Violência no quotidiano de famílias de adolescentes

Transcrição

Violência no quotidiano de famílias de adolescentes
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE ENFERMAGEM
LUCIMEIRE CARVALHO DE ARAÚJO
VIOLÊNCIA NO QUOTIDIANO DE FAMÍLIAS DE ADOLESCENTES
NEGROS: ENFOQUES PARA O CUIDAR DE ENFERMAGEM
Salvador
2009
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LUCIMEIRE CARVALHO DE ARAÚJO
VIOLÊNCIA NO QUOTIDIANO DE FAMÍLIAS DE ADOLESCENTES
NEGROS: ENFOQUES PARA O CUIDAR DE ENFERMAGEM
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Enfermagem da Escola de Enfermagem Universidade
Federal da Bahia, como requisito para o título de Doutora
em Enfermagem, área de concentração “Gênero, Cuidado
e Administração em Saúde”.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Climene Laura de Camargo
Salvador
2009
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Escola de Enfermagem,
Escola de Enfermagem, UFBA.
Bibliotecária: Flávia Ferreira
A663
Araújo, Lucimeire Carvalho
Violência no quotidiano de famílias de adolescentes negros:
enfoques para o cuidar de enfermagem/Lucimeire Carvalho de Araújo.Salvador, 2009.
222f.: il
Orientadora: Climene Laura de Camargo
Tese (Doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de
Enfermagem, 2009.
1. Crime contra adolescente 2. Violência familiar. I. Camargo,
Climene Laura de. II Universidade Federal da Bahia. Escola de
Enfermagem. III. Título.
CDU: 343.435
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DEDICATÓRIA
Agradeço primeiramente a Deus, por ele ter iluminado meu caminho, a fim de que eu perseguisse o ideal de
Doutoramento e conseguisse concluir meus estudos. Aos meus pais serei eternamente grata pela
oportunidade de realizar um dos maiores sonhos da minha vida, que apesar do peso, das dificuldades e
incansáveis noites de sono perdidas acompanhando meu filho Ryan durante plantões, encorajaram-se em
prol da minha alegria e realização, mantendo meu controle emocional. Ao meu marido e meu filho pela
compreensão e tolerância de suportar este tempo de ausências sendo solidários em silêncio.
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AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas foram importantes para que mais uma janela se abrissse na minha vida, como o
construto de Tese de Doutoramento em questão, desafio pessoal e profissional. Hoje sei que é tão difícil
expressar algo grandioso quando tantos sentimentos se misturam dentro de mim. Saber reconhecer o quão
é notável os empreendimentos de pais, familiares e amigos para que tudo dê certo, sem dúvida, é uma
Dádiva de Deus, pois contando nos dedos não saberia enumerar quantos professores, colaboradores e
alunos do CRESCER estiveram envolvidos desde a coleta de dados até o momento crucial de análise do
estudo, sempre comprometidos, preocupados e desejando um trabalho que mostrasse a realidade de vida da
população negra.
Obrigado aos meus familiares pela possibilidade de estar - junto, vivendo comigo cada momento
felicidade, tristeza e até eu poderia dizer de tormento. Lembro-me da contribuição de cada um através de
pequenos gestos, auxílios, inspiração e apoio que fizeram em galgar mais um degrau na escada do
conhecimento.
Não poderia deixar de agradecer a minha orientadora, Dra. Climene Laura de Camargo, que desde
o início, apesar das minhas dúvidas, na angústia e pouca produção, não desanimou; pelo contrário apostou
nos projetos encaminhados e aprovados pelo CNPQ e FAPESB e conseguia concatenar idéias brilhantes
sobre o que iria escrever e pesquisar sempre, indicando temas de leituras, disponibilizando livros e
materiais necessários ao desenvolvimento do estudo.
Agradeço em especial à professora Dra. Regina Lopes Mendonça por acreditar e confiar no meu
potencial desde o momento da seleção de doutorado, questionando, buscando sempre participar da
construção do trabalho, muito embora não sendo do Grupo CRESCER, opinou e apontou questões de
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grande contribuição para o aprofundamento do objeto de pesquisa, o que foi maravilhoso para facilitar
minha caminhada acadêmica.
Gostaria também de lembrar e registrar meus agradecimentos a algumas amigas pessoais, do
doutorado e de trabalho do Centro Pediátrico Professor Hosannah de Oliveira que sempre estiveram
presentes nos momentos de sufoco como: Ana Carla, Luciana, Neiva, Nadirlene e Luiza. Ah! Que bom
saber que vocês estiveram ao longo dessa trajetória de alguma forma comigo, obrigada por poder contar
com vocês sempre.
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Cotidiano
Arte
Por não ser nada
O Tudo que me habita
(Débora Barreto, 2004).
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Araújo, Lucimeire Carvalho de. Violência no quotidiano de famílias de adolescentes negros:
enfoques para o cuidar de enfermagem, 2009, 212f. Tese (Doutorado). Universidade Federal
da Bahia. Escola de Enfermagem, Salvador.
RESUMO
A pesquisa tem como objetivo geral compreender o quotidiano de adolescentes negros que
experienciam a violência no âmbito familiar e como objetivos específicos caracterizar a violência
sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares, construir a partir dos discursos de
adolescentes negros e seus familiares às concepções de violência; analisar as relações familiares e
sociais que permeiam o cotidiano dos adolescentes negros em situação de violência e descrever as
estratégias utilizadas por estes no enfrentamento da violência. Trata-se de um estudo descritivo de
natureza qualitativa de cunho compreensivista sustentada pelos pressupostos do Interacionismo
Simbólico e conceitos mais significativos da Microssociologia do quotidiano de Michel Maffesoli que
propõe a razão sensível. A coleta de dados foi realizada no período de setembro de 2007 até outubro
de 2008. Foram estudadas duas famílias, com histórico de violência intrafamiliar, a primeira, foi um
caso de violência física e a segunda um de violência sexual, conforme boletins de ocorrências
selecionados aleatoriamente nas Delegacias do estudo: DERCA, DEAM e Liberdade, do município de
Salvador-Ba. Como instrumentos de coleta foram utilizados formulários com questões fechadas e
espaço para descrição do fato e um roteiro de entrevista semi-estruturada com questões abertas. Os
dados quantitativos obtidos através do formulário serviram para elaboração de um panorama
epidemiológico caracterizando tipos de violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus
familiares, considerando como variável independente a violência e as variáveis dependentes: cor, sexo,
idade, tipos, natureza da violência, características do agressor e da vítima. Dos dados qualitativos
emergiu como eixo central: Quotidiano de adolescentes negros em situação de violência familiar, as
categorias: Habitus essencial da existência: a cotidianidade e o estilo de vida do adolescente negro e
sua família; Violência e laços de socialidade familiar no quotidiano do adolescente negro e O que
está por trás da imagem? O mundo imaginal do adolescente e sua família sobre ser negro e
subcategorias: Quotidiano que se mostra como uma repetição, Não há tempo para brincadeira Um
Quotidiano de trabalho, Tem que trabalhar e estudar, Ter trabalho é ter potência, Ter trabalho digno e
prazeroso, Violência (racista) no Quotidiano de trabalho, Bater e Apanhar faz parte do quotidiano,
Violência no quotidiano familiar e Apoio e proteção familiar, Negação étnica, Branqueamento e
Racismo/sexismo , tendo sido adotada a análise de discurso para demonstrar o processo de viver,
experiências, estilo de vida e as interações entre os adolescentes negros e seus familiares, cujos
discursos apontam imagens, imaginário, símbolos e significados que nos fazem concluir o quão é
difícil para adolescentes negros enfrentar/conviver com a violência; ao mesmo tempo em que
confirma-se a tese de que o racismo influencia o processo de construção da violência nas relações
familiares e sociais dos adolescentes negros, tornando-os vulneráveis.
Palavras–chaves: Saúde do adolescente. Enfermagem pediátrica. Enfermagem.
Violência. Saúde.
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Araújo, Lucimeire Carvalho de. Violence in everyday life of families of black adolescents:
approaches to nursing care, 2009, 212f. Thesis (Doctorate). Federal University of Bahia.
School of Nursing. Salvador.
ABSTRACT
The research aims to understand the general daily life of black adolescents who experience violence in
the family and as specific objectives to characterize the violence suffered and practiced by black
teenagers and their families, build from the speeches of black teenagers and their families to the
concepts of violence, examine the social and family relationships that pervade daily life of black
adolescents in situations of violence and describe the strategies used by them in the face of violence.
This is a descriptive study of qualitative nature of the sustained nature understandable assumptions and
concepts of the Symbolic Interactionism Microssociology most significant of the everyday lives of
Michel Maffesoli proposes that the reason sensitive. The collection of data was carried through in the
period of september of 2007 until october of 2008. Two families had been studied, with description of
intrafamily violence, the first one, were a case of physical violence and the second one of sexual
violence, as bulletins of occurrences selected randomly in the Police stations of the study: DERCA,
DEAM and LIBERDADE, of the city of Salvador-Ba. As collection instruments forms with closed
questions and space for description of the fact had been used and a script of interview halfstructuralized with open questions. The gotten quantitative data through the form had served for
elaboration of a panorama epidemiologist having characterized types of violence suffered and
practiced for familiar black adolescents and its, considering as changeable independent one the
dependent violence and variable: color, sex, age, types, nature of the violence, characteristics of the
aggressor and the victim. Of the qualitative data it emerged as central axle: Quotidian of black
adolescents in situation of familiar violence, the categories: Essential Habitat of the existence: the
routine and the style of life of the black adolescent and its family; Violence and bows of familiar
socialite in the daily one of the black adolescent and What it is for backwards of the image? The
imaginable world of the adolescent and its black family on being and subcategories: Quotidian that if
it shows as a repetition, No time for play and a Quotidian of work, Has that to work and to study, To
have work it is to have power, To have worthy work and pleasant, Violence (racist) in the quotidian of
work, Beat and Catch is part of the quotidian, Violence in the familiar quotidian and Support and
familiar protection, ethnic Negation, whitening and Racism/sexism, having been adopted the analysis
of speech to demonstrate the process of living, experiences, style of life and the interactions between
the black adolescents and its familiar ones, whose speeches point images, imaginary, symbols and
meanings that make in them to conclude the is difficult stops black adolescents to face/to coexist the
violence; at the same time where it is confirmed thesis of that racism influences the process of
construction of the violence in the familiar and social relations of the black adolescents, becoming
them vulnerable.
Key-words: Health of the adolescent. Pediatric nursing. Nursing. Violence. Health.
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Araújo, Lucimeire Carvalho de. La violencia en la vida cotidiana de las familias de los
adolescentes negro: enfoques para la atención de enfermería, 2009, 212f. Tesis (Doctorado).
Universidad Federal de Bahia. Escuela de Enfermería. Salvador.
RESUMEN
La investigación apunta a comprender la vida cotidiana de negro adolescentes que sufren violencia en
la familia y como objetivos específicos para caracterizar los actos de violencia sufridos y negro
practicado por adolescentes y sus familias, la construcción de los discursos de negro adolescentes y
sus familias a los conceptos de la violencia, examinar las relaciones sociales y familiares que
impregnan la vida cotidiana de los adolescentes negro en situaciones de violencia y describir las
estrategias utilizadas por ellos en el rostro de la violencia. Este es un estudio descriptivo de naturaleza
cualitativa de la naturaleza sostenida comprensible hipótesis y conceptos de la Interaccionismo
Simbólico Microssociologia más importantes de la vida cotidiana de Michel Maffesoli propone que la
razón sensible. La recopilación de datos se realizó durante el período comprendido entre septiembre de
2007 a octubre de 2008. Se estudiaron dos familias con un historial de violencia, el primero fue un
caso de violencia física y sexual de un segundo asalto, ya que los informes de sucesos delegacias
seleccionados aleatoriamente en el estudio: DERCA, DEAM y Libertad, la ciudad de Salvador-Ba .
Como instrumentos se utilizaron para recoger formularios y preguntas cerradas con espacio para la
descripción de los hechos y una hoja de ruta para la entrevista semi-estructurada con preguntas
abiertas. Cifras obtenidas a partir de la forma utilizada para la preparación de un epidemiológicos que
caracterizan a los tipos de violencia que sufren y negro practicado por adolescentes y sus familias,
considerando la violencia como la variable independiente y las variables dependientes: color, sexo,
edad, tipo y naturaleza de la violencia , las características del agresor y la víctima. Los datos
cualitativos surgido como un eje central: la vida de negro adolescentes en situaciones de violencia
familiar, las categorías: Habitus esencial de la existencia: la rutina del negro y el estilo de vida
adolescente y su familia, la violencia y los vínculos familiares de la sociabilidad en la vida cotidiana
del adolescente negro y ¿Qué hay detrás de la imagen? El mundo imaginal de la adolescente y su
familia acerca de ser negro y subcategorías: el estilo de vida que es una repetición, No hay tiempo para
jugar una vida de trabajo, tiene que trabajar y estudiar, el trabajo es tener poder, tener un trabajo
decente y agradable, violencia (racismo) en el trabajo diario de rutina, golpear y captura parte de la
vida cotidiana, la violencia cotidiana en la família, y el apoyo familiar y la protección, la negación
étnica, de dinero y el racismo / sexismo se adoptó el análisis de discurso para demostrar el proceso de
la vida, experiencia, el estilo de vida y las interacciones entre negro adolescentes y sus familias, cuyos
discursos muestran imágenes, imágenes, símbolos y significados que nos hacen concluir lo difícil que
es para los adolescentes hacer frente negro / vivir con la violencia, al mismo tiempo que confirma Es
la tesis de que el racismo afecta el proceso de construcción de la violencia en la familia y las
relaciones sociales de los adolescentes negro, lo que los hace vulnerables.
Descriptores: Salud de los Adolescentes. Enfermería pediátrica. Enfermería. Violencia.
Salud
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Genograma interacional família Ogum......................................................................58
Figura 2 Genograma interacional família Oxossi.....................................................................59
LISTA DE QUADROS
Quadro 1. Análise de discurso das entrevistas.........................................................................70
LISTA DE TABELAS
Tabela 3 Distribuição das ocorrências segundo delegacias do estudo, Salvador – Bahia,
2009...........................................................................................................................................72
Tabela 1 Dados sócio-demográficos das vítimas de violência, Salvador – Bahia, 2009..........73
Tabela 2 Dados sócio-demográficos do agressor, Salvador-Bahia, 2009.................................74
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 Distribuição percentual das ocorrências por relação de parentesco da vitima com o
agressor, Salvador-Bahia,2009.................................................................................................75
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SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS..........................................................................................2
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................5
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA................................................................................12
2.1 DA VIVÊNCIA-CONVIVÊNCIA FAMILIAR À SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA.....12
2.2 FAMÍLIA E IDENTIDADE NEGRA: CONFORMAÇÃO E (DE) FORMAÇÃO.....17
2.3 O VISÍVEL E O NÃO-VISÍVEL DA VIOLÊNCIA NUMA SOCIEDADE
RACISTA............................................................................................................................28
2.4 SER ADOLESCENTE NEGRO...................................................................................36
3 REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO.....................................................44
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO...................................................................................72
4.1 CARACTERIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA SOFRIDA E PRATICADA POR
ADOLESCENTES NEGROS E SEUS FAMILIARES, SEGUNDO DELEGACIAS DO
ESTUDO, SALVADOR-BAHIA, 2009.............................................................................72
4.2 QUOTIDIANO DE ADOLESCENTES NEGROS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
FAMILIAR.........................................................................................................................77
5 CONCLUSÃO..............................................................................................................133
REFERÊNCIAS..............................................................................................................138
APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.................................151
APÊNDICE B – Roteiro de Entrevista.........................................................................152
APÊNDICE C – Formulário..........................................................................................153
APÊNDICE D – Entrevista individual e grelha de análise.........................................157
ANEXO – Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa...................................................212
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Iniciei a presente pesquisa de tese de doutoramento consciente da dificuldade,
complexidade e abrangência de debruçar-me sobre um tema aparentemente novo na minha
vida pessoal e profissional – a violência.
Como enfermeira atuante na pediatria do Centro Pediátrico Professor Hosannah de
Oliveira, Mestre na área de atenção a Saúde da Criança e do Adolescente e professora da
Universidade do Estado da Bahia, inclinei-me a estudar com muito afinco sobre a violência,
seus determinantes e repercussão na saúde.
Tendo em vista uma história de Graduação, Especialização e Mestrado com interesse e
muitas produções voltadas para captar o universo dos estressores, sua ação sobre a vida
humana e intervenções de enfermagem necessárias para prevení-los ou minimizá-los, houve
uma preocupação enorme de minha parte de como seria desenvolver um estudo, cuja trajetória
possuía interface, mas não era exatamente o tema de domínio teórico-prático que vinha
dedicando-me durante os anos de enfermagem desde a minha formação até a atualidade.
Mas, para minha surpresa logo após as primeiras leituras e elaboração de manuscritos
que hoje encerram capítulos da Tese, confirmei o quanto os dois temas estão aproximados e
porque não dizer imbricados.
Como havia dito, esse tema que aparentemente era novo, na verdade sempre esteve
presente na minha vida como mulher negra, na educação, saúde, orientação pessoal, cuidado
profissional e tantas outras áreas de vivência e convivência familiar, sócio-comunitária,
hospitalar e de ensino, ou seja, em diferentes contextos, às vezes de forma mais ativa, outras
escamoteada.
Neste percurso, com a aprovação pelo CNPq do projeto intitulado: “O cotidiano de
violência familiar na população negra: um estudo de determinantes sociais”, aceitei o desafio
de construir algo que na essência era desvendar o quotidiano de pessoas que
enfrentam/vivenciam a violência, e que na realidade traria aspectos e situações onde estariam
submersos inúmeros estressores; porque a violência é um estressor capaz de causar
sofrimentos físico, psíquico e/ou social, trazendo consigo prejuízos à saúde dos indivíduos
expostos.
Após muitas discussões no Grupo de Estudos da Saúde da Criança e do Adolescente –
O Grupo CRESCER da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia, chegamos
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ao título da pesquisa que seria realizada por mim: Violência no quotidiano de adolescentes
negros1.
Assim, a tese de doutorado trouxe como proposta apresentar os traumas, os dramas, a
potência, a teatralidade da vida, crenças, valores, rituais, símbolos e significados, enfim, a
cultura do ser e viver a adolescência na família de indivíduos negros, considerando o
histórico-quotidiano vivido de violência.
Para tanto, o fio que conduziu a rede de elementos do quotidiano que intervém nos
cuidados prestados à população negra, como também as descontinuidades de cuidados
familiares e sociais foi o racismo.
Nessa perspectiva, o estudo do adolescente negro é importante para que afinal seja
possível delimitar como estes se situam no viver da família de indivíduos negros, seu modo de
estar-junto, interações intra e extrafamiliares desenvolvidas, com toda sua ambigüidade em
existir, resistir e continuar sobrevivendo frente ao ambiente que na maioria das vezes é hostil.
A partir da compreensão de como a violência interfere no quotidiano do adolescente
negro, será possível identificar vulnerabilidades e atuar diante destas, promovendo o ser
saudável.
Por isso o tema em questão foi colocado em discussão tendo como pano de fundo
dados epidemiológicos e sócio-demográficos da violência que acomete indivíduos negros e,
tendo como ponto de partida para investigação a gravidade da violência que se mostra pelas
elevadas taxas de morbimortalidade.
Este aspecto nodal do tema, emergiu, como ponto obscuro que necessitava ser
desvelado/compreendido, pelo olhar qualitativo, de modo que a escolha do estudo da unidade
familiar para buscar respostas sobre a violência no quotidiano de adolescentes negros revestese de bastante importância na área da Saúde da Criança e do Adolescente, tendo em vista a
família ser considerada fonte de refúgio e consolação entre seus membros.
Esses pressupostos permitiram o surgimento de vários questionamentos sobre as
experiências veladas do adolecer do negro numa sociedade racista e de compreensão da
experiência de como vive este ser humano que cuidamos como enfermeiras, nos vários
espaços institucionais.
________
1. Recorte específico de projeto financiado pelo CNPq intitulado: “O cotidiano de violência familiar na população negra: um estudo dos
determinantes sociais”.
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Autor do desenho: Anderson Santos Lima
“A discriminação racial é ato de violência,
onde sujeito é concebido como coisa, desprovido de valor e
identificação social, inferior, insignificante.”
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1 INTRODUÇÃO
Os elevados índices de morbimortalidade da população brasileira pelas violências
fazem com que o fenômeno ocupe posição de destaque na pauta da saúde pública como objeto
de reflexão e ação.
As mortes violentas estão contidas na 9ª Classificação Internacional de Doenças (CID9) da Organização Mundial da Saúde (OMS), nomeadas por "causas externas de lesões e
envenenamentos". Conjuntamente, as mortes por violências e acidentes ocupam o segundo
lugar no perfil de mortalidade geral no Brasil. E, dentro deste contingente de mortes, os
homicídios vêm despontando como uma subcausa importante a ser analisada (BRASIL,
2002).
Os dados expressam que nos últimos 20 anos houve um aumento de mais de 200% nas
taxas de homicídios, passando da ordem de 13.601 no ano de 1980 para 45.343 em 2000.
Neste mesmo ano, os homicídios corresponderam a 38,3% do total de mortes por causas
externas, sendo 70% destes cometidos pelo uso de armas de fogo, atingindo pessoas na faixa
etária entre 10 e 39 anos, das quais 83% são jovens do sexo masculino, na grande maioria,
pobres, negros e residentes nas periferias dos grandes centros urbanos.
A pesquisa mais recente realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) sobre indicadores sociais da população negra, baseada em dados da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílio (PNAD), revela que houve relativa melhora nos índices de
escolaridade, renda e pobreza a favor da população negra nos anos de 1996 a 2006, em
virtude da formulação e implementação de políticas públicas específicas para esta população
(SALLES, 2008).
Entretanto, apesar da melhora desses indicadores, estudos mostram que as
disparidades entre as etnias existem e ainda que são bem marcantes, estando associadas às
condições precárias de vida da população negra em decorrência do racismo. Ressalta-se que
as pesquisas baseadas no item cor/raça, são extremamente importantes, pois confirmam a
situação de exclusão em que vive a população negra e possibilita afirmar que os preconceitos
raciais não foram superados no Brasil, que não vivemos numa democracia racial, e que a
discriminação não está associada simplesmente ao fato do negro ser pobre, e sim a sua
cor/raça que lhe dificulta ascensão social (SALLES, 2008).
Conforme IPEA em 2006, enquanto 58,4% dos brancos estavam matriculados no
ensino médio com idade adequada para o curso, apenas 37,4% dos negros alcançam o mesmo
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patamar, aponta também que os brancos ainda vivem com quase o dobro da renda mensal per
capita dos negros. Outro dado importante é que em 1996, 46,7% dos negros estavam numa
maior situação de pobreza que estão hoje em 2006, com 33, 2%, entretanto, mesmo com a
queda nos percentuais dos indicadores; os negros estão muito distantes da realidade de vida
dos brancos (SALLES, 2008).
Acrescenta-se ainda dentro desse contexto, que os negros constituem o grupo mais
presente dentro das penitenciárias brasileiras, sendo também presença majoritária na
Penitenciária Lemos de Brito - PLB na cidade de Salvador-Bahia (ADORNO, 1998;
LEITÃO, s/d 2008).
Os autores confirmam que a prisão segrega a população mais pobre e os indivíduos
negros, o que pode indicar uma maior desconfiança/vigilância policial sobre a população
negra em comparação à branca, decorrentes de um imaginário social que marginaliza o negro,
como alguém perigoso e perturbador da ordem social.
Adorno (1996) em seus estudos sobre violência na população negra carcerária,
também encontrou dados que ratificam a existência de práticas racistas contra a população
negra, a partir das seguintes constatações: existe um quantitativo maior de brancos do que de
negros respondendo pelos crimes em liberdade, os negros criminosos são mais condenados do
que os brancos em relação aos mesmos crimes praticados e também os negros parecem levar
desvantagem no que se refere à amenização de sua situação ou pena mediante a apresentação
de provas testemunhais que os brancos.
Diante destas considerações e a despeito da mudança nos indicadores sociais da
população negra da década de 80 aos dias atuais, os índices de morbimortalidade e a situação
carcerária apontam que os indivíduos negros são vítimas e ao mesmo tempo agressores, em
uma sociedade que confirma a tendência de acirramento da questão social, sobretudo de
desigualdades; haja vista as condições e circunstâncias de escassez de oportunidades e
perspectivas aos adolescentes e adultos jovens brasileiros. Assim, este grupo mais
intensamente atingido pela pobreza e violência tende a assumir um papel relevante no
contexto de violências, particularmente no que tange à criminalidade.
Diante disso, apesar de suas manifestações múltiplas, a violência dominante na
consciência coletiva contemporânea é a criminal e a delinqüância, encerrando a noção de
violência como fenômeno sempre produzido pelo “outro”, que se transforma em alguém
capaz de realizar os mais bárbaros e cruéis crimes e atrocidades; a citar o algoz
narcotraficante, assaltante e assassino (MYNAIO, 2006).
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Segundo a mesma autora, o mundo da violência insiste no status, ao acesso a bens
econômicos e de consumo e ao infindável reconhecimento social, que se apresenta numa
conjuntura crescente de exclusão social, cultural e moral contemplada na acumulação
capitalista, como também na omissão por parte dos governantes e sociedade em proporcionar
dignidade de sobrevivência humana.
Dessa forma, o processo de construção da violência aparece segundo a autora como
resultante dos três tipos de exclusão porque passam os indivíduos, a citar: social, cultural e
moral. No entanto, acrescentamos a esta assertiva, a exclusão racial, porque acreditamos que
este tipo de exclusão tem um impacto ainda maior na situação de violência, porque engloba
em si os três tipos de exclusão.
Concomitantemente à problemática trazida, o surgimento de novas subjetividades,
como a perda e valor das hierarquias tradicionais e autoridade familiar e comunitária têm
contribuído para desvirtuar condutas e a própria moralidade do ser humano.
De modo semelhante, Algeri e Souza (2006) pontuam que as políticas públicas de
assistência à criança e ao adolescente em situação de violência ainda não se atentaram na
análise de como as famílias violentas concebem jovens violentos, assinalando que a exposição
de crianças à violência familiar, ativa o ciclo da violência intra e intergeracional, garantindo a
reprodução da violência na adolescência e na fase adulta, tanto na esfera familiar quanto na
social.
Estudos sobre morbidade e mortalidade da população negra revelam que as principais
vítimas de estupro e violência familiar são adolescentes negras e pobres. Como também
apontam, que os jovens negros participam do mercado de trabalho exercendo atividade laboral
em idade considerada ilegal pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em conseqüência das
precárias condições de vida de suas famílias (PRONEGRO, IBGE; 2002).
Em face às considerações, constata-se que o adolescente negro é vulnerável à situação
de violência. Lopes (2005) afirma que a necessidade do negro integrar-se socialmente e,
paralelamente, proteger-se dos efeitos adversos dessa integração determina condições
especiais de vulnerabilidade; pois sempre estiveram carentes de educação, habitação,
alimentação, saúde, ou seja, desprotegidos e por isso mais expostos às violências.
Salvador, não diferentemente de outros grandes centros urbanos brasileiros tem seu
desenvolvimento sustentado nas desigualdades e marginalização social. A população estimada
em 2004 de 2.631.831 habitantes é na sua maioria negra, correspondendo a 2.184.419, ou
seja, 83% do total de habitantes (SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE
SALVADOR, 2006).
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De acordo com um dos indicadores oficiais de monitoração do grau de
desenvolvimento social, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), apesar de o município
ter uma alta concentração de renda, este desenvolvimento não beneficia a todos os segmentos
da população, ocorre na verdade uma segregação de benefícios e vantagens em função do
poder aquisitivo, pois os 20% mais ricos detêm 70% da renda e os 20% mais pobres possuem
apenas 1,6%, de modo que a população branca os brancos têm posse da maior parte da renda
do Estado (IBGE, 2002).
O IDH revela que indivíduos brancos de Salvador possuem rendimento médio familiar
per capita de 5,4 salários mínimos enquanto que os indivíduos negros recebem 1,67 dessa
quantia, o que significa que estes últimos possuem um menor aporte de recursos financeiros
para suprirem suas necessidades básicas.
O IBGE (2002) ao analisar o analfabetismo por raça/cor em 2001, na região
metropolitana de Salvador, evidenciou que 6,7% dos indivíduos com 15 anos ou mais de
idade eram analfabetos, desse quantitativo 16,6% eram negros e 3,3% não-negros. Dos
analfabetos funcionais 42,6% eram negros e 10,2% não-negros e ainda em relação à
continuidade do estudo pela população negra identificou que os negros possuíam 4 anos ou
menos de estudo quando comparados com os brancos.
Esta inserção desvalorizada do negro na sociedade, por causa do racismo, traz
conseqüências à qualidade de vida e saúde da população negra, corroborando para motivação
de atos violentos em nome da sobrevivência.
Segundo MUNANGA (s/d 2009, p7):
O racismo é uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas
pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e
o cultural. O racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no
imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido pelos traços
físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços culturais,
lingüísticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores ao grupo
ao qual ele pertence.
O racismo é geralmente abordado a partir da raça, conceito abstrato se examinado do
ponto de vista biológico, entretanto, o valor da raça/racismo provém de sua construção
sociológica e do domínio que possui no aparato ideológico. Como qualquer ideologia,
esconde algo não proclamado: a relação de poder e de dominação. E como realidade social e
política é uma categoria social de dominação e de exclusão, portanto, o conceito de
raça/racismo é determinado pela estrutura global da sociedade e pelas relações de poder.
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De modo que quando apontamos o mundo racista em que vivem os negros, falamos da
dominação, exclusão pessoal, econômica e social, aos quais estes estão expostos; vivenciando
situações de humilhação, submissão e inferioridade em decorrência de seu comportamento,
cultura, atitude e corpo físico de “negro”, que é o que determina um relacionamento social
prejudicado .
Nessa condição, a família enquanto reduto do viver dos adolescentes negros
materializa no seu cotidiano a vitimização perpetrada ao longo dos anos, legando aos
descendentes, a experimentação da violência e os mecanismos de defesa para o enfrentamento
da situação.
Por isso, acreditamos que o racismo sofrido pelas famílias negras contribui para que as
agressões se naturalizem no interior destas, motivando comportamentos violentos, como uma
tradução do vivido histórico-quotidianamente.
Bido (2006, p.6) afirma que “adolescentes e sociedade são agressivos e se vêem
representados, cada um deles, na agressividade e violência do outro. Sentem-se justificados
em suas atitudes violentas pela atitude violenta do outro”. O que implica em dizer que, o
adolescente (negro) é vulnerável aos atos de violência, que são consentidos socialmente,
tornando-se assim, vítima e agressor; vítima ao considerarmos à situação de extermínio a que
está exposto, e agressor, porque utiliza constantemente da violência para superar os
obstáculos no seu quotidiano, a citar a própria violência.
O mesmo autor expressa que a sociedade é vítima da violência que ela própria motiva.
Resume o ciclo da violência explicando sua causalidade da seguinte forma: a violência se
inicia com a “agressividade externa”, ou seja, o indivíduo não carrega em si a natureza
violenta, ele a internaliza somente após contato com o meio ambiente externo; de modo que
após o processo de vitimização começa a processá-la e posteriormente efetua sua
“transferência” ao meio externo, que pode ser imediata ou tardia, trazendo como desfecho
uma violência menor, da mesma amplitude ou maior àquela que viveu, dependendo do
significado que atribuiu a experimentação.
Assim, entendemos que quando a violência está naturalizada na vida dos indivíduos
(negros), os atos violentos praticados representam a contrapartida de um processo de violência
vivido, em substituição ao diálogo e outras formas de negociação dos conflitos. Na verdade,
compreendemos que para o adolescente negro, pela própria constituição histórica familiar, a
violência vem sendo aprendida como forma de resolução de conflitos, principalmente nas
situações de vulnerabilidade, onde estão presentes relações familiares conflituosas, descrenças
20
em relação à potencialidade e a identidade, falta de perspectivas econômicas- sociais e tantas
outras situações socialmente negativas.
Diante da problemática aqui exposta, partimos do pressuposto de que a
experimentação da violência para o adolescente negro tem como um dos seus determinantes o
racismo, acreditando que este influencia o processo de construção da violência nas relações
familiares e sociais dos adolescentes negros. Para confirmá-la, ou refutá-la trazemos como
questão norteadora: Como os adolescentes negros experienciam a violência no quotidiano
familiar?
O estudo do quotidiano de adolescentes implicados neste tipo de interação
possibilitará a detecção fatores de risco que contribuem para vitimização e/ou
desenvolvimento dos comportamentos violentos ou ainda identificar fatores de proteção que
aumentam a resiliência dos adolescentes promovendo redução dos conflitos e da violência
familiar.
Para apreendermos esta realidade, objetivamos compreender o quotidiano de
adolescentes negros que experienciam a violência no âmbito familiar. De forma específica,
pretendemos:
- Caracterizar a violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus
familiares;
- Analisar as relações familiares e sociais que permeiam o quotidiano dos
adolescentes negros em situação de violência;
- Descrever as estratégias utilizadas pelos adolescentes negros no
enfrentamento da violência.
21
Autor do desenho: Anderson Santos Lima
Violência se enfrenta com violência.
“... bater e apanhar faz parte do cotidiano...”
22
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 DA VIVÊNCIA-CONVIVÊNCIA FAMILIAR À SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
Estudiosos sobre família e saúde vêm pontuando algumas considerações importantes
para o entendimento do cuidado do ser humano na perspectiva familiar, partindo-se do
princípio de que a família é uma unidade básica do sistema de saúde dos indivíduos
(LITMAN, 1974; ELSEN, 1984). Assim, o ser humano, em seu processo de viver constrói
através das interações cotidianas familiares condições para sobrevivência e bem-estar.
O estar bem, ou ser saudável deve retratar a possibilidade do ser humano ter seu
corpo-biológico em harmonia/equilíbrio, como também de viver e estar no mundo da família
e das relações sociais de modo pleno e igualitário.
De acordo com Elsen (2004) o cuidado familiar se apresenta sob a forma de presença
e proteção desde o nascimento do ser humano, pois ao integrar um núcleo familiar, o
indivíduo tem sua condição de pertença vinculada àqueles que irão garantir a preservação,
manutenção e recuperação de sua saúde.
Segundos os autores, estes atributos familiares são imprescindíveis para que os seres
humanos possam adquirir competência e maturidade biopsicossocial, cultural e espiritual para
enfrentar adversidades, podendo crescer e desenvolver-se adequadamente.
Quando a família se preocupa e ao mesmo tempo se responsabiliza por cada um de
seus membros mutuamente, a presença e a proteção existem, formando vínculos afetivos
fortes e capazes de ajudar na superação de crises decorrentes da transição de fases etárias,
dificuldades de socialização, situação de doenças e outros.
O cuidado familiar também inclui orientações para a vida em sociedade, através do
ensinamento aos seus membros, de normas e condutas sociais aprendidas no espaço intra e
extrafamiliar e que compõe o repertório de significados, valores, crenças, símbolos, saberes e
práticas estabelecidos como desejáveis para o exercício da convivência.
O quotidiano da vida familiar, então, se estrutura pela convivência baseada em um
legado que a família considera importante para o viver comum e que é transmitido de geração
em geração a cada nova formação familiar influenciando o pensar e o agir social (ELSEN,
2004).
23
O processo de viver em família deve permitir o respeito às individualidades de cada
membro da família, fortalecendo o “eu” de cada um, como também o “nós” referente ao
sentimento de pertença à família, evitando uma convivência familiar conflituosa e
desgastante. Deste modo, a família como fonte primária de socialização humana, direciona a
vida dos indivíduos, impulsionando-os para uma vida social harmônica como a do próprio
grupo familiar (ALTHOFF, 2001).
O processo de cuidar familiar caracteriza-se de acordo com ELSEN (1984) como um
sistema de saúde diferente e complementar ao sistema profissional e de serviços de saúde, já
que a família tem recursos próprios para o cuidado dos seus membros em situação de saúde e
doença, recorrendo à rede de serviços de saúde quando esgotam suas possibilidades de
atuação.
Pode-se dizer que a família possui um conjunto de papéis dirigidos ao cuidado do
indivíduo no sentido de promover seu bem-estar, integrando-os aos diversos contextos da vida
social. Nesta perspectiva, o sistema familiar é um sistema aberto que permite trocas entre a
família e o mundo social, influenciando-o e sendo influenciada por ele.
Reitera-se, portanto, que ambos, o sistema familiar e o mundo social estão imbricados
na construção de padrões morais e de conduta humanos. Se por um lado, as interações da
família com o mundo social permitem aprendizado e desenvolvimento de posturas altruístas,
por outro, pode contribuir para atitudes consideradas destrutivas e violentas.
Waldow (1995, p.17) afirma que “a capacidade para cuidar pode ser desenvolvida,
despertada ou inibida através da experiência educacional”, de modo que a capacidade de
cuidar está colocada do ponto de vista de uma ação interativa, de valores e no conhecimento
do ser que cuida para e com o ser que é cuidado.
Dessa maneira, o cuidado que os pais proporcionam ao filho depende das
oportunidades de aprendizagem familiar inter e intrageracionais socialmente assimiladas no
seu processo de viver. A propósito, a capacidade de realizar o cuidado, não surge
automaticamente, este aprendizado é elaborado pelas famílias sob a influência da cultura,
ideologia e de uma política que responsabiliza de forma "expressiva” a família pelo que vai
sendo ensinado aos seus membros.
É nessa relação familiar, que os membros interagem, e, portanto, nela a criança inicia
seus primeiros contatos sociais, captando a realidade e significando-a a partir da experiência
resultante da interação.
24
A criança pode perceber-se na interação familiar, ainda que de maneira incipiente,
com um ser de relações, aprimorando gradativamente seu próprio self. Por não dominar o
conhecimento de pessoas e objetos, utiliza o simbólico do corpo, para expressar-se.
No uso da linguagem metafórica do corpo, a criança procede à imitação dos pais,
aprendizado que denota a importância que a criança atribui a essas pessoas e a necessidade de
mostrar-se semelhante a eles, para poder a partir de então, construir sua própria identidade. É
na relação com o outro que inicia sua constituição enquanto sujeito, ao perceber quem é o
outro e qual o seu papel dentro da organização familiar, elabora e projeta seu eu.
(VYGOTSKY, 1984; MOURA, 2002). Assim, na ocasião da infância os comportamentos são
motivados pelas impressões das crianças sobre o que é considerado permitido e desejável
pelos pais.
De modo semelhante, na adolescência, o self define-se pelo convívio social e vínculo
afetivo com seus pares. Apesar de a adolescência ser considerada uma fase de instabilidade,
ligadas a períodos de crises existenciais, sem dúvida, é um marco importante na vida das
pessoas evocando mudanças, reorganizações e aprendizagens significativas. Nesta fase, os
valores, as crenças, os limites e o respeito familiar são muito questionados e derivam do que
foi cotidianamente e culturalmente construído no interior da família desde a infância.
Por isso, os pais, através de seus discursos e fundamentos servem de modelo de
identificação do existir adolescente, conferindo sistemas de representações e práticas
fundamentais no plano da sociabilidade.
Compartilhando com Sanchez (2005) também acreditamos que os padrões sociais de
conduta são aprendidos nos períodos da infância e adolescência, dentro dos próprios lares, na
interação com os pais. Nesse pensar, os comportamentos violentos de crianças e adolescentes
é a objetivação do que foi aprendido nos modos de ser, pensar e agir de seus pais.
[...] os comportamentos sociais apreendidos por crianças são orientados pela
inserção do sujeito em relações cujo modelo a ser assimilado é resignificado
elaborando modelos organizadores do pensamento que podem ser orientadores
dos comportamentos das pessoas (Sanchez, 2005 p.2).
Ao criar o homem, num ambiente de competitividade e combatividade, a família
contribui para reprodução do modelo capitalista, que per si é excludente, produzindo a
violência familiar com a mesma lógica capitalista de dominação e exploração pelo capital e
poder.
25
Os sujeitos tornam-se aptos a participar da vida em sociedade na disposição para
rivalizar com o outro em prol de ascensão, posições sociais privilegiadas e reconhecimento
que são cultivados no seio familiar.
Ao mesmo tempo, o arcabouço familiar que estimula a competitividade
mercadológica, imprime a marca de submissão entre os integrantes da família, perseguindo a
idéia de que os indivíduos novos devem obediência e subserviência aos mais antigos em troca
de proteção.
As concepções de poder e posse arraigada nas relações familiares reafirmam a
dominação dos pais sobre os filhos e os vínculos formados são imbuídos de autoridade e
medo (NEVES e ROMANELLI, 2006). Daí, os modelos familiares que se arrastam na
história da humanidade, evidenciam a segregação de poder e luta pela sobrevivência e/ou
adaptação às adversidades.
As constantes mudanças lançadas à família pela selvageria do mundo moderno
confirmam a mutabilidade, redefinição de papéis e evolução dos núcleos familiares em
resposta à crescente turbulência no processo de viver humano, gerando ainda mais
instabilidade e fragmentação.
Neves e Romanelli (2006, p.302) enfatizam que “a família ao ser transformada,
assimila, modifica e devolve à sociedade os elementos processados no seu interior que, por
sua vez, os modifica”. Neste sentido, o autor focaliza a família como mediadora das relações
entre seus integrantes e o mundo social. Entendida como um produto histórico-social, a
família pode potencializar ou reprimir padrões culturais e afetivos dos indivíduos, a depender
das relações que estabelece com o espaço privado econômico, político e simbólico que
sustenta o sistema familiar.
Seguindo esta lógica, a violência inicia-se na família, quando esta determina o papel
que cada um dos seus membros deve desempenhar para ser aceito no sistema familiar e social,
mostrando-lhes, sobretudo, a maneira como devem agir e reagir frente às situações sociais
impostas pela assimetria das relações.
Tais relações não ajudam a constituir e definir um outro livre, capaz e pleno,
provocando um efeito devastador na estrutura psíquica dos indivíduos, edificando na
diferença a possibilidade de exploração-dominação.
O prejuízo causado internamente ao indivíduo vitimizado irá determinar em muito, a
maneira como este irá lidar com o mundo ao seu redor. Infere-se que o mal-estar gerado desse
processo pode ser transformado em atitude reativa, em contenção angustiada ou neurótica ou
resignação (SANCHEZ, 2005; MARCONDES FILHO apud SANCHEZ, 2005).
26
Ressalta-se que um dos preditores mais significativos para comportamentos violentos
e condutas destrutivas pelo ser humano são destacadamente maus–tratos na infância, seja por
abuso sexual, negligência e demais tipos de violência da esfera cotidiana familiar (ROLIN,
2006).
Mediante suas manifestações, a família fonte de presença e proteção torna-se
causadora de dor e sofrimento, podendo imprimir precocemente nos indivíduos marcas físicas
e psíquicas que contribuem para a construção do processo de violência.
Os números apresentados de violência familiar ainda estão aquém da representação
real do fenômeno, uma vez que o espaço privado familiar com a delimitação de suas
fronteiras e regras de relacionamento permite obscurecer fatos e acontecimentos mediante
ameaças explícitas e veladas que garantem o sigilo e o continuum da violência (RIBEIRO e
BORGES, 2005).
Cada família, quando organiza o modo de viver do seu agrupamento, faz exigências e
têm especificidades para condução e orientação de seus membros, pactuando-se valores de
autopreservação familiar (RIBEIRO, RODRIGUES e LÁPIDUS, 2005). Por isso, consciente
ou inconscientemente, a insegurança, o medo de represálias frutos do conflito da
consangüinidade, da proximidade, dos laços afetivos e instinto de proteção para com o outro
com quem se convive são alguns exemplos de justificativas de se manter em segredo
situações de violência familiar.
A violência familiar traz consigo um contexto carregado de contradições onde vítima e
agressor alternam posições, a depender do contexto do vivido. Segundo Tilmas-Ostyn (2001)
um indivíduo que foi vítima de violência em sua infância, mesmo mostrando-se injustiçado e
revoltado com o comportamento violento dos pais, segue o ciclo da violência, reproduzindo a
violência sofrida.
Percebe-se que apesar de criticar o comportamento violento, o indivíduo tende a
repeti-lo, perpetrando a violência na sua condição de agressor, entretanto, não deixa de ser
vítima de um passado de desrespeito e abusos que naturaliza a violência no seu quotidiano,
pois traz consigo uma memória de violência que o impulsiona a agir de forma violenta.
Conquanto operem as condições sociais desfavoráveis que venham afligir a família,
confirma-se a hipótese de Espinheira (2004) de que há participação expressiva familiar para
constituição dos modos violentos de ser dos indivíduos.
Partindo do pressuposto de que o macro social pode ser compreendido a partir da
esfera micro, a violência no âmbito familiar adquire relevância para problematização das
27
violências, apresentando-se como um campo propício para o estudo dos significados e
sentidos das violências.
3.2 FAMÍLIA E IDENTIDADE NEGRA: CONFORMAÇÃO E (DE)FORMAÇÃO
A família tem sido vista como um todo que integra um sistema complexo e dinâmico
de contextos do viver de indivíduos que estão em constante interação, formando uma
organização caracterizada pelas relações de parentesco e, sobretudo de vivência e
convivência. Assim, a família, lugar das relações íntimas, apresenta grande contribuição na
construção identitária dos seus membros e na comunidade em que se insere.
Como célula máter da sociedade, a família produz e ao mesmo tempo retém o que é
produzido das interações ambientais, sociais, econômicas, culturais, políticas, religiosas,
tecnológicas, entre outras. Nesse sentido, o conceito de família e o seu modo de organização,
ou diríamos de vivência e convivência dos indivíduos que vem se arrastando ao longo dos
tempos, tem sido modificado pela presença de novos fatos sociais, quais sejam, os modos de
vida, os arranjos diversificados de convivência, os valores, as crenças e os conhecimentos
intergeracionais, que são na maioria das vezes, conflitantes.
Constatamos de acordo com Carvalho (2002) que nunca existiu um modelo dominante
de arranjo familiar, mas que as expectativas em relação à família que estão no imaginário
coletivo são, apesar disso, ainda as representações idealizadas da família nuclear que produz
cuidados, afeto, proteção e vínculos de pertencimento. Entretanto, o autor assevera que cada
família se configura de forma diferente e possui diferentes expectativas, de modo que não se
tem a garantia de que a família será sempre um ponto de equilíbrio para os seus membros, ou
seja, a família pode ser o ponto forte, ou ao contrário pode agir negativamente esfacelando as
potencialidades de seus membros.
Sarti (1995, p.139) quando se refere ao modo de organização do grupo familiar de
classe social baixa, nos diz que “a família entre os pobres urbanos é estruturada como um
grupo hierárquico, seguindo um padrão de autoridade patriarcal, cujo princípio básico é a
precedência do homem sobre a mulher, dos pais sobre os filhos e dos mais velhos sobre os
mais novos”. Já Silveira, Falcke e Wagner (2000), afirmam que o modelo dominante na
família das camadas populares não é o nuclear, e sim, o monoparental. E Duarte (1995, p.34)
ao se referir à família de classe popular mostra que ela pode ser tão numerosa se
28
assemelhando “à família camponesa; em que pesem tantas e tão fortes diferenças dos
contextos sociais em que se desenvolvem”.
O modelo de família historicamente discutido tanto para brancos/ricos quanto para
pretos/pobres sempre foi o patriarcal e hierárquico, modelo herdado da época do Brasil
colônia, no entanto, estudos já trazem ser o modelo da família monoparental o que mais bem
retrata as famílias de camadas populares, hoje em sua grande maioria, chefiada por mulheres
(PALUDO e KOLLER, 2008).
Fato, que não quer dizer, segundo Paludo e Koller (2008) que a família de indivíduos
negros/pobres não sofra influência dos valores e modelos ideais vigentes da família ideal - a
burguesa, porém em decorrência das condições em que vive, a mesma não pode se comportar
de modo semelhante a esta. Um dos aspectos que as difere significativamente é a escassez de
recursos materiais e de subsistência da família de indivíduos negros, que certamente impõe a
estas o desenvolvimento de estratégias de sobrevivência .
Encontra-se na nossa realidade, um misto na constituição da família de indivíduos
negros, o modelo nuclear que forma a vasta maioria das famílias do Brasil, tendo o homem
como principal provedor e chefe da família, como também de forma mais predominante à
família numerosa e extensa, estando presente no mesmo ambiente familiar pai, mãe, filhos,
avó, tia, ou ainda, se avaliarmos as últimas décadas, o crescimento da família monoparental
onde o pai ou mãe com os filhos constitui a unidade familiar.
Por isso, discutir sobre a instituição família no Brasil parece-nos bastante oportuno
para entender a constituição da identidade do adolescente negro na atualidade, porquanto seja
forma específica de agregação que possui dinâmica própria, sendo influenciada pelo processo
de desenvolvimento sócio-econômico e das ações do Estado através de suas políticas
econômicas e sociais.
A família passa desde a época colonial até a presente data, por um contínuo de
mudanças que a afeta, podendo-se citar de acordo com Kaloustian (2005) os atentados aos
direitos humanos e a sua sobrevivência, as barreiras econômicas, sociais e culturais, expressa
pela exclusão, exploração e abuso, acirramento das desigualdades e outros que
frequentemente tem contribuído para desestruturação do espaço familiar.
A família na época colonial organizou-se pela influência de duas culturas distintas: a
branca, dos europeus que dentro de uma estrutura hierárquica de poder exerciam o papel de
senhores escravagistas, e, a negra, dos africanos que no papel de escravo viam extinguidos de
suas vidas possibilidades de estabelecimento de vínculos afetivos, solidariedade e de união
entre si (CRAMER et al, 1976).
29
De ordem escravocrata e compelida pelos senhores brancos, a família de negros se
organizava em torno da Casa Grande e Senzala, viabilizando o enriquecimento do homempatriarca, detentor do poder e, portanto, soberano e responsável pelas decisões, controle e
sustento familiar (CRAMER et al, 1976).
Nesse período, para evitar rebeliões que porventura pusessem em risco a perda do
mando do patriarca ou o alcance de mobilidade social do negro foram adotadas estratégias das
mais cruéis que regulavam as relações e reduziam a força do grupo. Evidentemente, a
primeira delas era separar o negro da sua família, o seu maior vínculo; e outras se somaram
com a finalidade de regimentar suas vidas, a exemplo da imposição de idioma e religião. O
negro seguia um destino inquestionável de solidão e mortalidade precoce cumprindo jornada
de trabalho exaustiva, em média de dezesseis horas diárias de trabalho, com agravante de
maus-tratos e da violência quotidiana vivenciada nas suas mais diversas formas. Por isso,
nesta situação de aniquilamento (moral, cultural, físico, social e psicológico) a prática do
aborto era considerada algo comum entre as escravas negras, como também o infanticídio e
mesmo o suicídio, foram utilizados como formas de resistência, para não sofrer e nem deixar
os filhos à mercê das atrocidades da escravidão (CRAMER et al, 1976).
Observa-se que no período escravagista, não existia reconhecimento da condição
humana dos negros, motivo utilizado como justificativa para escravizá-los. Essa concepção
racista era ainda reificada pela Igreja, advinda do pensamento católico ibérico, que
considerava a escravatura como uma missão de salvação da raça inferior dada à
“inumanidade” dos negros, que em sua condição pré-humana, de coisa-objeto, de criaturas
sujas, promíscuas, verdadeiros animais, e assim, deviam ser resgatados, salvos. Com efeito, e
particularmente associada a esta problemática, a Igreja em sua feita missionária estava
convocada, a favor do Estado, a controlar a escravaria e ditar normas de conduta social e
sexual, adestrando-os (KALOUSTIAN, 2005).
A vida em cativeiro não só marca a diferença entre brancos e negros e seu valor social,
como também desapropria o negro do seu corpo, costume e família, atuando como fator de
desconstrução identitária.
As relações sociais à época prendiam-se a um componente estrutural extremamente
rígido conformando divisão de papéis e deveres bastante inflexíveis e severos que expunham
os indivíduos à degradação física, moral e psicológica, sendo o trabalho escravo equivalente
ao animalesco. Para tanto, a família de negros na sociedade escravocrata precisava ser
numerosa para conter os efeitos de uma elevada mortalidade e de uma esperança média de
30
vida relativamente baixa, que certamente traria prejuízos aos senhores, no caso de déficit na
taxa de natalidade (DIAS, 2000).
Diante dessa necessidade de manter a mão-de-obra escravocrata a todo vigor, os
negros tinham a missão de procriar, mas sem dúvida ainda era o tráfico negreiro que dava
conta de suprir seu quantitativo e qualitativo. Os negros ao chegarem ao Brasil passavam por
uma espécie de seleção, onde através de um sistema de conferência de mercadoria eram
examinados - seios manipulados, genitais escancarados, palpados, inspecionados para
avaliação de sua qualidade reprodutiva, ou seja, a mercadoria deveria ter a garantia à função a
que se destinava (SOARES, 1982).
Orientada, sobretudo, para a satisfação das necessidades dos senhores brancos que
ocupavam o topo da pirâmide hierárquica da sociedade elitizada, a constituição familiar
advinda da Casa Grande e Senzala, respeita e valoriza o patriarca, o senhor. Decerto, as
relações entre senhores e escravas calcadas no caráter altamente repressivo e produtor de
normas disciplinadoras de controle social matiza a convivência violenta.
Os corpos negros colonizados estiveram confinados aos desejos de seus senhores, que
fizeram do sexo o melhor dos seus atrativos. Cultivando relações desprovidas de qualquer
afetividade, a sexualidade entre brancos e negros podia ser traduzida como mais umas das
formas de dominação e do exercício da autoridade do branco, onde o corpo negro era somente
objeto de satisfação sexual (PINHO, 2004).
Segundo Kaloustian (2005) durante o Brasil colônia não houve constituição da família
nuclear composta por negros, estas sequer foram estimuladas. E apesar de ser o ideal proposto
pela Igreja, nota-se que o desprezo e descaso dos senhores pelos escravos, sobretudo com
relação às crianças escravas promoveram o concubinato, a ilegitimidade e o abandono de
crianças escravas.
Kidder (1972, p.44) traz que o destino das crianças negras era conclamado a Roda dos
expostos, porque os senhores “não querendo ter trabalho, nem fazer gastos com a criação dos
negrinhos [...] obrigavam muitas escravas a abandoná-los, na enjeitaria”. Estava claro que
havia preferência pelo escravo adulto que era mais resistente para a lida, além do mais a
criança somente iria dificultar o trabalho do escravo adulto. Como não era alvo de
preocupação social, as crianças tinham suas vidas lançadas à sorte, podiam viver nas ruas ou
serem recolocadas em casas de família por ação da Roda dos expostos.
Como já dizia Freyre (1980, p.12) em suas notas, o abandono de crianças,
principalmente das crianças negras no país, seria chancela para comportamentos que
31
definiriam no futuro próximo a personalidade dos indivíduos desassistidos ou tardiamente
assistidos:
[...] Os meninos mestiços. De crias da Casa grande. De afilhados de senhores
de engenho, de vigiários, de homens ricos, educados como se fossem filhos
por esses senhores. É um grande assunto. E creio que só por uma história [...]
sociológica, psicológica, antropológica e não cronológica – será possível
chegar-se a uma idéia sobre a personalidade do brasileiro. É o menino que
revela o homem.
O certo é que nem o Estado nem a Igreja quiseram assumir as crianças abandonadas. A
Roda dos expostos então, foi o artifício criado para garantir subterfúgios a estas crianças,
mantendo o anonimato dos filhos ilegítimos frutos de uniões proibidas entre senhores e
escravas, e tantas outras uniões que desonrasse a mulher de elite e seus senhores. A Roda
também servia para dar destino às crianças negras até completar a idade de ser útil à
sociedade, ou seja, de poder estar entre adultos promovendo benfeitorias aos senhores através
dos seus serviços na senzala ou na Casa Grande.
A família patriarcal representou na época colonial a unidade política, econômica e
social e teve papel fundamental na definição da história da família brasileira. A família
nuclear moderna, nada mais foi e ainda é uma representação dominante da política que utiliza
para o alcance da democracia e do bem–estar comum a “Autoridade”. Esta bandeira da
modernidade somente disfarça a tradição conservadora escravocrata que se tem no Brasil
colônia para “Defesa da Ordem” (ALMEIDA, 1987; FREYRE, 2005).
A idéia de “Ordem e progresso” do final do século XIX de cunho político e econômico
calhava com um novo Brasil e modelo de organização familiar que previa a educação como
estratégia para inclusão do ex-escravo recém-liberto. No entanto, ao contrário do previsto, não
foram realizadas quaisquer medidas ou políticas educacionais voltadas à inclusão da
população negra na sociedade brasileira, porque ao considerá-los como ser “biologicamente
inferior” presumia-se não terem condições de aprendizado (aptidão/inteligência) e nem de
assumir as responsabilidades com o cultivo da terra e sua própria sustentação
(KALOUSTIAN, 2005).
