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Bagunçaço
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Bagunçaço
Joselito Crispim
Programa Petrobras Cultural
Apoio
Copyright © 2010 Joselito Crispim
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL)
organização
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
consultoria
ECIO SALLES
produção editorial
CAMILLA SAVOIA
projeto gráfico
CUBICULO
No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos
vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos,
profundamente conectados com experiências sociais
específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume
contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, suas condições socioeconômicas e a afirmação cultural de suas comunidades.
BAGUNÇAÇO
produtor gráfico
SIDNEI BALBINO
designer assistente
DANIEL FROTA
revisão
CINDY LEOPOLDO
MARINA VARGAS
revisão tipográfica
CAMILLA SAVOIA
LETÍCIA BARROSO
C949b
Crispim, Joselito
Bagunçaço / Joselito Crispim. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2010.
il. — (Tramas urbanas)
ISBN 978-85-7820-045-9
1. Crispim, Joselito. 2. Bagunçaço (Projeto cultural). 3. Artistas Brasil - Biografia. 4. Música - Aspectos sociais - Bahia (BA).
I. Programa Petrobras Cultural. II. Título. III. Série.
10-3377.
CDD: 927.0981
CDU: 929:7.034(81)
14.07.10
21.07.10
020297
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA
AV. ATAULFO DE PAIVA, 658 / SALA 401
LEBLON – RIO DE JANEIRO – RJ
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TELEFAX: 21 2239-7399
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www.aeroplanoeditora.com.br
A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar
ou autorizar a produção cultural dos artistas que se
encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz.
Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são
exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e
outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção.
Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar
não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas
experiências novas formas de responder a questões
culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como
diz a curadora do projeto, “mais do que a internet,
a periferia é a grande novidade do século XXI”.
Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.
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Favela toma conta
Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da
periferia se impõe como um dos movimentos culturais
de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação
social. Esses são apenas alguns dos traços de inovação
nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes
mais fortes de nossa tradição cultural.
Ainda que a produção cultural das periferias comece
hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada.
É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem
como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas
desse novo capítulo da memória cultural brasileira.
Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.
Heloisa Buarque de Hollanda
Agradecimentos
Quando Ecio Salles me falou do projeto, achei fascinante. Ainda mais quando ele disse que eu era um dos
indicados a participar. Com esse irmão, estou em dívida
por essa e tantas outras oportunidades de aprendizado.
Ao nosso amigo e educando em comum, Jonas Michel
(Pikucha), falecido tão prematuramente, mas, que na
sua sabedoria inocente, nos ligou a toda a família AfroReggae, de onde se originou todo esse encontro.
Aos meus antepassados, mestres na transmissão das
tradições orais, espero que minhas narrativas escritas possam, mesmo que de longe, honrar esse legado
ancestral. Tenho que agradecer ao amigo jornalista,
João Paulo, e meu educando e também amigo, Fernando
Teles. Ambos foram importantes no embrião do processo, o primeiro ao analisar e corrigir o esboço da história, e o segundo ao se disponibilizar voluntariamente
para organizar o material inicial.
A todos que formam ou já formaram a equipe Bagunçaço. Infelizmente não foi possível citar todos nas narrativas, mas, sem dúvida, são parte de nossas conquistas
pedagógicas. A todos citados nas narrativas desse livro,
espero que recebam essa menção como um “muito obrigado!” e a certeza de que enriqueceram — em confraternizações ou enfrentamentos —, com suas contribuições, os fatos que desembocaram no meu crescimento
como ser humano e no surgimento do Bagunçaço. Agradeço também aos educandos do projeto S’oba’s Princedom, no bairro Ilha Amarela (Parque São Bartolomeu), em
Salvador, e o Instituto Juvenil Bagunçaço, de Moçambique, em Catembe, Maputo, pois são as novidades dessa
história que continuam. Aos nossos parceiros históricos e/ou atuais: POMMAR, USAID, CESE (Coordenadoria
Ecumênica de Serviço), Coelba, Embaixada do Japão,
Embaixada da Espanha, CONDER, Fundação Bagunçaço
Suécia, Lapa & Góes e Góes Advogados e Consultores,
Sesc Mesa Brasil, Criança Esperança, Unesco, Faiveley
Transport S.A, Enter-Jovem, entre outros.
Aos meus amigos da vida e do Bagunçaço: João Reis,
Urs Wirth (Marcolino), Zaca de Oliveira, Emílio Agostinho
Jamine, Benjamim Agostinho Nhumaio, Mila Petrillo,
Rayssa Coe, Cristina Raposo, Sylvia Johnson, Daniel
Miracle, Sofia Lundi, Luciana Marques, Osvaldo Souza,
Wilson Café, Lon Bové, Chocolate, Margareth Menezes,
Carlinhos Brown, Angelique Kidjo, Mel King, Nicodeme,
Alice e David Cavallo, Sérgio Machado, Mônica Simões,
Mariza Soares, Meire e Jorge, Gabriela Goulart Mora,
Ana C. Mascarenha (Coelba), Tânia Andrade, Patricia
Teles, Lennart Kjörling, Frida Lundquist, Dimitri Ganzelevitch, Paula Rezende, Nena Lentini, Rita Ippolito, Isael
Barros, Kassira Bomfim, Padre Clóvis, Laura López, Alicia Sanabria, Luis Orlando (em memória), Veronica Baruffati e Monica Hernandez. Claro que sempre nos esquecemos de alguém, mas se seu nome deveria estar aqui
ou nas histórias narradas e, por imperfeição humana,
você não o encontrar, minhas sinceras desculpas.
Aos meus familiares de sangue e de santo, principalmente, minha mãe D. Jove, meus irmãos, meus sobrinhos
e meus filhos Elvis, Josinan e Jan. Finalmente, em memória dos adolescentes Dendê, Bilota, Larzinho, Mole, João
da Metron, Junior Cabeça, Jonas (Menino Sariguê), Buiu,
Isidoro, Danilo (S’oba´s), Bibiu, Nadison, Sandro, Kisuque,
entre outros tantos que perderam suas vidas em tenra
idade nas águas da violência, além de nos denunciar que
muito ainda se tem a fazer pela infância e juventude do
Brasil. A todos os meninos e meninas do Bagunçaço, de
todos os tempos.
Sumário
14
Cap.01 Tumba do Mar
24
Cap.02 Vida nos Alagados
48
Cap.03 Alagados sem água
66
Cap.04 Assinando a carteira
80
Cap.05 Corações e anjos
94
Cap.06 O mundo sem Zé Bofeia
100
Cap.07 Um homem da lei
108
Cap.08 Nascimento do Bagunçaço
130
Cap.09 Primeiros shows
186
Cap.10 Uma casa para o Bagunçaço
218
Imagens: índice e créditos
223
Sobre o autor
Cap.01
Tumba do Mar
Cap.01
Tumba do Mar
Tumba do Mar
Dia 19 de outubro, logo pela manhã, a negra de dijina
Unguelê, que era a Kaiai Kairi no terreiro Tumba do Mar,
começou a sentir as contrações, presságio de que o dia
prometia. A velha Gamo, que é o mesmo que Kavua, parteira experiente e irmã de santo da grávida, logo ficou
alerta, assim como todas as outras muzenzas.1
O que mais preocupava era o fato de que a Mameto de
Inquice de dijina Senameã,2 nome de batismo Nair do
Santos, estava fora em obrigação no terreiro de sua mãe
de santo Deré Lubidí, o Tumba Junçara, na Vila América.
Logo, por volta das 11h15, Unguelê pediu força a
Kavungo3 e se entregou ao trabalho de parto. Momentos depois, nasceu um menininho, trazido à vida
naquele micro-mundo africano encravado na periferia
de São Salvador da Bahia. Aquele nascimento — pensou Unguelê — dava ao marido José e à mãe de santo
a vitória na aposta, pois seu Cachoeira, o avô, queria
menina, logo esse desejo diferenciado virou aposta,
que foi dividida com os moradores, frequentadores e
admiradores do terreiro. A brincadeira se espalhou por
todas as pontes dos barracos-palafitas onde reinava o
terreiro Tumba do Mar.
1 Recém-iniciadas no candomblé.
2 Nome adotado por Nair dos Santos, avó do personagem Pim, após ter se
iniciado no candomblé.
3 Orixá das endemias e epidemias, porque tem grande poder de cura sobre
as doenças.
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Jove, como também era chamada Unguelê, registrada
como Jovelina Maria Cesaria dos Santos, apesar de
exausta pelo esforço do parto, estava tomada por uma
enorme felicidade. Ela agradecia aos seus inquices pela
dádiva e também pedia vida e saúde para criar seu filho,
pois, após a morte de sua mãe, Maria Jacinta de Jesus,
no parto, Unguelê padecera muito por ter sido criada por
parentes. Seu pai, Romualdo Teles dos Santos, somente
após uns meses de banzo se refez. E então voltou a
participar da organização do Negro Fugido, manifestação popular histórica que encena toda a luta dos nossos antepassados escravizados, suas fugas e capturas
pelos capitães do mato. Embora os historiadores não
encontrem vestígios de quilombos por aquelas bandas
de Acupe de Santo Amaro da Purificação, a encenação
folclórica do Negro Fugido mostra o sangue quilombola
daquele povo. Jovem e de sangue quilombola, Jove não
fugiu ao destino reservado a sua gente. Sessenta e cinco
anos depois do fim legal da escravatura, ela, aos 12
anos, foi levada no porão de um saveiro,4 entre bananas,
sacas de farinha, cabras e outras mercadorias, em uma
viagem de pelo menos oito horas no mar agitadíssimo de
abril, que varou a noite e a madrugada na baía de Todos
os Santos até chegar ao Mercado da Conceição, em Salvador, onde as crianças negras ainda eram escolhidas
por senhoras para trabalhar em suas casas no velho
estilo escravista. Todo mês, o dinheiro do seu trabalho
era levado para sua família pelo mestre saveirista.
Jove se considerou sortuda, pois a senhora que a escolhera a tratava como uma filha, embora tivesse que
ser esperta para escapar das tentativas de cantadas e
investidas do patriarca da família.
4 Barco estreito e longo, tradicional e pouco usado hoje em dia, mas muito
utilizado como transporte de pessoas na baía de Todos os Santos.
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Bagunçaço
Ao retornar de seus pensamentos e agradecimentos,
Jove percebeu que Gamo estava barrufando seu charuto
daquela forma que ela sabia que significava que alguma
coisa não saíra bem. Assim, logo indagou a irmã parteira, que, com um aceno, indicou-lhe que continuasse
deitada no chão de tábuas, por cujas frestas podia ver
pequenos peixes na água verde transparente.
Gamo estava preocupada porque não via a placenta,
logo algo estava errado. Mas evitou comentar o fato,
pois não queria preocupar a irmã, já sabendo do histórico dela. Em pouco tempo, o entusiasmo de Jove foi
diminuindo e o medo de ter o mesmo destino da mãe foi
deixando-a angustiada.
Gamo continuava a fumar daquele jeito e as outras
muzenza ou iaôs, depois de receberem instruções cochichadas da preocupada parteira, recomeçaram os preparativos como se algo fosse acontecer.
Após uma hora em trabalho de parto, a alegria de Jove tornou-se desespero. Ela pedia chorando que alguém fosse
chamar sua mãe de santo. Porém, ao se agitar, novas
contrações a acometiam. Sem entender nada, pediu aos
prantos para as irmãs em volta que tomassem conta de
seu filho caso algo lhe acontecesse. Foi aí que Gamo lhe
disse que ela teria que se transformar em duas, pois o que
ia lhe acontecer era outro parto; ia ser mãe de mabaços5 e
precisaria de coragem para cuidar das crias.
Jove, entre assustada, surpresa e aliviada, esforçou-se
bastante e não demorou a raiar uma menina. Agora, ela
era mãe de mabaços, uma dádiva que os inquices/orixás
concediam a poucos. Os mabaços trazem boas notícias
às tribos sobre sua fertilidade e são comemorados. Os
apostadores de plantão estavam decepcionados porque
5 Nomenclatura usada pelo povo do candomblé para denominar gêmeos.
Tumba do Mar
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não haveria ganhadores entre os que ficaram do lado do
pai das crianças e da mãe de santo ou do lado do marido
dela, seu Cachoeira. Mas de uma coisa tinham certeza: um caruru6 bem gostoso estava garantido naquela
comunidade daquele dia em diante.
A menina ganhou o nome de Joselina Crispina dos Santos de Assis, e o menino, de Joselito Crispim dos Santos
de Assis.
—
O local onde se passou essa história ficava na rua Dom
Sebastião Leme, número 78. Era a penúltima casa do lado
esquerdo, depois vinha a casa de dona Damiana, exímia
vendedora de acarajé. Ambos eram barracos-palafitas e
ficavam sobre o mar da pequena enseada dos Tanheiros,
com suas águas verde-claras e calmas. Nessa pequena
enseada havia uma grande diversidade de coisas: centenas de barracos-palafitas, três pequenas ilhas com
esplêndido manguezal, uma praia muito bonita ao lado
da fábrica de óleo de mamona — que eu me lembro chamar-se Sambra —, o Estaleiro Mario Bakeman e, claro,
meu saudoso Tumba do Mar. Esse terreiro de candomblé era atípico, com certeza. Como a própria palavra já
diz, os terreiros de candomblé são sempre áreas verdes,
com muita vegetação e contato com a terra. Uma coisa
que os inquices jamais fariam com seu povo seria abandoná-lo, e já que a sorte os trouxera para cima do mar,
para lá também foram seus encantados ancestrais.
O Tumba do Mar como templo religioso necessitava ser
bem maior que os barracos-palafitas comuns, então
acredito que equivalia a uns cinco barracos-palafitas
6 Comida típica da Bahia, de origem africana, geralmente oferecida para
comemorar um aniversário, um milagre ou como oferenda a orixás. É comum
quem tem filhos gêmeos oferecer caruru no aniversário deles.
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Bagunçaço
médios. Era uma construção curiosa, pois, como a maioria dos terreiros tem seu sacerdote maior morando
neles, era preciso muito espaço. Lembro-me de uns sete
cômodos, da sala principal, do quarto de minha avó, do
quarto do santo, do roncó, da segunda sala, da cozinha,
dos banheiros e do grande barracão para as festas.
José Damasceno, mais conhecido como Zé Bofeia e
chamado de painho por mim, nunca foi bem localizado nas narrações de minha mãe, avó e tias quando,
nas rodas de bate-papo, relembram aquela manhã de
19 de outubro. E eu nunca tinha percebido isso até me
sentar para escrever essas narrações. Mas tenho certeza de sua felicidade por ter marcado um gol de placa,
fazendo gêmeos no mesmo ano em que a seleção brasileira trouxe a Copa do Mundo. Meu nome, Joselito, é
justamente uma homenagem dupla ao pai e ao país da
moda naquela época: o México.
Posso adiantar que, de acordo com minhas lembranças
de infância, ele era bom marido e bom pai. O coitado não
podia ser o típico pai mandão, que batia na esposa, talvez
pela sua própria índole ou porque com as filhas da mãe
de santo Senameã as coisas fossem diferentes; o homem
tinha seu lugar. Sendo assim, soube por meio de minha
mãe que durante o meu nascimento ele também teve o
dele, coitado, sentado a uma certa distância, nervoso,
com um jornal dormidíssimo na mão, tentando desesperadamente saber o andar da carruagem.
O certo é que ele sabia estar numa comunidade matriarcal e, embora nunca tenha entrado para o candomblé,
sempre ajudou e aceitou os preceitos de minha mãe.
Meu pai era o caçula de oito irmãos, — três mulheres
e cinco homens. Seu apelido familiar ilustra bem isso:
Tumba do Mar
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Amorzinho. Era assim que, mesmo já sendo pai de quatro filhos, ainda era chamado pelos irmãos e demais.
Pelo que sei, teve uma infância bem parecida com a
de minha mãe, pois ficou órfão de mãe ainda menino e
foi criado pelo pai e pelos irmãos mais velhos. Por ser
de família pobre, teve que se virar e, às vezes, quando
estava sentado com minha mãe na frente de nossa televisão Philips preta e branca, ao som das dobradas das
ondas embaixo da casa, ele dizia: “Eu já fui capitão da
areia.” Sei também que quando se conheceram minha
mãe ainda trabalhava no bairro da Calçada, na casa da
mesma senhora que a encomendara no Mercado da Conceição, uma senhora muito bondosa que manteve laços
afetivos com minha mãe até sua morte e que sempre
nos ajudava com alimentos, roupas e dinheiro, mesmo
doze anos após minha mãe ter deixado de trabalhar para
ela. Eu a chamava de avó e até hoje tento entender essa
herança escravista, que torna ainda mais complexas
as relações humanas, mas posso garantir que ambas
nutriam um amor muito bonito uma pela outra e eu sentia no olhar dessa senhora um carinho de avó por mim.
Naquela época, minha mãe tinha descoberto com a
empregada da família vizinha o candomblé de Senameã, que passou a frequentar nos finais de semana de
folga — na verdade, não existia folga; eram permitidas
umas saidinhas. Meu pai ela conheceu quando teve que
ir comprar coisas no açougue ou coisa assim. Diz que
um rapaz que vendia balas ficava falando gracinhas
para ela, mas que ela nunca dava ousadia. Ainda bem
que em algum momento ela deu, senão eu não estaria
escrevendo estas linhas.
Provavelmente, minha mãe demorou muito para ceder
aos apelos do baleiro da Calçada. E quando foi falar
com a família da moça, ele não se dirigiu ao casarão
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Bagunçaço
da Calçada e sim ao terreiro Tumba do Mar, pois nessa
época minha mãe já estava morando mais no terreiro
que na casa dos patrões.
O mais incrível de tudo é que o Tumba Junçara, terreiro
mãe do terreiro Tumba do Mar, nasceu também em Acupe
de Santa Amaro em 1919, fundado por irmãos de santo
cujos nomes eram: Manoel Rodrigues do Nascimento
(dijina: Kambambe) e Manoel Ciriaco de Jesus (dijina:
Ludyamungongo). Depois foi transferido para Salvador e
passou por alguns lugares até se firmar na Vila America.
Com a morte dos seus fundadores, em 1965 assumiu a
liderança espiritual aquela que viria a ser minha bisavó
de santo: Deré Lubidí. Depois de seu falecimento , assumiu a direção do Tumba Junçara minha tia de santo Iraildes (Mesoeji sendo sua dijina), que permanece no cargo
até o presente momento.
Minha mãe nunca tinha ouvido falar do Tumba Junçara
quando morava em Acupe. Além disso, a sua prima carnal
Elza era iniciada no Tumba Junçara. Quando minha mãe
se iniciou no Tumba do Mar, elas se tornaram parentes
também de santo e eu herdei, ao nascer, parentes sanguíneos e de santo ao mesmo tempo. Meus primos segundos
Dilma, Deilton, Decival, Derival, Dilcelia e Dilza passaram
a ser primos de santo também, então na minha cabecinha
de criança no final todo mundo era parente da gente de
alguma forma. Milhares de parentes espalhados por aí,
mesmo fora da Bahia, já que o Tumba Junçara deu origem
não só ao Tumba do Mar, mas a centenas de outros terreiros pelo Brasil. Não é à toa a música:
É Junçara Tumba...
Tumba do Mar
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Cap.02
Vida nos Alagados
Vida nos Alagados
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só, iaôs, ekedes,9 e ogans10 vizinhos se jogaram na água
e conseguiram nos salvar.
Talvez querendo usufruir um pouco de seu direito de
cantar de galo de quando em vez, logo após o nascimento do terceiro filho, o douw,7 que manteve a tradição do J e se chamou Joseval dos Santos de Assis
— dois anos mais novo que os mabaços —, juntou um
dinheirinho e, como era o costume da comunidade, fez
um adjutório8 regado a feijoada e cachaça. Todos ajudaram a fazer seu barraco-palafita nas proximidades do
terreiro — nem longe o bastante para perder os laços,
nem perto o bastante para perder a autonomia.
A vida nos Alagados era muito difícil. Muitas vezes
fomos alertados por nossos pais e pelos mais velhos
de que nunca deveríamos andar olhando a correnteza
da maré, pois poderíamos ficar tontos e cair. Mas como
criança é curiosa, certa vez eu e meus dois irmãos saímos da casa de minha avó em direção a nossa casa,
todos de mãos dadas para um amparar o outro caso
ficássemos tontos ao fitarmos a corrente da maré que
vazava. De repente Val, o caçula, ficou tonto e, ao cair,
arrastou minha irmã e eu. Naquele dia foi um alvoroço
7 Nomenclatura dada pelo povo do candomblé ao filho que nasce depois
dos gêmeos.
8 Forma popular de falar quando alguém precisa de ajuda para fazer algo,
geralmente casas, poços e lajes. Também usa-se o termo mutirão.
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Era muito duro para os pais que saíam para trabalhar
deixar seus filhos naquele emaranhado de ponte, com
uma maré ávida para tragar os desprevenidos. Porém,
para nossa meninice, aquele universo de água verde e
vidas marinhas era curioso e fascinante. Esperar a maré
vazar e perseguir baratas do mar, vaza-marés, aratus,
toda sorte de crustáceos e peixes era realmente maravilhoso, embora meus pais e também os das outras crianças recomendassem que nunca entrássemos na água,
ou melhor, nos ameaçassem com uma surra se chegássemos perto dela. Era só nos certificarmos de que eles
não voltariam para pegar algo esquecido na pressa de
sair para o trabalho e já começávamos o planejamento
das aventuras do dia. Aprender a nadar era uma questão
de vida ou morte. Porém, deixar seu pai ou sua mãe descobrir que você sabia nadar era certeza de uma surra. Na
verdade, as mães sempre davam um jeito de descobrir
suas aventuras do dia simplesmente lambendo atrás da
orelha. Se estivesse salgada, ela já sabia que você tinha
nadado naquele dia. Não adiantava lavar bem as orelhas,
pois mãe não tem pudor e, se ela desconfiasse, lamberia
qualquer lugar que acreditasse que os filhos não lavariam bem, ou seja, não lavávamos bem as orelhas para
evitar maiores constrangimentos.
Aprender a nadar era mais que necessário, mas para
isso era preciso entrar numa organização clandestina.
Esse grupo, que envolvia em média mais de uma dezena
de meninos e meninas da vizinhança, era realmente de
9 Filha de santo a quem não é dada a possibilidade de possessão. Serve de
auxiliar às irmãs que entram em transe.
10 Filho de santo a quem não é dada a possibilidade da possessão. Serve
como tocador dos atabaques e em outras funções auxiliares no culto do
candomblé.
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Bagunçaço
Vida nos Alagados
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Bagunçaço
grandes nadadores e tinha regras claras: gente chorona
não podia entrar, pois começava a chorar e se debater só por causa de uma queimadurinha de água-viva e
chamava a atenção de todos os adultos. Filhos de pais
escandalosos também não, pois alguns pais, se soubessem que seus filhos estavam indo nadar debaixo
das casas, iam fazer escândalos nas portas dos outros
meninos maiores, o que poderia resultar na descoberta
da organização inteira e numa surra coletiva na comunidade. Quando isso acontecia, o causador era banido
do grupo. E sempre nas outras brincadeiras, quando
todos os meninos e meninas estavam juntos, um gaiato
lembrava como sicrano tinha gritado, como fulano ficou
todo marcado e como ele mesmo, enquanto apanhava,
teve que rir ao distinguir um grito aqui e outro acolá de
seus companheiros que apanhavam em suas casas.
A turma se dividia em pequenos subgrupos: os grandes, que se supunham “grandes nadadores”, os médios
e os pequenos. Mas a faixa etária era menos importante
para pertencer a um dos subgrupos do que a habilidade
na natação. Quanto mais ausentes e menos vigilantes
os pais, mais habilidosos os filhos. Eu e meus irmãos
nunca nos tornamos bons nadadores, porque primeiro
havia a vigilância do terreiro. Nós éramos muito populares pelo fato de sermos os mabaços do Tumba do Mar e,
mesmo no mar, não podíamos nadar debaixo de certas
casas, pois ali morava gente conhecida. Havia uma tradição que dizia que, se uma família separasse um dos
gêmeos e o levasse para sua casa, proporcionando a ele
um dia com carinho e regalias, toda boa sorte entraria
naquela casa. Minha mãe conta que eu e minha irmã éramos disputados até os 4 anos de idade pela vizinhança.
Como a turma não queria mudar o itinerário mais perigoso e aventureiro por nós, nem sempre podíamos ir
muito longe. Lembro da maior distância que fizemos:
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saímos de nossa casa e fomos até o quintal de minha tia
Elza — claro que sem deixar que ela notasse. O itinerário era fácil para os que eram “grandes nadadores”; bastava nadarem em linha reta uns 50 metros e chegavam
à prainha do quintal da casa de minha tia. Mas nós, que
não tínhamos essa habilidade, íamos nos projetando de
estaca de barraco-palafita a estaca de barraco-palafita,
que ficavam no máximo a dois ou três metros de distância
umas das outras. Isso aumentava a distância até o estaleiro em mais de setenta metros. Até que fomos bem, mas
para voltar foi muito duro, pois a maré estava enchendo
e estávamos contra a correnteza. Eu e meu irmão, Val,
íamos conseguir, mas minha irmã estava tendo dificuldades, por isso abortamos a operação de volta e saímos por
um local mais próximo e à vista de pessoas que não deveriam nos ver. A surra foi certa. Além disso, passamos a
integrar o grupo dos supervigiados e dificilmente éramos
aceitos em aventuras perigosas.
No estaleiro consertava-se navios de porte médio. Cada
vez que chegava uma embarcação nova havia uma expedição para explorá-la. Essa expedição não precisava
ser feita pelo mar e também não fazia parte das ações
dos “grandes nadadores”; eles achavam aquilo coisa de
quem não sabia nadar, pois navio mesmo só era bom ser
visitado quando estava boiando no mar. Navio no seco
era igual às casas dos que moravam no seco, nem balançava nem nada, que graça havia de ter numa coisa assim?
Tínhamos sido praticamente expulsos do grupo dos grandes nadadores. Assim, eu passava a tarde jogando bola
ou capoeira na frente do beco onde ficava minha casa.
Era surreal a chegada de um navio. O beco da minha casa
ficava em diagonal em relação ao canal por onde eles passavam e era impressionante ver aquela coisa de proporções enormes se movendo por trás das nossas pequenas
casas. Já sabíamos que levava uns dias até o navio estar
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fora da água e poder ser visitado. Era sempre melhor no
final de semana, pois não havia funcionários e o vigilante
não parecia se incomodar com as nossas incursões. Claro
que esse grupo era mais unido, havia a cumplicidade de
sermos os exilados do grupo dos “grandes nadadores”.
Não íamos muito nos porões dos navios, pois era tanta
porta e escada que tínhamos medo de nos perder. Como
já faz muito tempo, posso confessar que na verdade era
muito escuro e fazia eco... Portanto, a grande façanha
era ir até a parte de cima e ter uma visão privilegiada da
comunidade, localizar sua casa e tudo mais.
Infelizmente, muitas crianças morriam afogadas, principalmente as que não nasciam lá ou que se mudavam
já com mais de 7 anos, ou os filhos de parentes que iam
visitar de férias. Como uma família vizinha da nossa, que
sofreu uma tragédia nas férias de dezembro. Seus parentes vindos do sertão, onde não tem mar e os rios também
são escassos, perderam uma filha de 10 anos logo no primeiro dia. A garota ficara impressionada com o mar e sua
vastidão e, num momento de distração após o almoço,
ficou sozinha mirando a correnteza da maré que enchia,
provavelmente ficou tonta, caiu no mar e se afogou.
Por isso, tratamos de ensinar logo nosso irmão Rildo a
nadar. Ele já chegou com 5 anos, trazido por uma cegonha. Isso mesmo: nossa mãe trabalhava como doméstica nas casas de alvenaria lá de cima, e um dia disse
que não ia mais trabalhar e que a gente se preparasse
que ia chegar um menino. Um novo irmão que a cegonha
ia trazer. Já eramos três: eu, Pina e Val. E um belo dia
chegou Rildo. Estranhamente, ele era branco, mas isso
nos chamou menos a atenção do que o fato dele já ter 5
anos. Mas, como escrevi antes, ensinamos ele a nadar
logo, e só já maiores descobrimos que Rildo era filho
Vida nos Alagados
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de uma patroa de nossa mãe que, deixada pelo marido
repentinamente, ficou sem nada, nem para pagar o aluguel. Não lhe restou alternativa a não ser deixar o filho
para a babá. Para nós, que tínhamos parente de santo
que descobríamos ser de sangue e parente de sangue
que virava de santo também, ter um parente de cegonha
foi fichinha; até hoje somos cinco irmãos muitos unidos.
Lembro de ter medo das chuvas de abril, quando sempre
desabavam casas num morro que ficava em frente aos
nossos barracos-palafitas. Não sei o motivo do medo,
pois o morro ficava do outro lado do mar, a uns 5 quilômetros, e nunca nos atingiria, mesmo que desabasse
inteiro. Talvez eu tivesse medo de nossa casa desabar,
mas nunca tive notícia de uma casa desabar pela fúria
do mar ou pela chuva, pois, embora parecessem frágeis,
eram bastante seguros os barracos-palafitas. Só não
suportavam festa de aniversário, casamento, batizado
com muita bebida e dança... Sempre desabavam no meio
da comemoração. Nunca morria ninguém, mas se perdiam os móveis e tomava-se um bom banho, às vezes de
lama, se a maré estivesse vazia. No dia seguinte, entre
gozações e anedotas, os homens da comunidade se juntavam, recuperavam as madeiras e refaziam a casa. Por
incrível que pareça, no Tumba do Mar havia festas enormes, que duravam vários dias, e ele nunca caiu! Meu avô
Cachoeira era mestre construtor de barracos-palafitas,
barcos e também era pescador; acho que ele aplicou
toda a sua maestria ao construir o Tumba do Mar.
Os anos se passaram e; para nós, crianças, nada era tão
maravilhoso quanto aquela vida em cima da maré. Porém,
as condições de salubridade iam se deteriorando à medida
que um maior número de pessoas, fugindo de aluguel,
buscava a vida num barraco-palafita como solução.
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Bagunçaço
A água já não estava tão verde e a violência começava a
despontar. E, como sempre atrasado, o governo resolveu
intervir, criando a Amesa – Alagados Melhoramentos S/A.
—
O projeto da Amesa previa o aterramento hidráulico dos
Alagados, o remanejamento dos moradores para adjacências e a erradicação dos barracos-palafitas.
Esse projeto era financiado pelo governo dos Estados
Unidos, porque na época, pelo que se sabe, um dos Kennedy vira aquele aglomerado de centenas de casas sobre
o mar quando, numa visita a Salvador, o avião taxiou sobre
Alagados para pousar no antigo Aeroporto 2 de Julho.
Comovido com a situação, ele articulou uma ajuda. Alagados também era ponto turístico; várias vezes saltamos
no mar sob a mira das câmeras dos gringos. Gostávamos
deles, pois pareciam com a mulher e o homem biônicos ou
a Mulher Maravilha, nossos seriados prediletos.
O projeto era cheio de boas intenções, mas, como diz o
ditado popular, o inferno também. Aquela boa vontade
internacional e a política pública nacional caíram como
uma bomba na nossa vida já sofrida. Para alguns, era um
milagre, mas para outros, ter que deixar suas casas por
uma ordem dada pelo governo criava incertezas, pois
ninguém pagava água nem eletricidade nos Alagados —
tudo era informal —, e agora teriam que pagar isso tudo
e ainda se especulava que viria uma taxa mensal para
as casas novas e um tal de IPTU. Não se sabia bem para
onde seríamos levados ou se, depois do aterro, as casas
seriam feitas no mesmo lugar de antes. A sensação era
de que o governo era um pai que havia sumido durante
toda a infância e agora, no final da adolescência, aparecia impondo regras e deixando tudo fora do lugar.
