Alexandra Martins Costa

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Alexandra Martins Costa
Pequenas Solidões. Avaliação crítica da obra Intimidades,
Série Orgasmo 8
Alexandra Martins Costa
RESUMO
O presente artigo constituiu-se de reflexões, a partir de um levantamento bibliográfico de referenciais
conceituais, a partir de um trabalho artístico autoral denominado Intimidades, série Orgasmo 8. A obra, eixo
central deste trabalho, é uma compilação de autorretratos durante o ciclo de um gozo mostrando as nuances
do rosto e do corpo durante este momento íntimo. O resultado é o estranhamento de uma performance da qual
não imaginava que fazia e o (re)conhecimento de um corpo numa situação que até o momento nunca me havia
sido revelada. Toda parte que envolve o corpo, na hora do gozo solitário, se tornar reveladora de nossas
sensações, do desejo ao repúdio.
Palavras-chave: Corpo. Performance. Masturbação. Fotografia. Gênero.
ABSTRACT
The present article consists a bibliographical survey on references of the conceptual artwork called Intimacies,
series Orgasm 8. The central axis of this work is a collection of self-portraits during cycles of orgasm,
showing the nuances of the face and body during this intimate moment. The result is the strangeness of a
performance that was not previously imagined and the (re)cognition of a state of mind that had never been
revealed. Every part that involves the body, in that time of solitary enjoyment, becomes indicative of our
sensations, from desire to rejection.
Keyword: Body. Performance. Masturbation. Photography. Gender.
Inicialmente, o interesse por um tema que faz uso do corpo como narrativa pessoal
partiu da necessidade de registrar os rostos de amigas em um momento íntimo de orgasmo.
Diante da dificuldade de convencê-las a posar, tomo a liberdade de me fotografar nessa
situação e a consequência foi o (re)conhecimento de um corpo numa situação que nunca me
havia sido revelada antes.
Em alguma medida, essa experiência se relaciona com a minha vivência enquanto
fotógrafa, pois assim como fotografar é um ato solitário, o autoprazer também é feito nas
descobertas dessas pequenas solidões. “O corpo é, de fato, uma das grandes percepções que
permeiam a obra dos artistas contemporâneos, que se mostram atentos às tensões situadas
em um corpo cada vez mais idealizado pela sociedade de consumo” (CANTON, 2009, p
25). O exercício de dizer silêncios ao corpo gera uma profunda sensação de encontro com o
vazio. Reconheço assim a experiência do corpo como uma partilha do sensível solitária que
afeta e é afetada por outros corpos e espaços permeáveis.
Ao dividir este momento íntimo com outras pessoas há um compartilhamento da
experiência individual e naturalizando essa prática que possui um histórico de repressão.
Na sociedade em geral, mas especificamente as mulheres possuem muitas dificuldades de
falar, sentir e descrever um orgasmo por medo, vergonha ou até nunca ter tido essa
experiência. A dificuldade de se falar do gozo feminino como um assunto pouco discutido é
um dos motivos que impulsiona a criação deste trabalho
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1 Fotografia como um certificado de presença
Dentre as séries de ciclos de orgasmo fotografados, a oitava foi escolhida para ser
apresentada porque foi observado um amadurecimento e potencialidade em comparação aos
registros anteriores. Ao contrário das outras séries, na oitava encaro a máquina fotográfica,
deixando os olhos em abertos na maior parte do tempo e assim evocando a possível
presença de alguém como numa espécie de repartir esse momento íntimo. “Toda fotografia
é um certificado de presença. Esse certificado é o gene novo que sua invenção introduziu na
família das imagens” (BARTHES, p.129, 1980). Quando se fecha os olhos, se reforça o
local particular. No entanto, quando se abre os olhos é revelada a tentativa de outra
aproximação dessa vez mais compartilhada, mais presente na ação. Toda parte que envolve
o corpo, na hora do gozo solitário, se torna reveladora de sensações, do desejo ao repúdio.
São individualidades expressas através da experiência estética que o ciclo do orgasmo pode
causar. Observar como funciona o trajeto do meu corpo, por meio da observação e
reconhecimento nas imagens, durante um estado de excitação abrange possibilidades
poéticas do prazer.
Performances masturbatórias: menos tensão, mais tesão.
As narrativas da vida íntima e doméstica são postas em cena trazendo revelações
subjetivas, cotidianas, despreocupadas e confessionais onde o eixo principal dos trabalhos é
muito menos a obra final apresentada, mas sim a caminhada feita nesses processos. Daí a
importância do registro como elemento que permite a busca experimental de um trabalho
do qual dificilmente se sabe como a dinâmica acontecerá.
