Jackie Wullschlager Chagall

Transcrição

Jackie Wullschlager Chagall
J a c k i e Wu l l s c h l a g e r
Chagall
Amor e Exílio
tradução:
Maria Silvia Mourão Netto
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Para William
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Sumário
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Pa r t e I R ú s s i a
Capítulo 1 “Minha triste e jovial cidade” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
Capítulo 2 O estúdio de pen . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
Capítulo 3 A cidade proibida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
Capítulo 4 Thea . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
Capítulo 5 Bella . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
Capítulo 6 Léon Bakst . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
Capítulo 7 “Sobrenatural!” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167
Capítulo 8 Blaise Cendrars . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194
Capítulo 9 “Meu gênio feroz” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218
Capítulo 10 Volta para casa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 234
Capítulo 11 Um homem casado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256
Capítulo 12 O comissário Chagall e o camarada Malevich . . . . . . . . . . 283
Capítulo 13 A caixa de Chagall . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 320
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Pa r t e I I E x í l i o
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Capítulo 14 Der sturm . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo 15 Almas mortas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo 16 “Lumière-liberté” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo 17 Os profetas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo 18 Judeu peregrino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo 19 Crucificação branca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo 20 América . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo 21 Virginia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo 22 Retorno à Europa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo 23 Vava . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo 24 Década da grande parede . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo 25 “Eu fui um bom artista, não fui?” . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Lista de ilustrações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Prólogo
Em um dia abafado de junho de 1943, em um pequeno apartamento da rua
74 leste, em Manhattan, quatro judeus russos estão reunidos: um pintor, sua
esposa escritora, um ator e um poeta. Dois tinham chegado a pouco de
Moscou, para uma visita diplomática inédita; dois eram exilados recentes
da França ocupada. Nascidos no final do século xix, em pontos longínquos do
império czarista, eram amigos íntimos de longa data, compartilhando então
intensas recordações de colaboração artística nos idos de 1920, na Rússia.
Entre chávenas de chá adoçadas com geleia, a conversa segue exaltada. Falam
do avanço nazista pelo Leste Europeu e de suas esperanças de que o Exército
Vermelho possa detê-lo. De suas famílias, perdidas ou escondidas, que talvez
estejam vivas, talvez não. De pintura, teatro, literatura. Às vezes, a conversa se
ameniza entre passos de dança ou pilhérias, mas nunca se solta completamente, pois os quatro sabem que pelo menos um deles é espião. No entanto,
ninguém está seguro de quem ele é, e inclusive o próprio espião teme estar
sendo espionado. Enquanto tentam destrinchar a verdade, o pintor, o ator, a
escritora e o poeta equilibram precariamente suas necessidades artísticas e
a sobrevivência, em meio à ânsia de lealdade entre todos eles, a suas raízes
judaicas, à Rússia. Além disso, são todos alvo de vigilância do fbi.
Exilado em Nova York em plena guerra, recusando-se a aprender inglês,
Marc Chagall, neste momento, está na metade de uma longa vida. A precarie-
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dade de suas circunstâncias existenciais nos Estados Unidos não dá pistas de
seu passado agitado como pioneiro da arte moderna em Montparnasse, nem
de seu papel seguinte como líder de vanguarda na Rússia revolucionária, ou de
seu futuro como o rico, famoso e mais antigo membro remanescente da Escola
de Paris. Em 1943, embora Chagall tenha um marchand em Nova York, ele não
está vendendo bem seus quadros. A tela em que está trabalhando é um retrato
duplo em uma paisagem coberta de neve e iluminada pelo luar, levemente surreal, prenhe de ameaças, denominada Entre o cão e o lobo. Nessa tela, um poste
de luz com pernas, que não lança luz nenhuma, atravessa uma rua tenebrosa. O
rosto de Chagall, nessa pintura, é uma máscara azul; sua esposa, fantasmagoricamente branca, está envolta em um xale vermelho: essas três cores evocam a
bandeira francesa e sua saudade da França.
