entre nossas poetas. Sua obra se apoia, digamos,
em vários tripés: amor / paixão / liberdade; perfeccionismo / espontaneidade / lirismo;
singeleza / originalidade / reverência às palavras do povo, ao folclore. A delicadeza,
porém, se insere em todos eles.
Escreve poesia − multiplicando-a igualmente em cancioneiros, romanceiros,
rapsódias, memoriais etc. − romance, teatro, histórias infantis (em prosa e verso,
teatralizadas ou não), além de ser emérita tradutora de espanhol, laureada pela
tradução de O século das luzes (Prêmio Odorico Mendes, da Academia Brasileira de
Letras, 1978), do cubano Alejo Carpentier, e de Três tristes tigres, do também cubano
Guillermo Cabrera Infante (Prêmio Nacional de Tradução do Instituto Nacional do
Livro, 1981) − assim como de francês, inglês, italiano, catalão e provençal.
Vale a pena relembrar seu virtuosismo, como tradutora de catalão,
exemplo, reproduzindo aqui este poema:
“Gen m´en destrenh quan de me tan leu s´oblida » ...
(Guilhen Ramon de Gironella)
O AMOROSO PAJEM
Gentil me atormenta
que facilmente
olvido
meu príncipe.
Em vez de segui-lo
no jogo das armas
alguém me desarma
− o olhar da princesa.
Gentil me atormento
que facilmente
olvido
princípios.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 84
por
Em vez de servir
a dama, na corte,
eu faço-lhe a corte
− será descortês?
Tormento gentil
ser pajem de dama
que só nos reclama
e nunca diz sim.
Gentil me atormenta
que facilmente
se olvida
de mim
Stella licenciou-se em línguas neolatinas pela antiga Faculdade Nacional de
Filosofia, da ex-Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ampliou seu vasto currículo por meio dos cursos de extensão desses idiomas
realizados na Universidade do México, Cidade do México.
Manivelando a máquina do tempo, descobre-se que aos 17 anos, iniciou, com
sucesso, os primeiros passos pela poesia ao publicar Passos de areia (1940). E,
subsequentemente, foi esparramando versos, também com êxito, pelos livros E assim
se formou a nossa raça (1941) e A grande visão (1942).
Não se pode esquecer de que entre 1943 e 1945 participou de um grupo de
teatro amador responsável pela representação de Guizos e clarins, Muiriquitã e Festa
da Vitória, peças encenadas tanto no Theatro Municipal do Rio de Janeiro quanto no
de São Paulo-SP. Sua peça Palmares, de 1945, teve sua primeira encenação, no Rio
de Janeiro, a cargo do Teatro Experimental do Negro. Depois, vieram os romances,
em que o gênero épico aponta e se explicita: Quando os cafezais florescem (1948),
Estátua de sal (1961).
Stella Leonardos é decana do PEN Clube do Brasil; ex-presidente da
Academia Carioca de Letras; sempre Secretária Geral da União Brasileira de
Escritores; membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro do Rio de Janeiro;
da Sociedade Eça de Queiroz; do International Writers and Artists Association e do
Bluffton College de Ohio (EUA); do Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica e de
outras tantas entidades literárias.
Publicou mais de 200 livros, a par de ser detentora de um sem-número de
galardões., tais como:
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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* Prêmio “Olavo Bilac”, concedido pela Academia Brasileira de Letras, em
1957, com Poesia em 3 tempos;
* Prêmio IV Centenário de Fundação da Cidade do Rio de Janeiro, com o
Romanceiro Estácio de Sá;
* Prêmio “Paula Brito” de Poesia, da Biblioteca Estadual do Rio de Janeiro,
em 1960, com Rio Cancioneiro;
* Prêmio “Júlia Lopes de Almeida”, em 1961, com Estátua de sal, outorgado
pela Academia Brasileira de Letras;
* Prêmio Nacional de Poesia “Casimiro de Abreu. Instituto Nacional do
Mate/Porta de Livraria, em 1964, com Geolírica;
* Prêmio “Fernando Chinaglia”, em 1970, concedido pela União Brasileira de
Escritores/RJ, com Cantares na ante-manhã;
* Prêmio “Nacional de Poesia”, da Secretaria de Educação e Cultura do Estado
da Guanabara, em 1974, com Suíte fantástica;
* Prêmio Instituto Nacional do Livro, em 1974, com Amanhecência;
* Prêmio Nacional de Poesia “Casimiro de Abreu”, em 1975, outorgado pela
Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio de Janeiro, com Romançário;
* Prêmio “Luísa Cláudio de Souza”, concedido pelo PEN Clube do Brasil, em
1976, também com Romançário;
* Prêmio do III Concurso Nacional de Poesia, da Secretaria de Educação e
Cultura/Caixa Econômica de Goiás, em 1977, com Romanceiro do Alejadinho;
* Prêmio da Fundação Educacional de Brasília e Prêmio “Monteiro Lobato”,
da Academia Brasileira de Letras, com Macaquezas do Macaco Malaquias, em 1979;
* Prêmio “João Ribeiro” (Filologia, Etnografia e Folclore), com De líricas
românicas e outras líricas, em 1980;
* Prêmio “Roquete Pinto” (Etnografia e Filologia de nossos índios), com
Memorial de Rondon, em 1986;
* Prêmio “João Dornas Filho”, da Academia Mineira de Letras, e Láurea
Nacional de Literatura Abdala do Nascimento / Casa do Poeta, com
Saga do Planalto;
* Livro do Ano / Láurea “Benedito Rodrigues Nascimento, do Governo do
Estado de Goiás, por Chão e vento;
* Prêmio “Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, em 1986, com Romanceiro
da Abolição;
* Prêmio “Batista i Roca”, em 2001, concedido pelo Institut de Projecció
Exterior de la Cultura Catalana, de Barcelona, Espanha;
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* Prêmio “Centenário de Henriqueta Lisboa”, em 2001, pela Academia
Mineira de Letras, com Mítica; e muitos mais.
Galardoada pela Prefeitura do antigo Distrito Federal, em razão do conjunto
de peças infantis, tais como: O caso dos pirilampinhos, A flautinha de Uirá, O
aguapezinho encantado, O guinholzinho de seu Titerote, Jambinho do contra, A
coelhinha confeteira, O carneirinho de Belém e O consertador de brinquedos. Por
esta última recebeu, também, a premiação de “Melhor Autor de Teatro Infantil”, do I
Festival Infantil do Estado da Guanabara.
