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2 de 14 a 20 de fevereiro de 2013 editorial Tudo recomeça depois do carnaval TODOS OS DIAS a vida se reproduz. E segue. Precisamos trabalhar, produzir, consumir, estudar, comprar e vender etc. A vida real. E com ela, os interesses diferentes e até antagônicos das classes sociais se reproduzem todos os dias. No entanto, no Brasil, temos um calendário especial. A vida política, das disputas, das lutas, dos acordos, conciliações ou enfrentamentos, parece se paralisar do início dos feriados de dezembro até o carnaval chegar. Mesmo os fatos importantes da luta de classes em nível internacional, que podem ter relevância na correlação de forças, entre classes, interesses dos países, por aqui, repercutem pouco, pelo menos na imprensa burguesa. A Venezuela está em permanente mobilização, em vigília, em defesa do processo de mudanças e zelando pela saúde de seu líder. Em um mês fizeram grandes mobilizações de massas que envolveram praticamente toda sua população. Em Santiago do Chile, se reuniram todos os países do continente americano – com exclusão do Canadá e Estados Unidos – na Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac). Um organismo interna- cional que se contrapõe claramente à OEA, enfrenta os interesses do imperialismo americano e quer construir uma integração entre todos os de baixo. E ainda elegeram como Secretaria Executiva para o próximo período nada menos do que Cuba! Na Tunísia, os conservadores assassinaram o líder das forças de oposição e a força do capital dissolveu o governo. O governo de Israel, numa afronta às leis internacionais, atacou a Síria com sua aviação, numa clara provocação para internacionalizar a guerra civil. No México 40 mil camponeses zapatistas marcharam pelas cidades de Chiapas. E mais recentemente, outros cem mil camponeses fizeram greve de fome e realizaram passeata na capital do país, protestando contra a tentativa de liberar o milho transgênico que a Monsanto quer impor, após subornar os parlamentares. Nada disso repercutiu na imprensa burguesa brasileira. Seus patrões e editores estavam de férias nas praias e resortes do litoral! Da luta de classes do Brasil, pior ainda. A linha editorial tem sido apenas encharcar as páginas com notícias de violência, para tentar man- Temos várias atividades programadas e algumas delas de forma unitária, o que sinaliza que a classe trabalhadora está construindo espaços de maior acúmulo de forças ter as vendas e audiência popular. E, as únicas duas pautas do último mês têm sido os assassinatos em São Paulo e a tragédia da boate de Santa Maria (RS). Felizmente o carnaval passou. Agora esperamos que tudo volte ao normal. Ou seja, a vida real da luta de classes e dos problemas do povo possam ser de novo evidenciados. E, ao que nos parece, se depender dos movimentos populares o ano de 2013 será de muita mobilização. Já temos várias atividades programadas e algumas delas de forma unitária, o que sinaliza que a classe trabalhadora está construindo espaços de maior acúmulo de forças. Assim, as centrais sindicais já agendaram para o dia 6 de março uma grande marcha a Brasília, para re-pautar no Congresso e no governo federal temas urgentes da classe trabalhadora, que vão desde os ataques da bancada conservadora aos direitos trabalhistas até a necessidade de retomar a luta pela redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais. Na mesma semana, os vários movimentos feministas e das mulheres trabalhadoras se mobilizarão em todo o país, em torno do dia 8 de março. Nesse período, uma ampla coalizão de movimentos da juventude, que vai desde a UNE até setores juvenis de correntes partidárias, prometem realizar inúmeras mobilizações em torno da luta pela universalização da universidade e outros temas da educação. No final março e início de abril, os professores articulados nos sindicatos da CNTE prometem se mobilizar em todo Brasil e em Brasília, em de- crônica opinião Emanuel Cancella fesa do piso nacional dos professores. Os movimentos de petroleiros e movimentos populares estão se preparando para iniciar em março uma campanha nacional, que seguirá durante todo ano, contra a realização dos leilões de petróleo, previstos pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), para novembro de 2013. A realização dos leilões seria a verdadeira entrega do ouro ao bandido, pois a Petrobras já descobriu e delimitou o volume das reservas de todos os poços, em alto mar. Agora, a ANP quer entregar para as petroleiras internacionais. Segundo os especialistas, a realização destes leilões comprometeria nossas reservas e exploração do petróleo pelos próximos 40 anos. Já no meio rural, com a reforma agrária paralisada, todos os movimentos sociais do campo estão se articulando para iniciar as mobilizações em março e intensificar no tradicional abril vermelho, já que dia 17 de abril é dia internacional de luta camponesa. Como se vê, temos uma intensa agenda de lutas, que vai mobilizar as mais diferentes categorias de trabalhadores e setores da sociedade brasileira nesses primeiros meses do ano. Portanto, mais além da folia, a vida real segue, e com luta! Ademar Bogo Linderesa/CC O ponto de apoio necessário A grande mentira A PETROBRAS é uma empresa estatal. Uma das diferenças entre uma empresa privada e uma estatal é o seu compromisso não apenas com o lucro mas com um projeto de desenvolvimento nacional. Por isso é preciso desconfiar quando se alardeia que “a Petrobras teve prejuízo em 2012”, o que é uma grande mentira. Como nada acontece por acaso, não demorou a serem plantadas justificativas para a privatização, como “saída inevitável para a crise”. O fato é que as aves de rapina não descansam. Estão sempre prontas a dar o bote. Vamos colocar os pingos nos is: a Petrobras lucrou em 2012 R$ 21,1 bilhões. Isso depois de produzir, refinar, comercializar, transportar e garantir o abastecimento de derivados de petróleo em todo o país. Aliás, essa é a sua função constitucional. A título de comparação, entre as empresas brasileiras, a Petrobras continuou na liderança. Depois dela veio o Banco Itaú que lucrou R$ 13,59 bi. Mas os bancos se utilizam de várias brechas legais para burlar o pagamento de impostos e não têm compromisso social, não investem no desenvolvimento nacional. Por exemplo: a Petrobras paga royalties à União, aos estados e municípios. A companhia também financia 50% do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). É, ainda, a empresa que mais paga impostos para União, estados e municípios. Sem contar os inúmeros projetos culturais. Alguma outra empresa ficaria oito anos com o preço da gasolina congelado, para impedir que a inflação e os preços disparassem? E isso pode ser considerado ruim para o povo brasileiro? É bom refletir sobre o papel social da empresa, antes de aplaudir aqueles de raciocínio estreito que só calculam o lucro imediato. Historicamente, quem sempre financiou o desenvolvimento do nosso país foi o capital estatal. É bom refletir sobre o papel social da empresa, antes de aplaudir aqueles de raciocínio estreito que só calculam o lucro imediato Mas por que lucrou menos? A crítica à Petrobras é por conta da queda de seu lucro em 32%. Um dos principais motivos da queda nos lucros da Petrobras foi a importação de gasolina durante certo período, em consequência da necessidade de suprir o mercado interno. Para estimular a indústria de automóveis, o governo isentou os compradores do pagamento do IPI. Resultado: aumentou significativamente a frota de automóvel nas ruas, sem esperar que a empresa se preparasse para a nova demanda. Para atender o crescimento do consumo, a Petrobras precisou importar parte da gasolina, pagando mais caro, e revendeu no mercado interno subsidiando parte do seu custo. Mas, a pergunta que não quer calar: por que a Petrobras também teve que subsidiar a gasolina repassada aos postos de bandeira estrangeira (Shell, Esso, Texaco, Rpsol etc)? Por que os postos de bandeira estrangeira não dividiram o prejuízo no custo final da gasolina com a Petrobras? Com a palavra, a responsável pela fiscalização, Agência Nacional de Petróleo e Gás Combustível (ANP). Mas a Petrobras ainda é uma empresa estatal e, por isso, pensa no futuro e não apenas no lucro imediato. A preocupação com o futuro levou à construção de mais cinco refinarias o que, além de suprir o mercado interno, vai permitir a exportação de derivados de petróleo. Então, por que privatizar? A sociedade tem que ficar atenta já que a presidente da companhia, Maria das Graças Foster, encabeça uma campanha junto à grande mídia para desgastar a companhia e possibilitar a privatização da Petrobras, seja por inteiro ou, como já se cogita nos bastidores: a criação de uma empresa de refino e a venda de 30% das ações dessa empresa. Foster também já vendeu blocos de petróleo, o BS-4, na Bacia de Santos, para o megaempresário Eike Batista, através do plano de desinvestimento. Ou seja, Foster está entregando nossos poços de petróleo, que são patrimônio de todo o povo brasileiro. Será que teremos uma nova “privataria” pela frente? Como os trabalhadores já fizeram no passado — nas campanhas Fora Collor e Fora FHC - principalmente por conta das privatizações, está na hora da campanha Fora Graça Foster Já! Será que as crises nos Estados Unidos, na Europa e que se refletem em todo o mundo, não foram suficientes para mostrar o quanto o neoliberalismo é nocivo? Saída de Graça Foster Os sindicatos de petróleo ligados à Federação Nacional dos Petroleiros (FNP) já discutem ação na justiça para a destituição da presidenta da Petrobras e de sua diretoria, por priorizarem metas alheias ao interesse nacional, e por macular a imagem da Petrobras. Foster tem anunciado na imprensa a necessidade de sucessivos aumentos nos preços dos combustíveis, o que prejudica a sociedade que é quem paga a conta, e também alimentaria a alta da inflação. Uma das formas de resolver esse problema seria rever a margem de lucro das distribuidoras, por exemplo. (A íntegra deste texto está em www.brasildefato.com.br) Emanuel Cancella é coordenador da Federação Nacional dos Petroleiros (FNP) e do Sindipetro-RJ. APRENDEMOS COM ARQUIMEDES de Siracusa (287-212 a. C) que, quando se quer deslocar um grande peso procura-se um ponto de apoio fora para colocar sobre ele uma alavanca. Diante do desafio de colocar para navegar uma embarcação de 4 toneladas, o filósofo e