São Paulo em Perspectiva, vol.19 n.3 – Migrações
Transcrição
São Paulo em Perspectiva, vol.19 n.3 – Migrações
A GLOBALIZAÇÃO INACABADA: MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E POBREZA ... A GLOBALIZAÇÃO INACABADA migrações internacionais e pobreza no século 21 GEORGE MARTINE Resumo: Este ensaio analisa as discrepâncias entre o discurso e a prática que marcam o atual processo de globalização econômica e suas implicações para a migração internacional. Examina também as vantagens e desvantagens da migração internacional sob diversos aspectos. Sugere a formulação de políticas migratórias que revalorizam os aspectos positivos da migração, enquanto se trabalha na redução dos seus efeitos negativos. Palavras-chave: Migração internacional. Globalização. Políticas migratórias. Abstract: This paper analyzes the discrepancies between discourse and actual practice that mark the current process of economic globalization and its implications for international migration. It also examines the advantages and disadvantages of international migration from different angles. Finally, it recommends the formulation of migration policies that build on the positive aspects while reducing the negative impacts of migratory movements. Key words: International migration. Globalization. Migration policies. P ara atuar sobre as migrações internacionais no século 21, é preciso entender como a globalização afeta os deslocamentos espaciais da população. Nos dias de hoje, o horizonte do migrante não se restringe à cidade mais próxima, nem à capital do estado ou do país. Seu horizonte é o mundo – vislumbrado no cinema, na televisão, na comunicação entre parentes e amigos. O migrante vive num mundo onde a globalização dispensa fronteiras, muda parâmetros diariamente, ostenta luxos, esbanja informações, estimula consumos, gera sonhos e, finalmente, cria expectativas de uma vida melhor. Entretanto, a globalização é parcial e inacabada, e isso afeta as migrações de várias maneiras. O dinamismo e a força principal da globalização residem na integração econômica, forjada, imposta e gerenciada pelas regras do liberalismo. Essas regras, porém, são seguidas seleti- SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 vamente pelos próprios países que as promovem. O resultado é que a globalização apresenta dificuldades e morosidades no cumprimento de suas promessas. Muitos países crescem pouco ou nada e, enquanto isso, as disparidades entre ricos e pobres aumentam. Tais desigualdades contribuem para aumentar o desejo, e até mesmo a necessidade, de migrar para outros países. Entretanto, as regras do jogo da globalização não se aplicam à migração internacional: enquanto o capital financeiro e o comércio fluem livremente, a mão-de-obra se move a conta-gotas. Este ensaio procura explicitar melhor algumas dessas inconsistências e suas implicações para a migração internacional. Começa com uma breve análise das discrepâncias entre o discurso e a prática que marcam o processo de globalização econômica na atualidade. Tais inconsis- 3 GEORGE MARTINE A GLOBALIZAÇÃO INACABADA: IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO tências estão na raiz da insatisfação e da frustração observadas em muitas sociedades e grupos sociais. Uma das discrepâncias diz respeito justamente às limitações que sofre a migração internacional. Se a lógica do modelo dominante contempla e até mesmo exige a migração internacional, por que esta não acontece em maior volume? A segunda parte deste ensaio procura responder a essa pergunta, tentando mostrar que a maioria dos supostos obstáculos à migração internacional é exagerada ou inconsistente. Nesse sentido, o ponto de partida para a formulação de políticas migratórias consistiria na revalorização dos aspectos positivos da migração, e na redução progressiva de seus efeitos negativos. Para poder idealizar políticas eficazes de migração, nessa visão, é importante entender o deslocamento espacial como parte das estratégias de sobrevivência e de mobilidade social da população. É interessante observar que, mesmo entre os pensadores, acadêmicos e ativistas (muitos deles, migrantes), existe um sentimento implícito e maldefinido de que, de alguma forma, o sedentarismo e a imobilidade seriam preferíveis à migração. Entre aqueles que trabalham com a temática “migração” – possivelmente porque observam de perto os sofrimentos que afligem a população migrante – encontra-se freqüentemente uma postura de rejeição à migração e um entendimento de que este é um processo a ser minimizado e reduzido. Esse tipo de sentimento é antigo e persistente, mas pouco prático no contexto do século 21. É preciso reconhecer que a não-migração também é associada à pobreza, à miséria, à violência e a todas as formas de exploração comumente relacionadas com a migração – muitas vezes de modo ainda mais exacerbado. Este ensaio considera que o aumento significativo da migração não somente é inevitável no contexto da globalização, como também tem um potencial bastante positivo. Esta postura não nega as dificuldades e as perdas reais ocasionadas pela migração, mas argumenta que estas podem ser, muitas vezes, reduzidas com ações específicas. Parte-se do suposto de que os aspectos positivos da migração são, pelo menos potencialmente, bastante mais significativos de que os negativos, e que também podem ser realçados com políticas adequadas. Em suma, a migração é inevitável e tem o potencial de ser bastante positiva para o desenvolvimento e a redução da pobreza. As políticas que partem desse princípio terão mais êxito do que aquelas que tentam se opor, de forma intransigente, tanto à globalização, como à migração de pessoas no espaço. Queiramos ou não, a globalização é uma força poderosa no novo sistema mundial, e continuará sendo determinante no curso da história futura da humanidade. Sem dúvida, ela nos coloca tanto desafios como oportunidades. A globalização suscita reações das mais diversas, muitas delas emocionais. Isso se deve, em parte, ao fato de que existem muitas dimensões, assim como muitas interpretações do fenômeno em curso.1 Neste ensaio, enfocamos a globalização da era atual, iniciada nas últimas décadas do século 20, principalmente nos seus aspectos econômicos e financeiros. Essa globalização caracteriza-se por aumentos significativos no intercâmbio comercial e financeiro, dentro de uma economia internacional crescentemente aberta, integrada e sem fronteiras. A influência do fundamentalismo econômico de Thatcher e Reagan; o descaimento e desmembramento das economias centralmente planejadas; a crise econômica/financeira prolongada de muitos países e regiões (com destaque para a América Latina) na década de 80; e a imposição de ajustes estruturais aos países não-industrializados. Todos esses são fatores que deram forte impulso à globalização econômica. Praticamente todos os países foram instados a adotar as mesmas regras do jogo e a submeter-se aos fiscais internacionais, propiciando a expansão do mercado global. De uma maneira ou de outra, e em etapas diferentes, todos estão caminhando em direção a uma nova organização econômica global. O modelo conhecido como o Consenso de Washington, promovido agressivamente pela banca internacional e pelos representantes dos países desenvolvidos, reduziu significativamente a participação estatal na economia e a proteção da economia nacional; ao mesmo tempo, abriu as fronteiras para o fluxo de bens e serviços, assim como de capital. Com isso, a globalização, que vem se acelerando desde 1985, tem quitado muita relevância às fronteiras nacionais, pelo menos no que se refere ao trânsito de capital e de bens. Em resumo, o aspecto mais notório da globalização na atualidade é, sem dúvida, o crescente predomínio dos processos financeiros e econômicos globais sobre os nacionais e locais. A generalização do livre comércio, o crescimento no número e tamanho de empresas transnacionais que funcionam como sistemas de produção integrados e a mobilidade de capitais são, de fato, aspectos destacados da realidade atual. 4 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 A GLOBALIZAÇÃO INACABADA: MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E POBREZA ... globalização são dirigidas às flagrantes inconsistências entre o discurso elevado dos países hegemônicos e sua prática cotidiana, com a esperança de que isso venha eventualmente a engrossar o caudal da advocacy e da mobilização política necessárias para promover mudanças imprescindíveis. Ao discutir o tema da migração internacional dentro do contexto da globalização, depara-se de imediato com o fato de que existe uma discrepância flagrante entre o discurso e a prática liberal. Como bem observa Pellegrino (2003, p. 8): Entretanto, é importante constatar que esse é apenas um aspecto da globalização, pois o processo é de caráter multidimensional. Na realidade, o impacto da globalização se faz sentir concomitantemente em termos políticos, culturais, sociais, ambientais e mesmo demográficos. Todas essas diferentes dimensões da atual fase da globalização passam por transformações aceleradas, devido à redução dos custos de transporte, informação e comunicação. Nessa dinâmica frenética, as diferentes dimensões evolucionam com matizes, ritmos e características próprias, levando muitas vezes a tensões entre elas. A desigualdade de forças dos diferentes atores junto com a ausência de uma governabilidade global dificultam muito a resolução dessas tensões. Tais tensões estão na raiz das reações fortes e emocionais que diversos grupos têm apresentado frente à globalização. Como pensadores, acadêmicos e representantes de movimentos sociais ou políticos, também temos alternativas de posicionamento diante da globalização. Podemos assumir atitudes de agressiva condenação, ou de apaixonado apoio à globalização, ou podemos criticar os seus aspectos mais negativos com o intuito de ajudar a promover uma correção eventual de rumos e práticas. Essa última abordagem é a escolhida neste ensaio. Partese do princípio que é pouco útil ficar numa atitude puramente negativa. Não se pode afirmar que a globalização econômica está em crise, ou que a globalização não deu certo, porque, na realidade, ela ainda nem foi experimentada. Como algumas regras centrais do modelo de globalização econômica ainda não estão sendo aplicadas, não podemos sequer avaliar se ele é capaz de cumprir suas promessas. A globalização continuará sendo, de fato, uma realidade inacabada enquanto os países mais poderosos não cumprirem os preceitos que eles mesmos venderam ao mundo subdesenvolvido como sendo a “trilha para o crescimento econômico”. Por outro lado, se formos objetivos, provavelmente acabaremos admitindo que não existe modelo alternativo viável no futuro previsível. Seguindo a trajetória dos dois últimos presidentes brasileiros – donos, os dois, de um currículo invejável de pensamento e ação nos movimentos de esquerda – é preciso ser realista. Ao assumir as rédeas do país, tanto Fernando Henrique Cardoso – como Luís Ignácio Lula da Silva – acabaram aceitando a necessidade de governar dentro das regras gerais da economia globalizada. Isso não lhes quitou o direito de divergir e de lutar para tentar corrigir as falhas do modelo dominante. Nesse sentido, as críticas feitas aqui ao processo de SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 o projeto liberal em matéria de circulação de capitais e mercadorias, sustentado por grande parte dos Estados centrais, entra em contradição com os severos controles impostos à livre mobilidade dos trabalhadores e à fixação das pessoas nos territórios nacionais desses Estados. Essa inconsistência é um empecilho enorme para a idealização de políticas e ações migratórias que sejam condizentes com a promoção do desenvolvimento e a redução da pobreza. Entretanto, essa não é, obviamente, a única, nem mesmo a maior incoerência entre o discurso e a prática do atual modelo. É importante situar essa inconsistência, referente especificamente ao domínio da migração, dentro do contexto mais amplo das incoerências que se registram hoje na aplicação do atual modelo hegemônico de desenvolvimento. A migração internacional é resultado das desigualdades entre países – e a globalização acentua essas desigualdades. As inconsistências entre discurso e prática constituem os principais entraves ao crescimento econômico dos países não-industrializados no atual momento da globalização, e o maior determinante dos problemas associados à migração, conforme pretendemos mostrar a seguir. A ATUAL FASE DA GLOBALIZAÇÃO E SUAS ASSIMETRIAS: IMPACTOS SOBRE A POBREZA Trabalho recente da Comisión Económica para América Latina – Cepal (2002) abre uma discussão fundamental a respeito dos atuais rumos da globalização e de suas implicações para o desenvolvimento dos países não-industrializados. A importância principal desse trabalho reside no fato de que, pela primeira vez (salvo engano), uma agência internacional de desenvolvimento reconheceu, clara e explicitamente, algumas limitações do modelo liberal e do processo de globalização. 5 GEORGE MARTINE quotas e tarifas às importações; e praticam o dumping de seus produtos (ANDERSON, 2004, p. 541-542). Por exemplo, a administração Bush enfureceu seus parceiros comerciais, em março de 2002, quando impôs tarifas de até 30% na importação de aço. Isso foi amplamente visto como uma ruptura dos acordos da Organização Mundial do Comércio – OMC. Estima-se que o setor siderúrgico brasileiro tenha perdido um bilhão de dólares e 5 mil empregos, apenas com essa medida. Da mesma forma, estimase que os produtores brasileiros de laranja perdem cerca de um bilhão de dólares anualmente por culpa das barreiras norte-americanas (OXFAM, 2002a, p. 14). Muitos países pequenos reclamam amargamente das tarifas norte-americanas sobre uma série de produtos, especialmente têxteis e roupa, nos quais recaem 42% de todos os impostos de importação (OXFAM, 2002a). Essas manobras hipócritas e contraditórias constituem provavelmente o maior obstáculo ao desenvolvimento dos países pobres sob o regime liberal. Uma assimetria relacionada com a anterior diz respeito ao diferencial do poder de barganha e de manipulação entre os diferentes países. Cria-se a ilusão de que os vários países soberanos são parceiros igualitários na busca do desenvolvimento e do bem-estar, mas a realidade é bem diferente. Os mais fortes, particularmente os Estados Unidos da América e, em grau menor, a União Européia, arrumam as coisas à sua maneira, promulgam seus próprios valores como sendo universais, consultam seus aliados quando isso lhes interessa, usam a força para defender seus interesses (como recentemente em Kosovo, no Afeganistão e no Iraque), adotam posturas de política internacional claramente incoerentes com a paz mundial (como no Oriente Médio), e justificam tudo isso em termos de “princípios éticos elevados”. Segundo Milanovic (1999, p. 8), isso não deveria nos surpreender porque o imperialismo faz parte integral da globalização. No trabalho referido, a Cepal (2002, p. 77) afirma com todas as letras que os países ricos começam o jogo econômico mundial nessa etapa da globalização em condições de claras vantagens: a economia mundial é um ‘campo de jogo’ essencialmente desnivelado, cujas características distintivas são a concentração do capital e a predominância no comércio de bens e serviços. Essas assimetrias características da ordem global constituem a base das profundas desigualdades internacionais em termos de distribuição de renda. Tais vantagens só tendem a aumentar com o tempo, pois os mecanismos de mercado geralmente reproduzem, e inclusive ampliam, as desigualdades existentes nos planos nacional e internacional (CEPAL, 2002, p. 88). Assim, a conjugação de uma ampliação moderada das desigualdades internacionais e do notório incremento das desigualdades internas dos países é “uma das características mais distintivas da terceira (e atual) fase de globalização.” (CEPAL, 2002, p. 83). Numerosos estudos recentes, realizados pelo Banco Mundial, destacam os efeitos negativos dessa desigualdade no crescimento econômico. Nesse contexto, comenta a Cepal (2002, p. 88), os esforços nacionais de desenvolvimento e de redução da pobreza somente podem dar frutos se eles estiverem complementados por regras de jogo eqüitativas e estáveis, e por uma cooperação internacional destinada a por fim às assimetrias básicas que caracterizam a ordem mundial. Em seguida, o documento assinala algumas “assimetrias” da ordem internacional na atual fase de globalização. Uma delas faz referência justamente ao tema que nos interessa, ou seja, as migrações internacionais – e esse será o objeto de discussão do próximo segmento. Neste momento, a iniciativa da Cepal de citar algumas “assimetrias” do atual modelo nos inspira a citar uma lista de outras inconsistências, que nos parecem ainda mais contundentes, em termos de seus impactos sobre as perspectivas de desenvolvimento. Nesse rol, a mais funesta parece ser a discrepância entre “o discurso dos países desenvolvidos na pregação da abertura das fronteiras dos outros países” versus “a realidade protecionista das políticas praticadas por eles”.2 O princípio de que o comércio entre países deveria ser guiado pelos preços de mercado é sistematicamente atropelado pelos países desenvolvidos quando estes: subsidiam a produção – notadamente na agricultura; impõem restrições, A globalização não é um processo no qual a maioria dos países participa em pé de igualdade, realizando igualmente atividades de intercâmbio e produção. A globalização somente emerge quando um hegemon garante estradas e mares seguros para que muitos possam exercer atividades de comércio e investimento (MILANOVIC, 1999, p. 4). Mais adiante, Milanovic pergunta: Até onde o hegemon atual vai entrar na senda do imperialismo? Já podemos observar uns sinais claros: o quase total desprezo pelas Nações Unidas, ou melhor, o fato da 6 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 A GLOBALIZAÇÃO INACABADA: MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E POBREZA ... pobres. É conveniente esquecer que tais dirigentes eram, muitas vezes, meros títeres colocados e apoiados no poder pelos países hegemônicos. Também o mundo se esquece de que os líderes dos países em desenvolvimento eram estimulados a contrair tais empréstimos em conivência com os interesses políticos e econômicos dos donos do dinheiro. As agências freqüentemente emprestavam dinheiro por razões que pouco tinham a ver com o “apoio ao desenvolvimento”. Na época da Guerra Fria, procuravam assegurar alianças geopolíticas. Em todas as épocas, a perspectiva de vender armas, equipamentos, tecnologia ou mercadorias motiva a oferta de empréstimos a governos que pouco se importam com a dimensão da dívida contraída. Nessas transações, nem o credor e nem o tomador de empréstimos se preocupa com a responsabilidade eventual dos pagamentos, ou seja, a corrupção vem de ambos os lados. Finalmente, os discursos altivos daqueles que não querem perdoar a dívida não se recordam de que as regras do jogo financeiro são ditadas pelos credores. Nessas, os juros mínimos acordados no momento do empréstimo podem, de repente, inflacionar-se por motivo dos desmandos financeiros dos próprios países desenvolvidos.5 Enquanto isso, os preços dos principais produtos de exportação dos países devedores caem assustadoramente – também por manipulação dos países credores. Uma quinta assimetria, nesse caso sugerida pela Cepal, refere-se à altíssima concentração do progresso técnico nos países desenvolvidos. Neles se concentram, não somente a pesquisa, mas também as ramas produtivas vinculadas aos câmbios tecnológicos, os quais se caracterizam por um grande dinamismo na estrutura produtiva e no comércio mundial. A transferência do progresso técnico aos países em desenvolvimento é lenta, irregular e cara, cada vez mais acastelada pelas normas de proteção à propriedade intelectual (CEPAL, 2002, p. 88-89). Uma sexta assimetria, novamente descrita pela Cepal, refere-se à maior vulnerabilidade macroeconômica dos países em desenvolvimento aos choques externos. A maior integração financeira característica do atual processo de globalização multiplica essa vulnerabilidade. Por exemplo, a crise asiática de 1998 começou na Tailândia e expandiuse rapidamente para o restante das economias do Sudeste da Ásia. As moedas internacionais pertencem aos países desenvolvidos e fluem para os outros de forma cíclica, em função da percepção do caráter arriscado de investimentos nestes. Isso tem efeito significativo na alternância dos ciclos de crise e de bonança nos países em desenvolvimento (CEPAL, 2002, p. 91-92). ONU ter se transformado em um instrumento da política norte-americana e, quando é inconveniente, é simplesmente ignorada; a falta de respeito aos tratados e documentos; a disposição dos EUA para atuar de forma unilateral ou de arrastar seus aliados reticentes, numa ostentação de unidade (MILANOVIC, 1999, p. 7).3 Uma terceira inconsistência diz respeito à validade da própria promessa do desenvolvimento via abertura de fronteiras. A Cepal (2002, p. 18) rechaça o uso normativo do conceito (de globalização) que ressalta a idéia de uma única via possível – a liberalização plena dos mercados mundiais e a integração a eles como o destino inevitável e desejável de toda a humanidade. Numa análise estatística da experiência dos países em desenvolvimento no campo do crescimento econômico desde 1975, Rodrik descobriu que os dois fatores mais importantes no ritmo de crescimento econômico de um país têm sido: o nível de investimento interno e a capacidade do governo de manter a economia doméstica estável no meio das turbulências da economia global. Manter a inflação sob controle e assegurar uma taxa de câmbio em patamares realistas eram também fatores importantes. Entretanto, o grau de abertura ao comércio e às finanças internacionais não era, de per se, significativo (RODRIK, 1997; 1999). Esse tipo de constatação reforça as desconfianças que se projetam sobre as intenções dos países desenvolvidos quando se empenham tanto na abertura das fronteiras dos países em desenvolvimento. A quarta incoerência – e um dos maiores obstáculos ao crescimento econômico de muitas nações – diz respeito ao peso da impagável e eterna dívida externa dos países em desenvolvimento.4 Depois do fracasso das moratórias, ficou até deselegante falar nesse tema; no Brasil, a dimensão e a pujança da economia nacional atual permitem deixar de lado esse problema no momento. Entretanto, muitos outros países continuam sufocados com o pagamento obrigatório de uma parcela significativa do seu produto nacional. Uma das alegações principais para não perdoar essas dívidas impagáveis é a de que isso estimularia a irresponsabilidade entre os governantes dos países em desenvolvimento. De fato, na América Latina, estima-se que o aumento na dívida externa entre 1976-1984 foi equivalente à emigração de capitais privados da região para as capitais financeiras. Sem embargo, o fato de que os empréstimos teriam sido feitos de maneira irresponsável ou corrupta não pode ser atribuído exclusivamente aos dirigentes dos países mais SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 7 GEORGE MARTINE Uma sétima inconsistência se refere especificamente ao tema da migração internacional, e será tratada em maior detalhe no próximo segmento. Durante a primeira fase da globalização, que se estende desde o último quarto do século XIX até os inícios do século XX, a expansão do comércio e a elevada mobilidade de capitais estiveram acompanhadas de um incremento dos fluxos migratórios [...] Esta migração de grandes proporções teve como destino vários países do Novo Mundo [...] Entre 1870 e 1920, os Estados Unidos, principal país receptor desta corrente migratória, acolheu a mais de 26 milhões de pessoas [...] que chegaram a representar mais de 10% da população total do país. MIGRAÇÃO INTERNACIONAL E GLOBALIZAÇÃO As transformações rápidas e profundas geradas pela globalização têm tido um grande impacto sobre os movimentos migratórios, mas de forma ainda segmentada e contraditória. Por um lado, parece existir um consenso na literatura de que a globalização constitui o motor principal da migração internacional neste momento histórico (MASSEY et al., 1998, p. 277). Por definição, a globalização leva ao desarraigamento quando acelera o progresso econômico que transforma comunidades, estimula as pessoas a abandonar trabalhos tradicionais e a buscar novos lugares, enquanto as obriga a confrontarem-se com novos costumes e novas maneiras de pensar (MILANOVIC, 1999, p. 10-11). Mas as diferentes assimetrias observadas acima também impulsionam o deslocamento populacional. Assim, os subsídios à agricultura nos países desenvolvidos impactam na baixa renda dos agricultores nos subdesenvolvidos, provocando tanto a migração rural-urbana como a emigração. As desigualdades crescentes entre países, resultantes do conjunto das assimetrias, aumentam per se a motivação para migrar (MARTIN, 2004, p. 448-9). Ao mesmo tempo, a globalização aumenta o fluxo de informações a respeito das oportunidades ou dos padrões de vida existentes ou imaginados nos países industrializados. Dessa forma, suscita uma vontade cada vez maior de migrar e de aproveitar as oportunidades e as comodidades que aparentemente estão sendo criadas em outros países. Em suma, os padrões da migração internacional refletem tanto as desigualdades entre países como as mudanças econômicas e sociais que ocorrem em diferentes países. No atual momento histórico, exceto no caso dos conflitos armados e dos desastres naturais, a globalização é o principal fator que ativa os movimentos migratórios entre países e determina seus contornos. Entretanto, esse não é o aspecto mais marcante da relação atual entre globalização e migração. Mais notável ainda é como a migração é limitada e restrita dentro do contexto atual. Na realidade, os quantitativos atuais indicam uma mobilidade bastante menor do que aquela verificada em períodos anteriores. Conforme depoimento da Cepal (2002, p. 73 e citações): Tomando em consideração a multiplicação demográfica, assim como os enormes avanços nos domínios de transporte e comunicação havidos entre aquele período e a atual fase de globalização, era de se esperar, ceteris paribus, uma expansão muito maior da migração internacional no atual momento histórico. O fato de isso não ter ocorrido, e as razões subjacentes à lentidão do crescimento da migração internacional, podem ser vistas como mais significativas do que o próprio crescimento recente da mobilidade internacional. Assim, o estímulo massivo à migração internacional, provocado pela globalização, não é acompanhado por um aumento correspondente de oportunidades porque os países que atraem migrantes bloqueiam sistematicamente sua entrada. O “Mundo Sem Fronteiras” é parte da definição da globalização, mas não se aplica ao movimento de pessoas. O capital humano é um fator de produção que, formalmente, não tem livre trânsito entre fronteiras nos dias de hoje; não existe um “mercado global de trabalho”. As fronteiras abrem-se para o fluxo de capitais e mercadorias, mas estão cada vez mais fechadas aos migrantes: essa é a grande inconsistência que define o atual momento histórico no que se refere às migrações internacionais. No contexto do desenvolvimento capitalista, a mobilidade da força de trabalho – seja dentro de fronteiras nacionais, seja entre fronteiras – tem desempenhado um papel importante. O princípio do livre comércio sugere que a produção mundial seria maior se não houvesse fronteiras e se todos os fatores de produção, inclusive as pessoas, pudessem fluir livremente. Portanto, as políticas que restringem a mobilidade dos trabalhadores, segundo a teoria econômica neoclássica, conduzem a uma economia mundial menor em termos agregados (BORJAS, 1996, p. 11). No contexto da globalização, as restrições legais assumem contornos e implicações particularmente sérias. Obviamente, a maior liberdade de movimento da mão-deobra não resolveria todos os problemas dos países pobres e nem eliminaria as fortes desigualdades entre nações. 8 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 A GLOBALIZAÇÃO INACABADA: MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E POBREZA ... de 3% entre 1960 e 2000, – o que representou a taxa mais rápida de crescimento durante o período (UNITED NATIONS SECRETARIATE, 2004a). É importante constatar que essas cifras geralmente não contabilizam o número de migrantes “não-autorizados”, “ilegais” ou “documentados”, cuja quantidade é impossível estabelecer com precisão. Trabalho recente, por exemplo, afirma que a maioria dos brasileiros nos Estados Unidos não tem documentação (MARTES, 1999, p. 48). A Organización Internacional para las Migraciones – OIM sugere que o número dos migrantes não-oficiais poderia ascender a uns 33 milhões. Entretanto, no caso dos Estados Unidos, o Bureau do Censo calcula que pelo menos 30% dos seus 30 milhões de migrantes em 2000 eram “ilegais” (CENTER FOR IMMIGRATION STUDIES, 2004). Mantida essa relação entre “migrantes oficiais” e “migrantes não-documentados” no resto do mundo significaria que o total de migrantes não-documentados, na realidade, alcançaria 52 milhões. Tomando em consideração a rigidez e a complexidade do aparato repressivo nos Estados Unidos, em comparação com os controles migratórios menos rigorosos em outras partes do mundo, é até possível que esse número seja ainda maior.6 Poderia até mesmo transformar alguns países mais pobres em produtores permanentes de mão-de-obra, sem perspectivas de gerar atividades produtivas próprias. Entretanto, para que o modelo liberal e a globalização alcancem suas promessas de promover o desenvolvimento, reduzir a pobreza e melhorar as condições de vida da população, seria essencial que essa inconsistência fosse algo minimizada. Nesse sentido, pareceria útil revisar os principais aspectos da migração contemporânea e analisar o que eles aportam e o que eles têm de negativo, para poder entender melhor por que a migração não pode fluir livremente. Providos dessa informação e análise, seria mais fácil, para os pesquisadores, montar uma campanha de advocacy para poderem influir na conquista de maior liberalização dos fluxos. OS FLUXOS MIGRATÓRIOS HOJE De acordo com as estimativas oficiais da ONU, a quantidade de migrantes no mundo teria aumentado bastante nas últimas décadas. De 1960 a 2000, o número de pessoas que residiam num país diferente do de nascimento passou de 76 para 175 milhões. Entretanto, esse aumento é parcialmente fictício, pois 27 milhões do suposto incremento deve-se simplesmente ao desmembramento da União Soviética e da Iugoslávia. Por outro lado, é muito relevante observar que a proporção de migrantes no total da população tem-se mantido baixa – de 2,5% em 1960 a 2,9% no ano 2000 (UNITED NATIONS SECRETARIATE, 2004a). Outro aspecto que vale destacar na atual fase da globalização é a concentração dos destinos migratórios nos países desenvolvidos. Em 1960, a maioria dos migrantes internacionais residia nos países em desenvolvimento. Em 2000, 63% (110 milhões) de todos os migrantes registrados (e provavelmente uma proporção bastante mais elevada dos migrantes não-registrados e documentados) residiam nos países desenvolvidos. O estoque de migrantes nesses países aumentou em 78 milhões, enquanto a população migrante nos países em desenvolvimento aumentou em somente 27 milhões. Se colocarmos esses números em termos do que representam em cada bloco, observamos que os migrantes internacionais passam a representar em torno de 9,2% nos países industrializados e apenas 1,3% nos outros países. O grande crescimento da migração internacional ocorreu na Europa, América do Norte, Austrália, Nova Zelândia, Japão e países da antiga União Soviética. Na América do Norte, a população migrante aumentou a um ritmo anual SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 Fluxos Migratórios da América Latina e o Caribe Como situar a região da América Latina e Caribe (doravante, ALC) nesse panorama? Até meados do século 20, a ALC era afetada por três tipos de padrões migratórios: a imigração de ultramar, a migração intra-regional e a emigração para fora da região. Hoje em dia, a migração vinda de ultramar é irrelevante, a migração intra-regional tem diminuído e a migração para fora da região se multiplicou (VILLA; MARTÍNEZ, 2001, p. 25-31). A maior parte desses fluxos para fora da região dirige-se agora para o norte do continente americano, especialmente para os Estados Unidos e, em menor medida, até o Canadá. Entretanto, estão também surgindo, particularmente desde 1990, correntes importantes em direção à Europa. Segundo Castillo (2003, p. 11), tanto as migrações para os Estados Unidos e Canadá como aquelas que se dirigem aos países europeus se caracterizam predominantemente como sendo de Norte-Sul, por suas motivações, circunstâncias e contextos, apesar de sua relativa heterogeneidade interna. Como comenta Pellegrino (2003, p. 19), a emigração em direção ao norte converteu-se em um “projeto de vida” 9 GEORGE MARTINE para muitos latino-americanos e passou a ser aceita a partir dessa perspectiva TABELA 1 Remessas Enviadas pelos Migrantes, segundo Grandes Regiões 2002 como alternativa para enfrentar as difíceis condições de vida, a incerteza do mercado de trabalho e o descontentamento com os resultados do padrão de desenvolvimento (CEPAL, 2002, p. 245). Grandes Regiões Total 100,0 América Latina e Caribe Por essas várias razões, e pela proximidade com os EUA, que é a Meca dos migrantes, a América Latina transformou-se na região de maior mobilidade migratória internacional nessas últimas décadas. O predomínio da mobilidade dessa região faz-se registrar no volume, tanto de fluxos, como das remessas que são enviadas pelos migrantes latino-americanos. A ALC tem 8,5% da população mundial; entretanto, um em cada dez migrantes internacionais nasceu num país dessa região – isso sem contar os ilegais e indocumentados, categoria na qual a ALC é provavelmente soberana. Ao mesmo tempo, conforme pode ser observado na Tabela 1, os migrantes da ALC são campeões incontestáveis de remessas. Embora constituindo apenas 10% de todos os migrantes oficiais, enviam mais de 30% de todas as remessas contabilizadas pelos dados disponíveis em nível mundial. Isso sugere duas hipóteses: ou os migrantes da ALC ganham mais, na média, ou eles enviam uma parcela maior de suas economias para casa. Pesquisa recente do Centro Hispano Pew, baseada em dados censitários, indicaria que essa segunda alternativa é provável. De acordo com essa fonte, os hispânicos têm uma renda onze vezes menor que a da população branca, embora um pouco superior à dos afro-americanos. Entre os fatores que incidem nessa relativa pobreza estariam: o baixo nível educacional, o desconhecimento do inglês, a tendência a concentrar-se em regiões com custo de vida elevado e, finalmente, o fato de que os hispânicos fazem, em média, remessas de maior valor (US$ 2.500,00 por ano).7 Duas pesquisas recentes parecem indicar que as remessas enviadas por brasileiros são bastante mais elevadas que as dos “hispânicos”. Segundo Bendixen (apud MARTES, 2004), 1,3 milhão de brasileiros recebem US$ 4.150,00 por ano; a metade desses recursos seria enviada por brasileiros que moram nos Estados Unidos. Utilizando dados primários coletados na área de Boston, Martes relata que a média do valor de envio ascenderia, na realidade, a US$ 6.535,00 por entrevistado/ano. Extrapolando os dados de Rossi (2004), podemos estimar que os brasileiros em Portugal estariam enviando em torno de US$ 5.000,00 por ano. % 31,0 Sul da Ásia 20,0 Oriente Médio e África do Norte 18,0 Ásia do Leste e Pacífico 14,0 Europa e Ásia Central 13,0 Sul da África 5,0 Fonte: Orozco (2002, p. 3; baseado em dados oficiais). A maioria das migrações recentes oriundas da ALC termina nos Estados Unidos. De acordo com os dados censitários, havia 8,4 milhões de migrantes da ALC residentes nos EUA em 1990; esse número aumentou para 15 milhões no ano 2000. Nesse momento, a metade dos migrantes nos EUA era originária da ALC. Quando se considera a condição étnica da população migrante, esse volume aumenta sensivelmente; o Censo Demográfico dos EUA de 2000 estabeleceu que a população “hispânica” ou “latina” era de 35,3 milhões; destes, 58,5% declaravam ser de origem mexicana (CASTILLO, 2003, p. 11). Dados ainda não publicados do Census Bureau dos Estados Unidos indicam que o número de imigrantes naquele país vem-se multiplicando durante os últimos anos. De acordo com esses dados, a população total de imigrantes teria subido de 30 para 34 milhões entre 2000 e 2004. Desse aumento, estima-se que pelo menos a metade seria de imigrantes ilegais ou indocumentados. Além de indicar um crescimento significativo na taxa de imigração para os Estados Unidos durante os últimos anos, essas cifras sugerem que a imigração para aquele país não flutua diretamente com a dinâmica econômica do país receptor (pois se trata de um período de relativa estagnação econômica). Também pareceriam indicar que as medidas restritivas adotadas após os eventos de 11 de setembro de 2001 não têm funcionado (CENTER FOR IMMIGRATION STUDIES, 2004). Sem dúvida alguma, a migração da região da ALC foi significativa nesse aumento recente. Essa mobilidade tem raízes naquilo que se tem chamado na região de “década perdida”, na desigualdade social incomum, na precariedade do emprego, na instabilidade social e política, na violência e na vulnerabilidade. Mas todos esses fatores foram catalisados pelas transformações profundas operadas pela globalização, não somente em 10 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 A GLOBALIZAÇÃO INACABADA: MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E POBREZA ... termos econômicos, mas também em termos de acesso à informação e à comunicação. gera desafios e oportunidades, tanto para países receptores como para aqueles que enviam um maior número de migrantes a outros países. É evidente que, para opinar sobre as vantagens ou desvantagens da migração, é preciso definir: vantagens para quem e para quê? Como qualificar essas vantagens e desvantagens? As possíveis conseqüências variam de acordo com a escala de análise: país, comunidade, família e pessoa migrante. No âmbito dos migrantes e das famílias, por exemplo, a emigração pode ser positiva do ponto de vista econômico; a avaliação do impacto na economia, em nível geral, é mais complexa. Dependendo da fase do processo migratório e do ciclo de vida do migrante, a migração também pode ser positiva ou negativa. Também as conseqüências são diferentes no curto e longo prazos. No curto prazo, a migração pode servir como “válvula de escape”, aliviando as pressões sobre o mercado de trabalho e trazendo o dinheiro muito necessitado para as famílias. No longo prazo, a perda de trabalhadores mais qualificados, assim como da população jovem, e a dependência sobre as remessas podem constituir obstáculos para o desenvolvimento (PELLEGRINO, 2003, p. 26-27). Na realidade, a maioria das conseqüências socioeconômicas da migração é dupla ou contraditória, dependendo da ótica, do momento e da situação. Apesar das dificuldades, procuramos, a seguir, definir melhor algumas vantagens e desvantagens da migração internacional para diversos atores. Não se pretende um esquema rígido ou acabado de avaliação. Simplesmente busca-se identificar melhor alguns argumentos objetivos e distingui-los das motivações xenofóbicas que impedem maior aceitação da migração como uma parte integrante do atual processo de globalização. Ao mesmo tempo, essa discussão procura promover avanços quanto à identificação de uma trilha política que poderia ser seguida pelos movimentos sociais referentes à questão da migração internacional. Afinal de contas, a migração vai continuar; o importante é encontrar fórmulas e políticas que ajudem a potencializar seus efeitos positivos e a reduzir suas conseqüências negativas. Com esse intuito, elaboramos, primeiro, um quadro simplificado das principais conseqüências da migração internacional. Para fins de visualização sintética, o Quadro 1 apresenta, de forma simples e dicotômica, a lista das principais vantagens e desvantagens da migração que circulam na literatura. Entretanto, em seguida, tratamos de discutir a relativa validade desses argumentos de maneira mais holística. Embora não seja possível quantificar os aspectos positivos e negativos, as vanta- COMO AVALIAR A MIGRAÇÃO INTERNACIONAL? VANTAGENS E DESVANTAGENS De acordo com a lógica do processo de globalização que está sendo propagada nesse momento histórico, a migração internacional deveria aumentar, pari passu, com o aumento do fluxo de capitais e mercadorias. Teoricamente, a migração a partir de áreas de baixa renda para outras de renda mais elevada permite o uso mais eficiente dos recursos disponíveis. O aumento da mobilidade de mão-de-obra redundaria num aumento da produção mundial e, conseqüentemente, geraria condições para a melhoria do bem-estar da população. Segundo Ratha (2003), dada a enorme discrepância entre os níveis de renda dos países ricos e pobres, a maioria dos economistas, assim como muitos dos tomadores de decisão nos países em desenvolvimento, vislumbra grandes benefícios no aumento da mobilidade do trabalho. Citando estudos de Winters (2003) e de Rodrik (2001), Ratha (2003, p. 168) estima que o bem-estar mundial aumentaria em mais de US$ 150 bilhões se os países desenvolvidos aumentassem sua quota de trabalhadores internacionais temporários até 3% da sua força de trabalho.8 Entretanto, esse aumento significativo da migração, tão necessário para a melhoria das condições nos países em desenvolvimento, não tem ocorrido. Por quê? Evidentemente porque os países mais ricos, que são o destino preferencial dos migrantes, consideram que a entrada massiva de migrantes lhes seria prejudicial. Não seria realista imaginar uma súbita abertura escancarada de todas as fronteiras internacionais à migração. Sem dúvida, seria o caos para o sistema mundial tal como o conhecemos. Entretanto, uma entrada mais alentada de migrantes (digamos, em torno de 3% a 4% das respectivas forças de trabalho dos países de maior dinamismo econômico) seria perfeitamente viável e, segundo a lógica predominante, altamente benéfica. Por que não acontece? Para poder responder a essa pergunta, é preciso tentar pesar, de forma mais objetiva, as vantagens e desvantagens da migração internacional. Esse é talvez o aspecto no qual ainda existe maior ambigüidade na literatura: como apreçar o valor da migração? O aumento da migração SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 11 GEORGE MARTINE QUADRO 1 Vantagens e Desvantagens da Migração Internacional Vantagens Para os Lugares de Origem e para os Migrantes Desvantagens Para os Lugares de Destino Para os Lugares de Origem e para os Migrantes Para os Lugares de Destino A migração gera remessas para as famílias, as comunidades e o país, o que promove o dinamismo econômico nos lugares de origem Os migrantes ajudam a melhorar a qualidade de vida e barateiam o seu custo nos lugares de destino, ao realizarem atividades que os nativos não querem fazer, e por salários baixos Seletividade da migração: a “fuga de cérebros” leva a déficits de recursos humanos qualificados nos países de origem Os países receptores são palco de conflitos e tensões sociais que surgem das diferenças étnicas, lingüísticas e religiosas A migração permite uma mobilidade social que, de outra forma, seria difícil de alcançar A migração revitaliza sociedades envelhecidas ao preencher lacunas demográficas e laborais Países e comunidades perdem as pessoas mais criativas, trabalhadoras, empreendedoras e ambiciosas Sofrem risco de erosão da cultura nacional Os migrantes aprendem idéias, habilidades e valores que ajudam apressar a modernização do seu país de origem Os países receptores recebem, gratuitamente uma grande quantidade de recursos humanos qualificados cujos custos foram internalizados por outros Migrantes são perseguidos e maltratados por xenófobos e considerados cidadãos de segunda classe; tal discriminação – racial e social – retarda a assimilação Peso fiscal: pelo menos no início, os imigrantes pressionam os serviços sociais, educacionais e de saúde A emigração alivia tensões sociais em países de economias estagnadas e com grande população jovem Os migrantes ajudam a reduzir a inflação e aumentar a produtividade (respondem melhor às mudanças no mercado de trabalho, reduzem sua rigidez) Migrantes sofrem dificuldades de comunicação e adaptação, estresse psicológico, perda de identidade e do referencial afetivo Riscos para a segurança nacional e de terrorismo aumentam Em certas condições, promove a emancipação da mulher A migração expande a base de consumidores e de contribuintes (impostos) A migração é um fator de risco, especialmente para mulheres e crianças Migrantes competem por empregos e reduzem salários dos locais. Isso provoca reações dos sindicatos ou grupos de pressão que vêem os imigrantes como competidores no mercado de trabalho gens acabam parecendo bastante mais proeminentes. Inclusive, observa-se que algumas das principais objeções que são comumente utilizadas para restringir a migração nos países industrializados são facilmente desmistificadas. Embora a lista de variáveis no Quadro 1 não pretenda ser exaustiva nem definitiva, ela ajuda a visualizar alguns dos aspectos de maior destaque relacionados com a funcionalidade da migração. Entretanto, vale a pena discutir certas características supostamente negativas citadas nesse quadro, além de realçar alguns dos aspectos positivos aí mencionados. mia mundial. A cada ano, os migrantes enviam o equivalente, hoje, a US$ 100 bilhões em remessas para sustentar suas famílias e comunidades (ILO, 2004). Isso representa um aumento significativo, já que em 1980 as remessas apareciam nas contas nacionais com um valor de US$ 43 bilhões e, em 1995, de US$ 70 bilhões (RUSSELL, 1992). Essas cifras colocam as remessas em segundo lugar (perdem apenas para o valor das exportações globais de petróleo) no fluxo monetário do comércio internacional. As remessas constituem uma fonte estável de entrada e, com toda probabilidade, devem aumentar bastante no futuro (RATHA, 2003, p. 157). Um estudo de 74 países concluiu que as remessas são críticas para a redução da pobreza: na média, um aumento de 10% na participação das remessas no produto interno bruto – PIB gera uma redução de 1,6% na proporção de pobres no país (ADAMS; PAGE, 2003, p. 13). Vantagens para os Migrantes e os seus Lugares de Origem As Remessas – O trabalho migrante é uma faceta crítica da globalização e tem um impacto significativo na econo- 12 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 A GLOBALIZAÇÃO INACABADA: MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E POBREZA ... chegou à conclusão de que os emigrantes foram responsáveis pela aplicação aproximada de 154 milhões de dólares no mercado imobiliário valadarense, somente no período 1984-93. Entretanto, esses vários impactos poderiam facilmente ser bastante maiores. Na ALC, o custo médio para enviar remessas é de 13%; em alguns casos, chega a 20% (OROZCO, 2002). Para as comunidades e famílias de origem na ALC, isso representou uma perda de pelo menos 5 bilhões de dólares somente em 2003. Tais cifras exigem uma ação urgente, que vise a oferecer aos migrantes um canal mais eficiente e mais barato para envio de dinheiro. Por outro lado, as estatísticas coletadas sobre o fluxo de remessas não são uniformes nem abrangentes – o que dificulta a tomada de decisões informadas no âmbito do planejamento para o melhor aproveitamento das remessas. Poucas instituições financeiras estão oferecendo produtos especificamente ajustados às necessidades dos imigrantes que fazem remessas para o seu país, e os governos têm feito pouco para criar um ambiente em que tais serviços possam prosperar. Essas falhas advogam por políticas específicas mais efetivas, para aproveitar o potencial das remessas na promoção do desenvolvimento. Na ALC, a quantia de dinheiro enviada por imigrantes latino-americanos e caribenhos para suas famílias nos países de origem aumentou em 139% nos últimos cinco anos, passando de US$ 23 bilhões em 2001 para US$ 55 bilhões em 2005 (dados do BID, citados em Vasconcellos, 2005). De acordo com a mesma fonte, os emigrantes brasileiros teriam enviado para o Brasil cerca de 5,6 bilhões de dólares em 2004 (VASCONCELLOS, 2005). Na maioria dos países da América Latina e do Caribe, as remessas agora superam o valor combinado de investimento direto estrangeiro, ajuda multilateral e pagamentos de juros sobre a dívida externa. Embora os dados disponíveis sejam parciais e incompletos (OROZCO, 2002), ninguém na literatura especializada duvida que as remessas têm impactos econômicos importantes nas economias das famílias de migrantes, em suas comunidades ou em seus países. Em alguns casos, os autores lamentam que apenas uma proporção reduzida das remessas familiares é canalizada para o investimento produtivo. Entretanto, a literatura mais recente é bastante mais otimista a respeito (MASSEY et al., 1998). Se as remessas são investidas na produção, elas contribuem para o crescimento; se elas são consumidas, geram efeitos multiplicadores. Em vários países, as remessas excedem, hoje, o valor dos investimentos estrangeiros e têm um efeito multiplicador sobre a economia. Em certos países da América Central, as remessas já superam o valor das exportações. No México, as remessas são quase tão valiosas no PIB (10%) quanto a importante indústria do turismo (OROZCO, 2002, p. 23). No geral, pode-se concluir que a influência das remessas na economia local dos lugares de origem tende a ser muito importante. Dados do México (INEGI, 1996) indicam que a renda dos domicílios que recebem remessas é o dobro do que seria sem as remessas. Na Nicarágua, as migrações têm sido tratadas com preocupação: o passado de guerras e convulsões políticas contribuiu para isso. Entretanto, conservadoramente, as remessas representam 15% do PIB. Somente 12% do total de domicílios tinham um membro vivendo no exterior, mas estes constituíam 60% dos 22 mil domicílios nicaragüenses que saíram da pobreza entre 1998 e 2001. No Brasil, Weber desenvolveu uma metodologia complexa para estimar o impacto das remessas numa cidade mineira pequena, mas muito afetada pela migração internacional: Governador Valadares. Ao analisar o mercado imobiliário de Governador Valadares, Soares (1995, p. 61) SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 Organização Social, Modernização e Eqüidade de Gênero A emigração promete mobilidade e diversificação de emprego. Oferece, a uma grande quantidade de jovens, uma oportunidade para alcançar um salário, bens de consumo e uma qualidade de vida que lhes seria impossível nos países de origem. É bem verdade que muitos migrantes aceitam um status ocupacional inferior àquele que tinham no país de origem, mas isso acaba sendo compensado pelo aumento da remuneração, pelas relações de trabalho mais formais, assim como pela natureza do trabalho – fatores que acabam justificando a troca de status no ideário dos migrantes (MARTES, 1999, p. 26). Ao mesmo tempo, a emigração massiva, como é o caso do México e de alguns países da América Central, serve para aliviar tensões sociais e laborais em países com grande população de jovens, nos quais a conjugação do crescimento demográfico com períodos de estagnação econômica deixa uma parcela considerável de jovens sem emprego. Em sua nova vida, os migrantes aprendem novas idéias, recebem novos tipos de capacitação, adquirem novas qualificações e assumem novos valores. Ao retornar aos seus países de origem, ou ao comunicar-se, do exterior, 13 GEORGE MARTINE mias desenvolvidas. A demanda por trabalhadores migrantes vem aumentando constantemente, não somente nas atividades altamente qualificadas, mas também para trabalhos de baixa qualificação e salários inferiores, especialmente na agricultura, limpeza e manutenção, construção civil, serviço doméstico e a indústria do sexo. São as ocupações e trabalhos que os trabalhadores nacionais já não querem.9 Os imigrantes não somente preenchem os vazios deixados pelos trabalhadores nacionais como também trazem vários outros benefícios. A migração internacional fornece, uma grande quantidade de recursos humanos qualificados cujos custos de educação e capacitação já foram internalizados por outros países.10 Além disso, a imigração gera uma série de efeitos econômicos (positivos) específicos. O mais conhecido é o de aliviar a escassez de mão-de-obra em setores essenciais, nos quais os nativos não querem trabalhar (e.g. cuidar dos velhos). A imigração também pode aumentar a produtividade e moderar a inflação, como o fez na década de 90 nos Estados Unidos, especialmente no setor tecnológico. Os migrantes respondem mais rapidamente às condições do mercado do que os trabalhadores locais e, assim, reduzem a rigidez do mercado de trabalho e aumentam a produtividade. Finalmente, os efeitos multiplicadores dos gastos feitos pelos migrantes nos países de destino não devem ser minimizados (RATHA, 2003, p. 166-169). Por outro lado, a maioria dos países desenvolvidos encontra-se, atualmente, em uma segunda transição demográfica, marcada pelo envelhecimento. Devido à redução da fecundidade a níveis muito baixos, paralelamente ao aumento significativo da esperança de vida, a pirâmide de idade dos países industrializados mostra-se mais carregada na parte superior. Com isso, o crescimento vegetativo é nulo, a entrada de jovens nativos no mercado de trabalho é mínima, a relação de dependência entre trabalhadores e não-trabalhadores piora, e os sistemas de previdência são fortemente pressionados. A entrada de jovens migrantes, com suas altas taxas de fecundidade e de participação no mercado de trabalho, é uma fórmula fácil para superar as dificuldades demográficas criadas por essa transição. A Divisão de População das Nações Unidas levantou uma grande polêmica, há alguns anos, ao sugerir a tese da substituição demográfica (UNITED NATIONS SECRETARIATE, 2000). Basicamente, o estudo da ONU sugere a previsibilidade – e mesmo a necessidade – da intensificação da migração dos países do Sul até os países com suas comunidades, eles acabam sendo agentes de transformações culturais e políticas e promovem a aceleração da modernização. Os migrantes desenvolvem redes complexas para facilitar a migração e a adaptação de seus conterrâneos, sendo que os mais experimentados constituem uma fonte de conhecimentos sobre o outro país, o mercado de trabalho, os serviços disponíveis, etc. Formamse comunidades transnacionais que administram recursos, informações e um capital cultural que contribui para a formação de novos valores comuns e para a coesão social. Além disso, a migração é, pelo menos em potência, fator de importância na promoção da eqüidade de gênero. No âmbito mundial, estima-se que a proporção de mulheres no total de migrantes internacionais permanece em torno de 49% (UNITED NATIONS SECRETARIATE, 2004a). Apesar de sua importância numérica e de sua especificidade, a migração feminina tem sido relegada a um segundo plano. O gênero aparece como algo neutro e, portanto, está ausente da medição e da análise da migração. Isso faz com que o papel das mulheres nesse processo tenha se tornado invisível, apesar de elas exercerem funções críticas, mesmo quando não migram: como mães, esposas ou filhas de homens migrantes. Sem dúvida, os processos migratórios podem ter efeitos nos papéis de gênero, contribuindo para que traços culturais que caracterizam iniqüidades de gênero sejam questionados. Em certas circunstâncias, a migração pode também promover a emancipação da mulher, expandindo a gama de seus papéis sociais e permitindo que ela escape da dominação patriarcal. Hugo (1999) identifica várias situações que, no longo prazo, podem ter um efeito positivo para maior eqüidade de gênero: - que a migração não seja indocumentada; - que a mulher trabalhe fora de casa no lugar de destino, de preferência no setor formal; - que a mulher tenha migrado por conta própria e não como dependente familiar; - que a migração seja do tipo permanente e não temporário. Além disso, um fator negativo para a eqüidade de gênero é a limitação lingüística (UNITED NATIONS SECRETARIATE, 1998). Vantagens para os Países Receptores A migração de trabalhadores oriundos de países ou regiões mais pobres sempre foi funcional para as econo- 14 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 A GLOBALIZAÇÃO INACABADA: MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E POBREZA ... do Norte, em função de suas respectivas taxas de crescimento vegetativo. Ou seja, prevê que todos os países envelhecidos terão que suprir a falta de renovação de sua população nativa por meio da migração internacional. Segundo os cenários elaborados pela Divisão de População, os países europeus precisariam de pelo menos 3,23 milhões de migrantes anuais entre 2000 e 2050 para manter o tamanho de sua população em idades de 15-64 anos nos níveis de 1995. Para o Japão, a imigração necessária seria de 647.000 pessoas ao ano; e, para os Estados Unidos, de 359.000. Esses números estão sujeitos a discussão; entretanto, o que não é passível de discussão é a necessidade de renovação – não somente da força de trabalho, mas da própria população, nos países industrializados. Nesse particular, a Rússia decidiu recentemente flexibilizar suas leis migratórias. Caracterizada já há muitos anos por uma taxa de crescimento vegetativo muito baixa, a Rússia está agora vendo sua população declinar rapidamente. Calcula-se que, se as tendências atuais forem mantidas, sua população seria reduzida, dos atuais 144 milhões para 100 milhões, em 2075; além disso, seria composta por pessoas muito mais velhas, em sua maioria. Sendo assim, o país está em processo de tornar mais fácil a entrada de migrantes internacionais.11 Em suma, a maioria dos países industrializados precisa de uma renovação significativa de sua população via o influxo de migrantes.12 É interessante constatar que, apesar da retórica e das limitações formais à migração, na hora de traçar estratégias, a importância real dos fluxos migratórios para o dinamismo do país receptor acaba sendo reconhecida. Isso fica muito evidente em três documentos oficiais do Estado norte-americano. O primeiro e mais conhecido é um documento acadêmico do National Research Council (1997) que faz uma avaliação minuciosa e positiva dos impactos econômicos da migração. Mas, os outros dois, menos conhecidos, são ainda mais reveladores. O primeiro destes, de autoria do U.S. Department of Labor afirma: É realmente notável essa admissão oficial de que a migração estaria, de fato, subsidiando a agricultura norte-americana. Talvez ainda mais surpreendente é um documento encomendado pela CIA norte-americana e liberado para publicação em 2001. De acordo com esse documento: A imigração vai permitir aos Estados Unidos manter um perfil demográfico mais equilibrado do que a União Européia ou o Japão. Apesar de alguns custos sociais mais elevados no início e uma pressão para baixar os salários, a maioria dos especialistas acreditam que a migração facilita um crescimento sustentado e não-inflacionário. Na década de 90, quase 40% dos novos empregos nos Estados Unidos, incluindo aqueles para engenheiros na área de software, foram preenchidos por migrantes. De acordo com a OECD, os diferenciais nas tendências demográficas são a principal razão para que os Estados Unidos tenham perspectivas mais otimistas que a UE ou o Japão, durante os próximos cinco anos [...] A demora mostrada pelos principais parceiros dos Estados Unidos na liberalização de suas políticas de imigração – especialmente se combinado com a continuação de sua relutância em empreender reformas maiúsculas de seus sistemas de aposentadoria e segurança social – colocarão nossos parceiros numa situação de desvantagem competitiva frente aos Estados Unidos (USA, DIRECTOR OF CENTRAL INTELLIGENCE, 2001, p. 28-32, grifo nosso). Obviamente, não se deve imaginar que tais opiniões são unânimes nem mesmo generalizadas entre os norte-americanos. Entretanto, é realmente notável encontrar em documentos oficiais dos Estados Unidos, inclusive do seu serviço de inteligência, afirmações tão contundentes a respeito da importância transcendental da migração internacional para a economia e para o desempenho internacional futuro do país. A respeito, o documento da CIA acrescenta: a migração vai oferecer uma fonte de dinamismo demográfico e econômico para países que estão envelhecendo, renovando seus coortes jovens e re-carregando seus estoques encolhidos de jovens para o serviço militar e o mercado de trabalho. Vai também expandir sua base de consumidores e contribuintes, condição essencial para manter o equilíbrio fiscal, o contrato social e o crescimento econômico (USA, DIRECTOR OF CENTRAL INTELLIGENCE, 2001, p. 24). de fato, os trabalhadores migrantes, tão necessários para o êxito da agricultura intensiva em mão-de-obra dos Estados Unidos, subsidiam este mesmo sistema com sua indigência e a de suas famílias. O sistema funciona através da transferência de custos aos trabalhadores, os quais ficam com uma renda tão marginal que só os recém-chegados e outros que não têm opção aceitam trabalhar nas nossas fazendas (apud BUSTAMANTE, 2003, p. 23). SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 Mais adiante, o texto menciona um estudo recente do Ministério da Defesa da Grã-Bretanha que projeta um déficit militar importante se as tendências demográficas atuais daquele país persistirem (USA, DIRECTOR OF CENTRAL INTELLIGENCE, 2001, p. 25). 15 GEORGE MARTINE rida na migração pode ser maior que a perda. Além disso, alguns países se beneficiam da formação de redes de contatos e da capacitação tecnológica dos seus emigrantes. Finalmente, os trabalhadores qualificados sempre podem voltar para seus países de origem se as condições locais de trabalho melhorarem. Nesse sentido, em todos os estudos que examinam esse tema, seria preferível substituir “fuga” por “circulação” e “intercâmbio” de cérebros. No que se refere a todos os problemas de adaptação, discriminação e até maltrato de migrantes, não há dúvida de que essas situações existem freqüentemente e que constituem uma das maiores dificuldades para os migrantes de todos os continentes e de todas as épocas. Os migrantes sofrem discriminação social e racial, são tratados como cidadãos de segunda classe, são perseguidos e maltratados por xenófobos. Eles geralmente têm problemas de comunicação e adaptação, sofrem perda de identidade e de referencial afetivo – o que leva freqüentemente ao estresse psicológico. Nos dias de hoje, porém, o desenvolvimento das comunicações permite maior vinculação entre os migrantes e os lugares de origem. Isso tem estimulado a formação de redes que contribuem para manter as identidades nacionais e locais, étnicas e religiosas, o que pode ajudar bastante a incrementar o sentimento de “pertencer” (PELLEGRINO, 2003, p. 9). A migração também apresenta riscos adicionais para mulheres e crianças.13 Em muitos lugares, as migrantes internacionais e as crianças são mais vulneráveis nas diferentes etapas do processo (recrutamento, mudança e chegada). Correm riscos evidentes, devido às piores condições de trabalho, ao abuso sexual e a outros fatores (HUGO, 1999). A situação torna-se ainda mais perigosa para pessoas envolvidas em migrações clandestinas e temporárias, assim como entre refugiados. Nessas circunstâncias, multiplicam-se as violações, a exposição aos riscos de infecção por ETS ou AIDS e o número de gravidez nãodesejada. Isso coloca um conjunto de desafios que precisam ser abordados explicitamente, no que se refere aos direitos da mulher e da criança migrante – e, especialmente, à necessidade de penalizar duramente o tráfego de mulheres e crianças para fins sexuais. As precárias condições de acesso a serviços de qualquer tipo são um fator agravante e também requerem ações específicas. Todos esses problemas vão sempre existir em todo tipo de migração, inclusive nas migrações internas. Entretanto, são inevitavelmente maiores quando a migração é clandestina, quando os migrantes não recebem orientação antes da partida ou apoio na chegada, e quando ficam Desvantagens da Migração Internacional Para os Migrantes e os seus Países Emissores – É bem sabido que a migração é intrinsecamente seletiva. Na realidade, a literatura tem enfatizado que os migrantes são selecionados a partir dos dois extremos da hierarquia ocupacional. Em ambos casos, tanto os migrantes internos como internacionais tendem a diferenciar-se de suas comunidades de origem em termos de seu nível educacional, assim como na sua disposição para assumir riscos ou de enfrentar situações novas (CASTILLO, 2003, p. 15). Ou seja, os países de origem freqüentemente perdem parte de seu estoque de pessoas mais criativas, trabalhadoras, empreendedoras e ambiciosas. Tanto a seletividade de migração como a “fuga de cérebros” levam a déficits de recursos humanos qualificados nos países mais pobres. Essa fuga tem até sido caracterizada como a “última forma de pilhagem pelo Norte dos recursos do Sul” (LORIAUX apud PELLEGRINO, 2003, p. 26). A parte do fluxo emigratório composto de trabalhadores altamente qualificados deixa um vazio nos níveis mais altos da estrutura ocupacional, uma vez que reduz a base de contribuintes em muitos países pobres. Isso é mais grave quando os trabalhadores de nível educacional mais alto receberam, de seus países, uma educação subsidiada. Nesse particular, Carrington e Detragiache (1998 apud RATHA, 2003) estimam que um terço dos indivíduos com educação superior na África, no Caribe e na América Central emigraram para os Estados Unidos e outros países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OECD. Essa desvantagem da emigração é inegável, mas também deve ser qualificada. Primeiro, vale mencionar que um estudo realizado em 24 países sugere que, embora muitos dos migrantes venham dos setores de maior educação formal, a perda não é significativa em relação ao estoque de pessoas educadas, a não ser em certos países como os da América Central (ADAMS, 2003). Segundo, a perda do output potencial dos emigrantes pode ser mais do que neutralizada pelas remessas e pelos efeitos positivos dessas nas redes de comércio e investimento do país de origem. Isso é mais notório ainda quando esses recursos humanos estão sendo subutilizados em seu próprio país, ou seja, se as estruturas ocupacionais dos países de origem não conseguem absorver sua mão-de-obra qualificada, as remessas enviadas do exterior podem ser mais importantes que a permanência no país de origem. Terceiro, se a saída não for permanente, a bagagem cultural adqui- 16 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 A GLOBALIZAÇÃO INACABADA: MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E POBREZA ... impedidos – seja por motivos econômicos ou de segurança – de se comunicar com seus familiares e amigos. Nesse sentido, não há e nem haverá uma solução definitiva ou fácil para todas essas dificuldades. Porém, é óbvio que a redução do impacto desses problemas depende, em primeiro lugar, de uma atitude positiva frente à migração, tanto dos países emissores quanto dos receptores. A partir do reconhecimento da inevitabilidade e das vantagens importantes da migração é que os governos e a sociedade civil dos países de origem e destino deverão formular políticas, ações e programas mais efetivos em prol do migrante. Várias entidades e organismos nacionais e internacionais já praticam uma série de ações altamente benéficas na redução da migração. Não cabe discutir esse nível de política aqui. Entretanto, o que é preciso enfatizar é que, para serem eficazes, todas essas ações precisam de um embasamento que não pode ser reduzido simplesmente a uma iniciativa benéfica isolada. Elas têm que ser baseadas na convicção de que, pesadas as vantagens e desvantagens, a migração internacional, potencialmente, traz muito mais benefícios do que problemas. No que se refere à alegação de que os migrantes competem no mercado de trabalho com a população natural, deprimindo assim os salários, é preciso qualificá-la. Na realidade, grande parte dos migrantes não-qualificados ocupa os espaços que a população natural já não quer ocupar, seja por tratar-se de trabalhos duros ou pesados, mal remunerados ou de prestígio social reduzido. Muitos dos migrantes são, na realidade, sobre-qualificados para os empregos que ocupam e terminam freqüentemente fazendo uma contribuição à produção econômica mais elevada que a população não-migrante. Por essa via, contribuem para a reativação da economia – e, portanto, para a própria geração de emprego. Entretanto, mesmo quando a presença dos migrantes pode ser benéfica a partir do ponto de vista do desempenho da economia, pode gerar conflitos com aqueles segmentos específicos da população com os quais competem por postos de trabalho, como os trabalhadores blue collar tradicionais. Entretanto, a competição enfrentada por trabalhadores não-qualificados locais nos lugares de destino não é maior nem menor que os desafios que esses trabalhadores sofrem com a importação de bens intensivos em mão-de-obra que são importados dos países em desenvolvimento (WINTERS apud RATHA, 2003). Para os Países Receptores 14 – Apesar de necessários, os migrantes são freqüentemente vistos como “os indesejados”. A rejeição dos migrantes é uma constante em quase todos os processos migratórios, mas é particularmente exacerbada nos movimentos envolvendo pessoas de etnia, idioma, religião e/ou aparência marcadamente diferente dos habitantes do lugar de destino. Na Europa, e em partes dos Estados Unidos, por exemplo, observa-se atualmente uma forte onda de sentimento antimigrante. Segundo relatório recente apresentado na Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU pelo relator especial sobre direitos humanos, No que se refere ao peso que representam os migrantes para os serviços fornecidos pelo país receptor, os estudos não são conclusivos. É verdade que a utilização de serviços sociais nas áreas de destino por parte dos migrantes constitui, ao mesmo tempo, motivo de migração (ou seja, as pessoas migram porque sabem que, nos lugares urbanos, ou em outros países, elas e seus filhos terão mais acesso a serviços de saúde e educação, assim como a outros benefícios sociais), como também uma carga para o lugar de destino (ou seja, aumentam seus custos globais de infraestrutura e serviço). Porém, esses custos também são relativos, porque, na medida em que os migrantes são mais produtivos que a média da população, acabam aumentando a produtividade e, assim, melhorando a capacidade da localidade de custear os gastos de infra-estrutura e serviços. Smith e Edmonston (1997 apud RATHA, 2003) concluíram que os imigrantes com educação inferior ao segundo grau constituem um peso fiscal até a segunda geração; mas que os migrantes qualificados pagam mais em impostos do que recebem de seguridade social. Outros estudos argumentam que, mesmo entre migrantes nãoqualificados, o peso fiscal, se houver, limita-se à primeira geração (BORJAS, 1994 apud RATHA, 2003). Eviden- a xenofobia, o racismo, o anti-semitismo e a islamafobia estão aumentando na Europa Ocidental [...] O racismo se agravou em todo o mundo depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. O renascimento dos movimentos racistas e xenófobos na Europa Ocidental deve ser analisado no marco das atuais mudanças socioeconômicas, incluindo a politização da imigração.15 Os recém-chegados são vistos pela população natural como competidores de empregos, como inflacionadores dos custos dos serviços sociais e da infra-estrutura nos lugares de destino, e como uma ameaça permanente à estabilidade social e política da região de destino. Entretanto, essas acusações precisam ser examinadas com mais cuidado. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 17 GEORGE MARTINE da legislação (MARTIN, 1998). Mesmo quando aceitam migrantes para preencher alguma necessidade do país de destino, as portas estão abertas oficialmente apenas para os migrantes qualificados e os refugiados políticos. temente, os migrantes temporários não recebem o social security, ou porque são indocumentados ou porque têm tempo insuficiente de residência – por esse motivo, não apresentam custos fiscais. Isso tem gerado até sugestões de utilizar mais mão-de-obra temporária para evitar custos sociais nos países de destino. Tal política, porém, poderia ser difícil de implementar. No que se refere à questão de segurança, nos países e localidades caracterizados pela entrada significativa de migrantes é comum identificar-se o migrante como “delinqüente” e, ultimamente, como “terrorista”. Os estudos objetivos sobre o comportamento delituoso dos migrantes, porém, têm mostrado que a participação dessa categoria na criminalidade comprovada é a mesma, em termos proporcionais, que a da população nativa (MÁRMORA, 2000, p. 19). A relação entre migração e terrorismo é, obviamente, muito mais complexa. No contexto da globalização, a migração pode claramente ser usada para disfarçar o deslocamento de intenções terroristas, justificando medidas de precaução nos países receptores. Entretanto, a massa de fermentação do terrorismo não reside na imigração: a maior abertura à migração de trabalho poderia até ser um motivo de sua redução, na medida em que permite aliviar a desinformação e a desconfiança. O terrorismo internacional é fomentado por motivos muito mais complexos do que a migração. Entre os fatores certamente encontra-se a crescente desigualdade e sua maior visibilidade, assim como as várias incoerências e inconsistências praticadas pelos países de maior poder – algumas das quais foram citadas na primeira parte deste trabalho – em defesa dos seus interesses e de sua hegemonia. Finalmente, aqueles que alegam ser contrários à migração por causa dos riscos de erosão cultural fariam bem em analisar algo da história dos países que mais receberam migrantes e souberam aproveitar o que cada cultura trazia para o enriquecimento geral da nação. Bem aproveitadas, dentro de uma política explícita de receptividade e de acomodação, as levas de migrantes enriquecem, inevitavelmente, a cultura das regiões de destino. Independentemente da sua veracidade objetiva, os sentimentos antimigratórios freqüentemente estimulam reações populares xenófobas e políticas nacionalistas, até contrárias aos interesses do país receptor. A Alemanha, por exemplo, recebe de 350 a 400 mil imigrantes por ano. O país precisa deles para dar continuidade a suas atividades em diferentes setores; entretanto, o país mantém uma atitude negativa, tanto por parte da opinião pública como IMPLICAÇÕES PARA A AGENDA POLÍTICA SOBRE MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS Tomada em conjunto, a avaliação das vantagens e desvantagens da migração internacional sugere, claramente, que os aspectos positivos são bastante mais conspícuos do que os negativos e que estes últimos são passíveis de redução. Essa conclusão coincide com a de outra pesquisa abrangente, realizada por Skeldon, que concluía que a migração pode ser um fator significante para aliviar a pobreza. Segundo aquele autor, a evidência empírica sugere que a mobilidade promove o crescimento econômico e melhora as condições de vida da maioria da população, embora não de todos (SKELDON, 2002, p. 7579). Também coincide com a opinião de Mármora (2000, p. 17) de que “os dados e as pesquisas existentes apresentam um quadro que tem pouco a ver com esse alarme.” Mais contundente ainda é a opinião da Cepal (2002, p. 244) [...] É verdade que precisamos de evidências mais sólidas e passíveis de generalização, mas as que existem se distanciam das opiniões simples que enfatizam as repercussões negativas da migração, exacerbando os prejuízos e a rejeição a alguns imigrantes. Sendo assim, a maneira com que a comunidade dos países desenvolvidos e não desenvolvidos lida, atualmente, com os movimentos migratórios internacionais pode ser considerada inadequada. A atitude concreta dos países desenvolvidos constitui uma manifestação importante das inconsistências entre o discurso e a prática liberal na atual fase de globalização. Essa e as outras incongruências mencionadas aqui devem fazer parte da agenda de trabalho dos movimentos sociais progressistas e tornarem-se objetos de advocacy, de conscientização, de mobilização social e de reivindicação política. A eliminação dessas inconsistências certamente ajudaria na redução das brechas entre países e promoveria a convergência econômica. Por outro lado, a atitude dos países em desenvolvimento pode também ser inadequada – na medida em que ela é hesitante, ambígua e reativa. Para tirar partido das potencialidades da migração, seria necessário uma gama de atitudes proativas, baseadas na convicção de que a emigração é 18 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 A GLOBALIZAÇÃO INACABADA: MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E POBREZA ... A literatura especializada já identificou um grande número de medidas que podem ser aplicadas – seja na origem, no trajeto e na chegada, ou na integração entre comunidades transnacionais – para reduzir significativamente as dificuldades reais que a migração ocasiona para os migrantes e suas comunidades. Várias destas providências foram reiteradas no decorrer deste trabalho. Da mesma forma, à medida que as sociedades receptoras em que se reconheça tanto a inevitabilidade como os benefícios da migração. A literatura especializada já identificou um grande número de medidas que podem ser aplicadas – seja na origem, no trajeto e na chegada, ou na integração entre comunidades transnacionais – para reduzir significativamente as dificuldades reais que a migração ocasiona para os migrantes e suas comunidades. Várias destas providências foram reiteradas no decorrer deste trabalho. Da mesma forma, à medida que as sociedades receptoras forem se despindo de seu etnocentrismo e xenofobia, poderão também adotar medidas mais eficazes e começar a apreciar as enormes vantagens que a migração lhes traz. Para que isso aconteça, entretanto, é preciso livrar-se das atitudes ambivalentes que prevalecem, tanto na origem como no destino, a respeito da migração. Concluímos com uma recomendação da Cepal que nos parece muito sensata: tanto inevitável como potencialmente benéfica para o desenvolvimento e a redução da pobreza. A redução das barreiras migratórias nos países desenvolvidos estimularia uma maior intensidade e heterogeneidade de rotas migratórias, à medida que os deslocamentos internacionais se tornassem cada vez mais parte da rotina, dentro de um mercado global de trabalho. Sem embargo, a mobilização de movimentos sociais e de organizações políticas em favor da liberalização da migração internacional tem sido relativamente morosa – em parte pela falta de consenso a respeito do significado social, econômico e político dos movimentos migratórios alémfronteira. Isso ocorre, em parte, porque a opinião pública e os meios políticos destacam as características negativas da imigração – sejam elas reais ou fictícias. De certa maneira, essa situação lembra a história das migrações ruralurbanas. Durante quase cinqüenta anos, a literatura nacional e internacional tem lamentado o “inchamento urbano” e o “crescimento desordenado” das cidades latino-americanas, particularmente daquelas maiores e de maior crescimento absoluto. Essa metamorfose de sociedades rurais e primárias para outras urbanas e dependentes dos setores secundário e terciário tem sido, sem dúvida, rapidíssima. Também tem sido realizada a um custo social enorme. Como sempre, os setores mais pobres da sociedade foram os que pagaram esse custo. Apesar disso, não há nenhuma razão para acreditar que a situação estaria melhor se a urbanização rápida não tivesse ocorrido: muito pelo contrário. Nesse sentido, é preciso sensibilizar aqueles que poderiam e deveriam tomar decisões tendentes a permitir que a migração internacional jogasse um papel mais eficaz no processo de desenvolvimento. Talvez seja esse o maior desafio para os estudiosos e ativistas da área de migração, hoje – não tanto no detalhamento adicional das tendências e padrões já bastante conhecidos e analisados, senão no desenvolvimento de argumentos que sejam capazes de conscientizar a sociedade civil e, por essa via, mobilizar os tomadores de decisão a empreender ações mais eficazes nessa área. O argumento desenvolvido neste ensaio é o de que, apesar de ser possível reconhecer negatividades reais e significativas da migração internacional, estas são, no cômputo geral, muito inferiores às vantagens e aos benefícios que aportam. Além disso, os aspectos negativos são todos passíveis de serem minimizados, a partir do momentoem que se reconheça tanto a inevitabilidade como os benefícios da migração. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 Em matéria de políticas de migração, a globalização fará cada vez mais necessária a transição do “controle migratório” para a “gestão migratória” em um sentido amplo. Isto não significa que os Estados abandonem sua atribuição de regular a entrada de estrangeiros e supervisionar suas condições de assentamento, senão aceitar formular políticas razoáveis de admissão que contemplem a permanência, o retorno, a reunificação, a re-vinculação, o trânsito nas fronteiras e a mudança de pessoas a outros países (CEPAL, 2002, p. 267-8). A implementação desta sugestão apressaria a formação de um “mercado global de trabalho” condizente com o atual processo de globalização. NOTAS Uma versão anterior deste trabalho foi apresentada no Fórum Social das Migrações – Porto Alegre, 23 a 25 janeiro 2005. Agradecemos os comentários de Mary Garcia Castro e Rosana Baeninger. 19 GEORGE MARTINE 12. A dinâmica demográfica diferenciada na região latino-americana permite prever algo similar no nível intra-regional. Ou seja, poderá haver uma aceleração desse movimento nas próximas décadas, devido às diferenças entre os ritmos de crescimento demográfico e suas implicações para o crescimento da força de trabalho. Ademais, uma das características da transição demográfica na região é seu ritmo diferenciado segundo os países. Em Cuba, o dividendo demográfico vai alcançar seu nível máximo entre 2005 e 2010. Em comparação, Bolívia, Guatemala e Nicarágua só vão chegar a isso depois de 2040. Como, ao mesmo tempo, o ritmo global de crescimento da região está diminuindo, é previsível que haja maior diferenciação entre os ritmos de crescimento das respectivas forças de trabalho. Na verdade, a diferença relativa entre essas taxas está crescendo. As implicações dessas diferenças podem ser particularmente importantes no caso de países de alto crescimento que fazem fronteira com países de crescimento baixo ou negativo, por exemplo: Bolívia com Argentina e Brasil, ou Guatemala com México. Dependendo da forma concreta como segue o processo de integração econômica na região, as forças de atração e expulsão poderão ser mais ou menos fortes e estas fronteiras poderão ser mais ou menos permeáveis à migração. Ver Martine, Hakkert e Guzmán (2001). 1. Certos autores, como Milanovic (1999), até consideram que o atual momento representaria, na realidade, o terceiro grande momento de globalização na história mundial. Na perspectiva de Milanovic, a primeira era da globalização foi promovida pelo Império Romano; a segunda pelo Império Britânico, entre 1870 e 1914; e a atual, sob a hegemonia dos EUA. 2. “‘O problema com a divisão especializada de trabalho entre nações’, escrevia o historiador uruguaio Eduardo Galeano, ‘é que algumas nações se especializam em ganhar e outros em perder.’ Ele poderia ter acrescentado que os ganhadores especializam-se em estabelecer regras que asseguram que os perdedores vão ficar onde estão […] Enquanto os países ricos pregam o evangelho do comércio livre, continuam sendo protecionistas inveterados [...] As tarifas enfrentadas pelos países em desenvolvimento são cerca de um terço mais altas que aquelas enfrentadas pelos países industrializados. Mecanismos cada vez mais elaborados excluem importações do terceiro mundo... As medidas protecionistas mordem mais, justamente nas áreas onde os países em desenvolvimento são mais competitivos, como têxteis, calçados e agricultura [...] A hipocrisia na área de agricultura é a mais óbvia. Os países industrializados subsidiam seus produtores agrícolas em $ 251bilhões anualmente, o que equivale a cerca da metade do valor da sua produção agrícola. A União Européia e os Estados Unidos, que são as superpotências agrícolas, restringem importações – estritamente. Enquanto isso, fazem “dumping” da sua sobre-produção agrícola, privando os países em desenvolvimento de seu quinhão do mercado... Isso ameaça a sobrevivência de milhares de produtores de alimentos, que não podem competir com as importações subsidiadas.”(WATKINS, 1999). 13. Cf. Chiarotti (2003), Petit (2003) e Mora (2002). 14. Esse segmento é baseado em Martine, Hakkert e Guzman (2001). 15. Doudou Diene, relator especial da ONU sobre direitos humanos, segundo IPS Noticias, 12/11/04. 3. A estes sintomas deve ser acrescentado a recente nomeação de Paul Wolfowitz, arquiteto americano do débâcle iraquiano, como Presidente do Banco Mundial, numa tentativa óbvia de impor o modelo “economia de livre mercado radical”. Ver Paul Krugman, no artigo do New York Times, reproduzido na Folha de S.Paulo, 19/03/05. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 4. Ver, a este respeito, Rodman (2001); Sampson (1982); George (1988). ADAMS, R.H. Jr.; PAGE, J. International migration, remittances and poverty in developing countries. Washington, DC: The World Bank, 2003. (Policy Research Working Paper Series, 3179). Disponível em: <http://ideas.repec.org/p/wbk/wbrwps/3179.html>. 5. Recorda-se que em 1980 e 1981, o Presidente da Reserva Federal dos EUA, Paul Vocker, aumentou os juros de curto prazo em 20% para combater a inflação americana; dessa forma, elevou drasticamente os juros sobre muitos empréstimos internacionais, desacelerando a economia global. ADAMS, R.H. Jr. International migration, remittances and the brain drain; a study of 24 labor exporting countries. Washington, DC: The World Bank, 2003. (Policy Research Working Paper Series, 3069. Disponível em: <http://ideas.repec.org/p/wbk/wbrwps/ 3069.html>. 6. “As principais formas de migração internacional estão aumentando, mas a migração ilegal cresce mais rapidamente […] Os indicadores sugerem que os migrantes ilegais compõem agora um terço de todas as novas entradas aos países desenvolvidos, incluindo os Estados Unidos – comparado com 20% há uma década” (USA/NATIONAL INTELLIGENCE COUNCIL, 2001, p. 15). ANDERSON, K. Subsidies and trade barriers. In: LOMBORG, B. (Ed.). Global Crises, Global Solutions. Cambridge, United Kingdom: Cambridge University Press, 2004. p. 541-577. BATE, P. Um rio de dinheiro. BID América, Washington, Banco Interamericano de Desenvolvimento, 20 jan. 2005. Disponível em: <http://www.iadb.org/idbamerica/index.cfm?thisid=735>. 7. Informações apresentadas em La Nación, 06/11/04. 8. Nesse mesmo sentido, um trabalho apresentado pela OECD ao Earth Summit 2002 argumentava que, se os EUA, a UE, o Canadá e o Japão permitissem que os migrantes alcançassem 4% da sua força de trabalho, os retornos para as regiões de origem seriam de aproximadamente 160 a 200 bilhões por ano (THE GUARDIAN apud SKELDON, 2002, p. 79). BORJAS, G.J. The New Economics of Immigration. The Atlantic Monthly, Nov. 1996. BUSTAMANTE, J.A. A virtual contradiction between international migration and human rights. Santiago de Chile: Cepal, Naciones Unidas, April 2003. (Serie Población y Desarrollo, 36). Disponível em: <http://www.eclac.cl/>. 9. Em inglês, costuma-se dizer que os migrantes são relegados aos “three Ds – dirty, dangerous and degrading” (i.e. - atividades sujas, perigosas e degradantes). CASTILLO, M.A. Migraciones en el hemisferio. Consecuencias y relación con las políticas sociales. Santiago de Chile: Cepal, Naciones Unidas, Mayo 2003. (Serie Población y Desarrollo, 37). Disponível em: <http://www.eclac.cl/>. 10. A este respeito, um relatório recente preparado para o legislativo britânico rezava: “É injusto, ineficiente e incoerente que os países desenvolvidos dêem ajuda para que os não desenvolvidos alcancem as Metas do Milênio nas áreas de saúde e educação e, ao mesmo tempo, se servem das enfermeiras, médicos e professores que foram capacitadas nos países em desenvolvimento, às custas desses países” (U.K. 2004, p. 3). CENTER FOR IMMIGRATION STUDIES. Immigrant Population at Record High in 2004. Bulletin of the Center for Immigration Studies, 23 Nov. 2004. CEPAL. Globalización y Desarrollo. Santiago de Chile: Cepal, Naciones Unidas, 2002. 396p. 11. Essas informações foram publicadas em Le Nouvel Observateur, 5/11/04. 20 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 A GLOBALIZAÇÃO INACABADA: MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS E POBREZA ... MILANOVIC, B. On the threshold of the Third Globalization: Why Liberal Capitalism Might Fail? Washington, DC: World Bank – Development Economics Research Group (DECRG), December 1999. Preliminary Draft. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=262176>. CEPAL/BID/OIM/FNUAP. In: SIMPOSIO SOBRE MIGRACIÓN INTERNACIONAL EM LAS AMÉRICAS, San José, Costa Rica, 2001. 540 p. CHIAROTTI, S. La trata de mujeres: sus conexiones y desconexiones con la migración y los derechos humanos. Santiago de Chile: Cepal, Naciones Unidas, Mayo 2003. (Serie Población y Desarrollo, 39). Disponível em: <http://www.eclac.cl/>. MORA, L. Las fronteras de la vulnerabilidad: género, migración y derechos sexuales y reproductivos. Cidade do México: UNFPA, Equipe de Apoyo Técnico para América Latina e Caribe. 2002. 46p. CONAPO. Las remesas enviadas a México por los trabajadores migrantes en Estados Unidos. Situación demográfica de México 1999. México, 1999. p. 161-189. Disponível em: <http:// www.conapo.gob.mx/publicaciones/1999.htm>. NATIONAL RESEARCH COUNCIL. The New Americans: Economic, Demographic, and Fiscal Effects of Immigration. Washington, DC: National Academy Press, 1997. OECD. Trends in International Migration. Paris: Organization for Economic Cooperation and Development, 2001. FOLHA DE S.PAULO, São Paulo, 19 mar. 2005. FRENCH, H. Challenging the WTO. Reprinted from World Watch, Washington, DC: November/December 1999. GEORGE, S. A Fate Worse Than Debt: The World Financial Crisis and the Poor. New York: Grove Press, 1988. OROZCO, M. Worker Remittances: An International Comparison. Washington, DC: Inter-American Dialogue Working Paper, February, 2003. Disponível em: <http://www.chicagofed.org/ cedric%5Ccedric_files/confinbv/remittancesinternational.pdf>. HUGO, G. Gender and Migrations in Asian Countries. Gender and Population Studies. Series Edited by Antonella Pinnelli. IUSSP, Liège, Bélgica, 1999. ___________. Migration and migration: the impact of family remittances in Latin America. Latin American Politics and Society, v. 44, n. 2, p. 41-66, 2002. ILO. ILO Facts on Migrant Labour. International Labour Organisation. 2004. Disponível em: <http://www.ilo.org/migrant>. ___________. Globalization and migration: integrating in the global economy. Inter-American Dialogue, Washington, DC, 2000. Disponível em: <http://www.yorku.ca/cerlac/migration/ globalization_migration(Orozco).pdf>. INEGI. Encuesta Nacional de Ingresos y Gastos de los Hogares de México. Aguascalientes, 1996. OXFAM INTERNATIONAL. Europe’s Double Standards: How the EU should reform its trade policies with the developing world. Oxfam Briefing Paper, 22. 2002a. LA NACIÓN, Buenos Aires, 6 nov. 2004. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/exterior/nota.asp?nota_id=647708>. LE NOUVEL OBSERVATEUR, Paris, 5 nov. 2004. ___________. Rigged Rules and Double Standards, Oxfam International, Oxford, 2002b. Disponível em: <http://www.maketradefair.com>. MÁRMORA, L. Perspectivas migratorias em el proceso de globalización. In: Migrações Contemporâneas: Desafios à vida, à cultura e à fé. Brasília: Centro Scalabriano de Estudos Migratórios, 2000. PAPADEMETRIOU, D.G.; MARTIN, P.L. Migration and development: the unsettled relationship. In: ________. (Ed.). The Unsettled Relationship: Labor Migration and Economic Development. New York: Greenwood Press, 1991. p. 213-220. MARTES, A.C.B. O compromisso do retorno – Remessas de emigrantes brasileiros. São Paulo: Departamento FSJ/EAESP/FGV, 2004. 41p. (Relatório final). PATARRA, N.; BAENINGER, R. Migrações internacionais recentes: o caso do Brasil. In: PATARRA, N. Emigração e imigração internacionais no Brasil contemporâneo. Campinas: Programa Interinstitucional de Avaliação e Acompanhamento das Migrações Internacionais no Brasil, 1995. p. 79-88. ___________. Brasileiros nos Estados Unidos: um estudo sobre imigrantes em Massachussetts. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 204p. MARTIN, P.L. Migration. In: LOMBORG, B. (Ed.). Global Crises, Global Solutions. Cambridge, United Kingdom: Cambridge University Press, 2004. p. 443-477. PELLEGRINO, A. La migración internacional en América Latina y el Caribe: tendencias y perfiles de los migrantes. Santiago de Chile: Cepal, Naciones Unidas, Marzo 2003. (Serie Población y Desarrollo, 35). Disponível em: <http://www.eclac.cl/>. ___________. Germany: reluctant land of immigration. Washington, DC: American Institute for Contemporary German Studies, 1998. ___________. La movilidad internacional de fuerza de trabajo calificada entre países de América Latina y hacia los Estados Unidos. Notas de Población, XXI, v. 57, p. 161-216, 1993. MARTINE, G.; HAKKERT, R.; GUZMAN, J.M. Aspectos sociales de la migración internacional: consideraciones preliminares. In: SIMPOSIO SOBRE MIGRACIÓN INTERNACIONAL EM LAS AMÉRICAS, San José, Costa Rica, CEPAL/BID/OIM/FNUAP, 2001. p. 278-296. PETIT, J.M. Migraciones, vulnerabilidad y políticas públicas. Impacto sobre los niños, sus familias y sus derechos. Santiago de Chile: Cepal, Naciones Unidas, Mayo 2003. (Serie Población y Desarrollo, 38). Disponível em: <http://www.eclac.cl/>. MASSEY, D.S. et al. Worlds in Motion: Understanding International Migration at the end of the Millennium. Oxford: Clarendon Press, 1998. PORTES, A. Globalization from Below: The Rise of Transnational Communities. Princeton University, 1997. 27 p. MASSEY, D.S. Social structure, household strategies, and the cumulative causation of migration. Population Index, v. 56, p. 3-26, 1990. QUESADA, C. Revista BID América, 4 jan. 2005. RATHA, D. Workers’ Remittances: An Important and Stable Source of External Development Finance. Global Development Finance, Washington, DC, 2003. p. 157-175. MEYERS, W.D. Migrant remittances to Latin America: reviewing the literature. Inter-American Dialogue, The Tomas Rivera Policy Institute, 1998. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 21 GEORGE MARTINE RODMAN, D.M. Still Waiting for the Jubilee: Pragmatic Solutions for the Third World Debt Crisis. Washington, DC: 2001. 44p. (Worldwatch Paper, 155). for poverty reduction: Government Response to the Committee’s Sixth Report of Session 2003-04. First Special Report of Session 2004-05. RODRIK, D. Comments at the Conference on Immigration Policy and the Welfare State. Unpublished paper delivered at the Third European Conference on Immigration Policy and the Welfare State, Trieste, June 23, 2001. UNITED NATIONS SECRETARIATE. Trends in Total Migrant Stock: the 2003 Revision. New York: Department of Economic and Social Affairs, Population Division, 2004a. _________. International migration and development. Report of the Secretary-General. New York: 2004b. 19 p. ___________. Social Implications of a Global Economy. In: COLORADO COLLEGE’S 125TH ANNIVERSARY SYMPOSIUM CULTURES IN THE 21ST CENTURY: Conflicts and Convergences, Delivered at Colorado College on February 6, 1999. Disponível em: <http://www.coloradocollege.edu/academics/anniversary/Transcripts/RodrikTXT.htm>. _________. Replacement Migration: Is it a Solution to Declining and Ageing Populations? New York: Department of Economic and Social Affairs, Population Division, 2000. ________. World Population Monitoring, 1997. New York: Department of Economic and Social Affairs, Population Division, 1998. ___________. Has Globalization Gone too Far? Washington, DC: Institute for International Economics, 1997. UNSRID. Migration, Displacement and Social Integration. Geneva: 2000. Disponível em: <http://www.unrisd.org/engindex/ publ/list/op/op9/op09-04.htm>. ROSALES, J. Nicaragüenses en el exterior. In: CONFERENCIA SOBRE POBLACIÓN DEL ISTMO A FIN DEL MILENIO, Costa Rica, 1999. USA, DIRECTOR OF CENTRAL INTELLIGENCE. Growing global migration and its implications for the United States. NIE 2001-02D 2001. National Foreign Intelligence Board, under the authority of the Director of Central Intelligence. March 2001. 45p. ROSSI, P.L. Remessas de imigrantes brasileiros em Portugal: Inquérito por amostragem a imigrantes brasileiros em Lisboa, Porto e Setúbal. Lisboa, Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações Instituto Superior de Economia e Gestão Universidade Técnica de Lisboa, 2004. (SOCIUS Working Papers, 10). VASCONCELLOS, P. de. Remittances 2005: transforming labor markets and promoting financial democracy. Statistical comparisons. Inter-american Development Bank, Multilateral Investment Fund, 2005. Disponível em: <http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/ getdocument.aspx?docnum=639199>. RUSSELL, S.S. Migrant remittances and development. International Migration. Quarterly Review, v. 30, n. 3-4, p. 267-287, 1992. SAMPSON, A. The Money Lenders: Bankers in a World of Turmoil. New York: Viking Press, 1982. VILLA, M.; MARTÍNEZ PIZARRO, J. Tendencias y patrones de la migración internacional en América Latina y el Caribe. In: SIMPOSIO SOBRE MIGRACIÓN INTERNACIONAL EM LAS AMÉRICAS, San José, Costa Rica, CEPAL/BID/OIM/FNUAP, 2001. p. 21-41. SKELDON, R. Migration and poverty: ambivalent relationships. Asia-Pacific Population Journal, Bangkok, v. 17, n. 3, p. 67-82, 2002. WATKINS, K. The Guardian, London, Monday Nov. 8, 1999. SMART, J. Borrowed Men on Borrowed Time: Globalization, Labour Migration and Local Economies. Canadian Journal of Regional Science/ Revue Canadienne des Sciences Régionales, XX, 1, 2, Spring-Summer/Printemps-Été, 1997. WINTERS, A. The Economic Implications of Liberalising Mode 4 Trade. In: MATTOO, A.; CARZANIGA, A. (Ed.). Moving People to Delivery Services. Co-publication of the World Bank and Oxford University Press, 2003. SOARES, W. Imigrantes e investidores: redefinindo a dinâmica imobiliária na economia Valderense. Dissertação (Mestrado) – IPPUR da UFRJ, Rio de Janeiro, 1995. THE ECONOMIST. Europe’s immigrants. A continent on the move. London, May 6 2000. p. 25-27. ___________. The United States Survey. London, Mar. 11 2000b. GEORGE MARTINE: Sociólogo e Demógrafo. Consultor. U.K. House of Commons, International Development Committee. 2004. Migration and Development: How to make migration work Artigo recebido em 21 de março de 2005. Aprovado em 6 de abril de 2005. 22 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 3-22, jul./set. 2005 MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS DE E PARA O BRASIL CONTEMPORÂNEO: ... MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS DE E PARA O BRASIL CONTEMPORÂNEO volumes, fluxos, significados e políticas NEIDE LOPES PATARRA Resumo: Os movimentos migratórios internacionais a partir de e para o Brasil constituem, hoje, uma importante questão social, que envolve grupos sociais específicos, majoritariamente não documentados, sujeitos à ação de aproveitadores. A questão das remessas também tem sido alvo de especulação e iniciativas governamentais. Essa situação demanda – urgentemente – reformulação e implementação de políticas de imigração e de emigração, bem como ações voltadas à implementação dos direitos humanos dos migrantes. Palavras-chave: Migrações internacionais. Remessas. Políticas sociais. Abstract: International migratory movements from and to Brasil nowadays constitutes an increasingly important social question. It involves specific social groups, mainly non documented persons; submitted to the action of speculators; remittances is also gaining space. It requires an urgent reformulation as well as an implementation of public in-migration and out-migration policies as well as policies related to migrants human rights and access to social services. Key words: International migration. Remittances. Public Policies. D A crescente importância das migrações internacionais no contexto da globalização tem sido, na verdade, objeto de um número expressivo de contribuições importantes, de caráter teórico e empírico, que atestam sua diversidade, significados e implicações. Parte significativa desse arsenal de contribuições importantes volta-se à reflexão sobre as enormes transformações econômicas, sociais, políticas, demográficas e culturais que se processam em âmbito internacional, principalmente a partir dos anos 80. Como eixo de reflexão, situam-se as mudanças advindas do processo de reestruturação produtiva1 – o que implica novas modalidades de mobilidade do capital e da população em diferentes partes do mundo.2 No cenário da globalização, as recentes tendências de movimentos migratórios internacionais também vêm esde quando se tornou manifesto, há mais de três décadas, o fenômeno da migração de brasileiros para países desenvolvidos vem-se constituindo, de maneira crescente, em tema relevante na produção científica, nas discussões políticas, na mídia falada e escrita, no cancioneiro popular e, mais recentemente, em novela de âmbito nacional. Por outro lado, a publicação dos resultados amostrais do Censo Demográfico de 2000, as séries de informações levantadas pelo Ministério de Relações Exteriores e, principalmente, a turbulência dos primeiros anos do novo milênio passaram a reforçar a necessidade de reflexão, de realização de um balanço do conhecimento e de incorporação de novas evidências empíricas sobre a inserção do Brasil nos movimentos internacionais de população. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005 23 NEIDE LOPES PATARRA comércio internacional e a Alca recrudescem ainda mais os conflitos internos específicos da região. Como estratégia de enfrentamento da situação adversa, a conjuntura política aponta para a emergência de lideranças mais voltadas ao reforço regional conjunto do continente sul-americano. Por essa razão, no âmbito do Mercosul, a política externa do atual governo parece estar dirigida ao fortalecimento do bloco de integração ampliado. Também o presidente Kirschner, na Argentina – país rival, mas também aliado – parece favorecer maior dinamismo e um avanço relativo nas políticas sociais que envolvem diretamente aqueles que se movimentam internamente nos países do bloco. Esses deslocamentos se dão tanto por mudança de residência; como por retorno a situações precárias anteriores; circularidade; dupla residência ou permanências temporárias. Isso ocorre com famílias ou individualmente – com aumento da participação de mulheres – e muitas vezes envolvem ações ilegais ou clandestinas. demandando a reavaliação de paradigmas para serem melhor conhecidas e entendidas. Para tanto, tornam-se imprescindíveis a incorporação de novas dimensões explicativas e uma revisão da própria definição do fenômeno migratório.3 Hoje, é extremamente importante considerar o contexto de luta e compromissos internacionais assumidos em prol da ampliação e efetivação dos Direitos Humanos dos migrantes. É preciso reconhecer o novo, difícil e conflitivo papel dos Estados Nacionais e das políticas sociais em relação aos processos internacionais e internos de distribuição da população no espaço – cada vez mais desigual e excludente. Há que se tomar em conta as tensões entre os níveis de ação internacional, nacional e local. É de fundamental importância considerar que os movimentos migratórios internacionais constituem a contrapartida da reestruturação territorial planetária – que, por sua vez, está intrinsecamente relacionada à reestruturação econômicoprodutiva em escala global. Além disso, acontecimentos recentes, como o 11 de setembro nos Estados Unidos e sua estratégia militar preventiva iniciada com a Guerra do Iraque, os conflitos do Oriente Médio, as tensões entre comunidades de imigrantes muçulmanos na Europa, entre outras manifestações das contradições e conflitos que permeiam a vida coletiva neste início de século, reforçam as dimensões de racismo e xenofobia. No plano internacional, este é o momento decisivo para a definição de quais países terão acesso ao desenvolvimento. Em outras palavras, é importante saber quais deles poderão lograr o desenvolvimento econômico e social capaz de tirá-los da condição de eternos países em desenvolvimento. Nesse cenário, comparecem os países da América do Sul, onde, nas décadas passadas – com exceções, mas de um modo geral – assistiu-se a processos de democratização, embora as crises financeiras, o déficit fiscal, as dívidas externas e internas, o estancamento do processo produtivo, entre outras dimensões, tenham imprimido como contrapartida dessa dinâmica, o aumento da pobreza, da desigualdade e da exclusão, distanciandoos ainda mais dos países do Primeiro Mundo. Para superar a distância que a separa dos países desenvolvidos, a América do Sul desenvolve estratégias – e muitas vezes oscila entre a obediência aos cânones neoliberais e as tentativas de incrementar o resgate social acumulado. Nesse contexto move-se o Mercosul, que já há mais de uma década opera com oscilações, contradições e desafios, ao mesmo tempo que as discussões sobre MODALIDADES DE MOVIMENTOS, SIGNIFICADOS E GRUPOS SOCIAIS ENVOLVIDOS Na mídia, há reportagens, quase diariamente, sobre brasileiros que migraram e vivem em outros países – particularmente nos Estados Unidos. O tema também foi tratado em telenovela recentemente transmitida em “horário nobre”. Esses dois exemplos, entre outras evidências, ilustram a crescente visibilidade do tema; a consolidação de fluxos migratórios; os procedimentos adotados para a entrada nos Estados Unidos – agora via México –; os riscos que os migrantes correm; a violência e a corrupção dos atravessadores; a mescla destes com o narcotráfico; o tratamento desigual para os “migrantes documentados” e os chamados “migrantes irregulares”. Cobertura jornalística recente tratou de várias dimensões dessas novas tendências e características do movimento de brasileiros rumo ao Primeiro Mundo. Foram narradas as vicissitudes, dificuldades, desproteção, injustiças e até algum sucesso que cercam a vida cotidiana de um grupo crescente – principalmente de jovens urbanos –, que parte de uma também crescente diversidade de locais. Todos buscam inserir-se, de forma temporária ou posteriormente em caráter definitivo, no país que, para eles, parece ser o “sonho americano” (SALES, 2005; HARAZIM, 2005; MEDEIROS, 2005). Há que se ressaltar, pelo oportuno, que na mesma edição do jornal publica-se reportagem a respeito dos recen- 24 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005 MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS DE E PARA O BRASIL CONTEMPORÂNEO: ... savam a ser completamente distintos de tudo o que, sob a mesma rubrica, sucedera no passado. Embora em menor escala, o contexto dos movimentos internacionais que envolviam o Brasil indicava a entrada de novos contingentes de estrangeiros, com características absolutamente distintas das dos movimentos anteriores; tes imigrantes sul-americanos pobres, principalmente bolivianos, que adentram o país também em busca de melhores condições de vida, aspirando a ter direitos à saúde e educação, mesmo como imigrantes também “ilegais” (CAFARDO, 2005). No mesmo dia, a Revista da Folha também se ocupou com uma ampla cobertura a respeito dos imigrantes pobres que vieram recentemente ou que estão há mais tempo no Brasil. Relata suas vicissitudes, sua desproteção, suas condições absolutamente precárias de habitação e remuneração, a situação de seus filhos, entre outras dimensões. Dez anos antes, em sua edição de outubro de 1995, o jornal O Estado de S.Paulo anunciava em manchete de primeira página, em letras garrafais: “Brasil exportou um milhão de migrantes” (RABINOVICH, 1995). O autor da matéria estampava em “furo jornalístico” os números que estavam sendo debatidos num seminário em Brasília: tratava-se de um arredondamento de cifras projetadas mediante o uso do Censo Demográfico de 1991 (CARVALHO, 1996; OLIVEIRA et al., 1996). Ultrapassar a cifra de um milhão parecia a configuração plena de uma nova questão social. Nos debates e nas publicações que se seguiram, estavam presentes algumas características percebidas a respeito de um fenômeno que estava se configurando pela primeira vez na história do país, ferindo os brios nacionalistas e a imagem de país receptor: a saída de brasileiros para o exterior.4 Delineava-se, também, no conjunto de contribuições, os entendimentos e os significados não só de saída de brasileiros como da entrada de novos imigrantes. Num resumo a respeito dos entendimentos e dessas interpretações, cumpre ressaltar alguns pontos que permanecem como contribuições imprescindíveis para o debate atual: - os movimentos migratórios internacionais de e para o Brasil foram percebidos como inseridos na reestruturação produtiva em nível internacional. Assim, a crise financeira, o estancamento do processo de desenvolvimento, o excedente de mão-de-obra crescente, a pobreza, a ausência de perspectiva de mobilidade social, entre outras causas, estariam na raiz da nova questão social; - com exceção do caso dos “brasiguaios”, percebia-se que os migrantes não eram os mais pobres – em sua maioria, os movimentos estavam atingindo os jovens adultos de camadas médias urbanas; - ao contrário de algumas análises conjunturais que associavam a saída de brasileiros à década perdida (anos 80) ou à conjuntura do Governo Collor, esse estudo caracterizava a questão social como inerente à nova etapa da globalização e afirmava que, portanto, esta tinha “vindo para ficar”; - percebia-se que, sob a rubrica migração internacional aglutinavam-se processos e fenômenos distintos. Estes envolviam tanto questões fundiárias não resolvidas (como no já tradicional caso das migrações Brasil-Paraguai), quanto percepções e anseios de grupos sociais específicos frente a uma mobilidade social truncada no país (como no caso do “rumo ao Primeiro Mundo”), com tarefas remuneradas de baixa qualificação e manuais, porém muito melhor remuneradas. Percebiam-se modalidades de movimentos populacionais emergentes no contexto do capitalismo internacional e próprias da globalização atual – como a configuração do mercado dual da economia, a entrada de pessoal técnico-científico qualificado, situações de “fuga de cérebros”, entre outras; - embora de diminuta expressão numérica, a entrada e saída de pessoas do território nacional nunca cessou. Poder-seia dizer que o Brasil beneficiou-se da “invasão de cérebros” vindos de países vizinhos, em grande parte dos quais afugentados pelos regimes autoritários dos anos 70, bem como a entrada de europeus, nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial – que são, entre outros, exemplos de pequeno, mas intermitente afluxo de estrangeiros; - finalmente, percebia-se a emergente questão das remessas – as transferências unilaterais no balanço de pagamentos do Brasil – que já se apresentavam em expansão. Na verdade, essas remessas cresceram expressivamente nos anos 90 e tiveram como pico o ano de 1992: de 834 milhões de dólares, em 1990, passaram para 1.556 bilhão, em 1991; 2.243, em 1992; 1.653, em 1993; 2.588, em 1994; e 3.076 bilhões de dólares, em 1995 (KLAGSBRUNN, 1996, p. 45). - percebia-se não se tratar de uma inversão de tendência - o Brasil não seria um país de imigração que passou a ser de emigração. Em outras palavras, não teria passado de receptor a expulsor de população. O contexto, o significado, os volumes, os fluxos, as redes e outras dimensões importantes, no contexto interno e internacional, pas- SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005 25 NEIDE LOPES PATARRA Em síntese, no primeiro balanço a respeito dos movimentos internacionais contemporâneos no Brasil delinearam-se modalidades distintas e específicas, com envolvimento de distintos grupos sociais – o que, como conseqüência, demandou um tratamento distinto na esfera das políticas migratórias, na esfera das políticas sociais voltadas aos migrantes e, no geral, de ações bilaterais de proteção de seus direitos. Percebia-se nitidamente a modalidade de movimento rumo aos Estados Unidos, ao Japão, a países europeus – principalmente Itália, Alemanha e posteriormente Portugal e Espanha. Também já se percebia que o movimento que mais crescia era o direcionado aos Estados Unidos, onde as primeiras comunidades de brasileiros já iam se constituindo. O entendimento da emergência da migração internacional contemporânea não excluía, é claro, a consideração da circularidade que envolve grande parte dos deslocamentos populacionais, nos quais, entre outras dimensões, as redes que se criam propiciam e reforçam a continuidade dos fluxos que vão se estabelecendo. 1996). Surpreendentemente, essas estimativas aproximavam-se dos registros que se iniciaram em 1996, levantados pelo Ministério de Relações Exteriores junto aos consulados e embaixadas brasileiras. De acordo com esses documentos, o total de brasileiros registrados no exterior era de 1.419.440 em 1996, elevando-se para 1.887.895 em 2000 e 2.041.098 em 2002, com ligeiro declínio em 2003, ano em que foram registrados 1.805.436 brasileiros vivendo fora do país.5 Embora tratando-se de um registro de informações específicas, sua seqüência permite apreender algumas características e tendências. Em primeiro lugar, pode-se constatar que não se trata de “levas” de emigrantes, de “diáspora brasileira” ou outros termos freqüentemente usados pela imprensa e mesmo em alguns meios acadêmicos para referirem-se à questão social da saída de brasileiros. Mais que isso, os dados permitem levantar a hipótese da circularidade, comprovada por depoimentos e pesquisas qualitativas e reforçada pela constatação da existência de redes consolidadas – como, por exemplo, no caso do Japão, e, mais recentemente, de atravessadores que induzem a busca do “sonho americano” a preços que variam de 10.000 a 20.000 dólares. Se considerarmos que estimativas da ONU dão conta de 175 milhões de migrantes ao redor do mundo, percebe-se que é ínfima a parcela de brasileiros no contexto internacional contemporâneo das migrações internacionais. A Tabela 1 resume os dados obtidos, de acordo com o país de destino, nos anos mencionados. Desde o início do movimento de brasileiros rumo ao Primeiro Mundo, os Estados Unidos têm sido o principal ESTIMATIVAS E TENDÊNCIAS DOS FLUXOS MIGRATÓRIOS DE E PARA O BRASIL Saída de Brasileiros As primeiras estimativas quanto à saída de brasileiros variaram, de acordo com os procedimentos utilizados, de um saldo migratório mínimo de 1.042 milhão a um máximo de 2.480 milhões de pessoas (CARVALHO, 1996) e em torno de 1,3 milhão de pessoas (OLIVEIRA et al., TABELA 1 Estimativas de Brasileiros Residentes no Exterior 1996-2003 País / Região Total 1996 2000 (1) 2001 Nos Absolutos % Nos Absolutos % Nos Absolutos 2003 % Nos Absolutos % 1.419.440 100,00 1.887.895 100,00 2.041.098 100,00 1.805.436 100,00 Estados Unidos 580.196 40,87 799.203 42,33 894.256 43,81 713.067 39,50 Paraguai 350.000 24,66 454.501 24,07 369.839 18,12 310.000 17,17 Japão 262.944 18,52 224.970 11,92 262.510 12,86 269.256 14,91 Europa 135.591 9,55 197.430 10,46 332.164 16,27 291.816 16,16 Outros da América do Sul 49.444 3,48 37.915 2,01 91.649 4,49 111.705 6,19 Outros 41.265 2,91 173.876 9,21 90.680 4,44 109.592 6,07 Fonte: Ministério de Relações Exteriores. Registros Consulares. Brasília. (1) O registro de brasileiros, no caso da América do Sul, nesse ano inclui apenas Argentina e Paraguai. 26 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005 MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS DE E PARA O BRASIL CONTEMPORÂNEO: ... também tem sua dimensão simbólica (PATARRA; BAENINGER, 2001). Os principais países receptores são a Itália, com 16.775 pessoas em 1996, 65.196 em 2002 e 35 mil em 2003; Portugal, com 22.068 pessoas em 1996, 50.431 em 2001 e 70 mil em 2003; Espanha, com 12.026 em 1996, 13.371 em 2001 e 32 mil em 2003. Outro fluxo de emigrantes com características históricas decorrentes do processo migratório do início do século 20 é o de trabalhadores brasileiros descendentes de imigrantes japoneses em direção ao Japão (SASAKI, 1998). Nesse caso, ocorre a fusão dos aspectos principais dos fluxos anteriores: embora sempre movidos por estratégias econômicas, os traços culturais e étnicos, bem como a rede de parentesco, são componentes decisivos na configuração e dinâmica do fluxo migratório (PATARRA; BAENINGER, 2001). Constituindo-se no terceiro país na hierarquia dos “recebedores”, o Japão comparece com estimativas que vão de aproximadamente 263 mil pessoas, em 1996; 224 mil, em 2000; 262 mil, em 2001; a 269 mil, em 2003. O país que tem permanecido como o segundo na hierarquia de recebedores constitui uma modalidade completamente distinta dos mencionados fluxos rumo ao Primeiro Mundo. Os movimentos recentes das correntes migratórias que transitaram e ainda transitam na divisa entre o Brasil e o Paraguai estão intrinsecamente relacionados à constituição da fronteira entre esses dois países, principalmente no que diz respeito às suas fronteiras agrícolas. Historicamente, essa fronteira foi marcada por uma série de lutas e batalhas que abrangiam não só os Estados nacionais como também as populações locais e as grandes empresas comerciais. Em período recente, a construção da hidroelétrica, a extensão urbana de imigração de brasileiros no Paraguai e a extensão do contrabando e do narcotráfico consolidaram a configuração de uma área de conflitos, mas também de estruturação dos translados entre as populações dos dois países. Assim, certa troca e retorno de brasileiros apenas evidencia a dinâmica iniciada principalmente nos anos 60.7 O registro de brasileiros no Paraguai indica, em 1996, 350 mil pessoas, passando para 454.501 em 2000, declinando para 262.510 em 2001, e 269 mil em 2002, elevando-se novamente em 2003, com 325.400 brasileiros registrados nos diversos consulados. país recebedor, registrando aproximadamente 580 mil brasileiros em 1996, 800 mil já em 2000, 894 mil em 2001 e 713 mil em 2003.6 Esse país tem sido, de fato, o destino de um expressivo volume de brasileiros, em sua maioria jovens e pertencentes à classe média, que entram clandestinamente e se ocupam em trabalhos não qualificados que, ao contrário do que aconteceria em seus países de origem, propiciam-lhes um orçamento maior e a possibilidade de formar uma certa poupança. Ocorre que, possuindo um perfil diferenciado dos demais migrantes clandestinos (MARTES, 1999), os brasileiros encontram espaço para assumir trabalhos secundários, tais como balconistas, garçons, serviços domésticos e afins – trabalhos esses que são rejeitados pelos brancos e muitas vezes não são acessíveis aos negros. Outro aspecto desse fenômeno é que de fato esses migrantes se sujeitam a um rebaixamento de seu status social em prol da recompensa financeira imediata, uma vez que, no Brasil, a falta de oportunidade de emprego e o longo período de recessão econômica bloqueiam sua ascensão social. Assim, a imigração torna-se uma boa estratégia econômica, a partir da qual as redes de relações são formadas e fortalecidas e fomentam ainda mais o fluxo migratório. Há uma verdadeira “explosão” de migrantes brasileiros que, mediante a compra de um “pacote”, tentam passar pelas fronteiras do México, vivendo situações arriscadas e muitas vezes violentas, nessa travessia rumo ao país de seus sonhos. De acordo com a imprensa, uma vez cruzada a fronteira, não serão presos e, com “jeitinho”, acabam ficando por lá: uns, amealhando os dólares para investir no Brasil; outros, para residir permanentemente fora de casa (SALES, 2005). Já a emigração brasileira para a Europa deve-se, em grande parte, a fatores históricos e culturais decorrentes do próprio processo migratório brasileiro que, até pouco tempo atrás, caracterizava-se como receptor de população, com predominância dos fluxos provenientes de Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, entre outros. De um modo geral, o perfil dos emigrantes que se dirigem à Europa assemelha-se ao dos que se dirigem aos Estados Unidos, embora, neste caso, parece que traços culturais constituem dimensão importante na decisão de migrar. A isso se soma, em quantidade difícil de mensurar, a emigração de mulheres que para lá se dirigem muitas vezes iludidas, em busca de sua inserção em atividades de lazer, ou entrando na prostituição; atividades domésticas são também um possível atrativo; e a crescente saída dos jogadores de futebol, apesar de quantitativamente menos representativa, SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005 Entrada de Estrangeiros No que concerne à entrada de estrangeiros no país, os dados censitários ainda apresentam maior dificuldade de 27 NEIDE LOPES PATARRA dos no Mercosul Ampliado,8 respondendo por cerca de 40% dos imigrantes internacionais, seguidos dos imigrantes da Europa (mais de 20%), Ásia (12,5%) e América do Norte (9,1%). Essas evidências indicam, por um lado, que o país aumentou sua inserção nas migrações do Mercosul; por outro, houve uma relativa retomada das migrações de ultramar, com fluxos de Europa e Ásia. Ressalte-se ainda que a imigração internacional norte-americana recente está relacionada à alocação temporária de mão-de-obra qualificada9 (PATARRA; BAENINGER, 2004a; 2004b). Além disso, informações recentes sobre pedidos de concessão de vistos específicos do Ministério do Trabalho e Emprego no Brasil revelam que, entre 1993 e 1996, foram concedidas 45.827 autorizações; entre 1997 e 1999 foram concedidas 49.888; e, entre janeiro e junho de 2000, foram concedidas 9.496 autorizações – a maior parte das quais a estrangeiros de países europeus (mais de 30%) seguidas de autorizações a pessoas oriundas dos Estados Unidos e Canadá, em torno de 20% (BAENINGER; LEONCY, 2001). Esses dados estão permitindo trabalhar com a hipótese da configuração de um mercado dual de imigrantes: com os pobres não documentados – oriundos principalmente de países sul-americanos – e, em menor número, imigrantes documentados, mão-de-obra qualificada, empresários e pessoal de ciência e tecnologia – de origem européia e americana. A Pastoral do Migrante trabalha, hoje, com uma estimativa de 1,8 milhão de estrangeiros no país; esse dado contrasta fortemente com as informações do Ministério da Justiça. Neste caso, o número estimado de estrangeiros teria, após uma estabilidade de dez anos, baixado de 1 milhão para 830 mil, e São Paulo concentraria mais da metade desse total: 440 mil, seguido do Rio, com quase 200 mil (O Estado de S.Paulo, 20 maio 2005, Caderno Vida, p. A-22). estimativa: realmente, esta é uma tarefa desafiadora. Ao longo do século 20, pôde-se verificar um forte declínio em sua participação no total da população, considerandose o total de estrangeiros residentes no país nos levantamentos censitários – o chamado “estoque de imigrantes”. Nas últimas décadas do século, eles atingiam um total de 912 mil em 1980, decrescendo para 767.781 (0,52% da população total do país) em 1991, e 651.226 (0,38%) em 2000 (Tabela 2). Na verdade, grande parte desse contingente é formada pelos sobreviventes dos grandes fluxos das etapas anteriores (PATARRA; BAENINGER, 2004b). TABELA 2 População Estrangeira e População Total Brasil – 1900-2000 Ano População Estrangeira (Nos Absolutos) (A) População Total Brasil (Nos Absolutos) (B) Proporção de Estrangeiros (A/B) (%) 1900 1.074.511 16.364.923 6,16 1920 1.565.961 29.069.644 5,11 1940 1.406.342 39.752.213 3,42 1950 1.214.184 50.730.213 2,34 1970 1.229.128 91.909.909 1,32 1980 912.848 118.089.858 0,77 1991 767.781 146.825.475 0,52 2000 651.226 169.799.170 0,38 Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1900 a 2000. Os dados censitários também permitem observar a entrada de novos imigrantes em seus respectivos períodos intercensitários. Nas duas últimas décadas do século 20, verifica-se a entrada de 89.235 pessoas no período 19811991 e 98.514 pessoas no período 1990 e 2000 (Tabela 3). Constata-se, também, a entrada de novos contingentes de estrangeiros, embora em volumes bem mais reduzidos do que no passado. O Censo Demográfico 1991 registra uma população estrangeira de 606.631 pessoas – o que corresponde a 0,41% da população residente no país; o de 2000, com ligeira elevação pela entrada de novos migrantes, registra 683.380 pessoas – mesmo assim, corresponde a apenas 0,40% de seu total populacional. Essas cifras, sem dúvida, subestimam o contingente de imigrantes que entra no país nos períodos intercensitários (Tabela 2). Os países de nascimento desse contingente que passou a residir no Brasil nessas décadas estiveram concentra- POLÍTICAS MIGRATÓRIAS E POLÍTICAS SOCIAIS NO TRATO COM MIGRANTES INTERNACIONAIS A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada em 1994 no Cairo, na seqüência de Conferências da ONU nos anos 90, da qual o Brasil é signatário, apresenta, no capítulo X de seu Programa de Ação, a questão das migrações internacionais.10 Na formulação da problemática, o documento considera as migrações internacionais contemporâneas interrelacionadas ao processo de desenvolvimento, destacando a pobreza e a degradação ambiental, aliadas à ausência 28 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005 MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS DE E PARA O BRASIL CONTEMPORÂNEO: ... TABELA 3 População Imigrante Internacional, segundo País de Nascimento Brasil – 1981-2000 Imigrantes (Nos Absolutos) País de Nascimento 1981-1991 Distribuição Relativa (%) 1990-2000 1981-1991 1990-2000 Incremento Relativo (%) 1981-1991/1990-2000 TOTAL 89.235 98.514 100,00 100,00 9,42 Mercosul 18.303 23.068 20,51 23,41 20,56 Argentina 8.879 8.005 9,95 8,12 -10,92 Paraguai 5.319 11.692 5,96 11,86 54,51 -21,77 Uruguai 4.105 3.371 4,60 3,42 35.747 37.727 40,06 38,30 5,25 Argentina 8.879 8.005 9,95 8,12 -10,92 Paraguai 5.319 11.692 5,96 11,86 54,51 Mercosul Ampliado Uruguai 4.105 3.371 4,60 3,42 -21,77 Chile 6.864 2.060 7,69 2,09 -233,20 Bolívia 8.022 7.615 8,99 7,72 -5,34 Peru 2.558 4.984 2,86 5,05 48,68 América do Sul / Central 5.209 6.763 5,83 6,86 22,98 América do Norte 8.029 9.008 9,00 9,14 10,87 Europa 24.532 22.874 27,49 23,21 -7,25 África 2.517 4.466 2,82 4,53 43,64 Ásia 18.205 12.361 20,40 12,55 -47,28 3.361 4.822 3,76 4,89 30,30 45 260 0,05 0,26 82,69 635 233 0,71 0,23 -172,53 Japão Oceania Outros / Sem Especificação Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1991 e 2000 (tabulações especiais, Nepo/Unicamp apud PATARRA; BAENINGER, 2004). de paz e segurança, e as situações de violações de direitos humanos como dimensões decisivas para o Plano de Ação. O documento ressalta os efeitos positivos que a migração internacional pode assumir, tanto para as áreas de destino como para as áreas de origem. Para isso, incita os governos a analisarem as causas da migração, na tentativa de transformar a permanência num determinado país em opção viável para todos. No que se refere às remessas, preconiza seu incentivo mediante políticas econômicas e condições bancárias adequadas. Além disso, incentiva a migração temporária e o reforço do regresso voluntário de migrantes, e também enfatiza a necessidade de dados e informações adequadas. São considerados três tipos de migrantes internacionais: migrantes documentados, migrantes não-documentados e refugiados/asilados. Quanto aos migrantes com documentação, os governos dos países recebedores de- SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005 vem considerar a possibilidade de lhes conceder, bem como aos membros de suas famílias, um tratamento regular igual ao concedido aos seus próprios nacionais, no que diz respeito aos direitos humanos básicos. Quanto aos migrantes não-documentados, recomendase a implementação de ações que visem: reduzir seu número; evitar exploração e proteger seus direitos humanos básicos; prevenir o tráfego internacional com migrantes; e protegêlos contra o racismo, o etnocentrismo e a xenofobia. Finalmente, o documento apela aos governos para que tomem medidas apropriadas para resolver conflitos, promovendo a paz e a reconciliação; que tenham respeito pelos direitos humanos e independência individual, assim como pela integridade territorial e a soberania dos Estados; e que aumentem seu apoio às atividades internacionais destinadas a proteger e a apoiar refugiados e migrantes. Os refugiados devem beneficiar-se do acesso a alojamento adequado, educação, contando com serviços de saúde que 29 NEIDE LOPES PATARRA incluam planejamento familiar e outros serviços sociais necessários. No Brasil, o Ministério das Relações Exteriores vem desenvolvendo ações sistemáticas de apoio consular aos brasileiros que vivem no exterior no que se refere à atualização de documentos, abertura dos consulados para a comunidade migrante, estímulo à formação de conselhos consulares com participação de cidadãos brasileiros que vivem fora do país (CNPD, 2001). Um prenúncio de formulação explícita de políticas públicas para a emigração pode ser considerado no documento produzido no I Encontro Ibérico da Comunidade de Brasileiros no Exterior, do qual resultou o Documento de Lisboa.11 É interessante considerar a lista de propostas finais aprovadas nesse Encontro, que inclui os elementos para a formulação de políticas públicas para a emigração, representação política para os emigrantes brasileiros, elaboração do estatuto dos brasileiros no exterior, situação de consulados e embaixadas brasileiras, além de apoio ao repatriamento, recadastramento eleitoral, reforço dos consulados itinerantes e assessoria jurídica a emigrantes.12 No entanto, há que se registrar um viés econômico no trato com os emigrados. Na introdução desse documento, avalia-se entre 2 e 3 milhões de brasileiros vivendo no exterior, e já se menciona a questão das remessas – tema que, como já vimos, tem sido crescentemente discutido nos fóruns e debates a respeito dos grandes movimentos migratórios internacionais contemporâneos. Nesse caso, a questão das remessas é colocada como ponto de partida e sua justificativa se garante, em primeiro lugar, em nome da economia brasileira e, em segundo, pela questão social, pois considera-se que promover a educação financeira, fomentar o impacto desses fundos ao oferecer mais opções financeiras para as famílias receptoras de remessas e suas comunidades (<http:// www.iadb.org.mif>). 13 As autoridades vêm gradativamente se manifestando mais abertamente sobre o interesse desse montante de divisas para a economia nacional: percebe-se que o Brasil entrou no rol dos países com altos índices de remessas – estimada em US$ 5,8 bilhões em 2003.14 Destes últimos 5 bilhões que entraram no Brasil, o Japão é responsável por 3 bilhões; os USA, por 1 bilhão; e a Europa, por 1 bilhão – sendo que a metade desse volume vem de Portugal. Esse montante representa 7% das exportações brasileiras, que somaram 73 milhões, em 2003 – e é maior do que qualquer produto de exportação. Nesse último ano, as remessas são superiores às exportações de soja (4,29 bilhões), e bem mais elevadas do que os produtos tradicionais como o café (1,3 bilhão) e calçados (1,62 bilhão) (ROSSI, 2005), ou seja, como havia constatado Klagsbrunn (1996), o emigrante continua sendo o maior produto de exportação do Brasil. Comemorando essa cifra que teria entrado no país em parte pelo Banco do Brasil e em outra trazida pessoalmente ou enviada por parentes e amigos,15 uma autoridade do Itamaraty manifestou-se, em tom jocoso: os brasileiros que vivem no exterior são compatriotas que deveriam ser recebidos com tapete vermelho, champanhe e caviar (Folha de S.Paulo, 4 jul. 2004). Estrangeiros no Brasil No que se refere à entrada de estrangeiros no Brasil, há que se registrar que o controle da imigração é uma atribuição de três ministérios: da Justiça, das Relações Exteriores e do Trabalho e Emprego. Ao Ministério da Justiça compete, essencialmente, o controle dos estrangeiros após sua entrada em território nacional e a aplicação da política de imigração – desde a concessão de visto, prorrogações, transformações de vistos, permanência, até medidas menos “simpáticas”, como a extradição. A política imigratória atual é orientada pela Lei no 6.815, de 19 de agosto de 1980, que desde o início de sua vigência vem sendo alvo de críticas no país. A lei criou ainda o Conselho Nacional de Imigração – CNI, órgão presidido pelo Ministério do Trabalho e Emprego, com representantes de vários outros ministérios, órgão de classe e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC. Do ponto de vista da economia brasileira [...] a emigração é responsável pela remessa unilateral de cerca de dois bilhões de dólares anuais para o Brasil, contribuindo significativamente para diminuir o desequilíbrio da balança de pagamentos e, do ponto de vista social, para inclusão no mercado consumidor das famílias beneficiadas por essas remessas (Documentos de Lisboa, grifos da autora). Também é interessante registrar que o Fundo Multilateral de Inversões – Fomin, do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, vem realizando um esforço conjunto com agentes governamentais, o setor privado e ONGs, instituições financeiras e outras, para aumentar a consciência da importância desses fluxos; aumentar a competição para diminuir os custos de remessas; 30 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005 MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS DE E PARA O BRASIL CONTEMPORÂNEO: ... O CNI, por meio de 49 resoluções, orienta a política imigratória que, neste momento, privilegia a imigração sob o ponto de vista da assimilação da tecnologia, investimento de capital estrangeiro, reunião familiar, atividades de assistência, trabalho especializado e desenvolvimento científico, acadêmico e cultural (BARRETO, 2001). Destaca-se ainda, na condução da política imigratória brasileira, o trabalho desenvolvido pelo Comitê Nacional para os Refugiados – Conare , vinculado ao Ministério da Justiça, que tem por finalidade a condução da política nacional sobre refugiados. Cabe ao Ministério do Trabalho e Emprego estabelecer diretrizes e orientações de caráter geral no que concerne à autorização de trabalho a estrangeiros, com observância dos preceitos da Lei no 6.815/80 que define sua situação jurídica no país.16 Esse conjunto de dispositivos caracteriza o Brasil como um dos países mais restritivos quanto à imigração de estrangeiros. É interessante considerar as discussões a respeito no âmbito do governo do Mercosul, onde houve tentativas para harmonizar as políticas migratórias dos países-membros com vistas à livre circulação de trabalhadores no contexto da abertura comercial; nesse fórum, a posição brasileira tem-se mantido inalterada. Outra dimensão que vem surgindo com ímpeto é a questão do acesso dos imigrantes não documentados e seus familiares aos serviços públicos no Brasil. Sabe-se que, no Brasil, crianças e adolescentes estrangeiros ou filhos de estrangeiros em situação ilegal nem sempre conseguem lugar em escolas públicas. No Fórum Social das Migrações, realizado em Porto Alegre, em janeiro de 2005, discutia-se o acesso desses migrantes às políticas universalistas – saúde e educação – constatando-se que o Sistema Único de Saúde – SUS é o único programa que, por sua regulamentação universalista, possui o respaldo de atendimento a todos, indistintamente. No Brasil, os estados têm relativa autonomia no que se refere ao acesso de imigrantes e/ou seus filhos ao ensino público fundamental. No entanto, no plano jurídico, a Constituição Brasileira, de cunho universalista, contrapõese ao Estatuto do Estrangeiro, que é mais restritivo. Muitas vezes, o jovem pode freqüentar a escola, mas esta não pode emitir certificados de conclusão.17 Todas essas constatações a respeito dos movimentos migratórios internacionais a partir de e para o Brasil indicam fortemente a urgência de tratamento de uma problemática emergente que demanda análise, entendimento e monitoramento. Isso significa reformulação e SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005 ampliação das políticas e ações frente à nova situação, para alterar seus pressupostos, tomar em conta as especificidades dos fluxos e dos grupos sociais envolvidos, defender os indivíduos de atravessadores, ampliar seu escopo para dar conta dos direitos humanos dos migrantes e suas famílias. Sob a égide da Conferência sobre Direitos Humanos, o tratamento dos migrantes internacionais circunscreve-se no âmbito da articulação entre soberania nacional, democracia, direitos humanos e direitos ao desenvolvimento. O desafio consiste em transformar os compromissos assumidos internacionalmente em programas e práticas sociais condizentes com a articulação proposta – síntese das contradições, conflitos e antagonismos intensificados neste início de século. A migração internacional, que é a contrapartida populacional desse contexto globalizado, representa hoje a transformação da herança alvissareira do século 20 e um grande desafio para o século 21. NOTAS 1. Veja-se, entre outros: Harvey (1993), Piore (1979), Benko e Lipietz (1998). 2. Veja-se Sassen (1988). 3. É bastante expressivo o montante e a qualidade da produção de demógrafos e especialistas em Estudos Populacionais sobre o tema. Mesmo com risco de apresentar lacunas, é importante mencionar o trabalho da Comissão de Migração Internacional da União Internacional para o Estudo da População – IUSSP. Cf., entre outros, Massey et al. (1993); a produção mexicana, consistente e numerosa, expressa-se nas variadas publicações da Somede; sugestivo também, o recente texto de Canales (2003). Um bom balanço da produção bibliográfica encontra-se em Assis e Sasaki (2001); contribuições posteriores mais significativas são mencionadas ao final. 