Sob a égide do racismo biologicista e do positivismo há inoperância de políticas
educacionais e de assistência aos ex-escravos por conta da dita ineficácia psico-afetiva do
negro. Isso implicou em desapropriá-lo de suas terras para que pudesse trabalhar para os
Senhores, alimentando a mão-de-obra necessária ao processo de industrialização. Como a
mão-de-obra era farta, ou seja, resultante da massa de ex-escravos desempregados, os negros
foram obrigados a trabalhar em troca de comida e moradia, mantendo-se de igual modo
32
prisioneiros ao sistema capitalista vigente, que estabelecia claramente na sociedade de castas
sua posição inferior. Mesmo fora das senzalas e designados como trabalhadores livres, os
negros nunca estiveram livres na perspectiva desejada, na verdade eram trabalhadores livres,
porém eternos prisioneiros do abastecimento do sistema capitalista (KALOUSTIAN, 2005).
Ainda neste momento de difusão das idéias progressistas em prol da industrialização
deu-se a entrada maciça dos imigrantes no país dinamizando a economia e permitindo o
excedente ainda maior de mão-de-obra, ajudando a consolidar relações capitalistas de
produção que privilegiava o imigrante (branco) em detrimento do negro (PRIORE, 1999).
A desvalorização da mão-de-obra livre negra foi definida por uma política econômica
e social que estimulou a formação da força de trabalho para as indústrias pela escolha de
homens brancos, destacadamente europeus, que tinham todo o incentivo para vir para o Brasil
compor a massa trabalhadora capaz de garantir os avanços requeridos pela modernidade.
Dessa forma, o ex-escravo vai se constituir um contingente de força de trabalho diferenciada
dos imigrantes, sendo empurrado cada vez mais para baixo na escala de estratificação social.
O fato impulsionou alguns negros em represália à situação posta, a se organizarem,
discutirem sobre seus problemas e buscarem soluções para os interesses do grupo. Deste
processo de organização resultou a edição dos jornais negros - A Redentora e o Getulino que
estavam preocupados em mostrar a realidade da população negra e suas reivindicações, como
também em criar espaços reservados ao lazer, saúde e cultura negra. Esta tentativa de pressão
social foi logo tolhida pela sociedade dominante que perseguiu e prendeu os responsáveis
pelas editorações dos jornais desarticulando o grupo e seu propósito (MACIEL, 1997).
De algum modo, segundo o autor, as manifestações da população negra estiveram
sempre reprimidas, quer fossem dentro de um contexto próprio de discriminação ou dadas às
“condições históricas” que fizeram com que o critério racial fosse um componente importante
no processo de ofertas de oportunidades ocupacionais, culminando no fim do interesse pelo
homem negro como trabalhador. E, por uma questão de empoderamento promover o
ajustamento do imigrante europeu no mercado de trabalho brasileiro era mais benéfico ao
sistema do que favorecer a inserção do negro, já que este era maioria e poderia futuramente
utilizar isso a seu favor.
O autor ainda reforça que a violência contra o contingente negro da população
corroborou para mantê-los fora da participação na distribuição do resultado da produção
social, pois ao serem preteridos pelo imigrante não lhes restava mais nada, a não ser o
trabalho mal remunerado, quando encontrava emprego, e, tocar sua vida em condições
subumanas. No entanto, esta prática racista adquire no cenário político condições de não
33
serem interpretadas como tal, tendo como princípios a culpabilidade ao negro pela sua
condição, advinda da democracia racial.
Em outras palavras, o processo de industrialização/urbanização da modernidade
associado à não-reforma agrária, determinou a continuidade de homens negros pobres que
sem ter onde morar acabara em cortiços e/ou favelas de grandes centros urbanos, constituindo
suas famílias dentro de uma “concepção moderna”.
Os cortiços e as instalações das antigas senzalas formavam as habitações dos negros
que viviam amontoados e em condições insalubres. A vida amarga nas precárias habitações se
transformava em motivo de tragédias e crimes, sendo a grande maioria, oriundos da fome,
desemprego, relações matrimoniais informais, instabilidade emocional e violência (MACIEL,
1997).
O autor mostra também que as inúmeras mortes na população negra eram ocasionadas
pelas epidemias de febre amarela e varíola que estavam relacionadas à ausência de políticas
de assistência a este grupo populacional. Os jornais da época apontam como causas de
mortalidade da população negra: morte por síncope cardíaca, envenenamento, enforcamento,
afogamento nas enxurradas de chuvas e rios, assassinatos por faca, tiros, espancamentos,
atropelamentos, acidentes de trabalho quando empregados, como também morriam de frio, de
velhice e inanição.
A perseguição aos negros e a falta de assistência foi algo notório e comum,
objetivando fazê-los desaparecer de todas as formas dos espaços públicos. Além de
socialmente desassistidos, os negros eram interceptados de realizar protestos e manifestações
de rua, quais seja, samba, capoeira, cantigas, sob alegação de que sua a presença estava
comumente associada à briga e confusão; motivo que exigia ação policial intensa, de modo a
resguardar os indivíduos civilizados dos riscos e incômodo destes (MACIEL, 1997).
Nesse contexto, verifica-se o aumento da criminalidade e na mesma proporção o
aumento das máquinas de repressão aos infratores, que eram na maioria menores negros que
rechaçados nesta sociedade excludente reagia aderindo ao mundo do crime. Assim, ao longo
de sua existência a imagem do negro esteve associada à violência e ao negativo social, sendo
amplamente veiculada pela imprensa para que a população soubesse dos perigos que a raça
negra oferecia a sociedade (MACIEL, 1997).
O confinamento de crianças e adolescentes em instituições de “tratamento da
personalidade” foi à estratégia adotada para a “recuperação destes jovens” a fim de
transformá-los em cidadãos (PRIORE, 1999).
34
As crianças e adolescentes que deviam ser a esperança de mudança e de um futuro
melhor, já não correspondiam e nem mereciam tanto investimento social. De acordo com
Priore (1999), “[...] a criança não ideal achou os estigmas definitivos de sua exclusão,
passando de menor na rua para menor de rua com todas as conseqüências nefastas implícitas
nesse rótulo”, o que significou sofrimento de todos os tipos e de perseguição policial.
Por isso, acreditamos que a sociedade racista, com sua poderosa força de ideologia
racialista, onde a miscigenação estabeleceria o processo de democratização racial e social no
país, garantiu, como até o impulsionou o racismo, porque encoberta pelo propósito da
liberdade, da eugenia de raças e do branqueamento, excluiu a participação equânime do negro
na sociedade brasileira.
Data do Brasil republicano a propagação da idéia de eugenia das raças e mito da
democracia racial, que postulava o branqueamento como a saída para formação de
organizações familiares regulares e saudáveis. O mito de democracia racial instaurado
mobilizou a nação brasileira a constituir sua identidade nacional que sob o argumento da
miscigenação propôs um outro tipo de sociedade, de caráter moderno, progressista, mas que
obviamente deveria responder a demanda essencialmente capitalista (KALOUSTIAN, 2005).
Nesse ínterim, segundo SOUSA (2006), o decreto de 14 de dezembro de 1880 foi a
estratégia política que teve o propósito de sancionar a idéia de que o fim da escravidão poria
fim também às idéias racistas, extinguindo a possibilidade de continuidade do racismo.
Apoiada na idéia fictícia de promoção de fraternidade e igualdade racial, o simples ato de
queimar toda documentação relativa à escravidão promulgou o marco da democracia racial
onde se teceu sutilmente um racismo sem precedentes e de ideologia dominante que acabara
por culpabilizar o negro pela sua imobilidade social, marcando profundamente seus costumes,
imaginário, cultura e perfil étnico-racial.
Em nome da reconstrução da identidade nacional, a diversidade cultural foi de alguma
forma engolida, urdindo por intermédio da miscigenação uma unidade cultural. Nesse caso, a
nação para readquirir sua “integridade” viu na mestiçagem a saída para o problema,
projetando a figura do mulato como instrumento de conversão ideológica e de fomento ao
processo de assimilação da cultura branca.
Para tanto, os efeitos da limpeza de sangue adquirida pela miscigenação seria o de
melhorar o indivíduo negro que adquiriria “caracteres biológicos brancos”, que por serem
superiores os qualificariam para o êxito. Desse modo, ser mestiço era a única possibilidade de
vivenciar sem “traumas” a incumbência de modificar o destino de ser negro, passando de um
35
lugar sem perspectivas, para outro onde não enfrentaria a problemática da cor, visto ser a
miscigenação a síntese das culturas branca e negra (PINHO, 2004).
Ainda segundo o autor (p.2) a aculturação promovida pela miscigenação ao invés de
amenizar as desigualdades raciais, ao contrário “ideologiza as diferenças sociais como
diferenças natural-culturais”.
Podemos dizer que com a mestiçagem, a aglutinação de culturas tão apregoada
cumpriu o seu destino, o de distanciar o negro de suas raízes. Seguindo em busca de uma
sociedade mais aberta a sua passagem para o alcance da mobilidade social, o negro opta pela
miscigenação abandonando seu corpo afrodescendente. No entanto, o alcance da mobilidade
social apenas se daria quanto mais pálidos fossem seus traços, o que garantiria a sobreposição
da raça branca à negra, ou seja, essa passagem tão esperada estava ainda condicionada ao
resultado da “mistura”, que poderia impedir indubitavelmente a concretude da passagem.
Mesmo expostos a muitas desvantagens não tinham como recusar o “convite” à
miscigenação, pois era grande sua necessidade de inclusão social e de pertença, já que sempre
estiveram comprometidos com a violência e a exclusão social desde o processo de
colonização.
Desta maneira, a proposta de democracia racial atingiu diretamente os indivíduos
negros, inclusive marcando profundamente o seu imaginário para constituição familiar.
Através dos tempos, a família de negros foi sendo doutrinada por brancos e mesmo por negros
a aceitar sua condição de inferior legando aos descendentes, submissão, inferioridade,
dependência e marginalidade, derivada do racismo como estrutura e categoria de pensamento,
ponto-chave que a faz sucumbir à irregularidade em todos os níveis de sua formação: física,
psicológica, cultural, pessoal-social, entre outros.
Ao responder a miscigenação, o elemento negro, como relata Pinho (2004, p.6)
“produziu o mestiço como um objeto indeterminado, incapaz de propor-se como um sujeito.
Este objeto, o mestiço ou cultura miscigenada, está eivado de componentes raciais e de
controle social [...]”. A justaposição do conceito de cultura à noção de raça estabelecida pelo
conjunto de procedimentos ideológicos de controle social se dá compondo o jogo discursivo
necessário para abreviar ou enfim obscurecer a discussão em torno do “problema do negro”,
garantindo o aproveitamento do “melhor da cultura negra”.
Para Kaloustian (2005) esse pensamento hegemônico enfatizou a formação da família
de negros e sua relação com a irregularidade e a pobreza, que foi construída historicamente
pelas elites e propagada até a presente data por força política e ideológica.
36
Com dizia Santos (1998, p.154):
Ser negro no Brasil é, pois, com freqüência, ser objeto de um
olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar
que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e
assim tranquilamente comporta-se [...].
A construção social de uma relação baseada no poder fez com que os negros
assimilassem sua inferioridade e ao mesmo tempo aprendessem a se ver como objetos, pois
como escravos tinham que abdicar do seu corpo, do controle da própria vida e destino;
tornando-se vulnerável à violência que se legitima e se naturaliza quotidianamente.
O processo civilizador ao longo dos cinco séculos, quatro de escravidão propriamente
dita e um de exclusão, trouxe consigo estereótipos raciais que se cristalizaram a partir do
arcabouço do patriarcado, pela política de controle social. As relações étnico-raciais que se
seguem mostram que a imagem e o imaginário sobre o negro estão relacionados à submissão e
a dependência, que per si orienta até hoje nossa sociedade a enxergá-lo como sujeito
diferente, de direitos diferenciados ou de não-direitos (CRUZ, 2004).
O fracasso histórico em amalgamar as etnias coexistentes no Brasil possibilitou a
edição de uma distorcida nacionalidade e cidadania brasileira, inspirada na superioridade dos
brancos que insistiram em não “enxergar” o negro como seu semelhante e não como alguém
diferente, a ponto de negar formas de proteção e de assistência necessárias ao ser humano de
cor negra. E, mais do que isso, exigindo “branqueamento” como forma de apagar, dar sumiço
no corpo e na identidade negra.
Portanto, de ordem ideológica o ato de rejeitar e discriminar está muito presente e vivo
no imaginário e discurso quotidiano de brancos e negros, que não conseguem forjar
completamente seu comportamento para dizer-se anti-racistas, deixando escapar inclusive
alguns jargões populares que identificam a representação social que tem no self do negro:
“negro correndo na rua é ladrão”, “negro filho de cachorro”, “negro só sobe na vida quando o
barraco explode”, “negro só anda de carro quando vai à caçapa do camburão”.
Nesta perspectiva, somos levados a esmos pela ideologia dominante a pensar e tratar o
negro com descaso, desprezo, desrespeitando as diferenças étnico-culturais e desqualificando
a priori seu potencial humano, atitude racista, que tem dificultado a inserção valorizada do
negro na sociedade.
Em Lopes (2005) encontramos estudos confirmando que os negros seguem no
mercado de trabalho ocupando cargos inferiores à sua qualificação e recebendo mais baixos
salários se comparados aos dos brancos com mesma qualificação.
37
Diante do exposto, entendemos que ao longo da história muitas foram às mudanças
que se processaram no interior da sociedade por fins econômicos, políticos, culturais e
religiosos que conduziram ao comportamento contemporâneo dos indivíduos negros e sua
família.
Gália (2003) aponta que nos últimos tempos os indivíduos negros têm a necessidade
de demarcação de território, valorização pessoal e visibilidade social. A busca pelo poder tem
feito parte do jogo social para sobrevivência e tem contribuído para que os negros busquem
igualdade nas relações, resgatem o seu eu, suas crenças e valores, fortaleça seu ego a fim de
disputar em condições equânimes oportunidades, espaços e lugares.
E é justamente esta estrutura que dá início na pós-modernidade ao que Baumann
(1998); Freud (1997) apontam como crise, onde “[...] deixar de conquistar algo significa uma
grande fonte de angústia [...] o desejo de conquista é fonte de ansiedade”. De onde
entendemos que a liberdade adquirida no pós-moderno caminha junto com o aumento da
necessidade de materializar a conquista, principalmente para os negros que viveram anos a fio
em uma ordem conservadora, restritiva e de tabus. Hoje, naturalmente rejeitam a idéia de
inferioridade, de subserviência, trilhando caminhos em busca do prazer que está reiterado na
aquisição de prestígio e poder que nunca tiveram.
Prova disso, tem sido a presença e força do movimento negro, principalmente na
Bahia, através da organização de grupos na defesa dos direitos da população negra e de uma
participação cada vez mais ativa na sociedade. A criação desses espaços, além de outros
tantos movimentos, tem ajudado o negro no reconhecimento de si, da afirmação da sua
identidade negra, reconstituindo sua história de luta e de busca pelo empoderamento.
O caminho percorrido foi longo, por isso, não podemos deixar de dizer quanto temos
que enquanto sociedade civil engendrar esforços para que crianças, adolescentes e a
população negra em geral sejam reconhecidas no tocante às políticas públicas, como sujeitos
de direitos, cidadãos.
Como vimos, a família do negro teve sua identidade destituída ou mesmo arrancada,
pela violência sofrida ao longo dos anos, fato que contribui para que enquanto instituição
formadora da identidade social, étnica e cultural de seus membros propagasse através das
relações familiares e sociais o que aprendeu e viveu de violência.
Diante destas considerações, podemos entender como a violência foi e continua
fazendo parte da vida e prática quotidiana da família do negro, passando de geração em
geração como uma espécie de herança e cada vez mais fortalecendo o ciclo de violência.
38
3.3 O VISÍVEL E O NÃO-VISÍVEL DA VIOLÊNCIA NUMA SOCIEDADE RACISTA
Tomamos como questão central para discussão da violência causada pelo racismo, a
família, concordando com Rolin (2006) de que a violência é uma construção coletiva que se
mostra alicerçada nos entremeios indivíduo-família-comunidade. Por assim entender,
investigamos a violência no quotidiano de adolescentes negros e seus familiares, utilizando
como foco as organizações e relações familiares desses indivíduos na presença (percebida ou
não) do racismo, porque supomos que este seja um dos fatores determinantes da violência,
tanto familiar quanto social.
O viver humano na esfera micro e macro-social têm sido permeados de conflitos,
desde os primórdios da humanidade, sendo originado por uma cultura da violência e orientado
por uma ideologia de violência (MULLER, 2006).
Podemos tomar como exemplo os escritos bíblicos que revelam o surgimento dos
conflitos e da violência no ambiente familiar através da disputa de dois irmãos que culmina na
morte do Abel por Caim. A passagem bíblica revela que a ganância e o poder produzem ódio
e ressentimento nos corações levando ao aniquilamento uns dos outros.
À medida que se estabelece no quotidiano de convivência familiar uma relação
assimétrica e hierárquica, marcada por desigualdade e subordinação entre familiares, a própria
relação de poder, disciplina e dominação que persegue estes indivíduos dentro e fora dos
contextos familiares dá margem aos atos violentos.
De acordo com Zaluar (2002, p.43) a violência se inscreve no interior das consciências
e subjetividades dos indivíduos que não se reconhecem como sujeitos, nem como cidadãos,
pois não encontrou abrigo na família e “também não foi acolhido na escola ou pela
comunidade, a sociedade passa por ele como se ele fosse transparente, como se não tivesse
nenhuma densidade, ontológica, antropológica, ou sequer, humana”.
O ser humano necessita da condição de pertencimento a alguém ou algo para existir,
ou seja, para que possa ser alguém ele precisa seguir um padrão, uma referência. Os alicerces
familiares e sociais são estruturas que ajudam e apóiam os indivíduos na transposição dos
obstáculos, enfrentamento dos desafios e manutenção do seu equilíbrio. Neste contexto,
promovem a formação da identidade e personalidade dos indivíduos, isto é do seu self.
No entanto, quando o ser humano constrói-se às expensas de uma repudia familiar e
social, extrai-se do indivíduo a possibilidade de crescimento e desenvolvimento saudável,
39
pois os sentimentos de desvalorização e inutilidade comprometem sua imagem enquanto
pessoa e sua relação com o outro.
De fato, o comportamento violento é por sua natureza um fenômeno da ordem do
vivido e cujas manifestações provocam ou são provocadas por uma forte carga emocional de
quem a comete, de quem a sofre e de quem a presencia (MINAYO, 2006). Portanto,
conjeturamos que os indivíduos possuem graus de risco diferenciados para a prática da
violência, na dependência da cultura, classe social, sexo, idade e raça.
Contudo, para entender a motivação de comportamentos violentos, partimos do
pressuposto de que a violência acompanha o núcleo familiar que apresenta história
intergeracional conflituosa, permeada de dificuldades sócio-econômicas e que não obteve
suporte social suficiente (SCHIMICKLER, 2001).
Neste sentido, o estudo da violência nas famílias de negros, que são em sua maioria
indivíduos pauperizados e historicamente excluídos remonta a importância de discutir a
relação racismo-violência, considerando o racismo como uma forma de violência
experienciada quotidianamente pelos indivíduos negros.
Observa-se um número volumoso de publicações sobre as violências e suas
repercussões à saúde dos indivíduos. Os diferentes autores têm pontuado a dificuldade de
explicar a etiologia e causalidade da violência, reconhecendo sua dinâmica e complexidade,
como também de estabelecer estratégias apropriadas à resolução deste conflito (MINAYO,
2006; BATISTA, 2006; BIANCARELLI, 2006; JÚNIOR E OLIVEIRA, 2006).
Pensando na violência como um fenômeno complexo circunscrito nas diversas
dimensões da natureza humana e no contexto das relações, o modelo ecológico proposto pela
OMS busca respostas ao fenômeno pela análise dos fatores biológicos e pessoais, carregados
de subjetividade e concentrando-se nas características que predispõem os indivíduos a
vivência de violência, relacionais, comunitários e sociais mais amplos, evidenciando quais
interações e influências estão imbricadas com sua ocorrência (OMS, 2003 apud MINAYO,
2006).
Müller (2006, p.21) ao tratar da etiologia da violência, apresenta como primeira causa
para justificação da violência, a natureza humana, para o autor “[...] é o homem violento que
vai criar a ideologia da violência [...]”, pois o ser humano ao possuir razão, diferencia-se dos
demais animais, agindo conscientemente na escolha pela destruição do outro, sendo, portanto,
o único animal na natureza que realmente é violento, uma vez que possui a capacidade de
violentar deliberadamente.
40
Estas considerações colocam a natureza humana como fator predisponente para a
vivência da violência, denotando que fatores biológicos e pessoais próprios do ser humano
influem fortemente para o comportamento de violentar e/ou ser violentado.
Segundo Minayo (1994, p.7) tal ponto de vista erudito, só se justifica no estudo
legítimo da violência como um fenômeno multifacetado que abarca componentes do plano
individual, pois “trata-se de complexo e dinâmico fenômeno biopsicossocial [...]”, como
também que se conecta com os demais planos da vida deste indivíduo, a saber, “[...] seu
espaço de criação e desenvolvimento é a vida em sociedade [...]”.
Daí conclui-se que a violência não faz parte da natureza humana e, portanto, não tem
raízes biológicas, motivo pelo qual é valorizado o contexto histórico, das relações, do Direito,
da Psicologia, da moral e das vertentes político-econômicas para análise das violências. O agir
violento é um fenômeno humano-histórico construído socialmente, onde algumas situações
potencializam outras, levando-se em conta as representações individuais, os espaços de
convivência humana e as especificidades dessa ocorrência. É nessa dialética de
interioridade/exterioridade ao ser humano, que a violência, na sua complexidade, deve ser
analisada em rede, como adverte Domenach (1981, p. 40):
[...]formas mais atrozes e mais condenáveis geralmente ocultam outras
situações menos escandalosas por se encontrarem prolongadas no
tempo e protegidas por ideologias ou instituições de aparência
respeitável. A violência dos indivíduos e grupos tem que ser
relacionada com a do Estado. A dos conflitos com a da ordem.
Os aparatos legais da sociedade moderna para manutenção da vida civilizada, ordem e
segurança nacional sob responsabilidade do Estado, tem sido a repressão, seja através do
armamento policial, validadas pelo uso abusivo da força pela polícia, sistema de justiça
criminal, que mostra sua fragilidade e ineficácia quando revela as discrepâncias e injustiças
sociais que enfrentam os cidadãos, a fraude política ou políticas sociais inconsistentes ou
ainda carência de assistência social e de saúde (BATISTA, 2006).
O modelo também evidencia que outros fatores sociais mais amplos como a jurisdição,
norma, cultura e ideologia utilizadas socialmente como forma de resolver conflitos entre os
indivíduos podem ao invés de atenuá-los, agravá-los.
Na seqüência, aponta-se o fator relacional e sua importância no desenvolvimento da
violência. O processo inicia-se a partir das interações no núcleo familiar e alimenta-se pelo
movimento indivíduo-família-comunidade.
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Müller (2006) reitera que as interações sociais são em sua essência conflituosas, já que
ao estabelecer um processo de convivência com alguém, várias vezes percebemos o outro que
se aproxima como uma ameaça, mesmo no núcleo familiar, onde as pessoas são íntimas,
buscam acolhimento e tem afinidade.
Na família, o nascimento de um novo ser demanda responsabilidade, envolvimento e
preparo dos membros para aceitação, caso contrário, abre-se a possibilidade para o
surgimento do conflito e situações em que permeia a violência.
Parece que a ameaça que o alguém representa a outrem, está pautada no medo da
ruptura da ordem estabelecida ou que se queira estabelecer. Assim, socialmente, o outro pode
ser reconhecido como alguém que ameaça os meus direitos ou o que eu já consegui
conquistar, àquele que contraria os meus desejos, limita minha liberdade enquanto ser e
ameaça minha própria existência. Então, o medo da perda de algo, pode incitar a motivação
para o enfrentamento do outro, no intuito de resolver o conflito e assim, garantir aquilo que
foi perdido.
Neste sentido, o gerenciamento inadequado do medo do outro com quem convivo e o
uso equivocado da agressividade e força para resolução dos conflitos oriundos das relações
sociais quotidianas engendram atos violentos.
Quando se avança para análise do sistema de relações comunitárias e sua influência na
dinâmica da construção da violência, perceber-se que os modos de sociabilidade podem
contribuir na vitimização ou perpetração da violência. Ou seja, as relações estabelecidas entre
indivíduo/família, vizinhança, amigos, escola e trabalho quando marcadas por desigualdade,
sobretudo pela discriminação corroboram para criminalidade e delinqüência.
É interessante notar que as causas da violência são bastante profundas e entrelaçadas
por fatores intrínsecos e extrínsecos aos indivíduos, cujas conexões fortalecem sua existência.
A propósito, apesar da subjetividade que envolve a situação de violência, evidentemente há
uma objetividade em sua manifestação que evidenciam que suas causas e conseqüências são
derivadas de um contexto de desigualdade e exclusão.
Portanto, tomamos os pressupostos de Maciel (1997) para discutir a questão do
racismo como um tipo de violência a que sempre esteve exposta à população negra,
destacando a cor/raça como integrante dos mecanismos utilizados para essa ação-social
discriminatória e violenta.
De acordo como o autor com o fim da escravidão, os negros buscaram participar da
sociedade dita livre em igualdade de direitos, tornando as relações raciais mais conflituosas, e
42
fazendo com que, o racismo latente começasse a emergir como argumento diferenciador entre
brancos e negros com intuito de manter o status quo da população branca.
Outro pressuposto a ser considerado foi a substituição do tráfico de escravos pelo de
imigrantes, como forma de estabelecer um exército de reserva e mão-de-obra barata ao capital
industrial, mantendo o controle social (controle do negro). Como também, as estratégias de
miscigenação, ideal de branqueamento e democracia racial tinham como objetivos a
desconstrução da identidade negra.
O terceiro pressuposto é de que os movimentos reivindicatórios dos negros para
consecução dos objetivos sociais, econômicos e políticos se confundem com o do branco
pobre, que está meramente situado na esfera econômica, dificultando as reivindicações
específicas dos negros que não tem só haver com os aspectos econômicos.
O quarto pressuposto é que a violência sempre foi desde a escravidão o instrumento
utilizado para manter a população de negra fora do cenário social representativo. A proposta
era criar algo para relativizar, frenar o negro socialmente, por isso, ao aglutinar as raças negra
e branca em um depositário – o mestiço, suas manifestações estariam no mínimo restritas,
tornando-os vulneráveis a dominação-exploração.
Observa-se que estes fatores históricos e ideológicos utilizados na formação do caráter
nacional e na época da escravidão que perduram no imaginário contemporâneo contribuíram
para formação dos selfs dos indivíduos brancos e negros culminando no que denominamos
imaginário social do negro e que vem contemplando o processo de construção da violência
contra o negro e a partir do próprio negro está baseada em princípios racistas que alimentam
a todo instante a discriminação.
Portanto, o racismo vivenciado por indivíduos negros e sua família é um tipo de
violência que tem suas raízes na barbárie da escravidão e se estende ao século XXI de modo
sutil, mas com toda a carga ideológica do passado, de modo que reforça quotidianamente o
sofrimento psíquico vivido por estes indivíduos, produzido e reproduzido na sua história de
vida.
O racismo, enquanto ideologia dirigida pelas classes dominantes, vai sendo
interiorizada pelo restante da sociedade, num movimento compulsivo de institucionalização
hegemônica, onde os negros são considerados ignorantes, indolentes, inferiores.
A palavra “racial” foi emanada no século XIX, através da teoria do determinismo
racial que postulava a superioridade da raça branca sobre as demais. Ao estabelecer distinções
entre as raças incentivava uma doutrina ou sistema político baseado no direito de uma raça,
tida como pura e superior, dominar as demais inferiores, a partir de características
43
supostamente biológicas. E, apenas no século XX introduziu-se formalmente o termo “raça”
para combater todas as formas de miscigenação, na prerrogativa de que a mistura de raças
levaria a raça humana a graus sempre maiores de degenerescência, tanto física quanto
intelectual, diminuindo sua vitalidade, capacidade criativa, além de propiciar a corrupção e
imoralidade. Por estas, e por muitas outras razões, ideologicamente o racismo tomou corpo no
imaginário dos indivíduos e o preconceito contra pessoas negras, julgadas inferiores, alimenta
através dos tempos, atitudes de extrema hostilidade contra o objeto de dominação e
exploração (CHAUÍ, 2007).
Para MUNANGA (s/d, 2009) o racismo é uma forma de extermínio de populações,
para que a hegemonicamente mais forte possa dominar/governar/explorar as demais, assim:
a classificação da humanidade em raças hierarquizadas na realidade é
mais uma máscara doutrinária que científica, utilizada para justificar e
legitimar os sistemas de dominação racial do que como explicação da
variabilidade humana que se esconde nas nuances de cor de pele,
olhos e cabelos formatados pela melanina. Sem dúvida, a intenção de
banir as raças mais inferiores foi uma verdade discutida nas teorias
racialistas que se difundiram rapidamente dos círculos intelectuais e
acadêmicos para as populações ocidentais dominantes, depois pelos
nacionalismos nascentes como o nazismo, a fim de legitimar as
exterminações necessárias, configurando-se na grande violência que
foi a Segunda Guerra Mundial
Chauí (1985, p.28) considera que a violência pode ser entendida como um problema
de poder, estando representa pela “conversão de uma diferença e de uma assimetria numa
relação hierárquica de desigualdade, com fins de dominação, de exploração e de opressão” ou
“ação que trata um ser humano, não como sujeito, mas como coisa”.
Quando a autora expressa sua concepção de violência revela que a discriminação
racial é um ato de violência, pois o sujeito é visto e concebido como “coisa” pelo agressor, um
sujeito desprovido de valor e identificação social, inferior, insignificante.
O preconceito e discriminação racial são manifestados através de comportamentos
individuais e coletivos de repugnação, não-aceitação e desfavorecimento dos indivíduos
negros, a despeito da instaurada abolição da escravatura, que fazem com que estes
experimentem progressivamente um processo de exclusão social, cultural, moral e de
identidade.
O ponto de partida para este processo de estigmatização segundo Azevedo (1987) foi a
percepção por parte da elite branca que a população negra era majoritária dentro do
contingente populacional brasileiro, o que fomentou uma maciça política imigratória européia
a fim de diluir pela miscigenação o poder de mobilização e organização da população negra
44
na reivindicação por seus direitos. A alternativa viável para o fortalecimento da hegemonia da
elite branca era o investimento numa miscigenação capaz de levar a população negra à
extinção.
O fato é que diante do medo, dos pesares, da angústia e estresses acumulados pela
violência física e simbólica durante quase quatro séculos de escravidão por qual passou a
massa negra, motivou a elite branca a buscar estratégias de controle da situação, a exemplo de
políticas institucionais excludentes que fadavam o negro ao insucesso e os confinavam ao seu
biótipo diferente e, portanto, degenerado e inferior.
A miscigenação enfatizada por Carone (2002) aponta que o cruzamento racial não foi
um processo natural, foi mais uma das violências sofrida pelo negro, contrariando Freyre
(1980) na sua afirmativa de que a miscigenação foi um precursor da democracia racial.
A exigência de branqueamento e das normas advindas dessa ideologia era condição
sine qua non ao negro para o alcance de ascensão social e adequação à vida civilizada em que
viviam os brancos.
Abordar a violência racista significa repensá-la na ordenação do passado, dos
determinantes históricos e na materialização da violência simbólica, subjacente da ruptura de
vínculos e identidade do ser negro, ao longo das gerações.
Como afirma Santos (2007) a violência simbólica descrita por Pierre Bourdieu referese a um tipo de violência cuja matriz está arraigada nos símbolos e signos culturais do pátrio
poder, como uma espécie de pacto desenvolvido com base em um respeito que "naturalmente"
se exerce de alguém para outrem, impetrado no sentido de manter a ordem das coisas. Um
tipo de violência simbólica, como é o caso do racismo, muitas vezes é exercida com o
consentimento da vítima, não sendo percebida como violência, especialmente pelo
reconhecimento implícito da autoridade exercida por certas pessoas e grupos de pessoas que
efetivamente dominam no cenário macroeconômico e político.
Na verdade, é como se houvesse uma concordância entre o dominador e o dominado,
em acertar posições de comando e submissão respectivamente, na qual a dominação é
legitimada por ambos de certa forma; quando na verdade apesar de não ser vista, ou
concretamente delatada, a violência está ocorrendo pela ação das forças sociais e pela
estrutura das normas internas do campo do mundo social em que os indivíduos se inserem, e
que de certa maneira se incorporam (até mesmo corporalmente) em seus habitus.
É neste contexto social que vigora o fascínio pelos signos de prestígio e de poder e se
estrutura uma relação assimétrica entre os indivíduos, palco para o exercício da violência.
45
O branqueamento, perverso em sua concepção, nega ao indivíduo negro a construção
de uma identidade distante do passado escravocrata e dos indiscutíveis sinais de inferioridade
instituídos pelo branco.
Ao espelhar-se no branco, o negro perde a representação de si mesmo, constituindo-se
uma ameaça para si e seus semelhantes negros, porque tudo que lhe é familiar passa a ser
visto como hostil e é projetado para fora, traduzindo o sentimento de insegurança, proveniente
da fragilidade de auto afirmar-se (BENTO, 2002). De negro passa a branco em todas as suas
vicissitudes, destituindo-se da condição de negro, sente-se branco e, portanto, como branco,
pode hostilizar o outro que é negro obstinado à espoliação.
A violência racista, nascida da projeção do branco sobre o negro obriga o indivíduo a
experimentar uma verdadeira alienação relacional, mobilizando conteúdos inconscientes na
contemporização de uma maneira mais confortável de ser negro.
A internalização paulatina do desejo de ser branco extirpa do quotidiano do negro o
amor entre indivíduos negros, em todos os tipos de relação, inclusive nas conjugais. O negro
ao formular em seu self um projeto identificatório incompatível com o seu biótipo cria um
fosso relacional com o outro negro evitando macular sua brancura. A partir desse desarranjo
psíquico mantém aspiração por relações conjugais com brancos, com o propósito de expurgar
a cor negra das gerações seguintes, no desejo veemente pelo próprio extermínio (COSTA,
1983).
A violência racista imperativa nas ações do branco contra o negro e do negro contra o
próprio negro, ao conseguir subverter a organização mental dos indivíduos, ultrapassa os
limites psicossociais necessários à preservação da auto-estima, auto-imagem e autoconceito
dos negros sustentando muitas das violências na atualidade.
Partimos da experiência de adolescentes que vivenciam cotidianamente a
violência/racismo em sua família aceitando a prerrogativa de Bento (2002, p.34) que assevera:
“as inibições, repressões e fracassos vividos por um grupo geram nele cargas de rancor que
podem explodir, da mesma maneira que, em nível individual, o medo ou a angústia liberam e
mobilizam no organismo forças incomuns”. Justamente na adolescência, fase da vida humana
marcada por mudanças, construções, busca de realizações, onde se tem necessidade de
felicidade, os impactos dessa vivência de dor e sofrimento ocasionados pelo racismo lhe
trarão prejuízos nos campos psicológicos e afetivos podendo conformar padrões de
comportamento violento.
46
3.4 SER ADOLESCENTE NEGRO
A adolescência é a fase do desenvolvimento humano em que se delineia a identidade
pessoal e social, nascida e negociada dialeticamente no plano espaço-temporal integrando
passado, com identificações e conflitos da infância; presente, que requer reestruturação
momentânea do self; e futuro, com suas perspectivas e antecipações (OLIVEIRA, 2006).
Na compreensão da autora, esta fase marcada por conflitos subjetivos de foco
biopsicossocial, suscita ajustes do indivíduo a uma ampla pauta de reconstruções identitárias
envoltas num processo transacional de elaboração mental e biológica de um novo ser. O
corpo e auto-imagem que se impõe à condição de adolescente trazem mudanças de
posicionamento mediadas pelas relações sociais, principalmente entre as gerações.
O corpo é um objeto social usado pelo indivíduo para pensar, representar, interagir e
comunicar-se com os outros e consigo mesmo (CHARON, 1989). Utilizando o critério da
“imaturidade” biopsicosocial da criança e do adolescente, o social projeta no corpo infantil
uma referência de dependência do outro (adulto) para que este corpo ainda inapto possa
enfrentar e sobreviver às adversidades. Assim, nessa relação social assimétrica o corpo
mediatiza e posiciona a criança e o adolescente como um ser frágil antecipando e
confirmando a condição de inferioridade da criança e do adolescente na composição familiar.
Segundo Chauí (1986), exatamente por não ter autonomia e capacidade de defesa para
resolução de conflitos, estes são mais vulneráveis, e nesse sentido, mais expostos às situações
de violência.
O corpo adquire dimensão significativa na vida do adolescente, definindo a história de
cada um, suas experiências, perdas e conquistas, atuando igualmente no desenvolvimento de
autoconceito, auto-estima, auto-imagem e de outros conceitos (OUTEIRAL, 1994; OSÓRIO
1992).
O adolescente, na relação com o próprio corpo abre a possibilidade de conhecer-se, reconhecer-se e mostrar-se. O corpo assume um importante papel na aceitação ou rejeição do
adolescente pelo grupo, logrando sucessivas reconstruções identitárias em resposta às
exigências sociais que são ditadas pelo corpo idealizado.
Os adolescentes vivem e manifestam intensamente a preocupação com o corpo, a
aparência e o ideal da beleza proposto pelo grupo. A valorização do corpo dá-se, no início da
adolescência pelo desejo de identificar-se com os outros. O corpo, enquanto objeto
materializado permite pelas características físicas observáveis, comparação, avaliação e
47
apreensão de um "eu” concreto. Mas, no final da adolescência o corpo passa a ser objeto de
conquista, subjazido pelo estar com o outro, como também, da definição do "eu" mais abstrata
regulada por valores, crenças e padrões sociais.
A notável valorização do corpo é abordada por Savietto e Cardoso (2006) como um
fator que propicia angústia e insegurança na adolescência, já que ao ser representado pela sua
aparência corporal o sujeito sofre exposição e avaliação constantes. O corpo, que integra as
transformações que ocorrem no tempo-espaço da adolescência, passa a ser o princípio
orientador do interesse ou do desinteresse do adolescente pelo outro, mais ainda, da busca
pelo corpo desejável ou compatível.
Para estabelecer a importância do corpo para o adolescente é imprescindível entendêlo, tal como é significado na adolescência, objeto pulsante e animado, que tem linguagem
própria é dotado de sentido libidinal na mais forte expressão do vigor e da potência; é assim
uma referência para o mundo adolescente.
O indivíduo, na adolescência, processa sua imagem a despeito do que os outros
expõem sobre seu corpo. O corpo possui um valor inestimável na relação com os outros e
consigo próprio, apresentando-se como prioritário e determinante na satisfação relacional e de
auto-estima, na insatisfação ou até na negação de si mesmo (CORDEIRO, 2006).
A formação do self adolescente emprega um processo de reflexão e observação
simultâneas de experiências captadas no meio externo a si, pela qual o indivíduo se julga, se
compreende, vê a si mesmo e a sociedade (BIDO, 2006).
Existir entre “iguais” e obter aceitação do grupo de convívio é um construto da
adolescência, que abarca uma ampla pauta de conflitos e crises, principalmente, a partir da
representação que o adolescente elabora sobre seu próprio corpo. Estas representações
advindas de experiências passadas e presentes, reais ou fantasiosas, conscientes ou
inconscientes regulam a relação do adolescente com o grupo de pertença promovendo seu
self, sua ação, e, como conseqüência adoção de sua configuração identitária.
Estudo sobre a relação do adolescente negro com seu corpo, foi realizado por Gomes
(2002) intitulado “Corpo e cabelo como ícones de construção da beleza e da identidade negra
nos salões étnicos de Belo Horizonte” que representou tese de doutorado na área de
antropologia. O autor capta através de uma escuta atenta quais as vivências e representações
corpóreas do negro sobre seu próprio corpo e evidencia que várias depoentes, ao reportaremse ao corpo, relembraram momentos significativos da sua história de vida, dando um destaque
especial à trajetória escolar, momento da infância e adolescência.
48
Considerando que o corpo fala a respeito do nosso estar no mundo, quando as
depoentes se reportam ao seu corpo negro e ao cabelo crespo como marcas que para elas
indicam inferioridade, é porque valorizam o padrão de beleza socialmente aceito que é o
branco; lamentavelmente, dessa forma reforçam estereótipos e representações negativas sobre
o segmento étnico/racial negro e o seu padrão estético.
“A sensação de ter o cabelo constantemente desembaraçado e de não precisar sofrer as
pressões do pente ou os puxões para destrançar o cabelo foram comentários constantes” de
negras que não suportam usar as tranças, porque passaram à infância e/ou adolescência sendo
submetidas a verdadeiros rituais de manipulação do cabelo, para agradar os familiares,
amizades e seus pares, que primam pela beleza branca (GOMES, 2002, p.42).
Assim, desconhecendo o curso da história do uso de tranças que acompanha o negro
desde a África, a técnica de trançar os cabelos é interrompida, porque muitas famílias negras,
desconhecem o valor das “tranças”. No contexto da escravatura, tinha-se a convicção de que
usá-las era uma maneira de arrumar o cabelo das crianças, sobretudo das mulheres, como
também de romper com os estereótipos de que o negro é descabelado e sujo (GOMES, 2002;
GOMES, 1995).
No entanto, para viver em sociedade e manter bons relacionamentos afetivos, crianças
e adolescentes se acostumaram ao corpo branco, sendo que preferem muitas vezes abdicar do
seu corpo negro, pois para Gomes (2002, p.50) “Cortar o cabelo, alisá-lo, raspá-lo, mudá-lo
pode significar não só uma mudança de estado dentro de um grupo, mas também a maneira
como as pessoas se vêem e são vistas pelo outro; o cabelo compõe um estilo político, de moda
e de vida”.
Com base, no exposto, as significações do adolescente acerca de si resultam da
interação do seu self com o contexto relacional cultivadas na comunicação interativa do
adolescente com o outro - amigo, vizinho, família; que agrega valor e estruturação a sua vida.
De acordo com Oliveira (2006 p. 432) “o self adolescente [...] é o arranjo que se
produz na internalização/externalização ativa de experiências capitalizadas em diferentes
esferas da vida cultural e se expressa nas práticas narrativas”. Subentende-se que o
desenvolvimento social do adolescente se fundamenta na relação com o outro, construído da
experiência intersubjetiva para dentro de um contexto concreto de práticas sociais, onde a
cultura apresenta-se responsável pela afirmação das marcas sociais típicas de cada geração.
A adolescência, na atualidade, segrega marcas típicas de uma geração em tempos de
modernidade, que combina diversidade, insegurança e sistemas discriminatórios como base
para formação do adolescente (CASTRO e ABRAMOVAY, 2002).
49
Introduz-se impiedosamente, na vida do adolescente a difícil tarefa de integrar o
mundo adulto, dando-lhes muitas vezes responsabilidade, sem que tenha o devido preparo
para assumir. Neste sentido, a família pauperizada tem confiado ao adolescente, o projeto de
ascensão social, perseverando no sentido de torná-lo protagonista, de certa forma, pelas
conquistas materiais necessárias ao sustento dos membros, levando-o a uma série de
frustrações quando do não alcance da proeza.
Percebe-se, no entanto, uma enorme tensão vivenciada pelos adolescentes neste
momento, que traz em seu bojo mudanças nas esferas familiar e social provenientes da
inserção do adolescente no mercado de trabalho. O fato é que, abreviando-se o processo de
adolescer usurpamos do adolescente suas próprias demandas e ideais, obrigando-o as mais
diversas renúncias para que possa assumir as responsabilidades do mundo adulto
(HERMANS, 2001 apud OLIVEIRA, 2006).
Há uma enorme luta psíquica do adolescente para não sucumbir às perdas
conseqüentes das responsabilidades assumidas, que ensejam muitas vezes, na interrupção dos
estudos, no distanciamento dos amigos, no afastamento de casa, na perda da liberdade. O
próprio ser adolescente nessa relação lhe propicia as primeiras limitações de conteúdo
existencial (ASSUMPCAO JR., 2001).
No ínterim das relações os indivíduos significam seu self e a sua ação dependerá das
interações sociais estabelecidas. Ramos (2001, p.14) compreende que:
[...] o processo de adolescer possui componentes genéticos e biológicos,
conhecimentos e valores construídos ao longo das experiências de vida [...].
As marcas sociais desse processo fundam-se na história familiar e de
socialização, nas relações de igualdade/desigualdade vividas em torno das
categorias de gênero, classes sociais e etnia, no partilhamento de preceitos de
moralidade e hierarquizações, entre outros tantos elementos que dão contorno
a subjetividade humana.
A subjetividade que se reorganiza interna e externamente na relação com o outro e
com a cultura é que desencadeia o processo de identificação do adolescente com pessoas,
grupos, na constituição do senso de si e na sua filosofia e ideologia de vida (REY, 2003;
REY, 2004).
Vygotsky (1984) assevera que é na presença do outro, condição de alteridade, que o
homem se constitui, dado a importância dos indivíduos para formação de outros. O
estranhamento é uma condição que possibilita o reconhecimento de si e do outro, pois para
formação do eu, é preciso reconhecer que existe um outro, que ninguém está só, que o mundo
é relacional, e que esta relação somente se concretiza com ambos; portanto, subjetivar
50
inferioridade-submissão em um self na medida em que se relaciona com o outro, aprisiona o
outro ser humano em uma relação conflituosa com seu self.
ROLNIK (1992, p.1) afirma que no “[...] plano das relações, onde se dá o encontro
dos seres no qual cada um afeta e é afetado, o que tem por efeito é uma instabilidade durante
interações sociais, de forma que cada um destes seres, produz transformações em si mesmo e
nos outros e que muitas vezes são irreversíveis”.
No plano das relações sociais, o racismo por conta de sua força ideológica e cultural
incita um duplo processo de exclusão social da população negra, posto que promove um
extermínio identificatório do negro, que não se reconhece como tal e da sociedade que não o
reconhece como sujeito de potencialidades.
Semeado quotidianamente, o racismo, com sua invisibilidade produz muitas
transformações na vida dos indivíduos que são vítimas deste tipo de agressão. Sousa (1983,
p.27) pontua que para viver no mundo dos brancos, o negro precisa estar em constante estado
de alerta, “colocar-se de modo a evitar ser atacado, violentado, discriminado”.
Desta forma, o racismo apreendido nas relações familiares e de socialização, penetra
no corpo e mente dos adolescentes negros, deformando seu self, contrapondo-se a elaboração
mental do seu eu individual e da possibilidade do mim produzido numa relação equânime,
trazendo concomitantemente para seu mundo psíquico e real uma inconcretude do ponto de
vista ontológico.
É nesse sentido que recai o olhar sobre o adolescente negro, que vem construindo sua
existência e self na dependência da cultura e estigmas sociais desfavoráveis.
O adolescente negro tem seu processo de viver desde o nascimento, marcado pelos
atributos de inferioridade herdados intergeracionalmente pela sua família, a citar seu corpo –
lábios grossos, cabelos crespos, pele escura, que nega a si próprio através da não aceitação de
sua feição. Portanto, a identidade do adolescente negro vem sendo construída historicamente
com base na sua “invisibilidade” social, fortalecida pelo preconceito e discriminação,
produzida e reproduzida nos espaços micro e macro-sociais.
O racismo que o negro está exposto representa uma possibilidade de crise existencial
para o adolescente, que vai se afirmando em um contexto de conflitos de identidade/alteridade
tornando o afastamento do outro quase que uma imposição.
Partindo da premissa que os problemas oriundos do racismo encontram-se enraizados
na vida da família de negros, podemos dizer que os pais transmitem aos filhos os
comportamentos sociais que de certa forma fortalecem a ideologia do patriarcado-racismo-
51
capitalismo, apresentada por Safiotti (1987, p.17), como fio condutor de um sistema social
discriminatório, onde poder “define-se como macho, branco e rico”.
O adolescente negro destituído de uma identidade própria vem lutando para integrar
espaços que permita torná-lo visível socialmente, reproduzindo o que aprendeu. Para tanto,
estar entre “iguais” tem uma conotação diferente, a caricatura do branco.
O adolescente negro aprende desde cedo que o status social prima pela “brancura”,
que se inicia pela inserção privilegiada na classificação racial. O branco estaria no patamar
mais alto da hierarquia de classificação e os demais mestiços, a depender dos nuances de cor
iriam ocupando a partir da perspectiva de clareamento os degraus posteriores.
Assim, a negação ao pertencimento étnico/racial do negro parece coincidir com o
movimento por conseguir romper a barreira da cor, a fim de poder desfrutar das vantagens da
“brancura”. O corpo se apresenta ao adolescente negro como um impedimento a ascensão e
reconhecimento social obrigando-o a formular para si um projeto identificatório de
branqueamento, tal qual seja possível o seu direito de existência.
Recorremos novamente ao discurso de Sousa (1983, p.27) sobre o problema do ser
negro como produto do racismo e pontuamos que os modos de ser e estar-no-mundo deste
grupo é caracterizado pelo mito2 negro, compreendido através da análise dos elementos que
corroboram na sua composição; pelo poder de penetração que o mito possui nos espaços
sociais, ocupado e vivido pelo negro enquanto objeto da história e pelo desafio de superar-se
continuamente frente às expectativas e exigências da vida social.
O estudo de Gomes (2002) sobre as representações do negro sobre o próprio corpo,
mostra o quanto o corpo fala a respeito do estar-no-mundo, em suas falas os depoentes
deixaram transparecer a sensação de desencontro, mal-estar e desconforto em relação ao seu
tipo físico, cabelo, pele e cor, vividas na época da adolescência.
Nesta circunstância, o descontentamento com o mundo negro auxilia na tomada de
consciência das dificuldades impostas pelo racismo, reiterando a necessidade de construção
de estratégias de sobrevivência para driblá-lo no quotidiano.
Pensamos que as representações construídas sobre o negro no contexto de uma
sociedade racista influenciam formas sutis e explícitas de reação e resistência da população
negra à violência experienciada. Para nós, a violência perpetrada pelo adolescente negro é
uma reação e ao mesmo tempo uma forma de resistência ao conjunto de dispositivos sociais
impelidos ao seu extermínio.
_____________
2. Mito é uma fala ou discurso – verbal ou visual – uma forma de comunicação sobre qualquer objeto: coisa, comunicação, pessoa que
objetiva escamotear o real, produzir o ilusório (Sousa, 1983).
52
Enfim, o adolescente tão carente de prestígio e dispositivos familiar-comunitários em
que possa se espelhar vê no mundo das drogas, do narcotráfico e na guerrilha a possibilidade
de auto-afirmação, manifesta pelo poder, controle e dominação capazes de lhes dar voz e
representação, preenchendo o vazio de uma crise de identidade pessoal e étnica.
Neste contexto, Maffesoli (1995, p.24) propõe uma atenção redobrada aos sonhos
coletivos que estão calcados no paroxismo ou no furor, pois ao assumir a forma de fanatismo
e de exclusão, adquirem força na dimensão do real “no corporativismo mais rasteiro, na
miséria do quotidiano, na revolta juvenil” que de modo agressivo e inconsciente carregam
pulsões primitivas que aos poucos impregnam o corpo social mantendo-os segregados por
uma “misteriosa” atração social na qual os remete de uma maneira orgânica ao vínculo social,
expresso numa forma violenta de ser e fazer-se reconhecido.
53
Autor do desenho: Anderson Santos Lima
Não há tempo para brincadeira.
Tem que trabalhar e estudar.
“... a vida obriga o adolescente a abdicar da vivência dos prazeres
próprios da adolescência e ingressar no mundo do trabalho...”
54
3 REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO
A perspectiva teórico-metodológica nos remete ao conjunto de conceitos, proposições
e procedimentos a serem adotados para proceder à reflexão, sistematização, interpretação e
análise de dados de uma pesquisa. Ou seja, delineia a trajetória escolhida para a obtenção de
resposta às indagações sobre o objeto investigado.
Como pesquisadores, estamos constantemente nos questionando: Quais as teorias ou
conceitos teóricos que nos aproximarão dos objetivos do estudo? Como nos aproximar e
aprofundar na compreensão do objeto? Quais as limitações dessa nossa perspectiva e
possibilidades de contribuição na interpretação de situações e contextos?
Partindo desses questionamentos, e com a pretensão de compreender o quotidiano de
adolescentes negros que experienciam a violência no âmbito familiar, optamos pela pesquisa
de abordagem quanti-qualitativa para investigação do objeto violência no quotidiano de
adolescentes negros. A abordagem quantitativa da pesquisa possibilita avaliar a
representatividade e abrangência do fenômeno na população estudada e a abordagem
qualitativa objetiva sua compreensão, portanto, os dados quantitativos e qualitativos da
pesquisa se complementam.
Utilizamos para parte quantitativa um desenho de estudo de natureza exploratória,
onde os dados servirão ao propósito de caracterizar a violência sofrida e praticada pela
população negra, com recorte específico para adolescentes negros.
A abordagem qualitativa de cunho compreensivista está sustentada pelos pressupostos
do Interacionismo Simbólico e conceitos mais significativos da Microssociologia do
quotidiano.
A Sociologia Compreensiva descreve o “vivido” na dimensão tanto real, como
imaginária, estando à segunda na complementaridade da primeira. Os fatos reais da vida
quotidiana não seguem, todavia, um itinerário linear e absoluto, apóia-se na topografia da
incerteza, imprevisibilidade, desordem, irracionalidade e efervescência. Paradoxalmente, o
saber e fazer quotidiano sustenta-se na investigação da aparente normalidade, na repetição, da
necessidade humana de seguimento de rotinas, da possibilidade de compreender o invisível
através do obscuro e subterrâneo, do subliminar existente nos prazeres e representações
constitutivas da vida quotidiana (MAFFESOLI, 1988).
Dessa forma, a Sociologia Compreensiva é utilizada como referência teórica para
pesquisas de abordagem qualitativa que pretendem desbravar a riqueza e a complexidade do
55
quotidiano para compreender as interações humanas, segundo Maffesoli (2005) a mesma tem
buscado compreender tudo aquilo que foi separado na Modernidade, época em que prevaleceu
a idéia de que era preciso “separar” para explicar o mundo; justamente à palavra
“compreender” no latim vem de compreendere que significa “pegar tudo junto” sem
fragmentações, princípio indispensável para compreensão das coisas, das situações, do vivido,
já que em pleno século XXI vive-se na tentativa de resgatar valores ditos perdidos e ao
mesmo tempo prevenir a destruição de outros que ainda encontra-se de algum modo em
suspensão.
Nessa perspectiva, o pesquisador pode captar e interpretar as relações interpessoais e
sociais aproximando-se do quotidiano dos indivíduos. Portanto, a quotidianidade
aparentemente inerte, apresenta o indivíduo, sua essência, valores e contradições, como lida
com as questões do quotidiano, o que na vida quotidiana realmente atribuem significado,
como significam suas experiências, atitudes e relações sociais a partir do mundo social e
imaginal.
Para compreender o mundo visível onde se constrói as relações sociais torna-se
fundamental voltar-se para o interior dos indivíduos, reconhecendo no invisível a
possibilidade de obter respostas para motivações e maneiras de ser que nem sempre são
racionais e sensíveis (MAFFESOLI, 1988).
Neste modelo de pesquisa os pressupostos de Maffesoli serão utilizados para nortear
as discussões e análise dos dados, contemplando os objetivos propostos do estudo através da
resposta à questão norteadora: como os adolescentes negros experienciam a violência no
quotidiano familiar?. Tendo em vista a compreensão do mundo visível da violência no
quotidiano do adolescente negro, buscaremos nos bastidores da vida social do adolescente que
formas sociais afloram durante sua vida que o motiva a situação de violência.
Passamos então, aos pressupostos de Michael Maffesoli apresentados na sua obra O
Conhecimento Comum (1988), escrito em 1985, e publicado no Brasil três anos depois, em
que consta “a crítica ao dualismo esquemático”, “a busca pela forma”, a “sensibilidade
relativista”, a “pesquisa estilística” e o “pensamento libertário”.
Quando o autor critica o dualismo esquemático refere-se às teorias positivistas ou às
pesquisas que buscam e dão de certo modo um fim ao problema de investigação, quando do
término da pesquisa. Nesse sentido, a investigação coloca ao dispor da comunidade científica
sua verdade absoluta, contestando qualquer forma de conhecimento científico que não seja
este, objetivo e explicativo, onde a equação matemática mostra um único produto final.