matemático, diante da solução expressou: “Deem-me um ponto de apoio e uma alavanca e moverei a terra”. Ninguém mais que os camponeses, acostumados com o peso dos obstáculos físicos sabem que com os obstáculos políticos ocorre a mesma coisa. Sabem, mas nem sempre se convencem e por isso, se equivocam quando buscam o ponto de apoio para colocar o instrumento e, na ausência de um, acabam colocando em seu lugar o próprio pé. Concretamente, a partir de 2003 quando um novo conjunto de forças chegou ao governo, derrotando aqueles que alimentavam o modelo neoliberal, os movimentos sociais do campo passaram a confiar no governo vitorioso, entregando a ele a responsabilidade de remover o obstáculo do latifúndio através da realização da reforma agrária. Uma década depois, as análises apontam que não só o latifúndio está quase intocado, como também os pés dos camponeses estão presos sob a alavanca governamental que aposta no agronegócio, força essencial do capital e da concepção desenvolvimentista que ora governa o país. Vivemos como Arquimedes que equivocadamente buscava um ponto de apoio para mover a terra posicionando o instrumento sobre o próprio obstáculo. Senão vejamos: se conforme compreendido e divulgado “a reforma agrária não tem mais espaço no atual modelo”, por que teria ela espaço no atual governo se ambos comungam da mesma concepção desenvolvimentista do país? Esta dúbia visão leva a apostar na institucionalidade, como ponto de apoio externo, sem perceber que ela se tornou parte do obstáculo. Ou seja, a participação no processo eleitoral autoriza o governo a não só não fazer as mudanças estruturais, como também a desnacionalizar cada vez mais a terra e a economia. Ao invés da inserção nas forças populares, elege-se a inserção no poder institucional burguês Por outro lado, diante do esgotamento da eficiência das táticas históricas e da impossibilidade de remover o verdadeiro obstáculo, ao invés de procurar o ponto de apoio fora do obstáculo para colocar o instrumento, buscam-se explicações, com avaliações do movimento, consultas, realização de eventos e congressos futuros, como se os pecados humanos fossem responsáveis pelos raios que descem do infinito. As direções, no papel de vanguarda, ao não se darem conta que a elas cabe a tarefa de buscar respostas orgânicas e eficientes, colocam as próprias bases como calços, ora firmando a alavanca sobre seus pés, impedindo-as de fazerem força contra o obstáculo; ora esperando que os amigos ofereçam, pelos questionários respondidos, um ponto de apoio onde possam firmar algum esforço, e, no intuito de “não ficar de fora”, vagam cada vez mais para dentro e para o fundo do obstáculo. O que está fora da institucionalidade, da reforma agrária e dos próprios movimentos que pode servir como ponto de apoio para que, estes últimos, como alavancas desloquem mais facilmente os obstáculos, não é outra coisa senão as forças sociais mobilizadas. Quando se decidiu anteriormente rumar em direção à reforma agrária popular e o poder popular, não se quis dizer que a população faria a reforma agrária para os camponeses, senão que, os movimentos, com seu grau de experiência e consciência adquiridas, ajudariam a população a se organizar, para que ela se empenhasse em resolver os problemas em geral, dentre eles a reforma agrária; tais decisões não apenas continuam sem aplicação, como também se vê que a marcha toma rumos opostos. Ao invés da inserção nas forças populares, elege-se a inserção no poder institucional burguês desde os municípios, aliando-se às forças historicamente inimigas de qualquer transformação estrutural. Como Arquimedes, procura-se o ponto de apoio externo para “mover a terra”, ele não está tão distante como a lua e nem tão próximo como os pés das bases; encontra-o quem se colocar no lugar certo. Ademar Bogo é filósofo, escritor e agricultor. Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Subeditor: Eduardo Sales de Lima • Repórteres: Aline Scarso, Michelle Amaral, Patricia Benvenuti • Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela), Marcio Zonta (Peru) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP), Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper (Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Leonardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ) • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Jade Percassi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfica: S.A. O Estado de S. Paulo • Conselho Editorial: Angélica Fernandes, Alipio Freire, Altamiro Borges, Aurelio Fernandes, Bernadete Monteiro, Beto Almeida, Camila Dinat, Cleyton W. Borges, Dora Martins, Frederico Santana Rick, Igor Fuser, José Antônio Moroni, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Marcelo Goulart, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Pinheiro, Neuri Rosseto, Paulo Roberto Fier, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Rosane Bertotti, Sávio Bones, Sergio Luiz Monteiro, Ulisses Kaniak, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800 de 14 a 20 de fevereiro de 2013 3 Paulo Kliass instantâneo Familiar ou agronegócio? a l noc ico Igor Fuser Brasil subimperialista? AOS DEZ ANOS DA POSSE de Lula como presidente, é natural que atores sociais de todos os tipos se dediquem ao balanço desse período. Entre outros tópicos, está na berlinda a política externa brasileira – uma das áreas, junto com as medidas de inclusão social, em que o governo expressou mais claramente sua face progressista. Mas essa é uma política pública como as demais, e nela também se manifestam as contradições e ambiguidades das gestões de Lula e Dilma. Desde 2003, o Brasil assumiu posturas firmes contra o imperialismo em todo um leque de questões. Destacamse a rejeição da Alca, a defesa dos governos progressistas da América Latina contra o golpismo da direita e iniciativas de integração que enfatizam a autonomia da região, à margem da ingerência dos EUA. Esse é, de longe, o aspecto principal. Ao mesmo tempo, o Brasil enviou e mantém tropas no Haiti em tarefas que incluem a repressão a atos de protesto. Também fechou acordo com EUA sobre a exportação do etanol, entre outras posições convergentes com as preferências de Washington e da burguesia local associada aos interesses estrangeiros. É um erro qualificar política tão complexa de subimperialista. Em apoio a esse ponto de vista, costuma-se mencionar a presença crescente de empresas brasileiras em países vizinhos, com o ostensivo apoio de Brasília. Muitos desses empreendimentos têm de fato um caráter predatório, em contraste com o discurso cooperativo das autoridades brasileiras. Mas será isso suficiente para caracterizar o Brasil como imperialista? Historicamente, o imperialismo se apresenta como uma relação abrangente de dominação e exploração, na qual uma metrópole capitalista exerce poder e influência sobre a nação dependente, bloqueando seu desenvolvimento autônomo e limitando a soberania política. Isso ocorre na América Latina? É claro que sim, mas quem age de forma imperialista são os Estados Unidos da América, e não o Brasil. No essencial, o governo brasileiro tem atuado em favor da autonomia e do progresso econômico e social dos vizinhos. Não faz isso por generosidade, mas porque uma América Latina mais independente faz parte do seu projeto para a inserção internacional do nosso país. João Brant Simbiose ideológica MERVAL PEREIRA, colunista do jornal O Globo e da Globo News, acaba de lançar um livro sobre o mensalão. Quem escreve o prefácio? Carlos Ayres Britto, ex-presidente do STF. O fato de Ayres Britto ter aceitado escrever já é simbólico, mas pior é o que ele escreve sobre Merval: “cidadão full time e conscientemente postado no píncaro da devoção à causa pública, entregou-se à corajosa missão de escrever os artigos, na presciência de que a Ação Penal 470 sinalizava uma virada cultural de página no nosso país”. Quem acompanhou a preparação para o julgamento da Ação Penal 470 sabe que a pressão dos grupos de mídia foi essencial para que se estabelecesse a agenda do STF. Dois objetivos diretos estavam em vista: garantir que Cézar Peluzo e Carlos Ayres Britto participassem do julgamento e, principalmente, garantir que este acontecesse antes ou durante o processo eleitoral. Ayres Britto respondeu às pressões dos grandes meios. Fez questão de dizer, algumas vezes, que “o STF está atento à opinião pública”. O problema é que o que Ayres Britto C r-C m.a .co as sist chama de opinião pública é, na verdade, a opinião da Globo. Se ele fosse ouvir o conjunto de opiniões da sociedade, teria levado em conta várias outras perspectivas, entre elas aquela que defendia que os julgamentos sobre financiamento de campanha fossem feitos na ordem em que chegaram o tribunal e aquela que defendia que não se misturasse o julgamento com o período eleitoral. A visão restrita de Ayres Britto, contudo, não se dá em função de desconhecimento. Há, sim, um encantamento e uma simbiose ideológica com os meios de comunicação. Ele já tinha demonstrado esse encantamento em seu relatório sobre a lei de imprensa, no julgamento sobre a ação TV digital e na avaliação dele sobre a classificação indicativa, em que apresenta visões que fariam corar os republicanos nos Estados Unidos (falo seriamente). Agora, aposentado do STF, Ayres Britto, reconhecido pela visão progressista e humanista, termina sua carreira – por identidade ou vaidade, não importa – se dispondo a prefaciar o livro de um dos quadros mais ativos da direita brasileira. Que coisa. AS ARTICULAÇÕES POLÍTICAS desse início de ano apontam para uma reforma ministerial a ser promovida pela Presidenta Dilma em pouco espaço de tempo. Um dos possíveis elementos de mudança envolve o Ministério da Agricultura, Abastecimento e Pecuária (Mapa), onde um dos nomes cogitados para ocupar a pasta é o da senadora Kátia Abreu (PSD/TO), uma das mais ardorosas representantes do agronegócio no Congresso Nacional. Pode até ser que o resultado final das negociações não implique na presença de uma figura tão reacionária e conservadora no primeiro escalão da Esplanada dos Ministérios. Mas o aspecto mais relevante não é tanto a do indivíduo a ser nomeado. O ponto a ser focado pelas forças progressistas é o estabelecimento de pressão política para que a orientação das prioridades do governo na área do campo seja alterada. As entidades do movimento ligadas aos sem terra, à reforma agrária, à agricultura