Vida nos Alagados
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Minha avó, assim como muitos outros, não queria se
mudar. Até a polícia foi chamada, mas ela não arredava
pé da decisão, pois se os orixás tinham escolhido aquele
espaço de maré para ser o Tumba do Mar quem era
ela ou o governo para mexer nisso? Veio polícia, engenheiro-chefe, e ela não fez acordo. Então, eles preferiram não criar conflito com uma liderança e a fizeram
assinar um documento que eximia o governo da responsabilidade pelo dano causado ao imóvel e a ela, pois
deixara claro que não sairia do terreiro nem durante a
perigosa operação de aterro feita pela draga, máquina
quimérica que puxava areia das profundezas do mar e
jogava nas partes a serem aterradas.
No dia do aterro, me neguei a ir para a escola e me enfiei
dentro do terreiro junto com minha avó. Minha mãe e os
técnicos queriam que eu saísse, mas eu não quis sair e
os trabalhos começaram. Era um som ensurdecedor e a
casa trepidava muito. Eu e minha vó ficamos no quarto
dela durante cinco horas — um barraco que aguentava
samba de caboclo não ia ceder a uma fera máquina. Ao
final de três dia de batalha contra o dragão que cuspia
areia, o Tumba do Mar estava um pouquinho torto, mas
ainda firme.
Porém, o resto da comunidade não teve a mesma sorte
e, querendo ou não, as pessoas iam sendo mudadas à
medida que a quimera cuspidora de areia avançava; e
logo chegou a nossa vez.
—
Numa manhã, chegaram os caminhões para fazer a
mudança de todos os moradores do beco em que morávamos, exceto da minha família. Os técnicos disseram
que meu pai tinha feito um bom trabalho de aterro na
ponte e elogiaram nossa casa, falaram que era bastante
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Alagados sem água
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Bagunçaço
forte e suportaria o aterro hidráulico. Nós ficamos felizes, mas minha mãe, desconfio, ficara desejosa de
ganhar uma daquelas casas que mostravam no portfolio da Amesa. No entanto, por toda a luta de minha avó,
ela resolveu não se manifestar. Eu até acredito que os
técnicos chegaram a essa conclusão de casa forte por
receio de minha avó... Nós, as crianças, não queríamos
nos mudar, amávamos nosso mundo aquático, principalmente eu e meu irmão, que tínhamos um fogão velho na
ponte do lado de fora da casa onde guardávamos toda
sorte de brinquedos, centenas talvez, a maioria trazidos
pela maré e uns poucos que tínhamos ganhado de presente — era o nosso grande tesouro.
Mainha havia saído para o trabalho, meu pai estava no
Rio de Janeiro vendendo chá-mate nas praias de Copacabana e minha avó, que a essa altura estava experimentada na luta contra as dragas, era nossa protetora e
se encarregava de nos fazer ir para a escola.
Depois de mudarem os demais moradores, começaram
as demolições de suas respectivas casas. Por “engano”,
os demolidores, que não buscaram fazer um cursinho
rápido com os “grandes nadadores” e não sabiam onde
terminavam as estacas de um barraco-palafita e começavam as de outro, erraram e danificaram uma estaca da
nossa casa. Foi um susto danado que infelizmente comprometeu toda a estrutura da construção.
—
Com a abalo na casa, nossa vitrola, cuja caixa de som
ficava presa na parede juntamente com um quadro do
Esdras, caiu. Depois de ajudar minha avó a tirar a peça
da parede lateral, fui mandado a contra gosto para a
escola. Deixei minha casa meio torta, mas nada que
meu pai não pudesse consertar, pois ele aprendera com
Vida nos Alagados
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Bagunçaço
meu avô Cachoeira a fazer casas. Meu pai não estava,
mas ia voltar. Tem coisas que a gente deseja que só o
pai da gente resolva... Estava uma confusão quando
saí, mas minha avó estava lá e sabia botar o povo da
Amesa no lugar deles.
Ao cair da tarde, retornei da escola. Bem antes de chegar na rua em que morava, fui advertido por um menino
que morava na mesma rua, mas nas casas de alvenaria
da parte seca, em tom de chacota:
— Você não mora mais aqui, você não mora mais aqui!
Achei que fosse apenas uma brincadeira do vizinho,
mas, ao entrar na rua onde morava, outro menino me
disse que todos do meu beco haviam sido levados pelos
caminhões da Amesa. Eu sabia que do meu beco só eu
não mudaria, e isso era bom, ainda mais porque tinha
ouvido o elogio que o engenheiro fizera a meu pai.
Eu estava ansioso para chegar em casa, estava com saudade do meu pai, que todos os anos no verão ia vender chá
mate nas praias do Rio de Janeiro. Vinha pensando nisso...
Já eram seis horas e a Ave-Maria ainda era cantada
nos rádios das casas quando me deparei com o beco
onde morava. Estava escuro e sombrio; adentrei mais
um pouco e encontrei um cemitério de estacas de
barracos-palafitas a perder de vista, inclusive onde
antes existia minha casa, verde e bonita, a mais bonita
do beco, que meu pai fizera e que fora elogiada pelo
engenheiro.
Caminhei pela alvenaria que meu pai construíra com lixo
e pedra e que avança na maré até a porta da minha casa.
Como a maré estava vazia, avistei lá em baixo meu baú
de tesouros, o fogão velho destruído e sem os brinquedos. Sentei ali e uma grande tristeza invadiu meu espírito ainda tão jovem.
Vida nos Alagados
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Uma sensação de vazio. Onde estava minha família? Meu
ninho aquático não existia mais. Para onde levaram minha
mãe? Ali permaneci chorando por mais de uma hora.
—
Até que um vizinho que passava viu minha silhueta
na escuridão do cemitério em que se transformara
meu beco e foi avisar a minha tia Elza, que morava no
começo da rua, na parte seca. Eu fiquei muito assustado e ansioso, pois o que quer que tivesse acontecido
também fizera minha avó se ausentar do terreiro... Só
fui encontrar minha família, seu novo endereço e meu
novo destino muito depois das 22h daquele dia.
Só então fiquei sabendo que assim que fui para a escola
outra estaca da nossa casa foi derrubada erroneamente,
e a casa quase veio a pique. Os responsáveis da Amesa
perceberam que teriam que mudar minha família e foram
buscar minha mãe no trabalho. As coisas da casa condenada foram colocadas num caminhão e no meio da confusão esqueceram o fogão velho. Val, meu irmão, nada
podia fazer, pois, como o erro dos demolidores comoveu a
comunidade e a polícia foi chamada, minha família aguardava o resto da mudança numa viatura e foi retirada às
pressas para que o incidente não atrapalhasse a imagem
da empresa já sem credibilidade na comunidade.
—
A mudança da rua Dom Sebastião Leme, na Massaranduba, onde nasci, além de dramática, me separou definitivamente da vida romântica nos Alagados. Embora distante não mais de 2 quilômetros em linha reta do meu local
de nascimento, tudo era novo. Não havia mais a solidariedade dos vizinhos, pois nas casas provisórias no bairro
do Uruguai (como eram chamadas as casas para onde
fomos mandados) havia gente de todas as localidades, e
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Bagunçaço
a pobreza se mostrava, pela primeira vez, violenta. Eu e
meus irmãos quase não podíamos sair às ruas.
Esse conjunto habitacional era de cimento. Embora
com boa salubridade, faltavam a alegria, a boa vizinhança, os grandes nadadores, o sentimento de pertencimento... Eu e minha família tivemos que nos acostumar aos novos tempos.
Ali ficaríamos por um ano, agora longe de minha avó,
que perdera de uma vez quase todas as filhas e filhos
de santo e simpatizantes. Como cada um foi mandado
para um canto, a rede de solidariedade que dignificava
nossas vidas foi seriamente abalada; não havia mais os
rodízios para levar as crianças ao colégio, o escambo de
gêneros alimentícios, a vigilância e a educação comunitária. Ainda sem meu pai e com minha mãe trabalhando,
a tristeza que invadiu meu espírito naquele dia em que
perdi minha casa não me largava e fiquei em depressão
durante muito tempo.
Também longe do Tumba do Mar e de nossa família de
santo, as nossas economias tiveram um grande abalo e
então comecei a vender bolo e outros quitutes na rua.
Perto do Natal, mais ou menos um ano depois de termos
sido expulsos do nosso lar, recebemos nossa casa definitiva. Todas elas eram iguais entre si e bem diferentes
das casas do portfólio da Amesa, que eram de alvenaria, assim como as provisórias. As casas que recebemos
eram de qualidade inferior; em vez de cimento e bloco,
eram feitas de madeirite11 de péssima qualidade. Eram
embriões sem divisória; havia somente uma pequena
cabine, também de madeira, que era o banheiro. Aquelas casas sobre a maré não durariam um mês.
11 Folha de madeira de baixa qualidade usada pela Amesa para fazer as
casas das pessoas dos Alagados.
Vida nos Alagados
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Meu pai chegou a tempo de conhecer a casa nova, mas
dois dias depois teve que voltar para o Rio de Janeiro
para vender chá-mate. Assim, eu e minha família estávamos novamente num novo bairro, o Jardim Cruzeiro,
numa casa frágil e, o pior, a violência que já se tornara
conhecida da minha família nos apresentou sua companheira: a droga. O consumo era feito no beco da
nossa casa, pois os usuários sabiam que ali o chefe da
família não estava.
Com meus 14 anos, estudava num colégio público, de
boa reputação: era considerado uns dos melhores da
região. Lá fiz amizade com adolescentes de uma situação social melhor que a minha e, assim, passei a conviver em dois mundos.
Um era o dos meus colegas do bairro, que me entristecia,
pois os via enveredarem no caminho do crime. O outro
mundo era o dos meus colegas do colégio, da mesma
idade, com roupas de marca, videogame, carro na porta.
Esses colegas me convidavam para ir num tal de shopping center, mas eu não tinha roupa nem sapato e, em
muitos sábados, para não ficar na companhia de meus
colegas em situação de risco social do bairro, ficava sentado na rua de meus colegas do colégio esperando que
voltassem do shopping para conversar.
Havia uma falta do que fazer, e surgiam convites interessantes para participar de pequenas delinquências, que
afinal davam um pouco de alegria àquela pobreza violenta e sem perspectiva. Eu me lembro de que, quando
vínhamos da praia com fome, nossa diversão era quebrar telefones públicos. Muitas vezes tocávamos os
interfones das casas ricas pedindo lanche. Muitos
davam: ficavam um pouco intimidados com aquela turba
de pivetes. Eu inicialmente sentia raiva daqueles meninos branquinhos que tinham videogames, bermudas e
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Bagunçaço
tudo que queriam. Algumas vezes encontramos uns de
vacilo e arranjamos brigas, mas, claro, eles nos temiam
e nunca nos enfrentavam, sempre corriam, mas não sem
antes levarem uns catiripapos para aprenderem a não
nascer com sorte, por terem a pele diferente da minha,
por tantas coisas que eu não sabia explicar. Nosso grupo
se protegia; não havia nenhum discurso ideológico, mas
sabíamos que tínhamos que nos proteger uns aos outros,
pois nossos pais o máximo que conseguiam eram trazer
um pouco de comida. E isso custava muito caro: custava
a presença deles na nossa vida.
Vida nos Alagados
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Cap.03
Alagados sem água
03
ados sem água
Alagados sem água
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Eu me sentia muito à vontade com Zé Carlos e sempre fui
metido a engraçadinho, mas, claro, só depois que deixava cair minha capa de tímido. Parece que por isso conquistei a madrasta dele, que era simpática e fazia uma
comida gostosa, embora eu nunca tivesse visto tanto
alho para fazer um arroz! Retribuí levando ele à minha
casa no domingo; era o barraco de madeirite da Amesa,
que com o tempo só piorava.
Algo muito estranho começou a acontecer quando entrei
para essa escola. Havia poucos negros e nós de certa
forma éramos unidos, mas de repente, de forma bem
tímida, comecei a me aproximar dos brancos. Lembro
que a primeira vez foi no meio da 6ª série, quando entrou
um menino chamado José Carlos que era carioca e cujo
pai era caminhoneiro. Ele era mestiço — o pai era negro
e a mãe branca —, e tinha um forte sotaque carioca, que
fazia muito sucesso entre as meninas. Ele era da turma
dos pobres, mas por ser de fora entrava em qualquer
turma. Fiquei curioso, queria saber se ele sabia onde
era Copacabana, pois meu pai vendia chá-mate gelado
lá. Estava tão curioso que nem temi ser exposto como
filho de um vendedor de chá-mate. Bem, Zé Carlos não
deu a mínima para meu pai ser ambulante. O fato de que
eu tinha saudades do meu pai que estava trabalhando
no Rio e de que ele tinha saudade do Rio porque seu pai
estava trabalhando na Bahia foi como se partilhássemos
um sofrimento que nos fazia cúmplices; era como se já
fossemos amigos havia anos e ele logo me chamou para
almoçar em sua casa. Eu ia passar o dia lá para que ele
pudesse fuçar meu caderno e se inteirar dos assuntos
escolares. Ele, a madrasta e os dois meios-irmãos falavam bem diferente, e rimos uns dos outros quando usamos palavras diferente dos nossos vocabulários locais.
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Bem, Zé Carlos era a novidade na escola e ser amigo
dele me fez frequentar outras tribos. Nem sei como fui
convidado a fazer parte de um grupo de meninos e meninas que eram os melhores das salas. Esse grupo ficaria
junto até o final do ano, fazendo diversos trabalhos, não
lembro bem por que, mas convencionou-se usar só três
casas para esses trabalhos; coincidência ou não, eram
exatamente as casas dos três mais abastados.
Nesse grupo conheci o André e o Ricardo, que eram simpáticos e pareciam me dar uma atenção verdadeira,
independentemente da minha amizade com Zé Carlos.
Eles moravam em casas bonitas e para mim qualquer
casa que não fosse de madeirite e tivesse divisão interna
entre os cômodos era sinal de riqueza, e ambas ultrapassavam esse meu parâmetro em muito. Logo eu passei
a frequentar a casa deles e, como moravam na mesma
rua, acabei fazendo amizade com toda a rua. Imaginem
que esses eram os riquinhos que eu odiava com a turma
da minha rua! Eu só entrava nas casas deles e de outro
carioca chamado Robson, o loiro, que tinha dois anjos
como pais. Eu era muito bem tratado na casa de André e
Ricardo, mas na casa de Robson, o loiro, eu era um filho.
As mães deles sabiam de onde eu vinha e acredito que
no caso das mães do André e do Ricardo pode ter havido
algum receio de início, mas os olhares maternos e afetuosos delas faziam com que eu me sentisse bem.
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Bagunçaço
Fiquei muito confuso, pois não tinha por que odiar aquela
gente. Eles eram legais. Mas eu não sabia como misturar
todo mundo, sem as diferenças de cor e classe social.
Não sabia como explicar isso para o pessoal dos Alagados nem para meus colegas da escola.
A verdadeira amizade nos ensina muito. Naquela época,
eu queria muito um rádio FM, pois todo mundo na escola
sabia as músicas do momento. O Ricardo era irmão
de um cantor, Robson, da banda Mel, que tinha ficado
famoso; a canção dele tinha sido a melhor do verão. Uma
vez a mãe dele me perguntou se era verdade que eu queria muito ter um rádio FM; eu fiquei envergonhado, porque era uma coisa que eu tinha falado só entre a gente.
Então ela foi ao quarto e voltou com uma radiola portátil
que era tudo: toca-disco, toca-fita e rádio AM e FM! Isso
era algo inimaginável para mim! Ela pediu para que eu
tomasse conta, pois tinha sido naquela vitrola portátil
que o famoso Robson tinha começado a cantar.
Como eu disse, a mãe e o pai de Robson, o loiro, logo no
primeiro dia me mandaram entrar, me abraçaram e me
fizeram perguntas. A cada resposta minha eles se olhavam; pensei que iam pedir para eu não andar com o Robson, mas depois da conversa a mãe dele fez batatas fritas e disse que eu podia ir lá sempre que quisesse.
Aí foi um inferno! Os meninos da minha comunidade falavam mal dos branquinhos lá de cima e prometiam que
quando encontrassem com eles na praia, local democrático que gente de todas as etnias, gangues, religiões etc.
frequentava, iam quebrá-los na porrada. Eles ficavam
irritados quando eu não concordava, e alguns diziam
que eu teria que me decidir, que era para eu tomar banho
de água sanitária e me mudar para a parte de cima. O
mesmo acontecia quando os meninos de cima se reuniam e acusavam os meninos de baixo de serem maus,
Alagados sem água
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brigões, ladrões; também se irritavam quando eu dizia
que não era bem assim. Tinha um deles que se declarava racista e nazista. Ele dizia que meu povo fedia, que
se tivesse uma bomba jogava lá embaixo. Alguns amigos
retrucavam, dizendo para ele me avisar para eu correr, e
todos riam. Era doloroso, mas eu conhecia bem os dois
grupos. Eram pessoas boas, companheiras, se pudessem se desarmar de tanto ódio, tanto preconceito.
Eu sabia que minha turma lá de baixo era de companheiros para tudo; a gente se ajudava. Se o pai de alguém
era cachaceiro e o espancava era normal poder ficar na
casa do outro por uns dias. Alguns de nós trabalhávamos pegando compras no supermercado e na feirinha
local com carros de mão feitos de caixotes velhos de
madeira. Para isso, tínhamos que fazer os carros em
mutirão, cada um trazendo escondido as ferramentas
de casa. Eu não era muito habilidoso com essas coisas
e todos me ajudavam. Lembro de que quando comecei
a vender picolé, um deles, o Gil, me acompanhou todo
o tempo, mesmo já sendo experiente e vendendo duas
vezes mais que eu. Sempre que ele tinha que me deixar para ir buscar mais uma guia de picolé, me aconselhava a não ir a certos lugares e a nunca vender para
turmas grandes, além de marcar um lugar para a gente
se encontrar e depois voltar para casa.
Uma vez, eu estava com o grupo dos novos amigos da
rua de André, Robson e Ricardo jogando bola na praia e
aconteceu o que eu mais temia. De repente apareceu a
turma lá da minha rua, dizendo que agora o futebol era
deles. O time adversário do meu era formado por meninos da Boa Viagem, bairro que dá nome à praia onde
estávamos, e também eram brancos de classe média.
Com a turma da minha rua querendo terminar o futebol,
formou-se uma grande confusão. A intenção era clara:
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Bagunçaço
os meninos da minha rua não queriam jogar bola e sim
brigar, estragar a brincadeira dos outros. Gil, o do picolé,
e Nem, vizinho de frente da minha casa, que eram meus
mais chegados, me cercaram, como que para me proteger. A turma da minha rua estava em menor número,
mas havia tanto ódio no olhar deles que parecia multiplicá-los. Era bem clara a coisa: negros contra brancos,
pivetes contra mauricinhos. Mas eu já sabia a maneira
de agir daquela turba; pertencia àquela pivetada e já
tinha participado de muitas confusões iguais àquela,
então gritei para André e Robson não falarem nada, não
responderem aos palavrões. Nisso, Boi, que era o líder
da turma da minha rua, mandou eu calar a boca ou ele
ia me pintar com a cal do campo para eu ficar branco
e apanhar também. Enquanto a discussão piorava, eu
convenci Gil e Nem, que eram caras legais, de que um
dos times era todo de gente minha e que dois ali eram
amigos-irmãos que nem eles. Contei sobre a radiola
portátil, falei que tinha sido a mãe de um deles (todos
aqueles brigões lá da rua curtiam minha radiola), falei
de como as mães de André e Robson me tratavam como
filho, e que eles, mesmo com dinheiro de transporte, iam
andando comigo para a escola. Gil e Nem meio que amoleceram e me disseram que quando o cacete começasse
no centro a gente não devia correr para a praia, pois,
embora parecesse o mais sensato, havia outra parte da
galera lá para quebrar os branquelos no pau; disseram
que eu deveria pegar os meus branquelos, subir o forte
do Monte Serrat e dar a volta na península para levá-los
para casa. A briga estourou e eu não pude fazer muito
pelos meninos do outro time, pois mesmo quando eu
gritava “venham por aqui” eles me confundiam com os
meninos da minha rua e corriam para longe de mim. Foi
uma briga feia. Os meninos lá da rua tinham pedaços de
madeira, e eu vi cenas muito tristes; os que correram
Alagados sem água
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para a praia desmaiaram de tanta porrada. Quando a
briga começou, Gil e Nem foram logo ajudar os outros,
e eu fiquei livre para socorrer os que apanhavam. Na
confusão, os da minha rua me chamavam de Pim e os
da escola de Joselito. Consegui levar sem um arranhão
André e Robson, outros oito do nosso time e um do time
adversário chamado Fabrício, pois ele era muito amigo
de Robson e felizmente correu para a direção que eu
indicava no meio da confusão. Ficaram um pouco arranhados mas inteiros. Os do time adversário que moravam no bairro e conseguiram fugir foram chamar ajuda;
chamaram os caseiros, pedreiros, porteiros dos prédios
para socorrer seus patrõezinhos. Os meninos da minha
rua recuaram ao ver chegarem adultos para ajudar os
meninos do bairro, e eu comecei minha odisseia para
levar meus dez branquinhos para casa, porém tivemos
a infeliz ideia de voltar para deixar Fabrício. Ele era franzino e estava muito assustado; devia ter uns 12 ou 13
anos. Claro que nós, que éramos mais maduros, com 14
anos, não o deixaríamos sozinho. Mas foi só a gente despontar na rua que fui cercado pelos meninos de classe
média, que estavam vermelhos de raiva e de pancada.
Começaram a me acusar de pertencer ao outro grupo, e
nesse momento quase fui espancado. Quando fui revidar o empurrão que levei de um deles, a coisa piorou.
Eu era magro e alto, tinha as pernas bem compridas, já
estava pensando em disparar quando Fabrício, que ao
chegar perto de casa tinha disparado velozmente (pensei que talvez quisesse ir ao banheiro), voltou e disse que
eu tinha protegido ele e a turma do André e do Robson.
Depois me cercou, dizendo que para bater em mim tinha
que bater neles. Ia ser uma verdadeira briga de brancos,
e eu no meio daquilo, mas ao final os ânimos se acalmaram e pudemos começar a aventura de voltar para casa.
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Bagunçaço
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Na turma da minha rua havia uns dois que não se davam
bem comigo: um se chamava Daniel, com quem eu já
brigara uma vez porque ele dera um cascudo no meu
irmão Bira, o caçula; e o outro era o Doido, que sempre me provocava; a gente simplesmente não simpatizava. Ele era muito perverso, gostava de matar gatos.
Eles convenceram Boi de que eu tinha ficado do lado
dos meninos e de que tinha ido para o lado da Pedra
Furada, então estava claro que eu estava dando a volta
na península para proteger os filhinhos de papai que
moravam na rua de cima.
Já tínhamos dado a volta e estávamos bem perto da rua
dos meus amigos de cima quando, de repente, avistei
minha turma vindo na nossa direção. Não tinha muito a
fazer. Boi chegou com muita raiva, batendo o peito conta
o meu (eu era mais alto, então na verdade ele bateu o
peito dele bem na boca do meu estômago), era como
se eu tivesse desafiado a liderança dele. Como ele era
baixinho e troncudo, tombei para trás e também o olhei
com raiva. André, Robson e todos os outros ficaram em
posição de defesa, enquanto Gil e Nem tentavam acalmar. Daniel e Doido não estavam muito interessados na
minha troca de farpas com Boi, pois sabiam que isso a
gente podia resolver em casa, mas Doido em particular
não queria perder a oportunidade de cacetar alguém; ele
era doido mesmo. Depois de me provocar, Boi decidiu
liberar a galera, mas antes ficou me chamando de Jaspel
e super-herói; logo eu, um dos mais frouxos, ia defender
aquele bando de bichas brancas. Assim, minha turma,
que perdia o amigo mas não a piada, estava satisfeita
por poder “zoar” o fato de eu tentar brigar com todos
por uma meia dúzia de mauricinhos. Mesmo tempos
depois, eles ainda me chamavam de Jaspel e riam muito
daquele dia... André não entendeu nada; ele não sabia
que Boi seria incapaz de me bater. O mais importante
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Bagunçaço
é que, depois disso, consegui levar todos os meus novos
amigos para um uma partida de futebol, que chamávamos
de “baba”, na escola perto da minha rua, da qual a mãe de
um deles era diretora, por isso podíamos usar no fim de
semana. Às vezes, Boi e a galera participavam. As duas
turmas nunca se uniram, mas nunca mais houve confusão
e muitas vezes ouvi meus amigos da rua de André falarem que tinham estado em apuros com meninos da minha
área e depois foram liberados com a seguinte frase: — Ih,
é um daqueles filhinhos de papai do Pim.
—
A paróquia de São Jorge era responsável pelo bairro do
Jardim Cruzeiro e, por incrível que pareça, ela ficava exatamente na divisa dos dois lados daqueles bairro. Bem
ali, logo atrás da rua Rosalvo Barbosa Romeu, a última
rua de classe média baixa do bairro, fica a rua Anísio
Gonçalves, onde realmente começa o que outrora eram
barracos-palafitas, mas que hoje é o aterro da nossa
Amesa. O pároco Clóvis é um homem franzino, de pele
branca, nascido no interior da Bahia, mas educado no
seio da Igreja Católica do Rio de Janeiro. Homem culto,
amoroso e uma espécie de herói, pois também lutou na
guerra do aterro, assim como minha avó. Ele criou muitos problemas quando apoiou os moradores do Jardim
Cruzeiro que não queriam sair de suas casas; foi preso e
deu muito o que falar nos jornais. Antônio Carlos Magalhães e o arcebispo primaz do Brasil, Dom Avelar, tiveram muito trabalho para resolver o furdunço que rolou
depois da prisão do padre que defendia a permanência
dos moradores em suas casas com o fim do aterro. Seria
fantástico se ele tivesse encontrado minha avó naquela
época, pois padre Clóvis, com toda a sabedoria da Teoria
da Libertação, e minha avó, com a prática ancestral quilombola, seriam imbatíveis atacando a Amesa.
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Bem, voltando do meu devaneio, não sei se eles se conheceram, acho que sim, nunca perguntei a ambos, mas sei
que padre Clóvis, com a ideologia da libertação, faz um
trabalho muito importante na comunidade.
A paróquia de São Jorge, além de ter uma escola primária, desenvolvia várias oficinas de arte e educação para
a comunidade. Assim, um dia, ao passar pela fronteira
ao encontro dos meus amigos lá de cima, os “branquinhos”, como meus amigos de baixo os chamavam, vi uma
faixa que falava das diversas oficinas oferecidas pela
paróquia. Já havia feito a oficina de capoeira no semestre anterior, mas sempre fui cismado com os cristãos,
principalmente os católicos; ainda não havia estudado
História por conta própria como iria a fazer anos mais
tarde, quando aprendi sobre a Santa Inquisição e outras
coisas, mas ficava desconfiado. Não sei de quê; aquelas
imagens tristes, aquela negação do corpo... Eu morria de
medo das imagens com cara de sofrimento; elas eram
diferentes dos orixás, que viviam, erravam, eram como
a gente e ainda eram felizes. Preconceitos meus, mas a
vida iria me ensinar a ser mais tolerante, até porque o
preconceito já tinha me machucado bastante.
Cheguei na roda de conversa de meus amigos falando do
curso e alguns se interessaram, entre eles Branca, pois
nesse tempo começamos a admitir meninas na nossa
turma. Mas só na turma dos meninos de cima, pois lá
embaixo mulher não entrava — elas só atrapalhavam as
coisas. Para mim, era algo novo ter meninas que ousavam andar em turmas de meninos. Elas eram legais, e
aos poucos comecei até a pensar em sugerir lá embaixo
que admitíssemos meninas, mas fiquei só no pensamento, pois cada paradigma tem seu tempo para ser
descoberto e eu, após convencer alguns de cima a fazer
o curso de teatro, agora tinha que explicar para os de
58
Bagunçaço
baixo por que um negão que jogava capoeira e era safo
na comunidade iria fazer teatro. Eu mesmo não sabia;
era só para preencher o tempo. Mas que eu ia passar de
Jaspel, o herói, para Capitão Gay eu ia. Era inadmissível
um menino da turma de baixo fazer teatro, mas também
percebi que meus amigos de cima só tinham aceitado a
proposta de descer até a paróquia porque eu estava no
grupo. Ainda era perigoso para meninos frequentarem a
rua da fronteira; suas mães iam à missa, mas eram mães,
que é como ser da Cruz Vermelha; os meninos nunca iam
para baixo sozinhos.
Bem, ao final, tive que contar para Boi e a galera que
estava fazendo teatro na paróquia e explicar que as mães
dos amigos lá de cima só deixariam eles fazerem o curso
se fossem comigo e eu os levasse pelo menos até o pé da
ladeira. Gil e Nem não disseram nada, mas Boi disse:
— Por mim, aqueles viadinhos podem vir aqui a hora que
quiserem. Acho até que você devia entrar no curso de
balé com eles.
E todos riram, riram muito. Boi tinha uma inteligência acima do normal e sabia que eu queria fazer teatro,
mas não ia perder a chance de gozar da minha cara. Ufa!
Aceita a minha nova aventura.
Assim, entrei para o teatro e, para minha surpresa, o
professor era um rastafári, negro como eu, e dava aula
de teatro para jovens de boa situação. Além disso, o professor Lula, como era conhecido, era bem-humorado e
falava de uma tal de Babilônia, que era a culpada, era o
“sistema” que privava todos dos Alagados da possibilidade de uma vida melhor.
Pela primeira vez, eu ouvia uma explicação para a
pobreza que não era castigo de Deus ou culpa do próprio pobre. Minha avó me contava que antes a gente vivia
Alagados sem água
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em outro lugar com nossos reis e rainhas. Ela falava que
isso era lá pelas bandas da África e que fomos pegos e
escravizados, mas que alguns de nós eram até príncipes. Eu era o príncipe do Tumba do Mar, pois nascera lá
dentro, como os meninos africanos que não vão ao hospital e nascem entre os seus. Pode parecer besteira,
mas minha avó me disse isso por toda a minha infância e
foi exatamente essa responsabilidade de ser o príncipe
do Tumba do Mar que me livrou das grandes confusões.
Essa coisa sempre vinha à minha cabeça quando eu me
metia em alguma confusão e também quando alguém
me tratava com preconceito, como no dia em que a mãe
do Robson, o loiro, me chamou para sair com ela. Fomos
eu, ela, André e Robson, todos bem brancos, e, quando
chegamos numa casa da classe média alta, a empregada, ao abrir a porta e dar acesso à casa, toda sorridente, perguntou à mãe de Robson:
— Quem são esses dois meninos?
A mãe de Robson respondeu:
— São meus filhinhos também.
Nesse momento, a empregada, que era negra como eu,
seguiu pelo corredor rindo e disse:
— Vixe! Não sabia que a senhora tinha barriga suja, não.
Um dia, quando eu tinha uns 10 anos, minha avó foi convidada para a inauguração do Museu Afro, na antiga Faculdade de Medicina da Bahia, no Pelourinho, um evento
com autoridades africanas. Fiquei muito triste porque
nenhum príncipe presente me reconheceu, então resolvi
que não seria mais príncipe. Em casa, quando voltamos,
ela me explicou que não era para eu ligar, pois fazia muito
tempo que a gente tinha saído da África e nossos irmãos
de lá não se lembravam, mas que um dia iriam se lembrar,
pois muitas coisas importantes de lá nem mais existiam,
só aqui, e eles teriam que vir buscar.