Os outros ocupantes daquela sala de estar claustrofóbica estão nervosos,
todos temendo por sua vida: nenhum deles duraria até o fim da década. Itzik
Feffer, o belo e encantador poeta, de sorriso largo e grandes óculos, é um repórter militar e tenente-coronel do Exército Vermelho, e adora aventuras. Está
escrevendo um épico, The shadows of the Warsaw ghetto [As sombras do gueto
de Varsóvia], sobre a destruição dos judeus na Polônia. Também está a um
passo de ter um romance com Ida, a jovem filha casada de Chagall, dona de
uma cabeleira à Ticiano. Feffer tem muito a perder: seus poemas patrióticos
são populares na União Soviética e ele é um herói reconhecido. Mas em meio
a um clima de suspeitas, ele acaba de se integrar à nkfv — a polícia secreta de
Stalin — e está observando de muito perto seu amigo Solomon Mikhoels.
Mikhoels tem olhos grandes, traços expressivos, uma voz carismática,
melódica e cadenciada, e o corpo acrobático de um ator. Está em Nova York
em posição de autoridade, como diretor do Comitê Judaico Antifascista, com
a missão ostensiva de arrecadar fundos e apoio entre os judeus americanos,
para auxiliar o esforço de guerra soviético. Mas é a própria guerra que está
prolongando a sua vida. Posto em contato com o escritor Isaac Babel (morto
em 1940) pelo capanga de Stalin, Lavrenty Beria, foi salvo porque sua posição
como ator e intelectual celebre é útil ao regime soviético. Ele também tem
seus interesses secretos na situação: investigar um relatório científico apresentado por um físico russo, relativo à teoria da estrutura atômica. Ele é fotogra14 Jackie Wullschlager
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fado com Albert Einstein, mas sabe que, por mais sucesso que tenha em seu
papel de espião, seus dias estão praticamente contados. Para Chagall, contudo, Mikhoels simboliza o caminho não percorrido: o ator era seu melhor amigo
em Moscou e agora representa o judeu que ficou na Rússia: “Se, como ele
disse, Mikhoels um dia aprendeu coisas comigo, talvez agora eu deva aprender
com ele. Então eu mesmo não teria me afogado em dúvidas como em uma lata
de tinta que pinta a cara e a alma judaica em tons de mistério e tristeza”.
A anfitriã no apartamento, Bella Chagall, absorve as notícias de casa
como uma esponja seca. Está tentando terminar Luzes acesas, suas reminiscências da cultura judaica na Rússia, escrita em uma prosa trêmula e entrecortada, no iídiche de sua infância. “Anseio por resgatar minhas recordações
e não permitir que se apaguem para sempre comigo” é a abertura de seu texto.
Tinha estudado para se tornar atriz, mas então seguiu Chagall no exílio. Ela
espera dos visitantes de Moscou notícias da cidade onde ela e o marido tinham nascido e crescido, mas para isso teria de esperar mais um ano. Os
nazistas foram derrotados em Vitebsk, em junho de 1944, em combates tão
intensos que a cidade se viu reduzida a escombros. Restaram 15 edifícios e,
de uma população original de 170 mil habitantes, somente 118 sobreviventes
saíram dos porões.
***
Marc Chagall, pioneiro da arte moderna e um dos maiores pintores figurativos, inventou uma linguagem visual que registrou a excitação e o terror
do século xx. Em suas telas lia-se o triunfo do modernismo, a inovação na
arte com a expressão da vida interior que, em um paralelo com a literatura
da interiorização — em Proust, Kafka e Joyce — e com a psicanálise de
Freud, é um dos derradeiros legados icônicos do século passado. Ao mesmo
tempo, Chagall era pessoalmente varrido pelos horrores da história europeia
entre 1914 e 1945: guerras mundiais, revolução, perseguição étnica, o assassinato e o exílio de milhões de pessoas. Em uma era em que muitos dos
principais artistas fugiam da realidade e seguiam os rumos da abstração,
Chagall destilava suas experiências com o horror e a tragédia criando imaChagall
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gens a um só tempo imediatas, simples e simbólicas, com as quais qualquer
um poderia interagir.
Chagall rompeu com o ambiente pobre e insípido de sua infância,
somente para recriá-lo nas cenas com as quais está para sempre associado
— cabanas de madeira e sinagogas, violinistas e rabinos —, elementos da vida
no final do século xix nas pequenas comunidades de judeus russos.