familiar e outras têm sido enfáticas e unânimes em denunciar a forma como elas têm sido relegadas a segundo plano. A preocupação maior do governo, desde o início do primeiro mandato de Lula, tem sido a de atender às reivindicações dos interesses do agronegócio. Tal opção tem se manifestado nas generosas dotações orçamentárias concedidas ao Mapa, em comparação com os minguados recursos destinados ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Com isso, os programas de ampliação da reforma agrária e de fomento à agricultura familiar, por exemplo, têm avançado muito pouco. A orientação da política econômica manteve a dependência para com o modelo primário exportador, em razão dos benefícios gerados pela política de promoção de saldos expressivos na Balança Comercial. Assim, o governo brasileiro, mesmo sob a liderança do PT, terminou por reforçar a articulação político-institucional em torno de interesses bastante conservadores, a exemplo da Vale privatizada e do núcleo duro do setor do agronegócio exportador (soja, carne, açúcar e café). A obsessão em conseguir recordes sucessivos nas cifras de total de exportações esconde, na verdade, as péssimas consequências para o país provocadas por tal opção. A agricultura familiar tende a ser portador de maiores características de sustentabilidade, ao inverso do que ocorre com agronegócio Montar um modelo estratégico em que as energias e os recursos sejam dirigidos às atividades econômicas primárias – como mineração e agricultura – tem o sentido de provocar uma brutal transferência de renda para o exterior. O Brasil exporta recursos da natureza a preços definidos no mercado internacional das commodities, com alta influência dos humores especulativos dos gigantescos agentes que atuam na área. Além disso, são atividades que incorporam muito pouco ou quase nenhum valor agregado à nossa economia. Por outro lado, o nosso país importa produtos manufaturados de alto valor agregado, gerando renda e emprego no exterior, em especial na China. Ou seja, continuamos reproduzindo o velho esquema da divisão internacional do trabalho, em que nos submetemos à extorsão do neocolonialismo. Assim, um dos problemas dessa prioridade concedida ao agronegócio é relegar a agricultura familiar a um segundo plano. Essa forma de organização da atividade agrícola é responsável pela produção de quase 70% do total dos alimentos que chegam à mesa das famílias brasileiras, mas não obtém o reconhecimento que merece. Esse tipo de arranjo baseado na organização de pequenas propriedades e/ ou cooperativas poderia responder por um percentual ainda mais elevado, caso contasse com recursos e capacitação técnica adequada por parte da administração pública. Além disso, a organização da produção agropecuária com base no modelo da pequena propriedade pode contribuir para viabilizar um modelo gerador de mais emprego e de redução da pressão migratória em direção aos grandes centros urbanos. A agricultura familiar tende a ser um sistema portador de maiores características de sustentabilidade, ao inverso do que ocorre com grande agronegócio. A reforma ministerial pode ser um momento em que o governo refaça sua escala de prioridades. A grande maioria da população aguarda por uma sinalização de reforço do modelo sustentável e de amenização das benesses concedidas aos dirigentes do modelo espoliador. fatos em foco da Redação Mutilação genital feminina Cerca de 30 milhões de meninas com menos de 15 anos correm risco de sofrer mutilação genital (MGF). De acordo com dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgados em 6 de fevereiro, Dia Internacional da Tolerância Zero contra a Mutilação Genital Feminina, essa prática tem diminuído, mas há ainda um grande número de garotas vulneráveis ao procedimento. Nos 29 países da África e do Oriente Médio onde a prática está concentrada, o índice de garotas com idade entre 15 e 19 anos que foram mutiladas é de 36%. Entre as mulheres de 45 a 49 anos, a estimativa é de 53%. Graves consequências Segundo a ONU, ao menos 120 milhões de garotas e mulheres sofreram mutilação genital nesses 29 países. Desse total, 92 milhões vivem na África. Anualmente, três milhões de meninas são vítimas da mutilação geni- tal por questões religiosas ou culturais. As mulheres vítimas dessa prática podem ter graves consequências na saúde, como problemas urinários, infecções, infertilidade e complicações no parto. Você sabia que... O ex- presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o advogado Ayres Britto, que presidiu a suprema corte no chamado processo do mensalão, com toda aquela empáfia de Juiz soberano, e sob os holofotes amplificados da mídia burguesa, galgou todos os postos no poder judiciário sempre por indicação de algum padrinho, sem nunca ter realizado nenhum concurso? Nem ter sido eleito por ninguém? Prisões e extradições ilegais Após o 11 de Setembro, os Estados Unidos conseguiram mobilizar mais de um quarto dos governos de todo o mundo para coopera- rem em operações de sequestro e tortura de suspeitos de terrorismo. No total, 54 países participaram em diferentes níveis de cooperação, com o programa de detenções secretas e extradições extrajudiciais da agência central de inteligência dos EUA (CIA) e violaram direitos humanos. A conclusão é de um detalhado relatório de 213 páginas organizado pela ONG Open Society Justice Initiative, localizada em Nova York. 1º de Maio unificado Cresce entre os dirigentes da Força, UGT, Nova Central, CTB e CGTB o entendimento de se fazer um 1º de Maio Unificado valorizando os direitos trabalhistas e as leis nascidas das lutas sociais. Um dos focos do ato unitário deve ser a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que completa 70 anos. A valorização da CLT, no 1º de Maio Unificado, acontece também no ano em que o 13º salário completa meio século. Paulo Kliass é doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal. 6 de 14 a 20 de fevereiro de 2013 brasil Raquel Torres Quatro exemplos de resistência Luta por direitos: resistência contra remoções, despejos e demolições MEGAEVENTOS Representantes da Aldeia Maracanã, Vila Autódromo, Morro da Providência e Manguinhos falam sobre a luta cotidiana contra o projeto de cidade que não os inclui Maíra Mathias, Raquel Júnia e Raquel Torres do Rio de Janeiro NO MEIO DO CAMINHO para deixar a cidade mais bonita para os turistas que chegarão ao Rio durante Copa do Mundo e Olimpíadas tinha uma comunidade. E continua tendo, graças à resistência de centenas de pessoas, apesar da investida sistemática dos governos com os argumentos já desgastados de que não se pode barrar o progresso, de que as famílias serão recompensadas, de que haverá assistência no deslocamento, de que um estacionamento é mais importante agora e etc. Em entrevista ao Brasil de Fato, pessoas que participam ativamente de processos de resistência relatam as dificuldades de quatro comunidades no Rio de Janeiro que têm sido emblemáticas na luta por direitos: a Aldeia Maracanã, localizada no terreno do antigo Museu do Índio, ameaçada de demolição e remoção pelas obras da Copa do Mundo; a Vila Autódromo, que há anos sofre ameaças de despejo por governos interessados em explorar a área, na beira da lagoa de Jacarepaguá; o Morro da Providência, com obras de “revitalização” que projetam a remoção de um terço das famílias moradoras; e o território de Manguinhos, alvo de diversas violações aos direitos humanos pelas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O encontro aconteRaquel Torres Fernando Soares ceu em uma manhã de sábado, no antigo Museu do Índio. Até a data do fechamento dessa edição, o governo estadual havia voltado atrás da decisão de demolir o prédio do antigo museu, mas continuava inflexível em relação à remoção da aldeia. Leia abaixo a entrevista com Jane de Oliveira, diretora social da Associação de Moradores da Vila Autódromo, Sidney Ferreira, um dos fundadores da Comissão pelo Direito à Moradia da Providência e membro do Fórum Comunitário do Porto, Urutau Guajajara, mais conhecido como Zé, é professor de línguas indígenas e uma das lideranças da Aldeia Maracanã e Fernando Soares, coordenador do Laboratório de Direitos Humanos de Manguinhos e um dos fundadores do Fórum Social da Comunidade. “Não houve consulta popular, o projeto foi feito de forma totalmente adversa às necessidades dos moradores e à legislação” Brasil de Fato – O que está acontecendo nas comunidades de vocês? Zé Guajajara – Nossa luta tem sido mais intensa a partir de 2006, quando ocupamos o prédio do antigo Museu do Índio, abandonado desde 1977. Nossa ideia sempre foi a de devolver aos indígenas um patrimônio que desde a origem foi ligado a eles. Essa história remonta a 1865, quando o duque de Saxe doou o prédio ao Império brasileiro para a criação de um centro de estudo de sementes nativas e das populações indígenas que as manipulavam. De lá para cá, esse prédio já abrigou o Serviço de Proteção ao Índio, fundado pelo Marechal Rondon, que é a Fundação Nacional do Índio (Funai), até finalmente se transformar, em 1953, no Museu do Índio. Esse patrimônio tem sido inseparável das populações indígenas. Então, em 2004 reunimos indígenas de diversas etnias e tentamos a retomada do prédio, sem sucesso. Em 2006, já com maior número de indígenas e apoiadores, o retomamos com uma meta clara – a revitalização e gestão autônoma. Não existe no Brasil um patrimônio indígena pensado e administrado por indígenas. A partir do fim de 2012 o governador Sérgio Cabral veio nos ameaçar, dizendo que comprou esse imóvel e iria derrubar tudo para fazer qualquer coisa no lugar – shopping, estacionamento, nem o próprio governo sabe. Sidney Ferreira – No fim de 2010, chegou um pessoal na Providência se dizendo agente público da prefeitura, pedindo aos moradores para deixarem tirar as medidas das casas porque haveria melhorias nas habitações. E quem não quer melhoria? É claro que a comunidade abraçou e deixou tirarem medidas. Mas, no começo de 2011, o prefeito Eduardo Paes foi à comunidade apre- sentar o projeto dele para a Providência. Inclusive chegou a dizer que os moradores tinham que aprender a ser espertos, a ganhar dinheiro com os gringos, que qualquer banca de cocada e bolinho que um morador botasse e anunciasse que eram receitas de uma avó escrava, os turistas iriam adorar. Afirmou isso, induzindo o povo a agir errado, e foi embora. Não houve consulta popular, nenhuma