60
Bagunçaço
As dinâmicas de teatro me desinibiram, além de terem
me permitido, mesmo que por meio das metáforas do
professor Lula, ter uma formação política, na qual rastafarianismo e socialismo se fundiam.
O primeiro espetáculo seria no dia 1º de maio e contaria
com a presença de Dom Lucas Moreira Neves, o cardeal
e arcebispo primaz do Brasil. Seria numa área onde a
paróquia iria posteriormente construir um auditório.
O espetáculo seria uma homenagem aos trabalhadores, e coube a mim homenagear os garis. Eu pedi a roupa
emprestada; era o uniforme de um vizinho, que, ao saber
do que se tratava, resolveu espalhar para todo mundo.
Eu estava apreensivo, pois temia a chacota dos colegas
da rua. Eu sabia que Boi e a galera inteira estariam lá, e
seria um vexame certo. Assim, no momento do espetáculo com a presença do santo padre Clóvis, do cardeal
Dom Lucas, da mãe de santo Senameã (vóvó como sempre a chamei) e Jove, minha mãe, alguém foi avisar que
o professor tinha sido preso, pois a polícia o confundira
com um marginal — os rastas eram muito discriminados... Todos ficaram nervosos, e eu percebi que a Babilônia não brincava — o sistema tinha conseguido estragar a festa das pessoas dos Alagados. Assim, quando o
padre se dirigiu para a delegacia, eu fiquei com muita
raiva e, como o espetáculo tinha hora marcada para
acontecer, por causa da presença do arcebispo, nós
do teatro resolvemos começar a coisa sem o professor. Sabíamos que ele ia gostar e que ficaria orgulhoso
da gente. Eu estava muito nervoso, pois, além da minha
família, estava lá minha turma de baixo, pronta para
fazer a maior gozação. Mas a peça falava da pobreza,
da dureza do trabalhador, dos maus-tratos da polícia, e,
não sei como, quando olhei para meus amigos da comunidade, eles estavam vibrando. Não era eu que falava
Alagados sem água
61
para eles, e sim o gari que eu representava. E eles torciam pelo gari, riam com o gari e estranhamente vieram
todos dizer que tinham gostado e queriam saber quando
teria outra. Nunca houve uma gozação com a peça. Eles
ficavam até sérios para falar do assunto, e o mais incrível foi que meus amigos de cima representaram meu
povo de baixo e passaram a ficar cada vez mais conscientes de que a questão social é una.
O professor chegou antes do fim com a cara um pouco
quebrada, mas muito feliz com nossa força de vontade.
O curso terminou, e, junto com a turma, montamos uma
companhia de teatro chamada “Etc e tal”.
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Bagunçaço
Alagados sem água
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Cap.04
Assinando a carteira
Assinando a carteira
Vivíamos um momento paradoxal lá em casa. Por um lado,
eu tinha ficado muito feliz, pois meu pai, após a morte de
sua irmã que morava no Rio, resolvera que não voltaria
mais a trabalhar lá nos verões seguintes; por outro lado,
ele não tinha emprego, tinha 44 anos e já ficava difícil
conseguir algum.
Após muito tempo, Zé Bofeia passaria as festas de fim
de ano com a família. Depois de muito procurar emprego,
ele começou a dizer a minha mãe que, como mais velho,
eu também teria que ajudar. Não que eu não ajudasse em
nada: eu tinha só 15 anos e já tinha sido doméstico na
casa de um árabe, ajudante de marceneiro, ajudante de
amolador de alicate, carregador de compras no supermercado, vendedor de osso para sopa na feira do bairro
e vendedor de picolé; mas ele queria que eu arranjasse
um emprego de carteira assinada e estudasse à noite.
Um dia, meu pai, num golpe de sorte, encontrou um amigo
do Rio de Janeiro que estava administrando uma empresa
de prestação de serviços de limpeza. Embora eu desejasse um emprego de office-boy num banco ou algo do
gênero, fui com meu pai me inscrever nessa empresa.
Esse conhecido devia ter muita estima por ele, pois saímos os dois empregados como faxineiros naquele dia.
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67
Fui prestar serviço na empresa de abastecimento de
água, a Embasa, onde descobri que os espertos, prontos para tirar proveito da gente, estavam à espreita em
todos os lugares. No primeiro dia de trabalho, ainda
com 15 anos, o cabo de turma (pessoa que era a líder),
um homem bem simpático e de fala mansa, me levou ao
local onde ficavam todos os funcionários da limpeza.
Era um sótão, um lugar legal, parecia um esconderijo...
Lá havia uma sala com sofá, frigobar, máquina de café
e fogão; havia também um banheiro para a gente. Tudo
na sala tinha a logomarca da empresa, mas eram equipamentos velhos, que os serventes tinham recuperado
para fazer daquele um local decente. Havia uma mesa
de baralho e dominó e a maioria estava ali jogando. Fui
apresentado a eles, e logo um gaiato já foi gozando:
— Aqui virou uma creche agora, foi?
E todos riram. Em seguida, outro me pegou pelo braço e
me levou para mostrar meu serviço. Esse rapaz me mostrou alguns banheiros, uns dois jardins, entre outras coisas. Era uma segunda-feira e, embora eu trabalhasse oito
horas por dia, na sexta não tinha chegado nem na metade
dos lugares que eram da minha responsabilidade. Por
isso, eles me ameaçavam, dizendo que eu era muito mole
e que não ficaria ali. Na semana seguinte, esqueci algo no
esconderijo e voltei para lá antes do horário do almoço.
Cheguei sem eles perceberem e descobri que tinham me
dado todo o serviço e ficavam lá em cima jogando cartas,
dominó, pauzinhos, dormindo ou assistindo a uma televisão velha que também havia no local. Eu era só um menino
e achava que os adultos não fariam uma coisa dessa, mas
vi que estava sozinho; fiquei tão triste que eles pediram para eu não contar na empresa e me fizeram vários
mimos. Ao final, me mostraram a área que era realmente
da minha responsabilidade. Era uma área pequena; eu
68
Bagunçaço
dava conta dela em apenas um turno e, no outro, como
um bobo, ainda ajudava alguns nas áreas deles. Não sabia
dizer não e chamava todo mundo de senhor e senhora.
Em pouco tempo, me deram o setor da chefia para limpar. Era muito divertido, pois era com um aspirador de pó
que parecia um robô enorme. Logo fiz dele um amigo, até
conversava com ele! Nessa época, eu não via muito meus
amigos da rua, e muita coisa triste começou a acontecer.
Um deles, Daniel, que era um dos mais violentos, morreu;
seu parceiro, o Doido, matou um cara; e outros estavam se
envolvendo com o tráfico de drogas... Nos víamos poucas
vezes, mas havia sempre cordialidade na relação. Parece
que por motivo da perda de um contrato a empresa me
mandou para o hospital naval da Marinha. Lá eu trabalharia limpando as enfermarias.
Nessa época, os ventos da adolescência eram verdadeiros furacões em mim. E eu estava causando muita
confusão lá em casa. Para começar, recebia aos domingos alguns fiéis da igreja Testemunhas de Jeová, porque achava que eles explicavam melhor o Deus cristão.
Lembro que eu tinha 13 anos quando li pela primeira vez
a Bíblia; foi lá no Tumba do Mar. Eu a encontrei no meio
das frutas na cabana do meu avô Caboclolinho, que era
uma das entidades que minha vó recebia e que eu considerava a figura masculina de avô, já que seu Cachoeira
foi embora no meu primeiro ano de vida. A Bíblia tinha
sido um presente de minha prima, Dilma, filha de minha
tia Elza, que havia se convertido ao protestantismo. Não
sei como a bibliazinha foi parar no meio do santuário, que
era tipo um presépio montado com palhas de dendê na
sala principal, onde, além de uma imagem de um caboclo de joelhos atirando uma flecha, havia também todas
as coisas que tinham relação com essa entidade brasileira: uma cabaça onde eram servidos jurema, charutos,
caxixis e muitas frutas, com destaque para o melão da
Assinando a carteira
69
índia, que tem um gosto e um cheiro bem peculiares. Era
um lugar com um astral muito bom. Mesmo já morando
no Jardim Cruzeiro, quando ia visitar minha avó, eu costumava deitar aos pés do caboclo numa esteira de palha
e dormir à tarde. Um dia encontrei a Bíblia por ali, li o
Gênesis e o Êxodo. Do Gênesis eu gostei até da trama,
mesmo com a tragédia da expulsão do paraíso e do fratricídio de Caim. Mas quando li o Exôdo fiquei decepcionado com Jeová, pois achei que ele tomou partido de um
certo povo e matou os outros. Como me senti confuso
ao discordar de Deus, preferi não continuar. Afinal, não
sabendo o que ele tinha feito, não precisava discordar,
pois, como diz o ditado popular: “O que os olhos não veem
o coração não padece.”
Então, nada como uma testemunha para me esclarecer aquela impressão que tive na minha breve pesquisa
religiosa! As Testemunhas de Jeová tinham toda uma
capacidade de discutir de forma até antropológica a
Bíblia, e isso me fascinava. Não havia mais festas no
Tumba do Mar, e minhas pesquisas cristãs estavam
causando certo desconforto à minha mãe. Não que
ela me proibisse, mas eu não queria mais ficar dentro
de casa quando ela ia incensá-la. Também havia briga
quando eu recebia o salário, pois nunca chegávamos a
um entendimento de quanto deveria dar a meu pai para
ajudar nas despesas. Ele achava que deveria ser tudo,
pois eu comia todo dia, e eu achava que deveria ser no
máximo 15%. Acho que estava buscando construir meu
eu, e provocar meus pais nas suas convicções era um
caminho. Isso é normal nos adolescentes, mas minha
mãe e minha avó sempre demonstraram uma sabedoria
assustadora, mesmo quando eu estava implicando com
todos os preceitos do candomblé.
70
Bagunçaço
No dia em que fui fazer um teste de oratória no salão do
reino das Testemunhas de Jeová, lá estavam elas no terreno inimigo, com seus melhores vestidos, torcendo por
mim. Visivelmente emocionadas ao me ver com roupa
social. Aceitei Jeová mesmo com sua ira e sua predileção pelo povo de Judá e tentava cumprir todos os preceitos da minha nova fé. Não comia galinha ao molho
pardo, não andava mais nem com meus amigos de cima
nem com os debaixo, mas uma coisa me incomodava: o
fato de que, segundo meus instrutores, tanto os orixás
como os caboclos do povo do candomblé eram demônios. Isso era como dizer que minha própria mãe era um
demônio. Eu era muito apegado ao caboclo de minha avó;
ele se manifestava sempre no dia 7 de setembro, data do
seu aniversário, e eu esperava esse dia como nunca só
para ver meu avô Caboclolinho. Mesmo quando pequeno
ficava acordado até tarde durante a grande festa de
seu aniversário... Como contei antes, na época de meu
nascimento a aposta de minha avó, meu avô e meu pai
mobilizou a comunidade, mas eu não conheci meu avô
Cachoeira — ele se separou de minha avó no meu primeiro ano de vida. Conta minha mãe que a última vez que
o viram foi no dia do meu aniversário de um ano. Assim, o
único avô que tive foi Caboclolinho, que quando chegava
me chamava ao pé de sua tenda e lá me perguntava se eu
estava comportado, dava baforada de charuto na minha
cara, me dava o abraço e os passes dos caboclos... Era
sempre para mim que ele dava seu arco e flecha para
segurar, e durante a festa me fazia sambar. Eu adorava
meu avô Caboclolinho! Agora imaginem vocês se Freud
explica um menino que tinha na avó, uma vez por ano, a
figura masculina do avô.
No auge de minha adolescência eu estava dividido entre
uma religião que me estimulava a pesquisar sobre a história judaico-cristã e a minha religião de berço, com a
qual tinha toda uma relação emocional, além da história
Assinando a carteira
71
de meus antepassados. Também estava apaixonado por
uma menina na escola. Ela era da turma dos Filhos da
Marinha. Estudavam muitos deles lá, geralmente vindos do Rio de Janeiro. Eles iam para a escola no ônibus da própria Marinha, pois moravam longe, na Base
Naval. Eram legais e não se dividiam por classe social
nem étnica. Eu era muito próximo dessa turma, e já era
a segunda menina dos Filhos da Marinha por quem eu
me apaixonava. Eu estava em apuros, pois, trabalhando
como faxineiro no hospital da Marinha, temia dar de cara
com ela na hora da visita. Ainda mais porque tinha inventado toda uma história para explicar porque eu estava
deixando de estudar no turno da tarde para ir estudar
à noite. Todos os meus amigos tinham planos, alguns
só ficariam naquela escola até a oitava série ginasial,
depois mudariam para uma escola particular. Eu também tinha o meu. Eu e André queríamos ser psicólogos,
já tínhamos feito um acordo, mas veio o emprego... Só
poucos sabiam o verdadeiro motivo da minha mudança
de turno. Aquilo era uma tortura para mim. Só pensava na
menina, chegava a ter visões dela vindo toda arrumada e
me flagrando naquele uniforme azul de faxineiro...
Bom, com o tempo fui relaxando. Já fazia três meses ou
mais que não via a turma da escola, exceto André e o pessoal que morava ali por cima, pois era perto do salão das
Testemunhas de Jeová. André, Branca e Paulo, como eram
os amigos-irmãos, eram pacientes e aceitavam esse meu
novo estilo. Às vezes ainda tínhamos uns papos legais,
pois em outras épocas eu e André éramos ateus e Branca
e Paulo, católicos. Eu ficava feliz por revê-los, mas depois
batia um sentimento de culpa por ter parado para falar
com meus melhores amigos. Uma coisa que ganhei nessa
aproximação com a fé ocidental foi a culpa, muita culpa,
mas é a vida. Por todo lugar em que passamos, levamos e
deixamos alguma coisa, e isso é simplesmente viver.
72
Bagunçaço
Um dia, estava indo limpar um banheiro quando de
repente saiu do elevador, junto com mais dois adolescentes e alguns adultos, minha paixão. Eu tive que ser
muito rápido: corri e me tranquei no banheiro que devia
limpar. Acho que fiquei bem mais de uma hora lá. Depois
desci do andar em que estava e troquei com Zaza, uma
senhora cinquentona que limpava o segundo andar. Só
disse a ela que era um favor e que ficaria devendo a ela.
Porém, uma semana depois, não tive a mesma sorte.
Estava eu com o rodo e o pano de chão limpado arduamente o piso do corredor quando ouvi sua voz:
— Joselito, é voce? Menino, você sumiu!
Eu fui levantando o corpo e os olhos com muita vergonha.
Tinha dois rapazes ao lado dela — primos, eu acho —,
eram da minha idade. Por um instante pensei que seria
ótimo Boi e a galera lá da rua aparecerem ali e quebrarem a cara deles... Os dois bem arrumadinhos ali ao lado
da menina mais linda do mundo só para me humilhar...
Mas ela parecia não ver o uniforme, estava com um sorriso lindo e tratou de me apresentar a seus pais e aos dois
rapazes. Eu tirei a luva e o pai dela apertou minha mão,
em seguida os primos também, depois a mãe me beijou
carinhosamente. Conversamos um pouco, e ela me explicou que um tio, também da Marinha, estava ali internado.
Nunca a namorei nem contei sobre minha paixão por ela,
mas em momento nenhum nas três ou quatro visitas que
ela fez ao hospital houve indícios de que, se eu realmente
quisesse, minha posição de faxineiro fosse atrapalhar.
Nunca mais a vi, mas seu sorriso era realmente lindo.
A vida no hospital militar era diferente da Central de
Abastecimento, pois havia mais disciplina, e o pessoal
da faxina era mais cobrado. Tudo era bem organizado,
por isso ninguém podia explorar ninguém. Eu também
estava mais esperto.
Assinando a carteira
73
Como disse, fui posto para cuidar do terceiro andar, onde
havia alguns apartamentos individuais e quatro enfermarias, cada uma com uns seis leitos, se não me falha
a memória, a sala de enfermagem e os banheiros dos
visitantes. Fui colocado para trabalhar com Josefá, uma
senhora de uns 30 e poucos anos, e foi simpatia à primeira vista. Ficamos muito amigos; lembro que chegamos juntos e fomos apresentados ao serviço juntos.
Josefá ficaria principalmente com os apartamentos em
que houvesse mulheres e com a enfermaria feminina;
eu ficaria com a enfermaria masculina e com os apartamentos em que houvesse homens. Lembro que, embora
estivesse com saudade do meu robozinho aspirador de
pó, estava muito motivado, pois o pessoal dizia que a
comida da Marinha era melhor do que a de muitos restaurantes por aí. Infelizmente, minha primeira limpeza
foi na enfermaria, onde um curativo era feito em uma
senhora meio maluca que deixara uma ferida na perna
apodrecer. Embora isso tenha acontecido na enfermaria feminina, tive que ir substituir Josefá, porque a pobre
coitada saiu de lá botando os bofes para fora. Ao entrar
na enfermaria, curioso e assustado, me deparei com o
enfermeiro despejando creolina na perna da senhora, de
onde, como nos filmes de terror, muitos morotós pulavam. Percebi, ao ver essa cena, como somos frágeis.
Fiquei aterrorizado, mas não podia correr como Josefá,
pois o enfermeiro, aos gritos, me mandava limpar aquilo.
Lembro-me de que, ao chegar no refeitório, horas depois,
para almoçar a famosa comida da Marinha, encontrei
Josefá saindo correndo de novo com os bofes saindo
pela boca, entrei e, para minha infelicidade, mesmo
vendo o arroz graúdo que tinha para comer, fiquei ali sem
querer comer nada. A pobre Josefá ia ter que se controlar; não ia poder ficar vomitando em cima de tudo. Mas
logo depois descobrimos que ela estava grávida.
74
Bagunçaço
Eu e Josefá saímos limpando tudo. Eu, aos 16 anos,
muito curioso, queria entender as doenças, conhecer pacientes, e fui fazendo amizades. Fazia pequenos
favores aos pacientes, ganhava elogios, presentes e
dinheiro de seus parentes, mas a coisa mais valiosa que
me davam eram os conselhos. Tínhamos todo o tempo
do mundo; eu terminava rápido e ficava de bate-papo.
Um senhor que eu chamava de tio e que tinha senso de
humor chamava Josefá de comadre e dizia que iam parir
no mesmo dia, pois ele tinha barriga d´água e ela estava
grávida. Josefá dizia que sabia quem era o pai do filho
dela e que ele era sem-vergonha porque não sabia quem
era o pai do dele. Era incrível, ele ali deitado doente e
me fazendo rir, rir muito. Era um tio maravilhoso! Ele
se internava, recebia alta, mas voltava. Também havia
outro que tinha um problema que os médicos tiveram
que fazer um buraco na garganta dele, e ele falava e
comia por ali. Ninguém entendia o que ele falava, então
comecei a ler para ele um livro de histórias bíblicas
infantis que as Testemunhas de Jeová me emprestaram.
Com o tempo, os enfermeiros me chamavam para traduzir o que ele dizia, e ele, mesmo sem voz, me contou que
era racista, prepotente, que tratara a empregada muito
mal. Ele me deixava dar aulas do livro, pois sabia que
eu queria ser instrutor das crianças no salão das Testemunhas de Jeová, e assim eu treinava com ele, que se
dizia ateu, mas foi mudando, foi ficando com dúvidas.
Sua família ia visitá-lo só aos domingos, mas ele dizia
que as filhas que tinham a minha idade não tinham
paciência para entendê-lo. Também havia uma senhora
que ficava num apartamento e que tinha câncer ginecológico como precisavam de meus favores para comprar
coisas no mercado, me aproximei dela e do marido, por
meio de Josafá. O marido estava sempre ali; todo dia ia
ver a esposa, e ficamos próximos também. Ele me disse
Assinando a carteira
75
uma vez que quando eu encontrasse a mulher da minha
vida que eu a levasse de seis em seis meses para fazer
exames ginecológicos. Não era para ser assim, mas
aos poucos fui ficando próximo de muitos pacientes
e de seus familiares. Fazia as ligações telefônicas dos
pacientes para as famílias quando pediam, fazia operações ilegais como levar absorventes para as mulheres,
pois elas não gostavam do que o hospital fornecia. Havia
muita cumplicidade com os outros faxineiros, dona
Zaza, Seu Zé, Djalma, um rapaz de seus 20 anos, Deci,
meu primo, filho de minha tia Elza, também de 20 anos,
que trabalhava em outro setor, o pessoal da cozinha, da
lavanderia, os fuzileiros e os marinheiros que tinham
mais ou menos a minha idade — era como se fossemos
colegas. Certo dia, logo pela manhã todos os faxineiros
foram para o terceiro andar, para combinarmos um protesto na empresa, pois já estávamos com o salário atrasado havia quinze dias. Mas, mesmo com as agruras
da pobreza, éramos bem-humorados. Eu era o caçula,
mas tinha uma rebeldia e, juntando isso à maturidade
de Josefá, conseguimos fazer a reunião-relâmpago na
enfermaria, onde estavam apenas o tio, o senhor com
o buraco na garganta e um velhinho que não se mexia
nem falava. Foram o tio barrigudo e o da garganta que
me incitaram a reclamar do dinheiro atrasado. Assim,
fizemos a reunião e combinamos de ir juntos à empresa
de tarde para saber o motivo do atraso. Foi tudo rápido,
dez minutos, pois logo os enfermeiros chegariam e iriam
querer saber o motivo de estarem todos os faxineiros do
hospital naquela enfermaria. Bem, o tio fez piada com
todo mundo, e dona Zaza, bem velha mas bem desbocada, ficou insistindo para o tio apontar quem era o pai
do filho dele. Gastamos mais uns cinco minutos naquela
galhofa, até que um enfermeiro chegou e dispersou
aquela reunião imprópria.
76
Bagunçaço
Um dia, lá pelas 11 horas, eu já tinha estado com o tio e
já tinha rido como sempre, então fui limpar a enfermaria. Era sempre assim; embora eu e Josefá tivéssemos
demarcado alguns lugares para cada um, eu limpava
mais que ela, pois estava grávida e tinha algumas complicações. Às vezes ela ia trabalhar e a gente deixava
ela numa enfermaria. Quando isso acontecia, alguns
dos outros faxineiros iam me ajudar, mas naquele dia eu
estava limpando a sala de enfermagem e ela, a enfermaria feminina, que ficava ao lado da enfermaria onde
ficava o tio barrigudo. De repente, o alarme tocou informando alguma anomalia na enfermaria masculina. Eu
não liguei muito, pois aquele alarme disparava toda
hora, mas minutos depois avistei Josefá se desmanchando em lágrimas em frente à enfermaria do tio. Vi
que algo muito ruim tinha acontecido... Foi muito duro;
era a primeira vez que alguém muito próximo morria. Eu
tinha falado com ele havia pouco tempo, ele estava alegre, animado... Como agora estava imóvel, coberto com
um pano branco? Fui até Josefá; ela estava muito mal.
Os enfermeiros cuidaram dela e pediram que parasse de
chorar, porque a gente não podia se comportar assim, e
avisaram que se isso se repetisse eles iriam pedir nossa
transferência. Eu não estava chorando, mas estava triste
e assustado. Estava muito assustado com como tudo
pode mudar de repente. Então, na hora do almoço, não
fui para o refeitório e sim para o alojamento. Eu, Djalma e
Deci tínhamos recuperado e limpado o antigo necrotério
e ali fizemos um alojamento onde trocávamos de roupa e
tirávamos um cochilo durante a hora do almoço. Éramos
chamados pelos soldados novos de os três vampiros. Pasmem, mas nossa cama era mesmo na pedra de mármore
onde outrora ficavam os defuntos. Mas nem parecia, porque arrumamos um colchão, pintamos as paredes e colocamos um sofá velho, um rádio... Era um cafofo e tanto!
Assinando a carteira
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Lá vivi minha tristeza e chorarei meu amigo sem deixar os
enfermeiros verem. Outras mortes vieram, e Josefá chorou escondida como eu fiz na primeira vez.
Dessa amizade com os pacientes — às vezes simples
marinheiros, outras, de alta patente —, surgiram muitas oportunidades de trabalho fora do hospital, e também muitos presentes. Ao final, com a influência de
um deles, fui transferido para o rancho dos sargentos e
suboficiais, que era o paraíso em termos de alimentação, e logo fiquei amigo do Fiel, um 3° sargento responsável pela liberação da comida. Havia três ranchos: o
rancho dos recrutas até cabos, depois o dos sargentos e
suboficias e o das patentes de oficial para cima.
Cap.05
Corações e anjos
Cap.05
Corações e anjos
Um dia Zaza me chamou durante o horário do almoço para
visitar um amigo que estava internado no hospital ao lado,
o grande Santa Isabel. Com nossa farda podíamos entrar
no outro hospital tranquilamente; ficavam um ao lado do
outro. Chegamos à enfermaria e descobri que se tratava
de um coroa e que havia alguma coisa entre Zaza e ele.
Então resolvi deixar os pombinhos sozinhos e desci para
um jardim interno. Estava com o livro de histórias bíblicas
infantis — que agora era meu, pois o outro era emprestado, então um dia o tio que não falava me deu um com
dedicatória. Ele dizia que ainda não sabia se Deus existia, mas que era só uma questão de tempo, pois já estava
perto de descobrir. Para mim, que tinha certeza da existência Dele, aquele livro serviria para eu alegrar outras
pessoas com aquelas histórias. Ele já havia morrido e eu
sempre levava o livro comigo, pois estava muito novinho e
por muito tempo quisera ter um daquele.
Estranhamente, havia muitas crianças ali brincando, e
eu observei que um menino tinha uma coisa muito estranha perto do peito, algo pontiagudo que estava dentro do
seu corpo e que parecia tentar sair. Fiquei muito curioso
e perguntei o que era aquilo, e fiquei sabendo que era um
marcapasso. Ainda fiquei sem entender... Ele me perguntou se eu trabalhava ali. Quando eu disse que trabalhava
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no hospital ao lado, logo outro menino perguntou como eu
trabalhava num hospital e não sabia o que era um marcapasso... Eu até sabia, mas não tinha ouvido falar de
menino com isso. Ele tinha no máximo 11 anos. Eles, como
se fossem uma junta médica, começaram a me explicar
sobre o marcapasso, a doença específica de cada um e
as diferenças entre elas, a situação política do Brasil e
a razão de Fabinho estar fora do jogo e da conversa —
ele tinha tentado trapacear, só queria brincar se fosse a
polícia, e eles já estavam cansados disso. Esse Fabinho
tinha chegado outro dia e sempre queria tudo para ele.
Um deles notou o livro, que era discreto como um pavão
com sua capa dura amarelo-ouro com letras vermelhas
cintilantes, e logo uma grande roda se formou e eu estava
realmente ensinando as tradições judaico-cristãs aos
pacientes do setor pediátrico do departamento de cardiologia do Santa Isabel.
A Zaza chegou, e estávamos todos empolgados. Tive que
ir, porque minha hora de almoço já estava acabando,
mas prometi voltar no dia seguinte, e voltei! Sempre
depois das 17 horas. Eles estavam espalhados em umas
quatro enfermarias; eu visitei cada uma delas e fiz novas
amizades. Lembro que minha mãe ficou preocupada e
até chegamos a brigar, pois ela temia o motivo pelo qual
eu estava matando aula.
Muitos daqueles meninos eram do interior. Fabinho foi
o único com quem eu não consegui estabelecer uma
empatia, talvez por ter ficado sugestionado pela antipatia que o grupo sentia por ele no nosso primeiro encontro. Mas era verdade que ele se comportava de um modo
diferente; eu nunca soube direito de onde ele era, mas
sempre estava me pedindo coisas, merendas, dinheiro.
Era um assédio inconveniente, primeiro porque eu não
tinha dinheiro e segundo porque era só bate-papo que
82
Bagunçaço
eu tinha para oferecer. De início, falamos muito do livro
bíblico, mas nesse período minha fé abraâmica estava
em crise. Eu estava enfeitiçado pelos tambores do Olodum, que emplacou um sucesso nas rádios de Salvador
chamado “Protesto Olodum”. O incrível, além disso, foi
que um dia, saindo para pregar de casa em casa, numa
determinada rua, ouvi que em uma das casas tocava bem
alto uma canção dedicada a Bombonjira, Exu para o povo
de Ketu. A canção era mais ou menos assim: “Bombonjira de amogongue aia, Oyere, Bombonjira abõmicom...”
Não sei como, mas, enquanto falava a boa-nova a uma
moradora acompanhado de um membro da congregação, marcava o tempo da música com o pé. O irmão discretamente me repreendeu e depois disse que o diabo
estava marcando a música com meu pé.
Naquele dia, voltei para casa incomodado. Como vocês já
sabem, nasci no terreiro e aquela música foi parte do meu
cancioneiro infantil, me trazia paz, me trazia boas lembranças. Não poderia colocar tudo que meus antepassados tinham me dado na conta do diabo! Aquilo não era
diabo, era família, era herança! A música do Olodum era
herança, o professor Lula era herança, meu avô Caboclolinho era herança, uma herança maravilhosa da mistura
dos meus ancestrais africanos e indígenas nos escambos
de sangue e cultura que a escravidão e a luta pela liberdade lhes proporcionaram. Como eu poderia dizer que
isso tudo simplesmente era coisa do diabo? E Deus seria
os colonizadores destruindo, pilhando e escravizando
África e América? Eu lia muito na época e estava convicto
de que o Deus abraâmico, ou qualquer deus, só poderia
ser amor, não ódio, preconceito e vingança.
Dias depois desse episódio de Satanás tentar se apropriar do meu pé para marcar uma música, me reuni com
os anciões e comuniquei que estava deixando a congregação. Dessa convivência com as Testemunhas de Jeová
Corações e anjos
83
aprendi muitas coisas, como a busca da ética acima de
tudo, uma maneira melhor de me vestir e uma boa oratória. Infelizmente, quando alguém se desliga ou é desligado, não tem mais permissão para falar com ninguém
de lá de dentro. Mas ainda hoje encontro pela vida essas
pessoas que fizeram parte de um momento tão intenso
de descobertas e amizades. Alguns transgridem e falam
comigo; outros não falam, mas olham com um carinho e
uma cumplicidade que são como um abraço; outros simplesmente me ignoram.
Eu já tinha aprendido a dar adeus, e não demorou muito
para eu perceber que a vida é uma eterna despedida,
mas isso não é negativo, pois só nos despedimos daquilo
que alguma vez encontramos.
Eu prosseguia com minhas visitas ao hospital. Tinha
ficado amigo de um rapaz da minha idade, também portador de doença cardíaca, com o qual eu tinha uma proximidade mais adolescente, pois trocávamos revistas
pornôs, falávamos de mulheres, ele torcia para o Flamengo e eu simplesmente, Bahia. Não queria ser Fluminense. Os outros meninos diziam que quando eu estava
com o Flávio ficava de segredinhos, mas eles tinham
entre 9 a 14 anos na maioria e não gostavam ainda de
falar de mulher. Bem, ele tinha uns segredos. Um deles,
que eu não devia contar para ninguém, era que ele se
masturbava de vez em quando, mesmo desobedecendo
recomendações médicas. A gente ria muito. Eu dizia:
— Rapaz, se eu chegar aqui e te encontrar estatelado
segurando a rola, não vou te ajeitar, não, viu? Vão chegar
as enfermeiras e vão ver você assim... Acha que só
porque você morreu eu vou pegar na sua binga, é? Aí
quando eu morrer também e chegar lá no céu, vou ter
que meter a mão nos anjos que estiverem cochichando
porque você já vai ter espalhado para todo mundo!
