Jackie Wullschlager Chagall
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Jackie Wullschlager Chagall
J a c k i e Wu l l s c h l a g e r Chagall Amor e Exílio tradução: Maria Silvia Mourão Netto R_chagall.indd 3 20/10/2009 17:12:50 Para William R_chagall.indd 5 20/10/2009 17:12:50 Sumário Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Pa r t e I R ú s s i a Capítulo 1 “Minha triste e jovial cidade” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 Capítulo 2 O estúdio de pen . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 Capítulo 3 A cidade proibida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 Capítulo 4 Thea . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102 Capítulo 5 Bella . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124 Capítulo 6 Léon Bakst . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 Capítulo 7 “Sobrenatural!” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 Capítulo 8 Blaise Cendrars . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194 Capítulo 9 “Meu gênio feroz” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218 Capítulo 10 Volta para casa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 234 Capítulo 11 Um homem casado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256 Capítulo 12 O comissário Chagall e o camarada Malevich . . . . . . . . . . 283 Capítulo 13 A caixa de Chagall . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 320 R_chagall.indd 7 20/10/2009 17:12:50 Pa r t e I I E x í l i o R_chagall.indd 8 Capítulo 14 Der sturm . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo 15 Almas mortas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo 16 “Lumière-liberté” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo 17 Os profetas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo 18 Judeu peregrino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo 19 Crucificação branca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo 20 América . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo 21 Virginia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo 22 Retorno à Europa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo 23 Vava . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo 24 Década da grande parede . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo 25 “Eu fui um bom artista, não fui?” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351 371 392 420 445 464 491 519 553 585 613 639 Lista de ilustrações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 653 659 663 705 20/10/2009 17:12:50 Prólogo Em um dia abafado de junho de 1943, em um pequeno apartamento da rua 74 leste, em Manhattan, quatro judeus russos estão reunidos: um pintor, sua esposa escritora, um ator e um poeta. Dois tinham chegado a pouco de Moscou, para uma visita diplomática inédita; dois eram exilados recentes da França ocupada. Nascidos no final do século xix, em pontos longínquos do império czarista, eram amigos íntimos de longa data, compartilhando então intensas recordações de colaboração artística nos idos de 1920, na Rússia. Entre chávenas de chá adoçadas com geleia, a conversa segue exaltada. Falam do avanço nazista pelo Leste Europeu e de suas esperanças de que o Exército Vermelho possa detê-lo. De suas famílias, perdidas ou escondidas, que talvez estejam vivas, talvez não. De pintura, teatro, literatura. Às vezes, a conversa se ameniza entre passos de dança ou pilhérias, mas nunca se solta completamente, pois os quatro sabem que pelo menos um deles é espião. No entanto, ninguém está seguro de quem ele é, e inclusive o próprio espião teme estar sendo espionado. Enquanto tentam destrinchar a verdade, o pintor, o ator, a escritora e o poeta equilibram precariamente suas necessidades artísticas e a sobrevivência, em meio à ânsia de lealdade entre todos eles, a suas raízes judaicas, à Rússia. Além disso, são todos alvo de vigilância do fbi. Exilado em Nova York em plena guerra, recusando-se a aprender inglês, Marc Chagall, neste momento, está na metade de uma longa vida. A precarie- R_chagall.indd 13 20/10/2009 17:12:50 dade de suas circunstâncias existenciais nos Estados Unidos não dá pistas de seu passado agitado como pioneiro da arte moderna em Montparnasse, nem de seu papel seguinte como líder de vanguarda na Rússia revolucionária, ou de seu futuro como o rico, famoso e mais antigo membro