participação dos moradores, ou seja, o projeto foi feito de forma totalmente adversa às necessidades dos moradores e à legislação. Uma semana depois, os agentes da prefeitura chegaram marcando inúmeras casas com a sigla da SMH, Secretaria Municipal de Habitação, que a gente denomina como “Sai Morador Hoje” – o morador que tivesse a casa marcada teria que sair. Os termos oferecidos para deixarmos nossas casas eram uma indenização de valor irrisório, o aluguel social de R$ 400, ou uma compra assistida, que é uma ilusão. No projeto oficial, 832 famílias teriam que ser removidas, um terço da comunidade. Eles também ofereceram alguns apartamentos, mas, de lá pra cá, só está sendo construído um conjunto habitacional, com apenas 162 apartamentos. Quem reuniu os moradores para começar a “passar vaselina” no pessoal foi o capitão da UPP [Unidade de Polícia Pacificadora]. Mas no fim de fevereiro ele mostrou a cara e falou: “Gente, eu trabalho para o estado, é uma hierarquia. Se cair a ordem no meu colo para tirar, eu vou botar pra fora”. A partir daí, os moradores começaram a se organizar, primeiro em grupos separados, depois todos juntos, com a criação da Comissão Pelo Direito à Moradia da Providência, em março. “Enquanto nos organizamos em duas, três comunidades, para conversar e traçar novas estratégias, os grandes empresários se organizam com o governo” acusada de causar dano estético, dano ao meio ambiente. Depois houve a desculpa de que tinha que ser removida para que fosse construído um centro de mídia para os Jogos Olímpicos, depois para passar uma via da Transolímpica. Também já foi dito que a Vila ficava em área de risco e que estava localizada no perímetro de segurança [dos atletas, durante as Olimpíadas]. O que percebemos é que não há um motivo baseado no interesse público que justifique a remoção. “Os agentes da prefeitura marcaram inúmeras casas com a sigla da SMH, Secretaria Municipal de Habitação, que a gente denomina como ‘Sai Morador Hoje’” Fernando Soares – Manguinhos está localizada em um entroncamento viário da cidade. Então, se você quer ir do aeroporto para a Barra da Tijuca ou da zona Norte para o Centro, vai passar por Manguinhos. Nesse sentido começaram a entender que é fundamental incluir Manguinhos no projeto de cidade para Copa e Olimpíadas. A comunidade foi escolhida para receber o PAC – em tese, um plano de urbanização –, e, após o anúncio desse plano, vimos mudanças drásticas. Primeiro, os presidentes das treze associações de moradores da comunidade foram obrigados a entregar os cargos, a mando do tráfico de drogas, criando um ambiente político favorável – e isso é o mais inusitado – ao processo de obras. Sempre houve uma aliança entre Estado, empreiteiras, grupos paramilitares – seja tráfico ou milícia – e a própria UPP para favorecer esse processo de expulsão dos pobres de áreas centrais da cidade para partes cada vez mais periféricas. A indenização, a compra assistida, isso é irreal, as pessoas não conseguem comprar outra casa no mesmo local, como a lei manda. Raquel Torres Jane de Oliveira – A Vila Autódromo fica em uma região muito valorizada, é uma área plana, na beirada da Lagoa de Jacarepaguá, com a praia da Barra perto. Ao longo dos anos, várias pessoas foram assentadas lá pelo poder público e outros tantos receberam os títulos das propriedades. Só que aquela terra não é mais para pobre, pelo menos na visão dos governantes. É uma área supervalorizada, onde as grandes empreiteiras que financiam as campanhas políticas estão loucas para entrar. Então a Vila sofre assédio para ser removida desde a década de 1990. Os moradores lembram que na época o prefeito Eduardo Paes, então subprefeito da Zona Oeste, chegou a pilotar um trator para tirar as casas. Esse foi um episódio marcante: os moradores fizeram uma barreira humana e impediram as demolições. Na época dos Jogos Panamericanos, novamente tentaram tirar a Vila Autódromo, e, de novo, fracassaram. A comunidade já foi Jane de Oliveira brasil de 14 a 20 de fevereiro de 2013 Tânia Rêgo/ABr Em Manguinhos, no mesmo dia que entrou a UPP, entrou a Sky, a Claro, a Tim, a Light, ao passo que a renda das pessoas não aumentou. Os moradores começam a se sentir a necessidade de vender os imóveis e ir para outros lugares mais distantes e baratos. E a UPP (inaugurada em fevereiro deste ano) veio para de certa forma manter as relações de poder – aquelas mesmas associações de moradores que foram impostas pelo tráfico nessa situação de golpe continuaram lá, após a entrada da UPP. As pessoas continuam com medo de expressar sua vontade política. Alguns companheiros de Manguinhos até hoje são impedidos de participar de processos políticos, estão sob ameaças. E como vocês têm articulado a resistência? Zé Guajajara – Em 2010, participei de um encontro sobre Belo Monte. Havia estudantes de vários campos de conhecimento e, no fim da minha fala, vários me cercaram e perguntaram: “Estamos sabendo que o governo do estado está ameaçando retirar vocês. O que vocês, indígenas, vão fazer em relação a isso?” Eu respondi a pergunta com outra pergunta: ora, nós, indígenas, estamos lá, defendendo o patrimônio. Mas e vocês? O que vocês, população, irão fazer por aquele lugar? A partir daquele momento, os estudantes começaram a se mobilizar. Então nosso discurso passou a ser o de que esse patrimônio é muito pesado só para nós, indígenas. É preciso que venham todos, e convoquem toda a comunidade científica, críticos de todas as áreas de conhecimento, ONGs, enfim, toda a sociedade civil para essa luta aqui. “A polícia chegou por cima da minha laje, quebraram muro, caía pedra na minha cabeça. Se eu fosse sozinho, resistiria, mas tenho dois filhos” Jane – Fizemos em 2010, com o Fórum do Porto, um pedido ao Eduardo Paes para apresentarmos uma contraproposta de urbanização da comunidade. Chegamos a montar um coletivo técnico ainda no começo daquele ano, quando descobrimos na internet uma lista de 139 comunidades ameaçadas de remoção. Saímos de porta em porta, de comunidade em comunidade, alertando, distribuindo folhetos. Uma grande parte dessas comunidades não se mobilizou, justamente as mesmas que vieram “caindo”. Quando entregamos o plano popular para revitalizar a comunidade, em 16 de agosto de 2012, a prefeitura disse que responderia em 45 dias, mas não se manifestou até hoje. Sidney – Na Providência, em momento algum o secretário de Habitação, que era o Jorge Bittar, tinha ido à comunidade. Depois que começamos a fazer o movimento, começamos a ter visibilidade. Eu mesmo passei a receber telefonemas com assédio financeiro e intimidações para que me calasse. Em maio de 2012, depois de muito relutar, o secretário finalmente foi ao morro. Nós pedimos a palavra, e a casa caiu. Apontamos muitas coisas erradas da obra. Uma delas foi a seguinte: aquele teleférico [teleférico que está sendo construído na comunidade] seria para quem? Para nós, moradores, não seria. O trajeto do teleférico é o seguinte: Central do Brasil, praça Américo Brum – destruíram a única praça da comunidade que as crianças tinham para jogar bola, um patrimônio cultural da Providência –, e Cidade do Samba. Só que a parte mais alta do morro é o Cruzeiro. Ou seja, você vai ter que descer na Américo Brum, passar pela ladeira, e daí pela escadaria, para poder chegar ao Cruzeiro. É uma contradição de um projeto, que no fundo, é turístico. Em momento algum somos contra melhorias, pelo contrário. Somos contra a bagunça. As dificuldades desmobilizam a comunidade? O que mais desmobiliza? Raquel Torres Sidney Ferreira 7 Índio Kuati Pataxó, morador da aldeia, protesta contra a desocupação do prédio do antigo Museu do Índio Jane – Veja a questão do Minha Casa, Minha Vida... Uma parte da sociedade acha que o governo está providenciando política de moradia. Mas não é verdade. O governo está produzindo política capitalista para favorecer as grandes empreiteiras. As pessoas que precisam ser beneficiadas por esse projeto são aquelas que vivem de aluguel, não as que já conseguiram comprar suas casas. Quando a gente chama uma assembleia e não comparecem todos os moradores, parte dos que não comparecem vivem em casas alugadas. É uma desmobilização. Quando a prefeitura vai à Vila Autódromo, mostra um lindo projeto, mas não fala que ali vai ser cobrada uma taxa de condomínio que a maioria das pessoas não pode pagar, isso também gera desmobilização. Tem também a desmobilização provocada pela grande mídia, que só anuncia o que não vai prejudicar o lado das iniciativas privadas e dos governos. Chega para noticiar que tal comunidade está num lugar considerado área de risco, mas nunca anuncia que o engenheiro do movimento social comprovou que ali não é área de risco. Vendem para a população uma imagem tal que quem está no processo de remoção até começa a pensar contra o movimento social. “Eu aprendi que cada vez mais a gente tem que se integrar. A população tem que embarcar em tudo quanto é luta social” Fernando – Nossa mobilização de resistência ao PAC Manguinhos se deu num cenário em que era tudo uma novidade, de certa forma as pessoas pensaram que seria um projeto de urbanização das favelas. Pensando em todo o estigma que a favela carrega, de ser um lugar de violência, tráfico, conseguir apoio para discutir esse projeto foi um problema. Inclusive porque, e aí vale a pena colocar o dedo na ferida, as ONGs acabavam fazendo o papel de mediadoras desse processo, acabavam funcionando como agentes do governo. E agentes que não eram necessariamente contra Manguinhos, mas não entendiam com profundidade porque não viviam de dentro o processo. Se é um projeto de habitação e saneamento, os beneficiários devem ser os moradores da favela. Só que os moradores não são ouvidos para dizer que tipo de projeto queremos. O projeto passa por cima da cabeça deles, e as desculpas são sempre as mesmas. “Estamos trocando as rodas com o carro andando. Ou vocês aceitam isso e, com o tempo, a gente vai ajustando, ou não vai ter nada”. Mas não vai ter nada? Na época, o paradoxo de Manguinhos era esse. De certa forma, conseguir apoio da sociedade foi muito difícil. Da mídia, que sempre tem estado ao lado dos processos hegemônicos, nem se fala. E existe ainda o antigo coronelismo. Você tem os mesmos coronéis políticos mandando, se eles mandam você tem que ficar calado... Há muitos processos, então. Um que é a ilusão de que aquilo vai ser positivo pra você, e outro que é a coerção