4. À exceção de estudantes e casos isolados de profissionais de algumas áreas de ponta, a saída de brasileiros só existira durante o regime militar, com os refugiados políticos e expulsos do país. 5. O registro de brasileiros no exterior constitui um levantamento do Ministério das Relações Exteriores junto aos consulados e embaixadas brasileiras. Iniciou-se, em 1996, e já tivemos acesso a quatro levantamentos: além do primeiro, outros em 2000, 2001 e 2003. Cabe registrar aqui que não se trata de estatísticas públicas, mas sim de um levantamento administrativo interno; os próprios funcionários do Itamaraty são muito cautelosos no que se refere ao uso desses dados como uma quantificação precisa dos emigrantes brasileiros. 6. Nos últimos meses, a entrada de brasileiros nos Estados Unidos via México vem sendo amplamente noticiada e alardeada; na verdade, parece haver um afluxo mais intenso, possivelmente conjuntural e induzido. A mídia menciona a cifra de 800 mil a um milhão de brasileiros aí residindo, a maioria clandestinamente. 7. O caso dos movimentos populacionais entre Brasil e Paraguai tem sido amplamente estudado. Entre outros estudos, veja-se Palau (1995, 1996 e 1997) e Sprandel (1992 e 1998). 8. Considera-se, além da Argentina, Paraguai e Uruguai, também Chile, Bolívia e Peru. 31 NEIDE LOPES PATARRA 9. Ministério do Trabalho e Emprego. Secretaria de Relações do Trabalho (SRT)/Coordenação de Imigração (CGI), CNPD, (2000). BENKO, G.; LIPIETZ, A. As Regiões Ganhadoras. Portugal: Celta Ed., 1998. 10. No âmbito das negociações que cercaram a conferência e que se encaminharam para o relatório final, dava-se ênfase às questões relacionadas à saúde reprodutiva e seus desdobramentos temáticos; no entanto, a questão das migrações internacionais geraram sempre fortes tensões entre os representantes dos países de origem e os dos países receptores, em grande parte identificados com movimentos internacionais de países pobres para países ricos. Nesse capítulo, o relatório reflete essas tensões, caracterizando-se por ambivalências, contradições e inexeqüibilidades. Apesar disso, constitui-se, como todos os relatórios das conferências da ONU, num referencial básico para discussões de ações e políticas no plano internacional, bem como norteador de financiamentos para pesquisa e, muitas vezes, ação. CAFARDO, R. Educação, um direito do imigrante. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 20 mar. 2005. Caderno Vida, p. A-22. CANALES, A. Demografía de la desigualdad. El discurso de la población en la era de la globalización. In: CANALES, A.; SIGAL, S.L. Desafíos teórico-metodológicos en los estudios de población en el inicio del milenio. México: El Colegio de México/Universidad de Guadalajara/Sociedad Mexicana de Demografía, Guadalajara, 2003. p. 43-86. CARVALHO, J.A.M. de. O saldo dos fluxos migratórios internacionais no Brasil na década de 80: uma tentativa de estimação. In: PATARRA, N.L. (Coord.). Migrações Internacionais Herança XX Agenda XXI. Campinas: FNUAP, 1996. p. 217-226. 11. O encontro foi promovido pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Distrito Federal – PRDC/MPF, com apoio organizacional da Casa do Brasil de Lisboa e a colaboração da Cáritas Portuguesa, da Cáritas Brasileira, da Obra Católica Portuguesa de Migrações e da Pastoral dos Brasileiros no Exterior da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, sob patrocínio do Banco do Brasil. CASTELLS, M. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CNPD. Migrações internacionais – Contribuições para políticas. Brasília, DF: 2001. 12. Há que se assinalar que, no já mencionado levantamento consular do Itamaraty de 2003, registra-se pela primeira vez a situação regular e irregular dos brasileiros no exterior, bem como os detentos nos respectivos países. FNUAP. Resumo do Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. Brasília. [s/d]. 13. No Brasil, a iniciativa vem sendo organizada em conjunto com a Fundação Getúlio Vargas, com projeto coordenado pela pesquisadora Dra. Ana Cristina Braga Martes. HARAZIM, D. Uma semana de cão. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 20 mar. 2005. Caderno Aliás, p. J5. HARVEY, D. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1993. 14. De acordo com os dados do BID, as remessas para o Brasil aumentaram significativamente, somando 2,6 bilhões, em 2001; 4,6 bilhões, em 2002; e 5,2 bilhões, em 2003. KLAGSBRUNN, V.H. Globalização da economia mundial e mercado de trabalho: a emigração de brasileiros para os Estados Unidos e Japão. In: PATARRA, N.L. (Coord.). Migrações Internacionais Herança XX Agenda XXI. Campinas: FNUAP, 1996. p. 33-48. 15. O registro consular do Ministério das Relações Exteriores aponta, para 2003, 1,8 milhão de brasileiros vivendo no exterior. No entanto, o próprio Ministério chegou a uma estimativa de 2,5 milhões de emigrantes considerando estatísticas elaboradas pelos países que acolhem os brasileiros e dados referentes à movimentação consular dos brasileiros ilegais. Quanto às estimativas das remessas, o Banco do Brasil registrou o envio de 2,9 bilhões e o restante são quantias trazidas pessoalmente ao país ou enviadas por amigos. MARTES, A.C.B. Brasileiros nos Estados Unidos: um estudo sobre imigrantes em Massachusets. São Paulo: Paz e Terra, 1999. MASSEY, D. et al. Worlds in Motion: understanding international migration at the end of the millenium. Clarendon, Press Oxford, 1993. 16. Veja-se um levantamento sobre as atribuições dos Ministérios, bem como sobre as informações por eles obtidas e a regulamentação jurídica que informa essa atuação em Baeninger e Leoncy (2001). MEDEIROS, J. Brasileiros nos Estados Unidos: sinal amarelo. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 20 mar. 2005. Caderno Cidades/ Metrópoles, p. C3. 17. Seminário 10 – Políticas Públicas. Fórum Social das Migrações (Porto Alegre, 23 a 25 de janeiro de 2005). OLIVEIRA, A.T. de. et al. Notas sobre a migração internacional no Brasil na década de 80. In: PATARRA, N.L. (Coord.). Migrações Internacionais Herança XX Agenda XXI. Campinas: FNUAP, 1996. p. 227-238. PALAU, T. Migration among countries in Mercosul: trends and perspectives. Barcelona: IUSSP, May 7-10, 1997. Mimeografado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ________. Diagnóstico sobre residentes brasileños en el región oriental del Paraguay. Assuncion: OIM/Base Investigaciones Sociales, 1996. ASSIS, G. de O.; SASAKI, E.M. Os novos migrantes do e para o Brasil: um balanço da produção bibliográfica. In: CNPD. Migrações internacionais – Contribuições para políticas. Brasília, DF: 2001. p. 615-669. ________. Migrações transfronteiriças entre Brasil e Paraguai: o caso dos brasiguaios. In: PATARRA, N.L. (Coord.) Emigração e imigração internacionais no Brasil contemporâneo. Campinas: Programa Interinstitucional de Avaliação e Acompanhamento das Migrações Internacionais no Brasil; FNUAP, 1995. BAENINGER, R.; LEONCY, C. Perfil dos estrangeiros no Brasil segundo autorizações de trabalho (Ministério do Trabalho e Emprego) e registro de entradas e saídas da Polícia Federal. In: CNPD. Migrações internacionais – Contribuições para políticas. Brasília, DF: 2001. p. 187-242. PATARRA, N.L. Movimentos migratórios internacionais recentes de e para o Brasil e políticas sociais: um debate necessário. Fórum Social das Migrações. Porto Alegre: 2005. (No prelo). BARRETO, L.P.T.F. Considerações sobre a imigração no Brasil Contemporâneo. In: CNPD. Migrações internacionais – Contribuições para políticas. Brasília, DF: 2001. p. 63-72. PATARRA, N.; BAENINGER, R. Migrações Internacionais, Globalização e Blocos de Integração Econômica – Brasil no 32 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005 MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS DE E PARA O BRASIL CONTEMPORÂNEO: ... Mercosul. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO LATINO-AMERICANA DE POPULAÇÃO (ALAP), 1., Minas Gerais. Anais... 2004a. SALES, T.; SALLES, M. do R. Políticas Migratórias: América Latina, Brasil e brasileiros no exterior. São Carlos: Ed. Sumaré, Edufiscar e Fapesp, 2002. ________. Mobilidade espacial da população no Mercosul: Metrópoles e Fronteiras. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 28., 2004, Caxambu. Anais... Belo Horizonte: Anpocs, 2004b. SASAKI, E.M. O jogo da diferença: a experiência identitária no movimento Dekassegui. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – IFCH/Unicamp, Campinas, 1998. ______. Frontier and Migration in MERCOSUR: Meaning, Specificities and Implications. In: GENERAL POPULATION CONFERENCE, 24., 2001, Salvador. Anais... Salvador, Brasil: 2001. 29 p. SASSEN, S. As cidades na economia mundial. São Paulo: Ed. Studio Nobel, 1998. _________. The Mobility of Labor and Capital. Cambridge, Cambridge University Press, 1988. PIORE, M. Birds of Passage: Migrant Labour and Industrial Societies. New York: Cambridge University Press, 1979. PIORE, M.; DOENINGER, H.P. Internal Labor Market and manpower analysis. Lexington: 1971. SPRANDEL, M. Brasileiros de além-fronteira: Paraguai. In: O fenômeno migratório no limiar do terceiro milênio: desafios pastorais. São Paulo: Vozes, 1998. PIORE, M.; SABEL, C. The second industrial divide: possibilities for prosperity. New York: Basic Books, 1984. ________. Brasiguaios: conflitos e identidade em fronteiras internacionais. Tese (Doutorado) – UFRJ, Rio de Janeiro, 1992. RABINOVICH, M. Brasil exportou um milhão de migrantes. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 3 out. 1995. ROSSI, P.L. Remessas de Emigrantes: pesquisa a Brasileiros em Portugal. Monografia (Bacharelado) – UFRJ/Instituto de Economia. Rio de Janeiro, abr. 2005. NEIDE LOPES PATARRA: Socióloga-Demógrafa; Professora Livre-Docente da Unicamp, Pesquisadora Titular da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE ([email protected]). SALES, T. Eles vestem o avental da América. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 20 mar. 2005. Caderno Aliás, p. J4-5. ________. Migrações de fronteira entre o Brasil e os países do Mercosul. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 13, n. 1, jan./jun. 1996. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005 Artigo recebido em 17 de maio de 2005. Aprovado em 1 de junho de 2005. 33 ROSA ESTER ROSSINI A MEMÓRIA CONGELADA DO IMIGRANTE a solidariedade intergeracional dos japoneses e dos nikkeis no Brasil e no Japão atual ROSA ESTER ROSSINI Resumo: O artigo discute a solidariedade intergeracional dos migrantes japoneses e seus descendentes no Brasil, incluindo-se os nikkeis que retornaram para o Japão. Discute também a atual solidariedade existente entre os japoneses residentes no Japão, que não migraram para o Brasil. Palavras-chave: Migração. Dekasseguis. Solidariedade. Abstract: The article discusses the Japanese intergenerational migrants' solidarity and their descendants in Brazil, being included the Nikkeis that came back to Japan. It's also discussed the current existent solidarity among resident Japanese in Japan, that didn't migrate to Brazil. Key words: International migration. Remittances. Public Policies. A eram inferiores a 32 óbitos por 100 mil habitantes, atingindo o patamar de 125 óbitos em 1999. O número de óbitos de mulheres na mesma faixa etária era de 3 em 1980, passando a 7 por 100 mil habitantes em 2002 (FUNDAÇÃO SEADE, 2004). A questão do desemprego/desocupação ocupa a atenção de todos os pesquisadores e das autoridades governamentais. Foram incrementadas algumas políticas como a do Primeiro Emprego, mas os resultados ainda são insuficientes em relação à demanda. As pessoas jovens não encontram trabalho porque têm que ter experiência. As pessoas com mais de 40 anos não encontram trabalho porque são consideradas velhas. Devido à modernidade tecnológica, o mercado de trabalho se encolhe. Destaque-se que 70% dos bancários perderam os postos de trabalho nos últimos 15 anos. A saída é o setor terciário, em atividades informais (vendedor ambulante de tudo, desde frutas a eletroeletrônicos). Há também alguma chance como trabalhador autônomo, vendendo sua força de trabalho como elemento especializa- população brasileira, nas últimas décadas, perdeu o ritmo histórico de crescimento, passando de 2,1% ao ano na década de 80 para 1,5% ao ano no período de 1990-2000 (IBGE, 2001; 2003a). Hoje, além da pobreza, são muitas as linhas de atenção das pesquisas. Dentre elas destacamos: - o aumento proporcional e numérico de idosos na população total. A população com 60 anos e mais correspondia, em 2000, a quase 9% do total (há municípios que chegam a 20%; no distrito da Consolação, na cidade de São Paulo, era de 21% em 2004); - a gravidez na adolescência; - a morte de pessoas ainda jovens, do sexo masculino, na faixa de 15 a 39 anos, motivada por arma de fogo (chacina, extermínio), drogas e acidentes de trânsito, em particular de moto. Na pirâmide populacional da cidade de São Paulo já pode ser identificada uma espécie de “dentes falhados” do lado masculino, nessa faixa etária. Em 1982, as taxas 34 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 34-43, jul./set. 2005 A MEMÓRIA CONGELADA DO IMIGRANTE: A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL ... Com a restauração Meiji (1868), a massa de desempregados aumentou em virtude da crise econômica e do desemprego real e potencial intensificado pela baixa produtividade agrícola e industrial. As medidas de modernização tomadas provocaram tensões sociais que redundaram na saída dos excluídos (YOSHIOKA, 1995). Nessa época, a política imigratória brasileira convocava braços para a lavoura cafeeira, enquanto a política japonesa era a de apoiar os migrantes como pequenos proprietários. Os primeiros migrantes (1908-1923) eram basicamente de origem rural e foram encaminhados para as fazendas de café (165 famílias – 786 pessoas). Bastaram algumas semanas para os japoneses perceberem que o país que haviam escolhido pouco ou nada tinha a ver com o “Eldorado” que as agências encarregadas de organizar a imigração lhes haviam prometido no Japão. Estavam em um lugar cuja língua não entendiam, conviviam com um clima diferente, com gente que tinha costumes, religião e até rostos diferentes dos deles. O remédio era conformar-se, comer pouco, vestir-se mal e economizar dinheiro para o retorno. Ledo engano. O sonho, em sua maioria, não se realizou (FAUSTO, 1998). O segundo período (1924-1941) foi o de destinação principal dos migrantes para núcleos coloniais, e com forte apoio do governo japonês. As rígidas restrições impostas nos anos de guerra (em particular na 2a Grande Guerra) aos japoneses residentes no Brasil tinham sido apenas um capítulo a mais no calvário de provações vividas por eles desde a época dos primeiros migrantes. As autoridades tinham preocupação com a formação de quistos; o governo estabeleceu o sistema de cotas em 1930; proibiu também o funcionamento de escolas de língua japonesa e levou à prisão aqueles que “desobedeciam” as normas estabelecidas. Acrescentem-se ainda os problemas criados entre os migrantes com a nãoaceitação da derrota do Japão na 2a Guerra Mundial. O terceiro e último período, nos meados do século 20, foi realizado via imigração planejada ou livre, viabilizada pela iniciativa particular de japoneses residentes no Brasil por meio das redes de parentesco e amizade, e pela chamada de órgãos diversos – como a Sociedade Paulista de Sericicultura, a Cooperativa Agrícola de Cotia, etc. De 1908 a 1972, cerca de 250 mil pessoas de origem japonesa chegaram ao Brasil. Desse total, 75% radicaramse no Estado de São Paulo. Na cidade de São Paulo, os bairros étnicos representaram um fator de intimidade e segurança, em meio às vi- do, por alguns meses no ano. A pessoa terá mais oportunidade se for versátil e criativa. A outra possibilidade de conseguir trabalho é por meio da migração interna ou internacional. Além do telemarketing, o setor que hoje está empregando, mas em pequena escala, é o setor público – especialmente o magistério. Esse é o motivo pelo qual houve aumento do número de homens que prestaram vestibular para ingresso na universidade em áreas mais voltadas para o ensino. Do ponto de vista da migração, o Brasil, no século passado, passou por três fases distintas: - até 1960, fase imigrantista – havia oferta de oportunidades de trabalho na agricultura e na nascente e progressista atividade industrial; - de 1960 a 1980, fase emigrantista – as razões políticas foram as grandes motivadoras da partida das pessoas para o exterior; - pós 1980, fase emigrantista – por razões econômicas, principalmente. Estima-se que mais de 2,5 milhões de pessoas estejam fora do país (mais de 10% desse total encontram-se no Japão). Nessa terceira fase, a migração internacional é basicamente de classe média ou média inferior. Em sua maioria, são migrantes com escolarização de nível médio que dispõem de capital para utilizar o meio de transporte rápido – avião (SASAKI, 1996; CAIADO, 1997; SALES, 1996) No presente trabalho, é realizada uma discussão a respeito da solidariedade intergeracional dos migrantes japoneses e seus descendentes no Brasil. Incluem-se também, neste texto, os nikkeis (japoneses e seus descendentes) que retornaram/migraram para o Japão. Ao mesmo tempo, discute-se essa solidariedade vivida hoje pelos japoneses residentes no Japão que não migraram para o Brasil. São praticamente 100 anos de presença de japoneses e seus descendentes no Brasil: um século de uma memória congelada em relação à herança históricocultural vigente àquela época no Japão. Depois da Segunda Guerra Mundial, o Japão mudou muito e vive a “era dos descartáveis” para tudo – inclusive para as pessoas idosas. A VIAGEM DOS JAPONESES PARA O DESCONHECIDO Para melhor compreensão do Japão de hoje, torna-se necessário recuperar sinteticamente a história de seu povo e de sua gente. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 34-43, jul./set. 2005 35 ROSA ESTER ROSSINI cissitudes da vida na cidade. Por exemplo, o japonês feirante – depois de enfrentar com seu mutismo os fregueses que regateiam insistentemente – retorna ao seu bairro, a Liberdade, com a sensação de intimidade e segurança (FAUSTO, 1998). É bastante conhecida, por exemplo, a frase dos feirantes japoneses ou mesmo de seus descendentes em resposta a fregueses que regateiam com insistência: “no entendo”, como forma de encerrar o assunto. A língua funciona também como forma consciente ou inconsciente de resistir à integração: número considerável de japoneses após 30, 40, 50 anos ou mais no Brasil, não entende português e a “língua oficial” em casa é a japonesa, com o objetivo de preservar a continuidade e a manutenção dos laços do país de origem. intensa entre os nikkeis de ambos os sexos no Brasil (ROSSINI, 2004). Além da ocupação na agricultura, e mais tarde no comércio, os japoneses tiveram, no Brasil, uma enorme preocupação com a educação dos filhos como forma de ascensão social. No Brasil, a taxa de alfabetização de pessoas com 15 anos e mais, segundo o Censo Demográfico de 2000, era de 87,1%. Essa mesma taxa para a população amarela, em que predominam os japoneses, era de 95,1% (IBGE, 2001; 2003a). Na Universidade de São Paulo, nos anos 80 e mesmo 90, cerca de 19% dos alunos eram de origem oriental, e aí se destacavam os de ascendência japonesa, em maior número, seguido dos chineses e coreanos. Freqüentam e freqüentavam mais os cursos, principalmente, de exatas, tecnológicas e saúde. Menos de 1% da população brasileira é de ascendência japonesa. No Estado de São Paulo, a participação dos nikkeis na população total é inferior a 5%. A partir de 1970, quando houve a implantação de filiais de indústrias japonesas no Brasil ou a compra de indústrias nacionais pelos japoneses, iniciou-se um lento processo de imigração para o Brasil por parte dos japoneses, agora na situação de “técnicos especializados”. A título de exemplo de adaptação/integração, podem ser citadas informações a partir do último levantamento do Centro de Estudos Nipo-Brasileiro a respeito dos japoneses e seus descendentes no Brasil: Os imigrantes japoneses tinham o compromisso de honra de só retornarem ao Japão como vencedores. Não podiam sequer pensar em levar seus filhos nascidos aqui como gaijim. Era preciso que eles aprendessem a ler e a falar a língua japonesa. Esta era a maneira que eles encontraram de não terem seus filhos considerados como estrangeiros pelos japoneses, quando retornassem ao Japão (SAKURAI, 1987, p. 43). Essa “doce ilusão”, o sonho do retorno rápido, perdurou por muito tempo. A realidade aconteceu quando, nos anos 80, o Japão necessitou de mais braços e chamou seus patrícios para o trabalho. Até que ocorresse esse chamado, os japoneses perceberam a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de retornarem ao Japão. Dessa percepção decorreu a tendência de “aculturar-se” por meio da conversão formal ao catolicismo, da escolha de nomes cristãos para os filhos e do casamento com não-descendentes (FAUSTO, 1998). A questão do casamento interétnico ocorre, num primeiro momento, com a união de uma brasileira com o primogênito da família japonesa. Explica-se tal tendência pelo fato de que a responsabilidade de assumir todos os encargos familiares na ausência ou dificuldade dos pais recaía, na tradição japonesa, sobre o filho mais velho. A organização familiar obedeceu a um sistema social hierárquico, organizado a partir do princípio de descendência patrilinear, no qual o filho mais velho é o herdeiro e o futuro chefe da família (TOMA, 2000). Por isso, as japonesas ou seus descendentes, sabedoras dessa responsabilidade e encargo, evitavam o casamento com o filho mais velho da família japonesa, tradição que de certa forma persiste até hoje, embora a miscigenação seja de cada dez descendentes, metade é casada com ocidentais [...] A mistura de raças é uma tendência irreversível. Estimase que existem 1,4 milhão de descendentes no Brasil. Desses, apenas 52 mil fazem parte da primeira geração de emigrantes. São mestiços cerca de 30% (REVISTA MADE IN JAPAN, 2003). Entretanto, deve-se destacar que 11% dos migrantes estrangeiros residentes no Município de São Paulo em 2000 eram japoneses, seguidos pelos italianos, que representavam 7% (FUNDAÇÃO SEADE, 2004). A MEMÓRIA CONGELADA DO IMIGRANTE E SUA PRESENÇA EM UM OUTRO LUGAR O “lugar” é onde o indivíduo estabelece suas relações sociais, onde tem sua identidade e o sentimento de pertencer. É no plano do cotidiano que vão aparecendo paulatinamente as formas de apropriação/utilização e ocupação de um determinado lugar do “mundo vivido”. É assim que 36 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 34-43, jul./set. 2005 A MEMÓRIA CONGELADA DO IMIGRANTE: A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL ... as relações se estabelecem na produção da existência das pessoas/famílias. A FACE DO BRASIL NO JAPÃO Os brasileiros que migram à procura de melhores condições de vida – “os deserdados do capitalismo” – na sua maioria não figuram nas estatísticas oficiais como migrantes: são “turistas”. Há estimativas que apontam a existência de 250 mil a 310 mil migrantes do Brasil residindo no Japão. Muitos estão com a documentação em ordem, mas outros estão em situação irregular. A Revista Made in Japan (2004) informa que o governo japonês realizou pesquisa sobre a vida dos brasileiros no Japão. São 268 mil, sendo: - 52% entre as idades de 20 e 40 anos; Já assentado no Brasil, o imigrante busca amenizar o corte, materializando, de várias formas, a lembrança da terra que deixou. Desse modo, o arranjo de sua casa tem características próprias, evidenciadas nos chamados objetos biográficos. Um retrato emoldurado de toda a família, um pôster turístico de um lugar do país de origem, uma imagem religiosa, etc., são expostos como fragmentos de um mundo a que se deseja voltar, mas que se suspeita jamais ser possível rever, ou, talvez pior, ao revê-lo não mais reconhecer seus traços originais (FAUSTO, 1998, p. 18). O imigrante sente saudade do que deixou sem se dar conta, sem sequer racionalizar, sem perceber que o país de origem, no movimento dos acontecimentos socioeconômicos, científicos e políticos, sofreu profundas mudanças em relação à realidade de quando deixou aquele lugar. A memória congelada do país de origem, guardada preciosamente, mudou (FERREIRA, 2001). Mudaram os que ficaram; mudaram os que partiram, pois a sociedade e o espaço estão em contínuo movimento. A mistura de raças, de etnias, é evidente em São Paulo e no Brasil. Todos sentem enorme orgulho de suas raízes históricas. Com freqüência, mesmo sem terem ido ao país de seus ancestrais, têm profunda curiosidade por tudo, especialmente a partir da história dos avôs/avós. Essa transmissão de conhecimentos/lembranças funciona como uma forma de não-apagamento da memória, como elo de ligação do passado com o presente. A imigração representa um profundo corte, com vários desdobramentos, no plano material e no plano do imaginário. - 68,6% trabalham nas fábricas (economicamente ativos); - 71% são casados; - 65% estão há mais de cinco anos no Japão; - 36% das crianças estão fora da escola; - 61% ganham mais de 2 mil dólares mensais; - nascem mais de 4 mil crianças por ano. Os brasileiros constituem a terceira nacionalidade em número de estrangeiros no Japão, cifra somente superada pelos coreanos e chineses. A presença brasileira no contexto dos imigrantes da América do Sul é significativa. Os brasileiros são o grupo mais numeroso seguido de longe pelos peruanos (Tabela 1). Em 1o de junho de 1990, foi aprovada a nova lei de controle de entrada de estrangeiros. As pessoas passaram a ter direito de contratar legalmente nisseis e sanseis. Mesmo após a regulamentação da referida lei, nem sempre os contratos são legais, apesar da existência de descontos de 15 a 30% do salário mensal dos chamados “contratados”. Em geral, os trabalhadores ilegais não percebem sua situação, ou só tomam consciência dela quando ficam doentes ou sofrem acidentes: seus contratos não são muito claros, seus direitos são raros. Os autônomos devem efetuar o pagamento do seguro junto à prefeitura municipal. No caso de algum problema de saúde, deverão assumir 30% das despesas e não receberão pelos dias parados. Em caso de doença, aqueles que são regulamente contratados pagam 10% das despesas com saúde e, após o quinto dia, recebem 60% do salário. Os trabalhos dados aos nikkeis estão, segundo eles, na categoria dos 5 Ks: Kitsui (duro, pesado); Kitanai (sujo); Kiken (perigoso); Kibishü (exigente); Kirai (detestável) (FERREIRA, 2001). O corte não é sinônimo de apagamento de uma fase passada, na vida individual, familiar ou do grupo, integrando-se pelo contrário ao presente, com muita força (FAUSTO, 1998, p. 4). Atualmente, a maioria das migrações internacionais utiliza o avião como meio de transporte. As viagens duram muitas horas. Porém, o corte com a família, com o país, é aparentemente menos doloroso, pois os meios modernos de comunicação – telefone, Internet, correio – encurtam as distâncias. Nesse mundo globalizado é possível encontrar, até mesmo no lugar onde se está, todos os ingredientes para a receita da comida feita pela avó (bassan): só falta o “gostinho dado por ela à comida, aquele gostinho de algo que só ela sabia fazer e que tinha sabor de infância”. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 34-43, jul./set. 2005 37 ROSA ESTER ROSSINI TABELA 1 Estrangeiros no Japão Provenientes da América Latina 1991-2000 País 1991 1992 1994 1996 1998 2000 Total 151.798 185.704 201.843 246.187 271.398 309.230 Brasil 119.333 147.803 159.619 201.795 222.217 254.394 Peru 26.281 31.051 35.382 37.099 41.317 46.171 Argentina 3.366 3.289 2.796 3.079 2.962 3.072 Paraguai 1.052 1.174 1.129 1.301 1.441 1.678 Bolívia 1.766 2.387 2.917 2.913 3.461 3.915 Fonte: Yoshioka, (2002). Japan Immigration Association - JIA - Heisei 13. De envelhecer ninguém escapa. Alguns envelhecem mais rapidamente do que outros e nem todos vivem essa etapa da vida da mesma maneira, uma vez que o envelhecimento biológico está estreitamente relacionado às formas materiais e simbólicas que identificam socialmente cada indivíduo (PEIXOTO, 1999, p. 357). Embora sejam de ascendência japonesa, não são muito aceitos pela sociedade local por não terem os mesmos hábitos e por não falarem a língua. São conhecidos como os “brasileiros” (FOLHA DE S.PAULO, 2003). Na verdade, o que garante a permanência dos migrantes do Brasil no Japão é a solidariedade daqueles que vieram em primeiro lugar e a solidariedade da família que deixaram no Brasil. As questões ligadas ao envelhecimento, que antes eram adstritas ao mundo privado (médico, prática de caridade religiosa) alçam vôo, transformando-se em discussão mais ampla, instigando campos de conhecimento e do agir. Isto é, atinge a esfera do espaço público (CABRAL, 2001). Esse prolongamento da vida tem mais a ver com rejuvenescimento/integração do idoso na sociedade do que com a efetiva discussão sobre o velho propriamente dito (CABRAL, 2001). Tanto a demonstração de solidariedade da sociedade atual para com os idosos quanto o incentivo a essa prática sugerem a necessidade de se refletir sobre a construção das relações entre as gerações jovens e velhas no espaço público (das políticas públicas) e no espaço privado. A solidariedade deve ser pensada como uma totalidade profundamente imbricada, onde cada um compartilha com o outro em todos os momentos de vida, isto é, nas alegrias, nos problemas, etc. (CABRAL, 2001). A solidariedade pode salvar as pessoas reinserindo-as na sociedade e recuperando sua auto-estima. PARA MELHOR ENTENDER A SOLIDARIEDADE: ALGUNS DIREITOS DA PESSOA IDOSA NO BRASIL A partir dos anos 80, organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas e mais tarde a Comunidade Européia, tiveram um papel ativo na produção de novas sensibilidades em relação ao envelhecimento em diferentes culturas (DEBERT, 2004, p. 235). A Constituição Brasileira de 1988 atendeu a alguns reclamos e necessidades da população idosa e o Estado brasileiro apoiou muitas das aspirações na Política Nacional do Idoso de 1994, que foi regulamentada em 1996. Nessa política, os campos de atuação dos idosos foram em parte reconhecidos. Percebe-se certa atenção geral com o aumento de eventos sobre o tema, o destaque nos meios de comunicação, o cumprimento da legislação: são algumas das demonstrações da importância da pessoa idosa, hoje, no Brasil e no mundo. As formas de solidariedade entre as gerações construídas no espaço público permitem identificar diferenciações entre essas formas e aquelas tecidas no interior do seio da família, 38 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 34-43, jul./set. 2005 A MEMÓRIA CONGELADA DO IMIGRANTE: A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL ... - em cinemas e teatros as bilheterias sejam preferenciais e com 50% de desconto; onde as regras de reciprocidade se vinculam à consangüinidade e às relações de parentesco que envolvem os membros de várias gerações, estando muito mais presentes aspectos indicativos de uma relação de obrigações morais entre pais e filhos e mesmo entre aqueles e seus netos (CABRAL, 2001, p. 30). - sejam implantadas Delegacias de Proteção ao Idoso; - nos hospitais públicos seja reservado espaço para acompanhante da pessoa idosa (em geral é uma poltrona ao lado da cama). Essa é uma medida que favorece a solidariedade intergeracional e ainda evita a contratação, pelo hospital, de atendentes personalizados para pessoas altamente dependentes; A Constituição Brasileira, em particular após 1988, e outras formas de regulamentação posteriores impõem um conjunto de obrigações legais de proteção entre pais e filhos e vice-versa. A não-obediência pode ter graves conseqüências para aqueles que não atendem a esse ordenamento jurídico que formaliza e obriga os indivíduos com vínculos parentais ao exercício da solidariedade. Além disso, só o risco de ser punido elimina muitas incorreções por parte daqueles que pretendiam desobedecer as leis (BARROS, 1987; CABRAL, 1999; 2001). A Constituição Brasileira de 1988 e a legislação posterior estabelecem, dentre outros itens, que: - homens com 65 anos e mais, e mulheres com 60 anos e mais têm direito à aposentadoria de 1 salário mínimo (que era inferior a 100 dólares em 2004), por meio da Previdência Social Rural, mesmo sem terem contribuído. A legislação de 1963 estabelecia o benefício da aposentadoria (jubilamento/reforma) para apenas uma pessoa na família, em geral o homem e, em todos os casos, com apenas um salário mínimo vigente; - na tramitação de processos seja assegurada a prioridade à pessoa idosa; - em Brasília, capital federal, acrescenta-se ainda a reserva de 5% das vagas para automóveis em áreas públicas ou privadas para uso da pessoa idosa. Com a legislação para a pessoa idosa no Brasil, criaram-se duas novas categorias profissionais: office old e motobói. Assim, praticamente desaparece o office boy. Como os idosos não precisam aguardar na fila porque têm guichês especiais para a sua faixa etária, e também porque não pagam transporte e, além disso, já são aposentados, os serviços que antes eram feitos pelo office boy passaram a ser feitos por eles, pois representam benefícios econômicos para os contratantes. Já os motobóis circulam aceleradamente por São Paulo fazendo entregas rápidas de mercadorias e papéis, comprometendo a própria vida. Há informações de que 280 mil motobóis circulam diariamente em São Paulo e que lamentavelmente ocorre, no mínimo, uma morte por dia desse profissional. Por várias razões, a expectativa de vida da mulher é bem superior que a dos homens – e essa é uma tendência mundial. Em 2000, no Estado de São Paulo, por exemplo, a expectativa de vida das mulheres era de 75,6 anos, enquanto a dos homens era de 66,8 anos. Essa situação é reforçada, dentre outras razões, pela morte prematura dos jovens na faixa dos 15 a 35 anos, motivada por acidentes de trânsito (motos), arma de fogo e drogas. Assim é que foi cunhada a denominação de “feminização da velhice” (MOTTA, 1999a). No Brasil a mesma diferença existe em relação à esperança de vida (total 71,0; homens 64,8; mulheres 72,6 anos) (IBGE, 2001; 2003b; FUNDAÇÃO SEADE, 2003; 2004). Outro assunto a ser analisado é a solidariedade das pessoas idosas no Brasil, que é demonstrada de várias formas. Entretanto, destaque-se que a presença feminina é marcante. As atividades realizadas pela pessoa idosa e as atividades de integração são: visitas às pessoas neces- - as pessoas que contribuíram com outros valores e pagaram à Previdência, obviamente, têm direito à aposentadoria correspondente; - haja transporte urbano gratuito – ônibus e metrô – para as pessoas idosas, sejam homens ou mulheres. Esse benefício possibilitou à pessoa idosa maior liberdade, maior autonomia, concorrendo para o aumento da esperança de vida. Com essa autonomia, nas famílias mais pobres a pessoa idosa passou a receber encargos que nem sempre eram exercidos por ela, como pagar contas, levar crianças à escola, etc.; - a partir de 2004, o transporte interurbano e interestadual deveria ser gratuito para pessoas que recebessem até 2 salários mínimos mensais. Porém, essa medida tem sido boicotada, com freqüência, pelos responsáveis pelas empresas; - haja assentos preferenciais nos transportes; - haja guichês preferenciais para atendê-los nos bancos; - haja guichês preferenciais nos aeroportos para atendimento aos idosos; SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 34-43, jul./set. 2005 39 ROSA ESTER ROSSINI sitadas; confecção de roupas para doentes e carentes; participação em grupos de dança, música, teatro; freqüência a festas, palestra, cursos; participação em grupos de ginástica, desenho; freqüência a cursos para aprendizado e uso do computador, da Internet, etc. Há, portanto, uma série de programas centrados na “sociabilidade programada e centrada no lazer e na cultura - e que são predominantemente femininos” (MOTTA, 1999a, p. 171). São pessoas atentas e abertas a novas amizades, as quais são cultivadas carinhosamente. Contar história é uma prática que tem sido muito difundida por idosos e idosas no Brasil. É comum serem convidados por professores de seus netos para ir à escola contar as histórias que conhecem ou para falar sobre a cidade ou o campo. Essa prática não só reforça sua autoestima, como possibilita às crianças melhor conhecimento, em particular do folclore e da herança cultural do país. - ajudar os filhos de todas as maneiras possíveis, quando as dificuldades os atingem, principalmente nas situações de enfermidade e desemprego; - sentir que a reciprocidade e a solidariedade é suportada pelo lado que se considera mais frágil; - ocupar grande parte do tempo para atender às demandas de filhos e netos; - auxiliar a família, com trabalho, no apoio doméstico; - dar um espaço no terreno, quando possui, para a construção de moradia para os filhos e netos, sendo este, um procedimento moralmente estabelecido. Acrescente-se que a solidariedade dá compreensão fecunda à integração social do idoso (SOUTO, 1999). A solidariedade esperada pelas pessoas idosas é a compreensão do outro, é saber que seus filhos estão bem, receber deles carinho e atenção e, quando necessário, receber tanto apoio emocional como ajuda material (CABRAL, 2001). Os programas para a terceira idade, assim como as Universidades são compreendidas como espaço capazes de ampliar os relacionamentos sociais extrafamiliares dos idosos, propiciar novas experiências e possibilidades de aquisição de conhecimento (DEBERT, 2004, p. 246) OS JAPONESES E SEUS DESCENDENTES: O CUIDADO COM A PESSOA IDOSA E AS REDES DE SOLIDARIEDADE Tanto nos estabelecimentos de ensino público como de ensino privado, merece destaque a iniciativa de instituição da Universidade da Terceira Idade. Para freqüentá-la, a pessoa idosa não precisa ter curso universitário. Em muitas universidades, os idosos assistem às aulas e delas participam como estudantes universitários regularmente matriculados. Essa transmissão de conhecimentos e essa interação na sociedade é extremamente salutar. A população idosa também tem sido um forte agente impulsionador do turismo no período “entre férias” – o que possibilita que os hotéis e outros centros de recreação mantenham pessoal empregado durante todo o ano para atender a essa clientela. Por isso, as pessoas da terceira idade estão sendo Além da legislação, há a considerar, em relação aos nikkeis residentes no Brasil e aqueles moradores no Japão que: - há uma herança histórico-cultural de quase um século, uma verdadeira memória congelada dos migrantes de origem japonesa e seus descendentes no Brasil; - na época da migração dos japoneses para o Brasil, no Japão, o idoso/a era respeitado/a e ouvido/a, prática que se mantém até hoje no Brasil; - ao filho mais velho competia a responsabilidade e cuidados com a pessoa idosa, isto é, na falta ou impossibilidade dos pais, ele respondia e responde pela família; - o filho mais velho fez e faz todo empenho possível no trabalho, em geral na pequena produção agrícola ou como feirante, para deixar espaço para os irmãos mais moços estudarem. Em função dessa abdicação e apoio aos membros da família, em geral, como recompensa, o filho mais velho herda a terra ou patrimônio urbano; descobertas como nova fatia de mercado consumidor, estão postos diante de uma sociedade em movimento, no acelerado ritmo de mudança tecnológica, intensificação paroxísmica da comunicação (MOTTA, 1999b, p. 209). - é de responsabilidade do filho mais velho (ou de sua esposa), os cuidados com os pais. No Brasil, é raro alojar os pais em casas de repouso. Entretanto, quando isso acontece, eles recebem visitas freqüentes das famílias – prática abandonada pelos japoneses do Japão. Segundo Cabral (2001) há, principalmente, um tipo de solidariedade incondicional por parte das pessoas da terceira idade. E é esse sentimento que as faz: - acolher em suas casas filhos casados ou separados; 40 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 34-43, jul./set. 2005 A MEMÓRIA CONGELADA DO IMIGRANTE: A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL ... As redes de solidariedade de nikkeis brasileiros no Japão são expressas sob várias formas. Na escola, mães que não trabalham são voluntárias para apoiar os filhos e os outros migrantes – inclusive para protegê-los contra freqüentes atos de violência praticados pelos colegas. Outro apoio importante das mães voluntárias diz respeito ao ensino, pois as crianças ingressam na escola de acordo com a idade e não a série, em conformidade com o conhecimento estabelecido e o da língua japonesa. Além disso, há vários outros fatores que impulsionam a solidariedade. Como os pais permanecem muito tempo fora de casa, motivados pela necessidade de trabalhar, dedicam pouca atenção às crianças nas suas atividades escolares. Essa situação se agrava ainda mais com o desconhecimento da língua, que geralmente justifica o abandono da escola por 36% dos filhos de migrantes. Há gestos de solidariedade por ocasião das festas, em particular no carnaval; na comida compartilhada; na oferta do emprego/ocupação; e até mesmo no empréstimo da fita de vídeo que traz novelas brasileiras gravadas. É comum compartilhar o envio de mensagens pela Internet. Mas a maioria das pessoas recebe ou envia notícias por telefone (80%) e apenas 10% se comunicam por cartas. Como 50% dos migrantes (homens e mulheres) no Japão são casados, a solidariedade das avós do Brasil expressa-se no cuidado dos filhos do casal que parte. Merece destaque o fato de que, em geral, primeiro migra o homem, depois a mulher e – bem mais tarde – as crianças. Por fim, não é rara nova união no Japão, tanto por parte do homem como da mulher, e o abandono dos filhos na casa dos pais, ou com a mulher que não migrou. O que acontece mais freqüentemente é que o homem – que atravessou o oceano em busca do “Eldorado” – abandone a mulher que o espera no Brasil. O grande problema surge quando os mais velhos não podem mais morar sozinhos e são encaminhados para um “asilo/casa de repouso”, pois a família que trabalha “não tem tempo para cuidar da pessoa idosa porque tem que trabalhar”. Quando esse fato ocorre, os idosos, nas “casas de terceira idade”, preferem os cuidados de pessoas que já moraram no Brasil, pois são mais atenciosas, mais afáveis, mais respeitosas, mais carinhosas. Anotou-se depoimento de um turista japonês visitando uma “casa de repouso” no Brasil: “No Brasil, a família vai visitar o idoso na ‘casa de repouso’. No Japão, a família vai depositar o velho no asilo e vai buscá-lo quando recebe o telefonema avisando que ele morreu”. Esse fato fica muito evidente no filme japonês O Funeral, no qual, após o recebimento do telefonema comunicando o falecimento do idoso, o filho é, em seguida, procurado pelo agente que cuida de funerais e que resolve tudo. A constatação de que o capital desumaniza as relações e enfraquece a solidariedade é patente no Japão. Lá, o velho dá lugar na fila ao jovem, porque este não tem tempo. Idoso tem todo o tempo! Diante dessa realidade, o idoso passa por uma espécie de “lavagem cerebral” portadora efetivamente de uma ideologia ilusória que insiste em convencê-los de que a mudança para o Mundo Tropical lhes dará maior longevidade. Ao mesmo tempo, o Estado se desobriga/descarta dessa população que “deu sua vida” para o Japão emergir como grande potência mundial. Por essa razão, já ocorreram compras de terreno no Brasil para a construção de vilas residenciais. A Constituição Brasileira permite, que, com uma renda de até 500 dólares mensais, qualquer pessoa estrangeira pode migrar em definitivo para o Brasil, não importando a idade. Assim é que em Campos do Jordão (SP) e Maringá (PR), japoneses já compraram terrenos para a construção de conjuntos residenciais para idosos. No Norte da África, no Sul da Espanha, no Caribe, já é uma realidade a presença de japoneses em conjuntos habitacionais. A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL CONVIVE MUITO POUCO COM O CAPITAL NO JAPÃO DE HOJE CONSIDERAÇÕES FINAIS Hoje, os japoneses que vivem no Japão medem a solidariedade pelo capital e ela pode expressar-se sob várias formas. Lá, os que se aposentaram pela Previdência Social recebem menor assistência por parte da família. A assistência médica é de boa qualidade e, dependendo do caso, os idosos também recebem assistência de uma enfermeira paga pelo Estado, pois os filhos não têm tempo de dar atenção aos pais. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 34-43, jul./set. 2005 A memória congelada dos migrantes japoneses para o Brasil garantiu a persistência de uma herança cultural que vem sofrendo alteração no tempo. No Japão de hoje, homens e mulheres “não têm tempo” de cuidar de seus idosos. No Brasil, os nikkeis ainda continuam “achando tempo” para respeitar seus idosos e cuidar bem deles. Os 41 ROSA ESTER ROSSINI exemplos citados no texto evidenciam claramente esse fato – a tal ponto que as casas de saúde japonesas têm clara preferência por atendentes nikkeis brasileiros para cuidarem dos idosos. A sociedade brasileira é hoje muito mais sensível e tem aberto espaços para que experiências inovadoras de solidariedade intergeracional sejam vividas. Também há grande esforço de reeducação das pessoas para com a imagem do idoso – particularmente nos grupos de convivência com jovens. Freqüentemente a solidariedade político-social tem a duração de uma queimada, mas não resiste às cinzas para a reconstrução do que foi perdido. Falta continuidade. Assim é que, ao lado das políticas públicas, é necessário que os olhos atentos da sociedade civil garantam a aplicação, a continuidade, a permanência e a renovação das políticas públicas de interesse às pessoas idosas e reforce a solidariedade intergeracional. A solidariedade tem um nome: mulher. A solidariedade é feminina. Há que assumir a coragem de romper com a cultura que acha “natural” a situação de abandono que paulatinamente tem vitimizado a população idosa e mutilado sua cidadania e dignidade, e implantar/desenvolver/intensificar a solidariedade com razão e emoção, para devolver/recuperar para a pessoa idosa a herança histórica de respeito/ admiração/carinho e amor, perdidos na era do descartável. Essa construção só se realiza com uma educação que pratique a solidariedade intergeracional de respeito, de amor. Dessa forma, todos terão melhor qualidade de vida, isto é, cidadania plena (SANTOS, 1996). DEBERT, G.G. Formas de gestão da velhice: Brasil e Portugal. In: COVA, A; RAMOS, N.; JOAQUIM, T. (Org.). Desafios da comparação: Família, mulheres e gênero em Portugal e no Brasil. Oeiras, Portugal: Celta Editora, 2004. p. 235-54. FAUSTO, B. Imigração, cortes e continuidades. In: SCHWARCZ, L.M. (Org.). História da Vida Privada no Brasil, 4. Contrastes da Intimidade Contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 13-61. FERREIRA, R.H. O confronto dos lugares no migrante dekassegui. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp, Rio Claro, 2001. FOLHA DE S.PAULO. São Paulo, 2003. FUNDAÇÃO SEADE. São Paulo, Outrora e Agora. Informações sobre a população da capital paulista, do século XIX ao XXI. São Paulo: 2004. ________. SP Demográfico. Estatísticas Vitais do Estado de São Paulo. São Paulo, ano 4, n. 5, jul. 2003. (Resenha Mensal). GALIMBERTTI, P. O caminho que o dekassegui sonhou. Cultura e subjetividade no movimento dekassegui. São Paulo: EDUC/ FAPESP/Ed. UEL, 2002. IBGE. Atlas do Censo Demográfico, 2000. Rio de Janeiro: 2003a. ____. Censo Demográfico 2000. Rio de Janeiro: 2003b. ____. Censo Demográfico. Características Gerais da População. Resultados da Amostra. Rio de Janeiro: 2001. MOTTA, A.B. Mulheres de mais idade. In: ÁLVARES, M.L.M; SANTOS, E.F. Olhares & Diversidades – os estudos sobre gênero no Norte e Nordeste (Brasil). GEPEM/CFCH/UFPA, Redor N/NE, 1999a. p. 167-178. ______. As dimensões de gênero e classe social na análise do envelhecimento. In: DEBERT, G.G. (Org.). Cadernos Pagu – Gênero em Gerações, 13. Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 1999b. p. 191-221. PEIXOTO, C.E. A imagem da velhice nas telas do cinema documentário. In: DEBERT, G.G. (Org.). Cadernos Pagu – Gênero em Gerações, 13. Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 1999. p. 357-369. REVISTA MADE IN JAPAN, n. 79, 2004. REVISTA MADE IN JAPAN, 2003. ROSSINI, R.E. A interculturalidade na metrópole: os velhos e os novos imigrantes internacionais. In: CARLOS, A.F.; OLIVEIRA, A.U. (Org.). Geografias de São Paulo: representação e crise da metrópole. São Paulo: Contexto, 2004. p. 343-368. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, M.L. de. Autoridade e afeto: avós, filhos e netos na família brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. ________. Os dekasseguis do Brasil foram para o Japão e lá estão criando raízes. Revista GEOUSP, espaço e tempo, São Paulo, Ed. FFLCH/USP, n. 14, p. 65-76, 2003. CABRAL, B.E.S.L. Solidariedade intergeracional: uma experiência dos grupos de convivência de idosos. Especiaria - Revista da UESC, Bahia, Ilhéus, p. 25-43, 2001. SAKURAI, C. Romanceiro da imigração japonesa. São Paulo: Nobel, 1987. ______. Alegria de instantes: a festa de comemoração dos(as) idosos(as). In: ÁLVARES, M.L.M; SANTOS, E.F. Olhares & Diversidades – os estudos sobre gênero no Norte e Nordeste (Brasil). GEPEM/CFCH/UFPA, Redor N/NE, 1999. p. 193-200. SALES, T. O trabalhador brasileiro no contexto das novas migrações internacionais. In: PATARRA, N.L. (Org.) Emigração e imigração internacionais no Brasil Contemporâneo. 2. ed. São Paulo: ABC/ Funap, 1996. CAIADO, A.S.C. A emigração internacional de brasileiros: o sentido da saída. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 11, n. 4, p. 87-96, 1997. SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. 42 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 34-43, jul./set. 2005 A MEMÓRIA CONGELADA DO IMIGRANTE: A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL ... ________. Porque migramos do e para o Japão. São Paulo: Massao Ohmo, 1995. SASAKI, E.M. Os dekasseguis retornados. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, Abep, v. 13, n. 1, 1996. SOUTO, E.M. Neve na serra: os grupos de convivência de idosos com o espaço alternativo de sociabilidade feminina. In: ÁLVARES, M.L.M; SANTOS, E.F. Olhares & Diversidades – os estudos sobre gênero no Norte e Nordeste (Brasil). GEPEM/CFCH/UFPA, Redor N/NE, 1999. p. 179-192. ROSA ESTER ROSSINI: Professora Titular do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Assessora do CNPq e Assessora Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa dos Estados de: SP; RJ; PE; MG; AM e DF. TOMA, C.Y. A experiência feminina dekassegui. Um olhar sobre a subjetividade no processo migratório. Londrina: Ed. UEL, 2000. Artigo recebido em 11 de abril de 2005. Aprovado em 12 de maio de 2005. YOSHIOKA, R. Questões relacionadas à educação de filhos de dekasseguis. 28 jan. 2002. Mimeografado. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 34-43, jul./set. 2005 43 TERSEA SALES A ORGANIZAÇÃO DOS IMIGRANTES BRASILEIROS EM BOSTON, EUA TERESA SALES Resumo: O artigo trata do avanço do nível organizativo dos migrantes brasileiros na região metropolitana de Boston, nos Estados Unidos. Baseando-se em uma pesquisa realizada em outubro de 2005, é feito um histórico das várias organizações criadas pelos migrantes brasileiros entre 1995 e 2005, nas cidades de Framingham, Boston, Somerville e Cambridge. A conclusão é a de que os brasileiros avançaram mais em sua organização política – em conseqüência da bagagem cultural que alguns líderes levaram consigo do Brasil – do que no setor de serviços. Palavras-chave: Migração internacional. Imigrantes brasileiros nos Estados Unidos da América. Abstract: This paper discusses the progress of the Brazilian migrants’ organization in the metropolitan area of Boston, in the United States. Based on a research done in October of 2005, it presents several organizations created by the Brazilian migrants between 1995 and 2005, in the cities of Framingham, Boston, Somerville and Cambridge. It concludes that the Brazilians improved their political organization, as a consequence of the cultural background of some leaders, than in the service sector. Key words: International migration, Brazilian immigrants in the United States of America. P or que os brasileiros imigrantes nos Estados Unidos têm tido uma presença marcante na nossa mídia desde finais de 2004? Como acontece desde o início do fluxo migratório de brasileiros para o exterior, em meados dos anos 80, a imprensa brasileira costuma dar mais cobertura aos fatos negativos dessa migração,1 que estiveram muito presentes ultimamente: aumento da apreensão de brasileiros na fronteira México-Estados Unidos; prisões e deportações de brasileiros; o caso da morte do brasileiro Jean Charles, pela Scotland Yard, em Londres; e, como exceção para confirmar a regra, o aumento das remessas financeiras dos brasileiros no exterior. Houve porém um fato novo na mídia que se somou a esses para dar maior visibilidade aos nossos brasileiros longe de casa: a novela América, exibida no horário de maior audiência da Rede Globo de Televisão. No início da novela, vários jornais deram destaque a essa situação. O Caderno Aliás, do jornal O Estado de S.Paulo de 20 de março de 2005, trouxe o tema Vidas brazucas, apresentando uma entrevista comigo e um artigo de Dorrit Harazim sobre a epopéia de um mineiro acusado de estupro e a prisão de 57 brasileiros ilegais. Entre os vários assuntos abordados na entrevista, respondendo à pergunta sobre possíveis efeitos da novela, mencionei que isso dependeria em parte do enfoque adotado, mas, quando as pessoas estão propensas a emigrar, qualquer estímulo serve como reforço. E acrescentava: como já existe uma predisposição na sociedade brasileira, é possível que a novela seja um fator de estímulo, mesmo mostrando os riscos da travessia, as dificuldades de adaptação, etc. 44 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 44-54, jul./set. 2005 A ORGANIZAÇÃO DOS IMIGRANTES BRASILEIROS EM BOSTON, EUA Cerca de dois meses após o início da novela, o jornal Folha de S.Paulo (5 de maio de 2005) apresentou, na matéria, “Captura de brasileiros nos EUA decuplica”, dados impressionantes: negativos da migração de brasileiros para outros países, a imprensa reforça um estereótipo já existente na sociedade em relação a esses migrantes. Sem pretender entrar no mérito dessa questão, esse artigo tem o objetivo de fazer uma análise comparativa, entre 1995 e 2005, dos grupos organizados de imigrantes brasileiros, com ênfase no Estado de Massachusetts. Com isso, procura-se mostrar que, para além das prisões e deportações, os brasileiros longe de casa têm construído uma marca de povo trabalhador, solidificando seus vínculos organizativos e caminhando a passos largos para um reconhecimento no seio da sociedade norte-americana, mesmo que isso possa lhe causar uma contra-ofensiva por parte daquela sociedade em algumas localidades, como é o caso da cidade de Framingham. apenas em abril, 4.802 brasileiros foram detidos em território americano da fronteira com o México – uma incrível média de 160 casos diários, segundo dados fornecidos pela Patrulha da Fronteira a pedido da Folha. O número é mais de dez vezes o registrado no mesmo período do ano passado: 443 casos (15 por dia). Essa notícia reacendeu o debate em torno da questão migratória de brasileiros para os Estados Unidos em vários meios de comunicação e até no Congresso Nacional, sendo que um representante do Ministério das Relações Exteriores, outro do Ministério da Justiça, Glória Perez – autora da novela América – e eu fomos convidados a participar de uma Audiência Pública da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal sobre o tema. Eu, que já tinha dado por encerrada minha pesquisa com imigrantes brasileiros nos Estados Unidos depois de escrever um circunstanciado artigo sobre a “Segunda Geração” (SALES; LOUREIRO, 2004), voltei ao tema. Para participar da audiência pública, fiz contato por e-mail com uma rede de lideranças das organizações de brasileiros nos Estados Unidos e retomei contatos, o que me despertou para um novo projeto, de natureza mais jornalística, posto que circunscrito a um curto espaço de tempo. Participei de um Encontro de Lideranças Brasileiras nos Estados Unidos em Boston, de 21 a 23 de outubro de 2005, e realizei 13 entrevistas com líderes da comunidade brasileira, visando avaliar a organização dos brasileiros imigrantes dez anos depois da pesquisa de 1995/96, que deu origem à obra Brasileiros Longe de Casa (SALES, 1999). Ao visitar mais uma vez os brasileiros imigrantes na região de Boston, foi possível observar que a visão da imprensa brasileira é muito parcial, no sentido negativo, em relação a nossos imigrantes lá fora. Isso talvez seja decorrência de como a sociedade brasileira encara esses imigrantes: eles ferem a nossa auto-imagem de país acolhedor. Não gostamos de ver nossos cidadãos saindo de casa e sobretudo de ver que muitos deles estão entrando na casa alheia pela porta dos fundos. Contudo, numa perspectiva histórica, é importante lembrar que foi assim também com outros povos que hoje são respeitáveis cidadãos norte-americanos, brasileiros, argentinos, só para citar o continente americano. Ao enfatizar apenas os aspectos SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 44-54, jul./set. 2005 AS CIDADES IRMÃS Em 13 de novembro de 1995, caem os primeiros flocos de neve ainda indecisos, que lá eles chamam de fluries. Naquela noite será assinado um acordo de cidades irmãs entre a prefeitura de Framingham e a prefeitura de Santa Luzia, em Minas Gerais. Para isso vieram autoridades de Santa Luzia – o vice-prefeito, o vice-presidente da Câmara dos Vereadores, o diretor do hospital e o médico-chefe do SUS [...] A primeira parte da sessão é toda ela dedicada à troca de discursos, troca de certificados, troca de presentes. Os discursos americanos, curtos e diretos, os brasileiros demorados e cheios de Lyncolns e Washingtons, traduzidos mais sucintamente para o inglês pelo nosso vice-cônsul em Boston. Não sei se pela memória de filmes de infância, aquilo tudo me lembra muito uma cerimônia apache, sobretudo na troca de presentes (SALES, 1999, p. 197-198). Essa cerimônia, na qual foi assinado o acordo de cidades irmãs (sister city), ficou como uma pedra no sapato da comunidade brasileira de Framingham. A idéia partiu do vice-cônsul em Boston. Compareceram pessoas representativas da comunidade, como o pároco da Igreja São Tarcísio, vários comerciantes locais e as imprensas norte-americana e brasileira. A pergunta que ficava no ar era, porém, evidente: em uma cidade com predominância tão grande de imigrantes oriundos de Governador Valadares, por que Santa Luzia? Dois anos depois, em 1997, já o cônsul e o vice-cônsul no Consulado Brasileiro em Boston haviam mudado e a Associação de Cidades Irmãs permanecia apenas como figura jurídica, congregando muito pouca gente entre os brasileiros imigrantes. 45 TERSEA SALES Em compensação, começavam a surgir novas organizações, algumas como conseqüência de campanhas bemsucedidas e que, ao longo do tempo, terminaram se institucionalizando, como a Brazilian Children Foundation, fundada em 1996 por um imigrante oriundo de Ipatinga – município vizinho de Governador Valadares, em Minas Gerais –, cuja missão era dar apoio a crianças necessitadas no Brasil (diga-se, região do entorno de Governador Valadares).2 Alguns anos depois, mais uma organização havia sido fundada em Framingham, vinculada à Paróquia de São Tarcísio. Era o Centro Bom Samaritano, sediado em um novo prédio no centro da cidade, com a finalidade principal de dar assistência, em termos de moradia e emprego, aos novos imigrantes. Mais adiante esse novo prédio, o Arcade, onde hoje 90% das salas são ocupadas por negócios de brasileiros, voltará à cena. Minha vinculação a Boston, sobretudo depois que passei um semestre como visiting scholar de Harvard em 2000, vem se renovando a cada novo seminário ou outras atividades de que participo, permitindo-me acompanhar o que acontece na comunidade brasileira. Assim, em dezembro daquele ano, fui à inauguração da sede de mais uma organização de brasileiros em Framingham, a Brazilian American Association – Bramas, que havia sido fundada em 1998. À frente da sua fundação – juntamente com outros negociantes da cidade – o primeiro presidente da Bramas era um comerciante do centro de Framingham dos mais ativos e com uma história de ascensão social comum aos brasileiros imigrantes na região de Boston: valadarense, imigrante ilegal inicialmente e que trabalhou em vários serviços não qualificados em restaurantes e construção, até se estabelecer com sua loja no centro de Framingham. A Bramas é uma organização sem fins lucrativos, cuja principal missão é organizar os brasileiros para formar uma identidade e ter plena participação na sociedade norteamericana. Em fins de 2004, sob nova direção (de uma valadarense), a associação conseguiu ajuda de estudantes voluntários do Massachusetts Institute of Technology – MIT3 , que fizeram uma pesquisa com 400 moradores da região Metrowest para determinar as necessidades da comunidade brasileira. Baseado nessa pesquisa, o conselho da associação sugeriu a criação de vários comitês nas áreas de business, saúde, cultura, cidadania, família, educação e jovens. Ainda em 2004, depois de várias negociações também coordenadas por comerciantes brasileiros do centro de Framingham e ficando comprovado o não cumprimento dos acordos feitos anteriormente com a cidade de Santa Luzia, foi firmado um novo acordo de Cidades Irmãs entre Framingham e Governador Valadares. Dessa vez, o processo foi conduzido com trâmites mais cuidadosos e precedido da visita de uma comitiva governamental de Framingham a Governador Valadares, resultando em parecer favorável à assinatura do acordo. O Comitê de Cidades Irmãs – Sister City Committee – é dirigido por uma brasileira muito orgulhosa de sua origem valadarense e dona de uma das lojas de destaque na Concord St., principal rua do centro de Framingham. Essa mesma imigrante, em 1995, me contava em sua entrevista sobre o apreço que os poderes públicos daquela cidade tinham pelos brasileiros: Está vendo as calçadas da rua? As da frente de lojas de brasileiros já estão todas limpas da neve, enquanto as demais estão ainda esperando o serviço público da prefeitura. É por isso que somos muito bem vistos aqui pela prefeitura e pelas pessoas da comunidade. Naquela época já se sabia, pela imprensa norte-americana, que: naquele centro da cidade, sinais de decadência estavam por toda parte – lojas vazias, calçadas sujas e pessoas vendendo drogas em esquinas escuras. Então os novos habitantes começaram a chegar em torno da última década, com seus sonhos de uma nova vida. Eles vinham de Porto Rico, Costa Rica, Guatemala e Brasil – especialmente Brasil. Alguns encontraram trabalho como operários de construção, jardineiros e garçons. Outros, tendo juntado algum dinheiro desses empregos, alugaram as lojas vazias, limparam suas calçadas e, com a sua presença, ajudaram a expulsar os vendedores de drogas. Hoje, o novo centro da cidade, com menos crime e mais lojas, levanta-se como um símbolo palpável da mais recente mudança histórica na demografia de Framingham desde a chegada dos irlandeses que vieram trabalhar na indústria têxtil daquele município [...] Agora são os brasileiros, liderando uma onda de nescomers de outro hemisfério, a forjar uma nova identidade em Framingham para o próximo século (BOSTON GLOBE, 11 dez. 1994). Ao início de minha pesquisa, em 1995, depois de circular pela primeira vez nas ruas centrais de Framingham, município que tinha então 65 mil habitantes (hoje com 69 mil, segundo dados do site sobre a cidade) e de visitar uma loja tipicamente brasileira, assim expressava o impacto que aquilo me causou: ao sair novamente à rua, apesar do frio de outono daquele final de tarde apressado em escurecer mais cedo, me sinto 46 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 44-54, jul./set. 2005 A ORGANIZAÇÃO DOS IMIGRANTES BRASILEIROS EM BOSTON, EUA res de seus salários para o Brasil e ao se beneficiarem dos programas sociais locais. Em outra ocasião, Joe Rizolli e Jeffrey Buck, ambos co-diretores da referida associação, disseram que estavam apenas preocupados com o fato de os imigrantes ilegais estarem desrespeitando as leis, referindo-se mais aos brasileiros do que a outros grupos imigrantes, porque eles eram o maior grupo de estrangeiros ilegais em Framingham, segundo estimativas da própria comunidade brasileira.5 Essa situação inusitada de xenofobia contraria totalmente a matéria do Boston Globe de dezembro de 1994, citada anteriormente, na qual os imigrantes brasileiros eram vistos como forjando uma nova identidade em Framingham para o próximo século. Naquela época não se imaginava que, uma década mais tarde, os Estados Unidos estariam sob um governo republicano que abriu espaço para esse e outros tipos de manifestações de intolerância para com os imigrantes. Desde o desencadeamento desse movimento antiimigrante brasileiro em Framingham, os brasileiros ali residentes têm lidado em seu dia-a-dia com esse fantasma de forças contrárias que estão à espreita em plena luz do dia. A presidente atual da Bramas não tem dúvida de que esse movimento representa não apenas o pensamento dos dirigentes daquela associação, mas também de uma ampla camada dos habitantes da cidade, sobretudo daqueles residentes no lado norte. Esta região é predominantemente residencial e seus moradores desfrutam de melhor qualidade de vida. A população é constituída, sobretudo, pelos descendentes dos mais antigos moradores locais, com idade média mais avançada do que os demais habitantes (SALES, 1999). Já no lado sul da cidade, estabeleceramse originalmente as indústrias, seguindo as obras de infraestrutura ao longo dos trilhos da ferrovia. Nesta área, a classe operária passou a morar no início do surto industrial de Framingham, em finais do século 19 até meados do 20. Depois foram os porto-riquenhos e asiáticos que foram morar ali. Essa parte da cidade caracteriza-se pelo predomínio de uma população mais pobre, mais jovem e não americana; é nesse local que mora a maioria dos imigrantes brasileiros. O clima republicano repressivo que predomina nos Estados Unidos, desde a primeira eleição de George W. Bush e sobretudo depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, é um fator que favorece tais manifestações de xenofobia. A declaração de Bush, de que o objetivo de seu governo é deportar, sem exceção, todas as pessoas que entram ilegalmente no país, foi destacada pela imprensa norte-americana. brasileirinha da silva. Tão brasileira depois daquela coxinha de galinha e daquele suco de caju, que estranhei quando, na rua, me deparei com dois autênticos nativos conversando em inglês (SALES, 1999, p. 47). Dez anos depois, os brasileiros estão ainda mais fortes no centro de Framingham, considerada sua Governador Valadares de clima temperado, mas estão pagando um preço muito alto por isso. AMERICANOS CONTRA BRASILEIROS Framingham é conhecida por ser a maior Town de Massachusetts, – incorporada neste sistema desde 1700 –, pois todas as demais cidades do seu tamanho são constituídas administrativamente como cities. As várias tentativas de mudança de regime de governo local de Town para City nunca prosperaram. Ali se elege não um prefeito, mas sim uma espécie de Conselho de Cidadãos, o Town Meeting, que, por sua vez, elege cinco selectmen, entre os quais um é escolhido como town manager. O Board of Selectmen e o Town Manager formam o Poder Executivo da cidade e o Town Meeting corresponde ao Poder Legislativo. A cidade é dividida em 18 Precincts (distritos eleitorais) e existem 12 membros do Town Meeting que representam cada distrito, totalizando, portanto, 216 representantes do Poder Legislativo na cidade, com mandato de três anos, sendo que a cada ano quatro são eleitos. Essa forma de governo da cidade difere daquela de uma Open Town Meeting, mais semelhante às antigas cidadesestado, em que cada residente pode votar no Town Meeting.4 Atualmente, dois brasileiros fazem parte do Town Meeting. Na mesma ocasião em que esses brasileiros foram eleitos, um cidadão norte-americano, Joe Rizolli, hoje muito conhecido de toda a comunidade brasileira, também se candidatou mas não obteve o número de votos necessários para ser eleito. Quem é esse senhor? Em finais de 2003, Joe Rizolli, co-fundador do Concerned Citizens and Friends of Immigration Law Enforcement, um grupo que se opõe publicamente à imigração ilegal, declarou em uma reunião do Board of Selectmen de Framingham que a cidade tem sido “raped” pelos imigrantes brasileiros. “Rape” significa em português raptar, estuprar, saquear. Nos Estados Unidos, o verbo é mais comumente usado para designar o seu sentido mais duro: estuprar. Outras pessoas do mesmo grupo afirmaram que os imigrantes brasileiros estavam drenando a economia local, ao enviarem mensalmente milhares de dóla- SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 44-54, jul./set. 2005 47 TERSEA SALES 31 casas de comércio ou de serviços de brasileiros, a maioria no centro de Framingham: cinco restaurantes; cinco cabeleireiros; quatro lojas de vendas de passagens e transporte; quatro lojas de seguros; quatro de produtos brasileiros e remessas; três oficinas mecânicas; duas joalherias; uma boutique; uma padaria; uma loja de eletrodomésticos; e um escritório de contador. Essa quantificação foi possível, na época, por meio de uma listagem cedida pelo responsável pela distribuição de jornais brazucas, que se destinam a todos os locais por onde circulam brasileiros. Para a pesquisa