Assimilando sem esforço cada inovação estética de sua época, o artista desenvolveu um estilo original e radical: os ambientes interioranos [shtetl settings]
fundem a realidade cotidiana com um mundo imaginário e transmitem tanto
a perda como o milagre da sobrevivência. Ele mesmo negociou o exílio por
meio de uma série de adaptações, conforme viajava de leste para oeste, da
opressão primeiro da Rússia czarista e depois soviética, rumo a Berlim e Paris,
e da Europa nazista para os Estados Unidos. Cada mudança arduamente
conquistada impregnava sua arte com ares de renovação e ressonância. A
Rússia, entretanto, continuava sendo a nascente. “Na minha imaginação, a
Rússia aparecia como um balão de papel suspenso de um paraquedas. A pera
achatada do balão pendia, resfriada, lentamente decaindo ao longo dos anos.”
Com o passar do tempo, em suas pinturas de Vitebsk, ele terminou transformando o medo e a saudade de um ambiente derrotado pelo terror vigente em
meados do século em um emblema da própria memória.
Poucos pintores entrelaçaram de forma tão inextricável arte e vida. O
trabalho de Chagall e sua existência diária transformaram-se ambas em sua
tríplice fixação: o judaísmo, a Rússia e o amor. Ou, em termos mais universais, as preocupações atemporais da religião, da noção de pertença social e
emocional, e o sexo. No entanto, os relacionamentos que alimentaram sua
arte ameaçavam causar efeitos aniquiladores em sua esfera pessoal. Sua mãe,
sua namorada, Thea, sua filha, Ida, e sua enteada, Jean, suas esposas, Bella
e Virginia, foram todas sacrificadas de diversas maneiras. Somente com sua
esposa Vava, por mais ardiloso e duro que fosse, Chagall enfim encontrou
alguém à sua altura — momento em que a troca foi invertida e sua arte fraquejou diante dos confortos da vida.
Sua esposa Bella teve um papel especial. A correspondência do casal
revela uma relação difícil, doce e amarga, que desmente sua imagem de
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musa. Para Bella, a necessidade de se adaptar vinha entrelaçada a outra revolução do século xx: a luta das mulheres por uma existência criativa e profissional independente. Os retratos de Chagall narram com eloquência a batalha de uma mulher imaginativa, intelectual e decidida para viver a própria
vida. Audácia e esperança em Minha noiva com luvas pretas (1909). Realização
em Bella com gola branca, pintado às vésperas da Revolução Russa. A busca
da identidade em Bella com um cravo (1924). Desespero em Bella de verde
(1934). Entretanto, para Chagall, ela sempre encarnou a Rússia judaica: “A
quem compará-la? Ela era sem igual. Ela era o Bashenka-Belloshka de
Vitebsk na colina, refletido no Dvina com suas nuvens, árvores e casas”. Em
agosto de 1923, em uma carta escrita durante uma fase tempestuosa, quando
ele morava em Paris e ela estava em Berlim, ele temia estar pedindo muito.
Ele dizia que, para usar uma expressão russa, ele queria que ela “acordasse
com a minha própria ressaca”. Bella era a ligação viva de Chagall com a
Rússia, que lhe permitia evoluir como artista no exílio, em contraste com
diversos outros artistas russos emigrados cujo trabalho murchava assim que
saíam de sua terra natal. Mas então essa ligação de repente se partiu e
Chagall, grande artista e egoísta consumado, ficou batendo cabeça como um
alucinado, para todo lado, para se recordar de “trechos da minha Vitebsk e da
época em que eu passava por suas ruas, ou subia nos telhados e chaminés,
pensando que eu era o único da cidade e que todas as garotas estavam esperando por mim, e que os túmulos do antigo cemitério estavam ouvindo a
minha voz, e a Lua e as nuvens estavam seguindo meus passos e, junto comigo, dobravam esquinas para percorrer outra rua [...]”.
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Pa r t e i
Rússia
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Capítulo 1
“Minha triste e jovial cidade”
Vi t e b s k , 1 8 8 7 - 1 9 0 0
“Todo pintor nasce em algum lugar”, Chagall comentava pensativo, em
sua condição de exilado nos Estados Unidos nos anos 1940. “E embora mais
tarde ele possa reagir às influências de outros ambientes, uma certa essência
— um certo ‘aroma’ de seu local de nascimento adere à sua obra [...] A marca
vital que essas primeiras influências deixam permanece, por assim dizer, na
caligrafia do artista. Isso fica claro para nós no caráter das árvores e jogadores
de baralho de um Cézanne, nascido na França, nas retorcidas sinuosidades
dos horizontes e figuras de um Van Gogh, nascido na Holanda, nos ornamentos quase árabes de um Picasso, nascido na Espanha, na sensação linear do
Quattrocento em Modigliani, nascido na Itália. É dessa maneira que espero
ter preservado as influências da minha infância.”