Infere-se então que a vida está estruturada por comportamentos repetidos e que a
performance não está apenas associada ao fazer mas ao refazer a partir de uma
autoconsciência poética sobre o que se apresenta. Portanto, o presente trabalho, para além
de um ensaio fotográfico, também é uma performance registrada na medida que masturbarse faz parte de um ritual, de uma ação, de uma repetição da atividade humana que possui
uma série de pesos sociais e está presente no nosso cotidiano. No entanto, quando mostrada
como expressão poética e características artísticas, essa atividade ganha outras
potencialidades e outros lugares onde “podemos fazer ações sem pensar, mas, quando
pensamos sobre elas, isso introduz uma consciência que lhes dá qualidade de performance”
(CARLSON, 2010, p. 15). Sirvo-me desse pensamento para tecer considerações sobre o
corpo e a ação na formação da performance como lugar efêmero e transitório, que revela o
outro do mundo sensível.
Os trabalhos apresentados à seguir partilham da mesma estratégia de projeção da
vida privada revelando indícios de como alguns artistas lidam com a temática do (auto)
prazer como alguns artistas contemporâneos como Elke Krystufef através do trabalho
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2 Satisfaction (Figura1) e Andy Warhol com Blow Job (Figura 2) cujas estratégias utilizadas
aproximam-se da realizada em Intimidades, Série Orgasmo 8 (Figura 3) na medida em que
são registradas experiências do orgasmo revelando indícios de como esses artistas
voluntariamente tornam pública a sua vida privada.
Em Satisfaction, Elke Krystufek expõe sua intimidade durante uma performance,
em 1997, durante a Bienal de Viena, onde se masturba publicamente diante de uma vitrine
cujo público assiste a esse ritual do privado separado por um vidro que separa o espaço da
intimidade da artista e o ambiente da galeria. Ela está deitada numa banheira cheia de água
enquanto revela o ciclo de gozos em um espaço branco que lembra a de um banheiro. No
chão, perto da banheira, há outros utensílios que a artista usa para obter prazer. “Atuando
como protagonistas de sua própria obra, são as musas masturbatórias. Não é mais o
espectador que se masturba frente à imagem. É nesse jogo que o objeto se torna o sujeito do
desejo e realiza suas fantasias antes que o público o faça”. (DE MARTINO. 2010. p. 92). A
galeria de arte e sua privacidade se confundem numa experiência voyeur. Como em um
Zoológico, a artista também se coloca em uma posição de observadora que também assiste
aos rostos e olhares do compartilhamento do orgasmo com as pessoas que a assistem.
Figura 1: Imagens da performance Satisfaction da performer Elke Krystufek.
Fonte: http://31.media.tumblr.com/tumblr_mc6wt1hMXa1r3ctglo1_500.jpg
Em Blow Job (p/b, 16 mm, 1964), de Andy Warhol (Figura 2), é mostrado em plano
seqüência o rosto de um homem cuja expressão facial muda no decorrer do filme aludindo
à presença de uma segunda pessoa que estaria fazendo sexo oral neste jovem. É possível
supor essa relação por meio de pequenos movimentos do rosto, ombro, cabeça e pescoço.
E, claro, pelo próprio nome escolhido para nomear a obra: Blow Job (Boquete, chupeta ou
sexo oral. Tradução da autora). Em grande parte dos trinta e seis minutos do filme, o
personagem olha para um ponto indefinido, às vezes fuma um cigarro e em outros
momentos dirige o olhar direto para a câmera como se estivesse dialogando sem palavras.
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3 Vídeo Blow Job – Andy Warhol (1964)
https://vimeo.com/45258317
Figura 2: Imagens do vídeo Blow Job de Andy Warhol.
Fonte: http://cinespect.com/wp-content/uploads/2011/01/Warhol_Blow_Job.gif
Ao não revelar quais outros personagens estaria presentes na ação do ato sexual,
quer dizer, por quem o jovem recebe o prazer e se, inclusive, é possível nomear essa(s)
pessoa(s), Blow Job deixa uma fissura que rompe com toda uma série de dicotomias:
homossexualidade/heterossexualidade, homem/mulher, masculino/feminino.
Ao tomar o corpo como um espaço de construção bio-política, que age como lugar
de opressão, mas também como centro de resistência, Beatriz Preciado apregoa a
construção do gênero – a partir das práticas contra-sexuais - para além daquelas identidades
sexuais tradicionalmente associadas à reprodução, como a de homem ou mulher. Para
Beatriz Preciado em seu Manifiesto contra-sexual: prácticas subversivas de identidad
sexual sugere que as formas mais eficazes de resistência da produção de sexualidade não
seria a luta pela proibição, mas sim uma produção de forma de prazer alternativa. Assim, a
“paródia” e “simulação” dos efeitos associados ao orgasmo transformariam uma reação
natural ideologicamente construída, onde pênis e vagina são transformados em centros
orgásticos¹.