84
Bagunçaço
A gente ria e depois batia na madeira da janela, dizendo
“Deus me livre”. Éramos adolescentes e a palavra morte,
mesmo ali, não parecia crível. Bem, o outro segredo do
Flávio não tinha nada a ver com nossas brincadeiras
sacanas de adolescentes. E sim com a surpresa que ele
queria fazer para o cirurgião que o operaria nos próximos
dias. Eu tinha a missão de comprar uma camisa do Flamengo para ele presentear o médico.
Era sempre uma angústia quando eu chegava e não
encontrava alguém. Às vezes, iam fazer exames e ficavam em observação. Ficávamos todos preocupados.
Lembro-me de que depois de um tempo entre altas e
retornos, estavam na mesma enfermaria meus melhores amigos. Os outros meninos me conheciam, mas era
impossível ficar amigo de todos. Basicamente, fiquei
mais próximo de um grupo de uns doze pacientes que se
revezavam entre alta e internação. Agora alguns estavam
ali. Fernão, meio índio, de cabelos lisos “cortados cuia”,
como dizem, tinha 14 anos e morava na Perovaz, em Salvador. Junior também tinha 14 e morava em Coaraci, interior da Bahia. Leonardo tinha 13 e morava em Camaçari;
ele tinha febre reumática, às vezes ficava todo molhado,
era franzino e tinha a fala por um fio, se esforçava muito
para manter o timbre firme, parecia bem doente. E Flávio.
Faltava o Maurício, de 13 anos, que tinha o marcapasso
querendo sair do corpo, o Fabinho, entre outros. Bem,
comprei a camisa. Mas quando cheguei para entregá-la
ao Flavio ele tinha ido fazer exames. Procurei saber com
a enfermeira o que tinha acontecido e ela me explicou
que ele ia ficar por lá para se preparar para a operação.
Sempre que eu chegava à sala os outros me olhavam com
certa curiosidade e medo de uma notícia ruim, então eu
disse que ele estava bem e que logo voltaria.
Corações e anjos
85
Era uma sexta-feira. Fui para casa e não me lembro se foi
feriado segunda-feira ou se não fui trabalhar por outro
motivo, mas na terça, no fim da tarde, quando cheguei,
o leito de Flávio ainda estava vazio. Leozinho, quando
me viu, virou para a parede. Fernão baixou os olhos. Só
Júnior me olhou fixo. Fui até ele, sentei ao seu lado, ele
me ofereceu o suco dele, como sempre fazia, e ficou
calado. Todos estavam calados. Eu olhei para a cama
de Flávio, Júnior também olhou e continuou calado. Não
comunicavam aos meninos quando algum deles morria;
as enfermeiras diziam que tinham tido alta, que estavam
se recuperando... A certeza só vinha quando as mães se
conheciam e, depois de um tempo, comunicavam aos
filhos caso eles insistissem em saber, ou quando se
internavam novamente e nunca mais reencontravam o
amigo. Então, naquele silêncio cheio de perguntas, eu
me levantei e fui buscar respostas. Fui à sala de enfermagem e procurei uma enfermeira mais simpática, porque a minha intrusa presença tinha que ser discreta. Ela
mandou que eu esperasse, depois pediu que eu fosse
falar com o serviço social, mas, quando eu já estava me
dirigindo para lá, me chamou. Voltei, e ela me disse que
eu precisava ser forte, pois meu amiguinho não tinha
resistido à cirurgia. Fiquei atônito, com a camisa na mão.
Não podia voltar para a enfermaria — o que iria dizer aos
outros? Então fui para casa e só voltei na sexta-feira.
Eles não perguntaram, mas pareciam já saber, e dessa
vez o motivo de não perguntarem era mais para me poupar. Nos seis meses seguintes, entre altas e internações, perdi mais dois amiguinhos no hospital e sobre os
outros fui recebendo as notícias aos poucos. Quando,
por último, Junior morreu, não tive mais coragem de
seguir Leozinho, e Fernão se mudou para o interior. A
última vez em que estive lá foi quando morreu Maurício,
pequeno que conhecera na tarde no jardim e que tinha
86
Bagunçaço
o marcapasso externo. Fui todos os dias ao hospital
durante os três dias em que ficou em estado grave na
UTI, mas infelizmente ele não resistiu. Fui até o seu leito
e peguei o dominó que às vezes jogávamos todos. Fui até
a enfermaria do Fabinho; não sei se era o momento, mas
o senti sereno, os olhos dele brilharam quando viram o
dominó na minha mão. Saímos e sentamos no jardim; eu
chorava, mas tentava não mostrar a ele. Ele estava tão
curioso com o dominó que não percebeu muito; jogamos
uma mão, depois me despedi e dei a ele o dominó. Ele me
agradeceu e eu fui embora.
Meus amigos anjos me ensinaram que a vaidade é uma
armadilha perigosa, e eu tenho tentado não esquecer
essa lição.
Voltei a estudar à noite, mas sempre lembrava de meus
amigos. Também voltei a encontrar os amigos da rua
de cima, reorganizamos o grupo de teatro e aos poucos
voltei a frequentar candomblés de parentes. Para eles,
ainda era estranho; acho que não entenderam como eu
tinha arranjado tanta briga por outra religião e agora
estava ali. Mas eu estava tão feliz, e buscava cada vez
mais, além dos ensinamentos práticos, ler livros de
antropólogos sobre as religiões de matriz africana. Eram
tão emocionantes quanto as histórias judaico-cristãs e
ainda eram mais vibrantes por se tratarem das lendas e
histórias dos meus antepassados.
Sim, pessoal, não falei, mas a leitura sempre teve um
papel importante em minha vida. Minha avó lia um
pouco, sempre tinha algum folhetim popular por perto,
inclusive cordéis. Meu pai lia jornais, claro que sempre
dormidos. Só minha mãe não lia e escrevia muito mal o
próprio nome. Desde os meus 9 anos eu escrevia cartas
para meu pai no Rio de Janeiro quando ia com minha mãe
retirar o dinheiro que ele mandava mensalmente pelos
Corações e anjos
87
correios. Sempre gostei de ler. Um dia, no ano de 1983,
quando já morava no Jardim Cruzeiro, vinha de um baba,
sem camisa e descalço, e quando estava passando pela
rua principal uma moça branca sentada próximo a uma
Kombi com um toldo branco me chamou. Olhei em volta
para me certificar se era comigo mesmo, atravessei a rua
pronto para correr se ela tentasse me amarrar e me colocar dentro da Kombi, pois durante toda a minha infância ouvira notícias sobre pessoas que eram sequestradas nos bairros pobres e tinham os órgãos roubados. Um
amigo meu, filho de minha madrinha, aceitou bombom de
um estranho e sumiu por mais de um ano! Ele era muito
próximo a mim, embora fosse dois anos mais velho, e por
isso sempre tive muito medo dessas coisas.
Bem, me aproximei da moça desconfiado e ela me perguntou se eu não queria um livro emprestado. Foi uma
decepção e um alívio ao mesmo tempo. Ela com certeza
não ia me sequestrar, mas oferecer livro a um pivete que
vinha de um baba; parecia um conto meio sem graça. Eu
agradeci e disse que estava indo para casa; ela disse
para eu ficar despreocupado, pois não ia ter que ler tudo
ali, que eu poderia levar para casa e entregar na semana
seguinte. E a situação se transformou em um alívio e em
uma oportunidade! Primeiro, porque não ia ter que ficar
ali parecendo um besta e servir de bobo para os outros
meninos. Segundo porque havia livros bonitos. Quem
sabe eu não podia pegar um bem caro e vender?
Ela era sedutora; deveria haver uma bibliotecária assim
em todo canto. Falava manso, era bonita e dizia que ler um
livro era como assistir a televisão, mas as imagens eram
bem melhores porque eram coloridas — naquela época
isso era uma vantagem e tanto dos livros! Atraído pela
simpatia da moça, fiquei olhando os livros; ela me indicou um tal de Tonico, eu acho, de uma coleção chamada
Vaga-lume, e disse que era de aventura. Mas eu estava
88
Bagunçaço
buscando um que tivesse um valor comercial maior, até
que vi a Bíblia mórmon bem encadernada, com nomes
dourados em alto relevo, gordinha e dourada nas bordas
das folhas, uma belezura. Eu disse:
— Gostei desse!
Ela tentou disfarçar a estranheza e tentou me oferecer
outro, mas li o disfarce em seu rosto e insisti que queria
aquele. Ela perguntou a minha idade, eu disse que tinha
13 anos. Ela ainda tentou me persuadir com duas ou três
revistas em quadrinhos, mas eu estava certo de que ela
estava tentando salvar aquele livro porque estava na
cara que era um dos mais caros. Ameacei ir embora, e ela
acabou aceitando que eu o levasse. Fiquei eufórico! Mas
sempre que a gente vai se dar bem algo acontece...
Em seguida, ela explicou que para levá-lo eu teria que
trazer minha identidade e dar meu endereço. Isso não
me amedrontou, fiquei até feliz, pois desde a 5° série já
tinha meu documento de identidade, mas nunca alguém
havia me pedido. Fui para casa esbaforido, pois, antes
da minha aproximação, ela e sua Kombi estavam às moscas. Depois ela começou a ser discretamente observada
por outros meninos e meninas, que viram eu me aproximar e não ser devorado. Daí começaram a se aproximar,
alguns perceberam imediatamente minha esperteza e
todo mundo agora queria um livro de capa dura com as
bordas douradas, geralmente livros complexos, sobre
temas que não entendíamos. Corri para casa para pegar
minha identidade, e minha mãe quis saber para que era,
afinal, nunca nenhum menino ali tinha precisado da
identidade. Contei tudo atropeladamente, e ela logo veio
com uma desconfiança, dizendo para eu ter cuidado,
que aquilo era coisa errada... Até hoje é assim nos meios
mais pobres, desconfia-se de qualquer um que peça a
identidade que não seja policial. Bem, tive que usar
Corações e anjos
89
minha lábia e depois a teimosia para sair como minha
identidade de casa. Coloquei um camisa limpa no corpo
sujo e nem procurei meu chinelo, saí em busca do meu
livro dourado. Quando retornei, já havia meninos retirando livros de capa dura, mas para minha sorte o meu
estava lá me esperando. Dei minha identidade e inverti
os números da quadra e do lote da minha casa. Saí com
a sensação de que tinha me dado bem...
Em casa, ensaiei uma leitura do livro dourado, mas fiquei
assustado, pois havia uma história que dizia que durante
um incêndio alguém havia fugido com aquelas escrituras
e era um livro paralelo a outras escrituras. Não sei por
que um amiguinho meu cismou que era um livro de bruxaria. Tentei mostrar que não. Nós concordávamos que
ele era bonito e que deveria valer alguma coisa, mas,
fora meu pai, que lia jornais atrasados, e minha avó, que
lia cordéis e uma revista popular com romances picantes, quem do nosso universo saberia o valor daquilo?
Bem, Zé Roberto falou demais e logo outros meninos
sabiam que eu estava com um livro de bruxaria na mão.
Então, antes de a Kombi ir embora, fui lá e troquei pelo
Tonico. Costumava ser muito difícil ler aqueles livros feitos para meninos da minha idade. Eu ainda era um analfabeto funcional na escola, mas, não sei como, li em três
dias, pulando o que não entendia, fazendo suposições,
pois tinha preguiça de ir ao dicionário e, além disso, não
tinha um. Na semana seguinte, a moça me fez perguntas
sobre o que eu tinha lido e elogiou meu entendimento;
acho que ela fez isso só para me incentivar. Enquanto
conversávamos, choviam devoluções de livros de capa
dura, e a maioria nem queria pegar outro livro, ainda que
ela tentasse. Na verdade, houve uma decepção geral,
pois não conseguimos nada com os livros. Imaginem
se desse um tango no mango e nós conseguíssemos
vendê-los! Talvez hoje a comunidade tivesse tráfico de
90
Bagunçaço
livros e não de drogas, mas o fato é que passei a ler muitos livros e depois comecei a entender cada vez mais,
usava a intuição e muitas vezes o contexto. O fato narrado dava pistas do significado das palavras, e aos poucos comecei a pesquisar em um dicionário que consegui.
Faltava uma parte dele, mas resolvia. Só posso agradecer àquela moça da biblioteca. Hoje em dia, vejo a luta
das ONGs para se plugarem na internet, mas acho que
uma boa biblioteca ainda faz a diferença.
Corações e anjos
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Cap.06
Cap.06
O mundo sem Zé Bofeia
O mundo sem Zé Bofeia
O mundo sem Zé Bofeia
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herdei de meu pai: ando muito ligeiro. Certo dia, despertei
com minha mãe me chamando desesperada. Pensei que
tivesse perdido o horário para ir andando, mas ela gritava
e eu, ainda despertando, não entendia. Até que entendi
que ela dizia algo sobre meu pai:
— Pim, meu filho, corre pelo amor de Deus que seu pai
tá mal!
Entre os 15 e os 17 anos tudo mudou muito rápido para
mim, pois de estudante passei a trabalhador de carteira
assinada. Lembro que um dia o prédio do IBGE alagou e
a nossa empresa colocou todo seu efetivo para ajudar.
Nesse dia, pela primeira e única vez, trabalhei com meu
pai; depois ele saiu da empresa. Era uma firma muito
esperta, dessas que nunca recolhem a contribuição do
INSS e depois vão à falência deixando os funcionários na
mão. Como meu pai começou a ter problemas de saúde e
isso poderia denunciar a falta de contribuição deles caso
ele precisasse ficar afastado sob os cuidados do INSS —
acho que a essa altura o amigo dele não trabalhava mais
na empresa —, e ele foi demitido. Meu pai era muito corajoso. Mesmo com problemas de saúde, ele comprou uma
caixa de picolé e passou a vender todos os dias. Então
nessa época todos lá em casa trabalhavam um pouco:
eu com carteira assinada, meu irmão de 14 anos em um
ferro-velho, minha irmã gêmea como manicure e minha
mãe lavando roupa e fazendo faxina. Não havia mais
espaço para eu brigar pela porcentagem da minha contribuição; eu entregava todo o meu salário à minha mãe. Meu
pai também sempre agiu assim. Até meu vale-transporte
eu dava. Saía de casa às 4h50 e andava do Jardim Cruzeiro
até Nazaré. Eram uns 8 quilômetros, mas a economia servia para o café da manhã. Para mim era até legal, só era
ruim quando chovia. Eu tinha que chegar no hospital às
6h40, e precisava andar ligeiro — aliás, isso é algo que
94
Corri para o quarto e ainda tentei ressuscitá-lo com
massagem cardíaca. Eu estava em cima dele, minha mãe
e minha irmã gritando, e mandei meu irmão correr para a
casa de meu tio que morava nas proximidades, mas percebi que ele dera um suspiro forte e não se mexia mais.
Minha mãe e minha irmã gritavam desesperadamente e
eu vi meu pai ir embora ali nas minhas mãos; não consegui ajudar. Fiquei olhando aquilo, parecia um pesadelo.
Vizinhos chegaram, a casa ficou cheia, uma confusão,
minha mãe passando mal. Eu tive que cuidar de tudo.
Meu tio não estava em casa, então saí com o vizinho para
cuidar do enterro. Voltei mais tarde, eu mesmo o vesti,
coloquei um conjunto quase cáqui do qual ele gostava
— ia sempre aos sábados ao Baile dos Coroas com ele
—, penteei seu cabelo e, com a ajuda de meu irmão de
14 anos, de alguns vizinhos e do agente funerário, coloquei ele no caixão e fomos na Kombi com o corpo para o
velório. Não saí de perto dele até o momento do enterro.
Eu achava que era um felizardo, pois, mesmo com toda
a pobreza, tinha minha mãe e meu pai por perto. Ele era
tão engraçado, sempre estava de bom humor. Lembro
que, quando eu era menor, ele teve uns problemas gastrointestinais e, quando ia ao banheiro de nossa minúscula casa nos barracos-palafitas, corríamos os três para
ficar bem perto e rir das sonoras flatulências que ele
soltava. Ele ria e dizia que íamos ficar velhos cedo, pois
era o que acontecia com quem ria do peido alheio. Era
96
Bagunçaço
tão divertido. Ele sempre trazia presentes do Rio para
a gente e, claro, cadernos e canetas de lá. Eu adorava
quando ele penteava meu cabelo para eu ir para a escola;
eu sempre fazia um escândalo, mas gostava. Ele segurava meu queixo com força e desembaraçava o danado.
Uma vez, teve de viajar às pressas para o Rio, saiu de
madrugada, e quando acordei fui falar com minha mãe:
— Mainha, sonhei que meu pai entrava no quarto, me
dava um beijo e saía.
Então ela me contou chorando que ele teve que viajar
às pressas para o Rio por motivo de doença de uma de
suas irmãs.
Eu estava com medo, estava inseguro, me sentia com o
mundo nas costas, pois todos os homens adultos da rua
sempre me diziam que eu não era mais um menino, era o
homem da casa. E me tratavam assim. Era estranho ver
aqueles homens me olhando com tanto respeito, mesmo
quando eu ia conversar com seus filhos coisa de adolescente em suas casas.
Meu pai deixou como herança a caixa de picolé, o dinheiro
exato para o ônibus do dia seguinte e o sentimento muito
forte de que eu tive um pai, algo de que nunca tinha me
dado conta, mas que a maioria dos meninos lá da rua
não tinha. Alguns tinham pais cachaceiros que talvez
fosse melhor não ter, ou tinham pais birrentos, violentos,
espancadores. Meu pai foi simplesmente um pai, coisa
para medalha no velho Alagados.
—
A vida já era dura com Zé Bofeia, porém sem ele tudo ficou
desequilibrado. Ficamos muito unidos, minha avó ajudou
muito e foi morar com a gente. Ela, sozinha e doente, acabou vendendo a Tumba do Mar para minha prima adventista, que a dividiu em várias casas para alugar.
O mundo sem Zé Bofeia
97
Quatro anos após a morte do meu pai, eu havia experimentado a vida dura de ter que sustentar a família e já
tinha tido diversas profissões. Seis meses depois da
morte dele, deixei o trabalho no hospital e fui trabalhar
como balconista numa loja de eletrônica. Fui vendedor
de revistas como Isto É, garçom numa pizzaria, padeiro
e confeiteiro numa empresa de massa folhada. Inicialmente, parei de estudar. Estava no segundo ano de administração de nível técnico, o que equivale ao 2º ano do
ensino médio hoje, mas tinha que ganhar dinheiro, então
lavava os carros dos tenentes da Marinha, mesmo depois
de ter deixado o trabalho. Com o tempo, as coisas foram
se normalizando, reencontrei os amigos do teatro, reabilitamos o grupo, e agora havia pessoas da parte de baixo
também. Pelo menos três dos meus amigos de baixo
haviam morrido como consequência do envolvimento
com o tráfico, outros estavam virando pais precocemente, alguns eram só desocupados largados à própria
sorte e apenas um número bem reduzido estava, como
eu, sobrevivendo. Simplesmente sobrevivendo.
Cap.07
Um homem da lei
Um homem da lei
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Eu estava trabalhando, estudando e com umas paqueras.
Assim, não sobrava muito tempo em casa e, infelizmente,
por isso não acompanhei a educação de meu irmão Bira,
o caçula, que meu pai deixara com 7 anos e que já estava
com quase 11, mas fiquei sabendo que minha mãe o
matriculara num curso profissionalizante oferecido por
um homem que passou pelo bairro. Ela temia muito pela
sorte do caçula, pois não havia o pai para discipliná-lo e
também não existia mais o terreiro Tumba do Mar, onde as
crianças eram criadas na coletividade, só havia pobreza,
violência e muita droga.
Uma boa notícia dessa época foi que voltei a estudar. Fazia um supletivo. Esse curso ficava no centro da
cidade e, um dia, quando me dirigia para lá, ao passar
na Praça da Piedade, encontrei um senhor com algumas crianças de rua pedindo dinheiro para iniciar um
curso profissionalizante. Ao receber o cartaz da mão
de uma criança, perguntei do que se tratava, e ela me
explicou que morava na rua e estava junto com aquele
senhor e outras crianças. Eles haviam invadido um galpão velho na cidade baixa e tentavam reformar o local
para as crianças de rua terem um futuro. Naquele dia,
eu tinha o equivalente a 120 reais para efetuar o pagamento da mensalidade da escola, mas fiquei comovido
com a situação e a desenvoltura do menino, doei 60 reais
àquelas crianças e prometi passar lá, pois poderia dar
aulas de teatro e ensinar a fazer pão. Contei ao dono do
curso o que acontecera e ele foi compreensivo, porém
me advertiu de que havia muitos picaretas se aproveitando das crianças para ganhar dinheiro. Como as instalações eram perto de onde morava, eu poderia dar um
pulinho lá para verificar a veracidade da história. E me
deu quinze dias para eu levar os 50% que faltavam da
parcela daquele mês.
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Num domingo, meu irmão caçula reclamou que no curso
algumas crianças estavam fumando um cigarro diferente e cheirando cola. Isso me preocupou e resolvi visitar o tal curso profissionalizante em que minha mãe o
matriculara. Para minha grande surpresa, o curso era o
mesmo para o qual eu doara os 60 reais, e um dos fumantes do cigarro diferente era exatamente o menino que
me convencera a fazer a doação, apelidado de Dendê.
O que eu encontrei funcionando não era bem uma escola
e sim um antigo mercado municipal abandonado que um
senhor chamado Luis Antonio havia invadido e enchido de
meninos de rua. Numa ideia inusitada, ele os tinha misturado com meninos das comunidades adjacentes. Quando
me identifiquei como o rapaz da doação da praça e como
irmão mais velho de um dos alunos, deixei claro que primeiro teria que tirar meu irmão dali imediatamente, mas
que estava me voluntariando para aos sábados e domingos ajudar no que fosse necessário para o projeto.
Nunca consegui fazer um pão naquela estrutura inadequada; não havia cozinha no local apenas um fogão
improvisado. As aulas de teatro tampouco aconteceram,
pois os meninos eram tão inquietos e dispersos que o
máximo que eu consegui foi ser um monitor da escola
104
Bagunçaço
de quando em vez para que o senhor responsável tivesse
um descanso. Porém, nesses momentos, os meninos me
contavam histórias, histórias fantásticas de assalto,
estupro, morte, vida familiar, fugas, transas, meu Deus,
que intensidade, que liberdade havia entre eles!
Ao final, resolvi escrever uma peça para nosso grupo de
teatro, que àquela altura estava meio moribundo. Daí
surgiu o espetáculo Balada dos pivetes que contava a
trajetória de duas crianças desde a saída do lar até se
tornarem realmente meninos de rua. O objetivo do espetáculo era apontar as múltiplas situações que levavam
as crianças à, de rua.
Em uma das apresentações feitas no bairro do Uruguai,
havia uma equipe da filial da Rede Globo, a TV Bahia,
que foi fazer uma matéria sobre a violência no bairro.
Ao ser entrevistado, um dos moradores se referiu ao
espetáculo, que tinha visto um dia antes e que estava
sendo reapresentado naquele momento. Então a equipe
de reportagem resolveu cobrir o espetáculo, e ele acabou sendo exibido no jornal local, visto em toda a Bahia.
Assim, de uma hora para outra, fomos chamados para
apresentar o espetáculo em instituições, associações
de moradores e até no interior da Bahia.
Na vida, às vezes acontecem coisas e não sabemos explicar como, só podem ser resultado do acaso. Eu continuava a ajudar o seu Luis, que não era nada ortodoxo na
forma de atuação com os meninos. Ele mesmo tinha sido
um menino de rua e, como acabou aprendendo vários
ofícios e se tornou razoavelmente bem-sucedido, acreditava que trabalho e disciplina transformariam aqueles
meninos. Havia muito amor nas ações dele, mas algumas
coisas que podem ser empregadas numa época são complemente condenáveis em outra, e ele insistia em aplicar
os métodos que aplicaram nele mais de 40 anos antes, e,
Um homem da lei
105
sentou a mão num menino. O menino se queixou no juizado e eu, que era voluntário na instituição, fui chamado
para depor. Fiquei assustado, mas, antes mesmo da
data do meu depoimento, recebi um convite do departamento social do juizado para ir falar um pouco da peça
teatral. Ao final das duas coisas, depoimento e entrevista, surgiu uma relação de cordialidade com alguns
funcionários. Um dia, recebemos uma doação de 1.000
peças de roupa da ACBEU (Associação Cultural BrasilEstados Unidos) e, após a apresentação da peça, acionei
o juizado para buscar uma parte das roupas para o CEAMAC (Centro de Apoio ao Menor e Adolescente Carente),
pois, a essa altura, eles já haviam notado que, embora
fosse durão, seu Luis era boa gente e só precisava de
capacitação para poder ajudar melhor nas questões das
crianças e dos adolescentes.
Uma das coisas marcantes foi que só havia uma Kombi
disponível, então a chefe do setor, doutora Sara, o motorista da Kombi, seu Paulo, e eu tivemos que subir três
lances de escada carregando todas as roupas. Fiquei
muito feliz por me deparar com aqueles funcionários
públicos que ainda estavam comprometidos de verdade
com seu trabalho. Eu, que na maioria das vezes tivera
experiências que reforçavam a ideia de indiferença, aos
21 anos passei a ser comissário de menores da comarca
de Salvador. Foi como se me nomeassem delegado no
bairro! Tudo que envolvia crianças ia parar no meu frágil barraco de madeirite, que estava cada vez mais longe
daquele lindo portfólio da Amesa.
Então eu agora trabalhava como padeiro, à tarde era
comissário de menores e fazia teatro na comunidade.
Cap.08
Nascimento do Bagunçaço
Nascimento do Bagunçaço
109
A coisa foi piorando e, por meio de dona Teresa, fui acompanhando. Segundo ela, não se falava de outra coisa.
Alguns, embora se sentissem incomodados, achavam
melhor que eles estivessem ocupados, mas a maioria
queria mesmo seu sossego de volta. Assim, à medida
que o sucesso deles foi aumentando, as atitudes de
intolerância também foram crescendo.
No final de 1991, eu seguia minha vida, trabalhando pela
manhã na empresa de massa folhada, à tarde no juizado
de menores e mantinha o grupo de teatro ativo. Estava
preparando um espetáculo chamado O julgamento de
Papai Noel que tratava da questão das muitas crianças
que não recebem presente no Natal.
Um dia, ao retornar do trabalho no juizado, uma vizinha
muito próxima chamada dona Teresa me contou a novidade, como acontece sempre entre vizinhos quando há
algo novo, quer seja uma coisa pública, quer seja melhor
ainda, quer seja da vida particular de alguém da proximidade. Fiquei interessado e curioso, então ela passou
a falar sobre uma meninada que se juntava havia alguns
dias e tocava latas nas tardes e noites. Como eu era
quase da família e vivi toda a adolescência na casa de
dona Teresa com seus filhos, era certo passar na sua
casa primeiro, antes de chegar na minha, e assim a cada
dia eu ficava atualizado do desenvolvimento da coisa.
Lembro que um dia o som da banda parecia ter triplicado; eu estava sentado no barraco de dona Teresa e
assistia a sua agonia tentando assistir à novela das 19h.
Soube no outro dia que durante o Jornal Nacional e a
novela das 20h a coisa ficou feia, pois o som aumentou
mais, e eles estavam tocando até depois das 22h. Por se
tratar de um bairro horizontal, com casas de madeirite,
o som se propagava para bem longe.
108
Um dia, dona Teresa me contou que uma senhora, desesperada, havia jogado água de roupa suja neles. Depois
uns meninos maiores, provavelmente a serviço do senhor
da quitanda (agindo como jagunços), haviam passado
em duas ou três bicicletas atirando ovos podres neles.
O que mais me impressionava era a persistência daqueles meninos, pois nada diminuía a assiduidade nem a
pontualidade dos ensaios. Uma vez, novamente minha
informante me contou uma história inusitada: a banda já
entrava pela novela das oito, tocando sem parar, quando
a vizinha ao lado, morrendo de dor cabeça e desesperada, pediu ao filho que fosse lá e comprasse o silêncio
da banda com uns trocados. Foi uma medida eficaz: eles
interromperam o ensaio, respeitando a dor de cabeça da
vizinha, e receberam seu primeiro cachê. Não vamos nos
fixar no detalhe de que foi para parar de tocar, pois detalhes são apenas detalhes...
Mas um dia comecei a me preocupar, pois soube de
minha competente informante, enquanto tomava um
café e comia um pão com manteiga (o que era mais que
chique, pois na maioria das casas havia apenas margarina, quando não era pão seco mesmo — minhas passagens na casa de dona Teresa eram regadas a um lanchezinho antes de chegar em casa), com certa tristeza, que
houve distribuição de cascudos, tapas e pedradas quando
um grupo mais exaltado de moradores tentou interromper
o ensaio antes da hora. Parece que os meninos revidaram
110
Bagunçaço
com violência à tentativa truculenta de interromperem
sua sagrada atividade e continuaram a batucada metros
adiante para mostrar que não aceitavam desaforo.
—
Verdade seja dita, não acho que dona Teresa tinha legislado em causa própria quando, com todo cuidado, sugeriu que eu interviesse, pois eu era um agente do poder
judiciário, e ela temia que o tempo fechasse por aqueles
dias. As mães dos meninos já vociferavam: “Ai de quem
tocasse num fio de cabelo do filho delas”, e as pessoas
incomodadas já se organizavam para fazer alguma perversidade contra a turma da lataria.
Claro que eles já haviam sido ameaçados por alguns vizinhos que disseram que chamariam o juizado de menores.
E a conversa que tive com dona Teresa, e que foi assuntada por Neves, vizinha que morava ao lado, logo se espalhou, naturalmente, com versões variadas, a maioria com
pitadas de ação da SWAT, pois na cena eu chegaria com
a “Galinha Preta” (apelido que meninos de rua davam à
Kombi de cor preta que pertencia ao juizado) e recolheria
eles para um reformatório qualquer.
Naquele período eu senti que, ao voltar do trabalho, as
pessoas nas mesas de dominó e as vizinhas que varriam
suas varandas me olhavam com cumplicidade, pois, como
me tinham me visto assuntando, espreitando a molecada
de longe, estavam certos de que a solução viria através de
mim — eu seria o remédio para o calvário deles.
Realmente, na fase mais tensa da contenda, passei a
observar os meninos. Eu passava rapidamente na casa
de dona Teresa e logo me dirigia para um poste apagado do outro lado da rua, perto do portão da Escola
Santa Bárbara. Dali podia observá-los com tranquilidade,
pois, como disse antes, os poucos vizinhos que me viam
Nascimento do Bagunçaço
111
naquela situação tinham uma atitude cúmplice, ansiosos
pelo momento em que eu daria o “bote”.
Após alguns dias de observação, logo identifiquei os
componentes da batucada. Percebi que um deles, Leilson, parecia liderar e que meu irmão caçula, o Bira,
então com 12 anos, às escondidas também participava
daquela confraria músico-marginal.
Dava para notar que as latas, como os tambores de candomblé, levavam os tocadores a uma espécie de transe
e os transportavam daquele terreno baldio e fétido para
um palco bem iluminado. Acendiam neles a luz da beleza
ofuscada pela pobreza. Faziam com que encontrassem
seus ancestrais nas tribos africanas e/ou indígenas —
nos seus dias mais belos de agradecimento. Rapidamente os projetavam para o futuro, para uma sociedade
igualitária, humanista e com uma percepção jamais imaginada, na qual os seres humanos teriam a consciência
bem desperta em relação ao nosso ecossistema.