Igualmente não lhe faltam medalhas e outras distinções, as quais, de modo
resumido, enumero a seguir:
* Medalha “Estácio de Sá”, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de
Janeiro, 1962;
* Medalha Castro Alves (Centenário da Morte do Poeta), 1971;
* Medalha do Mérito Cultural (União Brasileira de Escritores/RJ), 1971;
* Troféu do IV Congresso de Crítica Literária (Campina Grande-PB), 1977;
* Medalha Timbira do Mérito Cultural (Comenda do Estado do Maranhão),
1977;
* Medalha Sousândrade do Mérito Universitário (UFMA), 1980;
* Troféu Augusto dos Anjos (Campina Grande-PB), 1984;
* Medalha Santos Dumont (Grau Ouro), Estado de Minas Gerais,
1985;
* Medalha Cultura E. D´Almeida Vítor para O Intelectual do Ano
concedida pela Revista Brasília, 1985;
* Grande Medalha da Inconfidência (Méritos Excepcionais), Comenda do
Estado de Minas Gerais, 1986;
* Troféu Jaburu, do Conselho Estadual de Cultura de Goiás;
* Título de Cidadã Honorária de São Luís-MA;
* Título de Cidadã Honorária de Alcântara-MA;
*
Destaque Nacional de Literatura (Academia Feminina Mineira de Letras),
1991;
* Mérito Cultural (Faculdades Reunidas Castelo Branco, Rio de Janeiro),
1992;
* Medalha “Machado de Assis”, concedida pela União Brasileira de Escritores
de Nova York;
* Medalha de Mérito Cultural concedida pelo Consulado da Grécia do Rio de
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Janeiro. (Convém lembrar que ancestrais de Stella foram patriotas gregos que lutaram
pela independência da Grécia);
* Detentora do título « Mulher do Ano » pelo Conselho Nacional de Mulheres
do Brasil / Setor Literatura 2003;
* Escritor e crítico literário francês Jean-Paul Mestas apresentou no senado
francês o ensaio “Stella Leonardos, grande voix de la poésie brésilienne”, em 2005;
* Medaille de Vermeil da Société d´Encouregment au Progrès (France) e
Medalha de Ouro da Académie des Arts, Sciences et Lettres (France).
Stella Leonardos recebeu trinta e oito prêmios nacionais de literatura, nove
dos quais concedidos pela Academia Brasileira de Letras.
Preferi deixar por último a evocação de alguns de seus tesouros de brasilidade,
que é a garimpagem tanto poético-lírica quanto épico-dramática da história, das
lendas, dos mitos, enfim, dos episódios relacionados com a vida de filhos ilustres de
um certo multifacetado Brasil − os brasis, ou melhor, os outros brasões de Stella, os
quais ela permite, com a simplicidade e a modéstia que estruturam sua irrepetível
figura de artista e de ser humano, serem chamados apenas de Projeto Brasil, sem
dúvida alguma, uma obra literária adimensional. Tal Projeto propicia ao leitor
brasileiro um conhecimento acurado e, ao mesmo tempo, lúdico de seu país.
Portanto, aleatoriamente, sem me importar com mapas nem minuciar a
gigantesca geografia deste país, paro com Stella em São Luís do Maranhão
[Cancioneiro de São Luís, 1981], para especular o “Boi em São Luís”:
Se há muito boi no Brasil?
E zubumba bonito no sertão.
Mas bumba-meu-boi bonito
É mesmo no Maranhão
Em seguida, corro para conhecer Pernambuco [Mural pernambucano, 1986]:
Aqui me vês, Jaboatão.
Teu nome plantado em mim,
Ya-poatão de antigos índios.
E teu nome me acompanha,
teu nome de seiva e rama,
tronco reto, árvores dando
bons mastros para embarcação.
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Resolvo dar uma passada em Goiás [Feitio de Goiás, 1996] para ouvir o
violeiro errante cantando um solau (expressão que define uma composição de gênero
narrativo bem lamentosa e bastante lírica):
− Eu cheguei na tua casa.
Dia estava escurecendo.
Apanhei a rosa branca
Molhadinha de sereno.
Amanhã eu vou-me embora.
Você fica suspirando.
Eu quero que ninguém saiba
Que eu ando te namorando.
− Já fui ouro, já fui prata,
Já fui joia de teu dedo.
Hoje sou tua caixinha
De guardar todo segredo.
Ainda me detenho em Goiás, mais precisamente no Planalto, para recordar
gente ilustre, como Bernardo Sayão e Juscelino Kubitschek, sobretudo este último, a
partir de uma poça cristalina [Saga do Planalto, 2002]:
Andante vai o menino,
o menino Juscelino.
De uma poça cristalina
salta um peixe alegrovivo.
Vivamente, presto canta:
“Como pode o peixe vivo
viver fora d´água fria?
Como pode o peixe vivo
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viver fora d´água fria?”
Pensa o menino e se encanta:
− Este peixe é de magia?
E o peixe, magocantante:
“Como poderei viver,
Como poderei viver
Sem a tua, sem a tua,
Sem a tua companhia?”
Subitamente, ouço a batida forte e onomatopaica de tambores [Passeio no
Tocantins, “Tambores do Tocantins”, 2008]:
Há que vir, que ver e ouvir.
Nas crianças, do Tocantins
tom tocante e sintonia:
− tom tom tom, tom tocantim.
Tocantins: me ensina os tons!
Decido aprender um pouco de etimologia [Rapsódia sergipana, “Esse nome de
Sergipe”, 1995]:
Foi meu avô quem me disse
− Esse nome de Sergipe
vem de “rio de siri”
E um grande mestre em tupi,
traduzindo Aracaju
diz que é “cajueiro de arara”.
Piso em território baiano e rememoro [Memorial da Casa da Torre, “In
Memoriam”, 2010]:
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 90
No barro desses tijolos
por mãos índias acalcado
quanta voz índia não dorme?
Na Alvenaria da pedra
por mãos afras carregada
quanta voz negra não pesa?
Na torre desse Castelo
por brancos rostos vigiada
quanta saudade não se ergue?
Um rapsodo do Piauí conta-me uma triste história [Piauí rapsodo, “Das
inseparáveis zabelês”, 1996] :
Era uma índia bonita,
filha do grande cacique
dos índios amanajós.
O jovem índio Metara
da tribo dos pimenteiras,
amava-a mais do que a lua.
E ela, a índia quem amava?
Metara. Mais do que o sol.
Ai a sina! Quis, soturna,
que Mandahú, outro índio,
também amasse a bonita
jovem filha do cacique
dos índios amanajós.