atual, recorreuse a uma publicação também distribuída gratuitamente nas lojas e outros locais freqüentados por brasileiros. Tratase de uma lista amarela, a Brazilian Superlist, que abrange os Estados de Califórnia, Connecticut, Flórida, Georgia, Massachussetts, New Jersey, New York, Pennsylvania e Outros Estados.7 Na Brazilian Superlist de 2005 foram identificadas 71 casas de comércio ou de serviços de brasileiros, a maioria também no centro de Framingham; ou seja, nesses últimos dez anos, o número de comércios e serviços de brasileiros mais do que duplicou. Desses estabelecimentos, 40% estão localizados na principal rua do centro de Framingham – a Concord St., onde fica a prefeitura – e 22% em outras ruas igualmente centrais – a Union St. e a Hollis St. Além desse aumento, observou-se também uma maior diversificação nos ramos de atividade.8 O edifício Arcade, situado num espaço nobre da Concord St., é sede de várias dessas atividades de comércio ou serviços. Com 90% de suas salas alugadas por brasileiros, incluindo consultórios, lojas, sedes de duas das organizações de brasileiros (a Bramas e o Centro Bom Samaritano, que aliás não constam na Brazilian Superlist), é um exemplo do processo de valorização dos imóveis no centro de Framingham. Segundo a atual presidente do Bramas, o uso desse edifício irá mudar, sendo ampliado e parcialmente destinado a residências. Os aluguéis atualmente pagos pelos negociantes e profissionais brasileiros, em torno de US$ 300 por mês, passariam para US$ 1.400 a US$ 1.800. A maioria dos atuais brasileiros do Arcade certamente não terá recursos para arcar com esse valor e o contrato de locação prevê apenas um aviso de 30 a 60 dias para desocupação das salas. A presidente da Bramas é pessimista quanto à situação não apenas dos brasileiros do Arcade mas também de outros negociantes do centro da cidade, pois, segundo ela, esse é o início de um movimento de retomada pelos nativos de seu centro da cidade. Há contudo opiniões contrárias às dela, que afirmam que O movimento anti-imigração de Framingham não só faz parte desse clima republicano repressivo, como também é conseqüência da maior visibilidade e organização dos brasileiros imigrantes, o que não acontece em outras cidades da Grande Boston, onde os brasileiros têm também forte presença, mas não aparecem tanto quanto em Framingham. Esse destaque dos imigrantes brasileiros resulta, por sua vez, de dois fatores principais: a organização dos brasileiros imigrantes e a revitalização do centro da cidade e conseqüente revalorização de seus imóveis. É como se os antigos habitantes estivessem a dizer: “vão embora, vocês já cumpriram sua parte, agora queremos o centro da cidade de volta para nós”. Esses dois fatores estão inter-relacionados, pois a organização dos brasileiros passa também pela sua forte presença enquanto negociantes bem-sucedidos no centro da cidade. Antes mesmo da fundação da Bramas e da Associação de Cidades Irmãs Framingham-Governador Valadares, vários brasileiros já há cerca de uma década, começaram a participar ativamente em outras organizações norte-americanas da localidade, como nas escolas públicas, na South Middlesex Oportunity Council – SMOC, na South Middlesex Area Chamber of Commerce – SMACC ,6 e em associações como Rotary, Lyons e Maçonaria. Mais recentemente, como já mencionado, dois brasileiros foram eleitos para o Poder Legislativo da cidade. Numa localidade com mais habitantes, como é o caso do município de Boston, essa presença brasileira ativa não teria tanto destaque quanto em Framingham. Há atualmente um enorme ruído entre os líderes de comunidade de Framingham: desencontros de informações e intrigas, que poderiam indicar um retrocesso na organização da comunidade. Há relatos sobre pessoas que se desencantaram e abandonaram o trabalho comunitário e de um líder comunitário que simplesmente se desorganizou psiquicamente. Entretanto, se alguns saem do movimento, são muito mais os que entram, os que se mobilizam; afinal, a discórdia nem sempre determina o fracasso, servindo, muitas vezes, para apurar os processos organizativos e definir melhor as lideranças. Foi assim, por exemplo, em relação a uma outra organização de brasileiros de Boston (hoje possivelmente a de maior destaque entre os imigrantes brasileiros da Boston Metropolitana): o Centro do Imigrante Brasileiro. Quanto ao segundo fator de visibilidade dos imigrantes brasileiros – a revitalização do centro da cidade e conseqüente revalorização dos imóveis ocupados pelos imigrantes –, foram identificadas, na pesquisa de 1995, 48 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 44-54, jul./set. 2005 A ORGANIZAÇÃO DOS IMIGRANTES BRASILEIROS EM BOSTON, EUA modernidades do padre brasileiro, interpretando o incidente da bandeira como um sinal de que os brasileiros estavam querendo tomar conta daquela igreja que eles haviam construído com muito esforço. Porém, esse foi apenas o começo. Logo outros padres foram chegando e descobrindo as igrejas construídas pelos italianos, irlandeses, latinos da América Central e do Sul e foram abrindo mais espaços para suas missas e atividades comunitárias em português. Do lado dos protestantes, um pastor da Igreja Assembléia de Deus tinha construído, em 1993, um enorme templo para 2 mil pessoas, em Somerville; em 1994, outro pastor havia comprado um prédio de três andares de um antigo convento católico dos padres beneditinos, no bairro de Charlestown, em Boston, para instalar a Primeira Igreja Batista Brasileira da Grande Boston. Nas dependências dessa igreja Batista foi criado, em 1995, o Brazilian Community Center, que, com os parcos recursos de um grant inicial de US$ 5,000.00, destinavase a aulas de inglês e de computação, bem como à distribuição de roupas e alimentos em razão do Natal que se aproximava. Entretanto, os objetivos do centro eram bastante abrangentes e sua inauguração foi pomposa, contando com a presença do cônsul brasileiro e de várias lideranças comunitárias. Esse centro teve porém vida curta, como aconteceu também com uma outra organização que, durante a minha pesquisa em 1995, era muito atuante na região de Boston: o Brazilian Professional Network. Diferentemente das demais, que foram todas iniciativas de brasileiros, essa organização foi fundada por um advogado norte-americano (casado com uma brasileira), tendo porém como público-alvo os brasileiros, sobretudo os emergentes negociantes dos centros de Framigham, de Somerville e dos bairros de Allston e East Boston, em Boston. A principal atividade dessa organização era promover reuniões mensais para tratar de assuntos de interesse da comunidade. Contando sempre com um ou mais expositores convidados, eram abordados temas diversos, tais como promoção de contatos com organizações hispânicas, divulgação dos resultados do Censo Americano de 1990, exposição de uma linha de créditos do BankBoston para imigrantes (quando o então presidente do banco era o brasileiro Henrique Meireles) e promoção de um contato com o deputado federal Joe Kennedy. Esse advogado, que hoje colhe os dividendos desse investimento, é um atuante profissional vinculado aos brasileiros e possui escritórios em Framingham e Boston. No Brazilian Superlist, ele dispõe de uma página inteira, onde abaixo de seu nome o proprietário do prédio tem conversado com os atuais inquilinos, assegurando-lhes prioridade no aluguel das novas salas. O tempo dirá quem tem razão. Ainda estão faltando estudos que, à semelhança daqueles que mostram a revitalização de centros decadentes e despovoados pelas chamadas “empresas étnicas” dos imigrantes (HALTER, 1995), apresentem agora sua outra face: o processo de retomada, pelos nativos descontentes, dos centros reconstituídos pelos imigrantes, com a justificativa de presença de estrangeiros ilegais em seu território, ou, em outros casos, de uma afirmação étnica de gerações já estabelecidas. A situação não apenas nos Estados Unidos, mas também nos países receptores de imigrantes, entre os quais o caso da França é o exemplo paradigmático, aponta um quadro sombrio para o futuro imediato. ORGANIZAÇÕES – BALANÇO DE DEZ ANOS Como a maior parte dos imigrantes que chegam em um país estrangeiro, os brasileiros também procuraram inicialmente, na região de Boston, o conforto das igrejas. Uma das igrejas católicas procurada pelos brasileiros foi a de Santo Antônio, em Cambridge, construída pelos portugueses e com as missas celebradas em português por um dos primeiros padres que chegaram a Boston para atender à comunidade brasileira. Os pastores protestantes de várias denominações, por sua vez, foram chegando, celebrando os cultos em lugares improvisados e, posteriormente, juntando dinheiro da própria comunidade para a construção de suas igrejas. Esse foi o marco inicial da organização dos brasileiros. Além do conforto espiritual, os imigrantes também encontram nas igrejas um espaço de sociabilidade e de ajuda, com indicações para suas demandas mais imediatas de moradia, trabalho, escolas para os filhos e serviços de saúde. Com o padre brasileiro em Cambridge, as missas passaram a ter um ritual mais moderno e alegre, com as músicas acompanhadas por guitarra e os brasileiros se confraternizando ao final, no salão paroquial, com café e pão de queijo. Entretanto, numa comemoração do 7 de setembro, o padre resolveu fazer uma missa ainda mais festiva e providenciou uma bandeira do Brasil para ser colocada ao lado das outras já existentes de Portugal e dos Estados Unidos. Por infelicidade, a bandeira brasileira era maior do que a portuguesa e isso foi a gota d’água para um certo descontentamento dos portugueses, que constituíam uma comunidade mais velha que não andava satisfeita com as SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 44-54, jul./set. 2005 49 TERSEA SALES lho voluntário nessa organização. Dessa experiência nasceu a idéia de fundar uma organização para os próprios brasileiros. Com a orientação de uma iraniana (casada com um brasileiro) que fazia parte da IWRC, ele iniciou o Centro do Imigrante Brasileiro, em março de 1995. Logo depois, em abril do mesmo ano, um outro jovem que tivera problemas trabalhistas na empresa de lasdscape, onde trabalhava, recorreu ao Centro, resolveu seu problema e passou a fazer ali trabalho voluntário. Quando os entrevistei, em finais de 1995, ambos eram igualmente comprometidos com o trabalho e estavam fazendo um curso oferecido pela Universidade de Massachusetts, destinado ao treinamento de líderes comunitários sobre desenvolvimento e leis norte-americanas de imigração. Nessa época, o Centro não tinha sequer uma sede e dispunha apenas de uma mesa e um telefone numa sala onde funcionava uma representação da Massachusetts Agence for Portuguese Speakers – MAPS e um curso de inglês para brasileiros, no centro de Allston, um dos bairros de concentração de brasileiros em Boston. Nessa época, eles contavam com algum dinheiro que haviam arrecadado em uma festa e com uma equipe de advogados norte-americanos que trabalhavam voluntariamente para comunidades imigrantes e podiam ser acionados para os casos difíceis, pois nos mais simples os acordos podiam ser conseguidos por meio de telefonema deles próprios, geralmente em inglês, para um entendimento com o empregador. Ainda sem registro próprio, o Centro conseguiu, em outubro de 1995, o seu primeiro Grant, pela intermediação da mesma iraniana que havia dado a mão generosa em sua fundação. Aos dez anos de existência do Centro do Imigrante Brasileiro, apenas o seu fundador, entre os cinco membros que participavam no início, permanece como diretor executivo. Nesses anos, foram muitas as dissensões, mas também muitos os apoios vindos de todo lado. Hoje o Centro tem uma organização consolidada por um Board of Directors de nove membros, um staff de seis membros (três trabalhando em tempo integral e três em tempo parcial) e tem recebido suporte financeiro de cerca de doze fundações norte-americanas. Sua missão é a defesa da comunidade brasileira em Massachusetts em questões de educação, direitos trabalhistas – seu principal foco de atuação – e outros direitos do imigrante. Nesta última pesquisa, entrevistei o diretor executivo de outro Centro com uma missão semelhante à do Centro do Imigrante Brasileiro, de Allston, mas que é mais recente e atende sobretudo à comunidade brasileira da re- está escrito “o advogado dos brasileiros”, citando sua especialidade: acidentes de automóvel, acidentes de pedestres, mordidas de cachorro (sic) e acidentes em geral. A Bramas, de certa maneira, veio substituir a Brazilian Professional Network, pois originou-se entre os negociantes brasileiros de Framingham que tinham presença marcante nas reuniões mensais dessa última organização. As duas organizações que vi nascer em 1995 e que comemoraram seus dez anos em 2005 foram o Grupo Mulher Brasileira e o Centro do Imigrante Brasileiro, ambos situados no bairro de Allston, em Boston, e com as mesmas pessoas à frente desde então. O Grupo Mulher Brasileira, segundo sua diretora executiva, conseguiu se manter nesse período mas não deu o “pulo do gato”, tal como o Centro do Imigrante Brasileiro, porque não teve ainda condições de ter um pessoal fixo remunerado para desenvolver as atividades, sendo que todo o trabalho é voluntário, com exceção da recente contratação de uma pessoa para trabalhar dez horas por semana, que ficará por dez meses. Apesar de a presidente do grupo ser a única que o freqüenta com regularidade, não houve, segundo ela, um afastamento total das participantes, que sempre aparecem em ocasiões especiais, tais como nas palestras e eventos, colaborando quando podem. É um grupo que está sempre presente nos eventos da comunidade e esteve à frente da organização de todos os Festivais da Independência do Brasil, em Boston, desde que este começou, há dez anos. O contato com as universidades e com estudantes e alguns professores brasileiros vem trazendo benefícios para essas organizações; dentre estas, algumas se beneficiaram desse contato de uma forma mais efetiva, por meio de projetos em parceria com a Universidade de Massachusetts de Lowel. No Centro do Imigrante Brasileiro há um projeto com jovens na área de saúde e segurança no trabalho; e no Grupo Mulher Brasileira é desenvolvido um projeto de formação de uma cooperativa de faxineiras. Essas parcerias propiciam, além da verba para realização dos projetos, também um intercâmbio frutífero da academia com as organizações comunitárias. O Centro do Imigrante Brasileiro foi concebido, em 1995, por um jovem idealista a partir de sua própria experiência migratória. Tendo chegado a Boston em 1988, seu primeiro emprego foi em uma companhia de limpeza, onde teve problemas trabalhistas e recorreu a uma organização criada para atender aos imigrantes latinos, a Immigration Work Result Center – IWRC. Resolveu seu problema na empresa e, a partir daí, passou a fazer traba- 50 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 44-54, jul./set. 2005 A ORGANIZAÇÃO DOS IMIGRANTES BRASILEIROS EM BOSTON, EUA gião de East Boston. Trata-se do Centro do Trabalhador Brasileiro, sediado em uma das salas do prédio do Serviço Social de East Boston desde 2004, e antes disso em uma igreja católica da região.9 A gênese desse Centro vem da atuação de uma brasileira imigrante que hoje está de volta ao Brasil, mas que, em 1995, quando fiz a pesquisa, era uma pessoa muito atuante na área de East Boston. Na época ela era vinculada a um Conselho Ecumênico da Comunidade de East Boston e foi lá que começou sua atuação voltada para os brasileiros. O Centro do Trabalhador Brasileiro foi criado em 2000 por essa imigrante e um norte-americano de Cambridge, com a ajuda da Igreja Católica, tendo então o nome de Ana da Hora Work Center. Em 2002, mudou para a denominação atual. Assim como o de Allston, esse Centro também é mantido principalmente por fundações norte-americanas e secundariamente pelos recursos das aulas de inglês; funciona com um staff fixo (nesse caso, somente o diretor executivo em tempo integral e uma secretária em tempo parcial) e um Conselho de Diretores que se reúne regularmente. Aliás, as atividades dos dois Centros são muito semelhantes, atendendo prioritariamente a demandas trabalhistas e mantendo cursos de inglês que procuram principalmente preparar o trabalhador para as situações cotidianas no trabalho. Ambos têm alguma aproximação com os sindicatos, sobretudo o de Limpeza, que hoje possui mais de mil brasileiros associados, e o de Pintores. Outras atividades comuns não somente a esses Centros, mas também ao Grupo Mulher Brasileira, são as palestras sobre assuntos de interesse da comunidade (com destaque para o tema da imigração) e a participação em campanhas – em geral realizadas em conjuntos com outros grupos imigrantes – pela legalização, por carteira de motorista, pelo acesso à escola e outras. O fator que diferencia aqueles dois centros de objetivos tão semelhantes é menos a abrangência e o tamanho – o que favorece mais o Centro do Imigrante Brasileiro, até por ser cinco anos mais antigo do que o outro – do que algumas outras características de sua atuação, que têm a ver em parte com a trajetória de seus dois dirigentes. O diretor executivo do Centro de Allston saiu do Brasil (Espírito Santo) com o segundo grau completo, e, nos Estados Unidos, trabalhou como imigrante ilegal em serviços não qualificados até conseguir recursos para o Centro que pudessem mantê-lo por tempo integral. Sua esposa ainda trabalha como faxineira em Boston. Já o diretor executivo do Centro de East Boston é administrador de empresas formado em São Paulo, está em Boston há cinco anos, veio SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 44-54, jul./set. 2005 como turista para estudar inglês, tornando-se voluntário do Centro logo que chegou, em 2000. Depois disso voltou ao Brasil, providenciou a documentação e retornou, em 2001, tornando-se diretor executivo, em 2002. Voltou novamente ao Brasil, casou-se e trouxe a esposa, que é formada em Letras na USP e dá aulas de português para norte-americanos. O primeiro tem uma postura de militância, de missão a cumprir, enquanto o segundo possui a frieza de um profissional. Contudo, isso explica pouco o porquê das diferenças. Esse assunto será retomado na conclusão do artigo. Esse texto não abrange todas as organizações de brasileiros imigrantes em Boston, que são em maior número do que as aqui mencionadas. Foram abordadas tão somente aquelas com as quais tive oportunidade de manter contato e que me forneceram subsídios suficientes para as conclusões a seguir. Porém, antes de chegar às conclusões, vale fazer ainda rápidos comentários sobre algumas outras organizações. A MAPS, que foi citada anteriormente, é um caso interessante, pois trata-se de uma organização antiga, sediada inicialmente em Somerville para atender aos imigrantes portugueses, cuja migração é antiga em Boston, oferecendo vários serviços de assistência social. Quando começaram a chegar os imigrantes brasileiros, a MAPS, além de mudar de nome para poder abranger também os brasileiros, foi estendendo cada vez mais sua atuação para esses newcomers, contratando inclusive brasileiros para essa finalidade. Hoje a entidade ainda presta serviços aos portugueses, entretanto, como seu público beneficiário e os funcionários são principalmente brasileiros – e em grande quantidade –, a agência já tem quatro sedes na região metropolitana de Boston. Entre as organizações dos imigrantes brasileiros, existem algumas que são especialmente voltadas para atividades culturais. É o caso do grupo de Capoeira fundado pelo baiano Deraldo, em Cambridge, e de um teatro financiado pela TAM. Quem for nas férias de verão a Harvard Square (o movimentado centro daquela cidade tão universitária), verá que, entre as várias performances e shows que ali se apresentam ao ar livre para deleite dos passantes, tem sempre um grupo de capoeira, que é hoje uma das marcas culturais do Brasil pelo mundo afora. Recentemente, quando esteve em Boston para um diálogo com a comunidade brasileira, o ministro da Cultura Gilberto Gil propôs que um Ponto de Cultura fosse montado no Grupo de Capoeira de Deraldo. Essa proposta foi criticada por um de meus entrevistados, que trabalha como diretor de pesquisa da Prefeitura de Boston, pelo fato de 51 TERSEA SALES o ministro não ter entrado em contato com a Prefeitura para planejar melhor esse Ponto de Cultura de Boston. Um horizonte que se vislumbra para a expansão das atividades culturais e organizativas da comunidade brasileira em Boston é uma proposta que está em estudo e que foi discutida no recente encontro de lideranças. Trata-se da disponibilização de um prédio, atualmente pertencente a uma escola da Paróquia de Santo Antônio que está sendo desativada, para atividades da comunidade brasileira. A idéia inicial é que se juntem lá organizações, como o Grupo Mulher Brasileira, o Centro do Imigrante Brasileiro, o Grupo de Capoeira de Deraldo, e aos poucos o espaço seja transformado também em um Centro Cultural Brasileiro. Isso implica arcar mensalmente com os custos do aluguel de um prédio que vale 30 milhões de dólares, chegar a um entendimento entre os possíveis ocupantes do prédio e realizar uma programação cultural que suporte parte das despesas. Será que os grupos organizados dos brasileiros imigrantes em Boston já estão preparados para esse desafio? do Trabalhador Brasileiro, em East Boston. A entrevista com o diretor de pesquisa da prefeitura de Boston deu pistas para uma possível interpretação. Tudo indica que essas fronteiras têm a ver, principalmente, com uma bagagem cultural que os brasileiros levaram consigo do Brasil e reproduzem lá fora nas suas organizações. Aqui no Brasil existe uma tradição muito arraigada dos grupos da sociedade civil se organizarem politicamente, com objetivos de mudanças estruturais freqüentemente inalcançáveis em curto prazo. Já nos Estados Unidos, a tradição é de as organizações sem fins lucrativos se voltarem unicamente para a prestação de serviços, sem nenhum conteúdo político. A MAPS, por exemplo, cuja expansão tem sido notável em Boston, tem essa visão muito clara e vem conseguindo apoio do governo norte-americano e das diversas fundações que lhe dão suporte financeiro. Por sua vez, as associações fundadas por brasileiros, se, por um lado, têm um nível de organização política invejável, tendo conseguido inclusive motivar a ida de três ministros do governo Lula para debater os problemas da comunidade, por outro, são muito frágeis no sentido da obtenção dos recursos financeiros disponíveis no governo e nas fundações norte-americanas, exatamente pela dificuldade de se organizarem em termos de prestação de serviços. Isso talvez explique a impressão que me ficou do encontro de lideranças e das entrevistas: é como se houvesse um certo hiato entre a comunidade dos imigrantes brasileiros que estão na labuta diária de um trabalho duro, construindo sua auto-imagem de povo trabalhador, e a “comunidade dos líderes”. A primeira pode até se organizar, porém, quando o faz é mais freqüentemente pelas igrejas. Estas sim têm uma ampla base de apoio nos grupos comunitários que organizam e pelos serviços que prestam, oferecidos sobretudo pelas igrejas evangélicas. Os estudantes brasileiros às vezes se entusiasmam quando assistem às reuniões das lideranças e se propõem a ajudar a comunidade. No fundo, o que os entusiasma é compartilhar do clima de mobilização política, que em geral se acirra em momentos de campanhas por alguma reivindicação, como a legalização, a anistia, em que os líderes brasileiros, às vezes com uma base social muito menos sólida do que outros grupos imigrantes, se colocam à frente das lutas, exatamente por causa dessa bagagem que levaram consigo do Brasil. Líderes sem base? Já ouvi por mais de uma vez um dos mais articulados membros desse grupo de líderes afirmar que ele não se considera líder porque não tem uma base, quase como uma autocrítica e uma chamada para a cons- CONCLUSÃO Uma leitura da descrição feita até aqui dos grupos organizados – ou, em outros termos, das Organizações NãoGovernamentais – de brasileiros imigrantes em Boston mostra, ou pelo menos indica, alguns detalhes que podem dar subsídios para responder à pergunta colocada no final do parágrafo anterior. Até agora os brasileiros têm dado passos importantes na sua organização. Em Framingham, pela dimensão muito mais reduzida da cidade em comparação com Boston, há alguns anos eles já deixaram de ser uma população invisível,10 a ponto de começar a despertar reações anti-imigrantes. Em Boston, eles se destacam sobretudo nos bairros de Allston e East Boston, mas isso não desencadeou as conseqüências vistas em Framingham. Alguns grupos conversam entre si, como é o caso do Grupo Mulher Brasileira, do Centro do Imigrante Brasileiro e da MAPS. Há porém uma grande distância deles em relação aos grupos de Framingham, cuja dinâmica é muito mais circunscrita à chamada região Metrowest.11 Porém, mesmo em Boston, os grupos de Allston têm uma relação muito tênue com os de East Boston. Seguramente, não é apenas a localização espacial que está marcando essas fronteiras e tampouco a origem social de seus dirigentes, tal como poderia parecer à primeira vista na descrição feita na sessão anterior sobre os Centro do Imigrante Brasileiro, em Allston, e do Centro 52 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 44-54, jul./set. 2005 A ORGANIZAÇÃO DOS IMIGRANTES BRASILEIROS EM BOSTON, EUA Voltando à pergunta colocada anteriormente, se os brasileiros estão preparados para enfrentar o desafio de arcar com um Centro Cultural que abrigue várias atividades e tenha uma presença física marcada no espaço territorial de Boston, acredito que estão a caminho disso e só chegarão lá à medida que enfrentarem o próprio desafio. Esse prédio pode justamente dar uma oportunidade de ouro para um aprendizado importante para os líderes comunitários brasileiros, que é a de se organizarem para uma atuação nas áreas de prestação de serviços, fundamental para lhes propiciar recursos financeiros e alargar sua base de apoio. Fazer isso sem perder o lado combativo da luta política que levaram na bagagem do Brasil talvez seja a síntese que dará a marca das organizações brasileiras nos próximos dez anos. ciência dessa situação por parte dos demais. Essas lideranças formam uma espécie de classe média lá, distanciada da classe que no Brasil era média e lá vira classe trabalhadora. E, nos Estados Unidos, é essa classe trabalhadora que tem legitimidade para abrir uma organização não-governamental de imigrantes e não a classe média politizada. Daí o porquê dessa pessoa, que não se considera líder por não ter uma base na comunidade, sabiamente, ter buscado o Centro do Imigrante Brasileiro. O diretor executivo desse Centro também comunga do sentido político da organização, mas, ao mesmo tempo, pela sua profunda identidade com os trabalhadores e com a igreja Evangélica, consegue fazer a transição do político para o social e isso é o segredo do sucesso do Centro por ele dirigido. A classe média politizada, que é constituída pelos chamados líderes, no decorrer desses últimos dez anos, vem se articulando não apenas entre si nas suas próprias reuniões e mobilizações políticas, como também na órbita do Consulado brasileiro de Boston. A atuação do consulado foi diferente segundo os quatro cônsules que estiveram (ou do que está atualmente) à sua frente. O primeiro teve uma atuação pouco destacada e o vice-cônsul era a pessoa mais ativa, que inclusive antecipou a proposta do Consulado Itinerante quando ia às localidades mais distantes, sobretudo Framingham, para atender a demandas da comunidade. Foi daí que nasceu seu vínculo com aquela cidade, que o levou à proposta da criação do Conselho de Cidades Irmãs com Santa Luzia. O segundo cônsul institucionalizou a proposta do Itamaraty de criação do Consulado Itinerante e do Conselho de Cidadãos. Foi com ele que se iniciou um contato mais direto com os líderes de comunidade, o que teve continuidade e foi aprofundado com o terceiro cônsul. Este tinha duas pessoas no próprio Consulado que eram mais diretamente vinculadas à comunidade dos líderes, participando de suas reuniões e, às vezes, de manifestações políticas. Já o último cônsul é muito criticado pelas lideranças politizadas, por ter adotado uma postura de afastamento em relação à comunidade dos líderes e dado prioridade à eficiência no trabalho de emissão de documentos, enquanto, pelas lideranças menos politizadas e com um trabalho adstrito à prestação de serviços, ele é bem aceito. A insatisfação da classe média politizada atual talvez se explique, em parte, pelo fato desta ter tido nos Consulados anteriores uma forma de reconhecimento, que se manifestava inclusive socialmente nos eventos festivos promovidos pelo Consulado, para os quais era convidada, o que deixou de acontecer desde 2004, quando o novo cônsul assumiu suas funções. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 44-54, jul./set. 2005 NOTAS 1. Em 1993, foi feito um banco de dados com notícias da imprensa nacional e norte-americana e constatou-se que dois terços das informações da imprensa brasileira sinalizavam para fatores negativos, como ilegalidade, discriminação e criminalidade. Já na imprensa norte-americana, as notícias relativas aos brasileiros apontavam, predominantemente, fatores positivos, como o espírito empreendedor do imigrante brasileiro, casos de sucesso e a reconstrução de centros de cidade decaídos. 2. Em minha mais recente investigação, fiquei sabendo que essa Associação foi fechada há alguns anos. 3. Essa ajuda foi possível porque a atual presidente da Bramas está desde agosto de 2005 vinculada como fellow ao Center for Reflective Community Practice do Massachusetts Institute of Technology – MIT. Foi selecionada para esse Centro não por causa de sua atuação na comunidade brasileira em Framingham, mas sim por um outro trabalho que vem desenvolvendo há alguns anos com uma comunidade de rendeiras na região agreste de Pernambuco. 4. Dados retirados do site de Framingham. 5. Dados da jornalista Liz Mineo para o jornal Metrowest Daily News em 23 de novembro de 2003. 6. Framingham faz parte de uma área geográfica delimitada por fatores mais econômicos do que políticos, na qual a cidade possui posição de liderança, chamada The South Middlesex Region, ou simplesmente Metrowest. 7. Um fato curioso nessa lista amarela é que ela pode servir como uma indicação grosseira da presença de negócios de brasileiros nos Estados Unidos (e mais grosseiramente ainda dos próprios brasileiros). Massachusetts lidera de longe o número de páginas na lista (24), seguido pelos estados da Flórida e New Jersey (16 cada um), depois Connecticut (11), New York (8), Califórnia (6) e finalmente Georgia e Pennsylvania (4 cada um). 8. Esses estabelecimentos compreendem: dois açougues; três escritórios de advogados; uma agência de publicidade; uma agência de viagem; duas lojas de computadores e assistência técnica a computador; quatro revendedoras e oficinas de automóvel; quatro butiques; uma loja de carpete; uma loja de CD e vídeo; quatro escritórios de contadores; três consultórios de dentistas; dois salões de estética; uma loja de 53 TERSEA SALES MARGOLIS, M. Little Brazil: imigrantes brasileiros em Nova York. Campinas: Papirus, 1994. filmagem; uma financeira; duas floriculturas; duas lojas de fotógrafos; uma gráfica; uma imobiliária; uma imprensa; quatro joalherias; cinco consultórios de médicos; uma loja de mudanças; quatro padarias e confeitarias; duas lojas de perfumes; duas pizzarias; um posto de gasolina; duas lojas de produtos brasileiros; um consultório de fisioterapia e quiropatia; três lojas de remessas; dois restaurantes; seis salões de beleza; uma loja de vídeo-produção. METROWEST DAILY NEWS, 23 Nov. 2003. O ESTADO DE S.PAULO. São Paulo, 20 mar. 2005. Cad. Aliás. SALES, T. Brasileiros longe de casa. São Paulo: Cortez, 1999. 9. Por causa dos escândalos de pedofilia, a igreja teve que pagar muitas indenizações e por isso fechou várias igrejas, inclusive aquela onde estava sediado o Centro. ________. Brasil migrante, Brasil clandestino. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 8, n. 1, p. 107-115, jan./ mar. 1994. 10. Sobre isso, vale lembrar Maxine Margolis (1994), que se referia aos imigrantes brasileiros de Nova York como uma população invisível. SALES, T.; LOUREIRO, M. Imigrantes brasileiros adolescentes e de segunda geração em Massachusetts, EUA. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 21, n. 2, jul./dez. 2004. 11. Sobre essa região, ver nota 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOSTON GLOBE. Boston, 11 Dez. 1994. TERESA SALES: Socióloga, Professora Livre-Docente e Pesquisadora do Núcleo de Estudos de População da Unicamp. FOLHA DE S.PAULO. São Paulo, 5 maio 2005. Folha Mundo. HALTER, M. (Ed.). New migrants in the Marketplace: Boston, Ethnic Entrepreneus. Amherst: University of Massachusetts Press, 1995. Artigo recebido em 29 de julho de 2005. Artigo aprovado em 12 de setembro de 2005. 54 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 44-54, jul./set. 2005 A FORMAÇÃO DE COMUNIDADES-FILHAS NO FLUXO DE BRASILEIROS ... A FORMAÇÃO DE COMUNIDADES-FILHAS NO FLUXO DE BRASILEIROS PARA OS ESTADOS UNIDOS WILSON FUSCO Resumo: A proposta deste artigo é analisar a formação de comunidades brasileiras nos Estados Unidos como resultado do processo de organização social que facilita a adaptação do imigrante no destino. Fortemente influenciados pelas redes migratórias, os migrantes em potencial deixam de considerar muitas localidades teoricamente disponíveis e concentram-se naqueles poucos locais com os quais seu lugar de origem possui laços sociais importantes. Palavras-chave: Migração internacional. Estados Unidos. Rede social. Abstract: The purpose of this work is to analyze the formation of Brazilian communities in certain areas of the U.S.A. as a result of the social organization process which facilitates the immigrant adjustment at his/her destination. Strongly influenced by migrant networks, the potential migrants fail to consider many available places as potential destinations in order to concentrate themselves at those few places, which are connected to their place of origin through relevant social ties. Key words: International Migration. United States. Social Network. A formação de comunidades de imigrantes nos Estados Unidos é um processo amplamente registrado na literatura especializada. Massey (1987) é o único autor a usar o termo “daughter communities” (comunidades-filhas) para descrever o caso dos mexicanos na Califórnia, mas vários outros estudiosos que analisam processos semelhantes podem ser citados, como Portes (2002), que encontra “enclaves” de imigrantes sul-americanos em Los Angeles, Nova York e Washington, ou Menjivar (1997), que analisa os salvadorenhos em San Francisco. Margolis (1994), que estudou os brasileiros em Nova York, descreve uma comunidade “invisível”, principalmente em função da ausência de instituições associativas direcionadas aos brasileiros. O conceito de “rede social” na migração internacional é entendido por Massey (1987) como um conjunto de la- SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 55-63, jul./set. 2005 ços sociais que ligam comunidades de origem a pontos de destino específicos. Tais laços unem migrantes e nãomigrantes em uma complexa teia de papéis sociais complementares e de relacionamentos interpessoais que são mantidos por um quadro informal de expectativas mútuas e comportamentos predeterminados. A origem dos fluxos migratórios confunde-se com a expansão de determinadas redes sociais. Estas se consolidam e formam vias transmissoras de recursos necessários para a adaptação do migrante no destino, ao mesmo tempo em que, na origem, estimulam o migrante em potencial a ingressar no fluxo. Em consonância com a argumentação de Douglas Massey acerca da formação de comunidades-filhas entre mexicanos, este trabalho pretende mostrar algumas características da organização social própria do processo de 55 WILSON FUSCO concentração de emigrantes brasileiros em regiões específicas nos Estados Unidos. A hipótese a ser explorada é a de que a formação de comunidades de brasileiros em determinadas áreas nos EUA pode ser explicada, para além dos fatores econômicos, em função da utilização do capital social, cujos benefícios circulam por meio das redes sociais, principalmente redes de parentesco e amizade, que alimentam e regulam os fluxos continuamente. ção da ilegalidade dos migrantes. Além disso, um estudo especialmente valioso para este trabalho é a pesquisa de campo realizada com a intenção explícita de captar elementos particulares da organização social dos migrantes, e que permita a comparação entre diferentes locais de origem. Também cabe reconhecer um fator negativo das fontes de dados utilizadas. Por terem sido realizados somente em uma das “pontas” do fluxo migratório, esses estudos carregam um limite importante: algumas das informações não puderam ser obtidas diretamente dos migrantes, pois, no momento das entrevistas, estes estavam vivendo nos Estados Unidos. Na verdade, tais informações foram dadas pelos migrantes retornados ou por parentes em condições de fazê-lo. BASE DE DADOS Os dados utilizados para subsidiar este trabalho são provenientes de dois surveys – um, realizado em Governador Valadares-MG, e o outro, em Criciúma-SC. O survey realizado em Governador Valadares-MG, finalizado em julho de 1997, fez parte do projeto CNPq (MCT/Finep/ Pronex) intitulado “Imigrantes Brasileiros nos EUA – Cidadania e Identidade”; o realizado em Criciúma-SC, levado a termo em junho de 2001, foi financiado pelo projeto Fapesp “As redes sociais nas migrações internacionais: os migrantes brasileiros para os Estados Unidos e Japão”. Ambos os projetos foram coordenados pela Professora Dra. Teresa Sales e desenvolvidos no Núcleo de Estudos de População – Nepo da Unicamp. O método utilizado para o planejamento das pesquisas de campo pode ser descrito como “amostragem aleatória por conglomerados simples”. Esse processo permite inferir os resultados obtidos à população total, uma vez que todas as combinações de “n” unidades entre os “N” indivíduos da população têm a mesma probabilidade de pertencer à amostra, com erro e intervalo de confiança controlados.1 Dessa forma, podemos extrapolar os resultados das amostras e dizer que as cidades de Governador Valadares e Criciúma têm, no mínimo, 6,7% e 3,2% de suas populações com experiência migratória internacional, respectivamente. Uma vez encontrados os domicílios com migrantes internacionais, foram aplicados questionários para capturar as características sociodemográficas da população envolvida com o processo, juntamente com diversos aspectos do histórico migratório de cada indivíduo. A principal vantagem de surveys como os que foram utilizados para este trabalho é a de suprir a carência sistemática de dados oficiais representativos sobre a migração internacional de brasileiros. As fontes secundárias de dados não são capazes de captar as informações necessárias para as análises que os estudiosos da migração se propõem a elaborar – e isso acontece principalmente em fun- CONCENTRAÇÃO NO DESTINO A rota que leva aos Estados Unidos é a principal escolha dos emigrantes brasileiros. Segundo estimativa divulgada pelo Ministério das Relações Exteriores para 2001 (Tabela 1), aproximadamente 42% dos brasileiros que viviam no exterior estavam nos Estados Unidos, 23% estavam no Paraguai e 12% no Japão. Os emigrantes para Paraguai e Japão guardam características específicas aos respectivos movimentos: os primeiros têm origem na região do entorno da fronteira com o Paraguai e fixam-se na zona rural (PALAU, 2001); os dekasseguis,2 por sua vez, são cidadãos brasileiros que se enquadram nas exigências legais relativas à ascendência étnica para a obtenção do visto apropriado, concedido pelo governo japonês (SASAKI, 1999). Os brasileiros que decidem viver nos Estados Unidos carregam a marca da ilegalidade: ao mesmo tempo em que o Ministério das Relações Exteriores calcula em 800 mil os brasileiros que estão morando nos Estados Unidos, a TABELA 1 Migrantes Brasileiros, segundo País de Residência Brasil – 2001 País de Residência População % Total 1.887.895 100,00 Estados Unidos 799.203 42,33 Paraguai 442.104 23,42 Japão 224.970 11,92 Outros 421.618 22,33 Fonte: Ministério das Relações Exteriores (2001). 56 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 55-63, jul./set. 2005 A FORMAÇÃO DE COMUNIDADES-FILHAS NO FLUXO DE BRASILEIROS ... estimativa do Bureau of the Census deste país coloca esse número entre 160 e 230 mil brasileiros (UNITED STATES BUREAU OF THE CENSUS, 2000, Tabelas 3-4). É notório que o registro de brasileiros é feito somente para aqueles que têm a situação de imigrante regularizada, visto que os indocumentados não se declaram, pelo risco de prisão e deportação. O que se conclui é que a maioria dos migrantes vive de forma clandestina nos Estados Unidos. Os Estados Unidos também atraem a maioria dos emigrantes de Governador Valadares e de Criciúma. Segundo a Tabela 2, mais de 85% dos valadarenses e 60% dos criciumenses escolheram os EUA como destino em sua primeira viagem ao exterior. As proporções de migrantes com experiência nos EUA sobem respectivamente para 88,7% e 65,4%, quando são considerados também os indivíduos que, tendo inicialmente escolhido outro país em sua primeira viagem, decidem-se pelos Estados Unidos num momento posterior. Outra característica comum aos dois fluxos é que mais de 80% dos migrantes declararam estar em situação irregular nesse país. a freqüência de negativas aos pedidos de visto que vêm ocorrendo nos últimos anos por parte do consulado norteamericano no Brasil. Como conseqüência, verifica-se uma proporção muito maior de pessoas de Criciúma – 23 migrantes – seguindo para os Estados Unidos depois de passarem pelo México. Ao que indicam as mais recentes notícias veiculadas pela mídia, o fluxo de brasileiros que tentam a sorte por meio da travessia da fronteira MéxicoEstados Unidos tem aumentado continuamente. FORMAÇÃO DAS COMUNIDADES-FILHAS O que dificulta o reconhecimento preciso da distribuição de brasileiros nos Estados Unidos é a ausência de dados oficiais mais específicos sobre o destino dos emigrantes. A variável do Censo Demográfico brasileiro que registra o país de residência anterior, por exemplo, não é acompanhada de uma variável complementar para determinar em que estado e município daquele país vivia o migrante retornado. Por meio dos surveys utilizados neste trabalho, no entanto, podemos reconhecer o local de destino dos emigrantes em nível municipal. O reconhecimento dos pontos de destino mais expressivos de um determinado fluxo permite uma caracterização adicional de sua dinâmica. Para citar alguns exemplos, tome-se a comunidade brasileira em San Francisco, nos Estados Unidos. Segundo Ribeiro (1999), dados do consulado brasileiro mostram que podemos encontrar migrantes de vários estados do Brasil, mas que a concentração de goianos é a expressão mais evidente; Oliveira (2003), em sua pesquisa de campo na Flórida, encontrou brasileiros originários predominantemente do Rio de Janeiro e de São Paulo. E os indivíduos que saem de Governador Valadares e Criciúma, onde se concentram? A Tabela 3 mostra o estado de destino desses brasileiros em sua primeira viagem aos EUA. Os valadarenses concentram-se predominantemente em Massachusetts, Flórida, Nova Jersey e Nova York (Tabela 3), mas o primeiro estado é, sem dúvida, o principal destino, uma vez que agrega mais de 51% da população migrante. As pessoas originárias de Criciúma estão ainda mais concentradas em um único estado: algo em torno de 83% desses migrantes encontravam-se em Massachusetts, que é, também, a região que mais atrai valadarenses. Na verdade, o movimento de saída mais expressivo em Criciúma acontece mais de 10 anos depois do ápice verificado para o fluxo de Valadares. Dessa forma, podemos considerar que os criciumenses seguiram o caminho tra- TABELA 2 Distribuição dos Migrantes, por Cidade de Origem, segundo País de Destino na Primeira Viagem Governador Valadares e Criciúma – 1997-2001 País de Destino Total (Nos Absolutos) Total (%) Estados Unidos Cidade de Origem Governador Valadares Criciúma 1997 2001 514 505 100,00 100,00 85,60 60,00 Canadá 2,53 1,58 Portugal 2,33 10,89 Itália 0,78 14,26 México 0,19 4,55 Outros 8,57 8,72 Fonte: Pesquisa sobre Migração Internacional de Brasileiros – 1997 e 2001. Nota: Os dados desta tabela são originados dos surveys realizados em Governador ValadaresMG (1997) e/ou em Criciúma-SC (2001), ambos coordenados pela Professora Dra. Teresa Sales e descritos neste artigo no item “Base de Dados”. Em alguns casos, o caminho até os Estados Unidos passa pelo México, ou seja, alguns brasileiros tentam o ingresso nesse país pela fronteira. Note-se que até 1997, ano da realização do survey em Governador Valadares, somente um habitante dessa cidade arriscou a travessia por essa fronteira. Os criciumenses, por participarem de um fluxo muito mais recente que o dos mineiros, sofrem mais com SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 55-63, jul./set. 2005 57 WILSON FUSCO çado pelos valadarenses, encontrando uma comunidade de brasileiros em estágio de expansão no território norteamericano. TABELA 4 Distribuição dos Migrantes, por Município de Origem, segundo Cidade de Destino na Primeira Viagem para os Estados Unidos Governador Valadares e Criciúma – 1997-2001 TABELA 3 Cidade de Destino Distribuição dos Migrantes, por Município de Origem, segundo Estado de Destino na Primeira Viagem para os Estados Unidos Governador Valadares e Criciúma – 1997-2001 Estado de Destino os Total (N Absolutos) Total (%) Massachusetts Total (Nos Absolutos) Total (%) 37,60 Nova York 403 100,00 9,40 Newark 5,48 Framingham 4,96 Outras 51,86 42,56 Flórida 15,88 Nova Jersey 14,64 Cidade de Destino 11,66 Total (Nos Absolutos) Nova York Outros Total (%) 5,96 Boston Estado de Destino os Total (N Absolutos) Total (%) Massachusetts Flórida Criciúma (2001) 302 383 100,00 Boston Governador Valadares (1997) Governador Valadares (1997) Criciúma (2001) 292 100,00 58,90 Somerville 6,85 Miami 4,11 100,00 Hartford 3,42 83,08 Outras 26,72 Fonte: Pesquisa sobre Migração Internacional de Brasileiros – 1997 e 2001. Nota: Os dados desta tabela são originados dos surveys realizados em Governador ValadaresMG (1997) e/ou em Criciúma-SC (2001), ambos coordenados pela Professora Dra. Teresa Sales e descritos neste artigo no item “Base de Dados”. 5,38 Connecticut 3,85 Texas 1,92 Outros 5,77 Fonte: Pesquisa sobre Migração Internacional de Brasileiros – 1997 e 2001. Nota: Os dados desta tabela são originados dos surveys realizados em Governador ValadaresMG (1997) e/ou em Criciúma-SC (2001), ambos coordenados pela Professora Dra. Teresa Sales e descritos neste artigo no item “Base de Dados”. O município de Framingham abriga uma das mais notáveis comunidades de imigrantes brasileiros, provenientes principalmente de Governador Valadares. Segundo Bicalho (1989), 87% dos residentes em Framingham vieram do Vale do Rio Doce. Teresa Sales (1999, p. 47), que dedicou um capítulo especial à cidade norte-americana, relata o sentimento de identidade provocado pela predominância de brasileiros no local. Observando as cidades de destino com maior concentração de brasileiros (Tabela 4), destaca-se, em primeiro lugar, a cidade de Boston, que sozinha é responsável por mais de um terço das migrações de Valadares, e quase 60% do movimento de Criciúma. Para Valadares, em seguida vem a cidade de Nova York, com 9,40%; Newark, com 5,48%; e Framingham, que faz parte da região metropolitana de Boston, com 4,96%. Na Flórida, destacam-se as cidades de Pompano Beach, Deerfield Beach e Miami, porém todas com contingentes de valadarenses que representam apenas 3% dos migrantes. No caso de Criciúma, a segunda cidade de destino em importância é Somerville, que também está inserida na região metropolitana de Boston e que acrescenta quase 7% de criciumenses a essa área. Em síntese, Massachusetts e, principalmente, a região metropolitana de Boston são os locais que mais concentram os migrantes que partiram de Governador Valadares e de Criciúma. Ao sair novamente à rua, apesar do frio de outono daquele final de tarde apressado em escurecer mais cedo, me sinto brasileirinha da silva. Tão brasileira depois daquela coxinha de galinha e daquele suco de caju, que estranhei quando, na rua, me deparei com dois autênticos nativos conversando em inglês.3 Os valadarenses, portanto, formam comunidades importantes em quatro Estados dos EUA, mas a concentração de mais de 51% em Massachusetts evidencia este como o principal ponto de destino desses brasileiros. Essa informação também pode ser encontrada nos trabalhos de Sales (1999), Martes (1998) e Bicalho (1989), que pesquisaram sobre a origem dos imigrantes brasileiros nos 58 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 55-63, jul./set. 2005 A FORMAÇÃO DE COMUNIDADES-FILHAS NO FLUXO DE BRASILEIROS ... Estados Unidos. Os criciumenses aparecem ainda mais concentrados em Massachusetts que os valadarenses, mas devido ao caráter extremamente recente desse fluxo, não encontramos referências a ele na literatura especializada. Uma vez que a chegada dos brasileiros em território dos Estados Unidos acontece de forma contínua, podemos concluir que muitos migrantes seguiram paulatinamente para locais onde já se encontravam seus conterrâneos. Esse é um dos aspectos das redes sociais, que, segundo Sales (1999, p. 36) tímido entre o primeiro e o último período de primeiras viagens, passando de 12,3% para 14,4%. O que se verifica para os estados da Flórida e de Nova York é uma diminuição contínua da concentração de migrantes: com 18,9% e 18,0%, respectivamente, no primeiro período, a proporção de indivíduos que escolhem esses destinos em sua primeira viagem cai para 12,7% e 5,1% no último período. O direcionamento de fluxos migratórios para pontos específicos de destino também foi estudado por Massey (1987). Esse autor descreve a formação de comunidades de migrantes, que ele chamou de “comunidades-filhas”, como um processo intrínseco da migração. Os primeiros momentos da migração de mexicanos para os EUA comportavam uma diversidade muito maior de destinos do que nos períodos mais recentes. É um processo social que leva tempo para operar, de modo que as comunidades-filhas se desenvolvem mais devagar no início, aumentando o ritmo de crescimento quando um volume maior de migrantes passa a sustentar e alimentar as redes de forma mais consistente, fato que exerce um efeito magnético para as migrações subseqüentes. O Gráfico 1 reflete os dados da Tabela 5 e mostra a correspondência entre o processo migratório brasileiro em questão e as observações de Douglas Massey sobre a migração de mexicanos para os Estados Unidos. O desenvolvimento de comunidades estabelecidas nos Estados Unidos é um passo crucial na maturação das redes migratórias. Quando alguns indivíduos se fixam em contribuem não apenas para fornecer os referenciais do local de destino, como a acomodação inicial do imigrante e sua inserção no mercado de trabalho. A Tabela 5 mostra o estado de destino do migrante valadarense em função do período da primeira viagem aos EUA. Os dados de Criciúma não podem ser apresentados dessa forma, pois o caráter recente desse movimento concentra mais de 50% dos migrantes nos três últimos anos antes da pesquisa, indicando que o ápice ainda não foi atingido, o que inviabiliza a desagregação da informação em períodos. O fluxo de Valadares, por outro lado, teve seu auge dez anos antes da pesquisa – o que permite classificar os períodos em: aceleração, ápice e desaceleração/ estabilização. Dessa forma, vemos que Massachusetts atraiu 45,1% dos migrantes que fizeram sua primeira viagem até 1986. Essa concentração aumentou para 50,6% no segundo período, e cresceu ainda mais no período mais recente, chegando a contar com 58,5% dos migrantes que saíram do Brasil entre os anos de 1990 e 1997. O fluxo que se direcionou para Nova Jersey teve um crescimento GRÁFICO 1 Distribuição dos Migrantes, por Estado de Destino na Primeira Viagem para os Estados Unidos, segundo o Período de Migração Governador Valadares – 1967-1997 TABELA 5 Distribuição dos Migrantes, por Período de Migração, segundo Estado de Destino na Primeira Viagem para os Estados Unidos Governador Valadares – 1967-1997 Período da Migração Estado de Destino 1967 a 1986 1987 a 1989 1990 a 1997 os 122 166 118 Total (%) 100,0 100,0 100,0 45,1 50,6 58,5 Total (N Abs.) Massachusetts Flórida 18,9 13,9 12,7 Nova Jersey 12,3 16,3 14,4 Nova York 18,0 10,8 5,1 5,7 8,4 9,3 Outros Fonte: Pesquisa sobre Migração Internacional de Brasileiros – 1997. Nota: Os dados desta tabela são originados do survey realizado em Governador ValadaresMG (1997), coordenado pela Professora Dra. Teresa Sales e descrito neste artigo no item “Base de Dados”. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 55-63, jul./set. 2005 Fonte: Pesquisa sobre Migração Internacional de Brasileiros – 1997. Nota: Os dados desta tabela são originados do survey realizado em Governador ValadaresMG (1997), coordenado pela Professora Dra. Teresa Sales e descrito neste artigo no item “Base de Dados”. 59 WILSON FUSCO em “presentes/retornados” e “ausentes/exterior”. Dessa forma, os resultados da Tabela 6 referem-se de modo quase integral aos criciumenses que decidiram viver em Massachusetts, e pretendem indicar a influência do uso dos recursos das redes sociais na manutenção do status de migrante. De acordo com a Tabela 6, cerca de 56% dos criciumenses ausentes e 45% dos retornados recorreram à ajuda de terceiros para levantar os recursos financeiros necessários para realizar a empreitada; com relação à hospedagem, mais de 91% dos ausentes e cerca de 90% dos retornados solicitaram e receberam ajuda nesse quesito; a obtenção do primeiro emprego no destino foi atingida com a colaboração de parentes e amigos para mais de 86% dos ausentes e para mais de 85% dos retornados. Apesar de pequena, a diferença entre a proporção de utilização dos recursos do capital social entre retornados e ausentes pode ser verificada. Entre os que melhor se aproveitam desses recursos, esse fato poderia indicar maior propensão de manter-se no destino. As agências de recrutamento, por sua vez, não se configuram como uma fonte utilizada com freqüência para a obtenção desses mesmos recursos. De qualquer forma, podemos concluir que, para a maioria dos criciumenses, os recursos do capital social influenciam fortemente o processo de adaptação no destino – o qual, nesse caso, está cristalizado em Massachusetts. Por outro lado, devido à maior diversidade dos locais de destino, os dados de Valadares comportam a apresentação dos recursos utilizados pelos migrantes desagregados por estado. As Tabelas 7 e 8 foram construídas associando os dados sobre quem o valadarense conhecia no destino e quem lhe forneceu ajuda financeira para chegar determinados lugares, o processo migratório transformase, redirecionando os fluxos para regiões específicas (MASSEY, 1987). Visto desse modo, em todo local que se forma uma comunidade de imigrantes, a atração para novos migrantes parece um fato consumado. Mas não é isso o que pode ser observado no caso analisado. Enquanto, proporcionalmente ao total de pessoas em cada período, Massachusetts recebe cada vez mais indivíduos, decresce o número relativo de migrantes que se dirigem aos outros estados, com exceção de Nova Jersey, que mantém certa estabilidade. O que ocorre é que não basta a aglomeração de pessoas no destino para que existam os benefícios que facilitam e estimulam o ingresso de pessoas num fluxo migratório. A formação de comunidades no destino é uma condição necessária, mas não suficiente. É preciso que se desenvolvam redes de relações confiáveis unindo origem e destino, nas quais o migrante em potencial ou o retornado possam apoiar-se. As diferenças verificadas na Tabela 3 podem ser explicadas em função desse argumento, ou seja, as regiões que mais atraem migrantes são as que melhor disponibilizam os recursos do capital social presentes nas redes migratórias. CAPITAL SOCIAL E DINÂMICA MIGRATÓRIA Uma vez que Massachusetts concentra mais de 83% dos emigrantes de Criciúma que se dirigem aos Estados Unidos, as variáveis de uso dos recursos do capital social não suportam a desagregação em função dos outros estados de destino. Foi possível, no entanto, separar os migrantes TABELA 6 Distribuição das Fontes de Recursos para o Migrante em sua Primeira Viagem aos Estados Unidos, por Tipo de Recurso e Status Migratório Criciúma – 2001 Recursos Financeiros Fontes Retornado Ausente Hospedagem Retornado Emprego Ausente Retornado Ausente os 142 406 143 406 124 353 Total (%) 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Total (N Abs.) Próprios 54,2 44,0 9,8 8,4 14,5 13,9 Parentes 38,0 47,0 43,4 44,8 30,6 34,8 3,5 4,2 39,2 41,4 50,0 46,5 - 1,2 0,6 1,2 - 0,6 4,3 3,6 7,0 4,2 4,9 4,2 Amigos Ag. Recrutamento Outros Fonte: Pesquisa sobre Migração Internacional de Brasileiros – 2001. Nota: Os dados desta tabela são originados do survey realizado em Criciúma-SC (2001), coordenado pela Professora Dra. Teresa Sales e descrito neste artigo no item "Base de Dados". 60 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 55-63, jul./set. 2005 A FORMAÇÃO DE COMUNIDADES-FILHAS NO FLUXO DE BRASILEIROS ... TABELA 7 Quem o Migrante Conhecia no Destino, segundo o Estado de Destino na Primeira Viagem aos Estados Unidos Governador Valadares – 1997 Estado de Destino Massachusetts Total (Nos Absolutos) Quem Conhecia no Destino Parentes Amigos Ninguém Outra Total 100,0 208 56,3 26,0 17,3 0,4 Flórida 61 50,9 21,3 27,8 0,0 100,0 Nova Jersey 59 64,4 15,3 20,3 0,0 100,0 Nova York 46 47,8 28,3 23,9 0,0 100,0 Outro 31 58,1 19,3 22,6 0,0 100,0 Fonte: Pesquisa sobre Migração Internacional de Brasileiros – 1997. Nota: Os dados desta tabela são originados do survey realizado em Governador Valadares-MG (1997), coordenado pela Professora Dra. Teresa Sales e descrito neste artigo no item “Base de Dados”. TABELA 8 Distribuição da Fonte de Recursos Financeiros para o Migrante, segundo o Estado de Destino na Primeira Viagem aos Estados Unidos Governador Valadares – 1997 Estado de Destino Massachusetts Total Fonte de Recursos Financeiros (Nos Absolutos) Próprios Parentes Amigos Ninguém Outra Total 208 38,0 44,7 9,6 3,4 2,9 100,0 Flórida 61 64,0 27,9 4,9 1,6 1,6 100,0 Nova Jersey 59 52,5 39,0 6,8 1,7 0,0 100,0 Nova York 46 45,7 32,6 10,9 8,7 2,2 100,0 Outro 31 48,4 38,7 6,5 3,2 3,2 100,0 Fonte: Pesquisa sobre Migração Internacional de Brasileiros – 1997. Nota: Os dados desta tabela são originados do survey realizado em Governador Valadares-MG (1997), coordenado pela Professora Dra. Teresa Sales e descrito neste artigo no item “Base de Dados”. ao estado de destino na primeira viagem. Pudemos, então, retomar a hipótese inicial de que, em determinadas regiões, a atração exercida sobre os migrantes está diretamente relacionada à dinâmica de transferência dos benefícios próprios das redes migratórias. As pessoas que chegaram a Massachusetts fizeram uso da melhor estrutura de relações dentre todos os estados de destino: somente 17,3% relataram não conhecer ninguém, enquanto que 56,3% tinham parentes no destino, e os amigos foram a principal referência para 26,0% desse grupo, conforme a Tabela 7. Os migrantes que se dirigiram para Flórida e Nova York apresentam o maior índice de pessoas sem nenhum conhecido nos Estados Unidos, com 27,8% e 23,9%, respectivamente. Conforme a Tabela 8, os migrantes que não utilizaram fontes alternativas de recursos financeiros aparecem em maior quantidade nos Estados da Flórida, Nova Jersey e Nova York, com a proporção interna a cada grupo de SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 55-63, jul./set. 2005 64,0%, 52,5% e 45,7%, respectivamente. Mais uma vez, pudemos destacar a presença e a importância das redes que ligam Governador Valadares a Massachusetts e dos recursos que por elas circulam. Apenas 38,0% desse grupo contaram somente com recursos próprios, e a proporção daqueles que conseguiram ajuda financeira entre parentes atinge 44,7% – o maior índice da tabela para essa categoria. A simples utilização de recursos financeiros de parentes ou amigos não significa necessariamente que essas pessoas ficaram em vantagem com relação àqueles que contaram somente com recursos próprios. Alguns têm maior poder econômico que outros, e essa pode ser a razão da não necessidade de empréstimos. Entretanto, o que se evidencia aqui é que existe, de fato, maior disponibilidade e uso de recursos, financeiros ou não, que justificam a maior concentração de migrantes em determinadas regiões. 61 WILSON FUSCO CONCLUSÃO risco envolvido na transferência desses mesmos recursos – ou na ausência dele. Um importante passo no amadurecimento das redes migratórias ocorre quando alguns migrantes começam a se estabelecer nos Estados Unidos. Quando as novidades positivas percorrem a região de origem, mais indivíduos se encorajam e seguem os passos dos pioneiros. A existência de regiões com concentração de parentes, amigos e conhecidos, por sua vez, acelera a expansão das redes, dando a elas uma forte base nos EUA. No entanto, os pontos de destino encontram-se em diferentes fases quanto à circulação dos recursos por meio das redes formadas em cada local. Observou-se que as redes sociais que ligam Governador Valadares e Criciúma a Massachusetts são as que melhor disponibilizam seus recursos, e que é essa região nos EUA que mais atrai os migrantes valadarenses e criciumenses. Como resultado, encontramos atualmente diversas instituições associativas para brasileiros em Massachusetts, evidenciando o desenvolvimento de uma comunidade bastante “visível”, ao contrário do que Maxine Margolis encontrou em Nova York. Como vimos, a migração de valadarenses e criciumenses para os Estados Unidos é fortemente baseada numa organização social que a apóia e sustenta. Massey (1987, p. 169) diz que NOTAS 1. No caso das pesquisas realizadas, o erro máximo em Governador Valadares ficou em 5,0% e em Criciúma ficou em 5,3%; em ambas cidades o intervalo de confiança foi de 95%. 2. Este termo é utilizado para designar o descendente de japonês que migra para trabalhar no Japão. 3. Este é um depoimento da própria autora, em seu livro Brasileiros Longe de Casa (SALES, 1999). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, G.O. De Criciúma para o mundo: rearranjos familiares e de gênero nas vivências dos novos migrantes brasileiros. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – IFCH-Unicamp, Campinas, 2004. ___________. Estar aqui..., estar lá... uma cartografia da emigração valadarense para os EUA. In: REIS, R.R.; SALES, T. (Org.). Cenas do Brasil migrante. São Paulo: Boitempo, 1999. BICALHO, J.V. Yes, eu sou brazuca. Governador Valadares: Ibituruna, 1989. BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. An Invitation to Reflexive Sociology. Chicago: University of Chicago Press, 1992. BOYD, M. Family and personal networks in international migration: recente developments and new agendas. International Migration Review, New York, CMS of NY, v. XXIII, n. 3, 1989. a migração internacional é um processo social organizado através de redes forjadas diariamente pelas conexões interpessoais que caracterizam todos os grupos humanos. CARVALHO, J.AM. O saldo dos fluxos internacionais do Brasil na década de 80: uma tentativa de estimação. In: PATARRA, N. (Org.). Migrações internacionais. São Paulo: Oficina Editorial, 1996. v. 2. Percebemos a presença dessas conexões cotidianas transformadas no contexto das migrações e a ampliação do uso das redes com o passar dos anos. As redes migratórias tendem a se tornar auto-suficientes com o tempo, devido ao capital social que elas geram aos migrantes em potencial, pois ao mesmo tempo em que as redes se expandem, novas situações de oferta e demanda de recursos são reproduzidas e negociadas entre os novos migrantes. Contatos pessoais com parentes, amigos e conterrâneos dão aos migrantes o necessário acesso a emprego, hospedagem e assistência financeira no destino, canalizando pessoas que fazem parte de certos grupos sociais no Brasil para regiões específicas nos Estados Unidos. A confiança é – claramente – um elemento fundamental nesse processo. Afinal, os preciosos recursos que facilitam a inserção dos migrantes no país de destino e, conseqüentemente, o direcionamento desses migrantes para determinados locais, estão restritos a relacionamentos em que os atores envolvidos são pautados pelo reconhecimento do CASTLES, S.; MILLER, M.J. The age of migration: International population movements in the modern world. Hampshire London: Macmillan, 1995. COLEMAN, J.S. Foundations of Social Theory. Cambridge, Mass: The Belknap Press of Harvard University Press, 1990. DEBIAGGI, S.D. Famílias brasileiras em um novo contexto cultural. In: MARTES, C.; FLEISCHER, S. (Org.). Fronteiras Cruzadas. São Paulo: Paz e Terra, 2003. DEGENNE, A.; FORSÉ, M. Introducing Social Networks. GrãBretanha: Sage Publications, 1999. DINERMAN, I.R. Patterns of adaptation among households of U.S. – Bound migrants from Michoacan, Mexico. International Migration Review, New York, CMS of NY, v. XII, n. 4, 1978. MARGOLIS, M. Little Brazil: imigrantes brasileiros em Nova York. Campinas: Papirus, 1994. MARTES, A.C.B. Brasileiros nos Estados Unidos: Imigrantes brasileiros em Massachusetts. São Paulo: Paz e Terra, 1998. MASSEY, D.S. et al. Return to aztlan. Los Angeles: University of California Press, 1987. 62 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 55-63, jul./set. 2005 A FORMAÇÃO DE COMUNIDADES-FILHAS NO FLUXO DE BRASILEIROS ... MENJIVAR, C. Immigrant Kinship Networks and the Impact of the Receiving Context: Salvadorans. Social Problems, San Francisco, University of California Press, v. 44, n. 1, Feb. 1997. SCUDELER, V. Imigrantes valadarenses no mercado de trabalho dos EUA. In: REIS, R.R.; SALES, T. (Org.). Cenas do Brasil migrante. São Paulo: Editora Boitempo, 1999. OLIVEIRA, A.C. O caminho sem volta: Classe social e etnicidade entre os brasileiros na Flórida. In: MARTES, A.C.B; FLEISCHER, S. (Org.). Fronteiras Cruzadas. São Paulo. Paz e Terra, 2003. SOARES, W. Da metáfora à sustância: redes sociais, redes migratórias e migração nacional e internacional em Valadares e Ipatinga. Tese (Doutorado em Demografia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002. PALAU, T. Brasiguaios. In: CASTRO, M. (Org.). Migrações internacionais: contribuições para políticas. Brasília, DF: CNPD, 2001. __________. Emigrantes e investidores: redefinindo a dinâmica imobiliária na economia valadarense. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1995. PORTES, A. et al. Transnational Entrepeneurs: An Alternative Form of Immigrant Economic Adaptation. American Sociological Review, Washington, DC, University of Pennsylvania Press, v. 67, Apr. 2002. UNITED STATES BUREAU OF THE CENSUS. Current Population Survey. Washington, DC: Department of Commerce, 2000. RIBEIRO, G.L. O que faz o Brasil, Brazil: jogos identitários em São Francisco. In: REIS, R.R.; SALES, T. (Org.). Cenas do Brasil migrante. São Paulo: Boitempo, 1999. SALES, T. Brasileiros longe de casa. São Paulo: Cortez, 1999. WILSON FUSCO: Doutor em Demografia pelo Nepo/IFCH/Unicamp (Campinas) ([email protected]). SASAKI, E.M. Movimento dekassegui: a experiência migratória e identitária dos brasileiros descendentes de japoneses no Japão. In: REIS, R.R.; SALES, T. Cenas do Brasil migrante. São Paulo: Boitempo, 1999. Artigo recebido em 5 de maio de 2005. Aprovado em 29 de agosto de 2005. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 55-63, jul./set. 2005 63 WEBER SOARES / ROBERTO NASCIMENTO RODRIGUES REDES SOCIAIS E CONEXÕES PROVÁVEIS ENTRE MIGRAÇÕES INTERNAS E EMIGRAÇÃO INTERNACIONAL DE BRASILEIROS WEBER SOARES ROBERTO NASCIMENTO RODRIGUES Resumo: O artigo apresenta evidências das conexões prováveis da migração interna e a emigração internacional entre Governador Valadares e Ipatinga e as demais microrregiões brasileiras, com base na aplicação dos princípios teóricos e metodológicos da análise de redes sociais. Palavras-chave: Migração internacional. Migração interna. Análise de redes sociais. Abstract: This article shows evidences of the probable connections between the internal and international migration among the micro-regions of Governador Valadares and Ipatinga and the others micro-regions of Brazil, based on the social network analysis. Key words: International migration. Internal migration. Social network analysis. E - a redução do volume dos fluxos migratórios; ntre o final do século 19 e início do século 20, o Brasil recebeu grande quantidade de imigrantes oriundos principalmente de Portugal, da Itália, da Espanha, da Alemanha e do Japão. De meados do século 20 até final dos anos 70, o país manteve-se praticamente fechado a trocas populacionais externas. Na década de 80, o Brasil volta a apresentar fluxos expressivos de migração internacional: exporta, nessa década, de 1 milhão a 2,5 milhões de pessoas (CARVALHO, 1996). E, quanto ao movimento populacional, assume um perfil emigratório. O processo bipolar de distribuição espacial interna da população brasileira, que ganhara corpo durante o período 1930-70 pela enorme transferência de população do meio rural para o urbano (em especial para as metrópoles), e pelas migrações que se dirigiram às fronteiras agrícolas, passa por transformações significativas, nos anos 80. Entre as transformações sofridas pelas trajetórias espaciais dominantes no período 1940-80 cabe pôr em relevo: - o maior peso das migrações de curta distância e intraregionais; - a maior incidência das migrações de retorno; e - a alteração da tendência à concentração urbana nas grandes capitais e regiões metropolitanas. O objetivo deste artigo é tratar de colocar em evidência as conexões prováveis entre a migração interna e a migração internacional na história recente dos deslocamentos espaciais da população brasileira. Essas conexões expressam-se com maior precisão tanto na descoberta dos nós que, a um só tempo, integram a rede migratória interna e a rede migratória internacional, quanto nas resultantes de incorporação dos referidos nós a essa mesma rede. Para identificar tais conexões, foi acionado o arcabouço teórico e metodológico da Análise de Redes Sociais – ARS. Isso implica, por um lado, a recusa de uma espécie de representação metafórica das redes – presente em boa parte 64 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 REDES SOCIAIS E CONEXÕES PROVÁVEIS ENTRE MIGRAÇÕES INTERNAS ... Quanto às informações sobre as características da emigração internacional de brasileiros, constituem referência básica os estudos de Martes (1999) e, em especial, de Soares (1995; 2002). Não se fará nenhuma exposição mais detalhada do fenômeno migratório internacional e esses estudos serão utilizados de acordo com sua estrita vinculação com o presente trabalho e como suporte às conclusões. dos estudos que lidam com os fluxos migratórios – e, por outro lado, a necessidade de considerar as redes como método para descrição e análise dos padrões relacionais presentes em determinada configuração reticular. Subjacente à escolha da metodologia analítica de redes, está o pressuposto de que a ampliação dos laços interpessoais estimula a expressiva migração internacional que procede desses recortes territoriais – e é importante ressaltar que esses laços são suscitados pela magnitude das trocas migratórias entre os recortes territoriais brasileiros, uma vez que as redes sociais também migram (TILLY, 1990). O passo analítico dado neste texto leva em conta a perspectiva copernicana das redes sociais. Isso significa considerar a rede migratória completa: todas as microrregiões (nós) e a ocorrência ou não de fluxos migratórios entre elas. A intenção reside, nesse caso, em identificar as microrregiões que: - estão mais ou menos conectadas pela migração interna; ANÁLISE DE REDES: O OLHAR SOBRE AS RELAÇÕES Uma rede consiste num conjunto de atores ou nós (pessoas, objetos ou eventos) ligados por um tipo específico de relação. A diferentes tipos de relações correspondem redes diferentes – ainda que o conjunto de atores seja o mesmo. A rede, porém, não é conseqüência, apenas, das relações que de fato existem entre os atores; ela é também o resultado da ausência de relações, da falta de laços diretos entre dois atores, daquilo que Burt (1992) chama de “buraco estrutural” (SCOTT, 2000). As redes podem ser compostas por atores de natureza diversa. Num extremo, elas consistem de símbolos constantes em textos ou de símbolos presentes em verbalizações; noutro extremo, de estados que integram um país ou de países que compõem o sistema mundial. As redes podem, então, ser tão pequenas quanto uma sala de aula do ensino fundamental, ou tão grandes, como o conjunto dos países1 (HANNEMAN, 2001). A organização do mundo social, com base em atributos, muito difere de uma organização que se debruça sobre as relações. “Atributos” são qualidades inerentes à unidade que não consideram as relações dessa mesma unidade com outras unidades ou com o contexto social específico dentro do qual essas qualidades são observadas. A construção de categorias a priori – que agrega indivíduos de acordo com sexo, idade, classe econômica, etc. – fundamenta-se no pressuposto de independência estatística (e, dessa forma, o pressuposto de dependência resultaria em um viés) e tem a intenção de determinar a força do relacionamento entre certas variáveis. Logo, a análise se faz sobre as relações entre variáveis – e não entre atores. As relações entre os atores de uma rede apresentam forma e conteúdo. O conteúdo é dado pela natureza dos laços (parentesco, amizade, poder, troca de bens simbólicos ou materiais, afetiva, etc.); e a forma da relação compreende dois aspectos básicos: i) a intensidade ou a força - são mais centrais; - conferem mais estabilidade às estruturas reticulares; e - ocupam posições similares na rede. As trocas populacionais (imigrantes e emigrantes de última etapa migratória) nas 91 microrregiões brasileiras, nos períodos 1970-80 e 1981-91, constituem as “redes migratórias internas”, que serão objeto de aplicação do arcabouço conceitual e metodológico da análise de redes. Nessas redes, as microrregiões representam os atores/nós, e os fluxos populacionais correspondem às conexões – e estas comportam sentido e intensidade. Para estabelecer conexões entre os fluxos migratórios internos e a emigração internacional, a ênfase recairá sobre as microrregiões de Governador Valadares e Ipatinga, localizadas em Minas Gerais. A importância da migração internacional na dinâmica demográfica mineira, na valadarense e na ipatinguense torna-se evidente pela grandeza que ela representa no tocante às perdas líquidas ocorridas entre 1986 e 1991. No estado, a migração internacional respondeu por cerca de 62% das perdas líquidas (172 mil, de 277 mil pessoas), em Valadares, por 50% (12 mil, de 24 mil pessoas), e, em Ipatinga, por 90% (11 mil, de 12 mil pessoas). Isto significa que a microrregião de Valadares e a microrregião de Ipatinga teriam contribuído com mais de 13% desse fluxo no período 1986-91, ainda que a população destas microrregiões representavam ao redor de 5% da população estadual em 1991 (SOARES, 2002). SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 65 WEBER SOARES / ROBERTO NASCIMENTO RODRIGUES do laço entre dois atores; e ii) a freqüência e o grau de reciprocidade com que esse laço se manifesta. Logo, conceitualmente, duas relações de conteúdo distinto podem apresentar formas idênticas (KNOKE; KUKLINSKI, 1982). - Uma “rede social” consiste no conjunto de pessoas, organizações ou instituições sociais que estão conectadas por algum tipo de relação. Em virtude do processo em torno do qual ela se organiza, uma rede social pode abrigar várias redes sociais. Recortes Analíticos - Uma “rede pessoal” representa, então, um tipo de rede social que se funda em relações sociais de amizade, parentesco, etc. De acordo com Wellman (1997), a análise de redes considera, basicamente, duas perspectivas analíticas que se complementam: - egocentrada (perspectiva ptolomaica) – nesse tipo de análise, a atenção está voltada para determinado nó/ator (ego) e outros nós/atores da rede com os quais o nó egóico mantenha relações. Logo, o número, a magnitude e a diversidade das conexões estabelecidas direta ou indiretamente com o ego definem os demais nós da rede; - Uma “rede migratória” não se confunde com redes pessoais. Essas redes precedem a migração e são adaptadas a um fim específico: a ação de migrar. Quando suas singularidades dependem da natureza dos contextos sociais que ela articula, uma rede migratória é, também, um tipo específico de rede social que agrega redes sociais existentes e enseja a criação de outras: portanto, consiste em “uma rede de redes sociais”. Por fim, uma “rede migratória” implica origem e destino – isto é: recortes territoriais, países, estados, microrregiões, municípios, cidades, etc. que se articulam por intermédio de fluxos migratórios. - rede completa (perspectiva copernicana) – nesse tipo de análise, a informação sobre o padrão de laços entre todos os nós/atores na rede é usada, grosso modo, para identificar tanto subgrupos reticulares com maior grau de coesão interna quanto os nós que ocupam posições similares na rede. Representação Gráfica e Matricial das Redes A análise de redes retira os instrumentos para representar os padrões de laços entre os atores sociais de dois subcampos da matemática: a teoria dos grafos e a álgebra matricial. O tipo de grafo utilizado para representar as redes sociais recebe o nome de “sociograma”. No sociograma, os pontos/nós equivalem a atores, e os segmentos de linhas correspondem a laços (WASSERMAN; FAUST, 1994; SCOTT, 2000; HANNEMAN, 2001). De acordo com o tipo, esses laços classificam-se em: não-direcionados – registram a existência ou não de conexões entre pares de nós; direcionados – indicam que as conexões apresentam orientação de um nó para outro (a seta presente na extremidade de cada segmento de linha dá o sentido de cada conexão); e valorados – expõem a força das conexões entre os nós, expressa por valor numérico. É possível, ainda, representar graficamente laços que são, por exemplo, não-orientados e valorados, orientados e valorados, etc. Os sociogramas constituem meio muito útil de representação das redes sociais. Todavia, quando o número de atores/nós é muito grande e os laços são muitos, torna-se quase impossível identificar visualmente os padrões relacionais. A solução está em representar as informações de rede na forma matricial. Assim, para sintetizar e revelar Tendo em conta a rede completa (perspectiva copernicana), um passo capital da análise consiste em identificar as posições/papéis sociais que se manifestam pelo padrão das relações observadas entre os atores. A tarefa empírica consistiria, então, em distinguir os atores que apresentam maior semelhança, descrever o que os torna semelhantes, registrar o que os torna diferentes. É a relação entre os ocupantes de dois papéis que define o significado desses papéis (HANNEMAN, 2001). Redes Sociais, Redes Pessoais e Redes Migratórias A análise de redes atribui mais crédito à lógica da combinação do que à lógica puramente agregativa; sustenta que a configuração, assumida por uma rede qualquer, importa mais do que o acréscimo de uma relação extra ao conjunto de relações preexistentes. Não cabe dúvida sobre a importância das redes sociais para entender, em especial, os fluxos populacionais. Mas é necessário ir além dessa mera indicação e estabelecer as bases iniciais da perspectiva teórica que se estrutura em conseqüência das imprecisões encontradas em parte da literatura sobre as temáticas redes sociais, redes pessoais e redes migratórias. Assim, cabe admitir que: 66 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 REDES SOCIAIS E CONEXÕES PROVÁVEIS ENTRE MIGRAÇÕES INTERNAS ... APLICAÇÃO DO ARCABOUÇO CONCEITUAL E METODOLÓGICO DA ANÁLISE DE REDES padrões existentes nas redes, podem ser realizadas operações matemáticas vinculadas ao campo da álgebra vetorial e da matricial (inversas, transpostas, adição, subtração, multiplicação e multiplicação booleana de matrizes). Noções fundamentais sobre a estrutura reticular admitem maior precisão quando o padrão de laços entre um conjunto de atores é expresso formalmente por meio de grafos e matrizes. Consoante a teoria dos grafos e a álgebra matricial, vários são os conceitos, as medidas e os métodos utilizados para descrever as propriedades básicas, a centralidade e a centralização, além da divisão de determinada rede (WASSERMAN; FAUST, 1994; BONANICH, 2000; HANNEMAN, 2001). Assim, o passo seguinte consiste em lançar mão do recorte empírico sobre o qual esse arcabouço conceitual e metodológico da análise de redes deve ser aplicado: redes migratórias internas de 1970-80 e 1981-91. Para trabalhar os dados relacionais – fluxos migratórios internos – numa linguagem estatística adequada, foi utilizado o programa Ucinet 5.0, para Windows. O tamanho das redes migratórias de ambos os períodos resultou do agrupamento sem reposição das microrregiões brasileiras que mantiveram o maior volume de trocas populacionais internas com as microrregiões de Valadares e de Ipatinga: 91 ao todo. A associação das regularidades nas trocas migratórias entre as microrregiões – sistema empírico – com as regularidades matemáticas e topológicas que representam esse mesmo sistema empírico ganha expressão em duas matrizes quadradas (91 x 91): a rede migratória 1 corresponde ao período 1970-80; e a rede migratória 2, ao período 198191. É preciso ter claro que a discriminação dessas trocas populacionais internas em duas redes migratórias distintas consiste em mero recurso analítico que prima pela identificação de tendências. Com efeito, é mais acertado supor a existência de uma rede migratória interna única, sujeita a alterações ao longo do tempo – pelo que registra Soares (2002) sobre a natureza processual, dinâmica das redes sociais. Ambas as redes são valoradas, direcionadas e assimétricas. São valoradas porque cada uma das células matriciais traz um valor em N (conjunto dos números naturais) que corresponde, a um só tempo, ao de emigrantes de determinada microrregião e ao número de imigrantes em outra. São direcionadas porque uma microrregião pode receber ou não migrantes, e pode enviar ou não migrantes para outra microrregião – o que confere assimetria às matrizes, às redes migratórias. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 O tamanho de uma rede social é dado pela quantidade de nós que a integra. As redes migratórias dos períodos 1970-80 e 1981-91 possuem o mesmo número de nós: 91 microrregiões, o que equivale a 8.190 pares ordenados, isto é, 8.190 conexões diretas possíveis (vínculos migratórios) entre as microrregiões, duas a duas (Tabela 1). Embora de mesmo tamanho, a composição dos nós da rede migratória de 1970 a 1980 mostra-se diferente em comparação com a de 1981 a 1991: um total de 22 microrregiões foram substituídas de um período para outro. Houve aumento da participação do número de microrregiões dos estados de Rondônia, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo; e queda da contribuição das microrregiões do Pará, Bahia, Paraná, Mato Grosso e Rio de Janeiro. TABELA 1 Conexões Efetivas, Conexões Possíveis e Densidade das Redes Migratórias das Microrregiões Brasileiras que Mantiveram o Maior Volume de Trocas Populacionais com as Microrregiões de Valadares e Ipatinga Brasil – 1970-1991 Indicadores 1970-80 1981-91 Conexões Efetivas 5.583 5.286 Conexões Possíveis 8.190 8.190 Densidade (média) 0,68 0,65 Desvio-Padrão 0,47 0,48 Coeficiente Variação 68,4 74,1 Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1970, 1980 e 1991. Para informar a densidade, os dados foram dicotomizados de tal maneira que indicassem, apenas, a existência ou não de trocas migratórias entre uma microrregião e outra. A Tabela 1 mostra que a razão entre o número de conexões diretas – existentes entre parte das microrregiões que constituem a rede migratória do período 1970-80 – e o possível de conexões (densidade) foi de aproximadamente 68%. Essa densidade sofre pequeno declínio na rede no período 1981-91, pois 65% de todas as conexões possíveis estão presentes nesse caso. Assim, o nível geral das conexões, tanto nesta quanto naquela rede, deve ser considerado alto, pois ocorrem trocas migratórias entre mais da metade dos pares ordenados de cada uma das redes. O agrupamento das microrregiões, conforme o fluxo máximo nas conexões resultantes das trocas migratórias 67 WEBER SOARES / ROBERTO NASCIMENTO RODRIGUES da década de 70, indica que o primeiro nível de agregação é ocupado por Belo Horizonte, São Paulo e Valadares: essas três microrregiões apresentaram vínculos migratórios análogos entre si e com as demais microrregiões da rede. Brasília, Rio de Janeiro, Goiânia, Vitória, Osasco, Campinas, Ipatinga e Caratinga também são incorporados a esse subconjunto da metade dos pares ordenados de cada uma das redes. O agrupamento das microrregiões, conforme o fluxo máximo nas conexões resultantes das trocas migratórias da década de 70, indica que o primeiro nível de agregação é ocupado por Belo Horizonte, São Paulo e Valadares: essas três microrregiões apresentaram vínculos migratórios análogos entre si e com as demais microrregiões da rede. Brasília, Rio de Janeiro, Goiânia, Vitória, Osasco, Campinas, Ipatinga e Caratinga também são incorporados a esse subconjunto de microrregiões. Na rede migratória do período 1981-91, a representação gráfica da análise de cluster, baseada no fluxo máximo, torna evidente as microrregiões que, no tocante aos vínculos migratórios, mais se assemelham: Belo Horizonte e São Paulo, seguidas por Rio de Janeiro, Campinas, Brasília, Vitória, Valadares, Belo Horizonte, São Paulo, Ipatinga e São José dos Campos. Portanto, o fluxo máximo deixa registrada a elevada conectividade entre Valadares, Ipatinga, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória, Goiânia e Brasília nas duas redes migratórias internas: a de 1970-80 e a de 198191. Também assinala a conectividade que se manifesta tanto nas trocas populacionais ocorridas entre essas microrregiões quanto nas trocas populacionais que se deram entre essas microrregiões e a quase totalidade das outras microrregiões que integram ambas as redes migratórias. A proeminência relativa de um ator/nó em relação à sua vizinhança (centralidade local) é dada pelo grau de centralidade. As microrregiões que se encontram em posição vantajosa na rede migratória de 1970-80 por possuírem o maior número de conexões diretas/adjacentes (conseqüência dos fluxos populacionais de saída) são Valadares e São Paulo (Tabela 2). Em posição subseqüente, Belo Horizonte e Rio de Janeiro mantiveram conexões diretas com 98,9% das microrregiões da rede; Teófilo Otoni, com 96,7%; Ipatinga e Brasília, com 94,4%; Vitória, com 93,3%; e Caratinga, com 90%. Castanhal e Viseu, no Pará, e Cocoal, em Rondônia, ficaram com os menores graus de centralização dessa rede. As microrregiões que mantiveram mais conexões diretas em relação aos fluxos populacionais de entrada TABELA 2 Conexões e Grau de Centralidade na Rede Migratória das Dez Microrregiões Brasileiras que Mantiveram mais Volume de Trocas Populacionais com as Microrregiões de Valadares e Ipatinga Brasil – 1970-80 Conexões Saída Entrada Microrregiões Grau de Centralidade Saída Entrada Teófilo Otoni 87 68 96,7 75,6 Belo Horizonte 89 90 98,9 100,0 Governador Valadares 90 83 100,0 92,2 Ipatinga 85 79 94,4 87,8 Caratinga 81 59 90,0 65,6 Vitória 84 86 93,3 95,6 Rio de Janeiro 89 87 98,9 96,7 São Paulo 90 90 100,0 100,0 Goiânia 79 86 87,8 95,6 Brasília 85 88 94,4 97,8 Média 61,4 61,4 68,2 68,2 Desvio-Padrão 17,8 17,4 16,0 19,3 Mínimo 21 22 23 24 Máximo 90 90 100 100 0,32 0,32 Centralização Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1970 e 1980. foram São Paulo e Belo Horizonte. Brasília e Rio de Janeiro constituíram, respectivamente, destino de pessoas oriundas de 97,8% e 96,7% das microrregiões da rede migratória de 1970-80; Goiânia e Vitória, de 95,6%. Valadares, que recebeu migrantes de 92,2% dessa mesma rede, e Ipatinga, de 87,8%, ocuparam, respectivamente, o sétimo e o nono lugar nessa hierarquia. Campos Sales, no Ceará, por ter mantido conexões de entrada com 22,4% das demais microrregiões, e Santa Tereza, no Espírito Santo, com 32,2%, comportaram os menores graus de centralidade. As estatísticas descritivas mostram que, em média, cada microrregião manteve conexões diretas, tanto em relação às entradas quanto às saídas migratórias, com 61,4 microrregiões da rede de 1970-80. A dispersão dos fluxos foi baixa: o desvio padrão situou-se abaixo da média para os ganhos e perdas populacionais. A amplitude de coesão de toda a rede de 1970-80 em torno de atores/nós focais (centralização) foi baixa para ambos os tipos de conexões migratórias: o grau de centralização correspondente aos fluxos de entrada e de saída foi cerca de 32%. Assim, as vantagens posicionais não se manifestaram tão desigualmente distribuídas entre as 68 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 REDES SOCIAIS E CONEXÕES PROVÁVEIS ENTRE MIGRAÇÕES INTERNAS ... ceberam, respectivamente, pessoas oriundas de 95,6%, 93,3% e 86,7% das microrregiões da rede migratória. O quinto e o sexto lugar foram ocupados por Valadares 92,2% e Ipatinga 90,0%, respectivamente. As microrregiões que responderam pelo menor número de conexões migratórias de entrada no período 1981-91 foram Tauá, no Ceará, e Bocaiúva, em Minas Gerais. As estatísticas descritivas informam que o número de conexões diretas estabelecido por cada microrregião na rede migratória de 1981-91 foi de aproximadamente 58. Também nesse caso a dispersão dos fluxos foi baixa: o desvio padrão seja para ganhos seja para perdas migratórias foi bem inferior à média. O grau de centralização, quase 36%, tanto para os vínculos de entrada quanto de saída, indica que a distribuição dos migrantes conforme as microrregiões de destino e de origem dos fluxos não se concentrou em torno de uma microrregião ou de um pequeno agrupamento de microrregiões. O grau de proximidade acusa a posição estratégica de um ator/nó com relação à estrutura total da rede. Ou seja, essa medida de centralidade global considera os laços indiretos entre os atores/nós. Na rede migratória de 197080, os fluxos migratórios de saída levam ao conhecimento de que Valadares e São Paulo situam-se na posição mais central (Tabela 4). Ocupando posições subseqüentes nessa ordem global de centralidades, Belo Horizonte e Rio de Janeiro despontam com um grau de proximidade de 98,9%; Teófilo Otoni, de 96,8%; Ipatinga e Brasília, de 94,7%; Vitória, de 93,8%; Caratinga, de 90,9%; e Goiânia, de 89,1%. Castanhal, no Pará, e Cocoal, em Rondônia, admitiram os menores graus de proximidade. Em relação aos fluxos migratórios de entrada, a Tabela 4 assinala que as microrregiões mais centrais, no período 1970-80, foram Belo Horizonte e São Paulo. Os graus de proximidade de Brasília (97,8%), do Rio de Janeiro (96,8%), de Goiânia e de Vitória (95,7%) situam essas microrregiões em posições subseqüentes na hierarquia de centralidades. Valadares e Ipatinga, com proximidade em relação às demais microrregiões da rede perto de 93% e de 89%, ficaram na sétima e na nona posição, nessa mesma hierarquia. Pela centralidade mais baixa, foram responsáveis Campos Sales, no Ceará, e Santa Tereza, no Espírito Santo. A dispersão dos dados em torno das médias correspondentes aos vínculos relacionais de entrada e de saída mostrou-se muito baixa. É o que se verifica nos valores assumidos pelo desvio padrão dos ganhos e das perdas microrregiões – de fato, a distribuição dos migrantes de acordo com as microrregiões de destino e de origem não se concentrou em torno de uma microrregião ou pequeno aglomerado de microrregiões. O maior número de conexões referente às perdas populacionais da rede migratória de 1981-91 ocorreu em Belo Horizonte e São Paulo (Tabela 3). Nesse período, o Rio de Janeiro manteve ligações diretas com 98,9% das microrregiões integrantes dessa rede; Brasília e Vitória, com 95,6%; Teófilo Otoni, com 91,1%; e Goiânia e Caratinga, com 83,3%. Valadares, que enviou pessoas para 93,3%, e Ipatinga, para 88,9% da rede, detiveram o quarto e o sexto lugar na ordem decrescente de fluxos relacionais. Alvorada d’Oeste, em Rondônia, e Cárceres, no Mato Grosso, registraram os menores graus de centralidade. Quanto aos fluxos de entrada, Belo Horizonte e São Paulo receberam migrantes de todas as microrregiões da rede no período 1981-91. As conexões diretas mantidas com 97,8% dessa rede situaram o Rio de Janeiro e Campinas logo a seguir na hierarquia dos vínculos baseados em ganhos populacionais. Brasília, Vitória e Goiânia reTABELA 3 Conexões e Grau de Centralidade na Rede Migratória das Onze Microrregiões Brasileiras que Mantiveram mais Volume de Trocas Populacionais com as Microrregiões de Valadares e Ipatinga Brasil – 1981-91 Conexões Saída Entrada Microrregiões Grau de Centralidade Saída Entrada Teófilo Otoni 82 62 91,1 68,9 Belo Horizonte 90 90 100,0 100,0 Governador Valadares 84 83 93,3 92,2 Ipatinga 80 81 88,9 90,0 Caratinga 75 53 83,3 58,9 Vitória 86 84 95,6 93,3 Rio de Janeiro 89 88 98,9 97,8 Campinas 80 88 88,9 97,8 São Paulo 90 90 100,0 100,0 Goiânia 75 78 83,3 86,7 Brasília 86 86 95,6 95,6 Média 58,1 58,1 64,5 64,5 Desvio-Padrão 15,9 15,6 17,7 17,3 Mínimo 16 22 18 24 Máximo 90 90 100 100 0,36 0,36 Centralização Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1980 e 1991. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 69 WEBER SOARES / ROBERTO NASCIMENTO RODRIGUES TABELA 4 Conexões e Grau de Proximidade na Rede Migratória das Dez Microrregiões Brasileiras que Mantiveram mais Volume de Trocas Populacionais com as Microrregiões de Valadares e Ipatinga Brasil – 1970-80 Microrregiões Teófilo Otoni Belo Horizonte Governador Valadares Conexões Saída Entrada Grau de Proximidade Saída Entrada 112 93 80,4 96,8 90 91 100,0 98,9 97 90 92,8 100,0 Ipatinga 101 95 89,1 94,7 Caratinga 121 99 74,4 90,9 94 96 95,7 93,8 Vitória Rio de Janeiro 93 91 96,8 98,9 São Paulo 90 90 100,0 100,0 Goiânia 94 101 95,7 89,1 Brasília 92 95 97,8 94,7 118,6 118,6 77,3 77,4 Média Desvio-Padrão 16,0 17,4 10,6 10,9 Mínimo 90 90 57,0 56,6 Máximo 158 159 Centralização ximidade de quase 93% em referência às microrregiões dessa rede, e Ipatinga, de 90,9%, detiveram o quinto e sexto lugar, nessa ordem. Tauá, no Ceará, e Bocaiúva, em Minas Gerais, ficaram com os valores correspondentes às centralidades mais baixas. A dispersão dos dados em torno do grau médio de proximidade, não só para as perdas como para os ganhos migratórios, é bem pequena: o desvio padrão, mais uma vez, ficou abaixo da média. O indicador de afastamento da distribuição das centralidades da rede de 1981-91 em comparação com a rede de formato estelar do mesmo tamanho, com grau de centralização de cerca de 51%, traz à tona uma desigualdade superior à apresentada pela rede de 1970-80 na distribuição das vantagens posicionais – não só em relação aos laços de entrada, mas também no tocante aos laços de saída. Quando se analisam as trocas populacionais nas redes migratórias de 1970-80 e de 1981-91 é necessário lançar mão do algoritmo Conjunto Lambda para identificar os subgrupos de microrregiões que mais estabilidade conferem a essas estruturas reticulares. 100 100 0,462 0,459 TABELA 5 Conexões e Grau de Proximidade na Rede Migratória das Onze Microrregiões Brasileiras que Mantiveram mais Volume de Trocas Populacionais com as Microrregiões de Valadares e Ipatinga Brasil – 1981-91 Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1970 e 1980. populacionais. O grau de centralização, baseado nas distâncias geodésicas resultantes das conexões migratórias de entrada e de saída, gravitou ao redor de 46%. A aplicação do algoritmo – que considera a proximidade topológica, o grau de proximidade à rede migratória de 1981-91 – revela Belo Horizonte e São Paulo como microrregiões mais centrais quanto a perdas populacionais (Tabela 5). A seguir, obedecendo à hierarquia de centralidades, apresentaram-se Rio de Janeiro (98,9%), Brasília e Vitória (95,7%), Teófilo Otoni (91,8%), Goiânia e Caratinga (85,7%). Os laços de saída de Valadares e de Ipatinga, regidos por uma proximidade de 93,8% e 90,0%, respectivamente, conferiram a essas microrregiões a quarta e a sexta posição nessa mesma hierarquia. Os menores graus de proximidade foram registrados nas microrregiões de Tucumã, no Pará, e Alvorada d’Oeste, em Rondônia. Quanto aos ganhos populacionais, as microrregiões que detiveram a maior centralidade no período 1981-91 foram Belo Horizonte e São Paulo (Tabela 5). Em ordem decrescente dos graus de proximidade, seguem Rio de Janeiro e Campinas (97,8%), Brasília (95,7%), Vitória (93,8%) e Goiânia (88,2%). Valadares, titular de uma pro- Conexões Saída Entrada Microrregiões Teófilo Otoni Belo Horizonte Grau de Proximidade Saída Entrada 118 98 76,3 91,8 90 90 100,0 100,0 Governador Valadares 97 96 92,8 93,8 Ipatinga 99 100 90,9 90,0 127 105 70,9 85,7 96 94 93,8 95,7 Caratinga Vitória Rio de Janeiro 92 91 97,8 98,9 Campinas 92 100 97,8 90,0 São Paulo 90 90 100,0 100,0 Goiânia 102 105 88,2 85,7 Brasília 94 94 95,7 95,7 121,9 121,9 75,1 75,1 15,6 15,9 10,1 10,0 Média Desvio-Padrão Mínimo 90 90 57,0 54,9 Máximo 158 164 100 100 0,506 0,506 Centralização Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1980 e 1991. 70 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 REDES SOCIAIS E CONEXÕES PROVÁVEIS ENTRE MIGRAÇÕES INTERNAS ... A representação gráfica da análise de cluster para a rede da década de 70 põe à mostra, no primeiro nível de agregação, o agrupamento constituído por Governador Valadares, Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. O movimento seguinte incorpora Ipatinga, Vitória, Teófilo Otoni e Osasco. Posteriormente, Goiânia e Caratinga passam a fazer parte do grupo. As conexões estabelecidas entre essas microrregiões são de capital importância. Afinal, tendo em vista o papel que desempenham na configuração/ continuidade dos fluxos migratórios, a remoção dessas microrregiões levaria à ruptura de toda a rede. Já as microrregiões que menos importam ao tecido de conexões da rede migratória da década de 70 são Castanhal, no Pará; Campos Sales, no Ceará; e Santa Tereza, no Espírito Santo. A configuração assumida pelos dados resultantes da aplicação do algoritmo Lambda Set aos fluxos populacionais do período 1981-91 inscreve Valadares, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo no primeiro nível de agregação, seguidas por Brasília, Campinas, Vitória, Ipatinga, Goiânia, Osasco, Teófilo Otoni e Caratinga. Verifica-se que essas microrregiões ocupavam, na rede dos anos 70, os níveis mais altos de agregação. Conseqüentemente, caso Valadares, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Campinas, Vitória e Ipatinga fossem retiradas de quaisquer das duas redes, ocorreria a maior obstrução das trocas migratórias. Assentadas nos níveis mais afastados de agregação do período 1981-91, encon- travam-se as microrregiões de: Cárceres, no Mato Grosso; Tucumã, no Pará; e Bocaiúva, em Minas Gerais. Quando os dados são valorados, o coeficiente de correlação de Pearson constitui o algoritmo mais apropriado para subdividir determinada rede segundo o critério de equivalência estrutural com a finalidade de identificar os atores que guardam padrão similar de vínculos relacionais e que ocupam posições semelhantes na rede. Esse coeficiente varia de -1 (significa que dois atores possuem padrões de laços opostos com outros atores/nós) a 1 (indica que dois atores possuem o mesmo padrão de laços com outros atores/nós – equivalência estrutural perfeita). A Tabela 6, que traz os coeficientes de correlação de Pearson para os pares de microrregiões da rede migratória de 1970-80, revela padrões similares de vínculos migratórios internos entre Valadares, Ipatinga, Caratinga, Vitória, Rio de Janeiro, Goiânia e Brasília: em tais casos, quase todos os coeficientes assumiram valores acima de 0,6. Em relação a cada uma dessas microrregiões, São Paulo foi depositária do padrão de laços migratórios menos semelhante: de fato, os pares microrregionais São Paulo/Rio de Janeiro e São Paulo/Belo Horizonte, por exemplo, evidenciam correlações negativas (-0,58 e -0,49 respectivamente). Logo, com exceção de Teófilo Otoni, nenhuma das outras microrregiões guarda equivalência estrutural com São Paulo. Tal fato se deve à posição singular da microrregião paulista nessa rede migratória: por TABELA 6 Coeficiente de Correlação de Pearson na Rede Migratória das Dez Microrregiões Brasileiras que Mantiveram mais Volume de Trocas Populacionais com as Microrregiões de Valadares e Ipatinga Brasil – 1970-80 Microrregiões Microrregiões Teófilo Otoni Teófilo Otoni 1,00 Belo Governador Horizonte Valadares Belo Horizonte 0,27 1,00 Governador Valadares 0,45 Ipatinga Caratinga Vitória Rio de Janeiro São Paulo Goiânia Brasília 0,75 0,47 0,19 0,71 0,52 0,57 0,56 0,69 0,71 0,61 0,73 0,78 -0,49 0,77 0,64 1,00 0,74 0,66 0,76 0,67 -0,07 0,77 0,81 Ipatinga 1,00 Caratinga Vitória 0,79 0,77 0,06 0,77 0,73 0,68 0,59 0,31 0,72 0,68 1,00 Rio de Janeiro São Paulo Goiânia Brasília 0,72 -0,1 0,76 0,76 1,00 -0,58 0,73 0,56 1,00 -0,13 0,13 1,00 0,76 1,00 Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1970 e 1980. SÃO PAULO 0,72 1,00 EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 71 WEBER SOARES / ROBERTO NASCIMENTO RODRIGUES Enfim, a similaridade do padrão de vínculos relacionais entre Valadares, Ipatinga, Caratinga, Vitória, Goiânia e Belo Horizonte foi alta em ambos os períodos, seja 1970-80, seja 1981-91. Portanto, essas microrregiões ocupam posições semelhantes nas duas redes migratórias internas e possuem a maioria ou todos os vínculos migratórios com as mesmas microrregiões que integram tais redes. ser um locus privilegiado de expansão das atividades industriais no Brasil, São Paulo – e em especial sua região metropolitana – tornou-se o destino predominante dos principais fluxos migratórios internos nos anos 70. Todavia, o fato de Teófilo Otoni ter apresentado padrão tão semelhante de laços com a microrregião de São Paulo causa estranheza e aponta para a necessidade de uma análise futura mais atenta. O período 1981-91, apresenta padrões mais altos de similaridade dos fluxos migratórios internos entre Valadares, Ipatinga, Caratinga, Vitória, Rio de Janeiro e Goiânia do que os encontrados para a década de 70 (Tabela 7). Os coeficientes de Pearson para essas microrregiões, tomadas duas a duas, são superiores a 0,7. Merece atenção especial o grau mais acentuado que tal tendência assume em relação a Teófilo Otoni. De um período para outro, as correlações sofrem um aumento significativo; e, quanto aos vínculos migratórios, inscrevem essa microrregião em um nível mais elevado de equivalência estrutural com Belo Horizonte (r = 0,78), Valadares (r = 0,79), Ipatinga (r = 0,84), Caratinga (r = 0,84), Vitória (r = 0,82) e Goiânia (r = 0,8). No período 1981-91, São Paulo permanece com um padrão mais similar de laços; e Brasília assiste à redução dos valores de quase todos os coeficientes de Pearson – exceção feita ao caso do Rio de Janeiro, em que o coeficiente passa de 0,5 na década de 70 para 0,84 nos anos 80. DISCUSSÃO Considerando-se a perspectiva da rede social completa em fluxos migratórios internos dos períodos 1970-80 (rede migratória 1) e 1981-91 (rede migratória 2), a aplicação do arcabouço teórico e metodológico da análise de redes mostrou que o nível geral das conexões (densidade), tanto nesta como naquela, foi alto. Essa alta densidade ganha ressonância na existência de distâncias geodésicas para todos os pares de microrregiões e nos pequenos valores (distâncias geodésicas) por elas assumido nas duas redes migratórias. De fato, qualquer microrregião, em ambos os períodos, está conectada por fluxos migratórios que descrevem uma seqüência máxima de dois passos. Tanto na rede migratória de 1970-80 como na rede de 1981-91, a perspectiva analítica trazida pelo fluxo máximo deixa ver que Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Valadares, Ipatinga, Brasília, Vitória e Campinas TABELA 7 Coeficiente de Correlação de Pearson na Rede Migratória das Dez Microrregiões Brasileiras que Mantiveram mais Volume de Trocas Populacionais com as Microrregiões de Valadares e Ipatinga Brasil – 1981-91 Microrregiões Microrregiões Teófilo Otoni Teófilo Otoni 1,00 Belo Governador Horizonte Valadares Belo Horizonte Governador Valadares Ipatinga Ipatinga Caratinga Rio de Janeiro Vitória São Paulo Goiânia Brasília 0,78 0,79 0,84 0,84 0,82 0,66 0,45 0,8 0,42 1,00 0,72 0,73 0,72 0,73 0,58 0,48 0,75 0,39 1,00 0,76 0,85 0,83 0,73 0,03 0,87 0,6 1,00 0,77 0,83 0,59 0,49 0,78 0,38 0,82 0,7 0,22 0,82 0,52 1,00 0,7 0,3 0,81 0,5 1,00 -0,37 0,78 0,84 1,00 -0,04 -0,73 Caratinga 1,00 Vitória Rio de Janeiro São Paulo Goiânia 1,00 Brasília 0,67 1,00 Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1980 e 1991. 72 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 REDES SOCIAIS E CONEXÕES PROVÁVEIS ENTRE MIGRAÇÕES INTERNAS ... a de 1981-91. Assim, as conexões que essas microrregiões estabeleceram entre si e com outras microrregiões reticulares são de importância capital para garantir a estrutura das trocas populacionais. A aplicação do critério de equivalência estrutural às duas redes migratórias mostrou que a similaridade do padrão de vínculos relacionais entre Valadares, Ipatinga, Caratinga, Vitória, Goiânia, Belo Horizonte e Rio de Janeiro foi alta em ambos os períodos: Teófilo Otoni inscreve-se em nível elevado de equivalência estrutural com essas microrregiões nos anos 80. A teoria registra que atores/nós situados em posições reticulares semelhantes, em posições que são estruturalmente equivalentes, possuem a maioria ou todas as conexões com os mesmos atores/ nós da rede a que pertencem – e, por isso mesmo, monitoram-se reciprocamente. Assim, Valadares, Ipatinga, Caratinga, Vitória, Goiânia, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Teófilo Otoni, que se encontram em posições estruturais similares nas duas redes migratórias internas, estariam mais sensíveis a mudanças ocorridas no interior do subgrupo constituído por essas microrregiões do que às alterações sofridas por microrregiões que não fazem parte desse subgrupo. possuem vínculos migratórios análogos entre si e com as demais microrregiões da rede. Ou seja, um maior número de conexões diretas (alternativas) para alcançar outras microrregiões está à disposição dessas microrregiões. Para as trocas populacionais dos dois decênios – 1970-80 e 1981-91 – o indicador de centralidade local registrou que São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Valadares, Ipatinga, Brasília e Vitória ocuparam posições centrais em ambas as redes, em razão do número de conexões diretas estabelecido por essas microrregiões. Já a amplitude de coesão das redes em torno de microrregiões focais (centralização) foi baixa para os dois tipos de conexões migratórias, ou seja, a distribuição dos migrantes de acordo com as microrregiões de destino e de origem não se restringiu a uma microrregião ou a um pequeno aglomerado de microrregiões. Em relação aos fluxos de saída e de entrada de acordo com a medida de centralidade global (grau de proximidade), Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Valadares, Ipatinga, Vitória, Goiânia e Brasília ficaram com as posições mais centrais em ambas as redes migratórias. Logo, quanto aos fluxos migratórios, essas microrregiões apresentam alto grau de acessibilidade. Isto quer dizer que são capazes de alcançar outras microrregiões – ou serem alcançadas por elas – por meio de passos de comprimento mais curto. As medidas de centralidade põem à mostra a posição privilegiada e a proeminência de determinados nós na rede. Quando as relações são direcionadas, essa posição manifesta-se de duas formas: influência e prestígio. Neste caso, identificam-se os atores/nós que constituem o foco de recepção dos vínculos relacionais; naquele, os atores/nós que representam o centro desses vínculos. Assim, as altas centralidades locais e globais que Valadares, Ipatinga, Vitória, Brasília, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro apresentaram em relação às redes migratórias de 1970-80 e de 1981-91 permitem inferir tanto a influência quanto o prestígio dessas sete microrregiões no tocante às perdas e ganhos no âmbito das trocas populacionais ocorridas nesses períodos. A utilização do algoritmo Lambda Se – como recurso para identificar os subgrupos de microrregiões que conferem mais estabilidade à rede e as microrregiões que tornam o tecido de conexões migratórias mais vulnerável à ruptura – evidenciou que Valadares, Ipatinga, Brasília, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória e Goiânia participaram dos níveis mais altos de agregação em ambas as redes migratórias: tanto a de 1970-80 como SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 CONEXÕES PROVÁVEIS COM A EMIGRAÇÃO INTERNACIONAL Em suma, esse conjunto de medidas que toma como referência a perspectiva copernicana das redes sociais põe em evidência: i) um contexto reticular propício tanto à difusão de bens materiais e simbólicos quanto à circulação de representações sociais sobre a migração internacional (e isso acontece, por exemplo, quando se tem em conta a elevada conectividade das redes migratórias internas resultante da alta densidade e das pequenas distâncias geodésicas entre as microrregiões) e ii) também destaca microrregiões onde se situam as cidades brasileiras que maior participação tiveram na emigração internacional cujo destino foi o estado americano de Massachusetts. De fato, a seleção das microrregiões que constituem o resultado comum da aplicação das medidas de rede, fluxo máximo, centralidade local, centralidade global, conjuntos Lambda e equivalência estrutural, faculta o reconhecimento da coincidência entre o proeminente papel desempenhado por Valadares, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Ipatinga e Vitória nas redes migratórias internas, assim como a posição que ocuparam – primeiro, segundo, terceiro, quinto e sexto lugar respectivamente – na hierarquia das dez cidades brasileiras que 73 WEBER SOARES / ROBERTO NASCIMENTO RODRIGUES o sexto lugar entre as dez cidades brasileiras que mais enviaram migrantes para esse estado americano (MARTES, 1999). De mais a mais, a expansão das relações socioeconômicas que a construção da Estrada de Ferro VitóriaMinas proporciona entre o Vale do Rio Doce – mais precisamente Valadares e Ipatinga –, e a capital do estado espírito-santense constituem fortes indícios de que essa mesma capital e a microrregião que ela polariza integram a rede migratória internacional que tem como nós Valadares e Ipatinga. Concluindo, se o escrutínio dos fluxos populacionais internos, realizado por Soares (2002), segundo a perspectiva egocentrada da análise de redes, dá crédito à existência de vínculos estreitos entre as trocas migratórias internas e a emigração internacional de Valadares, de Ipatinga e de Vitória, também põe em relevo fortes indícios de que essas microrregiões constituem uma rede migratória internacional. Parece razoável supor que Belo Horizonte e Rio de Janeiro também se agregam a essa rede migratória internacional – em virtude das intensas trocas populacionais que mantiveram com Valadares e Ipatinga; da recorrência com que se manifestaram; e da proeminência que adquiriram em todos os resultados da aplicação das medidas de redes sociais com base na perspectiva copernicana. Mas não se pode dizer o mesmo, por exemplo, de Caratinga: apesar de estar inscrita em alto nível de equivalência estrutural com Valadares e Ipatinga nas redes migratórias internas, e de ter sustentado intensas trocas populacionais com essas duas microrregiões mineiras, em ambos os períodos – 1970-80 e 1981-91 – a microrregião caratinguense não integrou o conjunto de cidades brasileiras que mais enviaram migrantes para Massachusetts. Entre as prováveis explicações para a não-inserção de Caratinga no fluxo migratório internacional, cabe lembrar que o ambiente social joga um papel efetivo na difusão de bens simbólicos e na circulação de representações sociais sobre a migração internacional. Isto é, o processo de transmissão de informação manifesta-se num campo de negociação avaliativo que transforma essa mesma informação. Conseqüentemente, os desdobramentos desse processo não apresentam necessariamente uma única via, visto que dependem da singularidade do contexto social no qual ele se desenvolve. Finalmente, o conjunto de assertivas que gravitam em torno das conexões entre a emigração internacional e a migração interna deixa entrever uma via privilegiada de reflexão que se abre com os suportes teóricos e metodológicos da análise de redes sociais – à luz da análise da distribuição social das oportunidades e constrangimentos, mais enviaram migrantes para Massachusetts, conforme pesquisa de Martes2 (1999). Quando se tem em conta: - o registro numérico de que a microrregião de Ipatinga ocupou lugar de decisivo relevo nas trocas populacionais internas de Valadares, e que Valadares teve grande peso nas trocas populacionais ipatinguenses (SOARES, 2002); - a importância da emigração internacional na dinâmica demográfica valadarense e na ipatinguense; - o fato de que se encontram migrantes internacionais de Ipatinga nas mesmas localidades onde, nos Estados Unidos, residem os migrantes internacionais de Valadares – visto que as pessoas não migram para qualquer lugar, mas sim para lugares onde possuem parentes ou amigos; - a evidência de que os movimentos migratórios transplantam os principais segmentos de redes sociais; e - as conexões históricas entre Valadares e Ipatinga. Tudo isso leva a crer, à luz do princípio de que os fluxos migratórios facultam a ampliação dos laços pessoais e, em virtude disso, propiciam o aumento dos canais de transferência de recursos materiais, simbólicos, etc. na existência de vínculos estreitos entre a migração interna e a internacional de Valadares e de Ipatinga. O perfil demográfico mais recente da migração internacional de Ipatinga (SOARES, 2002), sugere que a rede migratória internacional, originada em Valadares, ampliou seu campo de ação e incorporou a microrregião ipatinguense. Além disso, ocorreu uma elevação das trocas migratórias internas entre Vitória, Valadares e Ipatinga da década de 70 para os anos 80: - o número de emigrantes de Valadares para a microrregião de Vitória aumentou 52%, passou de 4.631 a 7.042; - as perdas populacionais de Ipatinga para Vitória saltaram de 3.089 a 8.299; - os imigrantes de Vitória em Valadares e Ipatinga também aumentaram de um período a outro, chegando a quase 199% no caso valadarense e a 78% no ipatinguense. Tais dados remetem à intensificação dos contatos entre esses recortes territoriais brasileiros, à ampliação dos laços pessoais e à transferência de segmentos de redes sociais de uma microrregião para outra (SOARES, 2002). Desta forma, verifica-se a expressiva presença de emigrantes internacionais originários de Vitória nas cidades de Massachusetts, onde se concentraram os emigrantes internacionais de Valadares e de Ipatinga – Vitória ocupa 74 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 REDES SOCIAIS E CONEXÕES PROVÁVEIS ENTRE MIGRAÇÕES INTERNAS ... HANNEMAN, R. Introduction to social network methods. Disponível em: <http://wizard.ucr.edu/~rhannema/ index.html#news>. Acesso em: 21 jun. 2001. da desigualdade de recursos disponíveis e da estrutura social por meio da qual as pessoas têm acesso ou não a esses mesmos recursos. As redes funcionam como circuito de tráfego no ambiente social, como trajetórias relacionais possíveis que ligam certos atores/nós; remetem ao fato de que a interação carece de princípios “ordenadores”, de representações sociais por meio das quais as pautas de conduta possam ser exercidas e, até mesmo, mudadas. Elas são dinâmicas, suscetíveis de alterações ao longo do tempo e, portanto, possuem dimensão processual, histórica, uma vez que expressam as regularidades presentes nas interações sociais. KNOKE, D.; KUKLINSKI, J. Network Analysis. Beverly Hills: Sage Publications, 1982. 96 p. KRITZ, M.M.; ZLOTNIK, H. Global interactions: migration systems, processes, and policies. In: KRITZ, M.M.; LIM, L.L.; ZLOTNIK, H. (Ed.). International migration systems: a global approach. Oxford: Claredon Press, 1992. p. 1-16. MARGOLIS, M.L. Little Brazil: imigrantes brasileiros em Nova York. Campinas: Papirus, 1994. 452 p. MARTES, A.C.B. Brasileiros nos Estados Unidos: um estudo sobre os imigrantes em Massachusetts. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 208 p. MASSEY, D.S. et al. Theories of international migration: a review and appraisal. Population and Development Review, v. 1, n. 1, p. 411-466, 1993. ________ et al. Return to Aztlan: The social process of international migration from western Mexico. Los Angeles: University of California Press, 1987. 335 p. NOTAS NACIONES UNIDAS. Migración internacional y desarrollo. Nueva York: Sección de Reproducción de las Naciones Unidas, 1997. 1. A título de ilustração, poder-se-ia considerar, como exemplo de rede, o fluxo comercial de 50 mercadorias diferentes (café, açúcar, chá, etc.) entre 170 países do sistema mundial, em determinado ano. Neste caso, os 170 países despontam como atores e a quantidade de cada mercadoria exportada de um país para os 169 restantes, como a força do laço existente entre eles (HANNEMAN, 2001). OLIVEIRA, O. de; STERN, C. Notas sobre a teoria da migração interna: aspectos sociológicos. In: MOURA, H. de. (Coord.). Migrações internas: textos escolhidos. Fortaleza, BNB/ETENE, t. 1, 1980. p. 248-265. PIORE, M. Birds of passage: Migrant labor and industrial societies. New York: Cambridge University Press, 1979. 2. Conforme pesquisa de campo realizada por Martes (1999), as dez cidades brasileiras que mais contribuíram com os fluxos migratórios internacionais para o estado americano de Massachusetts admitem a seguinte hierarquia: Valadares participou com 17% do total de emigrantes, Belo Horizonte com 11%, Rio de Janeiro com 9%, São Paulo com 8%, Ipatinga com 6%, Vitória com 5%, Goiânia com 4%, Anápolis com 3%, Brasília com 3% e Criciúma com 2%. Dignas de nota são as posições ocupadas por Ipatinga, quinto lugar, e por Vitória, sexto lugar, nesta hierarquia. PORTES, A. Economic sociology and the sociology of immigration: a conceptual overview. In: _______. (Ed.). The economy sociology of immigration: essays on networks, ethnicity and entrepreneurship. New York: Russell Sage Foundation, 1995. p. 1-41. PORTES, A.; BACH, R.L. Latin journey: Cuban and Mexican immigrants in the United States. Berkeley: University of California, 1985. SALES, T. Brasileiros longe de casa. São Paulo: Cortez, 1999. 232 p. SALIM, C.A. Estrutura agrária e dinâmica migratória na região centro-oeste, 1970-80: análise do êxodo rural e da mobilidade da força de trabalho no contexto de industrialização da agricultura e da fronteira urbanizada. Tese (Doutorado em Demografia) – UFRJ, Rio de Janeiro, 1992. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BONANICH, P. Introduction mathematical sociology: a textbook. Irvine, 2000. Disponível em: <http://www.sscnet.ucla.edu/soc/ faculty/bonacich/textbook>. Acesso em: 14 set. 2001. SASSEN, S. The mobility of labor and capital. New York: Cambridge University Press, 1988. SAYAD, A. O retorno, elemento constitutivo do migrante. Travessia - Revista do Migrante, São Paulo, jan. 2000 (número especial). BURT, R.S. Structural holes: the social structure of competition. Cambridge: Harvard University Press, 1992. SCOTT, J. Social network analysis. London: SAGE, 2000. CARVALHO, J.A.M. de. O saldo dos fluxos migratórios internacionais do Brasil na década de 80: uma tentativa de estimação. Revista Brasileira de Estudos de População, Campinas, v. 13, n. 1, p. 3-14, jan./jun. 1996. SOARES, W. Da metáfora à substância: redes sociais, redes migratórias e migração nacional e internacional em Valadares e Ipatinga. Tese (Doutorado em Demografia) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2002. DEGENNE, A.; FORSÉ, M. Introducing social networks. London: SAGE Publications, 1999. 248 p. ________. Emigrantes e investidores: redefinindo a dinâmica imobiliária na economia valadarense. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – UFRJ, Rio de Janeiro, 1995. GOZA, F. A imigração na América do Norte. Revista Brasileira de Estudos de População, Campinas, v. 9, n. 1, p. 65-82, 1992. TILLY, C. Transplanted Networks. In: YANS-Mc LAUGHLIN, V. (Ed.). Immigration Reconsidered. Oxford: Oxford University Press, 1990. p. 79-95. HAMMEL, E.A. A Theory of Culture for Demography. Population and Development Review, v. 16, n. 3, p. 455-485, 1990. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 75 WEBER SOARES / ROBERTO NASCIMENTO RODRIGUES WEBER SOARES: Professor do Departamento de Geografia da UFMG ([email protected]). ROBERTO NASCIMENTO RODRIGUES: Professor do Departamento de Demografia da UFMG e Pesquisador do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional – Cedeplar/UFMG ([email protected]). VALENTE, T.W. Network models of the diffusion of innovations. New Jersey: Hampton Press, 1995. WASSERMAN, S.; FAUST, K. Social network analysis: methods and applications. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. 825 p. WELLMAN, B. What is social network analysis? Toronto, 1997. Disponível em: <http://www.ascusc.org/jcmc/vol3/issue/ garton.html>. Acesso em: 10 ago. 2001. Artigo recebido em 17 de março de 2005. Aprovado em 6 de abril de 2005. 76 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 64-76, jul./set. 2005 A MIGRAÇÃO DOS SÍMBOLOS: DIÁLOGO INTERCULTURAL... A MIGRAÇÃO DOS SÍMBOLOS diálogo intercultural e processos identitários entre os bolivianos em São Paulo SIDNEY DA SILVA Resumo: Este artigo discute a linguagem dos símbolos entre os bolivianos em São Paulo a partir de uma perspectiva antropológica, procurando inferir os significados que práticas e objetos da cultura material, veiculados no contexto das festas devocionais, passam a ter numa nova conjuntura. No caso em análise, o contexto apresenta uma especificidade que é a discriminação – razão pela qual esses imigrantes estão mobilizados em veicular uma nova imagem de si mesmos. Palavras-chave: Bolivianos. Símbolos. Identidades. Diálogo intercultural. Abstract: This article aims to discuss from an anthropological perspective the language of symbols among Bolivian immigrants in São Paulo. It attempts to grasp the meaning that some cultural pratices presented in the context of devotional celebrations acquire in the new country. In the case under analysis, the context presents a specific challenge – as they have to face racial and social discrimination. That is why these immigrants are now engaged in showing a new image of themselves to Brazilian society. Key words: Bolivians immigrants. Symbols. Identities. Intercultural dialogue. A cia. Afinal, muitas vezes esses elementos evocam vários significados, dependendo da situação em que são veiculados. A partir dessa perspectiva, este trabalho propõe-se a analisar a linguagem dos símbolos no contexto migratório – particularmente para grupos que enfrentam alguma forma de discriminação, como é o caso dos bolivianos em São Paulo, que se mobilizam em torno da construção de uma nova imagem de si mesmos. Isto se deve ao fato de que a imprensa local tem veiculado com freqüência notícias que mostram o envolvimento de membros do grupo com o tráfico de trabalhadores e com a escravização de seus próprios compatriotas nas oficinas de costura da cidade. Por esse motivo, a prática abusiva de alguns oficinistas acaba incidindo na construção de uma imagem negativa, a qual é atribuída ao grupo por setores da sociedade local. lém da transposição de fronteiras geográficas, o processo migratório implica, invariavelmente, a inserção em uma nova ordem sociocultural – e esta é, em geral, marcada por tensões e estranhamentos, que acabam por incidir na dinâmica cultural do grupo dos emigrados, conferindo-lhe significações específicas. Porém, a inserção dos migrantes em um novo contexto não significa a perda ou, simplesmente, a fusão de sua cultura original com a local. Ao contrário, ela tende a simplificar-se e a condensar-se em alguns traços, que passam a ser distintivos para o grupo que os veicula, proporcionando-lhe maior visibilidade. É nesse contexto contrastivo que elementos da cultura material – como aguayos (tecidos multicoloridos), formas lingüísticas, ou mesmo expressões mais complexas, como rituais, tradições, festas entre outros – ganham relevân- SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 77-83, jul./set. 2005 77 SIDNEY DA SILVA mente), esses imigrantes passaram a apostar tudo na atividade da costura, alimentando, assim, sonhos de uma vida melhor para si mesmos e seus familiares que lá ficaram. Hoje, a presença boliviana é um fato consolidado na cidade de São Paulo. Isto se deve tanto à manutenção do fluxo migratório ao longo da década de 90 – quando eles se tornaram o grupo mais numeroso entre os hispano-americanos que vivem na cidade – quanto à construção de novas famílias, em geral de forma endogâmica. Do ponto de vista espacial, os bolivianos estão concentrados em bairros da zona central da cidade, como o Bom Retiro, Brás, Pari, Barra Funda, entre outros. Entretanto, há também uma significativa presença deles em bairros da Zona Leste, como, Belém, Tatuapé, Penha, Itaquera, Guaianases e em bairros da Zona Norte, como Vila Maria, Vila Guilherme, Casa Verde, Vila Nova Cachoeirinha, entre outros. Outro fator que vale ser destacado é o organizacional, uma vez que nos últimos anos surgiram várias instituições de cunho social e cultural, entre elas as fraternidades folclóricas de morenadas, fundadas em função das festas devocionais. A Fraternidade Bolívia Central, a primeira a ser fundada na cidade por ocasião da festa da Virgem de Copacabana de 2001, é a mais expressiva delas, pois reúne pelo menos trezentos integrantes – em sua maioria donos das oficinas de costura. Contudo, há também a participação de dançarinos de outras classes sociais inclusive de crianças – o que revela a preocupação do grupo em manter a continuidade da tradição pela segunda geração. Todos os anos novas roupas e alegorias são alugadas e trazidas da Bolívia para dar um colorido e brilho novos às festas tradicionais de que participam. O custo do aluguel gira em torno de U$ 100 (dólares). O significado de tal presença fundamenta-se em dois fatores: por um lado, é preciso considerar a importância econômica da mão-de-obra boliviana, pois grande parte dos que chegaram nas décadas de 80 e 90 trabalha na indústria da confecção – seja para coreanos, para brasileiros ou mesmo para os próprios compatriotas, que vão à Bolívia agenciar trabalhadores para as suas oficinas de costura.1 O problema é a forma como essa reprodução econômica se dá, ou seja, sem nenhuma regulamentação trabalhista, uma vez que parte dessa mão-de-obra é indocumentada.2 Dessa forma, abre-se espaço para relações de trabalho escravo (SILVA, 1997, p. 126). É preciso lembrar, no entanto, que dentro da comunidade, há também um grupo significativo de médicos, enfermeiros, dentistas e outros profissionais liberais, dentre os quais CRUZANDO FRONTEIRAS A inserção de imigrantes num contexto sociocultural diverso, e quase sempre adverso, é um processo marcado por conflitos e estranhamentos, seja para os recém-chegados, que não dominam os códigos culturais locais, seja para a sociedade receptora, que tende a vê-los a partir de estereótipos já construídos, transformando as diferenças étnico-culturais em algo exótico ou depreciativo. Assim, em primeiro lugar, é preciso lidar com esses preconceitos da sociedade local, os quais vêm à tona à medida que o grupo dos imigrados passa a disputar, com os nacionais, espaços no mercado de trabalho no bairro onde eles moram – sobretudo no que diz respeito aos serviços básicos de saúde e educação, nas instâncias de representação política, e na dinâmica cultural da cidade. Em segundo lugar, a transposição de fronteiras geográficas implica, no limite, o desafio de ser aceito como cidadão pelo país de destino, para desse modo ter seus direitos sociais, políticos e culturais respeitados – o que nem sempre acontece. Somente a partir da década de 80 a presença boliviana em São Paulo tornou-se significativa. Entretanto, pode-se dizer que tal presença não é um fenômeno recente, pois no início da década de 50, já era possível constatar a presença de alguns bolivianos na cidade, que vinham na condição de estudantes, estimulados pelo programa de intercâmbio cultural Brasil-Bolívia. Após o término dos estudos, muitos deles acabavam optando pela permanência na cidade, em razão das múltiplas ofertas de emprego oferecidas naquele momento pelo mercado de trabalho paulistano (SILVA, 1997, p. 82). As razões pelas quais os bolivianos continuam deixando a Bolívia são múltiplas. Porém, os fatores de ordem econômica são preponderantes na decisão de emigrar, já que o mercado de trabalho brasileiro, mesmo na denominada “década perdida” – ou seja, a de 80 – oferecia mais oportunidades de emprego do que o da Bolívia, pois esse país enfrentava uma profunda crise econômica, com altos índices de inflação e desemprego. O perfil característico desses imigrantes, que foi sendo construído desde os anos 80, mostra que eles são, em sua maioria: jovens; de ambos os sexos; solteiros; de escolaridade média; e vieram atraídos principalmente pelas promessas de bons salários feitas por empregadores coreanos, bolivianos ou brasileiros da indústria da confecção. Oriundos de várias partes da Bolívia, porém com uma predominância dos pacenhos e cochabambinos (portanto, provenientes de La Paz e Cochabamba, respectiva- 78 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 77-83, jul./set. 2005 A MIGRAÇÃO DOS SÍMBOLOS: DIÁLOGO INTERCULTURAL... os caporales, a diablada, os tinkus, as chuntas e outros, que se formam especialmente para a ocasião, fazem sua apresentação na praça. Todos os anos é realizado, também, um concurso de fantasias para crianças: elas apresentam as fantasias das danças dos adultos, numa clara indicação de que deverão continuar a tradição de seus pais em sua nova pátria. Outra tradição que ainda persiste entre eles é a molhança, ou brincadeira com água, tradição praticamente extinta no contexto brasileiro, embora fosse característica da celebração do Entrudo no Rio de Janeiro, no século 19. Ainda no contexto do carnaval, temos o martes de ch´alla, ou seja, a oferenda à Pachamama, realizada na terça-feira em âmbito privado e público. Nesse dia, se faz a ch´alla ou oferenda da casa, das máquinas de costura, do carro e outros objetos. Depois, se repete o mesmo ritual na praça, onde um pequeno pedaço de terra é cercado simbolicamente com serpentina para reverenciar e oferecer presentes à Mãe Terra, entre eles: bebida alcoólica, confetes, doces, incenso, entre outros. A Igreja Nossa Senhora da Paz, no Glicério, é outro espaço freqüentado pelos bolivianos e outros grupos de hispano-americanos que vivem em São Paulo. Inaugurada em 1942 pelos missionários escalabrinianos para atender inicialmente os italianos, esse local é hoje uma referência para os imigrantes mais pobres, pois lá são oferecidos vários serviços, entre eles orientação religiosa, jurídica, psicológica e assistência social, e até mesmo alojamento para quem não tem onde ficar no momento de sua chegada na cidade, ou quando as redes sociais de apoio dentro do grupo falham. Entretanto, vale destacar, nesse contexto, a excepcional visibilidade que o ciclo de festas devocionais realizadas naquela igreja confere aos bolivianos e outros grupos de hispano-americanos. Tal ciclo inicia-se em julho, com a festa da Virgem do Carmo, realizada pelos chilenos; seguidas pelas festas bolivianas das Virgens de Copacabana e Urkupiña, no mês de agosto; pela festa peruana do Senhor dos Milagres, no fim de outubro; e finalizando com a festa da Virgem de Caacupê, realizada pelos paraguaios no início de dezembro. Nas festas bolivianas, o que chama a atenção é a quantidade de pessoas de diferentes classes sociais, faixas etárias e origens étnicas que elas são capazes de aglutinar. Também é notável a diversidade de tradições, ritmos, sabores e objetos da cultura material veiculados nessas festividades. Nesse sentido, graças à sua polissemia – que lhes permite exprimir uma pluralidade de significados – muitos já enfrentaram o problema da regularização jurídica e profissional no Brasil e continuam sendo desafiados por ele. Por outro lado, a importância da presença boliviana em São Paulo deve-se à vitalidade e pluralidade de suas manifestações culturais, as quais são reproduzidas em diferentes momentos do ano, seja no âmbito privado ou público. Entre os espaços públicos de maior visibilidade e mais freqüentados pelos bolivianos na cidade temos a Praça Kantuta, no Canindé e a Igreja Nossa Senhora da Paz, no Glicério (região central). A praça é um espaço que foi conquistado por eles graças a um processo de negociação com a prefeitura paulistana e a população local, que se sentiu incomodada com a presença desses imigrantes no bairro – uma vez que, até o ano de 2002, eles ocupavam a Praça Padre Bento, ou “Praça do Pari”, como é conhecida pelos moradores daquela região. Os conflitos tiveram início com o aumento da presença boliviana na praça nos fins de semana: começaram a surgir casos de violência, circulação de droga, acúmulo de lixo no local, entre outros. Aos olhos dos moradores locais, o espaço público estava se transformando em privado, sendo apropriado por “estranhos”, que acabavam invertendo a ordem cotidiana das coisas, impondo um novo ritmo ao bairro e à cidade (SILVA, 2005, p. 40). Assim, a transferência dos bolivianos para o novo local, denominado por eles de Praça Kantuta (nome de uma flor do Altiplano), foi o caminho encontrado para se resolver o conflito. Seja como for, a praça é hoje um “pedaço” boliviano na cidade, ainda que somente aos domingos. Além de ser um espaço de encontro, de degustação da variada gastronomia típica do país e de múltiplos serviços – como propostas de emprego, corte de cabelo, propaganda religiosa de igrejas evangélicas – a praça é também o palco de várias manifestações culturais. Entre elas, vale citar a festa de Alasitas ou das miniaturas, realizada no dia 24 de janeiro, quando se festeja a deidade andina da abundância, denominada de Ekeko. Neste dia, as miniaturas de casas, carros, máquinas de costura, diplomas, alimentos, entre outras, deverão ser compradas antes do meio-dia e abençoadas por um padre católico, bem como por um yatiri (sacerdote andino), que faz o ritual da ch´alla, ou seja, uma oferenda à Pachamama (Mãe Terra), para que os desejos do devoto se tornem realidade (SILVA, 2003, p. 84). Outra festa que reúne uma grande quantidade de bolivianos na Praça Kantuta é o carnaval. No domingo de carnaval, vários grupos de danças, entre eles, a morenada, SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 77-83, jul./set. 2005 79 SIDNEY DA SILVA os símbolos constituem-se um importante canal de diálogo para grupos de imigrantes em vias de inserção num novo contexto – como é o caso dos bolivianos em São Paulo. Em seguida, veremos como símbolos aparentemente dissonantes conversam entre si e, ao mesmo tempo, abrem possibilidades de aproximação entre diferentes culturas. Isto fica evidenciado, sobretudo, no contexto das festas devocionais em São Paulo, nas quais é veiculada uma multiplicidade de tradições e práticas culturais, entre elas a instituição do presterío, que consiste na escolha de um novo festeiro a cada ano para organizar os festejos. Este conta com a ajuda de colaboradores (padrinhos), denominada por eles de ayni. Essa tradição, fundada na lógica da dádiva, implica na obrigação de restituir o dom ofertado quando o doador organizar algum tipo de festa – seja em âmbito privado, como é o caso dos batizados e fim do luto, ou público, como é o caso das festas devocionais. A colaboração pode ser, por exemplo, armar os arcos no local da festa, revestindo-os de aguayos (tecido multicolorido) e adornados com objetos de prata, máscaras, flores, artesanatos, entre outros; oferecer as colitas, representação em miniatura de pequenos objetos obsequiados aos participantes da festa; ou ainda fazer um cargamento,4 ou seja, adornar um carro com aguayos, utilizando objetos de prata, bonecas vestidas tipicamente e outros elementos que vão sendo incorporados a cada ano (como é o caso do Pato Donald com notas de dólares ou a alegoria de um boi, em 2005, reproduzindo exatamente a figura do animal branco com uma estrela vermelha na testa que se apresenta no boi-bumbá Garantido, por ocasião do famoso Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas). A presença desse símbolo pela primeira vez na festa da Virgem de Copacabana – uma festa de caráter regional na Bolívia (La Paz), e que no exterior se transforma em “festa dos bolivianos” – nos instiga a pensar quais seriam os significados dessa presença aparentemente exótica num contexto cultural diferenciado. Em primeiro lugar, importa ressaltar que a festa como um fato social total põe em circulação uma multiplicidade de elementos culturais e sociais, num complexo sistema de prestações totais (MAUSS, 1974, p. 179). Em segundo lugar, seu meio de expressão, particularmente por meio das formas sensíveis e simbólicas, permite o diálogo com elementos de outras culturas – os quais parecem estar fora de lugar para uma percepção mais desavisada. Entretanto, eles encontram pontos de intersecção num imaginário cultural mais amplo, onde, em sua polissemia, os símbolos podem prestar-se a interessantes diálogos. No caso das culturas andinas, é importante destacar a presença de um símbolo como a llama branca sacrificada à Pachamama por ocasião do plantio. Símbolos dessa natureza são comuns em contextos em que a relação do homem com a terra é vital para a sua sobrevivência, como é o caso dos povos andinos. Para estes, a abundância não é uma simples decorrência das A LINGUAGEM DOS SÍMBOLOS NO CONTEXTO MIGRATÓRIO Como já notara Manuela C. da Cunha num outro contexto, a cultura de um grupo étnico no contexto migratório não se perde ou se funde simplesmente, mas sim tende a simplificar-se e a concentrar-se em alguns traços que se tornam diacríticos para o grupo. A língua é um deles, pois, como sistema simbólico capaz de organizar a percepção do mundo, constitui-se num diferenciador por excelência (CUNHA, 1986, p. 99-100). A culinária, os trajes, ritmos musicais, danças típicas e outros elementos da cultura material são, em geral, veiculados pelos diferentes grupos de imigrantes como elementos constitutivos das várias identidades em jogo. No caso dos bolivianos em São Paulo, elas são ao mesmo tempo elementos de diferenciação – seja em âmbito regional ou do ponto de vista étnico e cultural – como são também fatores de aglutinação e afirmação da identidade nacional, num contexto de contato interétnico e de discriminação. As danças da morenada e da diablada são emblemáticas dessa realidade, pois, ainda que originárias de um contexto de escravidão do negro e do índio nas minas de prata da Bolívia, elas passam a ser, no Brasil, a expressão de uma identidade boliviana positiva, independentemente da origem histórica de cada uma delas – em geral pouco conhecida pelos dançarinos. Vale lembrar, porém, que essas danças eram vinculadas a um contexto religioso e, portanto, passaram a ser vistas pelos colonizadores como “diabólicas”, pois, segundo Max Weber (1969), esta é a forma de se representar a religião dos vencidos. Um exemplo disso são as máscaras da morenada e da diablada, as quais ressaltam, por um lado, de forma exagerada e ridicularizada, os traços africanos; e, por outro, a demonização propriamente dita do outro. Entretanto, ao cruzarem as fronteiras geográficas e culturais, esses símbolos são evocados e apresentados com orgulho pelos bolivianos como elementos constitutivos de uma possível “identidade cultural” boliviana – ainda que a pluralidade cultural seja uma característica inconteste daquele país andino.3 80 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 77-83, jul./set. 2005 A MIGRAÇÃO DOS SÍMBOLOS: DIÁLOGO INTERCULTURAL... grande espetáculo do poder do pajé, e transformando-se em celebração dos povos indígenas da Amazônia. No caso do Peru, o boi aparece na Yawar fiesta, que significa festa do sangue, realizada entre os dias 26 a 30 de julho, em povoados como Cotabambas (Apurímac), região de Cuzco. Vale notar que as festividades acontecem durante as celebrações comemorativas da independência peruana, o dia 28 de julho. O ritual consiste em capturar um condor que é apresentado ao prefeito na entrada da cidade, o qual lhe dá as boas-vindas. Depois, ele é colocado em cima de um boi que, ao movimentar-se, assusta o condor – e este começa a bicar o lombo do animal até sangrar. A presença do sangue não é aleatória, já que ele fecunda a terra, o ventre da Pachamama, aquela que dá os bens necessários à vida. É importante dizer que a referida festa está ancorada em princípios comuns às cosmologias andinas, onde cada elemento tem um significado e, portanto, ganha um sentido particular para os participantes da festa. O condor está associado aos ancestrais e é denominado de Apu (Senhor), de modo que seu habitat, as montanhas, são também consideradas seres vivos, morada dos ancestrais, e, por essa razão, cada comunidade tem uma montanha como protetora. A partir dessa perspectiva, o condor, denominado de Apu Kuntur (condor sagrado), pertence à esfera celeste, ou seja, ao mundo superior, em contraposição ao touro, denominado de Wak´as, divindade pertencente ao mundo inferior. No meio está a Pachamama, a Mãe-Terra, que gosta de receber presentes, como a folha da coca, incenso, chicha (bebida fermentada do milho), cerveja, entre outros, e, assim, também o sangue, que resulta do encontro auspicioso entre os mundos superior e inferior. Nesse contexto, a festa acontece em meio a uma grande expectativa, pois, se ocorrer algum acidente com o condor no momento de sacrificar o boi e ele vier a morrer, algo de ruim poderá sobrevir sobre a comunidade – como uma forte seca ou a morte de algum parente daquele que capturou o condor. Assim, o momento da sua soltura é marcado por um grande alívio e satisfação para aqueles que participaram do ritual. No Paraguai, tal como no Brasil, o boi aparece no contexto das festas juninas, ou seja, durante os festejos de São João. Naquele país, esta tradição recebe o nome de Toro Candil, uma vez, que durante a festa, a armadura de um touro, feita em madeira recoberta com o couro natural de um boi, é carregada por um personagem que ameaça precipitar-se sobre os participantes da festa, os quais expressam um grande prazer em enfrentar o boi, que tem a respostas da natureza à ação do homem, mas depende de uma relação de reciprocidade, expressa nos rituais de fertilidade, onde o derramamento de sangue é fundamental para garantir uma boa colheita. É nesse contexto que a llama branca aparece como uma mediação entre morte e vida, privação e abundância de bens que são pedidos à Pachamama (Mãe Terra) no início do mês de agosto. Ora, ela é também, em suas versões, o significado do animal encontrado nos bois-bumbás de Parintins e nos bumbameu-boi de outras partes da Região Nordeste – que são definidos por Mário de Andrade como a expressão de algo “maior e geral” que é o “princípio de Morte e Ressurreição” da natureza (ANDRADE apud BRAGA, 2002, p. 336). Contudo, a figura do boi não é uma exclusividade brasileira. Ele está presente em diferentes contextos latinoamericanos, como resultado de um processo de mestiçagem cultural entre tradições ibero-americanas, indígenas e africanas que ocorreu no Brasil, assim como no restante da América espanhola. No Brasil, as festas do boi são celebradas, sobretudo, no Nordeste e Norte do país no mês de junho, época das comemorações das festas de São João, tendo sua versão mais conhecida nos bumba-meu-boi do Maranhão. Parintins é hoje um exemplo emblemático da vitalidade desta tradição que, migrando para o Amazonas com os trabalhadores nordestinos no ciclo da borracha, mobiliza a região amazônica em torno da saga dos bois Garantido e Caprichoso, que se enfrentam a cada ano numa disputa criativa e renovadora. A festa é um auto que dramatiza, segundo a narrativa dos brincantes, a História de Catirina, mulher de um peão de fazenda, chamado Pai Francisco, que estava grávida e queria comer língua de boi. Desesperado, seu marido resolve matar o boi do dono da fazenda, o amo do boi. Denunciado por um dos vaqueiros e perseguido por índios guerreiros a serviço do amo, Pai Francisco tem que encontrar um meio de trazer o boi de volta. Assim, ele resolve chamar outros personagens para ajudálo a “curar” o boi – o padre, o doutor, o pai de santo, o pajé – até que alguém deles (o personagem varia de lugar para lugar segundo a intenção satírica do auto) o aconselha a aplicar um clister no rabo do boi. Feito o que lhe fora ensinado, o boi dá seu urro, demonstrando que está vivo, e todos comemoram com danças, comida e bebida a ressurreição do boi (BRAGA, 2002, p. 2728). Em sua versão amazônica, a estória narrada pelo auto dramático é minimizada, reduzindo-se a personagens obrigatórios, porém, quase que só alegóricos (Pai Francisco, Catirina, o amo, os vaqueiros) para dar lugar ao SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 77-83, jul./set. 2005 81 SIDNEY DA SILVA cabeça em chamas. No final da brincadeira, o boi é queimado na fogueira, sendo, portanto, sacrificado simbolicamente. Já na Bolívia a brincadeira com o boi, denominado de Waka tok‘oris ou de toros bailadores, aparece no contexto do carnaval (tal como o bumba-meu-boi em Pernambuco e Alagoas e o boi-de-mamão em Santa Catarina) e também das festas devocionais – entre elas a da Virgem de Urkupiña (Cochabamba) e a de Gran Poder (La Paz) –, quando um personagem com a armadura do boi e um outro na condição de toureiro simulam uma tourada. A cada três passos o boi dá uma volta e aquele que imita o toureiro levanta uma espada de madeira insinuando o ato de sacrificá-lo (PAREDES, 1981, p. 40-41). Seja como for, esse boi que aparece em diferentes festas latino-americanas é “bom para pensar” a dinâmica da cultura – particularmente no contexto da migração, pois os símbolos, em sua polissemia, vão revelando uma pluralidade de significados que permitem o diálogo entre contextos culturais aparentemente distantes e desconexos e, ao mesmo tempo, são signos aferidores de identidades. No caso de Parintins, o boi é o elemento central em torno do qual se constrói uma identidade regional que é reafirmada anualmente no ciclo das festas juninas, a partir da disputa entre os bois Garantido e o Caprichoso (VIEIRA FILHO, 2002, p. 31). Já em São Paulo, o boi indicaria a existência de uma mediação cultural dialogando com a llama, símbolo das culturas andinas e, portanto, elemento de afirmação de uma identidade andina e boliviana que quer impor-se enquanto positividade em meio a um contexto de discriminação, como é o vivido pelos bolivianos na atualidade. Essa é a identidade que se afirma através da festa “confundindo-se” com a cultura local e é, ao mesmo tempo, signo da “carnavalização” que marca ambos os festejos.5 Um exemplo disto é a fala de Guillermo Salazar, residente há mais de quarenta anos na cidade, e que só nos últimos anos começou a participar das festas marianas. Antes, ele procurava viver no anonimato e não participava de nenhuma atividade organizada por bolivianos – o que pode ser interpretado como uma estratégia para não ser identificado como boliviano, em razão dos preconceitos com que seu grupo é visto por setores da sociedade paulistana e com os quais teria que lidar. Hoje, participante das festas devotas, ele afirma enfaticamente: solamente ahora tengo consciencia de mis raíces. Isto significa que agora ele já não tem mais receio de se assumir enquanto boliviano, pacenho, andino e de ascendência aimará. Pelo contrário, sente-se orgulhoso dessas for- mas de pertencimento e identidades que as festas e seus símbolos lhe permitem reconhecer. Assim, como uma linguagem distintiva, a migração dos símbolos permite dizer várias coisas ao mesmo tempo sobre quem os veicula. Mais do que isso: permite-lhes criar novas formas de diálogo com o novo contexto que os recebe – e que é marcado, não raras vezes, por tensões e ambigüidades. NOTAS Trabalho apresentado na IX Abanne – Reunião de antropólogos do Norte e Nordeste/2005. 