56
Com a formulação de outro pressuposto que seria a forma, sua conceituação, natureza
e inserção no mundo social, o autor mostra que a forma é algo estruturante, que atua no
processo de formação dos indivíduos, no qual se agregam eventos, situações, personalidades,
maneiras de pensar, ensinamentos familiares, de grupo, comunidade e outros espaços de
convivência cotidiana, de modo formante e não-formal. Na medida em que se forma o
humano, evidencia-se conflito, ordem, desordem, equilíbrio e desequilíbrio (MAFFESOLI,
1988; ARARUNA, 2007).
No entanto, mesmo aparentemente contrários, os elementos são indissociáveis e
importantes para dinâmica regular e estável constitutiva da organicidade humana. A forma
reserva, a cada elemento, sua própria autonomia e permite apreensão da imagem e sua
pregnância no corpo social (ARARUNA, 2007).
Assim, no estudo do quotidiano, compreender a forma permite aproximação com o
particular dos indivíduos sem negligenciar a dinamicidade presente no contexto de
sociabilidade; principalmente porque a vida está cada vez mais estruturada pela imagem.
A Sociologia Compreensiva aposta na sensibilidade relativista do pesquisador, ou seja,
na sua capacidade em utilizar o racional e o imaginário na pesquisa, cumprindo seu papel de
dar as tantas possibilidades de conhecimento científico a despeito do que é pesquisado, não no
sentido de esgotar ou tornar acabado o tema, mas reivindicando a complementaridade entre a
abstração e a empatia na pesquisa, pois essa forma parece definir bem o sentido da
compreensão explorada no quotidiano, quando emprega a intuição com elemento importante
na pesquisa, admitindo que existe “subjetividade” em toda interpretação humana e que esta se
faz necessária para das respostas também aos problemas científicos, sem, no entanto encerrálos; é prudente enxergar que os problemas de pesquisa estarão sempre inacabados, em aberto,
incitando novos olhares, questionamentos e discussões sobre os mesmos.
Maffesoli (1985, p. 37) pressupõe a necessidade de a pesquisa ser estilística quando se
trata do estudo do quotidiano, pois esclarece que “há um estilo cotidiano, feito de gestos, de
palavras, de teatralidade, de obras em caracteres maiúsculos e minúsculos, do qual é preciso
que se dê conta”, assim propõe desvelar as analogias e metáforas que constituem a trama
social quotidiana e que encontra de algum modo expressa nos discursos, cabendo ao
pesquisador decodificar o que tem por trás de um simples discurso.
Já o pensamento libertário consiste na clareza e originalidade do que está sendo dito, o
pesquisador deverá se contentar em dizer o que é e nada mais do que foi dito, “a compreensão
envolve a generosidade de espírito, a proximidade, a correspondência”, ou seja, a
cumplicidade com o objeto de investigação e os sujeitos de pesquisa faz com que sejamos
57
elemento desta realidade, que não haja distanciamento entre pesquisador e objeto de
investigação como ocorre na pesquisa quantitativa. Percebe-se que a nossa presença, o estarjunto serve de reforço ao propósito da pesquisa, pois “há convivência; às vezes, cumplicidade;
diríamos mesmo que se trata de empatia” reafirmando a importância de qualificarmos a nossa
capacidade de abstração, intuição e interpretação dos dados, através do saber fazer e saber
dizer para que se consiga a compreensão desejada. Enfatiza o modo como vamos dizer as
coisas, integrando e promovendo o equilíbrio entre o lógico e o não lógico, de modo a utilizar
categorias irreais para mostrar o real presente nos discursos (MAFFESOLI 1988, p.29 e p.43).
Maffesoli (1998) observa que os modos de sociabilidade e construção da trama social
se organizam pelos recursos da comunicação, da imagem e do estilo que são elementos
marcantes de uma nova cultura que está brotando na pós-modernidade, cultura essa, que está
revolucionando o estar-junto, deixando de constituir uma solidariedade orgânica3para
privilegiar uma solidariedade mecânica4.
De acordo com Maffesoli (2005) a violência está intimamente ligada aos modos de
sociabilidade, a forma e o modo com esta se apresenta, assim propõe que as relações sociais
sejam entendidas à luz das categorias em destaque: poder, potência, teatralidade e a
duplicidade.
Utilizamos um dos pressupostos de Maffesoli para dar sustentação à tese que ora
apresentamos de que o racismo influencia o processo de construção da violência nas famílias
de adolescentes negros, partindo da assertiva de que o estilo estético imposto socialmente é o
que caracteriza o indivíduo branco.
Maffesoli (2001) trata a violência do ponto de vista do seu dinamismo interno, como
algo nato a toda e qualquer civilização, estruturando constantemente a vida em sociedade,
enquanto força e potência, motor principal de uma engrenagem que nos remete ao confronto e
ao conflito. De maneira que a luta permeia as relações sociais e se manifestam tanto por
aspectos negativos, como positivos, a citar: a instabilidade, a espontaneidade, a
multiplicidade, os desacordos, as recusas.
É nessa hesitação que se inscreve a dialética do poder e da força, pois para o autor a
violência social é como se fosse simbolização da força, vivida coletivamente e ritualmente, já
a sanguinária surge quando não há possibilidade de simbolização e significa o retorno do
reprimido, quando o poder consegue enfraquecer a força coletiva (MAFFESOLI, 2001).
___________
3.Solidariedade orgânica- capacidade dos indivíduos se protegerem, se solidarizarem, viverem de forma afetuosa e integrada.
4.Solidariedade mecânica- estar-junto pela necessidade de cumprir determinados papéis e responsabilidades sociais, ou mesmo lutar pela
sobrevivência de um grupo, a citar o familiar.
58
Maffesoli (2001) une o poder à potência, por acreditar que desse confronto nasce a
socialidade. O autor designa a violência social como potência, ou seja, afirma que a potência é
um conjunto de elementos (força, coletivo, diferença) que funcionam bem sincronicamente,
nunca de forma desatrelada. Refere-se ao poder como algo que bloqueia o jogo da
ambivalência social, enquanto a potência refere-se ao pluralismo, à diversidade.
As questões relacionadas com a violência “sanguinária”, como o medo das guerrilhas,
de gangues, a insegurança em andar nas ruas, as organizações do narcotráfico, entre outras,
tem se tornado essencial para entender o nível de violência que vem transpondo os muros da
vida quotidiana, adentrando o interior das instituições familiares, comunitária, da educação e
da saúde e a total falta de controle para freá-la.
Esse imaginário de medo provocado pelo excessivo individualismo é próprio do
liberalismo moderno, onde a sociedade ou instituição cria a imagem do outro, um outro, cujas
conseqüências concretas são a marginalização e a exclusão, por ser alguém que é diferente
(TEIXEIRA e PORTO, 1998).
Nesse sentido, todos os que não se enquadram nos padrões sociais ideais não são
aceitos; em decorrência, sofrem as conseqüências do estigma e da exclusão. De modo que
medidas empregadas para tolher, mascarar ou domesticar a violência, não resolvem o
problema, pelo contrário, fazem mais que alimentar o imaginário do medo e incentivá-la.
Assim, o imaginário exerce um papel de aproximar ou distanciar os indivíduos a
depender do proposto nas sociedades, em se tratando do racismo, podemos dizer que o
imaginário coletivo de que o negro é inferior transfigura-se numa imagem muitas vezes
inapropriada, que o desqualifica enquanto indivíduo e cidadão e na qual se estabelecem
relações de desigualdade e exploração.
Ser e estar-no-mundo de modo ao exercício do poder e a potência de ser alguém estão
relacionados à questão da branquitude, da imagem do branco. No teatro da vida jogar o jogo
de ser branco e aceitar a vida como é e ao mesmo tempo estar-junto e resistir; talvez seja o
trágico do quotidiano que conduz o indivíduo negro, que se encontra em oposição ao estilo
estético preconizado, a experimentação do constrangimento, humilhação, restrições e
limitações, de modo que utiliza como instrumento de resistência a violência.
É por isso que para entender a motivação de comportamentos violentos torna-se
necessário o estudo das interações sociais, pensamos então, na interjeição de duas teorias que
se complementam a Microssociologia do quotidiano e o Interacionismo simbólico.
O Interacionismo Simbólico refere-se a uma perspectiva da psicologia social nascida
entre os anos de 1893 e 1931, com o professor George Herbert Mead, um professor de
59
filosofia da Universidade de Chicago que perseverava nos estudos de congruência entre
indivíduo e sociedade. Diante do arcabouço teórico construído por Mead, seguidores e
discípulos do sociólogo, a citar Blumer e Kuhn, pensavam a sociedade reportando-se aos seus
pressupostos, fortalecendo-o e dando contribuições significativas para o entendimento deste
referencial.
Desse modo, a perspectiva teórica tem inspirado estudos do comportamento humano,
principalmente os que apresentam objetos sociológicos de investigação, a exemplo da
violência, empregando categorias estruturais como cultura, normas, valores, estratificação
social e níveis de status para analisar e apreender as significações quotidianas que engendram
“ação social” (PAIS, 2003).
Segundo Mead (1977) a convergência entre o indivíduo e a sociedade está
fundamentada na comunicação simbólica; comunicação que retrata a relação do ser humano
com o mundo. Assim, enquanto teoria interpretativa da comunicação simbólica, o
Interacionismo possibilita perceber a dinâmica dos processos interativos presentes nas
relações entre o indivíduo e sua rede social.
Em concordância, Blumer (1980) assevera que as investigações que buscam a
compreensão do comportamento humano devem dissociar-se de esquemas rigorosos
explicativos. De forma particularizada, deve se remeter à natureza empírica das interações e
ações humanas decorrentes de três premissas: a primeira premissa estabelece que a ação
humana encontra-se atrelada ao significado atribuído ao objeto, dito significante; podendo
modificar-se na relação com o mesmo, dependendo da significação propriamente dita; a
segunda premissa situa que a nascente dos significados é a interação social, ou seja, o sentido
da ação provém de um processo interativo entre sujeito-objeto e a terceira premissa diz que a
significação advém de um processo de interpretação que cada indivíduo dispõe e ao mesmo
tempo habilita ao deparar-se com coisas e situações que encontra.
Além da compreensão destas premissas, outros conceitos são imprescindíveis para o
entendimento da teoria, os quais se apresentam: o símbolo, o self, a mente, assumir o papel do
outro, a ação humana e a interação.
Dentre os conceitos do Interacionismo Simbólico, o símbolo é o que regulariza a
interação entre os seres humanos, na sua ausência a comunicação simbólica fica prejudicada.
Elemento de referência, o símbolo integra o homem a sociedade, lhe permitindo pensar,
comunicar-se e representar, pois é um objeto social usado como base do processo interativo.
Entende-se por objeto as idéias, perspectivas, vivências passadas e futuras dos
indivíduos, como também seu self, mente e símbolo. Portanto, o significado do objeto não se
60
esgota internamente no indivíduo, mas, acrescenta-se ao aprendizado social, onde um mesmo
objeto pode ser significado diferentemente pelos indivíduos.
Os símbolos, entretanto, podem ser objetos físicos, pessoas, gestos, comportamentos
ações humanas ou palavras, tudo que possa ser capturado no agir uns com os outros,
adquirindo sentido para quem os utiliza.
Ressalta-se que os símbolos são desenvolvidos culturalmente e socialmente através da
interação, porém não são frutos exclusivos de acordos universais entre seres humanos, muitas
vezes podem ser arbitrariamente estabelecidos perante a criação ou manipulação dos mesmos
pelos indivíduos que os concebem e deles se utilizam. Assim, os símbolos têm significados
sociais e são manifestos para fazer referência ou apresentar a realidade.
Já o self, é um objeto social que surge na infância, através da interação das crianças
inicialmente com os pais e posteriormente com outras pessoas. Ao longo do processo de
crescimento e desenvolvimento, os indivíduos estão experimentando o novo, desfrutando de
experiências e se descobrindo, o que faz com que o self seja elaborado e modificado
constantemente sob influência do processo interativo.
O self é organizado em função da interação social, sendo a sociedade o contexto
dentro do qual surge e se desenvolve, definindo a ação humana. Começa por um processo de
auto-interação, indicação para si mesmo até uma transformação gradativa que se exterioriza
no plano das relações.
Mead (1977) apresenta o self em duas fases analíticas evolutivas do interior do
indivíduo: O Eu e o Mim. Na primeira fase evidencia que ainda não socializado, o indivíduo
conserva suas características naturais e tendências mais espontâneas. Na segunda, reconhece
que à luz da interação, o indivíduo torna-se objeto social e, já socializado, comunica–se,
dirige, julga, identifica, participa e avalia situações vividas.
A mente é a acepção de comunicação do indivíduo consigo mesmo por intermédio da
utilização de símbolos, pode ser considerada como uma interação simbólica com o self. O
indivíduo pela mente é capaz de definir as coisas diante de uma situação: identifica, qualifica,
classifica e desenvolve potencial de ação em relação às coisas significadas. Por razão da
atividade mental, a ação é uma resposta, não aos objetos, mas à interpretação desses objetos
pelo indivíduo.
Charon (1989) ao estudar o que motiva a ação humana, utiliza o princípio da
alteridade para referir-se ao simbólico de assumir o papel do outro na perspectiva
interacionista como um signo precursor da ação, quando diz que somente o encontro com o
outro na alteridade permite a construção identitária e desenvolvimento do self.
61
A ação humana é o resultado de um processo constante e ativo de interpelação às
situações vivenciadas, diante da interação do indivíduo com o seu self e com outros
indivíduos. O indivíduo (re) age em resposta à intenção do outro com quem interage, intenção
definida por meio de palavras, gestos, sentimentos que se tornam simbólicos e capazes de
serem interpretados no intercurso da ação.
A interação é o contexto que abriga todos os conceitos traçados para o entendimento
da perspectiva do Interacionismo Simbólico. Os indivíduos em interação assumem papéis,
interpretam, ajustam sua ação em detrimento dos outros, direcionando e controlando seu self,
partilhando perspectivas e comunicando seus símbolos (DUPAS, OLIVEIRA e COSTA,
1997).
No entanto, a interação não é somente o que está acontecendo externamente ao
indivíduo, mas o que se processa no seu interior. O conteúdo interno dos indivíduos e como
agem no mundo define as situações - realidade definida ativamente pelo indivíduo segundo
interação com self e com o mundo, e o modo como essa interação se dá influenciará sua
definição (CARVALHO, CAMARGO, SILVA e SANTOS, 2007).
Por isso, na interação, as vivências do presente são dotadas de valor e significâncias.
Ao agir no presente, o ser humano tanto é influenciado pelo que aconteceu no seu passado,
pelo resgate de suas lembranças, quanto pelo que está acontecendo no exato momento vivido.
Em cada situação de interação, o sujeito está em um momento de sua trajetória de
crescimento e desenvolvimento, trazendo consigo inúmeras possibilidades de interpretação do
material que obtém do mundo externo. O indivíduo é imprevisível e ativo, o que implica dizer
que está agindo constantemente em relação às pessoas, situações e instituições sociais,
percebendo, interpretando e reagindo (CARVALHO, CAMARGO, SILVA e SANTOS,
2007).
Se a interação é construída a partir da ação humana em sociedade, ela influencia a
narrativa pessoal e social ao longo dos tempos e a criação de uma cultura e ideologia de vida
que se constitui e se expressa em corporação social. Dupas, Oliveira e Costa (1997, p.4)
reconhecem que “cada sociedade tem uma cultura; ela ajuda a criar continuidade ao longo do
tempo e é tomada pelos atores como guias para a ação”.
A família e a rede social que integra os espaços de vivência e convivência dos
adolescentes negros são enunciativas de uma interação quotidiana conflituosa, culturalmente
desenvolvida e que desperta para adolescência violenta, trazida essencialmente de tempos
históricos, sobretudo, atualizada nas estruturas sociais contemporâneas.
62
Ao reconhecer o racismo como “condição” social capaz de promover a elaboração
psíquica que motiva comportamentos violentos em adolescentes, interessa-nos não somente o
presente, mas as interações passadas que refletem hoje, o dia a dia do negro.
O racismo e a violência advinda da época da escravatura se estruturou na sociedade
moderna, proporcionando um imaginário social de desvalorização do negro, aliando a sua
imagem com fatos e práticas criminais e delinqüências. O fato pode contribuir para o aumento
da violência na população negra, ou, mesmo, estabelecer condições que colaboram para
formação de um imaginário de medo em torno desses indivíduos e um afastamento social.
O referencial do quotidiano em seus conceitos possibilitará a argumentação teórica
necessária a uma compreensão do significado da interação do adolescente com os elementos
envolvidos no seu dia a dia, interrogando-se sobre a violência/racismo que corriqueiramente
passa despercebida, obscurecida.
A noção do quotidiano na sociologia compreensiva objetiva, compreender o
imprevisível, valorar a casualidade, as banalidades, as inconcretudes, as apresentações
incompletas da vida, as subjetividades, o que aparentemente não tem sentido, significado, que
não podem ser mensuradas pelos métodos científicos tradicionais, nem apreendidas pela
repetição, saturação simples das expressões ou eventos de uma formação discursiva
(PEREIRA, 2005)
Neste sentido, o quotidiano é o curso da vida, que segue uma rotina e certa
regularidade. No entanto, da monotonia subitamente pode revelar-se à efervescência, aliás, na
normatividade e repetitividade quotidianas, “no nada de novo” está disseminada a pluralidade
do vivido e da vivência; “[...] a vida quotidiana é também o espaço do ingovernável - donde
pode surgir o imprevisível, o aleatório, o imprevisto”, zonas dialéticas ritmam a tenacidade,
mutabilidade e as circunstâncias da vida social (PAIS, 2003, p.81).
A vida quotidiana se regula pelo que passa verdadeiramente com o indivíduo à
vigência daquilo que o rege, como normas, crenças, valores, como também do que faz para
fugir da rotina, contestar o holocausto; criar espaços, aberturas, frestas, provocar rupturas e
romper as barreiras do insólito quotidiano.
Procuramos saber se esses elementos são significativos na vida do adolescente,
quando/ou na interação com sua família, amigos e sociedade, e se utiliza ou como utiliza seus
mecanismos de defesa e enfrentamento ao agir mutuamente com os objetos mais
significativos na sua vida.
A Microssociologia do quotidiano ao explorar o marco espaço-temporalidade mostra
que os contextos do vivido e da vivência regulam os distintos campos de ação humana, onde
63
“as condutas são os textos a que se reportam os contextos, a sua textura, a sua substância feita
de inscrições e traços” (PAIS, 2003, p.123).
Os textos são as maneiras de viver o presente no agir quotidiano do ‘aqui e agora’, que
focaliza a experiência no tempo e no espaço concreto e abstrato, da objetividade, da
subjetividade e do histórico. Dito isto, a textura, é a própria essência humana, a conjunção do
mundo interior dos indivíduos ao seu exterior, de onde se inscrevem traços que irão
conformá-los.
Estratégia de coleta de dados
O estudo contempla e integra dois procedimentos metodológicos, a metodologia
quantitativa com o objetivo de caracterizar a violência sofrida e praticada por adolescentes
negros e seus familiares, e um levantamento qualitativo que se propõe analisar o quotidiano
de vida de famílias para compreender suas concepções de violência, interações familiares e
sociais e quais estratégias de enfrentamento utilizam diante da situação de violência
experienciada.
Período de coleta de dados
Os dados quantitativos para realização do estudo foram coletados no período de
setembro de 2007 até setembro de 2008, retrospectivo a março de 2006 a março de 2007, de
onde se identificaram um total de 1178casos de denúncia de violência, dos quais apenas 121
envolviam diretamente adolescentes. Desse quantitativo, foram selecionados 05 casos, porém
somente 02 casos foram investigados de modo aprofundado.
64
Local de coleta de dados
O lócus da pesquisa foram as Delegacias da Liberdade, Delegacia Especial de
Atendimento à Mulher (DEAM) e na Delegacia de Referência no Atendimento à Criança e ao
Adolescente (DERCA) em Salvador-Bahia.
As Delegacias foram escolhidas mediante a utilização de dois critérios, serem
consideradas como referências no atendimento de pessoas vítimas de violência e/ou estarem
situadas em bairros periféricos de Salvador, que abarcasse um grande contingente
populacional negro.
Cenário do estudo
Salvador, considerada a cidade Patrimônio Cultural da Humanidade, agrega amplo
legado cultural de origem portuguesa, indígena e principalmente africana, tornando-se grande
atrativo para turistas, em virtude da musicalidade, culinária e de religiosidade, certamente seu
patrimônio histórico-cultural e as suas articulações regionais, tornam-se requisitos
fundamentais para se compreender a dinâmica da violência na vida do adolescente negro e sua
família.
De acordo com Soares (2007, p 10), os habitantes da cidade que são considerados mais
pobres não possuem rendimentos ou tem renda inferior a dois salários mínimos.
Aproximadamente 70,6% a 82,0% dessas pessoas moram nos bairros de Mussurunga I, II e III,
Parque São Cristóvão, Alto do Girassol, Raposo, Carobeira, Cassange, Nova Brasília de
Itapuã e entorno; Ilha de Maré; Valéria, ainda em Valéria, Nova Brasília de Valéria, Valéria e
proximidades; Subúrbio Ferroviário, Baixa de Coutos, Periperi e entorno, Pau da Lima,
Invasão Brasilgás, Beco do Bozó, São Caetano, Alagados, Lobato, Alto do Cabrito e
adjacências, Tancredo Neves, Cabula VI, Beiru e entre as áreas da Liberdade e Cabula.
Apesar de Salvador ser considerada a principal metrópole da Região Nordeste do
Brasil e apresentar área de 325 km2, a mesma possui 184 favelas onde residem mais de 30%
da sua população, das quais, 77 são loteamentos clandestinos e 170 loteamentos irregulares
que servem de abrigo a 100 mil analfabetos absolutos e 300 mil analfabetos funcionais. Se
levarmos em conta principalmente o elevado índice de 21,4% referente à evasão escolar no
65
ensino fundamental (primeira à oitava série), apesar do recém instaurado Pro - Jovem, que
tenta resgatar o adolescente para conclusão desta etapa escolar, muitos dos jovens não
conseguem completar o quarto ano do ensino básico, contribuindo para a elevação destes
índices de analfabetismo (SOARES, 2007).
Concordamos com Maffesoli (1988) sobre a importância do estudo do quotidiano para
entender a dinâmica de construção social, particularmente quando diz que nos lugares mais
humildes, nas situações mais banais podemos buscar a compreensão de situações
consideradas destoantes e que parecem de alguma forma estar ordenada, porém são
inteligíveis, incompreensíveis se não forem minuciosamente examinadas.
A referência do domicílio para nós foi extremamente importante porque pudemos
estar - junto com os sujeitos de pesquisa no “seu lugar”, que remete a questão da tribo, sua
origem e inserção e seu território, que segundo Maffesoli (2004) produz vínculo, pois
justamente o espaço, o território, o local escolhido passa a contribuir para encontros
afetuosos; proximidade e troca de experiências, que não se faz se não por um sentimento de
compartilhamento emocional e de cumplicidade.
Sujeitos da pesquisa
O primeiro contato com as famílias foi bastante difícil. No primeiro momento, as ruas
estreitas, os becos e as pessoas nos pareciam muito diferentes, e certamente o estranhamento
nos causava medo, pensávamos como seria a família que iríamos entrevistar, se elas iam
aceitar participar da pesquisa e os preconceitos começam a nos acompanhar nesta nossa
caminhada até o domicílio, principalmente por se tratar de uma área de risco, andávamos o
tempo todo olhando ao nosso redor.
Entretanto, para nossa surpresa desde o primeiro momento em que estivemos nos
bairros sempre obtivemos ajuda dos moradores para localizar o domicílio procurado e eles só
nos deixavam depois de cumprida a tarefa da localização, certamente preocupados com o
nosso bem-estar. Já que as famílias entrevistadas moram em bairros de periferia da cidade de
Salvador-Ba, situados em grandes invasões reconhecidas popularmente como “área de risco”
pela iminência do tráfico de drogas. Portanto, a coleta de dados foi realizada pela
pesquisadora na companhia de voluntárias e bolsistas do GRUPO CRESCER.
66
Os sujeitos que fariam parte da pesquisa qualitativa eram selecionados pelos boletins
de ocorrências (BO), mediante dois critérios: o primeiro seria constar no BO que se tratava de
adolescentes negros (pretos e pardos) e o segundo critério que fosse um caso de violência
familiar.
Assim, foram sujeitos da pesquisa adolescentes negros e seus familiares que
concordaram em participar e contribuir com o estudo, que já tivessem praticado ou sido
vítima de violência no âmbito familiar e tal registro estivesse formalmente sido notificado nas
delegacias de polícia selecionadas para o estudo.
Então, com base nesses critérios estabelecidos fomos lendo os BO focando nas seções
dos itens cor, idade e também na seção que descrevia o fato da violência, buscando examinar
minuciosamente a história da agressão para certificar-se de que era um caso de violência
familiar.
Terminada essa etapa inicial de identificação dos casos procedemos contato com os
adolescentes no domicílio. No entanto, no decorrer desse processo, ainda tínhamos muitas
dúvidas de como abordar a família, o adolescente, pois de algum modo ia invadir o território
do outro, a sua vida, e ao mesmo tempo temíamos como poderiam reagir quando lhes
apresentasse a proposta de trabalho
As primeiras três visitas domiciliares que realizamos ocorreram na primeira semana do
mês de junho e não obtivemos sucesso. No primeiro encontro, assim como nos demais que se
seguiram imediatamente, não conseguimos localizar os casos do estudo. Nesse primeiro
encontro achamos o endereço, nos apresentamos, mas ao que tudo consta parece ter havido
mudança da vítima e sua família para um novo endereço, porém não houvera tempo para novo
registro ou atualização de endereço na Delegacia. Nos dois encontros seguintes abordamos
sobre o trabalho que pretendíamos desenvolver, entretanto, percebemos certa apreensão da
família ao nos receber e posteriormente afirmaram que já não tinham contato com a pessoa
procurada, pois havia se mudado; enfim despistando muito carinhosamente, mas mostrando o
desinteresse pela proposta de participação na pesquisa.
Retornamos às delegacias e escolhemos outros dois casos de violência familiar para o
desenvolvimento do estudo. O primeiro caso identificado foi o de lesão corporal provocada
pelo ex-marido e o segundo foi de estupro ocasionado por tio, ambos envolvendo mulheres
adolescentes como vítimas.
Diante do já vivido e da dificuldade enfrentada buscamos outra estratégia para
abordagem da família. Primeiramente, ao chegarmos ao local de pesquisa (domicílio) nos
apresentávamos, mantínhamos alguns diálogos a respeito de como chegamos ao endereço da
67
vítima na rede e perguntávamos como estava o andamento do caso. Mesmo assim, ainda que
mais receptivos, pareciam aflitos em ter que nos receber. Entretanto, logo que esclarecíamos
que não se tratava de polícia ou qualquer outra investigação, mas da possibilidade de realizar
uma pesquisa percebemos alguns suspiros e enfim uma pergunta: Isso paga? Rimos muito
juntos, e nessas entrelinhas conseguimos conversar, falar da profissão, do que é pesquisar, a
que se destina a pesquisa e, posteriormente, falávamos da proposta de estudo e possibilidade
de participação na pesquisa.
A partir da segunda entrevista percebíamos que o grau de intimidade com as famílias
aumentava, entrávamos, saíamos, o café posto à mesa estava servido, o convite para as
refeições era constante e nas outras entrevistas já havia bem mais correspondência. Logo,
estávamos participando entusiasmadas e mergulhando no mundo dessas famílias através das
conversas informais e das entrevistas.
De certo modo, nas visitas que sucederam estávamos mais tranqüilas, as pessoas
(vizinhança) nos reconheciam, acenavam em sinal de confiança e amizade, com isso o lugar
tornou-se comum e porque não dizer até agradável.
A caminhada até o domicílio já fazia parte de um ritual que se cumpria para realizar as
entrevistas e de algum modo era como uma ponte que precisávamos atravessar para chegar às
famílias que compuseram o corpus da pesquisa.
Mapeamento das famílias
Estudamos então, duas famílias de adolescentes de cor parda, a primeira adolescente
vítima de violência física e a segunda vítima de violência sexual. Entrevistamos um total de
oito sujeitos, sendo cinco adolescentes e três adultos, não conseguimos fazer contato com o
pai da vítima de violência sexual em nenhuma das três vezes em que estivemos em seu
domicílio.
As famílias do estudo estão caracterizadas por codinomes que mostram a força
histórica das raízes da população afrodescendente, elegemos Ogum e Oxossi.
A composição familiar segue como uma apresentação descritiva e Genograma
utilizado como recurso para mostrar o arranjo da família dos indivíduos negros e seu modo de
vivência e convivência familiar.
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A Família Ogum é composta pelo pai, pela mãe, sua duas filhas e dois netos. Eles
moram em casa de invasão de bairro de periferia, a casa apresenta sala, cozinha, um quarto e
quintal. O pai tem cinqüenta e três anos, estudou até a quinta série do ensino fundamental, já
trabalhou em gráfica e hoje é ajudante de pedreiro, sem renda fixa. A mãe tem quarenta anos,
estudou séries iniciais até alfabetização, já trabalhou de doméstica. A filha de dezesseis anos
estuda, cursa a oitava série e trabalha de doméstica. A filha de dezessete anos, não está
estudando no momento, tem dois filhos, foi vítima de violência do ex-marido que tem vinte e
quatro
não estuda
e está desempregado.
Figuraanos,
1- Genograma
interacional
da família Ogum Participaram da pesquisa: pai, mãe e filhas.
Figura 1 - Família Ogum
Pai
Mãe
Ex -marido
Legenda
Filha adolescente
Filha adolescente
Alcoolismo
Desemprego
Sofre Violência física
Agressores
Conflito
Vítima de agressão do ex- marido
N
N
Neto
Neta
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A Família Oxossi é formada por quatro pessoas: pai, mãe (falecida), duas filhas e um
filho. Porém, por morar na mesma vizinhança, convive grande parte do tempo com tia e avós.
A família mora em casa própria de invasão de bairro de periferia, a casa apresenta três
cômodos (sala, cozinha e um quarto), tem energia elétrica e água encanada. O pai tem
quarenta e dois anos, estudou até a sexta série ginasial, trabalha de vigilante e tem três filhos e
sua esposa morreu há quatro anos. A filha do casal de quatorze anos estuda, cursa a quarta
série primária e não trabalha, foi a vítima de violência do tio. A filha de doze anos está na
segunda série primária. O filho de seis anos fica na creche pela manhã e vai para escola de
tarde. A tia mais próxima à vítima mora na casa de sua avó com seu atual companheiro, pois é
viúva de seu primeiro marido, tem um filho com onze anos e outra de seis anos. O seu filho
de onze anos já tentou suicídio, sua grande preocupação. Participam da pesquisa: a vítima de
violência, irmã, sua tia e seu primo, o pai esteve ausente em todas as visitas ao domicílio e
segundo a família o tio abusador encontrava-se no interior do estado da Bahia.
Figura 2- Genograma interacional da família Oxossi
Figura 2 - Família Oxossi
Mãe
Falecida
Pai
Tia
Tio
Filha adolescente
Filha adolescente
Filho criança
Legenda
Filho adolescente
F
Filho
Criança
Sofre violência
Vítima de discriminação racial
Agressor /Violência física
Vítima de violência sexual
Agressor /Violência sexual
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Instrumento de coleta de dados
Para coleta de dados quantitativos, utilizamos um formulário, que foi elaborado a
partir dos boletins de ocorrência das Delegacias supracitadas e que foram visitadas
previamente à etapa de coleta.
O formulário (APÊNDICE C) intitulado Violência sofrida e praticada por adolescentes
negros e seus familiares consta de dados de identificação de ocorrência de violência por
natureza, local e data de denúncia, dias da semana, como também campos para preenchimento
de data e local de coleta de dados, outros campos fechados para marcação de apenas um item
sobre características sócio-demográficas da vítima e do agressor e espaço reservado para
descrição do histórico do fato.
Antes da coleta de dados foi realizado um treinamento com um grupo de 10 alunos
voluntários e bolsistas de iniciação científica do grupo de pesquisa GRUPO CRESCER,
objetivando capacitá-los para o preenchimento correto do instrumento de pesquisa. E assim
que obtivemos um quantitativo significativo de formulários preenchidos, iniciamos a
digitação no banco de dados formatado no EPIInfo.
Para realizar a pré-análise de dados quantitativos, efetuamos a conferência do
conteúdo presente no banco de dados do EPIInfo e o resultado final do material digitado.
Por se tratar de estudo retrospectivo transversal apenas de natureza descritiva
exploratória, não estabelecemos uma amostragem, examinamos os BO destas delegacias, e a
partir dos dados encontrados nos BO seguimos a caracterização da violência contra
adolescentes negros. Consideramos adolescentes, os indivíduos na faixa etária de 10-19 anos,
conforme preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e, negro, todo indivíduo
preto ou pardo constantes nos registros dos BO, já que Segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatísticas (IBGE) o termo “população negra” refere-se às populações preta e
parda em seu conjunto.
Os dados coletados foram organizados e tratados através do programa STATA 8.0 que
gerou tabelas primárias pelo programa Harvard Graphics, e a partir destas procedemos à
tabulação final.
Desse universo de 121 adolescentes em situação de violência selecionamos
aleatoriamente cinco casos para a parte qualitativa do estudo. No entanto, pelas dificuldades
de localização dos domicílios e também pela disponibilidade de participar da pesquisa,
71
somente duas famílias foram estudadas nos meses de junho a setembro de 2008, sendo oito
pessoas entrevistadas no total.
Como instrumento de coleta de dados utilizou-se um roteiro de entrevista com
questões abertas. O roteiro para a realização da entrevista (APÊNDICE B) contemplou
aspectos sociais, afetivos e de enfrentamento de situações cotidianas familiares que
determinam à violência, como também, especificidades no que se referem às percepções e
experiências diante do racismo.
O pré-teste do roteiro de entrevista foi realizado internamente como o grupo de
bolsistas de pesquisa e algumas questões realmente necessitaram de ajustes, sendo
reformulado com o auxílio da orientadora e de reuniões no próprio Grupo CRESCER.
Técnica de coleta de dados
O referencial teórico-metodológico da Microssociologia do quotidiano e o
Interacionismo Simbólico permitem o uso de um aparato metodológico amplo e a utilização
de técnicas de coleta como: entrevistas, observação participante, história de vida,
conversações, análise de documentos, cartas, diários, estudos de casos e outras (SANTOS e
NOBREGA, 2004; PAIS, 2003).
Em consonância com os referenciais, escolhemos dentre as técnicas supracitadas, a
entrevista semi-estruturada para coleta de dados qualitativos porque se mostrou mais
apropriada para este estudo, já que este tipo de entrevista parte de questões norteadoras que
interessam à pesquisa, direcionando o pesquisador na compreensão da experiência vivenciada
pelo participante através de uma linguagem discursiva e problematizada.
Trivinos (1992, p.146) mostra que a entrevista semi-estruturada subsidia a pesquisa
compreensiva na medida em que pode dar sustentação aos pressupostos do estudo e
reelaboração de novas teorias a partir do próprio interrogatório. Define a entrevista semiestruturada como aquela que através de “certos questionamentos básicos, apoiados em teorias
e hipóteses que interessam à pesquisa e que em seguida, oferece amplo campo de
interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que recebem as respostas
do informante”.
Ainda em relação à entrevista semi-estruturada autores recomendam que seja realizada
em ambiente doméstico, porque este tipo de entrevista costuma ter maior duração e, portanto,
72
demanda concentração do entrevistado e do entrevistador. Na residência, por conta da
privacidade do ambiente, a experiência pode ser mais exitosa, permitindo ao entrevistado
maior liberdade para expressar suas idéias e ao entrevistador um ambiente de escuta atenciosa
“do que é dito” e reflexão “sobre a forma e conteúdo da fala do entrevistado”(BRANDÃO,
2000, p.8).
Os primeiros contatos com as famílias em seu habitat conferiram ao pesquisador
conhecer alguns aspectos e cenas da vida quotidiana destas famílias. Deparamos-nos com um
novo desafio o de realizar a entrevista garantindo privacidade e respeito ao sujeito a ser
entrevistado, já que preferimos proceder à entrevista com cada um em particular, acreditando
que por ser uma temática repleta de conflitos necessitaria de cumplicidade entre entrevistador
e o sujeito entrevistado. Portanto, foi uma grande preocupação a escolha do local da casa, mas
enfim, utilizamos os quintais, lajes e espaços de hall para nos distanciarmos um pouco do
restante da família, como também pedimos colaboração aos demais familiares no sentido de
permitir uma privacidade ainda maior para conseguirmos realizar a entrevista.
As entrevistas foram iniciadas com questionamentos impessoais para evitar
desconforto do participante em verbalizar sobre um tema que pode evocar sofrimento e
lembranças desagradáveis.
Abordamos o assunto com muita sutileza, de maneira a deixar o entrevistado presente
durante toda a entrevista. A pergunta norteadora da entrevista “Como é o seu dia-a-dia?” nos
trouxe claramente e de modo espontâneo a percepção do sujeito sobre sua vida, seu dia-dia e
perspectivas. Alguns, porém, ainda se mostraram pouco à vontade para falar sobre seu dia-adia, de modo que invertemos a ordem dos questionamentos e optamos por direcionar a
pergunta para um aspecto do quotidiano: “Como é sua relação com seus pais”?. E nas
respostas ao questionamento, surgiam outras temáticas, como a escola e o trabalho. O tema
Escola apareceu nos discursos daqueles que estudavam e o trabalho para os que trabalhavam,
e assim fizemos o interrogatório sobre o quotidiano, até que no transcorrer da entrevista
pudéssemos retornar ao que não fora respondido e insistir nos questionamentos principais “O
que é violência para você, o que acha da violência, o que motiva o comportamento violento,
qual a sua cor, já foi vítima de racismo, em que situação?”, na tentativa de compreender como
a violência se apresenta no quotidiano do adolescente negro.
Nesse sentido, a entrevista teve uma dinâmica exploratória, onde o sujeito foi
entrevistado mais de uma vez, porque na medida em que analisávamos os dados coletados,
surgia a necessidade de acrescentar novos questionamentos que pudessem dar respostas ou
ampliar as possibilidades de discussão sobre o objeto de investigação.
73
Os tempos das entrevistas variaram de vinte até sessenta e quatro minutos, estando as
entrevistas mais duradouras associadas a conversas anteriores descontraídas entre
pesquisadores e entrevistados. Percebemos que os adolescentes, principalmente aqueles que
não estão ligados diretamente aos casos de violência provenientes da denúncia, no caso a de
lesão corporal e de estupro, parecem ter mais facilidade de falar sobre a questão da violência e
do seu envolvimento e de sua família nessa situação.
As entrevistas foram gravadas em MP4, sendo transcritas e validadas durante o
processo de análise dos dados, principalmente nas situações de retorno aos entrevistados para
novos questionamentos ou para dirimir dúvidas sobre o que foi realmente dito pelos sujeitos
de pesquisa.
Embora seja mais indicado realizar a transcrição imediatamente após as entrevistas,
neste estudo, em virtude de num mesmo encontro entrevistarmos dois ou três familiares a
depender da disponibilidade dos mesmos, tornou-se inviável transcrever todas as entrevistas
realizadas em um mesmo dia. Então, a transcrição das entrevistas seguiu a ordem de sua
realização conforme a data da coleta.
O corpus da pesquisa será definido pela saturação teórica dos dados, que implica que
os dados foram coletados até o alcance do objetivo do estudo ou quando nenhum dado
adicional for capaz de acrescentar algo novo e contributivo à análise.
Duarte (2002) afirma que na metodologia de base qualitativa, não importa o
quantitativo de sujeitos que virá totalizar o quadro de entrevistas, a priori, o encerramento da
coleta depende da qualidade das informações obtidas em cada entrevista. O dado é que
recomenda o seguimento ou o cessar das entrevistas, a partir de sua densidade e consistência.
Aspectos éticos da pesquisa
O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa – CEP
(ANEXO), da Maternidade Climério de Oliveira da Universidade Federal da Bahia, seguindo
o preconizado para o desenvolvimento de pesquisa com seres humanos, de acordo com a
Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, protocolado sob o número 14627.10.06, sendo subprojeto de “O cotidiano de violência familiar na população negra: um
estudo dos determinantes sociais”. Logo depois, contatamos os Delegados responsáveis na
74
Delegacia da Liberdade, na DEAM e DERCA e pedimos autorização para coleta de dados,
que foi concedida, de posse das autorizações as pesquisadoras se preocuparam em:
1) A cada entrevista realizada, dar ao participante e/ou responsável o Termo de
consentimento livre e esclarecido (APÊNDICE A) para assinar depois de concedidas as
informações sobre o projeto e sanar possíveis dúvidas;
2) Solicitar autorização dos adolescentes e também de seus pais para que estes
pudessem participar da pesquisa;
3) Requerer antes das entrevistas autorização para gravá-las e durante as entrevistas
respeitar o direito do sujeito de pesquisa de somente falar o que quiser sobre o tema
apresentado;
4) Interromper a entrevista ao perceber qualquer situação de constrangimento ou
sofrimento aparente do sujeito de pesquisa. Perguntávamos sempre ao sujeito se ele queria
falar sobre o assunto ou não, e em caso afirmativo, aguardávamos se recompor
emocionalmente, no caso de não querer falar, apresentávamos imediatamente outro
questionamento como forma de evitar sofrimento desnecessário;
5) Conduzir integralmente as entrevistas, pois, apesar da participação de voluntárias e
bolsistas de iniciação científica do grupo de pesquisa GRUPO CRESCER, da qual a
pesquisadora faz parte, as entrevistas foram realizadas pela pesquisadora, considerando sua
maior experiência para lidar com situações conflitantes que pudessem ocorrer durante o
processo de coleta de dados. As alunas voluntárias e bolsistas de iniciação científica apenas
participavam na escuta dos depoimentos e transcrição dos mesmos, que eram confirmados
novamente pela pesquisadora após receber o arquivo gravado e a transcrição.
6) Utilizar codinomes para identificar cada família e sujeito de pesquisa entrevistado
com o intuito de resguardá-lo de qualquer possibilidade de identificação no material de
entrevista transcrito ou mesmo nas narrativas isoladas, conforme prevê a Resolução para
garantia do anonimato do pesquisado.
7) Foram utilizadas figuras de caráter ilustrativo para identificação de cada capítulo,
sendo de autoria de um profissional de designer que as desenhou e assinou ao final de cada
uma delas, no entanto, para compor a idéia mestra da Tese, foram-lhe repassadas orientações
sobre o que cada desenho deveria representar mostrando através das imagens a força que tem
o discurso e o imaginário no quotidiano dos indivíduos, como também que a imagem expressa
no nosso quotidiano toda carga simbólica que uma situação real trás consigo. Abaixo de cada
ilustração foi colocado texto extraído dos próprios discursos, temas, categorias e
subcategorias da Tese, para dar ênfase a questões consideradas importantes e fundamentais
75
para o entendimento da compreensão do quotidiano de violência experienciado pelos
adolescentes e seus familiares.
Análise dos dados da pesquisa e a construção dos enunciados qualitativos
Compreender e interpretar fenômenos, a partir de significantes e contexto da
experiência humana constitui característica da pesquisa compreensiva de abordagem
qualitativa, cujo desenho de apreensão e representação dos dados é predominantemente
descritivo; os dados são organizados por meio do processo indutivo e a preocupação com o
detalhamento metodológico utilizado para o desenvolvimento da pesquisa encontra-se
presente (DUARTE, 2002).
Nessa pesquisa optamos pelo uso da análise de discurso (AD) para proceder
interpretação e análise do material resultante das entrevistas, por conta da sua
interconectividade entre quem fala, o que se fala e o mundo.
Através da técnica de análise de discurso que segundo Manhães e Moura (2004) é
possível desvendar as facetas da vida quotidiana, as experiências que pertencem à vida diária.
O indivíduo fazendo uso da linguagem expressa continuamente as diversas significações
(subjetivadas e objetivadas) provenientes da interação social, consequentemente a ação
humana e seu sentido podem ser compreendidos pela leitura dos discursos, ou seja, através da
análise da linguagem discursiva.
O discurso não representa o mundo concreto, nem a sua totalidade, mas projetam
possibilidades de assumir diferentes realidades e concepções de mundo, já que qualquer
enunciado discursivo permite uma multiplicidade de sentidos, um sentido que não é traduzido,
mas produzido, que se complementa ou compete entre si, formando um corpus constituído
pela formulação ideológica, histórica e lingüística dos indivíduos. Os sentidos das palavras, as
pressuposições, as metáforas e o estilo inscritos no texto exprimem orientações econômicas,
políticas, ideológicas e culturais dos indivíduos (CAREGNATO e MUTTI, 2006; RESENDE
e RAMALHO 2005).
Segundo Caregnato e Mutti (2006) o sentido é inesgotável, portanto incompleto, não
se expressa pelo texto ou semântica do enunciado, frase ou palavra, é elemento simbólico,
figurativo, por isso pode, ao não ser percebido, escapar da interpretação, pode inclusive, ter
sentido oposto ao que foi dito. O sentido não viceja sem a atividade do intérprete, sem o
76
contínuo trabalho da interpretação do enunciado, a responsabilidade de tornar visível algo que
está encoberto.
De modo que um dos primeiros pontos a se considerar para AD é a construção do
corpus, já que sua delimitação está diretamente ligada à análise, principalmente porque
quando se decide o que vai fazer parte do corpus, justifica-se e se discutem propriedades
discursivas; como também ao se organizar o material, não se pode deixar de levar em
consideração a pergunta da entrevista, os objetivos da pesquisa, o contexto e o ponto de vista
de quem o organiza.
Como o objeto do discurso é empírico, este dado é bruto, necessitando portanto, que o
material seja trabalhado, a fim de converter o corpus bruto, em um discurso concreto, em
objeto lingüisticamente de-superficializado. O que significa dizer retirar do material transcrito
o discurso. A partir de então, já se pode analisar pela discursividade, que se desenvolve por
meio de raciocínio dedutivo.
Segundo Orlandi (2002, p.65) a desuperficialização trata de uma análise lingüística do
material bruto coletado (transcrição da entrevista) para identificar: “quem disse, o quê disse,
como disse, buscando pistas que explicitem como o discurso está contextualizado” e assim,
construir um objeto discursivo, a partir do que é dito nesse discurso, do que é dito em outros,
em diferentes condições, nas mais variadas circunstâncias e na observância das diferentes
memórias discursivas.
Para qualquer prática de AD são indispensáveis três operações: a diferenciação textodiscurso, o fato de ter um sujeito/enunciador e a operacionalização do corpus (INIGUEZ
2004).
Para diferenciação texto-discurso, o primeiro passo é trazer para margem do texto à
discursividade; sempre olhando mais acima do nível da palavra ou frase, proposição, já que,
evidentemente nem todos os textos podem ser considerados integralmente discursos, uma vez
que, são um conjunto de enunciados transcritos e que precisam ser desvelados e esmiuçados
para que se seja possível visualizar o discurso concreto.
Na realidade, os textos devem estar inscritos em um contexto interdiscursivo que
revele aspectos do social, da história, literários, entre outros, ou seja, devem incluir um
posicionamento em uma estrutura discursiva., que tem valor para uma coletividade, que
envolvem crenças e convicções para serem partilhadas.
A AD não trabalha a linguagem como sistema neutro, mas como uma forma de
significar o mundo; porquanto se importam com as falas dos sujeitos, sua vida e seu
comportamento enquanto sujeitos mediante uma sociedade, estando fato, história e sociedade
77
numa relação de interdependência, facilitando enormemente a análise de processos sociais de
construção de intersubjetividade, do poder, da ordem e da transformação social (ORLANDI,
2002, INIGUEZ, 2004).
O sujeito na AD assume o status de enunciador, isto é, autor textual, que define a
forma ou tipo do discurso a ser proferido a depender do lugar de enunciação, se igreja,
educação, justiça, e, no caso do estudo em questão a instituição familiar. No entanto, os
lugares de enunciação não pressupõem somente instituições formais de produção e de difusão
do discurso, como as citadas, podem-se considerar instituição, todo espaço que permita o
exercício da função enunciativa (INIGUEZ, 2004).
O discurso é um conjunto de enunciados que pertencem a uma mesma formação
discursiva. As formações discursivas são aquelas que revelam o sentido do discurso, numa
determinada situação. Assim como as palavras (linguagem) indicam posições ideológicas, as
formações discursivas fazem parte das formações ideológicas. De onde se conclui que na AD
a materialidade da ideologia é o discurso e a do discurso é a palavra (linguagem),
valorizando-se a relação linguagem-discurso-ideologia. (ORLANDI, 2002).
Não há enunciado que não esteja apoiado em um conjunto de símbolos, mas o que
permitirá situar/organizar um emaranhado de enunciados é justamente o fato de eles
pertencerem a uma determinada formação discursiva. Portanto, quando descrevemos
enunciados procedemos à individualização de uma formação discursiva ou sistema de
formação discursiva que compreende segundo FISCHER (2001):
“[...] um feixe complexo de relações que funcionam como regra: ele prescreve
o que deve ser correlacionado em uma prática discursiva, para que esta se
refira a tal ou qual objeto, para que empregue tal ou qual enunciação, para que
utilize tal conceito, para que organize tal ou qual estratégia. Definir em sua
individualidade singular um sistema de formação é, assim, caracterizar um
discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma prática” (p.82).
“[...] pode-se dizer que seus enunciados têm força de "conjunto" e se situam
como novos campos de saber, os quais tangenciam mais de uma formação. A
formação discursiva deve ser vista, antes de qualquer coisa, como o "princípio
de dispersão e de repartição" dos enunciados” (p.124).
Por isso, finalizada a etapa de transcrição e conferindo todo o material produzido
procedemos ao agrupamento dos discursos, separando-os pelo critério de semelhança,
complementação de idéias ou contradições que serviriam para identificação das unidades de
análise/categorias, como também para validá-la.
78
Logo categorizamos aquelas temáticas que se apresentavam com maior força no
discurso, seja pela freqüência numa mesma narrativa ou em narrativas de sujeitos da mesma
família ou ainda pela repetição que se apresentou em diferentes entrevistas. Buscamos assim,
convergências e divergências que nos permitissem uma melhor compreensão dos aspectos em
estudo, de modo que também analisamos os silêncios prolongados e significativos, as
expressões de emoções como lágrimas, choro, raiva, impotência.
Ressalta-se que o enunciado, não está totalmente oculto nas letras, nos símbolos, e
emblemas descritos nos textos, mas também não é imediatamente visível, principalmente o
silêncio, que atravessa o texto e enfatiza algo que precisa ser dito e no momento não foi . Para
identificar os enunciados nos textos no entanto, deve-se: mapear as "coisas ditas" sobre o
tema; o próprio silêncio é considerado algo dito; situar as "coisas ditas" em campos
discursivos; depois extrair das coisas ditas os enunciados e colocá-los em relação a outros
enunciados do mesmo campo discursivo ou de campos distintos.
Desse modo operando sobre o material coletado, ordenando, identificando elementos
que identificarão o discurso e construindo unidades a partir das respostas dos
questionamentos: por que isso é dito aqui, deste modo, nesta situação, e não em outro tempo e
lugar, de forma diferente? É que será possível à construção de enunciados que estabeleçam
relações com o objeto de investigação, que realmente apreendam os discursos uniformes e
também os dissonantes e que mostre efetivamente o detalhamento e o aproveitamento
significativo do corpus.
Em função do tema da pesquisa, cuja essência trata de aspectos relativos à família, a
adolescência, a violência e ao racismo, trouxemos para discussão algumas categorias de
análise do quotidiano que são propostas por Maffesoli (1984) – aceitação da vida,
solidariedade orgânica, solidariedade mecânica, habitus, estilo e outras categorias que não
estão baseadas na reflexão do autor, mas que também fazem parte da construção categórica do
estudo do quotidiano. Da análise emergiu como eixo central: Quotidiano de adolescentes
negros em situação de violência familiar e categorias: Habitus essencial da existência: a
quotidianidade e o estilo de vida do adolescente negro e sua família; Violência e laços de
socialidade familiar no quotidiano do adolescente negro e O que está por trás da
imagem? O mundo imaginal do adolescente e sua família sobre ser negro.
Dentro da categoria Habitus essencial da existência: a quotidianidade e o estilo de
vida do adolescente negro e sua família emergiram as subcategorias: o Quotidiano que se
mostra como uma repetição, Não há tempo para brincadeira e um Quotidiano de
trabalho.
E da subcategoria um Quotidiano de trabalho, temáticas como: Tem que
79
estudar e trabalhar, Ter trabalho é ter potência, Ter Trabalho digno e prazeroso,
Violência (racista) no quotidiano de Trabalho.
Na categoria Violência e laços de socialidade familiar no quotidiano do
adolescente negro, têm-se as seguintes subcategorias: Bater e apanhar faz parte do
quotidiano, Violência no Quotidiano familiar e Apoio e proteção familiar.
E por fim a categoria O que está por trás da imagem? O mundo imaginal do
adolescente e sua família sobre ser negro composta das subcategorias Negação étnica,
Branqueamento, Racismo/Sexismo.
Os referenciais teóricos da Sociologia Compreensiva e a análise do discurso
permitiram apreender os sentidos constituídos socialmente pelo adolescente negro ao viver em
família e sociedade, considerando a situação de violência, uma vez que a linguagem social é
dinâmica, interrupta, complexa e reveladora de posicionamentos e atitudes dos indivíduos
diante das situações vivenciadas.
Construímos o quadro abaixo que apresenta os temas, categorias e subcategorias do
eixo central - Quotidiano de adolescentes negros em situação de violência familiar, que é
o resultado da análise de discurso das entrevistas.
80
Quadro 1. Análise de discurso das entrevistas
Categorias
Subcategorias
Habitus essencial da
existência: a quotidianidade
Temas
Quotidiano que se mostra
como uma repetição
e o estilo de vida do
adolescente negro e sua
Não há tempo para brincadeira
família
Um Quotidiano de trabalho
Tem que estudar e trabalhar
Ter trabalho é ter potência
Ter
Trabalho
digno
e
prazeroso
Violência
(racista)
quotidiano de Trabalho.
Violência e laços de
socialidade familiar no
Bater e apanhar faz parte do
quotidiano
quotidiano do adolescente
negro
Violência no Quotidiano
familiar
Apoio e proteção familiar
O que está por trás da
imagem? O mundo imaginal Negação étnica
do adolescente e sua família
sobre ser negro.
Branqueamento
Racismo/Sexismo
no
81
O que há por trás da
Autor do desenho: Anderson Santos Lima
O que há por trás da imagem?
“...forte tendência da população negra em negar seu
pertencimento étnico e, ao mesmo tempo,
primar pelo ideal de brancura...”
82
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1 CARACTERIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA SOFRIDA E PRATICADA POR
ADOLESCENTES NEGROS E SEUS FAMILIARES, SEGUNDO DELEGACIAS DO
ESTUDO, SALVADOR-BAHIA, 2009.
O panorama epidemiológico foi elaborado a partir de uma perspectiva quantitativodescritiva, que buscou caracterizar a violência sofrida e praticada envolvendo adolescentes
negros em Salvador-Ba, ocorridos no período de março de 2006 até março de 2007.
Apresentamos três tabelas e um gráfico, a primeira aponta as características da vítima
(com idade entre 10 e 19 anos) estratificada segundo co-variáveis sexo, raça/cor, escolaridade,
ter pai e mãe, estado civil e a segunda expressa as características do agressor estratificada por
natureza da violência segundo as co-variáveis sexo, raça/cor, grupo etário, escolaridade, ter
pai e mãe, estado civil em Salvador – Ba, a terceira tabela mostra a distribuição das
ocorrências segundo local da denúncia e o gráfico trás a relação entre grau de parentesco do
agressor e vítima.
Do total de 1178 boletins de ocorrência de violência examinados, encontramos 121
casos de violência envolvendo adolescentes.
Observa-se na Tabela 1 que as denúncias de violência foram mais freqüentes na
DERCA por ser uma Delegacia especializada no atendimento de crianças e adolescentes. A
maioria dos casos foi registrado na DERCA (65-53,7%), constavam na DEAM (35-29,0%) e
na Liberdade (21-17,36%).
Tabela 1. Distribuição das ocorrências segundo delegacias do estudo, Salvador – Bahia, 2009.
Local de denúncia
DEAM
Liberdade
DERCA
N
35
21
65
(%)
28,9
17,4
53,7
TOTAL
121
100,0
Fonte: Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares, segundo delegacias de referência em Salvador-Bahia,2009.