em si. Existem poderes que são realmente ameaçadores e geram a impossibilidade de se ter uma atuação política, porque a preservação da vida é um valor máximo. As pessoas às vezes preferem até deixar suas casas. Eu mesmo tive que deixar a minha. A polícia chegou por cima da minha laje, quebraram muro, caía pedra na minha cabeça. Se eu fosse sozinho, resistiria, mas tenho dois filhos. Resolvi sair. Não abandonei a luta, mas aquela casa. Mas, simbolicamente, eles estão vencendo, avançando. Aqui, no caso do Museu do Índio, o imaginário, aquela coisa do “bom selvagem” volta à tona e o apoio popular é grande. Mas a superação do estigma do favelado é uma coisa muito difícil ainda. Já que vocês já tocaram no assunto da cobertura da mídia, como tem sido a relação com os veículos de imprensa? Jane – A Globo fez uma entrevista com o Altair Guimarães [presidente da associação de moradores da Vila Autódromo] e depois colocaram tudo invertido. Todo mundo conhece a fala do Altair. Eles colocaram que o Altair não queria que a Vila Autódromo fosse para o Minha Casa, Minha Vida porque ia misturar com o povo da Cidade de Deus, Santa Cruz, do Morro do Macacos. Nós fizemos com que eles se retratassem por causa disso. Outro dia, a Band queria fazer uma entrevista, e eu disse que faria, mas só com uma condição: que eles primeiro fossem entrevistar o prefeito Eduardo Paes e, depois, a Defensoria Pública porque os três lados tinham direito à fala, e o povo tem direito a ouvir aquilo que está sendo colocado para fazer sua análise. Zé Guajajara – Com a gente não é diferente. Fica claro pra quem os grandes meios de comunicação trabalham. Às vezes parece que sai uma ou outra matéria boa. Mas a gente tem que fazer uma análise nas entrelinhas. Por exemplo, eles nunca mostraram a parte cultural, a parte imaterial. Sempre apenas um conflito entre indígenas e poder público. Apesar de o presidente do Crea [Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura] vir aqui e afirmar que a estrutura do imóvel é perfeitamente recuperável mesmo após 30 anos de abandono, os grandes meios de comunicação insistem em dizer que o prédio está em ruínas – e, portanto, tem que vir abaixo. Sidney – Os veículos de comunicação entram na nossa casa sem pedir permissão e passam para a gente o que querem. Participei de várias matérias no início, até por inocência, e na hora de ver, percebi que as matérias, depois de editadas, cortavam o que nós dizíamos. Isso na Globo, na Record. O que cada um aprende com a luta do outro e como veem o futuro? Zé Guajajara – A única diferença entre nós aqui é que a luta desses outros companheiros é especifica para moradia. No nosso caso, já sabemos o tipo de destinação que queremos para o antigo Museu do Índio. Defendemos cinco: uma delas é moradia sim, por que não? Mas, acima de tudo, estão as destinações cultural, educacional, imaterial e religiosa. Sidney – Eu aprendi que cada vez mais a gente tem que se integrar. A população tem que embarcar em tudo quanto é luta social, seja na Providência, na Vila Autódromo, na Aldeia Maracanã, etc. E, embora a luta seja árdua, a gente vai conseguir ganhar por batalhas. E à medida que vamos ganhando, não podemos nos acomodar. Se a gente consegue uma liminar embargando a obra, imediatamente os promotores vão lá e o desembargador libera de novo. Dizem que não adiantou, mas adiantou, sim. Só quem está na luta sabe o esforço que é para chegarmos a uma liminar. Independente de qualquer coisa, vamos ser retaliados, sofrer pressões de tudo quanto é jeito, mas não podemos desistir. Jane – Aprendi que a máfia é muito bem organizada. Enquanto nos organizamos em duas, três comunidades, para conversar e traçar novas estratégias, os grandes empresários se organizam com o governo. Essa é a verdadeira ditadura. Toda vez que um defensor, um médico está caminhando junto com a classe pobre, resolvendo problemas, logo ele é transferido, retirado dali porque está atrapalhando o progresso do outro lado, que não quer ver a gente evoluir. Aprendi também muita coisa sobre a luta de egos. O ego pode estar na Aldeia Maracanã, na Vila Autódromo, na Providência, em Manguinhos. Infelizmente a luta que fazemos é explorada por pessoas que querem se aproveitar dos movimentos sociais e das pessoas que estão sofrendo para se autopromoverem. Finalmente, aprendi que não se faz luta sozinho. Desde que se uniu a outras comunidades, a Vila Autódromo começou a ter uma grande visão. “Quando começamos a reconhecer a luta do outro companheiro na nossa luta, voltamos a ter esperanças” Fernando – Nesse processo de luta, sofremos um desgaste muito grande. Quando começamos a reconhecer a luta do outro companheiro na nossa luta, voltamos a ter esperanças e perceber que a luta de Manguinhos não é só de Manguinhos, é uma luta contra um projeto de cidade. Em suma, percebemos hoje uma nova esperança. De certa forma o fato de fazermos essa entrevista traz em si um simbolismo, a possibilidade de aliança entre grupos que estão sofrendo com essa perspectiva de cidade global. Mais que pensar em derrota ou vitória, perder ou ganhar, a luta em si tem um valor. A gente pode ser derrotado, pode ser que isso aqui um dia caia, pode ser que Manguinhos seja toda expulsa, pode ser... Mas o fato de não termos nos rendido, de eu ter conhecido o Guajajara, o Sidney, a Jane, é o que vale. Raquel Torres Urutau Guajajara, mais conhecido como Zé 8 de 14 a 20 de fevereiro de 2013 brasil Camponesas e feministas Eduardo Seidl ENTREVISTA Mulheres do campo preparam encontro histórico em Brasília para denunciar violência de gênero e debater políticas públicas e desenvolvimento do meio rural O que é o “feminismo camponês” defendido pelo movimento? Rosângela – O feminismo em que a gente se reconhece enquanto mulher está muito associado à ideia de igualdade no sentido mais amplo, das relações sociais e de classe. Está associado ao nosso projeto de agricultura camponesa, baseado nos pilares da agroecologia, o cuidados com os filhos, com o idosos, com a natureza. Nós não entendemos um feminismo pra libertar apenas nós, mulheres. A sociedade como um todo está doente nas suas relações, de exploração, com o corpo da mulher, que designa códigos de beleza, de idade, etc. A gente repudia tudo isso, mas a gente entende que isso faz parte de uma sociedade onde o que vale é o produto e não o bem comum das famílias, das pessoas, da natureza. O feminismo camponês está colado a uma luta mais ampla, conectada com a luta geral da classe trabalhadora, do campo e da cidade. Pedro Rafael de Brasília (DF) “NA SOCIEDADE que a gente quer, basta de violência contra a mulher!”. A frase não encerra somente o grito de denúncia contra as violações de gênero que agridem cotidianamente a dignidade humana das mulheres. Pronunciadas pela boca milhares de camponesas, essas palavras desvelam o lugar no qual a opressão se manifesta de forma perversamente silenciosa, oculta, distante. O meio rural brasileiro é um enclave do patriarcado. Construir o feminismo camponês onde impera a orientação masculina nas relações sociais tem sido o maior desafio do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Constituído há quase uma década, a partir de diferentes entidades e organizações de trabalhadoras rurais de todo o país, o movimento se prepara para o seu primeiro encontro nacional. “Éramos 1,4 mil mulheres de 14 estados da federação quando articulamos a criação do movimento, em 2004, reunindo as organizações autônomas de camponesas que havia no país”, conta Noeli Taborda, da direção nacional do MMC. Dessa vez, em Brasília, pelo menos cinco mil mulheres, vindas de 22 estados, se reunirão para quatro dias de atividades (veja a programação), entre os dias 18 e 21 de fevereiro, no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade. A abertura deve contar com a presença da presidenta Dilma Rousseff, segundo previsão do Palácio do Planalto. “Já tem algum tempo que vemos a necessidade de fazer um encontro de animação, de fortalecimento do movimento, troca de experiências mesmo. Terá esse caráter. Vamos apresentar nossas experiências, como projeto de agricultura camponesa que o movimento defende, um olhar sobre a realidade nacional e internacional e, claro, discutir a questão da violência”, acrescenta Noeli. Haverá uma feira de produtos agrícolas durante o encontro. Produção totalmente agroecológica e que define o projeto de desenvolvimento rural defendido pelo movimento. “Se existe produção de alimentação saudável no campo, pode crer que é pelas mãos das mulheres, principalmente. Esse trabalho tem que ser reconhecido e valorizado. A feira de é para mostrar essa diversidade, inserida na lógica de uma agricultura limpa, sem veneno, sem agroquímicos”, aponta Rosângela Piovezani Cordeiro, também direção nacional do MMC. A pouco mais de uma semana para o início das atividades, Rosângela e Noeli receberam a reportagem do Brasil de Fato para falar sobre as perspectivas da organização das mulheres no campo e detalhes do encontro. Confira os principais assuntos abordados: “Nossa base está organizada atualmente em 22 estados e a expectativa é reunir ao menos cinco mil mulheres camponesas” Brasil de Fato – Qual o sentido de realizar esse encontro nacional de mulheres camponesas? Noeli Taborda – Primeiro, é preciso destacar que o MMC se consolidou como movimento em 2004, a partir da articulação de entidades e organizações autônomas de vários estados. Essa construção veio como necessidade consolidar conjuntamente essas organizações. Naquele congresso de fundação foram 14 estados e cerca de 1,4 mil mulheres. De lá para cá, fomentamos a organização nesses e em outros também. Nossa base está organizada atualmente em 22 estados e a expectativa é reunir ao menos cinco mil mulheres camponesas. Já tem algum tempo que vemos a necessidade de fazer um encontro de animação, de fortalecimento do movimento. Vamos apresentar nossas experiências, como o projeto de agricultura camponesa que o movimento defende, um olhar sobre a realidade nacional e internacional e, claro, discutir a questão da violência. Rosângela Piovezani – O Movimento de Mulheres Camponesas surge dentro de uma conjuntura com muito enfrentamento e dificuldades na luta de classes Rosângela – Tem o aspecto da falta de informação quando se trata da violência doméstica. Normalmente, a violência acontece no fim de semana. Até que se possa ir até a cidade denunciar, essa situação