Referenciação e Ensino

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Referenciação e Ensino
Referenciação e Ensino:
análise de livros didáticos
Leonor Werneck dos Santos
(Org.)
Faculdade de Letras
Universidade Federal do Rio de Janeiro
1
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Leonor Werneck dos Santos
(Org.)
Referenciação e Ensino:
análise de livros
didáticos
Rio de Janeiro
UFRJ
2013
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Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Copyright ©2013 da Organizadora
Ficha catalográfica
R332
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos /
Leonor Werneck dos Santos (Org.) - Livro
eletrônico – Rio de Janeiro: Faculdade de Letras
da UFRJ, 2013.
382p.
ISBN: 978-85-8101-011-3
Livro eletrônico
Modo de acesso: www.lenorwerneck.com ;
www.lingnet.pro.br
1. Língua Portuguesa – Estudo e ensino. 2.
Livros didáticos – Brasil. I. Título II. SANTOS,
Leonor Werneck.
CDD 469.071
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Sumário
Apresentação
Leonor Werneck dos Santos
05
A referenciação e a construção de sentido do texto:
um caminho a percorrer
Amanda Heiderich Marchon 07
A abordagem da referenciação em livros didáticos
de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental
Fabiana Gonçalo
Manuela Colamarco
35
Um olhar sobre as estratégias de referenciação nos
manuais didáticos do Ensino Médio
Fábio Gusmão da Silva 80
Processos referenciais: a construção de sentidos em
turmas de EJA
Karine Oliveira Bastos 120
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Os processos de referenciação nos livros didáticos:
análise de textos jornalísticos
Luana Machado 164
A construção de objetos de discurso pelo léxico: uma
abordagem relevante ao ensino
Mário Acrisio Alves Junior 207
A abordagem (ou não) da referenciação em dois
livros didáticos do Ensino Médio
Natália Rocha Oliveira Tomaz 246
A referenciação em duas coleções didáticas
Matheus Odorisi Marques 280
Propostas de atividades
Sobre os autores
378
323
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Apresentação
Profa. Dra. Leonor Werneck dos Santos (UFRJ) Este e-­‐book é composto de oito artigos elaborados como trabalho de conclusão do curso de pós-­‐graduação “Leitura, referenciação e argumentação em gêneros textuais jornalísticos”, oferecido por mim, no primeiro semestre de 2012, na Faculdade de Letras da UFRJ. O objetivo principal desta publicação é divulgar debates teóricos que travamos durante o curso sobre referenciação, argumentação e a aplicação desses temas ao ensino, por meio da análise de alguns livros didáticos de Ensino Fundamental e Médio, especificamente a partir de textos midiáticos. Como proposta de trabalho final para o curso, cada um dos autores dos artigos aqui reunidos se debruçou sobre duas coleções didáticas de Ensino Fundamental, Médio ou EJA, escolhidas por terem sido aprovadas recentemente no Programa Nacional de Livro Didático (PNLD/2012). A análise dos livros abarcou se e como a referenciação (ou os processos referenciais, ou ainda a coesão referencial) era abordada teoricamente, se 6
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havia atividades sobre referenciação com base em textos da mídia, se o Manual do Professor tratava do tema e se havia alguma associação entre os processos referenciais e a argumentação. Ao final de cada artigo, um dos textos midiáticos presentes em uma das coleções foi escolhido para elaboração de novas atividades, incluindo referenciação. Ao final deste e-­‐book, anexei atividades elaboradas pelos alunos do curso (autores deste e-­‐book) e discutidas em sala, a partir de notícias de internet sobre a tragédia que se abateu sobre a Serra Fluminense em 2011, após dias de chuvas fortes. Nosso objetivo é mostrar como é possível elaborar atividades mesclando leitura, análise linguística e produção textual, tendo como foco a referenciação. Profa. Dra. Leonor Werneck dos Santos
UFRJ – maio de 2013.
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A referenciação e a construção de
sentido do texto: um caminho a
percorrer
MARCHON, Amanda Heiderich (UFRJ) 1. INTRODUÇÃO
Há muito já se sabe que o fracasso escolar, nas séries iniciais ou mesmo no Ensino Médio, está intimamente relacionado à questão da leitura e da escrita – resultado da enorme dificuldade que a escola tem de estabelecer novas e mais eficazes metodologias para o desenvolvimento, por parte do aluno, das diversas competências linguísticas, tributárias do ato de ler-­‐escrever-­‐falar-­‐ouvir e da aprendizagem formal desses processos. Pesadelo de muitos alunos e dor de cabeça para tantos professores, a deficiência de ler um texto e compreender sua mensagem tornou-­‐se um problema constante em escolas públicas e particulares em todo o país. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (2001, p.21), 8
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O domínio da língua tem estreita relação com a possibilidade de plena participação social, pois é por meio dela que o homem se comunica, tem acesso à informação, expressa e defende pontos de vista, partilha e constrói visões de mundo, produz conhecimento. Assim, também acreditamos que o aluno deva entender o texto como uma forma importante de comunicação. Dessa forma, muito mais que mera decodificação de signos e palavras, o atos de ler e de escrever são fundamentais não apenas para a formação acadêmica do estudante, mas também para sua formação cidadã. O texto não representa a materialidade do cotexto, nem é somente o conjunto de elementos que se organizam numa superfície material suportada pelo discurso; o texto é uma construção que cada um faz a partir da relação que se estabelece entre enunciador, sentido/referência e coenunciador, num dado contexto sociocultural. (CAVALCANTE, 2011, p. 17) Todavia, vimos que toda a proposta dos PCN para o ensino de Língua Portuguesa não condiz, na íntegra, com a realidade do processo ensino/aprendizagem. Diversos fatores podem ser apontados para tal descompasso, entre eles os 9
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inúmeros problemas de ordem político-­‐econômica, a tripartição e o isolamento entre as disciplinas de Língua Portuguesa, Redação e Literatura, a não utilização do texto como unidade de ensino etc. Há décadas, vários teóricos se debruçam sobre a questão do papel e da importância das aulas de Língua Portuguesa. Recentes trabalhos apontam para uma reflexão acerca de algumas perguntas do tipo: ‘Por que / para que ensinar Língua Portuguesa?’; ‘Para quem?’; ‘Como?’; ‘Quais tópicos priorizar em um “aqui” e em um “agora” determinados?’. Há, sem dúvidas, respostas satisfatórias e bem argumentadas para todas essas interrogações. Travaglia (2002, p.17), por exemplo, declara que o principal objetivo do ensino de Língua Portuguesa é desenvolver a competência comunicativa dos falantes em diversas situações de comunicação. Porém, apesar de todo o caminho aberto por tantos estudiosos do assunto em torno da língua materna, as aulas de Português ainda privilegiam os exercícios de metalinguagem, nos quais a análise sintática, por exemplo (reduzida, pois, a atividades de classificação e de nomenclatura), parece ser, tanto para alguns discentes quanto para tantos outros docentes, o ponto máximo do estudo linguístico. 10
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Não questionamos, no entanto, que as propostas de metalinguagem tenham importância. O que aventamos é outra percepção: a de que aquele tipo de exercício não deveria representar um fim em si mesmo. Geraldi (1998, p. 63-­‐64) propõe que: Todas estas considerações mostram a necessidade de transformar a sala de aula em um tempo de reflexão sobre o já-­‐conhecido para aprender o desconhecido e produzir o novo. É por isso que atividades de reflexão sobre a linguagem (atividades epilinguísticas) são mais fundamentais do que a aplicação a fenômenos sequer compreendidos de uma metalinguagem de análise construída pela reflexão de outros. Aquele que aprendeu a refletir sobre a linguagem é capaz de compreender uma gramática – que nada mais é do que o resultado de uma (longa) reflexão sobre a língua; aquele que nunca refletiu sobre a linguagem pode decorar uma gramática, mas jamais compreenderá seu sentido. Portanto, tomando por base o grande desafio imposto ao professor de Língua Portuguesa de qualquer segmento – prover meios para que os alunos pensem e usem, adequada e criticamente, a língua materna a cada situação social–, analisaremos se as coleções Português Linguagens e Projeto Eco abordam a referenciação associando-­‐a à construção de sentido. Além disso, proporemos atividades de leitura a respeito de textos da mídia. 11
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2. REFERENCIAÇÃO
E
CONSTRUÇÃO
DE
OBJETOS DE DISCURSO
A linguagem humana tem o poder não só de criar e nomear o mundo, mas também de possibilitar a interrelação com o outro e com a coletividade. Nessa perspectiva, a linguagem verbal é, então, a matéria do pensamento e o veículo de comunicação social. Segundo Koch (2007, p. 7), os diferentes modos de considerar a linguagem humana têm sofrido transformações. Historicamente, há três posicionamentos em relação à língua: como representação (“espelho”) do mundo e do pensamento; como estrutura, instrumento (“ferramenta”) de comunicação; como forma (“lugar”) de ação e interação. De acordo com a noção da língua como o lugar de interação – perspectiva adotada atualmente pela Linguística de Texto, base teórica deste artigo –, os sujeitos, por participarem ativamente no contexto em que estão inseridos, são atores nas situações comunicativas que buscam influenciar um ao outro. A comunicação, portanto, decorre da indissociável relação entre os interlocutores, para que se possa depreender das palavras seus sentidos concretos. É na interação verbal que a língua se faz significante e assume as marcas do sujeito. 12
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Assim, ao conceber a comunicação como um processo interativo, muito mais amplo do que a mera transmissão de informações, diversos teóricos refutam “a hipótese de um poder referencial da linguagem, que seria fundado ou legitimado por uma ligação direta e verdadeira entre as palavras e as coisas” (MONDADA e DUBOIS, 2003, p. 18-­‐19. Com essa nova perspectiva, o termo referência foi substituído por referenciação, como explicam Koch, Morato e Bentes (2005, p. 8): Tal mudança de perspectiva [...] é assinalada pela substituição do termo referência por referenciação, visto que passam a ser objeto de análise as atividades de linguagem realizadas por sujeitos históricos e sociais em interação, sujeitos que constroem mundos textuais cujos objetos não espelham fielmente o “mundo real”, mas são, isto sim, interativamente e discursivamente constituídos em meio a práticas sociais, ou seja, são objetos de discurso. A relação língua-­‐mundo passa a ser, pois, interpretada, não meramente aferida por referentes que ou representam o mundo ou “autorizam” sua representação. (Grifos das autoras). A referenciação é, portanto, uma atividade discursiva, em que o sujeito constrói e reconstrói referentes no interior do próprio texto, influenciado pelo contexto de comunicação e não apenas por meras reproduções pré-­‐existentes da realidade. 13
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Dessa forma, esses referentes passam a ser chamados objetos de discurso, diante das razões sociocognitivas que determinam sua construção. Sobre essa atividade, Cavalcante (2011, p. 15-­‐16) destaca: O ato de referir é sempre uma ação conjunta. Para a Linguística do Texto, hoje, fazemos referência a algo quando nos reportamos a pessoas, animais, objetos, sentimentos, ideias, emoções, qualquer coisa, enfim, que se torne essência, que se substantive quando falamos ou escrevemos. É na interação, mediada pelo outro, e na integração de nossas práticas de linguagem com nossas vivências socioculturais que construímos uma representação – sempre instável – dessas entidades a que se denominam referentes. Em relação a essa instabilidade dos referentes, Koch (2006, 0. 80-­‐81) concebe que “os objetos de discurso são dinâmicos, ou seja, uma vez introduzidos, podem ser modificados, desativados, reativados, transformados, recategorizados, construindo-­‐se ou reconstruindo-­‐se, assim, seu sentido no curso da progressão textual.”. Nessa construção de sentido, Koch e Elias (2008, p.125-­‐126) destacam as seguintes estratégias de referenciação: reconstrução/reativação e desfocalização. construção/ativação, 14
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A construção consiste na introdução de um objeto de discurso até então não mencionado. A expressão linguística que o representa é posta em foco, ficando esse objeto de discurso em evidência no texto. A introdução pode ser não-­‐ancorada – quando um objeto de discurso totalmente novo é introduzido no texto sem qualquer associação com elementos presentes na superfície textual ou na situação de comunicação – ou ancorada – quando um novo objeto de discurso é ativado, com base em algum tipo de associação semântica com elementos presentes no cotexto ou no contexto sociocognitivo, como ilustra o exemplo a seguir (cf. KOCH e ELIAS, 2008, p.127): De acordo com as autoras, “no último quadrinho da tirinha, foi introduzido um novo referente – o vinho – que associamos aos elementos cotextuais alcoólatra e vício no primeiro quadrinho e ao contexto sociocognitivo” (ibid.). 15
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Para que o texto apresente progressão, além da introdução de novos referentes textuais, faz-­‐se necessário que outros sejam retomados por meio de uma forma referencial, de modo que o objeto de discurso permaneça em foco, criando-­‐se, assim, as cadeias referenciais. Esse processo de manutenção implica uma recategorização do objeto de discurso que, como discutimos, se transforma, assumindo, pela relação com expressões cotextuais, outros traços semânticos. Koch e Elias (2008, p. 131) para exemplificarem, destacam o trecho a seguir, em que a retomada referencial é feita por meio da pronominalização: os termos sublinhados, “ela” e “o” remetem, respectivamente, a Blanche e a Heitor. Em uma manhã ensolarada, Heitor encontrou uma linda cachorinha, pequena e toda branquinha, e deu a ela o nome de Blanche. Todos os dias, perto da hora do almoço, Blanche ficava junto ao portão, esperando Heitor chegar da escola. Ela dava pulos de alegria quando o via. Fonte: ROSA, Nereide S. Santa e BONITO, Angelo. Crianças famosas: Vila-­‐Lobos. São Paulo: Callis, 1994. Por fim, podemos considerar que, quando um novo objeto de discurso é introduzido, ele passa a ocupar a posição focal. O objeto retirado de foco, contudo, permanece em estado de ativação parcial, disponível para a utilização, a fim de dar continuidade à cadeia referencial anteriormente criada. 16
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Segundo Cavalcante (2010, p. 53), há tipos variados de processos referenciais que colaboram para a construção de sentido dos textos. A autora considera que todo processo referencial é viabilizado por um dispositivo remissivo, uma propriedade de apontar para um dado objeto reconhecível a partir de pistas muito diversificadas. Nessa perspectiva, propõe a divisão dos processos referenciais em duas possibilidades: Se as entidades são introduzidas no texto pela primeira vez, isto é, se elas ainda não foram citadas antes no texto, então estamos diante de ocorrências de introdução referencial. Se os referentes já foram de algum modo evocados por pistas explícitas no cotexto, então estamos em presença de continuidades referenciais, isto é, de anáforas. (CAVALCANTE, 2010, p. 54 – grifos da autora) As anáforas diretas retomam referentes previamente introduzidos e, assim, estabelecem uma relação de correferencialidade entre o elemento anafórico e o seu antecedente. As anáforas indiretas caracterizam-­‐se pela ativação de um referente textual não condicionado morfossintaticamente por um sintagma nominal anterior. Trata-­‐se, pois, de uma estratégia de introdução de um novo objeto de discurso que mantém alguma associação cognitivo-­‐discursiva com elementos 17
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nominais presentes no cotexto, como a tirinha que retrata um bêbado no confessionário, exemplo reproduzido anteriormente. Cavalcante (2010, p. 71) considera a anáfora encapsuladora como um tipo peculiar de anáfora indireta, porque não retoma nenhum objeto de discurso pontualmente, mas se prende a conteúdos espalhados no texto. De acordo com Koch (2008, p.105), o “encapsulamento” representa uma atividade metadiscursiva em que se sumarizam partes do discurso, seja por um pronome ou por uma expressão nominal, conforme ilustram Koch e Elias (2008, p. 138): PARECE BRINCADEIRA, MAS É CIÊNCIA Um homem lagarto, uma mulher que morreu três vezes, um animal que come a si mesmo. Fenômenos incríveis revelados através de uma visão científica única. Discovery Channel No exemplo apresentado, a expressão nominal “fenômenos incríveis” encapsula as informações “um homem lagarto, uma mulher que morreu três vezes e um animal que come a si mesmo”, bem como denuncia a voz do enunciador diante de fatos que o espantam. 18
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Quando a forma coesiva que encapsula a informação difusa no contexto precedente ou subsequente é representada por um sintagma nominal, cria-­‐se um novo objeto de discurso, processo a que chamamos de rotulação. “Em outras palavras, o rótulo vai categorizar o segmento resumido de uma certa maneira, de acordo com a avaliação que o locutor faz do seu conteúdo ou de sua enunciação.” (KOCH, 2008, p.105). Portanto, toda rotulação é um encapsulamento, mas nem todo encapsulamento é uma rotulação. 3. A REFERENCIAÇÃO NOS LIVROS
DIDÁTICOS
Respaldados nos conceitos teóricos sobre a referenciação e a construção de objetos de discurso, passamos a avaliar como esse tema é abordado e de que forma é trabalhado nas atividades de leitura e de produção textuais nas duas coleções de livros didáticos analisadas. Em virtude da influência que os textos midiáticos exercem sobre a sociedade, procuramos também avaliar como o assunto é estudado em textos da mídia nos referidos manuais didáticos. 19
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A coleção Português Linguagens, composta por um volume para cada série do Ensino Médio, é dividida em três partes distintas: Literatura; Língua: uso e reflexão; Produção Textual. Embora, no Manual do Professor, os autores se proponham a percorrer um caminho diferente do trilhado pela gramática tradicional – cujo foco recai sobre a classificação metalinguística e a imposição de usos –, não encontramos, ao longo dos volumes, exercícios que contemplem a relação entre os conteúdos gramaticais e as questões de ordem textual e discursiva. Pelo contrário, a revisão dos capítulos sobre classes de palavras confirmou a postura normativa que caracteriza os compêndios didáticos: os livros separam, por critérios morfossintáticos e semânticos, as classes gramaticais, apresentando uma série de classificações e prescrições metalinguísticas, numa abordagem totalmente desarticulada ao processo de referenciação. No capítulo 5, do volume 1, intitulado Introdução à Semântica, observamos que são descritas as relações de sinonímia, hiponímia e hiperonímia. Contudo, os autores, na explanação teórica e nos exercícios não associam esses conceitos à manutenção de objetos de discurso, tampouco se aventuram a 20
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falar sobre recategorização, um estudo que poderia contemplar as promessas de relacionar o conteúdo e as questões discursivo-­‐
textuais, feitas no Manual do Professor. As atividades, de forma geral, apresentam-­‐se descontextualizadas, com o simples objetivo de levar os alunos a reproduzirem a nomenclatura dos conceitos estudados, como mostra o exercício reproduzido a seguir: Leia estes grupos de palavras: •
honestidade, fidelidade, preguiça, sinceridade, perseverança •
verde, vermelho, amargo, alaranjado, cor-­‐de-­‐
rosa •
colibri, borboleta, beija-­‐flor, pardal, canário a)
Em cada grupo de palavras, existe uma que não pertence ao mesmo campo semântico das demais. Indique-­‐a, b)
As palavras de cada grupo que pertencem ao mesmo campo semântico podem ser hipônimos de um hiperônimo. Quais são esses hiperônimos? (CEREJA & MAGALHÃES, 2010, vol. 1, p. 141) Embora, a cada capítulo do estudo gramatical, os autores apresentem uma seção que busca associar o conteúdo à 21
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construção de sentido do texto, os exercícios propostos não contemplam, de forma aprofundada, a função referencial das classes de palavras. No estudo do substantivo e do adjetivo, por exemplo, não se faz qualquer menção à função dos sintagmas nominais na criação de cadeias coesivas, tampouco à possibilidade de esses elementos contribuírem para a criação de objetos de discurso e, consequentemente, para a argumentação. O exercício que mais se aproxima do estudo referencial, sugere um trabalho com anáfora indireta, tendo por base o poema Família, de Carlos Drummond de Andrade. FAMÍLIA Três meninos e duas meninas, sendo uma ainda de colo. A cozinheira preta, a copeira mulata, o papagaio, o gato, o cachorro, as galinhas gordas no palmo da horta e a mulher que trata de tudo. A espreguiçadeira, a cama, a gangorra, o cigarro, o trabalho, a reza, a goiabada na sobremesa de domingo, o palito nos dentes contentes, o gramofone rouco toda noite e a mulher que trata de tudo. O agiota, o leiteiro, o turco, o médico uma vez por mês, o bilhete todas as semana branco! Mas a esperança verde. 22
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A mulher que trata de tudo e a felicidade. Na primeira estrofe, entre os membros da família, são mencionados a mulher, as crianças, os empregados, os animais. Só não é mencionado explicitamente o homem, que também deve fazer parte da família. a) Levante hipóteses: Por que, provavelmente, a menção ao homem não foi explicitada? b) Apesar de o homem não ter sido mencionado de modo explícito, é possível metonimicamente supor sua presença, por meio de alguns nomes. Levante hipóteses: que substantivos podem estar relacionados ao homem? (CEREJA & MAGALHÃES, 2010, vol. 2, p. 35) Apesar dessa iniciativa, não se faz qualquer menção à função dos sintagmas nominais na criação de cadeias coesivas, durante o estudo do substantivo e do adjetivo, tampouco à possibilidade de esses elementos contribuírem para a criação de objetos de discurso e, consequentemente, para a argumentação. Nesses capítulos, os autores poderiam explorar o uso dos substantivos comuns e próprios não na sua potencialidade instituída pela tradição gramatical, que os vê como elementos lexicais neutros e restritos ao seu papel nomeador, mas na possibilidade de gerarem significações além do que está expresso no texto, na construção de objetos discursivos. O mesmo pode ser dito em relação à adjetivação, pois, quando os adjetivos aparecem no discurso, representam o interesse do enunciador 23
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em comunicar uma descrição objetiva ou uma apreciação sobre o referente, constituindo-­‐se, pois, em um importante recurso argumentativo. No que tange aos numerais e artigos, importantes classes de palavras para o processo de referenciação, mais uma vez, constatamos que o tratamento, nesta coleção, é restrito à nomenclatura gramatical. Em relação aos primeiros, os autores chegam a diferenciar numeral substantivo de numeral adjetivo, porém nada abordam sobre a relação desse tema como o processo de referenciação. Quanto aos artigos, até verificamos que alguns exercícios propõem a observação dos diferentes efeitos de sentido obtidos pela utilização ou não dos artigos definidos e dos artigos indefinidos, entretanto a potencialidade discursiva desse fenômeno não é relacionada, diretamente, à criação de objetos discursivos, além de, em geral, as frases em estudo aparecerem sem a devida contextualização. Nas frases a seguir, explique a diferença de sentido conferida a elas pela presença ou pela ausência do artigo definido nas expressões destacadas. a) Ela pretende ser professora um dia. Ela pretende ser a professora um dia. b) Pedro, esta é minha irmã. Pedro, está é a minha irmã. 24
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(CEREJA & MAGALHÃES, 2010, vol. 2, p. 74) A única abordagem que mais se aproxima do estudo da referenciação foi encontrada na apresentação dos pronomes demonstrativos. Nessa seção, os autores abordam a possibilidade de esses pronomes evidenciarem as relações correferenciais projectivas e retrospectivas, além de atuarem na desconstrução da ambiguidade referencial, quando dois ou mais referentes podem ser reativados no contexto. (CEREJA & MAGALHÃES, 2010, vol.2, p.100) 25
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Embora os capítulos que tratem do estudo gramatical estejam na seção intitulada Língua: uso e reflexão, os exercícios propostos, em sua maioria, são pautados em curtas histórias em quadrinhos ou em enunciados descontextualizados e pouco refletem sobre a atividade linguística. São priorizados os aspectos prescritivos e descritivos da gramática, o que vai de encontro à afirmação feita no Manual do Professor: ...esta obra concentra aspectos que pertencem tanto à gramática normativa – em seus aspectos prescritivos (normatização a partir de parâmetros da variedade padrão: ortografia, flexões, concordâncias, etc.) e descritivos (a descrição das classes e categorias -­‐ quanto à gramática de uso (que amplia a gramática internalizada do falante) e ainda à gramática reflexiva (que explora aspectos ligados à semântica e ao discurso). (Manual do Professor, p. 20) Assim, encontramos textos midiáticos apenas na parte de Produção Textual, porém as atividades se voltam para a estrutura dos gêneros em foco (notícia, reportagem, anúncio publicitário, editorial, entrevista etc.) além de algumas questões de compreensão textual. Nenhuma alusão é feita aos processos referenciais ou à construção de objetos de discurso. Em relação à segunda coleção analisada, Projeto Eco Língua Portuguesa, chamou-­‐nos a atenção, a superficialidade 26
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com que o conteúdo gramatical é trabalhado – ao contrário das muitas unidades destinadas à Literatura. No que tange ao estudo das classes de palavras, por exemplo, o volume 2 apresenta um único capítulo que descreve as dez classes, sem qualquer sistematização teórica. Apesar de o capítulo ser intitulado Classes de palavras e construção de sentido nos textos, os exercícios não trabalham essa relação e tampouco fazem alusão ao processo de referenciação. Encontramos, no volume 3, um único capítulo – Progressão textual –, que, entretanto, limita-­‐se ao estudo da repetição de palavras no texto, ora como recurso de construção, ora como defeito textual, como ilustra o exercício a seguir, numa atividade com tirinhas: Qual é a ideia/informação repetida por três vezes na tira? Explique como é construída a progressão textual (ALVES & MARTIN, 2010, vol. 3, p. 304) 27
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Como sugestão de gabarito, as autoras destacam que a progressão textual é construída no plano visual e não no texto escrito. Isso porque a mudança de sentimentos dos personagens é percebida em sua expressão facial. Em relação aos textos midiáticos, quase nada encontramos, nesta coleção: nos exercícios gramaticais, o texto literário é priorizado; na parte de produção textual, apenas os gêneros notícia, reportagem e artigo de opinião são superficialmente descritos, embora, no Manual do Professor, as autoras garantam que O texto não é somente ponto de partida para a reflexão sobre a língua – ele é igualmente ponto de chegada. Nesta coleção, a prática de produção textual recebe tratamento organizado e estruturado, fornecendo ao aluno ferramentas para a concepção inicial de sua produção, o planejamento e a execução textual. (Manual do Professor, p. 12) 4. A RERENCIAÇÃO NOS TEXTOS DA
MÍDIA: PROPOSTAS DE ATIVIDADES
Diante da ausência de um estudo dirigido sobre referenciação e construção de objetos de discurso, com base em um 28
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editorial apresentado no volume 2 da coleção de Cereja e Magalhães, apresentaremos algumas propostas de atividades que contemplam esses temas tão importantes para a compreensão e produção textuais. PROPAGANDA A SER LIMITADA É grande a força do lobby de cervejarias, TVs e agências de propaganda. Mais uma vez, conseguiu evitar que a publicidade de cervejas fosse equiparada a das demais bebidas alcoólicas e proibida das 6h às 21h. O projeto de lei do Executivo restituindo um pouco de lógica à legislação que regula a propaganda de álcool estava pronto para ser votado. Mas um acordo entre parlamentares e governo conseguiu retirar a urgência da proposta, que agora fica sem prazo para ir ao plenário. A julgar pelos precedentes, isso dificilmente ocorrerá antes dos Jogos Olímpicos de Pequim, em agosto, ou quem sabe da Copa de 2014. Em termos de saúde publica e ciência, não há justificativa para tratar a publicidade de bebidas alcoólicas de qualquer gradação de forma diversa da do tabaco, que é vedada quase totalmente. O álcool é uma droga psicoativa com elevado potencial para provocar dependência. Estudo da Organização Mundial da Saúde atribui ao abuso etílico 3,2 % das mortes ocorridas no planeta (cerca de 1,8 milhão de óbitos anuais). Metade delas tem como causa doenças, e a outra metade, ferimentos. No Brasil, dados da Secretaria Nacional 29
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Antidrogas (2005) apontam que 12,3% da população entre 12 e 65 anos pode ser considerada dependente. Não se trata de proibir o consumo de álcool, mas esses números deixam claro, por outro lado, que ninguém deveria ser estimulado a beber. A propaganda é uma atividade legítima para a esmagadora maioria dos produtos e serviços existentes. O caso das drogas lícitas é uma exceção. A Constituição Federal, em seu artigo 220, prevê restrições a esse tipo de publicidade. Não faz, portanto, sentido a campanha que a Associação Brasileira de Agencias de Publicidade mantém desde o final de abril, afirmando que a restrição à publicidade de cervejas teria o mesmo efeito que proibir "a fabricação de abridores de garrafa". Louvar as virtudes reais ou imaginarias de abridores de garrafa não costuma levar jovens a consumir quantidades crescentes de drogas psicotrópicas. Já a propaganda de cerveja o faz. Folha de São Paulo, 11/05/2008 Ø Propostas de atividades 1) Ao longo do texto, o objeto de discurso “cerveja” é retomado por diversas expressões nominais. a) Transcreva duas expressões nominais. 30
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R.: O objeto de discurso cerveja é, ao longo do texto, retomado por expressões como “drogas lícitas”, “álcool”, “drogas psicotrópicas”. b) De que forma essas expressões nominais que retomam o objeto de discurso “cerveja” colaboram para o projeto argumentativo do texto? R.: Todas as expressões nominais que retomam, ao longo do texto, o objeto de discurso “cerveja” reforçam o caráter destrutivo da bebida. O próprio substantivo “droga” tem seu sentido negativamente marcado. 2. No 4º parágrafo, são apresentadas expressões quantitativas diferentes para se referir às mortes provocadas pelo consumo de álcool. a) Quais são essas expressões. R.: As expressões são 3,2% e 1,8 milhão. b) Em que contexto essas expressões foram empregadas? R.: Para se referir às mortes provocadas pelo consumo de álcool, o texto emprega o percentual 3,2%, que, inicialmente, pode parecer pequeno. Porém, esse valor logo é especificado pelo alarmante número absoluto 1,8 milhões, mostrando que muitas pessoas têm suas vidas ceifadas por conta do abuso etílico. 3. A progressão textual é resultado de um conjunto de procedimentos linguísticos por meio dos quais se estabelecem, entre segmentos do texto, relações de interdependência. Sabendo disso, responda: a) Que expressão, empregada no 5º parágrafo, retoma o conteúdo do 4º? R.: A expressão “esses números”, empregada no 5º parágrafo faz referência às mortes provocadas pelo consumo de álcool, item destacado no parágrafo anterior. b) Por que tal expressão denuncia a opinião do enunciador sobre a proibição das propagandas de cerveja? 31
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
R.: Como é elevado número de mortes relacionadas à bebida alcoólica, o enunciador sugere que esse consumo não seja estimulado por meio das propagandas, que deveriam, então, ser proibidas. 4. Considerando as estratégias de sedução e convencimento empregadas pelos textos publicitários, no penúltimo parágrafo, a propaganda da Associação Brasileira de Agências Publicitárias compara dois elementos do texto. a) O que está sendo comparado? R.: A Associação Brasileira de Agências Publicitárias compara o ato de restringir as propagandas de bebidas alcoólicas ao ato de proibir a fabricação de abridores de garrafa. a) Explique a crítica implícita nesta comparação. R.: Na tentativa de justificar que as propagandas de bebidas alcoólicas não deveriam ser restringidas, por não incitarem diretamente o consumo das mesmas, a Associação Brasileira de Agências Publicitárias, num tom irônico e exagerado, sugere que a fabricação de abridores de garrafas também deveria ser proibida, uma vez que seu uso está relacionado ao consumo etílico, por ser o instrumento utilizado para abrir o recipiente em que a bebida está contida. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Guiados pelos postulados da atual fase da Linguística de Texto, analisamos como a referenciação é tratada em duas coleções de livros didáticos destinadas ao Ensino Médio: Português Linguagens e Projeto Eco – Língua Portuguesa. Embora se configure como importantes estratégias de interpretação e produção textuais, o trabalho com a construção de objetos de 32
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discurso e de cadeias referenciais quase não aparece nos manuais escolares em tela. Como proposta didática, ressaltamos que a leitura é uma atividade imprescindível em qualquer área do conhecimento. Textos de natureza diversa exigem diferentes abordagens para se chegar ao seu significado. Todo professor, portanto, deve estar comprometido com a formação de leitores críticos que aprendam a pensar sobre o pensamento dos outros e cheguem a produzir seus próprios pensamentos. Para isso, a leitura precisa extrapolar as linhas do texto, as páginas dos livros, buscando significados em outros textos, outros livros, outras vivências. De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental: Formar um leitor competente supõe formar alguém que compreenda o que lê; que possa aprender a ler também o que não está escrito, identificando elementos implícitos; que estabeleça relações entre o texto que lê e outros textos já lidos; que saiba que vários sentidos podem ser atribuídos a um texto; que consiga justificar e validar sua leitura a partir da localização de elementos discursivos.” PCN (1997, p. 54) Com base nesses pressupostos e considerando que a leitura e a escrita sejam atividades de interação entre sujeitos, 33
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
acreditamos que o estudo sistemático do processo de referenciação nos livros didáticos – embora seja um caminho ainda a percorrer – muito possa contribuir para se alcançar um dos objetivos principais do ensino de língua materna, previstos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais: desenvolver a competência comunicativa do aluno, integrando, enfim, texto e gramática. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. 3. ed. Brasília: MEC/SEF, 2001. CAVALCANTE, M.; PINHEIRO, C.; LINS, M. da P.; LIMA, G. Dimensões textuais nas perspectivas sociocognitiva e interacional. In: BENTES, A.C.; LEITE, M. Q. (org.). Linguística de texto e análise da conversação: panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. p. 225-­‐261. GERALDI, João Wanderley. Linguagem e ensino. Exercícios de militância e divulgação. Campinas-­‐SP: ALB & Mercado das Letras. 1998. KOCH, Ingedore. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002. ______. A inter-­‐ação pela linguagem. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2007. 34
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
______. Como se constroem e reconstroem os objetos-­‐de-­‐
discurso. In: Anais do XIII Congresso da Associação Latino-­‐
Americana de Estudos do Discurso (ALED), 2008. p. 99-­‐114. ______; MORATO, Edwiges Maria; BENTES, Anna Christina. Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005. ______; ELIAS, Vanda. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2008. MONDADA, Lorenza; DUBOIS, Daniele. Construção dos objetos de discurso e categorização: Uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, Mônica Magalhães; RODRIGUES, Bernardete Biasi; CIULLA, Alena. (Org.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. p. 17-­‐52. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. 8ª. ed. São Paulo: Cortez, 2002. MANUAIS DIDÁTICOS
ALVES, Hernandes Roberta e MARTIN, Lia Vilma. Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Positivo, 2009. CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português linguagens (volumes 1, 2 e 3). 7ª ed. reformulada, São Paulo: Editora Moderna, 2009; 35
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
A abordagem da referenciação em
livros didáticos de Língua
Portuguesa do Ensino
Fundamental
GONÇALO, Fabiana (UFRJ/ CNPq) COLAMARCO, Manuela (UFRJ/ CAPES) 1. INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo reunir as contribuições do processo de referenciação para um trabalho mais produtivo com o texto em sala de aula no Ensino Fundamental, principalmente no que se refere às atividades de leitura e interpretação. Para isso, nosso objeto de análise são duas coleções de livros didáticos de língua portuguesa (doravante, LDP), Viva Português e Tudo é Linguagem, ambas da Editora Ática, aprovadas pelo PNLD-­‐EF-­‐
2011 e que estão sendo utilizadas nas redes pública e privada até 2013. Nessas coleções, nos concentramos nos textos midiáticos, verificando se eles são relacionados a atividades de referenciação e, em caso positivo, como essas atividades são realizadas. Além 36
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
disso, buscamos observar se há algum tipo de atividade, nesses LDP, que vise associar a questão da referenciação à intencionalidade dos autores no momento da produção de seus textos. A escolha pelo corpus em questão deve-­‐se a sua relevância no cenário atual e à recorrência dos textos midiáticos nos LDP. Além disso, sabe-­‐se que, no que concerne a alguns gêneros textuais do grupo dos textos jornalísticos (reportagem e notícia, por exemplo), é recorrente a fala – inclusive nas escolas – de que esses textos caracterizam-­‐se pela imparcialidade de seus autores. Como não acreditamos na neutralidade de um discurso, ou seja, entendemos que todo produtor de um texto atribui uma intenção ao que escreve/fala, conforme postulam Beaugrande e Dressler (1981), procuramos verificar se os LDP buscam, de alguma maneira, ao tratar da referenciação, abordar a questão da intencionalidade, também nesses textos tão historicamente marcados por uma suposta imparcialidade. Para desenvolver este trabalho, adotamos como suporte teórico estudos sobre a referenciação, com base na Linguística do Texto, destacando as obras de Koch (2004, 2006, 2008), Koch & Elias (2006), Marcuschi (2008), Cavalcante et alii (2003), Cavalcante (2011), Mondada (2001), dentre outros. 37
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
De acordo com a Linguística do Texto (doravante, LT), partimos, primordialmente, da defesa de que a referenciação é uma atividade discursiva, ou seja, de que o texto é organizado para ser o próprio lugar da interação de sujeitos sociais que compartilham todos os seus conhecimentos com a finalidade de atingir as suas propostas de sentido. Diante dessa perspectiva sociointeracional, os objetos-­‐de-­‐discurso são construídos e reconstruídos pelos enunciadores por meio de escolhas dentre as inúmeras alternativas que a língua oferece para designar um referente. Sobre essa visão do texto, Koch (2008, p. 188) afirma: [o texto é] um construto histórico e social, extremamente complexo e multifacetado, cujos segredos é preciso desvendar para compreender melhor esse “milagre” que se repete a cada nova interlocução – a interação pela linguagem, linguagem que, como dizia Carlos Franchi, é atividade construtiva. [grifos da autora] Neste artigo, então, será abandonada a visão representacional e estática da tradição escolar, que opta pelo termo “coesão referencial”, tendo em vista que a referenciação vai muito além dessa posição, tratando-­‐se de uma operação colaborativa entre os parceiros da interação, fazendo com que os referentes sejam construídos no e pelo discurso e, 38
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
consequentemente, sejam chamados de objetos-­‐de-­‐discurso. Esses objetos podem ser recategorizados de diversas formas, e a escolha de cada um deles é carregada de valores e posicionamentos ideológicos. Em outras palavras, a referenciação trabalha com a intenção do produtor do texto, pois ele opera sobre o material linguístico de que dispõe, selecionando-­‐o de acordo com a melhor adaptação ao seu ponto de vista, a fim de concretizar sua proposta de sentido. Logo, ele rompe com uma possível neutralidade e mostra o seu posicionamento diante do que é dito. Desse modo, ao considerar esse processo como uma atividade discursiva de (re) construção de objetos-­‐de-­‐discurso, percebemos que ele é estrategicamente intencional. Nessa perspectiva, é possível relacionar a referenciação à orientação argumentativa, pois sempre que enunciamos, objetivamos atuar sobre os parceiros da interação e obter deles determinadas reações (KOCH, 2002), impondo ou orientando o nosso modo de se referir como o mais verdadeiro. Segundo Adam (1992, apud SANTOS, 2007), o enunciador constrói o discurso para modificar representações, crenças, comportamentos e opiniões do interlocutor. 39
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Tendo em vista a dificuldade que cerca o trabalho dos professores com o texto em sala de aula, acredita-­‐se que os mecanismos referenciais possam servir de instrumento para que o docente oriente melhor seus alunos. Segundo Travaglia (2005), somente através do texto, o professor desenvolve a competência comunicativa dos alunos, fazendo-­‐os lidar de modo eficaz com sua língua materna nas mais variadas situações de comunicação. Nossa hipótese, ao pensar este trabalho, era a de que as coleções analisadas, mesmo que se caracterizem por serem de qualidade, abordariam ainda de forma precária a questão da referenciação, principalmente em sua relação com a intencionalidade. Sabemos que, na academia, esse tema é bastante estudado e sua relevância é inquestionável. No entanto, ainda há muito que fazer para levá-­‐lo até a sala de aula. Por último, ao final da análise, com vias a auxiliar professores que se interessem pelo tema em questão, elaboraremos atividades de compreensão relacionadas à referenciação com base em um texto extraído de um dos LDP analisados. 40
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
2. ABORDAGEM TEÓRICA
2.1.1 A Linguística do Texto
Na década de 60, na Europa, houve o surgimento da Linguística do Texto, que estabeleceu o texto como a principal fonte de investigação dos fatos linguísticos, no lugar do então estudo da palavra isolada e da frase descontextualizada. Até a primeira metade da década de 70, a preocupação básica era em relação aos mecanismos interfrásticos, ou seja, componentes do sistema gramatical, como correferência, pronominalização, artigo, ordem das palavras, dentre outros usos que garantiam o estatuto de texto, sendo este visto como um produto. O objeto de estudo principal era, então, a coesão, o que fez com que surgissem diversas gramáticas do texto. Nesse período, ainda, a coesão era confundida com a coerência que, por sua vez, era tida apenas como uma propriedade ou característica do texto. A partir da segunda metade da década de 70, houve a adoção da perspectiva pragmática (“virada pragmática”), defendendo o texto como a unidade básica de interação humana, considerado no processo mesmo de sua constituição, e não mais um produto acabado e, por isso, os elementos que revelam as 41
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
intenções dos falantes deveriam ser levados em conta. Na década de 80, o texto passou a ser visto como o resultado de processos mentais (“virada cognitivista”), com o postulado de que se deviam levar em conta os saberes armazenados na memória que os parceiros da comunicação possuem para explicar as operações responsáveis pela forma como os textos são criados e utilizados. A LT foi, então, buscar explicações para as inferências, através da memória, da atenção, das representações mentais etc. Além disso, a partir de 1980, rediscute-­‐se a dicotomia entre texto e discurso, para se assumir uma perspectiva textual-­‐
discursiva, uma vez que o texto não deve ser visto simplesmente como uma superfície material que conduz ao discurso, mas como indissociável dele e definido pelo uso (cf. KOCH, 2002, 2004; MARCUSCHI, 2008; CIULLA E SILVA, 2008). Adam (2008) também postula que texto e discurso devem ser pensados de forma contextualizada e articulada e, por isso, ele considera a LT um subdomínio da área mais ampla da análise das práticas discursivas. Porém, a concepção atual da LT foi estabelecida na década de 90 (“virada discursiva”), baseando-­‐se na perspectiva de Bakhtin (GOMES-­‐SANTOS et alii, 2010). O texto começou a 42
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
receber um tratamento de ordem sociocognitiva-­‐interacional, pois não podia ser entendido apenas como resultado de processos cognitivos. Passou-­‐se, então, a questionar a divisão entre exterioridade e interioridade, postulada pelas ciências cognitivas clássicas, no que concerne à separação que opera entre fenômenos mentais e sociais. Fundamenta-­‐se a ideia de que tais operações não ocorrem apenas na mente do indivíduo, mas são o resultado da interação de várias ações conjuntas praticadas por ele (KOCH, 2004, p. 29/ 30), não sendo somente resultado de processos cognitivos, mas interacionais. Dessa forma, a partir da concepção de base sociocognitiva-­‐interacional, o texto passa a ser entendido como “lugar de interação entre atores sociais e de construção interacional de sentidos” (KOCH, 2004, introdução). Isso implica dizer que texto e contexto estão intimamente ligados. Dentro dessa perspectiva, a LT trouxe uma mudança para o estudo do texto, estabelecendo que o leitor deve ser capaz não só de entender as mensagens veiculadas pelos diversos textos, como precisa, ainda, identificar as intenções comunicativas de seus autores, trazendo à tona conhecimentos armazenados em sua memória, reconhecendo os diversos tipos e gêneros textuais e as diferentes estratégias de referenciação e sequenciação 43
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
(KOCH, 2004). Modificando toda uma tradição de estudo do texto, a LT desconstrói a relação de hierarquia autor-­‐leitor, em que o segundo deve apenas coletar informações isoladas que estariam “prontas” para ele dentro de um “produto acabado”. Assim, passa-­‐se a entender o texto como o resultado da interação de elementos sociais, cognitivos e linguísticos, e a sua compreensão mobiliza recursos cognitivos e pragmáticos. Indo ainda um pouco mais além, Cavalcante et alii (2010, p. 228) postulam que: [...] o texto é a unidade funcional que não somente permite a interação, como também viabiliza diversas formas de representar o mundo, de transformá-­‐lo e de, a um só tempo, reconstruir-­‐
se a partir dessa dinâmica emergência dos sentidos, que envolve toda espécie de heterogeneidades enunciativas, dentre elas as relações intertextuais e interdiscursivas. Para a LT, os interlocutores são compreendidos como sujeitos que, dialogicamente, nele se constroem e por ele são construídos (KOCH, 2008). Desse modo, um texto seria originado por uma multiplicidade de operações cognitivas interligadas e sua produção de sentidos se realizaria com base nos elementos linguísticos presentes na sua superfície e na sua forma de 44
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
organização. No entanto, a percepção desses sentidos requer não apenas a mobilização de um vasto conjunto de saberes, como também a sua reconstrução no momento da interação verbal. À LT caberia, então, desenvolver estratégias de descrição e análise textuais capazes de dar conta desses processos. Uma vez apresentada, em termos gerais, a teoria que determinará a forma pela qual o corpus desta pesquisa será analisado, expomos, a seguir, os conceitos que mais particularmente interessarão a este trabalho: intencionalidade, escolhas lexicais e referenciação. 2.2
A
relação
entre
a
intencionalidade,
as
escolhas
lexicais
e
a
construção
dos
sentidos
O texto, isto é, o discurso produzido pelo sujeito ao significar o mundo de acordo com o lugar social e ideológico que ocupa, é definido por Orlandi (2007, p. 77) como uma “[...] unidade de significação cuja relação com as condições de produção é constitutiva”. O texto é visto, portanto, não como um emaranhado de frases soltas ou como uma composição apartada do mundo, mas sim como algo cujo sentido torna-­‐se inteligível 45
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
apenas na esfera da enunciação, ou seja, do contexto social, ideológico, político em que fora produzido. Consoante Fiorin (1996, p. 30), “o discurso não é uma grande frase nem um aglomerado de frases, mas um todo de significação”. O sentido do discurso é dotado de um caráter dialógico (MUSSALIM, 2001). Isso implica dizer que o significado do que se diz se constrói no âmbito do interdiscurso, isto é, no diálogo com outros discursos. Nada do que se enuncia é completamente original. Tudo o que se diz é cortado por inúmeros outros discursos que entram na formação do que o próprio sujeito é e pensa. Assim, ao significar o mundo em seu discurso, o indivíduo encontra-­‐se influenciado por inúmeros outros dizeres. Entendemos que a linguagem é caracterizada por uma orientação argumentativa, sendo encarada como forma de ação, isto é, levar o outro a fazer X. Por trás de qualquer discurso, há a intenção de se transmitir ideologia(s), na acepção mais ampla do termo, uma vez que tudo que diz respeito à linguagem tem uma subjetividade inerente, pois todos nós somos sujeitos que têm intenções e objetivos delimitados e que buscamos convencer o outro das nossas ideias e fazer com que ele chegue às mesmas conclusões que nós. Logo, se o sujeito sempre age para ser aceito de modo que suas opiniões sejam mais bem recebidas do que as 46
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
dos outros, a neutralidade é um mito, haja vista que até o discurso que se declara “neutro” tem a intenção de ser o mais objetivo possível, conforme evidencia Koch (2011, p. 17). A LT estabelece que, além de entender as mensagens veiculadas pelos vários textos, o leitor precisa conseguir identificar as intenções comunicativas de seus autores. De que modo se chega, então, a essas intenções ou mesmo – por que não dizer – a essas ideologias? Certamente, por meio do material linguístico presente no texto. Conforme assevera Sarfati (2010, p. 28), “todo material linguístico, constituído, principalmente, de elementos e de microssistemas lexicais, organiza a expressão da subjetividade linguística”. Desse modo, de forma mais específica, podemos entender que “pela escolha vocabular, o autor de um texto busca expressar seu ponto de vista em relação ao mundo que o cerca, emitindo juízo de valor” (PAULIUKONIS, 2005, p. 126). Isso porque, ao fazer a escolha por determinado item lexical, o autor, necessariamente, deixa de escolher outros que poderiam ocupar aquela mesma posição. Assim, quando se usa, por exemplo, um termo pejorativo como “pivete” (ao se referir a um menino de rua), opta-­‐se por um vocábulo específico dentro de um grupo de outras palavras que são, consequentemente, silenciadas 47
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
(“menino de rua”, “menor abandonado”, entre outros), o que provoca efeitos de sentido diferentes, condicionados pela intenção de quem enuncia. Concordamos, então, com Marcuschi quando ele afirma: Com uma visão de língua como atividade sócio-­‐
interativa [...] e uma hipótese sócio-­‐cognitiva, tentamos superar a noção meramente representacionalista e referencialista da língua, para privilegiar as relações intersubjetivas instauradas pelos interlocutores mediante os recursos linguísticos. (MARCUSCHI, 2004, p. 273) 2.3 O processo de Referenciação
Dentro das abordagens da LT, a referenciação destaca-­‐se como importante estratégia para introduzir novas entidades ou referentes no texto (KOCH e ELIAS, 2006) e constitui um elemento basilar, uma vez que a ela são atribuídas as funções de imprimir sentido ao texto e de contribuir para sua progressão. Ressalta-­‐se que o processo de referenciação também está relacionado à ideia de escolha vocabular, tratada na seção anterior deste artigo, uma vez que, ao selecionar um referente lexical (um substantivo isolado ou um substantivo determinado por adjetivo(s) dentro de uma expressão nominal) para ocupar 48
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
determinada posição no texto, o autor deixa de escolher outros referentes também possíveis naquele contexto e é isso que, como vimos, manifesta sua intenção. A presença do enunciador no discurso ocorre, justamente, por meio dessas escolhas referenciais que ele faz, isto é, ele se revela no texto pela referenciação, marcando o seu ponto de vista. Mesmo quando se esforça para ser isento de posicionamento, toma um determinado partido. Conforme Rabatel (2005, p.121), “o modo de apresentação dos referentes comporta saberes e marcas de um modo de falar, perceber e/ou pensar que aponta para determinado enunciador”. A nomeação de um referente envolve uma reflexão sobre o próprio dizer, o que faz com que a seleção referencial mais apropriada se dê com base no receptor, nos propósitos comunicativos, no contexto, no gênero textual em questão etc. O produtor textual pode ter a intenção de criticar algo, de ressignificar um termo em evidência, de causar humor, dentre outras opções, fazendo com que haja uma grande instabilidade nessa nomeação dos referentes. Durante muito tempo, a questão da referência foi entendida e estudada como uma forma de representação do “mundo real” no co-­‐texto. As formas linguísticas utilizadas para 49
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
retomar ou antecipar algo, na superfície textual, deveriam ser selecionadas de acordo com critérios de correspondência e veracidade em relação ao mundo exterior que, por sua vez, estava pronto para ser espelhado (cf. CAVALCANTE et alii., 2010). É nessa perspectiva de reflexo da realidade que está a noção tradicional de coesão referencial, que concebe a linguagem como transparente e considera os referentes como objetos do mundo, excluindo o contexto e a construção de efeitos de sentido. Em outras palavras, a noção de “fazer referência a algo” dizia respeito a algo estritamente linguístico: a relação entre palavras isoladas e referentes do mundo real prontos para serem etiquetados e manipulados de modo rígido. Posteriormente, alguns estudiosos, como Mondada, Apothéloz & Reicher-­‐Béguelin e Koch, voltaram-­‐se para a necessidade de considerar uma perspectiva sociocognitiva e interacionista no que diz respeito à referência, entendendo que referentes são construtos culturais presentes na cena de enunciação, que podem ser transformados dentro da situação comunicativa. De acordo com essa concepção, as formas linguísticas selecionadas devem ser avaliadas segundo a adequação aos propósitos e às ações em curso dos enunciadores, que compartilham a mesma sociedade, isto é, trata a língua como 50
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
uma negociação entre indivíduos e exclui uma possibilidade de mundo excessivamente estabelecido e delimitado, “pronto para receber uma etiqueta lexical incontestável e válida para todos os sujeitos” (CORTEZ, 2003, p. 24). Por conta disso, os referentes são considerados objetos de discurso e não apenas objetos do mundo (MONDADA e DUBOIS, 1995); são “representações semióticas instáveis (constantemente reformuláveis) e não entidades da realidade preexistentes à interação” (CAVALCANTE et alii, 2010, p. 233). Eles são dinâmicos e, assim, uma vez introduzidos, podem ser modificados, desativados, reativados, transformados ou recategorizados. Por esta via, constroem-­‐se ou reconstroem-­‐se os sentidos do texto. Isso faz, então, com que entendamos a referenciação como um “processo em permanente reelaboração, que, embora opere cognitivamente, é indiciado por pistas linguísticas e completado por inferências várias” (CAVALCANTE et alii, 2010, p. 234). Os processos referenciais se dividem em duas possibilidades: (i) introdução referencial, quando entidades são introduzidas no texto pela primeira vez; e (ii) anáforas, que supõem “uma retomada ou continuidade referencial de uma entidade qualquer já introduzida no texto, não importa de que maneira” (CAVALCANTE et alii, 2010, p. 237). É importante 51
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
ressaltar que, para que haja uma anáfora, é necessário que as expressões referenciais anafóricas estejam ancoradas em pistas do cotexto, que podem apontar para trás (remissões retrospectivas), ou para frente (remissões catafóricas). A progressão referencial pode se efetivar através das estratégias de correferencialidade, quando um objeto de discurso é completamente recuperado pelo termo anafórico ou “pela menção de expressões que, embora não representem o mesmo referente citado, estão de algum modo ligadas a outras âncoras linguísticas do cotexto e operam uma espécie de referência indireta, que nem por isso deixa de ser anafórica” (CAVALCANTE, 2011, p. 36). Assim, a anáfora direta distingue-­‐se da anáfora indireta pelo fato de que, na primeira, há a retomada do mesmo objeto de discurso (recategorizado ou não) e, na segunda, não acontece essa retomada. Ou seja, é a presença ou a ausência da estratégia de correferencialidade que vai determinar um ou outro processo, respectivamente (CAVALCANTE et alii, 2010)1. 1
Ressaltamos que decidimos por adotar, neste trabalho, a visão mais atual sobre a distinção entre anáforas diretas e anáforas indiretas (CAVALCANTE et alii., 2010; CAVALCANTE, 2011). 52
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Como síntese do que foi dito, faremos uso do quadro de Cavalcante (2011, p. 38), em relação aos processos referenciais atrelados à menção: Processos referenciais atrelados à menção Introdução Anáfora (continuidade referencial) Referencial Anáforas Anáforas indiretas Diretas (Correferenciais) (Não correferenciais) Finalmente, a manutenção dos objetos de discurso pode realizar-­‐se através de recursos de ordem gramatical (pronomes, elipses, numerais, advérbios locativos, etc.) ou de ordem lexical (reiteração de itens lexicais, sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos, expressões nominais, etc.), que evidenciam as escolhas do sujeito-­‐enunciador no seu querer-­‐dizer. 3. ASPECTOS METODOLÓGICOS DA
PESQUISA
O corpus sob análise constitui-­‐se de textos do ramo midiático, pertencentes aos gêneros notícia, artigo de opinião, editorial e reportagem. Esses textos encontram-­‐se em duas 53
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coleções, da Editora Ática, de livros didáticos para o Ensino Fundamental (sexto a nono anos), aprovadas pelo PNLD-­‐EF-­‐2011: a coleção Viva Português, escrita por Elizabeth Campos, Paula Cardoso e Sílvia de Andrade, e a coleção Tudo é Linguagem, escrita por Ana Borgatto, Terezinha Bertin e Vera Marchezi. Em ambas as coleções, avaliamos também o livro do professor. Dessa forma, temos um total de oito livros e, nesses livros, 70 textos e 387 exercícios foram analisados. É importante destacar que apenas contabilizamos os textos a partir dos quais foram criados exercícios de análise linguística e/ou textual. Ou seja, textos que serviram unicamente para exemplificar determinado conceito ou como ilustração não foram contabilizados neste trabalho, uma vez que nosso objetivo era justamente analisar os exercícios propostos pelos LDP. A partir do levantamento desse corpus, buscamos verificar se o tema referenciação é abordado em atividades relacionadas a esses textos e, em caso positivo, como essa abordagem é realizada pelos livros didáticos. A nossa escolha pelo que seria um exercício de referenciação deu-­‐se com base na proposta teórica adotada nessa pesquisa e apresentada no item anterior deste artigo e não conforme o que é apresentado pelos LDP. 54
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Neste trabalho há, desse modo, o desenvolvimento de duas etapas, a saber: (i) uma análise quantitativa para mostrar as ocorrências das atividades com referenciação em relação ao número total de exercícios dos textos; e (ii) uma análise qualitativa, de cunho analítico-­‐descritivo, buscando observar a qualidade das atividades encontradas, no que tange à contribuição para uma leitura mais produtiva por parte do aluno, principalmente em relação às escolhas lexicais reveladoras de intencionalidade do autor do texto. 4. RESULTADOS
4.1.1 Coleção Viva Português
Na coleção de LDP Viva Português, no livro do sexto ano, encontramos três reportagens. Em uma delas, “Festas e brincadeiras no Xingu”, da Folha de S. Paulo, sobre curiosidades indígenas, o livro propõe uma atividade mencionando o processo de referenciação ao tratar rapidamente o estudo dos sinônimos. Porém, induz o aluno a pensar que a repetição de palavras é obrigatoriamente ruim e que, por isso, devemos usar sinônimos 55