Conforme a Tabela 2 observou-se que as adolescentes negras são as maiores vítimas
de violência, sendo que esta as atinge com a idade média de 15,9 anos.
83
Percebe-se que na população de adolescentes, a maioria das vítimas é do sexo
feminino (90-74,4%), de cor parda (73-60,3%) e cor preta (9-7,5%), perfazendo o total de
(82-67,8%) adolescentes negras que são vítimas de violência.
Em virtude da subnotificação a análise ficou bastante prejudicada, pois muitos dados
não se encontravam preenchidos nos boletins de ocorrência gerando o item não consta
informação nas tabelas.
Apenas (55) boletins de ocorrências estavam preenchidos com o item escolaridade das
vítimas, destas (6) possuía 1º grau incompleto, (16) tinham o 1º grau completo, (15) o 2º grau
incompleto, (16) o 2º grau completo e (2) nível superior. O que revela que as adolescentes
vítimas de violência neste estudo apresentam escolaridade compatível com a idade.
Tabela 2. Dados sócio-demográficos das vítimas de violência, Salvador – Bahia,2009.
Co-variáveis
Violência
15,9 anos ± 2,9
Idade média ±
Desv.Padrão
Sexo
Masculino
Feminino
Raça/Cor
Branco
Pardo
Preto
Não consta informação
Escolaridade
Nunca foi a escola
1º grau incompleto
1º grau completo
2º grau incompleto
2º grau completo
Universidade
Não consta informação
Mãe
Sim
Não
Não consta informação
Pai
Sim
Não
Não consta informação
Estado civil
Solteiro
Casado
Viúvo
Não consta informação
N
%
31
90
25,6
74,4
8
73
9
31
6,6
60,3
7,5
25,6
0
6
16
15
16
2
66
0
5,0
13,2
12,4
13,2
1,7
54,5
118
0
3
97,5
0
2,5
101
1
19
83,5
0,8
15,7
54
4
0
63
44,6
3,3
0
52,1
Fonte: Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares, segundo delegacias de referência em SalvadorBahia,2009.
84
A análise da Tabela 2 revela também que as vítimas de violência são em sua maioria
solteiras (54, 44,6%), apenas (4, 3,3%) são casadas.
Quanto à filiação a maioria das adolescentes vítimas de violência tem mãe e pai,
através dos respectivos percentuais 97,5% e 83,5%.
Ao analisar a Tabela 3 nota-se que dos 121 casos de violência contra adolescentes, a
grande maioria é praticada por pessoas do sexo masculino (95, 78,5%). Como também se
pode observar que o agressor é na maioria solteiro (41- 33,9%), tem pai (53- 43,8%) e mãe
(52-43%), possui 1º grau completo e incompleto (30-24,85%) e compreende indivíduos
adultos jovens na faixa etária entre 20-49 anos (59-48,8%).
Tabela 3. Dados sócio-demográficos do agressor, Salvador – Bahia, 2009.
Co-variáveis
Violência
33,7 anos ± 9,5
Idade média ± Desv.Padrão
Sexo
Masculino
Feminino
Raça/Cor
Branco
Pardo
Preto
Não consta informação
Grupo etário
10-19
20-29
30-39
40-49
50-59
Não consta a informação
Escolaridade
Nunca foi a escola
1º grau incompleto
1º grau completo
2º grau incompleto
2º grau completo
Universidade
Não consta informação
Mãe
Sim
Não
Não consta informação
Pai
Sim
Não
Não consta informação
Estado civil
Solteiro
Casado
Viúvo
Não consta informação
N
%
95
26
78,5
21,5
7
58
15
41
5,8
47,9
12,4
33,9
5
21
24
14
4
53
4,1
17,4
19,8
11,6
3,3
43,8
1
8
22
5
7
0
78
0,8
6,6
18,2
4,1
5,8
0
64,5
52
6
63
43,0
5,0
52,0
53
6
62
43,8
5,0
51,2
41
7
3
70
33,9
5,8
2,5
57,8
Fonte: Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares, segundo delegacias de referência em Salvador-Bahia,2009.
85
Em relação ao item cor, os dados mostram que o indivíduo pardo (58-47,9%) é o que
mais violenta, seguido pelo de cor preta com (15-12,4%), totalizando entre pardos e pretos
violentos (73-60,3%).
Quanto à variável relação do agressor com a vítima, vejamos o Gráfico 1.
Gráfico 1. Distribuição percentual das ocorrências por relação de parentesco da vitima com o
agressor, Salvador-Bahia,2009.
Mae/pai ou ambos
34,8%
Irmã/Irmão
9,9%
Madrasta/Padrasto
14,9%
Companheira/Companheir
28,2%
Avó/Avô Tia/Tio
7,4%
0,8%
Cunhada/Cunhado
1,6%
Sogra/Sogro
0,8%
Prima/Primo
1,6%
Fonte: Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares, segundo delegacias de referência em Salvador-Bahia,2009.
Neste gráfico podemos perceber que o agressor em sua maioria é o pai e a mãe, ou
ambos, com 34,8% dos casos, fato que confirma a pregnância da violência no âmbito familiar,
onde há o abuso da autoridade dos pais na orientação dos filhos. Logo na seqüência, outros
familiares também aparecem como agressores companheiro/companheira com 28,2%,
madrasta/padrasto com 14,8%, irmão/irmã com 8,8%, tia/tio com 7,4% e os demais
primo/prima cunhado/cunhada, sogro, sogra, avô/avó com todos com 1,8%.
Os dados ratificam estudo realizado no município de Salvador–Ba, em 2003, que no
ciclo de violência familiar destacam-se os pais como os maiores agressores. As relações de
poder estabelecidas de modo patriarcal, onde os pais mandam e os filhos devem obediência,
justificam à violência familiar, sendo o adolescente vítima de violência em razão de sua
86
vulnerabilidade financeira, de dependência, relações conflituosas entre os pais e outras que
acabam por incidir no ato violento dos pais para com estes. O macho utiliza a violência o
espaço doméstico para manter o controle familiar, ensinando aos filhos essa relação de
convivência, portanto, encontramos irmãos agredindo irmãos (Diniz et al, 2007, Saffioti,
1999) .
A verificação dos dados quantitativos presentes revelaram a ocorrência das violências
por natureza, considerando idade, sexo, cor, ter pai e mãe, escolaridade e estado conjugal de
vítimas e agressores, como também relação dos casos apresentados nas delegacias de
denúncia e de acordo com os dias da semana foram de fundamental importância para
subsidiar a análise qualitativa, pois através desta, pudemos constatar fatos significantes como:
os pardos aparecem como mais violentos que os pretos, dado que revela uma estreita relação
entre mestiçagem e a violência a ser discutida na análise qualitativa a posteriori, como
também em relação ao percentual de mulheres identificadas como vítimas de violência, que
reafirmam as características estruturais da sociedade patriarcal, ainda muito viva nos dias de
hoje, revelando o poder masculino e a desigualdade entre homem/mulher, adulto/criança e
adolescente dentro do ambiente familiar e ainda identificamos que parcela significativa de
agressores está na idade de 30-39 anos, fato que pressupõe que os adolescentes não violentos
na faixa etária de 0-19 anos, a depender de como forem vivenciando a violência, pode se
transformar possivelmente em futuros agressores. A violência não exclui classe social, por
isso, a baixa escolaridade das mulheres e adolescentes do estudo demonstram que são
economicamente menos favorecidas e, portanto, com pouca noção de direitos e de valores,
sendo alvos fáceis de violência.
87
4.2 QUOTIDIANO DE ADOLESCENTES NEGROS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
FAMILIAR
O quotidiano de adolescentes negros em situação de violência familiar é refletido por
nós dentro do referencial da Sociologia Compreensiva concordando com Maffesoli (1995) de
que o mundo imaginal é razão de uma subjetividade coletiva, que adere inconscientemente
com o jogo das imagens e se dissemina pelos domínios da vida social. Dessa maneira,
compreender-se-á que o irreal presente através do imaginário seria o melhor caminho para
compreender o real, isto é, o próprio quotidiano.
Contemplar desse ponto de vista, esse quotidiano, a anomia, a banalidade, a
efervescência, o hedonismo, o lúdico ou onírico, “elementos que constituem a matriz em que
nascem, crescem e se reforçam as inter-relações feitas de atrações e repulsas, de todas essas
coisinhas insignificantes que compõem o conjunto do que se chama de socialidade (...) que
podemos resumir numa expressão: ‘interação simbólica’ é entendê-lo deliberadamente no
mundo relacional (MAFFESOLI, 2004, p.48)”.
Nessa perspectiva, o mundo em que vivemos, o espaço tal como é, nutre a
possibilidade de existência humana, “a partir da existência social e da existência natural (...)
da ordem da revelação interpessoal, mas que o é igualmente da relação com o ambiente físico,
com o ‘dado’ constituído pelo lugar em que vivo”. Nessa formulação de Maffesoli (2004
p.49-50) encontramos a referência ao lugar como causa e efeito da idéia de hábito herdado, eu
me constituo naquilo que compreendo e aprendo na relação com o outro e tal qual reproduzo
na relação com terceiros.
Essa forma de viver, sua pulsão estilística enquanto maneira de pensar, de agir, de
sentir, constrói-se na alteridade e convivência com o outro. Em suma, o quotidiano e os
desígnios do viver e da conformação da vida social contribuem de modo significativo para as
mudanças que se apresentam hoje no nosso dia-a-dia.
A pulsão estilística sofre influência do tempo, da história, da política e vai sendo
elaborado em cada época em questão, portanto, na Idade Média o estilo era teológico, o da
Modernidade foi econômico e hoje está sendo elaborado um estilo estético, centrado na
imagem. Entendendo que o estilo nos reporta a uma época, no estilo estético a imagem serve
de pólo de atração para a tribalização pós-moderna, e, nesse sentido se torna “ligante”, isto é,
capaz de unir todos entre si, como também agregar todos no mundo (MAFFESOLI,1995).
88
Assim, a estética sugerida pelo autor para caracterizar a pós-modernidade, preenche o
vácuo existente entre as pessoas no mundo social, definindo-se como um cimento capaz de
agregar, unir, ligar realmente, e, como algo assim, reforça o desejo comunitário, de empatia, o
desejo de estar-junto, da emoção ou da vibração coletiva.
O contágio emocional que estava anteriormente ultrapassado volta a ter sua
importância nas relações, volta ao primeiro plano e acoplado a uma imagem, esta por sua vez
constitui-se fundamento necessário na busca pela afirmação. O retorno das imagens reflete
uma matriz de sociabilidade nascente, que utiliza múltiplos simbolismos que a imagem pode
provocar para reivindicar uma identidade autêntica, como exemplo a efervescência étnica
atual surge como forma de mostrar a consciência negra sobre sua condição e lutar por uma
convivência igualitária, fazer valer sua importância.
A nossa preocupação inicial com a imagem, com o estilo estético ocorre porque esse
constructo teórico nos permitir evidenciar mudanças ideológicas e certamente existenciais na
vida do adolescente negro e sua família. Como diz Maffesoli (1995, p.15):
“[...] a saturação dos valores da modernidade tende a dar lugar a valores
alternativos, de contornos ainda imprecisos, mas cuja eficácia não se pode
negar [...] negá-los não é mais possível. Denegá-los, não é sério. Tampouco
pode-se contentar em considerá-los como marginais; certamente, é possível
condená-los moralmente, mais isso não faz com que desapareçam.[...] ou em
uma perspectiva de ação ou reação, avaliar as conseqüências sociais da
emergência desses valores.
Não aspiramos de modo algum explicar qual a motivação ou conseqüência da
violência presente neste quotidiano e sim compreender, conhecer, nos aproximar dessa
realidade que é vivida dia-a-dia pelo adolescente negro e sua família, como também conhecer
sua pulsão estilística de pensar, sentir, fazer, sua potência de ser que é causa e efeito da
socialidade.
O re-nascente “mundo imaginal” mostra-se pelo modo de ser, agir e de pensar
inteiramente diferente entre os indivíduos, mas nascente de uma construção plural cujos
elementos primordiais são o vínculo social e a imagem. Ambos, o vínculo social e a imagem
são responsáveis pelo reencantamento dos indivíduos pelo mundo, uma leitura que não pode
ser descolada da imagem e do imaginário sobre ele próprio e o mundo que vive.
O imaginal está presente e pregnante – de maneira simbólica, lúdica ou onírica entre
todos os elementos do meio social e natural, pela imagem, pelo imaginário e pelo imaterial
que se esboçam na atenção dada a solidariedade orgânica, ao estar-junto e à correspondência e
89
também da necessidade de instaurar uma razão sensível ao invés do racionalismo dominante
(Maffesoli, 2004).
Não podemos mais falar de individualidade na pós-modernidade, pois concordamos
com Maffesoli (2004) de que se “cada um só existe no e pelo olhar do outro”, que retrata um
“perder-se no outro”, uma “fusão afetiva”, “um presente que eu vivo com terceiros, num
determinado lugar”, há uma negação de si próprio em detrimento do coletivo, o indivíduo
perde sua individualidade e importância enquanto indivíduo para adquirir uma condição de
pertença na tribo a que adere.
No presentismo juvenil marcado pela busca incessante do gozo no aqui e agora, a
partir dessa nova composição do estar-junto, a imagem já alcançou seu lugar de destaque,
traduzindo-se na chamada empatia ou simpatia social, que é justamente o que fundamenta o
convívio.
A simpatia social de que se fala, propõe a “coexistência”, um ajustamento à forma, ao
modelo preconizado. É como uma fusão dos ideais solitários do indivíduo ao ideal de um
grupo com o propósito de segregação de interesses comuns; mesmo que obviamente na
presença de tensões conflitantes e perspectivas variadas ou contraditórias dos indivíduos o
intuito é a construção de um corpo comum.
Confirmamos com Maffesoli (2004) que é pelo olhar dos outros que o ser humano se
constitui e delimita o território em que se reconhece e no qual nasce sempre e mais uma vez,
juntos. O forte elemento ligante ou a pulsão estilística é o componente estético-ético, definido
pelo culto do corpo, da imagem, da amizade, dentre outros que convergem progressivamente
para um lugar - local de celebração, lugar de ligação e encontro com o outro, o lugar é que faz
elo.
Convém deixarmos claro que esses lugares emblemáticos de encontro com o outro,
quais sejam a família, a escola, o trabalho, a rua, são explorados pelos adolescentes como
espaços importantes de vivência e convivência – são compostos por afetos, emoções,
desafetos, diferenças e uma multiplicidade de experiências que exprimem a potência de seu
ser e do espaço do vivido.
Estamos dispostas em unir a razão e o sensível no procedimento analítico, na tentativa
de relativizar o pensamento racional e lógico em busca da compreensão que repousa na leveza
da ambição pela ligância das polaridades - emoção e razão; mesmo quando da perplexidade
diante dos problemas e situações que sem dúvida “atormentam nossa sociedade em mutação”
como é o caso do estudo da violência.
90
Na análise da socialidade não podemos esquecer da experiência comum, verdadeiro
motor do ponto de vista social do corolário do vivenciado e que emana de uma “razão
sensível”. Então, em se reconhecendo a experiência comum como algo vital da socialidade,
cujo carro-chefe é a própria sensibilidade, sua significação decorre do estar-junto,
compreendido através da perda do próprio corpo para um corpo coletivo, ação designada de
comunhão sensível ou afetiva, que remete a um sentir em comum, é o coletivo em ato, são as
diversas aglomerações associativas, religiosas, esportivas, sexuais e do tribalismo,
principalmente o juvenil, que põe o societário sobre o individual e sobrepuja a sociedade
puramente utilitária (MAFFESOLI, 2004).
O quotidiano para o adolescente é repleto de prazeres, ele não se preocupa com o
ontem ou o amanhã, mas sim com o aqui e o agora, o que faz com que dêem vazão ao
tribalismo, que não reflete uma desestruturação ou uma desagregação social, mas um
reencontro dos indivíduos, ou seja, a relação somente aflora na presença ou evidência da
incompletude, um indivíduo necessita do outro para sobreviver. Os indivíduos desejam a
felicidade, mesmo que isto implique em perigo para a sua condição de ter saúde, por isso o
racismo é um fator capaz de desestruturar a vida individual e social, pois afeta diretamente o
psíquico dos indivíduos expostos, resultando em traumas e dificuldade em ter e manter
relações com o outro (MAFFESOLI, 1987).
Essa socialidade com “orientação para o outro” que utiliza como substrato o estarjunto, a partir da fusão do eu com o outro, a produção de um nós que não se reduz, o nós da
coexistência, do agregado da razão com o sensível, que traz em sua condição de possibilidade
a formação de um grupo fruto da experiência vivida, da proximidade, da ideologia ou da
própria necessidade de proteção em tempos de violência.
Questionamos a partir de Maffesoli (1995) se o ideal democrático, propósito da
modernidade está se sucedendo ao ideal comunitário de concepção pós-moderna. Como
discute o autor, o que está em estado nascente ou mesmo re-nascente, esse modo de estarjunto é elaborado na dor e na incerteza, e, portanto, a dúvida permanece sobre o resultado
desse processo, entretanto ao elucidar que o ideal comunitário retoma elementos arcaicos e
parece indicar o ressurgimento de valores que haviam sido esmagados pela racionalização
mundana desvela a potência do querer-viver a subjetividade na vida social atual.
Maffesoli (1995) recorre às efervescências das manifestações religiosas, ressurgências
étnicas, reivindicações lingüísticas e outros apegos para demonstrar que ainda existe o reforço
de estar-junto, o prazer dessa conjunção. Segundo o autor o ideal comunitário se encontra nas
várias formas de solidariedade ou de generosidade, que podem ser vividos de modo
91
espetacular nas grandes causas humanitárias, exemplificam-se às ações de organizações nãogovernamentais, as caridades provenientes das igrejas, na recrudescência das boas ações ou ao
contrário podem ser vividas discretamente na vida quotidiana pelo afeto daqueles que
praticam caridade por idealismo, onde o pouco que se tem pode ser dividido, compartilhado.
O sentido da existência, do prazer da vida está no próprio ato, no que se pode fazer no
presente, não há mais uma meta, um investimento em busca de um futuro distante e ideal
como acontecia na modernidade. O gozo não está mais atrelado ao futuro hipotético tranqüilo
e feliz, o momento presente é vivido de forma intensa seja lá como for, mas que lhe conduza a
auto-realização, pois o presente pós-moderno enfatiza as ocasiões e as boas oportunidades
(MAFFESOLI, 2004).
A tribalização, a cultura do sentimento, da estetização da vida, da predominância de
um quotidiano que se vive apenas pelo instante presente, possivelmente vai constituir uma
nova configuração de mundo, na qual se pode lamentar ou regozijar (MAFFESOLI, 1995).
O que será que atrai o adolescente para uma determinada tribo, como a rua, como o
tráfico, por exemplo? Será que não é a necessidade de ser reconhecido, de comungar o prazer
do vivido com alguém? Libertar-se das cobranças e responsabilidades familiares que incidem
sobre ele, usurpando-lhe a vivência? Ou ainda adquirir a imagem socialmente perfeita para si
e sua família para poder usufruir o que a vida tem de melhor? A concretização de um sonho
que é adiado na família de negros, sempre passado de geração em geração.
Maffesoli (1995) nos mostra que o que nos parece sem sentido, os eventos
insignificantes poderão ser causadores do caos de amanhã, porque isto que se deve desconfiar
do que não é da ordem do frívolo, pois alimenta um estilo, uma cultura que serve de substrato,
de húmus a vida social.
Assim é a violência familiar, algo “comum”, sobretudo banalizado e naturalizado em
nosso quotidiano, algo enraizado; permissível no processo educativo familiar, mas que
sabemos traz uma nova ordem, uma nova forma de socialidade, que pode ser induzida, nosso
pressuposto, pelo estilo próprio do adolescente negro e sua família para conseguir
reintegração social.
Segundo Fernandes; Alves; Nitschke (2008) o cuidado deve ser contínuo no
quotidiano da família, pois revela a promoção de interações saudáveis, que se apresentam na
presença de quem cuida – a enfermagem e as famílias cuidadas. A maneira de cuidar é
fundamental para lograr êxito no processo cuidativo, para isso torna-se essencial para
enfermagem mergulhar no mundo do adolescente negro e sua família e conhecer seus valores,
crenças, hábitos, estilos de vida, imagem, imaginário, delinear seus papéis ao longo do
92
processo vital, evidenciando limitações e perspectivas, de modo que tentando compreendê-los
possa contribuir para sua melhor qualidade de vida.
Aproximando-se do quotidiano do adolescente negro e sua família e contemplando a
quotidianidade em sua anomia e efervescência, entendemos pelas imagens dos
acontecimentos relatados nos discursos que devido à importância que assumiu a forma e a
imagem, a nova socialidade que se esboça na modernidade inclui a violência no quotidiano. O
estilo de viver, o consumo ativista da imagem no aqui e agora, da aceitação de abrir mão de
qualquer segurança para viver intensamente o presente, viver essa onipresença quotidiana da
imagem que serve, mesmo que apenas temporariamente, de fator de agregação e vínculo
social. Acreditamos que o adolescente tem a necessidade de aquisição dessa imagem em prol
do reconhecimento social e adesão à tribo, a qualquer custo, de modo que a imagem acaba por
diferenciar uns dos outros e reifica ainda mais as diferenças daqueles que não conseguem o
alcance do estar-junto social.
a) Habitus essencial da existência: a cotidianidade e o estilo de vida do adolescente
negro e sua família.
O Habitus serve "à compreensão da ação e do pensamento do homem no espaço" e
nesta perspectiva, corresponde às práticas humanas que compõem o quotidiano e a vida, como
hábitos alimentares, linguagem, postura, modos de se vestir, se comportar, rituais que são
transportados ao social através da ação individual ou coletiva (WELS, 2008).
Para compreensão do quotidiano dos adolescentes negros e seus familiares, nos
baseamos nos comportamentos humanos, ou seja, nas práticas discursivas que moldam o
comportamento e que na verdade são causa e efeito deste, e que certamente resulta de um
estilo interativo do indivíduo com a educação, princípios familiares e contexto social. Um
estilo que transpira atitudes, gestos e linguagem própria onde “estão em jogo tantos afetos e
conversações", que contribui para a "sólida trama social que se constitui gradativamente" no
percurso de trajetos sinuosos até sua cristalização na identidade individual, familiar e social.
(MAFFESOLI, 1988, p. 161; WELS, 2008).
O quotidiano não poder ser compreendido somente por ações ativistas, o quietismo
sensível, representado pelo silêncio e impotência, também se mostra como um fator de
socialização, e cada um dos comportamentos aqui apontados trazem seu toque específico do
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vivido no seio da vida corrente. O pensamento, assim como a ação é uma obra de resistência,
de uma exigência que necessita de esforço para concretizar-se e que apela para um
significado, dada à força tanto do silêncio como da palavra.
Compreendemos que as imagens que emergiram a partir da interação que
mantínhamos com o adolescente e família durante a realização da pesquisa revelaram o
quotidiano naquilo que é, expresso por valores, sentimentos, crenças, metáforas, símbolos e
significados, um misto de criação e recriações daquele que vive tanto a grandeza quanto a
banalidade nas situações do dia-a-dia.
Apresentamos o quotidiano do adolescente negro e sua unicidade através da vida
familiar que entendemos estar imbricada, interconectada numa rede de interações em que os
envolvidos não se separam.
Neste momento, trazemos à tona esse quotidiano que contempla o processo de viver
humano, aparentemente insignificante, se não considerarmos a qualidade do movimento, da
sinergia e da repetição cíclica que faz parte da vida quotidiana – onde nunca é demais repetir,
já que a mutação exige regularmente recomeço, retorno às idéias consideradas arcaicas,
ultrapassadas, aos mitos comuns – é o essencial da trama societária (MAFFESOLI, 1995).
Quotidiano que se mostra como uma repetição
Assim trazemos a categoria o Quotidiano que se mostra como uma repetição. As
repetições do quotidiano evidenciadas pelo discurso dos adolescentes do estudo revelam que o
processo de viver humano é cíclico, aonde um dia vem em substituição ao outro, e que apesar da
similaridade presente entre um dia e outro, cada dia traz situações, vivências e condição diferente,
pois nada é exatamente igual. No entanto, as diferenças do quotidiano podem passar
desapercebidas pelos indivíduos, quando nele estão mergulhados de tal modo que lhe escapa a
percepção do que seja o efêmero.
Maffesoli (1998, p.129) nos fala de um "tempo místico", tempo da repetição/tempo
cíclico, que se configura em uma espécie de "situacionismo, disposto a fruir daquilo que se
apresenta, daquilo que se dá a ver, daquilo que se dá a viver". Para alguns, a vida cotidiana se
torna um refúgio para o desencanto do mundo, do futuro incerto, do “afrontamento do
destino”, de um viver desprovido de sentido em que a “seqüência de situações e de
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acontecimentos tem uma lógica própria de encadeamentos [...] que se desenrolam de uma
maneira quase autônoma sem que seja possível intervir”.
A repetição ritualística, orquestrada, programada, regida pela aparente estabilidade
dada pela rotina e pelo ordenamento das coisas, expressa que as experiências quotidianas
obedecem a um esquematismo herdado, aprendido no próprio quotidiano, do qual a relação
familiar faz parte.
Para estes adolescentes o quotidiano se mostra como algo corriqueiro. O presente é
aceito tal como é, uma rotina, que se apresenta através de um quotidiano preenchido com
atividades repetitivas do trabalho braçal, trabalho por sua vez socialmente destituído de valor.
[...] Não acho nada diferente, Todos os dias eu faço a mesma coisa.
Lavo roupa, arrumo a casa, menos comida, todos os dias eu faço a
mesma coisa. Faço a rotina de todos os dias, não tem nada de diferente,
sempre a mesma rotina (Ogum-C).
[...] Trabalho de doméstica, tudo que fazia em casa faço no trabalho,
não acho nada diferente. Todos os dias eu faço a mesma coisa (OgumA).
Os discursos perpassam a idéia de um relativo conformismo e acomodação, refletida
na ausência de uma perspectiva de melhoria, de desfrutar do sonho de uma vida pulsante que
é própria da adolescência e que este trabalho de certa forma usurpa.
Por isso, intuímos que a aceitação da rotina e a aquiescência que emergem das falas
dos adolescentes quando apresentam a repetição sistemática da sua vida quotidiana,
representam o subterfúgio para o não-enfrentamento das situações quotidianas, já que não
conseguem encontrar potência para modificá-las.
É o que Maffesoli (1995) acentua como a existência corrente, percebida pelo
conformismo de pensamento e situações aparentemente sem significação, refletidas,
sobretudo, por meio de momentos anódinos inscritos no presentismo do vivido e sem
perspectiva de mudança.
Dentro desse contexto, a vida quotidiana aqui colocada em suspensão nos remete a
refletir sobre a importância da vida para esses adolescentes, num tempo em que segundo
Maffesoli (1995, p.35) “o estilo de ver, de sentir, de amar, de se entusiasmar em comum e no
presente se impõe, sem dificuldade, às representações racionais voltadas para o futuro”. Dito
isso, expectamos que mesmo na rotina alienadora, o vivido sustenta as relações sociais e
95
exerce através do imaginário um poder, uma força que faz saltar para fora do indivíduo as
condições de transformação do impossível em possível.
O caos nos remete ao recomeço e a destruição a novas perspectivas e possibilidades,
pois não existe repetição sem a criação de algo novo, assim como o sol que nasce todos os
dias e se põe no horizonte de modo cíclico, mas nunca igual. Entendemos que muito embora
os sujeitos não se dêem conta do mistério que se esboça em cada dia vivido de modo corrente,
ele está sempre presente, mesmo em um quotidiano aparentemente anônimo (MAFFESOLI,
1995; MARTINS, 1998).
Não há tempo para brincadeira
Nesta categoria Não há tempo para brincadeira identifica-se que o lazer
praticamente inexiste para estas famílias, sendo substituído precocemente pelo trabalho.
Os relatos reforçam o drama de quem se divide entre o desejo de brincar e o de dar
sustentação financeira à família conforme o papel social que lhes é imposto pelos pais. A
desobediência é motivo de punição e maus-tratos; entretanto, para brincar era preciso
desobedecer:
No caso ele desobedecia. Jogava bola na rua. Ia para praia vender ovo
de codorna e deixava a mercadoria em um lugar e ia brincar, aí ele
perdia, porque deixava à toa para jogar bola. Aí quando chegava em
casa sem a mercadoria, o pai batia.[Ele tinha que idade quando isso
aconteceu?] 16 para 17 anos. Ele ia só para praia vender. Chegava lá
encontrava gente jogando bola, aí pronto, deixava a mercadoria e ia
brincar, chegava em casa sem a mercadoria e sem o dinheiro, aí
apanhava. (Oxossi-G).
As poucas oportunidades de lazer, ou mesmo a substituição do lazer pelo trabalho na
época da adolescência, aliada à agressão vivenciada no dia-a-dia dentro do ambiente
doméstico, pode contribuir para a formação de adultos violentos, uma vez que o prazer da
brincadeira é aniquilado toda vez que chega em casa e se depara com as atitudes violentas dos
pais. Esta situação envolve circunstâncias emocionais e ao mesmo tempo financeiras
familiares, tendo a brincadeira um constituinte importante de crescimento e desenvolvimento
96
da criança e do adolescente que precisa ser valorizado e a venda da mercadoria algo que
garante ao adolescente seu próprio alimento e/ou ganha-pão familiar.
A violência é a negação de valores considerados primordiais para uma vida saudável,
tais como a liberdade, a igualdade e o controle da própria vida, ela é capaz de reduzir e alienar
o ser humano de modo integral, castrando-lhe principalmente a liberdade (GUERRA, 1998).
A violência familiar está presente na relação social do ser humano desde os primórdios
da civilização estando associada a diversos fatores, a citar: desorganização familiar, punição
como forma de educação, entre outros, que provoca e instaura a instabilidade econômica e de
relações (WAIDMAN, DECESARO, MARCON, 2004).
A maneira de agir do agressor tem como causa fatores individuais e sociais podendo
manifestar-se mais ou menos criticamente a depender da sua experimentação de violência, e,
o comportamento da vítima, justamente pelas características da sociedade patriarcal vigente,
onde o pai tem o direito escolher e decidir por elas o que elas têm que fazer, faz com que ela
perca algo que muitas vezes é difícil de reconquistar ou reviver – o seu espaço de diversão,
entretenimento e brincadeiras que jazem de sua época de infância e adolescência e que
precisam ser garantidos e vivenciados em sua plenitude.
Quando existe violência, a família deixa de lado o caráter protetor e adquire o
agressor, assumindo uma postura de não–comprometimento com o agredido, quer por
dependência do agressor, medo ou indecisão, deixando os vitimados sob tortura como
prisioneiros nos seus próprios lares, onde certamente serão novamente vítimas de maus-tratos
(WAIDMAN, DECESARO, MARCON, 2004).
O caso em questão é um exemplo de violência intergeracional, pois quando adulto ele
passou a agir com sua filha exatamente como foi vítima da violência pelo seu pai, e também
pelo mesmo motivo pelo qual apanhava, pois a filha gostava de estar na rua e filar aulas para
jogar futebol:
Não pode ser como o pai de minha sobrinha que bate nela como
ele apanhava do pai dele [...] Ele bate nela de murro porque
quando era criança ele apanhava de murro. [É mesmo?] O pai
dele sangrava a boca dele, o nariz.[...] Tem uns que quando
apanha que quando o filho nasce, cresce, aí vai fazer a mesma
coisa que já sofreu... (Oxossi G).
Não há dúvidas de que a violência é uma das experiências mais traumáticas que pode
ser vivida pelo ser humano, principalmente numa fase da vida de grande instabilidade, como a
97
adolescência. As mudanças biopsicosociais constantes e na vida do adolescente podem
diminuir sua resiliência aos traumas facilitando a instalação de transtornos de comportamento,
ou seja, comportamentos violentos.
O adolescente em processo de crescimento e desenvolvimento tem suas necessidades e
demandas de saúde arraigadas nas transformações corporais e na construção de seu registro
somático, este último derivado da consistência e regularidade de vínculos em conformação
nos indivíduos, sua organização afetiva, possibilidade de auto-afirmação, formação da
personalidade e identidade e fortalecimento do seu ego (LIPP, 2002).
Portanto, a violência contra a criança e o adolescente independente de sua freqüência e
intensidade geram uma ruptura na harmonia das estruturas psíquicas e defesas
psicossomáticas promovendo desorganização somática, alterações na cognição, na
constituição mental, respostas emocionais e neuroendócrinas, além de interferir na resistência
física às agressões do meio (GAY E JUNIOR, 2005).
A violência contra o adolescente no âmbito familiar faz parte da realidade brasileira,
sendo a re-vitimização uma constante que acompanha o adolescente pouco assistido e
amparado, apesar da legislação e políticas de proteção ao menor.
Sem dúvida, a violência deixa marcas na criança e no adolescente por toda a vida,
tanto físicas, como comportamentais e psicológicas. Mesmo não apresentando de imediato,
sintomas externos relevantes que caracterizem sofrimento ou transtornos, não se devem
perder de vista que ela ainda pode vir a sofrer com os efeitos dessa experiência. O fato de não
estar no momento externalizando seu sofrimento pode ser interpretado como uma resposta de
congelamento diante da situação e as conseqüências do trauma embora latentes despontem o
risco.
A criança desde o nascimento participa de um sistema muito complexo de relações,
que começa na convivência com os membros de seu núcleo familiar, e prossegue durante o
curso da vida aglutinando outras relações sociais. Paradoxalmente, ao alargar sua rede de
comunicação e relações com outros indivíduos, a criança está ao mesmo tempo ampliando sua
interação com o mundo, do qual emerge condições de organização e de modificação de si
através de influências culturais, sociais e outras, assim como experimentando percalços
resultantes destas influências, interpostos ao seu desenvolvimento.
Nesta perspectiva, o trauma relacionado a experiências de abuso, ameaça e agressão
tem um enorme impacto sobre o crescimento e desenvolvimento humano, porque na infância
as áreas cerebrais responsáveis pela regulação emocional ainda estão se estruturando e,
portanto os traumas derivados de relações interpessoais negativas podem afetar o
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desenvolvimento cerebral, tornando-a mais vulnerável aos transtornos do estresse ainda
durante
sua
infância,
na
adolescência
ou
posteriormente
na
sua
vida
adulta
(GAWRYSZEWSKI, 2006).
O cenário familiar tem sido propício para o desencadeamento da violência contra a
criança e o adolescente, porque tradicionalmente a família enquanto núcleo privado de
organização social permite aos pais detentores do poder utilizar a autoridade para regular as
relações do lar. De modo que, as situações de crise familiar e de conflitos de ordem social,
situacional e outros, atuam como facilitadores de abusos, capazes de motivar traumas
(CAMINHA, 1999).
O adolescente exposto a um evento traumático no seio familiar, presenciando ou
sofrendo algum tipo de violência, aprende equivocadamente que nas relações humanas os
recursos que possibilitam a negociação e resolução de conflitos não é o diálogo e sim a
violência, e , portanto, acaba reproduzindo-a, tornando-se agressor.
Um quotidiano de trabalho
Outras falas expressam a vivência pelo adolescente e sua família de Um Quotidiano
de trabalho. Nesta categoria percebemos que o trabalho é visto como ação/função de suma
importância na vida cotidiana dos adolescentes negros e sua família, pois apesar de não ser o
trabalho ideal, lhes possibilita a subsistência e a valorização do seu SER.
Eu gosto do trabalho [...] eu mesmo acho que deveria ter, [mas] deveria
fazer uma coisa melhor, né? Que eu tô estudando. Mas, eu não consegui
uma coisa melhor, eu tô nesse serviço por enquanto, porque eu quero
ajudar meu pai, minha mãe (Ogum-A).
Desde cedo, os adolescentes aprendem a desenvolver estratégias de sobrevivência,
com a finalidade de adquirir recursos financeiros para manutenção da família. Isto significa
que, nas famílias formadas por indivíduos negros a solidariedade ou ajuda mútua é uma forma
de garantir a existência familiar, ante um contexto de carências que estão presentes no seu
quotidiano.
Segundo BILAC (1995) as famílias de baixa renda incentivam seus membros tanto a
prover materialmente o grupo familiar quanto ao cuidado com os membros que considerem
ainda inaptos para a busca dos recursos, como as crianças de pouca idade.
99
[...] eu arrumo a casa, lavo os pratos e arrumo meus irmãos para ir para
o colégio (Oxossi-D).
De acordo com SANCHEZ (2005) os adolescentes seguem comportamentos
orientados pelo que socialmente aprendem nas relações familiares. Por isso, nas famílias
extensas, os membros são estimulados a participar junto à família na busca por recursos
financeiros, e por isso, os filhos são muitas vezes vistos como mais uma possibilidade de
força trabalho, de potência para ganhos econômicos, ao invés de despesas.
É nesse sentido que se pode compreender a assertiva de Vygotsky (1984); Moura
(2002) quando estabelece que somente através da interação os indivíduos são capazes de
aprender o que é certo ou errado e desempenhar papéis sociais, com o intuito de corresponder
aos ideais familiares e sociais. Assim, nas famílias de indivíduos negros é comum o
adolescente busca exercer junto aos pais o papel de provedor colaborando para o sustento
familiar.
Percebemos também que apesar da baixa renda, na família formada por indivíduos
negros a presença e a proteção existem. Acreditamos, porém, que essa presença e a proteção
ocorram de forma divergente de outras famílias, em que os pais são os únicos provedores do
lar, e que não necessitam que os adolescentes ingressem no mundo do trabalho antes da idade
adulta. Na família de negros, pela própria dificuldade de recursos econômicos, os pais não são
capazes de sustentar sozinhos toda a estrutura familiar necessitando da ajuda de todos os
membros considerados aptos para mantê-la. Dessa forma, há uma partilha de
responsabilidades entre o grupo familiar para manutenção e sobrevivência da família, que se
torna também mais um fator de socialização e de valorização de cada membro.
A partir dessa compreensão, concordamos com Lápide, Rodrigues e Ribeiro (2005) de
que os membros de uma família, na confluência com os valores sociais vigentes e sua
condição sócio-econômica pactuam entre si, os valores fundamentais para garantir a
preservação familiar.
Então, torna-se fundamental desconstruir o imaginário social de que os pobres, que são
em sua maioria negros, não são capazes de oferecer aos filhos afeto e proteção. O caráter
ideológico dessa idéia é elaborado a partir do pensamento hegemônico da classe dominante de
vincular e destinar estas famílias a uma suposta condição de irregularidade e infelicidade
(ARPINI, 2003; KALOUSTIAN, 2005).
100
Tem que trabalhar e estudar
Estudo realizado por Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada sobre indicadores
sociais da população negra, com dados da Pnad, mostra que a mulher negra começa a
trabalhar mais cedo e acaba por se aposentar mais tarde, em conseqüência do baixo poder
aquisitivo familiar, estas têm necessidade de manter-se por mais tempo na ativa (SALLES,
2008).
Segundo Paludo e Koller (2008), em virtude da carência em que vive, nas famílias de
baixa renda/negros, independente do arranjo familiar, o trabalho feminino remunerado se
intercala com o doméstico, caracterizando uma dupla jornada de trabalho que se faz
necessária para fortalecer o orçamento doméstico.
[...] Trabalho de doméstica, trabalho para ajudar minha família [...] tudo
que fazia em casa faço no trabalho (Ogum-A).
Dada à precariedade do trabalho doméstico, desenvolvido geralmente por negros, estas
famílias, que não tem recursos financeiros suficientes para subsistência, buscam introduzir
precocemente os filhos no trabalho, e ao mesmo tempo, como uma contrapartida tenta garantir
a escolarização dos mesmos (BILAC, 1995).
[...] Ele briga, manda estudar, depois ele, vai para o trabalho (OxossiE).
[...] O que eu cobro mesmo é estudar, porque se não estudar, elas não
tem nada na vida. Eu mesmo trabalho aí, mas sem muito recurso
[recebe pouco pelo trabalho que desempenha em virtude da baixa
escolaridade] (Ogum-B).
A família de indivíduos negros está sempre preocupada com o equilíbrio entre os
provedores e os consumidores do núcleo familiar, porque em virtude da baixa escolaridade,
esta família vive constantemente ameaçada, pelo baixo salário, desemprego ou outros riscos
inerentes à situação de pobreza, que induzem a solidariedade mecânica entre seus membros
para o alcance da sobrevivência do grupo familiar (BILAC, 1995).
Percebe-se que o sistema de subsistência das famílias estudadas é marcado por laços
de solidariedade mecânica, onde a força de trabalho de cada um dos membros é fundamental
no espaço familiar. Essa lógica parece ordenar os valores individuais e coletivos dentro do
101
grupo, de modo que entendemos que este tipo de solidariedade é a forma de garantir a
existência e o desenvolvimento da estrutura familiar.
Maffesoli (1995, p.68) nos recorda de que a família possui uma força, “para agir sobre
aquilo que eles têm e podem, sobre o quotidiano doméstico, o próximo, todas as coisas a
partir das quais eles podem fazer da existência uma verdadeira arte”. Na arte de viver, a união
faz a força, que no caso da família de indivíduos negros, a força de trabalho é necessária para
sobrevivência do grupo familiar.
Ter trabalho é ter potência
Ter trabalho significa ter poder, ter a potência necessária para conduzir a si e ao outro
na vida, porque o trabalho é o meio mais aceitável e garantido para o suprimento das
“condições materiais de existência”. Portanto, quem não tem trabalho na concepção das
famílias estudadas, pode ser visto como alguém incompetente, irresponsável, sem a potência
necessária para poder sobreviver.
[...] eu acho que a pessoa deve ter mais competência e procurar
trabalhar para poder sustentar os filhos, ter responsabilidade (Ogum-B).
A fala supracitada confirma a crise de identidade vivenciada pelos homens
trabalhadores pobres e negros, que em virtude de toda rede de exclusão em que estão imersos,
não conseguem manter sozinhos a casa e o sustento familiar. Tendo em vista a perda da
capacidade de provedor, estes se sentem fracassados, inferiores, incompetentes e vulneráveis
aos processos violentos (COSTA, 1989).
A competência trazida pelo sujeito de pesquisa é uma questão primordial para o
alcance da sobrevivência e se ancora no significado da potência apresentada por Maffesoli
(1998, p.90) como algo saudável e que alimenta a vitalidade humana, fortalecendo o ser
humano na luta pela sobrevivência. No uso de suas potencialidades ele supera problemas,
ultrapassa obstáculos e cria novas situações ao seu favor, por isso, este poder “pode e deve se
ocupar da gestão da vida, a potência é responsável pela sobrevivência”.
O trabalho é uma potência que produz o status de sobrevivência, de existir, de
contemplar a vida, pois oferece a possibilidade de sair do ócio, de não roubar, da vida digna,
e, sobretudo oportuniza o consumo não somente do bem material, mas também do simbólico;
102
o que para o adolescente é extremamente importante, já que ao passo em que consome, sentese peça valorizada e importante para engrenagem da máquina da sociedade capitalista de
consolidar sonhos, o sonho de Ter e de poder Ser.
[...] acho melhor trabalhar que ficar em casa sem fazer nada ou às vezes
até ir pela cabeça das colegas [refere-se à vizinhança] querendo
influenciar para fazer coisas que eu sei que é errado [refere-se a roubar,
consumir drogas, prostituir-se] (Ogum-A).
[...] porque às vezes eu quero comprar as coisas, meu pai não tem
dinheiro, minha mãe também não tem dinheiro, aí eu recebendo meu
dinheirinho é pouquinho, mas para o que eu quero comprar, dá né [...]
quando eu quero comprar uma coisa, eu compro, não preciso pegar de
ninguém (Ogum-A).
Ter trabalho digno e prazeroso
Como no estudo de Madureira (2002) as famílias observadas também demonstram que
ter trabalho é essencial para o processo de viver humano, no entanto, o tipo de trabalho a ser
realizado, deve proporcionar-lhes prazer e valorização.
[...] trabalho, mas nada certo, eu trabalhava assim em gráfica, mas faliu,
fechou. Aí tinha que mexer em computador, eu parti para outra para
trabalhar, aí como era mais moderna queria que eu entrasse direto,
sabe? Eu pedi um teste prático [treinamento] e não consegui, aí não deu
mais, a idade também não ajudou, apesar da experiência hoje eles não
querem mais dar trabalho assim [a alguém de idade, só pela
experiência, mas sem o conhecimento teórico]. Hoje eu trabalho assim
de pedreiro (Ogum-B).
Para analisar essa narrativa, nos reportaremos ao começo da nossa análise sobre o
Quotidiano do Trabalho, onde apresentamos que para o adolescente negro, o trabalho que
ele realiza é inferiorizante e desqualificado tornando-se o motivo pelo qual ele precisaria
investir em si próprio, para conseguir um trabalho que considere satisfatório:
[...] deveria fazer uma coisa melhor, né? que eu tô estudando (OgumA).
103
Com a mesma linha de pensamento dos pais, o adolescente negro vê no estudo a única
possibilidade de romper com a barreira social.
Corroborando com Waldow (1995) quando diz que os pais ensinam aos filhos aquilo
que conseguiram aprender intra e intergeracionalmente na família, conjeturamos que por
conta da própria visão de mundo decorrente do que vivenciam no dia-a-dia e principalmente
pelo conhecimento advindo da educação dos pais, o adolescente negro também atribui o
déficit escolar às dificuldades encontradas para uma melhor inserção social.
Apesar de o negro ser considerado no imaginário popular como incompetente,
indolente e incapaz do ponto de vista intelectual, adequando-se somente ao trabalho braçal,
que não exige o uso do intelecto, as famílias do estudo mostram sua insatisfação com esse
tipo de trabalho e acreditam que a escolaridade possa lhes oferecer mobilidade social.
Apreendemos pelas narrativas dos sujeitos de pesquisa, que a inserção desvalorizada
no mundo do trabalho, os reporta a necessidade de qualificar-se e significar sua mão-de-obra,
pelo receio de perder sua condição de trabalhador, cuja conseqüência seria estar fora do
mercado de trabalho, perder a potência, a força os mantêm vivos aos olhos da sociedade e na
ótica familiar, como seres úteis.
Violência (racista) no quotidiano de trabalho
Segundo Carreteiro (1999) quando o trabalho é fruto de uma prática braçal e
repetitiva, o seu significado tanto para a sociedade como para aquele que o realiza, dá margem
a relações sociais de desrespeito, na qual o trabalhador, muitas vezes, é submetido a situações
de humilhação e desprezo.
O trabalho é um espaço social em que os indivíduos vivem e constrói seus
referenciais, procurando corresponder a demanda familiar e social de utilidade. Entretanto, o
trabalho realizado pelo adolescente negro, geralmente é o de baixa remuneração e valorização
social, o que favorece a relação marginal do adolescente com o mundo do trabalho
(ZALUAR,1994).
[...] meu primo trabalhava ali ó, ele tava ajudando a mãe dele, começou
a trabalhar que ela [a dona do estabelecimento] chamou ele e ele foi.
Depois aí sumiu alguma coisa dela, aí ela chamou ele de ladrão e ficou
104
dizendo que ele era negro e que ele não ia trabalhar mais para ela não
(Oxossi-D).
Quando questionado sobre o fato, o adolescente em questão nega a discriminação
sofrida e nos relata apenas a vivência de maus tratos:
[Você já foi vítima de discriminação?] Não. [E sua patroa lhe tratava de
forma diferente?] Só falava alto só, falava alto comigo e com os outros
[refere-se aos demais empregados]. [E com o freguês?] Com freguês ela
falava baixo, falava calma. Agora com a gente já era braba. [Ouvi dizer
que ela não gostava de negro? Você percebeu isso?] Não. Quem disse
foi minha mãe para mim. Eu dava um pau danado e ela [a dona do
estabelecimento em que trabalhava] nem ligava (Oxossi-E).
Podemos confirmar pelas narrativas acima que os adolescentes enfocados no estudo
concebem os maus-tratos como algo normal nas suas vidas, principalmente nas questões
relacionadas à discriminação, trata-se da naturalização da violência que já foi evidenciada por
muitos autores e que se apresenta também neste estudo (CAMARGO e BURALLI, 1988;
CAMARGO, ALVES e QUIRINO, 2005; VENTURINI, BAZON e ALVES, 2004).
É nesse sentido que se pode compreender a assertiva de Maciel (1997, p.33) quando
menciona que sendo o racismo uma condição subjetiva calcada nos limites do self, a sua
objetivação, se mostra inconsciente e.fora de controle, refletindo o quanto o racismo se
encontra cristalizado no pensar dos indivíduos. A ideologia do branqueamento, da democracia
racial e da inferioridade racial que preenchem o imaginário do próprio negro impedindo que
este perceba a prática discriminatória como tal, na verdade, se culpa pela inadequação.
Os acontecimentos relatados na subcategoria um Quotidiano de trabalho mostra a
profusão do viver dos adolescentes negros e suas famílias diante das dificuldades que surgem
em um quotidiano aparentemente fugaz, mas onde muitas coisas acontecem.
Percebemos pelas narrativas de famílias constituídas por negros, que a vida obriga o
adolescente a abdicar da vivência dos “prazeres” próprios da adolescência e ingressar no
mundo do trabalho, um mundo adulto que para ele se antecipa, por força do destino e em
nome de uma solidariedade mecânica que constitui princípio de sobrevivência familiar. Uma
família que se preocupa com o aqui e agora, que vive o presente da forma que dá para viver e
ao mesmo tempo carrega a esperança de dias melhores, sendo a escolaridade para eles, única
possibilidade de aquisição de trabalhos mais valorizados e melhor remunerados e, portanto de
inserção social mais prazerosa.
105
Nesta perspectiva, podemos utilizar o mesmo raciocínio de SILVA (2006) ao
expressar o imaginário construído sobre o sentido que o trabalho deveria ter para o
trabalhador e que está mais ou menos expresso no esquema: esforço = sacrifício =
recompensa, que no caso destas famílias poderíamos expressar: esforço = sacrifício=
subsistência, pois para alcançar a recompensa necessitam do estudo.
O que os faz subsistir, resistir, enfrentar, continuar vivendo? Maffesoli (1984, p.73)
nos responde com a seguinte afirmativa: “a vida humilde e seus trabalhos simples só podem
ser vividos na medida em que existe uma força mágica, poética que os alimenta sem cessar. A
poética da vida quotidiana, as criações minúsculas e imperceptíveis permitem, de fato, a
permanência da sociabilidade.”
b) Violência e laços de socialidade familiar no quotidiano do adolescente negro
Com a referida categoria mostramos como é que no dia-a-dia da família de indivíduos
negros se processam as relações familiares, o que significa para os membros dessa família o
estar-junto, como também de que maneira agem e reagem frente às situações harmoniosas
e/ou conflitantes que se apresentam no quotidiano.
Sabendo do papel social da família na construção identitária dos indivíduos, que
engloba hábitos, comportamentos e saberes culturais, torna-se fundamental compreender
como o indivíduo negro, tece junto aos seus membros, as estratégias de socialização e
sobrevivência frente à violência.
Ao penetrar no quotidiano destas famílias percebemos que existe uma cultura de
convivência violenta, onde o bater e o apanhar são vistos como algo natural, e desse modo, se
fazem presentes nas interações familiares e sociais.
Contata-se também, que as relações familiares de indivíduos negros são baseadas na
autoridade, onde se ensina e se aprende através de atos violentos, existindo pouco o nenhum
espaço para o diálogo. No entanto, nesta mesma família encontramos algumas formas de
solidariedade aos envolvidos em situação de violência familiar, que podem ser expressas tanto
pelo apoio da família à vítima quanto pela proteção materna ao agressor.
106
Bater e apanhar faz parte do quotidiano
A subcategoria Bater e apanhar faz parte do quotidiano emerge das falas da família
de indivíduos negros que mostram que a violência está naturalizada no seu quotidiano.
Conforme relata um dos adolescentes, o histórico de violência familiar vivido através das
agressões corporais dos pais é fato quotidiano, como eles têm “direito de bater”, são
obrigados a aceitá-la:
Ah, eu sempre apanhei. Se meu pai bater quando eu apronto
assim [...], se meu pai me bater eu nem ligo. Ele me bate, daqui
a pouco passa (Oxossi-D).
Meu pai só bate quando eu faço alguma coisa errada, quando eu
bato nos meus irmãos, bato em alguém na rua [...] quando eu
apronto (Oxossi- H).
E alguém lhe bate? Só meu pai e minha madrinha quando eu
apronto. Acho que está batendo para educar. Resolve? Resolve,
porque eu obedeço (Oxossi-H).
Se examinarmos a história, veremos que os indivíduos negros sempre estiveram
lidando com o sofrimento, “acostumaram-se” a ele. Na verdade, são sobreviventes de uma
situação de extermínio em que foram obrigados a suportar uma enorme carga de perversão e
crueldade. Hoje, de modo semelhante, o indivíduo negro continua vivendo no meio social e
familiar essa condição.
Os adolescentes negros aprendem, conforme relatado no estudo, a tolerar desde cedo à
violência, resistindo com “paciência” aos castigos corporais, às agressões, às hostilidades, aos
abusos familiares vivenciados quotidianamente que são aceitos, muitas vezes, como algo
normal, natural.
A tolerância à violência é transmitida pelas famílias dos indivíduos negros de geração
em geração e marca a sua existência, formação, modo de ser e sobreviver. Essa subjetividade
aparentemente minúscula e sem significado, induz uma convivência conflituosa dos
indivíduos com seus pares.
Os castigos corporais foram desde a época colonial, instrumentos coercitivos
utilizados, principalmente pelos jesuítas para o trato das crianças, a palmatória e o tronco
eram bastante utilizados para disciplinar aqueles que faltavam à escola. Na sociedade
107
burguesa, também não foi diferente, o processo de escolarização empregara o castigo, com a
finalidade de cultivar a obediência da criança ao adulto (ÁRIES, 1981).
Este tipo de educação em que os castigos corporais eram incentivados, como forma de
educar, foi alcançada pelos pais dos adolescentes do estudo, conforme narrativas abaixo:
[meu pai fala que no tempo dele] ele já ficava na tampa da
garrafa ajoelhado e no milho para poder saber as coisas, ser um
homem de bem [...] no tempo dele quando não acertava a
tabuada a professora lhe dava de palmatória (Ogum-A).
[no meu tempo] a educação era mais rígida, rígida como é que
diz, mas as pessoas se dedicavam mais aos estudos. Hoje tem
mais é brincadeira, [...] Antigamente a gente tomava bolo e tal
para aprender, hoje já não tem sabatina, no meu tempo tinha
sabatina, não podia perder de ano, se perdesse [...] acho hoje
tudo mudado, eu mesmo não entendo mais nada hoje, porque é
diferente. [...] (Ogum-B).
Assim, o “bater” para educar, disciplinar, corrigir o erro, foi historicamente assimilado
pelos indivíduos, se configurando como o padrão aceito pela sociedade pré-moderna para
mudar comportamentos considerados socialmente inadequados.
Entretanto, como podemos observar, nas famílias estudadas, “o bater” ainda é uma
característica marcante nas relações entre homens e mulheres, pais e filhos e entre os próprios
irmãos.
Homens batem nas mulheres
[..] quando chegava de noite, ele batia nela, batia, batia, batia mesmo,
chegava dava murro (Ogum-A).
Teve uma vez que ele veio para me bater, as meninas eram pequenas, a
irmã mais velha dele tava aqui em casa, [...] só vi ele vindo com um
tamborete para dar na minha cabeça, foi Deus do céu que me levantou.
(Ogum-F)
Pais batem nos filhos
Mas você falou que suas irmãs apanhavam. Sim. Elas apanhavam em
outras coisas porque eram respondonas, ele falava uma coisa e elas
ficavam respondendo como se fosse qualquer pessoa [...] aí não pode né
[..] pai e mãe, já sabe (Ogum-F).
108
[...] Ela disse que ele batia nela, quando ela chegava em casa querendo
quebrar as coisas, batia nela porque ele não era ela que estava
comprando nada para ela estar querendo destruir as coisas, o que ele
comprou foi muito caro, ele suou para comprar para ela chegar drogada
e querer destruir as coisas que ele lutou para ter (Ogum-A).
Mulheres batem nos filhos
[...] Ela não batia de verdade, que é o que dói. Ela puxava minha orelha
para ninguém ver [...] (Ogum-F).
Eu bato assim né, só quando enche meu saco. Eu não pego no meio da
rua [...] eu bato no banheiro, no quintal (Ogum-F).
[E sua mãe lhe batia?] Batia. Quando ela lhe batia? Quando eu
aprontava [risos]. [Aprontava o quê?] Bagunçava. [O que é bagunçar?]
Quando eu batia em minha irmã, meu primo, ela ia e me batia. [Você
batia neles? Por quê?] Porque eles me provocavam (Oxossi-E).