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Enlouquecido de ciúme,
seguido de alguns guerreiros,
a fúria de Mandahú
feriu Metara, traiçoeira.
Lutaram. De lado a lado
rolou sangue pelo pó.
Morreram todos: Metara,
Mandahú, índia bonita,
guerreiros de luta inglória.
Mas como há Deus grande e justo
que lá do alto tudo vê.
fez de Metara e da amada
um par de amorosos pássaros
meigo par de zabelês.
Volto ao Nordeste e aceito o que me apresenta o Memorial Nos tambores
Guararapes, com sua “Oferenda”, 2002:
A vós, bravos, combatentes
dos Guararapes renhidos.
A Vós dos idos seiscentos.
Vós das almadas vitórias
latejando, semprevivas
no coração da memória.
Em Estado de poesia (Prêmio Rio de Literatura, 1986 − Poesia), Stella
Leonardos convida o leitor a caminhar com ela por seu Estado natal, que é o Rio de
Janeiro, e pelos respectivos entornos que lhe são próximos ou distantes. In: Rio
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antigo. “Folião Pró-Memória”:
Ri de um jeito de arlequim.
Mas nos olhos é pierrô
dos nostálgicos outonos
poeirando o cabelo cinza:
− Ah os carnavais de outros tempos!
Meu avô carnavalesco
chegou a assistir entrudo,
aquele combate bárbaro
de baldes d´água e farinha.
e aqueles limões de cheiro
que atirados − plaf! − com gosto
ensopavam de perfume
incauto a torto e a direito.
Se nem Dom Pedro I,
que já era Imperador,
ia escapando, imagine!
De repente, retorno ao Nordeste para ouvir de perto o Romance da Lua Cris, XI,
s/d, lá da Paraíba:
− De onde vens, poeta?
− Das grades.
− Que fizeste?
− Um desagravo.
Gritei contra ofensa grave:
alguém que edita meus poemas,
que vende à larga o que escrevo
sem botar meu nome, ao menos,
ou me dar alguma parte.
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Quando se vive em pobreza
nunca se encontra advogado:
não pude provar a fraude.
E paguei com minhas penas
o meu canto protestado.
− Pois não é o primeiro caso.
Acredita, companheiro,
ao cego também roubaram
já que é cego duas vezes:
confia em conversa fiada.
Em seguida, dirijo-me mais para o Sul. Preciso ouvir Paraná e Minas
Gerais porque Stella recorda a poeta Júlia Maria da Costa e o Aleijadinho que estão,
respectivamente, em Curitiba memorada, 1996, e Romanceiro do Aleijadinho, 1984:
“Júlia Maria da Costa, distinta poetisa, na de Paranaguá, que lhe
honrou o nome dando-o a uma de suas ruas.” (Francisco Negrão)
PELA RUA DE JÚLIA
“Eu sou a flor que desmaia
Ao sopro do vento sul!
Preciso de lume ardente
Que brilhe no céu azul.”
Caminho de Curitiba,
parado em Paranaguá,
julgo ouvir a voz de Júlia
suspirando inda por lá.
Ai essa prima distante
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que jamais conhecerei!
Silhueta na ventana.
Me acenando na distância.
Dama de ares camafeu.
“Eu sou a flor que desmaia
Ao sopro do vento sul!
A tarde me traz saudades
Nas ondas do mar azul.”
Caminho de Curitiba,
no adeus a Paranaguá,
vem comigo a voz de Júlia
pulsante de Paraná.
PRECE DO ALEIJADINHO
“(...) Como doente, sentiu na própria carne
horripilância de uma deformação paulatina
implacável e as dores da mutilação que o cepou aos poucos,
chegando a arrancar-lhe os dedos da mão.
”(Benjamim de A.Carvalho
Com dor ou sem dor
ficarei de pé.
Mesmo que os joelhos dobrem.
Mesmo perdendo os dedos.
Com dor ou sem dor
usarei as mãos.
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Mesmo que as mãos se firam.
Mesmo perdendo os dedos.
Com dor ou sem dor
subirei de joelhos
e mãos postas, meu Deus.
Até meu próprio fim.
Mas dai-me vida
com dor ou sem dor
a fim de que eu termine
minha obra.
E ela fique de pé.
E não falei de outros “talentos” de Stella: bondade, amizade, compaixão, enfim,
humanidade, afora − mesmo sem ter quaisquer vínculos com o Vaticano − sua
excepcional capacidade de “canonizar” amigos carentes e não carentes. E sempre
movida por sentimentos nobres e traços de personalidade como os supracitados.
A respeito da trajetória intelectual de Stella, todo o mundo sabe como foi
traçada e palmilhada, razão por que trouxe parcos e repetitivos dados sobre nossa
querida homenageada.
Mais prudente seria convocar a ajuda dos poetas Giuseppe Ungaretti (18881970) e Mauro Mota (1911-1984) que, respectivamente, têm palavras definidoras
para a tarefa da qual se incumbiu Stella Leonardos: “Poetar é converter a memória
em sonhos e provar com alguma luz feliz a estrada do desconhecido” e “O difícil é
escrever fácil”. Foi isso que esta nossa amiga fez e continua fazendo ao longo da
vida.
Portanto, feliz aniversário e receba meus sinceros parabéns e de todos que a
conhecem e estimam.
____
Texto lido na reunião de Sabadoyle de 3 de agosto de 2013 .
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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MARITA VINELLI
C
erca de vinte entidades culturais e literárias do Rio de Janeiro, entre as
quais se destacam o PEN Clube do Brasil, Academia Carioca de Letras,
Academia Luso-Brasileira de Letras, União Brasileira de Escritores,
Secção Rio de Janeiro e Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica, por seus
rspectivos presidents, compareceram ao Auditório Pedro CAlmon, do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 26 de abril, para homenagearem a
poetisa Maria Vinelli, por ocasião da passage dos seus 90 anos de idade.
Compareceram, ainda, várias personalidades das letras e da cultura para saudarem,
mediante breves intervenções, a homenageada.
A coordenação da mesa coube ao escritor Cláudio Aguiar, que, na condição
de Presidente do PEN Clube do Brasil, ao abrir a reunião, proferiu as seguintes
palavras:
“Foi com enorme satisfação que recebi
coordenar
o convite de Maria Vinelli para
confraternização de seus 90 anos.
esta
mesa
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sobre
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a
Satisfação e sobretudo honra para
Marita Vinelli.
mim, porque Marita é uma dessas
antes de mais nada, aquele sentimento
pessoas talhadas para a convivência,
de pertença, que deveria pairar sobre o
para viver a alegria do encontro em
ânimo de toda pessoa filiada a uma
torno da poesia e da cultura.