—
Numa dessas observações, eu, que já estava encantado
com os sonhos deles, com sua capacidade lúdica de ter
tantos sonhos em meio a tanta pobreza material, fui
tocado pela força da percussão. O som também me fez
transcender e fui abduzido para dentro daquele sonho
de menino, vestido de branco, com aqueles “êres-tata” e
seus ancestrais (que vieram da África, de Cuba, do Haiti,
de todos os lugares para onde os negros foram levados
como escravos) que ali foram festejar e me passar o
Decá. Da mesma forma que era costume nos terreiros
um(a) filho(a) de santo ser escolhido(a) e emancipado(a)
por pai ou mãe de santo e assim sair para criar seu próprio terreiro, ou como numa colmeia, que, ao crescer,
precisa deixar nascer outra rainha para dividir o enxame
e dar continuidade ao ciclo da vida.
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Bagunçaço
Nascimento do Bagunçaço
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Bagunçaço
Pois ali estavam os “tatas-mirins” que tiravam as cantigas para os inquices e caboclos. Assim, ao atravessar a
rua, soube que meu pai Ogum me pegara pela mão e me
levara até aquelas pequenas criaturas encantadas,
maltrapilhas e bagunceiras. E naquele momento eu soube
que, como irmãos, deveríamos cuidar uns dos outros.
Porém, os olhos comuns naquele entardecer de verão
iriam narrar que, após observá-los por alguns minutos,
eu simplesmente atravessei a rua, e que, ao me ver, os
meninos pararam de tocar, engoliram a saliva e pensaram: “Reformatório, aí vamos nós.”
Cada um escolhe a versão que melhor lhe convier.
Enquanto isso eu, que não tinha tempo a perder, tratei de
me apresentar, quebrar a tensão, explicar que, embora
fosse do juizado, não havia problemas, pois o nosso trabalho, longe de ser caçar menino, era proteger. Na verdade, eu estava ali como vizinho, queria me reunir com
eles para explicar melhor e deixei escapulir que sabia que
Bira, meu irmão, também andava com eles. Nós precisávamos de um local para uma reunião, mas quando as pessoas ficavam sabendo que seriam os meninos da batucada, educadamente arranjavam uma atividade para a
mesma data que eu estava solicitando.
Qual não foi a decepção do povo do dominó e das varredoras de varandas, que davam sorrisinhos agradáveis e
acenos gentis e que por um tempo guardaram em absoluto segredo as minhas observações discretas atrás do
poste de iluminação apagado da Escola Santa Bárbara.
De certa forma, foram traídos ao ver a lei, ou melhor, o
homem da lei, passando acompanhado daquela pivetada barulhenta, com uma lata e uma descarga plástica
de banheiro, procurando um lugar para se reunir. Acredito que o alívio imediato de não acontecerem mais os
ensaios das 18h até altas horas me livrou de uma incredibilidade irrecuperável.
Nascimento do Bagunçaço
117
Foi aí que eu lembrei da paróquia de São Jorge, do padre
Clóvis, e o procurei. Posso dizer que a recepção não foi
muito empolgada, pois padre Clóvis estava ocupado
escrevendo um documento importante e teve de fazer
uma pequena concessão para me receber, embora continuasse a escrever seu documento e só depois de me
ouvir explicar tudo tenha levantado a cabeça, olhado
fixo nos meus olhos e dito:
— Tudo bem, desde que não seja na hora da missa, pode
trazê-los.
No 20 de dezembro de 1991, os meninos e eu nos reunimos na sala três do centro comunitário da paróquia de
São Jorge às 19h. Notei que havia mais meninos do que
o número que eu contara na rua durante minhas observações, mas tudo bem. Compareceram Leilson, Tata,
Folha, Mar, Jorginho, Sergio, Caboco, Zé, Babau, Fau,
Nildo, Nego e Jean.
A reunião transcorreu normalmente. Bem, é melhor falar a
verdade: os meninos, embora respeitassem a minha posição como comissário de menores, acho que já sentiam que
na verdade estavam diante de um irmão mais velho, de um
vizinho comum ou de um colega dos irmãos mais velhos
deles. Eles estavam muito à vontade — à vontade demais,
para ser claro —, faziam brincadeiras e muita gozação.
Acostumado a essas atividades com crianças chamadas
“difíceis”, não me incomodei com a desordem e consegui
administrar bem a reunião, durante a qual fizemos uma
votação para escolher o nome da batucada, que, depois
de calorosas discussões, passou a se chamar Bagunçaço. Bem, sou obrigado a falar mais sobre a escolha do
nome, pois era normal que as crianças absorvessem os
nomes pejorativos que a comunidade dera a eles. Assim,
depois de me apresentar, comecei tentando entender
como tinha começado a batucada.
118
Bagunçaço
Segundo os meninos presentes, Leilson havia assumido a liderança depois que Sinval fora preso por furto
e recolhido num reformatório. Ele e Sinval tiveram a
ideia de pegar uma descarga velha, uma lata e começar
uma batucada. No início, eram, Sinval e mais três, pois,
como ele era considerado um garoto-problema sem
recuperação, as mães não deixavam os outros se juntarem a ele. Quando Sinval foi preso, Leilson ficou sozinho, pois o outro menino que era parceiro de Sinval na
atividade “alternativa” que culminara na prisão estava
foragido. Leilson herdara de uma hora para outra uma
lata de querosene velha e uma descarga sanitária,
e logo chamou Osmar, mais conhecido com Mar, que
morava na casa ao lado da sua, e continuaram a banda,
ou melhor, o duo, pois antes era um trio. Com a saída
dos mais desprestigiados pelas mães, outras crianças
foram se chegando, e já eram uns oito no momento em
que comecei a observá-los.
Com a explicação dele, fui entendendo por que no
começo a coisa foi tratada como pitoresca pelos vizinhos, afinal, três meninos não faziam tanto barulho
assim. Mas, com a saída de Sinval e a liderança de Leilson, a coisa cresceu e passou a ser um incômodo.
Naquela reunião, entre uma brincadeira e outra, fiquei
conhecendo mais ou menos a vida deles, pois costumam
debochar da família uns dos outros: tinha pai alcoólatra, mãe solteira amasiada com vizinho já casado, pai
preso... Tudo vinha à tona nas brincadeiras. Então, como
dizia antes, eles queriam se chamar “Bagulhaço”, “Badamaço”, “Morre de fome , mas não trabalha” e toda sorte
de palavrões com que eram xingados pela comunidade.
Eu fui colocando os nomes sugeridos no quadro-negro e,
por fim, vendo aquela algazarra, sugeri Bagunçaço.
Nascimento do Bagunçaço
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Bagunçaço
—
Na votação, Bagunçaço começou a tomar distância
dos outros nomes, houve um começo de confusão, pois
uns três achavam que a maioria tinha escolhido o nome
que eu sugerira para puxar o meu saco, mas eles mesmos contornaram a situação e Bagunçaço foi eleito com
maioria esmagadora.
Outras reuniões foram marcadas, e a cada reunião o
número de meninos aumentava. Estava claro para mim
que eles precisavam de muita atenção para terem disciplina e aprenderem a produzir em grupo. Algo muito bom
aconteceu quando resolvi ler um pequeno livro infantil
e os convidei para criarmos uma peça teatral baseada
na história. Embora seduzidos pela história, ficaram se
entreolhando como se soubessem de algo que eu não
sabia. Depois, em casa, meu irmão me contou que eles
estavam receosos de fazer a tal peça, pois teatro não era
coisa de menino e sim de bichinhas e meninas.
Na verdade, havia um encantamento mútuo entre mim
e eles. E, depois de muitos argumentos, consegui convencê-los. Eles, com cara de quem estava indo para a
câmara de gás, resolveram fazer a peça com a condição
de ninguém do grupo comentar com outros meninos e de
nunca se apresentarem em público.
Nas três semanas seguintes, as crianças foram expostas aos exercícios de teatro que os ajudaram a ter uma
forma mais afetiva no contato uns com os outros, e seus
personagens, lua, sol, lenhador, carneiro, entre outros,
foram sendo adotados por eles, que já não estavam tão
resistentes, a ponto de comentarem que era uma brincadeira legal aquela coisa de teatro e já estarem entusiasmados para mostrar aos pais e a outros moradores. Estavam mais concentrados e tranquilos, mas notei também
Nascimento do Bagunçaço
121
que já havia três semanas que eles não tocavam mais nas
latas. A comunidade sentiu a ausência dos meninos. Dona
Teresa, como sempre, era meu termômetro, e até ela, que
havia me induzido àquela situação, veio me perguntar o
que afinal eu tinha feito com os meninos.
Foi então que percebi que tinha quase matado a banda
de lata, pois a transformara numa companhia infantil
de teatro. Mas foi um desvio proveitoso. De qualquer
forma, solicitei que eles trouxessem a lata e a descarga, e, dentro do espaço da paróquia, muito baixinho,
retomamos os ensaios da banda. E, claro, a peça se
transformou num musical.
—
Organizamos depois uma ida ao lixão da cidade, pois precisávamos de mais latas e descargas, já que na formação
deles ainda se mantinham a lata e a descarga herdadas
da gestão Sinval. Não fomos todos, foi feito um sorteio,
assim, além de vivenciar uma realidade cheia de moscas
no meio do lixão, conseguimos catar latas e descargas
sanitárias plásticas para cada componente da banda.
—
Já havia uma aceitação da vizinhança, pois era mais que
notável a mudança. Eles só tocavam na rua com hora
marcada, geralmente entre as 17h e as 18h, mas a banda
sofria uma dura implicância das meninas da mesma
faixa etária. Elas chamavam eles de bagulhaço e eram
muito boas em desviar dos objetos arremessados por
eles, acho que por conta de jogarem baliô. Mas não jogavam pedras tão profissionalmente como eles, acho que
por causa do baragandão. Explico: nessa idade as meninas brincam muito de baliô, que consiste em ter dois
times que tentam acertar uma bolada no adversário, e
os meninos, de baragandão, que consiste em uma pedra
122
Bagunçaço
presa a uma linha. O jogo pode ter dois ou mais participantes, que atiram suas pedras no ar simultaneamente
e tentam cortar a linha do adversário quando esticam
suas linhas novamente, usando para isso a força do esticão e o peso da pedra. Dessa vez, dona Tereza não teve
nada a ver com a informação, os próprios meninos me
informaram da guerra de xingamentos e pedras que causou baixas em ambos os lados. Reuni a banda e soube da
insatisfação deles em relação à forma jocosa com que
as meninas tratavam a banda. Depois falei com algumas meninas. Thyá, irmã de Mar (seu nome verdadeiro
era Eunice), e Leide, que chamávamos de Dengo, eram as
lideranças femininas. Embora não tivessem uma explicação para tratar daquele jeito a banda, disseram que
o som até era bom, mas que eles eram muito chatos.
Então marquei uma reunião entre todos. Inicialmente, os
meninos resistiram muito, e quando, ao final da reunião,
as meninas foram admitidas como dançarinas da banda,
alguns ameaçaram sair do grupo.
A chegada das meninas, embora a contragosto de alguns,
foi muito importante, pois trouxe mais candura às nossas
reuniões. Os meninos deixaram de brigar entre si, pois
tinham que se unir contra as meninas, tentavam ter o
mesmo nível de concentração que elas, passaram a tentar cuidar mais dos instrumentos... Virou uma espécie de
gincana para ver quem era mais organizado.
De início, elas ensaiavam secretamente na casa de uma
delas e não iam muito às reuniões que não fossem ali
mesmo na rua, às vistas da família. Os meninos tinham a
vantagem de estarem soltos e poderem ir aonde queriam.
Nas reuniões, eu discutia vários temas antes do ensaio.
Os temas eram escolhidos pelas demandas do cotidiano. Lembro que uma vez um dos meninos chegou
todo quebrado, o rosto arranhado, um braço fraturado,
Nascimento do Bagunçaço
123
hematomas por todo o corpo. Perguntei se tinha caído
da bicicleta, e todos riram e logo me explicaram que a
bicicleta era o braço da mãe dele. Nesse dia, acabei discutindo violência e o novíssimo Estatuto da Criança e do
Adolescente. Expliquei que violência daquele jeito não
era possível, que ele poderia ter batido a cabeça, e um
colega em tom de gozação, disse que foi o que ele mais
fez. Outro logo soltou uma gracinha, dizendo que a mãe
do pobre coitado tinha até ritmo.
Minhas palavras sobre o estatuto ecoaram nos quatro
cantos. Os meninos chegaram em suas casas dizendo
que agora tinham direitos e que se apanhassem poderiam dar queixa, que eu era polícia e por aí vai. A coisa
virou boato e começou a tomar proporções inimagináveis. O irmão de um menino veio me avisar que era para
eu parar de falar besteira para o irmão dele, pois o pai
já havia advertido que não só continuaria castigando o
filho, como também quebraria a minha cara. Nas reuniões seguintes, alguns meninos deixaram de ir e foi
a maior confusão. Fui a algumas casas e tive que falar
pouco e ouvir muito; os pais estavam indignados, a mãe
do menino do braço quebrado nem falava mais comigo,
nem deixava ele ir ao projeto.
Eu tive que ir reconquistando os meninos aos poucos e
suas famílias também. No meio dessa confusão, estava
eu, um dia, esperando eles para uma reunião quando uma
moça linda apareceu, uma deusa de ébano, de sandálias
lilases, cinto lilás e prendedor de cabelo lilás. Era a irmã
mais velha de Osmar, o Mar, que tinha ido me conhecer,
pois Mar não estava mais comparecendo às reuniões
depois que chegara em casa falando da nova lei. Ela era
uma graça, eu tinha 21 e ela 19, estava se formando professora e, depois de conversarmos um pouco, expliquei o
que dissera e que talvez tivesse exagerado por ter ficado
indignado com o estado em que se encontrava o menino.
124
Bagunçaço
Falei da dificuldade com as meninas, e ela ficou tentada
a ajudar, pois gostava de dançar e poderia orientá-las. Ao
final, prometeu me ajudar com a preparação das reuniões
para saber como abordar alguns temas sem exagerar.
Em pouco tempo, eu e Claudia — Bia era seu apelido
— estávamos juntos trabalhando com as meninas e os
meninos. Bia estava saindo de um noivado, e eu já com os
quatros pneus arriados por ela. Como ela estava saindo
de uma relação, tentava ser o mais formal possível, mas
as meninas e alguns meninos notaram e resolveram dar
uma de cupido. Eles sempre olhavam para a gente com
um risinho no canto da boca e às vezes faziam desenhos
de corações com nossos nomes; ficávamos sérios, mas
todos riam no final. Bem, as crianças, na sua infinita luz,
têm a generosidade de anjos, e sempre me traziam notícias sobre o noivado de Bia e, claro, como Osmar e duas
irmãs, Thyá e Tita, também estavam no grupo, acredito
que tornaram a vida do ex-noivo um caos. Por fim, namoramos e cuidamos do Bagunçaço. Ela, sem dúvida, trouxe
a organização pedagógica de que precisávamos! Agora,
com uma mocinha formada professora, as famílias deixavam as meninas participarem mais das atividades. Acho
também que a fofoca de que ela havia terminado um noivado e estava me namorando substituiu a de que eu ficava
colocando ideias absurdas na cabeça dos meninos.
Como não havia sede e a casa de Bia era umas das poucas de alvenaria e de dois pavimentos, no andar de cima
fazíamos o reforço escolar e guardávamos os instrumentos. Então, aquela tornou-se a nossa sede informal.
Nascimento do Bagunçaço
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Cap.09
Primeiros shows
Cap.09
Primeiros shows
Primeiros shows
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e a apresentação seria no sábado seguinte, às 10h. Marcamos então uma atividade na manhã seguinte já com
as bermudas e camisas velhas, pois íamos fazer uma
fogueira com madeira velha e tinturar tudo.
Aconteceria em Salvador um Congresso Internacional da
Igreja Anglicana, Alagados foram colocados como pauta
para um turismo social. Parte dos congressistas faria
uma visita aos Alagados e algumas entidades locais se
organizaram para recebê-los. Assim, ao final, a comissão organizadora sugeriu que nossa bandinha fizesse
uma recepção para eles. Apesar do entusiasmo, percebemos que não tínhamos figurino e que as nossas latas
estavam muito velhas. Assim, tratamos de buscar latas
e descargas sanitárias plásticas mais novas, mas, como
tudo vinha do lixo, o aspecto ainda não era dos melhores.
Além disso, tocávamos sentados no chão, e não sabíamos que lugar na área externa da igreja seria mais adequado para nossa primeira apresentação de gala.
O grupo de dança das meninas ainda não se apresentava conosco; elas até ensaiavam com os meninos, mas
as famílias não deixariam que apresentassem em outra
localidade, longe de seus olhos.
Fizemos uma reunião e chegamos à conclusão de que
tínhamos que pintar os instrumentos e inventar um figurino. Logo veio a ideia de todos usarem bermuda jeans,
pois todo mundo tinha uma calca jeans velha em casa, e
conseguir uma camisa branca velha (geralmente de propaganda política). A reunião foi na noite de quarta-feira
130
Naquela mesma noite, ciente da minha pouca desenvoltura em artes plásticas, fui procurar um antigo parceiro da época do CEAMAC, José Carlos Pimentel, mais
conhecido como Pimentel, que morava nas adjacências
e era uma espécie de Professor Pardal, um mestre em
criatividade. Ele, quando menino, fora aprendiz de seu
Nelson Maleiro, grande carnavalesco da Bahia. Expliquei tudo ao Pimentel e pedi para ele ver se era possível
fazer alguma coisa pelas latas e descargas.
Na manhã seguinte, todos nos reunimos na frente da
casa de Jorginho, mais conhecido como Tripa, por causa
da magreza gritante, e ótimo tocador de repelique (lata
de manteiga). Cada um levou suas ex-calças já abermudadas e com toques de criatividade que deixariam mortos de inveja os rapazes da Avenue des Champs-Élysées, em Paris. Camisetas de toda sorte de candidatos
e partidos políticos, madeiras velhas para fazer o fogo
já recolhidas e tinturas baratas compradas no armarinho, notou-se a falta de Jorginho, que já havia colocado a
cabeça na janela umas duas vezes e, lá de dentro, repetia
a batida da sua lata. Alguns dos meninos já resmungavam que Tripa era fominha por tocar em vez de ir logo se
juntar à turma, estava na fome, tocando dentro de casa.
Quando a insatisfação pela demora de Jorginho se acentuou e suas frases na lata já eram um desaforo, ele apontou na porta com um sorriso de uma ponta da orelha à
outra. O mais estranho era que enquanto sua silhueta se
definia na mudança de luz da escuridão da casa para a
luz estourada do sol de verão das 10h, o som de seu repique-lata não parava. Assim, quando ele se fez brilhar ao
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Bagunçaço
Primeiros shows
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Bagunçaço
sol, foi um zum-zum-zum, pois o danado do Tripa trazia consigo uma novidade que mudaria a performance
da banda daquele dia em diante: sua lata estava amarrada na cintura e ele vinha tocando sorridente e andarilho. O sabido usara as sobras da calça para fazer um
cinto e amarrar o instrumento na cintura. Logo, todos
debandaram correndo para casa atrás das sobras de
suas respectivas calças para fazer o mesmo. Também
nessa época a afinidade com as meninas melhorava,
pois nessa coisa de preparar o figurino elas ajudaram
muito. Pronto; estava inventada a roda.
—
Pimentel fez sua parte, pintou e fez retoques que deixaram nossas latas elegantes. Assim, no sábado pela
manhã, partirmos para nossa primeira apresentação, na
Igreja Nossa Senhora dos Alagados, a mesma que o papa
João Paulo II inaugurara anos antes. A apresentação foi
maravilhosa e as anglicanas até se balançaram desengonçadamente, e eu, com minha imaginação fértil, digo
que elas estavam dançando. Provavelmente era isso.
Era uma manhã de verão, um dia lindo, e elas não pareciam nada com um grupo de mulheres em pleno ataque
de nervos. Aquilo era alegria, sim! Mas a única mulher
negra do grupo ficou parada olhando. Havia um misto de
admiração e certa tristeza nela. No final da atividade,
ela procurou um dos meninos e disse:
— Congratulation!
Mas ele não entendeu nada do que ela disse e ainda gritou para os outros:
— Xi, ela é gringa também!
Eu, por intuição, achei que congratulation era um elogio... Enquanto falava, ela também escrevia num pedaço
de papel. Depois meteu a mão no bolso e, muito emocionada, me entregou o bilhete com uma nota de dinheiro
Primeiros shows
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verde e saiu enxugando as lágrimas em direção ao ônibus da excursão. As outras mulheres continuavam nos
olhando e distribuindo congratulations e thank you very
much a torto e a direito. Pelo sim, pelo não, abri logo o
papel e me deparei com uma pequena carta na qual as
palavras congratulations e thank you very much se repetiam e com uma nota de 100 dólares.
—
Ai, ai, ai! Ao ver os 100 dólares, os meninos se precipitaram na minha direção. Todos admiravam aquele dinheiro
tão raro nos Alagados. (Por essa via, claro. Muitas vezes
já tinham chegado a ver, mas de forma, digamos, alternativa... Espero que vocês me entendam.) Foi a maior
confusão! A banda quase terminou no seu primeiro show
com plateia amistosa, pois a ideia de receber para parar
de tocar já nos era familiar, mas dinheiro para tocar nos
pegou de surpresa. Os meninos, que não conheciam o
valor real da moeda americana, começaram a fazer seu
câmbio por conta própria e valorizaram o dólar, que já era
forte, uns mil por cento; acreditavam ser muito dinheiro.
Na verdade, era mais do que seus pais poderiam ganhar
em um árduo mês de trabalho, mas eles imaginavam
muito mais do que isso. Alguns queriam construir suas
casas, outros, comprar uma bicicleta, alguns pensavam
em viajar para o exterior.
A cena é fácil de reconstituir: os organizadores e as anglicanas entrando no seu ônibus chique e partindo enquanto
eu ficava rodeado de piranhas enlouquecidas.
Foi difícil conter a “rebelião”. Por mais que eu explicasse, eles não entendiam que o dinheiro era pouco, e
eu já sabia que os pais não entenderiam também. Toda
a carência e expectativa de nosso povo simples afloraram nesse momento e os companheiros mais fortes se
enfureceram pela ignorância. O nosso país não conseguiu até hoje dividir bem o bolo, e coitado de mim que,
136
Bagunçaço
aos 21 anos, tinha que traduzir e convencer de que aquilo
ali ainda não era o bolo. Alguns, mais exaltados, mesmo
depois das minhas explicações, queriam simplesmente
que eu dividisse o dinheiro e desse a parte deles. O irmão
de um deles, que já tinha participado de ações que levaram 30 dólares para a comunidade de forma alternativa,
como falei anteriormente, saberia muito bem o valor
do dinheiro. Pensei em desistir, pois pareciam por um
momento não confiar em mim, afinal, era muito dinheiro
para uma pessoa só dos Alagados. Argumentei que com
100 dólares até se compraria um barraco-palafita, uma
bicicleta, mas que para uma passagem para o estrangeiro faltava muito e que, dividido por treze, que era o
número deles, daria pouco mais de 7 dólares para cada
um, o que não daria para nada. Mesmo assim, ainda
muito excitados, eles não estavam muito crentes nessa
verdade e queriam levar seus 7 dólares para casa.
Então, no meio daquele tumulto em cima da Igreja Nossa
Senhora dos Alagados, eu fiz um sermão de pelo menos
uma hora. Até hoje não sei se foi pelo conteúdo apresentado ou pelo cansaço dos meninos, mas ao final acabaram
chegando a um consenso: o dinheiro seria socializado de
forma que todos, incluindo as meninas, fossem beneficiados. Uma parte do dinheiro seria usada para fazer um
grande e delicioso bolo acompanhado de refrigerante,
outra parte para alugar os instrumentos da banda de
sucesso no momento na Cidade Baixa, a Bandaço (para
realizar o sonho deles de tocar com instrumentos convencionais). Todos eles sonhavam em crescer e tocar na Bandaço, que por sua vez sonhava entrar pro Olodum.
As meninas organizaram toda a festa, fizeram o bolo e
na laje de Leide fizemos a primeira e última apresentação com instrumentos convencionais. Também pela primeira vez o corpo de dança se apresentou com a banda.
Olhem as meninas aos poucos ocupando espaço!
Primeiros shows
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Deixando os sonhos de lado, com o restante do dinheiro,
fizemos um belo figurino e preparamos nosso próprio
grito de carnaval, para o que a criatividade de Pimentel foi fundamental, pois, além de criar uma iluminação
usando balde de galão de tinta, fizemos uma gambiarra
na rua e todas as crianças participaram. Mais uma vez as
meninas dançaram e Thyá, a Eunice, foi admitida como
vocalista; porém, inicialmente, só para ensaios e shows
na própria comunidade.
Um tio de Leilson, que era amigo meu, cedeu o barraco-palafita onde instalamos nossa primeira sede. O
boca a boca é o melhor marketing e logo estava espalhado pela comunidade que tínhamos dólares que pareciam inextinguíveis.
Em abril, na Avenida Tiradentes, faz-se uma grande
festa (Festa do Herói Nacional Tiradentes). A banda de
lata Bagunçaço já tinha um release razoável para se
candidatar a tocar naquele evento, afinal, tinha tocado
para gringos e recebido em dólares, alugado instrumentos da Bandaço e tocado na laje da Leide numa festa privada de alto nível. Tinham seu próprio grito de carnaval,
figurino... Agora iríamos ao topo tentando nos apresentar na Lavagem do Tiradentes.
Chegara o período eleitoral e, como político precisa de
miséria para vender seu peixe, procurei os cabos eleitorais da comunidade e ofereci a banda de lata. Claro que
eles rejeitaram a ideia imediatamente, pois ganhariam a
eleição os candidatos a vereador e prefeito que apresentassem as melhores atrações musicais em seus showmícios. Então, usei um argumento muito sedutor:
— Eu acho que seu candidato vai poder falar que crianças tão pobres e talentosas vão ter instrumentos quando
ele for eleito.
138
Bagunçaço
Claro que os políticos acrescentavam que dariam alimentação e aulas de música para aqueles meninos tão magrinhos. Mas o fato foi que o Bagunçaço tocou para todas as
inclinações políticas, realizando uma grande turnê interna
nos Alagados. Não havia bairro, praça, beco, ponte ou bar
por onde eles não houvessem passado. Todos sabiam da
banda de lata, e logo outras crianças resolveram imitar a
receita tão fácil: lixo + crianças pobres.
Não foi difícil conseguir espaço na prestigiosa Lavagem
de Tiradentes, na qual os grupos mais bem apadrinhados podiam tocar. Era a maior festa das adjacências, e o
Bagunçaço tocaria num sábado às 17h. No dia da abertura do evento, chegamos às 15h já de figurino para saborear a popularidade, que não faz mal a ninguém. Nosso
figurino amarelo e aquela meninada inquieta com suas
latas foram o centro das atenções. Buiú, de 5 anos de
idade e irmão de Sergio, era o nosso mascote e atração,
pois ainda usava chupeta e já tinha pegada na sua latinha.
Deu 17h, 18h, 19h, 20h e o evento não começava; os grupos mais importantes começavam a chegar, ficando claro
que a tão sonhada grande estreia talvez não acontecesse.
Havia impaciência e decepção nos rostos dos meninos.
Eu estava um pouco mais distante, tentando resolver a
questão com um dos organizadores do evento. Eu tentava sem muito sucesso convencê-lo de sermos encaixados na programação do domingo, mas não tirava o
olho dos meninos, pois sabia bem as peças que tinha.
E, mesmo de longe, avistei um senhor branco e alto se
acercando dos meninos; parecia que ele tomava informações e verificava cada instrumento.
Num dado momento, um dos meninos apontou para a
minha direção, veio acompanhando o senhor e logo me
disse:
— Esse gringo tá perguntando de onde somos.
Primeiros shows
139
Eu, que ainda pelejava com o organizador da festa, fiz
uma pequena pausa para me apresentar ao senhor, que
ao falar confirmou a afirmação do menino, era um gringo
chamado Dimitri. O segundo nome, Ganzelevitch, nem
mesmo o organizador metido a intelectual sabia pronunciar. Seus elogios imediatos ao trabalho dos meninos
fizeram o organizador mudar de forma rápida, inédita e
inexplicável de atitude, afinal, aquele mesmo que nos
descartara havia pouco instantes, agora era só elogios.
Porém, não dirigia a palavra a mim e, sim, ao gringo. Eu
era um observador passivo da nova opinião dele sobre
a banda de lata e, observando com atenção, tive notícia de que a banda era maravilhosa e umas das coisas
mais criativas das adjacências, e que ele, o organizador,
estava exatamente naquele momento se desculpando
pelo atraso na programação. Assim, serviria um lanche
para os meninos, e o gringo poderia voltar no domingo às
15h, porque nós estaríamos abrilhantando a abertura do
evento já que naquele dia já estava tarde e não era correto
deixar aquelas criaturas pequenas esperando tanto.
Nada como um observador internacional; não me esqueceria daquela velha expressão “para inglês ver”. O senhor
gringo voltou no domingo e de fato assistiu a uma apresentação descontraída, que enfatizou a música e a empatia da banda de lata da comunidade. Ele pegou meu endereço e sumiu na multidão.
Dona Teresa, a vizinha, que, ao se queixar para mim do
barulho da banda, fez com que essa história esteja sendo
contada, se mudara para Candeias, no Recôncavo Baiano,
mais precisamente para o pequeno distrito de Passagem
dos Teixeiras. Eu era muito ligado a essa família, que eu
conheci no início da minha adolescência, na minha conturbada mudança dos barracos-palafitas, na Massaranduba, para as casas provisórias no Uruguai. Foi com
140
Bagunçaço
seus filhos George, Jeová, Patrícia e o pequeno Jonas que
redescobri a alegria de viver, mesmo longe do meu mundinho aquático e do Tumba do Mar. Eles também estavam
meio perdidos, pois estavam também longe de sua comunidade de barracos-palafitas de origem, já que a Amesa,
na sua santa sabedoria, misturou todo mundo de localidades de barracos-palafitas, desarranjando toda uma
rede de solidariedade sedimentada em anos de convivência nas pontes e fazendo florescer a violência de uma
forma assustadora.
George era meu amigo inseparável, embora fosse três
anos mais novo do que eu. Éramos parceiros para toda
obra! Ele era mais valente e mais ousado, assim, se vocês
tivessem a possibilidade de nos ver agindo achariam que
ele era mais velho, inclusive porque era fisicamente mais
desenvolvido. O descarado com o passar dos anos se tornou muito boêmio, tocava violão e tinha sempre muitas
moças em volta, e eu, mais tímido, ficava ali por perto,
pois se sobrasse alguma coisa na rede dele eu catava.
Agora estava ali, descobrindo aquele lugarejo e matando
as saudades de meus amigos de infância. Claro que,
em se tratando de George, tinha que ser num clube de
seresta, onde acontecia um concurso de jovens seresteiros — ou vocês acham que o Arrocha nasceu em Candeias por coincidência?
Eu estava acomodado em uma das mesas, sob o olhar de
curiosos, pois George, muito garboso, havia espalhado
que seu amigo era comissário de menores da comarca
de Salvador e, assim, talvez eu fosse a maior autoridade
presente no festival daquele lugarejo encantado.
No meu papel de autoridade, observei com muito respeito
os candidatos, e um especialmente me chamou a atenção: um jovem de 14 anos, Jackson, apelidado de Jaquinho, que tocou e cantou de uma forma admirável e, claro,
Primeiros shows
141
venceu o festival. Jaquinho foi apresentado juntamente
com um amigo que também participara do festival, chamado Diosmar, mas apelidado de Poquito. Eu não perdi
tempo: convidei Jaquinho para visitar Salvador e tocar
junto com a banda de lata. Acho que ele nem prestou
atenção se a banda era de lata ou não, pois ir a Salvador
para um menino do interior era como ir a Hollywood.