Irmãos batem nos irmãos
[...]eu queria que ela vestisse uma roupa no meu irmão e ela vestiu
outra, aí eu peguei dei um murro nela, ela me bateu e eu dei um bocado
de murro nela (Ogum-A).
[Você batia na irmã por quê?] Porque ela me provocava. [Como assim?]
Fazia coisas que eu não gosto, aí eu batia (Oxossi 2-E).
A literatura mostra que só recentemente a família assimilou legitimamente, o papel
social de protetora dos seus membros, em virtude das políticas públicas vigentes. Data do
século XX, a adesão familiar às idéias de que a educação deve ser dissociada de castigos e
punições físicas; ao invés disso, os pais, para educar seus filhos devem se comportar de modo
a fortalecer a autonomia e independência dos mesmos, utilizando o diálogo como estratégias
para a negociação dos conflitos (BIASOLI-ALVES, 2002).
Ressalta-se, entretanto, que essas mudanças de valores não foram assimiladas por
todas as camadas sociais, porque, sobretudo, numa hierarquia de preocupações, para a família
de classe social baixa, que é o caso da família negra, em primeiro lugar vem uma questão
109
crucial à sobrevivência, para depois as outras, por exemplo, a educação (DELFINO,
BIASOLI-ALVES, SAGIM, 2005).
Portanto, nas famílias estudadas, os pais, ainda utilizam “o bater” para educar os filhos
e lhes transmitir os valores que consideram importantes para a convivência familiar e social.
Contudo, é importante observar que embora “o bater” seja utilizado na relação entre
pais e filhos e entre irmãos; os filhos não batem nos pais, avós ou outros parentes
“importantes” do grupo familiar, demonstrando o respeito através da obediência: Ou seja, a
agressão física é aceita dentro de uma perspectiva hierárquica, onde o mais velho tem direito e
poder sobre os mais novos.
[Quais são as pessoas que você mais gosta?] Minha tia M, tia S, minha
avó, minha madrinha e meu pai. Eles que eu mais obedeço (Oxossi-D).
Na família de indivíduos negros as pessoas mais velhas, principalmente as mulheres
tem um valor social e econômico forte, são consideradas arrimos de família, e por isso, atuam
como verdadeiros chefes de família e têm a mesma autoridade dos pais para “bater” e decidir
sobre a educação de seus filhos.
A naturalização e uso freqüente do “bater” como estratégia para estabelecer limites,
respeito, obediência nas relações familiares das famílias estudadas, faz com que elas tenham
dificuldade em utilizar outro método para dirimir os conflitos, como o uso do diálogo para
compartilhar e solucionar problemas, como se pode perceber através das narrativas abaixo:
[Sua mãe lhe escuta, conversa com você, quando faz algo que ela
considera errado]. Me escuta [pausa] tem vezes, mas tem vezes que ela
não quer nem saber e me bate (Oxossi-E).
[Você conversa com a professora quando tem problema?] Eu converso
com ela [com a professora], às vezes as meninas conversam com ela
[refere-se novamente a professora], mas não converso muito não
(Oxossi-D).
[Ele lhe dá conselho?] Não que ele sai para trabalhar. Quem me dá
conselho é minha tia quem me fala as coisas para não ficar aprontando
pela rua, para não andar com pessoas estranhas, que meu pai não quer
(Oxossi-H).
Para eles, violência se enfrenta com violência; os atos violentos e a agressividade
traduzem o aprendizado intra e intergeracional de violência:
110
[..] Até meus tios assim, alguns se falar alguma coisa comigo, me bater
eu respondo. Se ele vier me bater eu falo me bata, pode me bater mais
[que] eu continuo te respondendo (Oxossi-D).
[A professora] Me trata bem, mas de vez em quando me trata mal, mas
quando ela me trata mal eu trato ela também mal. [Quando ela tá
tratando mal?] Quando ela fica me gritando. [Ela fica lhe gritando por
quê? Já aconteceu ela lhe gritar quando?] Foi um dia que eu levantei
para beber água e ela me gritou me mandando sentar, porque eu não
pedi a ela. Aí ela me gritou eu peguei abri a porta e sai da sala, bati a
porta bem forte e sai (Oxossi-D).
Os adolescentes do estudo, na medida em que somente tendo experimentado a
violência como forma de sociabilidade, aprende a ser violento, carreando a violência consigo
e utilizando-a em todas as esferas da sua vida relacional: na família, na escola, no trabalho, na
rua, no lazer e/ou brincadeira.
Violência no quotidiano familiar
A subcategoria Violência no quotidiano familiar nos mostra que a violência
masculina contra mulher, muitas vezes é considerada natural e legitimada pela sociedade
como tal, ampliando o domínio e horizontes de comando masculinos em todas as esferas do
território físico, geográfico e simbólico social, fazendo com que o domicílio se apresente
como lócus de produção e reprodução da violência, onde todos que o coabitam, mesmo sem
laços de parentesco, devem obediência ao Homem-Senhor-Todo-Poderoso (MARCON,
LIMA e PIRES, 2004, CAMARGO e BURALLI, 1998).
Pesquisa realizada na Universidade Federal do Ceará por Adeodato (2005) avaliando
"Qualidade de vida e depressão em mulheres vítimas de seus parceiros" mostra que a
violência contra a mulher é um problema social e de saúde pública, que independe de classe
social, raça/etnia, religião, idade e grau de escolaridade (CNS, 1997). Na atualidade, parece
ser irrelevante o status da mulher para localizá-la como vítima na discussão de violência
enquanto que o lócus principal não modificou, continuou a ser o familiar.
Esta pesquisa vem ratificar a de Amaral et al (2001) cujo resultado aponta que a
chance de a mulher ser agredida pelo pai de seus filhos, ex-marido, ou atual companheiro, é
muitas vezes maior do que a de sofrer alguma violência por estranhos. Como também de que
23% das mulheres no Brasil, estão sujeitas à violência doméstica; visto que em cada quatro
111
minutos, uma mulher é agredida, sendo em 85,5% dos casos, situação de violência física,
cujos agressores são seus próprios parceiros.
Blay (2005) em "Direitos Humanos e Homicídio de Mulheres" mostra que a maioria
das mulheres vítimas de violência são jovens de 22 a 30 anos, assim como seus agressores.
Segundo Adeodato (2005), o perfil encontrado da mulher agredida que registrou
queixa na Delegacia da Mulher do Ceará de setembro de 2001 a janeiro de 2002 é de jovem,
casada, católica, que tem filhos, pouco tempo de estudo e baixa renda familiar. Em relação ao
agressor constatou que além de praticar violência conjugal, este também é violento com
outras pessoas (58%), inclusive com os filhos (50%) e de que a agressão tem correlação direta
com o consumo de álcool, já que dos 58 homens que apresentaram comportamento agressivo
com outras pessoas 42 (72%) ingeriam álcool, e dos 50 que agrediam os filhos, 39 (78%)
também consumiam álcool.
Neste estudo encontramos resultado semelhante aos estudos de Amaral (2001), pois
concluímos que adolescentes com as mesmas características são vítimas de violência conjugal
e sexual de companheiros ou familiares próximos (adultos jovens).
Adeodato (2005) confirma que o alcoolismo do parceiro tem sido apontado pelas
vítimas como um dos principais fatores desencadeantes de violências no âmbito familiar. E
que as agressões ocorrem geralmente nos finais de semana e à noite, momentos em que o
agressor está dentro de casa, dando às vítimas poucas possibilidades de fuga.
[...] Só acontecia esse negócio de briga quando ele bebia. No dia-a-dia
de vocês como era? De segunda para sexta era bem, sábado e domingo
era o problema (Ogum-C).
[...] eu já convivi com o fato de meu cunhado chegar lá (em casa)
querendo brigar como o meu pai, cheio de cachaça, ele chegava
querendo bater em minha irmã, querendo bater na minha mãe, querendo
bater em meu pai, querendo bater em todo mundo [...] (Ogum- A).
[...] Às vezes a gente tava dormindo, ele chegava bêbado e dava com
cabo de vassoura acordando meu irmão e minha irmã batendo,
principalmente em minha irmã mais velha. Ele chegava tarde da noite
da rua batendo (Oxossi –G).
[...] Quando ele bebia alguém botava coisa na cabeça dele [...]
Inventava coisa. (Ogum- C).
[...] aí qualquer coisa ela batia, bebia, aí sempre que ele bebia, ele era
violento. Ele bebia e batia. (Oxossi-G).
112
Os autores ressaltam a violência conjugal, como extremamente importante no contexto
das violências, já que correspondeu segundo o autor a 51,2% do total das mulheres
violentadas estudadas, e que urge, portanto, uma intervenção política específica.
Segundo Diniz et al (1999) dos casos de violência doméstica contra mulher, 40 a 80%
dos espancamentos ocorrem nos domicílios, sendo o marido ou amante, na maioria dos casos,
o responsável pela agressão.
Em outro estudo Diniz et al (2007) em Salvador–Ba investigando “mulheres
queimadas pelos maridos ou companheiros”, encontrou que do total das mulheres vítimas de
violência que foram entrevistadas, 80% pertenciam à raça negra, 48,6%, cor preta e 31,4%,
cor parda, possuíam entre 21 e 30 anos de idade (42,8%) e os principais agressores foram os
maridos/companheiros, ex-maridos/ex-companheiros, pai/mãe, totalizando 71,2% dos casos e
caracterizando a violência como familiar.
Estes dados numéricos são fundamentais para compreender o risco de adoecimento e
morte de mulheres jovens negras em virtude da cultura de violência, cultuada na convivência
em família como muitas vezes sucede, onde geralmente “os homens humilham e agridem; as
mulheres têm medo, vergonha e se sentem culpadas. Os homens agem, as mulheres sentem”,
de modo que os homens, nessa ordem social androcêntrica estabelecem os limites da sua
atuação e da atuação da mulher, transformando o relacionamento e a convivência familiar em
uma escola onde se exercita quotidianamente a violência para solucionar conflitos
(GREGORI, 1993, p.129; SAFFIOTI e ALMEIDA, 2003; DINIZ et al, 2007).
A violência familiar se manifesta de diversas formas e em todas as classes sociais,
entretanto, mais evidenciadas em classes empobrecidas, como no caso de famílias formadas
de indivíduos negros, de baixa escolaridade e como pouca noção de direito, de dignidade, de
valores.
Estando as causas da violência ligadas a uma série de fatores distintos para cada
família, no presente estudo, percebe-se que a maioria dos indivíduos que sofreram ou sofrem
violência ou viveram situações semelhantes, reproduzem as violências e imperceptivelmente
culpabilizam o outro pela violência.
Ao investigar o que levara uma das adolescentes a ser vítima de violência,
encontramos como resposta na ótica do pai, de que a mãe deveria saber o motivo, tendo em
vista ser mulher e saber o papel da mulher na sociedade:
[...] Só a mãe deve saber, acho que o temperamento, alguma coisa que
ela dizia que ele podia não compreender e aí batia, coisas deles lá. Se
acontecia alguma coisa lá entre eles né, ela é adolescente né, ainda não
113
é equilibrada e aí dizia alguma coisa (que ele não gostava) que não ia
fazer ... aí ele batia nela (Ogum- B).
Para o pai-homem, a adolescente apanhava como punição a um comportamento
inadequado, justificados pela dificuldade de cumprir as tarefas domésticas e conjugais de
maneira satisfatória, fato que atribui à adolescência, acrescentando que a ocorrência do
mesmo não deixa de estar condicionado a falta de irresponsabilidade e pouco envolvimento
com os afazeres que lhes compete como esposa.
A adolescente vítima de violência também atribui à causa da violência o não
cumprimento das tarefas caseiras de obrigação feminina por definição, mas que praticamente
a adolescente do estudo não gostava de realizar, e, em se recusando tornava-se vítima das
agressões do marido.
[...] acho também a briga é mais ainda porque ele vinha, eu vinha para
casa de minha mãe (comer), eu não gostava de cozinhar. O problema
era esse, queria que você cozinhasse? Era. Eu ia para casa de minha
mãe almoçar e voltava para casa quando ele estava perto de chegar. Aí
quando ele chegava não tinha o que ele comer? Tinha, mas ele não
queria (Ogum- C).
Neste momento, percebemos o poder pátrio do marido perante a esposa, a idéia de
propriedade do homem sobre o comportamento da mulher conduz o pensar dos chefes de
família e lhes garante plenos poderes, para em se sentindo prejudicado com o matrimônio ou
nos aspectos que fazem parte dele, lançar mão dos castigos cabíveis para moralização,
manutenção do respeito e reforço da autoridade do homem-legítimo patriarca (CAMARGO e
BURALLI, 1998).
Outra situação em que o álcool aparece como fator desencadeante da violência é
quando o agressor embriagado utiliza desculpa pouco convincente ou justificativa que não
retratam a realidade para encobrir seu ato:
[...] quando ele bebia aí ele vinha e dizia assim: ô dona... eu peguei sua
filha e bati, porque ela me azunhou, falando com mainha para ela
acreditar na conversa dele (Ogum- A)
[...] todo mundo já sabe que quando ele bebe, sei lá, ele fica diferente
assim, se transforma. Aí ele faz um monte de coisas e no outro dia não
se lembra de nada e também quando você vai dizer a ele, ele diz que é
mentira, aí alguma coisa que ele se lembra pode desculpa às pessoas e
depois quando ele bebe ele faz a mesma coisa (Ogum-A).
114
Por isso, Saffioti e Almeida (2003); Saffioti (1999), apontam que, na maioria dos
casos de violência conjugal é a mulher quem sofre as conseqüências físicas e emocionais mais
graves, já que este tipo de violência envolve diferenças biológicas e simbólicas entre homem e
mulher que estão diluídas no microssocial e, por conseguinte, no quotidiano, sendo
contributivas para aflorar o comportamento violento masculino, na medida em que cultua as
desigualdades de gênero, alimenta a auto-suficiência e supremacia masculina e a
subalternidade e dependência feminina.
[...] quando chegava de noite, ele batia nela, batia, batia, batia mesmo,
chegava dava murro e o olho ficava roxão, quando ela ia lá em casa aí
mainha falava (Ogum-A).
[...] já no outro quartinho que eles foram morar, (eles brigaram) ele
quebrou a porta, quebrou os pratos, tudo dentro de casa, jogou ela na
parede, deu tanto murro nela, tanto tapa na cara dela, ela dizia: ai meu
filho, meu filho (estava grávida) [...] (Ogum-A).
[...] minha irmã estava com a boca inchadona e o olho também já tava
roxo de pancada que ele tinha dado, aqui assim (aponta o local) e aí
tava mais roxa ainda o lado inchado assim, tava inchadão, todo roxo de
pancada que ele dava, chute (Ogum-A).
A violência contra a mulher se manifesta de várias formas, muitas vezes, as agressões
são vivenciadas pela mulher através de sentimentos de revolta, raiva, frustração e medo, e na
maioria das vezes não são compartilhadas de imediato com a família.
Aí quando o olho dela estava roxo ela, aí ela não pisava lá em casa
porque ela tinha medo de contar, aí ele dizia a ela para não falar, ela
ficava com medo de falar para meu pai, porque sabia que meu pai ia lá
procurar briga [...](Ogum-A).
E mesmo com a presença ou ausência de marcas físicas, a violência influencia na
formação da personalidade e no futuro comportamento social da vítima, que muitas vezes
esconde a situação pelo sentimento de vergonha, utilizando as mais variadas desculpas para
evitar atritos ainda maiores na sua concepção.
[mesmo com a marca da pancada no rosto] ela dizia: não, não foi nada
[...] eu bati sei lá o quê aqui no olho (Ogum-C).
115
[...] quando o olho dela estava roxo, aí ela não pisava lá em casa porque
ela tinha medo de contar, aí ele dizia a ela para não falar, ela ficava com
medo de falar para meu pai, porque sabia que meu pai ia lá procurar
briga, porque meu pai não ia gostar da filha dele chegar com o olho
roxo (Ogum-A).
Quando a mulher apanha torna-se mero objeto nas mãos de seu agressor. A vítima
coisificada aprende a submeter-se à violência, e logo, incorpora como algo comum no seu
quotidiano.
[...] bateu, bateu, batia nela direto, batia, todo dia ela apanhava, todo dia
ela apanhava [...](Ogum- A).
Concordo com Gomes, Filho (2004) quando afirma que sob vários pretextos, mães
batem nos filhos, os maridos batem em suas esposas e filhos, simplesmente batem, como algo
já incorporado à sua rotina do mando e do poder, batem muitas vezes sem compreender a
razão pela qual batem, sem discernir sobre a motivação para o ato, batem por reflexo, e, o
homem, automaticamente movidos pela força física, usam e abusam da violência contra os
demais.
Do mesmo modo mulheres e homens agredidos conhecem a violência na infância,
como vítimas e/ou testemunhas de abusos sofridos por suas mães e irmãos, mantendo o
silêncio nos seus lares, com a cumplicidade de outros membros da família, em decorrência do
medo, da insegurança e da relação de dependência.
[...] Brigar não, a gente discute né! [...] Agora discutir todo mundo
discute, né? Qualquer casal discute. Pois é, a última [briga] que ele [o
marido] me fez, peguei o saco dele e “rastei” [refere-se a ter puxado os
órgãos genitais do companheiro], as meninas ficaram chorando [...], eu
fiquei chorando (Ogum-F).
[...] ele já tentou até uma vez me esfaquear, por causa de ciúme, porque
achava que eu estava com outra pessoa; meus filhos presenciaram, ele
ia até no ponto para me bater, eu saía sem roupa de casa e eles
presenciaram toda confusão quando o pai era vivo (Oxossi-G).
Embora haja mudanças em torno da família e diferentes modelos de organizações
familiares (famílias chefiadas por mulheres, família sem filhos, família composta pelo pai e
filhos, família recomposta), concordamos com Saffioti (1999, p.154) de que os privilégios ao
sexo masculino perduram, principalmente na relação conjugal, onde a mulher ainda é
considerada pelo homem como sua propriedade, objeto de posse de uma relação de poder
116
requerida pela condição de macho, ou seja, assim reitera-se que a sociedade de ordem
patriarcal não conseguiu ser destituída ao longo dos tempos, possuindo “leis elaboradas por
homens para serem obedecidas por mulheres”.
Nessa perspectiva, a transgressão é sempre feminina, ademais segundo Gregori (1993)
a imagem da mulher foi definida historicamente como um ser para o outro e não um ser com o
outro. Na sua condição de subserviência, a mulher objeto com modéstia e silêncio, devia
manter um comportamento que correspondesse a sua inferioridade, daí porque sempre tentar
agradar o marido e obedecer-lhe em tudo, cumprindo bem as suas tarefas de esposa.
Quando também questionamos a família sobre o comportamento do pai frente aos
filhos, encontramos novamente o álcool presente.
[...] Você acha que ele gosta dos filhos? Gosta nada. Se (ele gostasse)
dava de comer, cuidava (dos filhos). Ele só vem pegar eles (os filhos)
bêbado, e só quer saber da menina, do outro não quer ver. Quer ficar
com a menina mais a gente não deixa, aí se reta e começa o falatório na
rua, ele só fica com ela se for por perto ou então que alguém siga
(Ogum-A).
Ocorreu-nos estranhamento do pai ter preferências entre os filhos, e notamos que há
uma reação familiar no sentido de proteger os filhos do pai pelo medo do mesmo possa
agredi-los, principalmente por causa da bebida e história de violência.
Entre as conseqüências sociais do uso do álcool citadas pela OMS estão a embriaguez
em público, de caráter vexatório, os maus-tratos infantis, a violência juvenil e a conjugal, por
isso que os cuidados dispensados pela família às crianças e adolescentes no sentido de
protegê-los de constrangimentos decorrentes do álcool e da própria violência devem seguir o
protocolo legal e aconselhamentos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que
reforça a não exposição das crianças e adolescentes às situações de risco mesmo que estes
estejam com os pais, pois estes podem não ter condições de manter a integridade física,
psíquica e social da criança.
Pode–se dizer que neste estudo também ficou comprovado que os indivíduos que
vivenciam a violência durante anos de suas vidas na escola, no trabalho, na rua e
principalmente no seio de sua família, sendo rechaçados quando ao apresentar o chamado
comportamento anti-social, aprendem a viver com a punição como um instrumento bélico
necessário à socialização.
117
[...] você tinha que ler todo o ABC, recordar letra a letra para poder
saber. Era mais rígida! Como é que diz, mas as pessoas se dedicavam
mais aos estudos. Hoje tem mais é brincadeira [...](Ogum-B).
Elas apanhavam em outras coisas porque eram respondonas, ele falava
uma coisa e elas ficavam respondendo como se fosse qualquer pessoa
(...) aí não pode né (...) pai e mãe já sabe. [tinham duas irmãs, que eram
caixa de porrada. Por que não queriam obedecer ele, queriam passar por
cima dele](Ogum-F).
Os resultados desse estudo sobre violência também corroboram e reforçam os dados
que já foram identificados em vários estudos de que “existe uma tendência maior para aqueles
que na infância conviveram em ambientes familiares violentos, reproduzirem este modelo em
seus próprios lares” (MARCONI, LIMA, PIRES, 2004, CAMARGO e BURALLI, 1998).
Embora não esteja exposto de modo transparente, outro ponto relevante é que os
próprios agressores conseguem perceber que houve avanços na maneira de educar os filhos,
mudanças na sociedade no que concerne aos direitos das crianças e dos adolescentes à
proteção e amparo legal às violências, como também ação dos movimentos feministas lutando
por direitos iguais e amplos no tocante às políticas públicas, sociais e de assistência às
famílias que enfrentam a violência.
As duas manifestações de violência, apresentadas nos casos do estudo, que
envolveram vítimas tanto de violência física quanto da sexual, foram pessoas da família quem
denunciaram a violência junto com a vítima, acreditando que os órgãos públicos competentes
pudessem resolver o problema, protegendo a vítima, aconselhando o agressor e impondo
autoridade de polícia frente ao mesmo.
Todavia, apesar de recorrerem à denúncia creditando às Delegacias de Polícia e
instituições civis a resolução do caso, nem sempre as iniciativas judiciais conseguem por si só
solucionarem todas as questões relativas à violência intrafamiliar, requerendo pela
complexidade do problema, apoio de outras instituições na área da saúde, a citar medicina,
enfermagem, assistência social para trabalhar aspectos de mudança de comportamento e
reeducação de famílias violentas.
Percebemos também que a violência, muitas vezes continua ocorrendo, mesmo
separando-se a vítima do real agressor, que no estudo em questão são o ex-companheiro para
violência física e o tio para violência sexual. No entanto, o retorno aos lares, ou seja, quando
as vítimas voltam para casa dos pais, o ciclo da violência mantém-se ativo, pois o lócus
preferencial para reprodução da violência é o ambiente doméstico, portanto, o agressor,
118
continua fazendo prevalecer seu poder de macho – o pai, trazendo conseqüências nefastas
para a vítima. (FAGUNGES, 1999).
Nesse sentido, os castigos, as proibições, as prisões dentro dos lares aparecem como
situações de enfrentamento dos pais contra a violência sofrida pelas filhas na rua, mas ao
mesmo tempo se revelaram como condição à sua ocorrência:
[...] O que acha (...) que funciona para você melhorar? Não viajava e
não saía para canto nenhum, não ia para praia, da escola para casa, ficar
trancada dentro de casa (Oxossi-D).
[...] eu era muito prisioneira em casa, aí eu achava que se eu saísse de
casa eu ia ter mais liberdade, porque eu não tinha liberdade para sair,
conversar como a gente quer, porque meu pai fala, minha mãe fala,
querem que eu fique em casa o dia todo.[...] Me casei para eu ter
liberdade, só que eu acho que não é nada disso. [Já] Minha prima nunca
foi de namorar nem nada, nunca fez nada, nunca apanhou de namorado,
porque ela já ficou presa de pai e madrasta (Ogum-C).
[...] os filhos de hoje não tem ninguém preso [...] eu [sim] era muito
vigiada, meu pai não deixava eu sair [...] eu era teimosa, mas quando
ele dizia, com aquela pessoa não! Eu não ia. Se quisesse ir para algum
lugar pedia (Ogum-F).
[...] Porque ele não gostava que a gente saísse, porque ele tinha ciúmes
da gente, não deixava conversar com ninguém, ciúme de questão de pai
mesmo, não deixar solta [...] Era aquela questão de não querer que a
gente tivesse amizade, mau influência, entendeu?! Eu obedecia. Ele
dizia para não se misturar com gente que não presta (Oxossi-G).
A impotência diante da situação de violência vivenciada no seu dia-a-dia,
principalmente considerando o estigma da rua como lócus da marginalização e vice-versa, a
educação de meninos e meninas tem como foco retê-los nos lares, a fim de mantê-los dóceis,
compreensivos, obedientes, impedindo que exerçam sua liberdade de opção e decisão.
Sob o nosso ponto de vista os lares não devem aprisionar, nem contribuir para uma
visão deturpada entre liberdade e libertinagem, pois o regime carcerário dos lares somente
colabora para a formação de adultos violentos.
Observamos ainda, que o relacionamento conjugal conflitante motiva a mulher em
busca de uma saída da vivência de violência, porém, qualquer palavra da mulher que indique
uma ameaça de abandono do lar leva o companheiro a humilhá-la e coisificá-la,
transformando-a em objeto de seu domínio, prometendo-lhe retorno à casa dos pais:
119
[...] aí teve um dia que ela disse que ia embora (para casa) ele (o
marido) pegou as coisas dela levou lá para casa (para casa dos pais) e
falou olha sua filha aí ó, como se ela fosse uma mala [..].esse negócio
de você pegar a menina usar e depois você bota lá em casa, isso daí eu
não vou aceitar não (Ogum-A).
Sem ter condições financeiras para auto-sustentação, a adolescente vítima de violência
é obrigada a seguir seu caminho de volta ao lar, mesmo sabendo que não estará protegida da
violência; pelo contrário os desentendimentos familiares podem aumentar, muitas vezes em
decorrência da perda da autoridade dos pais perante o agressor, que denigre sua imagem
perante a família e vias públicas, culminando na reprodução da violência.
As expressões de violência, leves ou intensas vão sendo suportadas pela vítima e sua
família até o limite da tomada de consciência dos prejuízos que as manifestações de violência
trazem consigo, como a indignação, a humilhação que a depender das características da
agressão são fatores que conduzem uma tomada de decisão em favor da denúncia
(VINCENTIN, 2004).
A motivação e a coragem para denunciar é algo que varia muito, de situação para
situação e, de pessoa para pessoa, no entanto, esta deve causar um constrangimento tal que a
vítima, familiares próximos ou até a vizinhança resolve delatar, como no caso abaixo, que a
própria mãe, não resistindo aos maus tratos que os filhos sofriam do pai resolve procurar a
justiça para impedir a situação de violência:
[...] teve uma vez que por causa disso [das surras que o pai dava nos
seus filhos] minha mãe foi para o juizado, quer dizer assim...deu queixa
dele (Oxossi-G).
.
Já no caso da adolescente vítima de violência conjugal a exposição da situação de
violência em praça pública foi considerado irremediável, pois o problema da violência que
tinha sua face oculta começou a aparecer e tomar uma dimensão inexplorável para ela própria;
já que agora amigos, vizinhos entre outros tomavam conhecimento de sua situação, o que para
ela ensejava uma ação de denúncia.
[em praça pública de bairro, numa roda de amigos] fui pegar (minha
filha) da mão da menina (que ele tinha dado para segurar), aí ele achou
ruim, que eu tava desobedecendo e ele, aí, ele começou a me bater na
frente de todo mundo. Aí eu achei desaforo, não porque quando agente
brigava assim, agente brigava, ele vinha para casa e me batia escondido
[...] fui na Delegacia e dei queixa (Ogum-C).
120
tava na pracinha, a pracinha é um lugar aqui, é lá [aponta o local
próximo ao domicílio], é bem pertinho. Ele brigou com ela e bateu,
bateu [...], aí ela deu queixa dele e não quis mais [ele] (Ogum-A)
Percebe-se que o motivo da denúncia pode ou não estar diretamente ligado à agressão
em si, muitas vezes, o motivo real encontra-se encoberto pela situação de humilhação e
opressão vivenciada. Algo que era considerado como natural no domicílio e no seio familiar,
passa a ter outro sentido e ganhar força a partir do momento do incidente e por isso já
considerada uma transgressão precisa ser desvelada. Sem dúvida, estando escancarada diante
das pessoas, a violência não pode mais ser negada repercutindo em baixa-estima, reclusão e
exclusão da vítima.
Observamos que no segundo caso, nem mesmo a situação de aborto e seqüelas físicas
vivenciadas pela adolescente durante os episódios de agressão, que culminaram no
atendimento em serviços de saúde, fez com que a adolescente efetivasse realmente a denúncia
contra o agressor, somente ameaçava:
[...] ela foi perdeu o bebê porque ele deu uma pezada na barriga dela e
ela começou a sangrar, aí ela estava toda machucada já. Foi para o
hospital fazer aquele negócio [aborto] para tirar o bebê, porque já tava
grande, (...) ela falou a médica e ela tirou lá um monte de sangue que
estava descendo pela perna dela, estava descendo aí ela tirou tudo que
ficou dentro da barriga e foi para lá para casa. [...] ele um dia ameaçou
ela, mas não sei o que foi que ele falou que ela tomou raiva da cara
dele, não quis mais ver.[...] ele ameaçou ela, não sei o que ele disse que
ela foi e ficou com ele de novo.[deu roupa, deu um monte de coisas,
ficou agradando ela, aí de pois [ele] começou de novo a bater nela,
bater, bater, bater, ela já tava grávida, ele batia [...] e depois deu outro
murro na boca, a boca ficou inchadona e roxa, de novo, até o dente dela
parece que tinha partido aqui assim [mostra o local], a gengiva aqui
ferida, já tava sentindo dor na parte de baixo. E isso aqui assim [referese ao queixo e mostra ao entrevistador] foi de tanta pancada [...] chega
quando ela abre a boca dá um estralo, como se tivesse quebrado esse
negócio aqui [aponta mandíbula], porque quando ela abre faz um
estralo tão grande [...] aí ela disse que ia prestar queixa (Ogum-A).
Apesar da violência vivenciada pela adolescente ter sido relatada ao profissional de
saúde, não parece que tenha realizado nenhum registro, atitude interventiva no caso da
violência, nem encaminhamentos da vítima à Delegacia de Polícia, solucionando básica e
unicamente a situação do aborto.
121
O mesmo acontece na situação abaixo em que ocorreu a seqüela corpórea decorrente
de maus-tratos sofridos na adolescência pelo pai, que encerrou na quase perda de uma
audição:
[...] meu pai batia mesmo, era de murro, de tapa, é tanto que hoje eu
nem escuto direito, escuto bem pouco de um ouvido, devido um tapa
que eu tomei, ele batia em todo canto, no ouvido, aqui assim [no
pescoço] (Oxosssi-G).
A questão da violência ainda tem sido tratada na maioria dos casos de forma
inconclusiva, não se reconhecendo a magnitude real do problema, torna-se fundamental ao
profissional de saúde conhecer e compreender o ECA quando no atendimento de crianças e
adolescentes, conforme Lei Federal
8.069/1990 de julho de 1996, que discute sobre a
prioridade absoluta no atendimento de crianças e adolescentes com doenças e/ou agravos,
constituindo os postos de saúde, centros de saúde, hospitais e estratégias de saúde da família,
em espaços privilegiados para o atendimento em saúde e construção da cidadania a partir da
infância e adolescência, haja vista a gravidade do caso de violência e possibilidades de
recidivas (BRASIL, 1990)
Maffesoli (1987) trata a violência como necessária à sobrevivência e manutenção dos
laços se sociabilidade, considerando que ela não pode ser eliminada, uma vez que sempre irão
existir fortes, ricos e poderosos, em oposição essencialmente aos fracos, pobres e aqueles que
não detém o poder, de modo que jamais poderíamos viver sem exploração de qualquer tipo ou
natureza, ou seja, de forma realmente civilizada.
No entanto, dada sua potencialidade, as desigualdades vultuosas, as assimetrias que
carregam volumosas diferenças é que impedem que a violência exista em graus viáveis de
socialização e de acordo com o que necessita para o homem bem viver em sociedade.
Como diz o autor, os primitivos se davam, sabiamente, por mecanismos de
ritualização, que poderíamos compreender como uma atitude de astuta contemplação tribal
para diluição dos conflitos, como também conseguirem realizar pedidos e fortalecer os laços
entre os seres humanos. A função simbólica dos ritos humanos é religar os indivíduos, através
dos atos rituais, retomando assim, a ordem social.
No presente estudo, pudemos perceber que é possível estruturar constantemente a
vida em sociedade, principalmente se utilizarmos como estratégias o estar-junto. O trecho
abaixo retrata uma situação em que mudar de brincadeira foi uma estratégia para nãoviolência e estar-junto, mesmo o irmão sendo um tanto quanto forte, poderoso, ele consegue
122
diminuir as barreiras, os entraves, no sentido de buscar religar-se, e a forma encontrada para
evitar o conflito foi criar um novo ritual de brincadeira:
Brinco com ela [...]. Antigamente eu brigava mais eu parei.[brigava
porque ela me provocava] fazia um bocado de coisa, se eu tivesse
brincando em um lugar ela ia lá e terminava a brincadeira e começava a
bagunçar. [E você aí batia nela?]. È . O que mudou que não bate mais
nela? Eu já brinco com ela agora em paz. [O que mudou] A minha
brincadeira.[ Mudou o que na brincadeira] Brinco de outra brincadeira,
de bicicleta, de bola, ela brinca comigo também no lan house [casa de
informática – jogos]. [E qual era a brincadeira que dava briga?] De
bola, de boneco. Ela ia e bagunçava. Eu começava a briga, mas ela
sempre terminava ganhando. [Porque ela ganhava?] Dava pena dela,
toda vez eu acabava deixando ela me bater, eu ainda tenho pena dela.
[Porque tem pena dela?] Porque ela é pequena e não agüenta um murro
meu (Oxossi-E).
Pelas falas das famílias estudadas observamos que as relações familiares da família de
indivíduos negros apresentam não raras vezes a violência como mola propulsora de uma
cultura de violência.
O bater, o xingar, os abusos que permeiam as relações familiares como forma de
dirimir conflitos, de corrigir atos considerados inadequados, instrumento de educação, de
manifestação de cuidado e até de amor são uma forma de coibir a si próprio e ao outro da dor
e do sofrimento por ser negro.
O exemplo acima mostra que quando realmente se quer, seja indivíduo, família,
autoridades, profissionais de saúde, políticas públicas podem juntos agir mutuamente contra o
racismo, pois ele é um mal que corrói a vida da população negra e desalinha os passos
daqueles que vêm de longe em busca de equidade.
Apoio e proteção familiar
A subcategoria apoio e proteção familiar demonstra que nas situações consideradas
realmente violentas pelas famílias de indivíduos negros, como é o caso de um abuso sexual
cometido por um familiar, elas prestam apoio e solidariedade às vítimas.
123
[Quando sua família soube que seu tio fez isso, como sua família
reagiu?] Mal, todo mundo ficou contra ele. [Seu pai também?] Foi.
Ninguém mais fala com ele, ninguém mais quer conta, todo mundo
isolou ele (Oxossi-D).
E a mãe, na maioria das vezes, é quem protege o agressor:
[...] o policial mandou a intimação para ele. Aí ele não foi. A mãe disse
que ele foi embora, que ele foi para um interior, mais ninguém sabia
onde ele estava, mas ele não tinha ido para interior nenhum (Oxossi-A).
[...] depois que eu denunciei, ele fugiu e não voltou mais, minha tia
disse que minha avó sabe onde ele tá, que ele foi para o interior
(Oxossi-D).
A literatura mostra que a mãe, muitas vezes, é permissiva ao comportamento violento
do agressor, porque mesmo cientes da situação do abuso, por se sentirem ameaçadas e
receosas do desmoronamento familiar, acabam protegendo-os. A mãe tem medo de perder o
provedor da família no caso da vítima ser a própria filha e/ou tem vergonha da repercussão do
fato, portanto, acabam tornando a violência intrafamiliar velada, contribuindo para o
continuum da violência (PADOVANI e WILLIANS, 2002 apud SINCLAIR; BRASIL, 2004;
RIBEIRO e BORGES, 2005).
Portanto, observamos que a família dos indivíduos negros, enquanto instituição
formadora de sua identidade social, étnica e cultural não está conseguindo cumprir os papéis
de integração e valorização de seus membros, o de educar o indivíduo negro através do
diálogo e promover o resgate da autonomia, cumplicidade e respeito dos membros da unidade
familiar.
O quotidiano das famílias estudadas mostra o quão complexo é o processo educativo
para construção de imagens ativas e positivas; entendemos que isso se aos obstáculos e
descontinuidades que passam durante o processo de viver quotidiano, que as fazem utilizar a
violência como uma forma de subsistir.
c) O que está por trás da imagem? mundo imaginal do adolescente e sua família sobre
ser negro.
Concordando com Silva (2006) de que “todo imaginário é real. Todo real é
imaginário. O homem só existe na realidade imaginal”, mostramos nesta categoria que o
124
imaginário é tão importante quanto à imagem na vida dos indivíduos, principalmente na vida
dos adolescentes negros e sua família, nosso recorte específico.
O imaginário nos reporta para um mundo concreto, em que imagem e imaginário
podem coexistir, mas ao mesmo tempo um é oposição do outro, na medida em que, pela
imaginação, representação desse real, se pode distorcê-lo, idealizando-o, formatando-o
simbolicamente (SILVA, 2006).
O mesmo autor (p.2) conceitua o imaginário como:
[...] uma introjeção do real, a aceitação inconsciente, ou quase, de um modo de
ser partilhado com outros, com um antes, um durante e um depois (no qual se
pode interferir em maior ou menor grau). O imaginário é uma língua. O
indivíduo entra nele pela compreensão e aceitação das suas regras; participa
dele pelos atos de fala imaginal (vivências) e altera-o por ser também um
agente imaginal (ator social) em situação.
Esse conceito de imaginário presta-se no presente estudo à compreensão de como os
adolescentes negros e sua família contaminados pela vivência histórico-quotidiana da
violência racista se percebem.
Corroborando com Maffessoli (1995) que em uma sociedade onde predomina o estilo
estético, os indivíduos se encarregam de contemplar a forma e faz da imagem uma diferença.
Uma imagem não só feita de traços, como a cor da pele e o biótipo enfim, que são certamente
os operadores básicos da diferença, mas também de elementos de sociabilidade, como o modo
de viver e estar no mundo, expressos no jeito de se vestir, falar, agir e lidar com o outro.
Podemos afirmar que o imaginário social construído sobre o negro e que se constitui
ainda na contemporaneidade elemento para descontinuidades na vida deste, a citar crise
identitária e cultural, continua bastante impregnado pelos princípios racistas derivados da
época da escravidão e de uma imagem inferiorizante e desprezível, recurso para exploração e
dominação dos mesmos na sociedade escravocrata que ainda permanece, porém de uma forma
velada.
Negação étnica
A subcategoria o Negação étnica revela ainda que de modo superficial, os sujeitos
desta pesquisa consideram que negros e brancos são iguais, visão que pode encontrar
125
justificativa em um imaginário que não vê espaço para práticas racistas, uma vez que a
igualdade racial foi conferida com a abolição da escravatura e, portanto, o racismo é coisa do
passado.
[O que é discriminação para você?].Chamar o outro de negro,
né? [Ser negro é ruim?] Não. É tudo a mesma coisa, negro e
branco é tudo a mesma coisa (Oxossi-E).
O mito da democracia racial, do não-racismo impede que os negros reconheçam o
racismo e suas repercussões. O desejo de viver numa sociedade de iguais é maior que o de
reavivar um passado que buscam esquecer.
Este mito pertencente ao discurso de Freyre, Mário Andrade e Pierson difundiu-se no
imaginário social propagando a idéia de que a cor em uma sociedade multirracial de classes
não tem nenhuma importância, ainda mais porque a miscigenação já tinha “dado ao negro o
que queria”, reais chances de mobilidade e integração social (PINHO e SANSONE, 2008).
O imaginário construído com o mito da democracia racial reforça que o princípio
classificatório da cor “não fecha as portas para ninguém, não pesa quase nada nas
oportunidades sociais”. Esta ideologia arrasta o discurso de que a sociedade de classes é uma
sociedade onde a pessoa independente da cor pode transitar nas diversas camadas sociais.
Neste projeto de sociedade aberta se cristaliza o anti-racismo e é com este imaginário sedutor
que os negros são motivados a pensar que se todos são iguais, todos têm as mesmas
oportunidades de ascensão, chegar ao topo da pirâmide social é só uma questão de esforço
(PINHO e SANSONE, 2008).
Branqueamento
Outra subcategoria identificada que explica a negação do pertencimento do negro à
raça foi a do Branqueamento, na qual concebemos a partir das narrativas do adolescente
negro e sua família que existe uma forte tendência da população negra em negar seu
pertencimento étnico e ao mesmo tempo primar pelo ideal da brancura.
Recorremos a Guimarães (1999); Pinho e Sansone (2008) para entender o significado
do branqueamento na população negra e o que está por trás da fuga do negro à questão da
cor/raça. Os autores esclarecem que sendo o homem um ser social, somente faz sentido
126
entendermos como processa seu imaginário sob a influência das características de cor/raça, a
partir das construções ideológicas e discursivas vividas no quotidiano e/ou no seu passado.
Podemos apontar como resíduos negativos do processo histórico excludente vivido
pelo negro e que até hoje permanecem no imaginário social, a tradição de que o corpo negro
agrega atributos inferiores, como por exemplo, lábios grossos, nariz esbugalhado, cabelos
crespos e cor preta. De modo que a aceitação da própria cor/raça pode ser muito difícil para os
negros como podemos identificar através das seguintes falas, correspondentes à pergunta Qual
a sua cor?:
Sou moreno [minha namorada] é gordinha, tem cabelo grande, é
morena, da minha cor [é preto] (Oxossi 2-E).
[Qual a cor do seu ex-marido?] Moreno claro. [...] ele botou
loiro no cabelo (Ogum-C).
Sou morena escura [...] eu acho que sou morena. Eu queria ser
morena (Oxossi-D).
Sou morena [...] Eu queria ter cabelos longos, que eu acho
bonito, assim batendo nas costas (Oxossi-H).
Para não fugir ao ideal social, um ideal que está prescrito em uma determinada forma,
a forma branca, o negro se autodenomina moreno, escamoteando a verdadeira identidade
étnica, que na sua concepção é inferior. Logo, ao imaginar, que se não estiver na forma
preconizada pode não ser admirado ou aceito socialmente, atraindo para si o desejo de agregar
a forma branca ao seu corpo.
Estando a “aparência física” atrelada ao modelo de beleza branca, o adolescente
direciona todas as suas forças para se aproximar da forma ideal, seja através do alisamento
dos cabelos, clareamento dos fios ou pelo uso de outras estratégias que não objetivam
simplesmente a mudança do visual, mas a adequação do corpo à padronização requerida
socialmente.
Resultado semelhante foi encontrado no estudo de Domingues (2002) onde os negros
também desejavam eliminar seus traços negróides a fim de se assemelhar ao branco - o fetiche
do branco, da brancura, preenchia o imaginário do negro, que manifestava o desejo de possuir
nariz afilado, cabelos lisos e longos, lábios finos e cútis clara, aspectos fenótipos que
representavam para eles, uma realização primária de seu sonho mais profundo que seria
penetrar totalmente no mundo e poderes do mundo estético branco.
Assim, sendo o ideal de beleza social a forma branca, os indivíduos negros estudados
manifestaram também inconscientemente o desejo de buscar no outro, um outro diferente
127
(branco), a forma social que lhe distancia do ser negro e ao mesmo tempo permite sua “autoafirmação” e “inclusão” social.
O constante conflito vivido pelos adolescentes negros em relação a sua imagem e ao
imaginário social no qual estão imersos, obrigam-nos muitas vezes a negar sua identidade
negra como autodefesa psicológica e social à situação de violência (COSTA, 1983;
NASCIMENTO e NASCIMENTO, 2000).
Esconder seu verdadeiro ”eu” pode ser uma condição para serem aceitos, já que a
branquitude é o espelho que a sociedade lhes coloca para se identificar. Foi o ideal de
brancura “que, a ferro e fogo, cravou-se na consciência negra como sinônimo de pureza
artística, nobreza estética, majestade moral, sabedoria científica, etc. O belo, o bom, o justo e
o verdadeiro são brancos” (SOUSA, 1983, prefácio).
E assim segue “desconectado de sua identidade étnica” negando a si próprio e ao
outro:
[...] Feição não diz tudo [mas] preto eu não gosto. Eu não sou
racista, mas preto eu não gosto. Gosto de qualquer pessoa preta,
agora só que para namorar, aí eu não gosto não (Ogum-C).
O branqueamento foi um mecanismo de controle social utilizado logo após a abolição
da escravatura, pela classe dominante, que teve o objetivo de desconstruir a identidade e
cultura da população negra, através de um discurso de “democracia racial” que incentivava a
aglutinação das culturas negra e branca para criação do mestiço, um falso branco, ou o
denominado “branco social” (MACIEL, 1997; CARONE, 2002; SANSONE e PINHO, 2008).
Foi através do ideal de branqueamento, vertente ideológica poderosa, que a elite
conseguiu criar um imaginário social negro de submissão e inferioridade intencionado em
desmobilizar e até mesmo extinguir a população negra. Obedecendo às regras ideológicas do
branqueamento, quanto mais o indivíduo negro se distanciasse da sua pigmentação preta da
pele ou enfim quanto mais se aproximasse da pigmentação branca, “quase-branca”, era
classificado como um indivíduo superior na cadeia dos mestiços e “equivalente” ao branco.
Este “semibranco’ ou sub-branco era tratado de forma diferenciada do negro retinto”, uma vez
que este último por não conseguir atender aos requisitos imprescindíveis da raça ariana e da
urgente necessidade de limpeza de sangue, sucumbia ao menor ou nenhum potencial de
ascensão e mobilidade social (DOMINGUES, 2002, p.569).
O mestiço, branqueado social, na tentativa de adotar integralmente o estilo de vida do
branco, modifica sua maneira de estar e ver o mundo, aliás, faz a leitura de si e do mundo pela
128
ótica do branco, por isso recusa tanto sua herança quanto sua identidade negra, como também,
evita o convívio social com o negro retinto, seres socialmente inferiores (BENTO, 2002;
DOMINGUES, 2002).
Domingues (2002) comenta que a busca por branqueamento era tão necessária, que a
família também se responsabilizava pelo controle das relações amorosas entre seus membros,
com intuito de impedir possíveis casamentos com negros. Assim, os pais regidos pelos
mandamentos do branqueamento, realizavam uma “triagem” dos namorados e futuros
cônjuges de filhos e filhas, para garantir o branqueamento familiar e conseqüentemente o
alcance de mobilidade social, que somente poderia ser consentida socialmente, à custa de uma
nova identidade, a mestiça.
O corpo mestiço enquanto objeto social adquire para o adolescente negro e sua família
dimensão significativa no desenvolvimento do seu autoconceito, auto-estima e auto-imagem.
Ou seja, ao incorporarem o branqueamento na sua imagem/imaginário produzem uma
distorção do seu self e projeção identitária se colocando também, a serviço da prática racista
(CHARON, 1989; OUTEIRAL, 1994; OSÓRIO 1992; DOMINGUES, 2002).
[O que acha dessa situação de discriminação?] Acho que ela
tinha que ter uma punição [...] ser presa, porque ela é morena e
fica fazendo isso, falando dele, chamando ele de preto (OxossiD).
De onde concluímos que a ideologia do branqueamento foi capaz de transformar o
negro, vítima do racismo, em seu reprodutor, fato que Chauí (1985, p.28) explica sob a
perspectiva da violência. Quando a autora define a violência como uma “ação que trata um ser
humano, não como sujeito, mas como coisa”, inclui o racismo como um tipo de violência, já
que o discriminado na prática racista é visto e concebido como “coisa” pelo agressor, e como
tal, inferior, insignificante e que portanto, pode ser explorado, maltratado, violentado. O
indivíduo branqueado, já não mais se considera negro (inferior) e utiliza, assim como um
branco (superior), a prática racista nas suas relações.
Percebe-se que ao falar da discriminação, o adolescente negro recomenda a punição do
agressor que também é negro, como repulsa ao comportamento que do seu ponto de vista,
jamais poderia ser apresentado por este grupo étnico. No entanto, entendemos, como TilmasOstyn (2001), que diante da violência (racista) vítimas e agressores (negros) alternam
posições; quem foi vítima da ação discriminatória no passado pode se tornar agressor no
futuro, reproduzindo a violência sofrida.
129
Lopes (2005) nos lembra que a população negra está associada às piores condições de
existência humana, em decorrência da violência que sofreram e sofrem no quotidiano de suas
vidas, no entanto, esclarece que são poucas as pesquisas que trazem no seu escopo, a relação
entre o racismo e saúde da população negra, que abarca as questões de violência que atinge
prioritariamente esse grupo étnico, como a elevada mortalidade de negros por homicídios e
pela presença majoritária dos mesmos nas penitenciárias.
Através da narrativa de um dos adolescentes da pesquisa podemos perceber o quanto a
violência racista presente no quotidiano do negro constitui-se uma ameaça à própria vida e à
vida social:
[...] ele ficou triste, ficou cabisbaixo, porque ele disse que não
fez nada disso [foi sido acusado pela patroa no ambiente de
trabalho de ladrão, quando “algo” da mercearia em que
trabalhava desapareceu, em seguida a patroa utilizou da
prerrogativa em que fazia claramente a associação entre preto e
ladrão, logo depois do incidente o demitiu]. Depois [do
ocorrido] ele saiu para rua com um pau e disse que ia pegar ela e
quebrar toda no pau [risos da entrevistada adolescente que
conta-nos o fato]. [Ele disse que ia quebrar ela toda no pau foi?]
Ele ficou muito irritado (Oxossi-D).
Entendemos ser o racismo ilustrado nessa narrativa, um tipo de violência que torna o
negro vulnerável, ou seja, exposto às várias situações de violência; uma vez que tal situação
de humilhação e constrangimento própria das práticas racistas, o reporta a uma condição de
inferioridade que o liga a uma imagem/imaginário negativo que foi construído socialmente e
que ainda é cultivado nas cenas quotidianas.
Diante da situação de violência racista vivenciada pelo adolescente negro da pesquisa,
o mesmo reage com comportamentos violentos, pois para ele violência se enfrenta com
violência, única forma que aprendeu para lidar com os conflitos.
Segundo Chauí (1985, p.28) a violência emerge quando há “conversão de uma
diferença e de assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação,
de exploração e de opressão, ou seja, a conversão dos diferentes em desiguais e a
desigualdade na relação entre superior e inferior”. Concordamos com a autora e
acrescentamos que a assimetria das relações está baseada no medo, o “superior” consegue
dominar o “inferior” por causa do medo.
Percebemos que a violência na população negra parece estar condicionada no caso do
homem agressor, ao medo de perder o que lhe resta de potência – sua masculinidade, medo de
não ser reconhecido, amado e desejado; já a vítima, que são geralmente mulheres, permite a
130
agressão porque tem medo das repercussões do enfrentamento da situação, pois não tem a
mesma potência física masculina e não possuem prestígio social, então, elas têm medo de
serem desprezadas, rejeitadas, não aceitas e reintegradas socialmente.
Assim, os atos violentos eclodem toda vez que o outro representa uma ameaça ou
possibilidade de ruptura da potência de um eu que está fragilizado, desestruturado, seja por
conta da negação da identidade étnica, da baixa-estima ou qualquer outra situação que lhe
confira medo, medo de perder o seu “pequeno” poder, como também ocorre ao encontrar solo
fértil para sua envergadura como um eu impotente, ou incapaz de buscar a potência necessária
para enfrentar a situação de violência.
Racismo/Sexismo
Nessa perspectiva de Racismo/Sexismo é elevado o preço de ser “moreno”,
principalmente porque a negação étnica corresponde a um discurso tanto do imaginário
quanto do real, sendo esta realidade proveniente de um contexto de relações que capacita o ser
“moreno” para um determinado comportamento.
Nos estudos de SILVA (1987), os negros do Limoeiro, assim como estes adolescentes
negros tiveram dificuldade em aceitar sua identidade étnica, pois não se auto-identificaram de
imediato como negros, Com o linguajar próprio se diziam ”queimados”, mas, somente
consentiam ser tratados de “morenos”. Outrossim, a escolha da palavra moreno, ao invés de
preto ou pardo, traduzia a própria ambigüidade da palavra ou por sua irrefletida parcialidade,
o que sem dúvida, a denominação “morena” não conseguia esconder é a visão preconceituosa
que seu uso encerra, causando constrangimento tanto àquele que diz, como aquele que ouve.
Pode–se constatar que o emprego do “moreno” no discurso do negro, revela certo
estranhamento ou até reconhecimento de algo errado em o sê-lo.
O termo negro significa: “que recebe luz e não a reflete; preto. Escuro. Sombrio.
Denegrido, requeimado do tempo, do sol. Lutuoso, fúnebre. Que causa sombra; que traz
escuridão. Tenebroso. Tempestuoso. Indivíduo de raça negra; preto. Escravo. Homem que
trabalha muito. Escuridão, trevas (...)” ( BORBA, 1988, p.715).
Falamos então de um problema que não está somente na diferença em si, mas na
ênfase que lhe é dada, na acentuação da diferença que tem por objetivo inferiorizar e
sentenciar tudo e todo aquele que for destoante da forma branca.
131
De certo é impossível imaginar o quanto a idéia de branqueamento refletido na
expressão “morena” poderia tingir sua pele ou a sua psiquê, reduzindo-o enormemente
enquanto pessoa, pela simples possibilidade de fazer eclodir em suas mentes uma carga
racista que encesta todo o entendimento da hesitação ou antagonismo racial declarado por
Nascimento e Nascimento (2000, p. 20), como “crenças e atos que negam a igualdade
fundamental de todos os seres humanos em função de diferenças percebidas de raça, cor ou
aparência”. O negro se sente “diferente” e é visto como diferente, motivo pelo qual
escamoteia sua cor, tendo em vista que socialmente esta diferença, está essencialmente, na sua
cor, conforme fala abaixo:
[...] Como lhe falei que ficavam dizendo que meu filho era negro,
chamava ele de negro preto, os meninos ficavam chamando de meia–
noite por causa da cor.Essa moça aqui da mercearia ficava dizendo que
ele era bem preto, ficava chamando de negro, tudo que acontece aí ela
diz que é ele, mesmo ele não estando no meio, ela só diz que é ele,
porque ela já tem o racismo já com ele. As pessoas que a ouviam
chamando ele de preto, tudo dela é assim, aquele nego, preto, não sei o
quê? Pela forma de falar você tira. Uma forma assim de discriminação
mesmo (Oxossi-G).
Perante o conflito racial vivido, fica muito difícil para os negros assumirem uma
identidade racial ligada às suas raízes étnicas, consequentemente, a maioria ou grande parte da
população negra se sente reprimida e insegura em se reconhecer como negra, assumindo a cor
“morena”. Pois, assumir ser preto ou pardo no Brasil significa enfrentar todo o aparato
histórico-social construído que o classifica em padrões éticos e estéticos desprezíveis, ligados
a uma imagem-imaginário de marginalização. A opção pela negação de sua verdadeira
identidade é uma forma de autodefesa psicológica e social, pois assumir-se negro implica agir
e pensar ininterruptamente contra as mais desveladas ou mesmo dissimuladas formas de
discriminação, o que lhes causaria bastante desgaste e sofrimento.
Diante disso, acrescenta-se que uma das barreiras para construção identitária dos
negros após a abolição, apontada por Souza (1983) e confirmada em Costa (1983, p. 2) foi a
“violência racista” a que o negro continuou a ser submetido constantemente pelo branco, haja
vista que “a violência racista do branco exerce-se, antes de mais nada, pela impiedosa
tendência a destruir a identidade do sujeito negro”, questão reafirmada pelos padrões estéticos
que qualificam o branco como símbolo da perfeição.
As raças foram durante muito tempo categorias de posição social, onde o lugar do
negro era o de escravo e o do branco, o de senhor, dono do poder. Então, a divisão de classes
esteve polarizada e demarcada pela cor, definindo-se duas classes sociais, a de senhores e a de
132
escravos. A estratégia de disposição das categorias sociais pelo quesito cor, restringia as
desigualdades entre brancos e negros apenas pelo plano econômico, sustentando a equivocada
argumentação com base na pobreza, um elemento aludido para não ascensão social do negro,
ao invés do racismo, ignorando-se ou pressupondo-se que atitudes de fragilidade,
vulnerabilidade e imperfeições estivessem ancoradas na questão da cor, cujo foco assentava à
qualidade dos indivíduos.