A
academia ou associação de natureza
presença de tantos amigos de Marita,
literária ou cultural. Essas entidades,
aqui, neste momento, é a prova cabal
vale insistir, dependem desse tipo de
que melhor traduz essa forma de ser da
consciência associativa, de respeito ao
homenageada, ou seja, uma pessoa
outro,
dotada da capacidade de fazer amigos,
colaboração
de conservá-los e de mantê-los sob o
construtiva e moralmente dignificante.
sinete da lealdade, do carinho, da
A vida e a trajetória literária e cultural
camaradagem e do companheirismo.
de Marita Vinelli representam esse tipo
de
Atitude que reflete,
manifesto
espírito
de
desinteressada,
exemplar de comportamento.
Hoje, além de abraçarmos e
felicitarmos Marita Vinelli por ocasião
da passagem de suas nove décadas de
frutífera vida, também vamos dizer o
quanto a estimamos e desejamos que
ela continue a trilhar o mesmo
caminho
percorrido
até
agora.
Caminhada reveladora de uma poetisa
Por falar em trajetória, creio ser
chegado o momento de apresentar aqui
um breve resumo de seu valioso
currículo.
Marita Vinelli é conferencista,
biógrafa, oradora, poliglota, letrista,
escritora e poetisa.
amiga de seus amigos, possuída pelo
afã de conviver sob o clima da sincera
amizade provada ao longo de sua
atuação. Seu constante e profícuo
trabalho voluntário em favor de tantas
associações literárias e culturais a que
ela
pertence,
considerado
também
como
um
deve
ser
diferencial
Durante
vários
anos
foi
Diretora Cultura da Federação das
Academias de Letras do Brasil e até
2012 Diretora Cultural da Academia
Luso-Brasileira de Letras. Atualmente
ocupa este cargo na Sociedade Eça de
Queiroz.
positivo no âmbito de suas atividades.
É membro titular da Academia
Por isso, ouviremos, a seguir, pela voz
Carioca de Letras, do PEN Clube do
de
os
Brasil, da Academia Luso-Brasileira
testemunhos sobre essa forma de ser de
de Letras e de outras entidades
seus
repsententantes,
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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culturais.
saudade, da tristeza, do sonho e de
Tem participado de congressos,
outras verberações quiméricas.
antologias, revistas e jornais no Brasil
e no Exterior.
de tom marcadamente lírico, aparece o
São muitas suas premiações,
medalhas e diplomas, entre os quais
destaco o Prêmio Medalha de Ouro em
Poesia
em
No entanto, neste mesmo livro
concurso
de
âmbito
nacional realizado em 1996. Em 2009
foi eleita uma das 10 mulheres mais
importantes no Brasil na área da
cultura pelo Conselho Nacional de
Mulheres do Brasil.
poema “Cantos pátrios”, no qual
Marita Vinelli deixa transbordar em
seus versos um sentimento épico de
profunda
coerência.
Nesse
longo
poema épico, Marita, em verdade, não
apenas
acena
patriotismo
para
um
possível
exacerbado,
mas,
sobretudo, por causa da histórica
participação do Brasil no conflito
bélico da Segunda Guerra Mundial,
Publicou as seguintes obras:
canta
o
destemor
dos
chamados
Discursos de posse; Ensaio: Encontro
“pracinhas” brasileiros, simbolizado
marcado com Eça de Queiroz (ensaio);
pela presença deles no teatro de
Livros de poesia: No vale verde do
Guerra, lembrando que são homens
meu sonho; Vou cantar até morrer e
corajosos oriundos dos mais diferentes
Poemas azuis (no prelo). Vale ressaltar
rincões do Brasil, autênticos caboclos,
que Marita tem uma grande quantidade
boiadeiros,
de
camponeses etc. No Canto III, Marita
textos
inéditos
ensaios e poemas.
de
biografias,
Em breve nos
brindará com uma ampla reunião em
livros de seus poemas.
Senhoras e senhores: Marita
Vinelli cultiva uma poesia de lavra
lírica. Ainda muito jovem, ao publicar
o seu primeiro livro - No vale verde
indígenas,
jangadeiros,
afirma:
“Nas álgidas planicies hibernais,
D’Europa desgraçada e mal ferida,
Lutando por humanos ideais
Heróicos empenharam muitas vidas.”
do meu sonho -, notou a crítica haver
Na estreia de Marita Vinelli um
em sua poesia um sopro forte do eu
dado importante merece registro: a
lírico, no qual afloram os temas da
surpreendente recepção da obra. Na
vida, do amor, da desilusão, da
grande imprensa brasileira, jornais e
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revistas como O Globo, A Notícia, A
recebeu os espinhos? Prefiro, pois,
Noite, Ilustração Brasileira, Revista da
enviar-lhe apenas meus votos para que
Semana, Jornal do Brasil, Correio da
continue e obtenha novos louros. Não
Noite, Jornal do Commercio, entre
desanime
outros, abriram espaço para a crítica
imperfeições, pois entre o berço dos
de No vale verde do meu sonho. Além
primeiros versos e a cátedra das
disso, os principais críticos literários
preleções, que nunca são infalíveis,
da época manifestaram-se sobre a
medeia um espaço imenso. A poesia
poesia de Marita Vinelli, a exemplo de
nasce, quase sempre, da juventude,
Carlos Maul, João Luso, Dyla Josetti,
mas também quase sempre fenece
Joaquim Thomaz, Aloysio de Castro,
antes
Levi Carneiro, Antonio Austreségilo,
crestada pelas realidades agressisvas.
Castilhos Goicochea, Carlos da Silva
Livre sua poesia dessas agressões
Araújo, Meira Pena, João Antonio de
cercando-a com suas lindas mãos,
Bianchi,
Barreto,
como uma chama delicada provinda de
Furtado,
seu coração. Desejo que, fazendo-o, o
Tancredo de Morais, Cláudio de Souza
vale verde de seu sonho se cubra de
e outros.
uma florada magnífica de semprevivas
Hélio
Ministro
Chaves,
Barros
Aquino
Por falar em Cláudio de Souza,
Acadêmico
que
desabrochar
apontarem
plenamente,
canções”. (Carta de 23/9/1948).