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para evitá-­‐la, como pode ser visto no exercício em questão, extraído do LDP: Para garantir a relação entre as partes de um texto, é comum o autor retomar informações já dadas. Nessas retomadas, os substantivos são muito úteis, pois podemos trocar um substantivo por outro de sentido parecido (sinônimo) e, assim, evitar a repetição de palavras. Exercite esse recurso reescrevendo os trechos abaixo no caderno. Substitua os termos destacados por outros de significado semelhante evitando repetir palavras já empregadas. a) “Entre as crianças camaiurás são muito comuns as brincadeiras: além de imitar a dança e o canto dos adultos, as crianças do sexo masculino brincam de bicicleta e de atirar flechas. As crianças do sexo feminino contaram que gostam de brincar de catiguá (boneca) e mostraram como fazem uma boneca com flores do pequizeiro enfiadas num graveto” . (Adaptado de Folha de S. Paulo, 19/7/2003) R: os meninos, as meninas. b) “Depois de flechar a boneca e de dançar em grupo, cada índio de uma aldeia tenta acertar sua flecha num adversário da outra aldeia”. (Idem) R: tribo/ povoação. Além disso, essa atividade se mostra mecânica para o aluno e em nada contribui para a leitura do gênero em questão, podendo ser feita com qualquer outro texto, de qualquer outro gênero, pois não gera a reflexão por parte do estudante. As outras duas reportagens encontradas não mencionam aspectos referenciais em suas questões de interpretação e, além disso, neste livro, não há nenhuma ocorrência dos outros gêneros midiáticos pesquisados (editorial, notícia e artigo de opinião). 56
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No livro do sétimo ano, há um total de seis reportagens e quatro notícias, porém não há ocorrência de atividades com a referenciação envolvendo esses textos. Também não encontramos editoriais nem artigos de opinião. Por sua vez, no livro do oitavo ano, dentre os quatro gêneros aqui analisados, há apenas uma notícia, que também não traz menção às estratégias referenciais em seus exercícios. Por fim, no livro do nono ano, há seis reportagens, uma notícia, seis artigos de opinião e nenhum editorial. Em relação a um desses artigos (“A epidemia da beleza”, da Folha de S. Paulo), há uma atividade que busca fazer com que o aluno saiba identificar expressões nominais que recuperem um referente no texto (no caso, “crianças e adolescentes”). Novamente, o exercício é automático, como pode se observar abaixo, restringindo-­‐se a um trabalho de localização para o aluno, em vez de enfatizar a diferença entre usar “crianças e adolescentes” e os outros referentes sugeridos pelo gabarito. Os seis primeiros parágrafos apresentam as informações que motivaram a composição do artigo. O primeiro parágrafo apresenta as pessoas de quem se fala no texto: crianças e adolescentes. Observe que o artigo tratará desse grupo e, para confirmar essa informação, basta buscar nos cinco parágrafos seguintes as outras expressões usadas para referir-­‐se a ele. Identifique-­‐as. 57
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R: jovens brasileiros, parte expressiva de uma geração, atual geração. Na tabela abaixo, esses resultados podem ser observados de forma mais clara: Total de textos Total de exercícios Total de exercícios sobre referenciação 06 21 1 Editorial -­‐ -­‐ -­‐ Notícia 06 12 0 Reportagem 15 80 1 TOTAL 27 113 2 GÊNERO TEXTUAL Artigo de opinião Tabela 1: análise quantitativa dos exercícios de análise dos textos midiáticos na coleção Viva Português. 4.2 Coleção Tudo é Linguagem
Na segunda coleção analisada, Tudo é linguagem, a quantidade de exercícios sobre referenciação foi mais significativa. Ao mesmo tempo, porém, essa coleção apresenta um número bem maior de textos para análise e de exercícios. Na tabela a seguir, esses números ficam mais evidentes: GÊNERO TEXTUAL Total de textos Total de exercícios Total de exercícios sobre 58
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referenciação Artigo de opinião 11 88 2 Editorial 02 25 0 Notícia 17 71 1 Reportagem 13 90 4 TOTAL 43 274 7 Tabela 2: análise quantitativa dos exercícios de análise dos textos midiáticos na coleção Tudo é linguagem. Artigos de opinião, notícias e reportagens aparecem nos quatro livros da coleção; o editorial só é encontrado no do 9º ano. No livro do 6º ano, a partir de uma reportagem da revista Quatro Rodas, “Parque Nacional Marinho de Abrolhos – Caravelas”, o aluno é convidado a perceber que a expansão de um sintagma nominal por meio da utilização de adjetivos pode determinar a intenção do autor do texto. Temos, assim, um exercício de construção do referente associado à intencionalidade: Se você fosse convidado para produzir um folheto que tivesse o objetivo de encantar turistas e convencê-­‐los a visitar Abrolhos, as qualidades do lugar poderiam ser ampliadas por meio de mais adjetivos e locuções adjetivas. 59
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Por exemplo, a expressão: “... área cheia de recifes de coral...” poderia ficar assim: ... área cheia de deslumbrantes e coloridos recifes de coral... ou então ... área cheia de recifes de coral de cores intensas... No trecho a seguir, estão presentes substantivos que nomeiam os pontos principais de Abrolhos. Cabe a você ampliar as frases, enriquecendo-­‐as com adjetivos e locuções adjetivas para encantar o leitor e convencê-­‐lo a visitar o local: Conheça Abrolhos, um parque nacional marinho, onde há ilhas, fauna marinha e aves. Há ainda passeios em águas claras. O exercício em questão, no entanto, apresenta problemas. Primeiro, ao mostrar para o aluno que os adjetivos modificam o referente e, por isso, manifestam uma intencionalidade, os autores sugerem que se mude o gênero textual: não se trata mais de uma reportagem, mas sim de “um folheto que tivesse o objetivo de encantar turistas”. Ou seja, reafirma-­‐se, indiretamente, a falsa ideia de que uma reportagem não manifesta a intencionalidade de seu autor. Além disso, a frase que deverá ser modificada pelos alunos é uma frase solta, criada unicamente para o exercício. Desse modo, o texto base é deixado de lado na continuidade do exercício. No segundo livro da coleção, do 7º ano, ao abordar o conceito de “sujeito oculto”, pede-­‐se que o aluno perceba que esse tipo de sujeito evita repetições excessivas no texto. No 60
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mesmo capítulo, em outro exercício, o autor aborda novamente a questão da repetição a partir da reportagem da Revista Isto é, intitulada “Sapo-­‐boi”: No trecho sobre o sapo-­‐boi, as repetições foram evitadas por meio de três recursos: • Sujeito oculto; • Expressão sinônima ou equivalente; • Pronome. Transcreva: a)
As expressões sinônimas ou equivalentes que substituem “sapo-­‐boi”; R: “esse réptil”; “o bicho”. b) O pronome utilizado para evitar a repetição. R: “ele”. Da mesma forma que observamos na coleção Viva Português, essa atividade mostra-­‐se mecânica para o aluno e não contribui para a leitura do gênero em questão, pois poderia ser feita com qualquer outro texto, de qualquer outro gênero. Da mesma forma, reforça-­‐se a ideia de que as repetições em um texto não são legítimas e devem ser evitadas. O livro do 8º ano traz apenas um exercício de referenciação: após a leitura do artigo de opinião “Insegurança”, publicado na Publifolha, pede-­‐se que o aluno identifique a expressão que, na continuidade do texto, pode ser considerada 61
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equivalente à palavra que dá título ao texto, “insegurança”. Desse modo, o aluno deve perceber que o referente “segurança perdida” retoma o objeto de discurso “insegurança”. Temos, mais uma vez, um exercício mecânico sobre um texto que trata do tema da adolescência de maneira crítica. Ao retomar “insegurança” por “segurança perdida”, evidenciando, ainda, que essa “segurança perdida” relaciona-­‐se ao adolescente, o autor evidencia uma clara oposição entre a criança e o adolescente. Se a segurança deste foi perdida, significa que, no passado, em sua época de criança, ele a tinha. Quantas discussões, então, poderiam surgir a partir dessa constatação, que tem como base a retomada de um referente? Por último, o livro do 9º ano apresenta, no capítulo sobre editorial, uma longa discussão sobre os “mecanismos de coesão”, termo introduzido no livro do 8º ano, a partir da análise de um texto narrativo. No entanto, nessas duas situações, a coleção entende por “mecanismos de coesão” o uso de conectivos, o que não nos interessa nesse trabalho, pois não se configura como estratégia de referenciação. Algumas páginas mais à frente, o livro do 9º ano faz menção ao uso de pronomes como estratégia de coesão textual, utilizando, desse modo, novamente o termo “coesão”. Aqui, no entanto, os textos analisados são crônicas, 62
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tirinhas, letras de música e poemas, ou seja, gêneros não midiáticos e que, portanto, não são objeto de análise desta pesquisa. Neste mesmo livro, a partir do texto “A mãe de todas as guerras”, reportagem publicada na revista Superinteressante, os autores propõem o seguinte exercício, que se encontra no capítulo sobre a coerência textual: No texto, o autor, depois de informar o que é o “engenho conhecido como trebuchet”, retoma essa expressão por meio de outros termos, que acrescentam características à sua descrição da máquina: “o monstro” e “o colosso”. O emprego dos termos monstro e colosso é coerente com a opinião que o autor expressou no olho da reportagem: “... as máquinas – e não o homem – é que decidiam as batalhas”. Que relação existe entre esses termos e a afirmação do seu autor? Sugestão de resposta: pelo emprego dos termos “monstro” e “colosso”, o autor enfatiza o poder da máquina, reforçando sua opinião de que o que decide as batalhas são as máquinas e não a força humana. Conforme percebemos, trata-­‐se de um exercício que associa referenciação e intencionalidade (ou argumentatividade), na análise de uma reportagem, mostrando, assim, que também nesse gênero o jornalista manifesta, no texto, sua posição. Além disso, por esse exercício estar situado no capítulo referente à coerência textual, entende-­‐se que coesão e coerência não são categorias distintas, mas uma está intrinsecamente relacionada à 63
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outra. Seria interessante que o exercício explicitasse essa ideia, uma vez que ele é direcionado a alunos do 9º ano que já têm maturidade para compreender essa relação. 4.3 Aprofundando um pouco mais a
análise
Ao observarmos as duas coleções em conjunto, chegamos,
então, ao seguinte resultado para a quantidade – e porcentagem –
de exercícios sobre referenciação a partir de textos midiáticos nas
duas coleções analisadas:
COLEÇÃO Total de exercícios Total de Percentual de exercícios sobre exercícios sobre referenciação referenciação Viva Português 113 2 1,8% Tudo é Linguagem 274 7 2,6% TOTAL 387 9 2,3% Tabela 3: análise quantitativa dos exercícios de referenciação a partir de textos midiáticos nas coleções Viva Português e Tudo é linguagem. Confirmando nossa hipótese, percebe-­‐se que a quantidade de exercícios sobre referenciação ainda é bem pequena nos LDP, correspondendo a apenas 2,3% do total de exercícios dos oito livros das duas coleções analisadas. 64
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Olhando mais detidamente para cada um dos nove exercícios encontrados nas coleções Viva Português e Tudo é linguagem, podemos dividi-­‐los em categorias: (i) exercícios que visam à eliminação da repetição no texto, seja solicitando que o aluno reescreva um trecho eliminando as repetições, seja pedindo que o aluno identifique a estratégia ou o termo utilizado para evitar uma repetição; (ii) exercícios que relacionam referenciação e intencionalidade (cf. exercícios transcritos e comentados na seção anterior); e (iii) exercícios que pedem que o aluno identifique o referente que foi retomado ou que retoma determinada expressão. Na tabela a seguir, observamos, em números, como ocorre a divisão dos exercícios nas coleções Viva Português e Tudo é linguagem: Coleção Viva Português Coleção Tudo é linguagem Eliminação da repetição em um texto 1 4 Referenciação e 0 2 Tipo de Exercício TOTAL 5 2 65
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intencionalidade Recuperação do referente 1 1 2 Tabela 4: tipos de exercício de referenciação nas coleções Viva Português e Tudo é linguagem. A distribuição desses exercícios pelas duas coleções em conjunto ocorre, então, da seguinte maneira: Percentual dos Xpos de exercício de referenciação nas coleções analisadas Eliminação da repetição 22% Intencionalidade 22% 56% Recuperação do referente Gráfico 1: percentual dos tipos de exercício de referenciação a partir de textos midiáticos das coleções Viva Português e Tudo é linguagem em conjunto. Desse modo, a partir de uma análise mais detalhada, percebemos que 78% dos exercícios encontrados que tratam, indiretamente, da referenciação correspondem a atividades sobre a eliminação de uma repetição ou sobre a recuperação de 66
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um referente, exercícios que, da forma como foram propostos, mostraram-­‐se sempre muito mecânicos, não exigindo reflexão do estudante. Não se pede, por exemplo, que o aluno perceba o efeito de sentido que uma repetição pode dar ao texto. Repetições podem ser legítimas e têm um importante papel na construção do sentido do texto. Da mesma forma, os exercícios de recuperação de um referente restringem-­‐se a um trabalho de localização para o aluno, que não é levado a perceber a diferença entre usar um ou outro referente ou ainda que, ao escolher determinado referente, o autor opta por um vocábulo específico dentro de um grupo de outras palavras também possíveis para aquele contexto. Essa escolha, claramente, é condicionada pela sua intenção ao produzir aquele texto. Além disso, conforme exposto na seção anterior, dos dois exercícios que associam, indiretamente, referenciação e intencionalidade, apenas um configura-­‐se verdadeiramente como um exercício de análise textual voltado para formar um aluno capaz de ler criticamente um texto. O exercício do livro do 6º ano da coleção Tudo é linguagem, como vimos, acaba por desvincular o exercício sobre a intencionalidade do texto que estava sendo analisado. 67
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Desse modo, tanto quantitativamente quanto qualitativamente a abordagem das estratégias de referenciação pelos LDP ainda deixa muito a desejar, principalmente no que diz respeito a sua relação com a intencionalidade, tema tão importante para exercitar a reflexão e o pensamento crítico do estudante. Assim, na seção que se segue, propomos algumas atividades de análise textual envolvendo os conceitos de referenciação e intencionalidade, a título de exemplificação do que comentamos até aqui. 5. PROPOSTA DE ATIVIDADES
A atividade a seguir foi proposta com base em trechos de dois editoriais presentes no livro do 9º ano da coleção Tudo é linguagem, ambos retirados do jornal Folha de São Paulo. Como nosso intuito era mostrar alguns exemplos de exercícios que podem ser propostos sobre referenciação e, também, sobre sua relação com a intencionalidade, transcrevemos, aqui, apenas um pequeno trecho de cada editorial. Os textos na íntegra encontram-­‐se no Anexo. EDITORIAL 1 – CONTRA AS ARMAS (fragmento) 68
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“O veto às armas pode ser interpretado como uma limitação ao direito de autodefesa, o qual, mais do que garantia legal, é um instinto biológico. Está entre as atribuições do Estado, todavia, definir regras para o exercício de certas atividades e fixar os requisitos para a concessão de licenças. Ninguém tem seu direito de ir e vir ameaçado pelo fato de não poder dirigir um carro sem possuir habilitação. E não resta dúvida de que a decisão, entre nós, está sendo tomada por caminhos democráticos.” EDITORIAL 2 – NÃO BASTA VETAR ARMAS (fragmento) “Ao que indicam algumas pesquisas, o referendo sobre a venda de armas de fogo, previsto para outubro, resultará na proibição desse tipo de comércio. A restrição – alardeada por alguns como uma panaceia contra a violência – precisa ser considerada com cautela, para não alimentar mais ilusões. É isto que indica a reportagem publicada segunda-­‐feira por esta Folha. [...]” EXERCÍCIOS 1) Os editoriais 1 e 2 apresentam opiniões opostas sobre a proibição do comércio de armas de fogo no Brasil. O primeiro 69
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é a favor e o segundo, contra. Sendo assim, COMPARE as expressões: “veto às armas” e “proibição desse tipo de comércio”. De que modo as expressões transcritas anteriormente evidenciam os diferentes pontos de vista dos autores dos editoriais 1 e 2? R: O autor que é a favor da proibição, mostra que as “armas” serão vetadas. Ou seja, algo ruim, que é responsável pela morte de muitas pessoas inocentes. Já o autor que é contra a proibição, fala que “esse tipo de comércio” será proibido, ou seja, uma expressão bem mais leve e suave do que “armas”. “Esse tipo de comércio” sugere que se trata apenas de mais um tipo de comércio, como outro qualquer. 2) Ainda a partir das expressões “veto às armas” e “proibição desse tipo de comércio”, faça o que se pede. a) IDENTIFIQUE as expressões que, na continuidade dos fragmentos, retomam “veto às armas” e “proibição desse tipo de comércio”, respectivamente. R: “Decisão” e “restrição”. b) Por que a oposição entre as duas opiniões é reforçada através das escolhas lexicais dos autores ao se referirem a esse fato pelas expressões transcritas por você no item anterior? R: “Decisão” é um termo mais neutro que não tem, necessariamente, uma carga semântica negativa ou positiva. Já 70
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“restrição” significa “proibição”, “falta”, o que dá a ideia de algo ruim. 3) O autor do texto 2, no comentário entre os travessões, refere-­‐
se à “proibição desse tipo de comércio” como “uma panaceia contra a violência”. a) PROCURE no dicionário um significado para “panaceia”, adequado ao contexto. R: O aluno deverá escolher a opção do dicionário que define panaceia como sendo uma espécie de remédio, de solução milagrosa para todos os males. b) Que posição é reforçada por meio dessa escolha do autor? Justifique sua resposta. R: Uma solução milagrosa para todos os males não é algo sério, confiável. Logo, reafirma-­‐se a ideia de que a proibição do comércio de armas não resolverá, verdadeiramente, o problema na violência no país. 4) No texto 2, o pronome “isto” retoma não apenas uma expressão, mas toda uma ideia presente no parágrafo anterior. a) IDENTIFIQUE a ideia que é retomada por este pronome. R: A ideia de que “o referendo sobre a venda de armas de fogo, previsto para outubro, resultará na proibição desse tipo de comércio”. 71
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b) Se a opinião do autor do texto 2 fosse outra, por que outra expressão ele poderia substituir o pronome “isto”? Você poderá reescrever toda a frase para melhor adequá-­‐
la à expressão escolhida. Sugestão de Resposta: A reportagem publicada segunda-­‐feira por esta Folha indica esta vitória. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais: Toda educação comprometida com o exercício da cidadania precisa criar condições para que o aluno possa desenvolver sua competência discursiva. [...] A área Linguagens, Códigos e suas Tecnologias objetiva ampliar a competência do educando, permitindo-­‐lhe, entre outros aspectos: analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens [...](BRASIL: 98-­‐99; [grifos nossos]). Além disso, postula-­‐se que o ensino de língua portuguesa, no intuito de desenvolver a competência discursiva do aluno, deve se pautar em três grandes pilares: a análise linguística, a prática da leitura e a prática da produção de textos. Desse modo, justifica-­‐se, mais uma vez, a relevância do estudo das estratégias de referenciação no Ensino Fundamental. 72
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A observação dessas estratégias parte da análise do material linguístico do texto, uma vez que o estudante precisa identificar os referentes introduzidos e retomados nele, compreendendo a cadeia referencial formada naquele texto a ser analisado. A partir da observação desses referentes, o aluno recupera sentidos do texto e compreende a sua progressão. Além disso, a cadeia referencial determina a orientação argumentativa proposta no texto. Percebendo isso, a leitura do aluno passa a um estágio mais reflexivo e crítico. Por fim, ao entender que as escolhas lexicais e a construção dos referentes podem marcar uma intencionalidade, sua prática de produção textual também poderá apresentar mais argumentatividade e coerência. Assim, apesar da indiscutível importância da referenciação para o ensino de língua portuguesa (cf. SANTOS E TUPPER, 2011), ainda há pouco material sobre o tema disponível para o Ensino Fundamental. Como vimos neste trabalho, mesmo em LDP mais modernos e atualizados, não encontramos de forma significativa exercícios sobre as estratégias de referenciação, principalmente em sua relação com a intencionalidade. Reafirmamos que esses conceitos, embora vastamente discutidos no meio acadêmico, ainda estão muito timidamente presentes na educação básica. Faz-­‐se urgente, desse modo, levar 73
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até a sala de aula as descobertas do meio acadêmico por meio de metodologias e materiais didáticos a serem desenvolvidos, como os exercícios propostos neste artigo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Editorial “Contra as armas” A Câmara dos Deputados deve aprovar em breve o projeto de decreto legislativo que define a pergunta a ser feita no referendo nacional sobre armas. Se não houver alterações, os eleitores brasileiros serão convocados em algum domingo de outubro próximo a responder à pergunta: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?". Esta Folha defende o "sim". Fá-­‐lo não por considerar a proscrição total o mais adequado nem por julgar que a medida, se aprovada e convertida em lei, será capaz de conter as ações cada vez mais ousadas de criminosos, mas porque, diante das alternativas, as vantagens da proibição parecem superar em muito os problemas por ela acarretados. Ao longo do debate, defendeu-­‐se neste espaço a proibição do porte, restrições à venda e o direito do cidadão manter arma em sua residência. Alertou-­‐se, também, para o risco 77
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de um plebiscito criar falsas ilusões sobre a eficácia da medida num país em que as armas em mãos de civis, cidadãos de bem ou marginais, advêm, em larga escala, do comércio clandestino, sobre o qual o veto à venda regular não teria efeito, salvo, possivelmente, o de estimulá-­‐lo. Além de sua dimensão simbólica, a vantagem da proibição, desde que aliada a ações sistemáticas para reprimir a venda ilegal, está na possibilidade de reduzir significativamente um tipo muito específico de homicídio -­‐o motivado por causas fúteis-­‐, bem como os acidentes com armas de fogo. Esse ganho, ao que indicam as estatísticas, seria importante. Na Grande São Paulo, por exemplo, 60% dos homicídios são cometidos por pessoas sem histórico criminal e por motivos banais, como brigas de trânsito, discussões em bares e outras situações em que o destempero e os efeitos do álcool se associam à existência de uma arma à mão para produzir uma tragédia. A esse respeito, a campanha de desarmamento, que recolheu mais de 300 mil artefatos principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, parece já estar produzindo resultados auspiciosos. Estudo divulgado nesta semana indica que internações hospitalares relacionadas a ferimentos por tiros caíram 10,5% em SP e 7% no RJ desde o início da coleta. O veto às armas pode ser interpretado como uma limitação ao direito de autodefesa, o qual, mais do que uma garantia legal, é um instinto biológico. Está entre as atribuições do Estado, todavia, definir regras para o exercício de certas atividades e fixar os requisitos para a concessão de licenças. Ninguém tem seu direito de ir e vir ameaçado pelo fato de não poder dirigir um carro sem possuir habilitação. E não resta dúvida de que a decisão, entre nós, está sendo tomada por caminhos democráticos. Assim, se o plebiscito determinar que o poder público deve proibir a comercialização e circunscrever o porte de armas a 78
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militares, policiais e algumas outras categorias, não se deverá ver aí um atentado aos direitos e garantias fundamentais, mas apenas mais uma das clássicas regulamentações da vida em sociedade. Tal decisão não vai, como já se disse, impedir que traficantes e outros representantes do crime organizado consigam o armamento leve ou pesado de que se utilizam. Para isso seriam necessárias outras medidas, que o poder público tem falhado em adotar. Diante do caminho que o debate seguiu, não resta dúvida, porém, que o melhor a fazer é votar pelo "sim" no plebiscito, na convicção de que a restrição às armas, sem ferir direitos fundamentais, venha a contribuir para preservar vidas e tornar melhor a sociedade brasileira. (Folha de São Paulo, 15 de maio de 2005, p. A2) Editorial “Não basta vetar armas” Ao que indicam algumas pesquisas, o referendo sobre a venda de armas de fogo, previsto para outubro, resultará na proibição desse tipo de comércio. A restrição -­‐alardeada por alguns como uma panacéia contra a violência-­‐ precisa ser considerada com cautela, para não alimentar mais ilusões. É isto que indica reportagem publicada segunda-­‐feira por esta Folha. Segundo especialistas consultados, a proibição do comércio terá efeitos limitados sobre a violência. Uma vez que a maior parte do crime emprega armamento ilegal (segundo dados oficiais apenas 7,5% das armas existentes no Brasil são registradas), o veto certamente não funcionará para refrear a ação de criminosos. Mais preocupante ainda, a medida poderá ter o efeito funesto de estimular ainda mais o contrabando, caso não seja acompanhada de ações eficazes contra o comércio clandestino. 79
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Se bem sucedida, a proibição deverá ser eficaz na redução dos assassinatos motivados pelas chamadas "causas fúteis", além dos acidentes com armamento. Estima-­‐se que mais da metade dos homicídios no país seja cometida por motivos triviais, como discussões no trânsito, desentendimentos em bares e outras desavenças cotidianas -­‐sendo a maior parte deles levada a cabo com armas de fogo de pequeno porte. Para obter resultados mais significativos seria necessário integrar o veto ao comércio de armas a um conjunto de políticas públicas. Além dos sempre lembrados esforços na área social, com ações comunitárias e educativas, é indispensável trabalhar pelo melhor aparelhamento e integração das polícias. É igualmente fundamental enfrentar a terrível mazela que é a impunidade. Sem uma polícia que apure com eficiência e uma Justiça que puna com mais presteza, os progressos nessa área continuarão pequenos. (Folha de São Paulo, 27 de julho de 2005, p. A2) 80
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Um olhar sobre as estratégias de
referenciação nos manuais
didáticos do Ensino Médio
SILVA, Fábio Gusmão (UFRJ) 1. INTRODUÇÃO
As competências e habilidades elencadas pelos Parâmetros Curriculares nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), no que tange ao Ensino de Língua Portuguesa, buscam desenvolver no aluno seu potencial crítico, sua percepção das múltiplas possibilidades de expressão linguística e sua capacidade como leitor efetivo dos mais diversos gêneros textuais representativos da nossa cultura. Esses documentos explicitam que o uso da língua, em textos orais e escritos, deveria ser o eixo norteador do ensino de língua materna. Levando em conta esse preceito, um programa sério e comprometido com o desenvolvimento das habilidades linguísticas do aluno somente pode ser concebido se o texto estiver no centro de qualquer prática de ensino. 81
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De acordo com Antunes (2009, p. 51), é fácil encontrar razões que fundamentem a relevância dessa proposta, já que entender o fenômeno da linguagem constitui uma tarefa tanto mais fecunda quanto mais se pode compreender os diferentes processos implicados em seu funcionamento concreto, o que leva, necessariamente, ao domínio do texto, em seus múltiplos desdobramentos cognitivos, linguísticos, discursivos e pragmáticos. Para essa pesquisadora, o texto envolve uma teia de relações, de recursos, de estratégias, de operações, de pressupostos, que promovem a sua construção, seus modos de sequenciação, que possibilitam seu desenvolvimento temático, sua relevância informativo-­‐contextual, sua coesão e sua coerência. Nessa mesma concepção, Jurado e Rojo (2006, p. 39), aludem que é por meio do contato com os textos que o aluno é capaz de refletir sobre as possibilidades de usos da língua, ao analisar os elementos que determinam esses usos e as formas de dizer: o contexto, os interlocutores, os gêneros discursivos, os recursos utilizados pelos interlocutores para dizer o dito e o não-­‐
dito. Um dos recursos mais relevantes para a produção e a compreensão de sentidos em qualquer texto, de acordo com 82
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Cavalcante (2012, p. 13), é o processo empregado diariamente na escrita, na fala e na enunciação digital, mas pouco trabalhado nas atividades e no âmbito escolar: as formas de nos referirmos a objetos, pessoas, sentimentos, ações ou a qualquer entidade, caracterizadas como estratégias de referenciação. Esse processo textual-­‐discursivo possibilita a amarração das ideias dentro de uma unidade de sentido, além de assegurar a progressão textual e de colaborar para o desenvolvimento da argumentação nos textos. Já que a referenciação é pouco explorada nas atividades escolares, acreditamos que é relevante verificar de que maneira as reflexões teóricas referentes a essa temática perpassam pelos manuais didáticos escritos recentemente, bem como de que forma os autores abordam conceitos inerentes a esse tópico nos livros aprovados pelo último PNLD 2012 (Programa Nacional do Livro Didático) para o Ensino Médio. Diante disso, o presente artigo tem como propósito analisar, em duas coleções de Língua Portuguesa para Ensino Médio, a abordagem da referenciação e a sua relação com as atividades de leitura e de produção textual. A primeira é a coleção Ser protagonista, organizada por Ricardo Gonçalves Barreto, das Edições SM, e a segunda é o Projeto ECO, elaborada 83
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pelas autoras Roberta Hernandes e Vima Lia Martin, da Editora Positivo. As reflexões inerentes aos pressupostos teóricos sobre referenciação são explanadas pelo viés de Koch (2004, 2005 e 2009), Cavalcante (2005, 2011 e 2012), Marcuschi e Koch (2002), Koch e Elias (2006 e 2009) e Marcuschi (2005). Após abordagem teórica, será exposta a análise dos dois manuais didáticos, levando em conta o tratamento dado à referenciação nas atividades de leitura e produção textual. Ao final deste artigo, serão propostas algumas atividades, à luz da teoria exposta, tendo como base um texto midiático contemplado por um dos materiais didáticos que foram analisados, com intuito de aludir de que forma esse tópico pode ser explorado pelo professor em sua prática docente. 2. ALGUMAS QUESTÕES TEÓRICAS SOBRE
REFERENCIAÇÃO
O que se sabe hoje sobre referenciação começou na Suíça, quando Lorenza Mondada, em 1994, propôs “tratar da descrição de processos discursivos que se verificam na introdução de um objeto, nos ajustes que ele sofre quando vai 84
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participando da configuração complexa de um texto e na passagem de um objeto a outro.” (CAVALCANTE, 2011, p. 9) Dessa forma, falava-­‐se não de referentes como entidades da realidade externa do mundo, entretanto, de objetos de discurso, aqueles que emergem da elaboração discursiva de um saber compartilhado e que intervêm nas formas estruturantes de um texto e, ao mesmo tempo, são por elas condicionadas. Nesse mesmo período, Apothéloz também aludia sobre os “objetos de discurso como constructos culturais cuja representação na memória discursiva dos interlocutores era alimentada pela própria atividade linguística.” (Id. Ibid.) Desde então, estudos sobre esses fenômenos linguísticos que envolvem esse pressuposto antropológico do referente vêm sendo analisados nas mais diversas pesquisas no âmbito da linguagem. Em toda produção, seja escrita ou falada, há um pressuposto de que, em seu desenvolvimento, se faça constantemente referência a algo, a alguém, a fatos, a eventos e a sentimentos, que se mantenham em foco referentes introduzidos por meio de operação de retomada e, ainda, que se desfocalizem referentes introduzidos anteriormente e os deixem em stand by, para que outros referentes sejam introduzidos no discurso. Essas estratégias, por meio das quais são construídos os 85
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objetos-­‐de-­‐discurso, ou referentes, e mantidos ou desfocalizados, na produção de qualquer texto, são chamadas de referenciação. Por referenciação, entendemos o nome dado às diversas formas de introdução, no texto, de novas entidades ou referentes. Quando esses referentes são retomados mais adiante ou servem de base para a introdução de novos referentes, temos o que se denomina progressão referencial. Koch (2005, p. 79) baseia-­‐se na suposição de que a referenciação constitui uma atividade discursiva, pressuposto esse que implica uma visão não-­‐referencial da língua e da linguagem. Posição também defendida por Mondada & Dubois (1995, citado por Koch, 2005, p. 79) que postulam uma instabilidade das relações entre as palavras e coisas: Assim, não se entende a referência no sentido mais tradicionalmente atribuído, como simples representação extensional de referentes do mundo extramental: a realidade é construída, mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o mundo, mas, acima de tudo, pela forma como interagimos com ele: interpretamos e construímos nossos mundos através da interação com o entorno físico, social e cultural. A referência passa a ser considerada como resultado da operação que realizamos quando, para designar, representar ou sugerir algo, usamos um termo ou criamos uma situação discursiva referencial com essa finalidade: as entidades são vistas como 86
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objetos-­‐de-­‐discurso e não como objetos-­‐do-­‐
mundo. (KOCH, 2005, p. 79) Para Apothéloz (apud Cavalcante, 2005, p. 124), o processo de referenciação não se completa no simples emprego de expressões referenciais, mas vai muito além disso, porque o referente é concebido a partir de um conjunto de ações, pelo modo com que os co-­‐enunciadores ajustam suas ações conversacionais e pela maneira da construção dos sentidos em cada evento comunicativo. Entendem Mondada e Dubois (apud Koch, 2009, p. 32) que as categorias empregadas para a descrição do mundo alteram-­‐se tanto diacrônica quanto sincronicamente, seja nos discursos ordinários, seja nos discursos científicos, elas são antes plurais e mutáveis do que fixadas normativa e historicamente. Essas autoras, segundo Koch, “salientam que é necessário considerar a referência aos objetos do mundo físico e natural no seio de uma concepção geral dos processos de categorização discursiva e cognitiva, assim como são considerados nas práticas situadas dos sujeitos.” (Id. Ibid.) Assim, a língua não existe fora dos sujeitos sociais que a falam, fora dos eventos discursivos nos quais esses sujeitos intervêm e nos quais mobilizam suas percepções, seus saberes, 87
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seja na ordem linguística ou na ordem sociocognitiva. Enfim, em seus modelos de mundo, que não são estáticos, (re) constroem-­‐
se tanto sincrônica como diacronicamente, dentro das diversas cenas enunciativas, de modo que, assim que se passa da língua para o discurso, faz-­‐se necessário mobilizar conhecimentos – socialmente compartilhados e discursivamente (re) construídos –
, bem como situar-­‐se dentro de contingências históricas, para que se possa proceder aos encadeamentos discursivos. Marcuschi e Koch (2002, p. 38) defendem que “a discursivização ou textualização do mundo por meio da linguagem não consiste em um simples processo de elaboração de informações, mas num processo de (re) construção do próprio real”, pois, sempre que utilizamos uma forma simbólica, manipulamos a própria percepção da realidade de maneira significativa. A proposta de substituir a noção de referência pela noção de referenciação emana desse conceito, já que tanto a referenciação quanto a progressão referencial fazem parte da construção e reconstrução de objetos-­‐de-­‐discurso, ou seja, os referentes de que se fala não espelham diretamente o mundo real, não são simples rótulos para designar as coisas do mundo, uma vez que são construídos e reconstruídos no interior do próprio discurso, de acordo com a percepção de mundo de cada 88
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um, das crenças e das atitudes, além dos propósitos comunicativos. De acordo com Koch (2005, p. 79), a referenciação constitui uma atividade discursiva. O sujeito opera, por ocasião da interação verbal, sobre o material linguístico que tem à sua disposição e procede a escolhas significativas para representar estados de coisas, de modo condizente com a sua proposta de sentido. As formas de referenciação são escolhas do sujeito em interação com outros sujeitos, em função de um querer-­‐dizer. Para Koch e Elias (2006, p. 124), não devemos confundir os objetos-­‐de-­‐discurso com a realidade extralinguística, já que eles a reconstroem no próprio processo de interação. Ou seja, a realidade é construída, mantida e alterada pela forma como, sociocognitivamente, interage-­‐se com ela: interpreta-­‐se e constroem-­‐se mundos por meio da interação com o entorno físico, social e cultural (KOCH, 2009). Na constituição da memória discursiva, enquanto operações básicas, estão envolvidas as seguintes estratégias de referenciação: a) construção/ativação: pela qual um “objeto” textual até então não mencionado é introduzido, ativado na memória, passando a preencher um nódulo (“endereço” cognitivo, locação) na rede 89
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conceptual do modelo de mundo textual: a expressão linguística que o representa é posta em foco na memória de trabalho, de tal forma que esse “objeto” fica saliente no modelo. b) reconstrução/ reativação; um módulo já presente na memória discursiva é reintroduzido na memória operacional, por meio de uma forma referencial, de modo que o objeto-­‐de-­‐discurso permanece saliente (o nódulo continua em foco). c) desfocalização, passando a ocupar a posição focal. O objeto retirado de foco, contudo permanece em ativação parcial (stand by), podendo voltar à posição focal a qualquer momento; ou seja, ele continua disponível para utilização imediata na memória dos interlocutores. (KOCH, 2009, p. 33 e 34) Pela repetição constante de tais estratégias, estabiliza-­‐
se, por um lado, o modelo textual; por outro, porém, este modelo é continuamente reelaborado e modificado por meio de novas referenciações. Dessa forma, os nódulos (endereços cognitivos, locação) já existentes podem ser modificados ou expandidos a todo momento, de modo que, durante o processo de compreensão, desdobra-­‐se uma unidade de representação extremamente complexa pelas sucessivas e interminentes trocas de novas categorias e/ ou avaliações acerca do referente (KOCH, 2009, p. 34). Nessas trocas de novas categorias, notamos que a construção e a reconstrução do referente não intervêm somente 90
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de um saber construído linguisticamente pelo próprio texto e pelos conteúdos que podem ser inferidos a partir dos elementos linguísticos tomados por premissas, devem-­‐se levar em conta não só os conhecimentos lexicais, os pré-­‐requisitos enciclopédicos e culturais e os lugares comuns argumentativos de uma determinada sociedade, mas os saberes, as opiniões e os juízos compartilhados no momento da interação entre o locutor e o público com quem ele dialoga e do qual espera uma concordância. Se esse leitor se enquadrar na imagem construída pelo produtor do texto, essa reação será de consenso. No entanto, se a imagem criada pelo produtor do texto for equivocada, essa reação poderá ser de dissenso. No modelo textual, os referentes podem ser introduzidos pela ativação ancorada e não ancorada. A introdução será não ancorada quando um objeto-­‐de-­‐discurso, ou referente, totalmente novo é introduzido no texto e esse é representado por uma expressão nominal que opera uma primeira categorização do referente. Já a ativação ancorada acontece sempre que um novo objeto-­‐de-­‐discurso é introduzido no texto, levando em conta algum tipo de associação com elementos já citados e presentes no cotexto ou no contexto sociocognitivo dos interlocutores. 91
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De acordo com Cavalcante (2011, p. 54), os processos referenciais se dividem em duas possibilidades. Se as entidades são introduzidas no texto pela primeira vez, ou seja, se não foram ainda citadas antes no texto, tem-­‐se a ocorrência de introdução referencial. Entretanto, se os referentes já foram de alguma forma evocados por meio de pistas explícitas no contexto, tem-­‐se a presença de continuidades referenciais, isto é, de anáforas. Marcuschi (2005, p. 54 e 55) elucida que, originalmente, o termo anáfora, na retórica clássica, designava a repetição de uma expressão ou de um sintagma no início de uma frase. Na acepção técnica de hoje, anáfora anda longe da noção original e o termo é usado para designar expressões que, no texto, se reportam a outras expressões, enunciados, conteúdos ou contextos textuais (retomando-­‐os ou não) contribuindo assim para a continuidade tópica e referencial. As anáforas diretas (AD) retomam referentes previamente introduzidos e assim estabelecem uma relação de correferência entre o elemento anafórico e seu antecedente. Mas, além delas, há também as anáforas indiretas e as associativas. As anáforas indiretas (AI), de acordo com Koch e Elias (2006, p. 128), são caracterizadas pelo fato de não existir no cotexto um antecedente explícito. As anáforas indiretas (AI) são 92
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caracterizadas “pela menção de um novo referente relacionado a outro, distinto, e já citado anteriormente, ou relacionado a alguma pista formal do texto, como um verbo, por exemplo” (CAVALCANTE, 2011, p. 61). Segundo Marcuschi (2005, p. 53), a anáfora indireta (AI) é geralmente constituída por expressões nominais definidas, indefinidas e pronomes interpretados referencialmente sem que lhes corresponda um antecedente (ou subsequente) explícito no texto. Para esse mesmo autor, trata-­‐se de uma estratégia endofórica de ativação de referentes novos e não de uma reativação de referentes já conhecidos, o que constitui um processo de referenciação implícita. De uma maneira geral, as (AI) evidenciam essencialmente três aspectos: “primeiro, a não vinculação da anáfora com co-­‐referencialidade, segundo, a não-­‐
vinculação da anáfora com a noção de retomada; terceiro, a introdução de referente novo.” (id., p. 60 e 61) Esse processo de referenciação é constituído com base em elementos mentais e é muito mais comum a sua produção do que se pode imaginar, já que desempenham um papel relevante tanto na progressão quanto na coerência do texto. De acordo com os estudos de Koch (2002 e 2004) e de Marcuschi (2005), respaldados em Schwarz (citado por Koch e 93
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Elias, 2009, p. 136), as anáforas indiretas (AI) podem ser constituídas com base, por exemplo, em modelos cognitivos, inferências ancoradas no mundo textual ou em relações semânticas inscritas nos sintagmas nominais definidos, particularmente as relações meronímicas (relações parte-­‐todo). Conforme Cavalcante (2011, p. 62), alguns estudiosos pleiteiam, ainda, uma subdivisão dentro das anáforas indiretas: Os estudos convergem para duas abordagens do fenômeno: uma estreita, que se apoia em restrições léxico-­‐estereotípicas; outra ampla, que diz não se limitar a tais restrições. Esse duplo olhar para as relações anafóricas indiretas redundou em decisões classificatórias distintas. Certos autores preferiram restringir o fenômeno às ligações fundadas, em princípio, em associações que seriam, supostamente, apenas semântico-­‐lexicais, deixando à margem as situações que requeressem outros tipos de inferência – é o caso de Kleiber (2001). Outros autores, como Schwarz (2000), por exemplo, optaram por propor duas classes de referência indireta: -­‐ as anáforas associativas – seriam “conceitualmente baseadas”; -­‐ as anáforas inferenciais – seriam “inferencialmente baseadas”; englobariam muitos outros casos em que a recuperação do referente indireto exigisse percepções da situação enunciativa, informações do conhecimento culturalmente compartilhado, dados fornecidos pelo próprio desenvolvimento textual e argumentativo etc. (CAVALCANTE, 2011, p.62) 94
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Entretanto, outros autores como Apothéloz e Reichler-­‐
Béguelin (1999), decidiram-­‐se por não distinguir as anáforas indiretas, aglutinando-­‐as todas num único conjunto de anáforas associativas, alegando que não importa a origem da âncora em que se apoia o anafórico indireto, nem importa a forma como ele se manifesta, uma vez que o importante é o mecanismo inferencial envolvido no processo. Para Koch e Elias (2006, p. 128), as anáforas associativas introduzem um referente novo no texto pela exploração de relações meronímicas, ou seja, toda vez em que um dos elementos da relação pode ser considerado, de alguma forma, ingrediente do outro. Além desses objetos, há outros casos de introdução de novos objetos-­‐de-­‐discurso, que podem também incluir as chamadas nominalizações ou rotulações, quando se designa, por meio de um sintagma nominal, um processo ou estado expresso por uma proposição ou proposições precedentes ou subsequentes no texto. Neste caso, entretanto, o processo de inferência é diferente daquele mobilizado no caso das anáforas associativas e indiretas. As nominalizações são consideradas por Francis (apud Koch, 2009, p. 36) como rotulações resultantes de encapsulamentos operados sobre predicações antecedentes ou 95
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subsequentes, ou seja, sobre processos de seus actantes, os quais passam a ser representados como objetos-­‐acontecimento na memória discursiva dos interlocutores. Por meio da estratégia da nominalização, erigem-­‐se, em objetos-­‐de-­‐discurso, conjuntos de informações expressas no texto precedente – informação-­‐suporte –, segundo Apothéloz e Chanet (1997, citado por Marcuschi e Koch, 2002, p. 32), que anteriormente não tinham tal estatuto. No que se refere às nominalizações, é preciso distinguir entre a operação de nominalização propriamente dita, que é de natureza anafórica, e a expressão utilizada para efetuar tal operação. Enquanto operação, a nominalização atribui o estatuto de referente ou objeto-­‐de-­‐discurso a um conjunto de informações que anteriormente não possuíam tal estatuto, assinalando simultaneamente uma mudança de nível e uma condensação da informação. Do ponto de vista da distância comunicativa, essa operação retoma, pressupondo a sua existência, um processo que foi significado predicativamente, que acaba de ser posto. Como forma anafórica, por sua vez, a nominalização é uma forma linguística: o substantivo – predicativo. 96
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As formas nominais referenciais respondem, simultaneamente, pelos dois grandes processos de construção textual: retroação e prospecção. Elas desempenham também funções cognitivas de grande importância para o processamento textual. Como forma de remissão a elementos citados anteriormente no texto, ou sugeridos pelo cotexto precedente, elas possibilitam a sua (re) ativação na memória do interlocutor: a alocação ou focalização na memória ativa (ou operacional) deste. Além disso, por outro lado, ao operarem uma recategorização ou refocalização do referente ou, em se tratando de nominalizações, sumarizando e rotulando as informações-­‐
suporte, elas têm, ao mesmo tempo, função predicativa. Esse caso é chamado de formas híbridas, referenciadoras e predicativas, porque veiculam tanto informações dadas quanto informações inferíveis e novas. Marcuschi e Koch (2002, p. 31), aludem que a referenciação por meio de expressões nominais definidas desempenha papel relevante na organização textual e, consequentemente, na construção do sentido. Esses elementos desempenham um aspecto importantíssimo no processo de 97
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textualização e é de grande relevância para a coesão e coerência textual. Nesse mesmo trabalho de Marcuschi e Koch (2002, p. 39), é mencionado que há dois tipos dessas formas, designadas expressões referenciais definidas: as descrições definidas, que há muito tempo vêm sendo objeto de estudo da lógica e da semântica; e as formas nominais (nominalizações), com as quais se referencia, por meio de um sintagma nominal (nem sempre deverbal), um processo anterior expresso por uma proposição. As descrições nominais definidas são caracterizadas pelo fato de operarem uma seleção – entre as diversas propriedades de um referente – reais, co(n)-­‐textualmente determinadas ou intencionalmente atribuídas pelo locutor em dada situação de interação. Koch (2005, p. 87) elucida que o uso de uma descrição nominal implica uma escolha dentre as propriedades ou qualidades capazes de caracterizar o referente. Escolha esta que será feita em cada contexto em razão do projeto comunicativo daquele que produziu o texto. Essa autora ressalta também que, em geral, trata-­‐se da ativação dos conhecimentos pressupostos como partilhados com o(s) interlocutor (es), ou seja, a partir de 98
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um background tido por comum, de características ou traços do referente que o locutor procura ressaltar ou enfatizar. A escolha de determinada descrição definida pode ter função avaliativa, isto é, trazer ao leitor/ouvinte informações relevantes referentes às opiniões, crenças e atitudes do produtor do texto, auxiliando-­‐o, dessa forma, na construção do sentido. O locutor utiliza uma descrição definida com o objetivo de dar a conhecer ao interlocutor, com os mais variados propósitos, propriedades ou fatos relativos ao referente que acredita desconhecido do parceiro. Em geral, o emprego dessas expressões nominais anafóricas opera a recategorização de objetos-­‐de-­‐discurso, isto é, tais objetos serão reconstruídos de determinada forma, de acordo com o projeto do enunciador. Além dessas expressões referenciais, há ainda a anáfora especificadora, que acontece nos contextos em que é necessário um refinamento da categorização. Essa anáfora é frequentemente introduzida por um artigo indefinido. Segundo Koch (2009, p. 39), esse fato é pouco registrado na literatura da linguística, pois esse tipo de anáfora permite trazer, de forma compacta, informações novas que se referem ao objeto de discurso, conforme o exemplo: 99
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Uma catástrofe ameaça uma das últimas colônias de gorilas da África. Uma epidemia de Ebola já matou mais de 300 desses grandes macacos no santuário de Lossi, no noroeste do Congo. Trata-­‐se de uma perda devastadora, pois representa o desaparecimento de um quarto da população de gorilas da reserva. (grifo nosso). Um outro aspecto é que, de acordo com essa mesma autora, em certas paráfrases feitas por expressões nominais, elas funcionam como anáforas definicionais ou didáticas, e essas expressões propiciam a projeção na memória de um novo léxico. Ela menciona ainda que a função das expressões referenciais não é apenas referir, mas, como são multifuncionais, elas contribuem para elaborar o sentido, indicando pontos de vista, assinalando direções argumentativas, sinalizando dificuldades de acesso ao referente e recategorizando os objetos presentes na memória discursiva. Assim, a referenciação no discurso, bem como as demais atividades de produção de texto de sentido, constitui uma construção de cunho sociocognitivo e interacional. Nessa concepção interacional (dialógica) da língua, os sujeitos são os atores, ou melhor, os construtores sociais que dialogicamente se constroem no texto, o próprio lugar da interação, e por ele são construídos. 100
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Portanto, todos esses referentes aludidos constituem objetos-­‐de-­‐discurso que, construídos sociocognitivamente no bojo da interação, são altamente dinâmicos, já que transformam e reconstroem-­‐se constantemente no curso de uma interação. 3. ANÁLISE DA ABORDAGEM DA
REFERENCIAÇÃO NOS MANUAIS DIDÁTICOS
A análise, feita em duas coleções de Língua Portuguesa, tem como respaldo os conceitos teóricos inerentes às estratégias de referenciação. Pretendemos avaliar de que forma esse mecanismo de textualização é elucidado nos dois manuais analisados e de que maneira essa temática perpassa pelas atividades de leitura e de produção textual, contempladas por duas coleções aprovadas pelo PNLD 2012 (Plano Nacional do Livro Didático) para o Ensino Médio. A primeira coleção, Ser Protagonista, composta por três volumes – cada um deles destinados a uma das séries do Ensino Médio –, é segmentada em três partes distintas: Literatura, Linguagem e Produção de texto. Nela, não existe uma parte específica para o trabalho com a leitura, entretanto, é possível verificar que ao longo dos três anos há atividades que tem por 101
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objetivo explorar as diferentes estratégias, como, por exemplo, compreensão geral do texto, produção de inferências, bem como localização e retomada de informações nos textos abarcados por esse manual. Com relação à produção escrita, observamos que são elaboradas atividades com base no trabalho com os gêneros textuais, enfatizando sempre a prática de escrita em seu universo de uso social e indicando as condições ideais da produção. Nesse material, verificamos que são incluídos tópicos inerentes às estratégias de referenciação, conforme podemos observar em uma das passagens retiradas da página 341 do primeiro volume da coleção, cujo objetivo é explicitar os mecanismos de articulação empregados no texto: 102
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Cabe ressaltar que tanto o conceito de referenciação quanto às atividades alusivas a essa temática são especificadas no material escrito. Além disso, é possível encontrar na coleção outros fragmentos que mencionam o trabalho com a coesão textual, mais especificamente com o mecanismo coesivo de referenciação, como se verifica em mais um fragmento da coleção, que consta na página 296, do volume 1: Percebemos que há uma preocupação, por parte dos autores, em aplicar os conceitos relativos às estratégias de referenciação aos exercícios propostos de leitura e de produção 103
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textual ao longo do material escrito, com intuito de que os alunos apreendam tais recursos e apliquem-­‐nos no momento da elaboração dos diferentes gêneros textuais. Isso fica evidente em uma das propostas de produção textual no livro do primeiro volume, página 343, em que os autores mencionam: “O resumo precisa eliminar repetições desnecessárias. Para isso, pode fazer uso da referenciação.” Nessa mesma atividade, há outra sinalização para o aluno: “Ao reescrever o seu resumo, observe se você usou adequadamente esse recurso, deixando claros os referentes antecipados ou retomados por outras palavras.” Além de abordar a estratégia de referenciação nas diferentes propostas de produção textual, os autores aludem que há imbricação dos mecanismos de referenciação com os diferentes sentidos produzidos na escolha de um e não de outro vocábulo para a elaboração de um texto. No momento da apresentação do artigo, é descrito que o falante pode se referir a um elemento presente na situação de enunciação ou ao conhecimento partilhado com seu interlocutor; pode retomar ou antecipar um outro elemento do texto e ainda indicar que o substantivo que antecede é entendido de maneira genérica, como integrante de uma categoria. 104
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Na abordagem da classe de palavras relacionada aos números, os autores mencionam que os numerais colaboram para a clareza e coesão do texto, antecipando ou retomando elementos em sequência e evitando repetições desnecessárias. Para a explanação dos pronomes, é aludido que as palavras pertencentes a essa classe situam as pessoas do discurso, indicando elementos textuais e situacionais e que, dentro do texto, atuam como mecanismos coesivos de anáfora (retomada de um referente) e catáfora (antecipação de um referente). Já para a explicação dos verbos, é mencionado que a ancoragem é um momento importante do planejamento da produção textual, em que o produtor do texto toma consciência de qual é o seu papel em relação ao que enuncia e à situação de enunciação. Por fim, na explanação dos advérbios, salientam que, como elementos coesivos, podem fazer referência a outro elemento do texto, retomando-­‐o ou antecipando-­‐o (coesão referencial). Ainda, eles podem assinalar a ordenação da sequência temporal, permitindo a continuidade das ideias. Nesses dois casos, os advérbios estabelecem relações entre as partes do texto, contribuindo para a progressão textual. Nessa coleção, encontra-­‐se um excelente recurso para desenvolver trabalhos relacionados às estratégias de 105
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referenciação, bem como levar o aluno a refletir sobre o uso da língua, a importância das escolhas linguísticas para a elaboração de um texto, além dos efeitos de sentido que produzirá ao escolher uma e não outra forma para referenciar os objetos de seu texto na interação com outros sujeitos nas mais variadas situações discursivas das quais participa. Já com relação à análise da coleção Projeto Eco, não verificamos a mesma abordagem no que tange à referenciação. Esse material é composto de 3 volumes, cada um destinado a uma série do Ensino Médio. Cada volume é constituído por três partes (Literatura, A Língua em uso e Produção de texto), divididos em unidades. Os textos apresentados nessa coleção estão mais voltados para a Literatura, uma vez que grande parte dos conteúdos apresentados na coleção é destinada ao estudo dessa disciplina, o que torna o ensino dos elementos linguísticos, de leitura e de produção textual desigual se comparado à Literatura. O trabalho com a produção textual e com as questões gramaticais ganha um espaço pouco significativo se comparado aos conteúdos voltados para o aspecto literário. Assim, os tópicos inerentes à textualidade e às questões gramaticais são vistos de uma forma bastante superficial. As classes de palavras, que aparecem no 106
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volume 2, são apresentadas de uma maneira superficial, não tecendo nenhuma relação com os mecanismos de textualização. Na coleção, não existe qualquer menção quanto aos elementos de referenciação, apenas no volume 3, destinado ao terceiro ano do Ensino Médio, há uma alusão à coesão e à coerência textuais: Você já deve ter ouvido afirmações como “Um bom texto deve ter coesão e coerência”. Na prática, isso significa que deve ocorrer articulação entre as estruturas linguísticas e as ideias do texto deve estar conectadas entre si. Um dos critérios para definir que se está diante de um texto e não de um amontoado de palavras soltas é o texto apresentar coesão. Normalmente, a coesão se dá pelo uso de mecanismos linguísticos como a retomada do que já foi escrito e a utilização de uma sequência de ideias conectadas. Assim, a coesão pode ser definida como a interligação entre as diversas palavras que compõem o texto e está mais relacionada à forma. Para que o texto apresente também coerência, é preciso que haja produção de sentido entre as ideias do texto. Ou seja, não basta que as ideias estejam interligadas gramaticalmente, é preciso que haja conexão de sentido entre elas. Assim, a coerência está mais relacionada ao sentido do texto. (p. 255-­‐256) Esses dois tópicos, tão importantes para a produção de qualquer gênero textual, são comentados apenas no último 107
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volume da coleção, entretanto deveriam nortear todas as atividades voltadas para o trabalho com a textualização, desde a primeira série do Ensino Médio. Um outro conteúdo, progressão textual, relacionado aos mecanismos de referenciação é elencado na página 300 desse mesmo volume, mas apenas citado, não é desenvolvido nenhum conceito e tampouco há atividades alusivas a essa temática. Logo, poucas informações e atividades referentes às estratégias de referenciação podem ser encontradas nessa coleção, que ainda não privilegia uma abordagem mais atual no ensino de língua materna, bem como não contempla a referenciação, fenômeno textual-­‐discurso tão importante para o desenvolvimento das habilidades de leitura e de produção textual na construção do sentido dos diferentes gêneros. 4.