de violência amorteceu. Fora que existe toda a cultura de achar que isso é normal, essa submissão, inclusive reforçada pela própria igreja, a família. Falta informação e meios de se fazer denúncia. O que está na pauta do encontro em relação a políticas públicas para as mulheres do campo? Noeli - Precisamos avançar em políticas para educação, mas voltada para a realidade camponesa, porque a educação disponível está voltada ao mercado de trabalho para a cidade. A educação é uma política central para se avançar no campo, não só para mulheres, mas para os filhos, filhas, a família camponesa. Tem a discussão sobre crédito para a mulher camponesa e assistência técnica voltada para o desenvolvimento da agroecologia. E precisamos avançar no debate sobre a saúde da mulher, políticas de melhor atendimento no campo... MMC participa com entidades e organizações de trabalhadoras rurais de ação da Via Campesina contra o agronegócio como um todo. Trazemos um recorte especial que são as mulheres da roça. Trabalhar a valorização do trabalho, da produção e da renda das mulheres camponesas. Fazer chegar a formação políticoideológica para essas mulheres se libertarem. Trazer um debate feminista com um olhar camponês e popular. Esse encontro vem num tempo de vida do movimento muito especial. Vamos indo para os 10 anos do movimento nacional com um saldo bom sobre o quanto a gente conseguiu atingir as mulheres, sensibilizá-las para a luta, fomentar a nossa autoorganização. Como será o Encontro? Rosângela – Está organizado em três eixos fundamentais porque queremos dialogar com as bases, com a sociedade de um modo geral e com as autoridades. Faremos uma feira para mostrar a diversidade de produção, de todos os estados, o cuidado com as sementes, com a proteção ambiental. Na sociedade patriarcal, esse trabalho no campo, executado pela mulher, não é tido como trabalho, como renda. Mas, se existe produção de alimentação saudável, pode crer que é pelas mãos das mulheres. Esse trabalho tem que ser reconhecido e valorizado como renda e produção. A feira de produção é para mostrar nosso projeto de desenvolvimento baseado na uma agricultura limpa, sem veneno, sem agroquímicos. Faremos também debates sobre a conjuntura, como estão as mulheres no campo, nossos desafios. Isso é parte da estratégia de auto-organização do movimento. O outro eixo tem a ver com políticas públicas, acesso ao conhecimento. O tema é “Na sociedade que a gente quer, basta de violência contra a mulher”. Não dá para continuar vivendo numa sociedade doente, onde os seres humanos, principalmente o homem, continua maltratando, matando e explorando as mulheres nesse país. A gente quer construir outra sociedade, sem violência, com respeito às relações de gênero, respeito à natureza. A gente defende a punição severa ao agressor, mas não se mudar as relações entre as pessoas, o sistema de relações na sociedade, não adianta. Só há uma transformação se a sociedade não estiver ancorada nesse projeto de desenvolvimento ficando no capitalismo e no patriarcado. “O feminismo em que a gente se reconhece enquanto mulher está muito associado à ideia de igualdade no sentido mais amplo” Há um desafio maior para lidar com a temática da desigualdade e da violência de gênero no meio rural? Noeli – Sim, porque a grande maioria das camponesas fica muito limitada ao que o companheiro decide na unidade de produção. Elas não tomam decisão, muitas vezes são sequer consultadas, somente para assinar algum tipo de documentação, por exemplo. Na hora de decidir se vamos plantar milho, feijão, o papel preponderante é do companheiro. A gente vê isso muito claro nos depoimentos das companheiras. Ao final dos cursos de formação que o movimento promove, muitas delas dizem: “foi aqui que aprendi a ler e escrever, que eu aprendi de que sou capaz, que meu trabalho tem valor”. É a partir desse trabalho que a gente percebe que as mulheres vão construindo sua emancipação. Porém, o acesso à educação e às tecnologias que se tem na cidade ainda está muito frágil no interior, isso faz com que as mulheres continuem muito submissas. Na cidade, muitas já são independentes. No campo, estamos distantes dessa realidade. Rosângela – Tem o desafio da documentação, pois os dados são alarmantes. Há uma estimativa de 9 milhões de pessoas no Brasil sem documento e 60% desse total estão no campo. Quando se fala em pessoas sem documento, estamos falando de brasileiros e de brasileiras que estão à margem de tudo, da própria cidadania, sem acesso a matrícula na escola e mesmo atendimento médico. Temos trabalhado muito a campanha de documentação, mas é preciso uma ação pública. Essa situação reflete, inclusive, na documentação de comprovação de profissão, de acesso à política de crédito, assistência técnica, benefício previdenciário, enfim, todas as políticas públicas do país. A outra bandeira fundamental que defendemos é a questão do modelo agroexportador, que tem um impacto direto na vida das mulheres. No Brasil, não se faz reforma agrária, não se tem acesso a terra como bem público, onde as pessoas vão viver, produzir, manter sua vida, seu lazer e tirar o próprio sustento. O Brasil precisa avançar em uma reforma agrária mais inclusiva, mais justa, com a desapropriação das grandes áreas produtivas. Quando não se tem acesso à terra, é sobre as mulheres que recai a responsabilidade do cotidiano, de cuidar dos filhos, sem ter sequer o meio de produção básico, que é a terra. I Encontro Nacional de Mulheres Camponesas (18 a 21/2) Programação Dia 18 14h: abertura oficial 16h: mostra de produção das mulheres camponesas Noite: intervenções culturais Dia 19 10h30: plenária “O olhar sobre a realidade” 14h: plenária “O feminismo e as camponesas” 20h: show cultural Dia 20 9h: plenária “Produção de alimentos saudáveis” 14h: plenária “Organicidade do MMC” Noite: intervenções culturais Dia 21 9h: ato de mobilização contra a violência e encerramento brasil de 14 a 20 de fevereiro de 2013 9 Os estranhos visitantes do Dops DITADURA Investigação da Comissão da Verdade revela que representantes da Fiesp e do Consulado dos EUA eram presença frequente no centro de torturas estamos trabalhando com essa hipótese. Para nós, a Fiesp ia lá entregar nomes de operários para serem reprimidos”, esclarece Seixas. Reprodução Documento mostra permanência de Geraldo Rezende de Matos, da Fiesp, por cerca de 18h no prédio do Dops Patrícia Benvenuti da Reportagem O QUE UM representante da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) faria em um centro de torturas da ditadura civil-militar (1964-1985) durante madrugadas? O que levaria um cônsul dos Estados Unidos a esse mesmo lugar repetidas vezes, por longas horas? É sobre essas questões se que se debruçam atualmente os membros da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Por meio de investigações, a Comissão apurou que pessoas ligadas à Fiesp e ao Consulado eram presença constante durante os dias e as noites do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Dops), um dos órgãos repressores criados pelo regime. Para tentar esclarecer esses fatos, a Comissão Estadual da Verdade realizará uma audiência pública em 18 de fevereiro, às 14h, na Assembleia Legislativa (Alesp), onde apresentará os documentos que embasaram as investigações. “Coincidência”? Cônsul estadunidense entra no Dops cinco minutos depois do capitão Ênio Pimentel Silveira, um dos torturadores mais famosos do período Visitas frequentes A chave para a descoberta foi uma pesquisa no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ao checar os livros de registro de entrada e saída do prédio do Dops, localizado no centro da capital paulista, integrantes da Comissão Estadual da Verdade perceberam a frequência de dois nomes, que não faziam parte das equipes policiais: “Dr. Geraldo Rezende de Matos”, que se apresentava no formulário como “Fiesp”, e “Dr. Halliwell”, que assinava como “Consulado Americano”. Além da assiduidade, despertaram atenção os horários em que os representantes da Fiesp e do consulado estadunidense se dirigiam ao prédio do Dops e as longas horas em que permaneciam ali. Somente nos meses de abril a setembro de 1971 (os livros com os outros meses deste ano desapareceram), Geraldo Rezende de Matos, da Fiesp, dirigiuse ao local 40 vezes. Em uma dessas visitas, sua entrada ocorreu às 17h30min, mas não consta horário de saída. Como os funcionários da portaria trabalhavam apenas até 22h, os movimentos feitos depois deste horário não eram anotados. Significa, então, que Matos teria ficado além das 22h. Já em outro registro, de 24 de abril de 1972, o representante da Fiesp entra no prédio às 18h20 e sai às 12h35 do dia seguinte, 25 de abril. Foram cerca de 18 horas no local. dinamarquês Henning Boilesen, desvela não apenas as contribuições financeiras do protagonista (então presidente do grupo Ultra) ao aparato militar, mas de diversas figuras ligadas a organizações multinacionais e instituições, incluindo a Fiesp. Em novembro, o coordenador da Comissão da Verdade, Cláudio Fonteles, divulgou um texto em que relaciona a Fiesp à produção de armas para os militares que derrubaram João Goulart da presidência em 1964. No documento, Fonteles cita um relatório confidencial produzido pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), hoje sob guarda do Arquivo Nacional, que descreve a criação do Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI) em 31 de março de 1964, data do golpe. De acordo com o documento, Além da assiduidade, despertaram atenção os horários em que os representantes da Fiesp e do consulado estadunidense iam ao Dops “O que o cara da Fiesp ia fazer lá? Essa é a pergunta que fazemos”, explica o coordenador da Comissão Estadual da Verdade, Ivan Seixas. Seixas, que também é ex-preso político e membro da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, conta que a Comissão já pediu esclarecimentos à Fiesp sobre o assunto. A federação, por sua vez, alega não ter registros de Geraldo Rezende de Matos. De acordo com investigações da Comissão, Matos era um empresário ligado aos ramos de metalurgia, além de possuir uma empresa de seguros e reparação que atendia militares. “A Fiesp tem que explicar isso, não estamos inventando nada”, destaca o presidente da Comissão Estadual da Verdade, o deputado Adriano Diogo (PT-SP). “Queremos saber por que uma pessoa que ia ao Dops, [onde] permanecia horas e madrugadas, assinava como