Senhoras e senhores, Cláudio
presidiu a Academia Brasileira de
de Souza, como um homem sensível a
Letras e fundador do PEN Clube do
todas
Brasil, em 1936, gostaria de registrar
artísiticas, não se limitou a mandar
um fato curioso: Cláudio de Souza foi
uma carta de louvor a Marita Vinelli.
um dos que leram e
colocaram em
Imediatamente a admitiu como sócia
destaque a poesia da jovem Marita
do PEN Clube do Brasil, recebendo-a e
Vinelli.
saudando-a em memorável sessão do
“Marita,
[…]
duas
lhe
vezes
Disse
por
de
se
Cláudio
deveria
de
Souza:
mandar-lhe
flores e não palavras para esse branco
noivado. Onde as encontraria, porém,
com essa palpitação de alma que da
terra dissimulada da vida ainda não
manifestações
literárias
e
Centro brasileiro. Assim, creio que
Marita Vinelli foi a mais nova
associada a entrar no PEN Clube do
Brasil e, por via de consequência, hoje,
é uma das mais antigas associadas do
corpo social desse Clube Literário.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 100
Por todos esses motivos de
que disse ser “a amizade o vinho da
grande significação para a vida de
vida”. É exatamente por saber disso
Marita Vinelli, quero dizer que, se
que Marita Vinelli cultuou e cultua a
fosse possível resumir a emoção e a
sadia convivência e, por causa disso,
alegria
estamos aqui para abraçá-la e felicitá-
deste
momento
de
confraternização, caberia referir, como
la.”
o faço agora, a imagem de um poeta
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
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TEATRO
MONÓLOGO PARA UM ATOR
(ou A descoberta do outro)
Maria Helena Kühner
“A Descoberta do Outro” nasceu de um fato real: foi
escrito para o Ator Jorge Cherques, que, 15 dias após a
morte de sua esposa, me comoveu ao pedir que escrevesse
para ele um monólogo, pois, deprimido como estava, não
conseguia trabalhar em grupo, ficar ouvindo conversas e
brincadeiras dos outros, etc. Ficou feliz ao receber o que
escrevi. Mas não chegou a encená-lo, como pretendia:
morreu dois meses depois. E o monólogo viria a ser estreado
em Brasília, pelo ator Ivan Lima, a quem pedimos que, na
abertura da peça e no programa, lhe fizesse uma
homenagem, uma homenagem ao Ator.
Porque é disso que o monólogo trata: do jogo do ator,
sua luta, desde seu contato primeiro, ainda impressentido e
exterior, com um personagem, observando-lhe os gestos, o
corpo, a voz, a maneira de falar, de se vestir ( que tudo isso
fala de alguém, de quem é esse alguém), deixando que ele se
torne uma presença. A busca do ator, com seus vetores
duplos: entrega/ distância, integração/ observação, viver/
analisar, experimentar/ refletir, elaborando, mergulhando
fundo no personagem e voltando à tona, parando para rever
o que a intuição o leva a apanhar em seu mergulho, e a
razão a seguir lhe mostra em plena luz, para apreender sob
outro ponto de vista. Desse jogo, revivido e repensado, a
atitude que vai ser tomada em cena pelo Ator – atitude que
faz rever/ repensar o próprio sentido do teatro, e, com ele,
da vida.
MONÓLOGO PARA UM ATOR
O Ator entra, pára no meio da cena, percorre com o olhar a
platéia, devagar, e inicia:
Boa noite. Antes de mais nada, quero agradecer sua
presença, hoje, aqui. (Pausa) Alguém poderá me dizer o que
espera ver e ouvir? Por que escolheram estar aqui e não em
outro lugar ?
Escolher, pra mim, sempre foi um problema.
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 102
Sempre. Porque escolher, decidir, é também discriminar. Ficar com uma só quando o
meu impulso sempre foi o de ficar com todas: ora uma me atrai, ora outra, cada qual
por uma razão diferente. E ninguém entende porque me é tão difícil a escolha, e
porque a exclusão, toda e qualquer exclusão, me é sempre dolorosa.
A mesma coisa em todos os lugares: nas livrarias ou nas bibliotecas, cada
livro escolhido traz com sua escolha a lembrança de todos os que ficam nas estantes, à
espera de minha necessidade de conhecer todas as interrogações, todas as buscas,
todas as respostas, de participar de todas as descobertas. Tão boa, a sensação da
descoberta e do encontro, não acham? Então por que a vida assim, pingada em contagotas, uma a uma, se é tanta a nossa sede, a sede de mergulhar fundo, de mergulhar o
rosto, o corpo todo, sentir a vida entrando por todos os poros?
Acho que foi isso que me levou ao teatro: poder juntar palavra, gesto, ação,
emoção, pensamento, e a situação em que tudo acontece, e a cena em que tudo isso é
mostrado a alguém, e se cria com esse alguém outro jogo, olho no olho, troca que
afaga e acende tudo que há de vivo em nosso interior.
Há tanto em tudo! O ato de comer: uma coisa tão simples. Mas um ato que
põe em giro toda a roda, que põe em movimento todo um processo misterioso e
incessante... (para alguém em frente) Você já tentou sentir o que acontece quando
você mastiga um... um pedaço de pão? Já se pôs, alguma vez, bem atento, a mastigar
aquele pedaço de pão, triturando-o nos dentes, sentindo cada pedacinho se dissolver,
tornado menor, cada vez menor, a língua trabalhando para arrancar seu sabor e
colocar na esteira das sensações para levá-lo ao resto do organismo, e os dentes,
engrenagem movida de outro ponto, descendo, subindo, cortando, e a língua, operária
inquieta e ágil, selecionando, encaminhando, destruindo, lubrificando essa
engrenagem com sua secreção, retirando o gosto, e empurrando o resto adiante... Sem
saber que nesse gosto e nesse resto está a terra que nutriu uma semente, e o sol que
amarelou o trigo, e a água de todas as nuvens feitas chuva sobre ele, e o sangue do
lavrador colhendo dia a dia um pedaço de sua vida e se triturando, grão a grão, para
alimento dos outros. O ato de comer, tão simples!, se torna surpreendente quando é
assistido por todo o nosso ser. Num ato só, tantos, tanta coisa! Mas também tantas que
aí não estão, criando faltas, e a vontade de algo mais. De mais. Mais!
Vocês devem estar se perguntando: ... a que vem tudo isso?
A maior parte de vocês talvez tenha vindo buscar apenas... um momento de
diversão. E eu saio jogando em cima de vocês essas minhas reflexões... Ora, eu não
sou filósofo nem nada. Onde quero chegar?