PROPOSTAS
REFERENCIAÇÃO
DE
ATIVIDADES
DE
Nesta seção, são apresentadas algumas atividades relacionadas às estratégias de referenciação, com o propósito de mostrar algumas abordagens dos fenômenos referenciais que podem ser aplicados na prática docente no ensino de leitura, compreensão e de produção textual. O texto escolhido para a 108
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
elaboração das atividades foi retirado do primeiro volume, página 259, da coleção Ser Protagonista, uma das obras analisadas neste trabalho. Brasileira descobre “orfanato” de estrelas Uma astrônoma brasileira da Nasa anunciou ontem ter encontrado um conjunto de estrelas "órfãs", nascidas fora de grandes galáxias. Duilia de Mello, cientista do Centro Goddard de Voos Espaciais, da agência americana, descobriu esses pequenos aglomerados de estrelas jovens na forma de bolhas azuis no espaço sideral. O "orfanato" estelar foi identificado pela brasileira ao cruzar imagens do satélite Galex, que capta luz ultravioleta, e do Observatório Nacional de Radioastronomia dos EUA, que "enxerga" ondas de rádio. "Eu tinha visto as bolhas azuis com o Galex, mas com as imagens de rádio vi que havia mais alguma coisa ali", disse Mello. A região era uma nuvem de hidrogênio, local onde normalmente se formariam estrelas. Mas era rarefeita demais para ser um berçário viável. Astrônomos russos já tinham olhado para aquela área do espaço na década de 1980, mas com um telescópio menos potente. "Na época, apareciam umas duas ou três estrelas, mas com o [telescópio] Hubble nós pudemos ver que são 2.000", disse Mello. A descoberta foi anunciada no encontro anual da AAS (Sociedade Astronômica Americana), no Texas. O Hubble foi crucial para a descoberta de Mello, detalhada em estudo a ser publicado na revista "The Astronomical Journal". Só com as imagens do telescópio espacial foi possível descobrir as idades das estrelas vistas. Como 109
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elas são "jovens" com menos de 30 milhões de anos (daí sua coloração azul), só podem ter sido produzidas ali, e não importadas de galáxias próximas. Ao lado das imagens da descoberta, os cientistas também apresentaram uma proposta de explicação para o fato de o grupo de estrelas ter nascido "no meio do nada". Normalmente, a formação estelar ocorre em zonas de alta densidade de gases, e tais regiões só existem dentro das galáxias. As bolhas azuis encontradas por Mello não estão em uma região como essa, mas vivem uma condição especial. Elas estão no meio de duas galáxias próximas, que se deslocam e interagem entre si por meio da força da gravidade, dando origem a fenômenos inusitados. Alguns astrônomos acreditam que as duas galáxias (e mais uma galáxia-­‐anã) passaram "de raspão" uma perto da outra há cerca de 200 milhões de anos, num evento em que umas "roubaram" algumas estrelas da borda das outras. A quase-­‐colisão também criou uma zona de turbulência na área de gás rarefeito, possibilitando então que algumas estrelas nascessem em região menos densa. Na fronteira turbulenta, a matéria conseguia se agregar com mais facilidade. Segundo Mello, a existência de estrelas desse tipo pode explicar por que o Universo está "poluído" com nuvens de elementos mais pesados que hidrogênio e hélio (e que fornecem a matéria-­‐prima para a formação de planetas). Esses elementos são produzidos nos núcleos de estrelas velhas e expelidos quando elas morrem. A morte de estrelas dentro de galáxias, porém, não deixa sujeira espalhada, pois ela é contida pela gravidade galáctica. GARCIA, Rafael. Folha de S. Paulo, 9 jan. 2008. 110
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
1. Identifique no fragmento que segue todos os termos que retomam os vocábulos destacados: Uma astrônoma brasileira da Nasa anunciou ontem ter encontrado um conjunto de estrelas "órfãs", nascidas fora de grandes galáxias. Duilia de Mello, cientista do Centro Goddard de Vôos Espaciais, da agência americana, descobriu esses pequenos aglomerados de estrelas jovens na forma de bolhas azuis no espaço sideral. O "orfanato" estelar foi identificado pela brasileira ao cruzar imagens do satélite Galex, que capta luz ultravioleta, e do Observatório Nacional de Radioastronomia dos EUA, que "enxerga" ondas de rádio. "Eu tinha visto as bolhas azuis com o Galex, mas com as imagens de rádio vi que havia mais alguma coisa ali", disse Mello. A região era uma nuvem de hidrogênio, local onde normalmente se formariam estrelas. Mas era rarefeita demais para ser um berçário viável. Astrônoma brasileira: Duilia de Mello, brasileira, Mello. Conjunto de estrelas “órfãs”: esses pequenos aglomerados de estrelas jovens na forma de bolhas azuis, orfanato estrelar, as bolhas azuis. Salétile Galex: Galex 111
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2. Complete os espaços que seguem, estabelecendo designações alternativas para os objetos do discurso sublinhados, atendendo ao que se pede: a) Uma expressão nominal definida: “Uma astrônoma brasileira da Nasa anunciou ontem ter encontrado um conjunto de estrelas "órfãs", nascidas fora de grandes galáxias. A cientista descobriu esses pequenos aglomerados de estrelas jovens na forma de bolhas azuis no espaço sideral.” b) Um hiperônimo “Só com as imagens do telescópio espacial foi possível descobrir as idades das estrelas vistas. Como os astros são "jovens" com menos de 30 milhões de anos (daí sua coloração azul), só podem ter sido produzidas ali, e não importadas de galáxias próximas.” 3. Assinale a proposição em que o antecedente do termo sublinhado não pode ser localizado no mesmo segmento do texto que está entre aspas: 112
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
a) “Uma astrônoma brasileira da Nasa anunciou ontem ter encontrado um conjunto de estrelas "órfãs", nascidas fora de grandes galáxias. Duilia de Mello, cientista do Centro Goddard de Vôos Espaciais, da agência americana, descobriu esses pequenos aglomerados de estrelas jovens na forma de bolhas azuis no espaço sideral.” b) “Só com as imagens do telescópio espacial foi possível descobrir as idades das estrelas vistas. Como elas são "jovens" com menos de 30 milhões de anos (daí sua coloração azul), só podem ter sido produzidas ali, e não importadas de galáxias próximas.” c) “Normalmente, a formação estelar ocorre em zonas de alta densidade de gases, e tais regiões só existem dentro das galáxias.” d) “A morte de estrelas dentro de galáxias, porém, não deixa sujeira espalhada, pois ela é contida pela gravidade galáctica.” e) “Segundo Mello, a existência de estrelas desse tipo pode explicar por que o Universo está "poluído" com nuvens de elementos mais pesados que hidrogênio e hélio (e que fornecem a matéria-­‐prima para a formação de planetas).” 113
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4. Assinale a alternativa em que o vocábulo destacado não retoma outro(s) elemento(s) citado(s) anteriormente. a) “ O ‘orfanato’ estelar foi identificado pela brasileira ao cruzar imagens do satélite Galex, que capta luz ultravioleta, e do Observatório Nacional de Radioastronomia dos EUA...” b) “ ‘Eu tinha visto as bolhas azuis com o Galex, mas com as imagens de rádio vi que havia mais alguma coisa ali’, disse Mello.” c) “Elas estão no meio de duas galáxias próximas, que se deslocam e interagem entre si por meio da força da gravidade, dando origem a fenômenos inusitados.” d) “Alguns astrônomos acreditam que as duas galáxias (e mais uma galáxia-­‐anã) passaram ‘de raspão’ uma perto da outra há cerca de 200 milhões de anos, num evento em que umas ‘roubaram’ algumas estrelas da borda das outras.” e) “Segundo Mello, a existência de estrelas desse tipo pode explicar por que o Universo está "poluído" com nuvens de elementos mais pesados que hidrogênio e hélio (e que fornecem a matéria-­‐prima para a formação de planetas).” 114
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
5. Na coesão textual, os pronomes são empregados, muitas vezes, com o objetivo de ligar o que está sendo dito e o que já foi enunciado anteriormente. Assinale a alternativa em que o pronome não estabelece ligação com o que já foi mencionado anteriormente nas passagens que seguem. a) “Uma astrônoma brasileira da Nasa anunciou ontem ter encontrado um conjunto de estrelas "órfãs", nascidas fora de grandes galáxias. Duilia de Mello, cientista do Centro Goddard de Voos Espaciais, da agência americana, descobriu esses pequenos aglomerados de estrelas jovens na forma de bolhas azuis no espaço sideral.” b) “Como elas são ‘jovens’ com menos de 30 milhões de anos (daí sua coloração azul), só podem ter sido produzidas ali, e não importadas de galáxias próximas.” c) “Elas estão no meio de duas galáxias próximas, que se deslocam e interagem entre si por meio da força da gravidade, dando origem a fenômenos inusitados.” d) “As bolhas azuis encontradas por Mello não estão em uma região como essa, mas vivem uma condição especial. Elas estão no meio de duas galáxias próximas, que se deslocam e interagem 115
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entre si por meio da força da gravidade, dando origem a fenômenos inusitados.” e) “Esses elementos são produzidos nos núcleos de estrelas velhas e expelidos quando elas morrem. A morte de estrelas dentro de galáxias, porém, não deixa sujeira espalhada, pois ela é contida pela gravidade galáctica.” 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo dos processos de referenciação constitui uma temática de extrema relevância na tessitura textual. Isso ocorre não somente porque eles exercem funções textual-­‐discursivas que servem para organizar, construir argumentações e introduzir referentes, mas também porque desempenham funções discursivas dos processos referenciais, como a introdução de novos referentes e da recategorização, o encapsulamento de orações inteiras do contexto, a organização e a centração das partes do texto, a marcação da heterogeneidade enunciativa, o convite para a ativação na memória, a identificação dos participantes e, ainda, a estratégia argumentativa de colocar em cena várias vozes no texto/ discurso (CAVALCANTE, 2012, p. 133 e 134). 116
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Por esse motivo, a abordagem desses fenômenos referenciais deve ser priorizada no ensino de língua materna, já que esse conteúdo pode ter uma aplicação direta ao ensino de compreensão e de produção textual por haver uma estreita relação entre a referenciação e os outros recursos de organização da textualidade e das articulações interdiscursivas para a configuração geral dos sentidos. Mesmo que alguns manuais recomendados pelo catálogo do PNLD 2012 (Programa Nacional do Livro Didático) para o Ensino Médio ainda não estão em consonância com as recentes pesquisas no campo da linguística, uma vez que abordam de forma pouco aprofundada as estratégias de referenciação, ou ainda, não mencionam nem oportunizam atividades inerentes a essa temática, conforme se verificou na coleção Projeto Eco, há outros manuais, como os da coleção Ser Protagonista, que apresentam, de forma consistente, avanços significativos na explanação dos principais tópicos inerentes à referenciação. A coleção Ser Protagonista teceu relações importantes entre as classes de palavras e os sentidos produzidos pela escolha de um ou de outro vocábulo para a composição dos diversos textos que são produzidos tanto no âmbito escolar quanto nos elaborados nas diferentes situações vivenciadas. Além disso, 117
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mostrou conceitos relevantes para definir as principais formas de referenciar e trouxe propostas de atividades que contemplam a aplicação das estratégias de referenciação, tanto na leitura quanto na produção textual, tão importantes para o desenvolvimento da coerência e da argumentação no texto. Sabemos que os materiais didáticos não representam o único caminho para desenvolver as competências e as habilidades que devem ser trabalhadas na escola. Entretanto, no momento em que o professor escolher um manual didático para auxiliar a sua prática docente, ele deve estar atento à abordagem dos conteúdos, bem como às propostas de trabalho para o desenvolvimento das competências linguísticas do seu aluno, uma vez que muitos manuais didáticos distanciam-­‐se dos novos estudos e das recentes pesquisas feitas no campo da Linguística de Texto e, por isso, têm um longo caminho a percorrer. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABAURRE, M. B. M.; RODRIGUES, A. C. S. Gramática do Português Falado. Volume VIII: Novos estudos descritivos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002. ANTUNES, I. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo. Parábola editorial, 2009. 118
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
BRASIL. PCN + Ensino Médio. Parte II: Linguagens, códigos e suas tecnologias (PCNEM+). Brasília, Secretaria de Educação Fundamental MEC, s.d. ______. Parâmetros Curriculares Nacionais – ensino médio. Parte II: Linguagens, códigos e suas tecnologias (PCNEM). Brasília, Secretaria de Educação Fundamental MEC, 2000. CAVALCANTE, M. Referenciação: sobre coisas ditas e não ditas. Fortaleza: Edições UFC, 2011. ______. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2012. ______. Leitura, Referenciação e Coerência. In: ELIAS, V. M. (orgs.) Ensino de Língua Portuguesa: oralidade, escrita e leitura. São Paulo: Contexto, 2011. JURADO, S.; ROJO, R. A Leitura no Ensino Médio: O que dizem os documentos oficiais e o que se faz? In: BUZEN, C. & MENDONÇA, M. (orgs.) Português no Ensino Médio e Formação do Professor. São Paulo: Parábola, 2006. ______. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2012. ______. Anáfora e dêixis: quando as retas se encontram. In: KOCH, I. V; MORATO, E. M; BENTES, A.C (orgs) Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005. p. 125-­‐149. KOCH, I.V. As tramas do texto. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009. 119
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez Editora, 2005. ______. Introdução à linguística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ______; ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006. ______. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2009. MARCUSCHI, Luiz A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. ______. Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras. In: KOCH, I. V; MORATO, E. M; BENTES, A.C (orgs) Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005, p. 53-­‐101. _______ ; KOCH, I. V. Estratégias de referenciação e progressão referencial na língua falada. In: Gramática do Português Falado. Vol. VIII: Novos estudos descritivos. Campinas, SP: UNICAMP, 2002. MANUAIS DIDÁTICOS:
ALVES, R. H; MARTIN, V. L. Projeto Eco Língua Portuguesa. 3 V. Curitiba: Positiva, 2010. BARRETO, R. G (org). Ser protagonista -­‐ Português 1º ano: ensino médio. 3 V. São Paulo: Edições SM, 2010. 120
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Processos referenciais: a
construção de sentidos em turmas
de EJA
BASTOS, Karine Oliveira (UFRJ) 1. INTRODUÇÃO
Não há dúvida de que a Linguística de Texto, desde seu surgimento, sempre teve o compromisso de por o texto em lugar de destaque no ensino de língua materna. Não por acaso, os primeiros estudos do Brasil voltados para a leitura e para a escrita, muito embora ainda privilegiassem a superfície textual, já lidavam com a noção de “referência” quando tinham como objeto a coesão e, a seguir, a coerência. Essa ponte teoria-­‐prática proposta pelos estudos textuais, como se nota, é cara para quem pretende atrelar, de fato, pesquisa a ensino, sobretudo considerando os desafios já enfrentados em relação a esse aspecto pelos estudos linguísticos de uma forma geral. Nesse sentido, assumindo o texto como unidade de ensino, é preciso compreender que a forma como 121
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
este é trabalhado em sala de aula traduz o modo como é conceituado. Uma aula de coesão que se proponha apenas a destacar alguns elementos coesivos que retomam outros anteriormente expressos, por exemplo, não leva em conta a concepção sociocognitivo-­‐dialógica da língua, tampouco o texto como lugar de interação. Se o trabalho com o texto é considerado central em sala de aula, cabe refletir como essa prática precisa ocorrer. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), implantados em 1998 pelo MEC – cujas propostas trazem reflexos dos princípios da Linguística Textual – defendem a perspectiva “uso-­‐reflexão-­‐uso” para o ensino da língua materna. Propõe-­‐se, desse modo, um trabalho que dê foco às práticas de leitura, produção de texto e análise linguística. Em outras palavras, é preciso valorizar a abordagem dos diferentes gêneros na escola, isto é, dos usos da língua em situações concretas, de modo que a leitura e a produção de texto não sejam somente exercícios constantes em sala de aula, senão que estejam atrelados à prática de reflexão sobre a língua, sobre os objetivos do texto, sobre os papéis dos interlocutores e sobre todas as estratégias utilizadas tanto na leitura quanto na produção. É o que se entende – e se defende – por ensino produtivo, nos termos de Travaglia (2006). 122
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
No entanto, longo é o caminho que une teorias e orientações à prática pedagógica, principalmente porque ainda é possível observar reflexos de um ensino prescritivo, que pouco se compromete com o uso efetivo da língua e, de modo mais grave, pouco se implica em termos de uma postura mais crítica diante das diferentes situações sociais. A título de exemplo, se observa o equívoco no tratamento dado nas escolas à teoria dos gêneros textuais. De fato, podemos considerar esta teoria um avanço para o ensino da língua, todavia reduzir esse trabalho à classificação dos gêneros mais se aproxima da abordagem tradicional da gramática – tão criticada atualmente – do que de uma proposta de ensino realmente produtivo. Essas questões são observadas tanto no discurso do professor em sala de aula quanto nos manuais didáticos destinados às diferentes séries do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Na Educação de Jovens e Adultos (EJA), por exemplo, modalidade carente de manuais didáticos e de políticas públicas que valorizem as especificidades dos estudantes, esse quadro se torna ainda mais preocupante. Dessa forma, as reflexões acerca do ensino da língua materna perpassam questões ainda mais amplas e, justamente, por isso, deveriam se intensificar para além do âmbito acadêmico, porque são 123
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
fundamentais em todo campo da educação. O modo como o texto está inserido em sala de aula, nesse caso, torna-­‐se ponto central na reflexão sobre o ensino, não somente por conta da sua importância nesse contexto, mas principalmente porque usá-­‐lo arbitrariamente pode trazer mais danos do que proveitos nesse processo. Assim, a fim de unir pesquisa a ensino, pretendemos, neste artigo, conduzir esta reflexão a partir da análise de manuais didáticos destinados a séries da Educação Básica, de modo que seja possível discutir sobre como a referenciação, importante fenômeno textual-­‐discursivo, é abordada nestes manuais. Optamos pela análise de duas coleções de livros didáticos destinados às séries finais do Ensino Fundamental da Educação de Jovens e Adultos, quais sejam: Viver, aprender, de Heloisa Ramos et alii, e Tempo de Aprender, de Cícero de Oliveira et alii. Ambas as coleções são organizadas de modo multidisciplinar, isto é, abarcam, em todos os seus volumes, conteúdos de todas as disciplinas com base na perspectiva de integração do currículo. Porém, serão analisadas apenas as seções/unidades destinadas à Língua Portuguesa. Cabe ressaltar que a opção pelo material da EJA decorre da escassez de materiais produzidos para essa modalidade de 124
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
ensino, que, dentre tantos desafios, enfrenta o estigma de educação compensatória, supletiva e emergencial. É possível supor, nesse caso, que este estigma se reflete no próprio ensino de língua, tornando ainda mais necessária a discussão. 2. REFERENCIAÇÃO: ALGUNS
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Levando em conta a importância da Linguística de Texto para o trabalho com o texto em sala de aula, é possível afirmar que os estudos acerca da referenciação contribuíram significativamente nesse processo, sobretudo, em termos de desenvolvimento da escrita e da leitura. Nesse sentido, cabe apresentar os pressupostos teóricos que nortearam a análise do tratamento da referenciação nos livros didáticos. Assim, discutir as concepções de texto assumidas ao longo do tempo torna-­‐se tarefa fundamental para compreender os desafios teórico-­‐metodológicos enfrentados pelo ensino da língua e, principalmente, para repensar os objetivos deste trabalho em sala de aula. Koch (2002), ao relacionar os conceitos de leitura, sujeito, língua e sentido, distingue algumas concepções de texto. 125
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Segundo a autora, os estudos iniciais assumiam a língua como representação do pensamento do autor e, portanto, o texto como produto deste pensamento, de modo que caberia ao leitor apenas o papel passivo de captar as ideias do autor. No que se refere ao ensino, o caráter moralizante predominava nas escolas, bem como na sociedade de uma forma geral, em meados do século XX. Basta rever o conteúdo ideológico presente nos textos, que enfatizava o amor pátrio e uma boa conduta cidadã. Em seguida, os estudos apontavam para uma concepção de língua como código, ou seja, o foco antes voltado para o autor passa a se voltar para o texto – considerado produto da codificação de um emissor a ser decodificado pelo receptor. A leitura, com base nessa linha de entendimento, caracterizava-­‐se como mera prática de reconhecimento das informações contidas no texto. É justamente essa concepção que ainda se vê refletida no ensino da língua. Basta observar as propostas de atividades de leitura/interpretação em sala de aula: muitos exercícios se destinam somente a avaliar a capacidade do estudante de localizar informações expressas no texto – atividades muito pouco comprometidas com a formação de um leitor autônomo, crítico, capaz de fazer inferências, criar hipóteses e reformular 126
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
ideias. Não é à toa que, ainda hoje, quando um professor propõe questões que exijam minimamente a realização de inferências por parte do aluno, encontra pouco retorno, uma vez que os estudantes estão acostumados à prática de buscar no texto todas as respostas. Nesse caso, é possível compreender por que a referenciação também recebe no ensino uma abordagem que ainda valoriza a superfície textual – restringindo-­‐se à expressão dos elementos – em detrimento a uma visão mais ampla do texto, que a trate como uma atividade discursiva de construção de sentidos. Atualmente, a LT defende a concepção sociocognitivo-­‐
dialógica da língua, que leva em conta a interação autor-­‐texto-­‐
leitor, nos termos de Koch (2007). Em outras palavras, assume-­‐se o texto como lugar de interação e de constituição dos sujeitos enquanto construtores sociais. A leitura, com base nessa perspectiva, corresponde a uma atividade interativa de construção de sentidos, que não ocorre somente por meio dos elementos explícitos na superfície textual, senão por meio da ativação de um conjunto de saberes e experiências dos sujeitos envolvidos. Nesse sentido, um ensino comprometido com esta concepção não pode ignorar uma gama de implícitos oferecidos no decorrer da leitura com os quais se pode trabalhar em sala de 127
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
aula. Como bem defende Pauliukonis (2011, p. 243), “em vez de se procurar o que o texto diz, procurar analisar como o texto diz e por que diz o que diz de um determinado modo”. É um caminho que busca fugir da imposição dos significados únicos e hegemônicos do texto e alcançar um ensino produtivo da língua. Essa concepção de língua, texto e leitura vai ao encontro do que se entende por práticas de letramento. Em outros termos, defende-­‐se que a alfabetização esteja atrelada às práticas de letramento, uma vez que ler não se trata apenas de uma prática de decodificação, mas de uma atividade de construção de sentidos necessariamente relacionada ao contexto sócio-­‐
histórico-­‐cultural em que os sujeitos se inserem. Nesse sentido, deve ser proposta da escola tornar esta atividade cada vez mais complexa, de modo que os estudantes, no decorrer do processo de ensino-­‐aprendizagem, estejam expostos às práticas de letramento escolar e social e, aos poucos, sejam capazes não só de localizar informações no texto, mas também de fazer inferências, formular hipóteses, avaliar criticamente e alcançar sua autonomia leitora. Podemos dizer, então, que a perspectiva da interação social também norteou os estudos ligados à referenciação, considerada esta um processo, uma atividade discursiva de 128
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
construção e reconstrução de referentes e, portanto, um fenômeno de grande importância para a produção/compreensão de textos. Os referentes, por sua vez, são objetos do discurso – representados ou não por expressões referenciais – introduzidos e ajustados de acordo com os conhecimentos compartilhados entre os sujeitos, até que dão lugar a outro objeto. Segundo Cavalcante (2011, p.15), são entidades que construímos mentalmente quando enunciamos um texto. São realidades abstratas, portanto imateriais. (...) não são significados, embora não seja possível falar de referência sem recorrer aos traços de significação, que nos informam do que estamos tratando, para que serve, quando empregamos. (...) também são formas, embora, em geral, realizem-­‐se por expressões referenciais. Portanto, o ato de referir está condicionado a uma ação conjunta (CAVALCANTE, 2011) e traduz o próprio entendimento de leitura como interação autor-­‐texto-­‐leitor. Isso significa dizer que somente a partir desta interação a coerência do texto é construída. Cabe ao professor de língua materna, portanto, ficar bastante atento a essa questão, de modo que não reduza o processo de leitura em sala de aula à simples captura de ideias do 129
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
texto, justamente porque os sentidos – e a coerência – não estão exatamente apontados ali. Além disso, como o ato de referir exige negociação entre interlocutores, deve-­‐se levar em conta principalmente a pluralidade de leituras e sentidos (KOCH, 2007). Ainda no âmbito do ensino, o estudo sobre referenciação torna-­‐se ainda mais relevante para que o aluno compreenda como se estrutura o texto. Em outras palavras, é importante também que ele perceba o papel dos referentes na construção de tópicos discursos – seja quanto à sua manutenção, seja quanto à sua progressão – de modo que torne disponível para o processo de leitura e de escrita toda sorte de estratégias referenciais: introdução referencial, anáforas, encapsulamento, dêixis. Assim, compreendendo a interação autor-­‐texto-­‐leitor quando estuda referenciação, certamente terá mais condições de assumir os papéis ora de autor, ora de leitor, consciente dos exercícios de construção de objetos do discurso e de construção de sentidos. Cavalcante (2012, p. 133), ao tratar das funções textual-­‐
discursivas das expressões referenciais, defende que os processos referenciais (...) exercem funções textual-­‐discursivas que podem servir para organizar, argumentar, 130
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
introduzir referentes, entre outras possibilidades. Isso não quer dizer que devemos acreditar que existe um antecedente ou um “gatilho” explícito que ative essas formas de retomada, mas que a elaboração global do texto nos fornece pistas sobre o que põe essas estratégias em funcionamento. Assim, outra questão importante de ser abordada no ensino de língua materna é a relação que se pode conferir entre o processo de referenciação e a intencionalidade do texto. Marquesi (2007, p. 217) reassalta que “tratar da referenciação exige que se pense não apenas na abordagem linguística, mas também na cognitiva, estando ambas estreitamente imbricadas, já que são concernentes às práticas e aos discursos”. O ato de referir, por exemplo, pode estar a serviço da argumentação e esta correlação torna-­‐se fundamental no processo produção/compreensão de texto. Como se nota, a referenciação encontra-­‐se no seio da discussão da Linguística de Texto e, nesse sentido, se esta linha teórica tem contribuído significativamente para o protagonismo do texto em sala de aula, certamente os estudos referenciais, desenvolvidos com base na perspectiva sociocognitiva-­‐dialógica, assumem um papel ainda mais importante nesse processo, sobretudo porque estão diretamente implicados nas práticas de 131
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
produção/compreensão de texto. Cabe, portanto, refletir como acontece esta abordagem nos manuais didáticos destinados à Educação Básica. 3.
ANÁLISE
DA
REFERENCIAÇÃO
NOS
LIVROS DIDÁTICOS DE EJA
Como foi dito anteriormente, a opção pelos manuais didáticos destinados à Educação de Jovens e Adultos decorre principalmente da escassez de materiais produzidos para essa modalidade de ensino. É possível conferir, por exemplo, que o Guia dos livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático 2011 da EJA apresenta somente duas coleções destinadas às séries finais do Ensino Fundamental – justamente as que foram selecionadas para esta análise. Cabe ressaltar que o número reduzido de obras se deve, inclusive, à regulamentação tardia do PNLD da EJA: a Alfabetização de Jovens e Adultos foi contemplada em 2007 e, somente em 2010, o Programa passou a abarcar todas as séries do Ensino Fundamental. O Guia reforça a ideia de que é preciso valorizar a diversidade e a heterogeneidade desse público de estudantes. No entanto, essa questão é colocada como um desafio a ser 132
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
enfrentado pelo professor: “(...) o educador que atua na EJA enfrenta muitos desafios em seu cotidiano. A começar pelo reconhecimento dos saberes que os estudantes jovens e adultos já trazem consigo fruto de suas experiências de vida” (BRASIL, 2011, p. 19). De fato, existe heterogeneidade em turmas de EJA, no entanto é preocupante notar que as demais turmas – que não fazem parte desta modalidade de ensino – possam ser consideradas homogêneas ou turmas que não trazem consigo saberes e experiências de vida. Esse questionamento torna-­‐se fundamental, principalmente, porque os reflexos de uma concepção de educação como esta podem ser observados, por exemplo, no ensino de língua materna, foco da análise proposta por este artigo. Assim, como base para análise dos manuais didáticos destinados à EJA, cabe refletir sobre a própria concepção de EJA que se pretende defender aqui. Embora esta modalidade de ensino carregue o estigma de educação supletiva, emergencial, em que os sujeitos retornam à sala de aula para recuperar um “tempo perdido”, é preciso considerar que estudantes de EJA fazem parte de um grupo social vulnerabilizado pelo sucateamento do sistema de educação pública e, portanto, são estes mesmos sujeitos que devem ser capazes de, mais do que 133
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
resistir a um cenário que lhes seja imposto, transformar sua própria realidade e a do meio em que estejam inseridos. Por isso, é urgente o reconhecimento de suas potencialidades como ser cognitivo, histórico e cultural, capaz de promover transformações da estrutura social. Nesse sentido, cabe ao professor assumir os materiais didáticos, sobretudo, os destinados a este público como uma possibilidade discursiva de elaboração de sua contrapalavra. O material didático é mais uma possibilidade de réplica do diálogo que nos constitui, devendo estar disposto não só a “ensinar” ou “explicar” algo ao educando, a “guiar corretamente” os passos do educador, mas permita a elaboração de críticas, a construção de enunciados, a alteração de suas próprias palavras, assim como a ressignificação das palavras do autor (STAUFFER, 2007, p.172). Bagno (2010, p. 36), por sua vez, ao defender o uso do livro didático no ensino de língua materna, pontua: Defendo os LD porque, num país onde o alfabetismo pleno é uma ave rara, essas obras constituem um dos poucos veículos da cultura letrada disponíveis em muitos círculos familiares. Com a universalização do ensino, com praticamente todas as crianças frequentando a escola e com os programas governamentais de distribuição maciça de material didático, os LD 134
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
passaram a habitar lares onde, até então, quase não existia material impresso. Diversas pesquisas que, no caso específico dos livros de língua portuguesa, essas obras constituem importantes agentes de letramento para inúmeras famílias e comunidades que, mesmo com um domínio rudimentar da leitura, encontram nos LD contos, poesias, histórias em quadrinhos, letras de música, notícias de jornal, entrevistas, receitas culinárias, curiosidades científicas, ilustrações, caricaturas, fotografias, mapas, anúncios publicitários, reproduções de quadros famosos e de outras obras de arte (...) Nesse contexto, pretende-­‐se iniciar uma análise dos livros didáticos pautada na concepção sociocognitiva-­‐dialógica da língua, que esteja, portanto, atenta à necessidade de reflexão acerca do ensino de língua materna. 3.1. Coleção Viver, aprender
Viver, aprender é uma das coleções aprovadas pelo PNLD de EJA 2011 para as séries finais do Ensino Fundamental. A obra é organizada em quatro volumes multi e interdisciplinares, de modo que cada um se estrutura em torno de um tema geral a partir do qual se desenvolvem os conteúdos dos seguintes componentes curriculares: Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Arte e Literatura, Matemática, Ciências Humanas: História e 135
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Geografia, e Ciências Naturais. Os temais gerais, por sua vez, se organizam a partir da seguinte ordem: Contextos de vida e trabalho; Por uma vida melhor; Mundo em construção; e Identidades. Em todos os volumes, na parte destinada à Língua Portuguesa, há uma apresentação inicial da proposta de trabalho nesta área, sendo possível conferir as concepções de língua, texto e leitura defendidas. No primeiro volume, sob o título “As palavras, os sentidos”, o texto inicial trata da “necessidade de haver alguém para testemunhar as coisas” (p. 11) e, com base nessa reflexão, defende: “Toda língua é composta por um conjunto de signos linguísticos convencionalmente organizados, que servem à interação e à comunicação entre as pessoas” (p. 11). Assim, reforça: “o que define um texto não é a presença ou a ausência de palavras, mas o sentido ou os sentidos que o autor pretendeu alcançar quando o criou, uma certa unidade, que é perceptível para quem o lê, ouve e vê” (p. 12). É possível perceber que, ao mesmo tempo em que se defende uma visão sociointeracionista, há uma distinção marcada entre “leitura” e “audição” em “lê” e “ouve”, o que traduz uma discussão pouco ampliada sobre o que vem a ser leitura de um texto. No entanto, em seguida, é apresentado um olhar mais claro para a questão: 136
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
“(...) não é possível ler sem interpretar. A interpretação de um texto não ocorre depois, mas durante a leitura. (...) o leitor vai estabelecendo relações entre as ideias apresentadas, refletindo sobre a maneira como o texto foi organizado, inferindo a intenção do autor (...)” (p. 12). No terceiro volume, sob o título “O texto, o leitor”, o texto inicial mantém a defesa de que a leitura é uma atividade de interação. Assim, adianta para o estudante: “Este é nosso objetivo: que você se envolva com a palavra e adquira confiança para participar ativa e essencialmente da construção de sentido de diversos tipos de texto”. Nessa linha de entendimento, acrescenta que “há muitas maneiras de interagir ou dialogar com um texto e (...) por esse motivo é que as interpretações variam. Um texto pode ter significados diferentes, pois cada leitor o lê de um jeito diferente” (p. 11). Em seguida, conclui que “a interação entre leitor e autor é a essência do ato de ler” (p. 12). As concepções de língua, texto e leitura apresentadas inicialmente dão conta de atender, de uma forma geral, a uma proposta de ensino produtivo, que considere a perspectiva “uso, reflexão, uso” colocada pelos PCN. Cabe, nesse sentido, conferir se essas concepções vão se refletir, de fato, nas atividades propostas no decorrer dos volumes da coleção Viver, aprender. 137
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Para tanto, o foco de análise passa a se voltar para o tratamento da referenciação nos livros didáticos. Já no primeiro volume, na primeira atividade proposta – intitulada “diálogo com o texto” (p. 15) –, é possível observar como a forte relação entre referenciação e produção/compreensão do texto é bem abordada. Ao ver o abandono da velha casa: o mato Ao ver o abandono tão perto de mim que a crescer das paredes dava Ao ver os desenhos de mofo espalhados até para lamber nos rebocos carcomidos Pensei em puxar o alarme Ao ver o mato a subir no fogão, nos Mas o alarme não funcionou. retratos, A nossa velha casa ficou para os morcegos nos armários e E até na bicicleta do menino encostada no os gafanhotos. batente da casa E os melões-­‐de-­‐são-­‐caetano que subiram Ao ver o musgo e os limos a tomar conta pelas do batente Paredes já estão dando frutos vermelhos. BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. P. 73 Dentre as primeiras questões acerca da leitura do poema de Manoel de Barros, está a tarefa de resgatar elementos da paisagem que recuperem o sentido de “abandono”, termo 138
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
mencionado no primeiro verso “Ao ver o abandono da velha casa: o mato a crescer das paredes”. Assim, é preciso que o aluno identifique ao longo do poema elementos que indiquem abandono, tais como: “o mato a crescer das paredes” e “os desenhos de mofo espalhados nos rebocos carcomidos”. Nota-­‐se, nesse caso, que a estratégia do encapsulamento é explorada sem que se exija do aluno classificá-­‐la. Em seguida, há uma análise longa e detalhada de todo o poema, que ressalta, dentre vários aspectos da leitura, a importância dos processos referenciais para a construção de sentidos, como se comprova no trecho destacado: Essa relação do “eu” do poema com a casa fica ainda mais evidente no final do texto: a “velha casa”, do verso 1, é chamada de “nossa velha casa”, no verso 15. Esse “eu”, então, está envolvido com o lugar. Repare que a escolha não foi “minha casa”. Ao dizer “nossa”, o “eu” revela uma experiência familiar com o local. (RAMOS, Heloisa et alii, 2009, v. 1, p. 17) Em outro momento do primeiro volume, a noção de “referenciação” retorna, mas ainda sem sistematização do conteúdo. Assim, com base na leitura da crônica de Moacyr Scliar, intitulada “Não roubarás” (p. 61), a primeira questão propõe: 139
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
1)
O texto tem um subtítulo: “Tinha certeza de que, se entrasse numa igreja para roubar, mais cedo ou mais tarde seria castigado” Títulos e subtítulos podem dar pistas do que vai acontecer numa narrativa. A certeza do castigo se confirmou? O assaltante foi castigado? Como? O objetivo é fazer com que o estudante perceba que os sentidos vão sendo construídos ao longo da leitura e que as estratégias de referenciação contribuem para tal. Nesse caso, a leitura do título e do subtítulo da crônica permite que se crie uma série de expectativas quanto ao desenrolar da história: o termo “roubar”, por exemplo, sugere a existência de um assaltante na história, assim como “castigo” por um roubo à igreja sugere “ação divina”. Se, no primeiro volume da coleção, a prática, de fato, se coloca como reflexo das concepções assumidas inicialmente, no segundo, as atividades que abarcam os estudos referenciais não revelam o mesmo, principalmente porque a sistematização do conteúdo e os exercícios propostos parecem se restringir à superfície textual. Assim, já no início do volume, aborda-­‐se o emprego de alguns pronomes, com base na ideia de que são 140
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
usados para “evitar repetições de algumas palavras, ou seja, (...) substituem substantivos ou expressões mencionados antes” (p. 14). Essa explicitação tem como objetivo principal discutir o uso dos pronomes pessoais retos e oblíquos, relacionando esta discussão à questão da variação linguística, quando são mencionados os usos na “linguagem informal” e na “norma culta”. Em seguida, são propostos alguns exercícios que não apresentam relação com texto algum, de modo que as frases de cada questão foram criadas sem relação com algum tema norteador que seja. Uma atividade, por exemplo, propõe que se reescrevam frases, substituindo os sintagmas nominais ou preposicionais por pronomes pessoais (p. 21): 4. Leia as frases abaixo e reescreva-­‐as substituindo a palavra repetida, que está sublinhada, por um dos seguintes pronomes: ele – ela – o – a – lhe; eles – elas – os – as – lhes. a) Minha amiga é uma pessoa maravilhosa. Minha amiga sabe como manter as amizades. b) O rapaz mudou-­‐se, mas o carteiro localizou o rapaz. c) O rapaz mudou-­‐se, por isso o carteiro não conseguiu localizar o rapaz. Outra atividade sugere que se siga um modelo (p. 26): 7. Leia o modelo e, a seguir, complete as frases. É preciso estudar as regras. 141
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
É preciso estudá-­‐las. a)
Eu gostaria de admirar o país. Eu gostaria de ___________________________________ b) Não consegui ouvir o pedido. Não consegui ____________________________________ c)
Esqueci-­‐me de grifar as palavras. Esqueci-­‐me de ___________________________________ O terceiro volume da coleção se inicia com a mesma lógica do primeiro: com base na proposta “diálogo com o texto”, é apresentada uma análise do conto “Essas meninas”, de Carlos Drummond de Andrade. Antes disso, em consonância com o que se entende por construção de sentidos, algumas questões pré-­‐
textuais sugerem que o aluno reflita, dentre outros aspectos, sobre o título e discorra sobre suas expectativas para o decorrer da leitura (p. 14). Essas meninas As alegres meninas que passam na rua, com suas pastas escolares, às vezes com seus namorados. As alegres meninas que estão sempre rindo, comentando o besouro que entrou na classe e pousou no vestido da professora; essas meninas, essas coisas sem importância. O uniforme as despersonaliza, mas o riso de cada uma as diferencia. Riem alto, riem musical, riem desafinado, riem sem motivo; riem. 142
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Hoje de manhã estavam sérias, era como se nunca mais voltassem a rir e falar coisas sem importância. Faltava uma delas. O jornal dera a notícia do crime. O corpo da menina encontrado naquelas condições, sem lugar ermo. A selvageria de um tempo que não deixa mais rir. As alegres meninas, agora sérias, tornaram-­‐se adultas de uma hora para outra, essas mulheres. ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos plausíveis. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 172. Em seguida, a própria análise do texto explora a importância dos processos referenciais para a construção de sentidos. Só é possível compreender, por exemplo, a transformação de “essas meninas” – título do texto – em “essas mulheres” – expressão que fecha o texto – a partir das inferências realizadas quanto à “notícia do crime”. Se a abordagem dessa questão, ao contrário, se restringisse à superfície textual, certamente teria comprometido uma leitura mais ampla do conto. Em outro momento da análise, a dêixis é explorada sem que para isso seja necessária a sua classificação. Há uma frase do texto que faz menção ao acontecimento trágico: “O corpo da menina encontrado naquelas condições, em lugar ermo”. Na análise, o sintagma “naquelas condições” é destacado a fim de 143
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
que se reflita com o leitor sobre a questão do conhecimento compartilhado: O leitor contemporâneo, que convive diariamente com o tipo de violência urbana a que Drummond está se referindo, sabe perfeitamente que “naquelas condições” deve significar que a menina havia sofrido violência física, podia talvez até estar nua. (RAMOS, Heloisa et alii, 2009, v.3, p. 15) A riqueza da leitura, muitas das vezes, está no “não dito” e, se a referenciação é explorada como um processo a serviço da produção/compreensão do texto, da construção de sentidos, é sinal de que a atividade apresentada nesta coleção cumpre o que se defende inicialmente em termos de um ensino produtivo da língua, sobretudo porque está comprometida com a formação crítica do leitor. Por fim, o quarto volume da coleção busca explorar a produção textual, discutindo, em especial, o processo de construção do texto argumentativo. Nessa perspectiva, o texto inicial – intitulado “Tecendo o texto” – retoma o conceito de texto apresentado nos volumes anteriores e defende a importância de sua unidade, isto é, a necessidade de entrelaçamento dos fios do “tecido” para formar um todo. Assim, pontua: “Deve haver afinidade entre as várias ideias que compõem o texto, e elas também devem estar dispostas em uma 144
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
ordem lógica” (p. 11). E, como a atenção está voltada para a escrita, reforça: “se seguirmos essas orientações, nosso texto dará ao leitor todas as possibilidades de ser compreendido” (p. 11). Logo em seguida, portanto, “coesão e coerência” se colocam como o primeiro ponto de discussão do volume, uma vez que a “unidade” mencionada no texto inicial é atribuída a esses dois conceitos, assim definidos: A coerência tem a ver com o sentido, a lógica entre as ideias, e a coesão tem a ver com o modo como as partes do texto estão encadeadas. Na maioria das vezes, a coesão conta com elementos linguísticos. Em alguns casos, o elemento linguístico responsável pela coesão pode interferir na coerência. (RAMOS, Heloisa et alii, 2009, v.4, p. 13) Desse modo, na análise inicial do texto “Os indesejáveis ratos”, de Francisco Luiz, é possível perceber uma atenção dada à interação autor-­‐texto-­‐leitor, uma vez que se coloca: Você compreendeu tudo o que o autor do texto apresentou porque acompanhou o encadeamento das ideias, ou seja, você se beneficiou da estratégia de coesão que foi usada no texto. Outro fator que contribuiu para sua compreensão foi a estratégia de coerência que o autor usou. No texto, todas as ideias estão relacionadas e voltadas a um objetivo, que é o de mostrar as doenças 145
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
causadas pelos ratos. (RAMOS, Heloisa et alii, 2009, v.4, p. 14) No entanto, no detalhamento da análise, notamos que os exemplos dados para reforçar o que se entende por coesão fragilizam a concepção dialógica antes defendida, porque propõem um olhar restrito à superfície textual. Em outros termos, o que se discute a respeito de coesão está ligado apenas à ideia de retomada de elementos anteriormente expressos no texto. Os próprios exemplos destacados pela análise comprovam isso: “naquela época”, “essa doença”, “esses animais”. Embora seja também relevante tratar desses exemplos básicos, a análise fica comprometida porque não avança na discussão, tampouco comenta sobre o processo de construção da coerência, defendida inicialmente. Em seguida, são propostos exercícios que seguem a mesma lógica da análise (p. 22): a)
Cada expressão sublinhada no texto remete o leitor a algo que foi tratado antes. Escreva que ideias são retomadas por: •
isso _______________________________________________ •
nesses ambientes _____________________________________ 146
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
•
esse tipo de solo ______________________________________ •
o material ___________________________________________ Em linhas gerais, é importante dizer que a coleção Viver, aprender, no que se refere à abordagem acerca da referenciação, apresenta algumas análises pertinentes, reflexo de uma proposta de trabalho comprometida com a formação crítica do leitor. No entanto, os volumes 2 e 4, em especial, acabam, de alguma forma, contradizendo a concepção defendida, porque propõem apenas exercícios que se restringem ao âmbito da superfície textual. Em última instância, percebemos a falta de unidade entre todos os volumes, de modo que uns se relacionam mais do que outros à concepção sociointeracionista-­‐dialógica da língua. 3.2. Coleção Tempo de aprender
Organizada em quatro volumes multidisciplinares, esta coleção abarca sete componentes curriculares, quais sejam: Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Ciências Naturais, Língua Inglesa e Artes. Embora se proponha um trabalho pedagógico disciplinar – ao contrário do que se entende por interdisciplinaridade –, há uma tentativa de articulação entre 147
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
os componentes, de modo que cada volume se estrutura em torno de dois eixos temáticos, explorados por todas as disciplinas: “Identidade”, e “Cidadania e leitura” no primeiro volume; “Meio ambiente”, e “Saúde e qualidade de vida” no segundo; “Cidadania e cultura” e “cultura de paz” no terceiro; “Trabalho e consumo” e “Globalização e novas tecnologias” no quarto. Ao contrário da primeira coleção analisada, Tempo de aprender não propõe uma reflexão mais ampla acerca da língua. Os textos apresentados no início de cada unidade ou de cada capítulo se restringem a discutir – muito brevemente – os temas que serão abordados, resgatando para isso algumas prováveis memórias de jovens e adultos. No entanto, falta um “conversa” mais intensa com o estudante sobre algumas questões que seriam pertinentes para o ensino da língua materna, que pudessem trazer reflexos da própria concepção defendida de língua, texto e leitura, por exemplo. São poucas as vezes em que essa “conversa” acontece e, em geral, quando acontece, não apresenta grandes desdobramentos, como o caso a seguir (p. 25): Ampliando o tema Para você, a língua também é uma forma de retratar um povo, uma cultura, 148
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
uma pessoa? A língua que falamos também constitui nossa identidade? Leia o texto a seguir... A língua falada representa, igualmente, uma das mais imediatas marcas de identidade social: “A fala de uma pessoa pode indicar seus sentimentos, o tipo de personalidade que tem, quem é. Alguns modos de falar são indicadores de características demográficas, tais como idade, sexo, ocupação, grau e tipo de educação, nação ou região de origem”. (Robinson, 1977:68) Dino Preti (Org.). Léxico na língua oral e na escrita. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2003. É possível perceber que a proposta de “ampliação do tema”, embora abarque uma discussão interessante, se apresenta de forma isolada, refletindo a falta de uma maior organicidade das discussões. Focando a análise para o tratamento da referenciação, no primeiro volume da coleção, pouco se observa a respeito desse tema. A título de exemplo, a proposta de atividade a seguir aborda o processo referencial de encapsulamento (p. 30): Atenção! Compro gavetas, Preciso guardar minhas lembranças, compro armários, As viagens que não fiz, cômodas e baús. Ciranda, cirandinha E o gosto de aventura Preciso guardar minha Que havia nas manhãs. 149
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infância, Os jogos da amarelinha, Preciso guardar meus talismãs Os segredos que contaram O anel que me deste Lá no fundo do quintal. O amor que tu me tinhas E as histórias que eu vivi. Roseana Murray. Classificados poéticos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004. 1.