Vitebsk, “minha triste e jovial cidade”, estava se aproximando do zênite
de seu desenvolvimento como sólido posto militar avançado de província,
dentro do vasto Império Russo, quando Chagall nasceu ali, em 7 de julho de
1887. A verde e barroca catedral de Uspensky, na colina que encimava a silhueta da cidade com seus domos brilhantes, em formato de cebola, de 30
igrejas e 60 sinagogas, e o amontoado de casas de madeiras e judeus cami-
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nhando de um lado para outro, retratados em telas como Sobre Vitebsk denunciam uma herança cultural mesclada e longa. O artista Ilya Repin chamava Vitebsk de “a Toledo russa” porque, assim como a cidade de El Greco, sua
silhueta acrobática era caracterizada por uma mistura de elementos arquitetônicos cristãos e judaicos, em suas agulhas, torres e domos, remontando à
igreja da Anunciação, uma construção do século xii. Instalada em uma região
de lagos azuis, florestas de pinheiros, amplas planícies e colinas suaves, a
pitoresca e antiga cidade da Rússia Branca eleva-se às margens do largo rio
Dvina, no qual deságuam dois tributários, o Vitba e o Luchesa. Ali, durante
os invernos que duravam seis meses sob a neve e os breves e abafados períodos de verão, em que cabanas para banhistas permaneciam por pouco tempo
montadas nas margens do rio, a vida sempre fora dura: Vitebsk tinha sido uma
cidade contestada ao largo de toda a sua história. Como cidade fortificada na
lucrativa rota comercial que interligava Kiev, Novgorod, Bizâncio e o mar
Báltico desde o século x, Vitebsk pertencera à Lituânia na Idade Média e
depois à Polônia, apesar de frequentemente incendiada por invasores russos.
Foi anexada pela Rússia no século xviii e se tornou a borda nordeste do
Território do Assentamento — área que hoje compreende Belarus (exBielorrússia, Lituânia, parte da Polônia, Letônia e Ucrânia —, o território ao
qual Catarina, a Grande confinara todos os judeus de seu império.
Em 1890 havia cinco milhões de judeus na região, concentrados em
cidades de porte médio como Vitebsk e na vizinha Dvinsk (hoje Daugavpils),
constituindo 40% da população judaica mundial. A partir da década de
1860, as novas ferrovias Moscou—Riga e Kiev—São Petersburgo encontravam-se em Vitebsk, trazendo grandes grupos de pessoas que para lá
afluíam oriundas do campo e, assim, pela primeira vez, aconteceu ali a
formação de um proletariado urbano. Entre 1869 e 1890, a população de
Vitebsk dobrou e chegou a 66 mil habitantes, mais da metade dos quais era
de judeus, envolvidos em pequenas atividades comerciais negociando
papel, óleo, ferro, peles, farinha, açúcar, arenques — o conjunto que fazia
a cidade prosperar. Os demais cidadãos eram russos, russos brancos e polacos, mas os judeus eram tão essenciais ao comércio e aos negócios que,
segundo um habitante,
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Se eu fosse um forasteiro, e não um habitante de Vitebsk, e depois de ter lido
as placas das lojas e os nomes dos inquilinos e dos prédios fizesse uma lista dos
ocupantes de cada metro de todas as ruas, terminaria por dizer que Vitebsk era
uma cidade puramente judia, construída por judeus, com sua iniciativa, energia e
dinheiro. A sensação de que Vitebsk era uma cidade judia se fazia especialmente
nítida nos feriados judaicos e no sabá, quando todos os escritórios, lojas e fábricas ficam fechados e silenciosos. Até nas repartições oficiais, como o Banco do
Governo, o Cartório, o Fórum, os Correios e Telégrafos, e assim por diante.
