revista n-2
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revista n-2
Revista da Fapese Revista semestral da Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão de Sergipe - Aracaju - v. 1 - n. 2 - 2005 Mudanças Tecnológicas e Relações de Trabalho: Um Olhar de Gênero na Indústria Têxtil Maria Helena Santana Cruz Utilização da Ultrafiltração em Fluxo Tangencial na Determinação das Constantes de Troca entre Substâncias Húmicas e Íons Cu(II) Luciane Pimenta Cruz Romão Julio Cesar Rocha Fatores de Atração do Ide na América Latina: O Papel da Abertura Econômica José Ricardo de Santana Guilherme Cavalcante Vieira Avaliação Geoambiental das Dunas Costeiras de Sergipe Anízia C. de Assunção Oliveira Rosemeri Melo e Souza A Leitura de Literatura Infantil na Alfabetização: O Que Falam/Fazem os Professores Sobre essa Prática? Maria de Fátima Monteiro O Problema da Sombra em a Bela Vassilissa Ana Maria Leal Na Trilha dos Passos do Senhor: A Devoção ao Senhor dos Passos de São Cristóvão/SE Magno Francisco de Jesus Santos Verônica Maria Meneses Nunes A Pesquisa Aplicada e as Possibilidades de Desenvolvimento do Campo de Estudos em Jornalismo Carlos Eduardo Franciscato Josenildo Luiz Guerra FUNDAÇÃO DE APOIO À PESQUISA E EXTENSÃO DE SERGIPE Presidente da Fapese Prof. Dr. José Roberto de Lima Andrade Gerência Executiva Economista Márcio Rogers Melo de Almeida Gerência Técnica Economista Neide Santana Gerência de Administração e Finanças Economista Walmir Bruno Soares CONSELHO DE INSTITUIDORES Universidade Federal de Sergipe - UFS Prof. Dr. Josué Modesto dos Passos Subrinho Petróleo Brasileiro S/A - PETROBRAS Geológo Eugênio Dezen Companhia Vale do Rio Doce - CVRD Engenheiro Antonio Francisco Cisne Pessoa Banco do Estado de Sergipe S/A - BANESE Economista Jair Araújo de Oliveira Companhia de Desenvolvimento Industrial e de Recursos Minerais de Sergipe - CODISE Tácito Antônio de Melo Faro Revista da Fapese / Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão de Sergipe. – vol. 1, n. 2, (2005). – Aracaju: Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão de Sergipe, 2005 Semestral ISSN - 1808-477X 1. Produção científica - Sergipe CDU. 001.891 (813.7) (05) COMITÊ EDITORIAL Editor chefe Prof. Dr. Dean Lee Hansen Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa Prof. Dr. Arie Fitzgerald Blank Pró-Reitoria de Extensão Prof. Dr. Ricardo Oliveira Lacerda de Melo CORRESPONDÊNCIA Rua Lagarto, 952 - Centro CEP. 49010-390 Aracaju-Sergipe Home page: www.fapese.org.br email: [email protected] APRESENTAÇÃO Prof. Dr. José Roberto de Lima Andrade, Presidente da FAPESE Prof. Dr. Dean Lee Hansen, Editor da Revista da FAPESE A Fundação de Apoio à Pesquisa e Ex- Dado o crescimento da produção acadê- tensão de Sergipe (FAPESE) tem mica nas áreas de Ciência e Tecnologia, a por finalidade apoiar, promover, executar e sub- FAPESE reconhece a importância do desen- sidiar programas e atividades da Universidade Fe- volvimento de uma revista de divulgação ci- deral de Sergipe (UFS) e de outras instituições do entífica, tanto como um veículo de publica- estado, relevantes para o seu desenvolvimento. ção das ricas pesquisas locais, quanto para Para cumprir seu objetivo, a FAPESE participa a viabilização da difusão de conhecimentos de programas e projetos voltados para o desen- no nível regional e nacional. Por isso, a volvimento científico, tecnológico, social e cul- FAPESE lançou sua revista, a Revista da tural, incluindo a prestação de serviços técni- FAPESE, que é publicada semestralmente. O cos especializados, aproximando cada vez mais objetivo é o de difundir e valorizar os resul- a UFS da sociedade sergipana. Ao longo dos seus tados da produção científica da região, criar mais de dez anos de existência, a FAPESE tem uma maior conectividade entre a produção participado de projetos de pesquisa, ensino e acadêmica e a comunidade, contribuindo, extensão com diversas instituições públicas e assim, para uma maior visibilidade da pro- privadas, inserindo-se no processo de desenvol- dução científica no estado e no contexto na- vimento científico e tecnológico do estado. cional. SUMÁRIO ARTIGOS 07 Mudanças Tecnológicas e Relações de Trabalho: Um Olhar de Gênero na Indústria Têxtil Maria Helena Santana Cruz 25 Utilização da Ultrafiltração em Fluxo Tangencial na Determinação das Constantes de Troca entre Substâncias Húmicas e Íons Cu(II) Luciane Pimenta Cruz Romão Julio Cesar Rocha 37 Fatores de Atração do Ide na América Latina: O Papel da Abertura Econômica José Ricardo de Santana Guilherme Cavalcante Vieira 51 Avaliação Geoambiental das Dunas Costeiras de Sergipe Anízia C. de Assunção Oliveira Rosemeri Melo e Souza 73 A Leitura de Literatura Infantil na Alfabetização: O Que Falam/Fazem os Professores Sobre essa Prática? Maria de Fátima Monteiro 89 O Problema da Sombra em a Bela Vassilissa Ana Maria Leal 97 Na Trilha dos Passos do Senhor: A Devoção ao Senhor dos Passos de São Cristóvão/SE Magno Francisco de Jesus Santos Verônica Maria Meneses Nunes DIVULGAÇÃO 111 A Pesquisa Aplicada e as Possibilidades de Desenvolvimento do Campo de Estudos em Jornalismo Carlos Eduardo Franciscato Josenildo Luiz Guerra Revista da Fapese de Pesquisa e Extensão, v. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 7 Mudanças tecnológicas e relações de trabalho: Um olhar de gênero na indústria têxtil1 R e s u m o Maria Helena Santana Cruz2 O estudo objetivou desvendar, sob a perspectiva de gênero, as transformações gestadas pela introdução das inovações tecnológicas e organizacionais na dinâmica das relações soci- ais, destacando os avanços observados na ampliação da cidadania e na universalização de direitos entre trabalhadores da indústria têxtil. Os dados indicam que o crescimento econômico e o desenvolvimento da indústria têm um impacto negativo, especialmente sobre a participação das mulheres na força de trabalho industrial. PALAVRAS- CHAVE: Trabalho, Reestruturação Produtiva, Gênero. Indústria Têxtil, 8 Maria Helena Santana Cruz A expansão dos estudos sobre gênero localiza-se no quadro de transformações contemporâneas por que passa a sociedade quando certas regras sociais, muitas vezes estabelecidas quase como obrigatórias, estão sendo questionadas e nos convidam a fazer uma re-leitura desse processo. A velha polarização homem/mulher oferece novas possibilidades de revisão. Os novos Estudos Culturais questionam as expressões “nascer e tornar-se” e nos levam a indagar: como abordar a construção da identidade cultural das mulheres e dos homens? Nascemos mulheres e homens ou nos tornamos como tais? Como intervir numa história e numa cultura em construção? Alguns dos questionamentos contidos neste artigo incidem sobre as questões de gênero que atravessam o mundo do trabalho e a formação das mulheres e homens trabalhadores no setor da indústria têxtil. A reestruturação produtiva que vem ocorrendo na indústria brasileira como um todo – e no setor têxtil em particular – constitui um processo bastante complexo. Na sua configuração, intervêm variáveis de diversas ordens. Ainda que a discussão dessas questões ultrapasse os limites deste artigo, nos parece importante colocar que a adoção e a experimentação de novas tecnologias e de novos métodos de gestão da produção e do trabalho constituem apenas um dos aspectos, talvez o mais visível ou discutido do processo produção e desenvolvimento, que se constituem marcados pela globalização, integração regional e reestruturação produtiva. Este texto apresenta resultados de uma pesquisa realizada em uma indústria têxtil sergipana que passava recentemente por processos de reestruturação produtiva, destacando as características assumidas nesse processo. Também analisa as possibilidades de difusão e os requisitos que geram em termos de educação/qualificação das (os) trabalhadoras (es), dos Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 quais se pode inferir um conjunto de elementos comuns e divergentes. Compreende-se que a utilização da abordagem de gênero no processo de trabalho, em contextos sociais diferenciados, permite perceber a repercussão desigual das mudanças sobre o trabalho, segundo o sexo do trabalhador. As relações sociais de gênero são compreendidas como um processo de construção social – o que enseja o desafio teórico de superar a dicotomia produção/ reprodução, e recuperar sua integração na idéia de que a produção de bens é social (transformação material stricto sensu), tanto quanto é socialmente construída a produção de seres humanos (reprodução social). Os estudos de gênero no campo da educação visam a analisar as ligações materiais de poder3 e a força pedagógica da política cultural. Em parte, isso significa tentar compreender como a pedagogia, tanto dentro como fora das escolas, pode ser usada não apenas como aprendizagem à mudança social, mas também como teoria à prática, instrução intelectual aos problemas da vida pública, à educação e à promessa de uma democracia radical e inclusiva. Nessa linha de reflexão, para Scott “as diferenças percebidas entre os sexos, apresentam-se também como uma forma primordial de significado às relações de poder” (Scott, 1995, p. 11), e assim, compreendeu-se que as discriminações sexuais e a segregação ocupacional vêm dificultando o progresso das mulheres. O gênero, ao tempo em que constitui as diversas instituições sociais e práticas determinadas, constrói maneiras de viver que, através das relações de poder, vão produzir os gêneros, definindo para os sujeitos, lugares diferenciados na sociedade e assim, as desigualdades sociais, existindo uma construção social e histórica produzida sobre as características biológicas4 . A abordagem de gênero permite entender as imagens construídas socialmente, marcadas Mudanças tecnológicas e relações de trabalho: Um olhar de gênero na indústria têxtil por mitos, preconceitos, estereótipos, elementos que estruturam a divisão sexual e a organização do processo de trabalho, determinando, em grande parte, as oportunidades e a forma de inserção de homens e mulheres no mundo do trabalho (Abramo, 1996, p. 23). Expressa a forma como cada cultura trata as diferenças sociais entre os sexos, configurando imagens e identidades masculina e feminina (Oliveira, 1991). Os Estudos de Gênero podem ser entendidos como um corpus de saberes científicos que têm por objetivo proporcionar características e metodologias para análise das representações e condições de existência de homens e mulheres em sociedades passadas e futuras (Yannoulas et al, 2000, p. 426). É necessário inicialmente entrar no campo da conceitualização, evitando equívocos entre sexo e gênero. Todo conceito é limitado, não esgota em si a totalidade do significado. Sexo refere-se à dimensão biológica e gênero à dimensão cultural, embora os limites entre ambos não sejam estanques, já que as referências textuais aos dois níveis se imbriquem muitas vezes na bibliografia sobre o assunto. O conceito de gênero é introduzido para afirmar algo mais amplo que sexo e como produto social aprendido, institucionalizado e transmitido de geração em geração (Cruz, 2005). A categoria gênero inclui duas dimensões. A primeira afirma que a realidade biológica do ser humano não é suficiente para explicar o comportamento diferenciado do masculino e do feminino em sociedade. A segunda está ligada à noção de poder. O poder historicamente é distribuído de modo desigual entre os sexos, fato que gera preocupação e questões dos aspectos culturais ligados a gênero. Pensar sobre elas envolve o jogo das diferenças, onde as regras são definidas nas lutas sociais entre agen- 9 tes imersos em relações de poder. Outro conceito importante para o estudo de gênero é o da diferença, que, na perspectiva pós-estruturalista, é um processo social estritamente vinculado à significação. Identidade e diferença não são condições inerentes aos gêneros ou às culturas, não sendo possível reduzilas a algo fixo, estável, único, definitivo, homogêneo. Elas só podem ser percebidas como construção, efeito, processo de produção e ato performativo. Performatividade compreende as proposições lingüísticas que não se limitam a descrever um estado de coisas, mas fazem com que uma coisa aconteça, isto é, por sua repetição exaustiva, acabam por produzir efeitos de realidade. As identidades de gênero, assim como as raciais, são produzidas por meio de repetidos enunciados performativos, pela interação nos diferentes espaços de atuação dos diferentes atores sociais. Essas relações sociais podem mudar, pois, a cada momento, novos sujeitos e circunstâncias invadem a cena social, modificando as regras do jogo. Foucault comenta em seus textos os significados de poder, saber e ética. Esse poder que circula entre as esferas do saber e da ética foi quebrado por essas mulheres, em busca de significados. Viram e nomearam a realidade de formas diferentes. Lidaram com diversos campos de poder. Aprenderam a governar-se a si mesmas. Inventaram jeitos de ser, mesmo estando inseridas na clandestinidade de uma cultura patriarcalista. Em geral, o entendimento desse processo, exige interlocução com o conceito de patriarcado5 (uma das estruturas sobre as quais se assentam todas as sociedades contemporâneas; caracterizado pela autoridade imposta institucionalmente do homem sobre a mulher e filhos, no âmbito familiar), seja considerado como sistema de dominação6 masculina. Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 10 Maria Helena Santana Cruz Isso porque, o campo educacional questiona as relações patriarcais, a reprodução das relações entre os sujeitos, o caráter histórico e cultural de construção de identidades diferenciadas de acordo com o gênero, etnia, classe e geração, com o fito de gerar procedimentos democráticos de formação de vontade que, em última instância, produzam nova racionalidade no mundo da vida colonizado (Habermas, 1990). Retomamos a idéia de que toda relação é uma relação de poder, um jogo de forças, que, portanto, supõe uma tensão, nem sempre negativa, mas que precisa ser invocada para desnaturalizar as diferenças entre homem e mulher. O exercício do poder sempre se dá entre sujeitos que são capazes de resistir; caso contrário, o que se verifica é uma relação de violência. Há nas relações de poder, um enfrentamento constante e perpétuo. Como corolário desta idéia teremos que estas relações não se dão onde não haja liberdade. Na definição de Foucault, a existência de liberdade, garantindo a possibilidade de reação por parte daqueles sobre os quais o poder é exercido, apresenta-se como fundamental (Foucault, 1999b). Nesse sentido, não há poder sem liberdade e sem potencial de revolta (Louro, 1999, p.39). As posições das mulheres no processo histórico não foram sempre passivas, como faz parecer uma história em que as vozes das mulheres pouco aparecem. As formas de resistência são inúmeras e às vezes ocultam-se sob uma aparente passividade. Foucault (1999a, p.89) recusa-se a admitir uma lei transcendental que determina o que somos e o que devemos ser. Essa relação é sempre provisória e aberta às relações interpessoais e a novos posicionamentos do sujeito. Nega as descrições universalistas da natureza humana, fazendo a historicização do sujeito: “não existe um sujeito como tal, isto é, universal, a-histórico, mas uma história da subjetividade, ou seja, das diferentes tecnologias de si”. O autor aborda as relações humanas emaranhadas nas relações de poder, que apresenta numa perspectiva distanciada das análises marxista e fenomenológica. O poder é algo que não está “localizado”, que não é propriedade de, que não Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 se restringe a uma concepção jurídica, e nem parte de uma concepção a partir da lei e do soberano, a partir da regra e da proibição, mas apresenta uma visão do poder desligada das análises tradicionais, um poder que está imbricado nas relações sociais como os nós entrecruzados de uma malha. A perspectiva adotada também permite esclarecer os mecanismos que generalizam e especificam as diferenças e as disparidades nas dimensões temporais e espaciais, a convivência da contradição, cujo ritmo e característica acentuam o nível diferenciado e fragmentado do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, os aspectos culturais e históricos que presidem os diferentes arranjos institucionais, as variadas formas de integração ao novo contexto internacional, ao novo “modelo” produtivo e as diferentes “trajetórias” de adaptação (Humphrey, 1995). A abordagem de gênero traz novas iluminações para a compreensão das discriminações sociais, dos estereótipos construídos nos processos de educação/formação e para o conceito de qualificação. A sociedade construiu e sedimentou ao longo da história, as diferenças entre homens e mulheres a partir das crenças e normas de cada representação social, o que implica reprodução das desigualdades nas relações de poder, não apenas entre homens e mulheres, mas entre as próprias mulheres, de acordo com a cor, idade, religião, posição social etc. As relações de gênero geram condições quase sempre desfavoráveis às mulheres, desde a reprodução de uma educação discriminatória nas escolas, na família e na igreja, onde se evidenciam níveis diferentes de participação, como também no campo das relações de trabalho onde o sexo é fator determinante dos níveis de remuneração, distribuição de atribuições, poder e controle de processos e de resultados oriundos do trabalho. O acesso das mulheres sem dúvida, está ampliado mas não é igualitariamente distribuído. E sendo maior o alcance, a carga de atribuições é maior ainda, visto que elas trabalham mais tempo, já que rea- Mudanças tecnológicas e relações de trabalho: Um olhar de gênero na indústria têxtil lizam as tarefas do lar, que não são computadas como potencial produtivo, fazendo parte do rol das tarefas ditas “de mulher”. Os novos paradigmas do desenvolvimento contemplam questões do empoderamento das mulheres e comunidades como impulsionador do resgate da autonomia, da solidariedade e da mudança nas relações sociais, baseadas no respeito e valorização do ser humano como agente de mudanças. Nesse contexto, a introdução da temática de gênero nos processos de desenvolvimento local. deve contribuir para a discussão e a construção de um conjunto de estratégias para a redução das desigualdades, valorizando o capital humano como o principal responsável pelo desenvolvimento em todas as suas dimensões e a reorganização dos sistemas produtivos locais, a fim de que humanizem e otimizem o acesso aos meios e modos de produção com equidade para mulheres e homens. A expressão Gênero e Desenvolvimento tornouse lugar comum entre os textos técnicos e em certos setores acadêmicos desde os anos 80 quando as Nações Unidas difundiram a revisão das estratégias de desenvolvimento, dando ênfase à equidade e à sustentabilidade. O binômio carrega a marca da atenção técnica sobre as mulheres e por isso, muitas vezes ao ouvirmos a expressão, já antevemos o que vem a seguir; uma sucessão de críticas sobre a desconsideração dos programas e políticas de desenvolvimento acerca da situação das mulheres e inúmeras recomendações que precisam ser assumidas para se enfrentar esta lacuna do planejamento. É muito comum na elaboração de projetos de desenvolvimento, acrescentar-se a palavra “mulheres” ao máximo de frases possível no contexto do documento e então, gênero está considerado. Os técnicos em monitoramento e avaliação incluem sexo como variável das estatísticas quantitativas da população atendida, e assim, gênero está contemplado. E há quem, é preciso lembrar, simplesmente resista, por achar que todos são iguais e que nada justifica dar destaque à condição das mulheres. 11 Há ainda os que desconsideram o assunto por simples dificuldade em absorver e lidar com novas questões no contexto social, isto sem falar dos que acham um detalhe, irrelevante, já que o problema do subdesenvolvimento e da pobreza é de base estrutural. O tema da desigualdade de gênero começou a ser compreendido como um problema social, através da atuação das mulheres organizadas em movimentos sociais e foi sendo elaborado como questão social pelo pensamento feminista. Esta marca de origem, ao contrário de qualificar o problema, tem na verdade contribuído para acirrar polêmicas sobre o assunto, atraindo para si os preconceitos ainda existentes acerca do feminismo. Nesta lógica de argumentação, o tema Gênero e Desenvolvimento ainda passa a ser visto como uma ameaça e sendo um tema político , é considerado por muitos, como sendo radical e desagregador para as comunidades, ao invés de integrador. Nos anos 80 o assunto adquire status de questão social para os organismos de desenvolvimento e cooperação técnica internacional e passa a contar com um suporte técnico, o chamado planejamento de gênero, conceito que propaga a idéia de que é possível, necessário e recomendável que sejam desenvolvidas ferramentas para o manejo das questões de gênero nos processos de apoio ao desenvolvimento, em especial para o momento de diagnóstico inicial da situação. Nessa linha de reflexão, para discutir a educação e seus possíveis reflexos no trabalho de mulheres, necessário se faz descobrir situações de síntese. Impõe-se ampliar o conceito de trabalho e decifrar outros traços sócio-culturais que sustentam o imaginário existente sobre as relações sociais, no esforço de tratar de forma articulada as esferas da produção e da reprodução, para revelar a dialética contida nos vários processos que estruturam as relações sociais e as representações sobre o trabalho e a qualificação. No momento atual de reestruturação do capital, existem indústrias altamente modernas e outras que Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 12 Maria Helena Santana Cruz convivem ao mesmo tempo com os modelos taylorista/fordista e o de acumulação flexível. O primeiro é responsável pela fragmentação do trabalho em tarefas simples e repetitivas e o segundo, pela introdução de modernas tecnologias responsáveis por uma nova organização do trabalho. Entendeu-se que se uma parte importante das experiências individuais e coletivas se estrutura em torno do lugar do trabalho e que este influi sobre as idéias e a conduta das pessoas. Sua análise seria necessária para se compreender o funcionamento da sociedade capitalista uma sociedade constituída por homens e mulheres. Procurou-se esclarecer os efeitos diferenciados da reestruturação produtiva sobre homens e mulheres, visando a externalizar mecanismos de exclusão e desigualdades presentes no novo modelo de produção flexível, considerando-se que a heterogeneidade constitui a principal característica desse processo de mudança (Cruz, 1997; 2000). Reestruturação produtiva, racionalização na fábrica - No último quarto de século, assistiu-se a mudanças nos contextos econômico, político, social e cultural no mundo. Segundo Harvey (1996), a partir da metade da década de 70, estar-se-ia vivendo um período de transição histórica no capitalismo, passando de uma época onde prevalecia a regulação social fordista/keynesiana, para outra que ele denomina “acumulação flexível”. O primeiro período, que teria se estendido do pós-guerra até início da década de 70, estava baseado na expansão material do capitalismo, organizada a partir de uma estrutura de grandes corporações verticalizadas que monopolizavam os mercados. Essa expansão se deu, principalmente, através da atividade industrial, cuja característica era a produção em massa, aliada à expansão do consumo e ao crescimento do emprego. Particularmente nos países desenvolvidos, essa forma de regulação social veio a forjar o que se convencionou chamar o Estado do Bem-estar Social. Outra característica presente nesse período se localizaria no âmbito da própria organização do trabalho. Esta se deu segundo os preceitos do taylorismo, cuja gênese remonta ao início do século XX, com Taylor e a “Administração Científica do Trabalho”. Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 O trabalho taylorizado foi concebido para ser extremamente dividido, submetido a uma separação estrita entre a fase da concepção – desenvolvida por uma minoria localizada no topo da pirâmide organizacional – e a de execução realizada pela maioria dos trabalhadores, estes submetidos a intenso controle e supervisão. O trabalho deveria ser desenvolvido segundo um padrão único, previamente estabelecido pelo setor de planejamento e métodos, institucionalizando-se e fortalecendo-se uma estrutura industrial rigidamente calcada na hierarquia de poder e autoridade dos gerentes e das chefias. A extrema divisão do trabalho e as arbitrariedades sofridas pelos trabalhadores sujeitos a esta forma de organização, por outro lado, contribuíram para a consolidação de uma resistência operária que acabou incorporando, pelo menos nas economias avançadas, a própria grade ocupacional grandemente segmentada pelo taylorismo nas suas lutas e reivindicações, reforçando ainda mais a rigidez estrutural. O período que se estende da metade da década de 70 até os dias atuais apresentaria, ainda indícios de ruptura em relação à situação anterior. Uma de suas principais características seria a perda da importância relativa do setor secundário da economia (em termos de emprego e na composição da riqueza nacional) em favor do setor terciário, particularmente o segmento financeiro, que apresenta excepcional expansão. No âmbito das corporações, além de uma nova onda de concentração de capital através de fusões e incorporações, passa a ter importância a busca da flexibilidade produtiva e do trabalho. Na esfera da produção, procura-se contornar a rigidez da estrutura industrial, principalmente, através de um duplo movimento: a expansão geográfica para zonas onde o controle sobre o trabalho é menos efetivo e a terceirização de atividades de apoio e de certas etapas da própria atividade produtiva. Na esfera do trabalho, adotam-se novas práticas organizacionais que, ao mesmo tempo, visam ao aumento da produtividade e procuram desenvolver a cooperação e a lealdade do trabalhador em relação à empresa. Adotam-se novas iniciativas, como a bus- Mudanças tecnológicas e relações de trabalho: Um olhar de gênero na indústria têxtil ca de flexibilização dos contratos de trabalho formal (contrato por período determinado, tempo parcial de trabalho, etc), dos postos de trabalho (polivalência, multifuncionalidade) e das próprias relações de trabalho, utilizando-se de trabalho informal ou mesmo não remunerado, muitas vezes domiciliar, intermitente e sem proteção legal e incorporando essas modalidades precárias de trabalho na rotina regular das cadeias de produção. A mundialização da economia teria como tema principal, portanto, a busca de uma maior flexibilidade, considerada uma das características essenciais do capitalismo contemporâneo. Foi dentro dessa ótica que se desenvolveu e foi disseminado internacionalmente o sistema de “produção enxuta”, também conhecido como “modelo” de especialização flexível. A esse respeito, Coriat (1994) apresenta uma visão bastante crítica. Afirmou que o Ohnismo, considerado como um conjunto de inovações organizacionais, não foi apreendido pela indústria brasileira, havendo, isso sim, uma tentativa de aclimatar localmente alguns processos7 : “os métodos japoneses são utilizados no Brasil como ferramentas de racionalização do já existente, sem nada mudar nas lógicas fundamentais tayloristas e fordistas, que constituem o fundamento da indústria tradicional”. As transformações em curso questionam a permanência das tradições e incertezas com a modernidade. A adoção da perspectiva de gênero chama a atenção para as diferentes formas e particularidades que assumem as inovações tecnológicas no contexto do trabalho industrial, orientando alguns questionamentos: Como o processo de modernização/inovação tecnológica e organizacional é percebido por gerentes e trabalhadores na indústria têxtil? As inovações introduzidas trazem consigo melhores oportunidades para as operárias, em termos de formação, treinamento, ascensão na hierarquia de postos e melhores salários? Comparativamente ao tra- 13 balho masculino, estaria havendo uma tendência à equiparação quanto às funções e remunerações correspondentes entre homens e mulheres ligados à produção, indicando dessa forma, um movimento em direção à ruptura com os conceitos socialmente correntes de divisão sexual do trabalho, estabelecidos através de segregação de mulher no mercado e nos locais de trabalho? De que modo a gerência promove a motivação das operárias, para obter maior esforço e dedicação no desempenho de suas tarefas? Como as operárias integram e organizam os papéis na esfera privada familiar e na esfera pública do trabalho industrial? Procurou-se construir uma história cruzando-se as características da integração das mulheres na fábrica, as condições de trabalho, suas transformações e as imagens que sustentam seu trabalho, incluindo-se o estudo do fenômeno das mentalidades, porque, como disse Duby, o imaginário, o sistema de representações, os valores e os sentimentos cumprem um papel tão importante como o sistema material no ordenamento das relações sociais (1978, p. 9). Algumas observações metodológicas – Dado o caráter exploratório desta investigação, o estudo de caso apresentou-se como a técnica mais adequada. O trabalho de campo se circunscreveu a uma das mais antigas fábricas (94 anos desde sua fundação) do ramo têxtil sergipano, situada na zona urbana de Aracaju, escolhida pelo volume de seu pessoal, por integrar mulheres em diversas categorias ocupacionais e por introduzir inovações tecnológicas e organizacionais no âmbito do trabalho. Foi utilizada uma metodologia consistente com base em diversas fontes de observação; a investigação bibliográfica, a investigação documental e a investigação de base empírica, observação na planta da fábrica e observação participante nos locais de trabalho e em reuniões com os (as) trabalhadores (as). Também foram realizadas entrevistas semi-estruturadas junto a diretores, gerentes e trabalhadoras (es) integrantes de um universo de 304 (67%) homens e 145 (33%) mulheres, da área administrativa e de produção. Procu- Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 14 Maria Helena Santana Cruz rou-se captar nos discursos, as visões que informam a construção das diferenças, incorporando a dimensão temporal e os efeitos das mudanças em seu trabalho atual, comparativamente à situação anterior. fábrica “Confiança” de fiação e tecelagem; as duas fábricas têxteis fundadas em Vila Nova (Neópolis) e outra fundada em Propriá. Algumas fábricas fecharam após vinculação às firmas comerciais. A industrialização brasileira - O setor têxtil atualmente representa um setor de grande relevância para a economia brasileira (Mendonça, 1997), com forte impacto social e com um faturamento total equivalente a 4,4 % do PIB (que representa o valor agregado de cada segmento econômico) e emprega cerca de 1,9 % da população ativa. Em Sergipe, a fabricação de produtos têxteis, que é um tipo de indústria de transformação, representa 23 (4,3%) do total das 536 unidades industriais (o total refere-se a soma de indústrias extrativas e de transformação). Nas unidades do Estado, a fabricação de produtos têxteis integra 3.581 (17,3%) pessoas ocupadas na fabricação de produtos têxteis8 do total de 20.710 (IBGE, 1999). Após a abolição da escravidão, as fábricas sergipanas conseguiram uma produção têxtil local expressiva na exportação da produção, colocandose em segundo lugar em relação às exportações de tecidos de algodão. Entre 1907 e 1920, a indústria têxtil sergipana cresceu a um ritmo muito mais acelerado que a indústria têxtil brasileira. Contudo, alguns fatores foram responsabilizados pela redução das exportações têxteis em Sergipe, colocando-as abaixo da média nacional: a importação de algodão a partir de 1916, a ausência de uma rede pública de distribuição de energia elétrica, o aumento do grau de mercantilização decorrente da abolição da escravidão e da introdução do trabalho livre e o acirramento da concorrência inter-regional, além de outros fatores. A redução do Brasil à condição de exportador marginal no mercado internacional, a partir do início do século XIX, criou uma concorrência entre os diversos produtores nacionais. Nesse período, os produtores sergipanos permaneciam no mercado de forma excludente, porque a economia sergipana estava fortemente ligada à praça de Salvador, diminuindo-se as exportações sergipanas pela criação de casas comerciais exportadoras da Província, sendo algumas envolvidas com capitais estrangeiros (Subrinho, 2001, p. 198-199). Duas principais casas comerciais se destacaram nas duas primeiras décadas do século XX em Sergipe, foram: Cruz, Irmão & C. e a firma Sabino Ribeiro & Cia., caracterizadas por construírem fábricas de fiação e tecelagem de algodão. Boa parte das fábricas têxteis fundadas em Sergipe até 1930 eram vinculadas a essas casas comerciais com características diversificadas9, como: Sergipe Industrial, a primeira fábrica de fiação e tecelagem de algodão; a fábrica têxtil de Estância; a Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 1. O TRABALHO INDUSTRIAL FEMININO A modernização iniciada nas últimas décadas do século XIX afetou as ocupações tradicionais das mulheres, em particular no interior do país e delineou alguns bolsões de emprego feminino como o serviço doméstico. As causas da presença feminina no início da industrialização brasileira foram: a passagem da manufatura para a maquinofatura e a nova organização do processo de trabalho. Na verdade, foi um período em que o proletário urbano ainda não estava formado e que havia escassez de mão-de-obra. À medida que a indústria se desenvolvia, diminuía a taxa de absorção de mão-de-obra feminina, utilizada como forma de rebaixamento do nível geral dos salários e como exército industrial de reserva9 conforme explicações da literatura. No entender de Pena “a representação da mulher no trabalho segue as mes- Mudanças tecnológicas e relações de trabalho: Um olhar de gênero na indústria têxtil mas linhas de sua representação na família” (1981, p. 29), pois ela vai se inserir no trabalho fabril em funções semelhantes àquelas em que a sociedade determinou como naturais de seu sexo. Quando se fala da participação das mulheres na abertura do processo industrial, é importante ressaltar onde elas foram recrutadas, em que atividades se estabeleceram no processo produtivo e as condições de trabalho em que eram submetidas. O trabalho fabril, em meados do século XX, representava a oportunidade de emprego para as mulheres dos mais baixos estratos sociais10 , inclusive crianças que compuseram a mão-de-obra fabril, desse período, recrutadas de locais inferiores da sociedade; era considerada uma mão-de-obra desprotegida e direcionada para as atividades que exigiam menor conhecimento técnico. Por outro lado, aquelas que exigiam uma maior qualificação foram desenvolvidas por imigrantes, principalmente homens. As mulheres ocupavam funções mal remuneradas que exigiam maior atenção devido à simplificação do processo de produção. Elas estavam inseridas, também, em um contexto trabalhista de escravidão, exercendo dupla jornada de trabalho, com a passagem do sistema de dormitório para o de vilas operárias. Ademais, elas eram exploradas pelo capitalismo, pois eram policiadas pelo patrão que representava a família patriarcal nessa relação de trabalho. Mediante a racionalização do processo industrial as mulheres deveriam deixar as fábricas para se dedicarem ao trabalho reprodutivo. A diminuição dessa participação no setor fabril é explicada por alguns fatores: a organização do processo de trabalho; a atuação da classe trabalhadora demandando a volta das mulheres ao lar; a legislação trabalhista de 1932 que reforçou a família monogâmica e o papel da mulher nas tarefas reprodutivas. Em 1940, elas representa- 15 vam a principal força de trabalho utilizada na indústria domiciliar e em 1944, o trabalhador masculino já era a mão-de-obra mais atraente para as indústrias. Refletindo sobre o trabalho e gênero no contexto industrial, Souza-Lobo (1991, p. 63) destaca a emergência da problemática das operárias nas práticas e nos discursos sindicais no Brasil no fim da década de 70, momento marcado por alguns fatores: mudança na composição da força de trabalho, pois entre 1970 e 1980 a participação das mulheres na força de trabalho industrial foi marcada pelo aumento global da porcentagem operária e pela inserção das mulheres nos diversos ramos industriais; desenvolvimento de novas práticas nos movimentos operário e sindical no final da década de 70 e pelo surgimento dos movimentos populares de mulheres e de uma corrente feminista11 . História, modernização tecnológica e organizacional - A Fábrica de Fiação e Tecelagem Confiança é a segunda do setor fundada em Sergipe no dia 18 de outubro de 1907, sob o nome de Ribeiro Chaves & Cia. Seu surgimento se deu em um contexto de mentalidade industrial já implantado em Sergipe, o qual conduziu os empreendimentos realizados posteriormente. Sua existência marcou a efervescência econômica no estado, destacando-se na produção e exportação de produtos, plantação de algodão e geração de empregos, como também pelo papel social efetivado, através de uma política paternalista que possibilitava a concessão de benefícios sociais como: casas, assistência médica, creches e a criação de um time de futebol (Confiança). Com relação à evolução do processo produtivo, em 1910 a fábrica apresentava 150 teares, em 1913 já estava com 200 e em 1915, já possuía 320. Hoje, possui 350 máquinas e emprega 452 funcionários. Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 16 Maria Helena Santana Cruz As máquinas antigas ainda não foram substituídas totalmente, devido ao alto valor de aquisição. Desde a fundação da fábrica até os tempos atuais, foram executados projetos de ampliação e modernização através de recursos próprios, da Sudene do BNDES e BNB, com a introdução de máquinas modernas que trabalham juntamente com as antigas. Com a racionalização de parte da produção12 a indústria passou a atender a pedidos de novos tipos de tecidos que saem da tecelagem já classificados na inspeção, de acordo com critérios de qualidade13 . rica “feminização” do trabalho nesse setor têxtil, sugerindo barreiras de acesso/inserção para as mulheres. A assimetria entre os sexos desvantajosa para as mulheres certamente contribui para tornar as trabalhadoras mais vulneráveis ao processo de exclusão. A introdução de inovações tecnológicas (máquinas novas) no setor operacional mostra-se de uso restrito e conjugado com o uso de maquinários obsoletos de componente manual. A associação do homem com o domínio da tecnologia, explica a dificuldade do acesso de mulheres à utilização de maquinários novos, isso porque elas tradicionalmente estão associadas com atividades não tecnológicas. A presença de mulheres em espaços masculinos desafia o senso enraizado de lugares reservados a homens e mulheres e os faz questionarem sobre quais seriam as atividades “apropriadas” a homens e mulheres (Posthuma, 1996; Cockburn, 1992). Assim, a reestruturação interna produziu e reduziu os níveis hierárquicos, afetando locais e postos onde as mulheres trabalhavam. Idade, estado civil e número de filhos – Com relação à faixa etária de 31 a 35 anos, predominam 15,2% trabalhadores homens e 23,2% mulheres, enquanto na faixa etária de 41 anos considerada um segmento de idade madura, encontra-se um grupo de 25,4% homens e 16,3% de mulheres. Quanto ao estado civil, os dados mostram haver um equilíbrio entre o total de 452 trabalhadores, 222 (49,1%) são solteiros enquanto 222 (49,1%) são casados. Entre as mulheres 72 (15,9%) inserem-se na condição de casada e com filhos. Este fato não parece constitui um elemento inibidor do ingresso da mulher neste mercado de trabalho. No contexto atual, parece então que outros requisitos como a escolaridade e a qualificação sobrepujam a situação de casada. Isto porque a operária parece acompanhar o comportamento da trabalhadora da classe média, prolongando-se na condição de solteira sem filhos e destacando-se na de casada com poucos filhos. O planejamento da natalidade possibilita libertar as mulheres para o ingresso e permanência no mercado de trabalho. O perfil dos empregados da indústria - A composição e o perfil dos trabalhadores questiona a dinâmica do contexto da indústria quanto às formas de gestão implementadas, tendo em vista ampliar a competitividade no mercado. Tradicionalmente, sabese que a presença feminina tem sido forte no setor industrial têxtil. Contudo, no caso estudado, no universo composto por 452 trabalhadores, 67,3% são homens enquanto 32,7% são mulheres. De imediato, a predominância masculina questiona a tese da histó- Com relação à escolaridade - Nos setores modernos da indústria, já se sabe que as qualificações adquiridas via escolarização formal têm um papel importante no processo de seleção da trabalhadora. Contudo, a grande maioria dos operários insere-se no nível do 1º grau, dificultando a adaptação às mudanças, justificando as demissões. A aquisição desses bens, ou do “capital cultural”, significa a acumulação de uma vasta quantidade de destrezas a serviço de interesses técnicos. A indústria realiza treina- Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 Mudanças tecnológicas e relações de trabalho: Um olhar de gênero na indústria têxtil mentos de curta e alterou os critérios de acesso/inserção do pessoal, exigindo mão-de-obra mais qualificada. O nível fundamental incompleto é predominante (60,8%) entre os trabalhadores, sendo o nível médio o segundo mais expressivo (15,7%), integrando 7,3% de homens e 8,4% mulheres. No nível superior incompleto, apenas encontram-se 1,3% de homens e 0,6% mulheres. Contudo, em outros setores industriais que utilizam tecnologia de ponta (Cruz, 1999), a escolaridade mais elevada é considerada uma estratégia de inclusão, isto é, mecanismos de contorno de que lançam mão as mulheres num mundo onde o poder (político, das gerências e direções superiores, técnicos dos quadros qualificados) emana de indivíduos do sexo masculino (Castro, 1993). Ocupação e tempo de serviço - Na indústria Ribeiro Chaves confirma-se a segmentação horizontal (predomínio de mulheres em atividades secundárias, concentração dos empregos femininos em um pequeno número de setores, atividades e profissões - caixa, vendedor e fiandeiro, ajudantes e assistentes administrativos) e a segmentação vertical ou hierárquica (dificuldade de ocupar postos de direção na hierarquia da empresa ex: gerentes, supervisoras) com pequenas chances de ascender profissionalmente, assumindo maiores responsabilidades e qualificações mais especializadas. As mulheres conseguem atingir o posto de gerência de lojas nas extensões da fábrica (escolhidas por suas habilidades nos serviços de atendimento aos clientes). Os postos de direção são reservadas apenas aos membros do grupo familiar da empresa. Nas lojas situadas em pontos centrais da cidade, as mulheres ocupam 0,8% dos postos nas gerências, 1,5% são caixas enquanto um número maior 28,6% (vinte e oito) desenvolve atividades como vendedoras comparativamente a um grupo de 0,4% homens. A maioria dos trabalhadores (48,2%) que integra o coletivo, apresenta tempo de serviço compreendido entre 1 a 5 anos e ainda 23,2% destes atingiu mais de 10 anos, significando que exis- 17 te grande parcela de empregados que tentam se adaptar à transição do velho para o novo paradigma. Construção das representações dos (as) trabalhadores (as) - Os trabalhadores expressam sentimentos ambíguos, contraditórios de prazer, realização pessoal e profissional. A indústria representa, para muitos, o primeiro emprego. As trajetórias parecem influenciadas por relações familiares, moldando tipos de ocupações nos setores de trabalho. Os trabalhadores a associam à introdução de inovações tecnológicas com novas demandas de um perfil profissional dotado de maior escolaridade formal e como fator de eliminação de postos de trabalho; “No tempo da máquina manual, era horrível para produzir. As máquinas modernas evitam os acidentes provocados pela lançadeira (...). e exigem que o trabalhador tenha mais informações, tenha pelo menos o 1º grau e para tirar de letra. Vejo que o trabalhador não mudou muito, acho que essa máquina dispensa o magazineiro. Já quiseram me ensinar, mas a supervisão não dá oportunidades por ser um turno muito corrido, não dá tempo para aprender. O progresso traz demissões, muitos foram demitidos” (Ajudante de tecelão, 51 anos, 4ª série fundamental). Os trabalhadores expressam sentimentos ambíguos de fascínio e temor com os efeitos da introdução de inovações tecnológicas. Saber lidar com as novas tecnologias confere ao trabalhador status e prestigio entre os coletivos. A divisão social e sexual nas indicações aos treinamentos é justificada porque as mulheres priorizam os papéis reprodutivos, a educação dos filhos e a organização da unidade doméstica, fortalecendo sentimentos de incompetência, conformismo, medo de assumir desafios. A indicação para os treinamentos 14 é associada com Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 18 Maria Helena Santana Cruz apadrinhamento das chefias. No setor administrativo, as mulheres freqüentemente são orientadas para os cursos de comunicação, marketing, vendas, etc. Os cursos de flores, pintura em tecidos e outros, são considerados adequados para o desempenho de tarefas de uma operária têxtil com “mãos delicadas de uma mulher”. Essa visão sobre os papéis das mulheres coincide com o as explicações de que as desigualdades na qualificação e, em conseqüência, no salário, têm raízes nas diferenças de entendimento, de habilidades e destrezas, ou na experiência produto das desigualdades biológicas, apoiadas em um sistema de valores que hierarquiza a força sobre a habilidade. As tarefas pesadas e insalubres são associadas aos homens e aquelas que exigem cuidados são associadas às mulheres. A formação dos homens é associada a imagens de masculinidade, ao uso da técnica e da força física, enquanto a formação das mulheres aparece sempre relacionada a imagens de feminilidade. As diferentes obrigações atribuídas aos homens e mulheres em um lugar, a concepção de que as mulheres são aptas somente para alguns tipos e turnos de trabalho, são práticas estruturadas no ciclo da vida de homens e mulheres como algo dado ou naturalizado e não como resultado de construções sociais conforme revelam os exemplos: “No ramo têxtil, só os supervisores, tecelões e contra-mestres, participam de treinamentos técnicos. As mulheres (...) nunca são supervisoras, só chegam a categoria de tecelã, contra-mestre e mestre de sessão, e nem expressam a vontade de serem supervisoras. Elas comentam em ser tecelã. (Ajudante de tecelão, 51 anos, 4ª série do ensino fundamental). A importância da qualificação/escolaridade formal é destacada na desvantagem das mulheres no trabalho, especialmente no setor operacional, onde no confronto com os diversos, elas interiorizam os limites do que lhes é permitido no desempenho dos papéis. No setor administrativo, considerado um Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 “gueto feminino”, apenas as mulheres integrantes do grupo familiar ocupam cargos de gerência. As mulheres manifestam interesse em ampliar a formação para obter segurança no emprego, ascensão na carreira profissional: “quem não estuda vai para o trabalho doméstico nas casas de família”. Novas demandas por competência no contexto do trabalho – Considera-se que a valorização da qualificação social e das novas competências sociais possibilita o resgate do sujeito e o fortalecimento da cidadania. A noção de competência vem ampliar o conceito de qualificação. Ser competente então, não é só ter capacitação específica, habilidades básicas exigidas para o posto de trabalho; é ter competência comportamental e inter-pessoal, isto é, acumular diferentes saberes adquiridos na vida cotidiana (Cruz, 2005). Na indústria, manifesta-se a tendência à naturalização e segmentação das habilidades de acordo com o sexo do trabalhador. Para os postos operacionais, são exigidas habilidades motoras como: agilidade, cuidado, atenção, rapidez, qualidade, disponibilidade de horários. Valorizam-se os aspectos: pontualidade, qualidade em detrimento das competências sociais, enquanto nos postos administrativos, especialmente para o atendimento ao público, as mulheres muitas vezes são preferidas por apresentarem outras habilidades sociais: capacidade de comunicação, argumentação e convencimento. Alguns trabalhos podem ser realizados por mulheres de acordo com sua natureza e são articulados com a fábrica, reforçando o papel complementar do trabalho da mulher. Assim, os saberes da experiência constituem a cultura em ação, ou saberes em construção. Em geral, as entrevistadas consideram que suas habilidades são facilmente aprendidas na experiência de trabalho. Predominantemente no chão da fábrica, as mulheres estão alocadas em postos tradicionalmente femininos, são submetidas ao controle de chefias masculinas com metas prescritas, dificultando maior autonomia e criatividade. Neste sentido, existem várias Mudanças tecnológicas e relações de trabalho: Um olhar de gênero na indústria têxtil reivindicações específicas das trabalhadoras (es) dirigidas à revisão das relações de poder, que estruturam processos de exclusão e dificultam a construção da cidadania nos espaços de trabalho. Entre os fiandeiros da fábrica, três são homens e sete são mulheres. A esse respeito, Kergoat (1987, p. 28) alerta sobre o fato de que o trabalho considerado “fácil” e “desqualificado”, em realidade, exige uma energia considerável. Elas são preferidas para essa ocupação por apresentarem habilidades para o serviço de atendimento ao público externo (qualificações tácitas ou sociais), valorizadas como valor de uso, podendo ser transformadas em valor de troca, para a comunicação e o atendimento ao público externo e interno, contribuindo para ampliar a produtividade da empresa. Diante da valorização das qualificações tácitas ou do acúmulo de diferentes habilidades sociais pelo modelo flexível, tenta-se perceber através do recorte de gênero se as tecnologias atingem homens e mulheres de igual forma no setor industrial. Conflitos na relação de trabalho - A fábrica pode ser pensada como o lugar onde se produz o conflito (entre capital e trabalho), senão também como um âmbito onde pode gerar-se o consenso e alimentar o “sentido comum” em torno dos papéis produtivos femininos e masculinos. Os conflitos e relações de poder manifestam-se no cotidiano, entre chefias e subordinados, e ocorrem por diferentes motivos: desigualdade de oportunidade e diferença de gênero, competição, rivalidade, medo de reivindicarem direitos trabalhistas e, conseqüentemente, de exercerem a cidadania. São mais freqüentes nos setores operacionais: Os homens sempre ficam do lado dos homens; enquanto as mulheres expressam frágil solidariedade no “chão da fábrica”. Nas diversas mediações em que se constroem as relações de gênero, concretizam-se as divisões sexuais do trabalho, constroem-se os projetos de carreiras, as trajetórias profissionais, formam-se as estratégias que põem, de manifesto, que cada tarefa é dotada de gênero. A identidade estrutura-se por meio de múltiplas mediações, no jogo dialético das rela- 19 ções sociais fragmentadas, contraditórias, em constante mudança, nas interações de sujeitos com os grupos com os quais interagem. Ao desempenhar a dupla jornada de trabalho, as mulheres precisam suprir as necessidades básicas da família e garantir o emprego. Ao assumir novos papéis na esfera pública, a mulher não perde seus papéis específicos na esfera privada, que continuam sendo reforçados pela estrutura patriarcal da sociedade, através dos diversos mecanismos de controle desses sistemas. As mulheres ressentem-se de que os companheiros, com freqüência, repassam para as filhas as atribuições domésticas, direcionando sua colaboração para o espaço público (fazer compras, levar crianças na escola), reforçando a divisão sexual do trabalho. Ao desempenharem o papel produtivo no espaço público, as trabalhadoras com filhos sentem-se culpadas e fragmentadas por descuidarem-se dos seus papéis reprodutivos domésticos. Elas revelam o mito da culpa que a mulher carrega há milênios. Ele não é muito definido ou claramente delimitado, mas freqüenta insistentemente o imaginário e as emoções das mulheres, de forma meio difusa, mas sempre condicionado pelas culturas. Essa culpabilidade quase existencial manifesta-se como uma extensão dos terrenos da religião e da moral. A mulher está sempre se culpando pelo não cumprimento das expectativas dos outros sobre ela: tanto familiar como socialmente. Trata-se de uma culpabilidade inerente à própria cultura patriarcal, uma culpabilidade que torna mais culpáveis uns do que os outros por causa de sua situação biológico-cultural. Nesse contexto, a estrutura reprodutiva, o trabalho, a cultura e as práticas são considerados elementos formadores do indivíduo enquanto pertencente a um grupo, no qual um se define e é definido pelos laços de solidariedade, sem, entretanto, mudar as diferenças individuais. Isso porque, os processos de socialização pelos quais os indivíduos passam são significativos para justificar comportamentos de conformismo nas relações sociais, nas situações de trabalho e à racionalidade organizacional. Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 20 Maria Helena Santana Cruz 2. CONSIDERAÇÕES FINAIS O cenário de onde se elabora o discurso dos grupos estudados é de importância capital para entendermos os significados das posições assumidas por homens e mulheres. No contexto geral de análise das questões de gênero, foi adotada uma perspectiva histórico-crítica visando a responder aos propósitos da pesquisa, situando-os no interior das diversas esferas de poder contidas na relação das mulheres consigo mesmas e com os outros e, nesse amplo e complexo panorama, inserir a produção das subjetividades das mulheres trabalhadoras. O processo de reestruturação industrial em curso, parece combinar inovações tecnológicas com práticas conservadoras de gestão. Essa dinâmica provocou um expressivo número de demissões, consideradas sob a ótica dos trabalhadores como o ponto negativo do avanço tecnológico, mesmo reconhecendo alguns pontos positivos, como: agilidade nos serviços, qualidade total, maior participação entre os trabalhadores e exigência por uma maior escolaridade. Os trabalhadores temem reivindicar os direitos trabalhistas referentes à licença-saúde, principalmente, as mulheres expressam temor e culpa por utilizarem a licença-maternidade15 . Os resultados descobrem os aspectos mais marcantes do processo de reestruturação produtiva, o caráter, muitas vezes, contraditório dos posicionamentos dos trabalhadores e das possíveis variações nas interpretações por eles vivenciadas na especificidade do setor estudado. Produzem-se diferentes perfis de trabalhadores: um que opera manualmente sem acesso ao aparato computacional e outro que opera com base em conhecimentos de informática. Para os postos operacionais, são requeridas habilidades motoras (agilidade, atenção, rapidez, qualidade, etc.) e para os postos que trabalham com o público, são requeridas as Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 habilidades sociais (saber atender ao público, saber comunicar-se, capacidade de convencimento, bom relacionamento inter-pessoal, etc.). A segmentação hierarquiza e domina as ocupações, demonstrando não haver ruptura com os conceitos de divisão sexual do trabalho. Observam-se atitudes defensivas de posições e território, ou “campo” de interesses conflitantes que expressam o “estereótipo do profissional masculino”, das identidades de acordo com o sexo do trabalhador. Compreende-se que a identidade de gênero vaise construindo durante toda a vida. Na etapa adulta do processo de socialização, define-se por meio de distintas instituições e práticas sociais. Significa dizer que a noção de identidade estrutura-se por processos de socialização e se expressa nas formas de representação coletiva, que designam pertencimento. Nesse aspecto, a identidade de gênero seria uma maneira de nomear as diferenças que tomam como elementos de representações certos traços particulares globais. Falar de identidade é falar de marca, de traços diferenciadores que distinguem e definem os sujeitos, podendo assim incluí-los ou excluí-los de determinados contextos. Emergem os diferentes lugares de poder que mulheres e homens ocupam na hierarquia da indústria, e que devem ser identificados para se compreender a construção das diferenças nos diversos âmbitos e aspectos da vida dos indivíduos de acordo com o sexo, para estimular, assim, o conhecimento sobre as influências recíprocas entre as dimensões econômica, política e cultural. Apesar de pertencerem a classes empobrecidas, as mulheres entrevistadas não enfatizaram a importância da renda. Em muitos momentos, a retirada financeira das mesmas é insuficiente; contudo, a sociabilidade w a cumplicidade que estão tecendo no Mudanças tecnológicas e relações de trabalho: Um olhar de gênero na indústria têxtil grupo familiar, conseguem sobrepor a lógica capitalista vigente e hegemônica. Evidencia-se, nesse momento, que as redes de mútua-ajuda, as trocas e a solidariedade entre os atores fortalecem as relações sociais. Um viés cultural tende a reconhecer nas mulheres uma qualificação menor do que aquela que os homens podem naturalmente ostentar. Isso porque, as experiências dos trabalhadores são moldadas pela estrutura social, ao mesmo tempo em que absorvem e reproduzem as desigualdades de classe/gênero e a “naturalização” das identidades fragmentadas e em conflito. Observa-se a persistência e mesmo a renovação das diferenças em contextos de intensa interação social. A maneira como isso é realizado ocorre pela recuperação das diferenças nas representações que alimentam o universo dos trabalhadores. As distinções pontualizadas na cotidianidade de trabalho produtivo reforçam uma imagem dos lugares e das tarefas que podem e devem ocupar as mulheres na fábrica. Assim, se foi construindo, gradualmente, um consenso sobre as propriedades, as condutas e os espaços próprios de mulheres. Desse modo, a geração de consenso se mostra atrativa16 . Devido a uma série de fatores, como os processos de socialização/conformismo sofridos pelas mulheres em diversas etapas de suas vidas, elas tendem a não questionar ou rejeitar cotidianamente as “regras do jogo” que fundamentam e canalizam as relações sociais. Parece então que as representações, as normas e os valores como práticas sociais, organizam-se de forma referenciada e legitimada por elementos constitutivos dominantes da sociedade. Essa influência cultural se alastra pelo espaço de trabalho. 21 Destarte, o aparato socioeconômico, político e cultural constitui uma moldura de sociabilidade para a construção de subjetividade e identidades, adquirindo significados específicos em cada contexto, a depender da localização e posição do indivíduo no tempo e espaço determinado. Fica evidente que, para desconstruir uma identidade, torna-se necessário contextualizá-la e, a partir daí, reconstruí-la. Isso implica que temos de nos aproximar dos sujeitos, concebendo-os sob a perspectiva de uma pluralidade dependente das diversas posições assumidas, através das quais são constituídos dentro de diferentes formações discursivas. Não se deve esquecer que o desenvolvimento constitui um fenômeno também cultural, que se constrói a partir de mudanças estruturais no campo político, social e econômico. È necessário uma atenção permanente de todos os atores sociais, no sentido de que se estabeleça coerência entre os discursos e as práticas que feminizam a pobreza, sem contudo colocar a “lupa” de gênero para que se dê visibilidade às estruturas sociais que geram e mantêm as desigualdades e a despolitização do discurso de inclusão na dimensão do desenvolvimento. Nesse contexto de transição econômica, social, política e cultural, emergem questões sobre a reconstrução de um novo projeto de modernidade e democratização da sociedade. Não se deve esquecer que o resgate da cidadania passa pela reconquista de espaços, pela partilha do poder, significando produzir e usufruir os bens materiais, culturais, simbólicos e compartilhar das decisões do poder. Revista da Fapese, n. 2, p. 7-24, jul./dez. 2005 22 Maria Helena Santana Cruz REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMO, Laís W. 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Resultados de experimentos de troca entre íons Cu(II) adicionados e espécies metálicas (Ni, Al e Fe) originalmente complexadas por substâncias húmicas, permitiram estabelecer a seguinte ordem decrescente de estabilidade relativa do complexo SHmetal: Fe<Al<<Ni. A caracterização das substâncias húmicas foi feita pelas razões molares C/N e H/C, as quais indicaram maior humificação e aromaticidade da matéria orgânica presente nas amostras aquáticas que nas amostras de solo, e pela espectroscopia na região do infravermelho, a qual apresentou espectros com bandas largas, comuns nos espectros de substâncias húmicas, atribuídas às superposições de absorções individuais e similaridades entre os grupos funcionais presentes nas estruturas das substâncias húmicas aquáticas e de solos. PALAVRAS-CHAVE: Ultrafiltração em Fluxo Tangencial, Constantes de Troca, Cobre 26 Luciane Pimenta Cruz Romão; Julio Cesar Rocha 1. INTRODUÇÃO S ubstâncias húmicas (SH) são os principais constituintes da matéria orgânica natural (MON) globalmente distribuídos em ambientes terrestres e aquáticos. Estima-se que cerca de 50% do carbono orgânico dissolvido (COD) em águas superficiais e oceânicas consistem de matéria orgânica refratária do tipo SH [1,2]. A interação com espécies metálicas no ambiente é uma importante propriedade das SH, a qual poderá resultar em reações de complexação e/ou redução. As reações de complexação de metais são mais conhecidas por influenciar na biodisponibilidade dessas espécies. Atuando como tampões metálicos em ambientes aquáticos, as SH têm a propriedade de reduzir a toxicidade de alguns metais (ex. Cu2+ e Al3+) para organismos aquáticos, incluindo peixes [3,4,5]. A formação de complexos organometálicos em solos pode influenciar nos ciclos biogeoquímicos. As SH podem aumentar a disponibilidade de fosfatos minerais insolúveis através da complexação de Fe e Al em solos ácidos e Ca em solos calcários [6]. Diferentemente dos complexantes ou ligantes simples (Cl-, CO32-, aminoácidos), as substâncias húmicas contém vários sítios complexantes por molécula, resultando alta estabilidade termodinâmica dos complexos formados, alterando sobremaneira a forma química (especiação) do metal em solução [7]. A capacidade de formar complexos com metais é devida principalmente, do alto teor de grupos funcionais contendo oxigênio, os quais incluem carboxílicos, fenólicos, enólicos e alcoólicos. Diversas técnicas têm sido utilizadas no estudo de complexação de metais por MON, dentre as quais se pode citar a voltametria [8,9,10]; potenciometria [11,12,13]; ultrafiltração [14,15] e cromatografia [16]. Todas essas técnicas possuem vantagens e limitações [17,1819,20]. A escolha de um método para especiação química influencia os resultados encontrados, pois os vá- rios métodos medem aspectos diferentes do sistema e operam sob condições diferentes. A ultrafiltração (UF) é um dos métodos citados na literatura para extrair e concentrar substâncias húmicas aquáticas [21]. Este procedimento também tem sido empregado para fracionar a matéria orgânica em diferentes tamanhos moleculares. Os solutos dissolvidos são separados por membranas de acordo com o tamanho molecular [22,23,24,25]. É um procedimento barato, versátil, não destrutivo e sem adição de reagentes, minimizando a possibilidade de alterações na amostra original [26]. Burba et al. (2001) [27], desenvolveram um procedimento de ultrafiltração em fluxo tangencial e simples estágio (UF-FT) capaz de discriminar a concentração do metal livre (Figura 1). O sistema UF-FT comparado com o UF convencional apresenta vantagens como trabalhar com sistemas abertos, redução de efeitos da polarização e/ou entupimento das membranas; menor volume do filtrado diminuindo o tempo de filtração e minimizando deslocamentos no equilíbrio da solução, além da maior rapidez na filtração (cerca de 2 mL min-1). Esse procedimento de ultrafiltração em fluxo tangencial é capaz de fornecer informações termodinâmicas ou cinéticas, as quais caracterizam as espécies metálicas ligadas à matéria orgânica pela utilização de reações de troca de ligante e/ou de metal, de acordo com o esquema da Figura 2. Os coeficientes de retenção RX (X= M, L ou ML) são parâmetros importantes na utilização da ultrafiltração para determinar a capacidade de complexação e constantes de estabilidade condicional de íons metálicos por ligantes naturais. A retenção do ligante e complexo pela membrana deve ser completa (RL=1 e RML=1), enquanto o íon metálico deverá passar através da membrana (RM=0). Assim, a concentração do metal livre será igual a [M] determinada no filtrado e [ML] será obtida pela diferença entre a [M]total e [M] [18,28]. Revista da Fapese, n. 2, p. 25-36, jul./dez. 2005 Utilização da ultrafiltração em fluxo tangencial na determinação das constantes de troca entre substâncias húmicas e íons Cu(II) Entretanto, a retenção de 100% de L e ML dificilmente é obtida, provavelmente devido à dimensão dos poros da membrana e do tamanho molecular da matéria orgânica. Pois, o tamanho varia com a configuração e carga, os quais por sua vez dependem do pH, força iônica e outras condições da solução [28]. Da mesma forma, tem-se encontrado valores de RM maiores que zero. Contudo, os valores de RM > 0 podem ser devidos a formação de hidroxicomplexos de metais, seguida do processo de adsorção dessas espécies na membrana. Entretanto, na presença de ligantes orgânicos espera-se competição entre as re- 27 ações de complexação e o decréscimo da importância do processo de adsorção e assim, o decréscimo real dos valores de RM [18]. A principal vantagem da ultrafiltração é não possuir limitação nem quanto à natureza do íon metálico, nem do ligante [15]. Além disso, os limites de detecção para os metais são limitados às sensibilidades das técnicas empregadas na determinação dos mesmos (ex. espectrometria atômica) [29]. O objetivo desse trabalho foi caracterizar substâncias húmicas extraídas de amostras de água e de solo Revista da Fapese, n. 2, p. 25-36, jul./dez. 2005 28 Luciane Pimenta Cruz Romão; Julio Cesar Rocha de diferentes regiões brasileiras por composição elementar e espectroscopia na região do infravermelho alem de utilizar o procedimento da Ultrafiltracao em Fluxo Tangencial para determinar constantes de troca entre metais originalmente complexados por substâncias húmicas e íons cobre(II) adicionados. 2. EXPERIMENTAL mento analítico proposto por BURBA et al. (2001) [27] ilustrado na Figura 1. Este procedimento baseia-se na utilização de um sistema de ultrafiltração tangencial (SARTORIUS Ultrasart X) equipado com membrana de polietersulfônica de 1 kDa (Gelman Pall-Filtron OMEGA), a qual impede a passagem das SH e dos complexos SH-M com tamanho molecular maior que 1 kDa. Logo, os íons metálicos livres não complexados às SH ou trocados por elas passam pela membrana [27]. 2.1 Amostragem As amostras de água foram coletadas no Rio Itapanhaú, município de Bertioga (IR-XAD 8), pertencente ao Parque Estadual da Serra do Mar (SP) e Rio Negro-AM (RN-XAD 8). As amostras foram acidificadas a pH 2,0 com solução de HCl concentrado para posterior procedimento de extração com resina XAD 8. As amostras de solo foram coletadas da Bacia do Médio Rio Negro (AM). Foram utilizadas duas amostras de solo, divididas em solo não alagável de Carvoeiro 1(RNS-1) e solo não alagável de Araçá 1(RNS-2). 2.2 Extração e purificação de Substâncias Húmicas Aquáticas(SHA)eSubstânciasHúmicasdeSolo(SHS) As SHA e SHS foram extraídas das amostras naturais, coletadas em diferentes regiões Brasileiras, de acordo com o procedimento recomendado pela International Humic Substances Society [2,30]. A purificação das SHA e SHS foi feita utilizando tubos de diálise e a secagem efetuada por liofilização utilizando um Savant modelo E-C. 2.3 Determinação das constantes de troca entre ions Cu(II) e Ni, Al e Fe complexados às substâncias húmicas Para o estudo de complexação entre o íon Cu(II) e matéria orgânica aquática, utilizou-se o procedi- As titulações foram feitas em volume de 200 mL de solução de SH 100 mg L-1 ou de água natural, ajustou-se o pH em 5,0 com solução de NaOH 0,1 mol L1 e força iônica em 0,1 mol L-1 com NaNO3. Utilizouse o sistema de ultrafiltração tangencial equipado com membrana de 1 kDa acima descrito. Antes da adição da solução de cobre, deixou-se o sistema bombeando por cerca de cinco minutos para condicionamento da membrana. A seguir, filtrou-se a primeira alíquota (cerca de 2 mL), a qual é correspondente ao tempo zero, ou seja, antes da adição da solução de cobre. Essa alíquota contém uma pequena quantidade de cobre e dos metais níquel, alumínio e ferro, originalmente presentes na matéria orgânica, correspondente à fração livre (não complexada a MOA) mais aquela fração ligada a MON, com tamanho molecular menor que 1 kDa. Volumes de 100µL a 5,0 mL de solução padrão de Cu(II) 9,45 10-3 mol L-1 foram adicionados à solução até concentração em Cu(II) de 4,47 10 -4 mol L-1 . Depois de alcançado cada equilíbrio, em 10 min, e com agitação permanente, alíquotas (cerca de 2 mL) das frações da solução foram coletadas contendo íons cobre isolados pelo procedimento de filtração mais os metais níquel, alumínio e ferro, correspondentes as frações dos metais não complexadas e trocadas pelos íons Cu(II). Os filtrados foram acidificados com solução diluída de HNO3 e em seguida os metais determinados por espectrometria de absorção atômica em forno de grafite GFAAS [31]. Revista da Fapese, n. 2, p. 25-36, jul./dez. 2005 Utilização da ultrafiltração em fluxo tangencial na determinação das constantes de troca entre substâncias húmicas e íons Cu(II) 2.4 Determinação dos metais Cobre, alumínio, ferro e níquel foram determinados utilizando espectrometria de absorção atômica em forno de grafite (GFAAS) utilizando soluções padrão mistas Titrisol-MERCK de acordo com as recomendações do fabricante. 2.5 Determinação da composição elementar A composição elementar das amostras de SHA e SHS foi determinada em relação ao conteúdo de carbono, hidrogênio, nitrogênio e oxigênio em analisador elementar CHNSO-CE Instruments, PERKIN ELMER, modelo EA 1110. 2.6 Espectroscopia na região do infravermelho Os espectros na região do infravermelho foram obtidos de pastilhas preparadas da mistura de brometo de potássio seco a 120oC com amostras de substâncias húmicas liofilizadas. As pastilhas foram obtidas submetendo-se essa mistura à pressão de 10t cm-2 em pastilhador de 14 mm de diâmetro. As medidas foram feitas utilizando-se espectrômetro NICOLET, modelo Impact 400 (região de 400 a 4000 cm-1). 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO 3.1 Composição elementar As razões atômicas H/C e C/N geralmente têm sido utilizadas para estimativa do grau de aromaticidade e de humificação de substâncias húmicas, respectivamente [3]. A Tabela 1 lista os resultados da composição elementar e razões molares H/C e C/N para SH extraídas de amostras de água e de solos de diferentes regiões. Quanto menor a razão H/C, maior a aromaticidade e quanto maior a razão C/N, maior o estado de humificação do material. Existem similaridades entre os valores das razões H/C das diferentes amostras de SHA e SHS, os quais estão próximos 29 aos valores disponíveis na literatura indicando elevada aromaticidade [6]. Dentre todas as amostras, devida à menor razão molar H/C, RN-XAD 8 pode ser caracterizada como mais aromática. A amostra IR-XAD 8 apresentou elevada razão molar C/N indicando ser a amostra mais humificada. Tabela 1 – Composição elementar (%), razões molares H/C e C/N de substâncias húmicas extraídas de amostras de águas (SHA) e de solos (SHS) coletadas em diferentes regiões brasileiras Amostras C H O N H/C C/N IR-XAD 8 37,0 4,3 41,0 1,2 1,4 35,4 RN-XAD 8 46,9 4,3 41,1 3,0 1,1 18,4 RNS-1 20,5 3,0 38,4 1,4 1,8 16,8 RNS-2 23,5 3,3 31,9 2,3 1,7 12,0 As demais amostras apresentaram comportamento semelhante quanto ao grau de humificação e, quanto às amostras de solo, RNS-1 e RNS-2, não foram caracterizadas diferenças entre os valores de razão C/N. 3.2 Infravermelho A Figura 3 mostra os espectros na região do infravermelho para as substâncias húmicas aquáticas e de solo. Os espectros apresentam bandas largas, comuns nos espectros de substâncias húmicas, atribuídas à extensiva superposição de absorções individuais [32]. As bandas largas de absorção na região de 3400 cm-1 podem ser atribuídas ao estiramento OH de fenóis e/ou ácidos carboxílicos e /ou estiramento NH de aminas. Bandas na região de 2900 cm-1 indicam a presença de estiramento CH de grupos alifáticos. As bandas nas regiões de 1630 e 1720 cm-1 são devidas a vibrações de carbonilas de grupos carboxilatos e/ou cetonas. Picos em torno de 1385 cm-1 e bandas na região de 1035-1100 cm-1 estão associados a deformações do grupo carboxilato e estiramento CO de álcoois, respectivamente [33]. Revista da Fapese, n. 2, p. 25-36, jul./dez. 2005 30 Luciane Pimenta Cruz Romão; Julio Cesar Rocha 3.3 Determinação dos coeficientes de retenção da membrana de 1 kDa Nos estudos de complexação de metal pela matéria orgânica utilizando o procedimento de Ultrafiltração tangencial (UF) é preciso que a retenção do ligante e do complexo pela membrana seja máxima (RL= 1) e a retenção do íon metálico, o qual passa pela membrana seja mínima (RM= 0). O coeficiente de retenção (R) das espécies pode ser calculado utilizando a equação onde X = M, L, ML e os sobrescritos s e f referem-se as concentrações de X na solução e nos filtrados, respectivamente [28]. Os testes para determinação da capacidade de retenção do ligante foram feitos traçando curvas analíticas com amostras de SHA e SHS e lendo as absorbâncias nos filtrados e nas soluções originais por espectrofotometria de absorção molecular em 254 nm. Os valores de retenção do ligante pela membrana, das amostras analisadas a pH 5,0, foram superiores a 0,98. Os testes para determinação da capacidade de retenção de cobre foram feitos por espectrometria de absorção atômica em forno de grafite fazendo adições de concentração conhecida do metal em solução, nas mesmas condições experimentais, porém sem substâncias húmicas (“solução branco”). Em seguida, foi determinada a concentração de cobre na “solução branco” e no filtrado. O coeficiente médio de retenção de cobre na membrana em pH 5,0, foi menor que 0,012. Revista da Fapese, n. 2, p. 25-36, jul./dez. 2005 Utilização da ultrafiltração em fluxo tangencial na determinação das constantes de troca entre substâncias húmicas e íons Cu(II) Van Den Bergh et al., (2001) [29] determinaram os coeficientes de retenção em membranas de 1 kDa para íons metálicos, em pH 4,0-4,8, menores que 0,02 e maiores que 0,95 para retenção das substâncias húmicas. Esses resultados corroboram com os deste trabalho, os quais mostram a eficiência do procedimento de ultrafiltração na diferenciação do metal complexado pela matéria orgânica (retido na membrana) do metal isolado no filtrado. 3.4 Determinação das constantes de troca por ultrafiltração tangencial Nos ambientes naturais várias espécies metálicas estão presentes como formas livres ou complexadas por ligantes orgânicos ou inorgânicos. Logo, durante o processo de complexação, há uma natural competição entre essas espécies pelos sítios ligantes disponíveis. Um melhor entendimento dos fatores, os quais influam no destino, transporte e acúmulo de espécies metálicas, é importante na avaliação do comportamento de metais em sistemas aquáticos. Utilizando-se o sistema de ultrafiltração tangencial equipado com membrana de 1 kDa (Figura 1) e aplicando um modelo de cálculo, é possível estimar as constantes termodinâmicas de troca entre espécies metálicas complexadas às SH [27,31]. Esse modelo foi empregado no tratamento dos dados para determinação de constantes de troca entre íons Cu(II) adicionados e espécies metálicas originalmente complexadas por substâncias húmicas. Considerando que no estado de equilíbrio a lei de ação das massas é obedecida, de acordo com a equação 1, é possível estimar os valores das constantes de troca entre as espécies metálicas Ni, Al e Fe por íons Cu(II). (1) 31 As concentrações [M] e [Cu] são determinadas nas alíquotas dos filtrados (cerca de 2 mL). [SH – M]. A concentração de metal total, [M]total , é a concentração de metal originalmente complexado pelas SH determinada na solução original; [SH – Cu] = [Cu]total – [Cu] e [Cu]total é o somatório das concentrações de íons Cu(II) adicionados em cada intervalo de tempo. A partir dos dados das Figuras 4 e 5 foram calculados os valores das constantes de troca listados na Tabela 2, os quais caracterizam a troca dos metais Al, Fe e Ni complexados pelas SH e íons Cu(II). De acordo com a equação 1, o valor da constante de troca é inversamente proporcional à estabilidade do complexo SH – M (M = Al, Fe, Ni). Ou seja, altos valores de constante de troca indicam menor estabilidade do complexo SH – M, enquanto baixos valores indicam maior estabilidade. As constantes de troca entre íons Cu(II) e o Fe foram menores que 1 nas amostras RNS-1 e RNS-2, indicando maior estabilidade desses complexos SH-Fe que os complexos SH-Cu. Para alumínio e níquel as constantes de troca foram superiores a 1 em todas as amostras, indicando menor estabilidade dos complexos SH-Al e SH-Ni que os complexos SH-Cu. No caso do níquel ainda, as constantes de troca foram bem superiores às constantes dos íons Al e Fe, indicando serem os complexos SH-Ni os de menor estabilidade, ou seja, o níquel nas amostras é mais facilmente trocado por íons Cu(II) do que alumínio e ferro. Os resultados das constantes de troca dos complexos, apresentados na Tabela 3, permitem estabelecer a seguinte ordem de Ktroca para os metais: Fe<Al<<Ni. Estes resultados são corroborados por Burba et al. (2001) [27], quando da caracterização “on site” de águas naturais por reações de troca com íons Cu(II) e também por Mandal et al. (1999) [34], quando da utilização da resina de troca Chelex-100 no estudo de competição de cobre e de cobalto com íons níquel originalmente complexados por ligantes orgânicos, os quais caracterizaram maior afinidade dos sítios pelos íons cobre adicionados. Revista da Fapese, n. 2, p. 25-36, jul./dez. 2005 32 Luciane Pimenta Cruz Romão; Julio Cesar Rocha Tabela 2– Constantes de troca entre íons Cu(II) e espécies metálicas (Ni, Al, e Fe) em substâncias húmicas extraídas de amostras de água e de solos coletadas em diferentes regiões brasileiras Amostras IR-XAD 8 1,27 Alumínio [M]a (mmol L-1) 1,19 x 10-1 1,54 Ferro [M]a (mmol L-1) 4,73 x 10-1 RN-XAD 8 1,60 1,29 x 10-1 1,45 RNS-1 1,00 1,84 x 10-1 RNS-2 1,24 1,45 x 10-1 K troca K troca Níquel K troca —b [M] (mmol L-1) 5,96 x 10-5 8,71 x 10-2 4,33 7,87 x 10-5 0,70 1,38 —b 8,14 x 10-5 0,87 2,51 6,04 6,80 x 10-5 Revista da Fapese, n. 2, p. 25-36, jul./dez. 2005 Utilização da ultrafiltração em fluxo tangencial na determinação das constantes de troca entre substâncias húmicas e íons Cu(II) 4. CONCLUSÕES A caracterização feita pelas razões molares C/N e H/C indicaram maior humificação e aromaticidade da matéria orgânica presente nas amostras aquáticas que nas amostras de solo. Os espectros de infravermelho apresentaram bandas largas, comuns nos espectros de substâncias húmicas, atribuídas às superposições de absorções individuais e similaridades entre os grupos funcionais presentes nas estruturas das substâncias húmicas aquáticas e de solos. 