Que palavras ou expressões ajudam a construir o ambiente da infância presente no texto? Transcreva-­‐as. A expressão referencial infância é retomada ao longo do texto pelos referentes jogos de amarelinha, ciranda, cirandinha, gosto de aventura, entre outros. No entanto, o tratamento dado à referenciação se esgota nessa questão, ou seja, desperdiça um desdobramento maior, que pudesse provocar/exigir uma leitura mais crítica por parte do aluno, mais comprometida com a reflexão acerca da língua e de todas as estratégias do texto e menos preocupada com a busca de respostas no poema. No segundo volume da coleção, há outros poucos exemplos de atividades que se proponham a tratar dos processos de referenciação. Assim, com base na leitura de uma notícia 150
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
publicada na internet, há questões que tratam da relação entre título e subtítulo do texto (p. 35), assim apresentados: Calada mais uma voz de defesa dos povos da floresta Irmã Dorothy Stang é assassinada a sangue frio no Pará No entanto, as questões, como se notam a seguir, não propõem uma discussão mais ampla sobre as estratégias referenciais utilizadas no texto (p. 36). b) A quem se refere a manchete? c)
A manchete diz o que significa essa pessoa para a comunidade? d) Para você, o que quer dizer “uma voz de defesa dos povos da floresta”? Os exercícios poderiam tratar da forte relação que se pode estabelecer entre referenciação e intencionalidade do texto. Apesar de o gênero ser uma notícia e ter como objetivo principal informar, há um posicionamento assumido, que está refletido nas estratégias de referenciação utilizadas. Os termos “calada” e “uma voz de defesa” dizem muito sobre a argumentação construída. É possível observar também que a expressão referencial “calada”, presente no título, é 151
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
recategorizada por outra expressão referencial no subtítulo: “assassinada”. Tratar dessas questões, sem dúvida, contribuiria para a formação crítica do leitor, proposta que deveria ser central no ensino da língua materna. No último volume da coleção, os poucos exercícios encontrados que abordam a referenciação se restringem a tratar da substituição de elementos expressos no texto por pronomes. Assim, no estudo dos pronomes demonstrativos, se observam questões como (p. 11): a)
Na frase “– Que está fazendo esta gente, seu José Felismino?”, a palavra esta se refere a que outra palavra do texto? 2. Na frase “Aquilo era todos os dias, fizessem eles muito ou fizessem pouco”, a palavra aquilo refere-­‐se a que situação? Explique sua resposta com base nas informações do texto. Quanto à sistematização dos conteúdos, é possível conferir uma abordagem bastante tradicional. No decorrer da análise dos quatro volumes, vão surgindo quadros que apresentam, a cada momento, uma classe de palavra diferente. Com os pronomes, por exemplo, acontecem deste modo: ora se discutem os pessoais, ora os possessivos, ora os demonstrativos. 152
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
No entanto, em nenhum momento, notamos o uso do pronome relacionado às estratégias de referenciação. Em linhas gerais, podemos afirmar que a coleção Tempo de aprender não parece acompanhar as discussões teóricas a respeito do ensino da língua, tampouco dos estudos textuais. No que diz respeito aos processos referenciais, esse atraso se mostra ainda maior. 4. REFERENCIAÇÃO: ALGUMAS
PROPOSTAS DE ATIVIDADES
Assumindo o texto como lugar de interação e de constituição dos sujeitos como construtores sociais, seguindo a concepção sociocognitivo-­‐dialógica da língua, torna-­‐se fundamental atrelar pesquisa a ensino. Em outras palavras, é possível perceber o quanto o ensino de língua materna precisa ainda se articular com os estudos textuais, a fim de promover, de fato, a formação de leitores críticos. Nesse sentido, com o objetivo de trazer contribuições para o trabalho com o texto em sala de aula, propomos, a seguir, algumas atividades que contemplem o estudo dos processos referenciais. 153
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Para isso, foram selecionados dois textos midiáticos que já estavam inseridos na coleção Tempo de aprender, analisada neste artigo. Ambos os textos fazem parte da unidade “Trabalho e consumo”, abarcada no volume 4. Portanto, vale reforçar que as atividades propostas terão os estudantes das séries finais do Ensino Fundamental da EJA como público alvo. 1ª proposta de atividade: QUESTÃO PRÉ-­‐TEXTUAL: Observe o título do texto que você irá ler e, com base no seu conhecimento de mundo, explique o jogo de sentidos proposto. Sugestão de resposta: Elizabeth é o nome da rainha da Inglaterra, muito conhecida pelo mundo todo. Portanto, o jogo de sentidos está na relação entre “Elizabeth” e “rainha”. ENTREVISTA Elizabeth, rainha do campo Mulher do líder João Pedro Teixeira, das Ligas Camponesas da Paraíba, assassinado por latifundiários, ela esteve com Jango e continua acreditando na reforma agrária. Ela é que se pode chamar de símbolo da resistência. Por tudo o que passou 154
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
na vida, desde que fugiu de casa aos 15 anos para se casar com um operário semialfabetizado, e foi desprezada pela família, até ter de sair de Sapé, na Paraíba, fugindo da perseguição da ditadura militar, para São Gabriel, no Rio Grande do Norte, onde viveu na clandestinidade, com um nome falso, por vários anos. [...] Passados quarenta anos do golpe que derrubou João Goulart, Elizabeth Teixeira, 79 anos completados no dia 13 de fevereiro, lembra como se fosse hoje tudo o que passou. E, embora conserve a calma de quem muito viveu e aprendeu com a vida, não foge de perguntas e se inflama quando lhe perguntam sobre questões políticas antigas ou atuais, principalmente se o assunto é a reforma agrária, pela qual ela aprendeu a lutar com o pai de seus onze filhos, João Pedro, fundador das Ligas Camponesas na Paraíba. Apesar de todo sofrimento que passou, além do assassinato do marido e da perda de três filhos, [...] Elizabeth não guarda mágoas nem rancor, embora deixe transparecer uma infinita tristeza no olhar. Como a senhora se sente sendo homenageada pelas mulheres paraibanas como símbolo de luta e resistência? Eu me sinto muito feliz pela consideração das companheiras à minha pessoa. Isso é uma coisa, minha filha, que deixa a gente emocionada. As mulheres se lembrarem de mim, na idade em que estou, já velha, isso é muito gratificante. Essas mulheres tão valorosas, que lutam no dia-­‐a-­‐dia para ver se melhoram as condições do nosso povo. A senhora também foi homenageada recentemente no Paraná, pelo MST... Pois é, eu estive lá e fiquei muito comovida. Tinha muita gente, 155
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
muitos companheiros, muitos jovens. Eles queriam saber a história de João Pedro, como tinha sido a luta dele aqui na Paraíba. Lembrei muito do que o João Pedro me falava, quando chegava naquelas fazendas, naqueles sítios daquela época, e via crianças morrendo de fome, sem direito à alfabetização, numa situação muito difícil, e ele sonhava que um dia tudo isso ia melhorar, que ia ser implantada uma reforma agrária para que o homem do campo tivesse condições de sobreviver dignamente com suas famílias. E até hoje isso não se concretizou. [...] Lourdinha Dantas. Revista Caros amigos. nº n19, mar. 2004. 1. Com base na leitura do texto, responda: a) Por que Elizabeth é designada rainha do campo? Sugestão de resposta: Elizabeth é designada rainha do campo, principalmente, porque era esposa do líder João Pedro Teixeira, fundador das Ligas Camponesas da Paraíba. b) Destaque do texto expressões que fazem referência à Elizabeth. Sugestão de resposta: As expressões que fazem referência à Elizabeth são “mulher do líder” e “símbolo da resistência”. c) O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), muitas vezes, é noticiado na mídia com uma 156
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
conotação negativa. É o caso de algumas manchetes de jornal que fazem referência ao Movimento usando termos como “invasores de terra”, por exemplo. Ao contrário disso, é possível perceber que o texto “Elizabeth, rainha do campo” assume um posicionamento favorável ao MST. Explique como esse posicionamento é marcado pelas estratégias de referenciação observadas no texto. Sugestão de resposta: Há expressões no texto que refletem esse posicionado favorável ao MST: “luta”, “resistência", dentre outras. 2ª proposta de atividade: Medida afirmativa Há uma proposta simplista e, ao final das contas, inadequada de combater a desigualdade no acesso ao ensino superior no Brasil: o estabelecimento de cotas em universidades públicas, seja para negros, seja para alunos do ensino médio oriundos de escolas públicas. Estados como a Bahia e o Rio de Janeiro optaram por essa via, que, além de dúbia na origem (como selecionar afrodescendentes ou como garantir que o estudante da escola pública seja necessariamente carente?), atenta contra o princípio meritocrático que deve prevalecer quando o assunto é 157
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ensino superior. Felizmente, na esfera federal houve resistência à ideia das cotas. O atendimento à justa demanda pela ruptura da segregação social no acesso ao ensino superior, nessa instância, começa a dar-­‐se de outra maneira. Em medida provisória editada na terça-­‐feira, criou-­‐se um programa federal para transferir recursos a iniciativas – seja na área pública, seja na privada – como a instalação de cursos pré-­‐vestibulares ou a concessão de bolsas de estudo a alunos negros, índios e/ou carentes. Não se trata, portanto, de abrir uma porta privilegiada de acesso a vagas universitárias. Trata-­‐se de proporcionar melhores condições de disputa por uma vaga a alunos de estratos sociais historicamente marginalizados. Trata-­‐se, também, de ajudar financeiramente um aluno pobre que já tenha conquistado a vaga, dando-­‐lhe um incentivo para que faça o curso até o fim. Evidentemente esse tipo de iniciativa, embora conceitualmente melhor que a das cotas, também é um paliativo. A solução definitiva virá somente quando o Estado brasileiro puder proporcionar uma educação básica e média de nível equiparável à das melhores instituições particulares. Massificar o ensino de qualidade continua a ser um dos maiores desafios para que a democracia no Brasil se enraíze socialmente. Folha de S. Paulo, 29 ago. 2002. 1. O editorial Medida afirmativa discute a temática das cotas em universidades públicas. Com base na leitura: 158
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a) Destaque do texto algumas expressões que fazem referência ao título medida afirmativa. Sugestão de resposta: As expressões que fazem referência à medida afirmativa são “proposta simplista e (...) inadequada”, “estabelecimento de cotas nas universidades públicas”, entre outras. b) É possível perceber que o texto assume um posicionamento diante da temática das cotas no acesso ao ensino superior público. Diga se este posicionamento é contrário ou favorável ao sistema de cotas, fundamentando-­‐se nas estratégias referenciais utilizadas no texto. Sugestão de resposta: O texto apresenta um posicionamento contrário ao sistema de cotas no acesso a universidades públicas. É possível perceber isso por meio das expressões referenciais utilizadas: “proposta simplista e (...) inadequada”, “via (...) dúbia na origem”, “porta privilegiada”, entre outras. Certamente, outras questões sobre referenciação poderiam ser formuladas com base nesses textos. No entanto, as 159
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
questões apresentadas foram eleitas, principalmente considerando a forte relação que estabelecem com a interpretação dos textos, de modo que um olhar mais crítico por parte do estudante é exigido no decorrer da leitura. Assim, as questões relativas ao texto “Elizabeth, rainha do campo” pretendem que o aluno recupere o conhecimento de que Elizabeth é nome de rainha e perceba, ao longo da leitura, o que vem a ser a “rainha do campo”. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que a seleção deste texto do livro didático considerou o posicionamento favorável ao MST, discussão bastante pertinente, em especial em turmas de EJA. O mesmo se pode dizer a respeito do tema tratado no editorial – sistema de cotas em universidades públicas – uma vez que esse debate é fundamental para a formação de tal público. A argumentação do texto – contrária ao sistema de cotas – é construída por meio de expressões que fazem referência à medida afirmativa anunciada no título. Assim, uma formação crítica do leitor deve estar comprometida não somente com a identificação dessas marcas linguísticas no texto, senão com o posicionamento crítico dos estudantes leitores. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
160
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
O presente artigo propôs discutir a abordagem dos processos referenciais no ensino de língua materna. Assim, com base na concepção sociocognitivo-­‐dialógica da língua, que assume o texto como lugar de interação e de constituição dos sujeitos enquanto construtores sociais, buscamos refletir sobre a importância do trabalho com o texto em sala de aula, de modo que também faça parte dessa reflexão o papel do ensino quanto à formação crítica de leitores. Nesse sentido, a partir da análise do tratamento dado à referenciação pelos livros didáticos, pudemos constatar que ensino e pesquisa ainda precisam dialogar. Em geral, percebemos uma abordagem que privilegia a superfície textual, isto é, que atrela o estudo da referenciação aos exercícios de retomada de elementos anteriormente expressos no texto, muitas vezes ignorando a relevância dos processos referenciais para a construção de sentidos. Diante dessa questão, é preciso admitir que alguns equívocos percebidos no tratamento dado à referenciação nos livros didáticos refletem, de modo mais grave, concepções de língua, texto e leitura que pouco – ou nada – consideram a interação autor-­‐texto-­‐leitor. Nesse sentido, torna-­‐se ainda mais 161
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
difícil um ensino que se proponha a tratar da dinâmica de construção dos objetos do discurso, dos efeitos cognitivo-­‐
discursivos da referenciação e desta como um fenômeno fundamental no processo de construção de sentidos. Nesse caso, é preciso reforçar: a superficialidade que se critica nos exercícios sobre referenciação propostos nos livros didáticos é a mesma que, talvez, permeie a relação entre pesquisa e ensino. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAGNO, M. Gramática, pra que te quero? Os conhecimentos linguísticos nos livros didáticos de português. Curitiba: Aymará, 2010. BRASIL. Guia de livros didáticos: PNLD 2011: EJA. Ministério da Educação. Brasília: MEC; SECAD, 2010. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. CAVALCANTE, Mônica. Referenciação: sobre coisas ditas e não ditas. Fortaleza: EdUFC, 2011. ______. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2012. 162
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
ELIAS, Vanda M. (org.) Ensino de língua portuguesa: oralidade, escrita, leitura. São Paulo: Contexto, 2011. KOCH, Ingedore; ELIAS, Vanda. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2007. ______. O texto e a construção de sentidos. São Paulo: Contexto, 2002. MARQUESI, Sueli. Referenciação e intencionalidade: considerações sobre escrita e leitura. In: CARMELINO, A. C.; PERNAMBUCO, J.; FERREIRA, L. A. (org.). Nos caminhos do texto: atos de leitura. Col. Mestrado em Linguística, v. 2. São Paulo: EdUnifran, 2007. p. 215-­‐233. PAULIUKONIS, Maria A. Texto e Contexto. In: VEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F. (org.). Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2011, p. 239-­‐258. STAUFFER, Anakeila de B. Concepções de Educação e Livro Didático: dialogando sobre suas relações na formação do agente comunitário de saúde. In: STAUFFER, A. B.; MARTINS, C. M. Educação e Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV / Fiocruz, 2007, p. 159-­‐
191. TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática. 11. ed. São Paulo: Cortez. 163
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
MANUAIS DIDÁTICOS
OLIVEIRA, Cícero de. et alii. Tempo de Aprender. Educação de Jovens e Adultos: 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental, 2. ed. IBEP. São Paulo: 2009. RAMOS, Heloisa et alii. Viver, aprender. Educação de Jovens e Adultos: segundo segmento do ensino fundamental. São Paulo: Global: Ação Educativa, 2009. 164
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Os processos de referenciação nos
livros didáticos: análise de textos
jornalísticos
MACHADO, Luana (UFRJ) 1. INTRODUÇÃO
O livro didático é o principal mediador dos conhecimentos partilhados entre professores e alunos: os docentes tomam-­‐no como principal norteador na busca do que aplicar durante o ano; os discentes, por sua vez, concebem-­‐no como principal reservatório de saber. Sendo assim, há anos a elaboração desse material é discutida, com vistas ao seu aprimoramento, não só em relação ao conteúdo, mas também às questões metodológicas e novas demandas educacionais. A mais recente reformulação foi instaurada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), na década de 90, que trouxeram orientações inovadoras para os docentes. Em Língua Portuguesa, os avanços foram de grande importância, uma vez que a língua deveria passar a ser estudada do ponto de vista sociointeracional. 165
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Nessa perspectiva, língua é um sistema de signos específico, histórico e social, que possibilita a homens e mulheres significar o mundo e a sociedade. Aprendê-­‐la é aprender não somente palavras e saber combiná-­‐las em expressões complexas, mas apreender pragmaticamente seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas entendem e interpretam a realidade e a si mesmas. (PCN, 1998, p.20) Dessa forma, o trabalho, estritamente voltado para itens gramaticais, utilizando o texto como mero pretexto, cedeu espaço para estudos de interpretação e produção textual dos mais variados gêneros. Além de observar os tópicos gramaticais por meio da tríade uso>reflexão>uso. O modo de ensinar, por sua vez, não reproduz a clássica metodologia de definição, classificação e exercitação, mas corresponde a uma prática que parte da reflexão produzida pelos alunos mediante a utilização de uma terminologia simples e se aproxima progressivamente, pela mediação do professor, do conhecimento gramatical produzido. (PCN, 1998, p.29) Todavia, tudo isso é o que propõem os PCN, não necessariamente o que, realmente, trazem os manuais. Estudos apontam as diferenças entre o que determinam os PCN e o que aparece nos livros didáticos de língua portuguesa (LDP), 166
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
mostrando que, na teoria, os LDP já estão sendo concebidos segundo as orientações estabelecidas. Entretanto, ao serem analisados, percebe-­‐se que parte das antigas práticas continua sendo executada. Os estudos de tópicos gramaticais, por exemplo, ainda são, de certa forma, descontextualizados, não se levando em consideração a teoria sociointeracional proposta. Assim, continuam sendo trabalhados com base em fundamentos que não mais dão conta dos fenômenos da língua e de um ensino libertador. Portanto, em meio a este cenário confuso entre o que se propõe e o que realmente é posto em prática, este artigo visa investigar, em duas coleções voltadas para o Ensino Fundamental (EF), do segundo segmento, sua adequação aos PCN quanto ao assunto “processos de referenciação”. Analisaremos, neste trabalho, de que maneira o tópico é abordado pelos livros, bem como as atividades propostas. A ideia é ver se, realmente, está sendo realizada uma abordagem sociointeracional ao serem explicados os processos de referenciação e sua aplicabilidade nos textos das coleções. Cabe ressaltar que, em virtude do grande volume de texto presente em cada coleção, de gêneros variados, para a análise 167
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
das atividades foram selecionados os textos jornalísticos, a fim de tornar a apreciação mais enxuta e objetiva. Para realizar tal investigação, este artigo se fundamenta nos pressupostos teóricos da Linguística Textual, conforme Cavalcante (2011), Koch (2011), Koch e Elias (2011), Koch e Fávero, (2008), Koch e Marcuschi (1998), Marcuschi (2001), com foco nos processos de referenciação, segundo uma abordagem sociointeracional. No item a seguir, serão aprofundados os seus conceitos dessa abordagem. 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1.
A Linguística de Texto
Até a década de 60, os estudos sobre a linguagem voltavam-­‐se para a gramática da frase, do enunciado. Porém, a necessidade de preencher algumas lacunas deixadas pelas gramáticas normativas motivou o surgimento desse novo ramo de estudo: a Linguística de Texto (LT), termo primeiramente empregado por Weinrich (1966, 1967, apud FÁVERO e KOCH, 2008, p.11). Segundo Fávero e Koch (ibidem), a LT tem “como objeto particular de investigação, não mais palavra ou a frase, mas sim o 168
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
texto, por serem os textos a forma específica de manifestação da linguagem”. Assim, o domínio de análise deixou de ficar restrito a frases retiradas de obras literárias, ou até mesmo inventadas para a realização dos estudos gramaticais. O texto, tanto oral quanto escrito, passou a ser o cerne das investigações, com todas as suas relações lógico-­‐semânticas, o que permite concebê-­‐lo como uma unidade de sentido. Dentro do quadro da LT, texto é todo objeto que tem textualidade. Para Beaugrande e Dressler (1981, apud KOCH e TRAVAGLIA, 1999), são sete os fatores que determinam sua existência: a situcionalidade, a intencionalidade, a aceitabilidade, a informatividade, a intertextualidade e a coesão e a coerência – sendo as cinco primeiras externas ao texto e as duas últimas centradas no texto. Com base nisso, não só os itens cotextuais, mas também os contextuais passaram a fazer parte dos estudos do texto, que começou a ser enxergado como um construto socialmente construído, criado por uma pessoa, dirigido a outra(s) com objetivos e finalidades, de maneira interativa. Isto é, O texto passa a ser considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos. Desta forma há lugar, no texto, para 169
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
toda uma gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente detectáveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes da interação” (KOCH, 2011, p. 17) Dentro dessa abordagem, um dos aspectos citados acima – a coesão – é enxergado de outra forma. A coesão não se encaixa mais na conceituação de um simples mecanismo da estrutura superficial do texto, capaz de realizar retomadas e projeções correferenciais. Sua análise tem como preocupação a forma como é estruturada na superfície textual, aliada aos elementos sociocognitivos, para a criação de sentido. Na segunda metade da década de 90, o estudo desses aspectos textuais ganhou espaço e novas análises. Assim, a expressão Referenciação veio à tona, com trabalhos de diversos estudiosos tentando organizar e explicitar os processos referenciais que não só ocorrem na superfície textual, mas também no processo interacional. 2.2.
Referência e Referenciação
A Referência é preocupação constante dos estudiosos da linguagem, principalmente daqueles que querem entender como as línguas se referem ao mundo. Segundo Cavalcante (2011, 170
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
p.19), tal estudo, “por um longo tempo, ocupou a mente dos filósofos da linguagem e dos lógicos, bem antes de interessar aos linguistas”. Existem duas visões bem opostas em relação ao tema. A primeira entende que há uma completa correspondência entre as palavras e as coisas, ou seja, a língua é um “espelho da realidade”. Referir significa, portanto, usar meios linguísticos para representar objetos-­‐do-­‐mundo, de maneira estável e discretizada. A outra visão, mais atual, na qual se fundamenta este artigo, baseia-­‐se na concepção de que “a língua é heterogênea, opaca, histórica, variável e socialmente constituída, não servindo como mero instrumento de espelhamento da realidade.” (KOCH e MARCUSHI, 1998, p. 173). Assim, os elementos referidos em um texto deixam de ser objetos-­‐do-­‐mundo e passam a ser considerados objetos-­‐do-­‐discurso. Ou seja, entidades que são construídas no e pelo discurso. Como afirmam Marcuschi e Koch (1998, p. 5), não é o caso de negar a existência da realidade extra-­‐mente, nem estabelecer a subjetividade como parâmetro do real. Nosso cérebro não opera como um sistema fotográfico do mundo, nem como um sistema de espelhamento, ou seja, nossa maneira de ver e 171
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
dizer o real não coincide como o real. Ele reelabora os dados sensoriais para fins de apreensão e compreensão. E essa reelaboração se dá essencialmente no discurso. Também não se postula uma reelaboração subjetiva, individual: a reelaboração deve obedecer a restrições impostas pelas condições culturais, sociais, históricas e, finalmente, pelas condições de processamento decorrentes do uso da língua. De acordo com esta concepção, os referentes não são estáveis e pré-­‐existentes, mas criados e recriados, de acordo com o ponto de vista dos interlocutores. Assim, não cabe mais usar o termo Referência, associado a uma visão representacionalista da língua, estática. O termo mais apropriado é Referenciação, que traz a noção de processo, atividade dinâmica que se constitui na interação discursiva. Quanto a essa nova perspectiva, segundo Koch (2001, p. 81), Esta posição implica, necessariamente, uma noção de língua que não se esgota no código, nem seja concebida apenas como um sistema de comunicação que privilegia o aspecto informacional ou ideacional. A discursivização ou textualização do mundo por via da linguagem não se dá como um simples processo de elaboração de informação, mas de (re)construção do próprio real. Ao usar e manipular uma forma simbólica, usamos e manipulamos tanto o conteúdo como a estrutura dessa forma. E, deste modo, também 172
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
manipulamos a estrutura da realidade de maneira significativa. E é precisamente neste ponto que reside a ideia central de substituir a noção de referência pela noção de referenciação, tal como postulam Mondada e Dubois (1995). 2.3.
A Referenciação
Segundo Koch e Elias (2011, p. 123), denomina-­‐se referenciação as diversas formas de introdução, no texto, de novas entidades ou referentes. Quando tais referentes são retomados mais adiante ou servem de base para a introdução de novos referentes, tem-­‐se o que se denomina progressão textual. (grifos do autor). Além disso, tanto a referenciação quanto a progressão textual estão envolvidas na “construção e reconstrução de objetos de discurso” (ibidem). Entretanto, as duas estratégias são englobadas pelo nome Referênciação, que é, portanto, uma atividade discursiva. Em obra recente, Cavalcante (2011) descreve toda a evolução dos estudos de referenciação e busca formatar um quadro teórico com os diferentes tipos de processos referenciais. Com base nessa obra, e também em textos de Koch e Marcuschi, explicitaremos tais processos e suas caraterísticas. 173
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
2.3.1.
Os
processos
Introdução
referenciais:
referencial
e
anáfora direta
Assim como Koch, Marcuschi e outros autores, Cavalcante afirma que os processos inferenciais se dividem em dois agrupamentos principais: a introdução de novos referentes e a manutenção desses referentes no texto. O primeiro grupamento caracteriza-­‐se pelo aparecimento de entidades no texto pela primeira vez, recebendo o nome de introdução referencial, como observamos no exemplo de Cavalcante (2011, p. 54): O sujeito chega para o padre e pergunta: – Padre, o senhor acha correto alguém lucrar com os erros dos outros? – É claro que não, meu filho! – Então me devolve a grana que eu te paguei para fazer o meu casamento. (piada, As melhores piadas de Casseta e Planeta, v.4). No exemplo em questão, os termos “sujeito” e “padre” introduzem referentes que ainda não foram citados no texto. Ou seja, aparecem pela primeira vez, sem nenhum antecedente. 174
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
O segundo agrupamento, responsável pela manutenção dos referentes no texto, denominado pela autora como “reino das anáforas” (2003, p. 108), diz respeitos aos processos anafóricos, sejam eles diretos, indiretos, com dêiticos ou sem dêiticos; de maneira remissiva, prospectiva, ou para ambas as direções. A fim de podermos apresentar suas especificidades, apresentaremos as anáforas diretas (AD) e as anáforas indiretas (AI) em tópicos distintos. Em virtude do espaço, não serão tratadas, aqui, as nuances dos dêiticos. As anáforas diretas se caracterizam pela relação de correferencialidade entre dois elementos do texto. Isto é, um termo é retomado de maneira direta por outro elemento do contexto, como vemos no exemplo de Koch e Elias (2011, p. 124): Nova espécie de ave é descoberta na Grande SP O Ibama anunciou ontem a descoberta de uma nova ave, o bicudinho-­‐do-­‐brejo-­‐paulista. O Stymphalornissp.nov (a terminação indica que o animal não recebeu a denominação definitiva da espécie) foi encontrado pelo professor Luís Fábio Silveira, do Departamento de Zoologia da USP, em áreas de brejo nos municípios de Paraitinga e Biritiba-­‐Mirim, na Grande São Paulo, em fevereiro. O pássaro tem pouco mais de 10 centímetros de comprimento, capacidade pequena de voo e penugem cinza. 175
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
A introdução referencial, sublinhada, é retomada pelas anáforas diretas, destacadas em cinza. Observe que é possível ancorar cada retomada na introdução referencial, presente no cotexto. Cabe ressaltar que, segundo Cavalcante (2003), as correferências podem ser de três tipos: co-­‐significativas, recategorizadora sou nenhuma das duas: 1) Anáfora correferencial co-­‐significativa: termo retomado por meio de expressões sinônimas ou repetições (apesar de nem toda repetição ser, necessariamente, co-­‐
significação). 2) Anáfora correferencial recategorizadora: retomada por meio da “renomeação” do termo, conforme as necessidades e estratégias discursivas, podendo ser realizada por hiperônimos, expressões definidas, nomes genéricos e pronomes Como afirma a autora: as recategorizações remodulam a forma de designação, transformando-­‐a, ou seja, recategorizando-­‐a, ou pela utilização de um termo superordenado, para que o enunciador se esquive de repetições estilisticamente indesejáveis, ou pela utilização de expressões com alguma carga avaliativa.” (CAVALCANTE, 2003, p. 110) 176
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
3) Anáforas correferenciais não-­‐co-­‐significativas e não-­‐
recategorizadoras: retomadas realizadas por meio de pronomes pessoais. Essas subdivisões são válidas para as anáforas correferenciais totais. A autora divide as anáforas correferenciais em totais e parciais; para esta última, as estratégias são outras: Para não confundir com as anáforas indiretas, que se instauram muitas vezes por uma relação de parte-­‐todo, optamos por circunscrever estes casos às repetições do sintagma antecedente, precedidas de um quantificador, ou de um adjetivo, imprimindo ao anafórico a idéia de parte de um conjunto não-­‐unitário. Por vezes, o nome nuclear é elidido por economia lingüística e por razões de estilo [...] (CAVALCANTE, 2003, p. 112) Percebe-­‐se, portanto, que, independente das subdivisões, para as anáforas diretas o importante é ressaltar o seu valor correferencial. A âncora do termo referido está presente no texto de maneira clara. É possível identificá-­‐la sem grandes esforços cognitivos. 177
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
2.3.2.
A
questão
das
anáforas
indiretas
Opostamente às AD, as anáforas indiretas (AI) são caracterizadas por não apresentar correferencilidade com nenhum termo do texto. Segundo Marcuschi (2001, p. 217), a AI, geralmente, é constituída por expressões nominais definidas ou pronomes interpretados referencialmente sem que lhes corresponda um antecedente (ou subseqüente) explícito no texto. Tratamos de uma estratégia endofórica de ativação de referentes novos e não de uma reativação de referentes já conhecidos, o que constitui um processo de referenciação implícita. Em conformidade com o autor, Koch (2011, p. 107) afirma que as anáforas indiretas consistem no emprego de expressões definida anafóricas, sem referente explícito no texto, mas inferível a partir de elementos nele explícitos, isto é, trata-­‐se de uma configuração discursiva em que se tem um anafórico sem antecedente literal explícito [...], que pode ser reconstruído, por inferência, a partir do co-­‐texto precedente. 178
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Na mesma linha de raciocínio, Cavalcante (2011, p. 58) explicita que ocorre a AI quando não há correferencialidade entre os termos (o introduzido e o retomado) e, por isso, é necessário recorrer a nexos cognitivos mais complexos.Para corroborar tal descrição, a autora utiliza o seguinte exemplo: O Prefeito foi visitar o hospício a cidade. Chegando na biblioteca, percebe que tem um louco, de cabeça para baixo, pendurado no teto. Preocupado, comenta com o diretor do hospício: – O que é que esse louco está fazendo aí no teto? – Ele pensa que é um lustre. – Mas é muito perigoso, ele pode cair e se machucar. – Por que vocês não o tiram do teto? – Mas e, à noite, como é que a gente vai fazer para ler no escuro? (piada, Coleção 50 piadas – loucos, de Donaldo Buchweitz) A partir do exemplo, a autora mostra que os termos “Prefeito” e “hospício” introduzem novos referentes. Outros termos e expressões, como “esse louco” e “ele”, retomam um referente presente no texto de maneira direta: “um louco”. Porém, “biblioteca”, “diretor” e “um louco” são exemplos de AI, pois se referem à expressão “hospício da cidade” não de maneira direta, mas por relações metonímicas e funcionais. A “biblioteca” 179
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
faz parte do hospício, já “diretor” e “um louco” são agentes desse ambiente. Percebe-­‐se, assim, que a AI tem uma dupla função. Nos dizeres de Marcuschi (2001, p. 224), ela produz uma “tematização remática”, porque ativa um novo referente e, ao mesmo tempo, o ancora em um universo textual já dado. Segundo o autor (ibidem): Há, pois, algo similar a uma ativação-­‐reativação na continuidade do domínio referencial. Assim, podemos dizer que a AI é uma espécie de ação remática e temática simultaneamente na medida em que traz a informação nova e a velha, ou seja, produz uma "tematização remática. Marcuschi (2001, p. 226) propõe ainda uma tipologia das AI, subdividindo-­‐as em dois tipos: tipos semanticamente baseados e tipos conceitualmente baseados: Para sua solução, os tipos (I) exigem estratégias cognitivas fundadas em conhecimentos semânticos armazenados no léxico (mais especificamente ligadas a âncoras lexicais precedentes) e estão vinculados a papéis semânticos. Já os tipos (II) exigem estratégias cognitivas fundadas em conhecimentos conceituais baseados em modelos mentais, conhecimentos de mundo e enciclopédicos (mais especificamente vinculados ao modelo de mundo 180
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
textual presente no co(n)texto) e mais ligados a processos inferenciais gerais. Ao final de seu estudo, o autor postula ainda que as AI possam ser um caso de subespecificação da língua, em relação a uma das máximas griceanas – “seja relevante”. De acordo com essa máxima, não devemos ser simplistas demais, em um texto, a ponto de deixar lacunas, porém não devemos ser prolixos demais, explicitando a mais do que seria necessário. Dessa forma, a AI funcionaria como pistas de informações inferíveis por parte do receptor, que auxiliam o entendimento. 2.3.3.
As
anáforas
indiretas
encapsuladoras
Segundo Cavalcante (2011, p. 73), as anáforas encapsuladoras são tidas como um tipo peculiar de AI, uma vez que não retomam nenhum objeto-­‐do-­‐discurso pontualmente, mas se referem a conteúdos espalhados pelo texto. Assim, há uma recuperação difusa de informações e que este é o traço mais típico das anáforas encapsuladoras; é o que lhes confere o caráter de anáfora também indireta: ser não correferencial e ter um poder de resumir informações cotextuais e contextuais. 181
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Ainda segundo a autora, o que diferencia as AI propriamente ditas das encapsuladoras é o poder destas últimas de resumir, sintetizar conteúdos proposicionais, inteiros, precedentes ou subsequentes. Há autores que especificam os rótulos de maneira distinta das anáforas encapsuladoras. Porém, não faremos essa distinção aqui, seguindo o mesmo raciocínio de Cavalcante (2011). Para exemplificar as anáforas encapsuladoras, vejamos um exemplo de Koch e Elias (2011, p. 130). Gosto de beber uma cervejinha, falo palavrão e não vou deixar de ter amizade com alguém por ser gay, assim como acredito que o uso da camisinha é importante para prevenir doenças e até mesmo a gravidez”, diz Érika Augusto da Silva, 20, cabelos avermelhados, quatro furos na orelha. O depoimento não faria diferença se tivesse sido colhido em um colégio ou numa rave. Mas o ambiente de Érika é outro. Única católica praticante da família, neta de evangélicos, ela frequenta um grupo de jovens católicos há quatro anos e vai à igreja pelo menos duas vezes por semana. 182
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Em agosto, pretende realizar um desejo antigo: participar de sua primeira Jornada Mundial da Juventude. [...] Fonte: Folha de S. Paulo, 10 abr. 2005. O Primeiro referente (sublinhado) sumariza tudo o que foi dito pela entrevistada. Assim, não é possível encontrar um termo específico ao qual o referente, “o termo”, se ligue. O mesmo ocorre para o referente destacado em cinza. A única diferença entre os dois é que o primeiro é retrospectivo, e o segundo, prospectivo. Cabe ressaltar, ainda, o valor avaliativo presente nas anáforas encapsuladoras. Ao resumir conteúdos proposicionais em uma determinada expressão ou termo, a escolha lexical realizada apresenta o ponto de vista do enunciador, contribuindo para a “transmissão de impressões avaliativas e para a condução argumentativa do texto” (CAVALCANTE, 2011, p. 76). Para tentar agregar tudo o que foi dito até agora, abaixo segue o quadro, criado por Cavalcante (2011, p.60), a fim de sintetizar os processos de referenciação. 183
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Processos referenciais atrelados à menção Anáforas Introdução Referencial Anáforas Indiretas (não correferenciais) Anáforas Diretas Anáforas Indiretas (correferenciais) Propriamente Ditas Anáforas Indiretas Encapsuladoras 3. O QUE OS LDLP FALAM SOBRE
REFERENCIAÇÃO
Com base no aporte teórico aqui explicitado e também nas orientações dos PCN, será feita uma análise de duas coleções de LDLP: Português: a arte da palavra, de Gabriela Rodella, Flávio Nigro e João Campos; e Português: ideias & linguagens, de Dileta Delmanto e Maria Da Conceição Castro. Tal análise visa identificar a maneira como tais materiais abordam os processos de referenciação. A fim de tornar o levantamento mais objetivo, cada coleção será abordada separadamente. Além disso, para a apreciação das atividades propostas, serão levados em consideração apenas os textos jornalísticos, em virtude o espaço para a investigação. Ao final das análises, serão propostas atividades a partir de um texto presente em uma das coleções. 184
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Vale esclarecer que ambas as coleções foram aprovadas pelo PLND-­‐EF/2011, consideradas de boa qualidade e condizentes com os PCN. Assim, a análise a seguir não pode ser tomada como base para crítica da coleção em sua totalidade, pois será feita uma reavaliação de um único aspecto. 3.1.
COLEÇÃO
PORTUGUÊS:
A
ARTE
DA PALAVRA
3.1.1.
Análise Teórica
Nesta coleção, cada capítulo focaliza um gênero textual específico para trabalhar os itens relacionados à língua: interpretação textual, produção textual, oralidade e gramática.Cada capítulo divide-­‐se, basicamente, em três partes: estudo do texto, expressão escrita e oral (às vezes os dois, outras apenas um deles) e estudo da língua. O primeiro conteúdo relacionado, de alguma forma, aos processosde referenciação aparece no volume do 6° ano, no tópico que fala sobre o uso dos Pronomes. Após uma extensa explanação gramatical das características e uso dos pronomes, os autores citam, em três linhas, que eles “são importantes 185
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
elementos na construção do texto” (p. 137). Afirmam também que “como eles muitas vezes se referem a substantivos que já apareceram antes, acabam criando ligações entre as diversas partes do texto” (p. 137). Entretanto, a questão não é aprofundada. Abaixo desse comentário há um exercício de identificação de referentes. Até mesmo as questões relativas às pessoas do discurso (o caráter dêitico dos pronomes pessoais, por exemplo), apontadas e discutidas, anteriormente, na parte teórica deste volume, não são retomadas nessa atividade.Abordar esse aspecto seria de grande valia, principalmente porque o gênero trabalhado no capítulo são as cartas e outras correspondências. No Manual do Professor, ao final do livro, consta a seguinte orientação: Aqui [se referindo ao tópico sobre pronomes] se tratam de atividades de identificação das pessoas do discurso a partir dos pronomes em textos narrativos e dissertativos, assim como atividades de substituição de repetições por pronomes, sempre enfatizando a coesão textual (grifos nossos). (p. 63) 186
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
No entanto, percebe-­‐se que a “ênfase” na coesão não é trabalhada, e o único aspecto coesivo dos pronomes explicado é a pura e simples substituição. No último capítulo do volume direcionado ao 6° ano, que trata do gênero notícia, a coesão é retomada como um tópico de estudo específico. Todavia, mais uma vez o aspecto enfocado é a substituição: na página 224, há uma notícia e, a partir dela, trabalha-­‐se o conceito da substituição como estratégia com o seguinte comentário: Quando escrevemos um texto, temos alguns recursos para nos referir a uma palavra que já foi usada alguma vez nele. Um desses recursos é substituir essa palavra por um pronome [...]. Outra maneira de evitar repetições é substituir a palavra já usada por uma outra que tenha um sentido equivalente. A explanação, mais uma vez, é bem resumida e centrada na simples substituição por pronome. Agora, os autores adicionam ainda o caráter de o substantivo realizar essa função, mas não exploram suas potencialidades. No próprio texto exposto por eles, uma notícia que relata um assalto a uma joalheria, fica patente a capacidade de o substantivo funcionar como uma anáfora recategorizadora e de apresentar o ponto de 187
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
vista do enunciador. Na manchete da notícia, aparece o termo “ladrão”, retomado pelos termos “homem”, “distraído rapaz”, “ele” e “mané”. Porém, a peculiaridade da escolha lexical no momento da substituição por parte do enunciador não é discutida, mesmo havendo, no capítulo, um tópico específico que apresenta a ilusória neutralidade nos textos jornalísticos. Nos volumes do 7° e 9° anos da coleção em análise, nenhum dos tópicos faz referência aos processos de referenciação. Apenas no volume do 8° aparece a seção “Coesão: a substituição”, retomando o tópico, mas com enfoque um pouco mais aprofundado. Os autores levantam a questão da recategorização, das novas possibilidades de sentido cada vez que um termo é retomado por um sinônimo. A substituição de uma palavra por um sinônimo ou por uma palavra de sentido aproximado garante que o texto seja construído de maneira encadeada, pela retomada dos mesmos tópicos. Dessa maneira, a continuidade do assunto é preservada. Além disso, a cada nova palavra, novos sentidos são atribuídos ao que se diz, enriquecendo-­‐se o texto. (p. 35) Porém, a explanação se resume ao trecho destacado acima e, posteriormente, não há atividades que estimulem a capacidade do aluno em encontrar termos referentes e as novas 188
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
concepções que eles agregam aos termos retomados. Há apenas um exercício, reproduzido a seguir: 1. Releia o trecho da biografia de Paulo Coelho, abaixo, e observe as palavras grifadas. Paulo Coelho de Souza nasceu em uma chuvosa madrugada de 24 de agosto de 1947, dia de São Bartolomeu, na Casa de Saúde São José, no Humaitá, bairro de classe média do Rio de Janeiro, Brasil. Nasceu morto. Os médicos previam dificuldades naquele parto, o primeiro da jovem dona de casa Lygia Araripe Coelho de Souza, de 23 anos, casada com o engenheiro Pedro Queima Coelho de Souza, de 33 anos. O bebê não seria apenas o primogênito do casal, mas também o primeiro neto dos quatro avós e o primeiro sobrinho de tias e tios de ambos os lados. Os exames iniciais apontavam um risco considerável: a criança parecia ter ingerido uma mistura fatal de mecônio – ou seja, suas próprias fezes – com líquido amniótico. Depois disso, só um milagre o faria nascer com vida. Inerte no ventre materno, sem manifestar qualquer intenção de mover-­‐se em direção ao mundo, o recém-­‐nascido teve de ser retirado a fórceps. Fernando Morais. O mago. São Paulo: Planeta, 2008. P. 63. a.
A quem elas se referem? b.
Qual nova informação a palavra primogênito traz a respeito do biografado? Se necessário, procure as palavras desconhecidas no dicionário. 189
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Observa-­‐se, nessa atividade, que o texto, apesar de curto, oferece uma gama de palavras que podem ser discutidas e analisadas, porém os autores se restringem a apenas uma delas – “primogênito”. Além disso, poderiam orientar, de alguma forma, a ideia de que as anáforas não fazem referência apenas ao cotexto, mas também aos conhecimentos partilhados, uma vez que consideraram o primeiro referente, “Paulo Coelho de Souza”, uma AD, em vez de uma introdução referencial; assim, já se parte do pressuposto de que sabemos de quem se trata e queremos apenas ler sua história de vida. Isso acontece porque essas informações foram apresentadas no capítulo, anteriormente à questão, e foram esclarecidas. Dessa forma, a retomada é possível, mas precisa de inferências. Concluindo, na abordagem teórica desta coleção, apesar de haver um movimento na tentativa de apresentar algumas estratégias de referenciação, elas continuam a ser vistas sob a ótica rígida da coesão. Isto é, como um mero mecanismo de articulação da estrutura textual, a fim de evitar repetições e deixar o texto mais enxuto, excluindo todo o aparato sociointeracional que a elas se associa. 190
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
3.1.2
Análise
das
Atividades
com
textos jornalísticos
Na coleção em análise, os textos jornalísticos, no primeiro volume, aparecem no capítulo que versa sobre o gênero notícia. Em nenhuma das atividades é trabalhada a referenciação. Em apenas uma delas, na página 210, há um exercício que explora o conceito de associação. Ele pede que o aluno, a partir da manchete, correlacione a notícia a uma determinada sessão do jornal. Porém, não há nenhuma conceituação prévia sobre esse tipo de conhecimento trabalhado na questão. No segundo volume, destinado ao 7° ano, há alguns textos jornalísticos no capítulo que trabalha o gênero entrevista, mas nenhuma das atividades referentes aos textos ao menos tangenciam o estudo da referenciação. No terceiro volume (8° ano, p. 67), que trata do gênero textual teatro, há um texto jornalístico da Folha de São Paulo. Nas atividades propostas sobre o texto, há uma questão sobre anáfora direta.O texto em questão versa sobre uma Companhia de teatro (Companhia do Feijão) e sua última adaptação, a qual fez muito sucesso. No texto, é utilizada a expressão “camaleões do Feijão” para retomar “atores”, fazendo referência a sua 191
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
capacidade de transformarem-­‐se em diversos personagens. Observe o trecho: Montagem mergulha público no silêncio dos excluídos Sergio Salvia Coelho – Crítico da Folha [...] Pedro Pires e Zernesto Pessoa, adaptadores e encenadores, entrelaçam 20 contos curtos com uma arrojada sintaxe cinematográfica, a partir de improvisos de atores preparados não só para trocar de personagem sem apoio de figurino ou maquiagem, como sugerir o cenário pela marcação e fazer a sonoplastia em cena. E esses camaleões do Feijão também alternam-­‐se na narração, indicando mudanças de tempo e local às quais o resto do elenco se adapta em segundos, e na paisagem sonora, por onomatopeias e discretas percussões. [...] Folha de S. Paulo, quinta-­‐feira, 17 de abril de 2003. A atividade se destacada por não se restringe à identificação do referente apenas. Ela pede também que se explique o que o texto quis dizer com a expressão utilizada para realizar a retomada. Dessa forma, o aluno tem que ter entendido todo o conteúdo proposicional anterior para chegar ao significado da expressão, criando uma recategorização do termo 192
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
retomado “atores”. No entanto, é o único texto jornalístico em todo o volume. Por fim, no último volume da coleção (9° ano), há um texto opinativo, da Folha de São Paulo. Nas atividades propostas em relação a esse texto (p. 192), há uma questão que trabalha o conceito de anáfora prospectiva a partir do título do texto, mas, nesse caso, a explora-­‐se apenas o reconhecimento do referente. Reproduzimos abaixo a parte inicial do artigo para vermos como a expressão referente ao termo “atividade”, no título, é esclarecida logo no início do texto: Atividade expõe tensão entre direitos Gilberto Dimenstein – Colunista da Folha A pichação é umas das expressões mais visíveis da instabilidade humana. São mais do que rabiscos. São uma forma de estabelecer uma relação de pertencimento coma comunidade – mesmo que por meio da agressão – e, ao mesmo tempo, de dar ao autor um sentido de autoridade. [...] Folha de S. Paulo, 21 jan. 2006. A questão pede para que o aluno identifique, segundo o texto, qual é atividade, mas, nesse caso, não explora nada além da simples identificação de referente. Entretanto, cabe ressaltar que é a primeira de oito atividades sobre o texto. Assim, poderia 193
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
ser considerada uma atividade de reconhecimento, introdutória para as demais questões. 3.2.
COLEÇÃO PORTUGUÊS: IDEIAS E
LINGUAGENS
3.2.1.
Análise Teórica
A coleçãoé dividida em unidades e, cada uma delas, aborda um tema. Cada unidadetrabalha, basicamente, os seguintes itens: estudo do texto, expressão escrita e oral e estudo da língua. No primeiro volume da coleção, voltado ao 6° ano, os substantivos são abordados na unidade 3. Após toda a explanação gramatical sobre essa classe de palavras, há uma atividade em que o conceito de coesão é pontuado: 3. Quando escrevemos, precisamos nos preocupar em “amarrar” as frases, observar se possuem vínculo entre si, para não deixar o nosso leitor perdido. Há vários recursos que conferem coesão a um texto. Um deles é a correta retomada de palavras que já foram mencionadas, sem precisar repeti-­‐las o tempo todo. Você pode, por exemplo, empregar um substantivo abstrato para retomar um verbo que já foi enunciado anteriormente. (p. 97) 194
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Ao observarmos o enunciado da atividade, já percebemos o conceito de coesão e o uso dos substantivos, segundo as autoras: evitar repetições. Em relação à questão em análise, especificamente, é trabalhada a alternância entre verbo e substantivo, como mostra o modelo apresentado pelas estudiosas: “Quando ouviram o sinal, os alunos correram em direção ao pátio, atropelando-­‐se uns aos outros. A corrida só foi interrompida com a chegada da diretora” (p. 97). Em momento algum o caráter recategorizador das retomadas exercidas pelos substantivos e sua importância nos textos. Ainda no primeiro volume, na unidade 8 (p. 216), o tópico pronomes é trabalhado sem mencionar sua relação com as estratégias de retomadas e seu caráter “neutro”. Porém, em uma das atividades propostas, exige-­‐se o reconhecimento dos referentes em um pequeno texto, reproduzido a seguir: Espertinho No parque, o garoto pede dinheiro a sua mãe para dar a um velhinho. Sensibilizada, ela dá o dinheiro, mas lhe pergunta: -­‐ Para qual velhinho você vai dar o dinheiro, meu querido? -­‐ Para aquele que está gritando “Olha a pipoca quentinha!”. 195
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Em nenhum dos demais volumes é discutida, de alguma forma, a questãoda referenciação. Ou seja, apenas no 6° ano é feita uma tímida menção teórica sobre o assunto, que, nos anos posteriores, não é retomado. Cabe aqui um comentário sobre um conceito que aparece no último volume, dentro do tópico Produção Textual. As autoras intitulam o assunto como A importância da focalização, com o objetivo de apresentar como os textos focalizam determinados objetos-­‐de-­‐discurso e “obscurecem” outros, deixando transparecer o ponto de vista, a ótica do enunciador. As autoras, nesse momento, falam especificamente de textos descritivos e narrativos, mas poderiam aproveitar o assunto para trabalhar as estratégias de referenciação, que têm o caráter de, como apontam Koch e Elias (2011, p. 125-­‐126), introduzir objetos-­‐de-­‐
discurso, retomá-­‐los (manter em foco) e desfocalizá-­‐los. 3.2.2.