Assim, o racismo em seu prolongamento perpetuou a imagem de inferioridade,
submissão e coisificação do negro de maneira marcante em seu imaginário, exacerbando o
desejo de buscar no moreno, um ideal de beleza; e como esta não poderia ser obviamente
totalmente branca, restou-lhe o intermediário do processo do branqueamento – o moreno,
legítimo arquétipo de beleza que agrega os atributos favoráveis à vitalidade, a sensualidade, a
imagem perfeita das curvas do corpo e do porte da maculada beleza negra, reduzindo-se a
uma expressão estética imaginária e de uma potente encarnação para realização do prazer
carnal, capaz de torná-los objeto de desejo e alvo de práticas sexuais deliberadas.
Para os familiares o comportamento da adolescente, de cor “morena” com todos seus
arquétipos de beleza negra, motivava comportamentos de violência sexual por parte de
homens, por causa de seu modo de ser e se vestir, que desperta neles desejos sexuais:
[...] Ela ia para casa de minha avó de saia, deitava na rede de pernas
abertas. Aí meu tio ficava olhando para as pernas dela. Ela dizia que
estava de saia e o que é que tinha! E ele ficava abaixado assim oh!
[coloca-se de joelhos] de olho nas pernas dela.
Em vista disso, pode-se entender porque a violência muitas vezes não é percebida
como uma transgressão, mas como comportamento que apenas responde ao desafio da
provocação erótica que proporciona a exibição do corpo negro, um corpo que pelo viés da
beleza negra pode ser violentado, já que sempre foi histórico-socialmente manipulado, em
virtude de sua robustez de valor mercantil e ao mesmo tempo usurpado para os prazeres da
carne, tendo em vista tanta feminilidade e masculinidade.
A tradição de que o corpo negro agrega atributos naturais favoráveis ao erotismo,
como vitalidade e sensualidade é a imagem atual prescrita no imaginário masculino e
feminino da nossa época, no entanto, esta iconografia não é originalmente nova, foi concebida
desde o período colonial para justificar a violência sexual praticada.
De modo que tanto os homens de senzalas como os seus senhores usufruiriam das
mulatas como mero objeto para sua satisfação sexual independente da resposta e disposição
133
erótica da mulher, o que mostra que a mulher sucumbiu como objeto de exploração sexual
cumprindo sem cerimônia o seu papel de proporcionar prazer.
A reencarnação do homem/senhor violentador se repete na vida contemporânea,
gerando comportamentos violentos, de cunho instintivo, machista e derivado de posses e
poder, e ainda que toda a sociedade venha se mobilizando para investigar, orientar e enfrentar
a situação, já está bastante comprovado que os atos violentos fazem parte de um ciclo
intergeracional decorrentes de experiências de convívio familiar, tornando ainda mais difícil a
abordagem ao agressor e vítima, exigindo um trabalho multiprofissional e em rede para conter
a abrangência do fenômeno.
Embora Maffesoli (1987) não tenha se preocupado em definir rede, em O Tempo das
Tribos escreve em poucas linhas sobre o tema, demarcando sua concepção de rede como a de
trabalho grupal, conjunto, mas que se permita a essência.. Neste sentido aponta a proxemia,
que significava “abundância de efervescência”, algo que revela a intensa realidade (in-tensão),
que se organiza em torno de um eixo/espaço, que ao mesmo tempo liga as pessoas e as deixa
livres para suas escolhas, momento de ação-reflexão e tomada de decisão individual-grupal.
A rede, para Maffesoli (1987), pode ser compreendida como entrelaçamento social, ou
agregação social, na qual a circulação de informações serve para manutenção de um sistema,
ou para validá-lo para uma comunidade, através da atualização de dados que favoreçam a
proximidade
entre
as
pessoas,
tomada
de
decisões,
resoluções
de
problemas,
compartilhamento de dificuldades, dúvidas, desejos e as fantasias, conduzindo ao que chama
viver cíclico, viver que une o "lugar" e o "nós", mesmo diante da complexidade do mundo
vivido.
Nesse estudo, algumas mulheres justificam os comportamentos sexuais violentos de
seus familiares (esposos, pais, tios irmãos) levando-se em consideração a provocação erótica
de parentes (filhas, sobrinhas) ao exibirem inadvertidamente seu corpo com poucos trajes e
vestes dentro e fora de seus lares, concluindo que agindo dessa forma aumentam o risco de
serem violentadas tanto no âmbito familiar quanto na rua.
Camargo e Buralli (1999) mostram que o uso da violência pelos pais para o controle
dos filhos são artifícios que foram concedidos ao longo da história social da criança para a
manutenção da ordem família-comunidade, sendo inclusive a própria disciplinarização, com
papéis educacionais coercitivos, primordiais para evitar o comportamento desviante da
criança e do adolescente da conduta e norma estabelecida socialmente. O motivo educacional
serve aos pais como direito, quando não obrigação de evitar transgressão social originárias de
crianças e adolescentes no tempo presente ou futuro.
134
Observa-se diante disso, que infelizmente os pais exercem o papel de principais
disciplinadores dos adolescentes agindo muitas vezes de forma abusiva para conseguir
obediência.
Embora exista preocupação das mulheres com a questão do corpo e dos riscos de suas
filhas serem violentadas em virtude das poucas vestes, do corpo da mulher negra não poder
estar à mostra, a feminilidade e virilidade exacerbada da população negra, sempre foram
utilizados como disfarce para torná-las alvos de práticas sexuais deliberadas. Assim,
identificam que o uso de poucas vestes traz grande probabilidade das suas filhas adolescentes
serem violentadas, já que em tenra idade o seu corpo “moreno” no imaginário social,
principalmente masculino é tentador, sedutor, de curvas perfeitas, portanto, as tornam
vulneráveis as agressões.
No entanto, sendo a adolescência uma fase de extrema valorização do corpo, do direito
do adolescente sobre a exploração do próprio corpo; refletir sobre o modo como se sentem em
relação a si mesmos e os outros que os cercam, a auto-afirmação e auto-estima e sua relação
com o corpo, em detrimento da moda, possa ser um caminho para fortalecer aspectos de uma
convivência de respeito e reciprocidade entre adolescentes e adultos no que se refere a
sexualidade, considerando que o visual do adolescente pode construir e/ou estimular
representações negativas no imaginário do adulto como algo de natureza perversa, como o
estupro e outras formas de violência sexual.
Por causa da violência, parece que na adolescência seria de bom senso, autocontrole
de reações que revelem exibicionismo, principalmente com a parentela e amigos, evitando
também abordagens de confrontos libidinosos com estranhos ou familiares suspeitos,
entendendo que é na adolescência onde há uma maior necessidade de vigilância para
minimizar os riscos de ocorrência da violência.
[...] ela provocava, a vestimenta dela, sentar de pernas abertas
entendeu? Ela senta de qualquer jeito, não tem uma coisa assim, não
olha quem tá por perto, andava muito de toalha em casa [...] Ela vivia
passando de toalha pela casa, ficava se exibindo passando de toalha
chamando o estupro (Oxossi-G).
Porém, a imagem não é una, é múltipla e facetada, está presente nos gestos, nas
roupas, em todos os símbolos que utilizamos quotidianamente, sendo ela que nos apresenta ao
mundo. Então, para o adolescente estar de toalha não necessariamente lhe deixa diferente, é
natural, principalmente se presencia outros familiares com o mesmo costume de cruzar os
cômodos do domicílio de toalha ou vestes inapropriadas. É fundamental para que exista
135
respeito e garantia de aplicabilidades de seus direitos, que todos no domicílio se comportem
de maneira semelhante e compreendam a imagem “passando de toalha pela casa”, com algo
negativo, caso contrário, os argumentos teoricamente colocados não vão provocar nenhuma
mudança, e o evento ativará a cascata da violência sexual. Trata-se, então, de romper as
barreiras de motivo educacional, de ambos os lados, todos da família evitando reprodução dos
comportamentos considerados pró-ativos de violência.
Se a sociedade não reconhecer que a adolescência é um período de transição onde se
fazem necessários momentos de transgressão, de ousadia, de tribalismo para demonstrar a
fuga da mesmice inerente ao processo de crescimento e desenvolvimento do indivíduo até a
fase adulta, jamais conseguiremos ultrapassar as barreiras estabelecidas para comunicação
com os adolescentes, tais imagens não devem ser temidas, mas observadas, compreendidas,
decodificadas, justamente ensaiando escapes ao invés de rupturas, buscando possibilidades de
mudanças e reorganização de ícones, artefatos, e reajuste da própria moda em favor de uma
adolescência mais saudável.
Conforme a provocação do próprio Mafesolli (1987) a consciência de que a violência
não pode ser eliminada deveria gerar uma atitude de astuta negociação, com o intuito de
"amansá-la", socializá-la, ao invés de domesticá-la por meio de regras e códigos de conduta
rígidos que nada resolvem, o desafio é canalizá-la, organizá-la, integrá-la e combiná-la com
outras práticas sociais e simbólicas que dêem conta resgatar a harmonia.
Pensar na construção da identidade negra, de modo que consigam resistir a toda essa
onda de violência e a negatividade que os acompanha, requer mais do que mantê-los vivos,
seja no seu trabalho, na sua escola, e automaticamente oferecer-lhes o que resta como espaços
minúsculos nas políticas, espaços sociais, no mundo onde estão sempre mantidos sob
controle.
Esse processo de não reconhecimento social e inutilidade aos olhos da sociedade,
vivendo com medo de perder a sua condição de “trabalhador”, e mais, de experimentar pelos
trabalhos de segunda categoria ou mesmo ofícios inferiores e pouco qualificados, relações de
humilhação, submissão e menosprezo, fazem com que os adolescentes construam
subjetividades carentes de sentido (CARRETEIRO,1999).
Zaluar (1994) e Madeira (1997) esclarecendo sobre as perspectivas sociais do negro
nos mostram que para os adolescentes negros a escola é distante, no sentido da escolarização
ter pouca participação em suas vidas, como também das atividades escolares não se ater ao
seu real papel educacional. Seu universo de trabalho, como adolescentes remonta vidas
empobrecidas diante de trabalhos desvalorizados e mal-remunerados, estando livre de
136
qualquer conforto, a situação culmina na ausência de expectativa de mudança e
enfraquecimento de seu papel como ator social.
Dentro desse panorama de fragilidade das vivências nas instituições, saúde, educação
e trabalho o adolescente negro possuem poucas esperanças de se inserirem dignamente no
mundo, porque é iludida pela própria sociedade que a situação é mutável, basta uma rede de
suporte social forte, para que façam parte em condições de igualdade em relação a tudo e
todos.
Na verdade, as dimensões ético-valorativa, sócio-histórica e consequentemente
político-econômica da identidade e estrutura social se afinam e contribuem para o que hoje
podemos denominar do estilo delinqüente do adolescente. Dizemos isso, considerando
ARPINI (2003), que parte da idéia de que ao ser excluído do espaço da escola, do trabalho, da
saúde, do lazer, dentre outros, está nesse momento sendo incluído em outro espaço social o da
marginalidade e delinqüência.
Como vimos à família desestruturada, as relações hierárquicas de poder na própria
família, onde os pais detêm o poder sobre os filhos; o processo educacional inadequado na
família e na escola com pouca ou nenhuma participação dos adolescentes nas tomadas de
decisões, escolhas e trajetórias a seguir, a discussão e entendimento de sexualidade no lócus
familiar tem sido determinantes na constituição do sujeito, sobretudo quando se trata de
adolescentes (ARPINI, 2003).
Por isso, embora passado bastante tempo, os negros ainda não conseguiram
reconstituir efetivamente a sexualidade em sua essência. O prazer, a sensualidade, a
dignidade, a afetuosidade, que se encerra, ou melhor, que se inicia nas práticas sexuais na
adolescência já não consegue sobreviver diante de um imaginário social que assinala mais
uma vez uma diferença estética inferiorizante entre negros e brancos trazida pelo estereótipo
do corpo da mulher negra e sua sensualidade algoz.
É indiscutível a extraordinária força do imaginário no real da vida humana, a que serve
de matriz constituinte da rede de convivência social, tanto as qualificando quanto a
destituindo de sentido. Dentro dessa lógica, podemos analisar que ao mascarar o real sentido
da exploração sexual do corpo negro e sua disposição erótica, as mulheres negras são
impedidas de exercer sua sexualidade de maneira plena, já que são vistas como aquelas
capazes de realizar os desejos mais ávidos e inimagináveis das pulsões sexuais masculinas
tornando-se assim mais vulneráveis aos abusos sexuais que às brancas.
O imaginário traz à tona o desprezível ao se referir à mulher negra, desqualificando a
sua imagem, marcando sua trajetória de vida como objetos sexuais, de tal modo que
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continuam sendo sempre comedidas, dóceis, destituídas de pudor, portanto, grandes vítimas
de exploração e assédio sexual.
Ressalta-se que mesmo tendo sofrido um processo de alienação de sua identidade
enquanto escrava, tratada como objeto/coisa ao invés de pessoa, ela não perdeu sua dignidade,
lutando com força pelo ideal de liberdade e identidade, resistindo para conformação
quilombola como uma saída ou estratégia do viver coletivo entre iguais, a exemplo da revolta
dos malês, na Bahia: - Luiza Mahim, no Quilombo dos Palmares, em Alagoas: Acotirene,
entre outras (BOLETIM n. 1, 1987).
Demarca-se também que na época o protagonismo das mulheres negras não era bem
aceito pelo movimento feminista emergente no país, já que este defendia e hasteava bandeiras
específicas de situações de mulheres não-negras. Os problemas como trabalhar fora, estudar
para conquistar autonomia, respeito dos maridos e companheiros, que sempre foram
expectativas das mulheres não-negras, não faziam parte das aspirações da mulher negra, já
que tinham histórias diferentes, sendo trabalhadora por excelência, o seu formato de família
sempre circular, de procedência africana que acolhe parentes consangüíneos e até por
benfeitoria agrega pessoas sem parentesco real e todos os outros ensinamentos de senzala.
Dito assim, a transposição da mulher negra da senzala para a periferia das cidades;
apenas aprofundou as crises do processo excludente afro-brasileiro, fazendo a mulher
brasileira acreditar que podiam exercer a cidadania e recuperar e fortalecer sua identidade de
mulher negra, recusar a ditadura dos padrões de beleza existentes, lutar pelo espaço das
mulheres negras no movimento feminista emergente para discutir questões de interesses do
negro, no entanto, logo elas perceberam que a sociedade capitalista que acabou com a
"escravidão", apenas as tirou das senzalas para jogá-las nos barracos, nas favelas, nos becos,
marginalizá-la.
Interessante que mesmo com todos os entraves enfrentados, as mulheres negras
conseguem driblar os problemas e fazem circular informações importantes pós-abolição,
através do Maria Mulher, mantendo um dos poderes mais simbólicos e salutares para
conseguir agregação, e manter vivos elementos da fortaleza da cultura negra.
Maria Mulher representou o poder da mulher negra de universalizar as informações
sobre o negro, divulgar acontecimentos de luta e resistência, apresentar escritos que mesmo
diante da dominação a que eram submetidas, promovessem esperança de um futuro diferente,
melhor, menos trágico.
138
[...] resistência silenciosa, passividade, não significa consentimento.
Deve-se atentar para a resistência embutida em seu aparente
vazio...vazio de palavras carregado por um silêncio que grita em
direção ao movimento, certamente de negros, que buscam uma
organização de políticas com fins de melhoria da qualidade de vida de
negras e de negros no país. A tentativa de discutir e até formar um
grupo de mulheres negras que dessem continuidade a uma ação política
voltada à Mulher Negra. Conjetura que a ação seria elaborada por
homens e mulheres negros, dispostos a por fim às relações de
discriminação de gênero, de raça e de classe em nossa sociedade
(Modificado do Boletim n. 1, 1987).
O trecho acima nos faz refletir o modo ingênuo como a população negra e
principalmente da mulher negra acredita poder ganhar maior visibilidade e construir um novo
conceito de beleza negra na sociedade, como também de reverter a situação de vitimização a
que se encontram duplamente expostas por serem mulheres e negras, tendo que assumir para
si verdadeiramente um discurso contra-hegemônico anti-racial, como também a emergência
de novos sujeitos negros. Esta tarefa é árdua e se entendermos que evidentemente as
categorias, sexo, raça e classe são histórico socialmente subprodutos do discurso que legitima
práticas de dominação masculina racial e de classe, onde quem detém o poder é o homem,
rico e branco (SAFFIOTI, 1987; FIGUEIREDO, 2002).
Como observou Collins (2000; 2005) durante a escravidão, os negros não eram donos
dos seus corpos e nem da sua sexualidade, por isso, é exatamente nesse ponto que surge o
esforço do processo de tornar-se mulher negra, sendo algo mais bem explorado, não somente
teórico, mas também prático, de modo que a mulher negra possa exibir orgulhosamente seu
corpo politizado, valorizado, com vistas a resgatar sua auto-estima como negra, no sentido de
reinventar, reconstruir um corpo negro de fato. Sem dúvida, autodefinir-se como negro é o
primeiro passo. Por esse motivo, o negro não pode permitir a construção de sua identidade
pelo olhar do outro, a partir do olhar do outro, o equivale na verdade, desconstruir o
branqueamento e reconstruir uma nova imagem, com o compromisso de assumir sua própria
imagem.
O investimento do movimento negro em ter uma negra orgulhosa de si, tornou-se
importante sobretudo para afirmar estereótipos absolutos de uma beleza negra real. Assim, a
construção de um padrão de beleza libertos do anterior, inspirados em padrões estéticos
africanos, ganhou força na Bahia, no final da década de 70 com o surgimento de um bloco
carnavalesco composto de afrodescendentes o Ylê Aiyê visando responder às condições
adversas de beleza resultantes do racismo.
139
A noção de beleza proposta em como advento a escolha da mulher negra que
representa a Deusa do Ébano, ou seja, àquela mais bonita dentre negras, na chamada “noite da
beleza negra”, cuja beleza contrapõe o padrão branco veiculado pela mídia em diversos
concursos, que seriam mulatas semi-nuas desfilando em carros alegóricos carnavalescos,
seguindo critérios de beleza vigentes - cintura, busto, quadril moldados na performance da
mulher ideal.
Por esse motivo, a beleza do Ylê, exibe corpos exuberantes e trajados em roupas
criativas, danças e penteados transados, onde tranças e alegorias é um conjunto de elementos
que auxiliam a indumentária da mulher negra esteticamente valorizada, evitando a exposição
dos corpos das mulheres negras, desmistificando que a beleza não está na nudez, mas nos
diversos atributos do negro e sua cultura.
O cabelo tem sido considerado o “feio da raça”, sendo um tema freqüente no cotidiano
das mulheres negras que se sentem inferiorizadas e gastam enormes quantias de seus salários
para obterem “cabelos bonitos” para agradar a si e aos outros (FIGUEREDO, 2002). A
manipulação do cabelo parece ser uma necessidade básica entre negros, e o estilo afro, vem
sendo o mais cotado para estabelecer a religação com a raça tornando-se popular entra as
mulheres, mas melhor aceitável pelas ativistas negras e militantes do movimento negro. Este
discurso e comportamento constituem do ponto de vista da militância negra, um importante
marcador da diferença entre brancos e negros, quer seja porque incomoda aos brancos, quer
pela autodefinição; ou até porque conseguem construir a tipicalidade do sujeito negro, aquilo
que lhe é notável, lhe é próprio (SANTOS, 2000; GOMES, 2006).
Dentre os fenótipos negros, o cabelo, segundo os próprios negros é mais desejado de
ser manipulado, entretanto, os métodos empregados nem sempre são estilos divergentes do
modelo de branqueamento. Para Pinho e Sansone (2008) a intervenção depende de diferentes
fatores como disponibilidade financeira, espaço que o negro ocupa, suas crenças e valores;
por exemplo, espera-se que os negros a depender do seu estilo de vida possam aderir aos
alisamentos, uso de produtos químicos para ativamento de cachos ou abusar dos mais
variados penteados com tranças.
Os cabelos se constituem preocupação dos pais, antes mesmo do nascimento de seus
filhos, certamente porque ainda permanecem em suas lembranças os traumas, as dificuldades,
a discriminação e o preconceito vivido na época da infância, da escola e na relação com os
outros, por conta do cabelo crespo, o que inclusive influencia no matrimônio de negros
(PINHO E SANSONE, 2008).
140
Nesse sentido, o movimento negro brasileiro toma o cabelo natural como símbolo de
afirmação de identidade, nesta perspectiva o ato de alisar o cabelo na sociedade brasileira não
pode ser visto como um simples exercício de beleza, porque contraria a regra de afirmar
fenótipos negros, e acaba por fortalecer o branqueamento (PINHO E SANSONE, 2008). .
Para o autor precisamos estar bem atentos, principalmente em se tratando de jovens,
que o uso de um determinado tipo de cabelo pode estar associado aos movimentos de
resistência – a citar: black-power, punk e os estilos afros, como também relacionados com a
representação dos seus corpos, construção de um padrão de beleza e principalmente de sua
identidade.
Gonzaléz (1983) não só questiona o fato dos negros serem descritos representados
dessa forma na sociedade em geral, como também denuncia as representações submissas e
sexualizadas das mulheres negras na cultura brasileira, como as mães-prestas (mães-de-santo),
mulata e empregada doméstica que permaneceram exploradas desde o sistema patriarcal e
seguem até hoje na fase capitalista em que vivemos.
De onde o emprego doméstico não tinha relação de formalidade, nem caráter de
emprego porque frequentemente as famílias empregavam as trabalhadoras adotando o
discurso de que elas faziam parte da família, podiam ser consideradas crias da casa, ao invés
de serem consideradas somente como trabalhadoras, dessa forma se sentiam impedidas de
reivindicar seus direitos (COSTA, 2008).
Na literatura as pesquisas de Brookshaw, Jorge Amado, Monteiro Lobato sobre a
representação dos negros demonstravam através de figuras emblemáticas que os negros eram
dóceis e subservientes e as mulheres mestiças e mulatas eram demasiadamente sexualizadas.
Almeida (2004) reforça que no Livro Gabriela Cravo e Canela a construção da personagem
central resulta da mistura de ingenuidade/pureza e sensualidade/sexualidade, que no por vir
denunciaram a exploração sexual de que são vítimas as mulheres negras e mestiças no Brasil
(DIAS FILHO, 2002).
Giacomini (2006) procura demonstrar que a categoria mulata não é apenas racial pode
se transformar em uma categoria profissional, uma vez que a autora entende que a mulata não
somente predispõe de características fenotípicas para sê-la, que é nata, como a cor da pele e o
tipo de cabelo, como também pressupõe que precisam adquirir aquelas necessárias à
profissão, estabelecendo estreita relação entre a categoria racial mulata e a categoria
profissional prostituta.
No caso das mulatas percebe-se que é uma categoria interceptada pelo gênero, tendo
em vista os júbilos da cor e de outros fenótipos que as fazem importantes como “mulheres
141
destinadas ao sexo apple”, vítimas do sexismo e do racismo. Já que há uma associação direta
entre a sexualidade e a mulata, principalmente porque as mulheres negras não nascem
mulatas, são despertadas para sexualidade na adolescência e afloram na fase adulta. De acordo
com Gilliam; Gilliam, (1995, p529) [...] incorporarão mais de uma representação na trajetória
[...] desde serem mulatas sexualizadas na juventude, as nutridoras, zeladoras e negras
desfeminizadas quando tiverem mais idade.
No texto de Corrêa (1996) a invenção da mulata, recrudesce da escala classificatória
de cor e seus nuances revelando a construção da categoria mulata, que perpassa pelas
representações de gênero. Gilliam; Gilliam (1995) esclarece que as mulatas sentiam-se
superiores aos pretos buscando distanciar-se das mulheres negras, assim tanto a mulata quanto
a negra são construídas relacionamente, um em oposição à outra, mostrando um destino
forjadamente eqüidistante.
Cadwell (2007) estudando a construção da subjetividade negra assinala que uma das
características marcantes na trajetória das mulheres negras entrevistadas no seu estudo é a
ausência absoluta de referenciais positivos de ser negro/negra durante a infância, motivo que
ou as encaminha a psicanálise ou a serem ativistas do movimento negro, demonstrando que o
processo de aceitação ou rejeição de si , refere-se, invariavelmente, a aceitação do corpo e das
características físicas.
Entretanto, conforme Degler (1976); os mulatos são diferentes, ele é um exemplo
contundente da ausência de preconceito racial, algumas vezes até serve de válvula de escape
inter-racial, considerando que o racismo é diferente entre homens e mulheres negros e ainda
que a concepção de raça é diferente para homens e mulheres. Por esse motivo, o debate em
torno do cabelo é o entrelaçamento entre as categorias de gênero e raça de onde se observa
segundo Gilliam; Giliam, (1995, p533) que “de todas as características, é o cabelo o que
marca a “raça” e o que mais significa para a mulher”.
Considerando este aspecto, as violências que atingem homens negros e mulheres
negras são diferentes, sobretudo os jovens negros que estão mais expostos à violência física
institucionalizada ou não, enquanto que as mulheres negras são mais vulneráveis a outros
tipos de violência, como àquelas que condicionam a aparência às oportunidades de trabalho, e
as adolescentes negras são vítimas das violências que se relacionam com as representações do
corpo, padrões de beleza hegemônicos e sexualidade.
142
Autor do desenho: Anderson Santos Lima
“O que os fazem subsistir, resistir, enfrentar,
continuar vivendo?”
143
6 CONCLUSÃO
O estudo baseou-se nos relatos de duas famílias formadas de indivíduos negros que
vivenciaram violência familiar no seu quotidiano, analisamos as relações familiares e sociais
buscando entender a partir de seus discursos às concepções de violência, experimentação e
estratégias de enfrentamento.
Através da perspectiva teórico-metodológica do Interacionismo Simbólico e conceitos
mais significativos da Microssociologia do quotidiano procuramos nos ater ao seguinte
pressuposto: a experimentação da violência para o adolescente negro tem como um dos seus
determinantes o racismo, haja vista acreditarmos que o racismo influencia o processo de
construção da violência nas relações familiares e sociais de adolescentes negros.
Tendo em vista a complexidade do fenômeno, foi importante investir na entrevista
semi-estruturada, técnica que possibilitou em decorrência de sua flexibilidade, uma variedade
de descobertas e orientações constantes para a direção da pesquisa e alcance dos objetivos
propostos.
A naturalização, a banalização do ato violento, a sua repetição, nos faz pensar que o
racismo como uma forma de violência, também carrega consigo todas as mazelas embutidas
no processo de violência. A exposição repetida, a sua carga simbólica, deixa marcas
profundas e irreparáveis nas vítimas. O estresse sofrido produz um self alterado e portanto,
uma maior vulnerabilidade social.
Sabe-se que a própria vulnerabilidade dificulta romper o ciclo de uma ação violenta,
assim, hoje quem é vítima amanhã pode ser agressor, tendo em vista sua própria história,
quotidiano e cultura de violência.
Os laços de afetividade e proximidade que devem estar presentes em qualquer
composição familiar, como a solidariedade, a compreensão, o apoio são substituídos por uma
forma de organização e relacionamento defensivo.
Na população negra as relações familiares ainda estão distantes, há descrenças em
relação às suas potencialidades e sua identidade é frágil, vivem incertezas em relação aos
modos de ser e viver, e os arranjos ora encontrados não favorecem uma atitude de nãoviolência.
Nesse estudo confirmamos que mesmo diante dos valores e modelos ideais vigentes,
as famílias pobres, em sua maioria formada pela população negra, divergem do modelo
tradicional de organização, pois necessita desenvolver estratégias para o suprimento
144
econômico do grupo familiar e manutenção dos cuidados necessários a sua sobrevivência, de
modo que acabam mantendo em parte o modelo patriarcal, apresentando ainda o
monoparental, onde mulheres assumem comando de famílias e também se encontram as
famílias de parentelas extensas, o que nos lembra a tradição de senzalas.
A noção de família de indivíduos negros está bastante vinculada à questão de
confiança, assim, faz parte da família todos àqueles indivíduos que eticamente se dispõe a
ajuda mútua, cooperação, disposição para ligar-se, unir-se em torno de ideais e obrigações
morais, independente da genealogia.
A lógica da solidariedade impulsiona o desenvolvimento do grupo mesmo em um
contexto de carências e a presença e participação dos indivíduos para manutenção do grupo
não significa necessariamente a perda da individualidade de nenhum dos membros do grupo
familiar, sendo comum inclusive, o uso da violência para resolução de conflitos, já que a
negociação e as possibilidades de diálogo são quase inexistentes nas famílias estudadas.
Trouxemos à tona imagens da trajetória de adolescentes negros e seus familiares
apontando os caminhos tortuosos vividos por eles no seio da vida corrente, que por vezes são
obrigados a utilizarem a violência como uma forma de defesa para seus corpos, valores,
sentimentos, crenças, símbolos e rituais, que estão sendo degradados pouco a pouco pelo
branqueamento.
Pudemos observar que tanto a vítima quanto o agressor de violência são protegidos
pela família, no entanto, a sociedade através das redes de assistência às vítimas de violência e
respectivos agressores ainda estão despreparadas para atendê-los. Tem-se por um lado, as
famílias servem de ponto de apoio e solidariedade às vítimas, tentando re-inserí-las
positivamente no contexto social, a fim de que superarem o trauma. Mas, por outro, as mães,
ao serem permissivas com a fuga do agressor, podem estar ativando o ciclo da violência e
contribuindo para o desencadeamento de recidivas, expondo desse modo a vítima.
De acordo com alguns estudiosos de violência intrafamiliar o agressor deve ser
encarado como vítima de um padrão de relacionamento familiar disfuncional, isso porque no
ciclo da violência provavelmente em algum momento foi vítima, merecendo não ser julgado
nem condenado pelo seu comportamento, mas também ajudado.
Parece-nos que o entendimento de violência dos adolescentes negros e seus familiares
do estudo perpassam apenas pela barbárie, atos criminosos cruéis e tráfico de drogas que
presenciam no seu ambiente escolar e de moradia. Na realidade confundem o significado da
violência com as suas causas e repercussões, por isso, avaliam os castigos corporais, os
xingamentos, a violência psicológica e outras, como algo normal em suas vidas. O bater e o
145
apanhar são modos de sociabilidade aceitos e praticados nas relações familiares e sociais
quotidianas dos indivíduos negros, assim, contribuindo para a perpetração da violência.
Percebemos que as famílias neste estudo necessitam colocar em perspectiva o lazer e o
estudo em prol do trabalho, base de sustentação de todo grupo familiar, devido às precárias
condições de vida. Todavia, o estudo continua sendo para eles a única alternativa de ascensão
social e conseqüentemente, um investimento que procuram manter na medida do possível
junto com o trabalho.
Constata-se também que o mito da democracia racial sobrevive nos dias atuais,
arrastando um discurso de sociedade de classes, onde inexiste o princípio classificatório por
cor. Assim, todos os negros e brancos, podem ascender socialmente independente da sua cor,
confirmando a ideologia de que o negro é pobre porque se trata de um ser humano preguiçoso.
Entretanto, mostramos o mundo imaginal do ser negro, retirando dos discursos de cada
sujeito o que sabem, pensam e acreditam ter valor no seu quotidiano, suas estórias e a história
da tradição negra, que demonstra não-linearidade de atos e fatos, mas, comportamentos
provocadores, sedutores, de luta e de força, que dizem e ao mesmo tempo não conseguem
dizer através das imagens reveladas todo o universo simbólico do ser negro, principalmente
considerando o seu referencial de mundo através do corpo.
Numa sociedade multirracial é importante lembrar que o corpo marca e recria gestos e
culturas, portanto, sem entender o significado do corpo para o negro e da influência do
racismo, do sexismo, da identidade negra, não poderemos compreender a repercussão da
violência que os aflige.
O corpo carrega uma expressão estética e sócio-cultural, por isso, os corpos
esculpidos das morenas e mulatas subsistem com valores e escolhas morais e interacionais
repletas de discriminação, advindas de um imaginário que as faz objeto sexual, prostitutas,
empregadas domésticas, ou seja, pessoas sem valor dentro e fora do cenário da sexualidade, e
como tantas outras negras, são tratadas como seres inferiores, fato que infelizmente aceitam
como algo natural em suas vidas.
Permitimo-nos dizer pelos dados epidemiológicos e qualitativos que a população negra
vive nas piores condições de existência, considerando a violência racista a que estão expostos,
tendo em vista que abarca aspectos de negação étnica, branqueamento e os mais variados
tipos de exclusão.
As famílias de indivíduos negros vivem um quotidiano de violências, que lhes forçam
a manter-se nesse lugar, percebendo seu grupo étnico como uma referência negativa, motivo
146
para desviar-se para o impiedoso branqueamento, a fim de galgar um “lugar ao sol”, ou seja,
conseguir a mobilidade social tão sonhada.
Enfim, o Movimento negro nos mostra que ainda é possível resistir, restabelecer a
cultura negra, fortalecer principalmente na escola a identidade negra e insistir em políticas
afirmativas que visem igualdade inter-racial.
De acordo com o estudo realizado acreditamos que estas famílias precisam ser
trabalhadas para que possam se perceber no ciclo da violência racista e de outras violências.
Em se percebendo, reconheçam a importância da participação de todos no contexto, não se
culpando mutuamente, mas, buscando melhorar a comunicação, refletindo e se comportando
de modo que não incluam a violência nas suas vidas.
Na ocasião de dificuldades devem buscar ajuda dos profissionais de saúde, nos
serviços, recorrer aos Conselhos Tutelares, Vara da Infância e da Juventude, Delegacias da
Criança e do Adolescente e outros órgãos responsáveis e a toda rede de acolhimento e
intervenção referenciada para os casos de violência, a fim de que de uma forma sistêmica,
cada qual faça sua parte, sobretudo utilizando o sistema de referência e contra-referência para
o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Justamente nesse ponto urge esforço da enfermagem, por ser uma profissão que se
preocupa com o cuidado integral, trabalhar junto às instituições de saúde, nos Programas de
Saúde da Família, Ambulatórios e Hospitais, o cuidado à população negra considerando suas
peculiaridades e necessidades de saúde, otimizando a assistência a esse grupo populacional,
considerando o racismo e a violência para o planejamento e implementação dos cuidados.
A enfermagem tem que estar preparada para cuidar de adolescentes, principalmente
porque são indivíduos, que não desejam simplesmente à cura no processo saúde-doença, mas
um bem–estar que representa algo total e maior; serem tratados com dignidade, como também
partilhar e interagir nos cuidados para alcançar um viver saudável.
Nesta perspectiva a enfermagem deve procurar valorizar a compreensão - a disposição
e a abertura para novas possibilidades, que acrescentarão no ser, saber e fazer da enfermagem,
e, para tanto, compreender o quotidiano de violência de adolescentes e seus familiares como
uma forma de não estabelecer verdades, mas poder desmistificar concepções, conhecer modos
de pensar, perceber e agir dos indivíduos diante de situações reais e potenciais de saúde, não
deixando de enfocar a violência e o racismo, entendendo que somente assim poderemos
oferecer um cuidado individualizado, através de um quotidiano que transpareça a essência do
viver dos indivíduos e que isso importe realmente no planejamento dos cuidados de
enfermagem.
147
Ao realizar este exercício reflexivo de questionar como o cuidado de enfermagem
acontece no mundo quotidiano dos adolescentes negros, torna-se fundamental o
desenvolvimento de um arcabouço teórico-prático da enfermagem pautado em conhecimentos
concretos, que valorizem a ética e o estético presente na vida destes adolescentes,
preservando sentimentos e atuando de forma solidária e alicerçada no exercício da cidadania.
O enfermeiro precisa relacionar-se intensamente, e estar junto, fazendo parte do
mundo dos indivíduos e seus familiares no processo saúde-doença, com intuito de obter apoio
e compreensão dos usuários para um planejamento eficaz dos seus cuidados.
Por isso, o quotidiano do cuidado de enfermagem é desafio para qualidade da
assistência prestada aos adolescentes negros e seus familiares nas instituições de saúde, já que
através dele é possível repensar nossas práticas profissionais e melhor assistir na situação de
violência.
148
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161
APÊNDICE A
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Você está sendo convidado(a) para participar, como voluntário, em uma pesquisa. Após ser
esclarecido(a) sobre as informações a seguir, no caso de aceitar fazer parte do estudo, assine
ao final deste documento, que está em duas vias. Uma delas é sua e a outra minha, que sou o
pesquisador responsável pela pesquisa. Em caso de recusa em participar da pesquisa você não
será penalizado(a) de nenhuma forma. Em caso de dúvida você pode procurar o Comitê de
Ética em Pesquisa da Maternidade Climério de Oliveira/UFBA situado no Ambulatório
Magalhães Neto para qualquer esclarecimento.
INFORMAÇÕES SOBRE A PESQUISA:
Título do Projeto: A violência no quotidiano de adolescentes negros
Pesquisador responsável: Lucimeire Santos Carvalho; Contato: (71) 3374-3204; 9902-6925.
Venho, através desta pesquisa, compreender o cotidiano de adolescentes negros que
experienciam a violência no âmbito familiar, na cidade de Salvador-Bahia, a fim de que seja
possível a partir dos resultados possa contribuir para melhor atendimento de indivíduos em
situação de violência. A sua participação é muito importante, se sinta à vontade para
responder as perguntas que lhe serão feitas, através de um roteiro de entrevista sobre a
temática. O que me for dito será sigiloso e confidencial, portanto, garanto que você não será
identificado de nenhuma maneira durante todo o processo da pesquisa, desde o momento
inicial dessa conversa até a divulgação dos resultados da pesquisa. Você tem direito de
desistir de participar da pesquisa mesmo depois de termos iniciado a entrevista, não sendo
prejudicado, nem penalizado no tratamento, assistência, cuidado e acompanhamento ou em
outras situações.
Nome e Assinatura do pesquisador _______________________________________
CONSENTIMENTO DA PARTICIPAÇÃO DA PESSOA COMO SUJEITO DE PESQUISA
Eu, _______________________, RG/ CPF/, abaixo assinado, concordo em participar do
estudo __________________________ , como sujeito de pesquisa. Fui devidamente
informado e esclarecido pelo pesquisador sobre a pesquisa, os procedimentos nela envolvidos,
assim como os possíveis riscos e benefícios decorrentes de minha participação. Foi-me
garantido que posso retirar meu consentimento a qualquer momento, sem que isto leve a
qualquer penalidade ou interrupção de meu acompanhamento/assistência/tratamento.
Local e data
Nome e Assinatura do sujeito ou responsável:
162
APÊNDICE B
ROTEIRO DE ENTREVISTA
1. Fale-me sobre o seu dia-a-dia?
2. Sempre foi assim? O que mudou? O que lembra da infância que percebe que tem relação
com o seu dia-a-dia hoje?
3. Conhece alguém que já esteve ou está em situação de violência?
4. O que é violência para você?
5. O que acha da violência?
6. O que acha que leva a pessoa a violentar outra?
7. Já sofreu algum tipo de violência? Conte-me como foi? O que acha que motivou alguém
lhe violentar?
8. Algum familiar já esteve ou está em situação de violência? Conte-me?
9. Se você fosse vítima de violência o que faria para enfrentar o problema?
10. Você já praticou algum ato violento? E o que lhe motivou?
11. O que aconselha (ria) às pessoas vítimas de violência? Como devem enfrentar o
problema?
12. Como foi ou é sua relação com seus pais?
13. Como avalia essa educação?
14. O que é racismo para você?
15. Qual a sua cor?
16. Você já presenciou ou percebeu algum tipo de situação em que esteve presente a
discriminação contra o negro? Fale-me sobre isso.
17. Você já se sentiu discriminado (a)? Por quê? Como?
18. Já teve ou tem namorado? Como ele é?
19. Se fosse casar, que tipo de homem escolheria? Casaria com um negro? Por quê?
20. Algo mais que queira falar sobre violência e racismo?
163
APÊNDICE C
FORMULÁRIO
Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares
Data de coleta de dados:
____/____/____
DATACV01
Local de coleta de dados:
LCOLV01
DEAM
1
2
Liberdade
DERCA
3
PESQV01
Iniciais do pesquisador:______________
I - Dados da ocorrência:
1.1
Número da ocorrência:
NOCV01
Natureza:
NATV01
1.2
1
Violência
2
Violência sexual
Violência psicológica
3
4
Negligência
5
HORAV01
DATAV01
Hora do fato:_____: _____
1.3
1.4
Outra
Data: ____/____/____
______________________
DIAV01
Dia da semana:
1.5
1
Domingo
2
Segunda
3
Terça
4
Quarta
5
Quinta
6
Sexta
7
Sábado
Local:_______________________
1.6
1.7
Bairro: _____________________
LOCALV01
TLCLV01
164
APÊNDICE C
FORMULÁRIO
Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares
II - Dados da vítima:
2.1
VDTNAV01
Data de nascimento: ____/____/____
2.2
Tem mãe
1
Sim
2
Não
Tem pai
1
Sim
2
Não
VFLIMV01
2.3
VFLIPV01
2.4
Sexo
1
Masculino
Feminino
2
2.5
2.6
VSEXOV01
VIDADEV01
Idade: _________anos
VCORV01
Raça/Cor
1
Branco
2
3
Preto
4
5
Não consta
6
Pardo
Amarelo
Outro _________
2.7
Escolaridade
2.8
AESCOLAV01
1
Nunca foi à
escola
2
10 grau incompleto
3
10 grau completo
4
20 grau incompleto
5
20 grau completo
6
Universidade
Situação conjugal
ACV01
1
Solteiro
4
Divorciado
2
Casado
5
3
União livre
Viúvo
165
APÊNDICE C
FORMULÁRIO
Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares
III - Dados do agressor:
3.1
VDTNAV01
Data de nascimento: ____/____/____
3.2
VFLIMV01
Tem mãe
1
Sim
2
Não
Tem pai
1
Sim
2
Não
3.3
VFLIPV01
3.4
Sexo
1
Masculino
Feminino
2
3.5
VSEXOV01
VIDADEV01
Idade: ________anos.
VCORV01
3.6
Raça/cor
1
Branco
2
Pardo
3
Preto
4
Amarelo
5
Não consta
6
Outro________
3.7
AESCOLAV01
Escolaridade
1
Nunca foi à
escola
2
10 grau incompleto
3
10 grau completo
4
20 grau incompleto
5
20 grau completo
6
Universidade
3.8
ACV01
Situação conjugal
1
Solteiro
4
Divorcia
Casado
2
5
3
União livre
Viúvo
166
APÊNDICE C
FORMULÁRIO
Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares
IV - Histórico
Histórico:
______________________________________________________
______________________________________________________
______________________________________________________
______________________________________________________
______________________________________________________
______________________________________________________
______________________________________________________
VDTNAV01
HISTV01:___________
____________________
____________________
____________________
____________________
____________________
____________________
____________________
____________________
____________________
Formulário foi adaptado do Projeto: “Violência na população negra: tensões e sociabilidade”
coordenado pela professora Dra. Climene Laura de Camargo
167
APÊNDICE D
ENTREVISTA INDIVIDUAL E GRELHA DE ANÁLISE
Entrevista individual
Grelha de análise
Família Ogum. Entrevista.A
Fale-me do seu dia-dia, o que faz? Saio
de manhã umas 7:30h,chego em casa
1:30h da tarde, trabalho de doméstica,
tenho 16 anos (pausa prolongada),
trabalho para ajudar minha família, tudo
que fazia em casa faço no trabalho, não
acho nada diferente e acho melhor
trabalhar do que ficar em casa sem
fazer nada ou às vezes até ir pelas
cabeças
das
colegas
querendo
influenciar para fazer coisas que eu sei
que é errado. Comece a falar...(risos),
diga(...) o que você faz no dia-a-dia,
como é seu dia-dia. Eu trabalho, saio
de casa umas 7:30h, chego em casa
1:00h, descanso, 4:30h saio ou 4:00h,
depende do horário que a escola dos
meninos começa a liberar a criança, aí
eu vou pego, levo para casa, dou banho,
dou mingau a ele, boto ele para dormir e
6:30h eu tô liberada para ir para
escola. O que é mesmo que você faz?
Você trabalha de quê? Doméstica.
Nesse seu trabalho, né você sai de
manhã, vai trabalhar, volta meio-dia,
depois você descansa, é isso? Retorna
ao trabalho, de noite vai estudar. O seu
dia-a-dia nesse ritmo, tem algo, traz
algo diferente, percebe algo diferente
ou todo dia você faz a mesma coisa?
Não, todos os dias eu faço a mesma coisa
(risos).Todos os dias você faz a mesma
coisa.É. todos os dias. E na escola como
é sua vida na escola, como é seu dia-adia na escola? O que é a escola para
você? Escola é uma coisa importante né,
Quotidiano de trabalho
repetição
Sair do ócio
Não desviar seu comportamento
Quotidiano de trabalho
Tipo de trabalho
Estudo
Repetição
168
que ajuda a gente [parou de falar...]
Ajuda a quê?A conseguir uma coisa
melhor, um trabalho. E porque você foi
trabalhar? Porque eu tava precisando,
porque às vezes eu quero comprar as
coisas, minha mãe não tem dinheiro, aí
eu recebendo meu dinheirinho é
pouquinho, mas para o que eu quero
comprar, dá né. É melhor que ficar em
casa sem fazer nada, eu acho. Em
relação a sua escola, você conhece
alguém que já esteve em uma situação
de violência? Conheço. Conhece? Uma
menina que, ela foi (pausa demorada),
ela saiu com a colega dela aí a colega
dela pegou e chamou ela para fumar
maconha, aí ela foi, diz que não queria,
que o pai dela brigava, falando que ela
não podia fazer isso, que ela não tinha
porque fazer isso, porque o pai dela dava
dinheiro a ela, tudo que ela pedia que o
pai dela dava. Aí ela falou assim: se você
não gostar você não precisa pagar não,
meu marido tem. Aí ela falou assim então
tá, que ela ia fumar, mas ela só ia querer
aquele dia, não ia querer mais. Aí ela
disse que fumou e aí depois ela disse que
ficou gostando ficou bem viciada
mesmo! Porque ficou um tempão
fumando, até para escola ela levava
maconha, como o diretor descobriu, viu
que ela estava entrando para o banheiro
para fumar maconha, o diretor foi e
transferiu ela para outra escola, chegou
na outra escola e foi a mesma coisa,
ficou mudando de uma escola para outra,
ela parou lá na escola de novo, só que
ela parou, aí a mãe dela foi e colocou
num negócio para recuperar as drogas.
Uma clínica? Sim. Uma clínica de
recuperação? Foi. Aí ela foi conheceu
um colega lá, o colega foi e fugiu com
ela, aí ela voltou para casa, pediu
desculpas ao pai, aí o pai dela pegou e
aceitou ela de volta dentro de casa, ela
diz que agora não está mais fumando,
saiu dessa vida, que agora ela quer
melhorar a vida dela. E como o pai dela
aceitou essa questão da droga? Ela
disse que batia nela, quando ela chegava
Quotidiano Escolar
Quotidiano trabalho
Poder consumir
Sair do ócio
Quotidiano Escolar
Violência para ela é estar no mundo das
drogas
Influência para situações de risco
Adolescente e Drogas
Quotidiano Escolar
Escola não consegue intervir na situação de
violência
Tentativa de sair do mundo das drogas
Retorno ao lar
169
em casa querendo quebrar as coisas, batia
nela porque ele não era ela que estava
comprando nada para ela estar querendo
destruir as coisas, o que ele comprou foi
muito caro, ele suou para comprar para
ela chegar drogada e querer destruir as
coisas que ele lutou para ter. E como
você avalia essa atitude do pai dela? Eu
acho que ele está certo porque ela foi
errada porque ela chegava em casa
querendo destruir as coisas e o pai dela tá
certo porque como ele trabalhou para
conseguir aquelas coisas para depois ela
chegar e querer destruir o que pode servir
até para ela, porque ele possa sair depois,
porque ele é separado da mulher, ele sair
e for morar com outra esposa, pode
deixar tudo para ela, e ela tá destruindo as
coisas que um dia pode ser até ser dela.
Ah! Ela é filha de pai e mãe separados. É.
A mãe dela faleceu. E você achou assim
que atitude dele em relação a bater foi
uma atitude que você avalia como algo
que ele precisava realmente fazer?
Precisava porque primeiro antes o pai
dela teve uma conversa com a mãe dela e
falou que achava melhor botar ela numa
clínica para poder ela se recuperar. A
mãe foi fez um esforço e colocou. Depois
ela foi e quando voltou ela mesma não
está mais fumando, porque ele sabe que
quando ela fuma, ela chega em casa
querendo quebrar as coisas, e ela não está
mais chegando desse jeito, aí ele acha
que ela parou de fumar. Mas, eu não sei
né porque ela pode estar falando uma
coisa para gente e não ser assim, às vezes
ela diz que parou, outra vez ela diz que às
vezes quando vê assim sente vontade de
fumar de novo, mas ela não fuma porque
ela sabe o que é cair na tentação. Ah!
Sim. O que é que você acha da
violência? O que é violência para você?
Ah! A violência é muito triste, pelo
menos eu já vivi um pouco porque minha
irmã, meu pai, minha irmã, o marido
dela, chegava batendo nele e ele também
não ia ficar esperando ele bater né, ele
reagia, aí eles dois saiam sangrando às
vezes, aí era obrigado eu chamar a polícia
Violência
Agressão física
Repercussão das drogas
Pai tem direito de bater
Violenta para educar
Pátrio poder
Vício da droga
Experimentação da violência através do outro
170
aí ele me ameaçava dizendo que ia
mandar um cara me pegar na escola para
matar. O policial até um dia chegou lá
batendo nele mesmo, ele chegou à cara
do policial e disse que ia botar um cara
para me pegar na escola, o policial disse,
tomou meu nome todo e disse que se
acontecesse qualquer coisa comigo, que
ele ia no inferno mas ia procurar ele,
porque ele disse que como ele jurou na
cara dele, que ele tinha que tomar uma
atitude né, se por acaso ele tivesse dito
para ele que ele que tinha falado isso
comigo ele também não ia acreditar
muito, mas como ele chegou na cara dele
e disse aí ele acreditou. Fale o que
lembrar do dia-dia, não tem
importância se repetir. Saio de casa
7:30, vou para o trabalho chego 1:30,
descanso, 4:30 saiu de novo, vou buscar
o menino na escola, quando é 6:30 volto
para casa, vou para escola, fico um pouco
cansada, de tanto subir e descer escada, e,
eu gosto do trabalho, que eu acho, eu
mesmo acho, que eu deveria ter, deveria
fazer uma coisa melhor né?, que eu tô
estudando. Mas, eu não consegui uma
coisa melhor, eu tô nesse serviço por
enquanto, porque eu quero ajudar meu
pai, minha mãe; minha mãe não tem
emprego fixo entendeu, nem meu pai. E,
às vezes também eu quero comprar uma
coisa, meu pai não tem dinheiro, minha
mãe também não tem, e eu com esse
dinheirinho eu vou guardando e quando
eu quero comprar uma coisa, eu compro,
não preciso pegar de ninguém.Você faz
que tipo de trabalho? Que você
realiza? Doméstica. Então assim, nesse
seu dia-a-dia, principalmente na escola
você já vivenciou ou já viu alguém que
vivencia uma situação de violência?Já.
Minha colega, que saia com uma colega
para passear, chegava lá um dia ela pegou
e chamou ela para fumar maconha, aí ela
foi e quando chegou lá ela disse que não
ia fumar, porque a mãe dela não deixava,
nem o pai dela também; ela não tinha
porque ficar fumando maconha, disse que
o que o pai dela dava a ela era suficiente
Violência x Violência
Ameaça sofrida
Ter que tomar uma atitude para não perder
autoridade
Quotidiano do trabalho
Gosta do trabalho é importante
Acha que devia ter, foi ensinada pela família
que é preciso ajudar.
Estudo para ascensão social
Trabalha para ajudar a família
Independência financeira
Tipo de trabalho
Quotidiano Escolar
Influência negativa
171
e tudo que ela pedia ele dava. Aí ela ficou
(insistindo) menina, só um pouquinho, se
você não quiser você não paga, só paga
se você quiser. Se você quiser gostar e
tomar claro que eu não vou ficar
pagando, mas se você não gostar não
paga, esse é de graça meu marido que me
deu. Aí ela falou assim, não, não, não
quero não, ô rapaz, experimente, aí ela
foi e fumou. Aí depois ela ficou viciada,
aí chegava em casa quebrando tudo.O pai
dela brigava com ela, batia, e também a
mãe dela depois conversou bastante com
ela só que ela não queria ouvir conselho
da mãe dela. A mãe dela foi e colocou ela
no centro de recuperação. Aí ela fugiu
com um colega que era de lá e que ela já
conhecia; aí voltou para a casa dos pais
dela de novo, ficou lá aí ela parou um
pouquinho, que eu acho que ela não fuma
mais, porque ela disse que não está
fazendo mais nada disso. Aí ela levava
até para escola, fumava dentro do
banheiro, o diretor descobriu transferiu
ela para outra escola, depois as outras
Uso de drogas na escola
escolas também transferiu ela pra outra
escola, tudo uma empurrando para cima
da outra escola, aí agora ela está
A escola não sabe como intervir na situação
estudando de noite, na minha sala e ela
Não quer ter responsabilidade pelo fato
disse que não quer mais conta com
drogas, porque ela sabia que o que ela
estava fazendo não era certo e que agora
que ela parou, ela está aprendendo a
escutar o pai dela.Você falou que o pai
dela batia nela. E o que você acha
Experimentação da violência através de
disso? Eu acho que às vezes ele está outro
certo porque como é que ela chega em
familiar
casa querendo quebrar as coisas que não
foi ela que comprou, não foi ela que
suou, o pai dela que deu, e pode até servir
para ela porque o pai dela é separado,
Poder do pai não pode ser destituído
pode sair de casa para ir morar com a
mulher dele e aí deixar tudo para ela,
então. Se ela está destruindo uma coisa
que pode servir até para ela, ele ta certo.
Então, assim...você, você nessa situação
de violência, acha que o pai dela foi
certo? E o que você acha da violência
mesmo?Ah! A violência é terrível que eu
já convivi também com o fato de meu
172
cunhado chegar lá (em casa) querendo
brigar como o meu pai, cheio de cachaça,
ele chegava querendo bater em minha
irmã, querendo bater na minha mãe,
querendo bater em meu pai, querendo
bater em todo mundo, chegava até brigar
com meu pai, porque meu pai via ele
dando tapa em minha irmã, dando murro
e não ia deixar, né, uma pessoa que só
tem um filho com a filha dele chegar e já
espancar assim, por que ele não bate, ele
não ia deixar ninguém bater. Aí ele
chegava queria jogar copo, faca, jogando
um bocado de coisa, querendo destruir a
porta, querendo meter o pé na porta.