representante da Fiesp”, completa. A Fiesp foi convidada para prestar esclarecimentos sobre o caso na audiência pública do dia 18. A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da federação, que não soube informar se a instituição estará representada na audiência. Empresariado Os vínculos do empresariado com os agentes da ditadura são assunto antigo de pesquisas e estudos. O tema é a base do documentário Cidadão Boilesen (2009), dirigido por Chaim Litewski. O filme, que resgata a vida do empresário “Queremos saber por que uma pessoa que ia ao Dops, [onde] permanecia horas e madrugadas, assinava como representante da Fiesp” o órgão teve a função de fornecer “armas e equipamentos militares aos revolucionários paulistas”. O caso de Geraldo Rezende de Matos, no entanto, desperta na Comissão outra suspeita. Para Seixas, é provável que as idas de Matos ao Dops visassem a troca de informações entre empresários, a polícia e o Exército. “Vem à cabeça de todo mundo, quando se fala em empresários e repressão, o financiamento. Mas nós não Consulado Já o “Dr. Halliwell” dos livros de registros era Claris Rowley Halliwell (19182006), cônsul estadunidense no Brasil entre 1971 e 1974. Junto à Universidade de San Diego, na Califórnia, a Comissão apurou que Halliwell teria integrado o serviço secreto dos Estados Unidos, a CIA. Assim como Geraldo Rezende de Matos, ele também comparecia com frequência aoDops, sobretudo à noite, onde permanecia durante toda a madrugada. De abril a setembro de 1971, Halliwell esteve no local 31 vezes, de acordo com os registros. Em uma das idas, em 5 de abril de 1971, seu ingresso no prédio ocorreu às 12h40min da tarde, cinco minutos depois da entrada do capitão Ênio Pimentel Silveira, torturador que ficou conhecido como “Dr. Ney”. Ambos permaneceram no prédio além das 22h. As “coincidências” não param por aí. Nesse mesmo dia, pela manhã, havia sido preso e levado para o Dops Devanir José de Carvalho, dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Depois de uma série de torturas, Carvalho faleceu em 7 de abril. Para Ivan Seixas, não há como negar o envolvimento do cônsul com os crimes. “Nos prédios do Dops e da Oban [Operação Bandeirante], quando se torturava não era segredo. O prédio inteiro ouvia, a vizinhança também. O mínimo que se pode dizer era que o ‘cara’ [cônsul] era conivente, mas eu acho que [ele] era participante”, diz Seixas Depois de sair do Brasil, Halliwell foi cônsul estadunidense no Chile – onde, um ano antes, um golpe de Estado havia tirado do poder Salvador Allende. “A gente acha que essas coisas são de filme de ficção científica, que ‘na minha terra não tem isso’. O ‘cara’ não estava levando os passaportes para a Disneylândia, era um agente da CIA”, ressalta o deputado Adriano Diogo, que integrou a militância estudantil durante o regime. Para o deputado, a revelação desses registros ajudará a contar a história desse período e a revelar quem praticou e engendrou os crimes.“Os documentos evidenciam a existência de uma enorme organização criminosa que se reunia nas dependências do Dops para torturas as pessoas, matar e planejar sequestros”, pontua. Jose Cruz/ABr Reunião de integrantes da Comissão Nacional da Verdade e de ex-militantes para prestar homenagem ao deputado Rubens Paiva, assassinado em 1971 A verdade sobre Rubens Paiva Comissão Nacional da Verdade declara que ex-deputado foi morto nas dependências do DOI-Codi da Reportagem Uma das farsas forjadas por agentes da ditadura civil-militar (1964-1985) acaba de ser descoberta. No início de fevereiro, a Comissão Nacional da Verdade declarou que o ex-deputado Rubens Paiva, morto em 1971, foi assassinado no Destacamento de Operações de Informações Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). A investigação do caso ganhou força em novembro do ano passado, quando documentos do regime foram encontrados em Porto Alegre (RS) na residência do coronel do Exército Júlio Miguel Molinas Dias, ex-comandante do DOI-Codi, morto a tiros enquanto se dirigia para sua casa. De acordo com os documentos, Paiva foi preso em sua casa no Rio de Janeiro por uma equipe do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa), em 20 de janeiro de 1971 e, no dia seguinte, entregue ao DOI-Codi. Na folha estão descritos todos os documentos pessoais e pertences que estavam com Paiva no momento de sua detenção. Os registros desmontam a versão oficial da ditadura de que o ex-deputado (cassado pelo Ato Institucional nº 1) teria sido resgatado por “terroristas” em 22 de janeiro, enquanto estava sob custódia do Exército. “É importante para nós que isso esteja documentado, é uma prova viva de que as informações colhidas ao longo do tempo eram verdadeiras” Os documentos foram entregues pelo governador gaúcho, Tarso Genro, à Comissão Nacional da Verdade, que os confrontou com informes inéditos encontrados no Arquivo Nacional. O Informe nº 70, de 25 de janeiro de 1971, relata o que ocorreu com Paiva desde o dia 20 do mesmo mês, quando foi preso, até o dia 25. No informe não há registros sobre sua suposta fuga. Outra informação avaliada pela Comissão foi o depoimento do tenente médico do Exército, Amilcar Lobo, prestado à Polícia Federal em 1986. Ele afirma ter sido chamado em sua casa em uma madrugada de janeiro de 1971 para assistir Rubens Paiva. Levado à cela do ex-deputado, o médico o examinou e constatou que ele estava com “abdômen em tábua, o que em linguagem médica pode caracterizar uma hemorragia abdominal”. Lobo afirma ainda no depoimento que aconselhou a hospitalização do preso mas que, no dia seguinte, foi informado de que Paiva havia morrido. O médico garantiu ainda que havia escoriações no corpo de Paiva, resultados de tortura. A conclusão acerca da morte de Paiva foi apresentada em um texto assinado pelo coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Cláudio Fonteles. Segundo o documento, “o Estado Ditatorial militar, por seus agentes públicos, manipula, impunemente, as situações, então engendradas, para encobrir, no caso, o assassinato de Rubens Beyrodt Paiva consumado no Pelotão de Investigações Criminais – PIC – do DOI/CODI do I Exército”. Para a professora da Universidade de São Paulo (USP) Vera Paiva, filha de Rubens Paiva, a decisão oficial reconhece o trabalho de investigação feito pela própria família nestes últimos 42 anos.“É uma sensação de alívio para a família”, afirma. “É importante para nós que isso esteja documentado, é uma prova viva de que as informações colhidas ao longo do tempo eram verdadeiras, diferente da versão dos militares”, acrescenta. (PB) 10 de 14 a 20 de fevereiro de 2013 brasil Quem nos protege dos protetores? Rahel Patrasso/Folhapress CRIMINALIZAÇÃO MP de São Paulo acusa estudantes da USP de formação de quadrilha, depredação e desobediência Aline Scarso da Reportagem O MINISTÉRIO Público estadual, na figura da promotora Eliana Passarelli, acusou no dia 5 de fevereiro as 72 pessoas presas durante a desocupação da reitoria da USP (Universidade de São Paulo) em 8 de novembro de 2011. Pela suposta participação na ocupação, cinco crimes foram imputados: formação de quadrilha, depredação do patrimônio público, crime ambiental por pichação, posse de explosivos e desobediência. De acordo com a denúncia, os acusados “com dolo determinado, associaram-se em quadrilha para o fim de cometer crimes” e, em conluio, “destruíram, inutilizaram e deterioraram coisa alheia, pertencente ao patrimônio do Estado, bem como picharam edificação urbana”. Ainda segundo Eliana, na data de início da ocupação do prédio pelo movimento estudantil, precisamente no dia 02 de novembro, já havia a intenção de cometerem “inúmeros crimes”. Em entrevista ao Brasil de Fato, a promotora diz que quer a condenação dos indiciados. “Eles queriam ser aplaudidos. Mas não, eles são criminosos e pagarão por isso”, disse. As principais reivindicações políticas que impulsionaram a entrada no prédio – o fim do convênio com a Polícia Militar assinado pelo reitor João Grandino Rodas e o fim dos processos contra funcionários, professores e estudantes motivados por razões políticas – não foram citados na denúncia. O movimento estudantil questionava à época o papel repressor da PM dentro da USP e fora dela, corroboradas a partir das denúncias de constantes abusos policiais contra a população, especialmente das periferias. Os estudantes também queriam o fim da política de processos administrativos motivados por manifestações políticas. Nunca na história recente do país um número tão grande de pessoas, reconhecidas pelo movimento estudantil por defender a manutenção da universidade como coisa pública, havia passado por julgamento com tamanha complexidade. Somados, os crimes imputados a eles podem render no máximo oito anos de prisão. Policial aponta arma para estudante durante reintegração de posse da reitoria da USP em novembro de 2011 tando e nos apontando armas, mandando que nos deitássemos com as mãos na cabeça e depois desligássemos os celulares”, conta o estudante de mestrado em Letras Fernando Bustamante, que também foi preso. Depois disso, segundo ele, as pessoas foram retiradas do prédio. “Ficamos sentados por muito tempo encarando a parede, enquanto escutávamos uma colega nossa gritando”, conta. Ele se refere à estudante Rosi Santos, que na época afirmou ter sido arrastada por policiais para dentro da reitoria, colocada numa sala, e sofrido golpes físicos. A decisão da 9ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo permitia a reintegração de posse a partir das 23h horas do dia 7. Porém, conforme a determinação, deveria “ser realizada sem violência, com toda a cautela necessária à situação, mediante a participação de um representante dos ocupantes e da autora para a melhor solução possível, observando a boa convivência acadêmica, em um clima de paz”. De acordo com Fernando, em nenhum momento no dia 8 foi dado aviso prévio para que as pessoas pudessem sair do prédio e nem havia a presença de um oficial de justiça. Os policiais apenas entraram e as prenderam. “De modo algum deram aviso. Informaram na assembleia que a reitoria havia se comprometido a não efetivar a reintegração de posse antes da próxima rodada de negociações, que aconteceria na quarta-feira [dia 9]. Há também declarações na mídia do comando da PM descartando a possibilidade de reintegração naquele dia”, diz. Em entrevista ao G1 depois da desocupação, a coronel Maria Yamamoto