Análise
das
atividades
com textos jornalísticos
Em virtude de a coleção ora em análise ser organizada em temas, os textos jornalísticos encontram-­‐se distribuídos ao longo da coleção. Serão observadas as atividades propostas relativas a 196
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
esses textos, independente da unidade em que apareçam, a fim de analisarmos se, ao menos nos exercícios, os processos dereferenciação são trabalhados. Após buscar em cada volume os textos jornalísticos, constatamos que a maior parte deles aparece como textos de “reflexão”, no início das unidades, ou fazendo parte da coletânea de textos para auxiliar na produção textual. Isto é, nesses casos, não há atividades relativas ao texto. Os poucos textos jornalísticos vêm com perguntas relacionadas à identificação de informações explícitas, tais como o que aconteceu?, onde?, quando? etc., e à tipologia textual, com foco na estrutura – manchete, lead, subtítulo, corpo do texto. Dessa forma, percebemos que a coleção não aborda o conceito da referenciação de forma teórica, nem propõe exercícios que levem os alunos a uma reflexão acercados processos referenciais na constituição de um texto, como a retomada por diferentes escolhas vocabulares, ou mesmo as anáforas indiretas e encapsuladoras. Além disso, nesta coleção, os textos jornalísticos não são trabalhados do ponto de vista sociointeracional. As explicações e atividades se restringem a 197
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
determinar a estrutura do texto e fazer uma análise superficial de seus elementos. 4. PROPOSTA DE ATIVIDADE
As análises realizadas mostraram que as atividades (quando há) que utilizam os conceitos de referenciação ainda os trabalham de maneira tímida e pouco aprofundada. Poucas são as questões que exigem dos alunos uma reflexão além da substituição de termos. Não há um trabalho voltado para a análise textual, fazendo os alunos pensarem, no caso das anáforas diretas, o que determinadas escolhas lexicais geram no texto. Os demais tipos de anáfora nem sequer aparecem nas atividades. Sendo assim, a partir de um texto do gênero notícia, propomos aqui algumas atividades que poderiam constar nos livros didáticos. A seguir, reproduzimos a notícia, retirada da coleção Português: a arte da palavra (vol. 1, p. 221). 198
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Uol tecnologia – 12/12/2006 – 10h16 Homem na Alemanha acompanha roubo de sua casa no Brasil pela Web por Alberto Alerigi SÃO PAULO (Reuters) – A tecnologia ajudou a evitar um assalto no litoral de São Paulo neste fim de semana, quando um empresário que estava na Alemanha viu imagens de sua residência sendo roubada por um ladrão. As imagens foram transmitidas por câmeras conectadas à internet de sua casa e o ladrão foi preso depois que a polícia foi acionada. O empresário estava na cidade alemã de Colônia e recebeu um alerta em seu celular vindo da casa litorânea, no outro lado do Atlântico. O alerta foi acionado no dia 10 pelo sistema de segurança da casa, localizada na praia de Pernambuco, no Guarujá. O empresário ligou seu laptop após receber o aviso eletrônico de invasão de sua residência e pela internet conseguiu ver uma pessoa rondando e usando objetos da casa. 199
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
A vítima então avisou sua mulher, que chamou as autoridades e manteve contato com a polícia durante o cerco da residência. “Ela passou detalhes para a gente de como era o ladrão e onde ele estava enquanto estávamos cercando a casa”, contou à Reuters, por telefone, o cabo Américo Rodrigues, da 5a companhia do 21° Batalhão do Interior da Polícia Militar. “Isso foi crucial para que a gente agisse com objetividade. A ação não demorou mais que 15 minutos”, acrescentou o policial que participou do cerco. Segundo ele, o ladrão usou uma escada da própria residência para entrar na casa pelo primeiro andar. Os donos puderam ver o ladrão provando roupas, e, quando os policiais entraram na casa, uma série de objetos, entre eles eletrodomésticos e ferramentas, estavam embalados em sacos na cozinha, prontos para serem levados. O ladrão não desconfiou que estava sendo vigiado a milhares de quilômetros de distância. 200
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
“Ele ficou surpreso quando soube que estava sendo visto por câmeras pela internet”, disse Rodrigues. Os donos da casa foram procurados pela Reuters, mas não puderam ser encontrados para comentar o ocorrido. Folha Online. Disponível em: http://tecnologia.uol.com.br/ultnot/reuters/2006//
12/12/ult3949u596.jhtm. Acesso em: 21 ago. 2008. Questões: 1 – Muitas foram as formas utilizadas por essa notícia para retomar diversos referentes. Preencha a tabela abaixo com essas formas. Homem empresário vítima donos Ladrão pessoa ele Américo Rodrigues policial ele Rodrigues 2 –De acordo com a leitura do texto, podemos afirmar que o homem que colocou câmeras em sua casa pode ser retomado como “a vítima”? Justifique sua resposta. 201
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
R: Sim, pois ele teve sua casa assaltada, sendo, assim, alvo de um crime, a vítima. 3 – Podemos entender como encapsuladores termos de natureza nominal ou pronominal que resumem indiretamente informações do texto e do contexto. Assim, analisando a fala do cabo Américo Rodrigues (6° parágrafo), quando diz “Isso foi crucial”, ao que ele se refere? R: O policial se refere ao fato de a mulher do empresário ter dado detalhes da movimentação do ladrão e de como ele era para a polícia enquanto a casa era cercada. 4 – Na manchete da notícia, aparece a expressão “Web”, que está diretamente ligada à área tecnológica. Ao longo do texto, outras expressões do campo semântico da tecnologia surgem para explicar a maneira como o assalto foi evitado. Retire do texto essas palavras. R: “câmeras conectadas à internet”, “celular”, “sistema de segurança”, “laptop”, “aviso eletrônico” e “internet”. 5 – Nos três primeiros parágrafos, o texto usa algumas expressões alternando os artigos que a precedem. Identifique que expressões são estas e justifique essa alternância. R.: um empresário/o empresário; um ladrão/o ladrão e um alerta/o alerta. O texto precede as expressões com artigo 202
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
indefinido quando estas aparecem pela primeira vez no texto, isto é, não são de conhecimento do leitor, pois não foram citadas antes. Quando realiza a retomada, o texto utiliza o artigo definido, deixando para o leitor a pista de que este termo já é conhecido, já apareceu anteriormente. Essas são algumas possibilidades de abordagem das estratégias de referenciação que poderiam ser cobradas nos livros didáticos. Não queremos, com isso, postular que a teoria completa seja abordada, especificando o nome dos processos e suas peculiaridades. Queremos, antes, que, no momento do trabalho com os textos, seja realizado um percurso que leve o aluno a enxergar esses mecanismos, tão importantes para a construção textual e para uma leitura menos ingênua e mais crítica de qualquer gênero. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As orientações dos PCN de Língua Portuguesa, baseadas em estudos de longa data, buscam um ensino mais crítico e reflexivo, uma metodologia que leve o aluno a refletir sobre o 203
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
uso da língua, e não apenas a classificar e identificar termos e elementos gramaticais. Entretanto, no tocante ao ensino das estratégias de referenciação, as tentativas, quando existem, são tímidas e sem uma apreciação teórica bem fundamentada. Apesar de os PCN orientarem um trabalho com o texto sob o ponto de vista sociointeracional, entendendo o texto como o lugar da interação –como Koch e Marcuschidefendem desde a década de 60 –, na realidade dos livros didáticos isso ainda não acontece. Os autores ainda repassam os conhecimentos coesivos sob o rótulo da substituição com o objetivo de evitar repetições desnecessárias. Como essas substituições são feitas, quais são as suas consequências, os seus efeitos discursivos, nada disso é discutido nas duas coleções analisadas. Em consequência disso, os professores podem acabar passando adiante tais conhecimentos ultrapassados, pois também não têm a seu dispor um material que dê suporte a seu autodesenvolvimento. Sem um local adequado de consulta, que no geral é, em primeira instância o LD, o profissional não consegue se atualizar em relação a alguns conteúdos e abordagens e não tem tempo de organizar materiais paralelos para suprir tantas lacunas. 204
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Enfim, na análise feita em relação à abordagem da referenciação nos livros didáticos de Língua Portuguesa do segundo ciclo do ensino fundamental, podemos perceber: -­‐ que não há uma correspondência da perspectiva de ensino indicada pelos PCN e os LD; -­‐ quando há algum item que se aproxime das estratégias de referenciação, este ainda é abordado de maneira superficial, restringindo a retomada à substituição de termos para evitar repetições; -­‐ o manual do professor não alicerça o docente quanto à teoria e metodologia de estudo do fenômeno; -­‐ as atividades propostas não exigem do aluno reflexões de cunho sociointeracional.Solicitam, grande parte das vezes, apenas a identificação dos termos retomados nos textos por substantivos equivalente e pronomes. Sendo assim, é necessário pensar como incluir o processo de referenciação nos LDLP, a fim de tornamos os discentes leitores mais astuciosos e críticos, mostrando-­‐lhes que um texto vai muito além do que está escrito. Abrir seus olhos para além do papel, para que eles possam perceber os mecanismos de que eles 205
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
mesmos se valem no momento de escrever um texto e, após essa consciência, possam escrever textos ainda melhores. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAVALCANTE, M. M. Expressões referenciais – uma proposta classificatória.Caderno de Estudos. Linguísticos, Campinas, vol. 44, 2003. p. 105-­‐118. ______. Referenciação: sobre as coisas ditas e não ditas. Fortaleza: Edições UFC, 2011. KOCH, I, G. V. & MARCUSCHI, L. A. Processos de referenciação na produção discursiva. D.E.L.T.A., vol. 14, Número especial, 1998. p. 169-­‐190. ______. TRAVAGLIA, L. C. Texto e coerência. São Paulo: Contexto, 1999. ______. FÁVERO, L. L. Linguística Textual: Introdução. São Paulo: Cortez, 2008. ______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2011. ______. ELIAS, V. M. Ler e Compreender os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2011. MEC/SEF: SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília, 1998. 206
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
MARCUSCHI, L. A. Anáfora Indireta: o barco textual e suas âncoras.Revista Letras, n°. 56, Curitiba: Editora da UFPR, 2001. p. 217-­‐258. ______. KOCH, I. V. Estratégias de referenciação e progressão referencial na língua falada. In ABAURRE, M.B. (org.) Gramática do português falado, vol. VIII, Campinas: Ed. da UNICAMP/FAPESP, 1998.p. 31-­‐56. MANUAIS DIDÁTICOS
RODELLA, G. NIGRO, F. & CAMPOS, J. Português: a arte das palavras. São Paulo: AJS, 2009. DELMANTO, D.& CASTRO, M. C. Português: ideias e linguagens. 13° ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 207
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
A construção de objetos de
discurso pelo léxico: uma
abordagem relevante ao ensino
ALVES JÚNIOR, Mário Acrisio (UFRJ) 1. INTRODUÇÃO
Considerando que os processos referenciais, além de garantirem o encadeamento e a coerência textuais, constituem-­‐
se como excelentes ferramentas de persuasão, sobretudo quando, em sua base, os elementos linguísticos empregados são da ordem do léxico, este artigo focaliza a abordagem da referenciação no ensino de língua portuguesa. Como alvo de análise, tomamos duas coleções de livros didáticos de língua portuguesa dirigidas ao ensino fundamental. Para além do papel meramente coesivo dos elementos referenciais, o debate sobre suas funções argumentativas é hoje uma das mais relevantes discussões em pauta nos estudos textual-­‐discursivos. Embora muitos autores, desde os trabalhos 208
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
inaugurais de Mondada e Dubois (MONDADA, 1994; MONDADA & DUBOIS, 1995) sobre “a construção dos objetos de discurso”, já apontem para a natureza intencional, ideológica e subjetiva da referenciação, é necessário dizer que o tema não se esgota, principalmente no que concerne à sua aplicação nas atividades de leitura, compreensão e produção. Partindo desses princípios e apoiando-­‐se em um quadro teórico já definido pela linguística interacional, este trabalho segue dividido em outras cinco seções: nas próximas três, serão retomados os aspectos teóricos sobre a referenciação, bem como o papel argumentativo dos objetos de discurso – com focalização das modalidades anafóricas –, a partir de autores consagrados na área, como Mondada e Dubois (2003), Koch e Marcuschi (1998), Koch (2004, 2005), Marcuschi (2004, 2005) e Cavalcante (2011); na quinta, será observado, primeiramente, se e como o tema é abordado nos livros didáticos analisados e, em seguida, serão propostas atividades em torno de um texto jornalístico extraído de uma das coleções; a última parte é dedicada às considerações abstraídas a partir da articulação entre o percurso teórico feito e as análises desenvolvidas. 209
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
2. O PARADIGMA DA REFERENCIAÇÃO
A fim de discutir questões teóricas concernentes ao quadro amplo da referenciação e, na seção seguinte, sobre a função de orientação argumentativa das expressões referenciais no texto, estabelecemos um diálogo entre autores reconhecidos por dedicar boa parte de suas pesquisas ao estudo do tema no campo mais amplo das teorias do texto e do discurso. Uma vez que a questão da referência é assunto dos mais frequentes nos debates sobre a relação entre linguagem e mundo, é importante, a princípio, trazer à tona a lembrança de que a teoria da referenciação surge como uma resposta a outro modelo teórico que corresponde a uma visão puramente referencialista da linguagem, na qual referir significa representar diretamente e extensionalmente os objetos do mundo. Essa tendência pressupõe a estaticidade da língua e não considera a interferência dos sujeitos na construção dos sentidos, o que ilustra claramente, na crítica de Mondada e Dubois (1995, p.19), “um poder referencial da linguagem que é fundado ou legitimado por uma ligação direta (e verdadeira) entre as palavras e as coisas”. 210
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Alves Jr. (2011) comenta que, ao questionar a concepção referencialista, essas autoras operam um aprofundamento na noção de referência, descartando a suposta relação de correspondência e estabilidade entre as palavras e as coisas. Passa-­‐se, então, no contexto da virada cognitivista, a considerar as experiências perceptiva e cognitiva no quadro da significação referencial, na busca por compreender “como as atividades humanas, cognitivas e linguísticas estruturam o mundo e lhe dão um sentido” (MONDADA & DUBOIS, 1995, p.20). No interior desse novo paradigma, não se focalizam mais as relações referenciais em si, mas o processo desencadeado a partir dessas relações: a referenciação. O paradigma cognitivo logo é ampliado para uma perspectiva sociointeracionista, e passa-­‐se a conceber o papel ativo dos sujeitos na construção de sentidos no (e pelo) texto. Essa mudança de uma tendência extensionalista da linguagem para uma de teor interacional e discursivo é bem explicitada por Koch e Marcuschi (1998, p.173), no que tange à atividade referencial: Referir não é mais atividade de "etiquetar" um mundo existente e indicialmente designado, mas sim uma atividade discursiva de tal modo que os referentes passam a ser objetos-­‐de-­‐discurso e não 211
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
realidades indepndentes. Não quer isso dizer que tudo se transforma numa panacéia subjetivista, mas que a discretização do mundo pela linguagem é um fenômeno discursivo. Em outros termos, pode-­‐se dizer que a realidade empírica, mais do que uma experiência estritamente sensorial especularmente refletida pela linguagem, é uma construção da relação do indivíduo com a realidade. Enfim, o estudo da referenciação permite uma formulação cada vez mais consensual de que os referentes ou objetos de discurso são construídos e reconstruídos pelos sujeitos – “atores sociais” – no curso das atividades cognitivo-­‐discursivas que são as práticas de linguagem. Nesse novo paradigma não há espaço para se afirmar que a realidade é concebida em termos de correspondência com um mundo previamente discretizado, pois isso eliminaria a singularidade de cada ato de enunciação, o qual, sabe-­‐se, diz respeito a um evento discursivo único e irrepetível. No bojo dos processos de referenciação, estão os elementos lexicais, por meio dos quais fica mais evidente o caráter variável das relações entre linguagem e mundo, por ser o léxico, de acordo com Marcuschi (2004, p.270), “o nível da realização linguística tido como o mais instável, irregular e, até certo ponto, incontrolável”. Grosso modo, é dito que tal 212
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
instabilidade é fruto da variabilidade das situações de interação com que os indivíduos se deparam e, em contrapartida, da limitação do léxico, quando considerado em sua sistematicidade. Em um nível discursivo, que inclui a língua, mas também o contexto sociocognitivo e os atores sociais envolvidos na interação com suas ações e intenções, o funcionamento do léxico está muito mais ligado às atividades de manuseio da língua por seus usuários, isto é, como eles agem sobre o léxico para produzir sentido. Em síntese, são os contextos linguístico e sociocultural que definem o sentido de determinada expressão nominal empregada em uma situação de interação. Por exemplo, o termo “furacão” pode se referir (e essas acepções não são raras): a uma mulher que causou um enorme reboliço sentimental ao passar pela vida de um homem; a uma banda musical de sucesso que tem levantado muitos seguidores; ou, mesmo em seu sentido mais primitivo, ao fenômeno natural que costuma causar grandes estragos onde ocorre. 3. REFERENCIAÇÃO, LÉXICO E ENSINO
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Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Como frutos dos processos de referenciação, é posto que os objetos de discurso são construídos pelos sujeitos no curso dos eventos discursivos “em função de um querer-­‐dizer”, como afirma Koch (2005, p.35). Dessa forma, a autora atesta que as escolhas lexicais não são aleatórias, mas operadas de acordo com os propósitos comunicacionais e com a situação de comunicação. Dito isto, é possível pensar na relevância dessas escolhas quando a intenção do sujeito é persuadir o interlocutor, levando-­‐
o a aderir a uma ideia, a uma proposta sobre o mundo. No que se refere às expressões nominais referenciais, vale destacar que não é apenas o nome nuclear que pode assumir um papel de orientador argumentativo, mas também os modificadores nominais que eventualmente entram nessas construções. Basta pensar nos termos em destaque nas seguintes construções: o furacão devastador, a cena impressionante, sérios problemas, notável saber. Imaginar tais expressões sem os termos destacados leva a concluir o forte papel avaliativo que cumprem ao serem empregadas como formas referenciais. Koch (2005, p.35) defende que, quando expressões nominais são empregadas, “uma de suas funções textual-­‐
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interativas específicas é a de imprimir aos enunciados em que se inserem, bem como ao texto como um todo, orientações argumentativas conformes à proposta enunciativa do seu produtor”. É necessário esclarecer, quando se fala em orientação argumentativa, que a noção de argumentação a que essa função se refere em nada se refere àquela ligada à estrutura argumentativa ou ao modo de organização argumentativo (CHARAUDEAU, 2008). Tal conceito diz respeito ao nível macrotextual, e pode-­‐se dizer, didaticamente falando, que é um conceito mais produtivo no ensino de produção de textos do que no de leitura. A função de orientação argumentativa das expressões nominais referenciais é assim denominada por conta do caráter avaliativo de certas construções, e diz respeito, pois, ao nível microtextual. Basta verificar, ao longo de um texto, como essas expressões, quando são avaliativas, orientam o leitor em direção a um posicionamento, um ponto de vista colocado no texto. Partindo desse pressuposto, defendemos que as atividades com textos em sala de aula devem contemplar a abordagem da referenciação, por entendermos que os mecanismos de operação desse processo dão estrutura e sentido 215
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aos textos. Esse posicionamento encontra apoio na seguinte afirmação de Cavalcante (2011b, p.157): Cremos que explorar, em sala de aula, os papéis que os processos de referenciação desempenham na construção dos textos e dos discursos é muito importante para o desenvolvimento das habilidades de leitura e de produção textual (...) [e] para a melhoria no desempenho da (re)construção da coerência. Também os autores de livros didáticos de língua portuguesa não podem negar esse conteúdo, haja vista sua ligação direta com a “competência textual” ou “comunicacional”, tão claramente especificadas nos PCN. Mas, mesmo que os livros didáticos não ofereçam tal conteúdo, o professor deve estar apto e bem disposto a trabalhá-­‐lo a partir, por exemplo, de um texto do próprio livro, levando-­‐se em conta que este não é um instrumento único e autônomo de ensino/aprendizagem. Ao discutir sobre o que se poderia levar sobre os processos de referenciação ao ensino, Cavalcante (2011b, p.165) recomenda que “mergulhar, pacientemente, junto com os alunos, nesse mar de riquezas é uma oportunidade a que o professor de língua portuguesa não deveria se furtar”. 216
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É com essa visão sobre a relevância dos processos de referenciação para o ensino de língua portuguesa que o presente artigo busca propor a abordagem específica da função argumentativa projetada a partir das (re)categorizações avaliativas, as quais, no amplo universo das estratégias referenciais, transformam os referentes pela(s) mudança(s) de designação ao longo do texto. Para Matos (2005), essas transformações por que passam os objetos de discurso resultam de decisões semântico-­‐estruturais determinadas por fatores extralingüísticos, tais como os propósitos comunicativos e/ou persuasivos do locutor. Assim, o trabalho em sala de aula com a argumentação, observando os índices lexicais, é um campo muito farto e interessante a explorar, e seguir esse caminho a partir da noção de recategorização avaliativa parece ser uma opção produtiva como proposta de ensino numa perspectiva textual. Considerando, pois, a referenciação como um fenômeno discursivo, que consiste na introdução, manutenção e/ou reconstrução de objetos de discurso, o que se apresenta a seguir, de forma bem sucinta, são os pressupostos dos processos referenciais. Para isso, entendemos ser necessário acompanhar 217
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de perto alguns aspectos vinculados à noção de progressão referencial claramente abordada em Koch (2002; 2004). Koch (2004, p.60) defende que “a referenciação, bem como a progressão referencial, consistem na construção e reconstrução de objetos de discurso”. Para a autora (2002), na construção de um modelo textual, estão envolvidos três princípios básicos de referenciação: 1. ativação: ocorre quando um referente textual é introduzido de forma inédita no texto, permanecendo a expressão linguística que o representa cognitivamente disponível na memória de curto termo; 2. reativação: um nódulo (“endereço” cognitivo, locação) já introduzido é reativado por meio de uma forma referencial; 3. de-­‐ativação: desloca-­‐se o foco de atenção para um outro referente textual, desativando-­‐se o referente anterior. O referente anteriormente em evidência, contudo, “continua a ter um endereço cognitivo (locação) no modelo textual”, podendo ser reativado a qualquer momento. 218
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Retomando Schwarz, Koch (2002, p.83) salienta que, “pela repetição cíclica de tais procedimentos, estabiliza-­‐se, por um lado, o modelo textual; por outro lado, porém, ele é continuamente elaborado e modificado por meio de novas referenciações”. Ainda conforme a autora (id., p.85), o uso de pronomes ou elipses, de expressões nominais definidas e de expressões nominais indefinidas são as principais estratégias de progressão referencial, que “permitem a construção, no texto, de cadeias referenciais por meio das quais se procede à categorização ou recategorização discursiva dos referentes”. A seguir, será dado prosseguimento a essa discussão, privilegiando-­‐
se as modalidades anafóricas. 4. AS MODALIDADES ANAFÓRICAS
Desde o advento da Linguística de Texto, a questão da correferência é constantemente abordada. Nos momentos iniciais, os processos correferenciais (anafóricos e catafóricos) constituíam basicamente o centro do estudo das relações referenciais. Eram poucos os autores que faziam referência, por exemplo, às anáforas indiretas, hoje consideradas fenômenos 219
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remissivos não correferenciais. Ainda nesse momento inicial, também, pouco se considerava a possibilidade de retomada anafórica de porções textuais de maior ou menor extensão, como acontece com muita frequência quando do uso de demonstrativos, geralmente neutros (isto, isso, aquilo, o) (KOCH, 2004, p.04). Resumidamente, o que se considerava, nas primeiras abordagens do tema, eram as relações coesivas, anafóricas ou catafóricas, com retomada explícita de elementos textuais. Aliás, somente em estudos mais recentes sobre progressão referencial é que tem sido conferido maior espaço às relações referenciais anafóricas operadas entre dois (ou mais) itens lexicais do texto, o que, de acordo com Jubran (2003, p.95), “engloba e ultrapassa a definição tradicional de anáfora como estratégia de retomada, geralmente pronominal, de um item lexical colocado anteriormente no texto, com correferencialidade entre os elementos em relação”. Com a evolução dos estudos em Linguística de Texto e, sobretudo, com a abordagem interacionista da linguagem, cresce 220
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o interesse pelo fenômeno da referenciação, bem como por outras questões decorrentes (progressão referencial, progressão tópica, formas de articulação textual e outras), e hoje é mais do que consensual que o emprego de formas de ativação ‘ancoradas’ – isto é, formas remissivas cuja interpretação é viabilizada por inferenciação ou por associação, a partir de um frame ou de conhecimentos enciclopédicos – constituem fatos da língua, e mais: configuram-­‐se como formas dinamicamente atuantes na progressão do texto e na organização do discurso. Às anáforas correferenciais, ficam reservados casos de retomada direta, alguns dos quais ocorrendo: •
quando o núcleo da forma nominal repete, na íntegra ou parcialmente, o núcleo do antecedente que está sendo retomado; •
quando a retomada ou a predição referencial se efetuam por meio de expressões sinônimas ou quase-­‐sinônimas (parassinônimas); •
quando a retomada se dá por meio de um hiperônimo, um nome genérico, ou de uma descrição nominal. 221
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Sobre as anáforas diretas (AD), Marcuschi (2005, p.55) faz uma observação esclarecedora: Em geral, postula-­‐se que as AD retomam referentes previamente introduzidos, estabelecendo uma relação de correferência entre o elemento anafórico e seu antecedente. Parece haver uma equivalência semântica e, sobretudo, uma identidade referencial entre a anáfora e seu antecedente. Na realidade, a anáfora direta seria uma espécie de substituto do elemento por ela retomado. A noção de correferencialidade é nestes casos crucial, embora nem sempre se dê de modo estrito. Para além das formas não ancoradas, representadas assim pelas anáforas diretas, há ainda que registrar certos “movimentos abruptos, fusões e alusões”, correspondentes às formas ancoradas de ativação pelas quais “a progressão textual renova as condições de textualização e a consequente produção de sentido” (cf. KOCH, 2002, p.85). São casos em que as relações anafóricas ocorrem com base em um já dito ou no que será dito, mas trata-­‐se de uma relação sugerida pelo cotexto, ou seja, uma relação indireta, motivo pelo qual são assim nomeadas as anáforas indiretas. De modo geral, sempre que um objeto de 222
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discurso é introduzido sob o modo do dado, em virtude de algum tipo de associação passível de ser estabelecida via inferenciação, caracteriza-­‐se um caso de anáfora indireta. A literatura sobre o tema é clássica, e, somente a título de rememoração, retoma-­‐se um exemplo extraído de Koch (2004, p.65): Uma das mais animadas atrações de Pernambuco é o trem do forró. Com saídas em todos os fins de semana de junho, ele liga o recife à cidade de Cabo de Santo Agostinho, um percurso de 40 quilômetros. Os vagões, adaptados, transformam-­‐se em verdadeiros arraiais. Bandeirinhas coloridas, fitas e balões dão o tom típico à decoração. Os bancos, colocados nas laterais, deixam o centro livre para as quadrilhas. Não é complexo observar a relação entre os termos trem, vagões e bancos, mas essas relações não se estabelecem no texto de forma direta, ou seja, não se trata de uma relação correferencial entre esses elementos. No processo de leitura, não há dificuldade para a compreensão, porém é certo que o esforço cognitivo é mais complexo do que numa relação direta. 223
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Ao abordar o uso das rotulações (nominalizações) no texto, Francis (2003) fala de uma “referência difusa” para designar a situação em que não é possível delimitar precisamente a porção do discurso que uma expressão rotuladora encapsula. Nesses casos, certamente a interpretação dessas formas anafóricas requer uma complexa atividade sociocognitiva. A autora atenta para o fato de que “nem sempre é possível decidir onde se encontra o limite inicial de sua base de referência” (p.200). O exemplo a seguir, extraído de Alves Jr. (2011, p.39), ilustra essa constatação: “Sob a justificativa de conter a criminalidade, a polícia paulista mata cada vez mais. Relatos sobre abusos policiais e casos de inocentes assassinados por engano por PMs aumentaram de modo alarmante este ano, chocando a população e até as autoridades do Estado. Em 2009, a Polícia Militar matou 524 pessoas em supostos confrontos em São Paulo – 33,7% a mais do que em 2008. De janeiro a março, a letalidade saltou 40,8%, se comparada ao primeiro trimestre do ano passado. E apesar do banho de sangue não se verificou a alegada redução nos índices de criminalidade. Os delitos contra o patrimônio permanecem em níveis elevados e os homicídios, que vinham em queda desde o início da década, voltaram a crescer [...] Embora a explosão de truculência seja preocupante, especialistas afirmam que a Polícia Militar não está fora de controle, mas sim sob um 224
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equivocado comando das autoridades responsáveis por ela” (ISTOÉ, 19-­‐05-­‐2010 -­‐ Reportagem). Embora seja possível proceder a algumas suposições, a tarefa de delimitar com precisão a exata porção de texto encapsulada pelas expressões a letalidade, o banho de sangue e explosão de truculência se torna complexa. Assim, pode ser que o referente transformado em objeto de discurso pelo rótulo o banho de sangue seja o período anterior [De janeiro a março, a letalidade saltou 40,8%, se comparada ao primeiro trimestre do ano passado.] ou até os dois períodos anteriores [Em 2009, a Polícia Militar matou 524 pessoas em supostos confrontos em São Paulo – 33,7% a mais do que em 2008. De janeiro a março, a letalidade saltou 40,8%, se comparada ao primeiro trimestre do ano passado]. E não se pode desprezar o fato de que todo o conteúdo anterior ao sintagma nominal o banho de sangue pode ser compreendido como a porção de discurso por ele encapsulada. E o que dizer da expressão metafórica explosão de truculência, cujo referente não é possível delimitar? 225
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Certamente, as três rotulações em evidência formam uma cadeia referencial em que a força argumentativa do texto é sugerida por uma gradação, de acordo com a ordem em que elas aparecem – (1ª) a letalidade, (2ª) o banho de sangue e (3ª) explosão de truculência. Assim, a estratégia argumentativa se configura pela ascensão avaliativa das três expressões no texto, sendo a 1ª a mais neutra e a 3ª a que expressa um juízo de valor mais evidente – se é que podemos falar em uma escala argumentativa. O exemplo acima evidencia o papel do sujeito nas escolhas lexicais para essas construções. Nesse sentido, Koch (2001, p.84) destaca que “a escolha da metáfora adequada é importante para realizar a avaliação e, em decorrência, estabelecer a orientação argumentativa do texto”. Francis (2003, p.211) encara a rotulação como um recurso de coesão textual, mas não deixa de mencionar o poder dos rótulos ao “adicionar algo novo ao argumento indicando a avaliação do escritor das proposições que eles encapsulam”. A autora considera ainda que “a extensão precisa do discurso a ser seccionada pode não importar: é a mudança de direção assinalada pelo rótulo e seu ambiente imediato que é de crucial importância para o desenvolvimento do discurso” (p.200). 226
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É nessa função argumentativa que a seção seguinte deste trabalho se concentra, e ela não se restringe somente às rotulações. Ocorre também por meio de anáforas diretas e indiretas. A classificação das rotulações como uma espécie de anáfora indireta não será discutida e é bem explorada por Cavalcante (2011b). O que interessa aqui é que o papel argumentativo desempenhado pelas expressões referenciais anafóricas é algo a ser considerado nas atividades de leitura, e muito relevante para a formação de leitores conscientes e críticos, que saibam avaliar as opiniões expressas em um texto, podendo aderir ou não a elas. 5.
REFERENCIAÇÃO
NOS
LIVROS
DIDÁTICOS
5.1 Análise das coleções
Nesta seção, serão breves análises de duas coleções de livros didáticos de língua portuguesa, buscando observar se elas contemplam a abordagem da referenciação por meio de 227
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expressões nominais – bem como sua função argumentativa – e que relevância é dada ao tema em cada uma delas. As coleções são destinadas ao ensino fundamental regular. São elas: Para ler o mundo, publicada pela Editora Scipione e elaborada pelas autoras Graça Sette, Maria Angela Paulino e Rozário Starling; e A aventura da linguagem, publicada pela Editora Dimensão e elaborada pelos autores Luiz Carlos Travaglia, Maura Alves de Freitas Rocha e Vânia Maria Bernardes Arruda-­‐Fernandes. 5.1.1 Para ler o mundo
Nesta coleção, no volume dedicado ao 6º ano, a primeira evidência de abordagem da referenciação é observada na seção Gramática em uso, em que se fala sobre “a função dos numerais na organização de um texto” (p.84) e sobre as formas como certos itens lexicais são usados para se referirem a nomes e expressões do cotexto. Esse procedimento se repete na página 132, focalizando-­‐se a “função dos substantivos e dos numerais na construção da notícia”. Ainda nesta página, encontramos uma atividade relevante de interpretação escrita de uma notícia cujo título é “Vira-­‐lata salva garotos de ataque de pit bull”. Na 228
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atividade, é requerido que se identifiquem, dentre quatro alternativas, aquelas que confirmem que “a jornalista, além de contar os fatos, manifesta sua opinião” através de marcas linguísticas de manifestação da subjetividade. No volume destinado ao 7º ano, observamos que, em poucas linhas, os autores exploram recursos linguísticos empregados para retomar ideias (p. 44, 139), elencando nomes, pronomes e outras expressões. No entanto, nenhuma atividade envolvendo referenciação e argumentação é encontrada. No volume do 8º ano, destacamos a menção às retomadas por meio de pronomes, sinônimos, hiperônimos e repetição de palavras (reiteração), embora os autores não explorem essas estratégias, tão comuns na progressão referencial dos textos e muito produtivas como mecanismos argumentativos. Um exercício na página 202 aborda “a função argumentativa dos adjetivos na reportagem”. Nele, é requerido que se identifiquem adjetivos que expressem avaliações positivas dos redatores de uma reportagem em alguns trechos. Não observamos, no entanto, o cuidado em avaliar o adjetivo em seu contexto linguístico de ocorrência, como a expressão referencial em que ele se insere – no caso, construções como belas ruínas, o antigo pelourinho e estado bruto. 229
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O último volume (9º ano), ao contrário do que se esperava, não apresenta avanços significativos quanto à abordagem da referenciação. Como a maioria dos textos empregados no volume é do universo literário, os autores optam por destacar fenômenos como os coloquialismos, elementos da narrativa, além de privilegiarem conteúdos gramaticais. 5.1.2 A aventura da linguagem
A maior evidência de abordagem da referenciação nesta coleção é verificada na seção Aprendendo mais sobre coesão, que não aparece em todos os capítulos dos volumes. No volume destinado ao 6º ano, já é mencionada, por exemplo, a substituição de palavras, expressões ou trechos por um pronome, a fim de evitar a repetição desnecessária, relacionar os elementos do texto e garantir a manutenção do tema. Da mesma forma, a elipse também é elencada como estratégia de coesão. Ainda no mesmo volume, a substituição pronominal e a elipse são retomadas, e os autores acrescem, como elementos de coesão, os advérbios (“lá”, “aqui”, “ali”), os pronomes demonstrativos (“isto”, “isso”, “aquilo”) e, por fim, as 230
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anáforas construídas a partir de um substantivo, formando expressões nominais. Entre as atividades propostas, os autores questionam sobre a diferença entre o emprego de um pronome e o emprego de uma expressão nominal no texto. A partir de uma sequência de texto, os autores sugerem: Discuta com seus colegas e diga qual é a diferença entre o emprego de “ele” em vez de “o doido”. Destacam, assim, a ideia de que quando um autor usa um substantivo como recurso de coesão, ele escolhe um termo que ajuda a mostrar sua opinião sobre o assunto (p. 241). O mesmo é dito sobre os adjetivos. Nas palavras dos autores, “ao usar os adjetivos, quando falamos ou escrevemos damos características dos seres, ou melhor, apresentamos os seres como os vemos ou percebemos” (p.214). No volume destinado ao 7º ano, todas as definições e explicações encontradas no volume anterior são revisitadas de forma breve, e na primeira aparição do tema “coesão”, os autores mostram como os numerais (“primeiro” / “primeira”; “segundo” / “segunda”...) podem ser produtivos elementos de retomada/referência. Em seguida, é proposta uma produção de 231
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texto usando esses elementos. As atividades propostas neste volume já se mostram consideravelmente mais complexas e relevantes, entrando em evidência os efeitos de sentido e a subjetividade provocados pelo emprego de certas expressões coesivas, especificamente no texto jornalístico (cf. seção “Aprendendo mais sobre coesão”, p. 117). Como atividades de compreensão, os autores, após uma reportagem apresentada nas páginas 109-­‐112, propõem: Na reportagem, o jornalista utiliza-­‐se de termos diferentes para se referir à Maria Marreta como, por exemplo, menina pobre, a primeira e única boxeadora amazonense e campeã brasileira. Essa forma de fazer a referência é uma estratégia que possibilita ao produtor do texto construir uma imagem progressiva de Maria Marreta, ou seja, cada termo acrescenta novas informações e ideias a respeito da mesma pessoa ou ser. 1. Que outros termos são empregados no texto para caracterizar Maria Marreta? 2. Que efeito de sentido o jornalista acarretaria se tivesse usado apenas Maria Marreta em todo o texto? São atividades desse tipo que, a nosso ver, estimulam o senso crítico dos alunos, e os textos jornalísticos são excelentes ferramentas para a formação de leitores competentes, que 232
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saibam avaliar as opiniões alheias e, ao mesmo tempo, expressar seus próprios pontos de vista. No volume destinado ao 8º ano, a retomada do tema é acompanhada de uma novidade: os autores mostram, na página 335, que, entre os elementos que apontam para um referente textual, estabelecendo a coesão, existem aqueles que “antecipam outros que vão aparecer no texto”, o que caracteriza a referência prospectiva (ou catáfora). Em seguida, propõem exercícios de identificação dos referentes antecipados por pronomes e expressões nominais que atuam prospectivamente. A função argumentativa, no entanto, não é explorada de forma relevante neste volume. O volume destinado ao 9º ano traz, na seção Aprendendo mais sobre organizadores textuais, a ideia de que certas palavras, expressões ou frases “contribuem para articular as partes de um texto, marcar mudanças no assunto tratado ou no modo de abordá-­‐lo” (p.57), garantindo, entre outros aspectos, a coerência do texto. Alguns desses organizadores textuais (“a partir deste momento”, “depois disso”, “por esta razão”), consequentemente, atuam como elementos referenciais, embora isso não seja mencionado. 233
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6. PROPOSTAS DE ATIVIDADES
O texto a seguir, extraído do volume do 7º ano da coleção Para ler o mundo, será, após sua transcrição, o ponto de partida para uma série de atividades que propomos aqui com a finalidade de explorar a função argumentativa de certas expressões referenciais. Trata-­‐se de uma reportagem originalmente publicada no Correio Brasiliense. A opção por propor atividades a partir de um texto extraído da coleção Para ler o mundo decorre da menor relevância dada ao tema nesta coleção, visto que, nela, é possível ampliar as possibilidades de abordagem da referenciação. Vale destacar, contudo, que o texto é bem trabalhado nas atividades propostas na coleção – inclusive no que se refere à questão da função argumentativa das expressões nominais referenciais –, e que o objetivo aqui é menos o de lançar um olhar crítico do que o de oferecer alternativas ao professor de língua portuguesa que faz uso desta coleção. Menino resistiu a preconceitos e se tornou desenhista de projetos arquitetônicos 234
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Conceição Freiras – Correio Brasiliense Tarzan era o apelido do professor de educação física da 3ª série do Colégio Parisiense, uma escola particular do Rio de Janeiro nos anos 40. O homem era forte, alto, louro, como cabia a um rei das selvas. Havia um único aluno negro na sala. Chamava-­‐se Willy, tinha 8 anos, era o único filho de Antônio Bezerra de Mello, motorista de táxi e de Carmem, dona de casa e bordadeira. E sobrinho único de tios maternos. “Fui o menino mais paparicado do mundo”, conta hoje Willy, 65 anos depois do acontecimento que se segue. O professor de educação física pediu aos alunos que corressem em volta do campo de futebol. E só poderiam parar de correr quando ele determinasse. E Tarzan o fazia chamando cada um pelo nome: Pedro, João, Estefânia e... “Miquimba” (em iorubá, termo depreciativo que pode significar, num xingamento, “coisa” ou “macaquinho”). “Miquimba, para!”, Tarzan ordenou olhando para Willy. “Esse não sou eu”, disse para si mesmo o menino negro. “Miquimba, pode parar!”. O garotinho continuou correndo e repetindo: “Esse não sou eu”. Willy correu até que as pernas perderam as forças e ele caiu. Resultado: Tarzan lhe deu uma bronca e um castigo. Como dever de casa teria de preencher uma folha de papel almaço, da primeira à última linha, com a frase: “Devo obedecer meus professores”, método pedagógico muito comum nos anos 40 e que duraria mais um bom tempo. 235
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Dona Carmem condoeu-­‐se com a tripla humilhação do filho, a de ter sido chamado de Miquimba, a de ter levado uma bronca e ainda a de ter de cumprir um castigo. Mãe e filho temiam pela reação do pai, um negro orgulhoso da cor da pele que convivia com intelectuais nos bares do Rio de Janeiro e que tinha visto de perto a vida dos negros num dos países mais segregacionistas do mundo, à época, os Estados Unidos. “Cumpra o castigo, entregue para o professor, mas se ele te chamar de Miquimba novamente, aja do mesmo jeito que agiu”. Filho e mãe recobraram as forças. E ela passou a noite bordando o nome do garoto no casaco que ele usava nos dias de frio. No dia seguinte, o aluno negro do professor louro chegou à mesa dele, entregou o castigo, apontou o dedinho para o bordado e disse: “Este é o meu nome”. Orgulho e herança Willy Bezerra de Mello tem esse nome em homenagem a um grande amigo do pai, durante o tempo em que morou nos Estados Unidos. No início do século 20, Antônio Bezerra de Mello largou a cidade onde nasceu, Recife, para fugir de uma epidemia de varíola, tomou um navio às margens do Rio Capiberibe e passou 13 anos no país da Ku Klux Klan. Mas os filhos e oito dos nove netos de Willy têm nomes africanos. Os filhos: Kenya, Mali, Luena, e os gêmeos Ialê e Kwane. 236
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Antes de cultivar o orgulho pela história da resistência dos negros às humilhações dos brancos, Willy sempre gostou de desenhar formas arquitetônicas (e mais tarde formas geométricas, além de figuras negras). Seu traço está em algumas das grandes obras de Brasília. Ele foi um dos desenhistas do Departamento de Urbanismo e Arquitetura da Novacap, desde o tempo do barracão construído onde hoje é o Palácio da Justiça. Detalhou projetos de arquitetura de dezenas de obras modernistas da cidade. Os banheiros do Congresso Nacional, por exemplo, saíram dos esquadros de Willy. Com a inauguração da cidade, o desenhista foi chefiar a fiscalização de obras da Novacap, depois trabalhou na Fundação Cultural. Quando veio para Brasília, em 1958, o menino que correu até cair já era um homem, tinha 23 anos. Deixou no Rio uma namorada firme, hoje sua ex-­‐mulher, e uma mãe apreensiva: “Onde é Goiás? Ninguém sabe onde é Goiás?”. Era longe. Depois de mais de três horas de vôo, Willy desceu no aeroporto de Brasília e procurou por um carro na Novacap que o estaria esperando. Era um sábado, 15 de agosto de 1958. Havia muitos táxis, alguns jipes e um caminhão amarelo com a inscrição da empresa que administrou a construção de Brasília. Todos os passageiros encaminharam-­‐se para a saída, entraram nos táxis e nos jipes e foram embora. “Ficamos só eu e o caminhão. Eu digo: Bom o jeito é pegar uma carona ir para um hotel e esperar segunda-­‐feira”. Bom humor 237
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Procurou pelo motorista do caminhão que também estava meio atrapalhado. “Estou esperando um gringo e o homem não apareceu”. Foi quando Willy desconfiou do que estava acontecendo: “Como é o nome desse gringo?”. E o motorista: “Um tal de Willy”. E o tal de Willy: “É, eu estava esperando um carro, veio um caminhão. Você estava esperando um gringo, veio um negro. Desse jeito ninguém ia achar ninguém”. O artista plástico Olumello e o desenhista Willy são a mesma pessoa. Olumello (“seu Mello”, em iorubá) foi a composição que Willy encontrou para se livrar da inveja que tinha do nome africano dos filhos. “Eu ia carregar nome de gringo pro resto da vida?”, pergunta o artista, meio brincando, meio exercendo seu infatigável ativismo negro. Desde menino, Willy fortaleceu raízes africanas. Aos 12 anos, já pertencia à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, ordem religiosa criada entre os séculos 17 e 18 para proteger sob o manto do sincretismo religioso, negros escravos e libertos. Ele e a ex-­‐mulher, Lydia, são históricos militantes do movimento negro, primeiro no Rio de Janeiro, depois em Brasília. Do gosto pelo traço livre do risco arquitetônico, do fervor com que cultivou a herança cultural africana, da influência de Rubem Valentim e Athos Bulcão nasceu o artista plástico Olumello que, desde o 1º Salão de Arte Moderna de Brasília, participa de exposições coletivas e individuais. Sua obra está no acervo do Museu Afro, em São Paulo. Mas a maior parte dela – bico de pena, colagem tapeçaria, 238
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pintura em acrílico – está nas paredes e nos armários de sua casa, no Guará 2. [...] Ø Proposta de atividade 1: O texto fala sobre a trajetória do artista plástico Olumello. Vários nomes e expressões são usados para se referir a ele, tais como “menino” (título) e “um único aluno negro” (linhas 3 e 4), esta última, aliás, estrategicamente utilizada tendo em vista a temática do preconceito racial. Nos parágrafos 2, 4 e 7, identifique e transcreva, após atenta leitura, outras expressões que façam referência ao protagonista e que reforcem a discussão sobre racismo no texto. Gabarito: “o menino negro” (linha 13); “o aluno negro do professor louro” (linha 29); “o menino que correu até cair” (linha 49). Ø Proposta de atividade 2: 239
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Em sua opinião, qual é o objetivo do texto ao reiterar o termo Tarzan para se referir ao professor de educação física nos primeiros parágrafos? Gabarito: Provavelmente para enfatizar as características físicas dele – forte, alto e louro – em oposição ao aluno negro. Assim, fica mais evidente a atitude preconceituosa contra o menino. Ø Proposta de atividade 3: No 5º parágrafo, a que se refere a expressão “país da Ku Klux Klan”? Que relação pode haver entre tal expressão e a temática abordada no texto? (Você pode pesquisar em sites de busca ou consultar seu professor de história sobre o que veio a ser a Ku Klux Klan). Gabarito: A expressão retoma Estados Unidos, e é assim empregada devido à fama pela qual este país ficou conhecido devido a um violento movimento segregacionista denominado Ku Klux Klan, que teve início no século 19 e se estendeu até meados do século seguinte. Tratava-­‐se de uma ordem de homens adeptos ao protestantismo e ao ideal da supremacia branca, e que, por conta de seu obstinado preconceito, agrediam de diversas formas e matavam pessoas negras em certas regiões dos EUA. 240
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Já que o texto fala sobre um personagem que teve que lutar contra o preconceito racial, podemos notar que a expressão “o país da Ku Klux Klan” realça essa ideia. Ø Proposta de atividade 4: a) Como Olumello (ou Willy) encarou a difícil trajetória de preconceitos durante sua vida? Gabarito: Ele encarou com muita firmeza e coragem, pois apesar das dificuldades impostas a ele e à família, conseguiu se tornar um importante artista. b) Nos dois últimos parágrafos do texto, o personagem central passa a ser categorizado por meio de algumas expressões que acentuam sua ascensão profissional. Identifique e transcreva algumas dessas expressões. Gabarito: “o artista plástico Olumello” (linha 65); “o desenhista Willy” (linha 65); “o artista” (linha 68). Ø Proposta de atividade 5: 241
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Explique a que parte do texto se refere a expressão “o acontecimento que se segue” (linha 7). De que maneira você qualificaria esse “acontecimento” utilizando um adjetivo? Gabarito: essa expressão faz referência a um fato ocorrido com Olumello nos tempos de escola, ocasião em que sofreu preconceito por parte de seu então professor de educação física. Pode-­‐se dizer que a expressão resume, de forma antecipada, todo o parágrafo seguinte. Em minha opinião, esse foi um acontecimento “triste”, “infeliz”, “desagradável”, “marcante” etc. 7. CONCLUSÕES
A trajetória percorrida desde as considerações teóricas até a análise das coleções e as propostas de atividades constitui-­‐
se, a nosso ver, em uma dupla finalidade: a de chamar a atenção sobre as ricas contribuições de uma abordagem textual-­‐
discursiva, como perspectiva teórica, para o ensino de português; e a de demonstrar ao professor possibilidades de aplicar essa abordagem a partir de uma excelente coletânea de textos que é 242
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
o livro didático. Afinal, o professor pode propor atividades que não são contempladas no livro didático, e que, a depender do contexto escolar, podem ser mais apropriadas. A reportagem transcrita na seção anterior mostra que não são somente os gêneros textuais de caráter opinativo os responsáveis por defender pontos de vista. Muitas pesquisas têm confirmado que a impessoalidade no texto é uma ilusão, e que alguns dos gêneros ditos informativos se revestem de uma máscara de neutralidade para camuflar a parcialidade da instância enunciativa, que é caracterizada pela subjetividade. Buscamos mostrar, dessa forma, que certas expressões constituem marcas que denunciam essa subjetividade nos textos, que é o que os tornam veiculadores de pontos de vista, opiniões, avaliações sobre fatos, pessoas, objetos. Assim, a identificação de índices contextuais que levam à recategorização do referente é muito eficiente para se observar como o objeto de discurso pode ser introduzido, transformado e/ou desativado de acordo com os propósitos comunicativos do autor do texto. Acreditamos que dedicar mais tempo e importância aos aspectos argumentativos da referenciação no ensino de língua é um caminho muito produtivo para a formação de leitores 243
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
conscientes, que não se deixam levar pela opinião que o texto apresenta, mas que avaliem os pontos de vista expressos, podendo concordar ou não com eles. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES Jr., M. A. A estratégia discursiva da rotulação: léxico, argumentação e textualidade. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, Vitória, 2011. CAVALCANTE, M. M. Leitura, referenciação e coerência. In: ELIAS, V. M. (org.). Ensino de língua portuguesa: oralidade, escrita, leitura. São Paulo: Contexto, 2011a. p. 183-­‐195. ______. Referenciação: sobre coisas ditas e não ditas. Fortaleza: Edições UFC, 2011b. ______ et al. Dimensões textuais nas perspectivas sociocognitiva e interacional. In: BENTES, A. C.; LEITE, M. Q. Linguística de texto e análise da conversação: panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. p. 225-­‐261. CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008. FRANCIS, Gill. Rotulação do discurso: um aspecto da coesão lexical de grupos nominais. In: CAVALCANTE, Mônica Magalhães; 244
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
RODRIGUES, Bernadete Biasi; Ciulla, Alena (Orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. p. 191-­‐228. JUBRAN, Clélia Cândida Abreu S. O discurso como objeto-­‐de-­‐
discurso em expressões nominais anafóricas. Cadernos de estudos lingüísticos (homenagem a Ingedore Koch), nº 44. Campinas: IEL/Unicamp, jan./jun. 2003. p. 93-­‐104. KOCH, I. G. V. Referenciação e orientação argumentativa. In: KOCH, I. V.; MORATO, E. M.; BENTES, A. C. (orgs.). Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005. p. 33-­‐52. ______. Introdução à linguística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002. ______. A referenciação como atividade cognitivo-­‐discursiva e interacional. Caderno de estudos linguísticos, nº 41. Campinas: IEL/Unicamp, jul./dez., 2001. p. 75-­‐89. ______; MARCUSCHI, L. A. Processos de referenciação na produção discursiva. Revista DELTA, nº 14, 1998. p. 169-­‐190. MARCUSCHI, L. A. Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras. In: KOCH, Ingedore G. V. MORATO, Edwiges M. BENTES, Anna C. Referenciação e discurso. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 53-­‐101. ______. O léxico: lista, rede ou cognição social? In: NEGRI, L. et al (org.). Sentido e significação: em torno da obra de Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2004. p. 263-­‐284. 245
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
MATOS, J. C. As funções discursivas das recategorizações. Dissertação (Mestrado em Linguística), Programa de Pós-­‐
Graduação em Linguística, Universidade Federal do Ceará – UFC, Fortaleza, 2005. MONDADA, L.; DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, M. M. et al. (Orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. p. 17-­‐52. COLEÇÕES ANALISADAS
SETTE, G.; PAULINO, M. A.; STARLING, R. Para ler o mundo. São Paulo: Scipione, 2009. TRAVAGLIA, L. C.; ROCHA, M. A. F.; ARRUDA-­‐FERNANDES, V. M. B. A aventura da linguagem. Curitiba: Editora Dimensão, 2009. 246
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
A (nã0) abordagem da
referenciação em dois livros
didáticos do Ensino Médio
TOMAZ, Natália Rocha Oliveira (UFRJ) 1. INTRODUÇÃO
A década de 1990 representa um marco para a Linguística de Texto. Isso porque, na Suíça, Lorenza Mondada introduzia os primeiros estudos acerca da referenciação, fundamentais para redefinir o que antes se convencionou chamar de Mecanismos coesivos. Hoje, além de Mondada, Dubois, Koch e Marcuschi são nomes indispensáveis para os estudos da referenciação, junto a muitos outros pesquisadores que vêm discutindo novas formas de enxergar os processos coesivos no texto. É fundamental, portanto, percebermos a grande transformação do conceito de referente como uma construção coletiva que é partilhada entre os coparticipantes da enunciação. 247
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Assim, após o contato com esses estudos, parece-­‐nos difícil ainda enxergar a referenciação como uma relação entre expressões referenciais e marcas cotextuais explícitas (CAVALCANTE et al., 2010, p. 235) quando sabemos que, além de elementos linguísticos, esse processo é também cognitivo. A partir desse panorama, analisaremos, neste artigo, duas coleções de livros didáticos do Ensino Médio, muito diferentes entre si no que se refere ao tratamento da referenciação: Português: contexto, interlocução e sentido, de Maria Luiza M. Abaurre, Maria Bernadete M. Abaurre e Marcela Pontara (Editora Moderna), e a coleção Viva Português -­‐ Ensino Médio, de Elizabeth Campos, Paula Marques Cardoso, Silvia Letícia de Andrade (Editora Ática). Nosso objetivo é analisar criticamente o que se diz ou o que se poderia dizer sobre referenciação nesses livros didáticos, considerando que são livros aprovados pelo MEC para uso em sala de aula. De acordo com os PCN de Língua portuguesa, o ensino da Língua deve ser baseado em três objetivos essenciais: leitura, produção textual e análise linguística. Segundo Koch e Elias (2006, p. 11): 248
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
O sentido de um texto é construído na interação texto-­‐sujeitos e não algo que preexista a essa interação. A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo. Dessa forma, para integrar o conjunto de saberes aos mecanismos linguísticos, o estudo da referenciação deveria fazer parte dos livros didáticos. Nesse processo coesivo, há elementos linguísticos com múltiplas funções: indicar pontos de vista, conduzir os direcionamentos argumentativos, recategorizar objetos do discurso. Se esse estudo é ignorado, o reconhecimento da unidade do texto por parte do aluno pode não se efetivar. Essa falta de abordagem da referenciação nos livros didáticos pode culminar em uma análise estanque de frases soltas que não correspondem a enunciados, tampouco fazem sentido fora de contexto. Ainda que, neste breve artigo, apenas duas coleções tenham sido privilegiadas, nosso maior objetivo é tentar compreender o processo de referenciação à luz da Linguística de 249
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Texto, relacionar a teoria existente à realidade da sala de aula por meio dos livros didáticos e propor possibilidades de abordagem do assunto nesses livros. O material didático de Língua Portuguesa deve ser uma tentativa de tornar a Língua pertinente para a vida dos alunos, fazer uma real integração entre as áreas básicas em que se divide o ensino de língua materna e formar leitores críticos, falantes e escritores mais competentes. 2. OS PROCESSOS DE REFERENCIAÇÃO
Nos anos de 1980, a noção de referente era, certamente, bem diferente da visão atual. Entendia-­‐se como referenciação o processo cotextual pelo qual um elemento do texto remetia a outro com que tivesse uma relação interpretativa. Essa visão, difundida por grandes nomes, como Halliday e Hasan (apud CAVALCANTE et al., 2010), foi, sem dúvida, muito importante para os avanços dos estudos da Linguística de Texto, já que a limitação dessa classificação gerou a necessidade de se ampliarem os estudos para além da superfície do texto. A partir desses estudos, o conceito de referente foi se aprofundando e passou a ser definido como uma entidade 250
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
mental, construída coletivamente pelos participantes da enunciação. Assim, não se pode negar que, em muitos casos, ele está relacionado às estruturas sintático-­‐semânticas e escolhas lexicais presentes no enunciado, mas, acima de tudo, o contexto sociodiscursivo e cultural é fundamental para que os participantes da enunciação cheguem à plena comunicação. Portanto, podemos afirmar que a noção de referenciação passa por aspectos linguísticos, sociocognitivos, discursivos e interacionais. Segundo Cavalcante (2011), o referente, nessa perspectiva, é uma entidade abstrata, imaterial, projetada pelo enunciador na situação de comunicação com seu interlocutor. Essa representação do referente varia tanto para o enunciador quanto para seu coenunciador, ainda que se trate do mesmo objeto de discurso. É uma realização, pois, subjetiva e instável. A linguista considera ainda que, ao fazer referência a algo, damos essência substantiva a uma entidade abstrata. Daí serem os sintagmas nominais – e também os pronomes substantivos – as formas mais comuns para nomear um referente, incluindo-­‐se nesse processo os sintagmas adverbiais. 251
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Segundo Koch e Elias (2006), ao construirmos referentes textuais, podemos empregar três estratégias: a introdução (construção), a retomada (manutenção) e desfocalização. A introdução ocorre quando um “objeto” ou referente é introduzido pela primeira vez em um texto a partir de uma expressão linguística que se destaca, que é focalizada no texto. Já a retomada acontece se houver a reativação de um referente já expresso no texto, mantendo o objeto de discurso em evidência. É importante ressaltar que quando não há manutenção de um “objeto” introduzido explicitamente no texto, trata-­‐se do caso das anáforas indiretas, em que os seus referentes não podem ser recuperados pelo cotexto, o que veremos mais adiante. A desfocalização, por sua vez, trata da sobreposição de um novo referente que passa a ser o foco do texto em um dado momento, reduzindo a evidência de “objeto” anterior. Entretanto, Koch e Elias (2006, p. 126) afirmam que “O objeto retirado de foco, contudo, permanece em estado de ativação parcial (stand by), ou seja, ele continua disponível para utilização imediata sempre que necessário”. Tomando como base as introduções referenciais, se a criação de um referente se estabelece por instâncias de ordem 252
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
subjetiva, podemos afirmar que as expressões referenciais carregam pontos de vista. A referenciação, portanto, pode revelar a intencionalidade do enunciador e orientar o interlocutor na construção dos sentidos, que, ainda assim, dependerão das vivências socioculturais particulares de ambos, num processo singular, inédito e que não se repete. Sobre esse teor argumentativo dos processos de referenciação, Cortez (2005, p. 318) afirma que: [...] referência como um processo realizado no discurso e [...] referentes como objetos-­‐de-­‐
discurso, que, apresentados, construídos e desenvolvidos discursivamente, contribuem para a orientação argumentativa do texto e a articulação de um “projeto de sentido”. A ideia de Cortez só pode ser compreendida se entendermos que a referenciação é uma forma pessoal de ler o mundo, se considerarmos as coisas do mundo como referentes construídos e reconstruídos no discurso. Assim, a referenciação consiste na construção de objetos de discurso, não como referentes presentes no mundo, já que é o sujeito que está no centro da criação do discurso, e depende do ponto de vista dos 253
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
participantes da enunciação e do contexto de interação. De acordo com Marquesi (2007, p. 218), “a realidade é construída, mantida e alterada não somente pela forma como sociocognitivamente se interage com ele: interpretam-­‐se e constroem-­‐se mundos por meio da interação com o entorno físico, social e cultural”. Considerando que não há uma única versão do mundo ou verdade universal sobre ele, podemos afirmar que toda referência é construída de maneira social e intersubjetivamente pelos sujeitos enunciadores, de modo que nenhum enunciado é neutro. Quando passamos a enxergar os processos de referenciação como construções coletivas, percebemos que um objeto de discurso é dinâmico o suficiente para que a manutenção do tópico, na progressão textual, passe por modificações, desativações ou reativações. A essas transformações chamamos recategorização de um referente. Assim, os processos referenciais recategorizáveis estão presentes no transcurso da interação, pois são responsáveis por comprovar que um objeto de discurso se reconfigura, se transforma, seja em estruturas sintático-­‐semânticas, seja pela apreensão do contexto sociodiscursivo e cultural do enunciador e de seu coenunciador. 254
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
3. AS ANÁFORAS NOS PROCESSOS DE
REFERENCIAÇÃO
Outro conceito que se ampliou nos estudos da Linguística de Texto é a anáfora. Antes caracterizada como expressões referenciais do cotexto que fazem remissão a outro elemento do texto, a anáfora passou a abarcar também uma dimensão em que não há mais obrigatoriedade em explicitar a expressão referencial. É preciso reiterar que estamos tratando da anáfora como um processo de referenciação atrelado aos aspectos linguísticos, sociocognitivos, discursivos e interacionais. Assim, não há mais espaço para uma visão apenas linguística, que privilegie unicamente o campo cotextual, relacionada à anáfora. Essas transformações no campo da referenciação implicam alterações nos estudos não só das anáforas, mas também das introduções referenciais, já que o antecedente de uma anáfora pode não estar explícito no cotexto. Quando tratamos das introduções referenciais, estamos nos referindo a expressões que não estão relacionadas a elementos anteriores do cotexto, são referentes novos. Entretanto, quando uma expressão referencial, por meio de uma 255
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
remissão direta, alude a esses referentes novos, então temos um caso de anáfora, mais precisamente de uma anáfora direta, ainda que nessa anáfora o referente seja recategorizado. A distinção crucial entre uma anáfora direta e uma indireta está na relação entre essas formas de referência e seus termos-­‐âncora. Por âncora entende-­‐se a relação de inferência entre uma expressão referencial e conhecimentos diversos ativados pela memória dos coenunciadores. Dessa forma, as âncoras são fundamentais para os dois tipos de anáforas, seja em uma relação correferencial – anáforas diretas – seja em uma não correferencialidade – anáforas indiretas. Nos casos em que ocorrem anáforas diretas, a expressão referencial recupera o mesmo objeto de discurso antes introduzido. Entretanto, se nos voltamos para as anáforas indiretas, percebemos que o que se recupera, na verdade, são referentes novos não depreensíveis do cotexto anterior, mas pressupostos por meio de pistas do contexto ou âncoras presentes no texto. Vejamos o que diz Koch (apud CAVALCANTE, 2011, p. 57 -­‐ 58) a esse respeito: As anáforas indiretas, por seu turno, caracterizam-­‐
se pelo fato de não existir no cotexto um antecedente explícito, mas sim um elemento de 256
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
relação (por vezes uma estrutura complexa), que se pode denominar âncora (SCHWARZ, 2000) e que é decisivo para a interpretação; ou seja, trata-­‐
se de formas nominais que se encontram em dependência interpretativa de determinadas expressões da estrutura textual em desenvolvimento, o que permite que seus referentes sejam ativados por meio de processos cognitivos inferenciais conhecimentos dos mais que mobilizam diversos tipos armazenados na memória dos interlocutores. Nessa perspectiva, parece-­‐nos claro que a melhor distinção entre a anáfora direta e a indireta está na manutenção de um referente já explicitado para aquela e na não retomada do mesmo referente para esta. As anáforas indiretas não apresentam um antecedente explícito no cotexto, mas âncoras que são essenciais como elementos de relação entre os significados. Sendo anáforas diretas ou indiretas, o importante é que a progressão referencial é projetada no texto por processos de inferência requisitados, nesse caso, pelas anáforas a partir da troca coletiva entre os participantes da enunciação. 257
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
4.