Num sábado Jaquinho foi com George conhecer a banda.
A afinidade foi imediata, mas não por causa da música,
e sim pelo futebol, pois rapidamente iniciaram uma
partida. Achei estranha essa forma de se aprovar um
músico, mas os meninos depois do baba já contavam
com Jaquinho na banda e Jaquinho já elogiava a banda
também. Vai saber, mas deu certo. Agora tínhamos violão, que logo passou para uma guitarra velha emprestada, e a banda de lata se tornou elétrica.
Como Jaquinho estudava, ele ia aos finais de semana
para o Bagunçaço e os tambores, agora acompanhados
de uma guitarra, balançavam o barraco-palafita onde
era nossa sede, e isso me lembrava muito meu Tumba
do Mar. Então veio o maior convite que a banda sonhara
em receber. O Olodum, a mais famosa e mais admirada
banda afro-percussiva do Brasil, nos convidou para seu
festival, o Femadum, no qual estariam presentes cantores e compositores como Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Nem os pais acreditavam nisso, e os meninos, embora
felizes, estavam meio nervosos e até desanimados, pois
achavam que as descargas sanitárias plásticas e as latas
não dariam conta. Particularmente, quase dei um sermão. Como vocês já sabem, e todos os cubanos também,
depois de uma hora ninguém sabe mesmo qual é o motivo
do discurso e é melhor aceitar o que o orador quer ou a
penitência continuará. Achava que eles, na primeira oportunidade, já estavam querendo se livrar da originalidade.
142
Bagunçaço
Primeiros shows
143
Falei essa palavra mesmo, e eles se entreolharam, acho
que alguns acreditavam que eu esta baixando o nível de
tão retado, pois dificilmente eu usava um palavrão desse
com eles. Mas Jaquinho, com aquele jeitinho de menino
do interior, veio todo respeitoso e sussurrou perto de mim:
— Eu acho que a gente não deve perder essa palavra
que o senhor disse, mas os timbres das latas e das
descargas não estão bem com a guitarra. Tá tudo muito
agudo, precisamos de graves.
Mantive o tom da oratória, mas fiquei preocupado. Era
um sábado e, no domingo pela manhã, fui com Jaquinho
e Nido na feira do rolo, lugar onde se encontra de tudo,
tudo mesmo. Não quero aqui entrar no mérito da procedência das mercadorias, mas continuo afirmando que
encontramos de tudo, e acho que isso é o mais importante para essa narração.
Eu já havia passado várias vezes na loja de música com
Jaquinho, pois os pais dele só o liberavam se eu fosse
buscá-lo. Então quase todo final de semana eu tinha que
acordar bem cedo e viajar de ônibus uma hora e meia
para ir e o mesmo tempo para voltar com ele. Durante
a viagem, eu conversava muito com ele e tomava minha
aula particular de música. Jaquinho era músico de
ouvido, mas tinha seu jeito de me explicar a musicalidade. E, assim como cachorro na frente de açougue,
sempre passávamos na loja de instrumentos aos sábados pela manhã, e enquanto ele ficava nas guitarras, eu
ia para a seção de percussão.
Aprendi muito com um vendedor que me explicava os
nomes e, mais ou menos, a função dos instrumentos, por
isso, na minha caminhada pela Feira do Rolo, eu sabia
muito bem o que procurava. Bem, saber mesmo eu não
sabia, mas pressentia que quando achasse saberia
que era aquilo que procurava, mesmo que essa coisa
144
Bagunçaço
estivesse entre bicicletas, televisores, passarinhos,
bermudas, absorventes, vasos sanitários, filhotes de
cachorro, ratos brancos, um camaleão... Um pequeno
tonel de papelão! Não sabia bem para o que servia,
mas tinha o tamanho de um tambor grande de diâmetro pequeno... Meu bipezinho acendeu a luz vermelha e
achei que era aquilo. Quase por telepatia, Nido pegou o
tonel e experimentou o som, Jaquinho franziu o rosto e,
deitou a cabeça lateralmente em direção ao som, pois,
acreditem, um tambor na Feira do Rolo faz o mesmo
som que um alfinete quando cai num tapete. Se o Jaquinho não fosse bom de ouvido, não chegaria à conclusão
que chegou ao sacudir negativamente a cabeça, pois
para ele o som ainda não era o grave de que precisávamos. Eu contestei, dizendo que era grave, que eu sentia
grave, mas Jaquinho contra-argumentou que precisava
ser um pouco mais grave, e Nido, bom percussionista,
concordou com ele.
Chegamos à conclusão de que seria ótimo se o tamborzinho pudesse ser afinado, mas logo vimos que nem
Pimentel poderia pôr afinador num tonel de papelão. Eu,
ainda relutante, abandonei o tonelzinho e continuamos
olhando as coisas. Já quase desistindo, pegamos o caminho de volta pelo outro lado da feira, a essa altura já perto
de terminar e meio vazia. Ao passar por um amontoado
de volumes, Nido esbarrou neles, foi um barulhão, pois
eram tonéis de latão de vários tamanhos, que rolaram
para todo lado. Para não dar confusão, saímos imediatamente, como que por reflexo, catando os tonéis e nos
desculpando com o vendedor. Quando o susto passou,
um estalo coletivo nos fez fitar os tonéis e em seguida
uns aos outros. Esse gesto desembocou numa risada de
cumplicidade: estava ali o que procurávamos havia tempos. Ainda com um pouco dos dólares, compramos três
tonéis e mais tarde uma lata de manteiga cilíndrica, pois
Primeiros shows
145
latas cúbicas já tínhamos bastante. Com Pimentel, levamos tanto a lata de manteiga quanto um dos tonéis para
a loja de instrumentos para descobrir qual pele se encaixaria melhor ali. A ideia era fazer um tambor com aspecto
mais convencional, inclusive no som, mas mantendo a tal
originalidade, que àquela altura não era mais um palavrão
e sim um lema dos meninos. Seus pais e demais vizinhos
não sabiam muito do que se tratava, mas já que nós lutávamos por tal palavra, deram um voto de confiança. Até
porque não parecia uma palavra feia e com sentido perigoso, só era difícil de falar. Provavelmente, achavam que
era uma palavra que tinha vindo junto com os dólares...
Ao final, tínhamos três tambores de tonéis, uma caixa
emprestada de uma fanfarra, um repique de lata cilíndrica de manteiga, uma guitarra velha, nossas velhas
descargas sanitárias e latas cúbicas, figurino e muito
nervosismo. O Olodum mandou um ônibus nos buscar,
os caras da Bandaço estavam até nos admirando, e lá
fomos em direção ao Pelourinho.
Foi um momento muito especial. O palco, tudo de primeira linha, todos os instrumentos foram amplificados
e equalizados enquanto o locutor falava um pouco da
história do projeto, e na hora dos meninos entrarem, fui
chamado para explicar um pouco mais sobre o projeto.
Eu estava muito nervoso, pois, mesmo com a experiência do teatro, falar para 60 mil pessoas era algo que eu
nunca tinha imaginado. Os aplausos, a banda tocando
com guitarra elétrica... Só o Araketu havia feito essa
proeza, tanto Olodum como Timbalada eram só percussão. Além disso, o Bagunçaço era autodidata, pois
minha musicalidade era duvidosa. Mas, o entrosamento
no baba havia se estendido para a música e eles deram
show. Aplausos e surpresa do público. Foi extasiante ver
a negrada bailando ao nosso som, no mesmo lugar que
antes era destinado a nos castigar.
146
Bagunçaço
Ao final do show, a produção do Olodum queria nos colocar numa espécie de camarote, onde também estariam
mais tarde Caetano e Gil. Eu queria muito, mas as crianças preferiam ficar em frente ao palco, pois queriam
assistir a banda das bandas: o Olodum. Então, ficamos
num espaço bem em frente do palco, isolados por seguranças do Olodum. Estávamos todos ali felizes por assistir o Olodum e também por estarmos sendo observados
pelo público, que sempre que entrava em contato parabenizava a gente. Num determinado momento, me afastei para fazer uma foto das crianças tendo o palco com a
banda Olodum como fundo, e para isso fui até bem próximo do cordão de isolamento, chegando bem perto do
público. Victor, apelidado de Buiú e o mais novinho da
banda, deveriam ficar com Claudia (Bia, minha namoradinha e irmã de um dos meninos), mas ele era muito
apegado a mim e veio meio que segurando nas minhas
calças. Eu andava de costas para pegar o melhor ângulo
e Buiú vinha de frente segurando minha calça na altura
do joelho, mas de repente ele soltou minha calça e se
afastou assustado com algo atrás de mim. Eu não tive
tempo de saber o que o assustara, pois alguém puxou
com muita forca minha pequena mochila, me fazendo
desequilibrar. Para não cair, girei de frente como qualquer um que já tenha feito capoeira. Para meu espanto,
era um policial enorme que, para tirar a bolsa de mim,
me deu um empurrão ao mesmo tempo que calçava com
um dos pés meu calcanhar. Mais uma vez, no reflexo da
capoeira que aprendera na rua e na paróquia, saltei para
trás e caí na negativa, um golpe que era só para não despencar no chão. Logo voltei a ficar em pé e ele olhou para
mim com raiva, perguntando de quem eram a mochila e a
máquina que estava na minha mão. Eu respondi que eram
minhas essas coisas, e ele com truculência novamente
me segurou pela camisa e chutou com muita força meus
Primeiros shows
147
dois tornozelos. Um deles torceu na hora, eu pude escutar o som do osso como se tivesse partido, e nesse instante a população se precipitou, gritando para o policial
parar, e os meninos que estavam de costas para a cena
se viraram e correram em meu auxílio. O mais curioso é
que eles não se intimidaram com o policial e tentavam me
tomar da mão dele. Logo chegou o restante da patrulha
com mais uns cinco policiais, e a essa altura a população, que me identificava como o rapaz da banda de lata,
xingava e jogava latinhas de cerveja no policial. Quando a
patrulha chegou, as crianças do Bagunçaço recuaram um
pouco, esperando o desfecho, numa espécie de trégua
momentânea, porém o policial disse para um que parecia ser o sargento ou superior que eu havia desacatado
ele e que excitara a população contra ele. Como eu disse,
era um policial enorme, eu tentava argumentar com ele
enquanto ele apertava o colarinho da minha camisa,
como se quisesse me enforcar. Eu parecia um passarinho
na boca de um gato se debatendo desesperado.
O sargento olhou para mim como quem pergunta: “Você
tem algo em sua defesa?”. Eu até tinha, mas enforcado
pela gola da camisa e tomando socos nos rins não consegui mais falar; sentia um dos tornozelos sem firmeza e
os socos curtos já me faziam sangrar pela boca. Estava
tonto, mas vi que, quando o sargento mandou me algemar, a banda Olodum parou de tocar. O vocalista foi enfático com os policias e as crianças começaram a arrancar
o calçamento do Pelourinho e partir para cima da guarnição; o espírito de grupo e as leis duras de um bairro
violentado já tinham temperado a natureza daqueles
meninos. Eles estavam prontos para a paz e era isso que
reafirmávamos no Bagunçaço, mas guerrear era exatamente no que eram melhores. Foi um deus-nos-acuda,
as pedras eram lançadas sem pudor na direção dos polícias, que já estavam de armas em punho. Eu sacolejava
Primeiros shows
149
na frente do que me segurava tentando evitar que uma
das pedras pegasse na guarnição. Temia que eles atirassem nos meninos, mas os meninos, que são muito
bons em pedradas, já atiravam com efeito, tentando
não acertar em mim. A população continuou jogando
latas, guardanapos, a direção do Olodum já estava por
ali, mas os policias não deixavam ninguém se aproximar. Assim, algemado com as mãos para trás e preso
pelas calças, fui arrastado ladeira abaixo. Os meninos
a essa altura já berravam e choravam, minha namorada tentava segurá-los e ao mesmo tempo me seguir,
pois temia minha sorte nas mãos dos PMs. No meio da
ladeira, minha carteira, não suportando a pressão do
policial que me levava dependurado pelas calças, caiu
aberta e lá estava minha identidade funcional do Poder
Judiciário — meu distintivo do Juizado de Menores da
comarca de Salvador. Os policias debocharam, dizendo
que eu ia apanhar mais ainda por estar portando documentos falsos do Poder Judiciário. Uma guarnição da
Polícia Civil, vendo a confusão, veio dar apoio aos PMs,
mas ao averiguarem meus documentos, atestaram sua
autenticidade e começou uma nova confusão, pois eles
reclamavam a minha guarda, e o sargento negava. Não
sei de onde, mas o Olodum arranjou um advogado.
A procissão da minha via crucis, que deveria seguir para
uma delegacia, por determinação do sargento desviou-se
para o quartel da Polícia Militar, onde ele tentou dizer
que eu estava errado ao incitar a população contra eles.
Ainda no pátio, ele fez uma roda, e outros policiais mantiveram as crianças e a diretoria do Olodum a distância.
Só eu e o advogado podíamos ver e ouvir o que se passava. Nesse momento, a coisa mais amena que ele ouviu
de mim foi que eram criminosos fardados e que eu iria
sair dali e ir direto a uma delegacia prestar queixa. O sargento, tentando manter sua autoridade, disse que se eu
150
Bagunçaço
não me calasse iria me levar para dentro do quartel para
me encher de porrada, e eu retruquei dizendo que ele até
que se achava homem, mas não era tanto para isso. Os
policiais civis pediram para eu me acalmar, enquanto um
tenente se desculpava e pedia para o sargento se conter,
pois éramos colegas e aquilo não ia levar a nada. Logo, foi
dada a ordem para me desalgemar, e eu saí para acalmar
os meninos. O ônibus já nos esperava e durante todo o
trajeto até o Alagados eles não disseram uma só palavra.
Ainda naquela noite, voltei para dar queixa e seguir o processo até ser informado que os responsáveis seriam chamados na junta disciplinar da corporação deles.
Naqueles três dias de Femadum, eu não fui o único a apanhar. Outros policiais civis e militares apanharam, e a
população, mais ainda. Toda essa pancadaria no Pelourinho deu na música “Haiti”, de Caetano e Gil. Ao ouvir essa
música, não se esqueçam de mim.
—
Passados o susto e a depressão em que a gente entra
depois de uma coisa assim, seguimos nossa trajetória. A notícia era de que haveria um encontro de meninos e meninas de rua e de que o MNMMR (Movimento
Nacional de Meninos e Meninas de Rua) tinha covidado
a comunidade para participar. Iriam crianças da Escola
Luiza Mahim, da Associação de Moradores da Mangueira e do Bagunçaço.
—
Essa notícia chegou a nós com uns oito meses de antecedência, pois a comissão de crianças e adolescentes do
Alagados que faria parte do encontro nacional deveria ser
escolhida pela comunidade e, ao final, seriam só cinco
meninos do Bagunçaço. Nessa época, as meninas já participavam de atividades fora da comunidade, mas viajar
Primeiros shows
151
para fora era complicado. Fomos escolhidos eu, Adson na
caixa e no vocal, Jaquinho na guitarra e no vocal, Bira no
repique, Nido na marcação de frente e Bobo na marcação
de fundo. Eles eram bons no que faziam, e a meninada
queria estar bem representada, então não foi difícil escolher, havia um consenso entre eles.
Era a primeira vez que eu e os meninos saíamos do estado.
Os adolescentes das outras entidades foram acompanhados por Leninha, companheira de luta e cofundadora
da Escola Luiza Mahim, e por uma professora da Associação de Moradores da Mangueira. Foram cinco dias de
encontro, e nós só nos apresentaríamos no terceiro dia,
porém, logo no primeiro, um grupo de Recife não chegou e fomos chamados para substituí-los. A maioria dos
grupos era formado por muitas crianças, que tocavam,
dançavam, faziam coisas de circo e tinham figurinos
exuberantes. Nós já não tínhamos mais aquele figurino
e usamos a camiseta recebida no evento. Fomos levados
por uma van e quando vimos estávamos na Esplanada
dos Ministérios, e um trio elétrico nos esperava. Ironia
da vida, era a primeira vez que aqueles baianos subiam
num trio elétrico. Fomos apresentados como meninos
da delegação da Bahia, e o locutor ainda explicou que
estávamos ali para ajudar, pois a banda que estava prevista para o trio não chegara de Recife; ele mal sabia que
aquele quinteto estava mais que preparado. Após afinação e equalização, Adson explicou que éramos dos Alagados e que o Grupo Cultural Bagunçaço, a Escola Luiza
Mahim e a Associação dos Moradores da Mangueira formavam a comissão que representava a Bahia. Assim,
Jaquinho soltou os acordes e cantaram Abolição, uma
música gravada por Margareth Menezes e Elba Ramalho que falava do povo pobre e negro da cidade. Depois
improvisaram a canção tema do encontro, e a Esplanada
inteira cantou com eles. Estava tudo bem organizadinho,
152
Bagunçaço
deveríamos cantar três músicas, os adultos fariam os
discursos e talvez no final mais uma música. Mas onde já
se viu dar um trio elétrico a um baiano e tentar ter algum
controle sobre o que acontece? Os meninos e o público
se empolgaram e fizemos uma minimicareta. As letras
eram sempre engajadas, e daquele dia em diante eles
ficaram conhecidos como “meninos da Bahia”. Eram
chamados para tudo que tinha música no meio.
No encontro, havia muitas oficinas, crianças de comunidades periféricas de todo o Brasil, e nós, educadores,
fomos distribuídos como monitores de diversas atividades. Então ficávamos juntos com nossos educandos
nos alojamentos e nas refeições. Nas atividades, éramos bem pulverizados, e isso foi importante, pois nos
deu a oportunidade de conhecer um pouco da realidade
das crianças no Brasil inteiro. Lembro que, monitorando
uma certa oficina, conheci uma menina de 14 anos de
Manaus. Seu biotipo era indígena e ela morava numa
comunidade ribeirinha. Aprendi muito sobre as dificuldades do povo dela. Não havia tiroteio, drogas nem policiais corruptos, mas havia briga por terra, dificuldade de
atendimento médico e muita mortandade infantil. Também conheci um gauchinho loiro de olhos azuis, muito
bom menino, que se chamava Leandro (faz tanto tempo,
mas veio esse nome na minha cabeça). Ele teve sangramento nasal por conta da baixa umidade de Brasília. Isso
aconteceu logo no primeiro dia da oficina e, como havia
um oficineiro e dois monitores, fui incumbido de levá-lo
até a enfermaria. Sem achar seus educadores, fiquei lá
umas três horas com ele e daí nasceu uma amizade. O
que mais me marcou foi que no último dia, nas trocas
de endereço, Leandrinho me deu o contato da prefeitura.
No momento eu brinquei:
— Sua cidade é tão pequena que é o prefeito quem
recebe as cartas?
Primeiros shows
153
154
Bagunçaço
Ele me chamou no canto e disse:
— Tio, eu moro na rua, mas os educadores são desse
projeto da prefeitura.
Eu confesso que perdi o chão, negro baiano vivendo
numa cidade com 80% de população negra nunca imaginaria um loiro de olhos azuis menino de rua. Eu estava
aprendendo sobre o Brasil, sobre meus próprios preconceitos, sobre minha própria autoestima. Os meninos
do Bagunçaço, negrinhos anis, que, por mais pobre que
fossem, tinham casa e família, e um menino que parecia
mais com os atores mirins da Globo era morador de rua.
Vivendo e aprendendo...
Ao final, abracei todos os meus amigos, abracei mais
minha educanda índia, e pedi a meus ancestrais, que
aqui chegaram e foram tão bem acolhidos pelos ancestrais dela, que a iluminassem. Dei um abraço bem forte
no gauchinho, pedi que Kaiala (Iemanjá), mãe dos rejeitados, o guiasse, pois, mesmo tendo sangue dos que
escravizaram, vivia como os netos dos escravos.
Meses depois, o MNMMR disponibilizou duas vagas
para um curso popular de pedagogia. Entidades locais
se reuniram e decidiram enviar Leninha e Fafá (Maria de
Fátima). Fafá era funcionária pública do centro cultural
que o estado mantinha na nossa comunidade e, como
era assistente social e militante dos movimentos populares, era a grande incentivadora do florescimento e da
regularização das organizações comunitárias. Vinda de
Belém, menina ainda participou da ajuda aos estudantes no Araguaia, e, já assistente social, participou do
Projeto Rondon. Na sua sabedoria de ativista madura,
abdicou de sua vaga para me dar essa oportunidade,
pois sabia que eu ainda era um menino. E disse que, se
eu tinha escolhido cuidar de outros meninos e meninas
Primeiros shows
155
tinha que ter alguma formação. Não tenho como agradecer a Fafá, pois foi nessa formação que realmente
me descobri educador, que encontrei um sentido social
e político para que até então eu fazia, mas não sabia
explicar o porquê e nem como.
O curso aconteceu entre Sergipe e Alagoas, o que ampliou
meu conhecimento sobre meu país. Foram quatro módulos no decorrer de um ano; cada encontro durava duas
semanas. O primeiro módulo se chamava “Quem somos”.
Psicólogos e terapeutas nos deram a oportunidade de nos
confrontarmos com nossa infância e de questionarmos
o que nos motivava a desenvolver nossa ação social. Dos
vinte participantes, seis se desligaram, e quatro deles
escreveram carta aos remanescentes agradecendo o
convívio e reconhecendo que realmente não era aquilo
que queriam. No segundo módulo, fomos apresentados
a pedagogos famosos, a tudo que se tinha estudado ali
sobre o assunto. Além de Rousseau e Piaget, eu descobri Freire, por quem me apaixonei. Ele falava coisas em
que eu acreditava, coisas que eu via que podia aplicar e
que, de certa forma, já aplicava sem saber. Acho que se o
tivesse conhecido antes, não teria exagerado no famoso
discurso sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente.
O terceiro módulo foi sobre política e história do Brasil.
Tive vontade de processar o Estado, pois a escola não
tinha me ensinado a verdade, e os fatos estavam ali.
Pude entender a dívida externa brasileira, os partidos e
suas origens. No quarto e último módulo, fomos conhecer organizações similares e colocar em prática aquilo
que tínhamos aprendido. Posso dizer que fiz uma universidade popular, comprimida, mas de qualidade excelente.
Claro que fiquei louco para saber mais e passei a devorar livros sobre o assunto. Hoje sou grato ao MNMMR e
156
Bagunçaço
sinto falta de cursos tão abrangentes em conteúdo e que
possam juntar no mesmo espaço gente de vários “brasis”.
Voltando de Brasília e não podendo ficar mais no barraco-palafita (meio cedido e meio alugado na época dos
“dólares inextinguíveis”), o grupo precisava encontrar
um novo local para ficar. Além disso, estávamos crescendo; crianças de outras localidades no vasto Alagados
estavam formando suas bandas de lata e me procurando.
Agora já havia a Big Surf, a Futuro do Mundo, a Futuro da
Criança, a Futuro dos Alagados e, claro, a Bagunçaço.
Os meninos, entrando na adolescência propriamente dita,
já não tinham tantas brigas com as meninas, e, sim,
paquera. Eu, que já tinha deixado o trabalho de padeiro
logo no começo do Bagunçaço, decidi que, já que estava
no inferno, abraçaria logo o diabo, e me desliguei do juizado, pois não suportava o assédio na comunidade — era
acordado de madrugada para ir ao modúlo policial resolver problemas com meninos! Agradeci muito o aprendizado lá e mantive a parceria, sempre intercambiando
ações das crianças dos Alagados e do Poder Judiciário.
A Futuro dos Alagados era formada por meninos que
ainda moravam em barracos-palafitas. Eles moravam
bem no fundo da comunidade, bem perto das ruínas do
Cine Teatro Alagados. Espero que ainda lembrem que fui
parar no Uruguai na trágica mudança de casa, quando
o aterro dos Alagados acontecia, nas casas provisórias,
que, ao final, eram bem mais salubres que as definitivas
que recebemos. Pois bem, a casa provisória onde tinha
morado por mais ou menos um ano, onde tinha conhecido dona Teresa e seus filhos, ficava bem no pé da Igreja
Nossa Senhora dos Alagados. A igreja havia sido inaugurada um ano antes, quando eu, ainda na ponte lá de
casa, que ficava na margem oposta ao Uruguai, assisti
João Paulo II chegar de helicóptero. Hoje posso entender
Primeiros shows
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a grandeza do evento, um papa a tão poucos metros de
mim, logo ali do outro lado! Mas na época o helicóptero
chamou mais a minha atenção.
Além do papa, da santa (que tinha um pé no seco e outro
na lama e uma lata de água na cabeça) e do helicóptero,
a novidade foi a inauguração do Cine Teatro Alagados.
Na minha primeira ida ao cinema, assisti a um filme dos
Os Trapalhões. Em pleno verão, quase 40 graus, e meninos, senhoras, pescadores, todos vestidos de agasalhos para um frio glacial numa fila enorme. Era o efeito
do ar-condicionado central, um novidade que colocou
o Alagados em rebuliço, acho até que a maioria ia para
ver o ar-condicionado e descobria o cinema.
O governo mantinha o cinema funcionado gratuitamente.
Havia muitos filmes bons, e também toda sorte de atividade artística; muitas crianças eram atendidas. Como
era de se esperar, mais tarde o teatro foi abandonado e
sucateado, e nunca mais abriu, tornando-se uma ruína.
Metrô, Isael, Jamira e Luis, na época crianças atendidas
no grupinho Sapinho Colorido, são hoje expoentes da
luta por uma vida digna nessa comunidade. Lourdinha,
Leninha, Hélio, Raimundo e Jaciara, entre outros, envolvidos no grupo jovem da igreja criada na época, também
são militantes da mesma luta por dignidade.
—
O governo tem uma dificuldade de aprender que dar oportunidade a uma comunidade faz diferença. O cinema estava
em ruínas, mas os adultos que, quando crianças, foram
beneficiados por ele por meio de ações arte-educativas,
são hoje, de longe, uma nata de pessoas comprometidas
com a luta social.
Bem, como eu vinha dizendo, a Futuro dos Alagados,
que era formada por meninos de ali de perto do cinema
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Bagunçaço
abandonado, estava ensaiando lá dentro. O lugar era
insalubre. Não tinha telhado, era cheio de lixo, e o mato
era uma espécie de banheiro público. Não sei como
aqueles meninos conseguiam tocar ali.
Como não tínhamos mais o barraco-palafita, tivemos
uma reunião no Espaço Cultural de Alagados, que era um
anexo mantido pelo governo — isso depois de anos de
lutas dos personagens que descrevi anteriormente. Um
deles, Isael Barros, foi eleito pela comunidade gestor cultural do espaço, numa eleição inédita até então, pois esse
tipo de cargo sempre fora ocupado por indicação política.
Na reunião com todas as bandas, foi exposta a situação
e, a banda Futuro dos Alagados sugeriu limpar o Cine
Teatro e usá-lo como sede. O local era bem grande, mas
naquela época já éramos umas 70 pessoas. Quero dizer,
eu, Bia e 68 meninos e meninas. Então num sábado, com
carrinho de mão, pá, enxada e muito suor, começamos
a limpeza. Gastou-se também o domingo e ainda trabalhamos durante a semana, nos revezando com os horários disponíveis, pois queríamos que no final de semana
seguinte estivesse tudo limpo. Mas após uma semana só
20% do local estava limpo. Ainda assim, só o lixo mais
leve, ainda havia sofás velhos (o lugar era um cemitério de sofás) e muita terra. Decepcionados, paramos o
trabalho e recorremos à Limpurb (empresa de limpeza
pública da cidade). Quando os técnicos foram analisar e viram o tamanho do trabalho que havia sido feito
pelas crianças, abraçaram a nossa luta. Eles limparam
e lavaram toda a ruína com espuma perfumada e 15 dias
depois do início da apropriação das ruínas do Cine Teatro
fizemos a inauguração com os ensaios das bandas.
No Cine, ficamos um ano mais ou menos, e foi nesse
período que Dimitri reapareceu e disse que uma TV de
fora do país estava fazendo um documentário na Bahia
com personagens famosos e que ele tinha falado do
Primeiros shows
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Bagunçaço. Eu não achei que eles viriam, pois Caetano Veloso, Magareth Menezes, Gilberto Gil, Carlinhos
Brown, entre outros, eram seus entrevistados, então
não via muito onde nos localizar, mas eles vieram. Eram
da BBC de Londres. Segundo Dimitri, uma TV bem conceituada. Filmaram a banda e depois disseram que queriam me filmar falando da comunidade. Fui mostrando
tudo pra eles e falando, mostrei os barracos-palafitas,
falei da vida na comunidade.
O certo é que eles não pagavam, pois era um documentário, mas fizeram uma vaquinha e doaram 1.000 dólares
para o grupo. Olha os dólares voltando aí, gente! Dessa
vez, não houve briga e logo marcamos uma reunião para
decidir o que fazer. Se reunir para decidir já era trivial...
Decidimos usar o dinheiro para estruturar melhor o
grupo. Compramos uma máquina de escrever, fizemos
mais instrumentos reciclados, alugamos um espaço
mais perto do Jardim Cruzeiro, pois não podíamos guardar coisas de valor no Cine, mesmo depois que, com esse
mesmo dinheiro, colocamos portões.
—
As ruínas do Cine Teatro eram um lugar maravilhoso, pois
já havia um palco, o espaço para a plateia sem as cadeiras... Era uma perfeita casa de show! Mesmo sem o teto,
a acústica era maravilhosa, e havia a sala onde ficava o
projetor, no primeiro andar, que era bem grande. Usamos
esse lugar para ensaios menores e reuniões, e o palco
e a plateia, embaixo, para apresentações que aconteciam todo final de semana. Durante um ano ficamos ali,
o grupo foi crescendo e precisávamos muito de continuar o reforço escolar e outras atividades, como dança,
teatro, reciclagem... Essas coisas não caberiam na casa
de Bia, mesmo porque agora tínhamos uma superaparelhagem de som emprestada por meu amigo Ró, máquina
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Bagunçaço
Primeiros shows
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Bagunçaço
de escrever, ventilador, microfones, fichários das crianças, e essas coisas não podiam ficar na ruína, pois não
era seguro. Então tínhamos que levar tudo no carrinho de
mão do depósito que alugamos perto da casa de Bia até
as ruínas. Era muito trabalhoso, levar toda a estrutura
pela manhã e trazer tudo de volta à noite. Éramos uma
ONG itinerante sobre carrinhos de mão...