remanescente da Escola de Paris. Em 1943, embora Chagall tenha um marchand em Nova York, ele não está vendendo bem seus quadros. A tela em que está trabalhando é um retrato duplo em uma paisagem coberta de neve e iluminada pelo luar, levemente surreal, prenhe de ameaças, denominada Entre o cão e o lobo. Nessa tela, um poste de luz com pernas, que não lança luz nenhuma, atravessa uma rua tenebrosa. O rosto de Chagall, nessa pintura, é uma máscara azul; sua esposa, fantasmagoricamente branca, está envolta em um xale vermelho: essas três cores evocam a bandeira francesa e sua saudade da França. Os outros ocupantes daquela sala de estar claustrofóbica estão nervosos, todos temendo por sua vida: nenhum deles duraria até o fim da década. Itzik Feffer, o belo e encantador poeta, de sorriso largo e grandes óculos, é um repórter militar e tenente-coronel do Exército Vermelho, e adora aventuras. Está escrevendo um épico, The shadows of the Warsaw ghetto [As sombras do gueto de Varsóvia], sobre a destruição dos judeus na Polônia. Também está a um passo de ter um romance com Ida, a jovem filha casada de Chagall, dona de uma cabeleira à Ticiano. Feffer tem muito a perder: seus poemas patrióticos são populares na União Soviética e ele é um herói reconhecido. Mas em meio a um clima de suspeitas, ele acaba de se integrar à nkfv — a polícia secreta de Stalin — e está observando de muito perto seu amigo Solomon Mikhoels. Mikhoels tem olhos grandes, traços expressivos, uma voz carismática, melódica e cadenciada, e o corpo acrobático de um ator. Está em Nova York em posição de autoridade, como diretor do Comitê Judaico Antifascista, com a missão ostensiva de arrecadar fundos e apoio entre os judeus americanos, para auxiliar o esforço de guerra soviético. Mas é a própria guerra que está prolongando a sua vida. Posto em contato com o escritor Isaac Babel (morto em 1940) pelo capanga de Stalin, Lavrenty Beria, foi salvo porque sua posição como ator e intelectual celebre é útil ao regime soviético. Ele também tem seus interesses secretos na situação: investigar um relatório científico apresentado por um físico russo, relativo à teoria da estrutura atômica. Ele é fotogra14 Jackie Wullschlager R_chagall.indd 14 20/10/2009 17:12:50 fado com Albert Einstein, mas sabe que, por mais sucesso que tenha em seu papel de espião, seus dias estão praticamente contados. Para Chagall, contudo, Mikhoels simboliza o caminho não percorrido: o ator era seu melhor amigo em Moscou e agora representa o judeu que ficou na Rússia: “Se, como ele disse, Mikhoels um dia aprendeu coisas comigo, talvez agora eu deva aprender com ele. Então eu mesmo não teria me afogado em dúvidas como em uma lata de tinta que pinta a cara e a alma judaica em tons de mistério e tristeza”. A anfitriã no apartamento, Bella Chagall, absorve as notícias de casa como uma esponja seca. Está tentando terminar Luzes acesas, suas reminiscências da cultura judaica na Rússia, escrita em uma prosa trêmula e entrecortada, no iídiche de sua infância. “Anseio por resgatar minhas recordações e não permitir que se apaguem para sempre comigo” é a abertura de seu texto. Tinha estudado para se tornar atriz, mas então seguiu Chagall no exílio. Ela espera dos visitantes de Moscou notícias da cidade onde ela e o marido tinham nascido e crescido, mas para isso teria de esperar mais um ano. Os nazistas foram derrotados em Vitebsk, em junho de 1944, em combates tão intensos que a cidade se viu reduzida a escombros. Restaram 15 edifícios e, de uma população original de 170 mil habitantes, somente 118 sobreviventes saíram dos porões. *** Marc Chagall, pioneiro da arte moderna e um dos maiores pintores figurativos, inventou uma linguagem visual que registrou a excitação e o terror do século xx. Em suas telas lia-se o triunfo do modernismo, a inovação na arte com a expressão da vida interior que, em um paralelo com a literatura da interiorização — em Proust, Kafka e Joyce — e com a psicanálise de Freud, é um dos derradeiros legados icônicos do século passado. Ao mesmo tempo, Chagall era pessoalmente varrido pelos horrores da história europeia entre 1914 e 1945: guerras mundiais, revolução, perseguição étnica, o assassinato e o exílio de milhões de pessoas. Em uma era em que muitos dos principais artistas fugiam da realidade e seguiam os rumos da abstração, Chagall destilava suas experiências