ENCAPSULADORES:
UM
TIPO
ESPECIAL DE ANÁFORA INDIRETA
Ao falar de anáforas indiretas, não podemos nos esquecer de que há um tipo particular muito comum nos textos: os encapsuladores. Sua classificação como anáfora indireta decorre da retomada ou antecipação de um referente que recupera informações espalhadas, não pontuais do texto, por isso não conseguimos encontrar termos-­‐âncora na superfície do texto. Já a sua natureza encapsuladora está relacionada à capacidade de resumir, sintetizar conteúdos. Criados a partir de uma informação velha com referências novas e resumitivas, os encapsuladores podem trazer consigo mais do que a simples retomada sintética de referentes. Também podem ser cruciais na argumentação, quando por meio de certas escolhas lexicais um ponto de vista é defendido. Para esse fim, as recategorizações de referentes são muito empregadas nos encapsulamentos, já que indicam a forma particular como o enunciador enxerga o referente. A visão de Francis (apud CAVALCANTE, 2011) a respeito dos rótulos apresenta algumas singularidades em relação aos encapsuladores. Para a autora, os rótulos são também formas 258
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
resumitivas de conteúdos do texto, mas dispõem de um traço essencial: manifestam-­‐se por sintagmas nominais. Parece-­‐nos que a visão de Cavalcante em não distinguir rótulos de encapsuladores é a mais coerente para nosso estudo, voltado à aplicação da referenciação nos livros didáticos e em sala de aula, uma vez que a função textual de ambos é a mesma – sintetizar conteúdos. Portanto, devemos destacar a função coesiva dos encapsuladores. Seu emprego auxilia na progressão e manutenção de tópicos discursivos, porque marca o encerramento de uma porção textual, direcionando o interlocutor para o próximo estágio. 5. ANÁLISE DA REFERENCIAÇÃO NOS
LIVROS DIDÁTICOS
Nas coleções de livros didáticos Português: contexto, interlocução e sentido e Viva Português – ambas voltadas ao Ensino Médio e aprovadas pelo PNLD –, podemos constatar a precariedade da abordagem sobre a temática da referenciação. Segundo o Guia PNLD 2012 de Língua Portuguesa para o Ensino Médio (p. 12-­‐13): 259
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Experimentando diferentes caminhos, e com diferentes graus de eficácia, todas elas trazem textos, informações, conceitos, noções e atividades capazes de colaborar, em maior ou menor medida, com os objetivos oficiais estabelecidos para cada um dos quatro grandes objetos de ensino da disciplina: leitura, produção de textos escritos, oralidade e conhecimentos linguísticos. É surpreendente perceber que a ausência de um estudo que privilegie a referenciação como um processo coesivo diretamente relacionado à leitura, à produção de textos escritos ou orais e aos conhecimentos linguísticos não tenha sido notada, já que se consideram as duas coleções aqui tratadas, além das demais que constam do guia, como satisfatórias nesses aspectos. 5.1. Coleção Viva Português
Tomando por base a coleção Viva Português -­‐ Ensino Médio, de Elizabeth Campos, Paula Marques Cardoso e Silvia Letícia de Andrade (Editora Ática), percebemos que há muitas propostas interessantes, como a concretização por parte dos 260
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
alunos de projetos diversos que se baseiam nos mais variados gêneros. Esse projetos são divididos por etapas ao longo do ano e devem ser orientados pelo professor a partir da divisão em grupos de alunos. Porém, as etapas dos projetos que se relacionam ao texto escrito ou oral não aproveitam para abordar os conceitos imbricados no campo da referenciação. Aliás, essa temática não é mencionada no volume da 3ª série, último ano letivo do aluno, que, teoricamente, está prestes a ingressar no Ensino Superior. Assim, o reconhecimento e emprego de certas referências pode se tornar tarefa difícil para o universitário, que se depara com um ambiente mais exigente no campo da leitura e da escrita. No volume 1, destinado à 1ª série, encontramos algumas menções à referenciação. No entanto, as autoras, nesses casos, permaneceram adotando uma visão já ultrapassada sobre os processos de referenciação, focando apenas em marcas cotextuais, perspectiva que já se ampliou, conforme vimos no início deste artigo. Vejamos, por exemplo, a atividade proposta no referido volume (p. 89): Lisbela e o prisioneiro Osman Lins [...] 261
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Lisbela: Meu pai, a Vitória está parecendo uma terra sem dono. (Vendo Leléu). Ah, o senhor! Leléu: Visitando os amigos. Lisbela: Agora, vamos ter sossego lá em casa. Leléu: Queira Deus. Lisbela: Então, lhe prenderam de novo. Leléu: Me prenderam, dona, mas eu acho que valeu a pena. Só poder ver a senhora outra vez! Ten. Guedes: Você não tem o que fazer aqui, Lisbela? Pode voltar, não fale com esse homem. Lisbela: O que é que tem? O senhor não achou que podia levá-­‐lo lá pra casa? Ten. Guedes: Aquilo foi um erro. Um erro triste. Lisbela: Quero que ele saiba de uma coisa: eu fui contra aquela história de levá-­‐lo. Leléu: Por quê? Lisbela: Não era direito. Leléu: (Com alívio.) Ah, sim! Com isso, me contento. Mas fiquei triste quando não lhe vi naquele dia. A senhora, no circo. Tinha me batido tantas palmas! Ten. Guedes: Vá pra casa, Lisbela. Lisbela: (Sem dar-­‐lhe atenção.) Como é que você pode se lembrar de mim? Todo mundo bateu palmas. Leléu: Eu só via as da senhora, moça. Num domingo de tarde. A senhora estava na segunda 262
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
fila de cadeiras, de blusa branca e uma fita verde no cabelo. Eu vi. [...] 4) Os textos lidos neste capítulo são compostos de diversas frases que formam uma unidade. Essa unidade resulta do emprego de alguns recursos coesivos. Por exemplo: aquilo que foi dito em uma frase é retomado nas frases seguintes com outras palavras, assim o autor pode fazer o assunto avançar, ao mesmo tempo que mantém o leitor sempre ligado à ideia central do texto. Releia o trecho que vai da fala 43 (Meu pai, a Vitória está parecendo...) à 58 (Eu só via as da senhora...) do texto Lisbela e o prisioneiro. a) Quais são os termos empregados nas falas de Lisbela para essa personagem se dirigir ou se referir a Leléu? b) Que termos são empregados nas falas de Leléu para essa personagem se dirigir ou se referir a Lisbela? Acrescentemos ainda que as respostas são, segundo o gabarito presente no livro, respectivamente: “o senhor, lhe, lo, ele, você” e “dona, a senhora, lhe, (d)a senhora, moça”. Há, inclusive, uma nota para o professor no rodapé desta mesma página: “Prof.(a), chame a atenção dos alunos para o fato de que 263
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
os termos encontrados nos itens a e b são pronomes pessoais e de tratamento”. A redução da importância da referenciação é tão explícita em ocorrências como essa, que tendemos a acreditar, a partir dessa forma de abordagem, que o assunto se restringe a aspectos gramaticais, já que apenas os pronomes recebem importância nos processos coesivos. Em outro momento, ainda no volume 1, a explicitação da análise da referenciação como uma relação entre termos do cotexto é reiterada por meio de um box (p. 230): “A coesão é a ligação entre os elementos de um texto”. Por essa lógica, fica evidente que a visão privilegiada se restringe a elementos cotextuais apenas. Com relação ao volume 2 para a 2ª série, da mesma coleção Viva Português, encontramos uma referência à anáfora, porém numa perspectiva desatualizada. Vejamos a definição e o exemplo de anáfora (p. 71) constante do volume que estamos analisando: Anáfora é um recurso linguístico de coesão textual em que um termo gramatical (pronome, advérbio, substantivo) recupera um outro termo ou expressão. 264
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
As pessoas saíam aos poucos da igreja. O problema é que o lugar estava muito quente. É importante relembrar que, segundo as concepções da LT, a anáfora teve sua dimensão textual ampliada, a ponto de não apresentar mais a obrigatoriedade de explicitar a expressão referencial no texto, o que vai de encontro ao que as autoras determinam em sua coleção no Manual do Professor. Na continuação dessa conceituação de anáfora, o volume passa a abordar os processos de hiperonímia e hiponímia. Aqui também não há novidades: o assunto se restringe a vocabulário geral ou específico e são apresentados sem relação com a referenciação. Koch e Elias (2006), por exemplo, tratam da hiperonímia e homonímia como casos de anáfora especificadora, já que são formas refinadas de especificação de um referente. Seria interessante que as autoras demonstrassem, ao menos, que hiperônimos e hipônimos são conceitos relacionados à anáfora e não separassem os dois assuntos como se fossem tópicos distintos. De modo geral, se analisarmos quantitativamente os momentos em que, de alguma maneira, a coleção Viva Português menciona a referenciação, ainda que com outras nomenclaturas, 265
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
chegaremos à conclusão de que os volumes praticamente ignoraram a existência do assunto. A abordagem é rápida, pontual e restrita aos dois primeiros volumes. Qualitativamente, é preciso que haja atualização sobre os processos de referenciação. 5.2.
Coleção
Português:
Contexto,
interlocução e sentido
Diferentemente da coleção anterior, os volumes de Português: Contexto, interlocução e sentido, de Maria Luiza M. Abaurre, Maria Bernadete M. Abaurre e Marcela Pontara (Editora Moderna), parecem estar no caminho para uma visão mais moderna acerca dos processos de referenciação. Porém, esse progresso está particularmente presente em apenas um volume, o que compromete a proposta da coleção como um todo se analisarmos os demais volumes. Tal qual ocorreu em Viva Português, também não encontramos qualquer menção à referenciação no volume 3 da coleção Português: Contexto, interlocução e sentido. Os capítulos da parte de gramática ficam restritos ao estudo das orações, crase e pontuação. Ainda nessa parte, a unidade 4, “Articulação 266
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dos termos na oração”, poderia tratar do referente, mas concordância e regência são os conceitos aprofundados ali. Em seguida, em outra parte, “Produção de texto”, privilegiam-­‐se as características de gêneros textuais. Em vários gêneros apresentados pelas autoras, a referenciação poderia ser inserida, seja abordando sua importância na construção de sentido dos textos, ou mesmo na elaboração textual. Nada disso ocorre. No volume 1, há vários momentos em que a referenciação poderia estar mais clara. As autoras exploram teorias e exercícios voltados, por meio das variações linguísticas, a gírias ou jargões. Afirmam que quem não tem conhecimento específico das referências dessas expressões não compreenderá os termos. E ainda acrescentam que essas expressões fazem parte, muitas vezes, do vocabulário de um grupo específico e definem quem são os interlocutores do texto. Embora não mencionem diretamente os conceitos envolvidos na referenciação, as autoras valorizam, na relação comunicativa de expressões e significados, o aspecto interacional do discurso, o que já é um fator positivo na coleção. O volume 1 traz ainda (p. 265) uma parte que se intitula “Usos das relações lexicais na construção da coesão textual”, porém dá-­‐se ênfase a retomadas vocabulares de referentes 267
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
explícitos. Por outro lado, as autoras valorizam a ideia de campo semântico como fator responsável pelas relações de sentido construídas em um texto. As autoras surpreendem nesse mesmo volume quando comentam o texto “Vaguidão específica”, de Millôr Fernandes, em que a falta de referentes explícitos é o elemento de humor para o leitor. Após o texto, afirmam (p. 243): A leitura do texto sugere que essas duas mulheres sabem muito bem sobre o que estão falando. O leitor, porém, não é capaz de identificar as referências que podem atribuir um sentido específico aos enunciados do diálogo. Isso acontece porque ele não tem conhecimento do contexto em que se produziu essa interlocução. O humor do texto nasce da impossibilidade de compreensão da conversa das duas mulheres. Esse texto é um exemplo extremo da exploração de uma característica marcante da linguagem: ela é indeterminada. Isso significa que a responsabilidade por dizer ou não dizer algo, pelo grau de explicitação a que se quer chegar, pela escolha de enunciados ambíguos, é do falante, que tem sempre um trabalho a realizar a partir das 268
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possibilidades que a língua coloca à sua disposição. Nesse fragmento, podemos notar a valorização das autoras aos aspectos linguísticos, sociocognitivos, discursivos e interacionais dos processos de referenciação. Seria interessante que se destacasse a importância da construção coletiva do referente a partir do papel fundamental também do interlocutor. Já no volume 2, as autoras retrocedem dessa visão, por exemplo, quando em um box definem anáfora como “processo linguístico por meio do qual um termo recupera outro termo que o antecedeu em um texto” (p. 368). Fica claro que estão tratando do conceito antigo de anáfora, que privilegiava apenas os mecanismos linguísticos explícitos do texto. O volume 2 traz, inclusive, uma seção dedicada à coesão e coerência, tratando dos conceitos de anáfora e, agora, catáfora. A abordagem, no entanto, se volta apenas para os mecanismos linguísticos de retomada ou antecipação, de substituição, de repetição ou reiteração e de contiguidade. O volume 2 não amplia o conceito de referente como ocorreu no volume 1. Assim, comparando as coleções Português: Contexto, interlocução e sentido com Viva Português, percebemos grande 269
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diferença em relação à abordagem sobre referenciação. Acreditamos que, se houvesse uma continuidade nos volumes 2 e 3 do estudo feito no volume 1 em Português: Contexto, interlocução e sentido, os conceitos de referenciação poderiam ser construídos pelos alunos de forma mais completa, intrínseca e natural ao chegarem à 3ª série, mas o que vimos foi um estudo que principia em uma razoável abordagem da referenciação no volume 1 e desaparece nos dois volumes seguintes. 6. PROPOSTAS DE ATIVIDADES
Com base nos conceitos mais recentes relacionados à referenciação e tendo em vista a abordagem insuficiente ou nula – em alguns momentos – desse estudo pelas coleções aqui analisadas, propomos atividades baseadas no texto “Um tipo inesquecível”, de Silvio Lancellotti, retirado de Viva Português, volume 3 (p. 248): Um tipo inesquecível Silvio Lancellotti Criada em 1922, a revista Seleções do Reader’s Digest, até hoje publicada em mais de 70 países, ostenta uma rubrica que sempre me fascinou: “O 270
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Meu Tipo Inesquecível”. Pessoas várias enviam textos a respeito de outras que, de alguma forma, encantaram os seus destinos. Neste começo de 2010 eu utilizo este “Quintal Paulistano” a fim de eleger meu tipo inesquecível no ano que acabou. Trata-­‐se de Frederico Marcondes de Carvalho, nascido em Santos, em março de 1981, um produtor do “Pontapé Inicial”, o programa matinal do qual, eventualmente, participo no canal ESPN Brasil. Filho de um neurologista e de uma enfermeira, por incrível que pareça, Frederico padeceu no parto. O cordão umbilical se enrolou no seu pescoço e praticamente o enforcou. Por falta do oxigênio crucial, se tornou um deficiente físico, na sua mobilidade e na sua fala. Deficiente? Absolutamente, não. À parte o fato de ele torcer para o “Peixe”, em que fulgurou um certo Pelé, que Frederico jamais viu jogar ao vivo e em cores. Um absurdo de inteligência e de criatividade, ele aprendeu, nas suas palavras, “a aceitar o fato de ser diferente”. Completou, em escolas convencionais, o curso colegial. E se diplomou em jornalismo. Na faculdade, mesmo com todas as dificuldades de dicção, conduziu um programa de rádio no qual alinhavou entrevistas inesquecíveis com Mário Soares, líder político de Portugal, com o 271
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presidente Fernando Henrique Cardoso e com Chico Buarque. O esforço e o sucesso cativaram José Trajano, diretor da ESPN, que lhe abriu um espaço, em 2004. Apaixonado por música, dono de uma vasta coleção de CDs de todos os estilos, da MPB ao fado, do jazz ao tango, ele é hoje responsável pela trilha sonora que escolta o “Pontapé”. Do chefe, recebe broncas, quando escorrega, como qualquer funcionário da emissora. Invariavelmente, porém, responde com um bom humor cativante. Emociona testemunhar o seu esforço e a sua competência. E saber que Frederico, atualmente, faz aulas de teclado e de canto. Que Frederico, apesar das dificuldades na fala e na mobilidade, é um jovem feliz. Eu o admiro. Aqui, peço que ele enquadre e dependure este “Quintal” na parede do seu quarto. Revista da Folha, 10 jan. 2010. Folhapress. 1)
Ao caracterizar Frederico Marcondes de Carvalho, no 3º parágrafo, o escritor Silvio Lancellotti demonstrou não concordar com a escolha do time do amigo. Frederico torce para o “Peixe”. Apesar de não haver referência direta no texto, a não 272
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ser uma pista de que Pelé foi jogador desse time, você saberia identificar de que clube se trata? Trata-­‐se do Santos, time no qual Pelé se consagrou. 2) “Rubrica” é uma palavra que pode apresentar vários significados: I -­‐ Assinatura abreviada. II -­‐ Descrição em detalhes sobre como um ator deve encenar seu personagem no teatro. III -­‐ Programa ou atração de rádio ou televisão. a)
O significado de “rubrica” no 1º parágrafo do texto corresponde a algum dos sentidos acima? Em caso negativo, explique qual é o seu significado. Não. Rubrica significa coluna ou seção da revista a que Silvio Lancellotti se refere. b)
Que passagens ou expressões referem-­‐se à palavra “rubrica” e dão pistas de seu significado? O próprio nome da seção, “O Meu Tipo Inesquecível”, para onde as pessoas enviam “textos a respeito de outras que, de alguma forma, encantaram os seus destinos”. 273
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3)
Os processos coesivos são fundamentais para que haja progressão textual. Nesse sentido, a referenciação é comumente empregada nos textos para retomar ou antecipar termos ou ideias compartilhadas com o leitor. Baseando-­‐se nisso, complete o quadro abaixo com fragmentos do 2º parágrafo do texto que cumpram as funções especificadas em cada coluna: Expressão introduzida pela primeira vez no parágrafo Frederico Marcondes de Carvalho “Pontapé Inicial” 4)
Expressão que a retoma um produtor do “Pontapé Inicial” / Filho de um neurologista e de uma enfermeira o programa matinal Antes mesmo de falar sobre Frederico Marcondes de Carvalho no 2º parágrafo, o autor antecipa essa referência, utilizando uma determinada expressão no 1º parágrafo. Destaque-­‐a e comente a respeito da escolha dessa expressão para tratar de Frederico. A expressão “meu tipo inesquecível” no final do primeiro parágrafo já antecipa a referência a Frederico Marcondes de Carvalho. A escolha dessa expressão se deve ao autor considerar 274
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que Frederico é uma pessoa que marcou sua vida, seu tipo inesquecível, já que só são escolhidas pessoas que “encantaram” o destino de alguém. 5)
A referenciação pode ocorrer em um texto, muitas vezes, por meio da omissão de um termo ou até por outro termo ou expressão que tenha relação de significado com o anterior. Releia o trecho seguinte, retirado do 1º parágrafo do texto: Pessoas várias enviam textos a respeito de outras (...) A referência adequada que se pode fazer do termo destacado indica que se trata de: a) situações. b) publicações. c) pessoas. d) revistas. e) rubricas. 7. CONCLUSÃO
Não são poucos os artigos publicados acerca da preocupação de muitos especialistas em Língua Portuguesa com o livro didático usado nas escolas. A inquietação desses 275
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profissionais é justificada pela qualidade duvidosa de alguns manuais levados à sala de aula, que, devendo ser uma fonte de estímulo e desafio para o discente, acabam se transformando em um fim em si mesmo. Apesar de apresentarem uma razoável variedade de textos que permitem um bom trabalho da construção do referente, esses livros perdem a oportunidade de fazê-­‐lo, quando privilegiam, ora questões puramente gramaticais, ora interpretações sem propósito. A referenciação parece-­‐nos de vital importância porque se relaciona à cadeia de construção dos sentidos, essenciais à interpretação e à produção textual. É por meio dela que o aluno constrói inferências e se posiciona como enunciador ou como coenunciador em uma interação. Enfocar, nos livros didáticos, os processos de referenciação é propiciar ao aluno um aprofundamento em um estudo concreto, que se reflete no seu cotidiano e que, portanto, ele reconhecerá como fundamental. Dessa forma, os livros didáticos devem se preocupar com essa proposta se querem atender aos Parâmetros Curriculares Nacionais. A visão dos PCN de Língua Portuguesa do Ensino Médio (p. 5) acerca da linguagem é bastante clara: 276
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A linguagem é considerada aqui como a capacidade humana de articular significados coletivos e compartilhá-­‐los, em sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade. A principal razão de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido. E ainda: Não há linguagem no vazio, seu grande objetivo é a interação, a comunicação com um outro, dentro de um espaço social, como, por exemplo, a língua, produto humano e social que organiza e ordena de forma articulada os dados das experiências comuns aos membros de determinada comunidade linguística. Dentre os diversos processos envolvidos na construção do sentido, a referenciação também deve ter seu espaço assegurado pelos livros didáticos e pelos professores em sala de aula. Se a linguagem está íntima e diretamente relacionada à vida em sociedade, ao indivíduo e às experiências comuns com que vai construindo seu repertório de conhecimento, o estudo da 277
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referenciação também deve figurar em meio a tantos pretextos para usos do texto. Todo esse conhecimento beneficia os estudantes, que têm o privilégio de compreender melhor o processo de referenciação nos diversos textos – orais e escritos – que produzem, leem ou ouvem. No entanto, as escolas e os livros didáticos não têm contribuído para o alcance desse ideal, reproduzindo – muito raramente – visões ultrapassadas sobre as questões que envolvem a referenciação textual ou sequer mencionando a existência desse assunto – o mais comum dos casos, como vimos nas duas coleções analisadas. A abordagem da referenciação nas duas coleções que analisamos está muito aquém do que deveria. Ainda assim, Português: contexto, interlocução e sentido parece considerar uma relativa importância do assunto, já que em certos momentos menciona-­‐o de acordo com as novas teorias da Linguística de Texto, o que não ocorre com Viva Português. É preciso que leitura e produção textual sejam o centro dos estudos de Língua portuguesa em sala de aula. Para tanto, a referenciação deve ser incluída efetivamente nos livros didáticos, que, muitas vezes, norteiam o trabalho do professor. Se a abordagem desse assunto, presente no ambiente escolar e na 278
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vida do aluno, fosse considerada com a mesma importância que os estudos dos aspectos gramaticais do texto têm nesses livros, certamente a situação da referenciação seria outra. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Guia de livros didáticos: PNLD 2012: Língua Portuguesa. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2011. ______. Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Médio, Língua portuguesa. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica/MEC, 1999. CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Referenciação: sobre coisas ditas e não ditas. Fortaleza: EdUFC, 2011. CORTEZ, Suzana. Referenciação e ponto de vista: constituição de instâncias discursivas para orientação argumentativa na crônica de ficção. In: KOCH, Ingedore V.; MORATO, Edwiges M.; BENTES, Anna C. (Orgs.) Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005, p. 317 – 338. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e Compreender os sentidos do Texto. Ed. São Paulo: Contexto, 2006. MARQUESI, Sueli. Referenciação e intencionalidade: considerações sobre escrita e leitura. In: CARMELINO, A. C.; PERNAMBUCO, J.; FERREIRA, L. A. (Orgs.). Nos caminhos do texto: 279
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atos de leitura. Col. Mestrado em Linguística, v. 2. São Paulo: EdUnifran, 2007. p. 215-­‐233. (Disponível em http://publicações.unifran.br/index.php/coelcaoMestradoEmLing
uistica/issue/view/59) LIVROS DIDÁTICOS
ABAURRE, Maria Luiza M.; ABAURRE, Maria Bernadete M.; PONTARA, Marcela. Português: contexto, interlocução e sentido. 3 v. São Paulo: Moderna, 2010. CAMPOS, Elizabeth; CARDOSO, Paula Marques; ANDRADE, Silvia Letícia. Viva português. 3 v. São Paulo: Ed. Ática, 2011. 280
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A referenciação em duas coleções
didáticas
MARQUES, Matheus Odorisi (UFRJ) 1. INTRODUÇÃO
Quando pensamos no estudo da língua portuguesa em salas de aula brasileiras, várias questões vêm à tona. Uma delas, primordial, mas que há séculos constitui um problema não resolvido, é o ensino da língua não vinculada ao texto. A negação da textualidade no ensino imprime um caráter sistemático às análises, fazendo com que sejam geralmente superficiais . Esse fato lembra-­‐nos uma comparação feita por Marcos Bagno, que lança mão do exemplo da água e do peixe. Para o autor, seres humanos são como peixes que vivem imersos em linguagem, das quais possuem uma dependência intrínsica. Essa relação peixe/água também pode ser pensada no que toca à relação entre a linguagem e o texto. Uma palavra ou uma frase solta, fora do contexto, seria como um peixe fora d'água, teria sua existência comprometida. Bagno (Bagno, 2012 p. 12) diz que “o 281
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texto é o ambiente natural para qualquer palavra, qualquer frase. Fora do texto, a palavra sufoca, a palavra estrebucha e morre.”. Podemos lançar mão de outra comparação para tratar da questão, ao pensarmos no papel das palavras como ativadores de sentido, o que já leva o nosso pensamento para teorias da Linguística Textual mais moderna. Pensemos em um tangram (ver imagem 1), que é um quebra cabeça chinês. Muito antigo, o jogo é formado por sete peças -­‐ 5 triângulos, 1 quadrado e 1 paralelogramo – que combinadas, podem formar mais de 1500 figuras diversas. O jogo é utilizado para treinar habilidades de rociocínio lógico em aulas de matemática. Ilustração 1: Formas do jogo Tangram Ao combinarmos as peças do jogo, formamos imagens que dão sentido às simples formas geométricas que constituem o 282
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Tamgram, transformando a linguagem matemática na linguagem representacional dos desenhos, como podemos ver na figura 2: Ilustração 2: Imagens formadas a p artir das formas do Tangram Podemos pensar que as palavras ou frases soltas são as formas geométricas que compõem o jogo. Cada uma delas é uma forma que funciona separadamente, assim como cada palavra ou construção ativa um sentido. Porém, o que dá base para que a linguagem adquira existência é a dimensão textual, assim como a linguagem geométrica das figuras do tangram adquire existência representacional ao se combinarem. O estudo de formas 283
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separadas das figuras do tangram nada nos diz sobre as possibilidades imagéticas que elas possibilitam. Cada figura montada com as peças traz à tona sentidos diversos que fazem parte de contextos diversos, numa cadeia significativa e correlacional, o que torna a busca pelo sentido uma tarefa profunda e fascinante. Isolar as peças, assim como isolar as palavras nos estudos da língua portuguesa, é fugir dessa análise. O problema maior ocorre quando privamos os alunos desses processos em sala de aula, numa prática perpetuada durante gerações, que ensina o aluno a fazer análises pontuais dos elementos linguísticos. E o que cada vez mais está sendo discutido, até mesmo pelo MEC como podemos ver no conteúdo cobrado pelo ENEM, é a questão da língua amparada sempre pelo texto: palavras, frases, orações, imagens, e tudo mais que constitui linguagem sendo analisadas em seus habitats naturais. O artigo que aqui apresentamos busca analisar como manuais que auxiliam os professores de ensino fundamental a orientar os alunos em relação a questões textuais tratam um ponto fundamental: a referenciação. Esse ponto relaciona-­‐se de maneira cíclica com a visão de texto como base para o estudo da língua. Se, por um lado, para entendermos a referenciação é necessária a visão do todo, da dimensão textual, estudando 284
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referenciação solidificamos essa mesma ideia, de texto como um constructo relacional. A necessidade de ensinar referenciação para a compreensão do processo produtivo e interpretativo do texto justifica uma abordagem comprometida das operações que utilizamos para tal, que constroem sentidos por meio de ativação e reativação de conceitos, e exercitam também uma das mais importantes funções da linguagem: a ideologia. 2. SOBRE O CONCEITO DE TEXTO
É mais fácil definirmos o que não constitui texto do que definir o que é texto, já que compartilhamos da ideia de que “conjuntos aleatórios de palavras ou frases não constituem um texto” (Bagno, 2010 p. 30). Outro consenso é que textos preveem inicialmente situações comunicativas que envolvem emissores e interlocutores e pressupoem um evento social, com algum propósito e alguma função em um deteminado contexto. A concepção de ato comunicativo leva o texto a um patamar em que operam ações que vão além da linguística, como as ações sociais e cognitivas. Koch (2010) percorre algumas definições de texto lançadas ao longo dos estudos da Linguística de Texto. A autora 285
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afirma que, quando a língua era vista como representação do pensamento, o texto era considerado como um produto lógico do pensamento do autor, o que dava ao leitor o papel de captador desse pensamento e de suas intenções (cf. Koch 2010 p.11) , em um exercício como procurar ideias em um saco de frases. Já quando a língua é vista como uma estrutura, o sujeito do texto torna-­‐se assujeitado pelo sistema, preso em amarras estruturais. Nessa visão de língua como um código, o texto acaba se tornando um produto de codificação de um emissor a ser codificado pelo leitor, em um processo explicado por uma visão simples e horizontal da teoria da comunicação de Jakobson. Uma fuga a essas possíveis simplicações do texto seria justamente a concepção interacional da língua, na qual os sentidos são construídos na interação. Essa nova abordagem conceitual do texto justifica-­‐se pela necessidade de abandonar a noção de que ele seja um produto, para passar a observá-­‐lo como processo, dinâmico, social e cognitivo. Pauliukonis (2009) discorre sobre o real processo interpretativo de que se constitui a leitura de um texto considerando uma abordagem processual: 286
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Um novo enfoque de texto visto como discurso tem por objetivo considerar a importância da compreensão do seu sentido global pelo exame dos mecanismos produtores desse sentido. Em vez de simplesmente fixar o conteúdo das proposições – ou o que o texto diz – evidenciar o processo interacional entre um enunciador e um leitor, o qual se torna um co-­‐enunciador do texto; analisar como o texto diz algo e, ao dizer, que efeitos de sentido consegue transmitir e, ainda, o mais importante: de que meios linguísticos e operações discursivas se vale a estruturação textual como um todo O texto é antes de mais nada, um processo de construção de sentido, e como o sentido é algo dinâmico, não estático, o texto teria essa mesma característica. Dessa forma, o papel do leitor é ativo, no momento em que constrói sentido e acessa informação necessárias, guiado pelos rastros deixados pelo autor. Observemos o exemplo abaixo, retirado da coluna do jornalista Ancelmo Góis, do site do jornal O Globo: 287
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(1) Dilma perdeu Dilma viajou a Salvador no fim da tarde de ontem para um comício do petista Nelson Pelegrino. Pelo programa, coitada, estaria no avião de volta a Brasília na hora do... capítulo final de “Avenida Brasil”. (disponível em http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/, acessado em 20/010/2012) A pequena nota, característica das postagens na coluna do jornalista, tem como título uma oração em que o sujeito é a presidente Dilma, seguido de um verbo sem seu complemento. O sentido produzido pelo complemento omitido na oração, somente é captado se pensarmos em um ambiente textual sociocognitivo. O que está em jogo no título da nota está muito além do publicado no jornal. O texto inclui a situação enunciativa em que temos o último capítulo de uma novela televisiva de grande sucesso de audiência, “Avenida Brasil”, cuja exibição era esperada por muitos telespectadores. Há, no texto, um eco situacional, provocado por várias notícias vinculadas na semana em que o capítulo em questão seria exibido, de que “todos”, incluindo personalidades como políticos e celebridades, iriam assistir o final do folhetim. O título da nota, então, nega essa 288
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expectativa de que todo mundo assistiu, ao informar que a presidente perdeu. Nota-­‐se que o complemento incialmente omitido no título só aparece no final do texto. O vazio inicial deixado pelo autor é recuperável tanto textualmente no sentido strictu sensu, quando o termo omitido aparece no final, quanto socialmente, já que a informação de que todos assistiriam o programa é obtida por conhecimento de mundo. Segundo Paulikonis (2009), o conceito que temos de texto influencia o tipo de abordagem prática que faremos e os elementos que levaremos em consideração para a sua análise e produção. Transportando esse pensamento para a sala de aula, o conceito de texto como discurso é fundamental para que se trabalhe de maneira efetiva os mecanismos linguísticos que levam à construção e manutenção de ideias dentro do texto. Dentre esses mecanismos, temos a referenciação. Partimos, então da noção de texto como processo cercado por fatores sociais e psicológicos. Ao olhar para o texto sob essa perspectiva, ele não será “uma superfície material que conduz ao discurso” (Koch 2002), mas indissociável dele, assim como de seu uso, “das relações culturais, sócio-­‐históricas, em processos intercognitivos, considerados sob uma perspectiva de 289
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cognição interacionalmente situada” (Cavalcante et al., 2010, p. 227). O constructo textual é formado por mecanismos que levam o leitor a construir sentidos a acessar a realidade, contribundo de maneira co-­‐autoral. Veremos adiante como a referenciação é valiosa dentre esses mecanismos. 3. SOBRE A REFERENCIAÇÃO
O dinamismo do texto como processo cria uma condição para que haja nele uma mobilidade de sentidos, constituindo um jogo contínuo de ativação de referentes. Estes, vistos sob uma ótica cognitivista, constituirão elementos que contribuem para que conceitos sejam elevados na mente do leitor, o que colabora para o acesso do conhecimento linguístico e de mundo. Essa visão torna complexos os fatores textuais, como a coesão, construída em parte por práticas referenciais. Precisamos, antes de tudo, prever o leitor como atuante do processo, para que se estabaleçam esses tipos de de fatores. Cavalcante et al. (2010, p 227) tocam na questão ao introduzir o conceito de processos referenciais: “A ideia de que os processos referenciais se edificam nas representações mentais dos 290
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interlocutores, num jogo de negociação que envolve estratégias inferenciais ainda pouco explicadas, encontra-­‐se baseada em autores que já a debatem há algum tempo.” Dessa maneira, a referenciação está vinculada diretamente a processos interacionais de contrução textual. Ainda segundo os autores, os referentes possuem características instáveis, por poderem ser acessados e reacessados, construídos e reconstruídos, não existindo senão no ato da enunciação. A referenciação é assim definida: A referenciação é o processo pelo qual, no entorno sociocognitivo-­‐discursivo interacional, os referentes se (re)constroem. Trata-­‐se, portanto, de um ponto de vista cognitivo discursivo, e é por isso que se diz que a referenciação é um processo em permanente reelaboração, que, embora opere cognitivamente, é indicado por pistas linguísticas e completado por inferências várias. (Cavalcante et al, 2010, p 233) Assumimos, portanto, que a referenciação depende de interação e construção de sentido. Ao assumir também que texto e contexto não são instâncias separadas e incluir o discurso e o conceito de enunciação ao processo, tornamos a 291
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referenciação também um ato cognitivo e interacional. Segundo Cavalcante (2011, p 21) “não poderíamos falar de referência considerando apenas a palavra fora de contexto, em estado de dicionário […], pois só se identifica o referente correspondente a um nome quando se analisa o enunciado e o contexto de uso em que esse nome foi empregado” . Cavalcante (2011) divide os processos referenciais entre aqueles nos quais introduzimos o referente pela primeira vez, chamados de introduções referenciais, e aqueles com os quais damos continuidade ao referente, que já foi evocado no texto, as anáforas. Estas podem ser diretas, cujo referente está presente de maneira mais substancial e concreta no texto, que recuperam algo mencionado diretamente ; ou indiretas, quando a menção de um novo referente relaciona-­‐se a outro citado anteriormente de maneira a configurar uma pista formal no texto para o seu reconhecimento, como se o dado já fosse velho (cf. Cavalcante, 2011 p. 61). Observemos o texto seguinte: (2)
"Mendigo de Curitiba" é conhecido por moradores do centro da cidade e seria usuário de crack 292
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Depois de virar um dos assuntos mais comentados do Facebook, nesta quarta-­‐feira (17), após ter uma foto sua compartilhada cerca de 37 mil vezes, o homem que vem sendo chamado nas redes sociais de o “mendigo de Curitiba” virou alvo de especulações. A reportagem do UOL foi até a praça Tiradentes, local no centro da capital paranaense onde a foto foi feita, para conversar com usuários de drogas, comerciantes e integrantes do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) e descobriu que o rapaz é conhecido na região. Segundo o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), que auxilia moradores de rua, ele chegou a ser encaminhado para a Casa de Acolhimento São José. "O problema dele é o crack”, afirmou Regiane da Silva Keppe, integrante da organização. Os comerciantes da região também lembram da figura. "Ele aparece aqui quase toda noite. Parece meio louco, acho que por causa das drogas”, afirmou Jefferson Alves Leite, que trabalha em uma barraca de cachorro-­‐quente no local. O proprietário do estabelecimento, Edgar Weber, também conhece o rapaz: “Essa história só vai deixar ele mais perdido”, afirmou. Uma funcionária da região, que não quis se identificar, disse: "Ele é bonito mesmo, devia ser modelo." 293
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Mas não é só pela beleza que o rapaz é lembrado pelas pessoas que circulam no centro de Curitiba. Segundo Luciano Romão, proprietário de um quiosque na praça, o morador de rua é “muito chato” e nem mesmo os outros usuários de drogas gostam dele. “Ele fica ‘zanzando’ por aqui. Enche o saco das pessoas, pede coisas e depois sai por aí, sem rumo”, disse. “O cara vive andando, é pilhado, e perturba um pouco, mas não chega a incomodar”, afirmou Carlos Humberto, mais conhecido como “Pulga”, um morador de rua da área. Benedito Antonio da Silva, atendente de uma lanchonete ali, também confirma que o “mendigo de Curitiba” costuma perambular pela praça. “Olha, ele dorme por aí. Sempre o vejo na hora do almoço ou um pouco antes. Não incomoda, mas dizem que ele realmente é um chato.” (disponível em http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-­‐
noticias/2012/10/18/mendigo-­‐de-­‐curitiba-­‐e-­‐usuario-­‐de-­‐crack-­‐e-­‐
preocupa-­‐a-­‐familia.htm, acessado em 20/10/2012) O texto acima dá informações sobre um morador de rua que virou uma celebridade de internet após ter sua foto divulgada por um usuário na rede social Facebook, sua aparência 294
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destoa da maioria dos mendigos. No título da reportagem, há o que podemos classificar como introdução referencial em "Mendigo de Curitiba". Não há nada presente anteriormente no texto que remeta ao referente, o que não nos possibilita construí-­‐lo previamente. Por outro lado, há termos no corpo do texto que tornam-­‐se pistas ou indícios que nos levam a construir e reconstruir o referente inicial do mendigo. Em um primeiro momento, o termo o homem que vem sendo chamado nas redes sociais de o “mendigo de Curitiba” é o start para ativarmos o que já foi mencionado no título, porém com a informação acrescida de que o título veio dos usuários de redes sociais. Logo após, temos termos como o rapaz, dele, figura, ele, e o morador de rua, que apontam para o referente introduzido incialmente, suportando a construção de sentido, além de guiar o leitor a ler/construir o texto como uma unidade. Esses elementos são chamados de anáforas. Elementos introdutórios e anafóricos constituem um recurso que constitui para o enunciador a possibilidade de trabalhar com o sentido. Pode ser também uma maneira de deixar pistas que podem levar o leitor a construir um sentido de cunho ideológico. Observe o exemplo a seguir: 295
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(3) Dilma inicia 'road show' eleitoral Presidente começou por Salvador, na sexta, e segue a agenda de campanha neste sábado com comícios em Campinas e São Paulo A presidente Dilma Rousseff iniciou, na sexta-­‐feira, uma série de comícios de apoio a correligionários e a aliados neste segundo turno das eleições municipais. Os locais escolhidos têm em comum candidatos adversários de partidos que estão no arco de alianças nacional ou que são apoiados por políticos que poderão estar unidos contra ela na disputa pela reeleição presidencial em 2014. Salvador foi a primeira parada do périplo de Dilma. Em caso de vitória de ACM Neto (DEM), adversário de Nelson Pelegrino (PT), a capital baiana poderá se transformar num centro forte de oposição tanto ao governo estadual de Jaques Wagner (PT) quanto ao governo federal.[...] (disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/dilma-­‐
inicia-­‐road-­‐show-­‐eleitoral acessado em 20/10/2012) 296
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Em (3) podemos observar como as escolhas referenciais têm finalidades maiores do que apenas indicar elementos no texto. No título da matéria, usa-­‐se a expressão em inglês road show como introdução referencial para os comícios que a presidente brasileira Dilma Roussef realizará com candidatos apoiados pela sua legenda partidária. O site Dictionary.com define road show como “a show, as a play or musical comedy, performed by a touring group of actors.”2. Ao chamar os comícios de road show, define-­‐se o ato como uma peça de teatro, algo encenado e falso, e os políticos participantes como atores, ou seja, pessoas que interpretam uma realidade fictícia. Impossível não perceber a carga de julgamento na definição. O referente é retomado via anáfora pelo elemento mais genérico comícios, seguido por uma série de comícios e finalmente por périplo, que significa uma viagem que tem como retorno o ponto de partida, termo que retira um sentido político maior dos atos da presidente. Quando trata dos políticos que Dilma apoiará, a introdução referencial é feita com os termos correligionários e a aliados, que contêm explícito o interesse político partidário do apoio. O texto é um exemplo de como o julgamento ideológico 2 Um show, como uma peça ou comédia musical, performada por um grupo de atores que viajam. (tradução nossa) 297
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está presente no ato de referenciar, já que o texto é impregnado de um pensamento contra o ato de apoio da presidente aos prefeitos aliados do PT. Esse pensamento subjaz nas escolhas lexicais das operações referenciais, que deixam pistas que podem conduzir o leitor a formar os conceitos sugeridos na enunciação. A importância desses recursos referenciais parece não ser entendida em vários manuais didáticos. O que vemos comumente no que toca à referenciação nos livros de ensino fundamental é um tratamento do fenômeno simplesmente como indicador de referentes. Essa visão diminui o valor de anáforas reduzindo-­‐as a elementos indicadores que realizam uma simples troca de uma palavra para outra. Veremos a seguir os poucos momentos em que duas coleções de livros didáticos lançam mão de atividades e pequenas discussões sobre a referenciação, e onde haveria espaço para tal. 4.
SOBRE
A
REFERENCIAÇÃO
NAS
COLEÇÕES
Nossa análise pretende investigar como a referenciação é tratada em duas coleções de livros didáticos voltados para o 298
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segundo segmento do ensino fundamental: Para Viver Juntos, da Editora SM, e Diálogo, da Editora FDT. Sabemos que, dentre as funções do estudo da Língua Portuguesa na escola, destaca-­‐se a produção de textos. Preparamos nossos alunos para situações reais de comunicação, constituindo nosso objetivo e preocupação maior formar leitores-­‐
produtores, que dominem as técnicas textuais em vários âmbitos, para que sejam capaz de produzir e entender textos variados. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, em vários momentos o professor é orientado sobre a importância de formar primeiramente, antes de aluno de Língua Portuguesa, um leitor em Língua Portuguesa. É sublinhada a importância de tornar o aluno um cidadão que utilize a língua de maneira não só eficiente gramaticalmente, mas também comunicativa: A linguagem verbal possibilita ao homem representar a realidade física e social e, desde o momento em que é aprendida, conserva um vínculo muito estreito com o pensamento. Possibilita não só a representação e a regulação do pensamento e da ação, próprios e alheios, mas, também, comunicar idéias, pensamentos e intenções de diversas naturezas e, desse modo, influenciar o outro e estabelecer relações interpessoais anteriormente inexistentes. Essas diferentes dimensões da linguagem não se excluem: não é possível dizer algo a alguém sem ter o que dizer. E ter o que dizer, por sua vez, só é 299
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possível a partir das representações construídas sobre o mundo. Também a comunicação com as pessoas permite a construção de novos modos de compreender o mundo, de novas representações sobre ele. A linguagem, por realizar-­‐se na interação verbal dos interlocutores, não pode ser compreendida sem que se considere o seu vínculo com a situação concreta de produção. É no interior do funcionamento da linguagem que é possível compreender o modo desse funcionamento. Produzindo linguagem, aprende-­‐se linguagem. (Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, página 22) Como já destacado, a referenciação não pode ter um papel meramente formal e indicativo dentro do texto, já que é uma ferramenta que cria uma gama de possibilidades de criação de sentido e expressa ideologia. 4.1. Coleção Para Viver Juntos
Os livros da coleção Para Viver Juntos apresentam muitos textos em todas as suas unidades, que se estuturam a partir de um gênero textual comum. Desse gênero, são apresentados de início dois textos principais, e trechos de textos menores no momento dos exercícios. Em cada unidade há o que o livro chama de “Reflexões Linguísticas”, seção com questões textuais e 300
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
gramaticais. A proposta do livro se preocupa em fazer o aluno perceber a estrutura superficial do texto, trabalhando com esquemas e quadros. Porém, ao lermos os exercícios de estruturas, que podem ser úteis ao trabalhar pontos como tópicos textuais, esperamos que o livro toque em questões um pouco mais profundas, como a referenciação, o que raramente acontece. No livro de sexto ano da coleção, que se dedica ao estudo principalmente de textos narrativos e de classes de palavras, a questão da referenciação aparece, não nomeada, em somente dois momentos. Vejamos: 301
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Ilustração 3: página 64, extraída de Costa (2009), 6o ano 302
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
O exercício 3, que faz parte da lição sobre pronomes, trata da ambiguidade referencial no uso do pronome “ela”, que é uma anáfora direta. No exemplo da anedota, a anáfora pode ter como referente dois elementos, “cachorra” e “minha casa”, causando o mal entendido que é o motivo do humor. Constitui um exercício simples que, com a orientação do professor, pode servir para demonstrar como mesmo em casos de anáforas diretas, em que podemos “setar” os elementos, o processo não é tão simples assim, e ainda frisar a importância desse tipo de processo, cujo mal uso pode comprometer a intenção enunciativa, ou criar o efeito, no caso, o humor. Observemos a próxima página do volume do 6º ano, última menção ao processo referencial no livro: 303
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Ilustração 4: página 215, extraída de Costa (2009) 6o ano 304
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
A seção fala especificamente do papel coesivo do uso do pronome, cuja atribuição demonstrada é referencial. Os exercícios são de identificação de referentes, em que o aluno precisa identificar o elemento substituído pelo pronome. Há também questões de cada que provocam reflexão sobre a operação, como a letra “d” do exercício 1, que leva o aluno a pensar no referente do pronome possessivo, ou a letra “b”, que questiona o uso do “esses” a fim de fazer com que o aluno chegue a pensar na função restritiva e recaptulativa do uso referencial. Esse momento torna-­‐se oportuno para a discussão do papel da referenciação na estrutura do texto. Ao observarmos o livro dedicado ao 7º ano da coleção, nos deparamos com mais atividades sobre a referenciação. Vejamos a página extraída do volume: 305
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Ilustração 5: página 59, extraída de Costa (2009,) 7o ano O primeiro exercício trabalha a referenciação como recurso de criação de sentido no texto, no caso, a expectativa. O uso do pronome “ela” repetitivamente faz com que o leitor 306
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
procure o referente, que não havia sido antecipado. As questões de interpretação que seguem o texto conduzem o aluno a uma pequena reflexão sobre o efeito, mas não sobre o processo referencial. O exercício seguinte traz outro trecho do mesmo texto, em que o referente fica mais explícito, o que causa um estranhamento pela “descoberta” do leitor. Na página 177 do volume 7, temos uma pequena definição de coesão textual, acompanhada de exercícios que ultrapassam a esfera da “indicação direta” atribuída a operações de referenciação, ao dar espaço para que se trabalhe o julgamento ou avaliação presentes em determinações, adjetivações e substituições. Ao analisarmos o livro do 8º ano, chegamos à conclusão de que o assunto da referenciação não é abordado. Apesar de tratar de estratégias coesivas em alguns momentos, estas se restringem ao uso de conjunções – é abordado um pouco de seus papéis semânticos – neste volume. No último volume da coleção Para Viver Juntos de Ensino Fundamental, a questão da referenciação é tratada em apenas dois momentos, mas de maneira superficial. Vejamos o primeiro: 307
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Ilustração 6: página 25, extraída de Costa (2009), 9o ano 308
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
O exercício sobre o texto dos gatos tem como objetivo a localização de termos que subtituem “gatos” e “Egito”. Poderia ser incluído um item que dissesse respeito aos “ratos”, que no texto são anaforicamente retomados como “roedores”. Uma discussão sobre a hiperonímia seria oportuna, , com o objetivo de fazer o aluno perceber a relação de maior abrangência semântica de termos como “bichanos” e “animais” , em contrapartida aos mais específicos, como o referente “gatos”. No momento em que o livro didático lista os recursos que evitam a repetição de palavras, o professor atento poderia introduzir a ideia de que as substituições não são ingênuas, mas partem de escolhas do enunciador, o que enriqueceria a atividade. Em um segundo momento, na página 91, o livro volta a tratar de substituição de termos, dessa vez com pronomes relativos, sem aprofundar o assunto. 4.2. Coleção Diálogo
Os livros da coleção Diálogo trabalham em suas unidades com textos bases seguidos de atividades textuais e gramaticais, seguindo o modelo da maioria dos livros didáticos. O diferencial da coleção é a presença de atividades em que o texto é abordado 309
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
também em jogos, e o trabalho com textos orais, pouco presentes nos manuais de ensino fundamental. Ao final de cada unidade, a coleção apresenta sempre um projeto, que constituem atividades interessantes para a produção textual. A respeito da referenciação, ao analisarmos o volume indicado para o 6º ano, encontramos alguns exercícios que abordam superficialmente a questão da construção referencial. Em algumas interpretações de textos, como a da página 108, é pedido ao aluno que encontre no texto o que lhe dá “o tom fantasioso”, ou “o mistério”. Sabemos que a escolha lexical está envolvida nesse processo de construção do que o livro chama de “tom do texto”, e esses momentos são boas oportunidades para o professor trabalhar tal assunto. Quando o mesmo volume fala de pronomes, aborda-­‐se a anáfora direta (nas páginas 11 e 135), mas em exercícios que são somente de identificação do referente. No volume voltado para o sétimo ano da coleção, a referenciação é trabalhada novamente como um instrumento para evitar a repetição de termos, atrelado ao estudo dos pronomes. Um exemplo de exercícios retirado do 7º volume do livro da coleção é reproduzido a seguir. 310
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Ilustração 7: página 212, extraída de Beltrão (2009), 7o ano 311
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Se no sétimo volume da coleção a referenciação é trabalhada em um único momento, no oitavo ela não aparece. Já no volume nove, temos uma rápida abordagem do assunto, na introdução de estudos da semântica. Na página reproduzida a seguir, o livro traz definições de algumas relações de sentido e seu uso na referenciação. 312
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Ilustração 8: página 39 extraída de Beltrão (2009) 9o ano 313
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
É um momento propício para o professor abordar a questão dos hipônimos e hiperônimos, já que o livro cita seu uso para a “retomada de elementos textuais na produção de textos orais e escritos”. Infelizmente, após o quadro destinado a essas relações de sentido, tal questão não é abordada nos exercícios posteriores, cabendo, mais uma vez, ao professor sanar essa deficiência. 5. PROPOSTA DE EXERCÍCIOS
Na seção destinada à análise pontuamos que o volume 8 da coleção Para Viver Juntos não apresenta atividades relacionadas à referenciação. Notamos, porém, muitas oportunidades perdidas de abordagem do uso da referenciação, já que encontramos vários textos midiáticos e opinativos no livro, como o artigo de opinião e carta de leitor, que apresentam, esse tipo de recurso. O texto seguinte, extraído da página 239, é um desses exemplos em que a referenciação poderia ser trabalhada: 314
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Ilustração 7: recorte da página 239 extraída de Costa (2009) 8o ano O texto reproduzido é uma resposta de um leitor a outro texto, também presente no livro, sobre testes de produtos com animais de laboratório. A rede de referenciação criada pelo texto é um dos recursos argumentais que sustentam a opinião do 315
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
leitor, que se coloca contra os testes. Observamos que logo na primeira frase, os testes com animais são introduzidos referencialmente como “crimes contra os animais”. Outra estratégia que colabora na argumentação de que não se admitem os testes contra os animais é construída pela introdução referencial presente na quinta linha, em que “humanos” é definido como “uma espécie”, na mesma frase em que temos “as outras espécies”. Definir humanos como espécie não é um ato textual desprovido de ideologia: sublinha que somos uma espécie como as demais, estabelece igualdade entre os seres humanos e os outros animais, mais especificamente, os que são utilizados para testes. A criminalização dos testes é realizado pelo texto ainda quando este a define, de maneira a tornar mais grave, como tortura. Essa definição é sustentada quando se usa os termos “mutilar e cegar” (linha 13) e “infligir tanta dor” (linha 15), que se encaixam na ideia de tortura que compartilhamos mentalmente. Dessa forma, concluímos que o texto exemplificado seria um bom instrumento para se trabalhar referenciação, assunto não tratado neste volume de 8º ano da coleção. Segue, então, uma sugestão de exercícios que poderiam acompanhar o texto para sanar tal falta: 316
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Sugestões de exercícios relativos ao texto “Pesquisa com animais” 1) Como percebemos que este texto tem como base um outro? 2) Identifique e retire do texto o sintagma nominal responsável pela introdução do assunto principal a ser abordado. 3) Podemos dizer que a introdução do assunto principal simplesmente lança o conceito ou há nela um julgamento? Explique. 4) Sobre o trecho: “Uma espécie que deseja prolongar a vida de seus indivíduos à custa da tortura de demais espécies não merece ser salva” (linha 5 e 6), responda: a) A que espécie o texto primeiramente se refere? b) Como são referenciados os animais utilizados nos testes? c) Podemos dizer que as referenciações destacadas em “a” e “b” são escolhas ideológicas? O que essas escolhas demonstram? 5) No texto, os testes com animais são caracterizado como tortura. Localize um trecho que comprove a afirmativa. 317
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
6) Marque os itens presentes no texto que sustentam que os testes com animais são torturas: ( ) lucro financeiro ( ) experimentos ( )mutilar e cegar ( ) cura do câncer ( ) infligir tanta dor ( ) privados da natureza e do convívio apropriado com a sua espécie Gabarito sugerido 1) Através da introdução do texto, que informa que é “em relação à reportagem Vetada na UE, cobaia é usada no Brasil”, além da citação do que dizem os entrevistados de tal reportagem. 2) Crimes contra os animais. 3) Há um julgamento negativo por tratar as experiências como crimes. 4) a) Aos humanos. b) Demais espécies. 318
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
c) Sim. As escolhas demonstram que o autor do texto considera que humanos e outros animais pertencem a mesma categoria, por tratar ambos como espécies de animais. Esse pensamento é um argumento para que haja uma igualdade de tratamento em relação a todas as espécies de animais, indo contra, portanto, os testes que utilizam animais como cobaias. 5) São cães, camundongos e coelhos, dentre outras espécies, cujas peles e cujos olhos são submetidos a substâncias corrosivas, cancerígenas, etc. 6) Terceiro, quinto e sexto itens. Os exercícios sugeridos têm como objetivo tratar os pontos discutidos que são trazidos à tona por meio da referenciação. Percebemos que pouco é trabalhado em relação à referenciação que foge ao estudo dos pronomes, e que não se trate de operações de anáfora direta. Esse fato pode ser contornado pelo professor ao utilizar também outros tipos de fontes e preparar exercícios extras ao conteúdo do livro didático. 319
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
6. CONCLUSÃO
Percebemos, na breve análise aqui realizada que a referenciação é tratada de maneira superficial nos manuais didáticos. Se considerarmos que os livros didáticos aqui escolhidos são de coleções recentes e aprovadas pelo MEC, concluiremos que: (i) há uma continuidade da tradição de abordagem dos processos referenciais somente como índices textuais; e (ii) há uma despreocupação das editorias em cobrar tal estudo como importante para o desenvolvimento de um leitor com plenas habilidades textuais. Ao reduzir o estudo dos processos referenciais ao estudo dos pronomes nos livros avaliados, cria-­‐se a ideia de que eles são as únicas ferramentas para esse tipo de operação. De maneira geral, na tradição escolar, a referenciação está ligada somente ao uso dos pronomes, enquanto percebemos que ao tratar de referenciação por sinônimos, por exemplo, há muitas questões mais interessantes que poderiam ser trabalhadas, como no caso das construções com hiperônimos, pouco trabalhados nos manuais. Outro ponto é a forma como a referenciação é trabalhada nos livros didáticos: somente com anáforas diretas. O aluno 320
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
pode pensar que essa é a única forma de criar uma referência anafórica. Mesmo com exemplos em que utilizamos os pronomes para referenciar, é possível criar uma discussão mais ampla, como demonstrado com o cartaz na seção anterior. Pontuar questões como ideologia na referenciação, uso do encapsulador ou anáforas indiretas, com as devidas adaptações segundo o nível de cada série, exigem raciocínio mais profundo do que simplesmente indicar referentes. O material midiático presente no dia a dia dos alunos contém diversos usos que passam despercebidos para a descrição, mas cumprem seu papel comunicativo. Fazer com que os alunos percebam esses usos e se apropriem deles está diretamente ligado ao compromisso de formar leitores capazes e ativos, construtores e modificadores de pensamento. Promover análises linguísticas utilizando material em uso é ensinar utilizando como base o texto, compromisso que deve ser comum a todo professor de língua. Porque restringir o estudo da referenciação na maioria dos casos na seção de estudo de pronomes? Por que não incluí-­‐la nos estudos de sinônimos, aprofundando a questão da intenção do autor na escolha lexical, e até mesmo quando se estuda morfologia, como nos casos em que a criação de nomes a partir de verbos ou no sentido 321
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
contrário se faz por conta de uma necessidade de referência e não repetição? Todas essas questões devem ser preocupações do professor, que, mesmo quando amparado por manuais incompletos, deve procurar trabalhar com a língua em uso. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, I. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola, 2010. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. 3. ed. Brasília: MEC/SEF, 2001. CAVALCANTE, M.M. Referenciação: Sobre Coisas Ditas e Não Ditas. Fortaleza: Edições UFC, 2011. CAVALCANTE, M. M. et al. Dimensões textuais nas perspectivas sociocognitiva e interacional. In: BENTES, A. C. & LEITE, M. Q. Linguística de texto e análise da conversação. São Paulo: Cortez, 2010. PAULIUKONIS, M. A. L. Desafios atuais no ensino de língua: reflexões e propostas. In: Diadorim, n.6. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. p. 37-­‐54. 322
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
LIVROS DIDÁTICOS ANALISADOS
BELTRÃO, E. L. S. Diálogo. São Paulo: FDT, 2009. vol. 6-­‐9. COSTA, C.L. Para Viver Juntos. São Paulo: Edições SM, 2009. vol6-­‐
9. 323
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Propostas de atividades
As atividades a seguir foram elaboradas pelos autores dos artigos deste e-­‐book, com base em notícias de jornal (versão online) a respeito das chuvas que atingiram a Serra Fluminense (RJ), em janeiro de 2011. São atividades pensadas para alunos de Ensino Fundamental e Médio, propondo leitura, produção e análise linguística, enfatizando aspectos relacionados aos processos referenciais. Algumas questões apresentam sugestões de gabarito, em vermelho. TEXTO 1: Aniversário da tragédia na serra terá bolo de lama Em Teresópolis, Petrópolis e Nova Friburgo, uma série de atividades vai marcar o aniversário da enxurrada que matou mais de 900 pessoas. Na programação, há missas e protestos 324
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Chuva destrói calçamento no bairro Jardim Califórnia, em Nova
Friburgo (Severino Silva/ Ag. O Dia)
A tragédia da região serrana do Rio de Janeiro, que deixou mais de 900 mortos,
completa um ano nesta quinta-feira. De lá para cá, os habitantes desses
municípios têm enfrentado dias de penúria e desilusão, sobretudo após os
escândalos de corrupção. Em Nova Friburgo, um bolo de lama será levado para
a Praça Demerval Barbosa Moreira, no Centro, às 17h, para lembrar o
aniversário do desastre, num protesto contra a falta de ações concretas das
autoridades.