O trajeto era do Jardim Cruzeiro até o fim de linha do Uruguai, 1,5 quilômetro, mais ou menos. Certo dia, encontramos padre Clóvis na rua, e ele, ao ver uma carreata de
quatro carrinhos de mão, perguntou se estávamos nos
mudando. Na conversa que se seguiu ele foi informado
de que fazíamos essa viagem quase todo dia. Com sua
santa calma, disse que achava aquilo uma via crucis e que
talvez, se quiséssemos, ele pudesse arrumar um lugar
na Paróquia. Não uma sala do centro social, como era
antes, disponibilizada só para reuniões, mas um cantinho no novo auditório. Ficamos empolgados, mas quando
fomos lá olhar vimos que não dava, pois era apenas um
dos camarins do auditório. Não cabiam nem os instrumentos e o resto de toda nossa tralha. Curiosos, como
sempre, os(as) meninos(as) foram explorando o espaço
e descobriram uma porta no primeiro andar, na parte de
trás da construção, que estranhamente não tinha escada
de acesso. Perguntamos ao padre Clóvis como se chegava
lá, se a entrada era por dentro, e ele explicou que aquele
anexo no primeiro andar na parte traseira do prédio não
estava na planta, mas ao construírem viram que era possível e o fizeram. Durante a obra, uma das salas lá em
cima servia de depósito de material, pois o difícil acesso
era uma proteção a mais, mas agora precisavam rebocar e construir uma escada para lá. Os meninos conseguiram uma escada e fomos dar uma olhada. Lá de cima,
tínhamos uma vista da parte de trás da comunidade e,
logo abaixo havia um grande terreno baldio — as ruínas
Primeiros shows
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da creche Anísio Gonçalves, que agora, porém, eram mais
usadas por drogados, e o local acabou sendo apelidado
de Cracolândia. Ao ver aquele terreno todo ali e aquele
prédio enorme abandonado, eu percebi como a vida era
irônica, pois tempo estávamos nos alojando num espaço
pequeno que só nos cabia por conta do coração de padre
Clóvis, que era enorme. Padre Clóvis não fez objeção e em
um mês, com uma perigosa escada improvisada, estávamos, mais uma vez, num cantinho também improvisado.
Eu tinha um amigo chamado Roi que emprestava um
poderoso equipamento de som para os ensaios de
domingo, mas agora na paróquia só precisávamos carregar o equipamento.
Uma vez no espaço, a Paróquia foi reformando o local,
chamado de Casa do Bagunçaço. O espaço em forma de
L se dividia em cinco pequenos cômodos: um escritório,
uma sala de convivência, um banheiro, uma cozinha e
um estúdio. Exceto o banheiro, que era bem menor, cada
cômodo não excedia 18 metros quadrados. Era uma ONG
quitinete ou ongnete, como chamávamos.
Com o tempo, fomos ocupando outras partes ociosas
da Paróquia, quase favelando aquele espaço tão bem
arquitetado, além de usarmos o novíssimo auditório para
batucadas memoráveis.
Para continuar contando esse “causo”, preciso voltar
ao dia em que Jorginho reinventou a roda, amarrando
sua lata de manteiga na cintura com um pedaço da
calça jeans que ele transformara em bermuda. Aquela
saída apoteótica da escuridão da casa dele para o sol
de rachar da rua foi realmente arrebatadora para todos,
porém naquele dia, enquanto os meninos rodeavam ele
na quentura da descoberta, eu logo perdi o interesse
pela novidade. Além de ser um pouquinho mais velho, eu
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Bagunçaço
já tinha 21 anos, um menina muito bonita saiu rindo da
confusão. Achei que ela o tinha ajudado na descoberta.
Era sua irmã mais velha, tinha entre 17 e 18 anos, nos
olhamos, fiquei um pouco distraído, mas a urgência da
apresentação me trouxe de volta à realidade. Eu soube
depois que ela tinha um namorado, mas ainda assim
não nego que fiquei caidinho. Ela não sabia, aliás ninguém sabia, mas ela estava grávida de três meses do
namorado, e como resultado uma grande confusão se
armou na família de Jorginho. Eu fiquei triste, pois ela
era tão bonita, tinha tanta coisa para viver, e grávida
assim na adolescência... O desenrolar da coisa acompanhei de longe, mas quando o menino nasceu ela já havia
sido colocada para fora de casa e tinha ido morar num
pequeno barraco ao lado do meu. Eu já tinha 22 anos
e ela, 18 ou 19. Sua vida era muito difícil, mãe solteira
tão novinha! Um dia, o vizinho que alugara o quarto para
ela me disse que a criança estava chorando sozinha em
casa. Fui lá. Era um menino, um menino lindo, e estava
molhado. Eu não sabia muito bem o que fazer, mas tirei
aquela fralda molhada e o enxuguei com um pano que
encontrei. Ele devia ter uns seis meses, lembro como se
fosse hoje. Ele me olhou de uma forma que eu não consegui deixá-lo sozinho, então fiquei brincando com ele
até ela chegar. Já nos conhecíamos de bater papos rápidos, ela me agradeceu, se desculpou e eu fui embora. A
partir daquele dia fomos ficando mais próximos e tivemos um envolvimento, desses muito fortes, durou um
mês, mas foi intenso. Só que tinha a pressão da minha
família, que não achava certo por ela não morar com
a família, essas coisas que se vê em todas as famílias
independentemente da classe social. Por fim, ela não
quis mais seguir, embora estivéssemos bem envolvidos e se mudou para outro lugar. Eu fiquei triste, já me
sentia pai do pequeno Elvis desde aquele primeiro olhar
Primeiros shows
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dele, sabia como era a comunidade e sabia que sem pai
aquele menino teria dificuldades e provavelmente seria
um pai precoce e irresponsável. Um mês depois, conheci
Bia, como consequência do meu famoso sermão sobre
o ECA. Até aí, tudo bem, eu era jovem e a vida estava só
começando no que dizia respeito aos relacionamentos;
eu estava me apaixonando por Bia quando uma notícia bomba ecoou nos Alagados. Bem antes de a bomba
ecoar, eu, passando pela rua, notei que senhoras que
antes me cumprimentavam agora me olhavam com certo
desprezo. Claro, como as mulheres são muito solidárias,
elas imaginavam que eu tinha me aproveitado da menina
mãe solteira e estava desfilando com a menina de família, não sabiam como a coisa tinha se dado.
A própria Ana foi me chamar na casa da Bia e me deu
a notícia, falou e saiu sem deixar eu processar a informação. Confesso que não fiquei feliz nem triste. No primeiro instante, não sabia se era verdade, não sabia se
contava para Bia, mas assim que voltei, contei tudo para
ela, que nem sabia que pouco antes de conhecê-la na
paróquia eu tinha tido um relacionamento com outra
menina da vizinhança.
Ao chegar em casa, contei para minha irmã; dividimos
um útero, não havia porque esconder. Minha família
adorava a Bia e não gostava da Ana, e logo questionaram
a paternidade da criança, mas eu, sabendo como a Ana
era desaforada, sabia que ela não diria que era meu filho
sem ser e já me imaginava jogando bola com ele. Estava
em êxtase, me sentia homem, me sentia reprodutor, me
sentia um sacana, um irresponsável, mesmo não tendo
me relacionado com as duas ao mesmo tempo, me sentia um traidor, me sentia pai de Elvis de novo, pois ambos
teriam que crescer juntos, sendo meninos do bem.
Questionava-me como podia ter feito aquilo com aquela
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Bagunçaço
Primeiros shows
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menina, como podia transformá-la novamente em mãe
solteira? Sentia-me confuso, e isso era premonição da
confusão que vinha pela frente.
Éramos todos vizinhos, e eu falava tanto de responsabilidade com os meninos e as meninas que tive que fazer
uma reunião para explicar tudo.
Foi um período turbulento e tentei manter meu relacionamento com Bia. Ana, com a gravidez e talvez o medo
de mais uma vez ser abandonada, pintou o sete, o quatorze e o vinte e um na minha vida. Por três vezes foi preciso intervenção policial. Sua família curiosamente me
ajudou muito, pois eu cumpri com todas as obrigações
de pai, mas claro que à distância. Quando a criança nasceu, coloquei o nome de Josinan, a mistura de Joselito e
Ana; um filho é um presente sagrado, não importam as
circunstâncias. Ao vê-lo pela primeira vez no berçário,
Josinan teve o dom de me transformar para sempre, pois
algo nasce junto com a paternidade que nos transforma
para melhor. Dois meses depois que meu filho nasceu,
Lúcia, mãe de Jorginho e Ana, entregou o menino na
minha casa e eu me tornei pai solteiro.
Acho que fui o único caso de pai solteiro com um filho de
dois meses em todo o Alagados. Aos poucos, Ana foi se
reaproximando, pois tínhamos um filho para criar, mas
toda a confusão nos deixou bem distantes para um relacionamento. O Bagunçaço não acabou, e as crianças me
ajudavam. Jorginho tirou tudo de letra e foi meu cúmplice durante todo o processo. Josinan era levado para
todas as atividades, as crianças adoravam cuidar dele,
era o novo mascote do Bagunçaço.
Quando Josinan estava maiorzinho, eu sempre dormia na
paróquia quando o grande equipamento de meu amigo
era emprestado para a gente. Josinan, como primeiro
neto, agora tinha toda a atenção da avó, da tia e dos tios,
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Bagunçaço
e eu sempre trazia Elvis para ficar com ele, e, como ele via
Josinan me chamar de pai, já me chamava de pai também.
Um dia fui chamado na escola para ajudar a resolver um
problema do sumiço de dinheiro na bolsa de Ivonete,
pedagoga e coordenadora da Escola Comunitária Popular
de Alagados, que funciona no prédio onde fizemos a primeira reunião, na fundação do grupo. Minha experiência
no juizado de menores ajudava muito nessas situações,
porém, ao localizar o furto e identificar o adolescente,
fomos à casa dele. Eu, Ivonete e uma professora conversamos com a mãe do garoto, e ela, embora decepcionada,
pareceu compreensiva. Fomos embora e, ao entardecer,
tivemos notícia de que a mãe havia espancado o adolescente e colocado ele para fora de casa. Um colega
dele mostrou onde ele estava; nós o encontramos com
o braço muito machucado, e quando me avistou com a
diretora nos olhou com muita raiva. Tínhamos feito o que
era correto, falamos para a mãe porque era importante
ela estar a par do comportamento do filho, e depois de
muito conversar levamos ele a um posto médico. Seu
braço foi imobilizado e agora não sabíamos o que fazer
com o menino. Por fim, como eu ia dormir na paróquia,
resolvemos que ele ficaria ali mesmo e na segunda-feira
resolveríamos. Assim, ele inaugurou o que chamaríamos mais tarde de Casa do Bagunçaço, um espaço que
acolhia, com o apoio da paróquia, que não tinham onde
morar, porém só jovens dos Alagados. A nossa ideia era
que, embora a criança estivesse com o laço cortado
com a família, ela não devia ter os laços cortados com a
comunidade. A coisa, mesmo experimental, funcionava,
pois, com o apoio da escola comunitária e podendo manter o cotidiano na mesma comunidade, os pais depois da
raiva apareciam e não acreditavam que aquele mesmo
menino rebelde estava disciplinado, com o tempo faziam
as pazes e a criança voltava para casa.
Primeiros shows
169
—
Muitos jovens passaram pela Casa do Bagunçaço, e,
além de mim, houve vários outros adultos que, em épocas diferentes, moravam ali e acolhiam as crianças e os
adolescentes. Alguns dos jovens que ali chegaram com
15 anos se tornaram maiores de idade e, assim, ficavam responsáveis pelos demais. Uma lembrança gostosa foi a chegada de Jane na Casa do Bagunçaço, pois
o que o toque feminino não fizer nada mais faz. Jane era
merendeira da escola e, depois de muito sofrer violência
doméstica, fugiu de casa levando apenas um dos cinco
filhos. Durante muito tempo, ela teve que se esconder
do marido violento, mas acalentava a ideia de reunir os
outros quatro que ainda sofriam nas mãos do perverso.
Um dia, com problemas de aluguel, ela decidiu aceitar
meu convite e ir morar na Casa do Bagunçaço. Logo seus
filhos vieram e se juntaram aos quatorze que já moravam
ali. Essa época foi muito boa, pois Jane tinha um coração
enorme e conseguia acolher todos debaixo de sua asa.
Josinan já completara 3 anos quando recebi uma ligação
de Dimitri. Nesse tempo eu trabalhava algumas noites
na sua casa como garçom dos saraus promovidos por
ele, assim minhas responsabilidades de pai podiam ser
cumpridas. Na ligação ele marcou comigo um almoço,
pois iria receber uma delegação de estrangeiros e queria
uma pequena apresentação dos meninos no Teatro da
Estrela, no seu Solar Santo Antonio.
Quando cheguei lá, havia uma moça estrangeira, e eu
achei que ela fosse a responsável pela delegação do
evento, mas não era. Era uma conhecida de Dimitri que
chegara da França e ia almoçar com a gente. Fomos
apresentados; ela se chamava Birgit — bem, eu não
acertei chamar logo de cara, Brigite era mais fácil. Acertadas as coisas para o evento, Dimitri me perguntou se
era possível eu levar a Birgit para conhecer o Bagunçaço.
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Bagunçaço
Eu estava um pouco atarefado, mas não podia negar
esse favor. Então já voltei do almoço com ela, e descobri enquanto falávamos em portunhol que ela era alemã.
Perguntei de que Alemanha ela era — eu sempre gostei
de ler, vocês sabem disso, assim sabia um pouco da história recente europeia —, e acho que isso a impressionou,
pois ela respondeu que da Oriental, mas que já estava
havia dois meses no Brasil e ninguém havia perguntado
isso. Eu queria saber muito sobre sua cultura; era uma
pessoa criada no comunismo e isso me fascinava. Da
visita ao Bagunçaço, fomos à praia da Boa Viagem. Eu
estava celibatário desde a confusão das irmãs dos meninos do Bagunçaço; acho que ter perdido as duas namoradas e ficado com as crianças me deixou traumatizado.
Mas aquela alemã tão linda e inteligente e com modos e
sotaque francês me impressionou!
Sem a pressão de Dimitri, eu e Birgit nos encontramos
outras vezes. Ainda bem que Salvador é uma cidade
turística e lugar não falta para você levar os visitantes!
Ao cabo da rota turística, estávamos namorando e claro
que a novidade nos Alagados era eu e uma loira de olhos
azuis para cima e para baixo. Ela ficava por lá e todos já
a conheciam. Uma vez, na lavagem do Bonfim ela se perdeu nas imediações dos Alagados, e foram levar ela lá na
porta, entregaram para minha mãe dizendo:
— Os caras não roubaram ela porque viram que era a
gringa de Pim.
Quando a Birgit foi embora, voltei à minha vida normal.
Nos correspondíamos por cartas, fax e ela me ligava toda
semana. Numa dessas ligações ela me chamou para ir a
Paris conhecer seu mundo. Fiquei assustado; gostava
dela, mas tudo que ficava depois de Feira de Santana era
longe. Imagine pegar avião! Precisou que o padre Clóvis
e o Dimitri, que nunca haviam se encontrado, mas eram
meus conselheiros, me convencessem a ir.
Primeiros shows
171
Metade do Alagados estava no aeroporto, era tudo uma
novidade. Eu nunca tinha pegado avião e meu portunhol
vinha do LP dos Los Panchos que meu pai ouvia todo fim
de semana. Voei até Recife e de lá até Bruxelas, depois
de Bruxelas para Paris em plena primavera.
Deixei a casa do Bagunçaço sob o regime de Fidel, pois
minha amiga Alicia Sanabria, cubana e psicóloga, que
estava por um tempo em Salvador e ficou tomando conta
dos meninos. Nós a tínhamos conhecido na segunda viagem a Brasília, além de ter contado com outra amiga
Paula Rezende, na época, para organizar toda a viagem.
A Birgit diz que fiquei uns cinco dias em choque, mas
de Alagados a Paris assim direto era demais. Eu achava
que as ruas ou o mundo estavam com a inclinação acentuada, e as ruas também eram muito silenciosas; eu
conseguia ouvir o som do estômago de todo mundo. Não
podia tomar três banhos por dia e não entendia nada
que ninguém falava.
Birgit trabalhava na Casa das Culturas do Mundo como
produtora cultural e quando eu avisei que estava levando
uma fita cassete da banda Bagunçaço ela me advertiu de
que lá na Europa tudo tinha que ser planejado antes e que
não sabia bem a quem mostrar aquele monte de meninos batendo lata. A fita tinha sido gravada pelos próprios
meninos. Era daquelas de se gravar o chão, o céu, se ouvir
o áudio, mas não se conseguir ver o que estava acontecendo. Para eu não ficar enchendo o saco, ela transcodificou a fita cassete e eu a levava para tudo que era lugar.
Numa dessas reuniões de trabalho, havia um homem que
produzia em Paris um encontro de crianças francesas, e
Birgit falou para ele que eu trabalhava com crianças. Ele
perguntou se tinha fotos e eu tinha; ele perguntou se eu
tinha áudio, e eu tinha, tinha uma fita de videocassete. Ele
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Bagunçaço
nos levou para uma sala e gostou muito, perguntou se era
possível levar as crianças ao seu evento no próximo mês,
mas infelizmente não, por causa de passaporte. As crianças e seus pais muitas vezes não tinham documentos. Ele
disse que tinha um amigo que faria algo uns três meses
depois e que seria bom conhecê-los.
Uma semana mais tarde, conhecemos um casal de produtores que, ao final da reunião, acertou de ir ao Brasil
imediatamente para conhecer o grupo e, se gostassem,
os levariam para a Europa.
Enquanto eu vivia meu clipe romântico em Paris, a banda
seguia para Brasília para participar do Fórum Internacional da Luta Contra o Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes. Outros educadores acompanhavam os meninos.
Lá encontraram o AfroReggae e um carinho recíproco
nasceu entre os grupos. Mas um incidente quase maculou
a reputação do Bagunçaço. Todas as delegações brasileiras estavam hospedadas no Estádio Manuel Garrincha.
A delegação do Bagunçaço era de maioria masculina e lá
ficaram muito amigos da delegação do Ceará, formada
só por meninas bailarinas. Assim, com uma filmadora e
máquinas fotográficas, os meninos dos Alagados passavam muito tempo no dormitório das meninas cearenses, e
uma das monitoras do corpo de baile denunciou que eles
haviam fotografado e filmado as meninas nuas.
Não se tratava de abuso sexual, porque todos tinham a
mesma idade, entre 13 e 15 anos, mas os mais conservadores formaram uma comissão investigadora e só não
foi dada uma queixa na polícia para não comprometer a
imagem do fórum internacional. Pessoas como Nena Lentini, responsável da USAID, e Rita Ippolito, coordenadora
do POMMAR, saíram em defesa dos meninos do Bagunçaço. Essas mulheres maravilhosas foram responsáveis
pelo primeiro financiamento de um projeto do Bagunçaço. A Nena, antes mesmo da implantação do projeto,
Primeiros shows
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em uma visita a Salvador, nos conheceu e acreditou que
aquele movimento espontâneo poderia aportar um projeto financiado pela USAID. Sobre a denúncia, só sabemos que foram ao nosso alojamento e levaram todas as
máquinas fotográficas e a filmadora para perícia.
Eu fui despertado na madrugada parisiense com o problema e quando me contaram a história fiquei muito
indignado. Mesmo por telefone, afirmei que, conhecendo
bem os meninos, sabia que eles jamais se comportariam
desse jeito, mas que talvez tivessem se enamorado das
meninas o que era natural entre adolescentes.
Dois meses depois, o material fotográfico e a filmadora
do Bagunçaço foram devolvidos com um pedido de desculpas, pois não havia nada de pornográfico nas fotos
nem no vídeo, e sim bate-papo de adolescente, desfile
de moda e demonstração de afeto e amizade.
Quando voltei de Paris, tinha muita novidade, não parava
de contar para todo mundo que os garis lá eram loiros de
olhos azuis. Trouxe até fotos para não me chamarem de
mentiroso, mas trouxe uma notícia que era ainda mais
inacreditável: em um mês chegaria uma produtora de lá
para nos conhecer e, se ela gostasse, em julho daquele
mesmo ano iríamos todos para a Europa.
Quando a produtora chegou, já estávamos preparados,
tínhamos gravado uma demo com mais qualidade e organizamos um ensaio na quadra da paróquia. Havíamos
convidado amigos e a comunidade sempre vinha. A produtora só passaria três dias em Salvador, dois para gravarmos quatro faixas num estúdio e para eles assistirem
um ensaio da banda na comunidade. Quanto ao estúdio
foi tudo bem, mas no domingo do ensaio uma chuva atrapalhou. Nossos parentes tinham ido e, como não dava
para saber quem era parente e quem era conhecido,
ainda me lembro do comentário da produtora:
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Bagunçaço
Uma casa para o Bagunçaço
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— Poxa, eles gostam mesmo de vocês, estão dançando
na chuva!
Não sabendo que ali havia uma quantidade quase absurda
para os padrões europeus de irmãos, irmãs, primos,
cunhados e toda sorte de achegados da família... Só os
meninos da casa do Bagunçaço eram quase vinte!
Produtora satisfeita, era hora de organizar a viagem.
Seriam 45 dias entre julho e agosto na França, em
Luxemburgo e na Bélgica. Eu já era o mais experiente e
já dizia o que podia e não podia fazer. Por exemplo, não
podia coçar o saco na hora que bem entendesse. Lembro
do meu saudável Sem Freio me olhando como se perguntasse: “E faz o que então?”
Primeiros shows
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modernas nos esperavam, pois todo o sobe e desce pela
Europa seria feito nelas. Seguimos da Bélgica direto para
Luxemburgo, onde ficaríamos um terço da viagem, quinze
dias, pois daríamos oficinas para várias escolas, asilos e
orfanatos para depois fazermos um carnaval. Estávamos
alojados num internato, mas não havia alunos, pois eles
estavam de férias. Era uma escola muito grande; num
só dormitório havia dezenas de camas. Ficávamos todos
juntos, mesmo quando ofereciam espaço separado para
as duas meninas e a pedagoga. Não tinha jeito, todos queríamos ficar juntos, estávamos num mundo diferente e
nos sentíamos mais seguros juntos.
Estávamos decolando com nossas latas para ganhar o
mundo: eu, Bira, Sergio, Leo, Paulo, Adson, Thyá, Serginho (Capacete), Sem Freio, Gessy, Nido, Moises, Robson,
Astrogildo, Irlan, Nominho, Sayonara (pedagoga) e Luis
Amado (educador).
O Bagunçaço fora fundado havia cinco anos, e aqueles
meninos e meninas estavam em plena adolescência,
mas havia um senso de pertencimento e uma sinergia
que contagiavam por onde passávamos. Quando não
conhecemos o outro, quando não sabemos o que esperam de nós, somos espontâneos e isso é uma raridade na
Europa. Lembro que, na primeira escola em que fomos,
o professor fez as apresentações formais e ficamos
abismados, pois todo o material que tínhamos pedido
— alicate, tesouras, martelo — havia sido separado em
kits. Eram 20 alunos, havia um kit para cada um e um kit
para cada um de nós também! Era incrível; a gente até
esquecia e ia pegar uma coisa do outro, mas o professor não entendia e dizia em espanhol que cada um tinha
o seu. Tudo muito individualista. Ainda assim os jovens,
sem falar luxemburguês nem outra língua qualquer, se
entrosavam e até riam não sei bem de quê. Só sei que ao
final do dia os do Bagunçaço sabiam dizer as coisas mais
feias em luxemburguês e francês e os de lá sabiam cada
palavrão em português que faria corar qualquer mulher
da montanha. Adolescentes…
Chegamos à Bélgica. Eu já conhecia aquele aeroporto e
já sabia que portunhol funcionava, mas também arriscava em francês. Ao sairmos do aeroporto, três vans bem
No dia seguinte, ao chegarmos à escola, os alunos já
estavam perfilados ao lado de seu kits nos esperando.
Lembro que Sergio Comida, Buguelo, Sem Freio e Sergio
A turnê consistia em participar de dois festivais e fazer
intercâmbios com várias escolas públicas, asilos, orfanatos, fazer um carnaval infantil em Luxemburgo.
Os preparativos aconteceram sem muitas delongas,
pois os produtores franceses bancaram a melhoria dos
instrumentos, a confecção de figurino e, o mais importante, a regularização dos documentos. Muitas vezes
tínhamos que regularizar toda a documentação dos pais
para só depois regularizar a da criança.
Se na minha primeira viagem foi metade dos Alagados,
agora que estavam indo 17 jovens e 3 educadores e que
até as televisões haviam noticiado, realmente uma multidão compareceu ao aeroporto.
178
Bagunçaço
Capacete, que eram os mais novos — tinham em média
14 anos — ao se depararem com os amigos com quem
tinham trocado tantos palavrões, ao final da saudação de
toques de mão próprios da juventude, tacaram um abraço
nos seus respectivos novos amigos. Estes, além de ficarem com os braços esticados e imóveis, ficaram vermelhos como camarões, mas não tinha jeito: no quinto dia
eles já sabiam que seriam abraçados, que levariam tapa
na bunda, que lutariam, e já pareciam gostar da forma dos
brasileiros. Na despedida, quinze dias depois, um português que trabalhava no espaço cultural disse que fizemos milagres, pois nunca tinha visto tanto luxemburguês
chorando. Foi muito comovente ver aquelas crianças que
pareciam robôs correndo atrás da van e mandando beijos.
Estávamos descendo para o sul e, à medida que parávamos num determinado lugar, éramos visitados por
famílias dos lugares por onde passamos e era sempre
o mesmo chororô na hora de partir. Ao final, chegamos
em Arles, uma cidade milenar, para o Festival de Arles
no Teatre Antigue, uma ruína de 2 mil anos, onde tocaria,
um dia depois de nós, o Santana.
Lá encerramos nossa missão. Estávamos intercambiando
com uma comunidade árabe. Eles eram considerados violentos, e os organizadores nos preveniram, porém foram
os que de cara nos receberam melhor. Eles também gostavam de pegar, abraçar, brigar, foi uma simbiose. Na despedida, vans ligadas, abraços, beijos e eu gritando para
que, por favor, não chorassem, porque já tinham chorado
demais naquela turnê. Mas, naquele momento, tocava o
Tambores do Burudi, era um som forte, contagiante e era
o som do final da festa. Dessa vez, nem eu pude conter
as lágrimas, aquela gente do Trebom, marroquinos, árabes, tunisianos, africanos de toda parte sabiam o que era
discriminação. O Trebom era o Alagados de lá. Choramos
Primeiros shows
179
muito, e eu tinha um motivo a mais, já que estava voltando
para o Brasil e deixava Birgit grávida de quatro meses. A
primavera de Paris e seus efeitos...
Daí as viagens não pararam. Nos anos seguintes o
Bagunçaço não parou mais de conhecer o mundo: Suécia, Alemanha, Espanha, Itália, Suíça, Ilha de Malta,
México, Moçambique, Estados Unidos etc.
180
Bagunçaço
Cap.10
Uma casa para o Bagunçaço
Uma casa para o Bagunçaço
187
Em meio a essa insatisfação com a nossa presença, de
repente havia uma crescente pressão da Arquidiocese
para mudar o padre Clóvis, e nós sabíamos que nossa presença aumentava ainda mais as forças de quem estava
por trás disso. Talvez fosse uma questão interna da Santa
Igreja, mas uma pessoa como padre Clóvis, que tanto ajudou a todos sem distinção, merecia nosso apoio irrestrito.
As coisas estavam acontecendo, agora já éramos internacionais, começávamos a buscar financiamento e editais
para apoiar nossas atividades, e contávamos, de início,
com o apoio da USAID por meio do projeto POMMAR. Tínhamos muita frequência na mídia local e, de repente, muitas
pessoas nos ligavam querendo saber mais do projeto, eram
pessoas do país todo e diziam que souberam da gente via
Legião Urbana. Era algo muito estranho, mas depois soube
que o disco “A Tempestade”, do Legião, fazia uma menção
ao nosso trabalho. Nem acreditamos, corremos para comprar o CD, e lá estava mesmo, pena que o Renato morreu
logo em seguida e não deu tempo de lhe agradecer.
O grupo tinha crescido muito e já ultrapassara a marca de
mais de 350 componentes. O espaço cedido pela paróquia
já não era suficiente. Além disso, a movimentação, os
ensaios de percussão e as batucadas para receber visitantes já incomodavam os setores mais conservadores
da Igreja. Por conta disso, vários conflitos foram acontecendo. Toda vez que algum som de percussão se excedia
um pouco, vizinhos e integrantes da paróquia reclamavam. Às vezes, até a Sucom (órgão da prefeitura que, entre
outras coisas, monitora a poluição sonora) era chamada.
O grupo poderia ser multado e ter todos os equipamentos
apreendidos. E só não o faziam porque os fiscais e o próprio departamento eram simpáticos ao Bagunçaço, mas
advertiam que nem sempre poderiam mediar a situação.
186
Como o grupo sempre funcionou com as crianças e adolescente assumindo as atividades, eles sempre foram
protagonistas. Um dia, após uma aula de cidadania com
histórias africanas, eles decidiram decorar a sala de arte
que ficava numa sala do auditório da paróquia com um
grande Oxalá. Não posso dizer que foi isso que inflamou
ainda mais as coisas, mas a insatisfação com a nossa
presença cresceu tanto que foi marcada uma reunião
com moradores, membros da paróquia e o Bagunçaço. Eu
e uma comissão de jovens fomos a essa reunião. Foi muito
tensa e um pouco dura, pois, na verdade, não se alegou
nenhuma insatisfação religiosa, e sim o comportamento
das crianças e dos jovens. Disseram que nós atraíamos jovens da parte mais perigosa da comunidade, mas
isso era claro; disse que essa era nossa clientela e que,
apesar disso, nunca houvera nenhum prejuízo ou práticas ilegal das crianças contra os moradores, mas que já
haviam ocorrido tentativas de filhos dos moradores de
bater em jovens que moravam na Casa do Bagunçaço e
que um vizinho tentara me agredir porque eu estacionara
o ônibus do Bagunçaço num espaço da paróquia e isso o
atrapalhava na hora de estacionar os dois carros que ele
tinha. As pessoas, algumas inclusive da paróquia, mesmo
estando numa reunião com jovens da idade dos filhos
delas, falavam da meninada do Bagunçaço com um certo
desdém, com uma distância que fazia parecer que éramos de outro planeta. No ápice da reunião, quando seus
argumentos não convenciam padre Clóvis, disseram que
188
Bagunçaço
as crianças se comportavam como pessoas promíscuas,
pois usavam o espaço à noite para namorar. Eles não se
referiam ao espaço físico usado pelo Bagunçaço, mas à
área do entorno da paróquia, onde muitos adolescentes
marcavam encontros, pois a outra opção que tinham era
ir namorar na ferinha, um lugar muito perigoso e deserto,
onde com certeza seriam de alguma forma violentados.
Eram namoricos, e claro que não era uma coisa consentida por mim ou por outros educadores, mas, embora a
paróquia fosse fechada, qualquer morador poderia adentrar seu espaço até as 22h sem ter que explicar o que ia
fazer, pois lá funcionavam diversos cursos, um auditório,
um posto de saúde e o Bagunçaço, onde moravam pessoas 24h. Os jovens se aproveitavam disso e marcavam
seus namoricos num espaço seguro. Para mim era como
se eles demonstrassem confiança naqueles adultos que
estavam ali, pois sabiam que estavam protegidos. Na
comissão havia três meninas, que tinham entre 15 e 17
anos, e a forma como a pessoa falou, como se os namoricos fossem prostituição, as machucou muito, mas, como
eram adolescentes, não sabiam se defender. A pessoa
falou meio olhando para elas; foi muito constrangedor.
Então eu pedi a palavra. Vinha calado até o momento,
pensando comigo mesmo que só usaria minha arma de
destruição em massa contra eles se realmente fosse
necessário, mas eles tinham ido longe demais, e mais
uma vez usei e abusei do discurso. Falei da sexualidade,
coisa inerente à pessoa humana, falei de suas filhas e de
seus filhos, que eu conhecia bem. Será que por namorarem também seriam prostitutas? Falei que o próprio
Cristo, em nome de quem eles estavam ali, fora tolerante
com Madalena e falei que o amor, o amor que ele difundia,
o amor defendido e efetivado por padre Clóvis, nos acolhia, mesmo sabendo que eu não era cristão e tinha uma
matriz religiosa diferente. E perguntei: Se cada um fosse
contar seus namoricos de juventude, será que seria uma
Uma casa para o Bagunçaço
189
coisa toda certinha? Namoro, noivado e filhos só depois
do casamento? E, como sempre, não sei se por causa dos
mais de 45 minutos durante os quais tagarelei sem parar,
olhando cada um nos olhos, ou se por causa do cansaço,
consegui colocá-los em seus devidos lugares. Padre Clóvis, que também não fala pouco e ainda fala bem pausadamente, tomou a palavra e explicou que, como muitos
ali tinham dito, realmente o Bagunçaço não estava nos
planos da paróquia quando 20 anos antes decidira que
naquele vasto terreno seriam construídos, além da igreja,
um centro comunitário, uma creche, um abrigo para
velhos, um posto de saúde e uma escola comunitária. Foi
então que surgimos como filhos adotivos, mas nem por
isso menos amados, ou talvez até mais amados, pelo fato
de termos sido rejeitados pelos outros filhos.