com o horror e a tragédia criando imaChagall R_chagall.indd 15 15 20/10/2009 17:12:50 gens a um só tempo imediatas, simples e simbólicas, com as quais qualquer um poderia interagir. Chagall rompeu com o ambiente pobre e insípido de sua infância, somente para recriá-lo nas cenas com as quais está para sempre associado — cabanas de madeira e sinagogas, violinistas e rabinos —, elementos da vida no final do século xix nas pequenas comunidades de judeus russos. Assimilando sem esforço cada inovação estética de sua época, o artista desenvolveu um estilo original e radical: os ambientes interioranos [shtetl settings] fundem a realidade cotidiana com um mundo imaginário e transmitem tanto a perda como o milagre da sobrevivência. Ele mesmo negociou o exílio por meio de uma série de adaptações, conforme viajava de leste para oeste, da opressão primeiro da Rússia czarista e depois soviética, rumo a Berlim e Paris, e da Europa nazista para os Estados Unidos. Cada mudança arduamente conquistada impregnava sua arte com ares de renovação e ressonância. A Rússia, entretanto, continuava sendo a nascente. “Na minha imaginação, a Rússia aparecia como um balão de papel suspenso de um paraquedas. A pera achatada do balão pendia, resfriada, lentamente decaindo ao longo dos anos.” Com o passar do tempo, em suas pinturas de Vitebsk, ele terminou transformando o medo e a saudade de um ambiente derrotado pelo terror vigente em meados do século em um emblema da própria memória. Poucos pintores entrelaçaram de forma tão inextricável arte e vida. O trabalho de Chagall e sua existência diária transformaram-se ambas em sua tríplice fixação: o judaísmo, a Rússia e o amor. Ou, em termos mais universais, as preocupações atemporais da religião, da noção de pertença social e emocional, e o sexo. No entanto, os relacionamentos que alimentaram sua arte ameaçavam causar efeitos aniquiladores em sua esfera pessoal. Sua mãe, sua namorada, Thea, sua filha, Ida, e sua enteada, Jean, suas esposas, Bella e Virginia, foram todas sacrificadas de diversas maneiras. Somente com sua esposa Vava, por mais ardiloso e duro que fosse, Chagall enfim encontrou alguém à sua altura — momento em que a troca foi invertida e sua arte fraquejou diante dos confortos da vida. Sua esposa Bella teve um papel especial. A correspondência do casal revela uma relação difícil, doce e amarga, que desmente sua imagem de 16 Jackie Wullschlager R_chagall.indd 16 20/10/2009 17:12:50 musa. Para Bella, a necessidade de se adaptar vinha entrelaçada a outra revolução do século xx: a luta das mulheres por uma existência criativa e profissional independente. Os retratos de Chagall narram com eloquência a batalha de uma mulher imaginativa, intelectual e decidida para viver a própria vida. Audácia e esperança em Minha noiva com luvas pretas (1909). Realização em Bella com gola branca, pintado às vésperas da Revolução Russa. A busca da identidade em Bella com um cravo (1924). Desespero em Bella de verde (1934). Entretanto, para Chagall, ela sempre encarnou a Rússia judaica: “A quem compará-la? Ela era sem igual. Ela era o Bashenka-Belloshka de Vitebsk na colina, refletido no Dvina com suas nuvens, árvores e casas”. Em agosto de 1923, em uma carta escrita durante uma fase tempestuosa, quando ele morava em Paris e ela estava em Berlim, ele temia estar pedindo muito. Ele dizia que, para usar uma expressão russa, ele queria que ela “acordasse com a minha própria ressaca”. Bella era a ligação viva de Chagall com a Rússia, que lhe permitia evoluir como artista no exílio, em contraste com diversos outros artistas russos emigrados cujo trabalho murchava assim que saíam de sua terra natal. Mas então essa ligação de repente se partiu e Chagall, grande artista e egoísta consumado, ficou batendo cabeça como um alucinado, para todo lado, para se recordar de “trechos da minha Vitebsk e da época em que eu passava por suas ruas, ou subia nos telhados e chaminés, pensando que eu era o único da cidade e que todas as garotas estavam esperando por mim, e que os túmulos do antigo cemitério estavam ouvindo a minha voz, e a Lua e as nuvens estavam seguindo meus passos e, junto comigo, dobravam esquinas para percorrer outra rua [...]”