"Até agora, só vimos lama. Então, nada mais justo que um bolo de lama.
Tivemos a tragédia climática e também a política. São três prefeitos em um ano.
A instabilidade política é muito grande. Até agora, não temos nenhuma casa
construída e sequer um projeto", afirma Edil Nunes, coordenador do Fórum
Sindical Popular.
Durante os últimos 12 meses, o processo de reconstrução dos municípios
atingidos manteve-se nos noticiários mais pelos escândalos de corrupção do que
por resultados concretos. Dos 780 milhões de reais destinados pela União para
obras de habitação, contenção de encostas e prevenção de desastres, pouco mais
de 100 milhões foram empregados.
Em Friburgo, suspeitas de desvios de verba levaram ao afastamento do prefeito
em exercício, Dermeval Barbosa Moreira Neto. Ele passara a ocupar o cargo
em setembro de 2010, quando o prefeito Heródoto Bento de Mello sofreu um
acidente na Suíça. Hoje, o município está nas mãos do presidente da Câmara de
Vereadores, Sérgio Xavier. Mas ainda há rumores sobre um possível retorno de
Demerval ao posto.
Em Teresópolis, a situação é bastante parecida. Primeiro, denúncias de desvios
de verba levaram ao afastamento do prefeito Jorge Mario Sedlack, que teve o
mandato cassado por unanimidade pelos vereadores. Então, o vice-prefeito
Roberto Pinto assumiu, mas morreu de infarto apenas dois dias após sua posse.
Acabou sobrando para o presidente da Câmara, Arlei de Oliveira Rosa.
Nesta quinta-feira, haverá uma série de manifestações em Teresópolis. A
programação começa às 14h, com o encontro das famílias dos desaparecidos na
Praça Santa Teresa, no Centro. Às 17h, haverá a leitura de uma carta aberta das
vítimas da tragédia de janeiro do ano passado. Ainda está programado um
minuto de silêncio, às 18h. "Teremos a adesão até dos ônibus, que vão parar
durante o minuto de silêncio. Pedimos que todos na cidade parem o que
estiverem fazendo", afirma Nina Benedito, diretora da Associação das Vítimas
das Chuvas de Teresópolis (Avit).
Como forma de lembrar as vítimas da catástrofe, a prefeitura de Teresópolis
inaugura, às 15h, no Cemitério Municipal Carlinda Berlim, um memorial em
homenagem aos 392 mortos do município. Também será celebrada uma missa
325
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
ecumênica às 19h, no Ginásio Poliesportivo Pedro Jahara (Pedrão), local que
chegou a servir de abrigo para as vítimas da chuva.
A maioria dos eventos é organizada por ONGs, que pedem à população para
pendurar bandeiras brancas nas janelas de casa e fitas nos carros. Também estão
previstas manifestações e protestos isolados, pela manhã, em bairros castigados
pelas chuvas de 2011.
Em Nova Friburgo, representantes de movimentos sociais se reúnem a partir
das 14h, na Praça Demerval Barbosa Moreira, no Centro. Com a presença de
psicólogos, o intuito é relembrar a tragédia. Às 17h, tem início um ato público
que deve seguir pelas ruas da cidade, com faixas e cartazes. Lá, as atividades
estão sendo articuladas pelo Fórum Sindical Popular, que congrega 23
sindicatos e mais a associação de moradores. Eles denunciam que mais de 2 mil
pessoas ainda vivem em área de risco e não recebem o aluguel social.
Em Petrópolis, haverá uma missa de um ano da tragédia, às 19h, na Igreja do
Divino, no Vale do Cuiabá. Os desabrigados e desalojados na enxurrada do ano
passado ainda aguardam a ajuda do poder público. Segundo a prefeitura,
atualmente está em andamento a construção de casas nos seguintes bairros:
Posse (144 unidades), na Mosela (140 unidades) e no Cuiabá (61 unidades em
parceria com a Firjan).
(Rafael lemos, Veja On line (12/01/2012 - 11:43)
1. A expressão “bolo de lama”, presente na manchete, pode ser interpretada de duas maneiras diferentes. a) Explique o sentido denotativo da expressão. Denotativamente, a expressão “bolo de lama” representa o bolo que foi levado para a ruía, durante as manifestações. b) Explique o sentido conotativo da expressão. Conotativamente, o “bolo de lama” representa a corrupção e os desvios de verbas públicas relacionadas à reconstrução das cidades atingidas pelas chuvas de janeiro de 2011. 326
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
2. Ao longo do texto, o fenômeno climático que ocorreu na região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, é retomado por diferentes palavras. Cite, pelo menos, três delas. “Tragédia da região serrana”, “desastre”, “tragédia climática” são exemplos de expressões que fazem referência ao fenômeno climático que ocoreu na região serrana do Rio de Janeiro. 3. No texto, o advérbio “lá” aparece nos 1º e 9º parágrafos. É possível dizer que ambos apresentam o mesmo referente? Justifique sua resposta. O advérbio lá, no 1º parágrafo, tem valor temporal, indica o dia em que ocorreu a tragédia na região serrana. Já no 9º parágrafo, o advérbio faz referência à local onde ocorreriam as manifestações. 4. Que expressão estabelece a coesão entre os 4º e 5º parágrafos? A expressão “a situação é bastante parecida” funciona como um elo coesivo entre os 4º e 5º parágrafos. 5. Para se referir às pessoas diretamente atingidas pelas chuvas de janeiro de 2011, em Teresópolis, o jornalista, nos 6º e 7º parágrafos, emprega cinco diferentes expressões. Identifique-­‐as. As expressões que fazem referência à pessoas atingidas pelas chuvas são: “desaparecidos”, “vítimas da tragédia”, “vítimas da catástrofe”, “mortos”, “vítimas das chuvas”. 6) Explique a ironia da manifestação dos moradores da Serra ao “comemorarem” o aniversário da tragédia com um “bolo de lama”, conforme informa a manchete da notícia. Se é comum associarmos aniversários a bolos para comemoração, então, no caso dos moradores da Serra, o bolo é de lama, pois em seguida, a notícia inclui a fala do coordenador 327
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
do Fórum Sindical Popular que afirma que a população até agora só viu lama, daí a referência ao bolo de lama. 7) No primeiro parágrafo do texto, a expressão desses municípios faz uma referência explícita ou implícita a conteúdos do texto? Justifique sua resposta, indicando quais conteúdos são esses. Uma referência direta, que só é recuperada quando o leitor volta à chamada da notícia, abaixo da manchete: “Teresópolis, Petrópolis e Nova Friburgo”. 8) Pode-­‐se definir dêixis como sendo expressões que exigem o conhecimento do lugar ou do tempo em que se encontra o enunciador. Assim, transcreva do texto ao menos duas expressões dêiticas e justifique suas escolhas. No primeiro parágrafo, a expressão “nesta quinta-­‐feira” é dêitica, porque só pode ser compreendida se o leitor considerar que seria a quinta-­‐feira da semana do dia 12 de janeiro de 2012. Já no terceiro parágrafo, a expressão “Durante os últimos 12 meses” também necessita de que o leitor saiba que se trata do ano de 2011, já que se tem como referência o ano atual, 2012. 9) Muitas foram as formas utilizadas por essa notícia para nomear o que ocorreu na região serrana do Rio em janeiro de 2011, resumindo e ao mesmo tempo revelando um ponto de vista. Cite dois termos que cumprem essa função no texto. A notícia trata do que aconteceu como “tragédia” e “catástrofe”. 10) Releia o seguinte parágrafo: Em Teresópolis, a situação é bastante parecida. Primeiro, denúncias de desvios de verba levaram ao afastamento do prefeito Jorge Mario Sedlack, que teve o mandato cassado por unanimidade pelos vereadores. Então, o vice-­‐prefeito Roberto Pinto assumiu, mas morreu de infarto apenas dois dias após sua 328
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
posse. Acabou sobrando para o presidente da Câmara, Arlei de Oliveira Rosa. A afirmação coloquial e de tom pessoal: Acabou sobrando para o presidente da Câmara (...) não deixa claro o que, de fato, “acabou sobrando” para o presidente, mas é possível perceber certa intenção e subjetividade presentes. Identifique a que situação a expressão faz referência. Tendo em vista que se relata o que aconteceu com os dois prefeitos anteriores, fica claro que o presidente da Câmara teve de assumir a prefeitura em uma situação muito difícil. O que sobrou a ele, portanto, foi a difícil tarefa de assumir o mandato nas condições precárias em que se encontra a cidade. TEXTO 2: Uma casinha na serra Muitos moradores das encostas de Teresópolis afirmam ter recebido
"certificados" de posse no governo de Mario Tricano, ex-prefeito por três
mandatos. Hoje processado sob a acusação de envolvimento no jogo do bicho,
ele é tido como o principal responsável por ocupações irregulares na cidade nos
últimos 20 anos.
Na vizinha Friburgo, houve a mesma combinação de negligência com o
interesse de criar currais eleitorais. As duas cidades da serra fluminense têm
perto de 20 mil pessoas em lugares de risco, sobressaltadas desde a tempestade
de 2011, que deixou 900 mortos na região.
Embora grande, o contingente equivale a menos de 6% da população dos dois
municípios. Resolver o problema não deveria ser difícil, mas a construção de
casas para a transferência dessa gente a locais seguros virou um périplo
burocrático-legal.
Em Friburgo, um terreno desapropriado pelo prefeito da época da tragédia Dermeval Barbosa, depois afastado sob a acusação de desviar verbas
emergenciais - revelou-se um pântano. Foi preciso esperar um ano para que o
Estado garantisse a posse de outra área, por R$ 2,8 milhões.
Em Teresópolis, os donos da fazenda onde serão erguidas as moradias
recorreram do valor fixado pelas autoridades, R$ 2 milhões. Pediram R$ 24
milhões, e só agora a Justiça bateu o martelo em R$ 11 milhões.
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Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Para complicar o processo, nenhuma construtora apresentou-se no ano passado
para as obras, bancadas pelo programa federal Minha Casa, Minha Vida. Para
atrair interessados, o Estado negociou o aumento do valor de cada habitação, de
cerca de R4 50 mil para R$ 65 mil.
As primeiras unidades poderão ser entregues no fim do ano, mas os novos
bairros completos não ficarão prontos em menos de 18 meses. É menos
complicado fazer uma casa oscilante em cima do morro, e rezar para não
chover mais.
1. Ao ler o título do texto, é possível pensar que a expressão “casinha na serra” pode apresentar uma conotação positiva ou negativa. a) Explique o sentido positivo que a expressão sugere. A expressão sugere um lugar calmo, bucólico. b) Ao longo do texto, esse sentido positivo se mantém? Justifique sua resposta. Os termos que retomam o referente “uma casinha na serra”, mas, ao mesmo tempo, desconstroem sua imagem bucólica e sossegada são: “encostas”, “ocupações irregulares”, “lugares de risco”, “pântano”. 2. Para informar sobre a ação governamental para a reconstrução das cidades atingidas pelas chuvas de janeiro de 2011, há no texto emprega outras expressões para se referir à “casinha na serra”. a) Identifique três delas. Destacam-­‐se os seguintes termos: “casas”, “locais seguros”, moradias”, habitação”, “unidades”, novos bairros”. b) Explique o porquê da mudança na forma de se referir às habitações. 330
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Para se referir à ação governamental, a autora emprega termos mais neutros, sem carga emotiva, já que as construções são feitas em série e não remetem a lares, famílias, são apenas obras, números para o governo, produtos vendidos pelas construtoras. 3. Que expressão, empregada no 2º parágrafo, retoma o conteúdo do 1º e também denuncia a opinião crítica da autora em relação à política habitacional da serra fluminense? A expressão que estabelece a coesão entre os parágrafos citados é: “...houve a mesma combinação de negligência com o interesse de criar currais eleitorais.” 4. São apresentadas expressões quantitativas diferentes, nos 2º e 3º parágrafos, para se referir às pessoas que habitam áreas de risco. a) Quais são essas expressões. As expressões são “20 mil pessoas” e “6% da população” b) Em que contexto essas expressões foram empregadas? No 3º parágrafo, a autora emprega um número absoluto (20 mil) para mostrar que ainda é alarmante a quantidade de pessoas que mora em áreas de risco. Entretanto, no 4º parágrafo, a porcentagem evidencia que esse número equivale a apenas 6% da população total, o que representa um problema relativamente pequeno e que, por isso, já deveria ter sido resolvido pelas autoridades. 5. O emprego do adjetivo “menos complicado” sugere a comparação entre dois elementos do texto. a) O que está sendo comparado? 331
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
O texto apresenta uma comparação entre “fazer uma casa oscilante em cima do morro, e rezar para não chover mais” e esperar que as autoridades providenciem locais seguros para a população atingida pelas chuvas de janeiro de 2011. b) Explique a crítica implícita nessa comparação. O texto chama a atenção para a morosidade e desinteresse do governo em resolver o problema habitacional das pessoas atingidas pelas chuvas. TEXTO 3: Personagens-­‐símbolo da tragédia na serra fluminense contam como vivem Susto e tensão pela enxurrada fizeram Tainá entrar em trabalho de parto. Dona Ilair foi salva da correnteza com ajuda de vizinhos por uma corda. Pai e filho que ficaram soterrados por 15 horas foram resgatados com vida. No estado do Rio de Janeiro, um ano depois da destruição provocada pelas
chuvas na Região Serrana, o Jornal Nacional reencontrou alguns personagenssímbolo da tragédia. A reportagem é de Bette Lucchese.
332
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
“Quando chove, a gente fica pensativo. Pensa: ‘ai meu Deus, será que vai cair
barranco de novo?”, diz Tainá.
“Esquecer, a gente não vai esquecer nunca”, garante Dona Ilair.
“A fé é tudo. Se você não viver a fé, você não vive a vida”, destaca Wellington.
Marcos André completou um ano. Poucas horas antes de o menino nascer, a
família viveu momentos de pavor, quase foi arrastada pela enxurrada, que
destruiu a casa. O susto e a tensão fizeram Tainá entrar em trabalho de parto.
Ela estava grávida de oito meses.
A equipe de reportagem do JN junto com os bombeiros ajudou a jovem através
do Globocop.
A adolescente, de 16 anos, não é mais a mesma: “Com a tragédia e com a
chegada do meu filho, mudou muita coisa. A nossa família está muito mais
unida, graças a Deus”, ela conta.
Todos os meses, a família de Tainá depende de R$ 500 do governo para pagar o
aluguel. Casa simples, cheia de problema. “Fica muito difícil para gente dormir,
fazer alguma coisa dentro de casa”, ela diz.
Ela espera que as casas prometidas para Teresópolis fiquem logo prontas: “Que
saia logo, porque viver no aluguel é muito ruim, é muito difícil”.
Um ano atrás, um prédio em São José do Vale do Rio Preto passava por uma
reforma. O que ninguém poderia imaginar é que uma corda, deixada na
cobertura pelo pintor, ajudaria a salvar uma vida.
“Aquilo ali foi a mão de Deus mesmo. Você viu que aperto. A casa dele
despencando, eu só ali”, lembra Dona Ilair.
O cachorro de estimação, a casa dela, do irmão e de vizinhos foram levados
pela correnteza. Mas Dona Ilair diz que teve a oportunidade de nascer de novo.
Com a vida nova, vieram presentes do programa Caldeirão do Huck.
“Ganhei uma casa. Um cachorro novo, uma cadela nova. Tenho meus filhos
vivos, graças a Deus, com saúde. Isso é importante na vida da gente”, afirma.
Uma das encostas que deslizaram em janeiro de 2011 fica no centro de Nova
Friburgo. Os destroços das casas foram retirados, se não fosse um
estacionamento aberto na região, pouco teria mudado. No local, pai e filho
ficaram soterrados por 15 horas.
Os bombeiros ouviram um pedido de socorro. E quando finalmente retiraram o
sobrevivente, o que parecia inacreditável aconteceu: no meio de toneladas de
escombros, surgiu o pequeno Nicolas. Alguns minutos depois, o pai que salvou
o filho mantendo o bebê apertado contra o peito também fiu retirado.
“Eu juntava saliva na boca para dar nele. Para, pelo menos, molhar a boca
dele”, lembra Wellington.
A família dormia na hora do desastre. A mulher de Wellington não resistiu e
morreu na hora. A sogra também. “As pessoas falam: ‘o sobrevivente’. Não! O
sobrevivente, não, a pessoa que está aprendendo, realmente, a dar valor ao que
333
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
tem dar valor, dar importância ao que tem que dar importância, valorizar o que
tem que ser valorizado: família, amigos”, garante.
Wellington é um pai dedicado. Nicolas está com um ano e meio. “Com ele,
aprendi viver. Essa é a palavra”.
“A Região Serrana está precisando de apoio. Não de palavras, de apoio. Você
vê notícias de superfaturamento, de desvio de verbas. Atitude! Vamos cobrar,
vamos cobrar”, pede Wellington.
Jornal Nacional (Edição do dia 13/01/2012, Atualizado em 13/01/2012
21h15)http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/01/personagenssimbolo-da-tragedia-na-serra-fluminense-contam-como-vivem.html
1. Segundo a reportagem do Jornal Nacional sobre a tragédia na serra fluminense, a quem o termo “personagens-­‐símbolo” faz referência? Por que eles recebem esse nome? O termo faz referência à adolescente Tainá, à Dona Ilair, ao Wellington e seu filho (Nicolas). São considerados personagens-­‐
símbolo por terem sobrevivido à tragédia de modo inacreditável: Tainá entrou em trabalho de parto logo após sua família quase ter sido arrastada pela enxurrada, tendo a sua casa destruída; Dona Ilair conseguiu se salvar com uma corda deixada pelo pintor na cobertura do prédio; e Wellington e o filho ficaram 15 horas soterrados. 2. As anáforas encapsuladoras são aquelas que não recuperam um referente específico, mas conteúdos inteiros do texto, precedentes e/ou consequentes, a fim de resumi-­‐los. Com base nisso, observe a seguinte fala de Dona Ilair e responda ao que se pede: “Ganhei uma casa. Um cachorro novo, uma cadela nova. Tenho meus filhos vivos, graças a Deus, com saúde. Isso é importante na vida da gente”. 334
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
a) Qual termo está funcionando como uma anáfora encapsuladora nesse trecho? O pronome demonstrativo “isso”. b) O que essa anáfora está recuperando? Recupera toda a fala anterior de Dona Ilair (o fato de ela ter ganhado uma casa e uma cadela novas e de ter os filhos vivos, com saúde). 3. De acordo com a leitura do texto, podemos afirmar que Wellington se identifica com o referente “o sobrevivente”, atribuído pelas pessoas a ele? Justifique sua resposta. Não. Ele não se considera um sobrevivente, mas alguém que está aprendendo a dar valor ao que realmente importa na vida: a família e os amigos. 4. Identifique, no texto, palavras ou expressões que façam referência à Tainá, uma das sobreviventes. “Ela”; “a jovem”; “a adolescente”. 5. Algumas expressões referenciais só fazem sentido se forem analisadas dentro do contexto, ou seja, exigem o conhecimento do lugar, da pessoa e do tempo em que se encontra o enunciador. Diante disso, observe os fragmentos a seguir, com depoimentos das vítimas da tragédia, e responda ao que se pede: “Quando chove, a gente fica pensativo. Pensa: ‘ai meu Deus, será que vai cair barranco de novo?’”(Tainá) “A casa dele despencando, eu só ali” (Dona Ilair) a) Destaque os elementos dêiticos de cada depoimento. “a gente”; “dele”; “eu”; “ali”. b) Indique as referências de cada um desses elementos, considerando o contexto em que se encontram. “a gente” = Tainá e sua família; “dele” = algum vizinho; “eu” = dona Ilair; “ali” = dona Ilair segurando na corda para se salvar. 335
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
TEXTO 4: No meio da serra fluminense, o grito dos sobreviventes ainda reverbera, um ano depois: “não está tudo bem” Vem cá, moça. A gente precisa falar o que tá acontecendo aqui: não tá
tudo bem”.
A frase foi o primeiro contato da reportagem do UOL com moradores
da região serrana do Rio, no início deste mês, na viagem de quatro dias pelos
municípios mais afetados pela enchente e pelos deslizamentos do fatídico 12 de
janeiro de 2011. A partir da capital, a equipe seguiu para Petrópolis,
Teresópolis e Nova Friburgo --em ordem crescente, onde foi registrada a
maioria das quase 1.000 mortes consideradas pelas estatísticas oficiais.
A autora é uma comerciante de Petrópolis --ou melhor: “do distrito de
Itaipava” (como tantas vezes a administração local fez questão de ‘corrigir’, nos
primeiros dias após a tragédia, a pretexto de o turismo ‘em Petrópolis’ não ser
afetado). Dos 74 mortos registrados no município, todos eram do distrito.
Todos, de um vilarejo rural conhecido como vale do Cuiabá e do qual pouco
sobrou.
O curioso é que, uma palavra mudada aqui, outra ali, com um tom de
revolta mais ou menos acentuado, isso seria ouvido até o último dia de jornada
da equipe. Mais que “moradores” da região serrana, as pessoas fazem questão
de se apresentar como “sobreviventes” daquele que ficou marcado como o pior
desastre natural da história do Brasil.
E se revoltam: 12 meses depois, não bastasse muito pouco ter sido
recuperado, tentar esquecer os momentos de maior desespero é uma luta diária
tão árdua quanto recuperar o bem material que se perdeu. Afinal, os escombros
e a infraestrutura urbana destruída estão ali tão presentes quanto as encostas que
ainda
exibem,
ameaçadoras,
as
marcas
da
destruição.
“As crianças crescem com essas imagens aí na cabeça”, lamenta seu Sebastião,
comerciante em Teresópolis. Não só elas, seu Sebastião.
Os esqueletos da destruição e as placas oficiosas
Nas três cidades, as localidades mais afetadas pelos deslizamentos
guardam entre si a semelhança de ainda portarem muitos esqueletos do que
restou de casas, hotéis, pousadas e bares.
Guardam também a riqueza de detalhes com que cada sobrevivente
lembra do próprio apuro na madrugada do dia 12 de janeiro e do destino de
parentes e amigos mortos ou salvos em galhos de árvores. E uma queixa
comum: segundo uma gama variada de entrevistados, administrador público
336
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
pouco ou nada é visto nesses pontos, ainda que o talonário do IPTU (Imposto
Predial Territorial Urbano), em alguns bairros, tenha vindo em 2012 com
reajustes consideráveis.
Em Teresópolis, uma situação curiosa: a contar pelas volumosas placas
anunciando investimentos, a recuperação da cidade vai de vento em popa. Lama
no que era um importante ponto turístico como a Cascata do Imbuí e pichações
de “corrupto” em algumas dessas mesmas placas contradizem a propaganda
oficial da recuperação a olhos vistos.
A sabedoria popular do "enxuga-gelo" e as flores do caminho
Gíria para ineficiência, a expressão “enxugar gelo” é outra a que os
sobreviventes das três cidades recorrem para avaliar as poucas obras em
andamento. Não é difícil compreender o sentido: montes de areia na beira de
um rio que precisa ser desassoreado, aprende uma criança na aula de Ciências, é
facilmente transportável para o mesmo rio pela ação do tempo.
Casas à beira de encostas nuas, se aprende com a experiência do fato
vivido, são risco iminente e chance fácil para o azar. Estradas inacessíveis a
quem delas depende para escoar a produção, ensina o homem do campo, é falta
de comida na mesa --ou uma incômoda dependência da boa vontade de quem
assume o papel do Estado em ação voluntária, mas de alcance limitado.
O “não tá tudo bem” de dona Sandra, comerciante em Petrópolis --pois
é para a prefeitura de lá que ela paga impostos, não Itaipava--, tem um corpo
definido para a equipe ao fim da viagem. Seja pelo que se ouve, seja pelo que
se vê.
Mas algumas flores que insistem em surgir em meio a rochas imensas
que rolaram sobre o bairro de Campo Grande, em Teresópolis, ajudam a
apontar algum caminho de mudança: seja pela artista plástica que recolheu
dezenas de cães da enchente, seja por dona Maria, de Nova Friburgo, que
mostra a casinha sendo refeita cômodo por cômodo ao lado de duas vira-latas
que recolheu dos escombros, seja pelos jipeiros que deixam o conforto do fim
de semana no Rio para levar água e comida a isolados na zona rural --isolados
um ano depois.
São os exemplos pontuais, ainda que singelos, que ajudam a afastar
algumas nuvens pesadas da serra fluminense. E a prontidão de um "a resposta
será dada nas urnas”, como a reportagem ouviu nas três cidades neste 2012 de
eleições municipais, é a que talvez, lá adiante, explique ao comerciante do
devastado Vale do Cuiabá a dúvida expressada sob um sol forte das duas da
tarde: “será possível que todo ano vai ser a mesma tragédia?”
Em tempo: a qualidade da reconstrução do que foi destruído e do recomeço de
uma nova etapa de desenvolvimento dependem também da resposta que a
Justiça dará aos desvios de dinheiro público constatados nos últimos 12 meses
337
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
por órgãos como MPF (Ministério Público Federal) e MPE (Ministério Público
Estadual), além de CGU (Controladoria Geral da União).
Como simples e sabiamente definiriam os sobreviventes, chega de
enxugar gelo.
Janaína Garcia, Do UOL, em São Paulo. Notícias UOL 17/01/2012 06h00 http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimasnoticias/2012/01/17/no-meio-da-serra-fluminense-o-grito-dossobreviventes-ainda-reverbera-um-ano-depois-nao-esta-tudobem.htm
1. De acordo com o texto, explique qual a diferença entre usar “distrito de Itaipava” e usar “Petrópolis” para se referir ao local da tragédia. As vítimas da tragédia dizem que são de Petrópolis, mas a administração local prefere falar que o acidente aconteceu no distrito de Itaipava para que o turismo de Petrópolis não seja afetado e, assim, para que eles não tenham prejuízo financeiro. 2. Transcreva do texto duas expressões que a jornalista usa para se referir ao episódio de enchentes e deslizamentos na serra fluminense. “enchente e deslizamentos do fatídico 12 de janeiro de 2011” e “o pior desastre natural da história do Brasil”. 3. Explique como as expressões destacadas na resposta acima contribuem para transmitir um ponto de vista acerca da tragédia. Ao usar essas expressões, a jornalista reforça a ideia de que o acontecimento foi muito grave e acentua a revolta diante do pouco que foi feito um ano depois para resolver ou amenizar a situação. 338
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
4. Segundo o texto, explique como as vítimas da tragédia se referem a si mesmas. Elas se referem a si mesmas como “sobreviventes”, porque a referência de “moradores da região serrana” se tornou pouco diante da gravidade da situação pela qual passaram. TEXTO 5: O município de Teresópolis, um dos mais afetados pelas chuvas do começo do ano passado no Rio de Janeiro, ainda tenta se recuperar dos estragos deixados. Um ano depois das fortes chuvas e dos deslizamentos que deixaram centenas de
mortos e destruíram comunidades inteiras, a cidade de Teresópolis, na região
serrana do Rio de Janeiro, ainda tenta se reconstruir e retomar a normalidade do
dia a dia. A prefeitura de Teresópolis afirma que, somente no município, que
continua em estado de calamidade pública, as enchentes e desabamentos
ocorridos na madrugada de 12 de janeiro de 2011 deixaram 392 mortos
confirmados, além de 180 desaparecidos, nas 80 localidades atingidas.
No bairro de Campo Grande, o deslizamento
de terra causado pelo acúmulo de água no topo de um morro causou uma
enxurrada de lama e pedras que praticamente dizimou a comunidade, a mais
atingida pelo desastre. A tragédia atingiu outras localidades, como o bairro de
Posse.
Somado com os de outros municípios da serra fluminense, como Nova Friburgo
e Petrópolis, o número de mortos devido às chuvas de janeiro de 2011 superou
os 900, segundo dados das prefeituras. O Ministério Público do Rio de Janeiro
(MPRJ) aponta que 345 pessoas estão desaparecidas, segundo dados de março
do ano passado.
Posse
Na Estrada da Posse, rota que leva às áreas mais devastadas em
Teresópolis, muitas propriedades que foram destruídas pela enchente e pelos
desabamentos estão sendo reerguidas aos poucos, enquanto outras, que ficavam
à beira do rio Paquequer, foram totalmente demolidas. Nos bairros adjacentes à
estrada, como Granja Florestal e Cascata do Imbuí, muros de contenção estão
sendo construídos à beira de encostas, para evitar novos deslizamentos. Já as
paredes das casas interditadas pela Defesa Civil apresentam inscrições em
vermelho, com as iniciais de cada bairro ("CI" para Cascata do Imbuí e "CG"
para Campo Grande, por exemplo) seguidas de um número de identificação.
O economista Martinho Ferreira dos Santos, 63 anos, mora no bairro da Posse
há sete, junto da mulher. Ambos estavam em casa na madrugada de 12 de
339
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
janeiro de 2011, quando ocorreu o deslizamento. "Eu estava dormindo e não
ouvi nada na hora, foi a minha mulher que disse que havia alguém na rua
pedindo socorro", disse Santos à BBC Brasil.
A residência do economista - uma casa de dois pisos, construída há 70 anos em
um terreno de 2 mil m²- fica à beira do córrego do Príncipe, que vem do bairro
vizinho de Campo Grande e corta o bairro da Posse. Um ano após o desastre, o
córrego, que "mal encobria o pé da gente", segundo Santos, ganhou volume e
força, ficando com mais de 1 m de profundidade. "Foi promovido a rio", ironiza
o morador.
No dia da tragédia, no entanto, o córrego deu lugar a uma enxurrada de lama e
rochas que vinham da direção do bairro do Campo Grande. A casa do
economista, assim como as de seus vizinhos, ficou dois meses sem água e luz, e
chegou a ser interditada, devido ao risco de novos desabamentos. Tomado pela
lama, o terreno de Santos acabou sendo invadido até por animais, como um
cavalo de raça. "Era um mangalarga lindo, mas todo machucado", diz.
Hoje, supervisionando reparos feitos no portão de entrada de sua propriedade, o
economista diz não ter medo de uma nova tragédia, mas afirma que as ações do
poder público para recuperar a sua zona são lentas demais. "A gente vê muros
de contenção sendo feitos em outros lugares, o que é importante, mas aqui foi
feita muito pouca coisa."
Campo Grande
Mais adiante, fica Campo Grande, o bairro mais afetado pelo desastre. Poucas
pessoas são vistas circulando pela localidade, aparentemente semiabandonada.
Retroescavadeiras ainda trabalham no local, tentando remover a terra que chega
a quase 2 m de altura por sobre alguns pontos da estrada. Um verdadeiro mar de
rochas enormes agora faz parte da paisagem local, que parece intocada desde os
desabamentos de janeiro de 2011. Em todo o bairro, dezenas de casas
semidestruídas estão vazias, interditadas pela Defesa Civil.
Estima-se que dezenas de corpos ainda estejam encobertos pela lama e pelos
escombros. Moradores afirmam que, há uma semana, ossos humanos foram
desenterrados por funcionários das obras de recuperação. Uma das residências
liberadas para morar é a do motorista Anísio Siqueira da Silva, 52 anos. Ele
afirma que não tem medo de permanecer no local, mesmo que a parte dos
fundos, onde residia a sua filha, tenha sido abandonada por ordem da Defesa
Civil.
Nos fundos, à beira do Córrego do Príncipe, ele aponta para o local onde
moravam seis sobrinhos seus. Todos foram mortos pela enxurrada de 2011, diz
o motorista. Além deles, segundo Silva, vários vizinhos morreram ou
desapareceram devido à tragédia, "Moro aqui desde que eu nasci. O que tinha
que acontecer, já aconteceu, não tenho medo de ficar", diz Silva, que mora
junto da mulher e de quatro filhos.
340
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
A família do motorista chegou a ficar dois meses em um abrigo, mas conseguiu
voltar para casa sem maiores perdas. Agora, Silva diz que aguarda uma maior
ação do governo para melhorar a estrutura do bairro. "Tem que ajeitar a rua,
trazer os ônibus de volta, dar luz para quem precisa, ajudar a gente", afirma o
morador.
Caleme
No bairro do Caleme, outra localidade fortemente atingida pelos deslizamentos,
moradores aguardam a liberação definitiva das autoridades para permanecer em
casas situadas em áreas de risco moderado, chamadas de "linha amarela".
Segundo a Defesa Civil de Teresópolis, as construções localizadas na "linha
amarela" ficam próximas de áreas com risco de desabamento, mas sem
apresentar risco iminente - diferentemente das zonas mais perigosas,
interditadas permanentemente, conhecidas como "linha vermelha".
A dona de casa Raquel Laje Siqueira, 25 anos, mora na "linha amarela", perto
de um morro que desabou em janeiro de 2011. No topo do morro, cerca de 200
m acima da rua, duas rochas grandes são visíveis em meio à terra molhada pela
chuva. Mesmo com essa aparente ameaça, Raquel diz que não cogita sair de
casa, e que não tem medo que aconteça um novo desastre. "Quando é para
acontecer, acontece em qualquer lugar", disse ela, que mora com marido e um
filho. A Defesa Civil alega que um laudo técnico do Departamento de Recursos
Minerais (DRM) do Estado do Rio apontará se a "linha amarela" será liberada
ou não para ser habitada.
O presidente da Associação dos Moradores e Amigos do Caleme (Amac), Jeová
dos Santos Silva, conta que uma das medidas de prevenção adotadas foi a
entrega de um pluviômetro pelo governo do Estado à sua entidade. Quando o
aparelho indicar chuvas acima de 60 mm, um alerta é feito via rádio à Defesa
Civil. Além disso, duas sirenes foram instaladas no bairro, além da fixação de
placas indicando rotas de fuga em caso de enchentes e deslizamentos.
No entanto, Silva diz que ainda faltam medidas de saúde no bairro, como a
criação de um posto de atendimento e ações para evitar doenças como a
leptospirose. A prefeitura de Teresópolis afirma que o governo federal repassou
ao município R$ 7,241 milhões, sendo que cerca de R$ 1 milhão foi bloqueado,
segundo a administração municipal, devido a problemas administrativos
ocorridos na gestão do prefeito Jorge Mário (PT), afastado no ano passado.
O restante das verbas, de acordo com a prefeitura, foi utilizado para locar
equipamentos para a limpeza das áreas atingidas e para o atendimento às
vítimas. Já o governo do Estado liberou para Teresópolis R$ 4,19 milhões, que
foram utilizados, segundo a prefeitura, para a compra de medicamentos e
materiais para o atendimento de saúde. O saldo restante, de R$ 1,854 milhão,
está sendo aplicado na recuperação de postos de saúde, de acordo com a
administração municipal.
341
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5552774-EI8139,00Um+ano+apos+chuvas+Teresopolis+ainda+guarda+marcas+da+tragedia.html
1. Identifique no fragmento que segue todos os termos que retomam os vocábulos destacados: Um ano depois das fortes chuvas e dos deslizamentos que deixaram centenas de mortos e destruíram comunidades inteiras, a cidade de Teresópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, ainda tenta se reconstruir e retomar a normalidade do dia a dia. A prefeitura de Teresópolis afirma que, somente no município, que continua em estado de calamidade pública, as enchentes e desabamentos ocorridos na madrugada de 12 de janeiro de 2011 deixaram 392 mortos confirmados, além de 180 desaparecidos, nas 80 localidades atingidas. No bairro de Campo Grande, o deslizamento de terra causado pelo acúmulo de água no topo de um morro causou uma enxurrada de lama e pedras que praticamente dizimou a comunidade, a mais atingida pelo desastre. A tragédia atingiu outras localidades, como o bairro de Posse. 2. Leia o fragmento: O economista Martinho Ferreira dos Santos, 63 anos, mora no bairro da Posse há sete, junto da mulher. Ambos estavam em casa na madrugada de 12 de janeiro de 2011, quando ocorreu o deslizamento. "Eu estava dormindo e não ouvi nada na hora, foi a minha mulher que disse que havia alguém na rua pedindo socorro", disse Santos à BBC Brasil. A residência do economista -­‐ uma casa de dois pisos, construída há 70 anos em um terreno de 2 mil m²-­‐ fica à beira do córrego do Príncipe, que vem do bairro vizinho de Campo Grande e corta o 342
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bairro da Posse. Um ano após o desastre, o córrego, que "mal encobria o pé da gente", segundo Santos, ganhou volume e força, ficando com mais de 1 m de profundidade. "Foi promovido a rio", ironiza o morador. Todas as palavras que seguem retomam a expressão O economista Martinho Ferreira dos Santos, exceto: letra B a) ambos b) alguém c) Santos d) o morador e) economista 3. Assinale a proposição em que o antecedente do termo sublinhado não pode ser localizado no mesmo segmento do texto que está entre aspas: letra D a) “Mais adiante, fica Campo Grande, o bairro mais afetado pelo desastre. Poucas pessoas são vistas circulando pela localidade, aparentemente semiabandonada.” b) “Poucas pessoas são vistas circulando pela localidade, aparentemente semiabandonada. Retroescavadeiras ainda trabalham no local, tentando remover a terra que chega a quase 2 m de altura por sobre alguns pontos da estrada.” c) “Um verdadeiro mar de rochas enormes agora faz parte da paisagem local, que parece intocada desde os desabamentos de janeiro de 2011.” d) “Um verdadeiro mar de rochas enormes agora faz parte da paisagem local, que parece intocada desde os desabamentos de janeiro de 2011.” e) “Mais adiante, fica Campo Grande, o bairro mais afetado pelo desastre. Poucas pessoas são vistas circulando pela localidade, aparentemente semiabandonada.” 343
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4. Assinale a alternativa em que o vocábulo destacado não retoma outro(s) elemento(s) citado(s) anteriormente. letra D a) “Um ano depois das fortes chuvas e dos deslizamentos que deixaram centenas de mortos e destruíram comunidades inteiras...” b) “A prefeitura de Teresópolis afirma que, somente no município, que continua em estado de calamidade pública...” c) “o deslizamento de terra causado pelo acúmulo de água no topo de um morro causou uma enxurrada de lama e pedras que praticamente dizimou a comunidade...” d) “O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) aponta que 345 pessoas estão desaparecidas, segundo dados de março do ano passado.” e) “Na Estrada da Posse, rota que leva às áreas mais devastadas em Teresópolis, muitas propriedades que foram destruídas pela enchente e pelos desabamentos...” 5. Leia o fragmento que segue e marque o referente da palavra sua: letra D “O presidente da Associação dos Moradores e Amigos do Caleme (Amac), Jeová dos Santos Silva, conta que uma das medidas de prevenção adotadas foi a entrega de um pluviômetro pelo governo do Estado à sua entidade.” a) associação dos moradores b) amigos do Caleme c) governo do Estado d) Jeová dos Santos Silva e) Amac 6. Leia o excerto: 344
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Mais adiante, fica Campo Grande, o bairro mais afetado pelo desastre. Poucas pessoas são vistas circulando pela localidade, aparentemente semiabandonada. Retroescavadeiras ainda trabalham no local, tentando remover a terra que chega a quase 2 m de altura por sobre alguns pontos da estrada. Um verdadeiro mar de rochas enormes agora faz parte da paisagem local, que parece intocada desde os desabamentos de janeiro de 2011. Em todo o bairro, dezenas de casas semidestruídas estão vazias, interditadas pela Defesa Civil. Para que haja progressão do texto, o autor empregou outras expressões ou palavras para retomar o vocábulo Campo Grande. Assinale a alternativa em que aparece um termo que não cumpre essa função: letra E a) o bairro b) localidade c) no local d) em todo o bairro e) a terra 7. Leia: “A casa do economista, assim como as de seus vizinhos, ficou dois meses sem água e luz, e chegou a ser interditada, devido ao risco de novos desabamentos.” a) O termo as destacado no texto, faz alusão a um elemento que não aparece de forma explícita no fragmento. Pelo contexto, é possível inferir que esse elemento de coesão refere-­‐se a quê? b) A expressão seus vizinhos refere-­‐se a que termo mencionado no texto anteriormente? c) A forma verbal “ser interditada” refere-­‐se a que vocábulo? A casa do economista 345
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
8. Leia: “Na Estrada da Posse, rota que leva às áreas mais devastadas em Teresópolis, muitas propriedades que foram destruídas pela enchente e pelos desabamentos estão sendo reerguidas aos poucos, enquanto outras, que ficavam à beira do rio Paquequer, foram totalmente demolidas.” Analise as proposições que seguem e depois assinale a alternativa incorreta: letra D a) as formas verbais “foram destruídas” e “sendo reerguidas” referem-­‐se a “muitas propriedades”. b) na passagem “que ficavam à beira do rio Paquequer”, a palavra que, de forma implícita, retoma a expressão “muitas propriedades”. c) em “rota que leva ás áreas mais devastadas...” a palavra que refere-­‐se à palavra “rota”. d) a forma verbal “foram totalmente demolidas” refere-­‐se a “áreas mais devastadas em Teresópolis...” e) o vocábulo “outras” retoma o termo “muitas propriedades”. 9. Considere as seguintes sentenças: letra D I. “Uma das residências liberadas para morar é a do motorista Anísio Siqueira da Silva, 52 anos. Ele afirma que não tem medo de permanecer no local...” II. “Ele afirma que não tem medo de permanecer no local, mesmo que a parte dos fundos, onde residia a sua filha, tenha sido abandonada por ordem da Defesa Civil.” 346
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
III. Ele afirma que não tem medo de permanecer no local, mesmo que a parte dos fundos, onde residia a sua filha, tenha sido abandonada por ordem da Defesa Civil. IV. “Estima-­‐se que dezenas de corpos ainda estejam encobertos pela lama e pelos escombros. Moradores afirmam que, há uma semana, ossos humanos foram desenterrados...” Com base apenas nos trechos citados acima, identifique aqueles em que as expressões grifadas retomam termos citados, cumprindo a função de elementos coesivos: a) I, II e IV b) II, III e IV c) I, III e IV d) I, II e III e) III e IV 10. Na coesão textual, os pronomes são empregados, muitas vezes, com o objetivo de ligar o que está sendo dito e o que já foi enunciado anteriormente. Assinale a alternativa em que o pronome não estabelece ligação com o que já foi mencionado anteriormente nas passagens que seguem. letra D a) "Eu estava dormindo e não ouvi nada na hora, foi a minha mulher que disse que havia alguém na rua pedindo socorro" b) “A casa do economista, assim como as de seus vizinhos, ficou dois meses sem água e luz, e chegou a ser interditada...” c) “Nos fundos, à beira do Córrego do Príncipe, ele aponta para o local onde moravam seis sobrinhos seus. Todos foram mortos pela enxurrada de 2011, diz o motorista.” d) “Nos fundos, à beira do Córrego do Príncipe, ele aponta para o local onde moravam seis sobrinhos seus.” 347
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
e) “Mesmo com essa aparente ameaça, Raquel diz que não cogita sair de casa, e que não tem medo que aconteça um novo desastre. "Quando é para acontecer, acontece em qualquer lugar", disse ela, que mora com marido e um filho.” -­‐-­‐> QUESTÃO pré-­‐textual (TEXTO 6): Observe a manchete da notícia que você irá ler e explique com suas palavras a que pode se referir a expressão destacada: Um ano após tragédia, bairro de Nova Friburgo parece cidade fantasma. TEXTO 6: Um ano após tragédia, bairro de Nova Friburgo parece cidade fantasma Deslizamentos que atingiram a região serrana em 2011 causaram mais de 900 mortes Repleto de casas destruídas e interditadas, o bairro de Córrego Dantas, em
Nova Friburgo, mais parece uma cidade fantasma, um ano depois da enchente e
dos deslizamentos que atingiram a região serrana do Rio de Janeiro, causando
mais de 900 mortes. De acordo com a Defesa Civil, 429 pessoas morreram em
Nova Friburgo devido à tragédia de janeiro de 2011.
Praticamente todos os bairros da cidade foram atingidos pelas enchentes e
desmoronamentos, inclusive o centro, onde vários prédios foram afetados. No
município, 44 pessoas continuam desaparecidas.
Situado entre dois morros e às margens do curso d'água que dá nome à
comunidade, Córrego Dantas foi o bairro mais afetado pelos deslizamentos de
terra e pelas fortes chuvas. Dezenas de casas tiveram as paredes totalmente
arrancadas. Várias delas estão sendo demolidas.
Praticamente todos os moradores já abandonaram o bairro. Alguns deles
acompanham os trabalhos das retroescavadeiras usadas para reverter o
assoreamento do Córrego Dantas, além dos tratores que realizam as
demolições. [...]
A Defesa Civil afirma que, além de Córrego Dantas, outros bairros fora do
centro urbano de Nova Friburgo que tiveram muitos danos devido às chuvas de
2011 foram Duas Pedras, Jardim Califórnia, Floresta, Jardinlândia e Campo do
Coelho. No centro da cidade, a vida parece ter voltado à normalidade, embora
muitos prédios ainda estejam interditados.
348
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
O teleférico localizado na praça do Suspiro, um dos principais cartões postais
da cidade, ainda não foi reaberto, já que a área onde ficam as suas torres foi
muito atingida. Além do teleférico, a igreja Santo Antônio, situada na mesma
praça, também está fechada.
Um abrigo municipal continua em funcionamento, onde cerca de 20 pessoas
que perderam suas casas estão instaladas, segundo a Defesa Civil. [...]
Rafael
Spuldar,
da
BBC
Brasil
|
13/01/2012
às
07h41
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/01/120112_teresopolis_cidade_
fantasma_rs.shtml
1. Explique como título e subtítulo se relacionam. 2. Identifique ao longo do texto as expressões anafóricas que fazem referência ao termo tragédia, apresentado no título. 3. Com base na leitura do texto, indique a que local a expressão cidade fantasma se refere: ( ) Córrego Dantas ( ) Duas Pedras ( ) Jardim Califórnia ( ) Floresta ( ) Jardinlândia ( ) Campo do Coelho ( ) Centro da cidade 4. Explique por que, no título do texto, a expressão cidade fantasma é usada para caracterizar um bairro de Nova Friburgo. TEXTO 7: Tragédia no Rio: abandono já dura um ano Em janeiro de 2011, região serrana foi palco de uma tragédia que deixou 918
mortos e 8,9 mil desabrigados. Até hoje, novas casas e sistema de prevenção
contra chuvas prometidos não foram entregues.
Um ano depois da tragédia que deixou 918 mortos e 8,9 mil desabrigados na
região serrana do Rio, o estado ainda não conseguiu entregar nenhuma das
cerca de 5 mil casas prometidas para as vítimas das chuvas. De acordo com a
secretaria de Obras, as primeiras unidades só deverão ser concluídas a partir de
março. Mas a maioria delas só ficará pronta em 2013. Vice-governador e
coordenador de infraestrutura do estado, Luiz Fernando Pezão culpou a
349
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
burocracia e a falta de interesse dos empresários pela demora: “Ali você não
tem uma área abundante, plana, segura para construções. Ou você está na
encosta ou na beira do rio. Isso dificulta muito. Áreas para as quais
conseguimos viabilizar o processo de desapropriação acabaram descartadas
pelo Ministério do Meio Ambiente. Então é difícil colocar estas pessoas de
novo em um lugar que não tenha problemas.”
Para mitigar o problema, o governo prometeu pagar aluguel social a 7.372
famílias até o fim de 2012. No entanto, muitas das famílias beneficiadas
voltaram para as casas interditadas pela Defesa Civil — por estarem em áreas
de risco — após as chuvas de 12 de janeiro de 2011. Outros permanecem em
locais improvisados. É o caso das 35 pessoas que invadiram um canteiro de
obras onde seria construído um hospital, em Sumidouro. Ou das famílias que
permanecem, desde fevereiro de 2011, num ambulatório transformado em
abrigo em Nova Friburgo. O abrigo tem hoje oito famílias remanescentes da
chuva de janeiro de 2011 instaladas em consultórios médicos transformados em
quartos. São 36 pessoas, sendo 16 crianças e 12 adolescentes. O secretário
municipal de Ação Social, Josué Ebenézer, diz que quatro delas recebem o
aluguel social há alguns meses. E que as outras devem passar a receber o
benefício este mês, um ano depois da tragédia. [...]
Publicado
em
13/01/2012
http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1212317
350
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
5. Observe o título do texto II e explique como é possível confirmar o tempo que dura o abandono referente à tragédia no Rio. 6. Considerando o gênero textual notícia e suas características sociocomunicativas, pode-­‐se dizer que este texto teria a mesma função enunciativa se lido daqui a alguns anos? 7. Observe a frase destacada no quarto parágrafo do texto I: Praticamente todos os moradores já abandonaram o bairro. Compare-­‐a com o título do texto II: Tragédia no Rio: abandono já dura um ano. Explique a diferente interpretação da expressão abandono nesses trechos. 8. Identifique ao longo do texto II as expressões anafóricas/ os termos que fazem referência ao termo abandono, apresentado no título. 9. Observe as seguintes frases destacadas do texto 2 e explique a que problema cada uma se refere. Então é difícil colocar estas pessoas de novo em um lugar que não tenha problemas. (Última frase do segundo parágrafo) Para mitigar o problema, o governo prometeu pagar aluguel social a 7.372 famílias até o fim de 2012. (Primeira frase do terceiro parágrafo) 10. Observe o que diz o vice-­‐governador e coordenador de infraestrutura do Estado, Luiz Fernando Pezão, e reflita: a quem se refere o pronome em destaque? Ele se refere a alguém em especial ou é usado com valor indeterminado? 351
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Ali você não tem uma área abundante, plana, segura para construções. Ou você está na encosta ou na beira do rio. Isso dificulta muito. TEXTO 8: Secretaria de Estado de Turismo lança campanha publicitária da Região Serrana A campanha “Suba a Serra do Rio de Janeiro e veja a vida de um novo
ângulo”, que foi inteiramente filmada e fotografada na Região Serrana (com o
apoio das cidades envolvidas: Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis), mostra
as belezas e o prazer de descobrir ou redescobrir destinos maravilhosos,
segundo o diretor de Marketing da TurisRio, Guto Graça.
Na cidade do Rio de Janeiro, aproveitando o grande fluxo de turistas
por ocasião da Rio+20, a Secretaria de Estado de Turismo está fazendo uma
grande cobertura de mobiliário urbano e marca presença também nos cinemas
da cidade neste mês de junho.
Tanto na TV aberta como na TV fechada, foi feita uma vasta cobertura
e um planejamento de mídia que segue critérios técnicos para melhor
otimização dos investimentos.
Chegar ao produto final foi uma construção que teve nas figuras do
secretário de Estado de Turismo, Ronald Azaro, e do Ministro Gastão Vieira, o
exemplo do trabalho em parceria entre as esferas de poder. Um resultado
objetivo que seguiu uma linha clara de trabalho, que vem sendo posta em
prática, de somar forças. E através deste alinhamento, cada envolvido pode se
sentir parte integrante de um todo. Seja no Estado, em Brasília ou nos
municípios de Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis.
Segundo a secretária de Turismo de Nova Friburgo, Bianca Tempone
Felga, que participou de reuniões, junto com representantes dos municípios de
Teresópolis e Petrópolis na Secretaria de Estado de Turismo, sobre a proposta
de Campanha para a Região Serrana, a veiculação deste material chega em boa
hora na Região Serrana e no Estado. Segundo Bianca, o momento é de mostrar
ao Rio de Janeiro e a todo Brasil que a região está recuperada e aguardando a
visita dos turistas.
http://novafriburgo.rj.gov.br/2012/06/secretaria-de-estado-de-turismo-lancacampanha-publicitaria-da-regiao-serrana/#ixzz1y0vkaPPg Publicado em 12 de
junho de 2012
352
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
11. Diferente dos primeiros textos, é possível notar que o texto III apresenta referências positivas em relação à região serrana um ano após a destruição causada pelas chuvas. Destaque do texto algumas expressões que comprovam isso. 12. Por que o texto III, em especial, apresenta essas referências positivas em relação à cidade de Nova Friburgo e a toda região serrana do Rio? 13. Observe que, no texto III, a secretária de turismo Bianca Tempone Felga afirma que a região serrana está recuperada, sem, no entanto, mencionar a condição de destruição da qual a região se recuperou. Essa omissão foi intencional? Justifique. 14. Forme um grupo com outros dois colegas de sua turma. O grupo deverá montar uma encenação de um telejornal, com os seguintes personagens: o prefeito de uma cidade da região serrana do Rio de Janeiro, uma vítima das fortes chuvas e o jornalista. De acordo com a fala de cada personagem a respeito da condição atual da região serrana, a turma terá como tarefa registrar as expressões referenciais que apresentam, explicitamente, como cada enunciador avalia a condição das regiões atingidas pelas fortes chuvas. Em seguida, a turma discutirá sobre a função argumentativa da referenciação na construção do texto. TEXTO 9: Chuvas deixam pelo menos cinco mortos na região serrana do Rio de Janeiro 353
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Maior parte dos problemas se concentra no município de Teresópolis A forte chuva registrada nesta sexta-feira no Rio de Janeiro castigou os
moradores da região serrana. Pelo menos cinco pessoas morreram no início da
noite no município de Teresópolis, segundo o Corpo de Bombeiros do estado
fluminense. Em Nova Friburgo, também na serra, um rio transbordou e alagou
ruas e casas. As informações são da Globo News.