É que, para mim, tudo começou também com uma escolha: a escolha do
personagem de uma peça, a peça que vocês vieram ver. Como eu acabei de contar a
vocês, escolher para mim é sempre difícil. Foi o que eu disse ao Diretor: eu sei que é
preciso escolher. Mas, para mim, todas as personagens são importantes. Porque, para
mim, não há personagens secundárias ou principais, entendem? Todas são
importantes. O criado que entra com a bandeja de café: ele se mantém em silêncio,
não diz nada. E é por isso que é importante: ninguém o vê porque ele não diz nada.
Vocês nunca imaginaram que agonia deve dar a alguém sentir que está presente sem
ser uma presença? Se o deixassem falar, como ele falaria! Falar o quê? Ora, falar.
Simplesmente falar! Qualquer coisa. Dizer seu nome: as pessoas e as coisas só
passam a existir quando recebem um nome... embora haja tanta coisa sem nome ou
até indizível andando por dentro da gente. (Tom se quebra um pouco) ... há tanta coisa
não-dita andando por dentro da gente... (Pausa. Refaz-se e projeta para fora
Revista Convivência- Ano III – nº 3- 2013
Página 103
novamente) Não vêem o que acontece com essas mestras do silêncio e da espera, as
mulheres? Elas sabem. Elas sempre souberam.
Taí, sabe que eu gostaria de fazer uma personagem feminina? Gostaria de ser
Ariadne, a doadora, a que tira de si o próprio fio e o estende a Teseu para que mate o
Minotauro devorador e encontre a saída do labirinto. Do labirinto em que estamos
todos vivendo. (Outro tom) Do labirinto em que eu me hoje sinto. (Pausa. Para outro
espectador) Por que esta surpresa cheia de malícia? O fato de me verem assim tão
masculino, tão seguro de mim mesmo, parecendo tão auto-suficiente, não impede que
queira me completar de novo, dar voz a meu lado feminino, a meu outro polo, minha
outra metade... (Tom se quebra novamente) Minha outra metade. Que me faz tanta
falta. Mais, muito mais, do que eu consigo dizer. Queria ouvir de novo sua voz, a voz
de minha nunca esquecida anima, de minha alma silenciosa, silenciada. Cansei de ter
que exibir um masculino equilíbrio e controle, cansei de estar ao leme, olhos secos
pelo vento e o sal, na inquietação de sondar horizontes, evitar escolhos, medir a
profundidade das águas e o calado do barco. Queria mergulhar naquela água
profunda, e dela, e com ela, ver e fazer ver o céu, o sol, as ondas, sentir o balanço do
mar, a paisagem, a cor dos astros mais distantes, e trazer de novo as cores de seu arcoíris para a minha vida. Queria...
(Detém-se súbito. Olha em torno. Tom muda)
Estou vendo ironia em alguns olhos. A mesma ironia que vi no rosto do
Diretor da peça quando tive com ele a discussão que me levou ao plano que vou por
em prática hoje, aqui, agora.
Ouvindo isso – plano, que plano?... - ele já deve estar ficando em pânico lá
nos bastidores. Mas não vai conseguir me impedir, porque pensei em todos os
detalhes. Ou, quem sabe, talvez ele fique curioso de saber que plano é esse... que
loucura eu posso estar inventando... (Para dentro) Loucura...? Loucura por que, Sr.
Diretor? Loucura é quando as coisas crescem e morrem dentro de alguém sem
conseguirem ser expressas, sem chegar aos outros no gesto, na fala, nos atos, loucura
é quando alguém fica fechado em si mesmo, sozinho e trancado com seus sonhos,
suas esperanças, seus fantasmas... Seus fantasmas, sombras sem voz e sem fala...
(Para alguém próximo) Você já reparou no olhar de um louco? No que há de tristeza,
ansiedade e sofrimento no olhar de um louco? Ah, está achando que isso é
elucubração? Está bem, está bem, vou parar, mas não é elucubração coisa nenhuma,
o que há é que ninguém gosta de pensar nessas coisas. Mas, tá, vou parar, parei,
pronto!
Para o espetáculo de hoje foi o Diretor que escolheu meu personagem. A
escolha, como imaginam, foi por idade, tipo físico e tal... O que, pra mim, já é uma
bobagem: Goethe, aos 80 anos, tinha 20, e amava Ulrica como um adolescente ama
pela primeira vez. Mas seja, idade, tipo físico, já que o tranquiliza achar que há nisso
um critério de escolha.
Escolhido o personagem, recomeçou minha agonia. A luta e o jogo do ator.
Primeiro, algo ainda impressentido e exterior: o contato, apenas, com o personagem.
Conversarmos sobre coisas triviais, observar-lhe os gestos, o corpo, a voz, a maneira
de falar, de se vestir – que tudo isso fala de alguém, de quem é esse alguém... Deixar
que ele se torne uma presença. É tão bom quando é um personagem que nos fala aos
sentimentos e à mente! Vê-lo passear à nossa frente em nossas horas de sono e de
sonho, presença tomando-se familiar, querida, necessária. Como quando um amor
começa, impressentido, maré, rio na enchente inundando devagar as margens. A
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espera da chegada, a alegria ao anúncio de sua voz, de sua figura surgindo da sombra,
nos despertando por inteiro, próximo e diferente, levando-nos a ver coisas que ainda
não tínhamos visto. Que descobrir o mundo pelos olhos do outro é como olhar em um
caleidoscópio, é ver, a cada movimento, novas imagens, um mundo também outro,
diferente – embora os cristais e cores sejam os mesmos para todas as formas humanas.
Mas um personagem também pode ser algo terrível, presença importuna e
indesejada, luz aguda doendo nos olhos – como esse personagem que me foi dado.
Minha antipatia por ele foi total, desde que comecei a vê-lo mais de perto. Criticá-lo,
fazer uma atuação crítica? Nem pensar! Ele é o protagonista, o herói da história, e é
assim que o Diretor quer apresentá-lo. Afinal, é um personagem tão querido para ele.
Identificação? Talvez.
Não podia negar que fosse inteligente. Mas, quanto mais o via e ouvia, mais
ele me irritava. Possessivo, dominador, autoritário, narcisista, certo de que suas idéias
representam o consenso universal. Irritava-me a maneira como ele tratava os outros,
sua falta de afeto, seu desprezo pelas paixões e emoções, seu ar de superioridade...