. Chagall R_chagall.indd 17 17 20/10/2009 17:12:50 Pa r t e i Rússia R_chagall.indd 19 20/10/2009 17:12:50 Capítulo 1 “Minha triste e jovial cidade” Vi t e b s k , 1 8 8 7 - 1 9 0 0 “Todo pintor nasce em algum lugar”, Chagall comentava pensativo, em sua condição de exilado nos Estados Unidos nos anos 1940. “E embora mais tarde ele possa reagir às influências de outros ambientes, uma certa essência — um certo ‘aroma’ de seu local de nascimento adere à sua obra [...] A marca vital que essas primeiras influências deixam permanece, por assim dizer, na caligrafia do artista. Isso fica claro para nós no caráter das árvores e jogadores de baralho de um Cézanne, nascido na França, nas retorcidas sinuosidades dos horizontes e figuras de um Van Gogh, nascido na Holanda, nos ornamentos quase árabes de um Picasso, nascido na Espanha, na sensação linear do Quattrocento em Modigliani, nascido na Itália. É dessa maneira que espero ter preservado as influências da minha infância.” Vitebsk, “minha triste e jovial cidade”, estava se aproximando do zênite de seu desenvolvimento como sólido posto militar avançado de província, dentro do vasto Império Russo, quando Chagall nasceu ali, em 7 de julho de 1887. A verde e barroca catedral de Uspensky, na colina que encimava a silhueta da cidade com seus domos brilhantes, em formato de cebola, de 30 igrejas e 60 sinagogas, e o amontoado de casas de madeiras e judeus cami- R_chagall.indd 21 20/10/2009 17:12:50 nhando de um lado para outro, retratados em telas como Sobre Vitebsk denunciam uma herança cultural mesclada e longa. O artista Ilya Repin chamava Vitebsk de “a Toledo russa” porque, assim como a cidade de El Greco, sua silhueta acrobática era caracterizada por uma mistura de elementos arquitetônicos cristãos e judaicos, em suas agulhas, torres e domos, remontando à igreja da Anunciação, uma construção do século xii. Instalada em uma região de lagos azuis, florestas de pinheiros, amplas planícies e colinas suaves, a pitoresca e antiga cidade da Rússia Branca eleva-se às margens do largo rio Dvina, no qual deságuam dois tributários, o Vitba e o Luchesa. Ali, durante os invernos que duravam seis meses sob a neve e os breves e abafados períodos de verão, em que cabanas para banhistas permaneciam por pouco tempo montadas nas margens do rio, a vida sempre fora dura: Vitebsk tinha sido uma cidade contestada ao largo de toda a sua história. Como cidade fortificada na lucrativa rota comercial que interligava Kiev, Novgorod, Bizâncio e o mar Báltico desde o século x, Vitebsk pertencera à Lituânia na Idade Média e depois à Polônia, apesar de frequentemente incendiada por invasores russos. Foi anexada pela Rússia no século xviii e se tornou a borda nordeste do Território do Assentamento — área que hoje compreende Belarus (exBielorrússia, Lituânia, parte da Polônia, Letônia e Ucrânia —, o território ao qual Catarina, a Grande confinara todos os judeus de seu império. Em 1890 havia cinco milhões de judeus na região, concentrados em cidades de porte médio como Vitebsk e na vizinha Dvinsk (hoje Daugavpils), constituindo 40% da população judaica mundial. A partir da década de 1860, as novas ferrovias Moscou—Riga e Kiev—São Petersburgo encontravam-se em Vitebsk, trazendo grandes grupos de pessoas que para lá afluíam oriundas do campo e, assim, pela primeira vez, aconteceu ali a formação de um proletariado urbano. Entre 1869 e 1890, a população de Vitebsk dobrou e chegou a 66 mil habitantes, mais da metade dos quais era de judeus, envolvidos em pequenas atividades comerciais negociando papel, óleo, ferro, peles, farinha, açúcar, arenques — o conjunto que fazia a cidade prosperar. Os demais cidadãos eram russos, russos brancos e polacos, mas os judeus eram tão essenciais ao comércio e aos negócios que, segundo um habitante, 22 Jackie Wullschlager R_chagall.indd 22 20/10/2009 17:12:50 Se eu fosse um forasteiro, e não um habitante de Vitebsk, e depois de ter lido as placas das lojas e os nomes dos inquilinos e dos prédios fizesse uma lista dos ocupantes de cada metro de todas as ruas, terminaria por dizer que Vitebsk era uma cidade puramente judia, construída por judeus, com sua iniciativa, energia e dinheiro. A sensação de que Vitebsk era uma cidade judia se fazia especialmente nítida nos feriados judaicos e no sabá, quando todos os escritórios, lojas e fábricas ficam fechados e silenciosos. Até nas repartições oficiais, como o Banco do Governo, o Cartório, o Fórum, os Correios e Telégrafos, e assim por diante. Vitebsk com o rio Dvina, c. 1900 O iídiche, ali