Vitebsk com o rio Dvina, c. 1900
O iídiche, ali como em todo o Território do Assentamento, era a línguamãe de quase toda a população judia, metade da qual não era capaz de falar
em nenhum outro idioma. A língua distinguia a cultura judaica de cidades
como Vitebsk em meio ao mar de aldeias eslavas atrasadas e brutalizadas que
as rodeavam, aldeias cujos habitantes ainda eram servos há apenas uma geração antes do nascimento de Chagall. O iídiche era a língua oficial de Chagall
até a adolescência, a língua que sua família falava em casa, e seu uso consagrava uma sensação de segurança e pertença, de participação em um sistema
autônomo de valores, tradições religiosas e leis que um judeu do século xix
não poderia encontrar em nenhuma outra parte.
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Os judeus que chegavam a Vitebsk vindos de assentamentos menores no
território designado por Catarina, a Grande, portanto, sentiam-se imediatamente em casa. Entre estes, em 1886, estava uma moça magra e franzina de
20 anos, chamada Feiga-Ita Tchernina, a filha mais velha do açougueiro e
abatedor kosher da pequena cidade interiorana de Lyozno, aproximadamente
65 km a leste. Sua mãe, Chana, tinha morrido há pouco tempo e Feiga-Ita
estava deixando para trás uma existência empobrecida em que seu pai “passara a metade da vida no fogão, um quarto na sinagoga e o resto no açougue”,
rodeado pelos filhos mais indolentes de sua prole, aqueles que não tinham se
aventurado na cidade. Seu famoso neto os retratou, afetuosamente, como
caricaturas da inércia russa da província: o tio Leiba sentado o dia todo em
um banco do lado de fora da casa, enquanto “as filhas zanzam como vacas
vermelhas”; a pálida tia Mariassaja “esparramada no sofá [...] com seu corpo
estendido, exausta, os seios murchos e descaídos”; o tio Judah “ainda está ao
fogão, raramente sai de casa”; o tio Israel “ainda está no mesmo lugar [...] se
aquecendo, de olhos fechados, diante do fogão”; somente o tio Neuch, com
sua carroça e sua égua, imortalizados na tela intitulada O negociante de gado,
trabalhava em algo. Essa era a Rússia rural que levava os burocratas e intelectuais de São Petersburgo ao desespero — “em nenhuma outra parte da
Europa é possível encontrar tamanha incapacidade para o trabalho consistente, moderado, medido”, como escreveu o historiador do século xix Vasilii
Kliuchevskii — e que, não obstante, era repleta de cores, sensações e vida.
Feiga-Ita chegou a Vitebsk para se casar com Khatskel (equivalente em
iídiche a Ezekiel, que em russo era traduzido como Zakhar e abreviado em família para Hasha, Chaty ou Chazia) Shagal, de 23 anos, um primo distante que
ela não conhecia. Como era habitual entre os judeus ortodoxos de então, tratava-se de um casamento arranjado. Khatskel tinha saído de Lyozno há pouco
tempo, em companhia dos pais, David e Basheva, rumo à próspera cidade. Era
ajudante no armazém de arenques de Jachnine, instalado nas margens do
Dvina, e morava perto do presídio da cidade, no subúrbio de Peskovatik, a
noroeste do centro, para onde se dirigiam os recém-chegados, e que se abrigava à sombra de sua igreja da Santíssima Trindade, uma construção datada do
século xvii e comumente conhecida como a “Trindade Negra”. Seu pai, já na
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casa dos 60 anos, conseguia sobreviver como professor eventual de religião
para os meninos pobres da localidade. Um irmão mais novo e franzino, Zussy,
ficara para trás em Lyozno, trabalhando como aprendiz de cabeleireiro; carente
de iniciativa e infantilmente vaidoso, era o único da extensa família que mais
tarde se interessou pelas pinturas do sobrinho, embora tivesse se recusado a
guardar o seu retrato por considerá-lo insuficientemente lisonjeiro.
Chagall, Vitebsk, 1914, desenho
Peskovatik significa “nas areias”, e a casa em que Feiga-Ita se uniu a
Khatskel não era tão diferente daquela na cidadezinha que tinha acabado de
deixar. As estradas não eram pavimentadas; ao longo de seu trajeto, cabanas
de madeira se erguiam desordenadas, com pequenos quintais onde galinhas
e bodes ciscavam e pastavam. O gado perambulava por trilhas de terra e entrava nas casas e lojas, conferindo um clima rural a todo o cenário. Feiga-Ita
ordenhava as cabras em seu quintal, mas mesmo os abastados Rosenfeld, os
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