As mortes ocorreram em Teresópolis, nos bairros de Bom Retiro, onde
dois corpos foram encontrados nos escombros de um desabamento, Santa
Cecília e Quinta Lebrão, além da comunidade Pimentel. Em Quinta Lebrão, um
adolescente morreu soterrado por um muro que desabou. Já em Santa Cecília,
uma mulher foi localizada embaixo dos escombros.
Segundo o comandante do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro,
Sérgio Simões, o número de desalojados e desabrigados passa de 500.
De acordo com a Defesa Civil do Rio de Janeiro, o sistema de alerta
sonoro foi acionado nos pontos da cidade com maior risco de deslizamento.
Houve pelo menos oito desabamento no município. A chuva obrigou a Polícia
Rodoviária Federal a bloquear totalmente a rodovia Rio-Teresópolis.
http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/noticia/2012/04/chuvas-deixam-pelo-menoscinco-mortos-na-regiao-serrana-do-rio-de-janeiro-3719803.html Zero Hora
Rio Grande do Sul - Região castigada 06/04/2012 | 23h15 Atualizada em
07/04/2012 | 04h11
1) Que efeito de sentido gera a expressão “pelo menos”, presente na manchete da notícia? 2) Após ler a notícia, quais seriam os problemas apontados no subtítulo “Maior parte dos problemas se concentra no município de Teresópolis”? 3) Observe o início do segundo parágrafo da notícia, que começa referindo-­‐se a algumas mortes que ocorreram em Teresópolis. a-­‐ Que mortes são essas? b-­‐ É a primeira vez que essas mortes são citadas no texto? Se não, onde apareceram pela primeira vez. 354
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
4) Além da tragédia com as moradias e as mortes, qual foi a outra consequência da forte chuva? TEXTO 10: Chuva forte castiga região serrana do Rio de Janeiro Temporal em Nova Friburgo e Teresópolis mata cinco pessoas e
deixa cerca de mil desabrigadas. Defesa Civil mandou homens e
máquinas para trabalhar na remoção de entulhos
Rio de Janeiro (ABr) - Pouco mais de um ano depois da tragédia que atingiu
cidades da região serrana do do Rio de Janeiro, matando cerca de mil pessoas e
deixando centenas de desaparecidos, as chuvas voltam a castigar as cidades de
Nova Friburgo e Teresópolis. Em Teresópolis, pelo menos cinco pessoas
morreram e cerca de mil estão desabrigadas. Elas foram deslocadas para
alojamentos disponibilizados pela prefeitura. O último dos cinco corpos, que
estava soterrado, foi resgatado no final da madrugada. A vítima é uma mulher
ainda não identificada, moradora do bairro de Santa Cecilia, um dos mais
atingidos pelo temporal.
Segundo a Defesa Civil do estado, em pouco mais de quatro horas
choveu na região serrana 160 milímetros, volume que se esperava para todo o
mês. Em consequência, segundo o Inea, todos os rios da região serrana estão
em estágio de atenção.
A chuva só deu uma trégua por volta das 23h de ontem, mas o dia
amanheceu nublado na região, o que levou o Instituto Estadual do Ambiente
(Inea) a divulgar boletim colocando os municípios de Petrópolis, Teresópolis e
Nova Friburgo em estado de vigilância, assim como Macaé e todas as cidades
localizadas no norte e noroeste do estado.
O secretário estadual de Defesa Civil e comandante-geral do Corpo de
Bombeiros do Rio de Janeiro, coronel Sérgio Simões, esteve na região
acompanhando os trabalhos de auxílio às vítimas e de resgate das pessoas
ilhadas. Por medida de segurança, a concessionária que administra a RioTeresópolis fechou o trecho da serra, entre o km 89 e o km 104, por volta das
19h da sexta-feira, e só o reabriu às 23h30.
Na RJ-142, um deslizamento de terra na estrada que liga os distritos de
Mury a Lumiar levou à interdição parcial da rodovia e os motoristas devem
dirigir com a atenção redobrada.
O governo do Estado do Rio de Janeiro enviou a Teresópolis 10
caminhões e cerca de 80 homens para remover a lama que se acumulou nas ruas
e prometeu mandar retroescavadeiras e caminhões-pipa para reforçar o
355
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
trabalho da defesa civil. De acordo com informações da assessoria de imprensa,
um posto de comando foi montado na sede da Secretaria Municipal de
Segurança Pública, na Várzea, com equipes da Defesa Civil e de Segurança
Pública, a fim de concentrar informações e determinar as ações de prontoatendimento aos moradores das áreas atingidas.
O sistema de alerta sonoro foi acionado em comunidades com áreas de
risco e moradores estão sendo orientados a seguir para os pontos de apoio. Por
medida de precaução, equipes também foram mobilizadas em Nova Friburgo,
onde o Rio Bengalas permanece em estágio de atenção. Também houve
interdição de um trecho da RJ-142, em Nova Friburgo, que liga os distritos de
Mury e Lumiar.
Na manhã deste sábado, a prefeitura de Teresópolis lançou um apelo
pedindo a doação de água potável, cestas básicas e colchonetes para atender
aos desabrigados. Segundo a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social,
as doações podem ser entregues no Ginásio Pedrão. Já os colchonetes e cestas
básicas estão sendo providenciados pela prefeitura, em parceria com o Governo
do Estado.
Tribuna do Norte Publicação: 08 de Abril de 2012 às 00:00
http://tribunadonorte.com.br/noticia/chuva-forte-castiga-regiao-serrana-do-riode-janeiro/217067
1) De acordo com o texto, foi a primeira vez que uma tragédia como essa aconteceu na Região Serrana? Justifique sua resposta: 2) A quem se refere o pronome de terceira pessoa no trecho “Elas foram deslocadas para alojamentos”, no segundo parágrafo? 3) O que significa a expressão “deu uma trégua”, no terceiro parágrafo? 4) O texto informa que a estradas foram bloqueadas “por medida de precaução”, o que significa dizer isso? 356
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
5) No último parágrafo, o redator informa sobre o pedido de doação e utiliza a palavra “apelo” para fazer referência a ele. Que efeito de sentido é gerado por essa escolha vocabular? TEXTO 11 (fragmentos): Os esquecidos da Região Serrana Há um ano, sete municípios da região viviam a pior tragédia climática da história do país. Hoje, moradores ainda convivem com o medo quando começa a chover. Os esquecidos da Região Serrana
Moradores se desesperam ao menor sinal de chuva, desabrigados sofrem com
desinformação, obras andam em ritmo lento e corrupção traga recursos da
reconstrução. Quase um ano depois, Fórum conta histórias desoladoras da
região que protagonizou a pior tragédia climática brasileira.
Entre a noite do último dia 11 de janeiro e a manhã do dia seguinte, um
temporal de proporções épicas atingiu a região serrana do estado do Rio de
Janeiro. Em 24 horas, choveu o previsto para o mês inteiro. Nos dias seguintes,
as imagens da catástrofe e o número de mortos não deixaram dúvidas: aquela
foi a maior tragédia climática da história do Brasil. [...] Quase um ano depois,
às vésperas de outro verão chuvoso, Fórum visitou a região para saber o que
feito e como estão vivendo os sobreviventes da tragédia.
“Vocês estão medindo minha casa pela metade”
O caminho até o ponto final do Vale do Cuiabá, em Itaipava, distrito de
Petrópolis, é longo. São pelo menos 30 minutos de ônibus entre o centro
petropolitano e Itaipava, onde fica a fábrica de cerveja de mesmo nome, e
outros 40 até a região que foi devastada pelas chuvas de janeiro. O lugar é
famoso por abrigar mansões luxuosas de políticos e capitães da indústria
fluminense, haras e pousadas chiques.
Moradores contam que, semanas depois da catástrofe, donos de haras
ofereceram polpudas recompensas para quem encontrasse pedaços dos cavalos
perdidos entre os escombros. Só assim eles poderiam receber os seguros pagos
pelos animais. Entre as muitas mortes que ocorreram ali, as que mais
comoveram a opinião pública foram oito familiares do economista Erik Conolly
de Carvalho, executivo do Icatu. Ele perdeu três filhos, os pais, a irmã, o
cunhado e o sobrinho. A casa em que estava o grupo pertencia a Ângela
Gouvêa Vieira, cunhada de Eduardo Gouvêa Vieira, presidente da Federação
das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). Moradora da região desde que nasceu,
357
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
há 67 anos, a aposentada Edilma Vieira desenha no ar um mapa imaginário do
Vale do Cuiabá e mostra onde estava a casa com a família Conolly. “Só sei que
era gente importante. Quando os repórteres chegavam aqui, iam direto para
lá”. [...]
José Fonseca está inconformado porque funcionários do governo demoliram o
que sobrou da casa sem avisá-lo. “Tinha um monte de telha, maçanetas e outros
materiais que eu podia ter vendido”. Assim como todos os presentes na hora da
inspeção, Fonseca não tem ideia de quando, ou mesmo se vai receber uma casa
nova ou indenização do governo, como foi prometido com pompa e
circunstância pelo governador Sérgio Cabral no calor dos acontecimentos.
Apesar de receberam um aluguel social do governo de até R$ 500, os
moradores reclamam que nenhuma das casas prometidas há quase um ano foi
construída. [...]
Solução é sair de casa
Dez meses depois da tragédia, qualquer sinal de chuva causa pânico nos
moradores de Nova Friburgo. Quando a água começa a cair com um pouco
mais de veemência, mães correm para buscar os filhos nas escolas,
comerciantes fecham as portas e o medo se instala no rosto das pessoas. Em
Friburgo, os sinais das chuvas de janeiro ainda são visíveis no centro da cidade,
que é cortada por um rio. Na Praça do Suspiro, o teleférico, que era a grande
atração turística do local, está do mesmo jeito que estava em 12 janeiro. As
cadeiras ainda estão lá, como em um trem fantasma abandonado. [...]
De fato, poucas intervenções urbanas foram realizadas no período, e o ritmo
das obras em andamento é lento. Técnicos são unânimes em dizer que não há
mais tempo de fazer nada além de preparar um esquema de retirada das famílias
de áreas de risco em caso de chuva forte. “As primeiras habitações só ficarão
prontas no verão de 2013. Fizemos análises de investimentos e concluímos que
não foi investido quase nada em Defesa Civil e contenção de encostas”, afirma
o deputado estadual Luiz Paulo Correa da Rocha (PSDB), presidente da CPI da
Região Serrana. Ele aponta para o caos político da região, onde dois prefeitos, o
de Nova Friburgo e o de Teresópolis, foram cassados, entre outros motivos, por
desvios de verbas emergenciais. Mas pontua que falta organização ao governo
estadual. “A CPI não achou informações centralizadas sobre o que está sendo
feito. As demandas caíram na rotina das secretárias. O ideal era que a operação
toda ficasse em um centro”.
Um secretário municipal da Região Serrana que cuida da interface com o
governo estadual nos projetos de reconstrução conversou longamente com a
reportagem, mas pediu que seu nome fosse preservado. Ele concorda com a
avaliação do presidente da CPI e vai além. “Além de o processo estar dividido
em muitas secretarias, o estado não divide responsabilidades com as prefeituras.
O governador não abre mão do poder político das obras. Ocorre que a máquina
358
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
do estado é paquidérmica”. Ele cita um exemplo. “Colocaram duas dragas e três
caminhões para fazer a dragagem em um trecho de rio, mas mandaram despejar
a terra a 30 quilômetros de distância. Resultado: os caminhões são enchidos
rapidamente e demoram horas para ir, despejar a terra e voltar. As dragas ficam
paradas quase o dia inteiro. O cara que tomou essa decisão está no Rio de
Janeiro e não conhece a região”. Ele diz, ainda, que ficará feliz se o estado
conseguir construir 380 das 1,5 mil casas prometidas na sua cidade até 2013.
Detalhe: todos os prefeitos da Região Serrana são aliados do governador Sérgio
Cabral. [...]
Pelo ralo
Além da lentidão do governo estadual, as cidades da Região Serrana sofrem
com o caos político local. Grande parte dos recursos enviados pelo governo
federal para ajudar na reconstrução das cidades escorreu pelo ralo da mais
mesquinha corrupção. Relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU) e da
Controladoria Geral da União apontaram irregularidades em contratos sem
licitação assinados pelas prefeituras e governo do estado.
Em Nova Friburgo, nada menos que R$ 10 milhões enviados de Brasília
evaporaram. O Ministério Público Federal instaurou dez inquéritos civis
públicos na cidade. Em Teresópolis, o MP revelou um esquema entre
empreiteiras e autoridades, que cobrava até 50% de propina na execução de
obras. Em Nova Friburgo, o TCU mostrou que a prestação de contas enviada
pela prefeitura estava cheio de buracos. Nenhuma das prefeituras das cidades
atingidas conseguiu fazer uma prestação de contas decente. O Ministério da
Integração Nacional enviou R$ 30 milhões para serem divididos entre os
municípios. [...]
Antes de deixar a Região Serrana, assisti a uma reunião da CPI municipal das
chuvas na Câmara dos Vereadores de Nova Friburgo. Apenas sete pessoas,
entre elas quatro jornalistas locais, acompanhavam o depoimento do secretário
José Ricardo Carvalho. Sentado ao lado de seu advogado, ele tentava convencer
os vereadores da mesa diretora que o dinheiro desapareceu por causa do caos da
chuva. “As circunstâncias eram muito precárias. Havia dificuldade na oferta de
serviço. Não era todo mundo que tinha confiança de receber ou queria arriscar
seus equipamentos. Não havia internet. Quando a equipe dizia que a empresa
era idônea, eu assinava”. À medida que as perguntas se tornaram mais
específicas e passaram a citar nominalmente contratos, valores e erros de
procedimento, o advogado passou a bater boca com os depoentes. Formou-se
então um grande teatro. Enquanto isso, assessores observavam pela janela a
chuva que caía cada vez mais forte...
(In:
http://www.revistaforum.com.br/conteudo/detalhe_noticia.php?codNoticia=966
0/, acesso em 31 de maio de 2012) Por Pedro Venceslau [12.01.2012 14h15]
359
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
TEXTO 12: Um ano após a tragédia, o medo de novas chuvas Um dos laços culturais mais fortes a unir o Brasil e a Suíça, a bela Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, atravessa momentos de tristeza pela proximidade de uma data que ninguém na cidade gosta de lembrar. Em 12 de janeiro, se completará um ano da tragédia, causada pelas fortes
chuvas de verão, que custou a vida de 918 pessoas (além de 215 desaparecidos)
em sete municípios da Região Serrana do Rio, fazendo a metade dessas vítimas
em Nova Friburgo.
Apreensiva, a população friburguense vê a volta das chuvas fortes,
acompanhada da constatação de que quase nada foi feito pelo poder público
para evitar novos deslizamentos e enchentes nos inúmeros pontos vulneráveis
da cidade.
Após passar a noite de Ano-Novo sob chuva fina, Nova Friburgo reviveu o
pesadelo durante a madrugada do dia 2 de janeiro, quando as pancadas de
chuva e a elevação das águas de alguns rios que cortam a cidade fizeram soar
sirenes de alarme em 14 bairros, o que acabou gerando algum pânico entre a
população.
Segundo o serviço meteorológico, naquele dia choveu em 24 horas cerca de 100
milímetros, ultrapassando o limite de segurança previamente estabelecido pela
Defesa Civil. Não houve vítima na cidade, mas foram registrados pequenos
deslizamentos de terra nas localidades de Mury, Braunes e Campo do Coelho.
A Praça do Suspiro, principal ponto turístico de Nova Friburgo e que sequer
havia sido restaurada, voltou a sofrer deslizamentos, tornando-se símbolo da
difícil situação em que se encontra a cidade.
Quase totalmente destruído pela força das águas e das rochas trazidas pela
enxurrada há um ano, o bairro de Córrego D’Antas viu o rio Bengalas
transbordar novamente e assustar a população: “Quando chove, ninguém
dorme”, disse a costureira Maria da Penha de Souza, em imagem captada pelas
câmeras de televisão.
A preocupação dos moradores é grande, pois no último dia 19 de dezembro
uma forte pancada de chuva fez o rio subir, invadir algumas casas e, para
desespero de muitos, arrastar a ponte que, improvisada há um ano, serve como
único ponto de contato entre Córrego D’Antas e o resto do mundo. Somente
após esse incidente, a Defesa Civil anunciou a construção de uma ponte
definitiva no local.
É em Córrego D’Antas que a Associação Fribourg-Nova Friburgo, que
administra a aplicação de parte dos donativos oferecidos pela Suíça à cidade
brasileira, toca o projeto de construção de uma creche.
360
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Diretor cultural da Casa Suíça de Nova Friburgo, Maurício Pinheiro, relata o
ambiente na cidade: “As pessoas estão com medo, principalmente aqueles que
moram em áreas de risco. Medo da chuva, medo dos deslizamentos, medo de
ter medo. Esse assunto está sempre presente, mesmo nos momentos de lazer. O
problema maior é que mesmo as chuvas moderadas são capazes de inundar as
ruas, uma vez que as galerias continuam obstruídas e os rios assoreados em
diversos pontos”.
A volta das chuvas de verão e dos riscos de nova tragédia tornou evidente a
morosidade na reconstrução das cidades da Região Serrana do Rio. O
governador Sérgio Cabral foi o primeiro a reconhecer o atraso: “Ainda temos
uma tarefa gigantesca pela frente, e essa recuperação não se conclui em um
ano”, disse.
O prefeito em exercício de Nova Friburgo, Sérgio Xavier, afirma que seu
antecessor - Demerval Barbosa Neto, afastado em novembro por decisão da
Justiça - iniciou apenas 40% das obras necessárias à recuperação da cidade.
Demerval foi afastado do cargo por sonegar ao Ministério Público informações
no inquérito que investiga o desvio das verbas destinadas pelo governo federal
à recuperação de Nova Friburgo.
(In:
http://www.swissinfo.ch/por/especiais/Tragedia_e_reconstrucao_na_Regiao_Se
rrana/Um_ano_apos_a_tragedia,_o_medo_de_novas_chuvas.html?cid=319223
78, acesso em 31 de maio de 2012)
: 01. Fevereiro 2012 - 10:08Por Maurício Thuswohl, swissinfo.ch
1. O título do texto I trata dos “esquecidos da Região Serrana”. IDENTIFIQUE as expressões que, nos dois primeiros parágrafos, representam esses “esquecidos”. 2. Ainda nessa primeira parte da matéria, o autor utiliza cinco expressões para se referir ao que aconteceu, em janeiro, na Região Serrana do Rio de Janeiro. a) IDENTIFIQUE essas expressões. b) Que ideia é reforçada por meio dessas escolhas lexicais? 3. Observe as expressões abaixo, utilizadas no texto I para se referir a diferentes personagens que sofreram com as chuvas da 361
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Região Serrana (todas as expressões encontram-­‐se no segundo parágrafo da segunda parte da matéria, “Vocês estão medindo minha casa pela metade”). Moradores – donos de haras – familiares do economista Erik Conolly de Carvalho – o grupo – Moradora da região desde que nasceu. a) SEPARE essas personagens em dois grupos, tendo em vista sua denominação. b) De que modo a diferença na denominação dessas pessoas reforça a ideia de desigualdade que há entre elas? c) IDENTIFIQUE a expressão, presente na fala da moradora Edilma Vieira, que reforça ainda mais essa situação de desigualdade. 4. A Revista Fórum, periódico de onde o texto I foi retirado, caracteriza-­‐se por buscar “uma visão de mundo diferente da presente nos grandes meios de comunicação”. RELEIA o trecho transcrito a seguir e EXPLIQUE de que modo as escolhas lexicais do texto deixam subentendida uma crítica à imprensa tradicional. “Entre as muitas mortes que ocorreram ali, as que mais comoveram a opinião pública foram oito familiares do economista Erik Conolly de Carvalho, executivo do Icatu.” 5. No terceiro parágrafo da segunda parte do texto I, o jornalista afirma que Fonseca não sabe quando vai receber uma “casa nova”. a) IDENTIFIQUE a expressão que, na continuidade desse parágrafo, substitui o referente “casa nova”. b) Ao fazer essa substituição, qual ideia se está defendendo? 362
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
6. Observe a descrição que é feita da promessa de Sérgio Cabral ainda neste terceiro parágrafo: “Assim como todos os presentes na hora da inspeção, Fonseca não tem ideia de quando, ou mesmo se vai receber uma casa nova ou indenização do governo, como foi prometido com pompa e circunstância pelo governador Sérgio Cabral no calor dos acontecimentos.” a) Pode-­‐se dizer que, no trecho sublinhado, a descrição foi utilizada em função de uma argumentação, ou seja, manifesta um ponto de vista? JUSTIFIQUE sua resposta com base nas escolhas lexicais do autor. b) IDENTIFIQUE a expressão que, no trecho transcrito, refere-­‐se ao período da tragédia e EXPLIQUE como ela manifesta um ponto de vista do texto. 7. Luiz Paulo Correa e um secretário municipal da Região Serrana foram ouvidos pelo jornalista do texto I. Embora ambos apontem para o caos político da região, o secretário municipal é bem mais enfático em suas críticas. a) Se Luiz Paulo Correa quisesse ser mais incisivo em sua crítica, por que outro referente ele poderia substituir a expressão “demandas” em “As demandas caíram na rotina das secretárias”. b) IDENTIFIQUE o referente utilizado pelo secretário para se referir à pessoa que criou a estratégia para fazer a dragagem em um trecho de um rio. Ao ler essa expressão, que imagem o leitor cria dessa pessoa? c) O secretário municipal também descreve a “máquina do estado”. Pode-­‐se dizer que essa descrição foi utilizada em função de uma argumentação, ou seja, manifesta um ponto de vista? JUSTIFIQUE sua resposta com base nas escolhas lexicais. 363
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
8. No último parágrafo do texto I, o jornalista trata da “reunião da CPI municipal das chuvas”. a) IDENTIFIQUE a expressão que, na continuidade desse parágrafo, substitui o referente “reunião da CPI municipal das chuvas”. b) Ao fazer essa substituição, que ideia o jornalista está defendendo? 9. No último parágrafo do texto I, o jornalista é bastante irônico. EXPLIQUE o porquê dessa ironia. 10. Compare os trechos a seguir que tratam de um mesmo ponto turístico de Friburgo: “Na Praça do Suspiro, o teleférico, que era a grande atração turística do local, está do mesmo jeito que estava em 12 janeiro. As cadeiras ainda estão lá, como em um trem fantasma abandonado.” (Texto I) “A Praça do Suspiro, principal ponto turístico de Nova Friburgo e que sequer havia sido restaurada, voltou a sofrer deslizamentos, tornando-­‐se símbolo da difícil situação em que se encontra a cidade.” (Texto II) a) IDENTIFIQUE o elemento que, no texto I, refere-­‐se ao teleférico e o elemento que, no texto II, refere-­‐se à Praça do Suspiro. b) Tendo em vista sua resposta à questão anterior (11a), DIFERENCIE os dois textos no que diz respeito à linguagem utilizada para criticar a situação da Região Serrana hoje. 12. Observe o trecho a seguir, retirado do texto II: “Medo da chuva, medo dos deslizamentos, medo de ter medo.” 364
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Sabe-­‐se que, com vistas à redação de um texto mais elegante, costumam-­‐se evitar repetições de vocábulos. Entretanto, há casos em que tais repetições são legítimas, como no trecho acima. EXPLIQUE qual é o sentido da recorrência do substantivo “medo” no período. TEXTO 13: FÚRIA CLIMÁTICA: Tragédia no RJ coloca o Brasil no mapa-­‐múndi das catástrofes Calamidade natural na região serrana do Rio foi o terceiro maior desastre em número de mortes no ano passado, segundo a ONU As inundações e os deslizamentos de terra na região serrana do Rio de Janeiro,
que vitimaram pelo menos 900 pessoas no verão de 2011, colocaram o Brasil
em posição de destaque mundial nas estatísticas de tragédias climáticas. O
episódio foi o terceiro maior desastre natural em número de mortes entre os
registrados no ano passado, ficando atrás apenas do terremoto seguido de
tsunami no Japão, que totalizou 19.846 mortes em março, e das tempestades
tropicais nas Filipinas em dezembro, com 1.430 mortes.
Os dados fazem parte de um levantamento da Estratégia Internacional para
Redução de Desastres, órgão das Nações Unidas, e do Centro de Investigação
sobre a Epidemiologia dos Desastres. O mapeamento divulgado em janeiro
mostrou que 302 desastres naturais foram registrados em 2011 no mundo,
provocando a morte de 29.782 pessoas e afetando 206 milhões. A quantidade
de desastres é inferior à de 2010, que teve 373 ocorrências.
Apesar dessa queda, a tendência observada nos últimos 20 anos é de
crescimento, analisa o diretor do Centro de Apoio Científico em Desastres da
Universidade Federal do Paraná, Renato Eugênio de Lima. Ele aponta que, a
médio prazo, existem países que vêm contabilizando cada vez mais prejuízos e
vítimas, entre eles o Brasil. “Começamos a aparecer [na lista de países com
mais mortes] há cerca de três a quatro anos. Agora, existe a necessidade de
esforço nacional para reverter essa tendência”, diz.
A tragédia no Rio é considerada a maior da história brasileira. No ano passado,
o Brasil reportou seis desastres naturais significativos, ficando na nona posição
entre os países com mais ocorrências, de acordo com o levantamento.
Preparo
O estudo destaca que países com renda média e alta registraram grandes
catástrofes, apesar de terem mais recursos para melhorar os sistemas de
365
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
prevenção. O Brasil, por exemplo, gasta 8,5 vezes mais em reconstrução do que
em prevenção, de acordo com um levantamento da ONG Contas Abertas.
Falta no país um planejamento urbano para o crescimento ordenado das
cidades, observa o professor de Geografia da Pon-tifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro Marcelo Motta. “As chuvas torrenciais são o único problema
natural no Brasil e nós não sabemos lidar com ele”, afirma, lembrando que o
país está livre de outros desastres como terremotos, vulcões e furacões.
Para o engenheiro florestal e advogado Paulo de Tarso Lara Pires, pósdoutorando em Direito Ambiental e Desastres Naturais na Universidade de
Berkeley, a população brasileira vem sofrendo com desastres naturais
considerados de fácil solução, mas de grande impacto. Ele aponta que o Brasil
começa a se preparar, mas sem uma política clara de prevenção. “No caso do
Brasil, quanto maior o investimento público em obras de prevenção e quanto
mais preparada estiver a população, menores serão os riscos de que esses
eventos se transformem em desastres naturais.”
04/02/2012
Bruna
Maestri
Walter
http://www.jornaldelondrina.com.br/online/conteudo.phtml?id=1220164
TEXTO 14: Após um ano, mais de 200 continuam desaparecidos na serra do Rio Ainda restam 215 pessoas desaparecidas desde as fortes chuvas que causaram
enchentes e desabamentos em diversos municípios da região serrana do Rio de
Janeiro há exatamente um ano, deixando mais de 900 mortos confirmados.
Atualizados no início de janeiro, os números do PIV (Programa de
Identificação de Vítimas) indicam que 137 pessoas ainda estão desaparecidas
no município de Teresópolis, enquanto Nova Friburgo tem 44, Petrópolis 18 e
Sumidouro uma; outros 15 desaparecidos não tiveram a localidade informada.
O Programa de Identificação de Vítimas faz parte de outro mais amplo, o Plid
(Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos), mantido em
parceria entre o MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) e a Polícia Civil,
e que conta com a colaboração de outros órgãos públicos, como a Defesa Civil,
o Detran e o Corpo de Bombeiros.
A ação do programa consiste em identificar as pessoas cujo desaparecimento
foi comunicado por parentes.
Segundo o coordenador do Plid, o promotor de Justiça Pedro Borges, foram
feitas 698 comunicações relacionadas à tragédia na serra fluminense.
No caso de Teresópolis, onde comunidades inteiras foram dizimadas pela
enxurrada de lama e pedras, acredita-se que vários corpos ainda estejam
soterrados pelos escombros. Moradores afirmam que ossos humanos são
366
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
encontrados semanalmente por funcionários que trabalham em obras de
reparação.
Técnicas de identificação
A identificação das vítimas é feita basicamente por meio de três técnicas: a
papiloscopia (recolhimento de impressões digitais), exames de arcada dentária e
verificação de DNA.
O coordenador do Plid afirma que, para a identificação por meio de digitais, a
maior dificuldade é a decomposição dos corpos e os danos causados a eles
pelos desmoronamentos.
Já o exame de arcada dentária é dificultado, segundo ele, pelo fato de muitas
vítimas serem de baixa renda e não terem prontuário odontológico registrado
em dentistas.
Para a identificação por DNA, segundo Borges, a maior dificuldade decorre do
deterioramento dos restos mortais encontrados sob a lama e os escombros, que
gera a contaminação das amostras, prejudicando a análise.
Além disso, de acordo com o promotor, a dificuldade em fazer a identificação
por DNA é maior de acordo com o grau de parentesco da pessoa que busca com
a vítima encontrada. Se a relação for direta, como de mãe e filho, o trabalho é
mais rápido do que se os restos mortais forem de um familiar mais distante.
Segundo o coordenador do Plid, 110 mortos cujo desaparecimento foi
comunicado por parentes foram identificados por meio de exame papiloscópico.
Já o exame de arcada dentária permitiu a identificação de apenas duas vítimas,
enquanto 35 foram identificadas por meio de material genético.
Até janeiro deste ano, 342 pessoas cujo desaparecimento foi comunicado foram
encontradas com vida em seis municípios da serra fluminense.
Esperança
Àqueles que desejam pelo menos encontrar os restos de seus familiares, a fim
de realizar um sepultamento, o promotor pede que mantenham as esperanças.
"A Operação Serra (nome dado aos esforços para identificação das vítimas das
enchentes de 2011) só será encerrada quando zerarmos o número de
comunicações de desaparecidos", diz.
Borges diz que, mesmo um ano após a tragédia, muitas pessoas ainda são
localizadas com vida, por vários motivos. Um deles é o fato de que o
reaparecimento de diversos moradores dados como desaparecidos - que
somente estavam incomunicáveis durante as chuvas - acabou não sendo
relatado às autoridades.
"Já nessa semana houve o caso de uma pessoa que deixou sua família no
período exato da tragédia. Assim, o que parecia um desaparecimento devido à
chuva tratava-se tão somente de um abandono de lar", afirma o promotor.
367
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
"Ou seja, este é um universo variado. Nada pode ser presumido, tudo tem de ser
esgotado."
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/bbc/1033328-apos-um-ano-mais-de-200continuam-desaparecidos-na-serra-do-rio.shtml 12/01/2012 - 09h05 DA BBC
BRASIL
1. Os dois textos acima, embora tratem do mesmo assunto, focalizam aspectos distintos. Qual é o foco de cada um dos textos? 2. A tragédia à qual o primeiro texto se refere diz respeito a um acontecimento recente, ocorrido há poucos dias? Justifique sua resposta destacando trechos que mostrem o momento da tragédia. 3. Localize, no terceiro parágrafo do primeiro texto, um pronome pessoal empregado para retomar um referente, identificando esse referente. 4. As palavras “tragédia”, “calamidade”, “catástrofe” e “desastre”, entre outras, aparecem com frequência no primeiro texto. Explique como o emprego desses termos pode ajudar o leitor a compreender a opinião expressa no texto sobre o que houve na região serrana do Rio de Janeiro. 5. O segundo texto, assim como o primeiro, fala de acontecimentos ocorridos na “região serrana do Rio de Janeiro”. Supondo que você não conhece o Rio e que não acompanhou as notícias na época em que ocorreram os episódios, é possível identificar essa “região” por meio da leitura do texto? Explique. 368
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
7. No sétimo parágrafo do texto 2, o termo “três técnicas” aponta para qual referente? É possível dizer que esse termo encapsula (resume) o referente? Por quê? 8. Na última parte do segundo texto, a que ESPERANÇA o autor se refere? 9. Que diferença há entre o emprego das palavras “pessoas” e “vítimas” ao longo do texto? 10. Aponte, no segundo texto, alguns adjetivos que contribuem para compreender o ponto de vista do texto sobre os acontecimentos noticiados. TEXTO 15: Tragédia na Serra Em 2011, as chuvas impiedosas causaram destruição na região serrana do Rio de Janeiro e geraram imagens que ficarão para sempre na memória do país. Um ano e muitas promessas depois, a situação de risco insiste em permanecer. O ano passou rápido. As imagens ficaram na cabeça. Foi em fevereiro de 2011.
Subimos a região serrana do Rio de Janeiro em um dia nublado. Ligamos o
rádio e os locutores só falavam naquilo: um temporal destruiu bairros inteiros,
bombeiros procuram os mortos. O clima de emergência estava no ar.
Helicópteros mergulhavam e saíam das nuvens em missão de resgate. Carros de
polícia, caminhões carregados de água mineral, barreiras caídas – o clima era
de desastre.
Mas ninguém poderia imaginar o tamanho do desastre: 894 mortos, ruas
riscadas do mapa, famílias desfeitas e, no ar, o cheiro dos destroços molhados e
dos corpos esperando enterro em morgues improvisados. Como foi possível
tudo isso? Por que não estávamos preparados? Quais lições vamos aprender
com a tragédia? As perguntas se sucediam, mas não era um bom momento para
elas.
À medida que subia para o ponto mais atingido de Teresópolis – o bairro de
Campo Grande –, eu cruzava com as famílias batendo em retirada, com as
369
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
poucas coisas que salvaram, cachorros e gatos de estimação. Carregavam o que
podiam, inclusive a angústia de escolher o que salvar. Abraçada a um poodle, a
mulher o mostrava orgulhosamente. Mas a voz do marido, alguns metros atrás,
era implacável:
“O cachorro que estava velho e cego você deixou para trás.”
Naqueles primeiros momentos, ainda havia o risco de novas chuvas. Só usavam
máscaras os parentes que iam reconhecer corpos, os funcionários e os
voluntários no IML. Um caminhão frigorífico de uma peixaria foi colocado na
porta para recolher os corpos excedentes. Nem todos os moradores isolados
estavam a salvo. Às vezes, o mau tempo mantinha os helicópteros no solo.
Equipes de TV encontraram uma grávida em trabalho de parto. E a trouxeram,
perguntando com insistência, ao microfone, se estava se sentindo bem, se era
menino ou menina. Mas nem todos foram ajudados. Um homem retirou o corpo
do próprio filho dos escombros, conservou-o em uma geladeira, improvisou um
caixão e o enterrou.
Havia, então, dois obstáculos: os novos temporais e os boatos sobre arrastões e
rompimento de represas que não ocorreram. Em Friburgo, um repórter de TV
perguntava às autoridades o que fazer: “Fugir ou subir no prédio mais alto?” A
resposta: “Não sabemos, pode ser que os prédios desabem também”. Mas o
medo real era de um novo temporal. Alcancei para o bairro de Campo Grande,
quando todos o abandonavam, e passei algumas horas examinando os
escombros. No caminho, vi carros cobertos de lama, piscinas invadidas pelo
barro, portões soltos na rua, uma igreja isolada pelos escombros. Mas o que
impressionava era olhar para cima e ver a quantidade e o tamanho das pedras
que rolaram da montanha. Cheguei andando ao bairro destruído. Nosso Gol
ficou no caminho, incapaz de vencer os obstáculos – pedras, buracos,
inundações. Lá em cima, vi algo parecido com o fim do mundo. Não havia
quase nada em pé. O interior das casas estava revirado. Algumas pessoas
vasculhavam os escombros. As nuvens tornaram-se ameaçadoras e os
helicópteros passavam apressados. Alguém disse: “Olha a chuva aí!”.
Com a chuva batendo forte, descemos rapidamente. Voltaria muitas vezes, ao
longo do ano para entender o que passou e o que estava sendo feito para atenuar
a dor daquelas pessoas. Era uma promessa.
Fonte: http://www.rollingstone.com.br/edicao/edicao-65/tragedia-na-serra Ed.
65, Fev./2012, FERNANDO GABEIRA
1) Ligamos o rádio e os locutores só falavam naquilo: um temporal destruiu bairros inteiros, bombeiros procuram os mortos. (1º parágrafo) 370
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Embora o pronome demonstrativo “aquilo”, no que diz respeito à coesão textual, seja frequentemente utilizado para retomar um referente, no caso acima, seu uso foi diferente. Indique a que ele se refere no texto, explicitando também sua referência temporal. No texto, o pronome “naquilo” faz referência a algo posterior: “um temporal destruiu bairros inteiros, bombeiros procuram os mortos.” Sua referência temporal revela uma lembrança do autor, ou seja, um passado distante, nesse caso, o ano anterior. 2) Ao empregar a palavra “desastre”, no final do 1º parágrafo, o autor resume subjetivamente o que viu em fevereiro de 2011 na região serrana do Rio de Janeiro. O que ele considera como “desastre”? Ele caracteriza como desastre um temporal que atingiu a região serrana do Rio de Janeiro e destruiu bairros inteiros, a necessidade de busca de sobreviventes por parte dos bombeiros, da polícia e de helicópteros e a queda de barreiras. 3) Como foi possível tudo isso? A pergunta acima, feita por Fernando Gabeira no 2º parágrafo do texto, revela o espanto do autor diante da gravidade do problema. Que expressão foi usada na pergunta que gera esse efeito? Indique a que ela faz referência. A expressão “tudo isso”, pois ao questionar sobre a possibilidade de “tudo isso” ter ocorrido, o autor faz referência à grande tragédia que houve, seu elevado número de mortos e à modificação do mapa da cidade devido à atual inexistência de certas ruas. 4) No 5º parágrafo, fala-­‐se de dois obstáculos: os novos temporais e os boatos sobre arrastões e rompimento de represas que não ocorreram. 371
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Por que foram utilizados artigos definidos para determinar essas dificuldades se era a primeira vez que apareciam no texto? Porque o referente já era conhecido pelo leitor por meio da expressão “obstáculos”, citado anteriormente. 5) Podemos entender como encapsuladores termos de natureza nominal e, às vezes, subjetiva que resumem indiretamente informações do texto e do contexto. Assim, analisando o último parágrafo do texto, complete o quadro abaixo com um exemplo retirado dessa parte do texto para cada coluna. Termo encapsulador Referência textual retomada Voltaria muitas vezes, ao longo promessa do ano para entender o que passou e o que estava sendo feito para atenuar a dor daquelas pessoas. 6) A assinatura da autoria do texto por Fernando Gabeira atribui pessoalidade e subjetividade à descrição. Identifique elementos que comprovem a afirmativa. 7) Identifique no primeiro parágrafo os elementos textuais que criam o campo semântico de guerra e o cenário apocalíptico para a referida tragédia. 372
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
8) No trecho abaixo, os termos separados por colchetes têm funções diferentes em relação ao mesmo conteúdo. Explique quais são essas funções que fazem os termos serem relacionados. "Mas ninguém poderia imaginar o tamanho do [desastre]: [894 mortos, ruas riscadas do mapa, famílias desfeitas e, no ar, o cheiro dos destroços molhados e dos corpos esperando enterro em morgues improvisados.] Como foi possível tudo [isso]? Por que não estávamos preparados? Quais lições vamos aprender com a tragédia? As perguntas se sucediam, mas não era um bom momento para elas." 9) O texto promove uma mudança de tratamento sobre o assunto: de início, o que houve é tratado como tragédia; depois, passa-­‐se a problematizá-­‐lo como consequência de má administração. Como os referentes “culpa”, ‘mecanismos”, “solução” contribuem para essa formação de sentido? TEXTO 16: Tragédia no Rio: abandono já dura um ano CALAMIDADE
Em janeiro de 2011, região serrana foi palco de uma tragédia que deixou 918
mortos e 8,9 mil desabrigados. Até hoje, novas casas e sistema de prevenção
contra chuvas prometidos não foram entregues
Somente parte das promessas foi cumprida:
Reconstrução de pontes
Das 75 prometidas, apenas uma foi entregue, sendo aberta ao tráfego semana
passada, ainda em obras.
Parques fluviais
Importantes para impedir a ocupação das margens de rios, eles ainda não saíram
do papel.
373
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Centro operacional
O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais foi criado
no fim de 2011, mas apenas 56 dos 251 municípios de alto risco de desastres
naturais do país contam com análise e mapeamento de riscos.
Sirenes e pluviômetros
O sistema de alerta foi instalado em 50 comunidades da Serra. Chegou a ser
acionado durante as chuvas do início deste mês, mas precisa ser ampliado.
Radares meteorológicos
Anunciados, eles só devem chegar em março de 2013.
Obras
Contenções não estão prontas
Um ano após os temporais provocarem 777 deslizamentos em sete municípios
da região serrana, fluminense a maioria dos pontos não recebeu obras de
contenção. O subsecretário de Interior do governo do estado, Affonso
Monnerat, estimou que R$ 1 bilhão ainda terão de ser gastos nas encostas para
torná-las seguras. Ele não incluiu os investimentos para recuperar áreas
consideradas de menor risco, por estarem em locais isolados. Na conta também
estão fora os R$ 147 milhões que estão sendo investidos em 30 pontos
considerados prioritários. As primeiras obras acabam este mês em Petrópolis,
mas a maioria deve prosseguir até março.
As obras se limitaram às cidades maiores. Os 30 pontos estão em Friburgo (8),
Teresópolis (12) e Petrópolis (10). Sumidouro, Bom Jardim, Areal e São José
do Vale do Rio Preto, que somaram quase 200 deslizamentos, ainda esperam
recursos. Em vistoria feita na região, porém, o CREA só encontrou oito pontos
em obras.
Um ano depois da tragédia que deixou 918 mortos e 8,9 mil desabrigados na
região serrana do Rio, o estado ainda não conseguiu entregar nenhuma das
cerca de 5 mil casas prometidas para as vítimas das chuvas. De acordo com a
secretaria de Obras, as primeiras unidades só deverão ser concluídas a partir de
março. Mas a maioria delas só ficará pronta em 2013. Vice-governador e
coordenador de infraestrutura do estado, Luiz Fernando Pezão culpou a
burocracia e a falta de interesse dos empresários pela demora: “Ali você não
tem uma área abundante, plana, segura para construções. Ou você está na
encosta ou na beira do rio. Isso dificulta muito. Áreas para as quais
conseguimos viabilizar o processo de desapropriação acabaram descartadas
pelo Ministério do Meio Am--biente. Então é difícil colocar estas pessoas de
novo em um lugar que não tenha problemas.”
Para mitigar o problema, o governo prometeu pagar aluguel social a 7.372
famílias até o fim de 2012. No entanto, muitas das famílias beneficiadas
voltaram para as casas interditadas pela Defesa Civil — por estarem em áreas
de risco — após as chuvas de 12 de janeiro de 2011. Outros permanecem em
374
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
locais improvisados. É o caso das 35 pessoas que invadiram um canteiro de
obras onde seria construído um hospital, em Sumidouro. Ou das famílias que
permanecem, desde fevereiro de 2011, num ambulatório transformado em
abrigo em Nova Friburgo. O abrigo tem hoje oito famílias remanescentes da
chuva de janeiro de 2011 instaladas em consultórios médicos transformados em
quartos. São 36 pessoas, sendo 16 crianças e 12 adolescentes. O secretário
municipal de Ação Social, Josué Ebenézer, diz que quatro delas recebem o
aluguel social há alguns meses. E que as outras devem passar a receber o
benefício este mês, um ano depois da tragédia.
O secretário estadual de Obras, Hudson Braga, sustenta que o estado deve
entregar, até março, 96 unidades habitacionais em Nova Friburgo. Segundo ele,
as casas já estavam sendo construídas antes da tragédia e serão compradas pelo
estado. Todas as outras, no entanto, só devem ser entregues a partir do fim do
ano. Segundo a secretaria, está em andamento, no âmbito do programa Minha
Casa, Minha Vida, a contratação de 5.459 unidades habitacionais e comerciais,
com investimento de R$ 452,6 mi--lhões. As primeiras 2.166 começam a ser
construídas este mês, segundo o governo. “Enfrentamos dificuldades para
encontrar áreas e levantar se essas áreas são seguras. Uma das que
identificamos como adequada foi avaliada em R$ 2 milhões, mas o proprietário
acabou pedindo R$ 10 milhões”, conta Hudson.
Outro problema, segundo o secretário, é o custo das construções. Ele diz que
foram feitas sete convocações, pelas regras da Caixa, para a apresentação de
propostas, uma por município, envolvendo 14 terrenos. Mas só cinco
entregaram propostas: duas para Teresópolis, uma para Friburgo, uma para São
José do Vale do Rio Preto e uma para Bom Jardim.
Fonte: Do jornal Gazeta do Povo, do Paraná. Texto publicado em 13/01/2012.
1) A estruturação do texto jornalístico permite atribuições de valor, além de adiantar o assunto tratado para o leitor. Identifique o primeiro elemento estrutural “da página” que realiza essa função e qual a ideia introduzida. (aba da página) 375
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
2) No lead da matéria, qual a relação entre o elemento sublinhado e a referência mais presente para o ocorrido na região serrana? 3) De que maneira os elementos sublinhados no texto constroem a ideia de que o ocorrido teve como agente a natureza? Texto 17: Os jornalões como cúmplices da tragédia no Rio de Janeiro No momento em que este post é escrito, o número de mortos nas enchentes e
deslizamentos no Rio de Janeiro já chegam quase a três centenas. Parece apenas
um número, mas são famílias destroçadas, vidas reais que acabam de uma hora
para a outra e que causam sofrimentos múltiplos e intensos, muito mais fortes
do que os números são capazes de dizer.
Tragédias como essas se repetem. Nos dias anteriores aos acontecimentos do
Rio, fora São Paulo quem sofrera com problemas semelhantes. No início de
2010 foi a mesma coisa. Durante o último ano as enchentes se repetiram em
São Paulo. No Alagoas, também. Todos os Estados brasileiros enfrentam, em
medidas, níveis e momentos diferentes, esse tipo de dificuldade. E, tragédia
após tragédia, os diversos governos se dizem surpresos com a intensidade das
chuvas, culpam a população por jogar lixo nas ruas, culpam, literalmente, deus
e o mundo. E a mídia tradicional vai no mesmo embalo.
Dependendo do governo e do momento político, as causas estruturais dos
problemas são ignoradas. A responsabilidade do Estado é omitida pela velha
mídia, e nos casos mais recentes de São Paulo e do Rio de Janeiro foi / está
sendo desse jeito. Problemas de limpeza urbana e das vias de escoamento,
construções ilegais nas encostas (sejam mansões construídas por ricaços
irresponsáveis, sejam barracos construídos por quem não tem onde morar).
Praticamente ou totalmente ignoradas pela grande mídia as necessidades de
uma profunda reforma urbana, de fiscalização em áreas de risco, de maiores
cuidados de manutenção das estruturas das grandes cidades. Uma passagem
pelos portais dos três maiores jornais do país e pelo G1 mostra essa omissão.
Às 22h30 desta quarta-feira (13/01), são 40 chamadas nos quatro sites (nove no
376
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
G1, 14 no O Globo, dez na Folha de S. Paulo, sete no Estadão). Nenhuma das
40 chamadas refere-se às causas político-sociais da tragédia. Entre os quatro
textos principais, apenas duas rápidas referências a essas causas, no Estadão e
no O Globo. Mas bem rápidas. O que aconteceu foi, novamente, um verdadeiro
crime cometido pelo Estado contra a sociedade. Ao calar-se, a mídia torna-se
cúmplice dessas centenas de assassinatos.
Vale destacar que hoje as emissoras de televisão começaram a falar das
responsabilidades do governo do Rio de Janeiro, curiosamente omitidas no caso
de São Paulo.
Quarenta chamadas, nenhuma falando em causas além da chuva. Para não
responsabilizar ninguém, responsabiliza-se “a chuva” ou “as enxurradas”.
G1:
Chuva faz 267 mortes em três cidades do RJ
Dilma libera R$ 780 milhões para municípios atingidos por chuvas
Bebê é resgatado após 15 horas
Equipe que atuou no Bumba e no Haiti reforça buscas a vítimas
Chuva em SP e em Nova Friburgo ultrapassa média histórica, diz Inpe
Estilista morta em chuvas terá homenagem
Franco da Rocha decreta emergência (SP)
Veja imagens da tragédia no RJ
Enchente traz maior risco para a saúde
O Globo:
Já passa de 260 o total de mortos pelas enxurradas em 3 cidades da Região
Serrana
Tragédia deixa 16 mortos em um sítio em Petrópolis
Tragédia em Itaipava
Região Serrana pede alimentos, colchões e doações de sangue
Dilma Rousseff visita o Rio amanhã e deve liberar R$ 700 milhões
Cabral pede ajuda à Marinha
Mais de 15 frentes de ações emergenciais abertas, diz Minc
Veja fotos da tragédia na Serra
Pousada Tambo Los Incas é arrasada pela cheia em Itaipava
Nas redes sociais, preocupação com parentes
Em Itaipava estilista Daniela Conolly, 7 parentes e babá morrem
Chuvas deixam moradores incomunicáveis
Temporal deixou 75 mil clientes sem luz na Região Serrana
BR-116 está interditada
Folha:
Chuva mata ao menos 257 na região serrana do Rio; 130 são de Teresópolis
Escola vira necrotério em Nova Friburgo
377
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Era inevitável abrir comporta, diz Sabesp
Veja imagens dos estragos causados pela chuva
Franco da Rocha (SP) permanece alagada
SP registra chuva do mês todo de janeiro
Dilma vai sobrevoar região serrana amanhã
Governo libera R$ 780 milhões para Estados afetados
Chuva destrói hotel e teleférico de Nova Friburgo
Lama dificulta ajuda, ouça relato do enviado
Estadão:
Chuva mata 257 pessoas na Serra do Rio
Previsão é de mais chuvas para a região
Marinha cede helicópteros para resgate
Tragédia é pior do que em Angra dos Reis, diz vice-governador do Rio
Dilma vai para o Rio nesta quinta
Estilista e família morrem em sítio
Diretor do Icatu perde oito familiares
Do blog Jornalismo B, do Rio Grande do Sul. Texto publicado em 12/02/2012
1) O texto seleciona alguns título de manchetes que têm como assunto comum a tragédia ocorrida na região serrana. Identifique e transcreva alguns desses títulos que sirvam para justificar a seguinte afirmativa presente no sétimo parágrafo do texto: “Para não responsabilizar ninguém, responsabiliza-­‐se 'a chuva' ou 'as enxurradas'”. 2) Como o texto cria a forte crítica à administração pública lançando mão do campo semântico de "crime"? 378
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Sobre os autores
Amanda Heiderich Marchon
Doutoranda em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, desenvolve um projeto de pesquisa intitulado As escolhas lexicais em gêneros jornalísticos: uma interface com o ensino de Língua Portuguesa. Atualmente, é professora da Universidade Candido Mendes e de colégios públicos e privados em Nova Friburgo. Na Fundação Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (Fundação CECIERJ), trabalha como conteudista do Programa Nova EJA. E-­‐mail: [email protected] Fabiana Gonçalo
Mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bacharel e Licenciada em Letras (Português/Literaturas) pela mesma instituição. Integrante do projeto de pesquisa Abordagem textual no ensino de Língua Portuguesa: Problemas e Perspectivas (Coord.: Profa. Dra. Leonor Werneck dos Santos). E-­‐mail: [email protected] 379
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Fábio Gusmão da Silva
Doutorando em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor de Língua Portuguesa do Ensino Médio, é especialista em Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Paraná, pós-­‐graduado em Currículo e Prática Educativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Paraná. E-­‐mail: [email protected] Karine Oliveira Bastos
Mestranda do Programa de Pós-­‐graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com Bacharelado e Licenciatura em Letras (Português/Literaturas) pela mesma instituição. Atua como professora de Língua Portuguesa, no Município do Rio de Janeiro e na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), e como coordenadora da Educação de Jovens e Adultos da EPSJV/Fiocruz. E-­‐mail: [email protected] 380
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Leonor Werneck dos Santos
Mestre e Doutora em Língua Portuguesa pela UFRJ, onde leciona desde 1995. Foi professora de Ensino Fundamental e Médio em escolas particulares e na rede pública. Atua em cursos de graduação e pós-­‐graduação, incluindo o curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil. Já participou dos programas de seleção de livros de literatura infantil e juvenil Mais Cultura/2007 e 2010 (Biblioteca Nacional/MEC) e PNBE (MEC), além de ter participado do PNLEM/2009 (MEC). Dentre suas publicações, estão os livros Articulação textual na literatura infantil e juvenil (Lucerna), Estratégias de leitura: texto e leitor (co-­‐autoria, Lucerna), Literatura infantil e juvenil na prática docente (co-­‐
autoria, Ao Livro Técnico) e Análise e produção de textos (co-­‐
autoria, Contexto). Email: [email protected] Website: www.leonorwerneck.com Luana Maria Siqueira Machado
Doutoranda em Língua Portuguesa pela UFRJ, Mestre em Língua Portuguesa pela mesma instituição. Atua com pesquisas de interface entre as áreas Fonética Acústica e Linguística de Texto/Análise do Discurso, vinculada às linhas de pesquisa Língua 381
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
e Ensino e Língua e Acústica. Professora da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro. E-­‐mail: [email protected] Manuela Colamarco
Doutoranda em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Língua Portuguesa pela mesma instituição, onde também cursou Bacharelado e Licenciatura em Letras (Português/Literaturas). Integrante do projeto de pesquisa Abordagem textual no ensino de Língua Portuguesa: Problemas e Perspectivas. (Coord.: Profa. Dra. Leonor Werneck dos Santos). E-­‐mail: [email protected] Mário Acrisio Alves Junior
Doutorando em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Licenciado em Letras-­‐Português, com Mestrado em Estudos Linguísticos (2011) pela Universidade Federal do Espírito Santo. É colaborador do programa Universidade Aberta do Brasil (UAB/CAPES), pelo qual atua como tutor EAD de pós-­‐
graduação lato sensu. E-­‐mail: [email protected] 382
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Matheus Odorisi Marques
Professor de Língua Portuguesa, Redator de Conteúdo on-­‐line e Revisor de Texto. Doutorando em Língua Portuguesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro, trabalha com o aparato teórico da Linguística Cognitiva, com o qual atualmente estuda questões morfológicas de formação de compostos a partir do Inglês. E-­‐mail: [email protected] Natália Rocha
Mestranda em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, na área de Análise do Discurso. Graduada em Letras – Português / Espanhol pela UFRJ e professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do Colégio e Curso Miguel Couto. Também é coautora do material didático de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental do Sistema Miguel Couto. E-­‐mail: [email protected] 383
Referenciação e Ensino: análise de livros didáticos
Ensino de Leitura:
Referenciação
e Ensino:
fundamentos, práticas
e
reflexões
para professores
análise
de livros
didáticos
da era digital
Leonor Werneck dos Santos
(Org.)

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