Será que ele pensava mesmo que era melhor que todos os que vieram antes, ou
superior a todo mundo? Superior em quê?! Será que ele não entende que o uni-verso
não é a versão única de todas as coisas, e que o que vocês, espectadores, buscam é a
di-versão, a versão outra, não vista, e a ser aqui descoberta?
Essa interrogação me faz retomar a busca. A busca... que, agora vejo, talvez
fosse já o primeiro passo em direção ao meu plano. A busca que alicerça meu
trabalho: um ângulo, uma pista, os traços mais evidentes, em cada relação, em cada
situação, em cada diálogo, a cada novo encontro. O jogo da busca do ator, com seus
vetores duplos: entrega/distância, integração/observação, viver/analisar, experimentar/
refletir, elaborando, mergulhando fundo no personagem e voltando à tona, parando
para rever o que a intuição me leva a apanhar em meu mergulho, e o que a minha
razão a seguir me exibe em plena luz, para apreender sob outro ponto de vista.
Mas, no caso, minha busca e o plano que dela resultou vão dar um susto no
Diretor, que recomendou: Esse personagem deve ter projeção, destaque e força na
cena, pois, ele é o protótipo do homem bem sucedido na sociedade atual!”. Mas para
mim, à medida que convivemos, comecei a vê-lo tal qual é, já tão diferente de como
se apresenta: tudo nele é produção, aparência, simulacro, imagem visando a criar nos
outros o efeito desejado. Desde o toque mais simples – o vestir-se pretensamente
descuidado, pois fica bem parecer distante desta sociedade mergulhada no consumo".
O discurso: tudo nele é só discurso, a palavra tornada instrumento, servindo apenas a
essa produção de imagem, em uma habilidosa manipulação de razões e desrazões, de
frases de efeito, de racionalizações – evidentemente quase sempre opostas a sua
prática. Falando em igualdade e praticando a diferença. Usando as diferenças para
estabelecer hierarquias, pretensas superioridades e inferioridades. Dizendo-se
preocupado com a sociedade, o mundo, os princípios e valores éticos, mas na
realidade unindo-se ou servindo apenas ao pequeno grupo que concentra em suas
mãos o poder e o dinheiro. O dinheiro... A Bolsa de Valores é sua igreja, seu templo.
Afinal, como ele diz (tom) “o dinheiro é o eixo mesmo da sociedade atual. E num
mundo globalizado a Bolsa de Valores é uma forma de integração universal”.
“Integração”?! Bah! “Integrar” é tornar inteiro, completo, e o que vemos é um mundo
cada vez mais dividido e desigual! Mas, para ele, a economia é o objeto único de sua
reza diária, reza na qual as palavras (tom) lucro, mercado, ordem, produtividade,
controle, comércio, tecnologia, sublinhadas com números e estatísticas, alardeiam
seguidamente um fantasioso “sucesso”. Um “sucesso” enfeitado ou mistificado com
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palavras esvaziadas, tornadas chavões já sem sentido (tom) – democracia, liberdade,
modernidade, progresso, desenvolvimento, crescimento... Servindo a que? Servindo a
quem? Sobretudo isso: servindo a quantos e a quem? Diante dessas perguntas
incômodas... ele mente. Mente, ou cinicamente desmente o que ele mesmo antes
afirmara. Ou omite informações que o denunciem. Mente, sabendo que mente.
Mentira, hipocrisia, cinismo que nós todos já percebemos. E que só levam ao
desencanto, à apatia, à indiferença, a não acreditar em mais nada.
Meu espanto chegou ao auge quando ouvi o Diretor dizer: “Mesmo tendo
para você aspectos criticáveis, ele acaba sempre se dando bem. Não se esqueça: ele é
um vencedor no jogo do poder atual.”
Mas, eu confesso que já estou sem paciência para esse tipo de gente.
Cansado dessa atitude, tão atual, de tantos, de criar espelhos para a própria imagem,
acabando por esquecer que ela é apenas um simulacro, imagem feita para os outros e
passando a contemplá-la, embevecido, já sem noção de seu próprio tamanho e seu
rosto real.
Foi quando Dioniso, o deus dos mistérios e do teatro, começou a sussurrar ao
meu ouvido: é isso que você quer? Apenas brincar, distrair, tornar naturais, ou banais,
atitudes que você condena e gostaria de denunciar? Como brincar com isso, como rir
e fazer rir de algo tão sério? Brincar, apenas, com algo que afeta a vida de todos nós?
É isso o que você espera do teatro? É isso que você quer dizer? É isso que você quer
fazer ver?
Lembrei-me de quando fui Fausto. Fausto, um homem que também vendeu
sua alma ao diabo para ter riqueza, saber e um poder total, absolutos. Mas que, levado
por Mefistófeles a percorrer os reinos da Natureza e da História foi mudando sua
visão, e aprofundando uma nova consciência. Você, sim, era um personagem
autêntico, Fausto. O que eu ouvi de você, e disse a tantos, eu não mais esqueci. Você
me fez ver que, à medida que o mundo cresceu, tornou-se também mais confuso. Que
cada passo no caminho do conhecimento abriu um novo abismo, a abertura possível
seguidamente adiada. Que o fausto que nos cerca – e lhe deu nome - o acúmulo de
riquezas, de saber e de poder a nada nos levaram. E a grande represa que você viu
construir e supôs que seria capaz de transformar as nações, hoje sabemos, era na
realidade a sua – ou a nossa - própria sepultura. “Meu império é uma ilusão”, você
disse. “Mas se as coisas estão assim, não ficarão assim por muito tempo, pois tudo
está em movimento”.
Tudo isso foi reforçando o meu plano, sedimentando minha decisão, me
levando a buscar por em ação o que eu via. Que ser ator não é só desenhar, esculpir,
dar corpo e vida a um ser humano, é colocá-lo em ação na cena do mundo. A cena do
mundo... Mas que mundo temos hoje diante dos olhos? Diante de nós e em torno de
nós, tudo está em movimento. Neste império em crise, a maioria dos bolsos está
ficando vazia, o caos reina por todos os lados, a corrupção é geral. O ouro hoje é
papel, sem a alquimia tão sonhada que lhe dava suas virtudes. Insegurança, Violência,
Miséria, Ansiedade, Insolvência, Privação, esses sombrios vultos que tanto ameaçam,
só não entram na mansão de um pequeno número de ricos. E o Desejo, nosso desejo
mais fundo, onde está? Onde está nossa Paixão, nosso Sonho? Nossa sede de mais?
Perderam-se nas trevas de nossa alma enlouquecida, na sombra que mascara nossa
falta e impede a luz, a alegria, a união. A morte é um tigre que espreita no mato:
estamos criando filhos para a morte.