1. Vale notar que existem redes de agenciamento de mão-de-obra na Bolívia, em cidades como La Paz, de onde vem grande parte dos bolivianos que vivem em São Paulo, e Santa Cruz de La Sierra, cidade mais próxima do Brasil e, portanto, última etapa antes da saída do país. O custo da viagem para o emigrante pode variar, dependendo do trajeto escolhido. Para quem opta pela entrada por Corumbá (MT), pode custar cerca de US$ 120,00 (dólares). Porém, o risco de ser detido por um agente federal é maior. Já quem escolhe a rota do Paraguai, terá que enfrentar uma longa e exaustiva viagem até chegar à Ciudad Del Leste, para depois cruzar a fronteira e entrar no Brasil por Foz do Iguaçu (PR). O custo deste trajeto pode chegar a US$ 160,00 (dólares). 2. O problema da indocumentação tem sido um dos grandes desafios para os imigrantes mais pobres no Brasil, particularmente para os bolivianos, uma vez que o Estatuto do Estrangeiro, aprovado em 1980 por decurso de prazo e num contexto de Segurança Nacional, só permite a entrada de mão-de-obra especializada e de empreendedores no país. Para os que não se enquadram nestes critérios, as duas únicas possibilidades de regularização são o casamento com cônjuges brasileiros ou o nascimento de um filho em território brasileiro. Um novo projeto de lei está em discussão no Congresso Nacional. Entretanto, a nova proposta mantém o seu caráter seletivo e economicista, sem levar em conta a Política de Direitos Humanos do governo brasileiro. No dia 15 de agosto de 2005 foi assinado um acordo entre Brasil e Bolívia para a regularização dos indocumentados em ambos países. O problema, porém, é a pesada multa que cada imigrante terá que pagar para regularizar-se, a qual gira em torno de R$ 828,00, valor equivalente a cem dias de ilegalidade no país. 3. Vale notar que a questão da identidade cultural, quando tomada de forma essencialista, “pode levar a uma racialização dos indivíduos e dos grupos, pois, para algumas teses radicais, a identidade está praticamente inscrita no patrimônio genético”. Nesta perspectiva, a identidade “é vista como uma condição imanente do indivíduo, definindo-o de maneira estável e definitiva” (CUCHE, 1999, p. 178-179). Entretanto, num contexto contrastivo, como o vivido pelos bolivianos em São Paulo, a tendência é apresentar uma identidade cultural essencializada, pois o que está em jogo é exatamente a afirmação de uma identidade positiva numa situação de discriminação. 4. Essa tradição remonta à época pré-colombiana, quando os metais preciosos, que não tinham valor de troca, eram levados no lombo de animais para serem oferecidos às divindades incaicas. Hoje, essa tradição continua vigente, seja nas festas devocionais realizadas na Bolívia, seja naquelas realizadas no exterior – como é o caso de São Paulo, ocasião em que os devotos fazem passar perante a Virgem os símbolos de sua riqueza obtida da terra (isto é, graças à intermediação da Pachamama), oferecendo-a como agradecimento ou em caráter propiciatório, na esperança de obter a dádiva da Mãe-Terra (MAUSS, 2005). Porém, agora essa riqueza já não é mais retirada da terra, como 82 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 77-83, jul./set. 2005 A MIGRAÇÃO DOS SÍMBOLOS: DIÁLOGO INTERCULTURAL... em épocas pretéritas, mas do trabalho superexplorado nas confecções da cidade (SILVA, 2003, p.89). PAREDES, M.R. El arte folklórico de Bolivia. La Paz: Librería Editorial Popular, 1981. 5. Não é por acaso que danças como a morenada e a diablada entre outras – que em geral são apresentadas no carnaval de Oruro e também nas festas devotas em São Paulo – vão parar na quadra da escola de samba Camisa 12, local onde ocorre o último dia dos festejos. ROJO, H.B. Fiesta boliviana. La Paz: 1991. 128p. (Editorial “Los Amigos del Libro”). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ________. Virgem/Mãe/Terra. Festas e tradições bolivianas na metrópole. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2003. ARGUEDAS, J.M. Yawar Fiesta. Lima: Mejía Baca,1958. ________. Salud! Sirvase compadre! A comida e a bebida nos rituais bolivianos em São Paulo. Travessia – Revista do Migrante, n. 42, p. 5-10, jan./abr. 2002. SILVA, S.A. da. A Praça é Nossa: faces do preconceito num bairro paulistano. Travessia – Revista do Migrante, n. 51, p. 39-44, jan./ abr. 2005. BRAGA, S.I.G. Os bois-bumbás de Parintins. Rio de Janeiro: Funarte/Ed. Universidade do Amazonas, 2002. ________. Costurando sonhos. Trajetória de um grupo de imigrantes bolivianos em São Paulo. São Paulo: Paulinas, 1997. CASTELLS, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. VIEIRA FILHO, R.D. A festa de boi-bumbá em Parintins: Tradição e identidade cultural. Somanlu, Revista de Estudos Amazônicos, Manaus, ano II, v. 2, p.27-33, 2002. (Edição especial). CUNHA, M.C. Antropologia do Brasil: mito história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1986. WEBER, M. Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1969. FESTAS Latino-americanas. Vídeo TV Cultura. São Paulo: TV Cultura, 1997. HALL, S. Da diáspora. Identidades e mediações. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. SIDNEY ANTONIO DA SILVA: Antropólogo, Doutor em Antropologia pela USP, Membro do conselho editorial da revista Travessia. MAUSS, M. O Sacrifício. São Paulo: Cosacnaify, 2005. Artigo recebido em 30 de junho de 2005. Aprovado em 25 de agosto de 2005. ________. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU/Edusp, 1974. v. I e II. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 77-83, jul./set. 2005 83 ROSANA BAENINGER SÃO PAULO E SUAS MIGRAÇÕES NO FINAL DO SÉCULO 20 ROSANA BAENINGER Resumo: Este artigo busca resgatar as tendências migratórias nacionais para o Estado de São Paulo nos anos 90, destacando a centralidade da Região Metropolitana de São Paulo. No âmbito intra-regional, são analisados os fluxos migratórios metrópole-interior, em especial nas áreas consolidadas como espaços ganhadores de população. Palavras-chave: Migração. Redistribuição da população. Urbanização. Abstract: This article seems to recover the national migratory trends for the State of São Paulo in 1990s, denoting the centrality of the São Paulo Metropolitan Area. In the intra-regional scope, the metropolis-interior migratory flows are analyzed, in special in the areas consolidated as spaces witch receive population. Key words: Migration. Redistribution of population. Urbanization. O presente trabalho busca analisar o papel de São Paulo no contexto migratório nacional nos anos 90, bem como aprofundar aspectos da dinâmica intra-estadual. As preocupações que permeiam o trabalho estão pautadas nas seguintes questões: houve a continuidade do processo de desconcentração populacional da metrópole de São Paulo? Qual foi o comportamento das áreas caracterizadas como de evasão populacional? Como se deu o crescimento das cidades e o crescimento da população segundo a morfologia da rede urbana paulista? Os pólos regionais continuaram sendo absorvedores de população? As tendências apontadas a seguir indicam novos arranjos migratórios no Estado: há a consolidação de determinadas áreas; a expansão da migração para regiões fora das franjas metropolitanas; ao mesmo tempo, observa-se a redefinição de espaços da migração, tanto na metrópole de São Paulo quanto no interior.1 Essas evidências empí- ricas estimulam algumas interpretações teóricas que, sem abandonar a importância das transformações econômicas e suas relações com a dinâmica migratória e regional, consideram abordagens que possam ser complementares e mais voltadas para a sociologia contemporânea. ASPECTOS TEÓRICOS DA MIGRAÇÃO NAS ÚLTIMAS DÉCADAS As tendências gerais dos deslocamentos populacionais no Brasil ocorridos desde os anos 30 até a década de 70 estiveram ancoradas na enorme transferência de população do meio rural para o urbano, nas migrações com destino às fronteiras agrícolas, no fenômeno da metropolização e na acentuada concentração urbana. Na vertente da migração rural-urbana, Singer (1973) contextualizou esses movimentos migratórios no bojo do processo de industrialização em curso, onde os desloca- 84 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 SÃO PAULO E SUAS MIGRAÇÕES NO FINAL DO SÉCULO 20 nal, emprestando recentes características ao processo de distribuição espacial da população e redefinindo alguns aspectos da migração interna, ao mesmo tempo em que ainda se mantém como o maior centro de recepção migratória. As migrações internas assumem, nesse contexto, maior complexidade, particularmente pelo predomínio das migrações entre áreas urbanas; ou seja, movimentos migratórios constitutivos e elemento fundamental na configuração de novas espacialidades. Portanto, o entendimento do processo de reorganização da população no espaço desloca-se do eixo de análise via migração ruralurbana, que é a força motriz das análises centrípetas. Nas últimas décadas, as migrações internas no Brasil foram marcadas por alterações expressivas em sua dinâmica – e estas refletem-se nas novas especificidades e tendências do processo de distribuição espacial da população. Ao lado dos fluxos tradicionais, também passam a sobressair-se como elementos explicativos e determinantes do fenômeno migratório: outras direções (movimentos de curta distância, movimentos de retorno, movimentos intra-regionais) e novas dimensões da migração – em particular a espacial. As tendências recentes dos movimentos migratórios no Brasil suscitaram análises interpretativas enriquecedoras do debate atual. As transformações ocorridas no fenômeno migratório poderiam estar apontando: a configuração de um novo padrão migratório brasileiro (BRITO, 1997); o resultado das transformações ocorridas na sociedade e em sua dinâmica econômica no mesmo período (PACHECO; PATARRA, 1998); variações de um mesmo processo historicamente referenciado no tempo e no espaço (CUNHA, 1999); a desconcentração da população frente à desconcentração econômica (MATOS, 1995); a expansão dos espaços da migração (BAENINGER, 1999). Mesmo com diferentes maneiras de interpretar o fenômeno, essas análises indicam, de modo geral, a partir dos anos 80, as evidências e características apontadas anteriormente: inflexão no ritmo de crescimento metropolitano, aumento nas migrações de curta distância, importância do fluxo de retorno, esgotamento dos deslocamentos para as fronteiras agrícolas, diminuição no ímpeto das migrações inter-regionais. Os anos 90 foram ainda mais desafiadores em termos de interpretações teóricas, particularmente em relação às análises pautadas na interiorização da indústria, uma vez que esse processo vem perdendo fôlego desde meados dos 80. Se, de um lado, os anos 80 e 90 assistiram a intensificação e consolidação de tendências já observadas nos anos 70, deve-se, contudo, considerar que, a partir de então, mentos populacionais – com origem no rural e destino urbano representavam a força de trabalho necessária à etapa de acumulação capitalista. As áreas rurais estagnadas ou em processo de transformação contribuíam para “fatores de estagnação” ou “fatores de mudanças” impulsionadores de fluxos migratórios nos locais de origem, onde as “causas” e os “motivos” da migração eram resultantes das transformações econômicas globais da sociedade. Os excedentes populacionais do rural constituíam transferências populacionais para as cidades, com a incorporação desses contingentes no mercado de trabalho industrial em expansão. Embora os movimentos migratórios rural-urbanos fossem a principal força redistributiva da população, principalmente nos anos 50 e 60, o panorama dos movimentos migratórios no Brasil foi se ampliando a partir de então, até mesmo pela nova etapa de desenvolvimento econômico que o país viria assistir (CANO, 1988; PACHECO; PATARRA, 1998; MARTINE, 1987). Segundo Martine e Camargo (1984), o cenário da distribuição espacial da população brasileira a partir dos anos 60 foi movido por forças centrífugas, com a expansão populacional (migrações inter-regionais) rumo às áreas de fronteiras, e por forças centrípetas, com a migração rural-urbana em direção às grandes cidades do Sudeste, particularmente para a Região Metropolitana de São Paulo. Já nos anos 70, no bojo dessa bipolaridade, as forças de reforço à concentração (forças centrípetas) faziam-se notar, promovendo a emigração das áreas de fronteiras agrícolas em direção às cidades maiores (MARTINE, 1987). Nesse contexto, a urbanização nacional operavase em moldes cada vez mais concentradores, em um processo de distribuição da população que tendia a privilegiar os grandes centros urbanos do Sudeste. A partir dos anos 80, essas forças redefinem-se com mais nitidez e pode-se compreender melhor as direções e os sentidos das migrações internas. As “forças centrífugas”, resultantes da força de atração exercida pelas fronteiras agrícolas, já haviam acentuado sua perda de importância nos anos 70 (MARTINE, 1987), muito embora seus desdobramentos tenham ainda se refletido, nos anos 80 e início dos 90, nos movimentos migratórios. Já as “forças centrípetas”, em especial a exercida pela metrópole de São Paulo, arrefeceram pós anos 80, porém não desapareceram (BAENINGER, 1999). Compondo um movimento mais amplo de distribuição populacional, a Região Metropolitana de São Paulo – RMSP também passou a se destacar pela importância de seu volume emigratório em nível nacio- SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 85 ROSANA BAENINGER esses fenômenos estiveram contextualizados em tempos, momentos e espaços inseridos em uma outra sociedade: na sociedade de risco (BECK, 1992) ou na alta modernidade (GIDDENS, 1991). A compreensão dos fenômenos urbanos, em especial as novas formas de mobilidade espacial da população, passam por dimensões que, mesmo como reflexos de reestruturações na economia, compõem um novo mosaico das interações sociais. A articulação de processos locais ao âmbito regional e global promove “mecanismos de desencaixe” da sociedade (GIDDENS, 1991), com reflexos nos processos de urbanização e de redistribuição espacial da população nos variados contextos regionais. As novas territorialidades, por sua vez, aceleram seu processo de emergência na sociedade contemporânea, onde os riscos são compartilhados (OJIMA, 2003). Nesse novo cenário, as novas territorialidades, que abrangem municípios diferenciados, estão imersas em um conjunto de “sistemas peritos” da sociedade (GIDDENS, 1991) – dentre os quais se destaca a facilidade de transportes –, contribuindo para a formação, a institucionalização e para os desafios da gestão desses espaços, tanto em termos das migrações e dos deslocamentos populacionais quanto das políticas sociais. O aumento da migração intrametropolitana e intra-regional é também uma resposta aos espaços compartilhados da sociedade de risco e indicam a necessidade de arranjos institucionais que contemplem essas novas territorialidades. O aprofundamento futuro dessas interpretações poderá contribuir para o entendimento do fenômeno migratório em São Paulo, bem como para a compreensão da relação entre migração e urbanização nos espaços metropolitanos e interioranos. vem se mantendo constante a partir dos anos 80: de 1,3 milhões, nos 70, para 1,8 milhões, nos 90. Desse modo, considerando-se a “eficiência” do Estado de São Paulo na retenção da migração, observa-se que, nos anos 70, este figurava no contexto interestadual como área de média absorção migratória (IEM de 0,43), com um ganho líquido populacional de quase 2 milhões de pessoas. Já no período 1981-1991, passava para área de baixa absorção migratória (IEM de 0,28), decrescendo seu saldo migratório para 1,2 milhão de pessoas. No período 1990-2000, manteve essa baixa capacidade de retenção da migração, com o mesmo IEM (0,29) registrado na década anterior, porém com um saldo migratório mais elevado de 1,5 milhão de pessoas. Destaca-se que, com relação aos anos 70, mesmo com volumes de migração semelhantes, os anos 90 registraram menor capacidade de retenção da população no Estado. De fato, deve-se destacar que, dentre as características da migração interestadual para São Paulo, houve importante redução de seu volume absoluto dos anos 70 para os 80. Nos anos 70, a média anual era de 325.089 migrantes, baixando para 267.916, no período 1981-1991; para o período 1990-2000, este volume anual voltou a ser de 325.438 migrantes. Constata-se, portanto, que os anos 80 caracterizaram-se como o momento específico da tendência de declínio da imigração interestadual para São Paulo, e pode ter refletido os efeitos mais imediatos da desconcentração econômica, das novas economias regionais, das “ilhas de prosperidade” (PACHECO, 1998) que, juntamente com a forte crise econômica que se manifestava na metrópole de São Paulo, compuseram um movimento de população caracterizado tanto pela redução na imigração quanto pela forte emigração para fora de São Paulo. O aumento da imigração nos anos 90 para o Estado de São Paulo – em especial para a RMSP – parece se dever menos a uma recuperação econômica da metrópole paulista (até pelo aumento da emigração nos 90), e mais, talvez, ao arrefecimento na capacidade de reter a população nas áreas de “origem” da migração. Essa retomada da imigração para São Paulo pode trazer à tona a discussão da reconcentração da migração em São Paulo. De fato, por um lado, em termos de migração de longa distância, parece que São Paulo mantém essa centralidade dos destinos migratórios; por outro, nesse mesmo movimento está presente um forte componente de retorno que transforma espaços migratórios anteriormente consolidados, como a RMSP, em áreas de intensas entradas e saídas de contingentes populacionais. O PÓLO NACIONAL DE RECEPÇÃO MIGRATÓRIA: SÃO PAULO As tendências da migração nacional nas últimas décadas vêm indicando oscilações do volume migratório que se dirige a São Paulo. À intensa migração interestadual dos anos 70 (3,2 milhões de pessoas) seguiu-se uma redução na década de 80 (2,6 milhões). Isso parecia indicar que essa tendência continuaria para os anos 90; no entanto, nesse último período as migrações interestaduais para São Paulo voltaram aos patamares dos anos 70 (3,2 milhões de migrantes).2 Contudo, a outra face do fenômeno migratório estadual é marcada pela emigração de São Paulo – tendência que 86 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 SÃO PAULO E SUAS MIGRAÇÕES NO FINAL DO SÉCULO 20 fluxo de migrantes do Nordeste para o Estado de São Paulo, porém mantendo no mesmo patamar seu volume de emigração (de 322 mil, entre 1980 e 1991 para 331 mil, nos anos 90). Por outro lado, a emigração do Estado de São Paulo para os estados nordestinos também aumentou: de 509 mil emigrantes, nos anos 80, para 690 mil, entre 1990 e 2000; para a Bahia, a emigração, que foi de 147 mil pessoas, na década de 80, passou para 223 mil, nos anos 90. Nas trocas líquidas populacionais, no entanto, São Paulo aumentou seu ganho com o Nordeste, de 834 mil pessoas para 982 mil, de uma para outra década; com a Bahia, nas trocas populacionais, São Paulo chegou a obter um ganho de 428 mil pessoas contra 289 mil, dos anos 80. Essa elevação no ganho populacional para o Estado de São Paulo, advinda das trocas migratórias, ocorreu também com os Estados da Região Norte. Ainda nos anos 80, São Paulo registrou uma emigração para essa região de cerca de 58 mil pessoas, como reflexo das possibilidades de expansão da fronteira agrícola e do garimpo, sendo o volume de entrada para o Estado praticamente o mesmo. Já nos anos 90, a emigração para os Estados da Região Norte em seu conjunto decresceu (49 mil migrantes), embora para o Estado do Pará possa-se observar um ligeiro aumento em seu volume (de 13 mil pessoas para 15 mil), o que resultou em um ganho populacional da ordem Apesar da crise econômica, São Paulo continuou sendo o maior pólo de recepção da migração, bem como o “coração da economia nacional”. Portanto, no imaginário migratório – principalmente para os migrantes de áreas menos desenvolvidas – essa área continuará fazendo parte da geografia mental da população (VAINER, 1991). Talvez a relação migração/industrialização não seja tão nítida e direta como nos anos 60 e 70, mas, para os movimentos interestaduais, permanece a forte e complexa relação migração/emprego e, certamente, as redes sociais constituem elementos importantes da manutenção de históricos fluxos migratórios para a metrópole. Na estrutura migratória dos fluxos de chegada e saída de migrantes inter-regionais de e para o Estado de São Paulo (Tabela 1), nos anos 90, o Nordeste continuou liderando em volume, respondendo por 52,6% dos que entraram no Estado. O volume total da imigração dessa região, que era de 1,3 milhão de migrantes, no período 1981-1991, subiu para 1,7 milhão entre 1990 e 2000. Dentre os Estados da Região Nordeste, destaca-se o incremento da imigração, vinda principalmente da Bahia (de um volume de 437 mil pessoas, nos anos 80, para 652 mil, nos 90), do Maranhão (de 32 mil para 63 mil migrantes, respectivamente) e do Piauí (de 79 mil para 109 mil pessoas). Pernambuco continuou ocupando o segundo maior TABELA 1 Volumes de Imigração e Emigração Interestadual, segundo Regiões Estado de São Paulo – 1981-2000 Regiões Imigração Emigração Trocas Migratórias 1981-1991 1990-2000 1981-1991 1990-2000 1981-1991 1990-2000 2.679.162 3.177.676 1.494.933 1.789.544 1.184.229 1.388.132 58.715 26.275 58.444 25.478 58.742 13.192 49.295 15.511 -27 13.083 9.149 9.967 Nordeste Maranhão Piauí Pernambuco Bahia 1.343.496 32.136 79.823 322.686 437.131 1.672.649 63.309 109.358 331.070 652.212 509.433 13.244 26.004 121.071 147.587 689.908 19.675 49.794 128.640 223.420 834.063 18.892 53.819 201.615 289.544 982.741 43.634 59.564 202.430 428.792 Sudeste Minas Gerais 619.793 475.269 530.765 411.590 424.912 326.580 521.039 412.020 194.881 148.689 9.726 -430 Sul Paraná 493.407 440.281 406.346 347.388 287.240 222.365 344.090 262.129 206.167 217.916 62.256 85.259 Centro-Oeste Mato Grosso 163.751 37.689 168.242 45.425 214.606 64.125 185.212 40886 -50.855 -26.436 -16.970 4.539 BRASIL (1) Norte Pará Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1991 e 2000 (tabulações especiais, Nepo/Unicamp). (1) Exclui país estrangeiro. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 87 ROSANA BAENINGER Paulo volta a ser uma área de média absorção migratória com relação ao Nordeste; de 9 mil pessoas com origem na Região Norte para o Estado de São Paulo. Considerando outra área de fronteira agrícola – a Região Centro-Oeste – a tendência a maior emigração para seus estados do que a imigração para São Paulo ainda permaneceu nos anos 90, embora o volume de emigrantes tenha apresentado uma diminuição: de 214 mil, no período 1980-1991, para 185 mil migrantes, nos anos 90 – o que resultou na manutenção da perda populacional de São Paulo para o Centro-Oeste em seu conjunto. Deve-se mencionar, contudo, que com o Estado do Mato Grosso, São Paulo reverteu a tendência de perda de população, de uma para outra década, passando a registrar um ganho populacional positivo; parte desse volume de imigração para São Paulo é composto por um movimento de retorno de migrantes que para lá se deslocaram em décadas passadas. Foi com os Estados do Sudeste – em especial com Minas Gerais – que o Estado de São Paulo refletiu a expansão dos espaços da migração no Brasil: passou a registrar uma perda populacional nos anos 90. Embora o volume de entrada de mineiros constitua o segundo maior fluxo da migração para São Paulo, em torno de 410 mil pessoas, entre 1990 e 2000 (era de 475 mil, nos anos 80), a emigração em direção a esse Estado elevou-se, de 326 mil emigrantes para 412 mil, entre 1980-1991 e 1990-2000. Com a Região Sul, embora o movimento de imigração tenha diminuído (de 440 mil pessoas para 347 mil) e o volume de emigração aumentado ligeiramente (de 222 mil pessoas para 262 mil), os ganhos populacionais para São Paulo mantiveram-se, mesmo que em volume bem menor (de 217 mil pessoas para 85 mil). Ou seja, a imigração vinda de Minas Gerais e Paraná ainda representam volumes expressivos de migrantes para o Estado de São Paulo. O que se constata, entretanto, é que o movimento emigratório foi bem mais acentuado, sobretudo para Minas Gerais. Em estudos anteriores sobre os anos 80, apontava-se uma tendência de menor migração para São Paulo oriundas desses estados. Na verdade, São Paulo continuará sendo o maior pólo de recepção migratória no país, ao mesmo tempo em que se assiste a expressiva emigração desta área para localidades específicas. Os movimentos migratórios de e para São Paulo, segundo as Grandes Regiões, no período 1990-2000 indicaram: - aumento da atração migratória do Estado com relação à Região Norte; - inversão da tendência do movimento migratório com Minas Gerais; - manutenção da tendência de evasão populacional para o Sul, em especial para o Paraná, porém ainda mantendo ganhos populacionais com os Estados dessa região; - com o Centro-Oeste, ainda manteve perdas populacionais, embora note-se a recuperação migratória com o Estado de Mato Grosso. No cenário da migração brasileira, o Estado de São Paulo, no período 1990-2000, continuou recebendo mais da metade da emigração que saiu do Nordeste e até mesmo do Sul. Por outro lado, também continuou respondendo pelos maiores volumes de pessoas que chegaram a essas mesmas regiões. No entanto, a potencialidade migratória do Estado diminuiu com relação a Região Sul e Sudeste, aumentou com o Nordeste e Norte, e apontou essa mesma tendência com relação à Região Centro-Oeste. Considerando o movimento emigratório do Estado de São Paulo, os anos 80 caracterizaram-se como a “década do retorno”, quando 45,0% dos migrantes que deixaram São Paulo estavam voltando aos seus Estados de nascimento. Nos anos 90, essa proporção foi semelhante, indicando que se trata de um fenômeno de longa duração e não apenas circunscrito a uma década. Esse refluxo populacional envolveu 669.781 pessoas no período 19811991, das quais quase a metade (319.340 migrantes) retornaram aos Estados nordestinos. No período 19902000, o retorno com origem em São Paulo alcançou 807.401 pessoas, sendo 427.524 para o Nordeste (52,9% do total da emigração). A emigração de São Paulo para Minas Gerais teve forte componente de retorno (45%), bem como para o Paraná (39%). Nesses dois casos, a redinamização recente de determinados espaços urbano-regionais serviu não só para diminuir a emigração dessas áreas para São Paulo, como também passaram a atrair um fluxo de retorno. Para as Regiões Norte e Centro-Oeste, foram registradas as menores proporções e volumes de retornos. Para o Centro-Oeste, esse refluxo foi mais significativo em função da proximidade geográfica, e mesmo do bom desempenho econômico regional nesse período (GUIMARÃES; LEME, 1997) – tanto que São Paulo continuou perdendo população para essa região ainda nos anos 90, como já foi mostrado anteriormente. - incremento no volume de imigração vinda da Região Nordeste e da emigração de São Paulo para lá. Assim, São 88 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 SÃO PAULO E SUAS MIGRAÇÕES NO FINAL DO SÉCULO 20 crescimento da população total, passando de 3,7% a.a., nos anos 70, para 0,87% a.a., nos anos 90. O interior manteve mais ou menos estável sua taxa de crescimento: 2,6% a.a. em 1970/80 e 2,4% a.a. no período 1980/91, baixando para 1,9% entre 1991 e 2000. Assim, a partir dos anos 80, tanto a Região Metropolitana de São Paulo quanto sua sede vêm apresentando taxas de crescimento populacional abaixo da média nacional (que foi de 1,93% a.a., nos anos 80, e 1,6% entre 1991 e 2000) e estadual (2,1% a.a. e 1,8% a.a., respectivamente). Destaca-se, no entanto, que a periferia da área metropolitana de São Paulo apresentou ritmo de crescimento populacional mais elevado que a média do Estado e do interior: 3,20% a.a., nos anos 80, e 2,8% a.a., nos 90, indicando a intensa mobilidade intra-regional da população metropolitana. O baixo crescimento populacional da área metropolitana de São Paulo evidenciou no período 1980/91, pela primeira vez na história do século 20, um saldo migratório negativo de grande magnitude: cerca de 274 mil pessoas, sendo que o Município de São Paulo teve o maior peso nesse processo, chegando a registrar um saldo negativo de mais de 750 mil pessoas. Entre 1991 e 2000, o saldo migratório permaneceu negativo para a cidade de São Paulo: 457 mil pessoas (Tabela 3). Nesse sentido, reforçando uma incipiente tendência anterior de “perda” de população, a Região Metropolitana de São Paulo – e, particularmente, a cidade de São Paulo – teria se transformado agora em área de circulação para uma parcela significativa da população migrante. O interior de São Paulo reforçou seu potencial de absorção migratória, passando de um saldo migratório positivo de 850 mil pessoas, nos anos 80, para 1,1 milhão, nos anos 90. As direções e sentidos da imigração – e, particularmente, da emigração do Estado de São Paulo – comportam explicações distintas. Assim, no processo migratório interestadual paulista configuram-se, pelo menos, quatro situações: - absorção de população vinda do esgotamento da fronteira agrícola do Norte; - emigração do Estado de São Paulo (fluxos para o Nordeste); - continuidade da imigração Nordeste São Paulo, principalmente pelas redes migratórias pré-estabelecidas; - fortalecimento da desconcentração migratória a partir de São Paulo em direção às áreas que registraram desdobramentos no processo de desconcentração industrial e agroindustrial do país (Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Goiás). Portanto, de um lado, São Paulo expandiu seus espaços de migração – sobretudo com a porção Centro-Leste e Sul do país, áreas onde os efeitos multiplicadores advindos da desconcentração foram mais acentuados – e, de outro lado, reforçou seu caráter de pólo nacional com as Regiões Nordeste e Norte. Redistribuição da População no Contexto Paulista O Estado passou de uma taxa de crescimento de 3,5% a.a. nos anos 70 para 2,12% no período 1980/91, chegando a 1,8% a.a. nos anos 90 (Tabela 2). O menor crescimento da Região Metropolitana de São Paulo (1,9% a.a., no período 1980/91 contra 4,5% a.a. na década anterior e 1, 6% a.a. 1991 e 2000) refletiu fortemente na taxa estadual. A capital do Estado (ou seja, o Município de São Paulo) registrou um decréscimo considerável em sua taxa de TABELA 2 População Total e Taxas de Crescimento Populacional Estado de São Paulo, Região Metropolitana de São Paulo e Interior – 1970/2000 População Total Área Taxa de Crescimento (% a.a.) 17.771.948 25.040.712 31.436.273 34.407.358 37.035.456 19701980 3,49 RMSP 8.139.730 12.588.725 15.416.416 16.581.933 17.833.511 4,46 1,86 1,63 Capital 5.924.615 8.493.226 9.626.894 9.839.066 10.435.546 3,67 1,15 0,87 Periferia 2.215.115 4.095.499 5.789.522 6.742.867 7.397.965 6,34 3,20 2,81 Interior de São Paulo 9.632.218 12.451.987 16.019.857 17.825.425 19.201.945 2,60 2,38 1,92 Estado de São Paulo 1970 1980 1991 1996 Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1970 a 2000; Contagem da População de 1996. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 89 2000 19801991 2,13 19912000 1,78 ROSANA BAENINGER localidades, cidades, regiões e nações [...] criando uma atmosfera de lugar e tradição que aja como atrativo para o capital e para pessoas “do tipo certo” (isto é abastadas e influentes). TABELA 3 Saldos Migratórios Estado de São Paulo, Região Metropolitana de São Paulo e Interior – 1980-2000 Áreas 1991-2000 556.424 1.326.987 RMSP -290.455 219.051 Município de São Paulo -754.358 -457.416 Outros Municípios da RMSP 463.903 677.007 Interior 846.879 1.107.36 Estado de São Paulo Nessa nova etapa de desenvolvimento econômico, as regiões mais dinâmicas estão “abertas” e absorvem os migrantes qualificados; que é minoria. As variadas e distintas modalidades de movimentos migratórios, envolvendo principalmente áreas urbanas, rompem com o paradigma explicativo da emigração como um dos efeitos sociais negativos resultantes do menor crescimento econômico e, sobretudo, da ausência de atividades industriais fortes. Na relação migração/dinâmica econômica, as cidades mais prósperas (em termos de inserção no mercado regional, nacional e internacional) tendem a registrar os maiores volumes de emigrantes, tanto na RMSP quanto no interior do Estado. Assim, os fatores de expulsão, para os migrantes de baixa renda, estariam nas áreas mais dinâmicas e os de atração nas de menor dinamismo. Contudo, essa interpretação só faz sentido se a dimensão espacial for considerada como elemento constitutivo do próprio processo migratório. As migrações intrametropolitanas, intra-regionais e da metrópole para o interior exemplificam essa formulação. As mudanças no paradigma da indústria,4 que se manifestam na crescente diminuição da absorção de mãode-obra, já revelam o deslocamento do eixo explicativo da migração via industrialização. Se nos anos 70, principalmente, os destinos migratórios apresentavam estreita relação com o dinamismo industrial das regiões do interior (incluindo-se o agroindustrial), agora as evidências empíricas apontam a necessidade de mudanças nas abordagens sobre as migrações – em particular no caso paulista. Saldos Migratórios 1980-1991 Fonte: Fundação Seade (2002). Esse processo de desconcentração populacional da área metropolitana de São Paulo está, em parte, associado à crise econômica dos anos 80 e à recessão econômica dos anos 90. Pode-se dizer que até os anos 80, o processo de desconcentração da indústria de São Paulo em direção a outros estados e para o interior (NEGRI; PACHECO, 1993) foi acompanhado, embora com defasagem temporal – pois a desconcentração econômica foi mais contundente nos anos 70 –, de importantes fluxos migratórios na mesma direção. A partir dos anos 90, o processo de reestruturação produtiva tem mudado o perfil da indústria brasileira, com a retomada do maior peso relativo do Estado de São Paulo na distribuição da indústria de transformação nacional. Assim, em que pese a enorme alteração na “dimensão espacial do desenvolvimento brasileiro”, o Estado de São Paulo diversificou e modernizou sua indústria de transformação, permanecendo na posição de centro dinâmico do país.3 Na verdade, a “condição pós-moderna” (HARVEY, 1992) que busca a metrópole paulista tenderá a gerar, cada vez mais, um enorme excedente populacional sem que ocorra uma perda de dinamismo econômico da região; a redefinição de seu papel no cenário nacional e a competitividade entre metrópoles do mundo globalizado fará com que esta área reafirme seu caráter de centro decisório do país, especialmente em termos financeiros, tornando-se apenas área de circulação para a população migrante. Essa reestruturação produtiva implica também na competitividade entre os espaços urbanos para sua inserção nessa dinâmica global; nesse esforço, Harvey (1992, p. 267) enfatiza que TENDÊNCIAS DAS MIGRAÇÕES PAULISTAS: METRÓPOLE E INTERIOR Considerando o destino da migração vinda de outros Estados para o Estado de São Paulo, torna-se importante indicar os espaços paulistas desse movimento (Tabela 4). Em que pese o aumento das migrações interestaduais para o interior de São Paulo, com tendência crescente nos últimos 30 anos (de 1,1 milhão, nos anos 70, para 1,4 milhão nos anos 90), é notável a retomada da força da RMSP na recepção dessa imigração, nos anos 90. Entre os anos 70 e 80, a metrópole paulista vivenciou expressivo decréscimo da migração interestadual: de 2,2 milhões a produção ativa de lugares dotados de qualidades especiais se torna um trunfo na competição espacial entre as 90 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 SÃO PAULO E SUAS MIGRAÇÕES NO FINAL DO SÉCULO 20 absorção migratória. A partir de então, o interior passou a ganhar população vinda da RMSP. Apesar da retomada das migrações interestaduais para a RMSP, a tendência à desconcentração de população em direção ao interior permaneceu nos anos 90: entre 1995 e 2000, cerca de 468 mil pessoas deixaram a metrópole. TABELA 4 Imigração Interestadual Estado de São Paulo, Região Metropolitana de São Paulo e Interior – 1970-2000 Regiões 1970-1980 1981-1991 1990-2000 Estado de São Paulo 3.325.468 2.734.819 3.177.676 RMSP 2.196.560 1.566.206 1.781.151 Interior 1.128.908 1.168.613 1.396.525 TABELA 5 Fluxo Migratório Intra-Estadual entre Metrópole e Interior Estado de São Paulo – 1995-2000 Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1980, 1991 e 2000 (tabulações especiais, Nepo/Unicamp). Regiões de Governo de migrantes para 1,5 milhão, respectivamente, para retomar o incremento desse movimento nos anos 90 (1,8 milhão). Assim, do total do movimento interestadual para São Paulo, 56% tiveram como destino a RMSP. Ao longo das últimas décadas, o interior também vem se constituindo como espaço dessa migração, ao elevar sua participação na distribuição relativa da migração interestadual. De fato, nos anos 70, respondia por 33,9% dos destinos da migração interestadual; nos anos 80, passou para 42,7%; e, nos 90, alcançou 43,9% do total da migração interestadual para São Paulo. Nesse contexto, as procedências das migrações interestaduais para os distintos espaços da migração em São Paulo marcam suas especificidades. A RMSP constitui o grande pólo de recepção da migração nordestina, uma vez que responde por 73,6% dos migrantes nordestinos que chegaram ao Estado de São Paulo. Já o interior caracteriza-se pelos fluxos advindos de Minas Gerais e Paraná. Contudo, no novo cenário das migrações interestaduais no Estado – principalmente com o aumento nos volumes da imigração interestadual para o interior – o crescimento dos fluxos com origem no Nordeste em direção a essa área já era apontado nos anos 80. Essa tendência ampliou-se nos anos 90, fortalecendo o “corredor da migração nordestina” no interior do Estado de São Paulo (BAENINGER, 1999). No período 19811991, o volume da imigração nordestina para o interior paulista era de 273 mil pessoas, elevando-se para 440 mil, entre 1990 e 2000; ou seja, respondia por 24,7% da migração interestadual, passando para 26%, respectivamente. No contexto intra-estadual, a pergunta que se coloca para as migrações nos anos 90 é: “houve continuidade no fluxo de saída de população da metrópole para o interior?” Como espaço perdedor iniciado nos anos 70, a metrópole paulista marcou a inflexão em sua trajetória de forte SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 Total Registro Santos Caraguatatuba Cruzeiro Guaratinguetá São José dos Campos Taubaté Avaré Botucatu Itapetininga Itapeva Sorocaba Bragança Paulista Campinas Jundiaí Limeira Piracicaba Rio Claro São João da Boa Vista Araraquara Barretos Franca Ribeirão Preto São Carlos São Joaquim da Barra Bauru Jaú Lins Catanduva Fernandópolis Jales São José do Rio Preto Votuporanga Andradina Araçatuba Adamantina Dracena Presidente Prudente Assis Marília Ourinhos Tupã Ignorado São Paulo Imigração Vinda da RMSP 468.295 8.257 60.188 10.791 1.164 3.629 18.179 12.515 7.318 6.562 13.117 3.619 42.312 20.795 69.248 22.398 8.478 8.747 5.951 7.907 7.766 4.650 4.611 11.852 7.897 866 11.750 3.826 4.439 4.257 1.990 3.603 15.556 3.662 3.476 10.160 3.686 2.569 9.712 5.069 8.219 4.928 2.576 - Emigração com Destino a RMSP Trocas Migratórias 172.132 2.569 18.824 2.574 524 1.790 6.225 3.253 2.088 1.096 3.195 1.932 9.117 4.228 13.284 3.843 2.379 2.171 1.224 2.033 2.958 2.060 2.058 5.096 1.666 423 3.509 1.013 797 1.582 705 1.545 3.766 795 1.301 3.470 1.211 1.248 4.316 1.683 2.736 1.534 1.043 43.268 296.163 568.888 41.364 8.217 640 1.839 11.954 9.262 5.230 5.466 9.922 1.687 33.195 16.567 55.964 18.555 6.099 6.576 4.727 5.874 4.808 2.590 2.553 6.756 6.231 443 8.241 2.813 3.642 2.675 1.285 2.058 11.790 2.867 2.175 6.690 2.475 1.321 5.396 3.386 5.483 3.394 1.533 - Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000 (tabulações especiais, Nepo/Unicamp). 91 ROSANA BAENINGER O panorama das migrações metrópole-interior em São Paulo reforça a importância dos pólos regionais na expansão das migrações no Estado (Tabela 5). Os pólos econômico-populacionais, que em décadas passadas já registravam atração nessa migração metropolitana, continuaram a fazê-lo no período 1995-2000. A Região Metropolitana de Campinas continuou a canalizar o maior volume dessa emigração (cerca de 69 mil migrantes vindos da metrópole), seguida pelas Regiões de Governo (RG) de Santos (60 mil), Sorocaba (42 mil), São José dos Campos (18 mil), São José do Rio Preto (15 mil), Ribeirão Preto (11 mil), Bauru (11 mil), Araçatuba (10 mil) e Presidente Prudente (9 mil). No final dos anos 90, outras regiões de recepção da migração metropolitana vieram somar-se a esses pólos – o que indicou a consolidação da expansão dos espaços de migração em São Paulo: RGs de Bragança Paulista (20 mil migrantes), Jundiaí (22 mil), Caraguatatuba (11 mil), Taubaté (12 mil) e Itapetininga (13 mil). Assim, torna-se necessário fazer a revisão desses antigos pólos regionais acima mencionados. Afinal, há outros espaços que também passam a absorver população e a desempenhar importante papel no processo de desconcentração da população, reforçando o fenômeno da interiorização da migração no Estado: os subcentros regionais da migração. TENDÊNCIAS DA MIGRAÇÃO E DA URBANIZAÇÃO NO INTERIOR Utilizando a morfologia e hierarquia da rede urbana (IPEA/IBGE/NESUR-UNICAMP, 2000) do Estado de São Paulo em 2000 apreende-se que: - as metrópoles envolveram 67 municípios do Estado, o que corresponde a cerca de 22 milhões de habitantes; - as aglomerações urbanas, totalizaram 48 municípios e 3,8 milhões de pessoas; - os centros urbanos somaram 9 localidades e concentram 1,8 milhão de habitantes; - além dessas espacialidades, outros 521 municípios – que perfazem mais de 8 milhões de pessoas – compuseram a rede urbana paulista, que integrou o dinamismo das demais regiões do Estado (Tabela 6). Nota-se que, mesmo quando se adota outro recorte para a rede urbana paulista que não as regiões de governo, é possível apreender taxas positivas de crescimento de municípios situados fora das grandes concentrações urbanas. Na verdade, observa-se um gradiente no ritmo de crescimento das populações desses municípios não-metropolitanos: parte de um patamar de 1,3% a.a. para os que tinham menos de 10 mil habitantes no período 1996-2000 e atinge 2,5% a.a. na categoria 100 mil-300 mil habitantes, com li- TABELA 6 População, segundo Rede Urbana (1) Estado de São Paulo – 2000 Número de Municípios População Total (2000) Distribuição Relativa (%) Estado de São Paulo 645 37.035.456 100,00 2,02 93,41 Menos de 10 mil habitantes 291 1.774.458 4,79 1,34 74,99 De 10-20 mil habitantes 105 1.806.455 4,88 1,48 78,41 De 20-50 mil habitantes 91 3.260.919 8,80 1,73 86,91 De 50-100 mil habitantes 31 2.620.884 7,08 2,05 89,45 De 100-300 mil habitantes 3 340.121 0,92 2,48 90,35 521 9.802.837 26,47 1,73 84,14 Rede Urbana Sub-Total Metrópoles (SP, CPS, BS) Grau de Urbanização (2000) 21.657.859 58,48 2,01 96,15 Núcleo 11.820.017 31,92 1,39 94,58 Entorno 9.837.842 26,56 2,78 98,03 48 3.806.402 10,28 2,37 94,94 9 1.768.358 4,77 2,01 96,65 Aglomerações Urbanas Não-Metropolitanas Centros Urbanos 67 Taxa de Crescimento (1996-2000) Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000. 92 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 SÃO PAULO E SUAS MIGRAÇÕES NO FINAL DO SÉCULO 20 geiras elevações nessa taxa de crescimento nas classes de tamanho subseqüentes. Essa mesma tendência pode ser verificada quanto ao grau de urbanização, de 75% a 90,3%, nas respectivas categorias de tamanhos de municípios. Assim, apenas apresentaram crescimento os municípios com menos de 20 mil habitantes e não pertencentes a áreas metropolitanas e aglomerações urbanas. Isso ocorreu nos últimos cinco anos, a uma taxa abaixo da média estadual: 1,6% a.a. contra 2,0% a.a. – muito embora deva-se considerar a expressiva recuperação demográfica dessas localidades. Adotando novamente as regiões de governo, é possível apreender outra especificidade do atual processo de urbanização em São Paulo, qual seja: o menor crescimento populacional das sedes regionais e o crescimento mais elevado de suas áreas no entorno – onde justamente predominam os municípios pequenos. Enquanto o conjunto das sedes regionais do interior cresceu a 1,6% a.a. no período 1991-1996, nas áreas de entorno essa taxa foi ligeiramente superior: 1,7% a.a. Essa situação é distinta das décadas anteriores, quando, por exemplo, nos anos 70, os municípios-sede cresciam a 3,0% a.a. e seus entornos 2,1% a.a. O crescimento desses entornos regionais implica um adensamento da rede urbana por todo o Estado. Seus efeitos podem ser verificados na reversão da tendência dos pequenos municípios, antes incapazes de reter sua população. Nessa nova realidade regional, a caracterização da rede urbana estadual não mais comporta agregar os municípios em faixas de tamanho, distantes de seu contexto regional. De fato, o complexo conjunto de mudanças econômico-espaciais experimentados pelo interior paulista contribuiu para o fortalecimento das distintas economias regionais, favorecendo, por um lado, a dispersão populacional no Estado e, por outro, um rearranjo das formas de distribuição espacial da população no âmbito de cada região. Nesse contexto, são incorporados ao sistema urbano em expansão vários municípios pequenos e de porte intermediário. Ao mesmo tempo, as cidades de médio e grande portes vêm apresentando uma desaceleração em seus ritmos de crescimento populacional. Assim, a histórica rede urbana do interior redesenha-se em múltiplas formas. Nos últimos 30 anos, a recuperação populacional do interior de São Paulo esteve ancorada em seu potencial de absorção migratória no âmbito do próprio Estado. Os saldos migratórios registrados pelas regiões de governo apontam a importância desses espaços no processo de redistribuição da população paulista (Tabela 7). SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 Nos anos 90, os núcleos regionais desempenharam um papel relevante no processo interno de redistribuição da população: TABELA 7 Saldos Migratórios, segundo Regiões de Governo Estado de São Paulo – 1980-2000 Regiões de Governo Registro Santos Caraguatatuba Cruzeiro Guaratinguetá São José dos Campos Taubaté Avaré Botucatu Itapetininga Itapeva Sorocaba Bragança Paulista Campinas Jundiaí Limeira Piracicaba Rio Claro São João da Boa Vista Ribeirão Preto Bauru Jaú Lins Catanduva Fernandópolis Jales São José do Rio Preto Votuporanga Andradina Araçatuba Adamantina Dracena Presidente Prudente Assis Marília Ourinhos Tupã Araraquara São Carlos Barretos Franca São Joaquim da Barra Núcleo Entorno 1980-1991 1991-2000 1980-1991 1991-2000 -2.247 -45.701 8.455 -2.065 -1.694 59.480 -3.587 3.630 11.933 331 -1.941 40.921 7.071 30.825 -25.381 19.767 22.290 7.250 2.476 44.855 35.427 5.688 -1.080 6.397 -797 -713 55.162 3.100 -3.395 4.508 -5.414 -2.852 -3.368 3.485 12.761 4.396 -5.702 11.048 16.380 8.495 40.091 444 Fonte: Fundação Seade (1993; 2002). 93 -2.538 -19.782 16.803 -3.123 711 31.266 11.682 8.433 7.398 8.640 -1.179 63.522 11.988 28.521 4.383 16.020 19.845 18.171 2.367 30.789 27.126 9.468 1.233 6.525 513 1.233 50.373 5.643 -2.169 2.763 -1035 -2.133 3.978 4.176 18.072 8.181 -279 9.684 18.900 1.179 20.151 1.728 -10.766 97.933 21.933 -4.582 -4.867 17.412 15.438 -15.152 4.703 25.576 -23.547 78.228 25.333 256.554 64.261 23.889 11.369 4.794 4.487 34.276 -13.807 7.915 -8.391 -9.157 -12.385 -19.045 -3.864 -12.918 -12.382 -6.117 -24.805 -15.720 10.926 6.217 -22.265 -7.936 -15.393 32.720 9.041 21.031 -6.588 -2.096 5.130 98.253 31.959 -63 -1.305 9.333 13.959 621 7.074 29.547 -18.531 71.343 33.669 221.211 60.192 17.982 9.882 11.043 2.979 25.884 -18 6.426 -54 -288 -2.790 -3.717 20.556 -4.320 7.245 5.445 -10.008 -7.254 -252 504 8.523 -1242 -5.940 11.673 9.999 -99 3.663 2.898 ROSANA BAENINGER A consolidação dos espaços da migração ocorreu nas regiões metropolitanas de: Campinas e da Baixada Santista. Na RG de São José do Rio Preto, de uma para outra década, a expansão dos espaços de migração no entorno traduziuse na reversão do saldo negativo para positivo. Portanto, os anos 90 parecem indicar uma diversidade de situações em termos de absorção migratória no Estado de São Paulo, inclusive com alguns retrocessos a tendências passadas. - quer como pólo indutor de transferências populacionais para os municípios vizinhos, como no caso da região de Santos, onde esse processo aponta um saldo migratório negativo para a sede; - quer como área canalizadora de expressivos fluxos migratórios inter-regionais, como são os casos das regiões do Oeste Paulista (Presidente Prudente, Ourinhos), que registram saldo migratório positivo na sede e negativo no entorno; CONSIDERAÇÕES FINAIS - ou ainda como centralidade principal da região, com fluxos que partem do entorno para a sede, como é o caso de Bauru. O processo de redistribuição espacial da população – e, em especial, a migração – marcou o final do século 20 em São Paulo. Enquanto o núcleo da RMSP consolidase como espaço perdedor de população, mantendo seu saldo migratório negativo dos anos 80 para os 90, houve a redefinição de sua periferia, que, de saldo negativo nos anos 80, passou a positivo nos 90. Na verdade, além de reter os fluxos migratórios provenientes da cidade de São Paulo e acentuar a importância da migração intrametropolitana, essa periferia também passou a ter maior capacidade de retenção de migrantes vindos de outros Estados – mais até que a própria sede metropolitana. Portanto, a periferia da metrópole de São Paulo tornouse o novo espaço das migrações interestaduais, lugar antes reservado à capital do Estado. Além disso, os anos 90 parecem indicar para o interior, uma diversidade de situações em termos de absorção migratória, inclusive com alguns retrocessos a tendências passadas. As regiões ganhadoras do interior do Estado articulam processos locais ao âmbito regional e global, promovendo “mecanismos de desencaixe” da sociedade (GIDDENS, 1991), com reflexos nos processos de urbanização e de redistribuição espacial da população nos variados contextos regionais. As evidências empíricas apresentadas suscitam os seguintes pontos para a compreensão e aprofundamento dos estudos sobre movimentos migratórios que chegam, que partem e que se processam em São Paulo. Com relação à migração interestadual: - se São Paulo mantiver os volumes elevados de nordestinos e, ao mesmo tempo, de saída de retorno, poderá se tornar uma área de rotatividade migratória – sobretudo a RMSP; Por outro lado, a nova configuração da urbanização paulista vem sendo marcada pela regionalização de espaços. Nesse caso, os municípios situados nos entornos regionais adensam a rede urbana, com crescimentos populacionais e saldos migratórios mais elevados que suas sedes, como nas regiões de Campinas, Santos, Sorocaba. Apenas nove sedes regionais e quinze entornos regionais registraram saldos negativos no período 1991-2000: trata-se das regiões do extremo leste do Estado (Cruzeiro, Guaratinguetá) e do Oeste (Jales, Fernandópolis, etc). Assim, mesmo que com saldos negativos em decréscimos, os entornos dessas regiões e até alguns núcleos permanecem com sua tendência de perda populacional – muito embora essa emigração provavelmente ocorra entre regiões circunvizinhas e não mais em direção à metrópole. Os pólos regionais continuaram a exibir os saldos migratórios mais elevados (regiões de Campinas, São José dos Campos, Ribeirão Preto, Sorocaba, São José do Rio Preto), mantendo a tendência de espraiamento populacional, ou seja, regiões ganhadoras fora das fronteiras metropolitanas da RMSP. Nos anos 90, destacam-se também os elevados saldos migratórios das RGs de Caraguatatuba (no núcleo e no entorno), de Rio Claro (entorno), de Itapetininga (entorno), de Bragança Paulista (núcleo e entorno), de Marília (entorno), dentre outras. Como já foi analisado em estudo anterior (BAENINGER, 2002), se por um lado assistiu-se à expansão dos espaços da migração em São Paulo – principalmente considerandose regiões como Marília, Assis, Jaú, Araçatuba, dentre outras –, por outro, houve a redefinição de algumas áreas anteriormente mencionadas como pólos regionais e que se destacaram por perda populacional em décadas anteriores, como Bauru (com saldos migratórios negativos no entorno) e Presidente Prudente. - o crescente afluxo de nordestinos para o interior pode representar maior possibilidade de retenção desses migrantes em relação à metrópole – com a expansão dos espaços da migração em relação a esse fluxo determinado; 94 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 SÃO PAULO E SUAS MIGRAÇÕES NO FINAL DO SÉCULO 20 de 556 mil pessoas, nos anos 80, para 1,3 milhão, nos 90. A contagem de 1996 indicava tendência de aumento de alguns fluxos migratórios, como Bahia e Pará, mas não chegava a aumentar o volume total da imigração para o Estado (BAENINGER, 1999). - o decréscimo na migração de Minas Gerais e Paraná e o aumento expressivo do retorno para esses estados contribui para que o Nordeste também passe a ter maior peso na migração do interior, dando novos contornos às especificidades da migração nessa área. 3. Veja-se os relatórios do Projeto: Desenvolvimento Tecnológico e Competitividade da Indústria Brasileira (NEGRI; PACHECO, 1993). 4. Veja-se, por exemplo, Benko e Lipietz (1994). Em termos da migração intra-estadual: - o processo de desconcentração populacional da metrópole em direção ao interior reforça o fenômeno do espraiamento populacional, ampliando áreas de recepção da migração no Estado; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAENINGER, R. Expansão, redefinição ou consolidação dos espaços da migração em São Paulo?: análises a partir dos primeiros resultados do Censo 2000. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 13., 2002, Ouro Preto. Anais... Belo Horizonte: Abep, 2002. - os pólos regionais mantiveram seus papéis de catalisadores da migração intra-estadual, ao mesmo tempo que continuaram a reter uma população que potencialmente migraria para a metrópole paulista; ________. Região, Metrópole e Interior: espaços ganhadores e espaços perdedores nas migrações recentes no Brasil – 1980/1996. 1999. Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Campinas, 1999. - a dinâmica intra-regional vem ampliando os espaços da migração no Estado, aumentando os nexos entre os espaços econômicos e os espaços de migração. BECK, U. Risk society: towards a new modernity. London: Sage Publications, 1992. Nesse sentido, o conceito de “urbano” definido por Villaça (1998, p. 330) como o BENKO, G.; LIPIETZ, A. O novo debate regional: posições em confronto. In: _____. (Org.). As regiões ganhadoras – Distritos e redes: os novos paradigmas da geografia econômica. Oeiras: Celta Ed., 1994. espaço estruturado pelas condições de deslocamento da força de trabalho enquanto tal e enquanto consumidora (deslocamentos casa-escola, casa-compras, casa-lazer e mesmo casa-trabalho BRITO, F. População, espaço e economia numa perspectiva histórica: o caso brasileiro. 1997. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciências Econômicas, Cedeplar/UFMG, Belo Horizonte, 1997. constitui também um caminho promissor para que as novas territorialidades urbanas sejam identificadas, bem como para apontar a importância da migração e das novas modalidades de deslocamentos populacionais (pendular, dupla residência, etc.) para a formação dessas territorialidades. As evidências empíricas, as análises referentes às transformações econômicas e à dinâmica do mercado de trabalho, a questão da regionalização e da formação de novas territorialidades, as políticas sociais de transferência de renda, a manutenção dos fluxos migratórios em situação de crise econômica, a expansão dos espaços da migração, dentre outros, constituem aspectos a serem aprofundados para a compreensão das migrações e dos deslocamentos populacionais em São Paulo no século 21. CANO, W. (Coord.). A interiorização do desenvolvimento econômico no Estado de São Paulo (1920-1980). São Paulo: Fundação Seade, 1988. (Coleção Economia Paulista, v.1-3). CUNHA, J.M.P. (Coord.). Projeto Mobilidade e redistribuição espacial da população no Estado de São Paulo: características recentes, padrões e impactos no processo de urbanização. Campinas: Nepo/Unicamp, 1999. (Relatório Final). GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991. GUIMARÃES, E.N.; LEME, H.J.C. Caracterização histórica e configuração espacial da estrutura produtiva do Centro-Oeste. In: NEPO/UNICAMP. Redistribuição da população e meio ambiente: São Paulo e Centro-Oeste, 1. Campinas, 1997. p. 25-65. (Textos Nepo, 33). HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 1992. IPEA/IBGE/NESUR-UNICAMP. Características e tendências da Rede Urbana no Brasil. Campinas: IE/Unicamp, 2000. MARTINE, G. Migração e metropolização. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 1, n. 2, p. 28-31, jul./set. 1987. MARTINE, G.; CAMARGO, L. Crescimento e distribuição da população brasileira: tendências recentes. Revista Brasileira de Estudos de População, Campinas, Abep, v. 1, n. 2, p. 99-143, jan./ dez. 1984. NOTAS 1. Considera-se interior, neste artigo, todos os municípios paulistas não integrantes da Região Metropolitana de São Paulo. MATOS, R.E.S. Dinâmica migratória e desconcentração da população na macrorregião de Belo Horizonte. 1995. Tese (Doutorado) – Cedeplar/UFMG, Belo Horizonte, 1995. 2. Perillo (2002) já indicava essa retomada da imigração para São Paulo nesse período baseando-se nos saldos migratórios da Fundação Seade: SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 95 ROSANA BAENINGER NEGRI, B.; PACHECO, C.A. Mudança tecnológica e desenvolvimento regional nos anos 90: da interiorização do desenvolvimento à nova dimensão espacial da indústria paulista. Campinas: SCTDE/ FECAMP/IE-Unicamp, 1993. (Relatório Final – Projeto Desenvolvimento Tecnológico e Competitividade da Indústria Brasileira). SINGER, P. Migrações internas: considerações teóricas sobre seu estudo. In: ______. Economia política da urbanização. São Paulo: Brasiliense, 1973. VAINER, C.B. Políticas migratórias no Brasil: origens, trajetórias e destinos. In: REUNIÃO DOS GRUPOS DE TRABALHO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS POPULACIONAIS. Campinas: Nepo/Unicamp, dez. 1991. OJIMA, R. Instituições políticas e mudança ambiental: os novos arranjos institucionais na gestão de recursos hídricos e suas interfaces políticas. Dissertação (Mestrado) – Unicamp, Campinas, 2003. VILLAÇA, F. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1998. PACHECO, C.A. Fragmentação da nação. Campinas: IE/Unicamp, 1998. PACHECO, C.A.; PATARRA, N.L. Movimentos migratórios anos 80: novos padrões? In: ENCONTRO NACIONAL SOBRE MIGRAÇÃO, 1998. Anais... Curitiba: Abep/Ipardes, 1998. ROSANA BAENINGER: Doutora em Ciências Sociais, Professora Colaboradora do Departamento de Demografia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Pesquisadora do Núcleo de Estudos de População da Unicamp ([email protected]). ________. Movimentos migratórios nos anos 80: novos padrões? In: ENCONTRO NACIONAL SOBRE MIGRAÇÃO, 1997, Curitiba. Anais... Curitiba: Ipardes, 1997. PERILLO, S. Vinte anos de migração no Estado de São Paulo. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 13., 2002, Ouro Preto. Anais... Belo Horizonte: Abep, 2002. Artigo recebido em 17 de maio de 2005. Aprovado em 6 de junho de 2005. 96 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005 PERCURSOS MIGRATÓRIOS NO ESTADO DE SÃO PAULO: ... PERCURSOS MIGRATÓRIOS NO ESTADO DE SÃO PAULO uma análise do período 1995-2000 SONIA REGINA PERILLO MAGALY DE LOSSO PERDIGÃO Resumo: Este estudo tem como objetivo acompanhar a trajetória da migração no Estado de São Paulo na década de 90. Para tal, são utilizadas as informações provenientes do Censo Demográfico 2000, que possibilitam a identificação dos fluxos migratórios interestaduais e intra-estaduais ocorridos em São Paulo nesse período. Palavras-chave: Redistribuição espacial. Fluxos migratórios. Áreas de origem e destino. Abstract: The objective of this study is to follow the trajectory of migration in the State of São Paulo in the decade of 90. For such purpose are used the information proceeding from the Demographic Census 2000, that make possible the identification of the migratory flows occurrences inside the State of São Paulo and between São Paulo and other States of Brazil in this period. Key words: Space redistribution. Migratory flows. Areas of origin and destination. A s últimas décadas foram marcadas por transformações socioeconômicas e políticas profundas, tanto em âmbito mundial como nacional. Essas mudanças tiveram desdobramentos importantes, alterando os padrões da redistribuição espacial da população. Tendo em vista que grande parte da economia industrial do país concentra-se na Região Sudeste, sobretudo no Estado de São Paulo, os efeitos desse processo incidiram fortemente no território paulista. Este artigo propõe-se a colaborar nessa direção, acompanhando os deslocamentos populacionais ocorridos no Estado de São Paulo e apontando as principais alterações na dinâmica migratória paulista nos anos recentes. meno. A migração comporta várias interpretações, que apresentam como única idéia comum a dimensão temporal e espacial. Acresça-se a dificuldade de mensuração e/ou interpretação dessa variável, bem como uma série de restrições quanto à disponibilidade dos dados e metodologias de análise. Além disso, a falta de registros contínuos dos deslocamentos populacionais faz com que a análise da migração fique praticamente dependente das informações disponíveis nos censos demográficos. Há que se lembrar que a adoção de uma definição de “migrante” também apresenta algumas dificuldades adicionais relacionadas à natureza espacial da unidade de análise adotada que, por sua vez, depende do tipo de fluxo migratório a ser analisado (interestadual, intra-estadual, intermunicipal, entre outros). Tomando-se como base as considerações estabelecidas acima, este estudo utilizará as informações sobre migração provenientes do Censo Demográfico 2000, que per- CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS As dificuldades inerentes à análise dos deslocamentos populacionais têm origem na própria definição do fenô- SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 97 SONIA REGINA PERILLO / MAGALY DE LOSSO PERDIGÃO econômico-financeiro nacional e desempenhava o papel de maior área de concentração populacional do país. De fato, o volume de migração para a metrópole chegou a superar dois milhões de pessoas na década de 70, mostrando-se como a variável determinante do seu crescimento – respondendo por 51,6% do incremento demográfico entre 1970 e 1980 (PERILLO, 1993; RODRIGUES; PERILLO, 1986). Na década de 80, o poder de atração exercido pela indústria paulista diminuiu consideravelmente, repercutindo de forma pronunciada no mercado de trabalho e nos movimentos populacionais. A profunda recessão que abalou o país nos anos 80 atingiu predominantemente a atividade industrial, provocando queda generalizada nos níveis de atividades, de emprego e de renda. Tendo em vista que grande parte da economia industrial do país concentra-se na Região Sudeste, sobretudo no Estado de São Paulo, os efeitos dessa crise econômica incidiram fortemente no território paulista. Tanto na metrópole como no interior do Estado, a recessão dos anos 80 veio somar-se aos efeitos do processo de “desconcentração metropolitana decorrente dos custos de aglomeração” e da “interiorização do desenvolvimento econômico”, fazendo com que a RMSP apresentasse um arrefecimento importante em seu dinamismo econômico e populacional. Nos anos 90, novos fatores passaram a interferir na dinâmica econômica e migratória estadual. Com a abertura comercial e financeira e a conseqüente internacionalização da economia, a política econômica vigente induziu a processos de reestruturação da base produtiva. Os principais setores que compunham o parque industrial buscaram novos mercados e incrementaram a produtividade por meio de estratégias de competitividade. Esse movimento provocou não apenas a “liberalização econômica”, como também foi responsável pela quebra de empresas, transferências patrimoniais, mudanças nos padrões tecnológicos, alteração dos métodos e modelos de gestão e eliminação de empregos, entre outros. Do ponto de vista da oferta de emprego, que é um fator fundamental para a compreensão dos movimentos migratórios, os levantamentos mensais da Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED, realizada pela Fundação Seade e pelo Dieese desde 1985, apuraram os impactos dessas mudanças no mercado de trabalho na RMSP. No período 1985-2002, o nível de emprego recuou e as taxas de desemprego total expandiram-se, atingindo 19,0% em 2002. mitem definir como “migrantes” as pessoas com 5 anos ou mais de idade cuja Unidade da Federação – UF de residência em uma data fixa era distinta daquela em que residiam no momento da pesquisa. Em 1991, essa data fixa correspondia a 01/09/1986; e, em 2000, a 31/07/1995. No contexto dos deslocamentos interestaduais serão considerados “imigrantes” todas as pessoas com 5 anos ou mais de idade, que residiam fora do Estado de São Paulo em 31/07/1995. As unidades de análise serão as Grandes Regiões e as UFs. Como “emigrantes” serão consideradas as pessoas com 5 anos ou mais de idade cuja UF de residência em 31/07/1995 era São Paulo e que, no momento do Censo, residiam em outra UF brasileira, exceto São Paulo. No caso dos fluxos intra-estaduais, será analisado o Estado de São Paulo – considerando-se como recorte analítico a Região Metropolitana de São Paulo – RMSP e o interior do Estado.1 Serão avaliados os deslocamentos populacionais ocorridos entre as 15 Regiões Administrativas – RAs que integram o Estado e, serão considerados migrantes interestaduais as pessoas com 5 anos ou mais de idade cujo município de residência anterior (em 31/07/1995) não pertença à RA onde foram recenseados. Assim, será dada ênfase aos fluxos migratórios numericamente mais importantes segundo os volumes de imigração e emigração registrados no período 1995-2000. Essas informações permitirão detectar as trocas líquidas de população (diferença absoluta entre o volume de imigrantes e emigrantes) e os respectivos ganhos ou perdas populacionais de cada área envolvida nos fluxos. É importante destacar que as informações analisadas possibilitarão identificar e quantificar apenas os “migrantes recentes”, ou seja, os que migraram entre 1995 e 2000. Ressalte-se a impossibilidade de se resgatar o processo migratório por que passaram os indivíduos durante todo o período censitário (1991-2000), pois a pergunta elaborada pelo Censo só permite auferir os deslocamentos ocorridos entre 1995 e 2000. MIGRAÇÃO NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICO-SOCIAIS NO PERÍODO 1980-2000 Segundo alguns especialistas da área econômica, até os anos 70, a dinâmica e a localização das atividades industriais pautavam, em grande medida, os possíveis caminhos da população no Estado de São Paulo. Nesse contexto, a RMSP consolidava-se como o grande centro 98 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 PERCURSOS MIGRATÓRIOS NO ESTADO DE SÃO PAULO: ... Sorocaba. A evidência mais completa dessa integração está no fato de que a matriz produtiva de São Paulo, em seus principais gêneros, completa-se nesse entorno. Em 1996, mais de 90% do valor adicionado estadual estava aí concentrado: 96%, na fabricação de produtos químicos; 99%, na fabricação e montagem de veículos automotores, reboque e carrocerias; e 91%, na fabricação de máquinas e equipamentos. A exceção é a indústria de alimentos e bebidas, mais espraiada pelo interior do Estado (ARAÚJO, 1999). Nos anos 90, dando continuidade à década anterior, mesmo em menores proporções, verifica-se um processo de interiorização econômica e populacional do Estado. Segundo Araújo (1999), esse processo ocorreu em um espaço concentrado num raio de aproximadamente 150 km a partir do centro da metrópole, abrangendo as regiões de Campinas, São José dos Campos, RM da Baixada Santista e Sorocaba. A autora mostra que diversos fatores contribuíram de forma decisiva para a continuidade da desconcentração metropolitana e fortalecimento do interior, dentre eles: as condições estruturais existentes no interior, os investimentos maciços em infra-estrutura energética, de transportes e comunicações, o crescimento da agroindústria da cana e da laranja, a proximidade do mercado consumidor, dentre outros. As mudanças apontadas no cenário econômico tiveram desdobramentos importantes, alterando os padrões de redistribuição espacial da população (PERILLO, 2002; OLIVEIRA; SIMÕES, 2004; BAENINGER, 2002; 2004). Diversos estudos já destacaram que o relevante papel da migração em São Paulo contribuiu para a manutenção das elevadas taxas de crescimento da população, até os anos 70. As décadas seguintes foram marcadas por uma desaceleração dos movimentos migratórios e do ritmo de crescimento demográfico. Mesmo assim, entre 1991 e 2000, a população paulista cresceu a uma taxa anual de 1,8% – superior à média nacional, de 1,6%. Dentro de um contexto demográfico em que o crescimento vegetativo (nascimentos menos óbitos) tende a ser cada vez mais homogêneo, o componente migratório continua tendo papel decisivo para o entendimento da dinâmica demográfica do Estado de São Paulo. De fato, a redução nas taxas de crescimento da população paulista nas últimas décadas reflete, em grande medida, as mudanças ocorridas em seus movimentos migratórios. As informações sobre migração disponíveis no Censo Demográfico 2000 permitem o acompanhamento das tendências migratórias recentes em São Paulo. Segundo es- Segundo Branco (1999) à medida que avançava o desemprego na Região Metropolitana, cresciam as tentativas analítico-explicativas de associá-lo aos processos de reestruturação produtiva e de recolocação da atividade industrial. De fato, a reestruturação na atividade produtiva, sobretudo no setor industrial, eliminou significativa parcela de postos de trabalho, ao mesmo tempo em que a terceirização de atividades, antes realizadas na planta industrial, contribuiu para que parte dos empregos eliminados fossem incrementados nos serviços. Em termos setoriais, a PED mostrou que, enquanto a proporção de ocupados na indústria da RMSP diminuiu de 32,6% para 20% no período entre 1995 e 2002, a participação dos ocupados nos serviços passou de 40% para 52,6% no mesmo período. O comércio, por sua vez, registrou um pequeno aumento na proporção de ocupados, de 14% para 16% entre 1995 e 2002. Diante desse contexto, pode-se dizer que, se até os anos 70, a localização e a ampliação das atividades urbano-industriais direcionavam os caminhos da migração em São Paulo, nas décadas de 80 e sobretudo 90, a capacidade de atração migratória pela indústria transformou-se sensivelmente. Esta parece ser agora exercida pela interação dos investimentos na produção industrial e na capacidade que esses investimentos têm na demanda por mais serviços e mão-de-obra. As mudanças na estrutura industrial não significaram uma diminuição de sua importância na estrutura produtiva do Estado, mas sim uma modernização – e, portanto, um fortalecimento dessa atividade. Para se ter uma idéia da importância da indústria, em 1996, São Paulo concentrava quase 50% das atividades industriais do país, 53% da produção da indústria mecânica, 60% da química, 62% de material de transportes, 70% de borracha, 65% de produtos de materiais plásticos – para citar apenas alguns gêneros da indústria de transformação. Em 1996, mesmo com todas as mudanças ocorridas, a metrópole apresentou elevada participação na produção industrial do Estado com 60,4% do valor adicionado, 56,8% do pessoal ocupado e 57% das unidades locais. As regiões do interior, beneficiadas pela “interiorização do desenvolvimento”, exibiram um elevado grau de complementaridade e de integração técnica e funcional com a RMSP. Esse processo é muito mais significativo nas regiões situadas no entorno metropolitano que abrange Campinas, RM da Baixada Santista, São José dos Campos e SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 99 SONIA REGINA PERILLO / MAGALY DE LOSSO PERDIGÃO sas informações, verifica-se que algumas modalidades de deslocamentos populacionais confirmaram-se e fortaleceram-se na década de 90 – como os movimentos intra-estaduais no território paulista. A mobilidade interestadual continuou tendo importância; porém, desde a década de 80, vem perdendo peso relativo na composição da migração. Em contrapartida, a migração intra-estadual ganhou destaque, aumentando sua participação no cenário migratório nos anos recentes. emigração de sua população para os outros estados brasileiros. Os principais fluxos migratórios ocorridos entre o Estado de São Paulo e as Grandes Regiões do país, no período 1995-2000, podem ser observados no Mapa 1. MAPA 1 Principais Fluxos Migratórios, segundo Grandes Regiões Estado de São Paulo – 1995-2000 O CONTEXTO DOS MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS INTERESTADUAIS A liderança econômica do Estado de São Paulo no cenário brasileiro sempre lhe garantiu elevada concentração populacional e uma trajetória marcada por intensos movimentos migratórios. Com efeito, São Paulo vem protagonizando, há várias décadas, o processo de redistribuição da população no território brasileiro, destacando-se como a principal área de concentração populacional do país. Em 2000, contava com 37 milhões de habitantes e respondia por 21,8% da população nacional. Os movimentos migratórios interestaduais sempre desempenharam papel relevante na composição da população paulista. Em 2000, praticamente 75,2% de sua população correspondia a pessoas nascidas no próprio Estado (naturais) e 24,8% a pessoas nascidas em outros Estados brasileiros e outros países (não-naturais). Vale dizer: em 2000, residiam em São Paulo aproximadamente 9,1 milhões de pessoas não-naturais do Estado, com predominância dos mineiros (20,7%), baianos (19,7%), paranaenses (12,9%) e pernambucanos (12,4%). São Paulo, segundo o Censo 2000, continuou se consolidando como a UF que registrou o maior volume de migrantes do país – o que determinou intensa mobilidade populacional em seu território. No período 1986-1991, recebeu 1,4 milhão de migrantes interestaduais e em 1995-2000, 1,2 milhão de pessoas – o que indica uma redução de 12% nos deslocamentos interestaduais. Por outro lado, entre 1986 e 1991, 648 mil pessoas saíram de São Paulo em direção a outros estados brasileiros (emigrantes) e, entre 1995 e 2000, 884 mil pessoas – o que representou um aumento de 36%. O Estado de São Paulo prevaleceu como porta de entrada da população nacional; porém, o volume dos deslocamentos interestaduais para o Estado vêm diminuindo progressivamente ao longo das décadas. Paralelamente a esse fenômeno, entre 1995 e 2000, São Paulo apresentou um aumento da Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste (Exceto São Paulo) Fluxos Migratórios Sul Com destino ao Estado São Paulo Com origem no Estado São Paulo Estado de São Paulo Fonte: IBGE; Fundação Seade. Origem dos Migrantes que Chegaram ao Estado de São Paulo A diminuição do volume de migrantes interestaduais que chegaram ao Estado de São Paulo entre 1995-2000 não está vinculada à redução dos fluxos procedentes do Nordeste. De fato, nos períodos entre 1986-1991 e 1995-2000, São Paulo permaneceu como o principal destino desses fluxos, e a migração de nordestinos mantevese em níveis semelhantes, aproximadamente 720 mil pessoas (Tabela 1). Verificou-se, inclusive, um aumento da participação relativa dos nordestinos no total dos migrantes do Estado – de 51,7%, entre 1986-1991, para 57,7%, entre 1995-2000 – e uma acentuada redução da participação dos fluxos do Sudeste e do Sul, no mesmo período (Gráfico 1). Ainda assim, os deslocamentos com origem na Região Sudeste representaram 19% da imigração para o Estado de São Paulo, entre 1995-2000. Segue-se a Região Sul, responsável por 13,5% dos migrantes que chegaram ao Estado. Sobressaíram-se os fluxos procedentes 100 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 PERCURSOS MIGRATÓRIOS NO ESTADO DE SÃO PAULO: ... A RMSP destacou-se como a área mais atrativa dos migrantes interestaduais. São Paulo não conseguiu atrair população interestadual na mesma intensidade que nas décadas passadas; porém, a RMSP continuou desempenhando papel relevante no direcionamento dos fluxos provenientes de outros Estados brasileiros. Essa área re- TABELA 1 Volume de Imigração e Emigração Interestaduais, segundo Grandes Regiões Brasileiras Estado de São Paulo – 1986-2000 Imigração Regiões Brasil Norte Emigração 1986-1991 1995-2000 1986-1991 1995-2000 1.392.796 1.242.975 647.991 884.024 34.797 31.194 21.426 29.137 TABELA 2 Volume de Imigração e Emigração Interestaduais, segundo Regiões e Unidades da Federação Brasileiras Estado de São Paulo – 1986-2000 Nordeste 720.565 716.697 211.412 325.529 Sudeste (1) 308.242 239.906 189.309 258.836 Sul 245.270 168.180 130.779 173.983 83.922 86.998 95.065 96.539 Centro-Oeste Fonte: IBGE; Fundação Seade. (1) Considerou-se a Região Sudeste, exceto o Estado de São Paulo. 1995-2000 1986-1991 1995-2000 BRASIL 1.392.796 1.242.974 647.991 884.024 34.797 810 225 3.742 14.656 12.735 418 2.211 31.194 787 504 3.523 14.129 7.349 570 4.332 21.426 780 322 2.622 5.655 8.179 578 3.290 29.137 626 631 4.176 9.002 8.701 670 5.330 720.565 52.326 248.600 94.929 18.029 58.743 164.909 43.523 716.697 63.590 281.648 67.424 33.061 49.541 133.547 46.290 211.412 13.361 58.544 28.585 5.760 18.650 52.321 10.819 325.529 19.105 105.830 52.502 9.865 28.349 58.364 23.367 23.657 15.849 19.755 21.841 13.182 10.190 17.855 10.293 308.242 8.865 236.086 63.291 239.906 10.995 181.216 47.694 189.309 10.827 145.823 32.659 258.836 11.850 201.880 45.105 245.270 217.406 168.180 133.350 130.779 97.962 173.983 131.094 16.222 11.642 18.443 16.387 13.397 19.420 14.546 28.343 83.922 9.546 17.330 21.192 86.998 9.981 19.870 21.790 95.065 7.673 20.497 25.006 96.539 12.520 27.976 19.793 35.854 35.358 41.889 36.250 Região Nordeste Alagoas Bahia Ceará Maranhão Paraíba Pernambuco Piauí Rio Grande do Norte Sergipe GRÁFICO 1 Migrantes Interestaduais, segundo Local de Origem Estado de São Paulo – 1986-2000 Região Sudeste Espírito Santo Minas Gerais Rio de Janeiro % 1986-1991 50 1986-1991 Região Norte Acre Amapá Amazonas Pará Rondônia Roraima Tocantins dos Estados da Bahia (22,7%), Minas Gerais (14,6%), Pernambuco e Paraná (10,7%) (Tabelas 2 e 3). O Estado de São Paulo permaneceu como importante porta de entrada da população que se deslocou da Região Nordeste. Por outro lado, diminuiu a potencialidade migratória do Estado com relação às Regiões Sul e Sudeste. As Regiões Norte e Centro-Oeste não mostraram mudanças pronunciadas nas trocas migratórias estabelecidas com o Estado, no período 1995-2000 (Gráfico 1). 60 Regiões e Unidades da Federação 1995-2000 Imigração Emigração 40 Região Sul Paraná Rio Grande do Sul Santa Catarina 30 20 10 0 Região Centro-Oeste Distrito Federal Goiás Mato Grosso Mato Grosso do Sul Local de Origem Norte Nordeste Sudeste (1) Sul Centro-Oeste Fonte: IBGE; Fundação Seade. (1) Considerou-se a Região Sudeste, exceto o Estado de São Paulo. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1991 e 2000. 101 SONIA REGINA PERILLO / MAGALY DE LOSSO PERDIGÃO TABELA 3 GRÁFICO 2 Imigração, segundo Regiões Administrativas Estado de São Paulo – 1995-2000 Migrantes Interestaduais, segundo Local de Origem Região Metropolitana de São Paulo e Interior – 1995-2000 Imigração (Origem) Regiões Administrativas Estado de São Paulo RMSP Registro Total (1) Em São Paulo Fora de São Paulo 2.268.951 45,2 54,8 889.626 19,3 80,7 20.415 75,5 24,5 RM da Baixada Santista 141.558 58,3 41,7 São José dos Campos 131.646 50,0 50,0 Sorocaba 168.537 68,8 31,2 Campinas 410.578 57,1 42,9 Ribeirão Preto 67.892 52,9 47,1 Bauru 64.983 76,7 23,3 São José do Rio Preto 94.911 71,1 28,9 Araçatuba 46.491 71,7 28,3 Presidente Prudente 53.687 66,4 33,6 Marília 60.092 74,5 25,5 Central 61.037 64,5 35,5 Barretos 23.897 69,9 30,1 Franca 33.601 49,2 50,8 Fonte: IBGE; Fundação Seade. (1) Refere-se à soma dos fluxos migratórios intraestaduais e interestaduais ocorridos no/para o Estado de São Paulo entre 1995 e 2000. cebeu 720 mil migrantes de outros Estados – o que representava 58% da imigração paulista no período. Destacaram-se os fluxos procedentes da Região Nordeste, sobretudo dos Estados da Bahia (29,1%) e Pernambuco (14,1%) (Tabelas 2 e 3). A importância dos deslocamentos interestaduais para a RMSP também pode ser contemplada quando se verifica que 81% dos deslocamentos para esta área tiveram origem em outros Estados brasileiros, contra apenas 19% ocorridos no próprio Estado de São Paulo (Tabela 3). O Município de São Paulo manteve seu papel de grande área de atração da população de outros Estados para a RMSP. Para a capital paulista, deslocaram-se 410 mil migrantes interestaduais, principalmente, dos Estados da Bahia (30%), Pernambuco (13,1%) e Minas Gerais (9,6%). O interior do Estado recebeu 525 mil migrantes de outros Estados brasileiros, procedentes, em sua maioria, das Regiões Nordeste (37,2%), Sudeste (25,7%) e Sul (22,2%) (Gráfico 2). Sobressaíram-se os deslocamentos com origem nos Estados de Minas Gerais (20,5%), Paraná (19,1%) e Bahia (13,9%). No contexto regional, a migração interestadual representou quase 50% do total dos fluxos, em regiões Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000. (1) Refere-se ao Estado de São Paulo, excluindo-se a RMSP. como Franca, São José dos Campos e Ribeirão Preto. Em outras áreas, como as regiões de Bauru, Registro, Marília, São José do Rio Preto e Araçatuba, a participação dos deslocamentos interestaduais foi menos expressiva. Destino dos Migrantes que Saíram do Estado de São Paulo Entre 1986 e 1991, 648 mil pessoas deixaram o Estado de São Paulo em direção a outros estados brasileiros; entre 1995 e 2000, esse volume passou a 884 mil pessoas – o que representou um aumento de 36% na emigração paulista (Tabela 1). Os principais locais de destino dos migrantes que saíram de São Paulo foram as Regiões Nordeste (36,8%), Sudeste (29,3%) e Sul (19,7%) (Gráfico 3). Um aspecto importante a se ressaltar é que, entre os migrantes que saíram do Estado e foram para a Região Nordeste (325 mil pessoas), 62% (200 mil pessoas) eram migrantes nordestinos na condição de retorno aos seus estados de nascimento e 26,5% (86 mil pessoas) eram migrantes nascidos no Estado de São Paulo. Destacaramse como importantes locais de destino dos emigrantes de São Paulo, Minas Gerais (22,8%), Paraná (14,8%), Bahia (12,0%) e Pernambuco (6,6%). 102 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 PERCURSOS MIGRATÓRIOS NO ESTADO DE SÃO PAULO: ... a outros estados brasileiros – correspondendo a 61,6% das pessoas que deixaram o Estado nesse período (CUNHA, 1987; PERILLO; PERDIGÃO, 2000). A grande área de absorção dos fluxos foi a Região Nordeste, responsável por 46,7% da emigração da RMSP nesse período. Em menor proporção, seguiram-se Sudeste (27,4%) e Sul (16,3%) (Gráfico 4). Destacaram-se os Estados da Bahia (15,3%), Paraná (11,5%) e Pernambuco (8,4%). Chama a atenção o papel relevante da capital, que é a maior porta de entrada e de saída da população paulista: cerca de 380 mil pessoas deixaram essa área entre 1995 e 2000. Os principais locais de destino dos migrantes foram os Estados de Minas Gerais (20,7%), Bahia (16,2%) e Paraná (10,7%). Praticamente 310 mil pessoas saíram do interior paulista em direção a outros estados. As áreas mais atrativas dessa população foram as Regiões Sudeste e Sul, sobretudo, os Estados de Minas Gerais (27,2%) e Paraná (20,6%) (Gráfico 4). GRÁFICO 3 Migrantes Interestaduais, segundo Local de Destino Estado de São Paulo – 1986-2000 40 % 1986-1991 1995-2000 35 30 25 20 15 10 5 Local de Destino 0 Norte Nordeste Sudeste (1) Sul Centro-Oeste Fonte: IBGE; Fundação Seade. (1) Considerou-se a Região Sudeste, exceto o Estado de São Paulo. Mesmo considerada o grande pólo de atração populacional do Estado, a RMSP caracterizou-se como a principal área de saída da população no período 1995-2000. Tal tendência vinha sendo apontada desde a década de 70, e persistiu até 2000: 544 mil pessoas saíram de lá em direção TABELA 4 Emigração, segundo Regiões Administrativas Estado de São Paulo – 1995-2000 Emigração (Destino) Regiões Administrativas Total (1) Em São Paulo Fora de São Paulo Estado de São Paulo 1.909.836 53,7 46,3 RMSP 1.067.998 47,4 52,6 GRÁFICO 4 Migrantes Interestaduais, segundo Local de Destino Região Metropolitana de São Paulo e Interior – 1995-2000 EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 18.971 73,5 26,5 RM da Baixada Santista 81.874 58,4 41,6 São José dos Campos 67.753 45,1 54,9 Sorocaba 85.628 63,6 36,4 Campinas 191.909 53,0 47,0 Ribeirão Preto 53.997 61,6 38,4 Bauru 43.341 74,8 25,2 São José do Rio Preto 54.781 70,5 29,5 Araçatuba 44.381 69,9 30,1 Presidente Prudente 54.921 64,9 35,1 Marília 52.932 76,0 24,0 Central 36.258 74,9 25,1 Barretos 26.663 72,2 27,8 Franca 28.429 48,2 51,8 Fonte: IBGE; Fundação Seade. (1) Refere-se à soma dos fluxos migratórios intraestaduais e interestaduais ocorridos no/para o Estado de São Paulo entre 1995 e 2000. Fonte: IBGE. Censo Demográfico do Estado de São Paulo de 2000. (1) Refere-se ao Estado de São Paulo, excluindo-se a RMSP. SÃO PAULO Registro 103 SONIA REGINA PERILLO / MAGALY DE LOSSO PERDIGÃO A saída de população de São Paulo para outros estados do país foi bastante pronunciada em regiões como RMSP, São José dos Campos e Franca: nessas áreas, a migração externa (fora do Estado de São Paulo) representou mais de 50% dos deslocamentos populacionais ocorridos no período. Em contrapartida, em regiões como Registro, Bauru, Marília e Central, a participação da migração externa foi bem inferior: da ordem de 25% do total dos deslocamentos populacionais (Tabela 4). CONTEXTO DOS DESLOCAMENTOS INTRA-ESTADUAIS As informações censitárias de 2000 revelam que, além dos movimentos migratórios interestaduais, outras formas de mobilidade adquiriram importância e significado analítico nas últimas décadas. No Estado de São Paulo, passaram a se destacar os movimentos intra-estaduais: entre 1995 e 2000, o volume de migrantes do Estado (excetuando-se os deslocamentos intra-regionais) foi de 2,3 milhões de pessoas. Desse total, 54,8% correspondiam a fluxos migratórios originários de outros estados brasileiros e 45,2% a movimentos ocorridos no próprio Estado de São Paulo. Este continuou apresentando intensa mobilidade populacional: entre 1986 e 1991, 1,3 milhão de pessoas movimentaram-se entre as regiões; entre 1995 e 2000, esse número ficou em torno de 1 milhão – o que indica uma redução nos movimentos internos de aproximadamente 27%. A tendência migratória intra-estadual encontra-se associada ao fortalecimento do processo de interiorização do desenvolvimento econômico já iniciado em meados dos anos 70. Esse processo contribuiu, num primeiro momento, para uma desconcentração das atividades econômicas a partir da RMSP em direção ao interior do Estado. Como resultado, ocorreu um redirecionamento dos fluxos migratórios da metrópole para as regiões situadas nos eixos de maior desenvolvimento econômico do interior e maior retenção da população do interior em suas regiões de origem (CANO, 1988; ARAÚJO; PACHECO, 1996; PERILLO, 1996; ARANHA, 1996; FUNDAÇÃO SEADE, 2004). Nos anos 90, intensificou-se a tendência de interiorização econômica e populacional do Estado. Segundo Araújo (1999), esse processo ocorreu em um espaço concentrado num raio de aproximadamente 150 km a partir do centro da RMSP, abrangendo as RAs de Campinas, São José dos Campos, Sorocaba e RM da Baixada Santista. Nesse contexto, Caiado (1996) destaca que, além dos centros industriais já consolidados do Estado, como as RAs de Campinas, São José dos Campos e a RM da Baixada Santista e seus respectivos entornos, foram privilegiados os grandes eixos de ligação com a capital paulista – notadamente as cidades com melhor infra-estrutura em seu entorno, cortadas pelas rodovias Bandeirantes, Anhangüera, Presidente Dutra, Carvalho Pinto, Castelo Branco, Marechal Rondon e Fernão Dias. As mudanças que vêm ocorrendo na dinâmica econômica e populacional da metrópole tiveram impactos significativos no conjunto de regiões que integram o interior. Essa área tem-se caracterizada como a segunda concentração industrial do país, só perdendo para a RMSP, e tem apresentado uma intensa mobilidade populacional, consolidando-se como uma das principais áreas migratórias do país nas últimas décadas (CUNHA, 1987; PERILLO; ARANHA, 1998; UNICAMP/NEPO, 1997). Esse cenário econômico contribuiu, em grande medida, para o redirecionamento dos fluxos migratórios para as regiões de maior dinamismo do Estado, principalmente para as duas áreas metropolitanas – São Paulo e Baixada Santista – e para as RAs de Campinas e Sorocaba, entre outras. Capital: Maior Porta de Saída dos Migrantes que Deixaram a RMSP Entre 1995 e 2000, 468 mil pessoas saíram da RMSP e foram para as regiões do interior do Estado. Relevante é o papel da capital que, mesmo consolidando-se como importante pólo de atração populacional, caracterizou-se como a maior área de saída da população da metrópole: 320 mil pessoas deslocaram-se dessa área – o equivalente a 68,5% dos migrantes que deixaram a RMSP. Apenas 148 mil pessoas (31,5%) mudaram de outros municípios da RMSP (excetuando-se São Paulo) para o interior do Estado. As regiões do interior que mais se beneficiaram com os deslocamentos originados na RMSP foram as RAs de Campinas, Sorocaba, São José dos Campos e a RM da Baixada Santista (RMBS). Os deslocamentos populacionais procedentes do interior do Estado foram menos pronunciados: 172 mil pessoas saíram do interior em direção à RMSP; dentre estas, 91 mil (52,8%) movimentaram-se para os outros municípios da RMSP e 81 mil (47,2%) para o Município de São Paulo (Mapa 2). Destacaram-se os fluxos originários das RAs de Campinas, Sorocaba, São José dos Campos e da RM da Baixada Santista. 104 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 PERCURSOS MIGRATÓRIOS NO ESTADO DE SÃO PAULO: ... MAPA 2 Fluxos Migratórios Intra-Estaduais Estado de São Paulo – 1995-2000 Interior do Estado 52,8% 91 mil 47,2% 81 mil Município de Outros Municípios São Paulo da RMSP 148 mil 320 mil 31,5% 68,5% Fonte: IBGE; Fundação Seade. Trocas Migratórias: 1 Milhão de Pessoas Deslocaramse entre as Regiões São Paulo). Dentre as regiões que integram o interior, Campinas foi a que recebeu o maior volume de migrantes intra-estaduais entre 1995 e 2000: cerca de 235 mil pessoas mudaram para essa área. Sobressaíram-se os deslocamentos com origem na RMSP, responsáveis por 61,2% dos fluxos para a RA de Campinas. Praticamente 68% dos migrantes que chegaram à região de Campinas saíram da capital e apenas 32% dos outros municípios da RMSP. Em menor expressão, Campinas recebeu migrantes das regiões de Sorocaba (5,9%), Presidente Prudente (3,7%) e São José do Rio Preto (3,6%) (Mapa 3). A região de Campinas também se caracterizou como importante área de saída de migrantes para a RMSP (31%), e para as regiões de Sorocaba (13,7%) e São José do Rio Preto (9,9%) (Tabela 6). No balanço das trocas migratórias, essa região exibiu um ganho líquido de 140 mil pessoas nesse período. Outro importante pólo de atração populacional foi a região de Sorocaba, que recebeu 116 mil pessoas entre 1995-2000. Destacaram-se os deslocamentos com origem na RMSP (62,9%), principalmente na capital (63%) e, em menor expressão, os procedentes das RAs de Campinas, Marília e Bauru. O destino preferido das pessoas que saíram de Sorocaba foi a RMSP (34,6%), seguida das regiões de Campinas (27,3%) e Bauru (8,5%). Entre 19952000, Sorocaba apresentou um ganho líquido de 66 mil pessoas nas trocas populacionais estabelecidas com as demais regiões do Estado. Os deslocamentos populacionais no Estado de São Paulo foram pronunciados: praticamente 1 milhão de pessoas movimentaram-se entre suas regiões, no período 1995-2000. Na RMSP, a participação dos deslocamentos intra-estaduais foi relativamente pequena, 19% (Tabela 5). Essa região recebeu um volume de 172 mil pessoas e exibiu uma perda migratória acentuada, de 468 mil pessoas para as regiões do interior do Estado nesse período. Isso significa que, mesmo caracterizada como grande pólo de atração de migrantes, a RMSP consolidou-se como a principal área de saída da população. No balanço das trocas migratórias, essa área perdeu quase 300 mil pessoas para as outras regiões do interior. A região que mais se beneficiou com os deslocamentos da RMSP foi a de Campinas, que recebeu praticamente 144 mil migrantes dessa área. Dentre os migrantes que chegaram à metrópole, destacaram-se os procedentes de Campinas (16,9%), RMBS (10,9%), Sorocaba (10,1%) e São José dos Campos (8,3%). A capital paulista foi o local preferido dos migrantes que saíram das regiões de Campinas e RMBS. Em contrapartida, os migrantes procedentes das regiões de Sorocaba e São José dos Campos concentraram-se, em sua maioria, nos outros municípios da RMSP (excetuando-se SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 105 106 SÃO PAULO 29.162 5.096 Campinas Ribeirão Preto EM 707 4.623 2.060 2.481 Central Barretos Franca São Paulo sem especificação 43.268 Fonte: IBGE; Fundação Seade. 79 6.996 Marília 61 29 17 87 128 4.771 6.775 Presidente Prudente 58 112 88 701 1.591 212 3.292 - 7.162 Araçatuba 8.394 17.429 Sorocaba 5.319 14.366 São José dos Campos São José Rio Preto 18.824 RM da Baixada Santista Bauru 2.569 Registro Interior 5.317 2.940 8.257 15.419 Município de São Paulo 172.134 172.134 Registro Demais Municípios RMSP ESTADO DE SÃO PAULO RMSP 3.006 154 284 700 808 738 780 916 856 1.135 4.801 2.626 1.734 - 3.841 22.379 16.566 43.622 60.188 82.568 3.737 165 106 669 782 616 300 671 484 626 5.456 2.052 - 3.536 357 19.557 16.425 29.852 46.277 65.834 4.464 159 437 1.127 5.442 2.224 1.097 1.108 4.152 1.175 12.932 - 1.586 3.227 3.845 42.974 27.117 45.810 72.927 115.902 9.856 1.790 2.735 6.370 7.414 8.737 5.624 8.331 6.117 5.364 - 13.749 5.925 7.651 1.357 91.022 45.693 97.831 143.524 234.546 RM da Baixada São José Sorocaba Campinas Santista dos Campos 1.301 4.810 3.269 3.234 729 639 603 2.289 876 - 4.114 642 406 1.000 124 24.036 2.346 9.506 11.852 35.888 Ribeirão Preto 1.450 311 474 2.608 5.963 1.773 2.753 1.793 - 1.094 5.612 4.280 397 1.207 95 29.811 5.403 14.612 20.015 49.825 Bauru 2.604 767 4.901 2.969 1.108 1.761 7.989 - 1.994 2.304 9.333 650 849 1.076 136 38.440 7.888 21.180 29.068 67.508 993 390 336 591 1.926 3.073 - 3.958 2.049 527 3.835 684 538 728 70 19.700 4.372 9.264 13.636 33.337 1.503 92 470 367 4.548 - 2.118 1.157 884 523 4.993 1.363 655 909 117 19.700 5.711 10.257 15.968 35.668 1.601 89 344 482 - 5.450 1.027 899 4.398 622 3.818 3.550 484 1.096 130 23.990 6.231 14.562 20.793 44.782 São José do Araçatuba Presidente Marília Rio Preto Prudente Residência Atual Interior 1.187 365 1.104 - 1.015 635 899 2.842 2.422 3.868 6.266 1.363 659 828 226 23.681 4.511 11.151 15.662 39.343 Central 342 1.015 - 911 168 238 423 2.877 215 3.401 1.551 221 306 342 33 4.237 1.055 3.595 4.650 16.695 671 - 1.273 469 216 202 272 446 117 4.950 1.613 157 149 516 11.049 1.240 4.237 5.477 16.527 Barretos Franca 33.420 10.188 15.763 20.517 30.206 26.214 23.947 27.344 24.677 25.676 65.025 32.927 13.899 25.409 10.333 377.738 468.296 468.296 76.688 12.669 17.823 25.140 37.202 32.990 28.719 35.738 29.996 30.772 94.187 50.356 28.264 44.233 12.902 557.680 147.498 320.796 1.025.976 Total Geral 853.842 Total DE Residência Anterior TABELA 5 Fluxos Migratórios Intra-Estaduais Estado de São Paulo – 1995-2000 SONIA REGINA PERILLO / MAGALY LOSSO PERDIGÃO PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 PERCURSOS MIGRATÓRIOS NO ESTADO DE SÃO PAULO: ... MAPA 3 Fluxos Migratórios Intra-Estaduais Numericamente mais Importantes Estado de São Paulo – 1995-2000 Fonte: IBGE; Fundação Seade. TABELA 6 Fluxos Migratórios Intra-Estaduais Numericamente mais Significativos, segundo Áreas de Origem e Destino Estado de São Paulo – 1995-2000 Áreas Imigrantes Emigrantes RMSP 172.134 468.296 RM da Baixada Santista 82.568 São José dos Campos % Destino dos Emigrantes % Campinas RM da Baixada Santista Sorocaba 16,9 10,9 10,1 Campinas Sorocaba RM da Baixada Santista 30,6 15,6 12,9 44.233 RMSP 72,9 RMSP Campinas 42,6 17,3 65.834 28.264 RMSP Campinas 70,3 8,3 RMSP Campinas 50,8 21,0 Sorocaba 115.902 50.356 RMSP Campinas 62,9 11,2 RMSP Campinas 34,6 27,3 Campinas 234.546 94.187 RMSP Sorocaba 61,2 5,9 RMSP Sorocaba 31,0 13,7 67.508 35.738 RMSP Campinas Araçatuba 43,1 13,8 11,8 RMSP Campinas Araçatuba 23,5 23,3 11,1 São José do Rio Preto Origem dos Imigrantes Fonte: IBGE; Fundação Seade. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 107 SONIA REGINA PERILLO / MAGALY DE LOSSO PERDIGÃO A RMBS recebeu 83 mil migrantes nesse período; a grande parcela dos fluxos (73%) teve origem na RMSP, notadamente na capital. Em menor expressão, destacaramse os movimentos originários das RAs de Campinas, Registro e Sorocaba. Os migrantes que saíram da RM da Baixada Santista tiveram como principais áreas de destino a RMSP (42,6%) e a RA de Campinas (17,3%). Nas trocas populacionais efetuadas com as demais regiões do Estado, a RM da Baixada Santista registrou um ganho líquido de 38 mil pessoas. Outro importante pólo de atração foi a Região de São José do Rio Preto, que recebeu quase 68 mil migrantes nesse período. Destacaram-se os fluxos procedentes da RMSP (43,1%) e, em menor proporção, das RAs de Campinas e Araçatuba. Nesse período, a Região de São José do Rio Preto apresentou perdas populacionais importantes para a RMSP (23,5%) e para a RA de Campinas (23,3%). A RA de São José dos Campos recebeu 65 mil pessoas procedentes, em sua maioria, da RMSP (70%). Os migrantes que saíram da Região de São José dos Campos tiveram como principais áreas de destino a RMSP (51%) e a RA de Campinas (21%). Dentre as regiões caracterizadas como pólo de atração do Estado de São Paulo, a Região de São José dos Campos foi a que exibiu as menores perdas populacionais nas trocas estabelecidas no período 1995-2000, da ordem de 28 mil pessoas (Tabela 6). As regiões analisadas foram as que apresentaram os fluxos migratórios intra-estaduais numericamente mais significativos, consolidando-se como as áreas de grande atração da população que se deslocou dentro do Estado de São Paulo. Entre 1995 e 2000, essas áreas responderam em conjunto por praticamente 72% da migração intra-estadual. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados apresentados mostram a importância das migrações interestaduais e apontam que o Estado de São Paulo continuou sendo o principal pólo nacional de atração migratória entre 1995 e 2000. A migração desempenhou papel relevante na RMSP – principalmente na capital, que ainda exerce forte atração no redirecionamento da população vinda de Estados brasileiros para São Paulo. Bahia, Minas Gerais, Paraná e Pernambuco consolidaram-se como as principais áreas de procedência dos migrantes que chegaram a São Paulo. As principais áreas de destino dos migrantes que saíram do Estado de São Paulo foram Minas Gerais, Paraná, Bahia e Pernambuco. As informações censitárias de 2000 revelam que, além dos movimentos migratórios interestaduais, outras formas de mobilidade vêm adquirindo importância e significado analítico nas últimas décadas. Além dos movimentos interestaduais, os intra-estaduais passaram a ter um papel cada vez maior, respondendo por 45,2% dos fluxos migratórios para o Estado de São Paulo entre 1995 e 2000. Praticamente um milhão de pessoas deslocaram-se entre as regiões do Estado nesse período. Os principais fluxos migratórios ocorreram para as regiões de maior dinamismo econômico, sobressaindo-se as áreas metropolitanas de São Paulo e da Baixada Santista e as RAs de Campinas, Sorocaba, São José dos Campos, entre outras. Nos anos 90, o interior do Estado de São Paulo reforçou seu potencial de atração migratória, notadamente da população originária da RMSP. Por outro lado, mesmo caracterizada como o grande pólo de migrantes, a metrópole paulista, notadamente a capital, consolidou-se como a principal área de saída da população do Estado de São Paulo. No balanço das trocas migratórias intra-estaduais, essa região perdeu quase 300 mil pessoas para as outras regiões paulistas entre 1995 e 2000. Ressalte-se, porém, que a maior parte das transformações econômicas e demográficas recentes que a RMSP vem apresentando concentram-se, sobretudo, na capital. Essa área continua centralizando grande parte das atividades mais dinâmicas e modernas do país, intensificando ainda mais sua característica de cidade “global” ou “mundial”. NOTA 1. Interior aqui definido como o conjunto de todas as regiões paulistas, excluindo-se a Região Metropolitana de São Paulo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANHA, V. Migração na metrópole paulista. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 10, n. 2, abr./jun. 1996. ARAÚJO , M.F.I.; PACHECO, C.A. A trajetória econômica e demográfica na metrópole na década 70-80. In: SÃO PAULO (Estado). Cenários da urbanização paulista: documento básico. São Paulo: SEP/Fundação Seade, 1996. v. 6. (Coleção São Paulo no limiar do século XXI). ARAÚJO, M.F.I. Mapa da estrutura industrial e comercial do Estado de São Paulo. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 13, n. 1-2, jan./jun. 1999. 108 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 PERCURSOS MIGRATÓRIOS NO ESTADO DE SÃO PAULO: ... BAENINGER, R. Interiorização da migração em São Paulo: novas territorialidades e novos desafios. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 14., 2004, Caxambu. Anais... Caxambu: Abep, 2004. OLIVEIRA, A.T. de.; SIMÕES, A. G. Deslocamentos populacionais no Brasil: uma análise dos censos demográficos de 1991 e 2000. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 14., 2004, Caxambu. Anais... Caxambu: Abep, 2004. ________. Expansão, redefinição ou consolidação dos espaços de migração em São Paulo? Análises a partir dos primeiros resultados do Censo 2000. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 13., 2002, Ouro Preto. Anais... Ouro Preto: Abep, 2002. PATARRA, N.; BAENINGER, R. Movimentos migratórios: novas características, novas indagações. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR, 3., Águas de São Pedro, Ipea/Nesur/ IBGE, 2000. BRANCO, P.P.M. Informação e missão institucional: pesquisa desvenda economia paulista. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 13, n. 1-2, jan./jun. 1999. ________. Regionalização em São Paulo: novas tendências ou consolidação de processos recorrentes? Campinas: Nesur/IE/ Unicamp, Convênio Fundação Seade-Fecamp, 1994. (Relatório de pesquisa do projeto: A nova realidade socioeconômica do Estado de São Paulo). CAIADO, A.S.C. Desconcentração industrial regional no Brasil: pausa ou retrocesso 1985-1998. Tese (Doutorado) – Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002. PERILLO, S.R. Vinte anos de migração no Estado de São Paulo: uma análise do período 1980/2000. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 13., 2002, Ouro Preto. Anais... Ouro Preto: Abep, 2002. ________. Desenvolvimento regional: novos requisitos para a localização industrial em São Paulo. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 10, n. 2, abr./jun. 1996. ________. Novos caminhos da migração no Estado de São Paulo. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 10, n. 2, abr./jun. 1996. CANO, W. et al. A nova realidade da indústria paulista: subsídios para a política de desenvolvimento regional do Estado de São Paulo. Campinas: IE/Unicamp/Fecamp, 1994. (Relatório de Pesquisa). PERILLO, S.R. Migração e mudanças: uma análise das tendências migratórias na RMSP no período 1980-1991. Conjuntura Demográfica, São Paulo, Fundação Seade, n. 22, 1993. CANO, W. Notas para um cenário migratório no Estado de São Paulo. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 10, n. 2, abr./jun. 1996. PERILLO, S.R.; ARANHA, V. Caminhos da migração: nova dinâmica demográfica. In: FUNDAÇÃO SEADE. Vinte anos no ano 2000: estudos sociodemográficos sobre a juventude paulista. São Paulo: 1998. CANO, W. (Coord.). A interiorização do desenvolvimento econômico do Estado de São Paulo (1920-1980). São Paulo: Fundação Seade, 1988. (Coleção Economia Paulista, v. 1, n. 3). ________. Novos padrões de reorganização espacial da população paulista. Conjuntura Demográfica, São Paulo, Fundação Seade, n. 26, jan./mar. 1994. CUNHA, J.M.P. da. Mobilidade populacional e expansão urbana: o caso da Região Metropolitana de São Paulo. Tese (Doutorado) – IFCH/Unicamp, Campinas, 1994. PERILLO, S.R.; PERDIGÃO, M. O Estado de São Paulo continua sendo o principal pólo de migrantes do país. SP Demográfico, São Paulo, Fundação Seade, ano 4 , n. 6, set. 2003. ________. A migração nas regiões administrativas de São Paulo segundo o Censo de 80. Revista Brasileira de Estudos de População, São Paulo, v. 4, jul./dez. 1987. ________. Cenários migratórios recentes em São Paulo. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 12., 2000, Caxambu. Anais... Caxambu: Abep, 2000. ________. As correntes migratórias na Grande São Paulo. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 1, n. 2, jul./set. 1987. RODRIGUES, R. do N.; PERILLO, S.R. Perspectiva da migração no Estado de São Paulo e suas 11 Regiões Administrativas para o período 1980-2000. Informe Demográfico, São Paulo, Fundação Seade, n. 19, 1986. CUNHA, J.M.P. da.; DEDECCA, C.S. Migração e trabalho na Região Metropolitana de São Paulo nos anos 90: uma abordagem sem preconceito. Revista Brasileira de Estudos de População, Abep, v. 17, n. 1-2, jan./dez. 2000. UNICAMP/NEPO. Desenvolvimento econômico e crescimento populacional: tendências recentes e cenários futuros. Campinas, abr. 1997. FUNDAÇÃO SEADE. Projeções para o Estado de São Paulo: população e domicílios até 2025. São Paulo, Fundação Seade/ Sabesp, ago. 2004. MADEIRA, F.R.; TORRES, H.G. População e reestruturação produtiva. Novos elementos para projeções demográficas. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 10, n. 2, abr./jun. 1996. SONIA REGINA PERILLO: Estatística e Demógrafa, Analista da Fundação Seade ([email protected]). MAGALY DE LOSSO PERDIGÃO: Tecnóloga em Processamento de Dados, Analista da Fundação Seade ([email protected]). NEGRI, B.; PACHECO, C.A. Mudança tecnológica e desenvolvimento regional nos anos 90: da interiorização do desenvolvimento à nova dimensão espacial da indústria paulista. In: SUZIGAN, W.; COUTINHO, L. (Coord.). Projeto desenvolvimento tecnológico e competitividade da indústria brasileira. Campinas: SCTDE/Fecamp/Unicamp-IE, 1993. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 97-109, jul./set. 2005 Artigo recebido em 23 de março de 2005. Aprovado em 30 de maio de 2005. 109 FABÍOLA RODRIGUES POPULAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO URBANA NO (NOR)OESTE PAULISTA um estudo sobre a produção social do espaço urbano no município de Votuporanga FABÍOLA RODRIGUES Resumo: Esse artigo tem por objetivo lançar luz sobre os processos demográficos e socioeconômicos recentes (entre 1970 e 2000) decorridos em município paulistas de porte médio, especialmente a reversão da tendência de perdas populacionais e a crescente mobilidade espacial intra-urbana, decorrentes da incorporação desses municípios às novas formas da acumulação flexível, vis-à-vis à precarização do emprego e o crescente empobrecimento da população trabalhadora. Palavras-chave: População. Desenvolvimento urbano. Mobilidade espacial da população. Abstract: This article has the objective of throwing some light onto the recent demographic and socioeconomic processes (between 1970 and 2000) that occurred in most of the municipalities in the State of São Paulo, especially the reversion of the trend toward demographic losses and the growing intra-urban spatial mobility resulting from the inclusion of these municipalities into new forms of flexible accumulation, vis-à-vis the growing unemployment and the increasing impoverishment of the working population. Key words: Population. Urban development. Spatial mobility of the population. O objetivo desse artigo é resgatar – de forma geral e aproximada – as condições históricas (decorridas no período entre 1970 e 2000) sob as quais se deu a formação capitalista dos municípios da franja do noroeste paulista, no interior dos processos mais gerais de urbanização, concentração e desconcentração industrial na malha paulista. De fato, este artigo propõe-se a evidenciar a inter-relação historicamente urdida entre a mobilidade espacial da população, a industrialização e a produção social do espaço urbano, no intento de demonstrar como as disputas pela apropriação dos recursos e das localizações no espaço intra-urbano estão subsumidas às necessidades de reprodução do capital, bem como ao poder de classe na construção da forma espacial da cidade (HARVEY, 1980). Para tanto, estuda o caso de um típico município médio da malha noroeste do Estado: o município de Votuporanga. Desse modo, o texto foi organizado de forma a permitir a compreensão da evolução sociodemográfica do noroeste paulista no interior do processo de desconcentração industrial e de reversão da tendência de esvaziamento demográfico da franja pioneira. Nesse sentido, estuda particularmente a Região Administrativa (RA) de São José do Rio Preto, onde se localiza o município de Votuporanga. Na seqüência, a partir da análise das condições históricas que engendraram a formação urbana dessa área, o enfoque recai sobre o município de Votuporanga e as condições mais gerais de sua industrialização, que parecem ter desempenhado um papel decisivo na forma espacial da cidade, sobretudo ao longo das duas últimas décadas. Dessa perspectiva, acompanha-se a evolução da industrialização e a conformação das primeiras áreas industriais, vis-à-vis à nova forma espacial que a cidade adquire e consolida, evidenciando-se uma relação permanente (e 110 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 110-120, jul./set. 2005 POPULAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO URBANA NO (NOR)OESTE PAULISTA: ... levada ao limite, na década de 2000) entre dinâmica econômica, mobilidade espacial da população e produção social do espaço intra-urbano. TABELA 1 Taxa de Crescimento Geométrico Anual da População Região Administrativa de São José do Rio Preto e Regiões de Governo – 1970-2000 PANORAMA DA DINÂMICA DEMOGRÁFICA DO NOROESTE PAULISTA Em porcentagem Regiões A evolução dos volumes e das taxas de crescimento da população da Região Administrativa de São José do Rio Preto,1 entre 1970 e 2000, é bastante elucidativa do movimento de declínio e posterior recuperação econômica e demográfica do interior de São Paulo, especialmente do Oeste Paulista. Efetivamente, os grandes processos de industrialização e urbanização ocorridos em larga escala no país entre as décadas de 60/70 (MARTINE, 1987; PACHECO; PATARRA, 1997) e que redundaram na extraordinária concentração demográfica na capital paulista e em sua área de influência mais imediata, causaram grande prejuízo ao crescimento urbano e demográfico dos municípios recémformados na franja pioneira paulista. Esses municípios também foram bastante afetados pela expansão da fronteira agrícola na direção centro-oeste do país (MARTINE, 1987), de modo que seu crescimento econômico e demográfico declinou sensivelmente no período 1960/70 – tendência que só esboçou reversão para o conjunto de municípios dessa região a partir dos anos 80. É bastante emblemático do processo de reversão do esvaziamento demográfico no Oeste Paulista o vigoroso crescimento das Regiões de Governo da RA de São José do Rio Preto, expressos na Tabela 1, que mostra uma significativa evolução da taxa de crescimento da população de todas as áreas no período 1970-2000. Notamos, em primeiro lugar, uma inequívoca liderança da RG de São José do Rio Preto, seguida pela RG de Catanduva na composição do crescimento populacional da RA, nesse período. Embora as taxas de crescimento das regiões mais novas (Votuporanga, Fernandópolis e Jales) sejam bem mais modestas que as taxas de São José do Rio Preto e Catanduva, é possível perceber uma clara reversão na tendência de crescimento negativo e de evasão populacional. Exemplificando: a RG de Jales, muito afetada na década de 70 pelas políticas de modernização agrícola, passou a reverter sua tendência de perda à medida que paulatinamente foi conseguindo fixar sua população rural em atividades urbanas. Assim, as modestas taxas de crescimento positivo da população nas RGs de Fernandópolis e Votuporanga nos SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 110-120, jul./set. 2005 Taxa de Crescimento 1970/80 1980/1991 1991/2000 Região Administrativa de São José do Rio Preto 0,71 1,59 1,59 Região de Governo de São José do Rio Preto 1,85 2,52 2,33 Região de Governo de Catanduva 1,77 1,42 1,29 Região de Governo de Votuporanga -0,20 0,87 0,91 Região de Governo de Fernandópolis -0,43 0,41 0,55 Região de Governo de Jales -1,80 0,27 0,50 Fonte: IBGE; Fundação Seade (1990-2004). períodos entre 1980/1991 e 1991/2000 (sempre inferiores a 1% ao ano) traduzem a paulatina capacidade dessas áreas de reter a população em atividades urbanas regulares – isto, num contexto de capitalização das relações sociais de produção no campo e de fortalecimento de sub-pólos regionais com relativa capacidade de absorção de uma população pouca qualificada e precariamente escolarizada. Região de Governo de Votuporanga De modo geral, tanto a RG de Votuporanga quanto o município-sede apresentaram no período 1970-2000 uma evolução demográfica bastante semelhante à analisada anteriormente para o conjunto da Região Administrativa de São José do Rio Preto. Isso significa dizer que também aqui ocorreram os processos de reversão da tendência de esvaziamento demográfico, esvaziamento esse, configurado no período 1960/ 70, bem como o processo de fortalecimento do município-sede. Sob esse aspecto, a Tabela 2 reitera e evidencia o processo de reversão do esvaziamento demográfico dos municípios da RG de Votuporanga: como se pode observar no período 1991-2000 (que mostra a intensidade do crescimento da população em um momento em que a reversão já está em curso) 9 dos 15 municípios que 111 FABÍOLA RODRIGUES TABELA 2 Taxa de Crescimento Geométrico Anual da População, segundo Municípios Região de Governo de Votuporanga – 1991-2004 Em porcentagem Taxa de Crescimento Municípios 1991-2000 2000-2004 Álvares Florence -1,75 -0,78 Américo de Campos -0,03 0,08 Cardoso -0,61 0,00 Cosmorama -0,67 -0,24 Floreal -1,04 -0,52 Macaubal Magda 0,02 0,45 -0,79 -0,28 Monções -0,35 0,09 Nhandeara -0,18 0,47 Parisi Pontes Gestal 2,76 2,49 -1,69 1,72 Riolândia 1,12 0,98 Sebastianópolis do Sul 0,19 0,54 Valentim Gentil 4,31 3,39 1,8 1,49 Votuporanga Fonte: IBGE; Fundação Seade (2004). compõem a RG de Votuporanga apresentavam taxas de crescimento negativo, ainda que baixas (à exceção de Álvares Florence e Pontes Gestal, que apresentam altas taxas negativas, os demais municípios apresentavam taxas negativas que se aproximam de zero); já no período 20002004 apenas 4 dos 15 municípios da RG apresentam taxas negativas de crescimento e, ainda assim, elas são significativamente menores em comparação com o período anterior (Álvares Florence passa de uma taxa geométrica de crescimento anual de -1,75% para -0,78%; Pontes Gestal salta de uma taxa geométrica de crescimento anual de -1,69% para 1,72%). Cumpre destacar, ainda, as excepcionais taxas de crescimento da população, entre os períodos 1991-2000 e 2000-2004, dos municípios de Parisi (2,76% ao ano e 2,49% ao ano, respectivamente) e de Valentim Gentil (4,31% ao ano e 3,39% ao ano, respectivamente) que, a despeito de terem diminuído sua intensidade no último período, em comparação com o período anterior, mantêmse significativamente acima das taxas registradas para o total da RG de Votuporanga (0,91% e 1,05%, respectivamente), RA de São José do Rio Preto (1,59% e 1,43%) e Estado de São Paulo (1,82% e 1,55%) (FUNDAÇÃO SEADE, 2004). As taxas geométricas de crescimento da população significativamente mais elevadas para esses dois municípios explicam-se, no entanto, em razão de conjunturas bastante particulares: no caso do município de Parisi, o recente desmembramento (1991) parece ter contribuído para seu insígne desempenho, corroborando uma tendência já exaustivamente analisada na constituição urbana da malha paulista (CAMARGO, 1981); no caso de Valentim Gentil, a explicação repousa, possivelmente, no bom desempenho da economia local, especialmente da indústria moveleira, sobremaneira do segmento de estofados.2 No que diz respeito às trocas migratórias do município de Votuporanga, no contexto intra-regional, conforme o demonstra a Tabela 3, nota-se que praticamente todos os municípios da RG de Votuporanga aumentam sua capacidade de retenção migratória no período 1995-2000, em comparação com o período 1986-1991, uma vez que o município-sede diminui o volume do saldo migratório em suas trocas com quase todos os municípios da RG, aumentando, inclusive, as perdas migratórias que, no período 1986-1991 ocorriam apenas nas trocas com os municípios de Macaubal (-41 pessoas) e Sebastianópolis do Sul (-51 pessoas). Assim, no período 1995-2000, o saldo migratório negativo ocorre também nas trocas com os municípios de Cosmorama (-6 pessoas), Floreal (-26 pessoas), Monções (-11 pessoas), Pontes Gestal (-111 pessoas), Riolândia (-16 pessoas) e Sebastianópolis do Sul (-6 pessoas). Esses números apontam, concomitantemente, para dois fenômenos para os quais deve-se atentar: o primeiro é a célere e tardia desruralização da população e da economia dos municípios da RG de Votuporanga, nos últimos 20 anos – o que contribui sensivelmente para a retenção de população, que muda sua situação de domicílio (de rural para urbano) muitas vezes dentro do mesmo município, induzindo a uma diminuição do fluxo migratório para Votuporanga. O segundo fenômeno é a crescente informalização da economia votuporanguense, aliada aos processos de liofilização da estrutura produtiva (ANTUNES, 2003), modernização tecnológica e aumento do desemprego diferencial3 (que afeta mais intensamente a mão-de-obra de baixa qualificação) em curso na indústria local, particularmente na indústria moveleira, desde meados da década de 90 o que contribuiu para a diminuição da atratividade migratória do município-sede, haja vista que as transformações recentes no regime de acumulação limitam sensivelmente a capacidade de absorção de mãode-obra do setor produtivo do município. 112 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 110-120, jul./set. 2005 POPULAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO URBANA NO (NOR)OESTE PAULISTA: ... TABELA 3 Trocas Migratórias, segundo Municípios Região de Governo de Votuporanga – 1986-2000 Municípios Total 1986-1991 Imigração Emigração 1995-2000 Saldo Migratório Imigração Emigração Saldo Migratório 158 1.975 1.053 922 265 107 Álvares Florence 435 76 359 211 67 144 Américo de Campos 234 41 193 158 16 142 Cardoso 252 135 117 194 95 99 Cosmorama 426 317 109 112 118 -6 Floreal 73 26 47 0 26 -26 Macaubal 47 88 -41 36 7 29 Magda 67 0 67 37 14 23 -11 Monções 40 0 40 0 11 105 87 18 109 73 36 Pontes Gestal 22 0 22 131 242 -111 Riolândia 73 50 23 23 39 -16 0 51 -51 125 131 -6 201 182 19 10 0 10 Nhandeara Sebastianópolis do Sul Valentim Gentil Fonte: IBGE. Censo Demográfico 1991 e 2000 (tabulações especiais). AS (TRANS)FORMAÇÕES DA CIDADE INDUSTRIAL Graças aos incentivos e regulamentação do Plano Municipal de Amparo e Incentivo Industrial de Votuporanga – Plamivo,4 houve importante transferência de empresas já sediadas no município, bem como a instalação de novas empresas nas áreas zoneadas para uso industrial, todas localizadas nas franjas do perímetro urbano legal, no sentido norte-noroeste, conformando aglomerações de moradia popular – já que a consolidação da indústria de transformação no município, destacadamente a moveleira (SEMPLA, 1995), requeria a proximidade entre as áreas de moradias operárias e a industrial como forma de otimização dos custos de reprodução do capital. Nesse sentido, a produção social do espaço urbano (GOTTDIENER, 1997) passa a ser fortemente orientada em função das necessidades das novas aglomerações industriais, as quais demandam políticas de infra-estrutura urbana e de transportes que são apenas parcialmente providas pelo Poder Público. Dessa forma, a dinâmica de expansão imobiliária no espaço intra-urbano foi-se deslocando paulatinamente do eixo centro-sul para o eixo centro-norte, ratificando o centro tradicional (VILLAÇA, 2001). No entanto, continuou deslocando a configuração dos bolsões de pobreza e das áreas de moradia popular para a frente de expansão norte, gerando um efeito indireto de enobrecimento da zona sul. Tudo isso ocorreu a despeito da permanência de antigos A Emergência da Cidade Industrial Assim como ocorreu com os fluxos migratórios, a reversão da tendência de esvaziamento demográfico e o crescente fortalecimento do município de Votuporanga como pólo econômico regional configuraram-se como determinantes de primeira grandeza para a formação de uma morfologia urbana específica. O aparecimento das primeiras áreas industriais no final dos anos 70 explica a forma urbana – marcada pela forte segregação residencial – que a cidade adquiriu e consolidou nas décadas seguintes. Isso equivale dizer, como o demonstra o Mapa 1, que a implantação de distritos industriais no município de Votuporanga desde o final da década de 70 foi deveras determinante para a conformação do desenho urbano e para a orientação da distribuição da população no espaço intra-urbano. Foi essencialmente a partir da estruturação do Pólo Comercial e Industrial de Votuporanga (1979) e dos dois primeiros distritos industriais (1978 e 1979, respectivamente) que se abriu uma frente de expansão ao norte e noroeste do perímetro urbano, conformando um novo eixo de intenso dinamismo econômico. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 110-120, jul./set. 2005 113 FABÍOLA RODRIGUES MAPA 1 Localização dos Principais Loteamentos Urbanos Votuporanga – 2000 I Distrito Industrial Pólo Comercial e Industrial Própovo II, III e IV Distritos Industriais Pozzobon Santa Luzia São Cosme Patrimônio Velho São Damião Patrimônio Novo Jardim Marin Vila Marin V Distrito Industrial Bairro Marão B. São João (Favela Ipiranga) Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento, Habitação e Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de Votuporanga. bolsões de pobreza nessa região (como a favela Ipiranga, a mais importante e mais antiga do município), ao longo das décadas seguintes. Evidentemente, a conformação de aglomerações de moradias populares na frente de expansão norte, além de configurar-se como conveniente para o capital industrial, revelou-se oportuna para o capital imobiliário, que não tardou a plantar inúmeros loteamentos populares naquela região. O capital imobiliário se beneficiou, ainda, da dinamização do mercado imobiliário suscitada pela ampliação do perímetro urbano efetivamente ocupado, em virtude do adensamento progressivo da zona norte, que gerou, ainda, um rearranjo na apropriação dos recursos físicos do espaço intra-urbano, abrindo novos flancos para uma ocupação das camadas médias na malha consolidada da zona centro-sul. Efetivamente, a zona de expansão norte 5 replicou ampliadamente a tensão centro-periferia presente na estruturação urbana ocorrida entre as décadas de 40 e 70, quando a formação de uma pequena economia de aglo- meração na região do Patrimônio Velho (correspondente ao centro histórico) polarizou crescentemente as atividades mais dinâmicas e atraiu as camadas de alta renda para seu entorno, relegando paulatinamente a região da Estação Ferroviária (núcleo econômico e residencial primevo) a funções urbanas mais secundárias. À medida que a ferrovia foi perdendo importância frente ao transporte rodoviário, as atividades comerciais e industriais ali existentes tenderam a transferir-se, primeiramente, para a área do centro tradicional e, posteriormente, (especialmente no caso das indústrias) para a área dos distritos industriais. Assim, as moradias populares foram subsistindo sobremaneira na região da Estação Ferroviária, conformando essa região (no extremo sul da malha urbana) como zona de periferia urbana. No final da década de 70, com a estruturação do Pólo Comercial e Industrial de Votuporanga e dos dois primeiros distritos industriais, a especialização urbana das áreas de moradia popular espraiou-se para a zona de expansão norte, ratificando, da perspectiva da produção social do 114 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 110-120, jul./set. 2005 POPULAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO URBANA NO (NOR)OESTE PAULISTA: ... e a oeste, e posteriormente, na década de 80, no sentido centro-norte deixa bastante perceptível a importância econômica, social e política do centro tradicional (do qual as camadas de alta renda não abrem mão), e mais do que isso, evidencia a relação funcional que o centro tradicional estabelece com as periferias urbanas, deixando entrever o poder de classe na estruturação urbana, à medida que os pobres vão sendo reiteradamente expulsos para territórios do espaço intra-urbano mais convenientes à lógica de reprodução do capital.7 De fato, a ampliação da mancha urbana na direção norte do perímetro urbano, pulverizando nas franjas da malha as localizações das moradias populares, fez-se concomitantemente a um movimento de adensamento construtivo e demográfico do centro tradicional, que se torna mais complexo e se valoriza frente aos novos investimentos dos capitais industrial e imobiliário. Assim, a distensão do processo de periferização na direção da malha norte produziu, concomitantemente, maior adensamento, verticalização e intensificação da valorização imobiliária da região central, ao longo das décadas de 80 e 90, vedando-a em definitivo aos pobres e conformando-a como locus do domínio das camadas de alta renda. O processo de verticalização do centro foi bastante intenso entre as décadas de 80 e 90, de modo que a própria paisagem da região central foi rapidamente alterada, na mesma medida em que sua centralidade econômica, social e política foi fortalecida pela rápida evolução da indústria e pela dinamização do comércio e serviços locais, que expandem sua polarização regional (SEMPLA, 1995). Em Votuporanga, a clássica tensão centro-periferia é ampliada, na década de 80, a partir da constituição da zona de expansão norte, conformando um modelo de produção social do espaço urbano marcado pela crescente centralidade do centro tradicional e pela distensão da periferia urbana. Destarte, se por um lado, tem-se em Votuporanga um centro principal classicamente segregado (concentrando crescentemente maiores parcelas das camadas de alta renda, ao longo dos anos 80 e 90, especialmente nos condomínios residenciais verticais), de outro lado, tem-se uma periferia fortemente espraiada (que se amplia de sua localização mais antiga, no extremo sul, na direção do extensor norte), distribuída em diversas aglomerações ao longo das fímbrias do perímetro urbano. De qualquer modo, a progressiva distensão radial da periferia urbana na direção do extensor norte, aliada à espaço, uma dinâmica de apropriação e uso do solo urbano nitidamente marcada pela tensão centro-periferia. Destarte, embora a periferia urbana tenha se ampliado, mantendo sua conformação no extremo sul do perímetro urbano (cuja funcionalidade justifica-se na medida em que a zona de expansão norte produz a valorização da área centro-sul, cujo enobrecimento demanda crescentemente a proximidade de mão-de-obra de serviços gerais) e avançando sobre a zona de expansão norte, a centralidade do centro tradicional (que pouco avançou nas últimas quatro décadas para fora da área do centro histórico)6 mantevese inalterada. Essa leitura é amplamente endossada pela análise da evolução da abertura de loteamentos no espaço intra-urbano de Votuporanga, desde os primórdios de sua formação urbana, onde se nota, claramente, o aumento no número de loteamentos (mormente voltados para as camadas populares) abertos na década de 80, especialmente na zona de expansão norte. Nesse contexto, a partir do centro tradicional, a área da cidade que recebeu os maiores investimentos imobiliários entre as décadas de 50 e 60 foi a porção oeste, donde destacamos os loteamentos Vila América (1956), Loteamento Albino Zan (1961), Loteamento Santa Elisa (1959), Chácara da Aviação (1959), Recanto dos Esportes (1959), Jardim Santo Antônio (1965), Vila Guerche (1966), Chácara das Paineiras (1966), Jardim Paraíso (1967), entre outros. Conformando uma expansão radial, em direção ao sul do perímetro urbano, foram abertos inúmeros loteamentos na porção mais meridional do município, primeiramente no entorno do bairro da Estação (1950), alongando-se no sentido leste-oeste, donde destacamos: Bairro São João (1952), Parque Guarani (1966), Jardim Umuarama (1967), Chácara Vera (1967), Cecap I (1968), Parque Roselândia (1968), Jardim Progresso (1974), Jardim Santos Dumont (1978), e outros. Finalmente, a zona de expansão norte configura-se, entre o fim dos anos 70 e o curso da década de 80, a partir da abertura dos primeiros parques industriais (1978/79), carreando um sem-número de loteamentos populares que adensam e ampliam o perímetro urbano efetivamente ocupado na franja norte: Bairro Pozzobon (1978), Loteamento São Vicente de Paulo (1978), Parque Rio Vermelho (1979), Cohab (1981), Parque Residencial Santa Amélia (1983), Própovo (1988), Parque das Nações I e II (1988), entre outros. Essa ocupação marcadamente radial do perímetro urbano, primeiro no sentido centro-sul, com expansões a leste SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 110-120, jul./set. 2005 115 FABÍOLA RODRIGUES necessidade de produção de novas localizações industriais, bem como a expansão concomitante do centro tradicional, configuraram-se como forças determinantes na estruturação do espaço intra-urbano de Votuporanga, entre as décadas de 80 e 90. Nesse sentido, ainda, a desfuncionalização do I Distrito Industrial (assediado pela crescente proximidade com o centro expandido), bem como as inúmeras transformações no regime de acumulação da indústria votuporanguense (destacadamente a moveleira), mormente a partir de meados da década de 90, estabelecem novas injunções no desenho urbano, alterando rapidamente a paisagem urbana, (re)criando lugares de valor e lugares marginais na contínua produção da cidade do trabalho e da vida cotidiana. A Velha Dualidade Centro-Periferia: Mobilidade Socioespacial e Pobreza A década de 90 marca um momento determinante de modernização e ampliação de abrangência para a indústria moveleira de Votuporanga: influenciada fortemente pela ascendência do Sebrae sobre o Poder Público Municipal local e a entidade representativa regional dos industriais (Associação Industrial da Região de Votuporanga – Airvo), inicia-se em 1994 um vigoroso programa 8 de modernização tecnológica e reestruturação organizacional da indústria moveleira local, até então expressiva em número de fabricantes, mas relativamente obsoleta e com pífia participação no mercado nacional de móveis (RODRIGUES, 2005). Nesse sentido, a implantação do pólo de modernização da indústria moveleira configura-se como marco da célere modernização da indústria votuporanguense – o que gerou significativos impactos nos níveis de incorporação tecnológica, no volume da produção e na amplitude dos mercados alcançados pela indústria moveleira local. Por outro lado, quando a indústria moveleira “hibridiza” seus processos produtivos, introduzindo inovações técnicas capazes de substituir o trabalho humano – sobretudo aquele mais braçal, de menor qualificação – essa adequação às novas exigências de qualidade e produtividade obsoletizam uma mão-de-obra particularmente sensível a essas transformações – ou seja, a dos trabalhadores de baixa qualificação, cujas chances de reinserção no mercado de trabalho formal vão diminuindo cada vez mais. Na verdade, todo o sucateamento da força de trabalho da população de baixa qualificação traduz-se em desesta- bilização das condições de reprodução física e social das camadas populares, cujo empobrecimento (decorrente da precarização do emprego) os obriga a buscar cada vez mais longe as alternativas possíveis de sobrevivência na cidade. O contínuo deslocamento dos pobres, impulsionado pelas constantes pressões do capital imobiliário, vai esvaziando os loci já constituídos de moradia popular que, valorizados (na medida em que avançam os serviços e se distanciam os pobres), são crescentemente assediados pelas camadas médias. No município de Votuporanga, essa conjunção entre modernização tecnológica da indústria, achatamento dos salários e precarização das condições de vida da população trabalhadora é reforçada por um padrão de estruturação urbana assumido com a configuração dos primeiros distritos industriais, no final dos anos 70, que nitidamente disjunge a cidade a partir de uma tensão capital/trabalho, que conforma um centro no singular, e periferias, no plural. Isso significa dizer que o desenho urbano de Votuporanga vem sendo orientado, desde os anos 80 até o presente, especialmente pela lógica de reprodução do capital industrial: o grande vazio urbano da área norte do município foi sendo ocupado, desde o final dos anos 70, pela população operária, de modo a se constituir, naquela porção da cidade, uma importante aglomeração residencial das camadas populares. Com o adensamento da malha nas décadas seguintes, e com a expansão física do centro tradicional (VILLAÇA, 2001) na direção do extensor norte houve uma paulatina valorização imobiliária das áreas mais próximas do centro expandido, delineando uma discreta alteração no perfil socioeconômico dos moradores da área – especialmente daqueles dos bairros mais antigos, que contavam com uma infra-estrutura urbana de melhor qualidade. Essa valorização das áreas residenciais localizadas entre as franjas do centro expandido e o entorno do I Distrito Industrial operou uma intensa mobilidade populacional no espaço intra-urbano, com notável expulsão dos mais pobres para loteamentos mais distantes, em localizações menos privilegiadas – e, não raro, em espaços clandestinos de moradia. Efetivamente, como demonstra o Mapa 2, a malha centro-sul é a mais antiga e já está consolidada, além de dispor de melhor infra-estrutura urbana, expressa pelo maior número de loteamentos. Apesar disso, as maiores densidades demográficas, especialmente dos mais pobres, estavam localizadas, em 2000, na zona de expansão norte. Com sua constituição mais recente e contando com infra- 116 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 110-120, jul./set. 2005 POPULAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO URBANA NO (NOR)OESTE PAULISTA: ... estrutura, equipamentos e serviços urbanos disponíveis em menor quantidade, ainda assim, de forma muito assistemática, essa área abrangia, basicamente, os bairros mais próximos ao I Distrito Industrial – cuja valorização tem atraído crescentes parcelas das camadas médias. Assim, na espacialização da população de Votuporanga em 2000, pode-se enxergar uma nítida disjunção entre as localizações centrais do capital e as localizações periféricas das camadas populares (no extremo sul e na zona de expansão, no extremo norte) – o que reflete a existência de disputas de classe pelo domínio do espaço intra-urbano. Nesse contexto, o nítido crescimento das favelas em Votuporanga,9 especialmente na década de 2000, sinaliza muito claramente a diminuição da qualidade de vida da população trabalhadora, resultado, em certa medida, do processo de reestruturação produtiva que alterou sen- sivelmente a estrutura organizacional e ocupacional da indústria de transformação, destacadamente a da moveleira, outrora com grande capacidade de absorção de mão-deobra, especialmente aquela de baixa qualificação. As transformações recentes na estrutura produtiva da indústria, com o conseqüente enxugamento organizacional e redução das plantas produtivas redundou em aumento do desemprego e depreciação da renda do trabalhador. Desse modo, a capacidade de pagamento da habitação, pelas camadas operárias, reduziu-se, significativamente, o que redundou, para muitas famílias, na busca de outras soluções habitacionais possíveis (inclusive a favela) ou no deslocamento para áreas em que o custo da habitação fosse compatível com o poder aquisitivo dessas famílias. De fato, nesse contexto de precarização das condições de vida das camadas populares, houve uma intensificação dos deslocamentos intra-urbanos, fruto da necessidade de MAPA 2 Distribuição Espacial da População, por Níveis de Densidade Demográfica, segundo Loteamentos de Residência Município de Votuporanga – 2000 Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento, Habitação e Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de Votuporanga. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 110-120, jul./set. 2005 117 FABÍOLA RODRIGUES reequacionar o orçamento familiar com os custos da habitação. Efetivamente, a multiplicidade de deslocamentos intraurbanos identificados dentre a população das camadas mais empobrecidas10 é bastante reveladora da inacessibilidade da cidade a essa população que, a despeito de engendrar sua riqueza, não pode dela se apropriar, estando permanentemente empurrada para a margem – do espaço, do consumo e da cidadania. Isso significa dizer que a trajetória residencial da empobrecida classe trabalhadora, marcada por múltiplos e sucessivos deslocamentos, permite-nos enxergar como a produção social do espaço urbano é perpassada pela luta de classes e, mais do que isso, como o espaço, enquanto produto do trabalho social (RODRIGUES, 1994), é apropriado diferencialmente pelas distintas camadas sociais, revelando que, a despeito de despenderem esforços para sua produção, os pobres usufruem parcelas muito diminutas (e no mais das vezes desprestigiadas) do espaço socialmente produzido. A Tabela 4 nos permite, ainda, visualizar a enorme concentração de renda no município de Votuporanga, exatamente da perspectiva da localização espacial das classes sociais: assim, enquanto no Patrimônio Velho (loteamento incrustado no core do centro tradicional), os chefes de domicílio percebem uma renda média mensal de R$ 6.504,01, na Favela PróPovo (incrustada na zona de expansão norte), os chefes percebem uma renda média mensal de R$ 127,82. Ou seja: a diferença de renda que separa os chefes do Patrimônio Velho dos chefes do PróPovo é da ordem de 50,82 vezes. Deve-se observar, ainda, que todos os cinco loteamentos que concentram a população de maior renda em Votuporanga, estão localizados na zona central da cidade, enquanto a população mais pobre acha-se espraiada em loteamentos nos pontos mais distantes e de pior acessibilidade no espaço intra-urbano. Efetivamente, em Votuporanga, a enorme concentração de renda aliada às crescentes dificuldades de inserção dos trabalhadores no mercado formal de trabalho – com a conseqüente precarização das condições de vida das famílias operárias – vai pouco a pouco transformando a cidade no não lugar para significativas parcelas da população que apresentam notáveis dificuldades em fixarse no espaço urbano e até mesmo garantir as condições necessárias para sua reprodução física e social. De fato, as recentes transformações em curso na economia votuporanguense (especialmente a reestruturação TABELA 4 Renda Média Nominal Mensal do Chefe de Domicílio, segundo Principais Áreas de Loteamentos Urbanos Votuporanga – 2000 Áreas de Loteamento Votuporanga (Total) Favela Própovo Patrimônio Velho Renda Média (R$) Localização do Loteamento 807,2 - 127,82 Norte 6.501,04 Centro Jardim Santos Dumont 211,57 Sudoeste São Cosme 254,43 Leste São Damião 234,04 Leste Santa Luzia 1212,9 Centro Patrimônio Novo 3.730,68 Centro Jardim Marin 1.235,22 Centro-Leste Vila Marin 4504,3 Centro Favela Ipiranga 215,31 Sul Fonte: Prefeitura Municipal de Votuporanga. Sistema de Informações Georreferenciadas (SIG); IBGE. Censo Demográfico 2000 (Setores censitários). produtiva do setor moveleiro) aliadas a um déficit habitacional histórico 11 – produto de relações desabonadoras entre o Poder Público e o capital imobiliário – intensificaram nos primeiros anos da década de 2000 um padrão de produção social do espaço marcado por inúmeras desigualdades na apropriação e uso dos recursos físicos e simbólicos do espaço urbano. Destarte, esse contexto local de acelerada obsoletização da força de trabalho, concomitante com a interinidade da localização residencial das famílias mais empobrecidas, permite-nos algumas comparações com os grandes processos em curso de periferização, empobrecimento e precarização das condições de vida da população nas grandes aglomerações urbanas brasileiras. De fato, a análise dos deslocamentos populacionais intra-urbanos em Votuporanga na sua relação com a estruturação urbana pontuou que a segregação socioespacial, a extrema concentração de renda (que se reflete na capacidade diferencial de apropriação do espaço) e a periferização das camadas populares não são privilégios das metrópoles, na rede urbana brasileira. Esses processos também ocorrem – de formas diferenciadas e com intensidades e nuances particulares – em cidades médias, de constituição recente, mas onde, igualmente, os interesses do capital privado sobrepõe-se permanentemente aos interesses coletivos, comprometendo significativamente o acesso universal à cidade. 118 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 110-120, jul./set. 2005 POPULAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO URBANA NO (NOR)OESTE PAULISTA: ... tuindo-se uma das áreas mais importantes (ao lado da RA de Araçatuba) da porção norte-ocidental da malha paulista. CONSIDERAÇÕES FINAIS 2. Essa hipótese baseia-se na análise dos dados da Relação Anual de Informações Sociais – Rais de 2001/2002 relativos à indústria moveleira de Votuporanga e Valentim Gentil. A problemática dos deslocamentos populacionais intraurbanos parece ter sido tratada de forma pouco atenciosa pelos estudiosos de migração. Entretanto, a relevância demográfica dos deslocamentos intra-urbanos (que tende a ser negligenciada em um contexto de crescente facilitação das comunicações e encurtamento das distâncias pela maior disponibilidade e barateamento dos transportes) reside na sua força enquanto fenômeno social: quando as pessoas se deslocam no espaço intra-urbano, seu movimento não é um riscado sem ordem; o mapeamento e a espacialização dos fluxos e deslocamentos populacionais permite enxergar, nitidamente, mesmo no urbano pequeno, que são as classes sociais que estruturam o espaço. Mas afinal de contas, por que nos importa a afinidade eletiva dos deslocamentos intra-urbanos e a estruturação do espaço? A resposta a essa questão é complexa e não se esgota em um estudo de caso – que, de forma geral, procurou evidenciar a emergência de um perverso padrão de estruturação urbana, a partir da sua relação com a mobilidade intra-urbana da população e o seu crescente empobrecimento, decorrente das inúmeras transformações nos níveis de emprego da indústria local, revelando que a periferização das camadas populares e a segregação sócio-espacial das camadas de alta renda também são processos presentes nas pequenas e médias cidades paulistas. Na verdade, o desafio que nos é lançado pela questão da afinidade eletiva entre os deslocamentos intra-urbanos e a estruturação urbana é a renitente problemática relativa às razões pelas quais as pessoas migram. E a resposta tão pungente, que parece emergir dos estudos de migração – abranjam estes longas distâncias, curtas distâncias ou pequeníssimas distâncias intra-urbanas – é que todos parecem revelar o profundo paradoxo entre a crescente urbanização da população paulista e brasileira e o forte recrudescimento, em tempos de globalização, da espoliação urbana. E é essa espoliação que torna as cidades meras abstrações simbólicas, nas quais o pertencimento, a sociabilidade e os laços de solidariedade, apoio e afinidade são apenas um brevíssimo vislumbre, num universo em que não existem utopias e a itinerância é uma condenação. 3. A respeito da temática da reestruturação produtiva no Brasil na década de 90, veja-se especialmente: Ferreira (1997) e Suzigan (2004), dentre outros. 4. O Plamivo, sancionado pelo prefeito Hernani de Mattos Nabuco, em 1970, constituía-se basicamente em um plano de incentivos fiscais com vistas a subsidiar a industrialização de Votuporanga. As diretrizes e incentivos do Plamivo foram determinantes para a conformação dos primeiros distritos industriais em Votuporanga, bem como para a conformação do tecido urbano nas décadas subseqüentes. 5. A zona de expansão norte refere-se à área surgida no entorno do Pólo Comercial e Industrial (1979), I Distrito Industrial (1978) e do Loteamento Residencial Pozzobon (1978) (ver Mapa 1). 6. Sobre a relação entre classes sociais e estruturação urbana veja-se, dentre outros, Lefebvre (1974), Kowarick, (1983); Santos (1979; 1996; 2000) e Villaça (2001). 7 A distinção entre centro tradicional e centro histórico é postulada por Villaça (2001): na concepção do autor o que define uma centralidade é a sua capacidade de otimizar os custos de deslocamento e maximizar as condições de acessibilidade; assim, o centro tradicional é aquele que dentro da malha urbana representa o ponto que permite a máxima acessibilidade e a maior economia de tempo de deslocamento no espaço intra-urbano, em um dado momento no tempo. Já o centro histórico diz respeito à área de constituição mais remota que no espaço intraurbano assumiu o papel de centro tradicional. Desse modo, o centro histórico pode ou não coincidir com o centro tradicional recente de uma cidade, dependendo das características históricas de sua evolução urbana. 8. Refere-se ao projeto de Pólos de Modernização do Estado de São Paulo, fruto de uma pareceria Sebrae/FIA-USP (FERREIRA, 1997; SUZIGAN, 2004). 9. A taxa geométrica de crescimento das favelas de Votuporanga, entre 1996 e 2001, foi de 6,58% ao ano (calculado a partir dos dados da Secretaria Municipal de Planejamento – Sempla, 2002) enquanto a taxa geométrica de crescimento da população do município entre 1991-2000 foi de 1,8% ao ano (FUNDAÇÃO SEADE, 2004). 10. Para a dissertação de mestrado (RODRIGUES, 2005) da qual esse artigo é produto, foram entrevistadas 20 pessoas, dentre trabalhadores e ex-trabalhadores da indústria moveleira, residentes em favelas ou bolsões de pobreza. Das entrevistas foi possível constatar que, em média, os trabalhadores residentes em loteamentos regulares haviam realizado, até o momento da pesquisa, em torno de dois deslocamentos residenciais no município, enquanto aqueles residentes em favelas haviam realizado, em média, quatro deslocamentos, o que parece confirmar a maior instabilidade da habitação para a população mais empobrecida. 11. De acordo com informações da Sempla, de Votuporanga, o déficit habitacional, em 2004, era de aproximadamente 2.500 unidades habitacionais, abrangendo cerca de 10% da população do município (cf. RODRIGUES, 2005, especialmente cap. 3). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NOTAS ANTUNES, R. Os caminhos da liofilização organizacional: as formas diferenciadas da reestruturação produtiva no Brasil. Revista Idéias. Campinas, IFCH/Unicamp, ano 9, n. 2/ ano 10, n. 1, 2002/ 2003. 1. A Região Administrativa (RA) de São José do Rio Preto, que engloba o município de Votuporanga, compõe-se de 81 municípios, consti- SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 110-120, jul./set. 2005 119 FABÍOLA RODRIGUES CAMARGO, J.F. de. Crescimento da população no Estado de São Paulo e seus aspectos econômicos. São Paulo: IPE/USP, 1981. v. 1. PAVAM, J.L.; ABÊ, S.H. Transformações da indústria moveleira de Votuporanga. Votuporanga: [s/n], [s/d]. CANO, W. Raízes da concentração industrial em São Paulo. 2. ed. São Paulo: TA Queiroz, 1977. RODRIGUES, A.M. Moradia nas cidades brasileiras. 5. ed. São Paulo: Contexto, 1994. FERREIRA, M.J.B. Pólo moveleiro de Votuporanga. Campinas: IE/ Unicamp, 1997. (Relatório de Pesquisa do Projeto Design como fator de competitividade na indústria moveleira). RODRIGUES, F. Por onde vão as “Brisas Suaves do Sertão Paulista”?: População e estruturação urbana na constituição da cidade (im)possível, Votuporanga, um estudo de caso. Dissertação (Mestrado) – IFCH/Unicamp, Campinas, 2005. FUNDAÇÃO SEADE. Informações dos municípios paulistas. São Paulo: 2004. Disponível em: <http://www.seade.gov.br>. ________. Informe Demográfico n. 23. São Paulo: 1981. ________. Estudos de caracterização socioeconômico-demográfica. Subsídios para o Plano Diretor do Campus Norte da Unifev. Votuporanga: Unifev, 2004. GOTTDIENER, M. A produção social do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 1997. SEMPLA. Plano Diretor Municipal. Votuporanga: 1995. HARVEY, D. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec, 1980. SUZIGAN, W. et al. Aglomerados industriais em São Paulo. Campinas, Unicamp, [s/d]. Disponível em: <http://www.unicamp.br>. Acesso em: 10 mar. 2004. IBGE. Censo Demográfico 1970 a 2000. Rio de Janeiro: vários anos. KOWARICK, L. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. MARTINE, G. Migração e metropolização. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 1, n. 2, p. 28-31, jul./set. 1987. MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Relação Anual de Informações Sociais. Brasília, DF: 1996-2002. PACHECO, C.A.; PATARRA, N.L. Movimentos migratórios nos anos 80: novos padrões? In: ENCONTRO NACIONAL SOBRE MIGRAÇÃO. Anais.... Curitiba: 1997. VILLAÇA, F. Espaço intra-urbano no Brasil. 2. ed. São Paulo: Studio Nobel, 2001. FABÍOLA RODRIGUES: Mestre em Demografia pela IFCH/NEPO/Unicamp ([email protected]). Artigo recebido em 25 de abril de 2005. Aprovado em 5 de setembro de 2005. 120 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 110-120, jul./set. 2005 PROPOSTA PARA A INSERÇÃO DA VARIÁVEL MIGRAÇÃO EM SISTEMAS ... PROPOSTA PARA A INSERÇÃO DA VARIÁVEL MIGRAÇÃO EM SISTEMAS DE INDICADORES MUNICIPAIS DUVAL FERNANDES IDAMILA RENATA PIRES VASCONCELLOS Resumo: A utilização de dados populacionais em sistemas de informações municipais não é recente. Tendo por base esses sistemas, a proposta deste trabalho é sugerir indicadores que possam ter em conta aspectos do movimento migratório nos municípios. As variáveis escolhidas são levantadas nos Censos de 1991 e 2000, no quesito “migração de data fixa” relativa aos últimos cinco anos – o que permite identificar o município de origem e destino do migrante. Palavras-chave: Migração. Fonte de dados. Sistema de informações. Abstract: The use of population data in systems of municipal information is not recent. The proposal of this paper is to suggest, considering these systems, indicators that can have in account aspects of the migratory movement. The chosen variables are raised in the Censuses of 1991 and 2000, using data fix migration informations that allow to identify the origin and destination of the migrant. Key words: Migration. Data base. Information system. A formações que tratam de riscos e vulnerabilidade de grupos populacionais específicos. Se, de um lado, algumas variáveis populacionais são amplamente empregadas, por outro, o componente migratório é relegado a um segundo plano. Quando se trata do desenho de cenários relacionados a questões sociais, há um tácito reconhecimento da importância da imigração. Algumas vezes, o movimento migratório é indicado, de forma equivocada, como sendo o responsável por problemas sociais, no local de destino, e pela estagnação econômica, na origem. Todos os gestores públicos reconhecem a importância da análise de fatores de atração e expulsão da população, assim como a necessidade de avaliar, no âmbito do planejamento, os impactos de um aumento ou diminuição do número de habitantes em determinado município ou região. utilização de dados populacionais em sistemas de informações municipais não é recente. Na maioria dos casos, o número de habitantes ou de subgrupos populacionais, por exemplo, definidos por sexo e idade, são as variáveis demográficas mais utilizadas. Associados a outros dados, servem de base para o cálculo de indicadores como “densidade demográfica”, “taxa de alfabetização”, etc. Indicadores mais elaborados, como a “esperança de vida ao nascer” e “mortalidade infantil” (ou “mortalidade na infância”), são também encontrados, mas, apesar de utilizarem dados populacionais, requerem técnicas mais sofisticadas de cálculo e definição de hipóteses sobre o comportamento dos componentes da dinâmica demográfica. Na área da saúde, além desses dois indicadores, vários outros são calculados e apresentados em sistemas de in- SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 121-132, jul./set. 2005 121 DUVAL FERNANDES / IDAMILA RENATA PIRES VASCONCELLOS Apesar da sua importância, é raro encontrar dados sobre a migração nos sistemas de informações municipais. Essa lacuna pode ser explicada pela falta de dados confiáveis que permitam traçar o quadro das trocas municipais com a necessária periodicidade. Essas informações são disponíveis por meio dos censos – isto é, de dez em dez anos, ou em períodos mais curtos, por conta da contagem intercensitária – mas com dados limitados. Se o interesse está voltado para as Unidades da Federação ou Regiões Metropolitanas, é possível, por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, ter o quadro de dados em períodos de tempo mais curtos. Outras fontes, como os registros administrativos, também contêm dados sobre a migração, mas são restritos à população-alvo dos registros e, em alguns casos, pouco confiáveis. A realização da II Conferência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos – Habitat-II, em Istambul, em 1996, representou um importante momento para a construção de indicadores relacionados ao desenvolvimento local. O Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos propôs aos países participantes a construção de 30 indicadores-chave e um conjunto de nove indicadores qualitativos,1 que relacionavam as diversas funções exercidas no meio urbano. No Brasil, quatro cidades foram selecionadas para a elaboração do quadro de indicadores, a saber: Brasília, Rio de Janeiro, Curitiba e Recife. Essa iniciativa tinha o propósito de incentivar as administrações locais ao uso de indicadores para o planejamento da ação pública, como também de permitir a comparação entre cidades no ambiente internacional. Mesmo com algumas resistências, a proposta de incorporação de indicadores no planejamento urbano prosperou na área governamental. Seguindo algumas experiências bem sucedidas no âmbito municipal e estadual, a criação de um sistema de informações passou a ser considerada no Plano Plurianual de Investimentos – PPA (período 2000/2003) no rol dos programas afetos à Secretaria do Desenvolvimento Urbano da Presidência da República – Sedu/PR. Assim, o Programa de Gestão da Política de Desenvolvimento Urbano passa a incluir a criação de dois sistemas complementares de informações: o Sistema Nacional de Indicadores Urbanos – SNIU, cujo protótipo está disponível, com acesso via Internet, e o Sistema de Monitoramento e Avaliação de Programas e Projetos – SMAPP. O SNIU, na versão atual,2 contempla 744 variáveis e indicadores divididos em quatro campos temáticos: ges- tão urbana, habitação, saneamento e transportes urbanos. Além desses campos, há informações sobre a dinâmica demográfica da população municipal que são disponibilizadas em um campo temático especial. Tendo por base sistemas de informações municipais semelhantes ao SNIU, a proposta deste trabalho é sugerir um grupo de indicadores que levem em conta alguns aspectos do movimento migratório nos municípios. A proposta aqui esboçada não exaure as possibilidades do uso das informações censitárias para a definição de um quadro amplo sobre o processo migratório nos municípios brasileiros. O que vai pautar este trabalho é a necessidade de gerar informações para o grupo de municípios incorporados ao sistema e que, por razões técnicas, possam ser consideradas metodologicamente confiáveis e de fácil levantamento. A primeira parte do texto trata da avaliação das possíveis fontes de informação para o conhecimento do processo migratório. Em seguida, são discutidas as principais técnicas para o uso das informações das fontes indicadas e é apresentado um quadro que sugere as variáveis que poderão ser levantadas, assim como os indicadores resultantes para inserção no sistema e a ilustração sobre o uso de alguns indicadores. UTILIZAÇÃO DE INFORMAÇÕES SOBRE MIGRAÇÃO Segundo Pressat (1976), define-se “migração” como o fenômeno demográfico caracterizado pelo deslocamento de um indivíduo do seu local de residência para um novo local. O Manual IV das Nações Unidas (1972, p. 2) define a migração como un traslado de una zona definitoria de la migración a otra (o traslado a una distancia mínima especificada) se ha hecho durante un intervalo de migración determinado y que ha implicado un cambio de residencia. Essas definições têm como característica comum a visão do deslocamento de um local de residência e referemse a movimentos de caráter permanente. No entanto, admitem também outros tipos de deslocamentos não migratórios. Por exemplo, aqueles que ocorrem entre o local de trabalho e a residência – chamado de “movimento pendular” – que são de capital importância para o planejamento urbano. Tendo em conta a definição mais restrita de “deslocamentos permanentes”, qualquer fonte que forneça infor- 122 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 121-132, jul./set. 2005 PROPOSTA PARA A INSERÇÃO DA VARIÁVEL MIGRAÇÃO EM SISTEMAS ... mações sobre o local de residência anterior e atual pode ser considerada para o estudo da migração – como registros administrativos e pesquisas censitárias, por exemplo. No caso do movimento pendular, devem ser consideradas as informações sobre os deslocamentos temporários, como “ida ao trabalho”, e, assim, dependendo da disponibilidade de dados que envolvam o tempo despendido nos percursos e outras características, é possível realizar análises mais detalhadas. questão sobre a procedência, para saber se o domicílio anterior era localizado na região urbana ou rural. Em relação ao “tempo de residência sem interrupção”, foram incluídas algumas perguntas sobre o município e a UF – o que permitiu observar a migração intra-estadual. Uma novidade introduzida em 1970 foi a pergunta relativa ao município em que o entrevistado trabalhava ou estudava. É importante notar, segundo lembra Martine (1984), que a ampla utilização das informações sobre migração no Censo Demográfico de 1970 levou a propostas de importantes avanços no questionário do novo levantamento em 1980. Apesar das restrições financeiras, os quesitos relativos à migração foram dirigidos tanto aos naturais quanto aos não-naturais dos municípios, e outras duas modificações importantes foram introduzidas: - pergunta específica em relação à migração intramunicipal; Fontes de Informação Censos Demográficos – Segundo Martine (1984), foi no Censo Demográfico de 1940 que, pela primeira vez, foram levantadas informações sobre a migração interna. Foram incluídas algumas indagações sobre a Unidade da Federação – UF de nascimento e a de residência de todos os recenseados. Dessa forma, definiu-se o migrante como “aquele que residia em uma UF diversa daquela de seu nascimento”. Para os estrangeiros ou brasileiros naturalizados, foi pesquisado o ano em que fixou residência no Brasil. No Censo Demográfico de 1950, foram feitas as mesmas questões sobre nascimento e residência. Segundo Martine (1984), comparando-se os resultados com aqueles obtidos no levantamento precedente, é possível estimar a migração líquida do período para cada UF. No entanto, em 1950 não foi perguntado para os estrangeiros e brasileiros naturalizados qual tinha sido o “ano de entrada no país”. Em 1960, além das perguntas sobre a UF de residência atual e a de nascimento, o conjunto de questões relativas à migração ampliou-se. As indagações visavam a saber se o indivíduo era natural do município de residência – o que permitia estimar, para cada município, a migração acumulada de não-naturais. As informações dos levantamentos anteriores recuperavam dois pontos no tempo – a UF de nascimento e a de residência atual. O Censo de 1960 indagou aos não-naturais dos municípios qual era a UF onde se localizava o município de residência anterior – o que permitiu recuperar um segmento a mais do processo migratório dos indivíduos. Outra inovação foi perguntar aos não-naturais sobre o tempo de moradia no atual município de residência. Apesar das inovações, os resultados não foram animadores em termos da utilização das informações, uma vez que, por diversos problemas, a publicação completa dos dados tardou décadas. Em 1970, foram repetidos os mesmos quesitos utilizados no Censo de 1960. Além disso, foi acrescentada uma SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 121-132, jul./set. 2005 - questão dirigida a todos os migrantes com menos de 10 anos de residência, sobre o nome do seu município de procedência. A questão relativa ao município de trabalho e estudo foi mantida. Em termos de avanço para o estudo da migração, houve uma inovação muito importante no Censo de 1991: a incorporação do quesito que indaga o local de residência cinco anos antes3 (data fixa) da data de realização do censo. Essa questão, combinada com os quesitos relativos ao “tempo de residência” e “lugar de residência imediatamente anterior”, gerou um quadro de informações sobre migração encontrado somente em censos de alguns poucos países. Vale notar que, apesar dos avanços, o quesito que indagava sobre o “local de estudo ou trabalho” foi suprimido. A Contagem da População, de 1996, apesar do questionário simplificado, incluiu dois quesitos sobre migração. Um indagava se a pessoa residia no município em 1/9/1991, isto é, na data de referência daquele Censo, e outro perguntava em qual UF residia naquela data. É interessante notar que a questão está, em princípio, referindo-se a cinco anos antes da data de referência da Contagem, realizada em 1/8/1996. O Censo de 2000 utilizou 13 quesitos para o estudo da migração. Por conta de restrições financeiras, foram incluídas algumas modificações: dentre elas, a retirada da identificação do “município de residência imediatamente anterior”, que ficou restrita à “UF” e “país estrangeiro”. Foram mantidos os quesitos relativos à migração de data fixa, relacionada a cinco anos antes da data do censo. A 123 DUVAL FERNANDES / IDAMILA RENATA PIRES VASCONCELLOS questão sobre o “município onde o entrevistado trabalha ou estuda” foi reintroduzida. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Segundo Hakkert (1996), o primeiro levantamento da PNAD ocorreu no segundo trimestre de 1967. Inicialmente como pesquisa trimestral, a PNAD tinha por objetivo a coleta de informações socioeconômicas básicas para todo o país, à exceção das Regiões Norte e Centro-Oeste. No Distrito Federal, as informações eram levantadas uma vez por ano. Em 1972, a PNAD passou a ser anual; e, em 1973, foram incluídas na amostra a Região Norte (apenas as áreas urbanas) e a Região Centro-Oeste. Naquele ano, a pesquisa levantou informações em 90.629 domicílios. Após um período de interrupção, o questionário básico da pesquisa foi uniformizado em 1976, incluindo informações sobre os membros do domicílio, ocupação, renda e instrução. Com a exceção de 1979, também se investigou sistematicamente a fecundidade das mulheres de 15 anos e mais. Além do questionário básico, a PNAD contém um suplemento, cujo conteúdo varia anualmente, para permitir análise de assuntos específicos. Na PNAD de 2001, por exemplo, foram pesquisados 126.858 domicílios e foi agregado ao questionário básico o suplemento sobre o trabalho das crianças e adolescentes de 5 a 17 anos. A partir de 1992 foram incluídos na PNAD quesitos sobre migração. Atualmente são encontradas 12 questões relacionadas à migração no questionário básico. Isso permite, entre outros pontos, identificar a UF de naturalidade do migrante, a UF de residência anterior e a UF de residência cinco anos antes da data do levantamento. Dessa forma, diferentemente dos resultados do Censo, não é possível identificar o município de origem do migrante e as analises ficam restritas às UFs. Segundo Cunha (2002), podem ser citadas três limitações ao uso da PNAD para estudos sobre a migração, a saber: - o tamanho e o nível de representatividade da amostra não permite conhecer a realidade migratória dos municípios e das regiões dentro dos estados, com exceção de algumas regiões metropolitanas; - a falta de coleta de informações da área rural da Região Norte compromete a comparação entre as UFs; - a expansão da amostra é feita com base em projeções demográficas – o que pode levar a imprecisões das estimativas. No entanto, é importante salientar que, apesar dessas limitações, a PNAD é um importante instrumento para o acompanhamento da evolução dos componentes da dinâmica populacional – aí incluída a migração, por conta da sua periodicidade anual. Torna-se, pois, uma fonte fundamental para o acompanhamento das tendências migratórias, apesar das limitações impostas pelo tamanho da amostra e pelo número reduzido dos quesitos. Outras Fontes – Qualquer coleta de informação – seja uma pesquisa de campo pontual, sejam levantamentos contínuos – pode ser utilizada para obtenção de dados sobre migração. No entanto, deve-se ter em conta, nas análises dos resultados obtidos, os limites metodológicos de cada enquete e as possibilidades de comparação. Dentre as pesquisas pontuais, podem ser destacadas aquelas que levantam informações sobre o mercado de trabalho, em especial a Pesquisa Mensal de Emprego – PME do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e a Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese e Fundação Seade. Nesses dois levantamentos, são incluídas questões que permitem avaliar a migração na área de abrangência das pesquisas. No entanto, por conta do tamanho da amostra e da área de cobertura,4 o uso dessas informações é muito restrito em termos espaciais. Apesar do pouco uso da informação sobre migração coletada em registros administrativos, possivelmente no futuro essas fontes de dados contínuos poderão ter um amplo emprego para o acompanhamento do fluxo migratório, inter e intra-urbano. Nesse grupo, destacam-se os registros da Relação Anual de Informações Sociais – Rais, que contêm informações detalhadas sobre o mercado formal de trabalho. Como é um levantamento do universo, não haveria problema em utilizá-lo em termos de abrangência espacial. Por outro lado, as estimativas ficariam comprometidas por conta da cobertura e qualidade da informação, além de se tratar de registros sobre o mercado formal de trabalho – o que exclui grande parcela dos trabalhadores brasileiros. Outra fonte utilizada para trabalhos relacionados à migração são os dados coletados pelo Ministério da Saúde através do Sistema de Mortalidade – SIM, Sistema de Nascidos Vivos – Sinasc e os registros da Autorização de Internação Hospitalar – AIH. A limitação no emprego desses dados fica por conta da qualidade da informação, da cobertura e da abrangência do universo captado. Alguns trabalhos, ainda embrionários, utilizando essas bases avaliam o impacto do fenômeno migratório sobre a 124 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 121-132, jul./set. 2005 PROPOSTA PARA A INSERÇÃO DA VARIÁVEL MIGRAÇÃO EM SISTEMAS ... censo. Além dos aspectos relacionados à migração interna, a migração internacional vem merecendo destaque por conta de sua importância no quadro nacional e em algumas regiões. Segundo Rigotti (1999), o “lugar de nascimento” é a variável mais fácil de ser encontrada nos censos e permite classificar o informante como “migrante” ou “nãomigrante” – dependendo se nasceu, respectivamente, em município diferente daquele onde responde ao recenseamento ou se nasceu no local de coleta. A desvantagem do uso dessa informação é que o resultado obtido indica somente se as pessoas residem em município diverso daquele de nascimento, mas não trata nem do momento em que ocorreu a migração, no caso dos migrantes, nem se houve alguma etapa migratória cumprida pelos naturais – o que os transformaria em “imigrantes de retorno”. Com outras variáveis como “local de nascimento”, o item “duração de residência” permite avançar nas análises e captar o “imigrante de retorno”: uma pessoa que nasceu no município onde está sendo entrevistada, mas que residiu fora por algum tempo. Nesse caso, o tempo de residência deverá ser menor do que a idade declarada e os não-migrantes deverão ter a idade equivalente ao tempo de residência. O lugar da última residência permite identificar como “migrante” aquele que em um momento qualquer, nos últimos 10 anos a contar da data do censo, residiu em um município diverso do de nascimento. Nesse caso, são considerados “migrantes” todos os que já moraram fora do local de nascimento, independentemente da data e do tempo de residência. A falta de referência temporal indica que, para melhor análise, é recomendável a combinação desse quesito com a informação sobre a “duração de residência”. Dentre os quesitos de um censo relacionado à migração, o mais simples, do ponto de vista analítico, é o que indaga sobre o “lugar de residência” em uma data fixa anterior à realização do censo – usualmente cinco anos antes. Nesse caso, o “migrante” é aquele que residia, cinco anos antes, em lugar diverso daquele em que está residindo. O “não-migrante” reside no mesmo local nas duas datas consideradas. Deve-se notar que, dentre os “nãomigrantes”, estão incluídos aqueles que fizeram alguma migração no período considerado que antecede ao censo, mas que retornaram ao mesmo local de residência onde moravam cinco anos antes do censo. A grande vantagem desse quesito é que ele permite calcular, para as pessoas com idade acima de cinco anos, demanda por serviços de saúde. O principal objetivo é conhecer a origem dos pacientes que buscam os serviços públicos de saúde e, assim, contribuir para equacionar, na medida do possível, o atendimento local. A Escolha da Fonte de Informações Várias fontes poderiam ser utilizadas para a construção de um quadro de indicadores sobre migração em um sistema de informações municipais. No entanto, é importante considerar, primeiramente, que esses dados deverão ter como base geográfica o município e, se possível, uma periodicidade que garanta a observação da evolução do processo migratório intra e inter municipal. Em relação ao primeiro requisito, a fonte mais indicada, no momento, são os dados censitários, pois disponibilizam informações sobre entradas e saídas de migrantes para todos os municípios brasileiros. Dessa forma, é possível construir a “matriz cruzada municipal de entradas e saídas”, que permitirá identificar áreas de atração e expulsão. Ainda em relação ao aspecto geográfico, considerando-se a intensa modificação da base municipal,5 o mais indicado seria utilizar as informações mais recentes sobre a migração, isto é, os dados do Censo de 2000. Para determinar a evolução do processo migratório, sugere-se a incorporação das informações levantadas no Censo de 1991 ao quadro de variáveis. Nesse particular, deve-se ter em mente que, para aproximadamente 20% dos municípios pesquisados em 2000, não será possível fazer comparações com os resultados encontrados para 1991. Caso as regiões metropolitanas venham a receber tratamento especial no sistema, o uso da PNAD poderá ser considerado. Então, seria possível fazer um acompanhamento do processo imigratório interestadual ano a ano. No entanto, devem ser consideradas as possíveis limitações metodológicas e de utilização dessas informações.6 VARIÁVEIS E INDICADORES RELACIONADOS À MIGRAÇÃO PARA INCLUSÃO NO SISTEMA Desde o Censo de 1940, vários são os quesitos que tratam da migração interna nos diversos recenseamentos realizados no Brasil. As questões mais comuns são: se natural ou não do município; duração de residência; lugar da última residência; e lugar de residência em uma data no passado, usualmente cinco anos antes da data do SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 121-132, jul./set. 2005 125 DUVAL FERNANDES / IDAMILA RENATA PIRES VASCONCELLOS as medidas convencionais de migração, como o saldo migratório que, segundo Magalhães (2003), deve ser considerado como “trocas líquidas migratórias”7 entre duas datas fixas. Além desses quesitos, também há informações sobre a mobilidade pendular,8 a partir da pergunta sobre o município onde o entrevistado trabalha ou estuda. Dessa forma, pode-se estabelecer o fluxo de pessoas cujos deslocamentos atendem a necessidades de trabalho ou estudo. Independente da informação censitária considerada, o ponto de capital importância é a necessidade de conceituar o “migrante”, sempre considerando as restrições inerentes ao uso de cada tipo de variável (CARVALHO; RIGOTTI, 1998). Para a mensuração do volume de migrantes são empregadas técnicas indiretas ou diretas. Segundo Carvalho (1982) os métodos indiretos são mais empregados para o cálculo do saldo migratório e a migração é estimada por resíduo, ou seja, é a diferença, no segundo censo, entre a população esperada e a efetivamente observada, supondo a ausência de erros nas declarações de idade, perfeita cobertura censitária e uso de funções de mortalidade e fecundidade adequadas. Dessa forma, além da qualidade dos dados censitários, é preciso ter o conhecimento da mortalidade e fecundidade nas áreas em estudo. No caso da mensuração direta, calcula-se o número de migrantes de um determinado período, sua origem e destino e, de forma diversa da empregada no método indireto, estima-se também o saldo migratório. Assim, dependendo da informação considerada, o conceito de “migrante” varia. Por exemplo, se o estudo utiliza a informação sobre “local de nascimento”, o migrante será definido como aquele que reside, no momento do censo, em local diverso do de nascimento. Se a variável utilizada trata do “local de últi- ma residência”, o migrante será aquele que, em algum momento dentro do período analisado, morou fora do local de nascimento, mesmo que a sua residência seja, no momento do censo, a cidade onde nasceu. Tendo em conta as limitações impostas pela disponibilidade de informações no nível municipal e a facilidade do levantamento de dados para a aplicação da mensuração direta da migração, sugere-se a utilização desta última para a definição das variáveis a serem consideradas em um sistema que tenha por objetivo captar informações sobre a migração municipal. Variáveis Disponíveis nos Censos de 1991 e 2000 e Métodos Considerando o propósito deste trabalho – que é a apresentação de sugestões para a inclusão da variável “migração” em um sistema de informações municipais – algumas restrições de ordem prática e metodológica devem ser consideradas. Uma análise que envolvesse a comparação temporal entre o Censo de 1991 e o de 2000, esbarra na impossibilidade, para os fins propostos, de reconstruir a malha municipal de 1991 em 2000 e garantir a comparabilidade das informações para todos os municípios. Deve-se considerar, ainda, que nem todos os quesitos presentes no levantamento de 1991 foram mantidos em 2000. Assim, só é possível avaliar os dados comuns aos dois censos. Outro aspecto a ser considerado é que só as informações que contenham a referência municipal poderão ser utilizadas, pois o objetivo é construir a matriz de “trocas” municipais. Dessa forma, dados relativos apenas às UFs não serão levados em conta. Nos Quadros 1 e 2 são apresentadas as questões que tratam da migração nos Censos Demográficos 1940 a 2000 e na Contagem de 1996. Considerando para os Censos de 1991 e 2000 as informações em comum, tem-se que, para a variá- QUADRO 1 Quadro de Indicadores Propostos por Município Indicador Taxa Líquida Migratória – [número de emigrantes] Composição Numerador: [número de imigrantes (menos imigrantes internacionais)] Denominador: população de 5 anos e mais Taxa de Imigração Numerador: [número de imigrantes (menos imigrantes internacionais)] Denominador: população de 5 anos e mais Taxa de Emigração Numerador: número de emigrantes Denominador: população de 5 anos e mais 126 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 121-132, jul./set. 2005 PROPOSTA PARA A INSERÇÃO DA VARIÁVEL MIGRAÇÃO EM SISTEMAS ... QUADRO 2 Questões sobre Migração nos Censos Brasileiros e Contagem Brasil – 1940-2000 Ano Questões 1940 • Se o recenseado nasceu no Brasil, declarar o estado; se no estrangeiro, o país • Nacionalidade: brasileiro nato? Naturalizado brasileiro? Se estrangeiro, de que nação? • Se é estrangeiro ou brasileiro naturalizado, em que ano fixou residência no Brasil? 1950 • Onde nasceu (nome da UF ou país estrangeiro)? • É brasileiro nato, naturalizado brasileiro, ou estrangeiro? 1960 • Unidade da Federação ou país estrangeiro de nascimento • Nacionalidade (brasileiro nato, naturalizado brasileiro, estrangeiro) • Somente para as pessoas que não nasceram neste município: - Número de anos em que reside neste município (se anteriormente residia na zona rural marque também) - Unidade da Federação ou país estrangeiro em que residia antes de mudar-se para este município 1970 • Nacionalidade (brasileiro nato, brasileiro naturalizado, estrangeiro) • Unidade da Federação ou país estrangeiro de nascimento • Nasceu neste município? (sim/não) • Somente para as pessoas que responderam não no quesito 10 (anterior) - Há quanto tempo mora nesta Unidade da Federação? - Há quanto tempo mora neste município? - Em que Unidade da Federação ou país estrangeiro residia antes de mudar para este município? - Situação da residência no município onde morava anteriormente (cidade ou vila, povoado ou zona rural) • Município onde trabalha ou estuda 1980 • Nacionalidade (brasileiro nato, brasileiro naturalizado, estrangeiro) • Unidade da Federação ou país estrangeiro de residência • Nasceu neste município? (sim/não) • Neste município morou: só na zona rural, só na zona urbana, nas zonas urbana e rural • No município onde residia anteriormente morava: na zona urbana, na zona rural, nasceu – quem sempre morou no município) • Há quantos anos mora nesta Unidade da Federação? • Há quantos anos mora neste município? • Se no quesito 17 (anterior) respondeu menos de 10 anos, indique o nome do município e a sigla da Unidade da Federação ou país estrangeiro em que morava antes • Município em que trabalha ou estuda 1991 • Neste município morou: só na zona urbana, só na zona rural, nas zonas urbana e rural • Se no quesito 12 (anterior) assinalou o retângulo 3 (nas zonas urbana e rural), indique a quantos anos se deu a última mudança. • Nasceu neste município? (sim e sempre morou neste, sim mas já morou em outro, não nasceu) • Se naturalizado brasileiro ou estrangeiro, indique o ano em que fixou residência no país • Unidade da Federação ou país estrangeiro de nascimento • Há quantos anos mora sem interrupção: nesta Unidade da Federação, neste município • Para as pessoas com menos de 10 anos de moradia no município: - Indique a sigla da UF e o nome do município ou país estrangeiro em que morava antes de mudar para este município - Na localidade indicada no quesito 19 (anterior), residia: (na zona urbana, na zona rural) • Os quesitos seguintes só serão preenchidos para as pessoas de 5 anos ou mais nascidos antes de 01/09/1986. - Indique a sigla da UF e o nome do município ou país estrangeiro em que residia em 01/09/1986. - Na localidade indicada no quesito 21 (anterior), antes de mudar, residia: (na zona urbana, na zona rural) 1996 • Em 01/09/91 residia neste município? (nasceu após a data, sim/não) • Em que Unidade da Federação residia? 2000 • Mora neste município desde que nasceu? (sim/não) • Há quanto tempo mora sem interrupção neste município? • Nasceu neste município? (sim/não) • Nasceu nesta Unidade da Federação? (sim/não) • Qual é a sua nacionalidade? (brasileiro nato, naturalizado brasileiro, estrangeiro) • Em que ano fixou residência no Brasil? • Qual é a Unidade da Federação ou país estrangeiro de nascimento? • Há quanto tempo mora sem interrupção nesta Unidade da Federação? • Qual é a Unidade da Federação ou país estrangeiro de residência anterior? • Onde residia no dia 31 de julho de 1995? - Neste município na zona urbana - Neste município na zona rural - Em outro município, na zona urbana - Em outro município, na zona rural - Em outro país - Não era nascido. • Em que município residia em 31 de julho de 1995? • Em que Unidade da Federação ou país estrangeiro residia em 31 de julho de 1995? • Em que município e Unidade da Federação ou país estrangeiro trabalha ou estuda? Fonte: IBGE. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 121-132, jul./set. 2005 127 DUVAL FERNANDES / IDAMILA RENATA PIRES VASCONCELLOS vel “local de nascimento”, podem ser identificados, para os não-naturais, o país estrangeiro ou a UF de nascimento, assim como o tempo de residência no município. Para os estrangeiros e brasileiros naturalizados, é possível saber o tempo de residência no Brasil. Para todos os moradores, foi perguntado o tempo de residência na UF. Em relação ao quesito “data fixa”, nos últimos cinco anos, é possível identificar a migração rural-urbana intramunicipal. Para aqueles que residiam em cidades diferentes nos dois momentos – uma data fixa (1/9/86 para o Censo de 1991 e 31/7/95 para o Censo de 2000) e na data do censo – é possível identificar a situação do domicílio no município de origem, o nome do município, a UF; e, para os que residiam fora do Brasil, o país. No Censo de 2000, o último quesito do bloco trata da mobilidade pendular e é possível identificar o município, UF ou país estrangeiro onde o entrevistado trabalha ou estuda. Pelo exposto, observa-se que a única informação disponível nos Censos de 1991 e 2000, que permite a identificação do município de origem dos imigrantes, é aquela relativa à “data fixa”, que será considerada em nossa análise, em conjunto com os dados relativos à mobilidade pendular levantados no Censo de 2000. A Variável Migração no Sistema de Informações Municipais Para a definição das variáveis relativas à migração em um sistema de informações municipais, dois aspectos deverão ser considerados: um, tratando da migração no senso estrito, isto é, “modificação no local de residência”; e outro, sobre a mobilidade pendular. No primeiro caso, o migrante será, para 1991 e 2000, a pessoa que em 1o de setembro de 1986 e em 31 de julho de 1995, respectivamente, residia em um município diferente daquele em que morava na data do censo. Em relação à mobilidade pendular, em 2000, os “moventes” serão considerados aqueles que trabalham ou estudam em município diferente do de residência. Para a migração definida por meio de data fixa, as variáveis sugeridas são listadas nos Quadros 3 e 4:9 - migração rural/urbana no município de residência. Imigrante rural/urbano – pessoa10 que: a) para 1991, em 1o de setembro de 1986 residia na região rural do município e que em 1o de setembro de 1991 estava na região urbana do mesmo município; b) para 2000, em 31 de julho de 1995 residia na região rural do município e que em 1o de agosto de 2000 estava na região urbana do mesmo município; QUADRO 3 Quadro de Variáveis para o Município A Brasil – 1991 Situação de Residência Variável Em 1o de setembro de 1986 Em 1o de setembro de 1991 Migração Intramunicipal Imigrante rural/urbano Imigrante urbano/rural Residia na área rural do município A Residia na área urbana do município A Residia na área urbana do município A Residia na área rural do município A Migração Intermunicipal (1) Imigrante Emigrante Imigrante rural/urbano Imigrante urbano/urbano Imigrante rural/rural Emigrante rural/urbano Emigrante urbano/urbano Emigrante rural/rural Residia em outro município excluindo país estrangeiro Residia no município A Residia na zona rural de outro município Residia na zona urbana de outro município Residia na zona rural de outro município Residia na zona rural do município A Residia na zona urbana do município A Residia na zona rural do município A Residia no município A Residia em outro município Residia na zona urbana do município A Residia na zona urbana do município A Residia na zona rural do município A Residia na zona urbana de outro município Residia na zona urbana de outro município Residia na zona rural de outro município Migração Internacional Imigrante internacional Residia no exterior Residia no município A Migração de Retorno (2) Imigrante de retorno Residia em outro município Residia no município A Fonte: IBGE. Censo Demográfico. (1) Esta variável pode ser construída considerando, em separado, a migração interestadual e intra-estadual. (2) Para os naturais do município A. 128 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 121-132, jul./set. 2005 PROPOSTA PARA A INSERÇÃO DA VARIÁVEL MIGRAÇÃO EM SISTEMAS ... QUADRO 4 Quadro de Variáveis para o Município A Brasil – 2000 Variável Situação de Residência Em 31 de julho de 1995 Em 1o de agosto de 2000 Migração Intramunicipal Imigrante rural/urbano Imigrante urbano/rural Residia na área rural do município A Residia na área urbana do município A Residia na área urbana do município A Residia na área rural do município A Migração Intermunicipal (1) Imigrante Emigrante Imigrante rural/urbano Imigrante urbano/urbano Imigrante rural/rural Emigrante rural/urbano Emigrante urbano/urbano Emigrante rural/rural Residia em outro município excluindo país estrangeiro Residia no município A Residia na zona rural de outro município Residia na zona urbana de outro município Residia na zona rural de outro município Residia na zona rural do município A Residia na zona urbana do município A Residia na zona rural do município A Residia no município A Residia em outro município Residia na zona urbana do município A Residia na zona urbana do município A Residia na zona rural do município A Residia na zona urbana de outro município Residia na zona urbana de outro município Residia na zona rural de outro município Migração Internacional Imigrante Internacional Residia no exterior Residia no município A Migração de Retorno (2) Imigrante de retorno Residia em outro município Residia no município A Mobilidade Pendular “In-movente” estuda no município A “Ex-movente” residia em outro município Residia em outro município e trabalha ou Trabalha ou estuda no município A, mas Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000. (1) Esta variável pode ser construída considerando, em separado, a migração interestadual e intra-estadual. (2) Para os naturais do município A. TABELA 1 Número de Imigrantes, Emigrantes e Saldo Migratório, segundo Municípios Selecionados Rondônia – 2000 Código do Município Município Selecionado Saldo Imigrantes Emigrantes Migratório 1100015 Alta Floresta d’Oeste 1100023 Ariquemes 3.453 2.540 913 10.100 12.055 -1.955 1100031 Cabixi 917 1.485 -568 1100049 Cacoal 8.875 14.383 -5.508 1100056 Cerejeiras 2.425 5.555 -3.130 1100064 Colorado do Oeste 1.551 7.424 -5.873 1100072 Corumbiara 1.292 2.163 -871 1100080 Costa Marques 1.605 1.682 -77 1100098 Espigão d’Oeste 2.510 4.120 -1.610 1100106 Guajará-Mirim 2.742 4.052 -1.310 Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000. Nota: Data fixa (1995/2000). SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 121-132, jul./set. 2005 129 DUVAL FERNANDES / IDAMILA RENATA PIRES VASCONCELLOS - migração urbana/rural no município de residência. Imigrante urbano/rural – pessoa que: a) para 1991, em 1o de setembro de 1986 residia na região urbana do município e que em 1o de setembro de 1991 estava na região rural do mesmo município; b) para 2000, em 31 de julho de 1995 residia na região urbana do município e que em 1o de agosto de 2000 estava na região rural do mesmo município; - saldo migratório rural/urbano no município de residência: diferença entre o item 1 e 2 para 1991 e 2000; - imigrante intermunicipal do qüinqüênio para um determinado município. Pessoa que: a) para 1991, em 1o de setembro de 1991 foi recenseada na cidade, mas que declarou residir em outro município em 1o de setembro de 1986; b) para 2000, em 1o de agosto de 2000 foi recenseada na cidade, mas que declarou residir em outro município em 31 de julho de 1995; - emigrante intermunicipal do qüinqüênio de um determinado município. Pessoa que: a) para 1991, em 1o de setembro de 1986 residia na cidade e em 1o de setembro de 1991 foi recenseada em outro município; b) para 2000, TABELA 2 Emigrantes do Município de Vale do Anari (RO), por Município e Unidade da Federação de Destino Rondônia – 2000 em 31 de julho de 1995 residia na cidade e em 1o de agosto de 2000 foi recenseada em outro município; - saldo migratório ou trocas líquidas migratórias do qüinqüênio do município: para um dado município, será a diferença entre os imigrantes e emigrantes do qüinqüênio considerado, excluindo-se os imigrantes internacionais, ou seja, os moradores no município em 1o de setembro de 1991, para 1991, e 1o de agosto de 2000, para 2000, que indicaram residir no exterior em 1o de setembro de 1986 e 31 de julho de 1995, respectivamente. Ainda com a informação de “data fixa”, é possível estimar a migração intermunicipal segundo a situação do domicílio de destino (se rural ou urbano), e, da mesma forma, no caso dos emigrantes, pode-se definir a situação domiciliar de origem. Conjugando a informação sobre o local de nascimento (naturalidade) com o dado de “data fixa”, podese obter para os imigrantes a informação sobre a migração de retorno dos naturais do município. Outro aspecto a considerar seria a divisão dos imigrantes e emigrantes segundo a UF de origem e destino. Assim, é possível definir o montante dos movimentos migratórios dentro da UF (migração intraestadual) e com outras Unidades (migração interestadual). No aspecto relativo à mobilidade pendular, aplicável exclusivamente para os dados de 2000, as variáveis sugeridas são: - “in-movente” pendular para uma cidade: pessoa que trabalha ou estuda na cidade e reside em outro município; Código do Município Município de Destino UF 1100114 Jaru RO 71 TABELA 3 1100122 Ji-Paraná RO 28 1100130 Machadinho d’Oeste RO 102 Ex-Movente do Município de Alta Floresta (RO), por Município e Unidade da Federação de Destino Rondônia – 2000 1100155 Ouro Preto do Oeste RO 83 1100346 Alvorada d’Oeste RO 8 1100403 Alto Paraíso RO 7 1100452 Buritis RO 49 1100049 Cacoal RO 32 1100601 Cacaulândia RO 6 1100122 Ji-Paraná RO 27 1100700 Campo Novo de Rondônia RO 23 1100189 Pimenta Bueno RO 9 1100940 Cujubim RO 15 1100288 Rolim de Moura RO 28 1101005 Governador Jorge Teixeira RO 13 1100379 Alto Alegre do Parecis RO 21 1101302 Mirante da Serra RO 6 1101484 São Felipe d’Oeste RO 12 1101401 Monte Negro RO 5 2904902 Cachoeira BA 16 1101609 Theobroma RO 104 3170107 Uberaba MG 9 3201308 Cariacica ES 12 4301602 Bagé RS 8 4108304 Foz do Iguaçu PR 11 5103403 Cuiabá MT 11 Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000. Nota: Data fixa (1995/2000). Migrantes Código do Município Município onde Trabalha ou Estuda UF Ex-Movente Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000. Nota: Data fixa (1995/2000). 130 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 121-132, jul./set. 2005 PROPOSTA PARA A INSERÇÃO DA VARIÁVEL MIGRAÇÃO EM SISTEMAS ... - “ex-movente” pendular de uma cidade: pessoa que reside na cidade e trabalha ou estuda em outro município; Com as informações selecionadas, pode-se construir um quadro de indicadores, tanto em 1991 e em 2000, para cada um dos municípios brasileiros. O primeiro indicador a ser considerado seria a Taxa Líquida Migratória – TLM, calculada da seguinte forma: tendo no numerador o resultado da diferença entre o número de imigrantes e emigrantes de determinado município e, no denominador, a população com cinco anos ou mais na data de referência (1991 e 2000). Considerando para cada município os imigrantes e emigrantes, pode-se calcular a “taxa de imigração” e a “taxa de emigração”. O numerador, no caso dos imigrantes, seria o montante daqueles que, não residindo no mu- - saldo pendular de uma cidade:11 diferença entre 1 e 2. Indicadores sobre Migração Além das variáveis apontadas, alguns indicadores poderão ser calculados para expressar a importância do processo migratório nos municípios. Para o cálculo de indicadores relacionados a qualquer variável demográfica, deve-se ter em conta, com muita clareza, a definição do denominador e do numerador da taxa ou quociente que se está buscando. MAPA 1 Distribuição dos Municípios, segundo Volume do Saldo Migratório 1995–2000 Saldo Migratório (1995 - 2000) (em número de pessoas) 0 50.000 a 10.000 a 5.000 a 1.000 a 500 a 0a -500 a -1.000 a -5.000 a -10.000 a -50.000 a -550.000 a 80.000 (4) 50.000 (86) 10.000 (82) 5.000 (421) 1.000 (365) 500 (1472) 0 (1613) -500 (659) -1.000 (744) -5.000 (38) -10.000 (18) -50.000 (5) 500 1.000 kilometers Km Fonte: IBGE. Censo Demográfico Amostra (2000) – Microdados. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 121-132, jul./set. 2005 131 DUVAL FERNANDES / IDAMILA RENATA PIRES VASCONCELLOS nicípio no início, entraram no município entre as duas datas consideradas e lá permaneceram. No caso dos emigrantes, aqueles que lá residiam no início, saíram do município, não morreram e residiam em outro município no final do período. O denominador será a população com cinco anos ou mais nos Censos de 1991 e 2000. Apesar de não ser uma taxa no sentido estrito, esse indicador permite avaliar a importância da imigração e emigração, tendo em conta o efetivo populacional. Um proxy do poder de atração ou expulsão do município. 10. Em todos os itens são consideradas as pessoas com cinco anos ou mais. 11. Esse “saldo” poderia também ser considerado como fator de atração e avaliado em relação à população do município, controlado pela idade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARVALHO, J.A.M. de; RIGOTTI, J.I.R. Os dados censitários brasileiros sobre migrações internas: algumas sugestões para análise. Revista Brasileira de Estudos de População, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 7-16, 1998. NOTAS CARVALHO, J.A.M. de. Migrações internas: mensuração direta e indireta. Revista Brasileira de Estatística, Rio de Janeiro, v. 43, n. 171, p. 549-583, jul./set. 1982. Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Abep, realizado em Caxambu – MG – Brasil, de 20-24 de setembro de 2004. CUNHA, J.M.P. O uso das PNADs na análise do fenômeno migratório: possibilidades, lacunas e desafios metodológicos. Rio de Janeiro, IPEA, 2002. 87 p. (Texto para Discussão, n. 875). 1. Condições de Moradia; Desenvolvimento e erradicação da pobreza; Gestão Ambiental; Desenvolvimento Econômico; Governança; e Cooperação internacional. 2. O SNIU pode ser acessado na página do Ministério das Cidades, na Internet (www.cidades.gov.br). 3. No Censo de 1991, perguntou-se o nome do município, situação de domicílio e a UF de residência em 1o de setembro de 1986. 4. A Pesquisa Mensal de Emprego – PME, pesquisa mensalmente 37.212 domicílios nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. A Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED, pesquisa mensalmente 15.720 domicílios nas regiões metropolitanas de São Paulo, Porto Alegre, Recife, Salvador, Belo Horizonte e Distrito Federal. 5. Em 1970, o Brasil contava com 3.951 municípios; 3.991 em 1980; 4.491 em 1991 e 5.507 em 2000, quando da realização do censo. Em 1/1/2001 foram agregados à malha municipal mais 54 municípios. HAKKERT, R. Fontes de dados demográficos. Abep, 1996. 63 p. MAGALHÃES M.V. O Paraná e suas regiões nas décadas recentes: as migrações que também migram. Tese (Doutorado) – CEDEPLAR/UFMG, Belo Horizonte, 2003. MARTINE, G. Os dados censitários sobre migrações internas: evolução e utilização. In: Seminário Metodológico dos Censos Demográficos – CENSOS, CONSENSOS E CONTRA-CENSOS, 3., 1984, Ouro Preto-MG. Abep, 1984. p. 183-214. ONU. Métodos de médición de la migración interna: manual IV. Nueva York: 1972. 436 p. PRESSAT, R. Dicionaire demographique. Paris: Editions PUF, 1976. 236 p. RIGOTTI, J.I.R. Técnicas de mensuração das migrações a partir de dados censitários: aplicação aos casos de Minas Gerais e São Paulo. Tese (Doutorado) – CEDEPLAR/UFMG, Belo Horizonte, 1999. 6. Não há informação sobre a emigração das Regiões Metropolitanas – RM, sequer interestaduais. Apenas dos imigrantes da RM cuja UF de residência anterior ou a de cinco anos atrás tenha sido outra. 7. Na realidade, não se trata de um “saldo migratório” no sentido estrito do termo, pois, como os emigrantes internacionais não são contabilizados no censo brasileiro, o mais correto seria defini-lo como “trocas líquidas migratórias”, descontados os imigrantes internacionais. 8. Apesar do termo amplamente utilizado ser “migração pendular”, a definição mais usual da migração pressupõe a mudança de domicílio permanente. Alguns autores como Cunha (2002) preferem qualificar esse movimento de “mobilidade pendular”. 9. Um exemplo do uso de variáveis é apresentado nas Tabelas 1, 2 e 3 e no Mapa 1. DUVAL FERNANDES: Doutor em Demografia e Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia e Tratamento da Informação Espacial – PUC-Minas ([email protected]). IDAMILA RENATA PIRES VASCONCELLOS: Mestre em Geografia e Tratamento da Informação Espacial – PUC-Minas ([email protected]). Artigo recebido em 28 de março de 2005. Aprovado em 17 de abril de 2005. 132 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, v. 19, n. 3, p. 121-132, jul./set. 2005