Ao final, bombardeados pela dupla infernal — que me
desculpe padre Clóvis, mas “dupla angelical” não teria
o mesmo apelo dramático —, os presentes naquela reunião decidiram que, juntos, procuraríamos uma solução para o incômodo sonoro e que poderíamos realizar
o Bagunfestlata, mas depois só teríamos percussão
quando uma solução a respeito da acústica aparecesse.
Para aquele momento, foi interessante; não queríamos
deixar padre Clóvis mais contra a parede do que ele já
estava e, pelo menos o Bagunfestlata, nosso festival
de música em lata, estava garantido, mas eu particularmente pressentia que insistir em permanecer ali não
seria saudável para nosso bom padre Clóvis.
—
Para piorar a situação, o grupo também passava por
um aperto financeiro, pois estava sem apoio naquele
momento e já devia muito no supermercado, no açougue,
na papelaria, e o telefone já estava cortado. A equipe
não recebia havia dois meses.
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Bagunçaço
Nesse período, Dimitri, o anjo da guarda vindo lá das
bandas do deserto do Saara (os gringos são de onde são
suas famílias e não de onde nascem, ou mais ou menos
isso. Então, como sua família russo-inglesa-francesa
morava no Marrocos quando ele nasceu, ele é um francês pied-noir, termo que pode parecer pejorativo, mas
que eu aprendi dele nas aulas de cultura e vida que ele
sempre me regalou) ligou para o Bagunçaço dizendo que
um casal de franceses estivera em sua casa e, entre a
compra de um quadro e outro, havia demonstrado o
desejo de ajudar uma obra social. Falou que foram muito
simpáticos, que tinham comprado uma casa no Brasil,
que tinham uma sensibilidade social e gostariam muito
de conhecer uma entidade e saber como ajudar.
Geralmente, aceitamos todos os visitantes; essa é uma
atitude espontânea do Bagunçaço, não importa o credo,
a nacionalidade ou o poder aquisitivo. E sempre estamos
com uma novidade. Assim, Dimitri marcou uma visita, e
o casal chegou umas duas semanas antes do Bagunfestlata, que, àquela altura do campeonato, estava ameaçado de não acontecer. Não porque fosse caro, pois o
festival não custava muito, e sim porque, havendo tantas dívidas, não seria sensato fazer festa; isso deixaria
os credores muito ouriçados.
De fato, o casal Attal era muito simpático. A mulher
tinha uma voz muito suave, uma leveza espiritual e fazia
perguntas bastante inteligentes. Já o marido era muito
observador, porém não falava muito e não ria. Isso me
deixou um pouco tímido. As perguntas dele pareciam
que eram de uma auditoria. Mantinha a expressão de
um jogador de pôquer, que não permite que leiam seu
estado emocional, mas tinha uma energia muito boa,
parecia esconder uma montanha de generosidade
naquele semblante misterioso.
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Ao se despedir, o casal deixou um cheque comigo, que
educadamente dobrei e agradeci. Não prestei atenção
no valor. Acabei esquecendo-o na gaveta da minha mesa,
me ocupei com outras coisas e, só mais tarde, quando
conversava sobre as dificuldades de manter o projeto
e, sobretudo, se teríamos ou não o Bagunfestlata, me
lembrei do cheque e fui conferir o valor. Liguei imediatamente, muito assustado, para Dimitri, porque eu acreditava ter havido um erro de preenchimento. Só podia estar
errado, pois o cheque deixado era de 10 mil dólares! Mais
uma vez voltava a lenda dos dólares inextinguíveis...
Então o IV Bagunfestlata aconteceu tão animado que os
meninos nem perceberam que era uma despedida da vida
na paróquia. A fórmula foi a mesma dos anos anteriores:
as bandas de lata eram separadas em faixas etárias e
também eram convidadas bandas de lata do interior do
estado, que se hospedavam nas instalações da paróquia.
Cada banda que chegava de um interior distante trazia
uma novidade em seus instrumentos feitos de lata e
havia um intercâmbio de tecnologia.
Durante quatro dias, a comunidade sabia que o Bagunçaço era um festejo só. Havia oficinas de instrumento
de sopro, teatro, corte de cabelo gratuito, circo (e até
espetáculos), fabricação de papel reciclado e de brinquedos com sucata. A paróquia era embandeirada,
aconteciam palestras sobre temas variados, havia uma
missa ecumênica na igreja na qual a música era feita
com as latas do Bagunçaço...
As bandas concorriam numa grande harmonia, valia
tudo, pois a intenção era que todos saíssem ganhando
alguma coisa: melhor cantor, melhor banda, melhor figurino, melhor isso e aquilo. O prêmio mais disputado era
o de melhor participação familiar, então iam mães, tios,
avós, vizinhos, todos levavam faixas e, em uma torcida
Uma casa para o Bagunçaço
199
familiar dessas, foi até o cachorro de um dos meninos,
um vira-lata que, coitado, talvez tivesse tomado o primeiro banho da vida dele, dava para notar pela tristeza
do bicho; mas foi uma graça vê-lo vestido com o figurino
da banda do seu dono.
Após o Bagunfestlata, o grupo deu uma parada de quinze
dias para as festas de fim de ano e, quando retornou, em
meado de janeiro, eu não sabia o que fazer, pois tinha
que cumprir o acordo com a comunidade. Era triste ver
aqueles meninos e meninas perambulando pela sede,
proibidos de tocar seus instrumentos.
Passados dez dias dessa situação, marquei uma reunião com os líderes das bandas de lata e com as pessoas
da equipe. Essa reunião aconteceu fora da comunidade
e lá eu exibi o filme Vida de inseto. Embora as crianças
gostassem de desenho, não entenderam por que tinham
ido tão longe para assistir a um desenho animado. Os
maiores achavam que eu estava ficando louco, porque
tinha passado aquele mesmo desenho para eles uns oito
meses antes, e deviam estar curiosos, pois na época,
depois de assistir ao desenho, eu convidei um grupo restrito e tivemos uma reunião ultrassecreta por mais de
uma hora. Então era normal que os que não ficaram para
a reunião e agora estavam vendo o filme pela segunda
vez estivessem com a pulga atrás da orelha.
Em 2000 convoquei os jovens mais velhos e mais militantes do projeto, como os membros da equipe, que
geralmente eram jovens oriundos dos projetos, salvo
os serviços técnicos, para uma reunião no Projeto
Sobas Princedom, lá no Parque São Bartolomeu. Já
sentia as mudanças de ares, pois em diversas conversas com padre Clóvis e com algumas beatas simpáticas
ao Bagunçaço sentia que, cada vez mais, estava sendo
difícil controlar a insatisfação de muitos com a nossa
200
Bagunçaço
presença. Então, tratei de criar um plano B. Era algo
difícil, precisava de muita organização e total sigilo,
mas tínhamos que tentar.
Uma vez exposta a situação àqueles escolhidos após a
primeira exibição do filme Vida de inseto, os jovens, bem
mais criativos que eu, decidiram forjar a ruptura de um
dos grupos do Bagunçaço. O grupo de dança, formado
por meninos e meninas entre 16 e 18 anos, alegando
ter se desvinculado do Bagunçaço, foi procurar a associação local (proprietária da creche em ruínas) e pedir
que pudessem usar o espaço nas ruínas da creche para
ensaiar, e, com o tempo, eles conseguiram a confiança
dos diretores da associação e a chave da parte utilizável
do prédio abandonado.
Voltando a fevereiro de 2001, a equipe e os que não participaram da reunião secreta depois do filme deviam ter
pensado que, após tantos anos expostos ao som da percussão permanente do Bagunçaço, eu tinha desenvolvido alguma dependência química e, como agora estava
privado de meu vício, tinha surtado, e por isso aquele
desenho animado de novo.
Depois do fim do filme, fizemos um círculo e começamos
a analisá-lo. Falamos bastante da situação-problema
das formiguinhas, do medo de reagir, do medo do desconhecido, dos desafios, dos aprendizados e das diversas
formas de liderança dos indivíduos daquela comunidade
para finalmente conseguirem vencer os gafanhotos.
Expliquei que naquele momento o Bagunçaço precisava
dos esforços de todos para superar o desafio. Lembrei
a reunião que tivemos no ano anterior na paróquia, as
coisas que ouvimos e a situação de padre Clóvis, que
lutava para não ser afastado do trabalho que criara, e
que nossa presença o deixava mais vulnerável. Falei que
tínhamos de tentar encontrar uma sede nova, um espaço
na comunidade, e que o jeito era invadir. Expliquei que,
Uma casa para o Bagunçaço
201
depois de pesquisar, tinha identificado quatro espaços
que estavam abandonados: dois do governo e dois privados, mas em fase de desapropriação. Fiz uma consulta à legislação e, segundo a lei, não era crime usar um
espaço público para fins coletivos.
Estávamos com o mesmo problema das formiguinhas:
tínhamos medo. Fora eu e um punhado de adultos, o grupo
era formado por crianças e adolescentes; não podíamos
reagir a intimidação física, pois éramos fracos nesse sentido, então tinha que ser um plano e tanto. Assim, revelei que o grupo de dança rebelde era na verdade nosso
espião em território do inimigo; o líder do grupo estava
do meu lado, que, até então, era olhado atravessado pela
assembleia, que não entendia minha simpatia por ele e
os nossos cochichos de vez em quando. Expliquei que na
reunião em abril um grupo seleto tinha se reunido depois
do filme e ali traçamos uma estratégia. Expliquei que,
embora eu tivesse pesquisado outros espaços, já havia
escolhido o mais seguro. Era a creche abandonada ao
lado da paróquia, aquela mesma que ficava de frente para
a gente e que fora apelidada de Cracolândia pela comunidade. Da nossa sede, era a primeira vista que tínhamos, e
várias vezes já havíamos solicitado da associação vizinha
o consentimento para ocupar aquele prédio vazio.
Aqueles que estavam ali eram de extrema confiança e
não podiam comentar nem com suas sombras sobre o
assunto. Foi difícil, pois instruímos as crianças a sempre partilharem tudo com seus pais, mas alguns deles
tinham pais envolvidos de alguma forma com a outra
associação, então era melhor não comentarem nada.
Alguns ponderaram que eu mesmo sempre dizia para
não terem segredos para os pais, então cheguei ao
meio-termo: quem achasse que falar para o pai ou para
a mãe não poria o plano em risco que falasse, mas que ao
menos me avisassem quem falou.
202
Bagunçaço
Então, olhei para Alex, o rapaz que forjara ter rompido
com o Movimento de Bandas de Lata, e lhe perguntei:
— Você trouxe mesmo?
Ele disse que sim. Meteu a mão dentro das calças, como
geralmente fazem os adolescentes quando querem
esconder alguma coisa, e me entregou. Eu passei a explicar que aquela era a chave da parte utilizável das ruínas,
pois, de um total de doze cômodos, só três estavam com
telhados originais e eram usados por grupos de boxe,
capoeira e dança. O restante estava em completa ruína,
salvo a recepção, que era ocupada por uma família que
havia perdido sua casa e estava provisoriamente usando
aquele local. Eram um local inabitável, mas na necessidade era o que valia... O restante era usado por drogados. Havia uma área atrás do espaço, do tamanho de um
campo de futebol, que era usada como depósito de lixo
por toda a vizinhança. Ao entenderem todo o plano, os
jovens espiões foram aplaudidos, e eu comecei a explicar
o passo seguinte, que era mobilizar todos os integrantes
do Bagunçaço na ocupação. Mas não podíamos contar
onde seria e, além disso, eu precisava de mais dinheiro,
pois devíamos muito. Com a grana deixada por Bernard
e Anne Attal (o casal francês) pagamos todas a dívidas
e fizemos o festival, trazendo bandas de lata do interior
e tudo. Então, lembrei de um amigo americano, Douglas
Simon, muito gente boa, dizendo: “Vocês sabem como
são os americanos, gostam de invadir, né?” Pois é, quando
contei a ele a ideia ele doou 3 mil reais para a causa. Eu
esqueci de contar que em agosto do ano anterior havíamos ficado uma semana num assentamento do MST no
sul da Bahia com 27 crianças e adolescentes. Fomos
participar com nossas bandas do encontro da juventude
deles. Pois bem, agora que tínhamos apoio de um americano e know-how do MST — a coisa só podia dar certo.
Uma casa para o Bagunçaço
203
Os jovens líderes conseguiram fazer sua parte e, assim,
no dia 13 de fevereiro de 2001, na Igreja de São Jorge (no
auditório era perigoso vazar, pois nas imediações moravam muitas pessoas; na igreja fechada era mais seguro),
fizemos uma assembleia com todas as bandas. Cada
menino que fosse líder de sua banda tinha ficado incumbido de levar todos da banda e, assim, seria conferido se
eles tinham mesmo essa liderança toda. Os danados mostraram toda a força! Um até levou dois primos! Ninguém
entendeu nada, mas ele tentou justificar dizendo que a
banda dele era pequena e os primos eram de confiança,
não moravam na comunidade, estavam de férias.
Na assembleia, já conduzida pelas lideranças, e na qual
eu, estrategicamente, só falaria no final, o assunto foi
tratado diretamente. O problema foi exposto e foi criado
um quadro de sugestões. Primeiro se deveríamos sair ou
ficar na paróquia, então foi decidido que deveríamos sair,
mas manter a relação com padre Clóvis. Depois a sugestão sobre locais abandonados: em primeiro lugar veio a
creche, depois a ruína do Cine Teatro, o estaleiro Mario
Backer e a antiga fábrica Toster, perto da Igreja do Bonfim (assim quase íamos para a área nobre da Penísula Itapagipana). Claro que o lugar mais votado foi a creche ao
lado, mais perto da paróquia e da casa da maioria deles.
E, por último, sugestões das necessidades para a ocupação: um caminhão de mudança, material para arrumar o
local, um carpinteiro, um pedreiro, um eletricista. Alguns
meninos queriam seguranças, mas eu intervim, expliquei
que assim o outro incomodado poderia revidar, e se fossem só crianças e educadores seria mais difícil, pois na
comunidade não se registrava violência contra educadores populares e crianças no projeto — porém, é estranho
que não respeitem da mesma forma professores de escolas públicas, mas não trataremos disso aqui.
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Bagunçaço
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Bagunçaço
Lembro como se fosse hoje de que nesse momento em
que alguns se sentiam inseguros e não conseguiam
entender minha lógica, ficou um falatório na reunião
— todos falavam ao mesmo tempo e um pequenininho,
que tinha problema com a fala, educadamente levantou a mão, mas naquele momento ninguém observava
mais esse requisito de pedir para falar. Ele continuava
a levantar a mão e tentar dizer algo. Vendo suas tentativas sem sucesso, eu comecei a tentar ler seus lábios.
Meu esforço chamou a atenção de outros, que gradativamente foram parando a confusão e tentando entender
o que ele dizia. Os mais próximos dele, que achavam que
tinham entendido, repetiam alto, o, que ele desaprovava,
sacudindo a cabeça. Outros se esforçavam para entender e repetir alto, mas não acertavam. O silêncio foi
tomando conta da igreja e a voz dele, mesmo fanha, foi
ficando mais audível, mas não compreensível, e, como
sempre acontece, dois ou três na atudiência mataram a
charada ao mesmo tempo e gritaram:
— Um advogado!
E todos riram, riram muito. Então pedi que colocassem na
lista um advogado, até porque, como ele explicara, e se a
polícia aparecesse? Nas comunidades violentadas desse
Brasil as crianças têm mais medo da polícia do que de
qualquer outra coisa. Lembro do meu amigo irmão Júnior,
do AfroReggae, que escreveu em um livro que, havendo
um tiroteio na comunidade, deve-se correr sempre para o
lado do bandido. Eu estava apreensivo, pois, mesmo com
todos rindo, aquele menino chamara a atenção para algo
importante: por mais confusão que os líderes da outra
associação fizessem, não havia perigo de violência física,
mas a polícia, sim, essa poderia ser imprevisível. Então
a sugestão do advogado já estava bem acolhida. Tínhamos Doutora Kassira Bomfim, minha amiga-irmã e nossa
Uma casa para o Bagunçaço
207
admiradora, que na época estava ajudando no projeto do
Parque São Bartolomeu, porém me lembrei do acontecido
no início do Bagunçaço e chamei Dimitri (francês), Alicia
(cubana), Douglas (americano), Lennart (sueco), além de
amigos brasileiros formadores de opinião. Também liguei
para o jornal Correio da Bahia, falei com um jornalista e
prometi que iríamos fazer algo no bairro que seria um furo
para ele. O jornal pertencia à família de Antônio Carlos
Magalhães, que estava no governo.
Na minha fala final, expliquei aos meninos que tudo aquilo
dependia de dinheiro. Fiz um pouco de suspense sobre
como conseguiríamos e, depois do suspense, disse que
um amigo chamado Douglas Simon havia doado o dinheiro.
Foi uma festa! Já não importava a algazarra dentro da
igreja, afinal, no dia seguinte iríamos embora e nossos
desafetos não poderiam fazer mais nada mesmo. Quanto
a padre Clóvis, ele amava a garotada daquele jeito, e São
Jorge, que enfrentava dragões, devia tirar de letra meninos peraltas. Expliquei que, embora o espaço escolhido
fosse a creche ao lado, não poderia dizer com certeza
que ocuparíamos ela, pois ainda faltava uma confirmação
de sua situação legal, mas que no dia seguinte, a partir
das 14h seria a ocupação e ninguém poderia comentar o
fato, só ir tocar e se juntar ao movimento. Pedi um voto
de confiança, pois no momento da marcha musical eu
anunciaria o local da ocupação. Todos, já mais que excitados — “menino adora uma folia”, como diz minha mãe —,
concordaram, e alguns foram pedir a seus pais para dormirem no projeto, pois queriam ajudar nos preparativos.
A ocupação não podia dar errado, pois o Bagunçaço não
tinha para onde ir. Então trabalhamos a noite toda arrumando as malas para a grande mudança. Pela manhã,
fomos atrás de pedreiro, encanador, eletricista, caminhão para mudança; geralmente, os parentes das
208
Bagunçaço
próprias crianças, que cobravam um preço barato. Havia
muito nervosismo no ar, era um passo ousado, mas não
tínhamos escolha.
Tudo estava planejado para começar às 14h, mas o caminhão tinha quebrado, a carroça com alguns materiais
de construção se atrasara e quando as bandas, os integrantes, os amigos nacionais e os observadores internacionais estavam a postos, o jornal não chegava. Já eram
14h50! Então subi para ligar para a redação do jornal, e
eles avisaram que o jornalista já tinha se deslocado para
o local e que era para aguardar. Sabe como são os jovens,
querem ação. Já estavam impacientes! As pessoas da rua
da paróquia não entendiam o que estava acontecendo,
acho que no máximo acreditavam que estávamos voltando para a ruína do Cine Teatro Alagados. Para acalmar
os(as) meninos(as), autorizei Táta (um dos maestros da
percussão) a fazer uma pequena batucada. Poquito circulava pela rua da frente para ver se o jornalista estava
perdido por ali quando finalmente o carro chegou. Poquito
me olhou, o jornalista desceu correndo com o fotógrafo, e
já foram fotografando tudo. Fotografavam banda, faixas,
carroça, gringos etc. Devolvi o olhar para Poquito, que
subiu para chamar o resto do nosso povo que ainda estava
espalhado dentro da paróquia e na sede. Quando Poquito
retornou, Táta, que era o maestro da banda Sucata’mania
e também já havia morado na casa, comandava o exército mirim. Munidos de latas, descargas, tonéis e muita
euforia, ele, à frente de seu batalhão, olhou para mim,
que estava um pouco mais ao fundo sendo abordado pelo
repórter. Olhei fixamente para ele e, ao levantar e abaixar
a mão, ele entendeu que era o sinal de atacar: puxar um
toque e fazer a banda andar. Já havia a essa altura muitas outras crianças e pessoas em volta, simpatizantes do
grupo, curiosos, entre outros.
Uma casa para o Bagunçaço
209
—
Ogum, que vinha acompanhando o Bagunçaço lá da terra
de Aiucá, percebeu que seus filhinhos estavam em apuros
e partiam para uma guerra desproporcional. Imagine que
crianças e adolescentes tomavam uma atitude extrema
simplesmente para terem acesso ao direito básico de
lazer e de cultura! Como guerreiro que não tolera injustiça, Ogum imediatamente tomara a causa para si e não
deixaria aqueles erês sozinhos. Com certeza, ali estavam
meus antepassados, liderados por Senameã, minha avó,
que era de Oxumaré, e Zé Bofeia, meu pai, que nunca foi
da coisa, mas foi apoiar a ocupação.
A tropinha musical não marchou nem 50 metros, pois a
rua onde ficava nosso provável futuro novo endereço era
paralela à paróquia, então só pegamos uma transversal
e, paramos bem em frente à Associação União Comunitária, que detinha o controle do espaço. Também nesse
prédio funcionava uma escola pública, e a diretora era
filha do presidente da associação. A banda parou na
frente da rua; para entrar nela precisaria fazer uma conversão para a direita, mas, antes disso, Táta fez a percussão parar. Eu segui para a frente da multidão, ao lado
de Leide e Poquito, agradeci a confiança que me fora
depositada, apontei para a rua e disse:
— Vamos, nossa nova sede será ali.
Embora a diretora estivesse na janela, como em toda
escola, o zum-zum-zum, a falação e acredito que Exú,
que adora uma confusão, não permitiram que ela entendesse o que eu dizia. E ela continuou lá na janela vendo
a banda virar para a direita e entrar na rua. Literalmente,
ela ficou vendo a banda passar...
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Bagunçaço
Uma casa para o Bagunçaço
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Num grande rufar de tambores, andamos uns 40 metros
e paramos numa porta improvisada na lateral do prédio.
O silêncio tomou conta de todos; já havia muitos curiosos. Fui até a porta, retirei a chave que havíamos copiado
e abri o cadeado. Novamente o rufar dos tambores, os
gritos de aclamação e as crianças se precipitando para
dentro do espaço. Poquito, Leide, Fabiana e outros cuidaram de descarregar nossa mudança. Ainda estávamos
deslumbrados, pois caminhávamos pela parte utilizável do espaço, e sabíamos que o grupo de capoeira, o de
boxe e alguns grupos de dança usavam aquele espaço,
mas isso seria assunto para resolvermos depois. Estávamos no deslumbramento quando uma voz alterada chegou da sala principal por onde entramos. Então corri até
lá e, ao chegar, uma senhora meia descabelada apontou
na minha direção e disse:
— É aquele ali!
Três mulheres bem-arrumadas olharam para mim e uma
delas veio com o dedo em riste perguntando:
— Quem o autorizou a entrar aqui?
Eu respondi que ninguém, que estava ali à revelia, pois
era um espaço público e abandonado. A mulher se indignou e, bem irônica, gritou no meio da sala que o marido
dela era comandante da polícia e que eu ia ver uma coisa
já, já. E saiu falando ao celular.
Os meninos e as meninas ficaram assustados com aquele
bate-boca de adultos; sabiam que ela era a diretora da
escola e que sua família era influente. Vendo que eles
estavam apreensivos e, solicitei que a banda, agora com
um microfone, fizesse um show na porta e que todos que
tocavam se revezassem para não deixar o som parar.
Estávamos arrumando as coisas quando, uns vinte minutos depois, um som de sirene foi ouvido na rua, os policiais chegaram e saíram todos ao mesmo tempo do carro
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Bagunçaço
depois de uma parada brusca. Eu estava perto da banda,
que ensaiou parar de tocar, então olhei para o menino
que fazia as vezes de maestro naquele momento e disse
que não parassem de tocar e se mantivessem tranquilos.
Logo apareceu a diretora, que me apontou para os policiais, e eles vieram na minha direção. Imaginem que já
existia uma multidão em volta do acontecimento. Um
policial me pegou pelo braço e saiu me puxando para um
canto longe da banda, mas a criançada toda foi atrás. Os
policiais tentaram encontrar outro lugar longe da meninada, que não arredou o pé, algumas crianças seguraram meu outro braço como se tentassem me soltar da
mão do policial. Minha amiga Kassira, que estava lá
dentro com os amigos estrangeiros e brasileiros, chegou. O policial ordenou que eu dissesse às pessoas do
grupo para desocuparem o espaço. Ao mesmo tempo,
um grupo de pessoas que jogava dominó e que fazia
parte da associação entrou no prédio e tentou evitar que
Lennart, nosso amigo sueco, filmasse. Léo, como é carinhosamente chamado pelos meninos, não entendeu o
que eles falavam, então eles tentaram tomar a câmera.
Léo, do alto de seu 1,98 metro, embora seja uma pessoa
muito tranquila, não permitiu a aproximação e isso fez
com que os homens se exaltassem. Três crianças saíram correndo e foram até a outra extremidade do Alagados, lá no Uruguai, no módulo policial perto da Igreja
Nossa Senhora dos Alagados, e pediram ajuda. Fizeram
uma narração atrapalhada, os policiais foram com as
crianças e chegaram da mesma forma espalhafatosa.
Abordaram Poquito e perguntaram se estava acontecendo algo. Poquito, nervoso, disse que não; temia que
mais viaturas viessem contra a gente, mas as crianças
apontaram para o Léo, que a essa altura já estava perto
de mim do lado de fora do espaço. Os policiais chegaram e começou uma discussão entre as duas viaturas.
Uma casa para o Bagunçaço
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Os policiais que chegaram acharam que a iniciativa era
boa, porque aquele local era usado para consumo de drogas e prostituição e eles conheciam o trabalho do Bagunçaço. A outra viatura estava lá a mando do comandante,
que atendia ao pedido da esposa. Discussão, empurraempurra, então decidiu-se que era melhor ir para uma
delegacia. As duas viaturas disputaram o direito de me
levar, mas Kassira disse que, como era minha advogada e até aquele momento eu não tinha sido acusado
de crime nenhum, eu iria no carro dela. Ao me dirigir
ao carro de Kassira, pedi à banda que não parasse de
tocar e passei o comando para Poquito.
—
Bem, posso dizer que escrevi este relato, livro ou causo
da nossa nova e permanente sede.
Iluminação para todos!
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Bagunçaço
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Bagunçaço
Uma casa para o Bagunçaço
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Imagens:
índice e créditos
P.91
Assembleia Bagunçaço, em 2000
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Lennart Kjörling
P.102-103 Limpeza da nova sede, em 2001
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Lennart Kjörling
P.112-115 Batucada na área verde, nova sede
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Lennart Kjörling
P.21
Eu, minha irmã Joselina e minha vó Nair
(Senameã), em 1974
foto: Arquivo pessoal
P.119
Jonathan e sua descarga
foto: Arquivo Bagunçaço
P.125
Bagunçaço de Moçambique, em 2003
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafa: Rayssa Coe
P.126-127 Banda Atitude, Paróquia, em 1998
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Lennart Kjörling
P.21
Eu, minha irmã Joselina, meu irmão Joseval, minha vó Nair
e minha tia Nildes (Ekede)
foto: Arquivo pessoal
P.132-133 Instrumentos da Sucata’mania
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Lennart Kjörling
P.26
Casa palafitas
foto: Arquivo Bagunçaço
P.142
1° Bagun’fest’lata, Igreja Nossa Srª dos Alagados, em 1995
foto: Arquivo Bagunçaço
P.27
Minha mãe, Jovelina, e minha avó, Nair, na entrega do Decar
foto: Arquivo pessoal
P.148
Marca Olodum
foto: Arquivo Bagunçaço
P.30-31
Casa palafitas
foto: Arquivo Bagunçaço
P.153
Bloco Bagunçaço, Circuito Campo Grande, em 1997
foto: Arquivo Bagunçaço
P.36-37
Casa palafitas, Oficina Bagun’imagem Sylvia Johnson,
em 2006
foto: Arquivo Bagunçaço
P.160-161 Limpeza da nova sede, em 2001
foto: Arquivo Bagunçaço
P.166
P.39
Casa palafitas, em 1997
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Joselito Crispim
P.45
Acampamento na Ilha do Rato, em 1994
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Joselito Crispim
P.54
Visita a Ilha do Rato, em 1999
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafa: Alicia Sanabria
P.62-63
Bagun’fest’lata, em 2002
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafa: Mila Petrillo
Limpeza da nova sede, em 2001
foto: Arquivo Bagunçaço
P.174-175 Cartaz de intercâmbio na Suécia, em 2004
foto: Arquivo Bagunçaço
P.179-183 Viagens diversas: Malta, Suécia, Suíça e Dinamarca
foto: Arquivo Bagunçaço
P.191
Workshop de sopro com Tom Black e Tobbe, em 1999
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Lennart Kjörling
P.192-193 Gravação do Clip Vaza Maré, em 1999
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Sergio Machado
P.194-195 Bagun’fest´lata, em 2002
foto: Arquivo Bagunçaço
P.196-197 Ensaio Cia. Bagunçaço, Paróquia, em 1998
foto: Arquivo Bagunçaço
P.204-205 Ruínas da sede nova recém-ocupada, em 2001
foto: Arquivo Bagunçaço/fotógrafo: Diosmar Filho
P.210
Bagunçaço X Balé Tradicional do Japão, Carnaval,
em 2000
foto: Arquivo Bagunçaço
P.214-215 Sede nova recém-ocupada, em 2001
foto: Arquivo Bagunçaço
P.216-217 Banda mirim do Bate-Estaca, em 1998
foto: Arquivo Bagunçaço
P.222
Joselito Crispim
foto: Arquivo pessoal
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Sobre o autor
O soteropolitano Joselito Crispim é cineasta e estudante de Direito. Viajado pelo mundo, de onde se sente
parte ativa, codirigiu os curtas de ficção “Ilha do Rato”
(película), em 2003, e “29 Polegadas” (película), em
2004. Também fez a codireção do documentário “Sim
Não Mau Conduto” (HDV), em 2007. Como ator fez, em
2007, uma participação com Carlinhos Brown, no Festival de Verão de Salvador, ao interpretar o personagem
símbolo do festival, apelidado por Brown de “Fever”.
É produtor-executivo e sócio da Santa Luzia Filmes
Empresa, do Grupo Trapiche Barnabé.
Pai solteiro e coruja, observa o fim da adolescência de
Elvis, 18, e Josinan, 17, ambos militantes do Bagunçaço, e acompanha ansioso pela internet a entrada na
adolescência de Jan, 13, que vive na França, com a mãe
Birgit. Segue nadando contra as correntezas da vida
para continuar apoiando as “travessuras” pedagógicas
do Grupo Cultural Bagunçaço.Para quem desejar mais
informações sobre o Bagunçaço, ver no Blog du Pim
(http://blogdupim.blogspot.com/) e no site do TV LATA
(http://tvlata.org/).
Este livro foi composto em Akkurat.
O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m².
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m².
Impresso pela Prol Gráfica em setembro de 2010.
Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter
as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha
nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro
de identificação do próprio contato. A editora está à disposição
para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.

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