Porém, em torno de nós, o medo e a esperança ainda alternam suas falas.
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É com muita emoção, com muita raiva e impaciência, que vejo tudo isso.
Mas também com muita ternura. Porque, apesar de tudo, eu creio. Eu creio na vida.
Creio no ser humano, apesar de muitos seres que vejo. Creio que a morte não pode
devorar o homem que sacudiu seu pó. Ela nada pode contra nossa eternidade, feita de
Lua e do mistério portador de seu sopro de vida, feita do Sol que esse sopro ilumina e
redime, feita do infinito em que Sol e Lua se prolongam e a invenção de horizontes
abre um mar além da história, em que o ser humano, hoje atônito e perdido, poderá
vir a encontrar novo pouso e morada, uma vida nova. Todo fim é fogo e cinza, e
incandescência de uma nova aurora. Uma nova aurora: se começarmos de novo, do
princípio. Retornando às nascentes da vida, à região “de onde ascende à superfície da
Terra tudo que tem energia e vida.” A tudo que nos renova e nos faz mais inteiros.
Por fim, um pequeno passo me levou, da decisão, à ação.
Ontem à noite, no ensaio geral, eu fazia o papel do personagem escolhido pela
Direção e apresentado tal como fora por ele orientado.
Ao terminar o ensaio, alguém veio falar comigo. Eu me sentia cansado. Muito
cansado. Em dado momento, não sei mais como nem porque, me vi dizendo aquilo
que não sai de minha mente, aquilo que ora me ocupa por inteiro:
Perdi minha mulher... Há 20 dias... 50 anos juntos... e perdi minha mulher... minha
metade... minha anima....Durante o dia me atordoo com o movimento em torno. Mas
as noites... as minhas noites são terríveis...
Quando eu disse isso, a mulher que estava diante de mim emudeceu. Ela
sentiu que nada havia a dizer. Que há dores que não cabem em palavras. Embora em
palavras se tente dizer a vida e a morte.
Mas ali, naquele momento, não era mais o ator que falava: era eu.
Isso me fez pensar. E decidir fazer o que agora faço, ao falar com vocês,
espectadores, como ora falo: hoje, aqui, agora, não quero ser personagem algum. Se
teatro é lugar de ver, de deixar caírem máscaras ou aparências e fazer ver rostos
humanos, é o meu rosto, o meu próprio rosto que vocês hoje estão vendo aqui, quem
sabe pela primeira vez. Eu decidi trazer para vocês... eu mesmo, o que eu sou, o que
eu penso, o que sinto. E também não é um personagem, sou eu que agora lhes
pergunto: vocês já viram, de perto, um rosto humano? Já viram seu próprio rosto? E o
rosto de quem vive a seu lado? Ou a vida humana já está tão banalizada, minimizada,
tão sem valor, que precisamos resgatar a perdida memória do que seja um rosto
humano?
Alguém, até para desviar qualquer emoção, poderá me olhar e dizer: “Ah, ele é
um ator, isso deve ser teatro, representação.” Engana-se. No ritual da missa católica
há um momento em que o celebrante diz: “Tomai e comei, isto é meu corpo. Tomai e
bebei, isto é meu sangue.” É o momento que precede a comunhão. Teatro é isso:
teatro é comunhão, é corpo e sangue entregues, partilhados. É assim a comunhão
teatral: olhos nos olhos, rosto diante de rostos, um ator na entrega de seu corpo e seu
sangue, de seu ser inteiro, para fazer ver, por inteiro, sem máscaras ou disfarces, um
outro ser humano. Um ser humano outro, semelhante e diferente. Tão semelhante e
tão diferente neste mundo de hoje, globalizado, diversificado, plural. Se vocês hoje
saírem daqui querendo ver, ver o rosto do outro com quem falam, ver quem está a sua
frente, ver quem está a seu lado, ver, VER O OUTRO, o próximo e o distante, terei
cumprido o que é meu papel primeiro e maior: fazer ver o ser humano. Para isso
nasci, para isso vivi, para isso trabalhei minha vida inteira, para isso estou aqui, mais
uma vez. E nossa comunhão teatral só é possível porque eu, ator, tal como vocês, sou
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apenas e simplesmente... um ser humano.
Obrigado por sua atenção e resposta.
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COLABORADORES
Alcmeno Bastos. Professor da UFRJ e ensaísta. Membro titular do PEN Clube do
Brasil.
Clair de Mattos. Escritora e Vice-Presidente do PEN Clube do Brasil.
Cláudio Aguiar. Ficcionista, dramaturgo e ensaista. É autor de cerca de 30 livros,
entre os quais se destacam Caldeirão e Franklin Távora e o seu tempo. Tem obras
traduzidas e publicadas em russo, francês e espanhol.
Cyro de Mattos. Poeta baiano e autor de cerca de 40 livros publicados.
Delia Cambeiro. Professora da UERJ e ensaista. Membrotitular do PEN Clube do
Brasil.
Fabio de Sousa Coutinho. Ensaísta e membro da Academia Brasiliense de Letras.
Francisco Caruso. Professor da UFRJ e membro titular do PEN Clube do Brasil.
Francesca Cricelli. Professora e critica literária.
Giuseppe Lupo. Professor e escritor italiano.
Helena Ferreira. Professsora, Poetisa, tradutora e membro titular do PEN Clube do
Brasil.
Ives Gandra. Jurista e membro titular do PEN Clube do Brasil.
Jorge Sá Earp. Diplomata, romancista e membro titular do PEN Clube do Brasil.
Laura Esteves. Poeta e contista e membro titular do PEN Clube do Brasil.
Maria Helena Kühner. Dramaturga e escritora. Membro titular do PEN Clube do
Brasil.
Marcia Agrau. Ficcionista e poetisa. Secretária Executiva do PEN Clube do Brasil.
Paulo Roberto Pereira. Professor, ensaísta e crítico literário. Organizou a edição de
As comédias de Antônio José, O Judeu; e a edição do centenário da Obra completa de
Euclides da Cunha.
Raquel Naveira. Professora, poeta e ficcionista. Membro titular do PEN Clube do
Brasil.
Sebastiano Grasso. Escritor e Presidente do PEN Clube de Milão, Itália.
Tanussi Cardoso. Poeta, jornalista e membro titular do PEN Clube do Brsil.
Tereza Cristina Meireles de Oliveira. Poeta e membro da Academia Carioca de
Letras.
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