Em Intimidades, Série Orgasmo 8 (figura 3) revela a sequência de 87 fotos
transformadas em arquivo de vídeo apresentando um estudo visual do ciclo de um gozo a
partir da decomposição do movimento em pequenos fragmentos deste processo. A
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4 experiência é mostrada sequencialmente e linear, delimitando o começo, meio e fim deste
ciclo. Nega-se o cabelo como elemento construtor de uma identidade fixa ao me fotografar
após a raspagem total do cabelo com máquina zero. Manejos do corpo para aludir à imagem
de um ser cujo gênero não está explícito, um ser andrógino cuja ambigüidade remete a um
“anjo sem sexo”. Brinco com a aura da divindade angelical que se reforça a partir das
possibilidades de prazer independe da variabilidade do sexo. É por ser um ser divino que se
pode possuir qualquer atributo humano de prazer.
elemento primordial para que a narrativa seja exposta: uma causa social, um
engajamento político, um veículo de transferência, um emissor da dor, como um
suporte para a existência niilista, como um questionador do ser e do estar e como
uma máquina desejante que fere e é ferido. Um corpo sem órgãos que evagina o
desejo (DE MARTINO. 2009. p. 18)
A existência de cada frame-imagem pressupõe o término e o começo da obra na
medida em que cada fotografia me revela novas modalidades do gozo. Minha excitação
aumenta à cada clic² ao ponto de não saber ao certo se é o meu corpo ou a câmera que
conduzem a ação. Num dado momento estreito relações com esse espelho que me vê e traio
meu corpo ao fechar os olhos e permitir penetrar em outro estado. Assumo pra mim mesma
que não consigo mais manter o olhar aberto e aceito esse jogo de tensão/tesão que a
masturbação nos convida à participar.
Intimidades, Série Orgasmo 8
http://vimeo.com/35572864
Figura 3: 67ª imagem da série Intimidades, Orgasmo 8.
Fonte: Arquivo pessoal
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5 A experiência de um corpo-cidade que goza
O gozo expandido e aberto que frui por entre os poros do espaço público, escondida
entre os cantos da esquina por meio da excitação dos corpos-cidade. A proposta de trazer o
orgasmo para o espaço público se relaciona com a necessidade de naturalizar essa
performance como elemento presente no cotidiano. Para tanto, uma das 87 fotos da série foi
escolhida para ser transformada em um stencil³ de quatro cores (Figura 4). A imagem, ápice
do ciclo do orgasmo onde a fotografada passa por uma intensidade corporal para em
seguida passar por um descanso do corpo, foi colocado em centros da cidade de Brasília
como Rodoviária, Setor Comercial Sul, algumas quadras do Plano Piloto e nos arredores da
Universidade de Brasília.
Figura 4: 67ª imagem da série Intimidades, Orgasmo 8 (versão stencil).
Fonte: Arquivo pessoal
Ao levar essa projeção feita no espaço privado para o espaço público me utilizo de
táticas para desvio de espaços normatizantes e de constante policiamento, como é o local da
rua, para o aparecimento de discursos não-oficiais da cidade - um local de conflito e troca na medida em que as pessoas começam a se apropriar do corpo urbano para colocar suas
reivindicações e criar um deslocamento simbólico, pois inicialmente não se espera que o
orgasmo esteja presente nas ruas e exposto às pessoas.
Ao assumir o orgasmo em público há uma negociação constante do meu
corpo com o corpo da cidade a partir dessa fissura que permite que a rua se torne um
local de troca-troca onde o total controle sobre os corpos (o corpo da cidade e o
corpo humano) é dificultado pelo atravessamento biopolítico que esse tema carrega.
É preciso situar para atuar: se colocar no mundo para interagir e agir.
Trago a complacência de outros elementos que pensam de corpo inteiro: como ferramenta
de existência onde é possível partilhar um espaço já demandado por uma série de acordos,
negociações, tensões e tesões.
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6 Referências
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980.
CANTON, Katia, Corpo, Identidade e Erotismo – Temas da Arte Contemporânea. São
Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.
CARLSON, Marvin. Performance: Uma Introdução Crítica. Editora UFMG.Tradução
de Thaís Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte. 2010.
DE MARTINO, Marlen Batista. Narrativas do eu: confissões na arte contemporânea - o
corpo como diário. Porto Alegre: Editora UFRGS. 2009.
_____. Relatos em primeira pessoa: Confissões Artísticas. Revista Poiésis, n 16, p.86-95,
Dez. de 2010.
NOTAS
¹ La contra-sexualidad afirma que el deseo, la excitación sexual y el orgasmo son sino los
productos retrospectivos de cierta tecnología sexual que identifica los órganos
reproductivos como órganos sexuales, en detrimento de una sexualización de la totalidad
del cuerpo. (PRECIADO, 2002).
² Som do fechamento do espelho da máquina fotográfica por onde a luz entra para atingir o
sensor e assim formar a imagem fotográfica.
³ Técnica que permite a aplicação de uma tinta através do molde vazado em uma base de
papel ou acetato. Neste caso foram usadas quatro camadas de stencil sobrepostas – do
mesmo molde – para criar ilusão de profundidade.
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