como em todo o Território do Assentamento, era a línguamãe de quase toda a população judia, metade da qual não era capaz de falar em nenhum outro idioma. A língua distinguia a cultura judaica de cidades como Vitebsk em meio ao mar de aldeias eslavas atrasadas e brutalizadas que as rodeavam, aldeias cujos habitantes ainda eram servos há apenas uma geração antes do nascimento de Chagall. O iídiche era a língua oficial de Chagall até a adolescência, a língua que sua família falava em casa, e seu uso consagrava uma sensação de segurança e pertença, de participação em um sistema autônomo de valores, tradições religiosas e leis que um judeu do século xix não poderia encontrar em nenhuma outra parte. Chagall R_chagall.indd 23 23 20/10/2009 17:12:51 Os judeus que chegavam a Vitebsk vindos de assentamentos menores no território designado por Catarina, a Grande, portanto, sentiam-se imediatamente em casa. Entre estes, em 1886, estava uma moça magra e franzina de 20 anos, chamada Feiga-Ita Tchernina, a filha mais velha do açougueiro e abatedor kosher da pequena cidade interiorana de Lyozno, aproximadamente 65 km a leste. Sua mãe, Chana, tinha morrido há pouco tempo e Feiga-Ita estava deixando para trás uma existência empobrecida em que seu pai “passara a metade da vida no fogão, um quarto na sinagoga e o resto no açougue”, rodeado pelos filhos mais indolentes de sua prole, aqueles que não tinham se aventurado na cidade. Seu famoso neto os retratou, afetuosamente, como caricaturas da inércia russa da província: o tio Leiba sentado o dia todo em um banco do lado de fora da casa, enquanto “as filhas zanzam como vacas vermelhas”; a pálida tia Mariassaja “esparramada no sofá [...] com seu corpo estendido, exausta, os seios murchos e descaídos”; o tio Judah “ainda está ao fogão, raramente sai de casa”; o tio Israel “ainda está no mesmo lugar [...] se aquecendo, de olhos fechados, diante do fogão”; somente o tio Neuch, com sua carroça e sua égua, imortalizados na tela intitulada O negociante de gado, trabalhava em algo. Essa era a Rússia rural que levava os burocratas e intelectuais de São Petersburgo ao desespero — “em nenhuma outra parte da Europa é possível encontrar tamanha incapacidade para o trabalho consistente, moderado, medido”, como escreveu o historiador do século xix Vasilii Kliuchevskii — e que, não obstante, era repleta de cores, sensações e vida. Feiga-Ita chegou a Vitebsk para se casar com Khatskel (equivalente em iídiche a Ezekiel, que em russo era traduzido como Zakhar e abreviado em família para Hasha, Chaty ou Chazia) Shagal, de 23 anos, um primo distante que ela não conhecia. Como era habitual entre os judeus ortodoxos de então, tratava-se de um casamento arranjado. Khatskel tinha saído de Lyozno há pouco tempo, em companhia dos pais, David e Basheva, rumo à próspera cidade. Era ajudante no armazém de arenques de Jachnine, instalado nas margens do Dvina, e morava perto do presídio da cidade, no subúrbio de Peskovatik, a noroeste do centro, para onde se dirigiam os recém-chegados, e que se abrigava à sombra de sua igreja da Santíssima Trindade, uma construção datada do século xvii e comumente conhecida como a “Trindade Negra”. Seu pai, já na 24 Jackie Wullschlager R_chagall.indd 24 20/10/2009 17:12:51 casa dos 60 anos, conseguia sobreviver como professor eventual de religião para os meninos pobres da localidade. Um irmão mais novo e franzino, Zussy, ficara para trás em Lyozno, trabalhando como aprendiz de cabeleireiro; carente de iniciativa e infantilmente vaidoso, era o único da extensa família que mais tarde se interessou pelas pinturas do sobrinho, embora tivesse se recusado a guardar o seu retrato por considerá-lo insuficientemente lisonjeiro. Chagall, Vitebsk, 1914, desenho Peskovatik significa “nas areias”, e a casa em que Feiga-Ita se uniu a Khatskel não era tão diferente daquela na cidadezinha que tinha acabado de deixar. As estradas não eram pavimentadas; ao longo de seu trajeto, cabanas de madeira se erguiam desordenadas, com pequenos quintais onde galinhas e bodes ciscavam e pastavam. O gado perambulava por trilhas de terra e entrava nas casas e lojas, conferindo um clima rural a todo o cenário. Feiga-Ita ordenhava as cabras em seu quintal, mas mesmo os abastados Rosenfeld, os Chagall R_chagall.indd 25 25 20/10/2009 17:12:51
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