33 nica do metal isolado no filtrado, pelo alto coeficiente de retenção do ligante (R= 0,98) e baixo valor do coeficiente de retenção do metal (R= 0,02). Resultados de experimentos de troca entre íons Cu(II) adicionados e espécies metálicas (Ni, Al e Fe) originalmente complexadas por substâncias húmicas, permitiram estabelecer a seguinte ordem decrescente de estabilidade relativa do complexo SH-metal: Fe<Al<<Ni AGRADECIMENTOS O procedimento de ultrafiltração com fluxo tangencial utilizando membrana polietersulfônica com porosidade 1 kDa proposto neste trabalho é eficaz na diferenciação do metal retido pela matéria orgâ- Os autores gostariam de agradecer a CAPES, FAPESP, CNPq e FUNDUNESP pelo suporte financeiro. Revista da Fapese, n. 2, p. 25-36, jul./dez. 2005 34 Luciane Pimenta Cruz Romão; Julio Cesar Rocha REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] BURBA, P.; ROCHA, J. C.; KLOCKOW, D. Labile complexes of trace metals in aquatic humic substances investigations by means of ion exchangebased flow procedure. Fresenius J. Anal. Chem., v. 349, p. 800-807, 1994. [2] ROCHA, J. C.; ROSA, A. H.; FURLAN, M. An alternative methodology for the extraction of humic substances from organic soils. J. Braz. Chem. Soc., v. 9, p. 51-56, 1998. [3] FRIMMEL, F. H. Complexation of paramagnetic metal ions by aquatic fulvic acids. In: BROEKAERT, J. A. C.; GÜCER, S.; ADAMS, F. (Ed.). Metal speciation in the environment. Berlim: Springer, 1990. p. 57-69. [4] EINAX, J.; KUNZE, C. Complexation capacity of aquatic systems in dependence on different ligands and heavy metals- electroanalytical investigations and statistical evaluation. Fresenius J. Anal. Chem., v. 354, p. 895-899, 1996. [5] ZHANG, Y. J.; BRYAN, N. D.; LIVENS, F. 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Revista da Fapese, n. 2, p. 25-36, jul./dez. 2005 36 Luciane Pimenta Cruz Romão; Julio Cesar Rocha [32] POPPI, N. R.; TALAMONI, J. Estudo dos ácidos húmico e fúlvico, extraídos de solos, por espectroscopia de infravermelho. Química Nova, n. 15, v. 4, p. 281-285, 1992. [33] ARAÚJO, A. B.; ROSA, A. H.; ROCHA, J. C.; ROMÃO, L. P. C. Distribuição de metais e determinação da constante de troca de frações húmicas aquáticas de diferentes tamanhos moleculares. Quím. Nova, v. 25, p. 1103-1107, 2002. [34] MANDAL, R.; SEKALY, A. l. R.; MURIMBOH, J.; HASSAN, N. M.; CHAKRABARTI, C. L.; BACK, M. H.; GRÉGOIRE, D. C.; SCHROEDER, W. H. Effect of the competition of copper and cobalt on the lability of Ni(II)-organic ligand complexes, Part II: in freshwaters (Rideau River surface waters). Anal. Chim. Acta, v. 395, p. 323-334, 1999. Revista da Fapese, n. 2, p. 25-36, jul./dez. 2005 Revista da Fapese de Pesquisa e Extensão, v. 2, p. 37-50, jul./dez. 2005 37 Fatores de atração do IDE na América Latina: o papel da abertura econômica José Ricardo de Santana1 R e s u m o Guilherme Cavalcante Vieira2 E ste artigo analisa empiricamente os fatores determinantes de atração do Investimento Direto Estrangeiro (IDE) nos países da América Latina no período 1970-2000, com ênfase para o papel da abertura, no contexto das reformas econômicas liberalizantes realizadas pelos países deste continente nas duas últimas décadas. Para tal, foram utilizadas variáveis explicativas do fluxo de IDE com resultados significativos, extraídas da literatura sobre o tema, e variáveis de abertura econômica também retiradas da literatura corrente. As estimativas obtidas mostram que, ao contrário dos resultados inconclusos da literatura, a abertura, quando apropriadamente medida, apresenta efeitos positivos sobre o fluxo de IDE. PALAVRAS-CHAVE: Investimento Direto Estrangeiro, Reformas Econômicas, Abertura. 38 José Ricardo de Santana; Guilherme Cavalcante Vieira 1. INTRODUÇÃO O investimento direto estrangeiro (IDE) é considerado como o tipo de fluxo de capital que menos efeitos adversos traz para o país que o recebe. No caso da América Latina, o IDE tem sido uma importante fonte de financiamento externo para o seu crescimento, reduzindo os problemas com a carência de poupança doméstica. Em particular a partir dos anos 90 observou-se uma elevação significativa nos fluxos de IDE, resultando em um crescimento acentuado desse fluxo de capital, entre 1970 e 2000, para todos os grupos de países, conforme apresenta a Tabela 1. Percebe-se, contudo, que o fluxo de IDE tem se voltado para os países de renda alta, que concentram mais de 80% deste, a despeito dos demais grupos de países. Em relação à América Latina, a participação no fluxo total de capitais caiu de mais de 10%, em 1970, para cerca de 6%, em 2000. Ou seja, há uma concentração relativa do fluxo de IDE em países onde são menores as deficiências de poupança doméstica. Entender o que determina o fluxo de IDE é fundamental, até para nortear políticas de atração de investimento estrangeiro. Na literatura, contudo, ainda persistem controvérsias acerca dos determinantes deste fluxo de capital. Em particular, no que toca o papel da abertura econômica, ainda um aspecto não resolvido neste tema, sobretudo no caso da América Latina, um dos continentes onde houve um processo intenso de reformas econômicas. O objetivo deste artigo é estudar, a partir do caso latino americano, os determinantes do fluxo de IDE, com ênfase no papel das reformas econômicas. Analisa-se se os determinantes presentes na literatura são importantes para motivar o incremento do fluxo de IDE para a América Latina e, em particular, se as reformas econômicas impactam positivamente nesse fluxo. Além dessa introdução, o artigo está composto de mais quatro seções. A segunda seção faz uma breve revisão da literatura sobre os determinantes do IDE, discute indicadores de abertura e apresentas as reformas econômicas recentes ocorridas na América Latina. A terceira seção propõe um modelo econométrico e discute a base de dados utilizada. A quarta seção apresenta os resultados das estimativas. Uma seção final resume as conclusões. Tabela 1: Fluxo de Investimento Direto Estrangeiro, 1970-2000 1970 2000 Países de Renda Baixa Valor (US$ bilhões) 0,26 Participação (%) 2,54 Países de Renda Média 1,94 18,82 160,13 12,88 América Latina 1,08 10,52 75,09 6,04 7,01 68,11 1001,30 80,55 10,29 100,00 1243,08 100,00 Variáveis Países de Renda Alta Total Valor (US$ bilhões) 6,56 Participação (%) 0,53 Fonte: World Bank (2003). Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, mar./jun. 2005 Fatores de atração do IDE na América Latina: o papel da abertura econômica 2. INVESTIMENTO DIRETO ESTRANGEIRO E REFORMAS ECONÔMICAS NA AMÉRICA LATINA 2.1 Fatores de atração do IDE A literatura sobre os movimentos de capital tem como um dos pontos principais a análise dos determinantes do investimento direto estrangeiro (IDE), investigando a forma como isso pode promover melhoras na alocação de recursos e na competitividade dos países. A atração de capitais externos é de fundamental importância para os países em desenvolvimento, que em geral têm problemas para financiar seus investimentos com poupança doméstica. Embora alguns fatores sejam consensuais, a controvérsias sobre os determinantes do IDE persiste. Segundo Blonigen (2005), observando os fatores ao nível da firma, seriam cinco os principais fatores externos que poderiam interferir sobre a decisão de realizar um (IDE): a taxa de câmbio, o nível de impostos, as instituições (do país receptor), o nível de abertura ao comércio (do país receptor) e as características das relações comerciais entre os países envolvidos. Contudo, a ênfase do autor recai de fato sobre o papel da abertura. A longo prazo, as variações na taxa de câmbio entre dois países não devem interferir sobre as decisões de investimento entre eles. Caso haja uma valorização da moeda do país que realizar o investimento, a valorização do poder de compra de ativos desse montante de investimento compensará a desvalorização da capacidade de repatriar os lucros para o país de origem. Quanto ao nível de impostos, embora haja uma tendência de que sendo estes maiores, menores serão os fluxos de IDE, alguns estudos sugerem que isso pode não se verificar. Quando os países de origem do IDE têm um sistema de crédito amplamente desenvolvido, a decisão de realizar tal investimento tornase menos sensível aos níveis de impostos. As instituições dos países receptores também exercem uma forte influência positiva sobre os ní- 39 veis de IDE, em virtude de três motivos principais: i) instituições consolidadas atuam como uma proteção legal aos investimentos realizados; ii) instituições consolidadas garantem um melhor funcionamento dos mercados e da economia como um todo, através do cumprimento de contratos, respeito às “regras do jogo”; e iii) há uma associação implícita para os investidores entre o nível de desenvolvimento das instituições e o nível de infra-estrutura existente no país. Contudo, por conta da dificuldade em medir quantitativamente o grau de qualidade das instituições, é difícil estimar objetivamente a influência delas sobre os fluxos de IDE. Quanto ao nível de abertura ao comércio, quanto maior esta, maior será a capacidade de atração de IDE. Isso ocorre porque uma grande parte dos ativos utilizados no IDE são adquiridos através de importação. Desse modo, empresas pequenas teriam maior dificuldade (ou, até, total impedimento) em adquirir esses ativos importados, diminuindo o montante dos investimentos realizados. Por último, as características das relações comerciais entre os países também exerceriam influência sobre os fluxos de IDE. Exportações lidam com menores custos fixos e maiores custos variáveis (insumos, mão-de-obra, transporte, tarifas, etc.), quando comparados ao IDE, que lida com maiores custos fixos (investimento em planta, instalações, etc.) e menores custos variáveis. Portanto, é de se esperar que a demanda (escala) de um determinado país por um produto determine se esse mercado será atendido através de exportações ou através de produção direta (IDE). Ou seja, a abertura nesse caso parece ter efeito significativo como determinante do IDE. Esse papel da abertura, contudo, não é consensual entre os autores, que destacam outros fatores determinantes. De acordo com Dunning e Narula (1996), os países podem ser classificados em alguns estágios de desenvolvimento, de acordo com a capacidade destes em absorverem ou realizarem investimentos diretos estrangeiros. Entre os fatores apontados como Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, jul./dez. 2005 40 José Ricardo de Santana; Guilherme Cavalcante Vieira importantes estão: a dotação de recursos naturais3 , o tamanho dos mercados e as políticas governamentais. Outro fator importante para entender os fluxos de IDE, apontado por Graham e Krugman (1993), seriam as barreiras ao comércio exterior. Lim (2001) destaca não apenas tais barreiras, mas o grau de abertura financeira dos países, na linha apresentada por Blonigen (2005). Em relação à abertura, merecem destaque os resultados não conclusivos sobre este fator, apresentados no trabalho de Larrain (2004). correlacionado com o IDE em praticamente todos os estudos. Além deste, a literatura tem sido cada vez mais consensual em relação a fatores como a estabilidade macroeconômica e a qualidade dos recursos produtivos. O grau de abertura econômica continua ainda como fator controverso, até por problemas de medida. Outros fatores apontados como importantes para determinar o IDE seriam o custo da mão-de-obra, os incentivos fiscais e fatores institucionais, relacionados a aspectos regulatórios, burocráticos e jurídicos, também na linha apresentada por Blonigen (2005). Contudo, Lim (2001) mostra que esses fatores aparecem na literatura com resultados não conclusivos, em particular devido aos problemas de medida. O problema de mensuração da abertura econômica pode conduzir inclusive a conclusões diversas acerca do papel deste fator como determinante do IDE. Na literatura, o processo de abertura econômica é mensurado a partir de indicadores de resultado e de indicadores de política. No primeiro caso, são consideradas medidas como o fluxo de capital em relação ao PIB. No segundo caso, são construídos indicadores quantitativos que buscam mensurar o grau de liberalização estabelecido a partir de políticas governamentais4 . Os trabalhos da UNCTAD (1998) e (1999) também investigam os determinantes do IDE entre os quais constam alguns dos fatores já mencionados, como o tamanho do mercado, o custo da mão-deobra e a liberalização. Ressalte-se que, segundo a UNCTAD (1998), a aceleração do processo de liberalização nos países passou a chamar atenção para políticas que poderiam afetar o IDE, mas que não eram consideradas nesse contexto, no passado. É o caso de políticas macroeconômicas, cujo resultado é a maior estabilidade da taxa de inflação, e políticas de organização da estrutura produtiva, que afetam a oferta, a organização e a qualidade dos recursos produtivos. Nesse aspecto destaca-se o fator capital humano, cuja qualidade está relacionada ao número de anos de estudo da força de trabalho. Nessa literatura, merece destaque o tamanho do mercado, que aparece significativa e positivamente 2.3 Indicadores de abertura econômica No caso dos indicadores de resultado, embora se trabalhe diretamente com o fluxo de capital na economia, não é possível avaliar corretamente seus determinantes. Havendo, por exemplo, uma oferta abundante de recursos no mercado internacional, o aumento do fluxo não reflete necessariamente uma alteração nas políticas do país de destino. E mesmo que haja alterações nas políticas, é preciso verificar a intencionalidade em relação ao resultado. É o caso por exemplo de políticas de estabilidade macroeconômica, como reforma tributária, cuja finalidade não é o aumento dos fluxos de capitais, embora se possa obter esse resultado. No caso da redução das restrições nas transações das contas comercial e de capital, o objetivo direto é Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, mar./jun. 2005 Fatores de atração do IDE na América Latina: o papel da abertura econômica o incremento dos fluxos financeiros. Dessa forma, a abertura funciona como um dos fatores que motivam os fluxos de capitais. Daí a necessidade de diferenciar os fluxos de capital das políticas que podem influenciá-los, mensuradas através dos indicadores de política, tais como os índices propostos por Lora (1997) e Morley et al, (1999). Os indicadores de Lora (1997) e de Morley et al, (1999) buscam quantificar as diversas reformas estruturais ocorridas na América Latina. Consideramse reformas estruturais as mudanças em regulamentações, tarifas, taxas ou nos controles de capital que afetam decisões microeconômicas. Tais reformas buscaram uma maior eficiência na alocação dos recursos produtivos, eliminando ou reduzindo distorções causadas por políticas que limitavam o funcionamento do mercado ou impunham custos de transação às atividade produtivas. Nesse sentido, as reformas estruturais tiveram como característica abrir a economia à competição externa, reduzir o papel do governo na alocação de recursos e diminuir os efeitos da taxação na tomada de decisão dos agentes privados. A idéia desses indicadores é medir a relativa neutralidade das políticas em relação ao funcionamento dos mercados. A construção destes foi motivada pela possibilidade de dispor de medidas quantitativas para determinar o impacto econômico das reformas. Os indicadores trabalham numa escala entre 0 e 1, onde o valor superior representa a menor interferência no funcionamento dos mercados. O intervalo é definido dentro da amostra estudada, sendo o limite superior de uma determinada reforma definido pelo país mais aberto em um ponto no tempo5. O indicador de Lora (1997) inclui as reformas comercial, financeira e tributária, além das privatizações e das mudanças ocorridas no mercado de trabalho. O indicador geral é composto pela mé- 41 dia das cinco reformas referidas, sendo que a medida de cada reforma também obedece à escala entre 0 e 1. Pelos propósitos deste trabalho, será considerada apenas a medida da reforma comercial, tendo em vista que as demais reformas, embora possam afetar o fluxo internacional de bens e fatores de produção direcionados à economia em questão, dizem respeito a mudanças nos mercados domésticos. A reforma comercial, observada nos países latino-americanos, principalmente entre 1985 e 1995, considera a sensível redução nas tarifas média e teto, além da diminuição das barreiras não tarifárias, como as exigências de repatriar receitas, a imposição de sobretaxas e a utilização de taxas múltiplas de câmbio. O indicador de Lora teve um pequeno prolongamento do período, resultando em uma amostra de vinte e seis países para período de 1985 a 1999. O trabalho de Morley et al, (1999) faz uma extensão do indicador de Lora em dois aspectos. Por um lado, acrescenta-se à base de dados o período de 1970 a 1984. Por outro, Morley et al, (1999) incluem um indicador que capta os controles sobre as transações de capital, que inexiste em Lora. Além disso, a fim de refletir melhor as suas reformas de interesse, Morley et al, (1999) modificam algumas das medidas que compõem o indicador de Lora. O indicador de Morley et al, (1999) considera as reformas comercial, financeira doméstica e tributária, bem como as privatizações, como em Lora. Mas exclui as mudanças mercado de trabalho e inclui a liberalização financeira internacional. O indicador geral, como anteriormente, é composto pela média das cinco reformas referidas, onde a medida de cada reforma obedece a escala entre 0 e 1. A medida da reforma comercial está composta pelo nível médio das tarifas e pela sua dispersão. Não estão incluídas nesse caso restrições não quantitati- Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, jul./dez. 2005 42 José Ricardo de Santana; Guilherme Cavalcante Vieira vas, o que pode constituir um problema. De um lado, porque tais restrições podem se mostrar mais importantes que as próprias tarifas para restringir as importações dos países. De outro, se há uma tarifa muito elevada, a sua redução, embora apareça como liberalização, de fato não impacta o movimento de importações. Ou seja, como admitem Morley et al, (1999, p. 4), a medida utilizada, embora represente o direcionamento da reforma comercial, pode não estar captando o real nível de proteção entre os países e, por consequência, pode superestimar a liberalização. A medida de liberalização financeira internacional está composta por quatro componentes: i) controle do investimento externo, ii) limites nas remessas de lucros e juros, iii) controles na captação de créditos externos, e iv) saída de capital. Trata-se de uma definição mais subjetiva, na qual se atribuem valores aos controles descritos no Balance of Payments Arrangements, do FMI. O problema com este procedimento está na eventual possibilidade de subestimar ou superestimar a importância prática da regulamentação descrita. A amostra de Morley et al, (1999), a ser utilizada neste estudo, está composta de dezessete países, abrangendo o período 1970-1995, conforme apresentada na Tabela 2. Tabela 2: América Latina – Amostra de países Grupo América Latina (17 países) Países Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Jamaica, México, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela. 2.2 Reformas econômicas na América Latina As reformas adotadas na América Latina foram de natureza macroeconômica e microeconômica. No primeiro tipo podem ser enquadradas aquelas reformas que se referem ao controle do déficit fiscal, mudanças na política monetária ou controle do câmbio. No segundo tipo estão incluídas as reformas relacionadas às mudanças na regulamentação de setores, nas tarifas de importação, nos impostos ou nos controles de capitais. As reformas microeconômicas podem ser dividas em cinco áreas principais: reforma comercial, do sistema bancário, do mercado de capitais, reforma tributária e reforma trabalhista. A reforma comercial consiste na abertura do mercado interno à concorrência dos produtos importados. Essa abertura foi amplamente realizada pelos países latino-americanos. Entre 1985 e 1995, segundo Lora (1997), as tarifas médias cobradas caíram de 41,6% para 13,7% nesse grupo de países e as tarifas máximas sofreram uma redução de uma média de 83,7% para 41% no mesmo período. As restrições não-tarifárias, que afetavam 37,6% das importações no período anterior às reformas, passaram a afetar somente 6,3% em 1995. A reforma do sistema bancário tem como principais objetivos a eliminação dos programas de créditos preferenciais, a redução da taxa de depósito compulsório, a eliminação de controles sobre as taxas de juros cobrada no mercado e a implantação de modernos sistemas de regulação sobre o setor. As três primeiras medidas têm por fim reduzir a atuação do governo nessa área. A última delas (implantação de modernos sistemas de regulação), ao contrário do que possa parecer, não vai de encontro às outras medidas. Seu objetivo específico é criar maior solidez entre as instituições financeiras, evitando a falência dos bancos e prejuízos para os clientes. A reforma do mercado de capitais consiste em retirar os controles às entradas e saídas de capitais. O objetivo dessa reforma é aumentar as entradas de capitais estrangeiros no país. Juntamente com a abertura comercial, essa foi a área de reforma que mais apresentou avanço entre os países da região. Nenhum país do continente apresenta controles dos movimentos de capitais. Apenas o Chile adotou esses controles, mas apenas por um curto período de tempo. Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, mar./jun. 2005 Fatores de atração do IDE na América Latina: o papel da abertura econômica A reforma tributária busca maior neutralidade, simplificação legal e administrativa, e volume de arrecadação, além de maior desoneração dos setores exportadores. Durante o período de reformas 21 países latino-americanos – entre os quais o Brasil não se inclui – adotaram o sistema de imposto sobre valor adicionado (IVA), que é tido como um dos modelos mais eficientes dentre os existentes. A vantagem desse sistema está na redução de uma série de distorções nas decisões de investimento e na estrutura produtiva, ao contrário do que se verifica no sistema brasileiro, que acaba por estimular a verticalização da produção, o que tende a tornar as indústrias menos produtivas. A legislação trabalhista adotada na maioria dos países tem como objetivo proteger o trabalhador e garantir-lhe uma série de direitos. Entretanto, as restrições impostas aos empregadores oneram a contratação/demissão, estimulam o trabalho informal e aumentam o desemprego. A reforma trabalhista objetiva reduzir esses custos, os custos não-salariais, e facilitar o trabalho temporário. Essa foi, juntamente com a reforma tributária, a área que menos apresentou progresso dentre os países latino-americanos. Apenas cinco países realizaram mudanças significativas nessa área: Argentina, Colômbia, Guatemala, Panamá e Peru. As áreas que mais caminharam na direção das reformas liberalizantes nos países da América Latina foram o mercado comercial (bens e serviços) e o mercado de capitais. Talvez isso tenha ocorrido, por um lado, por causa da resistência que há em grande parcela da população desses países em relação às reformas nas áreas tributária e trabalhista, sobretudo em relação à última. Por isso as autoridades dos países acabavam realizando as reformas possíveis de serem feitas. 43 Por outro lado, aquelas áreas que mais avançaram nas reformas tiveram papéis ativos na política econômica desse grupo de países durante os últimos 15 anos, o que tornou essas reformas fundamentais para o equilíbrio macroeconômico de algumas economias. A abertura comercial ajudou na manutenção da estabilidade de preços – através do abastecimento e da concorrência sempre presente dos produtos importados – e a liberalização da conta de capitais tornou possível o equilíbrio do Balanço de Pagamentos por conta da maciça entrada de capitais. Essa entrada foi estimulada pelas privatizações, que também fazem parte do processo de liberalização, mas também aconteceu através de investimentos diretos estrangeiros (IDE), intensificados por causa do conjunto de reformas como um todo. O Gráfico 1, abaixo, mostra a evolução das reformas (geral e por área específica) no grupo de países estudados de acordo com o indicador de Morley et al, (1999). A linha geral das reformas mostra uma tendência ascendente durante todo período estudado – com exceção da primeira metade da década de 1980, por causa da Crise da Dívida sofrida por esses países. O período de maior abertura no continente ocorreu no final dos anos 80, com destaque para a reforma financeira, a abertura comercial e a abertura financeira. A situação dos países latino americanos em relação às reformas pode ser percebida a partir do Gráfico 2. A Venezuela destaca-se como o país que menos reformou a sua economia. Argentina e Uruguai aparecem como os países que mais haviam avançado nas reformas direção da abertura econômica. A Argentina tornou-se um dos marcos do continente, chegando inclusive a dolarizar a sua economia. E o Uruguai assumiu a posição de um dos países mais liberais em relação ao fluxo de capitais financeiros. Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, jul./dez. 2005 44 José Ricardo de Santana; Guilherme Cavalcante Vieira Gráfico 1: América Latina – Indicador de abertura econômica, 1970-1995 Gráfico 2: América Latina – Indicador de abertura econômica por países, 1995. Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, mar./jun. 2005 Fatores de atração do IDE na América Latina: o papel da abertura econômica 45 3. MODELO EMPÍRICO E DESCRIÇÃO DOS DADOS está representado pelo indicador de reformas construído por Morley et al, (1999). 3.1 Modelo econométrico O modelo proposto baseia-se na especificação de Larrain (2004)8, que relaciona o logaritmo do IDE com as variáveis explicativas acima mencionadas, tomando o formato especificado na equação (1). O modelo proposto neste trabalho avalia os determinantes do investimento direto estrangeiro (IDE)6 . No que se refere às variáveis explicativas, buscou-se um modelo simplificado, considerando as principais variáveis presentes na literatura7 , excluindo-se aquelas cujos resultados empíricos anteriores são apontados como não conclusivos. Dessa forma, foram incluídas como variáveis explicativas: o tamanho do mercado, a escolaridade da mão-de-obra e a instabilidade econômica. O grau de abertura da economia, embora não apareça com resultados conclusivos na literatura, foi também incluído, a fim de verificar os efeitos encontrados a partir de um indicador de regra. O tamanho do mercado, apontado como variável mais robusta nesse tipo de especificação, está representado no modelo pela população (POP). Para refletir a qualidade dos recursos produtivos, foi considerado o grau de escolaridade (u), representado pela taxa de matrículas no ensino médio. Para representar a volatilidade econômica, utilizou-se o desvio padrão da taxa de inflação (óp), representando um indicador de estabilidade macroeconômica. Por fim, para o grau de abertura da economia, são utilizados dois indicadores. Como indicador de resultado, utiliza-se o fluxo de comércio exterior em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). Já o indicador de regra 1n (IDE)it = β0 + β1 . 1n (POP)it + β2.(u)it + β3. (σπ)ιτ + β4 . (ABERTURA)it + εit (1) Na estimação foi aplicada a metodologia de painel. Esse método permite controlar as diferenças invariáveis no tempo entre países, as quais decorrem de características não observáveis, removendo o viés resultante da correlação entre estas características e as variáveis explicativas9. Foram realizadas cinco regressões: (1) mínimos quadrados ordinários (MQO) com dados empilhados, sem inclusão do indicador de abertura; (2) MQO com dados empilhados, incluindo o indicador de resultado para a abertura; (3) modelo de estimação em painel incluindo o indicador de resultado para a abertura; (4) MQO com dados empilhados, incluindo o indicador de regra para a abertura; (5) modelo de estimação em painel incluindo o indicador de regra para a abertura. No que se refere aos modelos em painel, as estimativas com efeitos fixos são calculadas a partir das dife- Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, jul./dez. 2005 46 José Ricardo de Santana; Guilherme Cavalcante Vieira renças dentro de cada país ao longo do tempo, considerando-se então o R2 dentro do grupo. Já no modelo de efeitos aleatórios as estimativas incorporam informações não apenas das diferenças observadas dentro dos países, mas também ao longo do tempo, gerando estimadores mais eficientes. Nesse caso, toma-se o R2 total, que considera variação não só intra como também intergrupos10 . O modelo de efeitos aleatórios é consistente apenas se o efeito específico de país não for correlacionado com outras variáveis explicativas, o que pode ser indicado pelo teste de Hausman. A hipótese nula do teste é de que não existem diferenças significativas entre os parâmetros estimados por efeitos fixos em relação aos estimados por efeitos aleatórios, sendo o valor calculado da estatística comparado ao valor crítico de uma distribuição qui-quadrado. Caso a hipótese seja rejeitada, haverá uma diferença sistemática requerendo a inclusão da variável omitida, que é o efeito fixo país. 3.2 Bases de dados A amostra utilizada, composta por 17 países para os quais estavam disponíveis os indicadores de regra construídos por Morley et al, (1999), está descrita na Tabela 2. Foram utilizadas, para cada um dos países, sete observações, com intervalo de cinco anos, quais sejam 1970, 1975, 1980, 1985, 1990, 1995 e 2000. A especificação básica de painel tem i = 1,..., 17 e t = 1,...,7. Os dados foram obtidos a partir do World Development Indicators 2002, do World Bank (2003). Os dados originais do fluxo de capitais privados e do IDE, em dólares correntes, foram convertidos em dólares constantes de 1995, pelo mesmo procedimento de deflação do PIB. As variáveis estão expressas em logaritmo. No que se refere às variáveis explicativas, a população está expressa em logaritmo. A escolaridade da força de trabalho está representada pela taxa de matrícula no ensino secundário11 . Para medir a instabilidade econômica tomou-se desvio padrão do deflator implícito do PIB. Os dados consideram os cinco anos anteriores, incluindo o período da observação. Por fim, em relação à abertura o indicador de resultado considera os fluxos de exportações e importações em relação ao PIB. O índice de regra foi descrito na seção 2.2. A Tabela 3 resume as estatísticas das variáveis utilizadas. Tabela 3: Sumário das Estatísticas Descritivas , 1970-2000 Variáveis Investimento Direto Estrangeiro – ln(IDE) Média Desvio 19,26 Padrão Mínimo Máximo 1,85 14,84 24,42 Num. Obser. 79 Dimensão do Mercado – ln(POP) 16,12 1,17 14,36 18,95 119 Escolaridade da força de trabalho – (u) 42,57 17,20 8,41 82,42 101 105,64 551,21 0,32 5087,77 189 42,21 18,61 11,60 87,47 85 0,66 0,21 0,19 1,00 102 Instabilidade econômica – (óp) Indic. abertura RESULTADO – (ABERTURA) Indic. abertura REGRA – (ABERTURA) Fonte: World Bank (2003). Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, mar./jun. 2005 Fatores de atração do IDE na América Latina: o papel da abertura econômica 4. DETERMINANTES DO INVESTIMENTO DIRETO ESTRANGEIRO NA AMÉRICA LATINA Nesta seção são apresentadas as estimativas para o modelo proposto na equação (1). O objetivo é analisar os fatores determinantes mais importantes na atração de Investimento Direto Estrangeiro (IDE) para o caso latino americano. Busca-se analisar a importância da abertura econômica como fator determinante, fazendo-se a comparação de indicadores de resultado com indicadores de regra. A Tabela 4 traz as estimativas dos determinantes do IDE na América Latina, no período 1970 a 2000. A primeira regressão é uma estimativa em mínimos quadrados ordinários (MQO) com dados empilhados, sem inclusão de indicadores de abertura econômica. As demais regressões fazem inclu- 47 são de indicadores de abertura. Nas regressões (2) e (3) está incluído o indicador de resultado fluxo de comércio, conforme proposto por Larrain (2004). Inicialmente, na regressão (2), é feita a regressão por MQO com dados empilhados. Em seguida, na regressão (3), apresenta-se o modelo mais adequado das estimativas em painel12 . Esses procedimentos são repetidos nas regressões (4) e (5). Porém nesse caso é utilizado um indicador de regra para representar a abertura, conforme proposto por Morley et al, (1999). A regressão (1) mostra que as variáveis dimensão de mercado, escolaridade e instabilidade econômica aparecem com sinal esperado na determinação do fluxo de IDE na América Latina. As duas primeiras variáveis apresentam efeitos positivos e significantes. A instabilidade, embora apareça com sinal esperado, não é significativa. Tabela 4: América Latina - Determinantes do Investimento Direto Estrangeiro, 1970-2000 Investiimento Direto Estrangeiro Dimensão do Mercado - ln(POP) Escolaridade – (u) Instabilidade econômica – (óp) Pool (1) 0,9378*** (0,1171) Com abertura Pool Efeitos Fixos (2) (3) 0,9696*** 4,0890*** (0,1688) (1,2180) Pool Efeitos (4) Aleatórios (5) 0,9997*** 1,0296*** (0,1173) (0,1632) 0,0431*** (0,0078) 0,0470*** (0,0088) 0,0043 (0,0259) 0,0390*** (0,0078) 0,0327*** (0,0098) -0,0002 (-0,0002) -0,0002 (0,0002) -0,0003 (0,0002) -0,0002 (0,0002) -0,0002 (0,0002) -0,0011 (0,0103) 0,0145 (0,0162) 1,2750** (0,5902) 1,5510** (0,6104) 56 0.65 56 0,42 9,34 65 0.66 65 0,68 1,09 Indic. abertura – (ABERTURA) N° Observações R2 Ajustado Teste de Hausman 65 0.64 Nota: Os números entre parênteses representam os desvios padrão dos estimadores. Significativos a 1% (***), a 5% (**) e a 10% (*). No R2 Ajustado, considerou-se o valor intra-grupo no modelo de efeitos fixos e o valor total no modelo de efeitos aleatórios. Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, jul./dez. 2005 48 José Ricardo de Santana; Guilherme Cavalcante Vieira Esses resultados se mantêm na regressão (2), onde é introduzido o fluxo de comércio como indicador de abertura. Esta variável não apresentou resultados significativos, além de apresentar sinal contrário ao esperado. A regressão (3) mantém as variáveis anteriores, mas estima a partir do modelo com efeitos fixos, mais indicado, nesse caso, pelo teste de Hausman13 . Os resultados mostram que prevalecem os sinais esperados em todos os coeficientes, inclusive para o indicador de abertura. Entretanto, apenas a dimensão de mercado aparece como significativa nesse modelo. Ou seja, a abertura econômica, a partir da introdução do indicador de resultado, não aparece como variável relevante para explicar os fluxos de IDE. As regressões seguintes buscam investigar os efeitos da abertura econômica a partir da introdução de um indicador de política. Na regressão (4), os resultados são similares aos da regressão (2). A dimensão de mercado e a escolaridade são positivas e significativas. A instabilidade econômica, embora tenha o sinal esperado, aparece como não significativa. A diferença desta última regressão está nos resultados quanto ao indicador de abertura, que aparece não apenas com o sinal esperado mas também mostra efeitos significativos. Na estimação em painel, os resultados se mantêm, conforme demonstra a regressão (5), que utiliza o modelo com efeitos aleatórios, mais indicado, nesse caso, pelo teste de Hausman. Prevalecem os sinais esperados em todos os coeficientes, inclusive para o indicador de abertura, e apenas a variável instabilidade econômica aparece como não significante. Esses resultados, que corrige um possível viés de variável omitida representado pelo efeito fixo, mostra que além da dimensão de mercado e da escolari- dade da força de trabalho, a abertura, dentro do conjunto das reformas econômicas, atua como importante determinante na atração de Investimento Direto Estrangeiro para a América Latina. 5. CONCLUSÃO O Investimento Direto Estrangeiro é uma variável de extrema importância para países em desenvolvimento, onde a formação de poupança doméstica mostra-se insuficiente para sustentar o crescimento econômico. Entender os determinantes do IDE é fundamental não apenas para apresentar uma contribuição teórica sobre o tema, mas para orientar as medidas de política econômica. O objetivo desse artigo situa-se nessa linha de investigação. Foi proposto um modelo econométrico, baseado nas discussões da literatura, sobre os determinantes do IDE. As estimações utilizaram 17 países latino americanos para os quais estavam disponíveis indicadores de política para a abertura econômica. O estudo centra atenção nessa variável, tendo em vista os resultados controversos encontrados na literatura. A variável abertura econômica aparece na literatura econômica a partir de indicadores de resultado ou a partir de indicadores de política. No primeiro caso, há uma limitação na medida, uma vez que o aumento do fluxo de comércio pode ocorrer por conta de fatores outros, que não incluam uma maior abertura. Ao trabalhar com indicadores de política, busca-se exatamente determinar a intencionalidade de proceder medidas que promovam a abertura econômica. Nesse sentido, os indicadores de política estão mais direcionados à medição desse fenômeno, reduzindo os erros de medida. Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, mar./jun. 2005 Fatores de atração do IDE na América Latina: o papel da abertura econômica As estimativas realizadas nesse trabalho contribuem para corroborar esse ponto. Os resultados apresentados mostram que a dimensão do mercado e o nível de escolaridade funcionam como fatores de atração importantes para motivar o fluxo de IDE na América Latina. No que se refere à abertura econômica, a utilização do fluxo de comércio como indicador de abertura, como faz Larrain (2004) conduziu a efeitos não significativos desse 49 indicador. A utilização do indicador de política, mais apropriado para representar a abertura econômica, mostra que esta variável aparece com efeitos positivos e significativos. Ou seja, ao contrário dos resultados inconclusos da literatura, a apropriada mensuração da abertura econômica mostra que esta é relevante na atração de IDE para a América Latina, dentro do contexto das reformas econômicas. Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, jul./dez. 2005 50 José Ricardo de Santana; Guilherme Cavalcante Vieira REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BLONIGEN, Bruce A. (2005). A Review of the Empirical Literature on FDI Determinants. Cambridge, Massachusetts: NBER (Working Paper Nº 11299) DUNNING, J. H. e NARULA, R. (1996). The investment development path revisited: some emerging issues. In: DUNNING, J. H. e NARULA, R. (Org.) Foreign direct investment and governments. London: Routledge. EDISON, H.J., et alli. (2002). Capital account liberalization and economic performance: survey and synthesis. Washington: IMF. (Working Paper, No. 02/120) ISLAM, N. (1995). Growth empirics: a panel data approach. Quarterly Journal of Economics, v. 110, n 4. LARRAÍN, Felipe B. What Determines Foreign Direct Investment? An Empirical Investigation. Latin American Meeting of Econometric Society (LAMES - 2004). Annals… Santiago: LAMES, 2004. LIM, E.G. (2001). 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Revista da Fapese, n. 2, p. 37-50, mar./jun. 2005 Revista da Fapese de Pesquisa e Extensão, v. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 51 Avaliação geoambiental dos sistemas dunares costeiros de Sergipe* Anízia C. de Assunção Oliveira** R e s u m o Rosemeri Melo e Souza*** O artigo visa a análise integrada dos condicionantes biofísicos e antrópicos intervenientes na intensidade das agressões das dunas em porções Norte, Centro e Sul do litoral sergipano. Listas de controle de campo (check lists) foram aplicadas a fim de desenvolver cálculos de vulnerabilidade em setores específicos da área estudada, a partir da atribuição de valores às variáveis selecionadas possibilitando a categorização dos resultados em distintos níveis de vulnerabilidade estabelecidos segundo a adaptação do Programa ELOISE/DUNES da União Européia. São organizadas em 46 variáveis e divididas em 5 seções: sítio e morfologia dunar, características da praia, características da superfície dunar nos primeiros 200 m, pressões de uso e medidas de proteção recentes. O caráter das feições encontradas no Litoral Norte remonta a algumas associações de desequilíbrio pela intensidade de circulação eólica e processos de acresção/erosão dunar. A vegetação mesmo encontrando condições propícias ao desenvolvimento pelos variados níveis de umidade não exerce fator controlante para a estabilização das dunas. Das cinco seções observadas no Litoral Sul mais diferenças foram encontradas na seção D (Pressão antrópica). As ameaças de degradação expõem a necessidade de certa restrição visando deter os efeitos degradantes já em curso. No Litoral Centro, mecanismos de degradação severa e generalizada revelam-se preocupantes. A impossibilidade de recomposição dos campos dunares em virtude da ausência de alimentação eólica pelas barreiras antrópicas localizadas remonta a possíveis conseqüências no perfil de praia pela interferência no balanço de sedimentos provenientes da fonte de alimentação praia-duna. PALAVRAS CHAVES: Monitoramento Socioambiental; Vulnerabilidade Biofísica; Dunas Costeiras; Sergipe. 52 Anízia C. de Assunção Oliveira; Rosemeri Melo e Souza A zona costeira, em termos ambientais, possui uma complexidade de ecossistemas dentre eles campos de dunas, ilhas recifes, costões rochosos, estuários, brejos, falésias e baixios. As dunas litorâneas prestam-se a formas de usos múltiplos sendo, dentre os ecossistemas do litoral, as que mais impactos sofrem frentes as agressões humanas diretas. Tais atividades comprometem o equilíbrio dinâmico dos ambientes dunares haja vista que muitos sistemas de dunas foram alterados irreversivelmente. Com base na Resolução do 303/2002 CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente), dunas podem ser definidas como “unidades geomorfológicas de constituição predominantemente arenosa, com aparência de cômoro ou colina, produzida pela ação dos ventos, situada no litoral ou no interior do continente, podendo estar recoberta ou não por vegetação”. Por serem caracterizados como os mais impactantes, os danos derivados de atividades antrópicas remontam a uma situação de alerta quanto à manutenção da integridade biofísica dos sistemas dunares litorâneos. Em Sergipe, a planície costeira é constituída por terrenos de sedimentos quaternários de origem fluvio-marinha, fluvial e eólica e engloba formações como manguezais restingas, dunas e lagoas costeiras originárias de processos interativos. O Litoral de Sergipe apresenta-se compartimentado em três porções: litoral norte, centro e sul. No Litoral Norte a planície costeira abrange áreas dos municípios de Brejo Grande, Pacatuba, Ilha das Flores e Pirambu. Caracteriza-se por terraços marinhos datados do holoceno com cristas de cordões litorâneos bem marcados e grande retrabalhamento eólico. São encontrados depósitos dunares formados por gerações inativas de dunas localizadas mais interior- mente fixadas por vegetação arbórea-arbustiva e sistemas ativos, mais recentes, que ocupam a linha de costa e direcionam-se sobre as áreas mais internas, estes, orientam –se segundo a direção dos ventos dominantes e interagem com zonas interdunares alagadas. O município de Pirambu compreende em sua zona litorânea a Reserva Biológica de Santa Isabel. Regulamentada pelo Decreto Federal nº 96.999 de 20/10/ 1988 abriga uma das sedes do Projeto TAMAR (Tartarugas Marinhas) e possui dentre os objetivos o de proteger as tartarugas marinhas que se reproduzem no respectivo trecho do litoral. O campo dunar de Aracaju compõe a área de estudo referente ao Litoral Centro. Os depósitos dunares litorâneos são caracterizados por duas gerações de dunas percebidas desde a Coroa do Meio (cercanias do Oceanário) até a Área de Preservação Permanente (APP) mantida pela Petrobrás no TECARMO (Terminal de Carmópolis) e as praias da Aruana, Robalo e do Mosqueiro. Os campos dunares desta porção do Litoral encontram-se em estado de arrasamento avançado devido, entre outros fatores, aos fortes processos de ocupação principalmente em setores que abrangem as instalações da Orla de Atalaia. O Litoral Sul compõe-se de 5 municípios: São Cristóvão, Itaporanga D’Ajuda, Estância, Santa Luzia do Itanhy e Indiaroba. Apresenta uma superfície de 2.496,4 km² e extensão de 55,5 km. Dentre os ecossistemas relevantes encontram-se associados aos campos de dunas, manguezais, brejos e lagoas, além de outros como restingas e remanescentes de Mata Atlântica. Nesta região do litoral o clima é caracterizado como úmido a sub-úmido com precipitação total variando de 1000 a 1200mm ao ano.O período chuvoso concentra-se nos meses de abril, maio junho e julho, enquanto o período seco ocorre nos meses de outubro, novembro, dezembro e janeiro. Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 Conseqüências da deficiência isolada e vitalícia do hormônio do crescimento (GH) A fonte de alimentação praia-duna contribui para a formação de feições dunares pelo fornecimento de areia considerado abundante. Os sistemas dunares de Sergipe apresentam mudanças nas características biofísicas em virtude de processos que afetam a estrutura e dinâmi- 53 ca dos ambientes. A pressão de uso associada a mecanismos de ocupação desordenada relacionada ao desmonte de dunas provocado por diversos fatores e a ineficácia das medidas de proteção recentes são os indicadores mais expressivos para a avaliação da vulnerabilidade das dunas em Sergipe. Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 54 Anízia C. de Assunção Oliveira; Rosemeri Melo e Souza 1. PRINCIPAIS CONFLITOS DE USO EM AMBIENTES DUNARES DE SERGIPE Em Sergipe, processos característicos identificados como condicionantes expressivos à produção de um quadro de sensibilidade dunar referem-se aos mecanismos de pressão antrópica representados essencialmente pelos conflitos de uso. Os principais conflitos de uso dizem respeito à ocupação de áreas dunares por loteamentos, construção de casas, pousadas, estabelecimentos comerciais e desmonte de dunas, abertura aleatória de caminhos de acesso à praia além de pisoteio descontrolado, trânsito de veículos e infra-estrutura urbana, com ênfase na atividade turística. Todos estes fatores são responsáveis pela ameaça à integridade dos sistemas dunares, bem como interferem na produção das diferenciações paisagísticas na área estudada. O desmonte de dunas, por conta da ocupação desordenada na zona de praia facilita a invasão das águas do mar e interfere no processo de acumulação das areias acarretando assim efeitos erosivos que, ao modificar as condições de acumulação produzida pela ação eólica (circulação dos ventos e deposição das partículas arenosas no sopé das dunas semifixas) contribuem para alteração no perfil litorâneo. Podese afirmar que tais alterações tendem a produzir, em curto prazo, mudanças visíveis na composição das fisionomias dunares costeiras, limitando a margem de acumulação necessária para a fixação de cobertura vegetal, processo este responsável pela semifixação de dunas situadas no fácies posterior (faixa intermediária) dos campos dunares. A formação de depósitos dunares no Litoral de Sergipe sempre esteve associada à presença de vegetação. A cobertura vegetal, seja ela de porte arbóreo, herbáceo ou arbustivo, contribui decisivamente para a ocorrência da sedimentação eólica sobre a linha de acumulação praial Entretanto, alguns pontos da costa, a retirada da vegetação é presenciada de maneira nítida por meio de práticas impensadas como o pisoteio descontrolado, a abertura de caminhos provocados pelo fluxo de pessoas e veículos motorizados sobre as dunas até ações propositais a exemplo das queimadas muito presentes em áreas onde já ocorrem desmontes de dunas sem nenhuma vigilância por parte dos órgãos responsáveis de fiscalização. A infra-estrutura turística também pode ser considerada como um indicador que impõe limitações à dinâmica natural dos ambientes dunares de Sergipe. A intensificação das atividades turísticas vem promovendo desmonte de dunas móveis para loteamentos, residências secundárias e hotéis. O interesse pelo desenvolvimento do turismo no Litoral de Sergipe parte principalmente de empresas hoteleiras que visam o estabelecimento grandes complexos de hotéis (resorts). Esse processo tem se intensificado devido à fragilidade das medidas de proteção ambiental na esfera dos municípios, haja vista o valor cênico e ecológico das dunas, reconhecido legalmente na esfera federal (áreas de proteção permanente), mas, protegidas de modo quase inexistente na esfera municipal. Ainda merecem destaque as políticas setoriais na esfera estadual correspondentes às iniciativas do Estado de desenvolvimento da região Sul de Sergipe através do estabelecimento de uma infra-estrutura turística. Obras como construções de pontes, implantação de orlas marítimas urbanizadas, rodovias, aeroportos e projetos de urbanização, sendo o litoral sul uma faixa muito visada pelos empreendimentos turísticos. Tais ações foram iniciadas no Litoral Sul com a com a implantação, há cerca de dez anos (PRODETUR I), da Linha Verde (SE – 100 e SE –318) interligando pelo litoral dos Estados de Sergipe e Bahia, que conta com recursos provenientes do Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste – PRODETUR como principal financiador. O Projeto de Desenvolvimento para o Turismo no Nordeste (PRODETUR-NE) é um dos principais programas voltados para o crescimento do turismo na Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 Conseqüências da deficiência isolada e vitalícia do hormônio do crescimento (GH) 55 região nordestina que surge por iniciativa da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e com apoio da Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR) em 1993. definida, por forma a estabelecer a sua importância relativa para o objetivo em causa, a saber, a análise da vulnerabilidade biofísica mediante geoindicadores socioambientais (Laranjeira, 1997, p 48). Já a segunda etapa, como forma de dar continuidade às ações de desenvolvimento do turismo, o PRODETUR/NE II “deverá aportar recursos da ordem de US$ 63 milhões, destinados a ações de recuperação ambiental, de capacitação profissional, de apoio à gestão municipal, de recuperação do patrimônio histórico, de implantação de sistemas de gestão de resíduos sólidos, além de investimentos outros em infra-estrutura básica” (SEPLANTEC, 2004). As check lists são estruturadas em cinco seções que compreendem informações quanto ao sítio e morfologia dunar, às características da praia, às características da superfície dunar nos primeiros 200 metros, às pressões de uso e às medidas de proteção recente. (Anexo 1) Esses aportes de investimentos têm atuado como indutores do aumento da pressão especulativa sobre as áreas litorâneas, provocando uma reconversão habitacional fortemente influenciada pelo ciclo turístico. Colocando de outro modo a questão, nota-se no Litoral Sul de Sergipe um processo de adensamento urbano que vem substituindo as áreas de residência dos habitantes locais por propriedades destinadas à segunda residência e empreendimentos de hotelaria. Tais alterações, por sua vez, aumentam a incidência das agressões paisagísticas sobre os campos de dunas, visíveis sob a forma de arruamentos irregulares, depósitos de lixo e avanços de construções diretamente sobre as superfícies dunares. 2. AVALIAÇÃO DO ESTADO DAS DUNAS EM AMBIENTES LITORÂNEOS DE SERGIPE A avaliação da vulnerabilidade partiu do preenchimento de listas de controle de campo (check lists) e posterior listagem das variáveis e geoindicadores expressivos (naturais e antrópicos) que mais contribuem para situação de risco das dunas. Check lists definidas como listagem de um conjunto geral de variáveis relevantes para a concretização de um determinado objetivo, que são, caso a caso e individualmente, identificadas, caracterizadas e ordenadas em relação a um escala pré- São organizadas com base na seleção de 46 variáveis, todas elas divididas em categorias de informação. A atribuição de valores as variáveis selecionadas possibilitou a categorização dos resultados em distintos níveis de vulnerabilidade estabelecidos segundo a adaptação do Programa ELOISE/DUNES da União Européia. Cada variável abrange três a cinco possibilidades de caracterização, sendo que, cada alternativa, corresponde a uma pontuação de 0 a 4. Quanto maior valor determinado, maior o grau de vulnerabilidade, ou seja maior é a situação de risco das dunas. No caso das medidas de proteção recentes o oposto acontece, maior é o grau de controle e proteção apontados pelas variáveis nos sistemas dunares em estudo. Dessa forma, no tocante às seções A, B e C, o significado dos valores de 0 a 4 será representado por tabelas numéricas relacionadas aos níveis de vulnerabilidade, já as seções D e E serão explicadas a partir de quadros qualitativos baseados em variações de cores (amarela, laranja e vermelha) em que quanto menor a intensidade da cor, menor o grau de vulnerabilidade. Os itens sem informação serão expostos nos quadros e tabelas através do símbolo tracejado (-), a abreviatura (OBSD) simbolizará a percepção de cada observador. Os cinco níveis de vulnerabilidade são definidos no quadro que se segue: Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 56 Anízia C. de Assunção Oliveira; Rosemeri Melo e Souza Quadro 1 - Níveis de Vulnerabilidade Biofísica Dunar Nível 0 0 – 20% Nível de vulnerabilidade em que o grau de transformação do sistema dunar não põe em risco a sua capacidade de auto-regeneração; o grau de vulnerabilidade está compreendido entre 0 a 20%; estado de degradação das feições não ultrapassa o limiar de resilência; sensibilidade baixa. Nível 1 > 20 –40% Nível de vulnerabilidade em que já se percebem sinais de mudanças no conjunto do sistema; a sensibilidade de baixa passa a se acentuar; o nível 1 compreende o intervalo de valores maiores que 20% até 40%. Nível 2 > 40-60% Percebem-se sinais de degradação significativa, já se faz necessária uma certa restrição a uma maior utilização. As feições dunares se posicionam sobre o limiar de resilência. Considerável nível de degradação dos sistemas. Valores maiores que 40% até 60% estão compreendidos neste intervalo. Nível 3 > 60 –80% Observam-se mecanismos de pressão muito significativa; as feições dunares não apresentam mecanismos de resistência aos efeitos negativos; a sensibilidade é elevada; são maiores que 60% e chegando a 80% os valores percentuais do nível 3. Nível 4 >80-100% Evidenciam - se efeitos de degradação severa e generalizada. Nível de degradação extremamente elevado comprometendo o caráter das geoformas. Limiar de resiliência ultrapassado. Nível de maior caráter impactante que compreende o intervalo de valores maiores que 80% até 100% de vulnerabilidade. Fonte: Adaptado e modificado de Laranjeira, 1997. A aplicação das check lists realizada por observadores selecionados a partir do critério de possuírem conhecimentos sobre assuntos referentes à pesquisa tanto de ordem geral como dinâmica costeira, geomorfologia litorânea e de caráter específico como dunas costeiras. Tais matrizes são compostas por múltiplos elementos relacionados a fatores e processos que interagem e promovem efeitos impactantes representados por resultados que se diferenciam pela intensidade e freqüência de danos. As associações entre as variáveis correspondentes às cinco seções da lista de controle (categorias de informação) geram resultados estimados pelo cruzamento de relações de causa e efeito entre fatores estruturantes à formação de ambientes dunares (estado médio de estabilidade) e aspectos condicionantes a desestabililização das dunas (impacto relacionado). A matriz referencial de indicadores funciona como uma listagem de controle bidimensional, onde são dispostos os indicadores numerados e os graus de sensibilidade. Esta é definida enquanto o grau de perturbação relacionado a cada indicador expresso pela associação entre intensidade e freqüência dos danos. Sendo assim como forma de complementar a análise dos processos relacionados aos indicadores de vulnerabilidade dunar desenvolveram-se matrizes de sensibilidade biofísica. No estudo em questão, foram elaboradas duas matrizes referentes aos setores que compõem o Litoral Norte e aos setores que compõem o Litoral Sul. Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 Conseqüências da deficiência isolada e vitalícia do hormônio do crescimento (GH) A sensibilidade dos fatores ambientais é definida pelo grau de perturbação da estabilidade provocado por fatores antrópicos. Assim, a sensibilidade ambiental indica a vulnerabilidade dos indicadores estudados frente à intensidade e à freqüência dos danos causados pela ação humana sobre o meio biofísico. Entendem-se danos como os efeitos adversos das ações humanas sobre os sistemas ambientais (Faria, 1995). Os graus de sensibilidade foram enumerados de 1 a 3, sendo 1 correspondente a um grau pequeno de sensibilidade, 2 a sensibilidade média e 3 a sensibilidade grande. Os danos atribuídos foram os seguintes: índice de pluviosidade; dinâmica eólica; barreira à acumulação eólica; pisoteio e tráfego sobre praia e dunas; remoção da vegetação dunar e turismo desordenado. Quanto à freqüência dos danos verificados na área de estudo, as letras atribuídas (a, b e c) correspondem, respectivamente, a freqüência constante do dano (a), dano freqüente (b) e (c), dano eventual, ou seja, que provoca alterações fisionômicas e cênicas passageiras aos componentes biofísicos dos sistemas ambientais. Os itens sem informação serão expostos através do símbolo tracejado (-), especificando a não ligação entre dano e indicador. A avaliação do estado das dunas em ambientes litorâneos de Sergipe, desenvolvida em etapas de estudo anteriores (diagnóstico e monitoramento) foi testada em seções específicas do litoral norte, centro e sul sergipano. Em geral, os resultados obtidos geraram um quadro delicado quanto à permanência das características biofísicas em vários setores da área estudada. Níveis de vulnerabilidade em que se percebem sinais de degradação significativa foram detectados no litoral Centro e Sul sergipano, já se faz necessária uma certa restrição a uma maior utilização, uma vez 57 que as feições dunares se posicionam sobre o limiar de resilência. No Litoral Norte de Sergipe as condições as condições de vulnerabilidade demonstraram sinais de mudanças no conjunto do sistema; a sensibilidade de baixa passa a se acentuar. 3. LITORAL NORTE DE SERGIPE. A intensidade das relações existentes entre os fatores responsáveis pela ameaça à integridade dos sistemas dunares é exemplificada, no caso das dunas do Litoral Norte, pelo tamanho da área ocupada pelas dunas (altura, largura e extensão das antedunas) diretamente relacionado ao processo de acumulação das areias que contribuem para mudanças visíveis na composição das fisionomias dunares costeiras, principalmente quando dos efeitos dos períodos de chuvas em regimes que se diferenciam quanto ao ritmo de precipitação. O ritmo de precipitação e a intensidade dos ventos diretamente ligada às seqüencias dos períodos de chuvas alteram a circulação eólica e, por conseguinte, tem-se uma situação bastante intensa de fragilização dos condicionantes de permanência do sistema dunar, ou seja, amplia-se o limiar de sua vulnerabilidade pela aproximação de um ponto crítico limitante da alimentação do sistema praia-duna. O campo referente ao Litoral Norte foi realizado no mês de julho (período chuvoso). A predominância de precipitação promove alterações nas características responsáveis pela configuração do perfil das dunas. Se comparado às análises desenvolvidas no período seco, as modificações nos processos de acresçãoerosão dunar no Litoral Norte são denunciadas pelo processo de compactação das areias. A formação de depósitos dunares no Litoral de Sergipe sempre esteve associada à presença de vegetação. A cobertura vegetal seja ela de porte arbóreo, herbáceo ou arbustivo, contribui decisivamente para Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 58 Anízia C. de Assunção Oliveira; Rosemeri Melo e Souza a ocorrência da sedimentação eólica sobre a linha de acumulação praial. No Litoral Norte as condições de umidade verificadas propiciam o brotamento de espécies em áreas onde o solo concentra água em seus níveis inferiores, fato evidenciado principalmente no Setor 1 de análise. Nas proximidades da linha de costa nota-se a existência de áreas úmidas e brejos associados a vegetação de restinga. São em sua maioria regulados pelos períodos de chuva e caracterizam-se por abrigar espécies da fauna como bando de aves migratórias. Tais alagados são freqüentemente utilizados como pastagens por pequenos criadores. Nas áreas de brejos localizados próximos a faixa de dunas frontais são encontrados vegetais de porte arbustivo como o grageru (Chrysobalanus icaco), espécie típica de restinga localizada a sotavento das dunas de pequeno porte, em áreas mais baixas, pela menor intensidade erosiva dos ventos. Essa mesma espécie desenvolve um porte arbustivo maior, quan- do mais afastada da praia, por se localizar a barlavento de dunas que ficam protegidas por outras parcialmente fixadas pela vegetação. Os depósitos formadores das dunas são caracterizados por um material não consolidado tendo a presença de areias eólicas, arenitos e argilas na composição das dunas. Mesmo havendo uma alimentação eólica suficiente para o processo de sedimentação na linha de praia alterações sobre a morfologia praial são percebidas por conta de processos relacionados à pressão por diversos utilizadores. São realçadas, em alguns pontos da costa, práticas impensadas como o pisoteio descontrolado, a abertura de caminhos provocados pelo fluxo de pessoas e veículos motorizados sobre as dunas onde já ocorrem desmontes de dunas sem nenhuma vigilância por parte dos órgãos responsáveis de fiscalização, uma vez que parte da área de estudo diz respeito a propriedade da Reserva Biológica de Santa Isabel. Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 Conseqüências da deficiência isolada e vitalícia do hormônio do crescimento (GH) 59 A partir das listas de controle aplicadas nos dois setores de estudo nesta fase de monitoramento foi encontrado um percentual de 28.34% correspondente ao Nível 1 de vulnerabilidade o que focaliza um ambiente em que se percebem sinais de mudanças no conjunto do sistema. O primeiro trecho em que se aplicou a lista de controle localizado nas proximidades da zona da praia apresentou grau de 27.54% no primeiro campo e 22,44% no segundo, ambos perfazendo nível 1 de vulnerabilidade. Nível em que os sinais de degradação não são tão significativos. Na fase de diagnóstico (primeiro campo) o Litoral Norte, em comparação as outras porções do Litoral (Litoral Centro e Sul) adquiriu os menores valores condizentes com níveis mínimos de degradação. A percentagem média abrangeu 29.72%, também nível 1 de vulnerabilidade. O que mais contribui para a diminuição da percentagem encontrada é a presença de dunas recentes intensamente colonizadas por exemplares de vegetação, espécies típicas de restinga, favorecidas pelas condições de umidade. Os setores de estudo, por se tratarem de uma área de proteção ambiental da Reserva Biológica de Santa Isabel, apresentaram pouco grau de transformação do sistema dunar. A distinção entre os graus de vulnerabilidade encontrados em cada setor de estudo de acordo com as duas fases de campo pode ser visualizada no gráfico abaixo. Em contrapartida aos resultados do monitoramento encontrados no Setor 1 do Litoral Norte, o segundo setor estudado, localizado nas imediações da Lagoa Redonda dentro da área da Reserva Biológica, possui características marcantes quanto ao fornecimento de areia em virtude da dinâmica eólica presente no local o que fez repercutir no aumentodograudevulnerabilidadeencontradode31,90% para 34.25%. Processos de erosão dunar são evidenciados a exemplo de muitas brechas ativas que se formam em trechos de dunas localizadas mais interiormente. Gráfico 1. Demonstrativo da diferenciação entre os níveis de vulnerabilidade. 2003-2005 Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 60 Anízia C. de Assunção Oliveira; Rosemeri Melo e Souza Associado a tais processos de ameaças à estabilidade dunar existem sinais de ocupação por mecanismos de pressão humana em virtude do crescente afluxo de pessoas neste campo de dunas. As formas de interação entre os componentes biofísicos dos sistemas dunares e as pressões advindas das atividades antrópicas sobre tais ambientes caracterizam o grau de transformação desses sistemas costeiros. Nessa perspectiva, a análise dos fatores condicionantes e estruturantes do processo de vulnerabilidade em ambientes dunares utiliza como suporte a elaboração de matrizes de sensibilidade ambiental biofísica com base nos resultados obtidos para os indicadores de sustentabilidade propostos para dunas. Para o Litoral Norte foi elaborada uma matriz referente aos dois setores exposta a seguir: Analisando as interações entre os componentes da matriz temos que o período de estudo, por se tratar de estágio chuvoso com níveis de umidade consideráveis e ventos regulados pelos alíseos de NE, faz com que os fatores: extensão das dunas; fonte de alimentação praia –duna e estabilidade dunar sejam os que mais inteferências sofram frente aos processos relacionados ao índice de pluviosidade e à dinâmica eólica. No Litoral Norte os indicadores relacionados à dinâmica biofísica são os que mais se sobressaem, uma vez que, há uma diversidade fisionômica associada a disposição seqüencial de feições dunares, em porções interiores encontram-se geoformas em estado original além de existir um campo dunar ativo em virtude de uma dinâmica eólica atuante. A área ocupada pelas dunas apresentou maior sensibilidade biofísica aos fatores índice de chuvas e dinâmica eólica. A barreira a contribuição eólica Quadro 2 - Matriz de sensibilidade biofísica litoral norte INDICADORES/DANOS Índice de pluviosidade Dinâmica eólica Barreira à contribuição Pisoteio e Remoção de tráfego vegetação motorizado dunar sobre dunas 1B 1B Área ocupada pelas dunas 3B 3A - Fonte de alimentação praia –duna 3B 3A - - - Distribuição vegetal sobre superfície dunar 2B 2C 1C 1B 3C Estabilidade dunar 3B 3C 1C 2B 3C Processos de acresção/erosão dunar 3B 1C 1C 1B 3C Ameaças de degradação ao sistema dunar 2C 2C 1C 2B 3C Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 Conseqüências da deficiência isolada e vitalícia do hormônio do crescimento (GH) constitui outro dano ambiental para o indicador fonte de alimentação praia-duna. A remoção da vegetação dunar representa um dano ambiental de maior sensibilidade biofísica no que se refere ao indicador III (distribuição vegetal sobre superfície dunar). A presença desse dano contribui para afetar a estabilidade dunar (indicador IV) bem como interfere nos processos de acreção e erosão dunar e ameaças de degradação ao sistema dunar (quinto e sexto indicadores). 4. LITORAL SUL O trabalho de campo que teve como foco o Litoral Sul, praias do Saco e Abais foi realizado no mês de dezembro, dia 03 de dezembro de 2004. Desenvolveu-se o mesmo procedimento de aplicação das check lists dos campos anteriores (fase de diagnóstico). A visita anterior ao Litoral Sul ocorreu no mês de abril dia 20, perfazendo assim cerca de oito meses de distância. De maneira geral, no Litoral Sul (Praias do Saco e Abais) o perfil das feições dunares é disposto primeiramente por zonas de dunas recentes situadas nas proximidades da linha de costa, logo seguidas por dunas semifixas, em porções interdunares delimitadas por superfícies alagadas e seqüenciadas por depósitos mais interiores, os quais apresentam declives mais moderados além de composição vegetacional de porte arbóreo e arbustivo. Os campos dunares apresentam uma dinâmica eficaz no processo migratório das areias, tal fator explica a dimensão do alinhamento dunar. No que se refere à contribuição eólica, existe na região uma alimentação constante, principalmente de sedimentos marinhos retrabalhados. Estes sedimentos são direcionados, sobretudo pelo esquema de marés, para a zona emersa (praia). O vento continua o processo, este denominado de turbilhonamento. 61 Neste trecho confirma-se o prolongamento de dunas em zonas desnudas de vegetação onde a ação do vento provoca o arraste das areias. Em contrapartida, processos biofísicos de reconstituição dunar são perceptíveis através do registro de pequenos montículos de areia que associados a vegetação instalada no local possibilitam a contínua formação de feições maiores. O vento, por efeitos dispersivos, transporta as partículas microscópicas e as areias são então adensadas quando de componentes herbáceos ou arbustivos. A vegetação exerce um papel regulador no processo de estabilidade dunar. Definida por espécies de restinga, esta faixa visitada apresenta uma pouca percentagem de cobertura vegetal impenetrável, principalmente em áreas de gerações de dunas mais antigas. Um dos maiores representantes da cobertura vegetal desta área é o (Chrysobalanus icaco), mais conhecido como o grageru. A intensidade de habitação sobre os campos dunares (casas de veraneio, hotéis, pousadas, estabelecimentos comerciais, infra-estrutura urbana, etc) são os mecanismos que mais ameaçam a permanência das características biofísicas. Todos esses mecanismos de ação antrópica comprometem os processos de recomposição dunar pela intensidade de ocupação que dificulta a passagem do aporte de sedimentos, fazendo com que o vento perca sua competência e nesse sentido produza um maior distanciamento entre as feições e a linha de costa. Outra forma de ocupação diz respeito aos cultivos agrícolas. Os coqueirais estão presentes em zonas interdunares e em porções mais interiores. Os depósitos de lixos permanecem, em algumas áreas situadas entre o campo dunar e a rodovia principal que margeia as seções de dunas. Destacam-se também como grande ameaça aos sistemas dunares instalações comerciais situadas à Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 62 Anízia C. de Assunção Oliveira; Rosemeri Melo e Souza beira-mar. Na área mais visitada por banhistas presencia-se bares voltados para o turismo de lazer, porém com precárias instalações. Devido às construções sobre a zona de dunas, medidas de controle representadas por molhes de contenção (pedregulhos) permanecem como tentativa de conter os avanços do mar uma vez que há por conta das construções um bloqueio da alimentação no sentido praia-duna traduzindo-se em zonas de antedunas marcadas por evidentes sinais de degradação associada à utilização. Das cinco seções observadas mais diferenças foram encontradas no conjunto de variáveis referente à seção D (Pressão exercida por diversos utilizadores). As ameaças de degradação representadas pelos atributos enumerados nas listas obtiveram resultados qualitativos acima dos especificados no campo anterior. No segundo campo nota-se um consenso por parte dos observadores quanto ao aumento da intensidade da extração comercial/ocasional. Mesmo sendo uma região definida como área de recuperação ambiental medidas de vigilância e controle ainda não são verificadas, uma vez que, principalmente nos setores de antedunas e dunas móveis a ocupação é realizada de forma irregular.O constante desmonte de dunas para fins de ocupação, seja por loteamentos ou estabelecimentos comerciais, e a inexistência de fiscalização tanto municipal quanto estadual acarretam não só a desconfiguração dos ambientes dunares como promove danos irremediáveis ao equilíbrio natural dos ecossistemas que deles dependem. Comparando-se as análises quanto aos resultados da aplicação das check lists nos dois momentos de estudo, nota-se que não houve alterações significativas nos níveis de vulnerabilidade encontrados, apesar de existirem diferenças na caracterização (pontuação) de algumas variáveis pela intensificação ou diminuição de alguns processos. Os dados do primeiro campo detectaram no setor 1 - Praia do Saco/Litoral Sul um nível 1 de vulnerabilidade biofísica sendo 35.19% o percentual encontrado na primeira avaliação e 39.19% na segunda. Os processos de arrasamento das feições por afeito de interferências antrópicas e mecanismos de proteção dunar não atuantes permanecem como fatores condicionantes já que o nível de vulnerabilidade indica sinais de mudanças no conjunto do sistema; a sensibilidade de baixa passa a se acentuar. Já no setor 2 Praia do Abaís (dunas a 100 metros da Orla) os dados de campo mostram que fatores modificam mais intensamente a situação dos elementos biofísicos definidores das condições de equilíbrio dos sistemas dunares observados se comparados ao setor 1, porém não chegam a alterar o nível médio geral de vulnerabilidade. Os níveis médios de vulnerabilidade encontrados neste setor na primeira fase e na segunda focalizam um ambiente descaracterizado, onde já existe um considerável nível degradação dos seus sistemas, os graus encontrados referem-se ao nível 2 (53.86%) no mês de abril e 52% no mês de dezembro. Quanto ao sítio e morfologia dunar tal setor apresenta um campo dunar interrompido em que o processo de ocupação por casas de veraneio promove uma descontinuidade das feições existentes. Tais evidências comprometem tanto a área ocupada pelas dunas quanto a largura do alinhamento dunar. Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 Conseqüências da deficiência isolada e vitalícia do hormônio do crescimento (GH) Nesse sentido é que a altura e largura do alinhamento dunar são insignificantes em face da constante retirada do aporte sedimentar realizada sem nenhuma fiscalização pra fins de ocupação por casas. A pressão exercida pelos diversos utilizadores pode ser presenciada pela alta densidade dos caminhos, pelo intenso acesso por estradas, pelo pisoteio descontrolado sobre dunas, além da crescente especulação imobiliária. As ações de proteção aos sistemas dunares não são verificadas em virtude de inexistirem medidas de ordenamento e controle do acesso às dunas. O pisoteio descontrolado, a falta de vigilância e manutenção, a deficiência da proteção legislativa são exemplos de como tal setor apresenta-se comprometido frente às permanências das feições originárias. Sendo assim, o indicador de ameaças de degradação ao sistema dunar comprova-se como o mais expressivo para a caracterização do estado relativo das dunas neste setor. No setor 3 da Praia do Abais (Dunas interiores) foram verificadas pequenas mudanças na avaliação das variáveis. A análise dos indicadores demonstra um nível 1 de vulnerabilidade encontrado no setor 3, uma vez que, foi verificado 33.95% no primeiro campo e 35.49 % no segundo, o que confere um certo grau de sensibilidade que de baixa passa a se acentuar pelo 63 indicativo de sinais de mudanças no conjunto do sistema. Construções como pousadas e armazéns, casas de veraneio além ruas e estradas não asfaltadas demonstram a presença humana no local. Pela intensidade de ocupação, tal infra-estrutura passa a funcionar como mecanismo de pressão antrópica. Essas instalações agem como barreira afetando a própria dinâmica natural, uma vez que, comprometem a não colmatação das brechas situadas em pontos específicos de algumas dunas. O desmonte de dunas, a queimada da vegetação para a retirada das areias é realizado sem nenhuma intervenção por parte das autoridades competentes. Dessa forma, nota-se a necessidade de uma maior vigilância e controle em virtude da crescente ocupação e pressão humana, sendo ineficaz o desenvolvimento de medidas de proteção recentes. Entretanto, em meio aos agentes de degradação, no setor 3, há a predominância de uma dinâmica eólica em que a disposição das feições existentes denota um campo dunar ativo com características morfológicas importantes para a definição dos menores índices de vulnerabilidade encontrados nos três segmentos de análise. É considerado grande o número de cristas ortogonais, sendo maior que 500 metros a área ocupada pelas dunas, também considerável é a largura do alinhamento dunar. Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 64 Anízia C. de Assunção Oliveira; Rosemeri Melo e Souza Foto 6 - Dunas de grande porte sendo degradadas. A vegetação é primeiramente queimada para após haver a remoção das areias. Foto 7 - Mesma duna oito meses depois. Notar o processo de reconstituição dunar. No setor 3 as dunas apresentam altura, em alguns pontos, superior a 20 metros. As mais interiores apresentam maior altura, atingindo até 25 metros e já consolidadas, ou seja, resistentes à ação dos ventos mesmo quando não apresentam cobertura vegetal permanente. Tais variáveis caracterizam-se como as mais significantes no que se refere ao sítio e morfologia dunar. Dentre as variáveis que se destacam na caracterização das dunas tem-se a porcentagem da frente dunar vegetada como a mais significante. No tocante às características de praia a presença de brechas a barlavento demonstra o quanto a competência dos ventos influencia na disposição dos campos dunares fato que explica a constante migração de dunas móveis. A presença de montículos expõe o processo de retrabalhamento das areias. O perfil biogeográfico está relacionado a tal indicador, já que neste setor,existem 2 a 3 níveis de estratos vegetais. O caráter arbustivo e arbóreo é predominante, sendo que em alguns pontos, percebe-se no topo da duna o avanço de gramíneas sobre o cordão dunar. Muitos depósitos recentes de areia colonizados por gramíneas foram verificados. A comparação entre os níveis de vulnerabilidade verificados nos três setores de estudo pode ser visualizada no gráfico que se segue. Gráfico 2. Demonstrativo da diferenciação entre os níveis de vulnerabilidade. 2003-2004 Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 65 Conseqüências da deficiência isolada e vitalícia do hormônio do crescimento (GH) O grau de vulnerabilidade geral obtido a partir do somatório das médias dos valores percentuais relativos a cada setor do Litoral Sul também se assemelha ao resultado do anterior, ou seja, os sistemas dunares dos três setores da porção sul do estado expõem um nível 2 de vulnerabilidade (42.22%), no campo anterior - 41% . Para o Litoral Sul foi elaborada uma matriz referente aos três setores. sedimentar. A interação entre o indicador referente à fonte de alimentação praia-duna e o dano relacionado à presença de barreiras à contribuição eólica (casas de veraneio) atingiram grau de sensibilidade elevado demonstrando assim, alterações no padrão de circulação eólica. A estabilidade dunar (indicador 3) e ameaças de degradação (indicador 4) correspondem a indicadores de maior sensibilidade biofísica. O primeiro é Quadro 3 - Matriz de sensibilidade biofísica litoral sul INDICADORES/DANOS Regime de chuvas Barreira à Pisoteio e Remoção Dinâmica Turismo eólica de vegeta- desordenado tráfego contribuição motorizado ção dunar eólica sobre dunas Área ocupada pelas dunas 2B 2A 3C 3 3 3 Fonte de alimentação praia -duna 1B 1A 3C - - - Distribuição vegetal sobre superfície dunar 1B 1 3C 3 3 3 Estabilidade dunar 1B 1 2C 3 3 3 Processos de acresção/erosão dunar 1 1 3C 3 3 3 Ameaças de degradação ao sistema dunar 1 1 3 3 3 3 FONTES: Burel e Baudry, 2002. Adaptado e Modificado de Melo e Souza, 2003. Graus de Sensibilidade: 1 - pequena; 2 - média; 3 – grande. Freqüências de danos: A - constante; B - freqüente e C – eventual. No Litoral Sul as análises oriundas das aplicações das listas de controle elegem os indicadores de pressão como os responsáveis pela produção de um ambiente descaracterizado, onde já existe um considerável nível degradação dos seus sistemas de dunas. Diferentemente das observações realizadas no Litoral Norte, em que o período chuvoso traçou um perfil de matriz marcado por indicadores relacionados a dinâmica costeira, no Litoral Sul os graus de sensibilidade apontam para os danos condizentes com os indicadores de pressão antrópica. O desenvolvimento de feições dunares depende do tipo de sedimento e da natureza do fornecimento fortemente influenciado pelos seguintes danos: barreira a contribuição eólica, remoção da vegetação dunar, turismo desordenado. As ameaças de degradação ao sistema dunar (indicador VI) corresponde ao indicador de maior sensibilidade biofísica verificado neste estudo, sendo fortemente influenciado pelos seguintes danos ambientais: barreira á contribuição eólica, no caso das dunas do Litoral Sul a inexistência de um campo dunar pleno dá-se a partir da barreira de casas que impede a livre circulação dos sedimentos provenientes da linha de praia para alimentar o campo de dunas situado mais internamente; tráfego motorizado sobre praia e dunas, e turismo desordenado. Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 66 Anízia C. de Assunção Oliveira; Rosemeri Melo e Souza Quanto ao último dano ambiental citado (turismo desordenado), a infra-estrutura turística é considerada como um indicador que impõe limitações à dinâmica natural dos ambientes dunares do Litoral Sul de Sergipe, uma vez que, a intensificação das atividades turísticas vem promovendo desmonte de dunas móveis para loteamentos, residências secundárias e hotéis. O interesse pelo desenvolvimento do turismo no Litoral de Sergipe parte principalmente de empresas hoteleiras que visam o estabelecimento grandes complexos de hotéis (resorts). Em suma, as feições dunares do litoral sul sergipano se posicionam sobre o limiar de resilência, apresentando considerável nível de degradação das geoformas. 5. LITORAL CENTRO O método das listas de controle possibilitou avaliar as condições de vulnerabilidade biofísica dunar em três setores delimitados para o Litoral Centro no período de 2003. escala 3 de vulnerabilidade (70.83%) enfatizando assim uma sucessão de geoformas dunares bastante arrasadas. A infra-estrutura pertencente à Orla da Atalaia, representadas pela freqüência e intensidade de atividades de uso antrópico, acarreta a inviabilidade de processos naturais responsáveis pela reconstituição das formas dunares degradadas. A situação torna-se mais delicada pela inexistência de medidas gerais de vigilância e controle desses mecanismos de pressão socioeconômica. O complexo Orla da Atalaia composto por bares, restaurantes, áreas de eventos, praças, ciclovias, quadras de esportes, parques infantis, estacionamentos etc é fruto de processos sucessivos de reurbanizações gerados por políticas setoriais vinculadas as iniciativas do Estado em desenvolver essas regiões através do estabelecimento de uma infra-estrutura turística, em que a construção de orlas marítimas traduz-se como componente principal. Em 2003, o nível médio geral encontrado no Litoral Centro, por meio da aplicação das check lists, foi de 47.12% - escala 2 de vulnerabilidade. Dentre os efeitos negativos que tais infraestruturas podem gerar tem-se como maior dano a impossibilidade de recomposição dos campos dunares em virtude da ausência de alimentação eólica pelas barreiras antrópicas neles localizados. No Litoral Centro estes processos são perceptíveis em face da deficiência já existente no processo de acumulação de sedimentos transportados pelos de ventos, por mais que se perceba uma dinâmica eólica satisfatória o que vem repercutir no alinhamento dunar (distribuição sucessiva das feições desde antedunas a dunas fixas) e que remontam a uma situação de degradação severa e generalizada com possibilidades de trazer conseqüências a longo prazo no perfil de praia ao interferir no balanço de sedimentos provenientes da fonte de alimentação praia-duna. Dos três setores de estudo que compõem o Litoral Centro (Orla/Coroa do Meio, TECARMO-Terminal de Carmópolis, e Praia da Aruana) o segmento referente à Orla obteve o maior índice de vulnerabilidade. O nível médio encontrado correspondeu a Analisado as condições de vulnerabilidade em cada setor de estudo parte-se para a produção de uma síntese de relações positivas e negativas entre os fatores componentes da dinâmica da paisagem dunar do Litoral Centro. Para os períodos subsequentes do monitoramento (2004-2005), as análises realizadas no Litoral Centro deram-se a partir de observações realizadas em todo o decorrer do período de monitoramento sem a realização de trabalhos de campos especificamente determinados, haja vista esta porção do campo dunar localizar-se em Aracaju. De modo complementar às observações diretas, procedeu-se à coleta e leitura de notícias jornalísticas sobre os efeitos antrópicos neste trecho da pesquisa. Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 Conseqüências da deficiência isolada e vitalícia do hormônio do crescimento (GH) O diagrama abaixo expõe as condições de desequilíbrio dos sistemas dunares pertencentes ao Litoral Centro em que mecanismos evidentes de antropização regulam a dinâmica biofísica dunar. 67 Recomenda-se medidas emergentes de proteção visto a necessidade de um sistema de acompanhamento sistemático gerando assim melhor controle ambiental associado a conservação e recuperação de Quadro 2 - Relações dinâmicas no litoral centro A seqüência de ligações marcada pelos fatores barreiras antrópicas, alterações no padrão de alimentação eólica e estabilidade dunar expõe relações negativas, uma vez que, a interação entre tais mecanismos remonta a alterações na distribuição vegetal sobre a superfície das dunas, fator controlante na estabilização das areias provenientes da alimentação praia-duna, acarretando assim deficiência nos processos de acresção/erosão dunar. Quanto aos resultados globais da vulnerabilidade biofísica dunar encontrados a partir do monitoramento o fato de haver sinais de mudanças no conjunto do sistema nos setores de estudo do Litoral Norte, expressivas condições de sensibilidade nos segmentos referentes ao Litoral Sul e mecanismos de degradação significativa nas porções do Litoral Centro em tão curto período de acompanhamento revela-se preocupante, uma vez que, tais alterações expressam, de modo inequívoco, a necessidade de certa restrição a uma maior utilização sobremaneira de natureza antrópica visando deter os efeitos degradantes já em curso. áreas dunares já degradadas com intuito de preservar os a riqueza natural do lugar. 6. CONSERVAÇÃO DOS AMBIENTES DUNARES COSTEIROS DE SERGIPE A procura de soluções alternativas para o desenvolvimento econômico com justiça social e racionalização do uso dos recursos naturais que atenue os impactos ambientais, é o caminho a ser perseguido pelas sociedades atuais e futuras (Roos, 2003, p 16-17). A problemática da zona costeira, tendo em vista, o grau ou a intensidade de mudanças nos processos naturais gerados pelos crescentes mecanismos de pressão humana recebeu atenção maior, nas últimas décadas, por parte de vários órgãos responsáveis pela implementação de estratégias de gestão ambiental. O desenvolvimento de vários instrumentos representados por órgãos, programas, planos, projetos e leis previstas na legislação em vigor propõem a exe- Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 68 Anízia C. de Assunção Oliveira; Rosemeri Melo e Souza cução de ações mais articuladas entre as diversas instâncias governamentais que permitam atuar na preservação, conservação e reabilitação dos ecossistemas litorâneos. Conforme Melo e Souza (2003), “no Brasil, a preocupação com a delimitação e a otimização do aproveitamento dos recursos do mar, bem como do diagnóstico das condições sócio-ambientais da faixa litorânea data de pelo menos duas décadas passadas, tendo como marco a criação da CIRM (Comissão Interministerial para os Recursos do Mar), através do Decreto nº 74.557/74, órgão de assessoria da Presidência da República que já trabalhava na elaboração da Política Nacional para os Recursos do Mar, provavelmente em resposta a avanços legislativos internacionais da época, como o estabelecimento do mar territorial de 200 milhas para o Brasil (1970), alvo de discussões em fóruns internacionais”. A Lei nº 7.661, promulgada a em 16 de maio de 1988, institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro- PNGC, como parte integrante da Política Nacional para os Recursos do Mar e da Política Nacional do Meio Ambiente, “visa orientar a utilização racional dos recursos da Zona Costeira, de forma a contribuir para elevar a qualidade de vida de sua população e a proteção de seu patrimônio natural, histórico, étnico e cultural” (Carvalho, 1994, p 17-18). Como base legal fundamental do planejamento ambiental da zona costeira do Brasil, o PNGC previa três instrumentos de ação: a criação de um Sistema Nacional de Informação do Gerenciamento Costeiro (SIGERCO); a implementação de um programa de zoneamento da zona costeira, executado de forma descentralizada pelos órgãos de meio ambiente estaduais e municipais, coordenados pelo governo federal; a elaboração de planos de gestão e programas de monitoramento para atuação mais localizada em áreas críticas. A mesma Lei que instituiu o PNGC fixa, no art.10, que “praias são bens públicos de uso comum do povo, assegurando o livre acesso a elas e ao mar e proibindo qualquer utilização ou urbanização que impeça ou dificulte o acesso à praia” determina também que os usos e atividades na Zona Costeira devem priorizar a conservação e proteção das dunas. Dunas costeiras são áreas de grande importância ecológica, dotadas de beleza cênica que compõem a diversidade de ambientes do litoral. Enquadradas em categorias de manejo referente ao Sistema de Unidade de Conservação a nível federal, são consideradas como áreas de preservação permanente. Nesse sentido, “por ser uma área de preservação permanente fica vedada qualquer forma de utilização e apropriação deste espaço, que deve ser preservado em sua integridade” (Cavedon e Diehl, 2000, p. 348). O grau ou a intensidade de mudanças nos processos naturais em ambientes dunares pode ser detectado a partir de um diagnóstico local das condições de sustentabilidade das dunas sucedido por monitoramento permanente como forma de acompanhamento dos fatores físicos, bióticos e antrópicos intervenientes na dinâmica natural de tais ecossistemas. O diagnóstico e o monitoramento socioambientais atuam como procedimentos relevantes para o manejo adequado dos ecossistemas. Um plano de monitoramento ambiental não é necessariamente um sinônimo de levantamento das condições ou características ambientais. Por definição, monitor é um aparelho, uma pessoa ou estrutura capaz de emitir alertas a respeito do mau funcionamento de sistemas como um todo de partes desses sistemas (Almeida e Tertuliano, 2002, p.161). Em síntese, monitorar implica estudar ambientes com a finalidade expressa de detectar alterações, ou seja, identificar áreas vulneráveis que possam ser Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 Conseqüências da deficiência isolada e vitalícia do hormônio do crescimento (GH) atribuídas a fontes degradantes e dar o alerta em caso de impacto. Considera-se impacto ambiental “qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetem: a saúde, a segurança e o bem-estar da população; as atividades sociais e econômicas; a biota, as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; a qualidade dos recursos ambientais” (Conama, 001, 23/01/1986). O processo de avaliação de impacto ambiental é parte integrante da Política Nacional do Meio Ambiente e define-se como “um estudo destinado a identificar e interpretar - assim como prevenir -as conseqüências ambientais ou efeitos que determinados projetos ou ações podem causar à saúde e ao bemestar do homem a ao entorno, ou seja, os ecossistemas em que o homem vive e de que depende” (Bolea, 1984 apud Bastos e Almeida, 2002, p. 81). A avaliação ambiental é composta por práticas de diagnóstico ambiental que deve caracterizar as potencialidades e vulnerabilidades da área de estudo. Como bem argumentam Almeida e Tertuliano (2002, p. 156-157). “A avaliação da vulnerabilidade e sensibilidade é função da amplitude do intervalo de limites de tolerância às variações dos fatores abióticos e bióticos. Quanto mais próximo ela estiver de um de seus limites, mais vulnerável será”. Sua utilização como indicadora de condições ambientais e como instrumento de avaliação para fim de gestão ambiental exige, entretanto, que seja avaliada do ponto de vista do grau de detalhamento do nível de conhecimento desejado, dos critérios utilizados para obtenção da informação necessária e sua hierarquização”. 69 O entendimento das verdadeiras dimensões do problema ambiental é passo fundamental para o desencadeamento de propostas associadas ao melhor planejamento de práticas e instrumentos de gestão integrada com políticas públicas que priorizem a conservação do meio ambiente. O planejamento ambiental deve considerar o melhor ajustamento entre o aproveitamento dos recursos e as medidas de conservação das condições ecológicas locais sem que se comprometa a biodiversidade, o equilíbrio natural e a capacidade de resiliência dos ecossistemas afetados, tendo em vista que vigora é a pressão gerada pelas necessidades de consumo, e não a preocupação com a capacidade de suporte do ambiente pelos impactos da atividade transformadora, a qual define os objetivos do planejamento territorial. O Planejamento Territorial inscreve-se no contexto dos processos definidores de marcos regulatórios referentes à gestão do território. Implica a adoção, de um lado, de estratégias de tomada de decisão pelos vários atores sociais imbricados na (re)apropriação e ressiguificação das práticas sociais de uso e ordenação dos recursos ambientais (Melo et al, 2004, p 64). Como percebemos o meio ambiente é uma questão que deve nortear nossa compreensão sobre a crise ambiental, uma vez que, as práticas humanas seguem padrões regulados pelo desenvolvimento econômico sem precedentes que atua desarticuladamente com as políticas de conservação. As propostas de conservação do meio ambiente devem então aglutinar formas de mudanças na relação homem-natureza, posto que, os bens ambientais necessitam ser vistos de outra maneira, ou seja, de uma ótica que não vislumbre apenas o consumo exacerbado dos chamados recursos e que priorize a melhor qualidade de vida e da própria sobrevivência das espécies sobre o planeta. Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 70 Anízia C. de Assunção Oliveira; Rosemeri Melo e Souza O presente trabalho baseado nos resultados do diagnóstico e monitoramento socioambiental, envolvendo o acompanhamento e a análise integrada dos condicionantes biofísicos e antrópicos, alertou para a atual situação das dunas, posto que, as características encontradas notificaram um caráter de urgên- cia na aplicação de medidas concretas apoiadas no conhecimento ora disponível para a formulação de estratégias específicas de gestão e conservação desses ambientes visando a concertação dos usos múltiplos pautada em um elenco de prioridades que levem em conta seu estado atual de vulnerabilidade. Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 Conseqüências da deficiência isolada e vitalícia do hormônio do crescimento (GH) 71 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, A C. de. Dunas de Quiaios, Gândara e Serra da Boa Viagem. Fundação Calouste Gulbenkian. 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Revista da Fapese, n. 2, p. 51-72, jul./dez. 2005 Revista da Fapese de Pesquisa e Extensão, v. 2, p. 73-88, jul./dez. 2005 73 A leitura de literatura infantil na alfabetização: o que falam/fazem os professores sobre essa prática? R e s u m o Maria de Fátima Monteiro* O texto apresentado constitui-se uma síntese da dissertação do mestrado intitulada “A Leitura de Literatura Infantil na Alfabetização: o que falam/fazem os professores sobre essa prática?”, realizada pelo Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE, sob orientação da Profª Drª Eliana Borges Correia de Albuquerque, defendida em 15/ 12/2004. A dissertação buscou analisar as práticas de leitura, desenvolvidas na alfabetização, mais especificamente no que diz respeito à literatura infantil. Participaram do estudo seis professoras de alfabetização que trabalhavam em duas escolas da cidade de Garanhuns/PE, com biblioteca, sendo uma da rede Estadual de ensino e outra da rede Municipal de ensino. Em cada uma das escolas foram selecionadas professoras com formação nos seguintes níveis: só magistério do 2º grau, graduação em pedagogia ou outra licenciatura e pós-graduação. No âmbito desse trabalho, o professor estaria sujeito a um conjunto de experiências de leitura que “influenciariam” as práticas de leitura efetivadas por ele junto a seus alunos. Assim, na análise das entrevistas, contatou-se que as professoras têm procurado desenvolver um trabalho de leitura de diferentes textos, entre eles o livro de literatura infantil, os quais eram lidos, principalmente, objetivando trabalhar algum conteúdo específico ou manter os alunos calmos e disciplinados. Já nas observações, as professoras da escola Municipal liam, freqüentemente, os textos de livros didáticos, enquanto da escola Estadual, por trabalharem a partir de projetos, realizaram leituras de diferentes gêneros. Observou-se, ainda, que as experiências de formação das professoras estavam influenciando no desenvolvimento de suas práticas de ensino de leitura. PALAVRA-CHAVE: Leitura, Literatura Infantil, Professor, Escola. 74 Maria de Fátima Monteiro N esses últimos anos, temos observado que os textos de literatura infantil têm sido apreciados por muitos estudiosos, na medida em que eles se integram no ensino escolar, como elemento imprescindível para a formação do leitor. No entanto, temos conhecimento que um leitor só pode se constituir, de fato, mediante uma prática constante de leitura organizada em torno da diversidade de textos que circulem socialmente. Assim, torna-se interessante refletirmos sobre o modo como, atualmente, a escola vem difundindo as leituras de livros de literatura infantil no desenvolvimento de um trabalho de alfabetização. 1. A ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA INFANTIL Uma das considerações mais importantes que nos leva a falar da leitura de literatura infantil está no fato de ela guardar características próprias de sua função, enquanto texto em que o leitor conduz a leitura de maneira própria, atualizando no tempo e no espaço. Não se trata simplesmente de extrair informações da escrita, decodificando-a letra por letra, palavra por palavra. Além disso, temos conhecimento que a leitura realiza um trabalho ativo de construção do significado do texto, a partir dos seus conhecimentos sobre o assunto, sobre o autor, enfim, sobre tudo o que se sabe sobre a língua: características do gênero, do sistema de escrita, se estão sendo utilizados livros, revistas ou jornais, etc. No entanto, alguns estudiosos têm questionado que o fato de os textos infantis terem conseguido entrar no espaço escolar, isso não significa, exatamente, que a escola saberia que lugar eles deveriam ocupar, pelo menos do ponto de vista do conhecimento e do significado da obra literária. Desse modo, Soares (1999), ao falar sobre a escolarização da literatura infantil destaca dois caminhos que podem ser seguidos: O primeiro diz respeito à “interpretação das relações entre literatura infantil e escolarização como sendo a produção de literatura para a escola, para a clientela escolar, a literatização do escolar” (p. 19-20). O outro caminho a que se refere Soares (1999) relaciona-se à apropriação, pela escola, dos textos literários, destinados às crianças, ou de interesse delas, a fim de atender aos seus propósitos. Nessa perspectiva, a literatura infantil, ao entrar na escola, passa por um processo de escolarização, como acontece com os conhecimentos e práticas sociais nela privilegiados. O problema maior, segundo essa autora, não reside nesse processo em si, mas em como ele tem sido realizado. Como afirmado por ela: O que se pode é distinguir entre uma escolarização adequada da literatura – aquela que conduza mais eficazmente às práticas de leitura que ocorrem no contexto social e às atitudes e valores que correspondem ao ideal de leitor que se quer formar - e uma escolarização inadequada, errônea, prejudicial da literatura aquela que antes afasta que aproxima de práticas sociais de leitura, aquela que desenvolve resistência ou aversão à leitura (SOARES, 1999, p. 25). A inadequada escolarização da literatura infantil, referida por Soares perpassa por algumas instâncias que utilizam a literatura escolar como fins formadores e educativos. Dentro dessa situação, a autora chama a atenção, principalmente, para a presença de textos literários nos livros didáticos, fruto de uma má pedagogização/didatização relacionada a diferentes aspectos: ênfase na apresentação de apenas dois gêneros – a história e o poema –, limitando as crianças do contato com outros textos narrativos (biografia, diário, memórias, etc.); o trabalho é sugerido a partir da leitura dos textos – exercícios de ortografia e gramática – o que os transforma em “pretextos” para o ensino desses conteúdos; apresentação de textos fragmentados/mutilados e adaptados, sem possuírem uma unidade de sentido; priorização de autores e obras; e ausência das referências bibliográficas dos textos, etc. Assim, a escola, que é um ambiente que deveria realizar leituras nas situações de valorização do texto literário a partir do diálogo, despertando na criança o prazer e as relações culturais, ou subjetivas, alinhadas ao texto escrito, não o Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 A leitura de literatura infantil na alfabetização: o que falam/fazem os professores sobre essa prática? tem feito. Ao contrário, o que se tem observado é a realização de atividades organizadas com objetivos específicos de aprendizagem. Por outro lado, todos nós temos conhecimento da importância da leitura de textos infantis enquanto prática social. Não falta quem a recomende, não há professor que não saliente a sua importância e não há programa, atualmente, que não a torne prioritária. Então, que motivos levariam o professor (ou a escola) a escolher um tipo de leitura que reflete, muitas vezes, em uma leitura literária inadequada? Um dos motivos pode estar no que Cafiero e Correia (2003) enfatizam sobre os textos que são chamados de literários, mas, que, muitas vezes, são produzidos somente com a intenção de ensinar determinado conteúdo, construindo o que se convencionou chamar de para-didático. Uma outra questão é que, normalmente, o livro literário não é procurado socialmente pelas escolas enquanto produto que é lançado nas livrarias para serem avaliados pelo consumidor; quanto ao seu valor literário; e sim, encomendados dentro dos moldes que veiculam os interesses de algumas escolas ou de certas editoras. Além disso, reconhecemos que aparelhar a escola é algo que requer condições favoráveis, não só dos recursos materiais disponíveis – biblioteca, livros de diversos gêneros à disposição dos alunos, inclusive para empréstimo – mas, e principalmente, em relação ao uso que deles se faz nas práticas de leitura e no gostar da leitura. Diante de tais desafios que se colocam para a formação de leitores literários, Soares (1999, p. 42; 47) defende, também, a possibilidade da descoberta de uma escolarização adequada da literatura, que obedecesse, no momento da leitura, “a critérios que preservem o literário”; que propiciem ao leitor a “vivência do literário, e não uma distorção ou uma caricatura dele”. A autora – considerando que a relação da leitura literária no interior de um projeto de formação de leitores, a partir dos repertórios de leitura dos mesmos em direção a um alargamento de horizontes – defende a descoberta de uma escolarização que “conduzisse eficazmente às práti- 75 cas de leitura literária que ocorrem no contexto social e às atitudes e valores próprios do ideal de leitor que se quer formar”.Todas essas possibilidades de construir uma escolarização adequada têm como objetivo levar à autonomia dos leitores, a partir do esclarecimento participativo na leitura com os professores, abrindo caminho para a valorização dos textos literários. Com isso, torna-se necessário repensar a importância da leitura como sistema de ligação ao livro encontrado na escola, na biblioteca, no acervo em sala de aula, na livraria... É nesse momento, também, que se busca entender que possibilidades o professor tem tido de leitura na sua formação de leitor, ou o que ele tem oferecido como formador de leitores no processo de interação entre o texto infantil e a criança, em especial, na alfabetização. 2. ALGUNS ASPECTOS SOBRE A FORMAÇÃO DO PROFESSOR-LEITOR Pensar na formação do professor de educação infantil, enquanto leitor, é pensar que, se existem políticas de leitura necessárias para tal formação, o que tem levado à criação de programas especiais de formação docente, é porque o professor deve estar imbuído das informações para trabalhar a formação do aluno-leitor. Nesse sentido, Santos (2003) adverte que o processo de formação de professores, no Brasil, tem se agravado, acentuadamente, tendo em vista a permanência do modelo de formação predominante, como as licenciaturas curtas e plenas, estruturadas a partir da dicotomia preparação pedagógica/conhecimento específico da disciplina, preparação para o ensino/preparação para a pesquisa. Além disso, a autora acrescenta que os cursos de formação de Magistério, de Pedagogia, de Letras, por exemplo, em sua maioria, deixam a desejar, porque discutem superficialmente a problemática relacionada ao desenvolvimento infantil bem como o processo de aquisição da leitura e da escrita, gerando lacunas e despreparo na formação dos alfabetizadores. Por outro lado, quando se considera a formação do docente, sob o aspecto de cursos para atualização na formação do professor, Aguiar (1997) enfatiza que quando eles participam, alegam Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 76 Maria de Fátima Monteiro que os cursos têm pouca duração e não oferecem uma ajuda concreta, sendo a contribuição mínima diante de suas atividades na escola. Esse sentimento apontado pelos professores é identificado por Santos (1999) como uma falta de articulação entre a teoria e a prática, articulação essa indispensável para que ocorra uma reflexão de suas práticas em sala de aula. Nesse sentido, a autora defende que o modelo de formação em serviço não seja por práticas idealizadas e, sim, por uma via que mantenha uma postura crítico-reflexiva, de forma contínua, tendo a prática como eixo. Dessa maneira, que tipo de leitor é o professor? Quais suas experiências de leitura? Como elas foram constituídas? Os estudiosos Batista (1998) e Rosa (2003) referem que os professores são, no geral, “leitores escolares”. Ou seja, são leitores que tiveram uma “má escolarização”; que vivenciaram práticas de leitura objetivando, apenas, a compreensão/resolução de “atividades escolares”. Desse modo, eles tenderiam a investir em suas leituras adquiridas escolarmente, mesmo nas leituras não diretamente voltadas para a escola ou para a prática docente. Albuquerque (2002) analisando as experiências de leituras de um grupo de professoras constatou que, durante a infância, elas tinham lido basicamente textos de livros didáticos. Também, com relação às suas leituras no momento da pesquisa, elas liam, principalmente, o que estava relacionado às suas práticas de ensino, embora, inicialmente, elas tenham reconhecido a importância de estimular os alunos à leitura dos textos de literatura infantil, justificando, por outro lado, que nem sempre isso era possível. Assim, por exemplo, os livros desse tipo de literatura eram lidos com o objetivo de se ensinar algum conteúdo específico. Dessa maneira, Albuquerque refere que elas parecem incorporar o que está sendo prescrito nos discursos acadêmicos e oficiais, sem se desvencilharem das práticas que têm constituído seus trabalhos de ensino nessa área. Nesse aspecto, Zappone (2001) destaca que o saber acadêmico que o professor tem sobre a leitura é de circulação restrita, uma vez que ele chega até o docente de modo fragmentado, seja através de revistas educativas, como a Nova Escola, seja através dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs,1998 ), que adotam maneiras para direcionar a prática do professor em sala de aula. Diante do exposto até então, faz-se necessário refletirmos sobre a seguinte questão: o discurso oficial – dos PCNs, por exemplo – exigem que os professores desenvolvam, em seus alunos, o gosto e a competência para a leitura de diferentes gêneros, mas, eles próprios, no entanto, em suas experiências escolares e extra-escolares, não se formaram-leitores na perspectiva hoje enfatizada na academia e nos textos oficiais. Assim, vem a questão: será que a leitura dos textos infantis em nossas escolas acontece porque alunos e professores são usuários desses textos nos acervos escolares, havendo sua introdução dentro de uma prática constituída pelo prazer de ler? Ou ela é abordada de forma restrita e direcionada ao cumprimento de tarefas do livro escolar? Dessa forma, consideramos relevante entender melhor o que as professoras falavam sobre suas práticas de leitura de literatura infantil e suas experiências prévias enquanto leitores, nas influências dessas leituras. 3. PRÁTICAS DE LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO Realizamos este estudo investigando as práticas de leitura desenvolvidas em turmas da alfabetização, especificamente no que diz respeito à literatura infantil. A amostra foi composta por (06) seis professoras de (02) duas escolas das Redes Estadual e Municipal de Garanhuns-Pe. As duas escolas foram escolhidas por elas serem as únicas da rede pública com biblioteca, além dos acervos de livros de literatura infantil (Quadro 1.). Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 77 A leitura de literatura infantil na alfabetização: o que falam/fazem os professores sobre essa prática? Quadro 1 - Dados gerais das Escolas Escolas Municipal Estadual Modalidade Nº total Nº de alunos de Ensino de Alunos na Alfabetização Nº de salas p/ turma na Alfabetização Biblioteca Nº de Livros de Literatura Infantil Sala de Leitura E. Infantil e Fundamental 1.917 75 03 01 300 01 E. Infantil e Fundamental 450 168 06 01 150 01 Foram selecionadas (03) três professoras de cada escola, cada uma possuindo um nível de formação: magistério do 2º grau, graduação em pedagogia ou outra licenciatura e pós-graduação, em nível de especialização (Quadro 2). Para buscarmos os dados, utilizamos como instrumento de coleta, a entrevista semi-estruturada e a observação. Os dados da pesquisa foram coletados no período de agosto a dezembro de 2003. Sendo quarenta e oito horas de observação por sala de aula e doze horas de entrevista semi-estruturada por professora. O estudo ocorreu dentro de um olhar qualitativo admitindo a experiência subjetiva do investigador e dos participantes, para construção de uma leitura de acontecimentos que se passaram num determinado momento, dentro do contexto escolar. O contexto extra-escolar também foi contemplado, a partir da rememorização dos sujeitos, sobre suas ex- periências de leitura e de ensino de leitura. Na entrevista procuramos investigar as seguintes questões: O que se lia na sala de aula? Havia leitura de textos de literatura infantil? Como eram lidos? Pra quê? Procuramos saber sobre suas práticas de leitura em torno do livro didático, dos livros de literatura infantil, e a disponibilidade desses livros para leitura dentro e fora da sala de aula. Dessa forma quando indagamos a respeito de suas práticas de ensino da leitura, cinco das seis professoras entrevistadas mencionaram que liam diferentes textos: Poesia, literatura infantil, música , parlenda, lista de compra, jornais... Como pode ser observado, as professoras têm procurado oferecer aos alunos os mais variados gêneros de textos, possibilitando que eles se familiarizem com os diferentes tipos de discurso. Uma professora destacou, também, o trabalho com a diversidade textual contemplado no uso do livro didático, que contém diferentes gêneros: Quadro 2 - Dados gerais dos professores Formação Alzira Magistério Escola Municipal Berenice Catarina Grad. geografia Grad. biologia/ Pós-graduação gestão/escolar Dália Magistério Escola Estadual Elvira Francisca Grad. História Grad.Pedagogia/ Geografia Pósgrad. geografia Idade 36 anos 52 anos 30 anos 47 anos 42 anos 36 anos Tempo de Magistério 18 anos 32 anos 10 anos 15 anos 15 anos 13 anos Tempo de Ensino na Alfabetização 3 anos 4 anos 1 ano 2 anos 10 anos 3 anos Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 78 Maria de Fátima Monteiro “A cartilha traz textos que são muito interessantes, assim, trabalha parlenda, adivinhações, que vai [sic] também trabalhando o lógico, né?” (FRANCISCA). Uma professora da escola municipal ressaltou a importância da literatura infantil no ensino da leitura, a partir do interesse das crianças pelos textos de literatura infantil: Essa experiência de leitura de diferentes textos é associada, principalmente, à possibilidade de expansão do conhecimento e de aprendizagem. Assim, três professoras destacaram o enriquecimento e a aprendizagem a partir das leituras que realizam em sala de aula: “Eu, sem saber da importância da literatura infantil no ensino da leitura, na educação infantil, já fazia isso” (BERENICE). “Porque é através da leitura que a gente conhece o mundo, que a gente aprende”. (ALZIRA). “A leitura é uma forma de repassar as histórias; Nós estamos, agora, com um novo projeto de deixar as crianças letradas, né? Então, isso incentiva, através da leitura, porque ela vai lendo todo tipo de leitura e ela vai se enriquecendo” (DÁLIA). “E ler todos os dias, porque eles lendo vão aprender palavras diferentes, palavras novas, que vai [sic] ajudá-los, né?” (ELVIRA). A leitura de diferentes textos também foi realizada, principalmente, para atender aos propósitos da escola, em cumprimento de sua programação de ensino. Uma professora da escola municipal mencionou, entre os textos lidos para esse fim, o uso de textos cartilhados e de palavras soltas: “Eu leio poesias, poemas; leio histórias infantis, textos com palavras soltas, assilabação” (BERENICE). Apenas uma professora não mencionou, explicitamente, a leitura de diferentes gêneros. Ela citou a leitura de histórias e de textos relacionados com as datas comemorativas: “Eu leio história, assim, e gravo a fita. Leio, também, assim, datas comemorativas, né?” (CATARINA). É interessante observar nos depoimentos acima citados que, dentre os textos mencionados pelas professoras, os de literatura infantil se fizeram presentes, como as histórias, as fábulas, os contos de fada, etc. Parece haver uma preocupação, por parte das professoras, quanto à leitura de textos atrativos para seus alunos, considerando a faixa etária deles. Uma professora da escola estadual, por exemplo, destacou não só a preferência das crianças pelas histórias infantis como também pelas músicas infantis: “Todo tipo de leitura é importante, mas, o [sic] que eles mais se prendem, realmente, é a música infantil e as histórias infantis” (DÁLIA). 3.1 Literatura Infantil: o que era lido As seis entrevistadas destacaram as preferências das crianças pelos contos clássicos e que, por isso, eram priorizados por elas. É possível que o fato de todas as professoras, ao serem solicitadas a listar os textos de literatura infantil que liam para os alunos, terem mencionado contos clássicos se dê não só por serem estes os da preferência dos alunos, mas, também, porque eles lhes eram conhecidos e familiares. Outra preferência das professoras era pelos textos curtos por possibilitarem um trabalho com a leitura e escrita de palavras, ou do próprio texto, atividades relacionadas à apropriação do sistema de escrita alfabética: “Eu trabalho uma história, assim, que eles gostam, né? Texto pequeno, né? Aí, dali, a gente pode ver os personagens, eles vão identificando as letras...” (ELVIRA). Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 A leitura de literatura infantil na alfabetização: o que falam/fazem os professores sobre essa prática? 3.2 As Atividades de leitura de literatura infantil As atividades desenvolvidas pelas professoras após a leitura de livros de literatura infantil foram agrupadas em três blocos: 1. Professoras que realizam atividades de leitura e interpretação com questões orais e dramatização: Alzira e Berenice, ambas da escola municipal. 2. Professoras que realizam atividades de leitura e interpretação a partir de desenho e aproveitam o texto para trabalharem algumas palavras: Catarina e Francisca. 3. Professoras que realizam atividades de leitura do texto, seguida do reconto oral e escrito do aluno: Dália e Elvira, ambas da escola estadual. Pelo fato de a criança não estar alfabetizada, algumas professoras sentem a necessidade de contar a história modificando algumas palavras que elas julgam difíceis para as crianças compreenderem, como se a leitura do texto, na forma como ele está escrito, fosse incompreensível ou de difícil concentração para as crianças. “Eu conto histórias, sem ser da leitura, porque eu acho que contando história eles se desenvolvem mais na aprendizagem, na escrita. Contar histórias fica melhor para fazer a dramatização e, dramatizando, dá mais vida, mais ânimo e a leitura, não” (CATARINA). “Têm as historinhas que eles gostam muito só que elas são muito longas. Por conta disso, eu sempre leio antes e, depois, procuro contar a história... porque aí eles vão, né? Eu vou lendo a história, só que eles não percebem que eu já vou conduzindo pra que eles não percam, assim” (FRANCISCA). 79 3.3 Para que ler livros de literatura infantil na sala de aula? Para a maioria das professoras da escola municipal essa atividade era importante para manter os alunos atentos, calmos e disciplinados: “… Principalmente na questão de comportamento. Muitas vezes, quando chegam na escola, chegam muito revoltados, muito agressivos...”(ALZIRA). “ Eles ficam mais atentos ao texto, ficam mais silenciosos, eles prestam mais atenção”. (CATARINA). As três professoras da escola estadual relacionaram a leitura de textos de literatura infantil ao ensino/aprendizagem de conhecimentos relacionados a alguma disciplina curricular, como Ciências ou Língua Portuguesa: “Pode trabalhar ciências, trabalhar a gramática, quer dizer, ela é muito rica e, ao mesmo tempo, tá no texto e o interessante é que eles gostem.” (DÁLIA). “... Partindo de uma história, de um texto, de uma frase, à parte da gramática ela é tirada do texto” (FRANCISCA). “Geralmente eu leio e vou mostrando, né, as figuras, mostrando, também, onde estou lendo. E ler todos os dias porque, eles lendo, vão aprender palavras diferentes, palavras novas, que vai [sic] ajudá-los, né” (ELVIRA). Como a leitura na escola acontece em vários momentos, três professoras destacaram a importância do professor ler para que o aluno desenvolva o gosto/prazer pela leitura: “Quando o aluno, ele sente que o professor gosta de ler, ele vai ter, também, esse gosto” (ELVIRA). Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 80 Maria de Fátima Monteiro “É necessário, em primeiro lugar, que o professor leia. Certo? Goste de ler. Sinta esse prazer. Porque nós somos o espelho pra criança, né?” (ALZIRA). “Ele (o professor) que está formando, ele tem que ler muito; ele tem que interagir com o próximo.” (FRANCISCA). Mas, a falta de tempo e a precariedade de recurso financeiro foram utilizadas por algumas professoras para justificar a não leitura na escola. No entanto, é importante destacar que as duas escolas onde as professoras trabalham possuem biblioteca, com um razoável acervo de livros de literatura infantil. 3.4 O uso da biblioteca Identificamos na fala das professoras que a biblioteca não estava desempenhando uma das principais funções que motivou a sua criação, qual seja, a de viabilizar o acesso de alunos e professores a diversos tipos de leituras. 