Como tudo começou? Começou que ele
começou a namorar com minha irmã
escondido, aí depois quando meu pai foi
e descobriu, aí ele veio e pediu para
namorar na porta. Meu pai deixou. Aí
depois ele tirou a honra dela, aí ele
contou para meu pai. Meu pai também
não falou nada, só disse que ele
assumisse...mas ele já chegou dizendo
assim: se o senhor não quiser que ela
fique em casa pode deixar que eu boto ela
lá em casa, eu sou homem e tenho
coragem de assumir, boto ela dentro de
uma casa. Aí ela foi morar com ele, meu
pai falou: não. Não, pode deixar ela aqui
e continuar namorando, sabe!? Aí ele,
não, eu vou levar ela, vou morar com ela
e fazer dela uma mulher agora. Aí foram
morar lá num quartinho pertinho de lá de
casa e todo mundo conhecia o ponto do
quartinho, aí quando chegava lá de noite
ele ia trabalhar, aí ele mandava ela ir para
lá para casa aí ela ficava lá, quando
chegava de noite, ele batia nela, batia,
batia, batia mesmo, chegava dava murro
e o olho ficava roxão, quando ela ia lá em
casa aí mainha falava. Aí quando o olho
dela estava roxo ela, aí ela não pisava lá
em casa porque ela tinha medo de
contar, aí ele dizia a ela para não falar,
ela ficava com medo de falar para meu
pai, porque sabia que meu pai ia lá
procurar briga, porque meu pai não ia
gostar da filha dele chegar com o olho
roxo, aí né, ela dizia: não, não foi nada
Alcoolismo e violência
Violência física
Não aceitação da violência
Poder do pai não pode ser destituído
Violência contra toda família
Motivo da violência
Concepção de mulher como objeto
Posse sobre a mulher
Violência
Agressão física
Medo
Esconde que sofre violência
173
[...] eu bati não sei lá o que aqui no olho,
aí ele um dia ele chegou em casa ,
quando ele bebia aí ele vinha e dizia
assim: ô dona... eu peguei sua filha e
bati, porque ela me azunhou, falando
com mainha para ela acreditar na
conversa dele. Só que todo mundo já
sabia que quando ele bebe, sei lá, ele fica
diferente assim, se transforma. Aí ele faz
um monte de coisas e no outro dia não se
lembra de nada e também quando você
vai dizer a ele, ele diz que é mentira, aí
alguma coisa que ele se lembra pede
desculpa as pessoas e depois quando ele
bebe ele faz a mesma coisa, aí pronto, aí
bateu, bateu, batia nela direto, todo dia
ela apanhava, todo dia ela apanhava, aí
teve um dia que ela disse que ia embora,
ele pegou arrumou as coisas dela levou
lá para casa e falou olha sua filha aí ó,
como se fosse uma mala. Aí meu pai
disse: tudo bem, pode deixar ela aí. Aí ele
deixou. Depois aí ele chamava ela, se
encontrava com ela escondido de novo, aí
demorou um pouquinho assim, aí ele veio
de novo pedindo para morar junto, aí
morou, batia nela de novo. Aí um dia né,
depois no outro quartinho que ele foi
morar, depois da outra pessoa, ele
quebrou a porta, quebrou os pratos, tudo
dentro de casa, jogou ela na parede, deu
tanto murro nela, tanto tapa na cara dela,
ela disse por que meu filho, por que meu
filho(...), avistou o primo de 11 anos e
começou a gritar, ele fechou a porta e
batendo nela, ela gritando o menino
porque ela tinha visto que tava lá. Aí ele
foi (o menino) e chamou meu pai, quando
a gente chegou lá, ele quebrou a porta,
botou a porta para fora, que eu não sei
como ele conseguiu quebrar aquela porta,
porque a porta era resistente mesmo, mais
ele deu um chute que quebrou a porta,
quebrou fogão, quebrou tudo, tudo ele
quebrou. Aí foi, minha irmã estava com a
boca inchadona e o olho também já tava
roxo de pancada que ele tinha dado, aqui
assim (aponta o local) e aí tava mais
roxa ainda o lado inchado assim, tava
inchadão, todo roxo de pancada que ele
Justifica ato violento
Alcoolismo e violência
Ciclo da violência
Violência agressão física
Trata como objeto
Ciclo da violência
Repercussões físicas da violência
Violência
Ameaça
Ciclo da violência
174
dava, chute. Aí ela pegou arrumou as
coisas dela e foi lá para casa só que ela já
estava grávida da menina, aí ela foi
perdeu o bebê porque ele deu uma pezada
na barriga dela e ela começou a sangrar,
aí ela estava toda machucada já. Foi para
o hospital fazer aquele negócio. É, aquele
negócio (...) fez um aborto para tirar o
bebê, porque já tava grande já, só que ele
deu um monte de pancada na barriga dela
e a barriga ficou toda dolorida, ela falou a
médica e ela tirou lá um monte de sangue
estava descendo pela perna dela, estava
descendo aí ela tirou tudo que ficou
dentro da barriga foi para lá para casa. Aí
ele um dia ameaçou ela, mas não sei o
que foi que ele falou que ela tomou raiva
da cara dele, não quis mais ver. Aí ele
ameaçou ela, não sei o que ele ameaçou
ela aí ela foi e ficou com ele de novo, aí
já foram morar longe, aí ele falou assim
vamos na minha casa, aí ela foi que ele já
estava em outro lugar. Toda vez que ele
fazia as coisas ele já ia procurar outro
quartinho para morar. Aí ele foi morar
longe. Longe assim (quer dizer), porque
ele morava numa rua perto, já era outra
rua que é um pouco distante. Ele falou
assim: bora lá na minha casa, aí ela foi,
não sei o que ele disse lá, aí no outro dia
deu dez horas da noite, ela não chegou,
deu onze, deu meia noite, cadê essa
menina? Perguntou meu pai. Aí meu pai
falou assim, aí tinha uma vizinha lá que
minha mãe olhava sempre o filho dela.
Você sabe onde é que ele mora? Aí ela
falou assim. Sei. Mora lá perto de minha
casa. Aí meu pai chegou lá, meu pai
bateu na porta. Aí ele: o que é? Que ele já
sabia que era meu pai. Aí meu pai
[refere-se a filha] tá aí, aí ele falou assim:
tá e ela não vai voltar mais não, ela só vai
voltar para pegar as coisas dela e ele
mandou ela se esconder. Ela também não
disse nada. Aí depois aí ele pegou, aí
disse a meu pai, falou assim: deixe eu
entrar para a gente conversar que meu pai
queria que ele agora assumisse ela de
verdade, só que ela tinha engravidado de
novo e é essa menina aí (que você viu).
Retorno a casa dos pais em virtude da
violência sofrida pelo ex-marido
Aborto
Foi ao serviço de saúde por causa do aborto
Assistência de saúde negligência caso de
violência
Sofre ameaça do agressor
Ciclo da violência
Tenta diálogo com o agressor
175
Aí meu pai, aí eles começaram a
conversar que ele estava pensando que
meu pai estava armado, alguma coisa
assim, com faca... não tô com nada não!
Não tô armado, pode abrir o portão que
agente vai conversar, porque esse
negócio de você pegar a menina usar e
depois você bota lá em casa, isso daí eu
não vou aceitar não, você agora vai
assumir ela de vez. Aí ele pode deixar
que eu assumo, ela só vai lá pegar as
coisas dela e nisso pegou deu calça, deu
roupa, deu um monte de coisas a ela,
ficou agradando ela, aí depois quando foi
com 3 semanas, um mês que diga, com
um mês começou de novo a bater nela,
bater, bater, bater, ela já tava grávida,
batia...e depois deu outro murro na boca
dela, a boca ficou inchadona e roxa, de
novo, até o dente dela tá, parece que tinha
partido aqui assim, a gengiva daqui, já
tava sentindo dor na parte de baixo. E
isso aqui assim foi de tanta
pancada....chega quando ela abre a boca
assim dá um estralo, assim como se
tivesse quebrado esse negócio aqui
aponta mandíbula). Foi a mandíbula
dela, devia ter quebrado, porque quando
ela abre faz um estralo tão grande, aí ele
pegou, deu um bocado de porrada na
boca dela, aí ela disse que ia prestar
queixa. Aí pronto, prestou ela deu queixa
na delegacia, o policial mandou a
intimação para ele. Aí ele não foi. A mãe
de disse que ele foi embora, que ele foi
para um interior, mais ninguém sabia
onde ele estava, mas ele não tinha ido
para interior nenhum. Aí só correndo,
correndo, aí ele não compareceu em
nenhuma, aí depois ele ficou um bom
tempo até todo mundo ter esquecido, aí
ele veio, aí ficou querendo enganar ela,
ficar de novo, aí ela pegou e não quis, aí
ela tava no canto encostada conversando
com a menina aí meu primo tava na
pracinha, a pracinha é um lugar aqui, é
lá, é bem pertinho. Ele brigou com ela e
bateu, bateu, aí ela deu queixa dele e não
quis mais. Ele já foi preso antes de
namorar ela. Sabe por quê? Não sei
Tenta diálogo com o agressor
Pai também demonstra posse da vítima
Reconciliação com a vítima
Ciclo da violência
Violência
Agressão física
Repercussão da violência
Denúncia
Proteção familiar ao agressor
Fuga do agressor
176
direito não, acho que fez um roubo e
disse ao pai que ganhou na loteria,e o pai
acreditou, deu dinheiro ao pai, a todo
mundo que era amigo dele, mais depois a
polícia queria o dinheiro de volta e foi
atrás do pai dele para devolver, prendeu
ele e o pai dele pediu até empréstimo
para dar dinheiro o dinheiro que ele tinha
dado a ele. E quando sua irmã
conheceu ele, ele fazia isso? Não, ele
não fazia mais não. Você acha que ele
gosta dos filhos? Gosta nada, se não
dava de comer, cuidava. Ele só vem
pegar eles bêbado, e só quer saber da
menina, do outro não quer ver. Quer ficar
com a menina mais agente não deixa, aí
se reta e começa o falatório na rua, ele só
fica com ela se for por perto ou então que
alguém siga. Até hoje ele tem ciúme
dela, até ela arranjou no shopping alguém
que ia ficar com ela fazer futuro, quando
ele soube ameaçou o rapaz, daí ele saiu
fora. Se ela arranjar outro ele persegue
até terminar. Ele não cuida não sempre
foi assim e continua fazendo a mesma
coisa com outras mulheres. E ele já está
com alguém? Não sei. Como é sua
relação com seu pai? É boa, só acho
ruim que meu pai acha que tudo tem que
ser do jeito dele, fala que no tempo dele
quando não acertava a tabuada a
professora lhe dava de palmatória e no
outro dia ele já tinha aprendido tudo, até
a professora se admirava como ele
aprendeu tudo rápido (risos). Ele passava
o dia todo estudando até saber tudo de có.
Aí ele acha que agente tem que aprender
de qualquer jeito, ele diz que antigamente
funcionava. Porque acha que seu pai
faz isso? Para a pessoa ser alguém na
vida.Ele fala que ele já ficava na tampa
da garrafa ajoelhado, no milho para poder
saber as coisas, ser um homem de bem.
E sua mãe como é sua relação com sua
mãe? Boa, mãe estudou pouco, aí ela
não liga muito não, ela cobra mais não é
igual ao pai. Qual sua cor? Sou preta.
Se tivesse que casar com que homem se
casaria? Homem honesto, de caráter e
que me dê as coisas, casa, o que comer.
Motivo da denúncia
O agressor já foi preso por roubo
Alcoolismo e violência
Família protege os filhos do pai por medo de
que os filhos sofram algum tipo de violência
Agressor persegue a vítima
Espécie de dominação
Relacionamento familiar
Imposição
Educação no tempo do pai
Foi educado no regime autoritário
Estudo
Mobilidade social
Foi educado no regime autoritário
Pouco estudo, pouca cobrança.
Cor preta
177
Pode ser preto? Pode, porque os
bonitinhos são muito tiradinhos, tiram
onda com nossa cara, prefiro o feinho
sabe, mas que goste de mim, porque o
pretinho tem fidelidade, não ficar com os
outros que só querem ficar sem
responsabilidade.
Concepção de homem provedor
Provavelmente já foi vítima de discriminação
durante relacionamentos amorosos
Família Ogum. Entrevista B
Fale-me do seu dia-a-dia? Olhe eu vou
falar logo do que aconteceu, já que
aconteceu né. Minha filha, tem que se
comportar em casa, pra falar a verdade,
ela tava estudando, aí ficou grávida, foi
Privar da liberdade para manter autoridade
conviver com ele e não deu certo, aí se
não dá certo com ele é obrigado voltar
para casa. Aí ela retornou para casa uma
vez, duas vezes (...), não quero ele aqui, é
de minha porta para lá, vê os filhos é
direito dele, mas de minha porta para lá.
E o senhor estudou? Estudei até a 5ª.
série, depois tive que tocar a vida para
frente. Sempre acompanhei na escola me
preocupava com os estudos delas,
Quotidiano Escolar
participava de reuniões que as
Educação
professoras chamavam, participava até de
Regime disciplinar autoritário
palestra. Antigamente a gente tomava
bolo e tal para aprender, hoje já não tem
sabatina, no meu tempo tinha sabatina,
não podia perder de ano, se perdesse (...)
eu mesmo nunca perdi de ano quando
Para aprender necessita sistemas
estudava. Antigamente tinha ABC, hoje disciplinares
em dia não tem, hoje eu não vejo colégio
coercitivos
assim, não sei não, lá (no interior onde
morava – escola em Capim grosso) você
tinha que ler todo o ABC, recordar letra a
letra para poder saber. Era mais rígida,
rígida como é que diz, mas as pessoas se
Educação autoritária
dedicavam mais aos estudos. Hoje tem
mais é brincadeira, tem mais é...acho hoje
tudo mudado, eu mesmo não entendo
mais nada hoje, porque é diferente. Eu
não sei lhe dizer assim porque todo
estudo depende das pessoas que está lá
? Mudança de paradigma na Escola
dentro, então, aquele que acompanha o
Pós-modernismo
dia-a-dia. Como conheceu sua esposa?
Não me lembro mais não, eu conheci ela
aqui em Salvador. E como foi? Também
178
não me lembro não. Como é sua relação
com ela? Pra mim é muito boa, ela me
respeita, eu respeito ela, não tenho como
melhorar, mas a gente está vivendo a vida
aí devagarzinho. O sr. faz o quê? Eu
trabalho, mas nada certo, eu trabalhava
assim em gráfica, mas faliu, fechou, aí
tinha que mexer em computador aí eu
parti para outra para trabalhar, aí como
era mais moderna queria que eu entrasse
direto, sabe! eu pedi um teste prático
[treinamento] e não consegui, aí não deu
mais, a idade também não ajudou, apesar
da experiência hoje eles não querem mais
dar trabalho assim [a alguém de idade, só
pela
experiência,
mas
sem
o
conhecimento teórico]. Hoje eu trabalho
assim [...] de pedreiro, eu trabalho
quando me chama para construir. Hoje
mesmo eu estou esperando o rapaz que
ficou de vir me pegar para eu ir. Já ouviu
falar de violência? Já ouvi falar, já vi
caso de espancamento por não conseguir
conviver. Porque será que ocorre o
espancamento? Não sei. O pensamento
de cada um, o temperamento. Não sei. Só
a mãe deve saber, acho que o
temperamento, alguma coisa que ela dizia
que ele podia não compreender e aí batia,
coisas deles lá. Se acontecia alguma coisa
lá entre eles né, ela é adolescente né,
ainda não é equilibrada ainda e aí dizia
alguma coisa que não ia fazer aí ele batia
nela. Só ela para poder falar disso. Sabe
o
que
é
discriminação?
Sei,
discriminação é julgar algumas pessoas,
né; discriminação que eu acho é isso aí,
desfazer das pessoas por qualquer coisa.
Já vi, mas não conheço, já vi. Vi assim,
falando, vi passando, olhando assim, não
sei se tava certo ou errado, mais não
parei. Alguém de sua família já foi
vítima de discriminação? Nunca percebi
não, se aconteceu, ninguém me contou.
Sobre a violência o que aconselharia
nos casos de violência? Eu acho que a
pessoa deve se comportar e tentar
construir um futuro, porque o futuro é
uma coisa muito importante na vida e se
a pessoa não se comportar não é nada na
Não sabe educar de outra forma
Quotidiano do trabalho
Trabalho desqualificado atribui a pouca
escolaridade
Tipo de trabalho
Não concebe os maus-tratos da filha com o
marido como violência
O homem tem direito de bater na mulher
Motivo da violência
Conceito de discriminação
Distante da sua realidade
Mostra desinteresse
179
vida. E o seu ex-genro? Até o momento
Deposita no futuro o a esperança de
nunca me desobedeceu pega os filhos vai mudança
dar um passeio ali perto e volta, se ele faz
alguma coisa que eu não vi, faz na minha
ausência, não na minha presença. Qual
aconselhamento dá a sua filha que já
foi vítima de violência? O que eu cobro
mesmo é estudar, porque se não estudar,
elas não tem nada na vida. Eu mesmo
trabalho aí, mas sem muito recurso. O
que é violência para o sr.? A violência é
um negócio que você encontra em
Tem que estudar para ser alguém na vida
qualquer lugar hoje em dia. Para mim foi
um negócio triste na minha vida, nem
pensava que ela fosse ficar com uma
pessoa dessa, e... eu não podia fazer mais
nada, porque agente conhece as pessoas;
Significado da violência
um jovem que não tem futuro, você vê aí
ó que só que saber de namorar e tal, mas
não tem futuro nenhum, arranjou um
quarto para viverem juntos em aluguel.
Eu acho que não sei não, eu acho que a
pessoa deve ter mais competência e
procurar a trabalhar para poder sustentar
os filhos, ter responsabilidade. Para mim
Ter trabalho é fundamental para
foi melhor, porque não podia ver ela toda sobrevivência
roxa de marca dele, porque acontecia,
porque tava lá na mão dele. Para ela eu
acho que melhorou muito, apesar dela
não estar estudando, porque agora fica
em casa tomando de conta dos filhos. A
outra filha, a mais nova é ajuizada, já
passou ela dois anos, não tem namorado.
Eu até concordava que ela tivesse outra
relação
que
fosse
assumir
a Priva de liberdade para manter a autoridade
responsabilidade sabendo que ela tem 2
filhos e assumir, eu já vários casos assim.
Assumir a responsabilidade, manter uma
família de tudo, assim realmente
pensando assim eles não são nada meu,
mas eu considero como filhos. Tivesse
assim, capacidade, responsabilidade,
sabe? Aí eu concordava.
Família Ogum. Entrevista C
Fale-me sobre o seu dia-a-dia? Como é
seu dia-dia? Lava roupas, arruma casa,
menos comida. Todo dia faço a mesma
coisa, faço a rotina de todos os dias, não
180
tem nada diferente, sempre a mesma
rotina. O que seu pai lhe fala sobre o
que aconteceu, dá conselhos? Me dá
conselho nenhum! Tudo é escola. Tudo o
quê? Silêncio. Me fala como ele lhe
trata? Xingando (risos). Me fale como é
isso? Ele se reta, se aborrece. Se
aborrece com quê? Não sei. Você não
sabe com que ele se aborrece? Silêncio.
Porque você acha que ele lhe trata
assim? Silêncio. Não tem nem idéia?
Porque eu parei de estudar, tive filhos,
acho que é por causa disso. Você teve
muitos namorados? Tive 1 só. Só 1 na
porta, mas já teve outros namorados?
Como é namorar? Escondido. Porque
namorava escondido? (risos), porque
meu pai não deixava. Seu pai não
deixava namorar? Não Aí você
namorava escondido. É. É bom? É.
Como eram esses namorados? Você
gostava deles? Eu enjoava deles. E
como era isso? Ah! Não lembro mais de
nenhum namorado, só de um que era
segurança, só ele que eu fiquei 3 dias.
Não gostou dele não? Silêncio. Ele lhe
tratava bem? Tratava. Seu último
namorado foi seu marido? Não foi o
primeiro. Ah! Foi o primeiro e você
gostava dele? Gostava. Quantos anos
ele tem? 24 anos. Mais você ainda gosta
dele? Silêncio. Quando eu me separei ele
tinha 23 anos, acho que ele hoje tem 24.
Como foi que você o conheceu? Lá
mesmo (refere-se ao local em que mora).
Morava perto? Numa rua depois.
Preciso que fale um pouco de sua
relação com ele. Como começou seu
relacionamento? Namorava escondido
[...] não saía não, namorava escondido
depois voltava para casa. E como ele era
com você quando vocês namoravam
escondido? Era bom comigo não me
maltratava não, não fazia nada comigo,
gostava falava em casar até hoje fala, mas
eu não [...] acredito. Ele é seu marido
como foram morar juntos? Só
acontecia esse negócio de briga quando
ele bebia. No dia-a-dia de vocês como
era? De segunda para sexta era bem,
Repetição
Tem que estudar para ser alguém na vida
Violência
Motivo da violência
Parece que ainda gosta do marido pois
permanece em silêncio
Relato de não-violência durante o namoro
181
sábado e domingo era o problema. Ele ia
trabalhar de manhã e só vinha de noite,
ele trabalha como cabeleireiro, que acho
também a briga mais ainda porque ele
vinha, eu vinha para casa de minha mãe,
aí eu não gostava de cozinhar. O
problema era esse, queria que você
cozinhasse? Era. Eu ia para casa de
minha mãe almoçar e voltava para casa
quando ele estava perto de chegar. Aí
quando ele chegava não tinha o que ele
comer? Tinha, mas ele não queria. Como
é que começava a briga? Assim quando
ele vinha todos os dias para a casa da
minha mãe ele sempre vinha me pegar
aqui. Ele vinha lhe pegar na casa de
sua mãe? Me fale como tudo começou?
Porque eu ia para casa de minha mãe. Só
porque você ia para casa de sua mãe?
Quando ele bebia alguém botava coisa na
cabeça dele.Quem conversava com ele?
Os irmãos. Ah, ele tem irmão aqui?
Tem, mora aqui. Os irmãos deles não
sabem que você vai para casa de sua
mãe? Inventava coisa, inventaram agora
para ele dizendo que eu estava ficando
com um menino que é a fim da minha
prima. Ele conversa muito comigo aí o
irmão dele falou a ele que eu estava
ficando com esse menino. Ela também é
a fim do menino. E porque não estão
namorando? Porque ela tem marido. E
seu marido, então acredita nos outros?
Sim. Ele é ciumento? Sim. Porque acha
isso? Pelo que ele fazia, importava deu
sair, só que eu não tinha nada o que fazer
lá (em sua casa), ficava olhando para as
paredes. E porque você se separou?
Porque eu tava grávida dele só que eu
não sabia, nem ele sabia, aí ele tava
conversando na roda de amigos, aí depois
ele pegou minha menina da minha mão e
deu a outra menina, ela tava pequena nem
tinha a idade desse menino aqui (6
meses), aí eu fui pegar da mão da
menina, aí ele achou ruim, que eu tava
desobedecendo e ele, aí, ele começou a
me bater na frente de todo mundo. Aí eu
achei desaforo, não porque quando
agente brigava assim, agente brigava, ele
Álcool como causa da violência
Fim de semana: violência
Motivo da violência
Motivo da violência
Cultura de que a mulher deve servir ao
Homem: Lavar, passar, cozinhar
Álcool
Família do agressor contra a vítima
Família do agressor contra a vítima
Motivo da denúncia
182
vinha para casa e me batia escondido,
antes ele já tentou me bater muitas vezes,
mas não bateu, ele tentava. Quando foi a
primeira vez que ele lhe bateu? A
primeira vez eu tava namorando ele, eu
tinha 13 anos a gente separou e ele
viajou, aí depois ele voltou de novo aí a
gente ficou junto de novo eu fui porque
eu achava que não tinha condições de
assumir essa responsabilidade. Qual?
Não poder sair, não ter liberdade para sair
com quem a gente quer sair, então achei
que era muita responsabilidade. E
porque quis morar com ele se não
tinha responsabilidade? Porque eu era
muito prisioneira em casa, aí eu achava
que se eu saísse de casa eu ia ter mais
liberdade, porque eu não tinha liberdade
para sair, conversar como agente quer,
porque meu pai fala, minha mãe fala,
querem que eu fique em casa o dia todo.
Eles estão certos ou errados? Não, eles
tão errados, porque como é que prende
uma pessoa dentro de casa. Me casei para
eu ter liberdade, só que eu acho que não é
nada disso. Quem lhe prendia? Meu pai.
Minha prima nunca foi de namorar nem
nada, nunca fez nada, nunca apanhou de
namorado, porque ela já ficou presa de
pai e madrasta. Por quê? Não sei por que
eu não vivo com eles para saber. Mas
minha outra prima também ficou presa
porque pegou o marido da tia. Foi assim
a tia dela pediu para mãe dela para ir para
casa dela trabalhar no mercadinho que
eles tinham, aí a mãe dela confiou e
deixou, aí o marido dela vinha buscar e
vinha trazer, aí ela foi ficando com ele e
engravidou, ele depois pagou para tirar,
aí hoje graças a Deus se libertou disso.
Mas, a tia dela pegou ele com ela na casa
dela. Você acha que ela queria fazer
isso? Ela queria porque quando a mãe
dela prendeu ela na casa da madrasta ela
pegou e fugiu de casa e deu no que deu.
Ele [marido da tia] também agredia ela,
batia nela também, ela vinha cheia de
hematoma. E você acha que seu exmarido ainda gosta de você? Acho que
não. Ele ainda diz que gosta, né. Corre
Violência sofrida desde o namoro
Não tinha liberdade em casa
Ciclo da violência
Casamento como Fuga da Violência, no
entanto, prossegue a violência
Traição matrimonial
Perda da liberdade engravidou do tio
183
atrás, faz isso, faz aquilo, mas só que
depois disso tudo e não é agora que vai
dar certo. Ele vem dá as coisas das
meninas fica me perguntando se
lamentando. Já se separaram quantas
vezes? Várias vezes. Já perdeu algum
filho? Perdi um, eu tomei remédio.
Porque tomou remédio? Eu não queria
filhos, mas depois eu me separei dele aí
eu peguei e tirei. Ainda quer ter filhos?
Eu não, já tenho dois. E porque tirou o
primeiro? Era para ter evitado, mas a
gente se separou... aí tirei. Se fosse casar
hoje, casaria com quem? Depende [...]
agente não conhece ninguém vai ter que
escolher assim e esses homens que agente
acha que, não agravando a todos, mas a
gente dizer que quer esse e tal é difícil.
Acha seu ex-marido bonito? Eu achei.
Que cor ele é? Moreno claro. Acho que
ele botou loiro no cabelo. Que tipo de
homem escolheria? Feição não diz tudo.
Casaria com alguém negro? Preto em
não gosto. Eu não sou racista, mas preto
eu não gosto, e eu não pretendo mais
casar não. E só para um namorinho,
um relacionamento? Também não.
Gosto de qualquer pessoa preta, agora só
que para namorar aí eu não gosto não.
Que qualidades um homem precisaria
ter para você? Não maltratar, respeito,
que goste de mim de verdade . E assim
fisicamente que cor de pele? Moreno
claro. O que aconselharia às pessoas
vítimas de violência? Não gosto de
conselhos.
Violência
Agressão física
Praticou abortos diante da separação do
marido
Branqueamento
Branqueamento
Negação da cor
Cor moreno claro
Não está acostumada a diálogos, ouvir
conselhos
Família Ogum. Entrevista D
Fale-me sobre seu dia-a-dia. Como é
seu dia-a-dia? Meu dia-a-dia é bom. Eu
moro perto da minha avó, minha avó aqui
e minha avó de lá [moram na mesma
travessa], fico mais aqui e mais lá. Moro
perto de meu avô que eu não gosto muito
dele. Por quê? Porque ele é muito chato.
Moro perto de minha tia, ela mora lá em
cima e meus outros parentes moram no
interior – Conceição de Almeida. Uns
Quotidiano
Parentes: avó, tios, primos, moram no
mesmo domicílio ou na vizinhança
184
moram em Feira de Santana. Então você
é do interior? Não. E sua mãe? Não,
minha mãe é daqui. Quais seus parentes
de lá? Meus parentes de lá, são tios,
primos. Aqui é a casa do pai de meu pai
[se refere ao local da entrevista] e lá onde
eu tava é a casa da mãe de minha mãe. O
que é que você faz todo dia? Conteme? Ah! eu brinco, jogo bola, estudo e
só. Só? Olho meu irmão. Você olha seu
irmão? É. E minha outra irmã. Quantos
anos têm seu irmão? 5. E sua irmã? 13.
Você toma conta de sua irmã e seu
irmão? É, porque ele me obedece por
que. Obedece? Consegue que eles
sigam o que orienta direitinho? É,
porque [pausa] painho já conversou com
eles que tem que obedecer. Eu já sai na
mão com ela. Por que fez isso? Porque
eu queria que ela vestisse uma roupa no
meu irmão e ela vestiu outra, aí eu peguei
dei um murro nela, ela me bateu e eu dei
um bocado de murro nela. Então foi por
causa de uma roupa? Foi. É eu não
gosto de bater em ninguém porque não
sou pai de ninguém, mas quando me bate
eu não consigo ficar quieta. Ela que
começou? Ela começou a briga? Assim,
ela começou e você revidou, é isso?
Você acha que tá certo bater? Não.
Porque você acha que está errado?
Porque eu não sou mãe, nem pai dela. E
ela não é minha mãe também. Além
disso, o que mais que você faz? O que
mais faz parte do seu dia, o que você se
lembra? Silêncio. Como é sua vida na
escola? Bem, brinco na escola e filo aula.
Porque é que você fila aula? Eu, às
vezes não gosto de assistir aula de
português, já briguei com a professora.
Porque você brigou com a professora?
Ela fica querendo...a pessoa não pode
nem botar o pé na cadeira assim que ela
fica falando. Ela reclama com você?
Por que você acha que ela faz isso? Não
sei. Ah, ela disse que isso tá errado, se tá
certo ou errado eu não sei, eu faço
mesmo, não quero nem saber eu pirraço.
Você faz para pirraçar ela? É. Mas
será que ela fica pirraçada? Não.
Poder
Transferência de poder
Forma de Educação
Desobediência motiva violência
Os pais têm direito de bater
Ciclo de violência/reproduz o que aprende
Os pais têm direito de bater
Quotidiano Escolar
Quotidiano Escolar
185
Quem fica pirraçada é eu. Porque é
que você sai pirraçada disso tudo?
Porque lá ela pode fazer o que ela quiser,
agente não. Ela pode reprovar agente (se
refere aos colegas de sala também), ela
pode abaixar a nota. Então, você aí, acha
que lá você acaba saindo perdendo
nessa situação. E na escola você já viu
algum caso de alguém que já foi vítima
Professor tem autoridade
de violência? Lá tinha uma menina lá
que já foi vítima eu acho? O que é
violência
para
você?
Estupro.
Estupro?É só o estupro? Não. Tem dar
facada, matar. Que é mais você sabe
algo mais que identifique como
violência? Não. O que você acha da
Significado da violência
violência? Que tá errado. Que tá
errado? Por quê? Silêncio. Alguma
colega sua já lhe falou sobre essa
questão da violência e tal, que viveram
algum tipo de violência? Não. E em
Mantém silêncio ao falar da violência
casa? Você já notou se alguém já foi sofrida
vítima de violência? Nunca. Nunca viu
ninguém falar sobre violência? Não. E
você? Eu já. Você já foi vítima né?
Como foi isso? Como tudo começou?
Eu estava em casa lavando os pratos, aí
chegou, o, o, o (gaguejou), o primo de
minha mãe, me chamando, me
chamando, porque antes minha avó
guardava a água lá, porque ia fazer
comida...aí ele chegou para pegar água, aí
mandou eu baixar a roupa, mandou eu
Violência
pegar água né, aí eu peguei quando eu
Como ocorreu o fato
peguei o portão tava aberto aí ele entrou
e ficou lá na cadeira, aí eu peguei e disse
aqui a água e aí ele foi e me pegou e
botou a água no chão e me levou para o
quarto, e me pegou e me levou pra o
quarto (repete), e abaixou minha roupa e
meu pai chegou. Ele é o que seu? Ele é
meu tio. Ele sempre freqüenta sua
casa? Não só quando minha mãe era
viva, aí ele ia lá de vez em quando.
Quantos anos ele tem? Ele tem uns 39
anos. E porque ele se aproximou de
Agressor parente da vítima
você, você sabe porque? Não sei, ele
abaixou minha roupa. E depois? Meu pai
chegou. Seu pai chegou e disse o que a
ele? Nada. Meu pai olhou para ele, me
186
puxou e chamou minha avó. Aí meu pai
me levou para lá para delegacia e ele
pegou e fugiu. Aí deram dinheiro para
ele, para ele fugir e ele não voltou mais.
Porque é que você acha que uma
pessoa age assim com a outra? Silêncio.
Como é seu pai? Como é sua relação
com seu pai? Como é ele, você e suas
irmãs no dia-a-dia ? Bem. Ele briga,
manda estudar, depois ele, vai para o
trabalho, tem dias que ele trabalha até de
noite. Então você vê pouco seu pai? Só
de manhã e de noite. E seu pai ele lhe
bate? Só quando eu apronto assim.
Apronta o quê? Eu bato nos outros às
vezes, filo aula muito, bato nos outros.
Quando eu filo aula ele vem para cá me
bater. Porque ele quer lhe bater? Não
sei. Ainda não entendi porque você fila
aula? Silêncio. Não gosta da escola
não? Não. Por quê? O que na escola
lhe incomoda? Nada. Agente chega no
horário certo, a diretora já deu um
horário, elas (as professoras) chegam fora
do horário, aí elas chegam e vai para sala
de aula. Agente chega em um horário e
ela chega em outro. A disciplina é só
para vocês, é isso? Você fala isso com
ela, você reclama? As meninas dizem,
eu também digo, mas ela nem liga.
Como é que ela lhe trata? Me trata bem,
mas de vez em quando me trata mal, mais
quando ela me trata mal eu trato ela
também mal. Quando ela tá lhe tratando
mal? Quando ela fica me gritando. Ela
fica lhe gritando por quê? Já aconteceu
ela lhe gritar quando? Foi um dia que
eu levantei para beber água e ela me
gritou me mandando sentar, porque eu
não pedi a ela. Aí ela me gritou eu peguei
abri a porta e sai da sala, bati a porta bem
forte e saí. E no outro dia quando você
retornou para aula com essa mesma
professora, como foi? Ah, eu entrei,
sentei, abri meu livro e assisti à aula.
Tudo ficou como se nada tivesse
acontecido. Para você foi assim, como
se nada tivesse acontecido? Ficou algo
no ar, chegaram a conversar sobre
isso? Não. Você conversa com a
Denúncia
Apoio familiar ao agressor
Apoio familiar ao agressor
Estudo como forma de ascensão social
Quotidiano Escolar/Violência
Violência/Obriga estudar de forma violenta
Quotidiano Escolar
Enfrenta a violência com violência
Enfrenta a violência com violência
187
professora
quando
tem
algum
problema? Eu converso com ela, às
vezes as meninas conversam com ela,
mas não converso muito não. Por quê?
Não gosta de conversar? Não. Não se
sente apoiada? Não. De quem você
mais gosta? Quais são as pessoas que
você mais gosta? Minha tia M, tia S,
minha avó, minha madrinha e meu pai.
Eles que eu mais obedeço. Quem você
gosta você obedece? Até meus tios
assim, alguns se falar alguma coisa
comigo, me bater, eu respondo. Se ele
vier me bater eu falo me bata, pode me
bater mais eu continuo te respondendo.
Porque você faz isso? Porque eu não
gosto deles. Por quê? Não gosto.
Quando sua família soube que seu tio
fez isso, como sua família reagiu? Mal,
todo mundo ficou contra ele. Acreditou
em você? Acreditou. Seu pai também?
Foi. Ninguém mais fala com ele, ninguém
mais quer conta, todo mundo isolou ele.
Você acha que foi certo com ele isso?
Pelo que ele fez merecia. O que foi
mesmo que ele fez? Abaixou minha
roupa. E algo mais? Não, porque meu
pai chegou. Nada mais? Silêncio. Então
assim, quem foi que pensou em
denunciar? Meu pai e minha tia.
Quando chegou na delegacia, o que
disse? Eu disse o mesmo que lhe contei
aqui, disse até que ele me ameaçou me
matar se eu contasse. Ele lhe dizia o
quê? Se eu contasse a minha família que
ele ia me matar. Eu tinha medo dele
querer me matar. Aí, depois que eu
denunciei, ele fugiu e não voltou mais,
minha tinha disse que minha avó sabe
onde ele tá, que ele foi para o interior.
Ele só fez me ameaçar. Quer dizer se
você contasse a seu pai ele ia lhe matar,
mas não falou que ia fazer nada com
seu pai, irmã, nem ninguém? Não. E
você teve medo quando ele lhe
ameaçou, o que sentiu? Eu tive medo.
Mas, assim, ele já tinha tentado outras
vezes fazer isso? Não. Quer dizer, ele só
fez aquela vez? Foi, ele assim [...] dizia
que eu era bonita, duas vezes ele disse
Não consegue dialogar para resolver os
conflitos
Obedece quem gosta
Enfrenta a violência com violência
Apoio familiar à vítima
Apoio familiar à vítima
Denúncia
Sofre ameaça do agressor para não
denunciar
Apoio familiar ao agressor
Medo do agressor
Fuga do agressor após denúncia
Medo do agressor
188
que eu era bonita, só duas vezes. O que é
que você acha que deveria acontecer
com essas pessoas que fazem isso com
as outras? O que ele merece. O que ele
merece? Ficar isolado [risos]. O que
você aconselharia? Se você fosse dizer
alguma coisa a ele hoje o que diria?
Silêncio. Eu queria saber que cor você
é? Eu acho que sou morena? Que cor?
Eu queria ser morena [é preta]. Se você
fosse me dizer o que você tem de
melhor? Olhe para você mesmo e me
diga, o que eu tenho de melhor? Nada.
Assim de especial? Nada. Nada de bom.
Você acha que você não tem nada de
bom? Não. Ah! Se você não tem nada
de bom deve ter de ruim? O que tem
de ruim? Não, eu não tenho nada de
bom, nem de ruim. Assim, eu não sei
falar. Vou dar um exemplo. Eu sou
gordinha, as pessoas acham gordinho
feio. De ruim que eu tenho é as verrugas
só, tentei tirar mais o médico não tava lá
para atender. Me fale mais sobre você?
Diga o que você tem de bom? Nada. De
importante? Nada. Como nada? Nada
de importante, nada de bom? Eu não
gosto de falar não. Tá com vergonha de
mim? Não, eu que não gosto. Vou sair
curiosa sem saber isso? Silêncio. Tem
namorado? Não. Ela não quer me de
contar, tá me escondendo a parte
melhor? Abra o Jogo, tem namorado?
Não tem, então tá bom. Então se você
fosse namorar alguém? Não tem nem
um ficantezinho, um pegante então,
você bonita desse jeito, não tem?
[balança a cabeça em sinal afirmativo de
quem tem namorado] Ele é bonito? É,
não ele não fica muito aqui não, ele
trabalha. Meu pai sabe, minha tia sabe
que eu tenho namorado, ele mora lá na
outra rua. Quantos anos ele tem? 16.
Com é que ele é me fale, assim,
fisicamente? Eu tô com vergonha. Ah,
não fique eu preciso saber. A cor dele?
Ah, é igual a mim. Ele é que cor então?
Ah! Não sei, da sua cor. Qual a sua cor?
Moreno escura. Então já notei tudo, ele
tem os olhos pretos e é moreno escuro.
Sedução
O agressor merece distanciamento da
sociedade na opinião da vítima
Branqueamento
Dificuldade de enxergar em si qualidades
Não consegue ver nada de bom em si/
imagem e imaginário negativo de si.
Vergonha de falar de si, de suas qualidades
Mantém-se em silêncio
189
Você acha ele bonito? Não. Você
casaria com ele? Não, ah não. Por quê?
Porque não. Não acha um partidão ele
estuda e trabalha e você não quer ele?
Não tem alguma coisa nele que ela não
aprova? Não, porque eu já vou terminar
com ele já. Ele fez alguma coisa que
você não gostou? Ele passou dos
limites? Tá bom você não quer me
contar, tá certo. Vamos voltar um
pouquinho para o seu dia-a-dia, tá,
então assim, o que é que você faz na
casa de sua avó, o que você faz na casa
da outra avó? Eu fico ajudando minha
avó e tudo. Você faz o que para ajudar
ela? Quando ela está lavando os pratos,
eu arrumo a casa, quando ela lava os
pratos eu arrumo a casa, quando eu chego
e não tenho o que fazer, eu ajudo ela,
ajudo ela a lavar a roupa. Então de
alguma forma você está sempre
colaborando. E na casa de seu pai? Na
casa de meu pai, eu arrumo a casa, lavo
os pratos e arrumo meus irmãos para ir
para o colégio. Eu queria saber o
seguinte, você já soube de alguém na
sua família, na sua vizinhança ou na
sua escola que tenha sofrido
discriminação? Ah, meu primo. Conteme como foi? Meu primo trabalhava ali
ó, naquela mercearia (aponta o local), ele
tava ajudando a mãe dele, começou a
trabalhar na mercearia, que ela chamou
ele para trabalhar com ela (a dona) e ele
foi, depois aí sumiu alguma coisa dela, aí
ela chamou ele de ladrão e ficou dizendo
que ele era negro e que ele não ia
trabalhar mais para ela não. Foi mesmo?
E sua tia deu queixa? Ele disse a minha
tia, porque minha tia não viu ela chamar,
só quem viu foi ele e os meninos, aí ela
disse que ia esperar ela chamar de novo
para ir lá (tomar providência). Ele acabou
perdendo o emprego dele, porque ela não
quis mais que ele trabalhasse para ela.
Ela tinha prova que ele tinha feito
isso? Não ela saiu logo dizendo isso. E
como foi que ele ficou? Ele ficou triste,
ficou cabisbaixo, porque ele disse que
não fez nada disso, depois ele saiu para
Não diz que é preta
Branqueamento
Cor moreno escura
Ajuda a família com tarefas domésticas e
cuida dos irmãos menores.
Cuida dos irmãos
Discriminação racial no trabalho
Discriminação como motivo para
190
rua com um pau e disse que ia pegar ela e
quebrar toda no pau (risos). Ele tem
quantos anos? Ele tem 11. Ele disse que
ia quebrar ela toda no pau foi? Ele ficou
muito irritado. O que acha dessa
situação de discriminação? Acho que
ela tinha que ter uma punição [...] ser
presa, porque ela é morena e fica fazendo
isso, falando dele, chamando ele de preto.
Em outra situação, ou assim alguém de
sua família ou outras pessoas que você
tenha reparado que passou por esse
tipo de discriminação? Não. Você só
lembra dela. E você? Não. Nunca
percebeu ninguém lhe discriminando?
Não. Nem na escola, na vizinhança?
Não. Outra coisa que eu queria era que
você falasse da sua família, eu quero
saber mais de você, de seu dia-a-dia.
Eu jogo futebol. Como é jogar futebol
para você? Em que posição você joga?
Ás vezes eu agarro e às vezes eu jogo,
sou zagueira. O que significa o futebol
para você? Eu gosto [...] eu queria ser
uma jogadora. Igual a Marta? Risos.
jogador tem de bom que faz você querer
ser uma jogadora? Driblar, fazer as coisas
direito, né. E na sua vida, você gosta de
fazer tudo direito? Não (risos) eu sou
bagunceira, às vezes eu bagunço. Como é
essa bagunça? Eu saio bagunçando tudo,
tirando tudo do lugar, porque ó eu tenho
o meu guarda-roupa, os outros vai lá
chega e mexe, pega as coisas e não bota
no lugar, aí isso me dá raiva, quando eu
tenho uma coisa que os outros pegam e
não bota no lugar. Quem pega e tira do
lugar? Meus parentes mesmo. Minha
prima pega, eu tenho guarda-roupa lá que
tem roupa, roupa aqui [na casa da avó] e
roupa lá em casa, às vezes eu durmo aqui,
ou lá em casa, ou na casa de minha outra
avó, aí ela fica mexendo nas minhas
coisas, quando eu vou procurar alguma
coisa, não acho. Por que ela fica
mexendo em suas coisas? Porque eu dei
ousadia para mexer. E agora você se
aborrece? É porque ela pede uma coisa,
quando eu digo que não ela quer pegar,
fica teimando, aí eu pego e xingo, aí ela
desemprego
Repercussões da discriminação na
vítima/Enfrenta quem lhe violenta com
violência.
Negro não pode discriminar negro.
Então, branco pode?
Quotidiano/Brincadeira
Possibilidade de reconhecimento, de fazer
as coisas direito, diferente.
Desordem/Ordem
191
ainda vem em cima de mim para me
bater. Xingar para você é violência?
Não. Não é não? Não. Xingar é o quê?
Silêncio. Xingar é xingar. O que é
mesmo violência? Às vezes tem gente
que diz que xingar é violência. Mas, eu
quero saber para você. Para mim eu
acho que não. Xingando ela você está
fazendo algo certo ou errado? Uma
coisa errada. E no caso dela, que está
mexendo em suas coisas é errado?
Mesmo assim, eu acho que está errado.
Mas, quem quer as coisas tem que
comprar né, ficar toda hora pedindo aos
outros também é ruim. Também eu nunca
peço nada a ela e ela fica pedindo as
coisas para mim. Seu pai lhe dá tudo,
tudo o que precisa? Não, não tenho um
computador, no dia que minha mãe ia me
dar ela faleceu. Como foi, me conte? Foi
um dia em que ela viajou, quando foi no
outro dia eu passei de ano, aí ela pegou
me prometeu um computador e quando
ela voltou de viagem ela foi direto para o
hospital, ela já tava doente um problema
que ela tinha desde criança, minha avó
nunca levou ela no médico que ela falou,
aí ela morreu. E como era a relação de
sua mãe com seu pai? Bem. Nunca
brigaram. Seu pai alguma vez já bateu
em sua mãe? Não. E sua mãe já brigou,
já gritou com seu pai? Já. Brigava às
vezes quando eu ia para casa de meu pai,
ô do pai de meu pai, o meu avô vivia
pedindo dinheiro a meu pai, aí ela falava
para não dá, aí ele dava, aí mainha ficava
discutindo com ele. Ele queria dinheiro
para quê? Não sei. Ele trabalha, mas
queria fazer um negócio lá para ele, meu
pai não tava lá na casa dele, mas meu pai
toda semana dava umas coisas a ele. Seu
avô é sozinho? Não, minha avó é viva,
mas só que quem pedia dinheiro era ela.
Como é que começa a briga? Meu pai
ficava calado, aí também não fazia o que
ela queria, depois fica tudo numa boa. E
quando abusava muito o pai batia?
Quem batia mais era minha mãe. Vocês
mereciam? Não, eu vinha jogar bola. E
ela não queria que você jogasse bola?
Violência
Conflito quotidiano
Significado da violência
Xingamento está naturalizado
Sentimento pela morte da mãe
Ciclo de Violência
192
Não, porque quando eu jogava bola, era
campeonato e às vezes eu filava aula para
jogar e ela não gostava. E sua irmã
apanhava, já apanhou? Já apanhou.
Você lembra, por quê?
Dela não
lembro não, só lembro de mim. E seu
irmão menor? Não lembro. Quem mais
apanhou dos três? Eu quem mais
apanhei. Por que você apanhava assim?
Porque eu botei meu irmão na geladeira.
E porque você precisou botar o irmão
dentro da geladeira? Porque eu fiquei
com raiva que ele nasceu, eu queria ser
filha única, aí eu tava com raiva dele e aí
eu botei ele na geladeira. Você já não
tinha uma irmã? Foi eu tinha uma irmã,
aí depois veio ele e também ele era
perturbado, eu tinha que acordar todos os
dias para ficar fazendo as coisas para ele,
fazer mingau. Deixe-me entender, sua
mãe era viva quando você o botou na
geladeira? Era. Minha mãe estava numa
festa com meu pai e deixou a gente em
casa, aí eu esperei ela sair e coloquei ele
dentro da geladeira e fechei a porta, aí
quando ela voltou que viu, começou a me
bater. Sua irmã quando você fez isso
tava dormindo? Não, estava na sala
assistindo TV e não viu eu colocando ele
na geladeira não. E quando seus pais
chegaram o que fizeram mesmo? Meu
pai me bateu, mas depois passou. Eu tô
notando que você não liga para tomar
porrada não? Você acha normal tomar
porrada? Ah, eu sempre apanhei. Se
meu pai bater quando eu apronto assim,
se meu pai me bater eu nem ligo. Ele me
bate, daqui a pouco passa. Você na
verdade não gosta de apanhar? Gosta?
Pelo jeito que você ta me falando você
não gosta? Silêncio. Quando a gente
faz alguma coisa errada o que os pais
devem fazer para a gente fazer a coisa
certa? Botar de castigo. Acho que é
melhor castigo. Que tipo de castigo você
acha que funciona, assim, serviria para
você? Não viajava e não saía para canto
nenhum, não ia para praia, da escola para
casa, ficar trancada dentro de casa. Você
acha que ia resolver? Sim. Quer falar
Violência física/ Agressor mãe(já falecida)
Motivo da violência
Filava aula para jogar
O jogo dava a ela a vivência do prazer no
aqui e agora, presenteismo. Diferente da
aula que era uma perspectiva de futuro. E
que futuro?
Banalização
Naturalização da violência
Assumia a responsabilidade dos pais em
relação ao irmão o que gerava a violência
Bater
Bater
Pais têm direito de bater
193
de mais alguma coisa que você lembre
e que agente não conversou? Não, é só
isso. Na delegacia que a gente foi tinha
um registro lá de estupro para
Michele, tem escrito na denúncia
estupro. Porque será? Meu pai que
disse isso. Foi lá e disse. E o que
realmente aconteceu? Ele baixou a
minha roupa. E ele lhe tocou? Silêncio.
Seu pai viu isso? Silêncio. E foi
estupro? Não, mas é como se tivesse
sido. Entendo, pela forma como ele
chegou e fez, então você considerou o
que ele fez estupro. Ele tava perto de
você, tirou sua roupa, tirou a roupa
dele, o que sentiu? Tive muito medo. Eu
chamei meu pai, tive vontade de gritar,
quando eu ia gritar ele tapou minha boca,
aí meu pai chegou. Você acha que ele ia
lhe estuprar? Acho. Uma pessoa que
passa por isso, como ela deve
enfrentar? Pedir ajuda. Como? Quem
pode ajudar? As pessoas, meus
parentes. Como acha que eles podem
lhe ajudar? O que eles fazem, eles lhe
ajudam? Minha tia, minha avó, meu pai,
tudo conversa comigo, me dá conselho,
fala sobre isso. Pergunta sobre isso?
Não. O que eles lhe falam, o que lhe
aconselham? Para quando os outros me
chamar eu não ir num lugar estranho que
eu não conheço a pessoa, num lugar
distante,
diferente.
Eles
ficam
imaginando que alguém possa fazer
algo, possa fazer a mesma coisa? O que
mais as pessoas lhe aconselham? Nada
mais.
Você
se
acha
criança,
adolescente, adulta o quê? Adolescente.
Pensa em ter um namoradinho, sua
vida, sua família? Balança a cabeça em
sinal afirmativo. Quer ter filhos? Não.
Não gosta de criança, Não? Se eu
tivesse filho queria ter uma menina.
Porque queria ter uma menina? Para
ficar penteando os cabelos, arrumando.
Sinto
que
você
queria
uma
companheira, e sua irmã? Não gosto da
minha irmã não. Por quê? A gente não
se dá, ela implica com os outros. Ela
implica com Você? Por quê? Com todo
Medo
Apoio familiar à vítima
Como enfrentar a violência
Apoio familiar à vítima
Apoio familiar à vítima
194
mundo que ela fez que você não
gostou? Toda vez que eu estou brincando
ela chega querendo brincar, aí começa a
confusão. Ela chega querendo brincar e
dá confusão? Como assim? Por
exemplo, eu estou brincando de bola. Aí
ela chegou querendo brincar, quando ela
chega começa o problema, porque eu fico
agarrando aí quando eu erro ela fica me
xingando, falando um bocado de coisa,
dá uma raiva, dá vontade de dar um
murro na boca. Você já reparou que
tudo que fala fica nervosa, com raiva,
quer bater? É. Você já parou para
pensar sobre isso? Porque você faz
assim? Não sei. Porque eu não gosto,
porque quando é alguma coisa que eu não
gosto. E quando é que você fica
nervosa assim? Quando as pessoas
ficam me dizendo coisa. Que coisa? Isso.
Você não agüenta ouvir nada?
Agüento, mas só se ficar me pirraçando.
Então, quando alguém te pirraça você
age dessa forma? É. Quando você bate
você sente o quê? Me sinto mal, eu bato
mais me sinto mal, se me provocar eu
bato. E se provocar você se sente mal,
mas bate de novo, é assim? É. Porque
você sente essa vontade, essa
necessidade de bater? Não sei. Não
sabe? Por exemplo, eu tô jogando bola,
eu tô brincando, aí eu tomo gol, aí ela (a
irmã) fica me xingando, falando um
bocado de coisa. Se eu brinco com as
meninas lá, as meninas nunca falam nada,
porque é erro da pessoa que tem que ficar
marcando, nunca fala nada, agora ela,
acha de falar. Aí quando ela fala você
não gosta, porque ninguém falou e ela
foi a primeira a falar? Então ela não
pode falar nada de você? Não, porque
se ela tá com raiva porque ela não agarra
[não faz melhor que eu]. E você acha
que ela fica com raiva? É, porque
sempre quando eu tô lá, os outros vai
logo me chamando para jogar. Quando
ela chega ninguém chama. Ela parece que
tem raiva de mim [competição]. Acha
que ela tem raiva de você? Como
chegou a essa conclusão? Porque eu
Quotidiano/Brincadeira
Quotidiano/Brincadeira
Motivo da violência
Não sabe dialogar para resolver conflitos
Bater/Não sabe dialogar
Quotidiano Lazer/Brincadeira
195
sinto isso. Alguma coisa ela faz para
você sentir isso? O que ela faz? Dentro
de casa acontece alguma coisa que você
associa essa raiva? Pode ser qualquer
jogo, qualquer coisa que se eu tiver, se
ela tiver sempre dá problema, confusão.
Com ela dá problema? E seu irmão?
Eu brigo também com ele. Porque, o que
ele faz? Nada, também é pirracento ele.
O que é ser pirracento? Os dois são
pirracentos. O que fazem que você acha
isso? A pessoa fica falando e faz errado,
faz, faz, faz, até irritar a pessoa. Quando
eles fazem alguma coisa errada seu pai
briga com eles ou com você? Briga
comigo. Por quê? Porque eu fico
olhando eles. É? E sua mãe e seu pai
gostam mais de quem? Minha mãe de
mim e meu pai de meu irmão pequeno e
da outra [refere-se à irmã]. Não gosta
muito de você não, Por quê? Porque eu
não conto nada para ele. Ele aí fica
achando que você está escondendo
algo? É às vezes eu escondo. O que você
esconde? Silêncio. Não conta tudo para
ele? Não confia nele? Confiar eu confio,
mas eu não gosto de contar tudo a ele.
Ele conversa muito com você? Senta
para conversar? Conversa sim. Mesmo
assim você não conta, conta? Só uma
parte. Por quê? Silêncio. Acha que ele
não vai poder lhe ajudar? Ele conversa
muito com você? Não, não é isso. Tem
coisas que não é para ele saber. O que
por exemplo? Silêncio. Acha que o
conselho dele não serve? Às vezes é
bom, às vezes não. Quando é bom o
conselho do pai, você sabe? Acho que
quando ele fala que não é para se
envolver com estranho, não é para pegar
carona de ninguém, chegar em casa antes
de ficar de noite [...]. E em que situação
não se deve ouvir o pai? Quando eu
quero sair eu saio. Ele diz que não é
para você sair, é isso? Ele quer que eu
fique o dia todo em casa. E não saia
para canto nenhum? Não ele quer que
eu saia, mas que avise. Ele quer que
você fale onde vai, né? É. Você acha
que o sair dele é pouco? Não, mas eu
Não tem diálogo na família
196
sempre fico na rua, eu gosto de ficar na
rua assim mais. Gosta de rua? Por quê?
Por que não gosta, não quer ficar em
casa? Nada. Desde que mainha era viva a
gente ficava na rua, também jogando
bola, se divertia, ficava com minhas
colegas. Isso é bom para você? Eu
gosto. Ele entende isso, que é bom para
você? Mesmo assim ele acha que eu
tenho que ficar em casa. E você ficando
em casa faz o quê? Quando eu fico em
casa eu arrumo e tal, boto um DVD e fico
assistindo até meus irmãos chegarem da
escola. Seus irmãos estudam que
turno? À tarde. Meu irmão vai para
creche e minha irmã arruma as coisas
dela, eu arrumo, as minhas e às vezes eu
arrumo a de meu irmão ou minha irmã
arruma. Então o trabalho é dividido? E
ela tem namorado? Não. E já
aconteceu alguma situação com ela de
violência? Não. Só você mesmo?
Silêncio. E hoje que você já passou por
isso, o que mudou? Silêncio. Quanto
tempo
tem?
Aconteceu
[pausa
prolongada], foi [pausa prolongada] ano
passado. Tem mais de 1 ano? Acho que
sim. Foi em que época? Quantos anos
tinha? Tinha 13 anos. Faço aniversário
em 17 de abril. Quando você
experienciou essa situação de violência
há 1 ano atrás, foi difícil e agora? Já
superou? Já. O que é superar para
você? Não falar mais disso, não toco
mais no assunto. Seu pai toca no
assunto? De vez em quando. Você não
toca mais no assunto porque esqueceu?
Esqueci. Esqueceu? Silêncio. Na escola
você tem visto alguma situação de
violência? Não. Nunca percebi. Na
escola você não vivenciou a violência?
Não. vivenciou na sua casa, não foi?
Sim.
Família Oxossi. Entrevista E
Fale-me sobre seu dia-a-dia. Como é
seu dia-a-dia? Estudo muito, ajudo a
minha avó, empino arraia. Como você
Apoio familiar à vítima
Quotidiano/Brincadeira/Lazer/Rua
Casa refúgio da violência. /concepção dos
pais. No entanto, a violência sofrida pela
adolescente foi em casa por um familiar.
Sofrimento ao falar do fato
Silêncio
Forma de enfrentamento. Não falar mais do
assunto.
197
ajuda sua mãe e sua avó, varrendo a
casa, lavo os pratos. Mora aonde?