4. EXPERIÊNCIAS DE LEITURA DAS PROFESSORAS Uma das maneiras utilizadas, na entrevista, para apreendermos as experiências de leitura das professoras, foi a retomada das primeiras convivências de leitura, desde o que elas leram na infância até as suas leituras atuais e de formação, tanto no espaço escolar como fora dele. Dessa forma, solicitamos as professoras que lembrassem quem, na convivência diária, as motivaram à leitura, uma vez que a participação nessas situações envolve e desperta a vontade de ler, também. Nesse sentido, algumas professoras lembraram de experiências de leitura, na infância, nas seguintes situações: · Experiência de ouvir outro lendo (da família e fora da família): Das seis professoras, apenas uma da escola municipal (Catarina) não teve oportunidade de ouvir leituras na infância. Nessa escola, duas professoras (Alzira e Berenice) mencionaram convivência inicial de leitura fora do ambiente familiar. · Experiências de ouvir histórias contadas: “Sempre eu trabalho com eles na sala de aula. Pra mim é bem melhor, porque eles são bem pequenos. E, pra mim, é mais prático trabalhar na sala de aula com eles” (ALZIRA). As professoras Catarina e Dália lembraram que ouviam mais histórias contadas por adultos, do que propriamente lidas: “Verdadeiramente, eu tenho utilizado pouco, porque eu faço mais uso da sala de aula” (FRANCISCA). “Minha mãe me contava as historinhas. Ela inventava as histórias mais do que lia” (CATARINA). Desse modo, a biblioteca não se tem constituído, para os alunos, como um local apropriado, onde se desfruta das variedades do que se quer ler. Com relação ao empréstimo de livros para ler em casa, as crianças não levavam porque não tinham o hábito de freqüentar a biblioteca ou porque as professoras temiam que danificassem os livros. A falta de recursos materiais/físicos na sala de aula, para formação de um cantinho de leitura, também foi mencionada por todas as professoras “Minha irmã mais velha já era professora e contava histórias para mim” (DÁLIA). · Experiências de realizar sua própria Leitura: Para quatro professoras, os textos infantis se fizeram presentes nas lembranças de realização de suas próprias leituras. Apenas as professoras Catarina e Francisca não falaram de tais lembranças de leitura Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 A leitura de literatura infantil na alfabetização: o que falam/fazem os professores sobre essa prática? · Experiências de leitura fora da escola: As lembranças de leitura de textos literários ou revistas, fora do ambiente escolar, na infância e na adolescência, também foram mencionadas pelas quatro professoras. Francisca apenas desfrutou de leituras do livro didático e Catarina por ter tido mais contato com a oralidade, no ambiente familiar, não mencionou lembranças de leitura fora da escola. · Experiências de leitura no espaço escolar: Um outro elemento importante para a formação do leitor é a prática de leitura que pode ser vivenciada na escola, por ser ela um espaço que deve socializar o conhecimento e que assegura, enquanto instituição de ensino, o aprendizado da leitura. Assim, poderemos destacar, analisando as falas das professoras, que a escola, que deveria ser um dos principais pontos de contato de lembranças de leitura, mediado pelo professor, deixou lacunas na infância e na adolescência, para a maioria das professoras da escola Municipal em relação às professoras da escola Estadual, que mencionaram lembranças de livros didáticos ou leitura de textos literários ou didáticos. A partir dos textos literários, destacamos a professora Elvira como a única que referiu lembranças de leitura desses textos, na infância e na adolescência, dentro e fora do espaço escolar. “Eu li muito na escola esses livros que a gente conhece hoje, os livros de literatura infantil, como a Branca de Neve e outros. Foi na escola que eu tive o gosto pela leitura” (ELVIRA). · Experiências de Leituras na formação inicial (Magistério ou outros cursos) Cinco professoras lembraram de suas leituras em sua formação inicial. Dessas, apenas duas professoras da escola estadual fizeram comentários sobre suas leituras: 81 “Eu li o Montessori, inclusive, eu tenho ele. Às vezes, até eu pego, assim... Porque é o construtivismo, na visão européia. Mas, é o construtivismo” (DÁLIA). “A minha preferência foi Paulo Freire, muito marcante para mim. Também Emília Ferreiro, Werneck. Coisas que fazem com que o educadorvápensandonasuapostura”(FRANCISCA). · Leituras atuais das professoras Para investigarmos as leituras atuais das professoras, indagamos, inicialmente, se elas gostavam de ler e que leituras elas estariam fazendo atualmente. Dessa maneira, percebemos diferenciação em relação à finalidade e ao caráter de suas escolhas de leitura, que aconteceram dentro dos diversos contextos em que cada uma privilegiou. Assim, percebemos, com as falas das seis professoras, que houve um consenso em gostar de ler dentro dos diversos contextos em que privilegiaram ou puderam privilegiar suas leituras. Entendemos que as leituras atuais das professoras Alzira, Berenice e Francisca, em relação as outras professoras, têm sido alvo de preenchimento do cumprimento escolar, voltadas para a formação acadêmica ou para o ensino dos seus alunos. Já a carga horária não disponível para as leituras, como também a participação do ensino em outras turmas, criou um obstáculo entre o trabalho e o prazer das leituras atuais para a professora Francisca. Com isso, podemos pensar que a existência de livros disponíveis e de fácil acesso não garante, por si só, e necessariamente, o surgimento da leitura enquanto experiência de prazer e de conhecimento, quando o professor não dispõe de seus momentos de leitura, distanciados das obrigações do trabalho escolar. Por outro lado, em outros momentos da vida desses professores, podem ter recebido incentivos de leituras voltados para a sua formação, numa perspectiva de despertar novos leitores. Dessa maneira, poderemos identificar, por exemplo, quais foram às leituras realizadas nos seus respectivos cursos ou capacitações. Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 82 Maria de Fátima Monteiro · Leituras voltadas para a formação de leitor na Educação Infantil Nesse momento da entrevista, indagamos às professoras que leituras elas têm realizado para a formação de leitor na educação infantil, uma vez que as políticas de leitura apresentam programas especiais de formação docente para a formação do aluno-leitor. Assim, de acordo com as respostas, agrupamos as professoras com os textos dos programas que foram lidos ou não: · Professoras que leram textos do PCN e livros do PNBE: Alzira e Berenice; · Professoras que leram textos do PROFA: Dália e Elvira; · Professoras que não leram nenhum desses textos: Catarina e Francisca. Em relação aos textos dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, a professora Berenice destaca a sua importância, da seguinte maneira: “Eu fiz um curso (apresentação dos PCNs) maravilhoso para educação infantil [...]. Mas, o que mais gostei foi quando eles falaram para colocar parlenda e motivar a criança a contar histórias, coisa que eu já trabalhava. A gente recebeu os PCNs e, geralmente, eu dou uma olhada neles” (BERENICE). Percebemos, na fala da professora Berenice, que, em sua leitura, não houve esclarecimento sobre a importância da leitura de textos literários na formação de leitores ou, então, ela não se apropriou do texto, como aconteceu com a professora Alzira, que refere a importância de despertar os alunos para a leitura: “Nós tivemos capacitação (apresentação dos PCNs) que abrange todos os setores voltados à leitura... A importância de se ler, a importância de fazer com que o aluno se desperte para uma nova realidade... Nós, também, recebemos os Parâmetros Curriculares” (ALZIRA). Já os textos do Programa Biblioteca na Escola – PNBE, que foram lidos pelas professoras Alzira e Berenice, não foram suficientes para a construção do acervo de livros na sala de aula: “... Então, você tem a capacitação, mas quando você volta para a sala de aula, existe aquela dificuldade que você tem que enfrentar... Para fazer um acervo com esses livros, fica quase que impossível, porque você faz e no outro dia você chega e não existe mais. Isso prejudica o aluno e atrapalha a aprendizagem, porque, com certeza, no outro dia você não encontra mais os livros” (ALZIRA). Esse sentimento, apontado na fala da professora Alzira, reflete a falta de articulação entre a teoria e a prática, quando ocorrem as formações em serviços a partir de práticas e concepções que se chocam com a realidade da escola. Essa situação vai de encontro ao sentido da reflexão na ação referida por Santos (1999). Por outro lado, a professora Berenice, que é da mesma escola de Alzira, não demonstrou dificuldade em montar o acervo de livros em sala de aula, muito embora, durante as observações realizadas em sua sala de aula, não tenham sido encontrados livros à disposição das crianças, e sim, dentro do armário. “Eu recebi alguns livros de literatura infantil para montar o acervo, mas, antes, eu já tinha alguma coisa, e, aí, eu montei o acervo na sala de aula. Eu prefiro trabalhar com acervo da sala de aula, em vez da biblioteca, porque as crianças não ficam muito quietas e eu não posso falar muito” (BERENICE). Duas professoras da escola estadual enfatizaram leituras de textos do Programa de Alfabetização – Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 A leitura de literatura infantil na alfabetização: o que falam/fazem os professores sobre essa prática? PROFA e demonstraram em suas falas como contribuir com a formação do leitor, no sentido de preparar e despertar a criança para a leitura. Assim, a professora Dália chama a atenção para o significado da alfabetização e das tarefas escritas que, muitas vezes, as crianças desenvolvem sem leituras: “[...] porque a pessoa alfabetizada, não é só a pessoa saber ler. É a pessoa ter conhecimento... O PROFA prepara a gente a despertar à leitura, porque é o seguinte: a gente só escreve o que lê, né? O que a gente escreve sem ler tá copiando, né?” (DÁLIA). A professora Elvira comenta a importância das crianças lerem o texto que elas gostem, a importância da professora ler com eles literatura, de irem à biblioteca e de levarem livros para serem lidos em casa: “Nós fizemos um curso todo voltado para a leitura. Foi o PROFA. Esse curso foi de dois anos, para resgatar a leitura dos meninos. Querer ler mais, voltar a ler, ler com os meninos. Outra leitura foi para que o professor sempre levar o aluno para biblioteca. Trabalhar com ele literatura, trabalhar com ele textos que eles gostassem; que eles levassem para casa os livros.” (ELVIRA). Nas falas das professoras da escola estadual, as suas leituras de textos, para processo de alfabetização, tiveram uma relação de esclarecimento sobre o papel do professor-leitor na formação do aluno-leitor. Porém, tivemos conhecimento que, quando se trata da questão em que as crianças possam levar os livros para lerem em casa, a professora Elvira refere que só emprestaria a partir de uma mini-biblioteca em sala de aula, com receio de os livros da biblioteca da escola desaparecerem. Por outro lado, percebemos que essa mesma professora resgata o texto lite- 83 rário em diversos momentos de sua fala, com seus alunos, nas diversas situações de aplicação prática de leitura, existindo uma relação de experiências desses textos com suas lembranças de leitura na infância e na adolescência. Outras professoras, como Catarina e Francisca, não lembraram ou não participaram de leituras que fossem voltadas para a formação de leitor na educação infantil nem para a organização de livros para a montagem do acervo em sala de aula. A professora Francisca, que não participou de nenhum desses cursos ou textos voltados para a leitura em sua formação, demonstrou insatisfação com o curso de pedagogia, por não trabalhar outros textos que envolvessem, por exemplo, a literatura. “Eu não tenho participado de cursos voltados para leitura, na minha formação. Eu terminei meu curso de pedagogia no ano passado, mas o que me frustrou um pouco no curso de pedagogia, foi isso: nós trabalhamos muito a formação do educador, que foi muito importante, mas, essa questão de criatividade, de trabalhar a literatura, a recreação infantil… que é uma disciplina que foi extinta da grade; disciplinas que iriam lidar com a criança”(FRANCISCA). 5. PRÁTICAS DE LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO Para termos uma compreensão melhor sobre as falas das professoras no que diz respeito às suas práticas de leitura de literatura infantil, nos propusemos a observar dois dias de aula de cada professora, buscando responder às seguintes questões: O que era lido? Para que se fazia leitura? Como se fazia a leitura? Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 84 Maria de Fátima Monteiro · Para que se fazia leitura? · O que era lido? As professoras da escola municipal realizavam atividades de leitura com o objetivo principal de ensinar a leitura e a escrita aos alunos, com ênfase na decodificação e codificação (no caso da professora Catarina), no aprendizado de conteúdos ortográficos e gramaticais e na avaliação da habilidade de compreensão de texto (no caso das outras duas professoras). Já as professoras da escola estadual realizavam um trabalho mais contextualizado. As atividades de leitura envolviam uma ampliação dos conhecimentos que as crianças tinham sobre a temática do Projeto e do Natal (no caso da professora Elvira). As professoras dessa escola buscavam, também, analisar a compreensão das crianças sobre o texto lido (as músicas sobre Garanhuns, na prática de Dália e Francisca, e a história do Natal, na prática de Elvira). Todas realizavam atividades de exploração do sistema de escrita, a partir do texto. A partir da análise dos Quadros, o gênero mais lido pelas cinco professoras foi a música. Apenas uma professora, Catarina, não fez atividade envolvendo esse texto. Ao contrário, nos dois dias de observação houve, em sua sala de aula, apenas a leitura de um texto cartilhado. Em relação às músicas lidas em sala de aula, é interessante destacar que duas professoras da escola estadual – Dália e Francisca – leram e cantaram músicas relacionadas ao projeto que estavam desenvolvendo sobre a cidade de Garanhuns. A primeira trabalhou com uma música de Luiz Gonzaga – Onde o Nordeste Garoa – que fala sobre a cidade de Garanhuns, e a outra realizou uma atividade com o Hino dessa cidade. Já a professora Elvira cantou e leu uma música natalina. Assim, na escola estadual as músicas lidas e cantadas nas aulas, como também a entrevista, o jogo de dominó e a lista, se relacionavam com o projeto didático que estavam vivenciando ou com as festas correspondentes ao período das observações, que no caso foi o Natal. Já as músicas trabalhadas nas salas das professoras da escola municipal - Alzira e Berenice - corresponderam a uma música de Vinícius de Morais (Lar doce lar, da Arca de Noé) e uma música religiosa, inventada pela própria docente. Na prática de três das docentes observamos leituras de histórias. A professora Elvira leu um livrinho que contava uma história natalina (“Era Belíssima”... Diálogo com as crianças sobre Maria, de Chiara Lubich). As outras duas professoras – Alzira e Berenice – leram a história “Medo do Escuro”, do livro didático “Eu chego lá” de Melo e BarausKas (PNLD/2002). · Como se fazia a leitura? A) Leitura coletiva entre professores e alunos, com o texto escrito (ou anexado) no quadro ( Alzira, Dália, Elvira, Francisca); B) Leitura oral do texto pela professora, sem que os alunos tivessem acesso ao texto escrito, o que possibilitaria que acompanhassem a leitura da professora (Alzira, Berenice, Elvira); C) Leitura oral, pela professora, do texto escrito no quadro (Catarina); Quadro 3 - O que era lido Músicas Histórias Livros de literatura Histórias do LD Texto cartilhado Entrevista: Questões sobre Garanhuns Jogo de dominó Lista Alzira Berenice X X X X Catarina Dália Elvira Francisca X X X X X X X X Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 A leitura de literatura infantil na alfabetização: o que falam/fazem os professores sobre essa prática? D) Leitura realizada, oralmente, tanto pela professora quanto pelos alunos, que tentavam ler, sozinhos, seguindo pistas (Dália, Elvira, Francisca). A modalidade de leitura parece ter relação com o gênero lido. Assim, das cinco professoras que trabalharam com música, quatro realizaram uma leitura coletiva, onde a professora e os alunos cantavam, ao mesmo tempo em que liam a música escrita no quadro. A única exceção foi na leitura da música, na sala de Berenice, cuja modalidade foi a C (ela leu e os alunos acompanharam-na, através do texto escrito no quadro). Provavelmente isso ocorreu devido ao fato de os alunos não conhecerem essa música que, segundo a docente, é de sua autoria. Nas outras salas, as músicas lidas eram familiares aos alunos (música infantil de Vinícius de Morais, o hino de Garanhuns e uma música de Luiz Gonzaga sobre Garanhuns, muito tocada na cidade). Em relação à leitura de história, seja do livro didático ou de um livro de literatura infantil, observamos o desenvolvimento de uma mesma modalidade de leitura: a professora lendo para os alunos. É importante destacar que, nos últimos anos, os livros didáticos vêm sofrendo mudanças e estão contemplando uma diversidade textual que inclui textos de literatura infantil, devido ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). A prática de leitura desenvolvida na sala da professora Catarina envolveu, apenas, um texto (cartilhado) e a modalidade C. Nesse caso, a professora, primeiramente, escreveu o texto no quadro e solicitou que os alunos copiassem-no. Depois ela leu o texto, oralmente, palavra por palavra, e destacou a família silábica que iria ser trabalhada (a do VA-VE-VI-VO-VU). A modalidade de leitura D se fez presente, apenas, nas práticas das professoras da escola estadual. É interessante que nessa modalidade os professores estimulavam os alunos a lerem sozinhos, fazendo com que eles utilizassem os conhecimentos que já haviam desenvolvido sobre o sistema de escrita alfabético Analisando as modalidades de leitura presentes na prática de cada professora, observamos que quatro delas realizavam, pelo menos, duas modalidades, enquanto uma de- 85 las, a professora Catarina, realizou, apenas, a modalidade C, e, uma outra, a professora Elvira, desenvolveu três modalidades diferentes, relacionadas aos gêneros lidos. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para concluirmos o presente trabalho, gostaríamos de levantar alguns pontos relacionados com as práticas de ensino de leitura das professoras investigadas com alguns aspectos por nós enfatizados. Um primeiro ponto, que consideramos ser importante destacar, diz respeito ao resultado geral da pesquisa, onde constatamos, que embora as professoras tenham falado, na entrevista, que liam diferentes gêneros na sala de aula, percebemos que o gênero mais lido foi à música. Também destacamos, tanto na análise das entrevistas como das observações de aulas das professoras, que, em suas práticas de alfabetização, o desenvolvimento de atividades de leitura de livros de literatura infantil, pelos alunos, a partir do acervo escolar se fez ausente ou pouco freqüente. Um dado que merece ser ressaltado refere-se ao fato de que as escolas onde as professoras trabalhavam possuíam biblioteca e salas de leitura, com acervo de livros de literatura infantil, os quais chegaram às escolas a partir de diferentes programas de incentivo à leitura, desenvolvidos pelo MEC e, ainda, por doações. No entanto, as professoras pouco utilizavam esses espaços, como também não solicitavam, com a devida freqüência, os livros para serem lidos para os alunos (ou pelos alunos). Dessa forma, entendemos que não basta ter livros disponíveis; é necessário que os professores percebam a importância da leitura dos mesmos na Educação Infantil. Neste sentido, alguns estudos levantam como um dos fatores para a ausência (ou pouca freqüência) de leitura literária na escola, principalmente na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental, o fato de os professores não terem vivenciado, na infância, práticas de leitura de livros de literatura infantil. Assim, os docentes responsáveis pela formação de leitores não tiveram, eles mesmos, essa formação. Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 86 Maria de Fátima Monteiro Estudiosos, como Batista (1998) e Rosa (2003), têm demonstrado, através de suas pesquisas, que os professores são leitores, mas, eles tiveram, principalmente, uma formação “escolar” de leitura, ou seja, eles são leitores escolares. As professoras que fizeram parte desta pesquisa tiveram, em sua maioria, contato com diferentes gêneros na infância, mas com maneiras diferentes de convivência com esses textos. Assim, professoras que só tiveram contato com histórias contadas (Catarina), ou que não lembraram de terem vivenciado leitura desses textos (Francisca), priorizaram, em suas práticas, o contar as histórias infantis para seus alunos em vez de lê-las. Se, por um lado, essa opção pode ter relação com suas experiências com os livros literários, por outro, existe uma crença pedagógica de que crianças da Educação Infantil envolver-se-iam mais e teriam uma melhor compreensão das histórias contadas do que das histórias lidas. Já a professora da escola estadual (Elvira) – que mencionou lembranças de leitura de textos literários desde a infância até os dias atuais, tanto na escola como fora dela – declarou, durante a entrevista, que lia livros de literatura, fato esse presenciado por nós nos dias em que fizemos observação na sala de aula. Por outro lado, outras professoras que realizaram leituras na infância, fora do espaço escolar, não contemplaram-nas em suas práticas, durante as nossas observações. Ou seja, as experiências de leitura das professoras são importantes para o desenvolvimento de suas práticas de ensino de leitura, mas não são determinantes, o que foi observado por Albuquerque (2002). É preciso considerar que outros aspectos e experiências que influenciam, como, por exemplo, a concepção de escola, de alfabetização, de criança, do que é ensinar/aprender, etc. É interessante percebermos que as práticas de ensino de leitura também não tiveram uma relação direta com o nível de formação dessas professoras no sentido de que aquelas com grau de formação mais elevado desenvolveriam práticas mais condizentes com as orientações atuais na área. Assim, as professoras que tinham graduação em pedagogia ou outra licenciatura e pós-graduação em áreas específicas do ensino (Catarina e Francisca), pelo fato de as crianças não estarem alfabetizadas ou terem dificuldade de entender o texto, falaram que preferiam contar as histórias a fazer as leituras propriamente ditas. A maioria das professoras relacionou as leituras de livros de literatura infantil com ensino–aprendizagem ou com conhecimento no sentido mais geral, com exceção da professora Elvira, que mencionou leituras com o objetivo de desenvolver o gosto/prazer pelo ato de ler. Enquanto isso, as professoras da escola municipal (Alzira e Catarina) mencionaram a leitura desses livros para deixar os alunos calmos e disciplinados. Por outro lado, quando analisamos as práticas de leitura de cada escola, nos seus diferentes gêneros, percebemos que a escola Estadual, em relação à Municipal, realiza suas leituras através de um planejamento mais contextualizado, onde há o envolvimento da própria escola com as professoras e alunos, no sentido de trabalhar a leitura nas diversas situações em que ela se insere, a partir do desenvolvimento de Projetos Didáticos. Assim, Francisca – que é professora dessa rede de ensino, mesmo com suas experiências de leitura na infância e na adolescência voltadas para o livro didático – em suas práticas de ensino de leitura, conseguiu inserir, a partir do projeto vivenciado na escola, leituras de diferentes gêneros. Já na escola Municipal, as professoras planejam suas aulas de forma mais individualizada e usam o livro didático recebido. A professora Catarina, dessa rede de ensino, se diferencia por trabalhar, predominantemente, com textos cartilhados, para ensinar às crianças a leitura e a escrita a partir da decodificação e codificação. Precisamos, também, refletir sobre o fato de as práticas de leitura dessas professoras se manifestarem não só pelos conhecimentos de leitura que puderam ser construídos nos espaços escolares e não escolares, mas, também, pelos que permearam os processos de formação continuada. Enfocamos o relevo que duas docentes da escola estadual (Dália e Elvira) deram aos cursos de formação continuada, especificamente ao PROFA, que apresenta um trabaRevista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 A leitura de literatura infantil na alfabetização: o que falam/fazem os professores sobre essa prática? lho com leitura de diferentes gêneros, entre eles a leitura literária, com ênfase no processo de reflexão sobre as práticas profissionais. Já as professoras da escola municipal, que não vivenciaram um processo de formação continuada que possibilitasse uma reflexão sobre suas práticas de ensino da alfabetização, destacaram a leitura dos PCNs de Língua Portuguesa e dos livros do PNBE. Assim, podemos inferir que a formação em serviço e o desenvolvimento de um planejamento coletivo na escola, com ênfase na realização de projetos didáticos, são aspectos que contribuem para uma prática de alfabetização na 87 perspectiva do letramento, com relevo na formação do leitor. Enfim, consideramos que os resultados presentes neste trabalho poderão se voltar para futuras reflexões, levando em consideração que não basta disponibilizar acervos de livros de literatura infantil nas escolas, mas viabilizar práticas de formação continuada que possibilitem aos professores vivenciarem experiências diferenciadas de leitura e reflexão sobre o desenvolvimento de um trabalho de alfabetização na perspectiva do letramento. Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 88 Maria de Fátima Monteiro REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, Maria da Conceição. Construindo e Reconstruindo o Processo de Capacitação. 1997. 128 f. Dissertação (Mestrado em Educação)- Programa de PósGraduação em Educação. Centro de Educação. Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 1997. ALBUQUERQUE, Eliana Borges C. Apropriações de propostas oficiais de ensino de leitura: o caso de Recife. 2002. 361 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de Educação. 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Revista da Fapese, n. 2, p. 73-88 jul./dez. 2005 Revista da Fapese de Pesquisa e Extensão, v. 2, p. 89-96, jul./dez. 2005 89 O problema da sombra em a Bela Vassilissa R e s u m o Ana Maria Leal1 E ste trabalho propõe uma leitura junguiana do arquétipo da sombra no conto popular russo A Bela Vassilissa, mostrando que o processo de crescimento psíquico da heroína em dire- ção a uma personalidade mais rica e madura não depende da sua vontade; ele se desenvolve ao longo da vida do indivíduo de modo involuntário e natural. Esse processo chamado por Jung de individuação, cujo simbolismo arquetípico está em estreita relação com o fenômeno do mito, efetua-se em diferentes etapas ao longo da vida. PALAVRAS-CHAVE: Arquétipo; Sombra; Processo de Individuação; Mito. 90 Ana Maria Leal O mito é um discurso cuja paisagem simbólica, na qual é alocado, transmigra para outros pólos de configuração à medida que novos paradigmas de manutenção de estruturas culturais são estabelecidos. Isso implica dizer que nem todos os mitos devam ser deslocados de suas origens. Sabe-se que determinados discursos míticos, inseridos em dados contextos socioculturais, são perpetuados, adaptados com objetivos que só os modos de produção de cada sociedade sabem determinar, interferindo nas estruturas antropológicas do imaginário, pois as imagens míticas são mantidas, atualizadas ou criadas numa relação com a forma do desenvolvimento dos modos de produção de cada contexto cultural. Consoante Joseph Campbell, a função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás. Ao tentar definir o mito do herói, Campbell estabelece: “O herói é o homem ou a mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente validas, humanas” (Campbell, 1993, p.28). Ele reconhece neste mito - cuja aventura heróica costuma seguir um padrão nuclear: um afastamento, uma penetração em alguma fonte de poder e um retorno triunfante - diferentes etapas na sua trajetória, repletas de provações (simbolizando as dificuldades e sofrimentos) por que este terá que passar a fim de obter o “tesouro”. Pouco importa a esfera do interesse (político, religioso ou pessoal), os atos verdadeiramente criadores são atos gerados por alguma espécie de morte para o mundo; e tudo o que ocorre no intervalo em que ele, o herói, deixa de existir - necessário para que ele volte renascido e pleno de poder - recebe da humanidade um relato unânime. Essa concepção de Campbell encontra eco na psicologia analítica de Jung, que serviu-se da trajetória do herói arquetípico para explicar o processo de individuação - busca da Totalidade - em que o ego vive uma aventura de transformação que exige ruptura, recolhimento, renúncia e torna-se herói. Este, por sua vez, representa o grau de energia psíquica que transita entre o self e o ego e que, devido à sua natureza, está associado aos ritos de passagem. Nossa abordagem da sombra no conto popular russo A Bela Vassilissa, ilustra uma atitude construtiva no confronto com os poderes do mal, uma vez que essa heroína se deixa guiar, nesse enfrentamento, pelo caminho natural da sabedoria. Vassilissa fica órfã muito cedo. Antes de morrer, sua mãe passa às suas mãos uma boneca de pano, aconselhando-a a conservá-la sempre consigo e a pedir-lhe ajuda nos momentos de perigo: “(...) se te ocorrer algo de mau dá-lhe de comer e pede-lhe conselho. Ela comerá e te dirá como podes remediar teus males”(Afanasev, 1986, p.173). Guardado certo tempo de luto, o mercador, pai de Vassilissa, resolve casar-se novamente com uma viúva que tinha duas filhas. Com o casamento se estabelece o drama da pequena Vassilissa, pois a madrasta e as filhas infligem-lhe duros castigos e trabalhos pesados, para que a jovem emagreça de cansaço e fique com a pele feia. O conto de Afanasev repete a façanha mitológica do monstro-tirano acumulador do benefício geral: está sempre ávido pelos vorazes direitos do “meu” e para “mim”. O mercador precisou viajar e a madrasta aproveita a sua ausência para mudar-se com as meninas para uma casa perto de uma floresta muito escura. Do ponto de vista da trajetória mitológica do herói, a viagem do pai representa o “chamado da aventura”, assim definido por Campbell (1993, p.66): O chamado da aventura significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida. Essa fatídica região dos tesouros e dos perigos pode ser representada sob várias formas: como uma terra distante, uma floresta, um reino subterrâneo, (...) o topo de uma montanha ou um profundo estado onírico. Mas sempre é o lugar habitado por seres Revista da Fapese, n. 2, p. 89-96, jul./dez. 2005 O problema da sombra em a Bela Vassilissa 91 estranhamente fluidos e polimorfos, tormentos imagináveis, e delícias impossíveis. amplitude à experiência exterior, abrindo espaço para a fantasia. Não obstante o trabalho forçado, a menina tornase cada vez mais bela e, as outras, cada vez mais feias, embora vivessem de braços cruzados. O chamado da aventura tem um umbral, cuja transposição indica o início de um grande desafio. Transpassá-lo, equivale a vivenciar as fantasias. Antes de partir,Vassilissa lembra-se da boneca que sua mãe lhe dera, coloca-a no bolso, e segue em direção à floresta escura. Cruzando o limiar, a menina depara-se com “ um cavaleiro branco, vestido de branco, montado em um cavalo branco, que também tinha brancos arreios. Então começa a amanhecer” (Op. cit., p.176). Jung afirma que no período em que a pessoa vivencia um trauma ou intensa tristeza, pode ocorrer a irrupção do arquétipo (qualquer que seja ele), pois trata do momento em que ela está relativamente fragilizada. Tudo indica que o problema de Vassilissa teve início quando da morte da mãe, agravando-se com o casamento do pai. Uma noite em que as meninas, por ordem da mãe, bordavam e tricotavam, a madrasta apaga as luzes da casa e deixa apenas uma vela acesa. Mais tarde, ao apagá-la, a madrasta juntamente com as irmãs de Vassilissa, jogam-na porta afora, ordenando-lhe que vá à casa da Baba Yaga2 para buscar fogo. De acordo com Campbell, a aventura é anunciada por um arauto que costuma ser sombrio, repugnante e maléfico; essas qualidades se encaixam perfeitamente na pessoa da madrasta, que abre espaço para que a pequena Vassilissa adentre os labirintos da perigosa floresta (o inconsciente). O labirinto anuncia a presença de alguma coisa sagrada e “(...) pode ter a função de defesa de um território, uma vila, uma cidade, um tesouro” (Chevalier, 1999, p.530). Do ponto de vista psicológico, a protagonista está sendo conduzida ao interior de si mesma, o que representa a luta pela superação das trevas da inconsciência. Jung lembra que devemos prestar atenção à linguagem da psique - a fantasia - pois é por meio desta que o homem é capaz de se lançar em um limitado processo de simbolização, tornando-se um criador interminável de novas possibilidades culturais, uma vez que a mente se enche de imagens que dão Para Campbell, a aventura traduz-se sempre numa passagem pelo véu do desconhecido, as forças que vigiam o limiar envolvem riscos; mas somente aqueles que têm competência e coragem testemunharão o perigo desaparecer. Ao transpor o limiar, o herói, geralmente, encontra-se com uma figura protetora (o guia), que fornece, ao aventureiro, proteção. Numa visão psicológica, o cavaleiro branco metaforiza o guardião do limiar de passagem (o guia transpessoal) que conduz a menina até o local do tesouro. Essa idéia é reforçada pela figura do cavalo, que, sendo um animal de grande força, é uma das muitas representações do self - a porção ordenadora de toda a psique - no seu aspecto teriomórfico. Ao penetrar mais profundamente no interior da “floresta”, a protagonista principal encontra “um cavaleiro de vermelho, montado em um cavalo também vermelho. O sol surge” (Op. cit., p.177). Nesse instante, Vassilissa é tomada por um poder avassalador que é experimentado como numinoso3 informe, onde o ego é confrontado com o arquétipo. O vermelho tem conotações de fogo, ardência e paixão, o que nos leva a crer que o segundo cavaleiro é uma manifestação do animus negativo de Vassilissa, isto é, sua contraparte sexual, que necessita ser integrada à personalidade, caso contrário, pode tornar- Revista da Fapese, n. 2, p. 89-96, jul./dez. 2005 92 Ana Maria Leal se autônomo e negativo, agindo de maneira destrutiva sobre suas relações com outras pessoas. Esse processo está ligado a ritos religiosos, cuja função é integrar o indivíduo no seio da sociedade. Segundo o psicanalista junguiano Erich Neumann, a consciência primeiro reage e, gradualmente, cria novas formas de adaptação ao arquétipo que, no nível subjetivo, conduz ao desenvolvimento e à extensão da consciência, e daí ao nível objetivo onde se manifesta em encarnações do numinoso cada vez mais diferenciado. Assim, essa força penetrante e ao mesmo tempo “arrebatadora” que a jovem não experiencia pessoalmente em relação a um homem concreto, mas sim a um transpessoal em forma de cavaleiro, corresponde a uma das várias manifestações por que passa o animus. A esse respeito reitera que o masculino pode aparecer sob várias formas: Como serpente, dragão e qualquer outro monstro em um grande número de ansiedades sexuais e comportamentos neuróticos da mulher que dificultam o seu relacionamento com os homens. Entretanto, na entrega feminina de aceitação dessa situação, e ao se deixar dominar, a mulher é levada à vitória sobre o medo e sua ansiedade é transformada em embriaguez e orgasmo (Neumann, 2000, p.21). Ao ultrapassar o limiar “mágico” que separa os dois mundos, Vassilissa cai no fundo da floresta uma região desconhecida que se faz campo livre para projeção de conteúdos inconsciente. Ainda do ponto de vista psicológico, a floresta é uma imagem da Grande Mãe4 (inconsciente), cujo útero abriga o filho (ego) em desenvolvimento. Tendo andado por toda a noite e grande parte do dia seguinte, Vassilissa chega a uma clareira em cujo centro está a casa da Baba Yaga, cercada por ossos humanos, o que provoca medo na protagonista. Os medos da heroína estão projetados no meio ambiente; a energia regredida faz com que as regiões desconhecidas (a floresta, por exemplo) atuem como obstáculos, impedindo a eficácia da verdadeira realização dos seus objetivos. Deste modo, o medo da casa é o temor ancestral da floresta escura, que o inconsciente coletivo concebe como sendo o lugar onde habitam os entes que podem destruir o homem e onde estão os obstáculos por onde terá que passar a heroína inexperiente. Começa um novo ciclo que requer um afastamento do mundo na busca do seu eu verdadeiro. Quando, por medo, já estava quase desmaiando, um cavaleiro passou a galope por ela. Seu rosto era negro “estava vestido de negro e montava um cavalo negro. Ele galopou ate a porta de Baba Yaga e desapareceu (...). Depois caiu a noite. Vassilissa arrepiou de medo” (Op. cit., p.177). O cavaleiro representa o guardião do limiar do tesouro, figura aterrorizadora que cabe afastar todos os que forem tentados a penetrar no local sagrado. Ele surge para anunciar a chegada da perversa Baba Yaga (a sombra), que “esporeava com seu pilão e varria seus rastros com uma vassoura” (Op. cit., p. 178). As mitologias folclóricas povoam com ogras e perigosas presenças todos os locais fora das vias normais da cidade. A feiticeira5 indagou por que Vassilissa estava em sua casa; a menina conta-lhe que viera apanhar o fogo a mando de sua madrasta. Baba Yaga acrescentou “Mas antes de eu lhe dar fogo você deve ficar aqui e trabalhar para mim, senão, vou comêla no jantar” (Op. cit., p. 178). Revista da Fapese, n. 2, p. 89-96, jul./dez. 2005 O problema da sombra em a Bela Vassilissa Surpresa com a coragem da menina e, vendo nela um “apetitoso” jantar, a velha convida-a para entrar. A menina observa que a casa era desordenada e “cercada de caveiras” (Op. cit., p.177). Essa aparente “desordem exterior” reflete o interior de Vassilissa, cujos terrores pânicos são o medo das revelações do desconhecido. A jovem é tentada a penetrar no interior da casa (local sagrado), o que do ponto de vista psicológico representa um voltar-se para dentro de si mesma, fazendo emergir do seu íntimo uma nova direção para a vida. Explorada pela feiticeira, ela executa todos os trabalhos domésticos e conta sempre com a ajuda da sua fiel bonequinha. Na verdade, a boneca introduz a possibilidade do auxílio mágico nos momentos de aflição pelos quais passa a menina. Consoante Campbell (1993, p. 102) “(...) o herói é auxiliado, de forma encoberta, pelo conselho, pelos amuletos e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que havia encontrado antes de penetrar nessa região”. A casa - que na concepção campbeliana tem conotações do ventre da baleia - é o local em que a personagem obtém sua recompensa fazendo serviços domésticos. Não obstante estar sob o domínio da ogra, situação de extremo perigo, a menina se torna uma habilidosa fiandeira. No contexto psicológico, Vasselissa aprende aos poucos a dominar o medo. No entender de Lutz Muller (1995, p.96) “O medo, porém, é uma reação humana saudável para a segurança da vida. Por isso, o primeiro passo para a superação do medo não é reprimi-lo, mas sim admiti-lo”. A cada dia que passava, a bruxa ficava mais desapontada, pois não conseguia ver nada fora do lugar, tudo parecia limpo e perfeito, o que a aborrecia. Esse aparente “desapontamento” da bruxa equivale, no contexto psicológico, a um grau mais elevado no processo de transformação e expansão da personalidade de Vassilissa. Certa feita, enquanto Baba Yaga janta, a menina lhe pergunta sobre os três cavaleiros que encontrou no caminho, ao que a velha responde: “ Todos os três 93 são meus fiéis servidores” (Op. cit., p. 181). A ogra também desejou saber como Vassilissa conseguia executar todo o serviço doméstico com tanta rapidez sem demonstrar cansaço. A menina conta-lhe que recebeu a ajuda e benção da mãe. Baba Yaga, num gesto de raiva, gritou: “Fora daqui, filha abençoada. Não quero ninguém abençoado em minha casa” (Op. cit., p.182). Feito isso, apanhou alguns ossos e uma das caveiras de olhos flamejantes e os entregou à menina, ordenando-lhe que fosse embora, levando o fogo que viera buscar. Para Chevalier (1999, p.666), o osso é símbolo de firmeza, de força e virtude e devemos nos lembrar a esse respeito, da passagem do Gênesis (2, 23) que diz: “o osso dos meus ossos”, passagem que toma essa parte do corpo como o “caroço” da imortalidade. Além disso, acrescenta Chevalier ( 1999, p.666) “ (...) a contemplação do esqueleto pelos xamãs é uma espécie de retorno ao estado primordial, pelo despojamento dos elementos perecíveis do corpo”. Vassilissa correu de volta para casa e deparou-se com a madrasta e as filhas, que a esperavam à porta de entrada. “Os olhos da caveira fitaram-nas com intensidade a ponto de queimá-las. Pela manhã estavam transformadas em três montinhos de cinzas no chão. Só Vassilissa estava intocada pelo fogo” (Op. cit., p. 183). Estando sozinha, a menina enterrou a caveira no jardim. Fundamentalmente, a passagem do herói mitológico é uma passagem para dentro, para as camadas profundas em que são superadas obscuras resistências, e onde forças há muito esquecidas são revitalizadas. Jung postula que a primeira batalha a ser travada na luta pela unificação da personalidade diz respeito àquela entre o ego e a sombra. Assim, a caveira (enterrada) metaforiza a sombra já integrada à personalidade da menina. Mas a tarefa da jovem protagonista parece ainda não ter atingido o seu final. A narrativa enfatiza que, após enterrar a caveira “Vassilissa partiu para uma cidade vizinha” (Op. cit., p.183), foi encontrada por uma bondosa senhora sem filhos “que deu-lhe abriRevista da Fapese, n. 2, p. 89-96, jul./dez. 2005 94 Ana Maria Leal go e ali ela ficou morando, esperando a volta do pai” (Op. cit., p. 183). O conto A Bela Vassilissa reatualiza o mito de Prometeu, que foi aos céus, roubou o fogo dos deuses e voltou à Terra. A simbólica do fogo está resumida na doutrina hindu em que Agni, Indra e Surya, são os fogos dos mundos terrestre (o amor e a cólera), intermediário (a purificação através do sofrimento) e celeste (o espírito ou sopro divino) simbólica igualmente ressaltada na narrativa de A Bela Vassilissa, através das personagens Baba Yaga/ madrasta, Vassilissa e a velha senhora, respectivamente. A trajetória mítica da jovem protagonista corresponde aos rituais de “purificação”, característicos das culturas agrárias; com efeito, simbolizam as queimadas dos campos, que após certo tempo, fazem brotar um manto verdejante de natureza viva. Do ponto de vista psicológico, Vassilissa representa o ego/herói circulando entre o inconsciente e a consciência. A velha senhora comprou-lhe o melhor linho e ela pôs-se a trabalhar. Com a ajuda da boneca, que “transforma uma lançadeira velha e a crina de cavalo em um grande tear” (Op. cit., p.183). A menina produziu o mais perfeito tecido da região; torna-se, então, uma fiandeira e exímia costureira. Campbell enfatiza que o herói necessita da ajuda transpessoal para vencer as dificuldades. No contexto da trajetória mitológica de Vassilissa, a velha senhora representa tal ajuda, uma vez que resolve oferecer em palácios da redondeza, algumas das peças produzidas por sua filha adotiva. Uma delas despertou o interesse do czar que desejou conhecer a artesã. Ao vê- la, apaixonou-se perdidamente: “Nunca a deixarei. Será minha esposa.” (Op. cit., p. 185). Assim, a jovem casa-se com o rico czar e “vive feliz para sempre”. O casamento (hierósgamos), inauguração de uma nova vida, inscreve um ritual de passagem relativo à vitória e à fertilidade. Equivale a um novo ciclo da vida. A viagem mítico-psicológica da personagem Vassilissa ao mundo inferior (a floresta), traduz-se numa experiência que viabiliza uma consciência modificada e conhecimentos que não podem ser adquiridos de nenhuma outra forma: é a redenção pelo sofrimento. Ela foi capaz de protagonizar seus mitos, fazer escolhas possíveis, subsistir a muitas provas e privações, lutando até o último momento contra os “monstros” interiores. Enfrentando os aspectos sombrios de sua psique, foi perseguida pelo medo, o que aumentou suas forças para ultrapassar os obstáculos da vaidade e prepotência do ego no julgamento da reflexão, experienciou o significado das perdas, das limitações e das derrotas. Nessa caminhada em busca da unificação da personalidade, o ego/herói enfrenta dificuldades e, após a luta, com a força energética aumentada, é guiado por sua face contra-sexual para realizar a sizígia, aproximando-se do self, onde estão forças contrárias integradas pela conjunctio oppositorum. O que prova que a sombra não é de todo negativa, na verdade, ela serviu para conduzir Vasselissa ao verdadeiro tesouro que a aguardava. Ao final dessa árdua luta tornase a “velha sábia”, unindo e transformando os contrários. Revista da Fapese, n. 2, p. 89-96, jul./dez. 2005 O problema da sombra em a Bela Vassilissa 95 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFANASEV, Aleksandr. Contos de fadas. Tradução de Erten de Vittio. Copenhague: C.A. Reitzel, 1988. imaginário. Tradução de Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução de Arlene Caetano. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Tradução de Póla Civelli. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix, 1993. _____. Para viver os mitos. Tradução de Anita Moraes. São Paulo: Cultrix, 1998. CASSIRER, Ernest. Linguagem, mito e religião. Tradução de Rui Reininho. 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Revista da Fapese, n. 2, p. 89-96, jul./dez. 2005 Revista da Fapese de Pesquisa e Extensão, v. 2, p. 97-110, jul./dez. 2005 97 Na Trilha dos Passos do Senhor: A devoção ao Senhor dos Passos de São Cristóvão/Se Magno Francisco de Jesus Santos1 R e s u m o Verônica Maria Meneses Nunes2 O presente artigo tem o propósito de estudar a Procissão do Senhor dos Passos entre os anos de 1870 e 1920. A procissão é um secular evento religioso da cidade de São Cristó- vão, realizada sempre no segundo final de semana da quaresma, reunindo devotos de diferentes segmentos sociais. O objetivo desse estudo é analisar a Procissão do Senhor dos Passos, destacando a participação da elite açucareira e dos segmentos populares. Os documentos usados foram o Annuario Christovense de Serafim Sant’Iago, artigos e notas de jornais aracajuanos e o diário de Aurélia Rollemberg. Através desses documentos foi possível constatar a relevância da participação da elite açucareira sergipana (buscando legitimar-se) e dos segmentos populares. Estes registraram a sua participação e práticas devocionais através dos ex-votos. PALAVRAS-CHAVE: Religiosidade, Procissão de Passos, Elite, São Cristóvão. 98 Magno Francisco de Jesus Santos; Verônica Maria Meneses Nunes Fé ao Senhor dos Passos uma graça concebida uma promessa cumprida (Alves,17/03/1984) A s festas constituem um dos principais momentos do catolicismo popular3 . É difícil imaginar o cotidiano de uma pequena cidade brasileira sem as agitações das novenas, santas missões, acompanhamentos4 e procissões. Essas são algumas expressões de religiosidade que acabam por se tornar um grande instrumento para se compreender a sociedade na qual estão inseridas. Isso ocorre porque as expressões de religiosidade revelam contradições, angústias, desejos, hierarquias, carências, ordem e desordem inerentes à sociedade. Esse é um dos principais motivos que vem fazendo os cientistas sociais se debruçarem sobre as temáticas do universo religioso. A história não ficou imune a esse processo de renovação e de ampliação das áreas de pesquisa, graças ao diálogo interdisciplinar difundido pelo movimento dos Annales5 . Assim, emergem na historiografia mais recente, temáticas como morte, festas, devoções e imaginário religioso. É dentro desta perspectiva que se insere o objeto desse estudo. A proposta que se segue visa estudar a procissão do Senhor dos Passos na cidade de São Cristóvão, Sergipe, entre os anos 1870 e 1920. Essa procissão, ainda no século XIX tornou-se uma das principais manifestações religiosas de Sergipe, conseguindo aglomerar fiéis devotos de diferentes segmentos sociais e de várias partes da antiga província. Neste estudo, temos o objetivo de analisar a Pro- cissão do Senhor dos Passos, destacando a participação da elite açucareira e dos segmentos populares. Estes registraram a sua participação através dos exvotos, que ao longo dos séculos foram depositados no claustro da Ordem Terceira do Carmo. 1. BREVE INCURSÃO PELO UNIVERSO RELIGIOSO DOS PASSOS A historiografia sobre religiosidade é consideravelmente diversificada. A diversificação pode ser vista como produto do recente diálogo interdisciplinar ocorrido entre as ciências humanas, que propiciou o estudo do fenômeno religioso em suas diversas facetas, graças à aplicação de diferentes categorias de análise. Com isso, a religiosidade é estudada por diferentes ângulos, com múltiplos olhares. No âmago desses olhares emergem discussões a respeito das diferentes categorias e temas, sob o viés da nova história cultural, como religiosidade, imaginário e cotidiano. Para se compreender com amplitude um fenômeno complexo como a procissão do Senhor dos Passos na cidade de São Cristóvão é imprescindível esclarecer os conceitos que serão utilizados na reflexão. Neste estudo, um conceito-chave é o de religião popular, que será visto como as práticas consideradas pela hierarquia eclesiástica como ultrapassadas, arcaicas, ilegítimas. Percebe-se que para haver um “catolicismo popular”, é necessário que haja o seu oposto, nesse caso, o “catolicismo oficial”. Esse caráter dual entre religiosidade popular e oficial é esclarecido pelo sociólogo Pierre Sanchis, ao dizer que: Revista da Fapese, n. 2, p. 97-110 jul./dez. 2005 Na Trilha dos Passos do Senhor: A devoção ao Senhor dos Passos de São Cristóvão/Se Ela (religião popular) é o fenômeno estrutural não se manifestando senão num grupo social frente a outro grupo, dominante e modernizador. Esses grupos sociais não se confundem necessário e simplesmente com classes sociais em conflito e uma maior atenção às elites dirigentes, numa e noutra classe fundamental, deverá sempre matizar, e, às vezes, balancear as perspectivas unilaterais de uma sociologia da luta de classes, se quisermos, um dia, poder restituir a palavra “povo” a densidade de um conceito puramente operacional (Sanchis, 1979, p. 258). Ainda deve ser ressaltado que, apesar de haver uma relação dialética entre a religiosidade popular e a oficial, não existe uma fronteira fixa entre ambas, mas sim um dinamismo tecido por trocas recíprocas (Vovelle, 1987, p. 154-5). Nesse sentido, a religiosidade, como componente fundamental da cultura, deve ser analisada na perspectiva de um contínuo processo de circularidade em que os seus agentes não permanecem estáticos no campo do popular ou do oficial (elite), mas sim, em diálogo entre si (Ginzburg, 1987, p. 21). Mesmo constituindo uma solenidade de cunho oficial da Igreja Católica em Sergipe, a Procissão do Senhor dos Passos pode ser vista sob a ótica do catolicismo popular, por ser criticada pela hierarquia eclesiástica local. Isso pode ser constatado no Livro de Tombo da Paróquia Nossa Senhora da Vitória de São Cristóvão, onde os párocos da cidade registraram ao longo do século XX, a sua insatisfação com os procedimentos dos devotos e principalmente dos leigos, na tradicional Festa de Passos6 . 99 Tais devotos, ao longo dos anos, imprimem uma rotina de obrigações com pagamentos de promessas, orações e visitação aos lugares sacros. Com isso, é pertinente esclarecermos algumas questões acerca do universo sagrado. O sagrado pode ser entendido como algo que se manifesta sempre como uma realidade de uma ordem inteiramente diferente da das realidades “naturais”, ou seja, ele se manifesta como coisa absolutamente diferente do profano (Eliade, p. 20). Essa interação entre os universos sagrados e profanos não ocorre de forma aleatória no espaço, tendo em vista que este apresenta rupturas, quebras, ou seja, não é homogêneo. Assim, para o homem religioso há porções de espaço qualitativamente diferente das outras, há um espaço sagrado, forte, significativo e outros não sagrados (Eliade, p. 27). Essa sacralização não ocorre somente com os lugares, uma vez que ela também se manifesta através do “gestual, da sensibilidade, do imaginário, das atitudes coletivas”. (Lima, 2002, p. 8). Nesse sentido, em São Cristóvão não veremos como espaço sagrado apenas o complexo do Carmo e as ruas que compreendem o itinerário das procissões, mas sim a interação dos fiéis com esses lugares. É desse modo que ganha dimensão aspectos como as formas de percepção do sagrado, o diálogo, o gestual e o simbólico, ou seja, as variadas formas pela qual o devoto percebe, absorve e retrabalha elementos do universo sagrado. Com isso, é possível também falarmos de uma espécie de “tempo sagrado”, pois, assim como o espaço, o tempo também apresenta rupturas e heterogeneidade de acordo com os intuitos da sociedade com a qual interage. No campo religioso, é possível distinguir que, ao longo do ano, existem períodos mais sagrados do que outros. Se todo dia é dia santo, existe o dia santo fino7 ou seja, um dia com maior poder simbólico do que os Revista da Fapese, n. 2, p. 97-110, jul./dez. 2005 100 Magno Francisco de Jesus Santos; Verônica Maria Meneses Nunes demais (Bourdieu, 1998, p. 19). É fácil detectar esses “dias prestigiados” do calendário católico, haja vista que a própria denominação de tais períodos já revela a idéia de seu prestigio8 . Uma das formas de “tempo diferenciado” é o que podemos chamar de tempo festivo. O tempo da festa “é celebrado como tempo de utopias, fantasias e liberdades, onde se exprimem frustrações, revanche e reivindicações de vários grupos que compõem a sociedade” (Del Priore, 1994, p. 9). A festa pode ser vista como quebra da rotina, desperdício e ociosidade (Lima, 2002, p. 11), mas também é sinônimo de continuidade, levando-se em consideração que nela são projetadas angústias, desejos e contradições dos segmentos sociais que dela participam. Em outra perspectiva, a festa também pode ser vista como um jogo do poder, pelo qual através de símbolos e representações são expressas as disputas presentes na sociedade. É isso que ocorre com as festas de caráter religioso-popular, como um ciclo que percorre ao longo do tempo, paralelamente e de modo simbólico, o próprio ciclo de rotina e trabalho da sociedade (Anjos, 2001, p. 24). No catolicismo popular, um dos principais momentos festivos ocorre com as romarias. Para se ter uma idéia da dimensão dessa relevância é só observar o poder de mobilização social que detém no Brasil romarias como a de Padre Cícero no Juazeiro do Norte (CE), São Francisco das Chagas em Canindé (CE), Nossa Senhora de Nazaré em Belém (PA) e Bom Jesus da Lapa (BA). No entanto, apesar da reconhecida importância dessas celebrações, ainda permanecem algumas polêmicas quanto a sua classificação. A principal polêmica gira em torno da diferença entre romarias e peregrinação. Saber distinguir tais conceitos é de importância primordial na reflexão das celebrações do Senhor dos Passos em São Cristóvão. Etimologicamente, peregrino se originou dos vocábulos peregrinus, peregre e significa “aquele que se encontra fora da residência ou aquele que sai de sua casa ou pátria” (Balbinot, 1998, p. 78). Nessa perspectiva, o termo peregrinação serve para designar o grupo de pessoas que sai de seu lugar em direção ao lugar sagrado, para realizar atos religiosos, com objetivos piedosos, votivos ou penitenciais. Peregrinar é dirigir-se a um lugar “fora de”, “longe de”, segregando espacialmente o agente em relação ao seu ambiente e ao seu locus geográfico cotidiano, sem ter, no entanto, o definitivo desligamento do mundo, pois sempre há o retorno. Com isso, os peregrinos reúnem-se num ponto, o santuário, e nele há contato com o sagrado e ”expiação dos males”. A peregrinação é também um ritual de aflição. Nela o “agente se reinsere em um tempo sacralizado, que é também histórico” (Agostinho, 1986, p. 12). Dessa forma, a peregrinação pode ser conceituada como: (…) uma marcha ritual em que, partindo de uma periferia mais ou menos distante, se entra temporariamente num centro ou foco de concentração do sagrado, para depois retornar ao mesmo ponto de partida, confortado pela participação em virtude do sagrado (Balbinot, 1998, p.80). Já as romarias representam o momento da festa, da visita ao santo padroeiro, ou particular. Os devotos veneram os santos como “amigo”, o santo atende aos pedidos que lhes são feitos, o que coloca os cristãos na obrigação de cumprir as promessas feitas (Feitoza, 2002, p. 10-11). Nessa concepção romaria aparece ligada à idéia de veneração aos santos (veneração com forte intimidade entre o devoto e o santo) e à prática de cumprimento da promessa (ex-voto ou desobriga). Etimologicamente o vocábulo romaria tem origem nos termos romerus, romerius, que Revista da Fapese, n. 2, p. 97-110 jul./dez. 2005 Na Trilha dos Passos do Senhor: A devoção ao Senhor dos Passos de São Cristóvão/Se servia para designar os peregrinos que iam a Roma, a partir do século VI, devido ao domínio mulçumano na Terra Santa (Balbinot, 1998, p. 77). Esse conceito hoje é insuficiente para classificar as celebrações religiosas populares, devido à dimensão e complexidade que tais manifestações de fé atingiram. Partindo dessa acepção, podemos indagar sobre a diferenciação entre romaria e peregrinação. Nesse caso, a forma mais adequada de distinção entre ambas é saber qual o segmento que detém o poder de organização, controle e decisão em um evento festivo. Com isso, romaria pode ser vista enquanto: (…) festa coletiva com forte inclinação para fora da alçada da hierarquia eclesiástica. É a manifestação maior da religiosidade popular. As manifestações cardinais da romaria conservam identidade: promessa, o culto comunitário e teoricamente oficial da missa e da procissão, o intercâmbio e a comunicação, a feira em volta do santuário, o canto, a dança durante o caminhar de ida e volta e o encontro e congraçamento entre famílias (Sanchis, 1979, p. 251). Todos esses elementos descritos acima estão presentes na Festa de Passos7 , que levá-nos a considerála como uma romaria. Essa classificação é contundente, visto que os leigos detinham uma considerável influência na organização dos ofícios, das procissões e, principalmente, na arrecadação das esmolas8 . 101 Seguindo a mesma linha de raciocínio, peregrinação pode ser interpretada como uma espécie de anti-romaria, em que a hierarquia eclesiástica busca impor práticas recristianizadoras9 , através de mecanismos como mandar ou proibir, suprimindo arraiais, atrofiando o papel das promessas em seu aspecto teatral e canalizando-as para os atos dos sacramentos, regulados pelo clero (Sanchis, 1979, p. 254). Resumindo, peregrinação é o evento religioso com grande poder de mobilização e com forte predominância da hierarquia eclesiástica na organização. Compreendendo a Festa de Passos enquanto romaria, é possível detectar que a celebração gira em torno das procissões do Depósito e do Encontro, realizadas respectivamente, no segundo sábado e domingo da quaresma. Procissão pode ser conceituada como “marcha solene, de caráter religioso, acompanhada de cantos e rezas” (Fontes, 1998, p. 24). Então, pode-se dizer que, a procissão é “começo e o fim de tudo, é o verdadeiro ponto dos festejos em homenagem ao santo. É momento da festa em que os fiéis estabelecem o diálogo com o santo padroeiro” (Almeida, 2002, p. 27). A procissão também é um campo de disputa, com dimensão geográfica simbólica. Em São Cristóvão, na Procissão dos Passos, pode ser destacada essa disputa pelo campo, entre os membros da Ordem Terceira do Carmo e o clero. O foco dessa disputa no campo é a posse dos festejos, cujas procissões são o ápice, o momento maior e mais aguardado. “É no momento da procissão que os fiéis e até mesmo aqueles que não vão à procissão por promessa, só fazendo gosto de particular, sentem-se inseridos dentro de uma experiência em que está presente” (Nascimento, 2002, p. 39). Revista da Fapese, n. 2, p. 97-110, jul./dez. 2005 102 Magno Francisco de Jesus Santos; Verônica Maria Meneses Nunes É difícil falar da Procissão dos Passos sem enaltecer o papel desempenhado pelos irmãos terceiros do Carmo. Até o século XIX, as irmandades detinham um papel predominante no Brasil. Esse papel aliado à rivalidade entre as irmandades foi um dos responsáveis pela disseminação de igrejas nos períodos colonial e imperial (Oliveira, 2000, p. 13). O prestígio das irmandades nesse período é devido a grande preocupação que permeava a população: a morte. Não é gratuito que uma das principais obrigações sociais das irmandades era quanto aos sepultamentos. O medo da morte sem proteção e sepultamento digno era o principal elemento aglutinador de leigos nas irmandades. “A morte era um comércio rentável” (Silva Filho, 2000, p. 45). As irmandades constituíam um valioso instrumento de distinção social e assistencialismo (Farias, 2004, p. 11). Tais aspectos tornavam visíveis através de obras de assistência1 0, dos funerais e principalmente, das pomposas procissões dos santos padroeiros dos oragos. A grandiosidade das celebrações era um requisito determinante para a entrada de novos membros na irmandade. Assim, “quanto mais pomposa era a festa, mais irmãos atraía” (Santos, 2001, p. 31). A organização das irmandades estava estreitamente relacionada com o aspecto devocional. Devoção pode ser entendida enquanto “diversas práticas religiosas do tipo particular, dirigidas a honrar certo objeto religioso, de acordo com a preferência do indivíduo devoto” (Andrade, 1999, p. 18). Muitas vezes, a origem da devoção está ligada ao medo, que pode ser visto como “um sentimento fruto de nossa imaginação que muda de acordo com as situações de perigo. Pode ser uma doença psicológica que bloqueia nossas ações” (Andrade, 1999, p. 15). Nesse caso, a partir de uma ameaça ou de um perigo concreto, pode surgir uma nova devoção como forma de defesa, por meio do voto ou promessa. A relação voto/ex-voto também é uma questão inerente à abordagem sobre o universo simbólico dos Passos. Prova disso é que no claustro da Igreja da Ordem Terceira do Carmo está reunido o maior acervo de ex-votos de Sergipe. A localização desses objetos não pode ser ignorada, haja vista que o claustro detém uma relevância considerável no universo religioso cristão. Ele pode ser visto como um elo entre o humano e o sagrado, como está evidenciado na descrição de Champeaux, que compara o claustro a Jerusalém Celeste: Na encruzilhada das quatro vias do espaço, o poço, uma árvore, uma coluna, marcam o umbigo do mundo, o ônfalo. Por aí passa a eixo terrestre, essa escala espiritual cujo pé mergulha nas trevas inferiores. É, igualmente, um centro cósmico, em relação com os três níveis do universo, com o mundo subterrâneo pelo poço; com a superfície do solo; com o mundo celeste pela árvore, pela roseira, pela coluna ou pela cruz. Ademais, sua forma quadrada ou retangular, aberta sob a cúpula do céu, representa a união da terra e do céu. O claustro é símbolo da intimidade com o divino. Em São Cristóvão, essa intimidade com o divino está explícita no claustro da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, que desde o século XIX recebe ex-votos dos romeiros do Senhor dos Passos. Ex-voto “é o fruto do sincretismo cultural e da fé, são objetos tradicionais de oferta às divindades de culto católico, para retribuir uma graça alcançada” (Leite, 2002, p. 1). Eles podem ser classificados em antropomórficos, zoomórficos, agrícolas, representativos de valor, específicos, médicos e de significado imaterial (Santos, 2004, p. 22-29). A grande variedade de exvotos é em decorrência das diferentes formas de se estabelecer o voto. O ex-voto é um testemunho de Revista da Fapese, n. 2, p. 97-110 jul./dez. 2005 Na Trilha dos Passos do Senhor: A devoção ao Senhor dos Passos de São Cristóvão/Se dimensão social, que pode servir à História como documento revelador das ações humanas (Leite, 2002, p. 1). Daí se explica a importância do Museu de Ex-voto de Sergipe, que “surgiu com a necessidade de preservar o depósito dos votos e ex-votos das milhares de pessoas que se dirigem à cidade para a Cerimônia de Passos e que, cheia de esperança, ali depositam suas promessas (Santos, 2004 p. 29). Como se viu, a origem dos ex-votos está ligada às festividades do Senhor dos Passos, que é uma romaria de penitência com a participação de um elevado número de fiéis. As penitências são reminiscências do catolicismo rústico brasileiro que ainda podem ser encontradas em algumas cidades sergipanas. A forma mais comum é a dos chamados “penitentes” ou “Irmãos das Almas”, que constituem uma sociedade secreta que tem como função principal pagar promessas e orar pelas almas dos mortos (Amaral, 2003, p. 185). Esses grupos saem às ruas nas noites quaresmais, vestidos com túnica branca, com a cruz alçada, carregando velas acesas, com cânticos e orações penitenciais no ritmo das matracas, visando salvar as almas. No imaginário popular, esses grupos são acompanhados pelas almas que expiam seus pecados. Com isso um grupo penitente pode ser interpretado como rito, por ter “ações estandardizadas baseadas sobre uma disciplina estrita e ligadas a fórmulas, gestos, símbolos e sinais de um determinado significado para a sociedade que o engendrou” (Santos, 2002, p. 56). No entanto, a Cerimônia de Passos tem algo diferenciado dos grupos penitentes por ser uma celebração em que os fiéis almejam atingir benesses imediatas, graças cotidianas, enquanto o foco central dos penitentes é a salvação das almas. A procissão dos Passos é uma celebração da dor que relembra os sete passos da Paixão de Cristo. É um ato de interação, de identidade, no qual a dor do Cristo sofredor se confunde com o sofrimento cotidiano do romeiro. 103 Esse tipo de celebração é de origem ibérica e ocorre em diversas cidades brasileiras como Pirenópolis (GO), Paraty (RJ), São Paulo (SP), Florianópolis (SC), Olinda (PE) e cidades históricas mineiras. Nelas é perceptível uma considerável mobilização popular, mas também o caráter oficial, com a participação de membros do Estado. Um exemplo elucidativo dessa constatação é a Procissão do Senhor dos Passos da Corte no Segundo Império, que tinha um dos varões do andor carregado pelo imperador D. Pedro II (Monteiro, 1982, p. 203). Em São Cristóvão, a Procissão dos Passos entre as décadas do final do século XIX e do início do XX era uma das principais celebrações religiosas de Sergipe. Provavelmente é a que atraía o maior número de romeiros, que se deslocavam de variadas regiões sergipanas. Quando se aproximava o segundo domingo da quaresma, alguns dias antes, a multidão de romeiros se dirigia à cidade para acompanhar o evento (Sant’Iago, 1920, p. 19 v). Assim, em tempos quaresmais, a cidade era: (…) lendário nicho onde vão os aracajuanos ver o echymosado Senhor dos Passos, quando o sino grande do Carmo enche de dolentes soluços, à hora do solpôr, a profunda tristeza do Vale do Paramopama. (Silva, 1920, p. 83). A Procissão de Passos é detentora de uma relevante importância na sociedade sergipana desde primórdios do século XIX. Essa relevância é evidenciada ao se verificar o elevado número de obras que citam o evento. Apesar de ser um evento muito citado, a celebração dos Passos ainda é muito pouco entendida, carente de uma reflexão mais específica. Isso porque a maior parte dos estudos que referencia a solenidade, a abordam de modo geral, reproduzindo conclusões que estão em vigor desde o início do século XX. Com isso, está evidente que chegou o momento de se buscar novos problemas, conceitos e olhares sobre o fenômeno religioso dos Passos. Revista da Fapese, n. 2, p. 97-110, jul./dez. 2005 104 Magno Francisco de Jesus Santos; Verônica Maria Meneses Nunes 2. FÉ, STATUS E PODER: A DEVOÇÃO DA ELITE Entre 1870 e 1920, a Procissão do Senhor dos Passos na cidade de São Cristóvão era um evento que mobilizava romeiros de diferentes localidades sergipanas. Ao se aproximar o segundo final de semana da quaresma, uma multidão se dirigia a São Cristóvão para assistir à solenidade do Senhor dos Passos. Essa locomoção ocorria de formas variadas, de acordo com as condições financeiras do romeiro e com o período, como explicita Sant’Iago: Hoje o nosso Estado acha-se dotado com uma estrada de ferro, havendo trem diario para aquella cidade, desapareceu a grande influencia dos romeiros costumados, que alguns dias antes começavam a viajar, uns a pé, outros em carros puxados a bois, fazendo um agradável descanso nas margens do Rio Pitanga (Sant’Iago, 1920, p. 19). Apesar das constantes dificuldades de locomoção, ainda na primeira semana da quaresma começavam a chegar em São Cristóvão às primeiras famílias oriundas de diversos pontos de Sergipe, principalmente de Aracaju (Sant’Iago, 1920, p. 19v). Esse elevado afluxo de fiéis que se dirigiam à cidade demonstra que a Procissão do Senhor dos Passos entre os séculos XIX e XX era uma das principais celebrações religiosas de Sergipe. A Procissão dos Passos conseguia aglomerar em seus cortejos não só romeiros populares, pagadores de promessas, mas também importantes membros da elite açucareira. Nesse estudo, consideramos como “elite” um pequeno grupo que, num conjunto mais vasto — religioso, cultural, político, militar, econômico ou outro — é tido como superior pelas suas funções de mando, de direção, de orientação ou de simples representação (Barata e Bueno, apud Nascimento, 2005, p. 112). No caso desse estudo, a elite analisada é a detentora do poder nos campos econômicos, político e social. Optamos por denominá-la de elite açucareira pelo fato da maioria dos seus membros estarem vinculados com a produção açucareira. Deve ser considerado ainda que, muitos dos integrantes dessa elite açucareira eram membros das irmandades sancristovenses, principalmente a do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz Nossa Senhora da Vitória e da Ordem Terceira do Carmo. A participação desse segmento social na cerimônia dos Passos pode ser constatada através de registros do período estudado, como o Annuario Christovense de Serafim Sant’Iago, e o Diário de D. Aurélia Dias Rollemberg, que foi editado recentemente por Samuel Barros de Albuquerque, além de artigos e notas dos jornais da época. A elite açucareira a qual nos referimos nesse artigo era formada por políticos (presidentes e vice-presidentes da província, deputados gerais e provinciais), militares (comandantes do Corpo Policial), bacharéis, detentores de títulos nobiliárquicos e senhores de engenho. Quase todos estavam ligados ao cultivo de cana-de-açúcar, principal atividade econômica da Província de Sergipe. No final de semana da solenidade dos Passos, essa elite açucareira se deslocava de Aracaju e de suas propriedades com destino a São Cristóvão. A Procissão do Senhor dos Passos era um evento que atraía uma considerável parte dos administradores e funcionários públicos sergipanos. Ao contrário dos demais romeiros, que seguiam a pé até São Cristóvão, os membros da elite eram conduzidos por carros puxados por animais, como destaca Serafim Sant’Iago: Chegava finalmente no sabido a tarde o Exmo. Senhor Presidente da Província de seu estado-maior, assim como um grande número de funcionários públicos gerais e provinciais e a musica do Corpo de Policia. Grande era a concorrência de carros conduzindo famílias a entrarem dia e noite na Velha Cidade (Sant’Iago,1920, p.20). As celebrações religiosas dos períodos colonial e imperial brasileiro contavam com a marcante Revista da Fapese, n. 2, p. 97-110 jul./dez. 2005 Na Trilha dos Passos do Senhor: A devoção ao Senhor dos Passos de São Cristóvão/Se participação de membros da elite. As festas religiosas serviam como espaço de legitimação do poder político-econômico dessa elite que buscava manter um posicionamento de destaque nas procissões. Assim, as procissões acabavam revelando a hierarquia presente no cotidiano da sociedade. Dentro dessa hierarquia processional, um lugar de destaque é nas proximidades da charola do santo protetor. Geralmente as charolas eram carregadas nas procissões por pessoas de maior destaque na sociedade, como políticos, senhores de engenho e fazendeiros. Poder carregar um dos varões da charola em uma procissão era indício de Status, de que a pessoa tinha prestígio naquela sociedade. A busca pelo Status de se ter sobre os ombros o varão de um andor fazia com que houvessem disputas acirradas por tais postos. As disputas eram mais intensas quando a procissão tinha um caráter oficial, com a participação de autoridades políticas. Uma das solenidades que tinha esse aspecto era a procissão do Senhor dos Passos, uma vez que no Rio de Janeiro, um dos varões do andor era carregado pelo imperador D. Pedro II (Monteiro, 1982, p. 203). Em São Cristóvão ocorria algo semelhante, principalmente na procissão do Depósito, realizada no segundo da quaresma, em que se caracteriza por conduzir a imagem do Senhor dos Passos velada entre as igrejas da Ordem Terceira do Carmo e a matriz de Nossa Senhora da Vitória. Ela é uma procissão noturna, cujo foco principal é o aspecto penitencial. Devido a esse aspecto peculiar, a charola do Senhor dos Passos tornava-se alvo de disputas, para ser carregada durante a procissão. Essa situação é evidenciada em registros como o de Serafim Sant’Iago: Via-se também ao pé da charola, aguardando o momento da sahida, o Presidente da Província com seu estado-maior, Barão da Estância, Comendador Sebastião Gaspar de Almeida Botto, Coronel Jozé Guilherme da Silveira Telles, Coronel Domingos Dias Coêlho e Mello, Dr. Silvio Anacleto de Souza Bastos, Dr. Simões de 105 Mello e muitíssimos outros abastados proprietários do Vasa-barris, antigos devotos da respeitável Imagem do Senhor do Passos. A charola nesta procissão, era carregada exclusivamente pelo Exmo Senhor Presidente e seus imediatos; então os homens que naquelle tempo, faziam votos para nesse dia carregarem a charola, era necessário que rogassem para serem cedidos alguns dos varões dos devotos que haviam feito a promessa. (Sant’Iago, 1920, p. 20) Neste relato fica evidente que a charola do Senhor dos Passos era carregada na procissão exclusivamente pela elite açucareira sergipana, reunindo senhores de engenho do Vaza-barris e do Cotinguiba. Durante o itinerário das procissões, era perceptível uma certa hierarquia, estabelecida pela ordem da saída. Com isso, ganhavam destaque os membros das ordens terceiras da cidade, principalmente as do Carmo, cujo compromisso incluía a procissão do Senhor dos Passos como uma das obrigações. Os membros da Ordem Terceira do Carmo também podem ser vistos como membros da elite açucareira sergipana, como atesta a historiografia local (Nunes, 1986). Entre os membros se destacavam os capitães José Pedro de Oliveira, José Joaquim Pereira, Antônio José Pereira e os tenentes Manoel Messias Álvares Pereira, José Florêncio dos Santos e João Caetano de Andrade. Esta é mais uma constatação que demonstra a exclusividade da elite açucareira em transportar a charola do Senhor dos Passos durante as procissões. A presença da elite na procissão do Senhor dos Passos pode ter interpretações que vão além dos aspectos devocionais. É evidente que o Senhor dos Passos constituía uma das principais devoções do catolicismo em Sergipe, tendo fiéis de diferentes segmentos sociais. No entanto, elementos como a busca pelo direito de transportar sobre os ombros um dos varões da charola revela intenções que extrapolam ao caráter penitencial. O transporte da charola pode ser visto como um eficiente meio de legitimação do Revista da Fapese, n. 2, p. 97-110, jul./dez. 2005 106 Magno Francisco de Jesus Santos; Verônica Maria Meneses Nunes poder, de demonstração do status que esse segmento social detinha, ou seja, a elite usava do prestígio da imagem para consolidar e expor o papel de destaque que desempenhava na sociedade sergipana. Assim podemos dizer que, além da devoção da elite ao Senhor dos Passos, havia também um forte jogo de interesses, uma disputa pelo poder materializada na posse de um dos varões da charola. A exclusividade da elite no transporte da charola durante as procissões era garantida também pela força e pela ordem, haja vista que a charola era guarnecida por oito praças do Corpo de Polícia. Com isso, a legislação (da Ordem Terceira do Carmo), a força (o corpo policial) e a tradição estavam a serviço da manutenção do monopólio da elite açucareira sobre a charola do Senhor dos Passos. O momento em que o restante dos fiéis tinha a oportunidade de se aproximarem da imagem do Senhor dos Passos era nos intervalos entre as missas e as procissões, quando ocorria situações de reverencia e de intimidade entre o devoto e o santo. Um exemplo visível dessa intimidade está exposto em um artigo de Gumercindo do Bessa, no qual testemunha um acontecimento irreverente: Na véspera da Festa foi à Ordem 3a do Carmo para ver de perto, demoradamente e só, a bella esculptura do Christo. Não teve a prazer de fazer sosinho o seu estudo. Lá estava o armador Luiz Pitanga enfeitando a charola, pregando e collando. E, segundos depois, chegava assobiando, o José Pedro que, dirigindo-se para o lado do andor, dizia familiarmente: — Bom dia, Senhor. — Bom dia, seu Capitão, respondia o Pitanga. — Não é com o Senhor que eu falo, é com o Senhor dos Passos; retrucou o velho dos assobias (Bessa, 1915, p. 1). Essa nota de Gumercindo Bessa demonstra o grau de intimidade que havia entre o devoto e o santo. Esta constitui uma relação familiar, de proximidade e troca, concretizada com os atos devocionais ao transportar o andor e com os ex-votos dos romeiros. 3. PASSOS DESCALÇOS: A DEVOÇÃO POPULAR REGISTRADA NOS EX-VOTOS Como já foi exposto anteriormente, a celebração dos Passos era um compromisso da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo. Essa celebração pode ser compreendida como uma solenidade oficial, considerando que, no século XIX o Presidente da Província, através de anúncios nos jornais, convidava os fiéis para comparecerem e participarem da procissão. Apesar do “clima” de solenidade oficial, no qual só os representantes da elite política e econômica podiam sustentar e transportar os varões do andor era a participação popular que dava corpo e volume à procissão e deixava o seu registro que era o exvoto. Essa afirmativa, entretanto, não exclui a idéia de que os representantes dos segmentos político e econômico também não fizessem o depósito dos exvotos como agradecimentos, isto é, o recado deixado para o santo pelo milagre alcançado. A origem dos ex-votos prende-se a cultos e ritos de antigas formas de agradecimento ligadas aos cultos de veneração das forças da natureza, em que se buscava assegurar a fertilidade do solo. Pesquisas arqueológicas evidenciam que nos templos de Asclépio ou Esculápio, onde religião e medicina se mesclavam, os doentes que para lá iam em busca de curas milagrosas, lá deixavam, como agradecimento, lápides com inscrições votivas ou pequenas esculturas antropomórficas. Em Roma seu uso também era constante e pode ser constatado na aposição em tabuinhas de inscrição V.F.G.A. (votum fecit graciam accepit, isto é, fez um voto e recebeu uma graça). A informação levanos a compreender que o ex-voto foi uma herança absorvida pelos primeiros cristãos, quando a partir Revista da Fapese, n. 2, p. 97-110 jul./dez. 2005 Na Trilha dos Passos do Senhor: A devoção ao Senhor dos Passos de São Cristóvão/Se de 312 o cristianismo foi reconhecido como religião oficial do Império Romano. O Concílio de Trento (1545-1563) teve entre seus objetivos conter a expansão do protestantismo e uma das “armas” foi o incentivo a “veneração” das sagradas imagens, porque através delas se manifestavam ao povo os benefícios e mercês que Cristo lhes concede, e se expõem aos olhos dos fiéis milagres que Deus obra pelos seus Santos e seus saudáveis exemplos”. Tais palavras estimulavam a devoção, a crença nos milagres e os agradecimentos públicos, e o exvoto vai ser um testemunho individual do encontro com o sagrado e objeto que materializava a confissão direta. Os ex-votos se popularizavam na Europa, na Idade Media. Uma prática ex-votiva de agradecimento era a construção de retábulos que traziam retratos na parte inferior e em pequenas dimensões, o milagrado. Posteriormente aparecem igrejas e mosteiros erigidos em conseqüência de promessas ou de extrema devoção. Posteriormente aparecem sob a forma de tábuas votivas e desde o século XVI já estão presentes na colônia portuguesa na América, resultante do contexto da religiosidade dos colonizadores portugueses, praticantes de um catolicismo popular apoiado nas tradições religiosas da metrópole. No entender de Vovelle: O ex-voto é um documento cultural portador de uma mensagem codificada, desenhada e pintada transmitida por pessoas que sua maioria não dispunham de outros meios de expressão para testemunhar suas crenças, receios e esperanças (1997, p.113). Uma das formas do ex-voto é a tábua votiva na qual o artista representa a cena e escreve o texto, atribuindo a graça o santo ou santa invocada. 107 Das muitas interpretações que podem ser elaboradas sobre essas tábuas destacamos duas: 1) a dificuldade da escrita, o que é justificado na população majoritariamente analfabeta da América portuguesa e no papel desempenhado pela “medicina que por si só nada valia” uma vez que “a droga salvadora não curava e a lanceta do cirurgião nada faria” caso uma força divina não ajudasse (Bilac apud Castro, 1994, p. 12). Entende-se então que os ex-votos estavam ligados às adversidades de todas as espécies que atingem o homem, além de representarem, quase sempre, necessidades individuais (doenças, acidentes, cirurgias, etc) e coletivas (epidemias, naufrágios) cuja função específica é o cumprimento da promessa. A Procissão dos Passos é, provavelmente, em Sergipe a primeira referência a essa prática votiva que registra a “imagem simbólica da ação milagrosa” (Pessôa, 2001, p. 18) que eram deixadas no teto e nas paredes da sala dos milagres do claustro da igreja Nossa Senhora do Carmo. Eram poucas as cenas em tábuas votivas com narrativas e uma delas data do ano de 1859. A grande concentração estava no objeto concreto, no qual foi concedida a graça: olhos, cabeças, cabelos, pernas, pés, seios. Uma coleção onde se pode observar a variedade de formas elaboradas por artistas anônimos. Ao lado de objetos confeccionados em madeira, barro e cera também podem ser constatados uma forma de ex-voto representada pela fotografia, segundo a estrutura da tábua votiva: as fotos representam cenas de casamento, acidentes, imagens de casas e automóveis com um texto contendo o relato que descreve a situação em que foi ou para que foi feita a promessa, isto é, o voto. Outras formas de expressões do ex-voto era o uso de velas e fitas. O hábito de pagamento da promessa/voto era exteriorizado assim através do ex-voto ou desobriga e exprimia a presença do sagrado e do milagre na vida cotidiana como uma “imagem-testemunho” da relação do homem com Deus. Revista da Fapese, n. 2, p. 97-110, jul./dez. 2005 108 Magno Francisco de Jesus Santos; Verônica Maria Meneses Nunes Na procissão que estamos estudando, a desobriga era realizada na solenidade noturna, realizada na noite do segundo sábado da quaresma. Muitos devotos, pagadores de promessa que a ela se dirigiam, trajavam túnica roxa ou lilás, como a indumentária das imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora da Soledade, levava às mãos o seu ex-voto, com pés descalços e, muitas vezes, venciam de joelhos o itinerário dos Passos entre as igrejas do Carmo e da Vitória. Ao final do trajeto, na igreja de Nossa Senhora da Vitória, o milagrado retornava à igreja de Nossa Senhora do Carmo para depositar a sua desobriga. Nos últimos anos a equipe que organiza a solenidade, estabeleceu pontos pré-determinados para recolher os ex-votos, o que não impede que o fiel o leve até a igreja do Carmo. Um outro modo evidencia a forma tradicional, ou seja, mantém a noção de que o ex-voto deve ser depositado em espaço público religiosos dedicado ao santo ou a divindade milagreira, por isso encontramos ex-votos também em cruzeiros e nas denominadas santacruz de beira de estrada. Como afirma Mattos: Simbolicamente, ao ser inserido no templo sagrado, o momento aflitivo e a interferência do poder divino — milagre — são perpetuados e o objeto material identifica-se com a natureza intemporal do locus sagrado (2001, p. 24). Por esse motivo percebe-se que o ex-voto é um documento cultural, uma mensagem transmitida por pessoas que, em sua maioria não dispunham de outros meios de expressão para testemunhar seus re- ceios, crenças e esperanças (Vovelle, 1997, p. 113). No contexto sergipano podemos entender a Procissão dos Passos com o depósito dos ex-votos como uma expressão da religiosidade tradicional, representando uma história de vida de cada pagador de promessa, demonstrando as experiências individuais nas quais o homem coloca nas mãos de Deus a instância última para o atendimento do seu pedido, seja ele qual for, e ele, pagador de promessa, ia humilde e descalço agradecer. 4. Á GUISA DE UMA CONCLUSÃO Entre 1870 e 1920, a Procissão do Senhor dos Passos constituía uma das principais cerimônias religiosas do catolicismo em Sergipe. A procissão conseguia atrair romeiros de diferentes segmentos sociais, das mais variadas regiões de Sergipe, tornando-se uma procissão com considerável poder de mobilização social. Vimos que na cerimônia do Senhor dos Passos a elite açucareira sergipana desempenhava algumas funções relevantes, como o monopólio no transporte da charola durante as procissões, visando a legitimação social. Apesar do destacado papel desempenhado pela elite, quem dava corpo a procissão eram os romeiros de segmentos populares, que seguiram descalços a charola do Senhor dos Passos, cercada por autoridades políticas e senhores de engenho. Tais romeiros registraram a sua participação ao longo dos anos através dos ex-votos. Revista da Fapese, n. 2, p. 97-110 jul./dez. 2005 Na Trilha dos Passos do Senhor: A devoção ao Senhor dos Passos de São Cristóvão/Se 109 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGOSTINHO, Pedro. Imagem e Peregrinação na Cultura Cristã: um esboço introdutório. 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Como a literatura teórica e as pesquisas empíricas que abordam esta relação, no âmbito nacional e internacional, são escassas, o presente esforço busca contribuir para se avançar tanto na compreensão teórico-metodológica sobre inserção social do jornalismo quanto na aplicabilidade técnica do conhecimento produzido sobre a atividade. Tal análise tem origem na proposta de um Mestrado Profissional em Novas Tecnologias da Comunicação, com área de concentração em Jornalismo, em cujo projeto se busca harmonizar elementos teóricos capazes de sistematizar o fazer jornalístico com a necessidade de sua aplicação a fim de vislumbrar o aperfeiçoamento das práticas profissionais. Para tanto, as atividades planejadas visam desenvolver modelos aplicados de inovação nas técnicas, nos produtos e no seu uso social, elaborando modelos explicativos sobre processos e conteúdos. PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo, Pesquisa Aplicada, Novas Tecnologias. 112 Carlos Eduardo Franciscato; Josenildo Luiz Guerra 1. INTRODUÇÃO O jornalismo é uma atividade social, institucional e coletiva, concretizada em organizações, práticas, princípios, normas e um corpo técnico especializado (os jornalistas), que atua como produtor de um tipo específico de conteúdo, as notícias (relatos construídos com base em regras e normas jornalísticas com sentido de fidelidade a um real que se desdobra no tempo presente). O jornalismo atua, portanto, na construção do conhecimento sobre o mundo e como agente instituinte de formas específicas de sociabilidade a partir da circulação pública das notícias: por um lado, laços, relações e ações sociais; por outro, concepções, interpretações e imagens sobre as coisas do mundo. Por ser dinâmica e contextual, a atividade jornalística, mesmo tendo ganhado forma e unidade em princípios práticonormativos com certo grau de generalidade, manifesta-se diferenciadamente conforme realidades particulares. Consideramos, então, pertinente afirmar o jornalismo como um processo de interpretação do mundo que alcança uma externalidade social, afetando formas de experiência social. Práticas e valores se institucionalizam ou se modificam socialmente conforme os modos de atuação jornalística e o os modos como as pessoas se relacionam com ela. O jornalismo tende a ser tanto indutor de processos de estabilidade quanto também de mudança social, econômica, política e cultural, e são ricas as formas como o conteúdo jornalístico interage com práticas e saberes locais. Tais processos de interação são cada vez mais complexos, pois o jornalismo está vinculado a movimentos sócio-tecnológicos amplos e históricos que atravessam formas específicas de instituições e constituem os princípios organizativos de uma sociedade, tais como a construção e a transmissão da cultura, as relações econômicas (o mercado como regulador da circulação), as formas de ação política e as transformações tecnológicas. Por isso, movimentos estruturais amplos no campo das novas tecnologias da informação e da comunicação afetam as relações entre jornalismo e sociedade, gerando uma nova e rica diversidade de experiências conforme realidades locais. O trabalho científico em torno do jornalismo vem se caracterizando, contemporaneamente, por um duplo desafio. Um, compreender, teórica e conceitualmente, a atividade jornalística em sentido estrito bem como as suas relações ou interações sociais. Outro, reorientar esta compreensão para a própria atividade, com o fito de promover aperfeiçoamentos nos processos e, principalmente, nos resultados do trabalho jornalístico, que incidem diretamente na qualidade da informação disponibilizada para o conjunto da sociedade. Este artigo visa, à luz de uma sistematização inicial do conjunto de questões presentes no primeiro desafio, apresentar as premissas que nos orientam num caminho em construção para enfrentar aquele segundo desafio. Tais premissas constituem a base de um projeto de mestrado profissional em Novas Tecnologias da Comunicação na área de concentração em Jornalismo gestado, inicialmente, no Laboratório de Estudos em Jornalismo da Universidade Federal de Sergipe, mas que tem buscado incorporar as contribuições de diferentes pesquisadores de diversas áreas a fim de viabilizar uma proposta inovadora de pesquisa aplicada ao sistema de produção de notícias. 2. DILEMAS DA PESQUISA EM JORNALISMO As abordagens sobre jornalismo vêm acompanhando os debates e desenvolvimentos das ciências humanas nos últimos cem anos, recorrendo a seus pressupostos e metodologias e enfrentando, de forma semelhante, suas grandes polêmicas. Em outras Revista da Fapese, n. 2, p. 111-122 jul./dez. 2005 A pesquisa aplicada e as possibilidades de desenvolvimento do campo de estudos em jornalismo palavras, os estudos sobre jornalismo têm estado à mercê de um conjunto de problemas, dilemas e impasses que todas estas ciências vêm enfrentando2 . Se por um lado esta semelhança e vinculação são necessárias para inserir as pesquisas em jornalismo em uma tradição de pensamento acadêmico, por outro lado tem também gerado dificuldades nos avanços que o jornalismo, como campo específico de saberes, vem necessitando alcançar para qualificar teórica e instrumentalmente sua atividade. Uma das dificuldades reside na insuficiência de formulação de um consistente aparato conceitual próprio que possa explicar a atividade. Em vez disso, pesquisas em jornalismo têm sofrido uma tendência a conduzir suas discussões para o interior de disciplinas humanísticas fundadoras de quadros conceituais. Tal movimento redunda, pela própria natureza de rigor disciplinar da tradição, em uma exigência de o pesquisador em jornalismo dar conta dos problemas (epistemológicos inclusive) destas disciplinas, e tal enfrentamento lhe faz tirar o foco principal sobre as questões conceituais específicas do jornalismo. Vejamos alguns problemas que podem ser pertinentes a um pesquisador que, além de aplicar instrumentais metodológicos típicos das ciências humanas e sociais, busca investigar a possibilidade de se construir uma “epistemologia do jornalismo”: Se, como pretendem algumas perspectivas teóricas, o jornalismo é efetivamente uma 113 forma de conhecimento – ao lado da filosofia e da ciência -, qual o seu estatuto epistemológico? O que o distingue das demais formas estabelecidas de conhecimento e quais os pressupostos que lhe são próprios? Será a realidade de que trata o jornalismo, em sentido ontológico, diferente da realidade de que tratam as ciências e a filosofia? Terá o jornalismo, em sentido epistemológico, um modo de declarar, afirmar ou descrever diferente do de outras áreas? O que é fato para o jornalismo não será fato para as ciências e vice-versa? Qual o conceito de verdade operado pelo jornalismo? (Tambosi, 2003, p. 41).3 Um segundo nível de argumentos sobre os desafios das pesquisas contemporâneas em jornalismo, levantado por alguns acadêmicos brasileiros (Meditsch 2004; Machado, 2004; 2005), alcança um outro objetivo, além deste. Há um questionamento se a vinculação disciplinar mais adequada para a área de jornalismo não seria o campo das ciências sociais aplicadas, em vez de se localizar no das ciências humanas, locus de onde surge a maioria dos estudos comunicacionais e, também, de jornalismo. Como defesa inicial desta tese está um argumento institucional: em sua divisão das áreas de conhecimento, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) insere a área de comunicação (e, em decorrência, a de jornalismo) no campo das Ciências Sociais Aplicadas. Revista da Fapese, n. 2, p. 111-122, jul./dez. 2005 114 Carlos Eduardo Franciscato; Josenildo Luiz Guerra Entretanto, o principal argumento em favor desta tese é qualitativo: o jornalismo é uma atividade social prática4 que necessita da pesquisa aplicada para o seu desenvolvimento. A atividade jornalística é um corpus de conhecimentos e procedimentos individuais, coletivos e organizacionais que exigem um contínuo aperfeiçoamento para corresponder às exigências sociais quanto para dar conta das transformações sociais no campo da tecnologia, economia, política e cultura, bem como estimulam a busca de inovações de processos e produtos jornalísticos. Há, aqui, um importante ponto de convergência entre o setor acadêmico e o produtivo, com possibilidade de produção de conhecimento (objetivo maior da academia) que tenha fins aplicados (interesses das organizações produtivas, como as indústrias da mídia). Meditsch esclarece que a indústria jornalística brasileira vem, nos últimos anos, buscando apoio das universidades para a solução de seus problemas, sem encontrar interlocutor interessado ou capacitado para esta parceria. “As empresas se deram conta de que a profissão já não pode se reproduzir ‘na prática’ como antigamente; a mutação cultural, social e tecnológica obriga a uma compreensão científica do que está ocorrendo” (Meditsch, 2004, p. 99). Isto significa apontar para a possibilidade de parcerias entre o setor produtivo e as universidades, como a experiência modelar do Gannett Center for Media Studies, na Universidade de Columbia, Estados Unidos, resultado de uma interação entre universidade e indústrias jornalísticas a fim de produzir livros, estudos e outros produtos intelectuais (Dennis e Stebenne, 2003). Machado (2004) considera que a hesitação dos pesquisadores em jornalismo em optar por realizar pesquisa social aplicada (preferindo localizar-se no campo das ciências humanas) tem gerado, na área, uma incapacidade em desenvolver metodologias próprias de pesquisa e, em conseqüência, dificuldades em se constituir como um campo de conhecimento: Quando renuncia a aplicação das teorias que desenvolve o campo do jornalismo, comete um duplo equívoco. De um lado, quando se trata de uma teoria criativa, deixa de possibilitar que este tipo de conhecimento seja traduzido em aplicações que poderiam melhorar a qualidade de vida das pessoas. De outro, por não aceitar sequer a possibilidade de pôr à prova da prática as suas hipóteses, o pesquisador muitas vezes acaba por assumir uma postura reativa ou mesmo contestatória ao mundo institucionalmente dado. Não raras vezes, mais que teorias reafirma princípios políticos. Ao defendermos a prioridade para a pesquisa aplicada nada mais queremos que, com mais de dois séculos de atraso, o circuito da produção de conhecimento seja completado no campo do jornalismo. Com o estímulo à pesquisa aplicada haveria a possibilidade para a pesquisa auto-reflexiva, - a que determina o nível de amadurecimento do próprio campo - e que permitiria a cobertura de uma lacuna que provoca muitos prejuízos ao processo de formação: o desenvolvimento de métodos de pesquisa e metodologias de ensino no campo do jornalismo (Machado, 2005). Pressupomos, então, haver uma rica e tensa relação complementar entre pesquisa pura e aplicada em jornalismo. Entendemos ser praticamente inexistente Revista da Fapese, n. 2, p. 111-122 jul./dez. 2005 A pesquisa aplicada e as possibilidades de desenvolvimento do campo de estudos em jornalismo a literatura teórica e as pesquisas empíricas que compreendam esta relação, no âmbito nacional e internacional. Por isso, esperamos que os resultados deste projeto representem um avanço tanto na compreensão teórico-metodológica da inserção do jornalismo nas sociedades quanto nos estudos aplicados em jornalismo. 3. A PESQUISA APLICADA EM JORNALISMO E A PÓS-GRADUAÇÃO A produção científica tendo o jornalismo como objeto central de pesquisa vem crescendo significativamente nos últimos dez anos no Brasil. Indicadores deste incremento podem ser percebidos ao considerarmos o número de trabalhos científicos apresentados anualmente nos dois principais congressos brasileiros de pesquisa em comunicação INTERCOM e COMPOS - e na criação, ao final de 2003, da Sociedade Brasileira dos Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Estes são movimentos que, por um lado, revelam uma intenção dos pesquisadores em produzir um avanço teórico do campo, melhor definição de metodologias adequadas ao estudo do jornalismo e aprofundamento no conhecimento das especificidades do objeto e das relações que estabelece com outros atores, processos e práticas sociais. Ao mesmo tempo, se observamos as linhas de pesquisas formalmente estabelecidas nos programas de pós-graduação em Comunicação no País, o jornalismo tem sido um objeto de relevância secundária quando considerado, tem aparecido predominantemente como um dado empírico para pesquisas com focos sobre questões que transcendem a atividade jornalística. Os programas de pós-graduação (mestrado e doutorado) em comunicação não investem na produção de pesquisa aplicada para o desenvolvimento do campo de estudos em jornalismo. Como as linhas de pesquisa destes programas não priorizam o desenvolvimento de um conhecimento básico e aplicado do jornalismo, este objeto tende a não se constituir como um campo de estudos relevante e capaz de alcançar solidez, unidade mínima e 115 densidade teórica suficiente para a formação de modelos explicativos e aplicados sobre os fenômenos específicos que esta atividade opera. É algo até paradoxal, já que, dentro da classificação das áreas de pós-graduação elaborada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), responsável pela organização, fiscalização e avaliação do sistema brasileiro de pósgraduação, os 19 programas de pós-graduação em Comunicação e os 7 em Ciência da Informação localizam-se na área “Ciências Sociais Aplicadas I”. Em Comunicação, são 9 programas de Mestrado e 12 programas de Mestrado e Doutorado, resultantes de um crescimento acelerado na área nos últimos anos (em 1996, havia 8 programas de mestrado e 4 de doutorado em Comunicação). Este crescimento possui um esboço de paradoxo porque, mesmo que a localização dos programas seja na área de “Ciências Aplicadas”, há, proporcionalmente, uma redução institucional de linhas de pesquisa voltadas à aplicação do conhecimento para o desenvolvimento de processos e produtos das atividades profissionais. Estes campos com vocação profissional vêm sendo englobados em linhas de pesquisa com maior grau de generalidade, como, por exemplo, a perda de um foco específico em “jornalismo” e a inclusão deste campo em sub-áreas como “comunicação impressa” ou “estudos dos meios de comunicação”. Em contrapartida, há um acentuado crescimento em áreas predominantemente teóricas, com ênfase em disciplinas tradicionais das Ciências Humanas (Ciências Sociais, Filosofia, História), das Ciências da Linguagem ou Artes, revelando uma vocação multidisciplinar da área. Outro exemplo dessa pouca afinidade teórica com as “Ciências Aplicadas” é que a área de Comunicação não possui, até hoje, nenhum programa de Mestrado Profissional. Em uma nova chamada pública para apresentação de propostas de Mestrado Profissional em 2005, a CAPES avalia que estes programas têm o perfil adequado para Revista da Fapese, n. 2, p. 111-122, jul./dez. 2005 116 Carlos Eduardo Franciscato; Josenildo Luiz Guerra permitir “(1) a mais rápida transferência do conhecimento científico para a sociedade, (2) a elevação da produtividade de nossas empresas, (3) o aumento da competência dos setores sociais da administração pública, bem como de organizações não governamentais que tenham por meta a redução da dívida social” (www.capes.gov.br). PES, um projeto de criação de um Mestrado Profissional, denominado “Novas Tecnologias da Comunicação”, com área de concentração em Jornalismo. O projeto foi aprovado nos conselhos internos da Universidade e enviado, em setembro de 2005, à CAPES, para que esta avalie a solidez e a viabilidade da proposta e, se for o caso, autorize o seu funcionamento5 . Para a área de Ciências Sociais Aplicadas I, a CAPES lançou, em seu portal na Internet, um documento, datado de julho de 2005, em que apresenta parâmetros complementares a um Mestrado Profissional: A proposta de criação de um mestrado profissional em que o jornalismo é a preocupação central e ponto de convergência das investigações busca complementar as áreas de reflexão sobre os fenômenos comunicacionais existentes no sistema brasileiro de pós-graduação. E, particularmente, dar um corpo institucional que contribua para constituir um núcleo emergente e convergente de estudos sobre jornalismo voltados para o desenvolvimento de pesquisas aplicadas. 1. A função básica de um Mestrado Profissional em Ciências Sociais Aplicadas I deve ser a de obter desenvolvimentos significativos de competências superiores de nível crítico, estratégico, criativo, analítico e interpretativo sobre questões e problemas do espaço profissional, e conforme interesses e expectativas da sociedade sobre tais profissões. 2. Esse desenvolvimento será obtido através da ampliação e diversificação experimental de projetos envolvendo pesquisa para geração de conhecimentos (elaborando reflexões teóricas sobre as práticas profissionais em pauta), pesquisa de linguagens, experiências de produção, de criação e de processos profissionais inovadores. 4. A PROPOSTA DE UM MESTRADO PROFISSIONAL EM JORNALISMO As lacunas teórico-metodológicas na pesquisa em jornalismo motivaram um grupo de professores da Universidade Federal de Sergipe a apresentar, à CA- Este projeto surge também como resposta da Universidade a uma demanda regional de qualificação profissional na área de jornalismo. A formação de nível superior em jornalismo se tornou uma realidade em Sergipe a partir de 1985, com a criação do primeiro curso de nível superior em Comunicação Social/Jornalismo, pela antiga Faculdade Tiradentes e, em 1993, com o início de funcionamento do curso da UFS. Esta nova geração de jornalistas formados em Sergipe encontrou, à sua espera, um mercado de comunicação que opera ainda sob uma lógica de baixos investimentos em produção, qualificação, tecnologia e diversificação de atividades de comunicação. Isto faz com que, em média, o jornalista se depare com empresas cujos processos de produção apresentam defasagem tecnológica e atrasos na introdução de inovações na área produtiva. Revista da Fapese, n. 2, p. 111-122 jul./dez. 2005 A pesquisa aplicada e as possibilidades de desenvolvimento do campo de estudos em jornalismo Assim, a reduzida vocação empresarial das empresas e seus reduzidos investimentos em novas tecnologias da informação e da comunicação, bem como a baixa remuneração dos jornalistas e a necessidade de um segundo ou terceiro empregos para complementar a renda salarial são fatores que limitam as possibilidades reais de qualificação profissional dentro do quadro existente. A partir deste perfil de demanda, o projeto de Mestrado Profissional serve como indutor de processos inovadores de produção jornalística. 4.1 Caracterização da proposta O Curso de Mestrado Profissional em Novas Tecnologias da Comunicação, com área de concentração em Jornalismo, tem como objetivo geral capacitar jornalistas com formação de nível superior para dois tipos de ações: a) o desenvolvimento de novos processos e produtos jornalísticos nas suas áreas de atuação: utilização da tecnologia aplicada ao jornalismo, rotinas de produção jornalística, compreensão das áreas temáticas que são objetos regulares de intervenção jornalística e investigação de novos estilos de construção textual; b) a formulação de modos de investigação das indústrias jornalísticas e sua inserção em contextos sócio-econômico-culturais regionais. O jornalista será, então, direcionado a desenvolver modelos aplicados de inovação nas técnicas, nos produtos e no seu uso social, bem como analisar a atividade e as indústrias jornalísticas a partir de sua estrutura produtiva, seus processos de produção e da especificidade do seu produto, elaborando modelos explicativos sobre seus processos e conteúdos. Embora o curso tenha como foco principal a qualificação profissional em jornalismo, é intenção do 117 projeto contribuir para promover uma melhoria no conjunto da atividade profissional no Estado. Isto significa que o curso pretende desenvolver reflexão crítica sobre a atividade, articulando pesquisadores e estudantes de pós-graduação não necessariamente ligados diretamente a esta atividade-fim. O Curso trabalhará com dois tipos de públicoalvo: a) Prioritariamente formados em cursos de graduação em Comunicação Social/Jornalismo ou formados em cursos de graduação de qualquer área de conhecimento e com registro profissional em Jornalismo. O foco principal no jornalismo se deve à necessidade de qualificação profissional e desenvolvimento de tecnologias e procedimentos inovadores na atividade, considerando-se as necessidades do ambiente regional de produção jornalística; b) Formados em cursos de graduação em demais áreas de conhecimento, conforme interesses específicos para abordagem multidisciplinar do jornalismo. Este segundo tipo de público se deve à oportunidade de desenvolver uma qualificação no procedimento de análise crítica do produto jornalístico e nas possibilidades de desenvolvimento de competência crítica de leitura para o público leitor de produtos jornalísticos, bem como no estímulo à sedimentação de novas formas de vínculo e legitimidade do jornalismo na sociedade. Admite-se, por exemplo, a presença de alunos formados em áreas de conhecimento de Ciências da Computação, como forma estimular o desenvolvimento de tecnologias, processos e produtos inovadores em banco de dados e internet aplicados ao jornalismo e, em conseqüência, qualificar profissionais desta área a atuar no desenvolvimento de aplicativos para fins jornalísticos. Revista da Fapese, n. 2, p. 111-122, jul./dez. 2005 118 Carlos Eduardo Franciscato; Josenildo Luiz Guerra 4.2 As linhas de pesquisa O projeto do Curso de Mestrado Profissional em Novas Tecnologias da Comunicação apresenta duas linhas de pesquisa, “A reportagem jornalística em ambientes digitais” e “Áreas Temáticas Aplicadas à Produção Jornalística”. As duas linhas de pesquisa têm um caráter complementar, ou seja, os conhecimentos gerados em cada uma poderão alimentar conceitual e instrumentalmente a outra linha: ambas possuem bases nos estudos em jornalismo e buscam, por meio de atividades diferenciadas, a qualificação do campo do jornalismo. novas formas de interação entre jornalistas e leitores, havendo, como nos blogs, graus de co-participação do leitor na tecitura da escrita e, desta forma, reconstruindo vínculos com a instituição jornalística. Além das reflexões necessárias à compreensão destes aspectos, será estimulado o desenvolvimento de processos inovadores de produção jornalística a partir dos novos suportes tecnológicos. Rotinas de trabalho baseadas na Computer-Assisted Reporting (CAR) serão avaliadas e desenvolvidas como qualificação das fases de apuração, redação e edição de produtos jornalísticos. 4.2.2 ÁREAS TEMÁTICAS APLICADAS À PRODUÇÃO 4.2.1 A REPORTAGEM JORNALÍSTICA EM AMBIENTES DIGITAIS Esta linha de pesquisa propõe estudar os processos e produtos jornalísticos tendo por base as novas tecnologias da comunicação e da informação, particularmente o ambiente das redes midiáticas surgidas com a convergência entre informática e telecomunicações. Estes estudos direcionam-se a apresentar e a desenvolver conhecimentos sobre os modos como o jornalista pode qualificar seu trabalho de reportagem ao utilizar ferramentas como programas de busca na internet, banco de dados, filtros para selecionar materiais, espaços interativos na internet, bem como desenvolver usos aplicados dessas ferramentas para fins jornalísticos. Para isso, o mestrando deverá adquirir sólido conhecimento das teorias e modelos explicativos sobre o jornalismo, a saber: os estudos sobre as rotinas da produção jornalística, a noticiabilidade, o agendamento, os gêneros jornalísticos, bem como estudos que diagnostiquem os alcances dos novos processos comunicacionais realizados em ambientes telemáticos. O jornalista será desafiado e pensar estes ambientes não somente como locais de desenvolvimentos de novas tecnologias e ferramentas de interação, edição e leitura de produtos jornalísticos, mas como: a) novas posturas possíveis do jornalista no espaço público; b) redefinições do papel do jornalista na operação de sistemas de informação; c) JORNALÍSTICA Esta linha de pesquisa busca estudar os modos como os jornalistas abordam áreas especializadas de conhecimento, suas dificuldades na compreensão de conhecimentos complexos e sua tradução para linguagens simplificadas e acessíveis ao leitor não especialista. Ao compreender estes aspectos, supomos estar preparando um mapeamento de temas, abordagens e questões necessários à qualificação profissional em áreas temáticas, por meio do desenvolvimento de competências gerais e específicas e de novos processos de produção jornalística. Assim, esta linha de pesquisa propõe articular pesquisadores que investiguem a influência das áreas especializadas de conhecimento para a interpretação dos fatos e elaboração da notícia, bem como desenvolver metodologias de pesquisa pura e aplicada para um melhor domínio e manejo destas áreas de conhecimento por jornalistas. Entendemos que esta proposta de linha de pesquisa possui um caráter multidisciplinar em sua institucionalidade, articulação e trabalho efetivo. Esta multidisciplinaridade irá se manifestar na forma como as áreas temáticas especializadas alimentarão, com diagnósticos e sistematização de conhecimentos, os processos e produtos jornalísticos. Teremos, para isso, as novas tecnologias da informação e da Revista da Fapese, n. 2, p. 111-122 jul./dez. 2005 A pesquisa aplicada e as possibilidades de desenvolvimento do campo de estudos em jornalismo comunicação como suporte teórico-prático para indicar novas interfaces tecnológicas entre o conhecimento especializado e a atividade jornalística. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme procuramos expor nos fundamentos e no projeto de criação do Curso de Mestrado Profissionalizante em Novas Tecnologias da Comunicação, área de concentração em Jornalismo, é para esta área de concentração que convergem tanto as linhas de pesquisa, os projetos, os grupos de pesquisadores quanto as demais atividades do programa. Entendemos que o jornalismo é definido não pela particularidade do objeto de estudo, mas pela especificidade dos conhecimentos utilizados tanto na compreensão do objeto quanto no desenvolvimento de processos e produtos jornalísticos. Por meio desta área de concentração consideramos possível estabelecer um foco sobre abordagens, teorias e modelos de investigação da prática jornalística. O jornalismo é uma instituição social constituída historicamente para cumprir um papel social específico, não executado por outras instituições. A instituição jornalística conquistou historicamente uma legitimidade social para produzir, para um público amplo, disperso e diferenciado, uma reconstrução discursiva do mundo com base em um sentido de fidelidade entre o relato jornalístico e as ocorrências cotidianas. O projeto pedagógico do Mestrado Profissional pretende enfrentar o desafio de transformar uma visão histórico-interpretativa do jornalismo (como objeto das Ciências Humanas) em um modo de conhecimento que articule teoria e prática e que conduza a uma qualificação teórica e técnica dos modos de produzir jornalismo. A intenção é possibilitar que o pósgraduando tanto amplie sua compreensão sobre temas e situações da atividade fundados nas mais recentes transformações histórico-sociais e tecnológicas quanto se qualifique para intervir nas tensões próprias ao mercado regional de comunica- 119 ção, com vistas a introduzir novos modelos inovadores de processos e produtos jornalísticos. Dois aspectos finais podem ser ainda mencionados, particularmente sobre o modelo de pós-graduação vigente no Brasil, os desafios para os próximos anos e a localização desta proposta de Mestrado Profissional neste contexto de formação em pós-graduação. Primeiro, o Plano Nacional de Pós-Graduação 2005-2010 avalia que o Sistema Nacional de PósGraduação apresenta enormes assimetrias no seu funcionamento, tanto do ponto de vista regional, intra-regional e entre estados: O sistema continua concentrado na região sudeste. Independentemente de políticas direcionadas, nos últimos anos a Região Sul vem encontrando estratégias desenvolvimentistas e consolidando seus programas, de sorte a ocupar hoje lugar de visibilidade no Sistema. O Nordeste alcançou algum destaque, porém, ainda apresenta assimetrias entre os seus estados. No Centro-Oeste o quadro de assimetrias é ainda mais acentuado, uma vez que a pós-graduação concentra-se em Brasília. E no Norte, região de extrema importância nacional pela sua dimensão e diversidade, encontra-se uma pós-graduação incipiente, com concentração em dois estados de uma região de dimensão continental (p.46). A área de pós-graduação em Comunicação reproduz estas disparidades regionais. As regiões NorteNordeste apresentam apenas dois programas de pósgraduação (strito sensu) em Comunicação: a) Mestrado e Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Universidade Federal da Bahia); b) Mestrado em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco. Ambos são mestrados acadêmicos, e concentrados nos dois pólos sócio-econômicos das regiões. Por isso, a proposta de criação de um mestrado profissional na Universidade Federal de Sergipe contemplará tanto uma possibilidade de desconcentração da pós-graduação nas regiões Sul e Sudeste quanto fora dos pólos regionais. Revista da Fapese, n. 2, p. 111-122, jul./dez. 2005 120 Carlos Eduardo Franciscato; Josenildo Luiz Guerra Um segundo aspecto é a presença de um caráter multidisciplinar como uma das dimensões necessárias para a qualificação profissional em jornalismo. Entendemos que o jornalismo não é uma área estritamente multidisciplinar, mas, ao contrário, depende de um rigor disciplinar em seus métodos e técnicas de trabalho, bem como na clareza dos seus princípios e conceitos norteadores para que possa alcançar um avanço teórico e prático. Isto é, a qualificação da atividade jornalística depende da instituição e consolidação de um campo de conhecimentos em jornalismo. Ao mesmo tempo, o jornalismo necessita também manter uma interface contínua e viva com outras disciplinas para o exercício qualificado da atividade. É este o aspecto multidisciplinar com o qual o jornalismo deve interagir. Entendemos que esta perspectiva insere-se na percepção estratégica de desenvolvimento de áreas multidisciplinares indicadas pelo Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) 20052010. Este documento revela esta preocupação no item em que aborda a destinação dos recursos de ciência e tecnologia nacionais,sugerindo: “Estimular a formação de parcerias e consórcios entre programas de regiões distintas, de forma a promover a desconcentração do sistema nacional de pós-graduação, utilizando para isso a parceria federal-estadual no financiamento, particularmente em áreas estratégicas e multidisciplinares” (p. 58). Revista da Fapese, n. 2, p. 111-122 jul./dez. 2005 A pesquisa aplicada e as possibilidades de desenvolvimento do campo de estudos em jornalismo 121 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 2003. DENNIS, Everette E; STEBENNE, David. Requim for a Think Tank – The Life and Death of the Gannett Center at Columbia, 1984-1996. The Harvard International Journal of Press/Politics, Vol. 8, No. 2, 11-35, 2003. EKSTRÖM, Mats. Epistemologies of TV journalism. Journalism. Vol. 3(3). London: SAGE Publication, 2002, p. 259-282. GOMES, Wilson. O estranho caso de certos discursos epistemológicos que visitam a área de Comunicação. In: LOPES, Maria Immacolata Vassallo de (org.). Epistemologia da Comunicação. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 313-329. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Pesquisa de comunicação: questões epistemológicas, teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. Vol XXVII, n° 1, jan/jun 2004. 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Os autores serão notificados da aceitação ou recusa de seus artigos. 2. Eventuais sugestões de modificações de estrutura e/ou conteúdo que se façam necessárias serão notificadas ao autor, que se encarregará de fazê-las no prazo máximo de trinta dias. 3. Não serão permitidos acréscimos ou modificações depois que os textos tiverem sido encaminhados à gráfica. III. Forma de apresentação dos originais. 1. Os artigos e relatórios técnicos deverão ser enviados em disquetes ou via e-mail, acompanhados de duas cópias impressas, em espaço simples, letra Times New Roman (12), não excedendo vinte e cinco laudas, incluindo notas, bibliografia e anexos. 2. Todos os trabalhos deverão ser acompanhados de um resumo em Português (de até 250 palavras), que sintetize os propósitos, métodos e principais conclusões, a identificação de Palavras-chave (até quatro), assim como os dados sobre o autor (titulação, instituição, cargo e e-mail). 3. As notas, que devem ser de natureza substantiva e explicativa (não bibliográfica), deverão ser incluídas no final da página. As menções a autores no correr do texto (referências bibiográficas) devem se subordinar à forma (autor, ano, página). Por exemplo (Keynes, 1936) ou Keynes (1936, p. 55). 4. A bibliografia será apresentada ao final do texto, em ordem alfabética pelo último sobrenome do autor em caixa alta, de acordo com as normas usuais. 124 IV. Remessa dos originais. Os trabalhos com vistas à publicação devem ser enviados para: Editor de Revista FAPESE – e-mail: [email protected] Endereço: Revista FAPESE Rua Lagarto, 952 Aracaju – SE 49010-390