Moro aqui mesmo com minha avó,
minha mãe mora com meu padrasto já
tem 4 anos, já. Meu pai faleceu tem 1
ano e alguns meses. E sua mãe já era
separada de seu pai? Era. E você
gostava de seu pai? Gostava (pausa)
ainda gosto. É? É. E como é seu dia-dia
na escola? Estudo muito. E é
comportado? Sou. Como é que sua
professora fala com você na escola?
Ela fala assim – se enquadre viu [fala o
próprio nome]. Porque ela fala isso? O
que você apronta? Nada. Conte-me
direito essa história? Eu não apronto
não. Ela fala assim aí Deus daí-me
paciência [risos]. Quando eu brigo assim
muito, eu fico lá pintando, chutando tudo.
Você gosta da sua escola? Gosto. Você
tem quantos anos que estuda nessa
escola? 2 anos. E a professora gosta de
você? Balança a cabeça em sinal
afirmativo. Como ela lhe trata? Bem.
E em relação assim aos seus
coleguinhas já soube algum caso de
violência? Já. O nome dele é R. Como
foi essa história com Rodrigo? Rapaz
eu vi lá dizer que ele ficava lá, o cara
ficou atrás dele para pegar ele e dá tiro
nele, mas ele fugiu e o cara não pegou
ele. Ele fugiu? Fugiu. Porque? Foi a
polícia que atirou? Não, não foi não,
foram os outros caras. Que foi, foi
briga? Não, não foi briga não, foi rincha.
Foi rincha? Teve alguma discussão?
Não. Alguém foi procurar ele na escola.
E você como ficou? Eu me escondi.
Escondeu-se? Eu e um bocado de
aluno. A professora ficou desesperada lá
na escola. Como ela ficou que você
percebeu que ela tava desesperada?
Ela tava assim: uai meu Deus e um
bocado de coisa assim: ela estava com
medo. E você teve medo? Tive. Você
estava sozinho? Não, eu e meu primo.
Esse daí que tá aí em baixo. Vocês se
esconderam na própria escola? Foi lá.
E você ouviu os tiros? Não dentro da
escola não teve tiro, mas eles ameaçaram,
Quotidiano
Estudo/Lazer
Quotidiano Escolar
Violência na Escola
198
eu fiquei no pânico. E o que é que você
acha da violência?
Que tem que
melhorar essa S que aqui tá demais. Tá
demais? O tráfico. Se você vê é tiro que
rola aqui, aqui na praça às vezes. Você já
viu? Já. O que é tráfico para você?
Drogas. Eles vão e passa um para o outro.
Alguém já falou de drogas para você?
Não, eu que já vi. Alguém já lhe
ofereceu? Não. Se lhe oferecer? Não
quero de jeito nenhum essa vida. Já viu
algum colega falar dessa vida? Não. E
como sabe? Imagina que seja algo
como? Algo ruim. Por quê? Quem lhe
fala isso? Minha mãe né me dá conselho,
minha avó, meu padrasto. O que acha
dessa violência toda? Não sei. Não
sabe?
Não.
Você
já
sofreu
discriminação? Não. O que é
discriminação para você? Sabe o que
é? Sei. Chamar o outro de negro, né? Ser
negro é ruim? Não, é tudo a mesma
coisa, negro e branco é tudo a mesma
coisa. Você acha ser negro ruim? Não.
E sua namoradinha? Têm quantas? Só
uma. Ela é bonita? É. O nome dela é
Valéria. E Valéria é como? Ela é
gordinha, tem cabelo grande. Que cor ela
é? É morena. De que cor? Da minha cor
assim. Da sua cor? Que cor você é?
Moreno. O que você mais gosta nela?
Tem um bocado de coisas que eu gosto
nela (risos). Que legal! O que mais?
Tenho até vergonha de falar. Não tenha
vergonha, fale. Gosto de beijar ela, gosto
de fazer tudo com ela. O que você faz
com ela? Beijo ela só, só isso, converso
com ela, saio para algum lugar. Você
gosta dela? Gosto. Você acha que ela
gosta de você? Acho. Você casaria com
ela? Não. Por quê? Ainda é cedo para
casar. Quando sua mãe se separou de
seu pai você lembra? Lembro. Notava
algo diferente na relação dos dois?
Não.
Eles brigavam? Não. Nunca
brigaram? Não, só discutia só. E você
ouvia a discussão? Ouvia alguma
coisinha assim, mas eu não escutava não.
Como é que você ficava quando eles
brigavam? Eu não gostava não. E ela
Medo
Violência na rua onde mora
Apoio familiar na prevenção de situações de
risco/marginalização
Mito da democracia racial
Negação étnica
Branqueamento
Cor morena
199
brigava muito? Foi. E aí ela se
separou? Foi. O que você achou disso.
Ruim para mim. Você queria que ela
tivesse ainda casada com seu pai?
Queria. Mesmo ela brigando com seu
pai? Balança a cabeça em sinal
afirmativo. Por quê? Porque eu gostava
deles dois juntos, dele eu gostava, dela
ainda gosto. Gosta de seu padrasto?
Gosto. Como era seu pai, sua mãe e
você? Era bem, feliz assim ôxe, era bom
eles dois juntos, iam para praia, para o
parque. E hoje? Vou também. Quem me
leva é meu padrasto e minha mãe?
Então o que mudou? Silêncio. Seu pai
já bateu em sua mãe? Nunca. Ele lhe
batia? Nunca. E sua mãe? Batia. Como
ela lhe batia? Quando eu aprontava
[risos]. Aprontava o quê? Bagunçava.
O que é bagunçar? Quando eu batia em
minha irmã, ela ia e me batia. Você batia
na irmã por quê? Porque ela me
provocava. Como assim? Fazia coisas
que eu não gosto, aí eu batia. Você acha
certo? Não. E por quê? Porque dava
raiva. Sentia raiva batia e depois? Me
Arrependia. E fazia o quê? Pedia
desculpas. Sei! E assim que seu pai
morreu como você ficou? Triste. Ainda
tô triste. Ainda tá triste? Tô, fico sentido
pela morte dele. Eu soube que você
queria se jogar da laje é por causa
disso? [pausa prolongada] Porque minha
mãe me bateu, aí me deu raiva, aí eu fui e
pulei da laje. Sua mãe lhe bateu por
quê? Por nada. Eu brincando assim com
os outros, dizem tanta coisa aí ela vai e
acredita, aí ela vai e me bate também.
Quem inventou coisa ela foi e lhe
bateu? Foi os meninos daí de trás.
Inventaram o quê? Dizendo que eu tava
xingando a mãe dele e ele, aí ela veio e
me bateu eu fui e fiquei com raiva e pulei
da laje. Ela não lhe perguntou o que
houve antes de lhe bater? Não. Já foi
logo lhe batendo? Foi. Sua mãe lhe
escuta, conversa com você faz algo que
ela considera errado? Me escuta [pausa]
tem vezes, mas tem vezes que ela não
quer nem saber e me bate. Quando você
Violência familiar
Violência
Agressão física
Motivo da violência
Pouco diálogo familiar
Os pais têm direito de bater
Não sabe dialogar/Bate
200
acha que apanhou sem merecer?
Silêncio. Acha que sua mãe tá certa ou
errada quando lhe bate? Acho que tá
certa. Por quê? para eu me corrigir, tem
vezes que eu faço errado, tem vezes que
não. Será que não tinha outra forma?
Acho que tinha ficar de castigo. O
castigo seria uma boa forma? Acho.
Que castigo serviria para você? Não
deixar eu jogar futebol. Quando você
apanha você fica como? Muito triste.
Tem irmão? Tenho irmã. Gosta dela?
Gosto. Como é sua relação com ela?
Brinco com ela. E vocês brigam? Não.
Antigamente eu brigava mais eu parei. E
antigamente vocês brigavam por quê?
Porque ela me provocava. E ela lhe
provocava como? O que ela fazia? Um
bocado de coisa, se eu tivesse brincando
em um lugar ela ia lá e terminava a
brincadeira e começava a bagunçar. Ah.
Sim! Ela começa a bagunça? É ela
começava a bagunçar. E você aí batia
nela? È . O que mudou que não bate
mais nela? Eu já brinco com ela agora
em paz. O que mudou em você? Mudou
algo? A minha brincadeira. Mudou a
minha brincadeira. Mudou o que na
brincadeira?
Brinco
de
outra
brincadeira, de bicicleta, de bola, ela
brinca comigo também na lan house
[casa de informática – jogos]. E qual
era a brincadeira que dava briga? De
bola, de boneco. Ela ia e bagunçava. Eu
começava a briga, mas ela sempre
terminava ganhando. Porque ela
ganhava? Dava pena dela, toda vez ela
acabava eu deixando ela me bater, eu
ainda tenho pena dela. Porque tem pena
dela? Porque ela é pequena e não agüenta
um murro meu. Você é galo de briga?
Eu não. Isso não leva ninguém à frente.
Realmente magoa. Em relação à
discriminação, eu acho que as pessoas
precisam pensar porque às vezes não
percebem que acontece com elas. Você
já foi vítima de discriminação? Não. O
que acontece com a pessoa que faz isso
com a outra, o que acha que a pessoa
merecia? Ser presa. Por quê? Porque
Mudou a brincadeira para evitar conflitos
Reconhece que fisicamente é mais forte
201
chama o outro de preto. Você trabalha?
Já trabalhei 2 meses. Fazendo o quê?
Cortando carne nessa mercearia ali. E
você gostava? Era bom? Era. Eles
pediam carne aí eu cortava e pesava.
Cortava? Você não tinha medo de se
machucar não? Não. Quanto ganhava?
R$ 15,00 por mês. Fazia o que com o
dinheiro? Comprava as coisas, ajudava
minha mãe. E se lhe chamasse para
trabalhar de novo? Não, é muito ruim, é
muito pau [trabalho]. Como assim?
Tinha que limpar lá, ficar lá até 11 horas
da noite e para fazer o dever era ruim. O
dono chegava lá e mandava deixar tudo
limpo e na ordem. E o dono como lhe
tratava? Bem. Ele era tranqüilo. Mas sua
esposa que não era. Ela era como? Era
muito ignorante, falava alto com os
outros, com todo mundo. Sem ela eu ia
trabalhar, mas com ela não. Que cor é
ela? Branca. E sua patroa lhe tratava
de forma diferente? Só falava alto só,
falava alto comigo e com os outros
[refere-se aos outros empregados]. E
com o freguês? Com freguês ela falava
baixo, falava calma. Agora com a gente
já era braba. Ouvi dizer que ela não
gosta de negro? Você percebeu isso?
Não. Quem disse foi minha mãe para
mim. Eu dava um pau danado e ela [a
dona do estabelecimento em que
trabalhava] nem ligava. Sua mãe disse
isso e considera que foi verdade? É, se
minha mãe disse. E na escola já viu
alguém falar em discriminação? Não. E
na rua? Não. O que é violência para
você? Briga, um bocado de coisa. Que
coisa? Tiro, briga. Para mim a briga é a
pior violência? Por quê? Porque causa
morte, um bocado de morte.O que você
tem de importante? Minha vida. E o
que mais? Minha mãe, minha avó,
minhas tias, irmã, minha família. E em
você? Meu coração, minhas pernas.
Porque suas pernas são importantes
para você? Porque eu ando, sem elas eu
não posso andar. O que acha da sua
cor? Eu gosto. E o que você não gosta
em você? O que eu não gosto é minha
Quotidiano de trabalho
Trabalha para ajudar a família
O trabalho é muito ruim
[desgastante fisicamente, não sobra energia
para estudar]
Quotidiano de trabalho
Relata maus tratos no trabalho
Nega discriminação sofrida
Significado da violência
O que lhe importa
202
raiva que eu sinto por dentro. Fale um
pouco dessa raiva que você sente?
Quando alguém me bate na rua, inventa
coisas eu fico com raiva da pessoa, e não
falo mais com a pessoa. Evita falar?
Porque eu vou brigar com ela, aí eu evito
logo falar.
Não sabe dialogar para resolver conflitos
Família Ogum. Entrevista F
Vamos fazer a entrevista. Fale um
pouco do seu dia a dia, da sua história.
Pode falar...No dia-a dia da semana
né? Eu lavo roupa, só não gosto de
passar. Eu lavo, cozinho. Fico dentro de
casa mesmo, com as meninas, tomando
conta dos netos, faço a comida dele
[neto], pois a mãe não faz, que fica
deitada. Ai eu levanto e faço logo né (a
comida do neto). Então você acorda,
Quotidiano de trabalho
toma conta dos netos, arruma a casa, o
Realiza tarefas domésticas
que mais?
Família extensa
Lava roupa, cozinhar...E sua vida
sempre você foi assim? Toda vida. E
você nova, jovem, o que você fazia? Eu
brincava um pouquinho, mas não muito,
ia para o colégio. Primeiro eu ia para a
roça, trabalhava com a enxada. Eu ia pra
Repetição?
enxada, e quando dava meio dia, ia para a
Tinha que estudar e por isso brincava
escola correndo. Eu não aprendi quase pouco.
nada, pois me dedicava mais ao trabalho
Quotidiano de trabalho
do que ao estudo. Você trabalhava na
Primeiro trabalhar, depois estudar, depois
roça para ajudar...? Eu trabalhava...eu
brincar.
pegava aquelas tarefas de terra, limpava,
Difícil ter que trabalhar e estudar
eu e mais minhas irmãs. Quantos irmãos
você têm? 3 irmãs, 4 comigo. Todos
estudaram? Estudaram, só mesmo que
não aprendeu nada fui eu. Eu larguei o
Quotidiano de trabalho
estudo, vim trabalhar em Salvador de
Adolescente
babá com 16 anos, vim tomar conta de
Não estuda mais. Só trabalha.
um menino. O pai da menina era muito
amigo da minha mãe e de meu pai,
entendeu? Aí meus pais deixaram de vir
me ver. Como era a sua relação com a
sua patroa? Era boa. Ela conversava
comigo...O que ela dizia [a patroa]? Ela
Quotidiano de trabalho
dizia sobre prato, rótulo, Você têm que
fazer isso e aquilo. Você trabalhava e
mandava fazer outras coisas para ela,
203
não é isso? É...E quando você veio para
cá logo...você conhecia seu marido?
Não. Como você conheceu seu marido?
Ele era de lá mesmo, mas eu nunca tinha
visto. Aí eu comecei a namorar com ele
aqui. Eu vim conhecer ele aqui. O pai e a
mãe dele eu já conhecia, pois eu ia para
as festas na casa dele. Mas eu não
lembrava dele. Aí quando eu conheci ele
aqui, ele gostou de mim e eu gostei dele...
O que você gostou mais dele quando
começou a namorar com ele? Por que
eu achava que ele era uma pessoa boa
para viver com ele... e eu tô com ele até
hoje. O que você achava mais bonito
nele? Ele não era bonito...era magro. Eu
acho que ele é mais bonito hoje. Mas o
que lhe atraiu nele? Quais as
características? Ah não sei...eu gostei
dele. Você casaria com ele de novo?
Casava né..., se tô com ele até hoje.
Tivemos uma vida difícil e tô casada com
ele até hoje... Me conte a sua vida
difícil? Vida difícil assim...para eu cuidar
de mim...Por quê? Por que eu
facilitei...eu não tomei muito remédio
para “evitar”..ai eu tive essa daí [se
referindo a filha mais velha]...e com
menos de 1 ano a outra [se referindo a
filha mais nova].Ai eu fiquei mais
dentro de casa por isso. A partir daí a
senhora ficou mais dentro de casa? Até
hoje fico dentro de casa. Eu não gosto de
farra, de festa...Quando dá a noite, tô
logo no meu canto. A senhora não
gosta? Ou o marido também não
gostava? Ele gostava. Quando ele
gostava, eu gostava. Mas depois sem
dinheiro, ele não gosta mais. E quando a
gente tem filho, a gente não faz mais
nada da vida. Faz, mas é mais difícil. Eu
mesmo era sozinha aqui, não tenho
ninguém, só tem eu. Ninguém ficava com
ela para eu ir no mercado. Ele ia de
manhã cedo trabalhar no Píer. Ele que
trazia as coisas para dentro de casa. Eu
não podia trancar ela e deixá-la dentro de
casa. Se eu subisse com ela, eu não fazia
as coisas. Ai eu preferia não ir para lugar
nenhum. Se ele chegar em casa, e não
Falta de planejamento familiar
Sente falta da presença da família
204
lhe ver? Qual a reação dele? Ele não
fala nada não. Quer dizer, ele nunca
chegou em casa e eu não estava. Eu posso
viajar, sair para médico, fazer cartão. Eu
posso resolver...antigamente eu ia na rua
fazer um cartão, ai eu fui resolver...fiquei
um tempão na fila do banco, porque tive
que pegar papel, ir para a fila, tirar
dinheiro...aí pronto! Mas toda vida ele
lhe encontrou dentro de casa. E a
senhora não sai mais de casa desde que
teve filho? Hum hum...para comprar algo
coisa assim..eu saio...E a senhora
trabalha?
Já
trabalhou?
Já
trabalhei...Tomei conta de menino... Mas
depois nunca mais voltou? Sempre
ficou em casa... Ai eu olhava...eu lutei
muito entendeu? Na época em que meu
marido ficou desempregado, não achava
nada para fazer ...aí ficou difícil né...eu
tinha que manter a casa...pagar a luz,
comida, bujão, roupa...
E assim...como é a educação que vocês
tiveram? Na verdade você, que você
teve na sua época de infância,
adolescência...Como era sua educação?
Eu nunca apanhei de meu pai. Eu sempre
procurava meu lugar. Quando eu via que
ia fazer alguma coisa que ele não ia
gostar, eu não fazia. Se quisesse ir para
um lugar, eu pedia. Se eu quisesse sair
com minha tia, ele deixava. Mas se eu
pedisse para sair com a outra tia, ele não
deixava. Mas por quê? Por que ele não
gostava dessa tia, e da outra ele gostava
mais, por que ela era madrinha de minha
irmã. E também né tinha muito tempo
que conhecia ela. Então era uma coisa
que ele não gostava? É, ele não gostava.
Eu era teimosa, mas quando ele dizia,
com aquela pessoa não....eu não ia. A
gente pedia a mãe para sair, mas ia com a
tia. Não apanhei não, tomei puxa de
orelha...sabe puxão de orelha? E com
suas irmãs? Seu pai brigava? Tem
duas, minha filha, que era caixa de
porrada. Porque não queria obedecer ele,
queria passar por cima dele. Aí ele não
deixava. O que elas faziam que passava
por cima dele? Assim [...] queriam sair
Só trabalhou quando o marido se
desempregou/Provedor desempregado
Obediência ao pai/ e hoje obediente ao
marido?Relação de poder
Obediência ao pai
Os pais têm direito de bater
Naturalização da violência
205
para uma festa, uma reza...A gente só saia
para reza. Tempo de reza no interior é
Relação de poder
tempo de namoro...[risos] Aí era tempo
Violência a partir da transgressão da
de reza...o povo rezava muito na casa dos ordem.
outros. Aí a gente ia com essa mulher que
rezava, que gostava de rezar, que era
parente de minha mãe. Tinha vez que
mãe ia com a gente. Se saísse com essa
mulher só, meu pai não gostava. Mas
você falou que suas irmãs apanhavam?
Proibição do namoro
Sim. Elas apanhavam em outras coisas
porque eram respondonas, ele falava uma
coisa e elas ficavam respondendo como
se fosse qualquer pessoa...ai não pode
né...pai e mãe já sabe. Por que o certo
para mim, até hoje, ela vive saindo lá no
interior [...] mas quando, para mim, pai
fala. Os filhos de hoje não tem ninguém
preso. Ela fazia cara feia para pai, ne
quem não gostasse pela raiva, não deveria
fazer...E sua mãe? Como era sua mãe?
Relacionamento familiar
Minha mãe também. Nunca me bateu.
Relação de poder
Brincava com a gente. Ela não batia de
Violência a partir da transgressão da
verdade, que é o que dói. Ela puxava ordem.
minha orelha para ninguém ver...Mas em
relação a isso...você acha que sua mãe
tava certa em dar esses tapinhas? É
melhor apanhar de seu pai e um puxão de
orelha de sua mãe do que apanhar dos
outros da rua. Então você acha que sua
educação foi boa? É minha vida foi
essa...eu sai de casa, namorei um
pouquinho..., namorei mesmo. Meu
marido me chamou para morar com ele.
Ele gosta de mim, me respeita. Qual a
sua cor? Sou morena, né? E a de seu
Mãe batia escondido
marido? Ele é moreno claro [...] mais
alvo que eu. Você conhece algum caso
ou de rua, ou de suas andadas de
alguém que já foi discriminado?
Discriminação...?Discriminação! Quando
a gente tem uma pessoa que por conta de
alguma coisa, ela é julgada e
inferiorizada. Por exemplo, uma pessoa
que é negra, então por ela ser preta, as
pessoas acham que ela é suja...Nunca
conheceu ninguém que passou por essa
situação? Que você lembre? Que você
Cor morena
se recorde? Ah...Não..., Então na sua
Ele moreno claro
infância e na sua adolescência você não
206
viveu isso? Não...Eu era muito
vigiada...meu pai não deixava eu sair...E
em relação à questão da violência? O
Define discriminação
que você já viveu durante sua infância,
adolescência e a sua vida? O que é
Atribui o adjetivo sujo ao negro quando
para você violência? Eu acho
define
errado...Você acha errado? Eu acho.
Mas eu nunca briguei com ninguém.
Nega cor
Nunca brigou, mas nunca viu ninguém
brigar com ninguém não? Já vi né. Já
viu? Já viu as pessoas brigarem como?
Você acha que isso é violência? Eu
Não tinha liberdade
acho...Por que você acha que as pessoas
brigam com as outras? Quer dizer eu
acho muitoooo, mas eu não dou bola
entendeu? Aí, eles vem na minha porta,
mas eu digo que não é comigo. Você
acha que vou dar bola a uma pessoa? Aí
ela vai ficar todo dia daquele jeito, ali
entendeu? E tem uma pessoa na sua rua
que gosta disso? É aqui na minha rua
tem. Por que é que você acha que essas
pessoas brigam com as outras? Porque
não gosta. E por quê? Você tem alguma
idéia? Porque não quer ver ninguém em
paz. Quando você educa seus filhos,
você bate neles? Eu batia né, mas agora
não bato mais não...Quando achou que
A vizinhança sabe da violência que sofre
tinha que bater? Essa aí até pouco sua
tempo apanhava. [risos] Por que ela é
filha, mesmo assim ela finge que não liga
respondona...eu faço as coisas para o
filho dela e para ela, e ela não me
agradece...e ela fica xingando...e quando
eu acho que dá para mim...eu Ohhh
[gesto com as mãos de bater]. Ela
chega, ela não faz o mingau do menino
[neto]. A outra acorda doida [neta] para
comer. Aí pronto, eu tenho que levantar.
Ficar deitada para ver menino chorando,
com fome. Ai eu levanto faço mingau,
mamadeira. Na verdade você bate...aí eu
Violência Física
digo: se ela tivesse morando comigo, se
Mãe bate nos filhos
tivesse morando na casa dela...como é
que ela ia fazer? Você fica preocupada?
É porque ela não tem aquela coisa de
acordar e fazer logo as coisas dos
meninos, entendeu? E ela não faz não.
Mas ela entende, entendeu? Aí eu falo
Motivo da violência
muito com ela. Por que se quando eu tive
meus filhos, eu tomei conta. Você acha
207
que teria outra forma de fazer, que não
fosse bater? Mas eu bato assim né, só
quando enche meu saco. Eu não pego ela
no meio da rua...eu bato no banheiro, no
quintal...E com a sua preocupação em
relação a educação, a escola? O que
você pensa sobre a educação delas? A
mais nova é mais tranqüila que ela.
Tranqüila em que sentido? Não dá a
dor de cabeça que esta dá. Qual dor de
cabeça que ela tá dando? Ela ainda me
responde, minha filha. Tudo faz cara feia.
Eu não gosto de ver o menino chorando,
ela não faz nada. Você criou as duas da
mesma forma? Não tem diferença não!
tem uma que dá mais trabalho que a
outra. Mas como são as orientações? O
que é que você mais fala? Isso que tô
lhe dizendo...para ter mais cuidado.
Então a sua preocupação é com...pra ter
mais cuidado com o menino mesmo,
sabe? Preparar o mingau...Quem tá de
fora pensa que ela tá cuidando. Ela dá
banho, lava roupa. Mas o menino fica
chorando, ao invés de ela dar mama a ele.
E a época de namoro delas? Como foi?
A mais nova arrumou um namorado
aí...que sou só foi esse, mas não deu certo
não... Por que não deu certo? Sei não,
ele namorou com outra menina, ela não
gostou. Aí ela terminou com ele. Ele
pediu para voltar. Só sei que hoje ele tá
noivo, ela demorou demais.
E a outra filha? Como foi? Foi uma
comédiaaaaaaa! Ela não falou não? Sim.
Mas quero que a senhora me conte.
Conte-me como tudo começou...
Começaram a namorar dentro de casa. Aí
pediu ao pai. Quando eu vim saber, ele já
tinha pedido. Ele namorava ela, mas
aconteceu algo que não acontece com as
outras
meninas?
Namorava
escondido...Tudo bem. Mas quero
saber como foi esse namoro escondido.
Mas nessa idade da adolescência, as
pessoas fazem isso sobre o namoro. O
que a senhora conversava com ela
sobre namoro? Ela era pequena, e eu
achava que ela não tava, mas ela já tava
namorando...Aí a gente viu que ela nova
Assume as responsabilidades da filha
Motivo para bater/Violência física
Mãe bate nos filhos/ Violência física
A mãe tenta orientar as filhas sobre a vida
208
pra ele...E ela foi teimando, teimando. Aí
ele pediu para o pai pensar para deixar o
namoro, mas no mesmo dia que ele pediu
ao pai dela, eles já estavam na porta e o
pai não gostou. Depois eles foram morar
juntos. O pai disse que ela tava nova,
que era para ela estudar.. Ela filava aula
para vê-lo. Quando estudava com a irmã,
ela ia certinho, mas quando perdeu de
ano, aí ela só ia por acompanhamento
mesmo. Ela saía de casa pronta para ir
para o colégio, mas não assumia que
filava as aulas. A irmã continuou e ela
ficou sem estudar. Depois ela foi morar
com ele? Foi, aí começou e ele não
deixou ela ir ao colégio. Mas ele [o
marido] não deixou ela estudar, só
deixava ela dentro de casa. Aí ela já não
ia mais ao colégio...E ela ficou sempre
dentro de casa depois que foi morar
com ele? Ela fica mais aqui, quando ele
trabalhava, dizendo ela que tinha medo
de ficar dentro de casa, onde ela morava.
E como era filha, não ia dizer: vai se
embora. E quando ele chegava, levava ela
para casa. Na casa dele, eu ia lá, mas não
via nada. O tumulto era aqui na minha
porta. Seu marido se aborrecia? Na
porta dele ele não queria...É até hoje, se
ele chega em casa e não vê a filha...Mas
assim, apesar disso tudo que ela
presenciou... Depois que denunciou
mudou alguma coisa na vida dela? Pelo
menos deixou de bater né? Ela tava com
a menina pequenininha, pegou a menina
daqui, ele tava bebendo, ele foi ali no
vizinho, lá começaram, ai ele deu a
menina a uma moça, mas ela não viu a
quem ele deu a menina e pensou que ele
tinha dado a qualquer pessoa. Ai ela foi
ver a quem ele tinha dado. Ai quando foi
abrir o portão que ia entrando, ele bateu
nela. Ai ela deu queixa. Foi ela quem
deu a queixa? Ela foi, mas ela é de
menor, só podia ir comigo ou com o pai.
Aí no outro dia eu fui. Mas a iniciativa
da queixa foi dela? Foi, como ela
registrou disseram para vir com alguma
tia, mãe ou pai. E ele não foi a nenhuma
audiência? Nenhuma. E o que
Mesmo com duas filhas adolescentes os
pais não conversavam sobre namoro com
suas filhas
Estudo
O marido proibia a esposa de estudar, tinha
que fazer as tarefas domésticas
Perda da liberdade
Mudança da vítima e do agressor depois
da Denúncia
Alcoolismo e violência
Motivo da denúncia
209
aconteceu que ele não foi a nenhuma
audiência? Não sei.né!Ele simplesmente
não foi. A gente ia e não via ele né...E
depois da queixa......ele melhorou
bastante! E ele sempre vem ver os
filhos? Vemmm! Abraça, beija...Dá as
coisas...e depois sempre chega com mais
coisa...Com relação aos filhos, ele
nunca bateu? Aqui não, eles sempre tão
com a gente! Desde pequenininhos? Que
vieram para cá, quando teve a separação,
a menina tava de 4 meses...Então sua
neta cresceu aqui? Ela cresceu tanto na
barriga como aqui com a gente. Por isso
que tenho amor a eles. Nunca moraram
os três numa casa; ele, ela e a menina
não. Quando ela veio para cá, a menina
tava na barriga. [Os avós praticamente
criam] É, então ela achou que não tava
pouco...e encheu a barriga de novo
[engravidou] com o menino. Ela tava já
aqui, quando engravidou do menino.
Agora ela não quer mais? Não já teve
um casal e acabou! É muito nova, tem 17
anos, agora eu acho que com um tempo
ela
vai
criando
uma
certa
maturidade...Com 15 anos engravidou da
menina, com 16 engravidou do
menino...Ele era mais velho né? E
muito!...O problema todo era quando a
briga era aqui, ai era quando o pai entrava
numa briga doida. Agora que reclamou,
aí eu acho que ele vai aos poucos também
né, talvez [...] Ele tem alguma
expectativa de melhora para o futuro?
Trabalha como pedreiro e não estuda não.
Quando ela conheceu ele, ele tava
estudando...Hoje tem que estudar, né [...]
A mãe dele eu não conheço até hoje, já
vieram aqui tudo, menos a mãe. Então
não quer uma aproximação com a
família. Mas ele tem mãe, pai, tudo?
Têm... Conheço o pai dele...Ela é mãe
solteira...O Pai dela morre de dar
conselho a ela...Mas um dia ela...Ela vai
ver que tá muito sentida...é por que não
fez um planejamento, não se preveniu,
não se organizou...Ela viu o que a
teimosia dá [...]agora ela vai tomar juízo.
Depois que foi denunciado este caso,
Decisão de dar queixa foi da vítima
Fuga do agresssor após a denúncia
Comportamento do agressor melhora
depois da denúncia
Solidariedade
Netos criados pelos avós
Reconhece a imaturidade da adolescente
que é própria da faixa etária
Violência na porta de casa
Melhora após a denúncia
210
como a senhora se sentiu? Eu senti que
aliviou mais a barra para mim, não
chamando a atenção das pessoas. Eu
morro de vergonha, entendeu. A vizinha
fica falando coisa [...] eu falo, mas ela
acha que tô falando com ela. Eu tô na
minha casa! Eu não posso sair daqui,
porque ela [vizinha fofoqueira] tá ali. E a
vizinha viu né! Nem tem como esconder.
Ele chegava aí no meu da rua, todo
mundo via...Mas você acha que ele
ainda gosta dela? Eu acho que gosta e
ela também dele, mas ela tá levando. Mas
ela não vai dizer. É o medo dela,
entendeu? Ela veio morar com a gente
com os 2 filhos. Ela perdeu um filho lá
com ele. Como foi que ela perdeu esse
bebê? Sei lá! Com choque [...] tomou um
choque...hum...fazer o quê!...Ninguém
aqui tá à toa. Eu aqui vou lavar minha
roupa, vou lavar meus pratos. Vou fazer
alguma coisa dentro de casa...Mas na
família dele, ele vivencia algum tipo de
violência? Não que eu tenha visto. Não
sei por que não conheço. Nunca sentei
com a mãe dele para conversar, se eu vêla na rua nem conheço a mulher. Só se
me mostrar! Por que ele fica assim
agressivo? Quem sabe? É por que ele
gosta...? É! Eu nunca bati em ninguém.
Não vale a pena. E a senhora nunca
brigou com o seu marido? Brigar não, a
gente discute né! Mas...Essa questão da
violência...Só teve uma vez! Que se eu
deixasse taria até hoje. A mulher faz o
homem e o homem faz a mulher. Teve
uma vez que ele veio para me bater, as
meninas eram pequenas, a irmã mais
velha dele tava aqui em casa, só vi ele
vindo com um tamborete para dar na
minha cabeça, foi Deus do céu que me
levantou, ai eu tive a idéia, ninguém me
falou (agarrou o “saco” dele). Eu ia
morrer? Foi a última vez. Ele nunca mais
levantou a mão para mim. Aí chamei a
irmã dele. A irmã dele gostava de mim, e
conversou... Ele tinha jogado a comida
todo no quintal ai eu falei um negócio lá,
mas não ofendeu ele e nem ele me
ofendeu. Na primeira vez que ele veio
Famílias distantes
Melhora de vida após denúncia do
agressor, principalmente por causa da
vizinhança
Mãe não relata história de aborto da filha
211
para me bater, eu fiz isso. O que as
filhas lembram disso? Eu fiquei
chorando e ela foi chamar a tia. No outro
dia ele disse que não ia mais fazer isso. A Violência intergeracional
única violência que teve aqui dentro de
casa foi só essa. Agora discutir e [...]
discutir todo mundo discute né? Qualquer
casal discute. Pois é, a última que ele fez,
peguei o saco dele e “rastei”. As meninas
ficaram chorando, eu fiquei chorando...A
comida que ele jogou fora...a gente não ia
comer do lixo...O que você acha que
deveria ser feito nestes casos em que o
homem agride a mulher? Como a
gente pode ajudar para enfrentar esse
problema? Como você pode ajudar sua
filha a enfrentar esse problema? Eu
não sei! Ela tem que fazer alguma coisa,
se ela não fizer...Você acha que depende
Experimentando a violência através do outro
dela? Tudo depende da gente. Ele tentou
e não achou uma chance! Conte-me de
bom! O que de bom você consegue
passar para seus filhos de educação?
De valores? Que ela deve estudar de
novo, que vá para suas aulas, deve correr
atrás porque o que acontecer com essas
crianças, eu e o pai dela que vai...né
Violência se enfrenta com violência
responder! Eu quero para ela é juízo,
essas coisas né!
Família Oxossi. Entrevista G
No dia-a-dia faço serviços domésticos,
lavo, cozinho, arrumo, é... é isso aí lavar
passar cozinhar. Sempre foi assim?
Sempre foi assim. Na verdade eu
trabalhava, mas no momento eu estou
desempregada? Algo mudou no seu diadia? E de sua infância para cá? Não.
Não mudou nada. Tem lembrança de
sua infância? Era tranqüila, obediente,
sempre fui obediente. Não deu trabalho
aos pais? Não. A mãe não precisava
chamar atenção? Não, sempre fui uma
pessoa tranqüila. Conhece alguém que
já esteve numa situação de violência?
Como assim? Criança ou adulto?
Qualquer pessoa que já teve
conhecimento. Meu pai batia muito na
Estudo
Quotidiano
212
gente, batia muito em meu irmão e minha
irmã mais velha. Por quê? Porque ele
não gostava que agente saísse, porque ele
tinha ciúmes da gente, não deixava
conversar com ninguém, ciúme de
questão de pai mesmo, não deixar solta,
aí qualquer coisa ela batia, bebia, aí
sempre que ele bebia, ele era violento.
Ele bebia e batia. Tinha mais alguma
coisa envolvida junto com a bebida que
fazia ele bater? Não era só a bebida
mesmo. O que você acha que leva uma
pessoa a violentar outra? [silêncio]. O
que motivava seu pai a bater em
vocês? A ser violento? [silêncio] Você
já sofreu algum tipo de violência? Não.
Nem de seu pai? Ele batia em seus
irmãos e não lhe batia? Ah! Sim, no caso
assim, bater ele batia em mim muito não,
batia menos em mim, batia mais nos
meus irmãos. Porque ele batia menos
em você? Era aquela questão de não
querer que agente tivesse amizade, mau
influência, entendeu?! Eu obedecia. Ele
dizia para não se misturar com gente que
não presta. Hoje em dia, até agradeço a
ele, não de bater, mas de tirar agente
disso, da má influência. Eu agradeço
muito, tanto eu como minhas irmãs. Se
não fosse ele você acha que estaria
numa situação pior? Não, não é nem
isso, porque na verdade como eu estava
falando que eu não pensava nunca em se
misturar com gente que não presta. Como
no caso de minha sobrinha que os pais
não querem que ela namore, mas ela acha
que deve fazer as coisas que o pai não
quer entendeu? Nesse caso assim. E eu já
pensava diferente, eu já pensava melhor.
Como é a situação de violência familiar
que a adolescente passou, como você
vê, a família vê? Olhe nesse caso aí já
fiquei mais por fora. No caso da violência
que ela teve o problema dela é que ela
provocava, a vestimenta dela, sentar de
pernas abertas entendeu? Ela senta de
qualquer jeito, não tem uma coisa assim,
não olha quem tá por perto, andava muito
de toalha em casa. Ela vivia passando de
toalha pela casa, ficava se exibindo
Violência
Agressão física
Perda da liberdade
Autoridade/Poder
Alcoolismo e violência
Silêncio
Bater
Motivo da violência
Naturalização da violência
Rebeldia
213
passando de toalha chamando o estupro.
O pai reclamava. O que mais? Só isso
mesmo. Se você fosse vítima de
violência o que você faria para
enfrentar o problema? Denunciar.
Porque
você
acha
importante
denunciar? Porque eu não posso
enfrentar o problema sozinha, porque de
repente, a pessoa é agressiva entendeu, aí
somente a polícia para resolver, eu já me
sentia mais segura. Você acha que a
justiça devia fazer o que? A justiça está
para resolver o problema. O que você
espera da justiça? Acho que eles têm
que resolver. Agora ela só resolveria
também se desse chance também. Não
pode ficar calada, ficar ali sofrendo,
sofrendo e calada. Tem que em algum
momento delatar? É. Como é sua
relação com seus pais? Bem. Minha
relação é boa, mas meu pai eu já tinha
mais medo de me abrir né, era melhor
com a minha mãe, meu pai é ignorante,
já, não senta para dar apoio, aí eu nunca
tive uma relação aberta com ele. Como
você avalia a educação de seus pais
hoje? Na sua vida? Como eu falei, eu
acho ótimo. Serviu para quê? Para
educar, para que eu não viesse a ser uma
pessoa errada, me envolver no mundo das
drogas, dos vícios. O que é racismo
para você? É uma mistura de negro com
branco. Porque tem muita gente que é
racista. Eu acho que é isso. Você acha
que muita gente tem racismo, por quê?
Como lhe falei que ficavam dizendo que
meu filho era negro, chamava ele de
negro preto, os meninos ficavam
chamando de meia–noite por causa da
cor. Essa moça aqui da mercearia ficava
dizendo que ele era bem preto, ficava
chamando de negro, tudo que acontece aí
ela diz que é ele, mesmo ele não estando
no meio, ela só diz que é ele, porque ela
já tem o racismo já com ele. As pessoas
que a ouviam chamando ele de preto,
tudo dela é assim, aquele nego, preto, não
sei o quê? Pela forma de falar você tira.
Uma forma assim de discriminação
mesmo. Eu não sei se é porque ela não
Motivo da violência comportamento da
Adolescente
Importante denunciar
A violência é caso de polícia
Importante denunciar
Relacionamento familiar
Aceita passivamente a educação dos pais e
o Bater
Percepção da discriminação racial
214
gosta dele, entendeu. Você já se sentiu
discriminada alguma vez? Não. Já
presenciou alguém sendo discriminado,
com exceção de seu filho? Não. Como é
sua relação com seu marido atual?
Bem tranqüila, de vez em quando agente
discute, coisa de casal mesmo, mas nunca
teve violência, discussão de boca mesmo,
nunca veio para cima de mim me bater. E
com o ex-marido (falecido)? Agente
brigava muito, ele já tentou até uma vez
me esfaquear, por causa de ciúme, porque
achava que eu estava com outra pessoa;
meus filhos presenciaram, ele ia até no
ponto para me bater, eu saía sem roupa de
casa e eles presenciaram toda confusão
quando o pai era vivo. Quando bebia era
pior ainda. Agora só uma vez que ele fez
isso. E você denunciou? Não. Porque no
outro dia eu vim embora para casa de
mainha e a gente se separou, aí não teve
mais confusão. No dia que ele fez isso eu
me separei logo. Em um dia aconteceu,
no outro dia já não fiquei mais. Se você
fosse se casar hoje, você se casaria com
um negro? Casaria. Porque não tem nada
a ver de racismo. Eu casaria tanto como
negro como com um branco. Acho que
não deve existir racismo. Eu sou contra o
racismo. Eu acho que é tudo a mesma
coisa, ninguém é melhor do que ninguém,
a pessoa por fora é branca, mas por
dentro pode ser pior que a gente, às vezes
por fora é bonito, por dentro já tem
coração ruim, entendeu.
Se você fosse falar algo sobre violência
o que diria para mim? Deveria ter uma
maneira de evitar. Sabe como evitar?
Acho que não tem, fica difícil, viu...
Como vocês enfrentam os casos de
violência e racismo na família? O que
fazer? Eu mesmo deixava passar, dava
conselho para evitar um meio de falar
alguma coisa, de evitar a violência. Como
você faz para evitar? Como orienta seu
filho? Que não deve fazer violência com
ninguém , mesmo se ele tiver sofrido, não
chegar ao ponto de violentar outra
pessoa. Porque o que eu não quero para
ele eu não quero para ninguém, então eu
Violência é só bater
Violência
agressão física
Motivo da violência
Alcoolismo e violência
Importante denunciar, mas não denuncia
Discurso contra o racismo
Ser branco por fora
Ser bonito como o branco, mas pode não
ter outras qualidades. No entanto resiste
o discurso do branco bonito.
215
evito assim, passando para ele que tem
que evitar.
E em relação à sua sobrinha que foi
vitima de violência quais conselhos dá
para ela? Olhe, tanto conselho que se dá
a ela, mas aquela cabecinha dela...ontem
mesmo saiu para dormir na casa da outra
avó e nem falou a mainha onde ia dormir.
Mainha botou ela para dentro, mas ela
disse que ia ficar aí fora, aí ficou, mainha
disse que ia fechar a porta, mas não
fechou, ela demorou um pouquinho é na
frente, depois foi dormir na casa da outra
avó e ninguém vem aqui saber o porque
dela estar indo dormir lá, porque se
alguma pessoa chegar em minha casa
para dormir seja lá quem for que não de
costume, vou esperar a pessoa dizer
porque veio dormir, eu não aceitava
assim sem satisfação. No caso se ela foi
dormir ela tinha que vir saber o porquê
dela tá indo dormir lá.
Porque elas sabem que o pai não quer que
eles (os filhos) durmam mais na sua casa,
para evitar falatório na rua, já que elas
não tem mais mãe, para não dizerem de
que ele tá pegando as filhas e pediu que
as meninas ficassem na casa da avó. Aí
ela sai daqui não diz onde é que está, fica
difícil evitar a violência, de repente ela
diz que vai dormir lá e vai para outro
lugar, como é que agente vai saber? E o
tio que provocou a violência sexual?
Sumiu, ninguém ouve mais notícia dele
não. Um dia desse ela tava querendo
viajar para lá, aí meu irmão conversou
com ela, ainda bateu nela por isso,
mesmo assim queria ir para o mesmo
local onde o tio tá, dá risada. Será que ela
tem noção. Acha que não vai mais
acontecer? Eu não sei se ela acha isso
não, viu, porque do jeito que ela vem
vindo. Acha que depois da violência ela
mudou o comportamento? Não, ela
continua fazendo as mesmas coisas, se
não estiver pior do que o que era. Pior
como? Gosta de ficar solta, quer ficar
solta, agente chama para conversa, chama
para dar conselho, mas ela quer ficar
assim, a vontade, diz que ninguém manda
Não enfrenta violência com violência
Preocupação com a vizinhança
Somente vê a violência das ruas
Fuga do agressor
216
nela, não respeita nem mais o pai, é
assim! Você acha que esse tipo de
comportamento tem algo a ver com a
violência que ela sofreu? Não. A revolta
dela é que o pai não quer aceitar ela
namorar, quer que estude e ela quer
namorar, quando aceitou, disse que não
queria mais...ia namorar escondido. Acho
que esse comportamento dela é que a
deixa nesse ciclo de violência. Eu queria
saber alguma coisa sobre sua infância?
Relação com pais, irmãos? Oh! Até
estudar meu pai, ele não queria deixar
agente estudar. Na escola dava livro ele
lascava, não queria deixar agente estudar,
agente estudava por causa de mainha,
chegou até o tempo das pessoas na rua
dizerem que ele queria a gente para ele,
agente ficava com medo disso, com medo
de tudo. Ele prendia muito agente, a
questão de prender eu até aceito,
entendeu. Você acha que está certo seu
pai prender vocês em casa? Não.
Porque prendendo ou não, quando tem
que acontecer acontece. Não deixar muito
solto, mas prender também eu não acho
certo; prendendo ou não quando solta é
pior. Fica curioso com o que vai ter do
outro lado; quer ver. E em relação à
escola? Eles (sobrinhos) faltam muito a
escola, e quem falta mais é a mais velha ,
que falta aula para jogar bola, os outros
faltam, mas não muito. E em relação aos
seus filhos você bate? Bater eu bato, mas
não deixo marcas, bato nele quando ele
merece. Quando ele merece? Quando
responde e quando procura briga na rua
também. Como você bate nele? De
cinto. E como não deixa marcas? Risos.
Deixo aquela marca de cinto, mas não é
de ferir. O que você acha que no futuro
uma criança que está apanhando da
mãe e do pai pode fazer com os filhos?
Tem uns que quando apanha que quando
o filho nasce cresce aí vai fazer à mesma
coisa que já sofreu.. Só que eu não
concordo. E como é que você faz para
que isso não aconteça? Não pode ser
como o pai de minha sobrinha que bate
nela como ele apanhava do pai dele.
Comportamento depois da violência
Estudar
Motivo da violência
Estudar
Perda da liberdade
Perda da liberdade
Bater
Naturalização da violência
217
Como ele apanhava? De murro. Ele não
sabe conversar? Ele conversa, mas a
menina é muito cínica, a pessoa cansa.
Não é certo como ele bate, mas é por
causa dela mesmo, ela provoca esse tipo
de situação. Ele bate nela de murro
porque quando era criança ele apanhava
de murro. É mesmo? O pai dele sangrava
a boca dele, o nariz. Por quê? No caso
ele desobedecia. Jogava bola na rua, ia
para praia vender e deixava a mercadoria
em um lugar e ia brincar, era ovo de
codorna, aí ele perdia, porque deixava à
toa para jogar bola, aí quando chegava
em casa sem a mercadoria, o pai batia.
Ele tinha que idade quando isso
aconteceu? 16 para 17 anos. Ele ia só
para praia vender, chegava lá encontrava
gente jogando bola, aí pronto, deixava a
mercadoria e ia brincar, chegava em casa
sem a mercadoria e sem o dinheiro, aí
apanhava. Então, na realidade você não
concorda que faça a mesma coisa? È
como eu tô dizendo violência, ele ser
violentado e querer fazer com o filho o
que já passou. Então, por que bate em
seu filho? Você não acha que ele pode
fazer a mesma coisa com os filhos dele.
Mas, nem sempre, por exemplo, minha
irmã mais velha foi quem mais apanhou
de meu pai e ela não trisca a mão nos
filhos dela. Meu pai sangrava ela toda,
deixava rosto inchado, hoje em dia, ela
não trisca as mãos nos filhos. Como ela
faz para educar? Bota de castigo, eles
obedecem ela, não são meninos de
ficarem na rua, ficam mais dentro de
casa. Hoje em dia minha irmã é cristã,
enfrentou meu pai, porque ele batia nela,
todo mundo aqui em casa é católico, até
por isso ele batia. Lembra mais coisas
da infância? Às vezes agente tava
dormindo, ele chegava bêbado e dava
com cabo de vassoura acordando meu
irmão
e
minha
irmã
batendo,
principalmente em minha irmã mais
velha. Ele chegava tarde da noite da rua
batendo. Agente apanhava, não tanto
quanto eles apanhavam. Batia para não
namorar mesmo. O pessoal da rua falava
Violência intergeracional
Violência intergeracional
Violência intergeracional
Motivo da violência
218
as coisas aí ele já chegava batendo, às
vezes tava todo mundo dormindo e
acordava assustado ele batendo. Isso
acontecia mais quando? Finais de
semana. Quando chegava no sábado
mesmo eu já ficava como medo, eu já
ficava assustada quando ele ia beber. E
sua mãe? Ficava do mesmo jeito? Ele
batia nela? Não. E ela batia em vocês?
Risos. Batia bem pouco, só uma
cinturãozada assim mesmo. Agora meu
pai batia mesmo, era de murro, de tapa, é
tanto que hoje eu nem escuto direito,
escuto bem pouco de um ouvido de um
tapa que eu tomei, ele batia em todo
canto, no ouvido, aqui assim [no
pescoço], teve uma vez que por causa
disso minha mãe foi para o ajuizado, quer
dizer assim...deu queixa dele. Ele
melhorou? Ele melhorou porque ele
parou de bater na agente, aí agente
acabou crescendo e ele não bateu mais.
Ela [a mãe] deu queixa dele e ficou
dentro de casa, todo mundo dizia que ele
ia matar ela, mesmo assim, ela tomou
coragem e foi. O que aconteceu que fez
com que ela tomasse a decisão de
denunciar? Nada, ela botou isso na
cabeça tomou coragem e foi.
Violência
Agressão física
Alcoolismo e violência
Mãe agressora
Repercussão da violência
Sequelas
Família Oxossi. Entrevista H
Denúncia
Como é o seu dia-dia? Eu fico assim,
brincando na rua, meu pai reclama, aí
minha avó fala, aí ele me bate, meu pai
não deixa eu ficar na rua. Meu pai não
gosta que eu saia. Só quando minha mãe
era viva que eu ficava na rua. Você
conhece alguém em situação de
violência? Minha irmã já brigou com
uma menina, por causa de uma tesoura da
menina escondido, ela foi bater na
menina, aí a menina foi pegar a faca para
ela, aí a menina falou que ia furar ela
porque ela pegou a tesoura. Como foi a
violência com sua irmã? Ela tava na
escada, aí minha avó mandou ela pegar
água, aí meu tio chegou lá e disse para
ela lhe dar água, ela disse pegue aí na
geladeira, aí ele levou ela para o quarto,
Mudança de comportamento do agressor
Quotidiano
219
jogou ela no colchão no chão e fez
ousadia com ela. Aí meu pai chegou e
levou ela para o médico. Como ela ficou
depois disso? Bem.Sua relação com o
pai e irmãos? Ah! Com a minha irmã eu
brigo muito, porque eu mando meu irmão
que tá na rua entrar, aí ele não me
obedece por causa dela que diz vá e deixa
ele na rua. Aí começa a briga. Vocês
brigam por qualquer coisa? Não. Brigo
mais por causa do meu irmão. O que é
violência para você? Briga, tiro, para
mim é violência. O que de violência
você presencia? Só isso. E a violência
que sua irmã sofreu por que
aconteceu? Porque ela dava muita
ousadia a ele [o tio]. Como assim? Ela ia
para casa de minha avó de saia, deitava
na rede de pernas abertas. Aí meu tio
ficava olhando para as pernas dela. Ela
dizia que estava de saia e o que é que
tinha! E ele ficava abaixado assim oh!
[coloca-se de joelhos] de olho nas pernas
dela. Todo mundo ficava aconselhando
ela e ela teimava em ficar com as pernas
abertas. Você acha que foi por isso? Foi.
Será que ele a paquerava? Humhum.
Ele já paquerou você? Não. Você já
sofreu algum tipo de violência? Não.
Mas, meu pai me bate depois me dá
carão., ele não gosta que eu brigue como
minha irmã, mas ela fica me batendo, aí
eu bato nela também. Ele quer que agente
se una, mas ela não quer, qualquer coisa
ela vem para cá me bater. Como avalia a
educação de seu pai? Acho boa. Ele lhe
dá conselho? Não, que ele sai para
trabalhar. Quem me dá conselho é minha
tia quem me fala as coisas para não ficar
aprontando pela rua, para não andar com
pessoas estranhas, que meu pai não quer.
Minha irmã não quer obedecer meu pai,
não quer obedecer ninguém, aí eu a
deixei de mão...até meu pai não está
falando com ela, quer dizer meu pai tá
falando, mas ela não está falando com
meu pai. Meu pai não quer minha irmã na
lan house, porque um dia eu fui e vi filme
de pornografia, por isso meu pai não quer
que eu vá mais para lan house. E na
Bater amigos
Violência sexual
Significado da violência
Causa da violência
Agressor junto a vítima
Comportamento da vítima
Comportamento do agressor
Bater
Conselhos
220
escola? Bem, eu falo com a pró, eu não
grito, quês as meninas de lá gritam. A
professora usa peruca, as meninas ficam
chamando ela de peruca, eu não chamo,
porque se meu pai soubesse ia me bater,
era uma semana sem sair de casa de
castigo.Aí como eu não faço isso, fico só
com duas colegas do colégio, as meninas
ficam me chamando de roçona, porque
fico para cima e para baixo com as
meninas que eu gosto de ficar, tá na hora
do recreio as meninas ficam mais eu
sentada lá na merenda.Alguma vez já foi
vítima de discriminação racial? Não.
De algum colega? Só um que toda vez
que ele me via, puxava meu cabelo, aí eu
dizia que ia falar para pró, aí ele dizia,
“sua lá ela”. Aí minha tia foi na escola
resolver, aí ele disse que não fez nada. O
que é racismo para você? Quando
alguém que é branco chama alguém de
preta, minha avó diz que é racismo.
Porque a menina dali é branca fica
chamando agente de negro, preto. Todo
mundo fala se os outros lhe chama de
preto não ligue não que fica lhe
discriminando porque você é morena.
Qual a sua cor? Sou morena[...] Eu
queria ter cabelos longos, que eu acho
bonito, assim batendo nas costas. O que
você acha que levam umas pessoas
baterem nas outras? A violência. O que
você acha da violência? Perigoso, pois
aqui um dia desse teve briga, uma mulher
quebrou uma garrafa e furou um menino,
ela jogou a garrafa no chão aí cortou o
menino, quando for procurar briga tem
que procurar longe das crianças, aliás,
nem perto das crianças nem longe, tem
que parar é com a violência. Aqui é muito
violento, todo sábado, todo domingo os
caras passam aí querendo matar um. O
que acha que contribui para esse tipo
de violência? A polícia. Por quê? Essa
semana os cara estava ali bebendo, nem
estavam armados, a polícia já chegou
mandando encostar batendo nos caras. Já
praticou algum ato violento? Na rua
não, agora em casa com minha irmã já.
Só bato em alguém da rua se vir para cá
Branqueamento
Cor morena
Branqueamento
Cor morena
Tem que parar com a violência
221
me bater. Meu pai fala que quando bater
na rua é para voltar para casa e explicar
primeiro antes que os outros venham e
invente coisas. Na sua família já
presenciou cenas de violência? Não. Só
quando minha avó batia em meu tio
quando ele cheirava pó. Ela pegou um
pau para bater nele e ele saiu xingando
ela. E alguém lhe bate? Não. Só meu pai
e minha madrinha quando eu apronto.
Porque bater não vai adiantar nada, no
outro dia a pessoa está fazendo a mesma
coisa. Acho que está batendo para educar.
Resolve? Resolve, porque eu obedeço.
Quando eu faço alguma coisa errada eu
falo a meu pai e ele diz por que você fez
se sabia que era errado. Ele conversa
com você? Conversa. Meu pai só bate
quando eu faço alguma coisa errada, bato
nos meus irmãos, bato em alguém na rua,
quando eu apronto. Qual a sua cor?
Preta, parda, branca, amarela, você é
que cor? Morena. O que é ser morena
para você? Eu sou morena, se eu fosse
preta eu era mais escura.E você queria
ser preta? Eu queria ser de qualquer cor.
Você acha que quem é preto é
discriminado? É, porque as pessoas
falam humhum, olhe para ali a cor
daquele homem, feião, pretão. Ali no bar
a mulher chama os outros de nego, preto,
feio. Se você fosse vítima de violência o
que faria para enfrentar a situação?
Chamava a polícia. Acha que a polícia
resolve? Resolve. Porque eu não procurei
briga, eles que vieram para cá me bater,
aí como eu não gosto de briga, eu pego e
chamo a polícia para resolver.
Violência nos finais de semana
A polícia é violenta
Não enfrentar violência com violência
Bater
Violência
Bater para educar
Pai tem o direito de bater
Branqueamento
Discriminação racial
Violência é coisa de polícia
222
ANEXO