afirmou que não houve enfrentamento. “Eles [alunos] foram pegos de surpresa, não tiveram nenhuma reação (...). A chegada foi silenciosa. Em menos de dez minutos, o prédio já estava ocupado e eles, contidos”, explicou. Vânia e Fernando também afirmam que o prédio estava intacto até a entrada da polícia. Também dizem que os artefatos explosivos foram plantados. “Pude ouvir, e outros colegas conseguiram ver os policiais quebrando o patrimônio da reitoria. Os poucos estudantes que conseguiram filmar algo tiveram os equipamentos confiscados”, conta Fernando. O zelo com o prédio, segundo ele, era uma preocupação do movimento estudantil. “O movimento teve o tempo inteiro o cuidado de zelar pelo patrimônio, que é público e de todos os que sustentam a universidade”, destaca. De acordo com a denúncia, os acusados “com dolo determinado, associaram-se em quadrilha para o fim de cometer crimes” Na prática, a promotora Eliana Passarelli está incapacitada de defender a sua tese de acusação, já que o Foro Regional de Pinheiros – para onde foi encaminhado o inquérito –, não tem competência para processar e julgar crimes cuja pena seja de reclusão. Sendo assim, a denúncia já foi remetida ao Foro Criminal Central da Barra Funda, mas, até o momento, não houve a aceitação da mesma por nenhum juiz. Antes da acusação da promotoria, a USP já havia distribuído penas internas aos envolvidos, que variaram entre 5 e 15 dias de suspensão. Em decisão tomada pelo Fórum dos Processados, instância que representa as pessoas que foram presas, os estudantes punidos decidiram que vão começar o ano letivo frequentando as aulas normalmente. O mesmo posicionamento foi tomado pelos funcionários, que não suspenderam as atividades laborais. As pessoas que foram presas na desocupação da reitoria são na sua maioria estudantes da própria USP, além de trabalhadores da instituição e apoiadores. A estudante de filosofia Vânia de Oliveira Gonzalez é uma delas. Ela conta que na noite do dia 7 de novembro foi até a assembleia para se informar sobre o que acontecia. O encontro acabou tarde e Vânia perdeu o ônibus para voltar para casa. Decidiu ficar na reitoria. “Às 4h40 eu estava em frente ao prédio quando vi muitos carros e caminhões de polícia. Entrei na reitoria pra buscar minha mochila, mas fui impedida de sair por policiais que apontavam armas pra mim. Perguntei por que estava sendo presa e eles disseram, porque você não saiu”, conta. De acordo com a promotora Eliana Passarelli, no dia dos fatos, o Comando de Choque solicitou aos denunciados que desocupassem o local de modo pacífico. A versão é contestada pelos estudantes. “Fomos acordados com os policiais gri- De acordo com nota da Comissão Jurídica em Defesa de Estudantes e Trabalhadores, o Código Penal não admite responsabilização coletiva e “o próprio Ministério Público reconhece a ausência de individualização da conduta dos supostos envolvidos, demonstrando absoluta inaptidão da denúncia.” Sem identificar a autoria dos fatos, segundo eles, é impossível que os envolvidos possam exercer o direito de defesa de forma adequada. “Existe a prova de que objetos foram quebrados, porém isso não basta. É necessário dizer quem quebrou e o que quebrou. Se você acusa todo mundo de ter quebrado tudo, fica muito fácil [para a acusação] porque o acusado não tem como se defender”, afirma o advogado Alexandre Pacheco Martins. “Há uma linha política clara do governo do estado há algum tempo e que teve seu estopim na enorme repressão da desocupação do Pinheirinho” Para a promotora Eliana Passarelli, as ações estão individualizadas na medida em que os acusados formam uma quadrilha. “Eles permaneceram dentro do prédio, não saíram quando deveriam ter saído, foram presos em flagrante e delito, está mais do que caracterizada a ação criminosa”, defende. Na acusação, mesmo os estudantes presos fora do prédio – algo que foi reconhecido pela apuração interna dos fatos feita pela USP – foram indiciados de terem quebrado o patrimônio da reitoria, descumprirem a ordem judicial e formarem quadrilha criminosa. A mesma imputação coube ao repórter Diogo Terra Vargas, que na época fazia reportagem para o site da revista Vice sobre o movimento estudantil e foi preso enquanto trabalhava. A denúncia do Ministério Público contra estudantes e funcionários motivou a solidariedade do movimento estudantil em nível nacional. A União Nacional dos Estudantes (UNE) repudiou o que chamou de criminalização dos movimentos sociais e do movimento estudantil. “A UNE e a UEE-SP se posicionam contrariamente a toda e qual- Aline Scarso O outro lado A não individualização dos atos Cerca de 5 mil pessoas participaram de protesto no centro de São Paulo em repúdio à ação da PM quer forma de cerceamento de liberdade, tendo como um de seus maiores princípios a luta pela livre expressão e manifestação”, disse em nota. A Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre afirmou que, ao assustar os estudantes, o objetivo da ação é derrotar o movimento estudantil da USP. “Vimos ao longo da gestão de João Grandino Rodas uma forte perseguição ao movimento estudantil e de trabalhadores, fazendo coro à política do PSDB, em São Paulo, de criminalização dos movimentos sociais”, ressaltou. Para a União da Juventude Socialista, a denúncia do Ministério Público “não passa de mais uma tentativa de calar o movimento estudantil”. Outras organizações estudantis atuantes na Universidade de São Paulo como Juventude às Ruas, Território Livre e Aliança da Juventude Revolucionária também se posicionaram ao lado dos punidos. Já o Diretório Central dos Estudantes Livre da USP destacou a falta de democracia na gestão da universidade, expressa pelo atual reitor João Grandino Rodas. “O convênio assinado com a polícia militar não foi em nenhum momento debatido junto à comunidade universitária e não solucionou o problema da falta de segurança que até hoje permanece dentro da Cidade Universitária”. Segundo a funcionária da USP, Diana Assunção, uma das 72 pessoas presas e diretora do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), o Ministério Público agiu em conjunto com a reitoria e o governo estadual com o objetivo de reprimir e desestruturar os movimentos políticos organizados dentro da instituição e que fazem oposição à política de privatização da universidade. “Há uma linha política clara do governo do estado há algum tempo e que teve seu estopim na enorme repressão da desocupação do Pinheirinho. Também teve expressão na repressão de trabalhadores sem-teto, na política de internação compulsória para usuários de crack, ou seja, numa série de coisas que expressam uma política de conjunto do governo do PSDB; e a USP não está de fora disso.” Segundo a sindicalista, a universidade tem proporcionado a abertura ao capital privado para se tornar mais competitiva nos rankings internacionais, além de demitir a contagotas trabalhadores, ancorada em um programa de avaliação do desenvolvimento do trabalho de cada funcionário. Em 2007, depois da violenta desocupação de um prédio da administração da Unesp em Araraquara, que resultou na prisão de 100 estudantes, o professor departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp de Marília, Jair Pinheiro, chamou a atenção para o estágio avançado de criminalização dos movimentos sociais, crescente desde a década de 1990. Segundo previu, o movimento estudantil seria a bola da vez. “Testemunha esta inflexão o fato de que há hoje inúmeros militantes de movimentos sociais presos ou respondendo a processos penais por suas atividades políticas”, afirmou em artigo publicado no Diário de Marília, destacando o papel do direito penal na repressão. “Na base desta inflexão está um duplo processo de judicialização da política: uma inversão segundo a qual a política não é mais espaço de criação de direito, mas este [o direito] instrumento de regulação daquela [a política] e a adoção do direito penal como instrumento privilegiado dessa regulação”, argumenta. cultura de 14 a 20 de fevereiro de 2013 Marcelo Min/Governo da Bahia Eduardo Sales de Lima da Reportagem NO BAR DO ZÉ Batidão não faltou cerveja; nem poesia. Por entre as mesas daquela quarta-feira à noite (30 de janeiro) o silêncio também era uma prece. Mas só para deixar que Zumbi ou Nossa Senhora pudessem se transfigurar a partir do microfone. Poderia ser dito,“se pá”, que aconteceu até declaração de amizade em forma de poesia. Entre as declamações como não se comover com a voz possante e pulsante de Dona Edite, uma das estrelas da noite? Passada uma hora e meia de poesia, um dos maestros da noite, que quando criança passava o dia todo lendo no bazar do pai, pausa a venda de camisas do sarau para “trocar uma ideia” com o Brasil de Fato. Cem anos de solidão o “chamou” para viver como poesia. Uma vez disse que, quando criança, não sabia que era pobre porque todos ao seu redor eram iguais: “Só quando visitei o Bexiga [bairro central de São Paulo], com seus prédios, compreendi melhor as coisas”. Para ele,“viver dói, por isso o sonho”. E, agora Sérgio Vaz? O que vai nos dizer na esquina do bar do Zé Batidão? “A gente deve muito ao Hip Hop, que surgiu na periferia” Qual é a importância disso? A formação do leitor é super importante porque o cara que lê se torna uma cidadão, e um cidadão muda o seu bairro. É disso que a gente precisa. O cara, quando lê, sabe para onde o ônibus vai, onde para; sabe em quem votar, sabe assinar o cheque. A gente começa a querer fazer coisas que nós queremos, e não o que os outros querem. Porque as pessoas que governam este país leem e leem muito. Então a gente tem que ler também para não sermos dominados. Como você vê o Hip Hop e os saraus da cidade? Que influência um tem sobre o outro? A gente deve muito ao Hip Hop, que surgiu na periferia. O sarau complementou isso. A gente é convidado para ir ao show de rap e convida os caras para vir aqui. Então, isso é uma grande harmonia, porque todos somos da periferia. E a gente tem gratidão pelo rap que foi o primeiro que deu o grito da periferia. Na verdade, a gente está junto e misturado. Já são doze anos de Cooperifa. Eu acho que esse silêncio faz parte desses doze anos, como uma conquista da comunidade. Depois de adorar o deus chamado trabalho, as pessoas vêm aqui para comungar a palavra, a amizade. É isso que a periferia está vivendo, tem a violência mas existe a cultura também. “Na minha casa nunca faltou alimentos, nem livros” Você cresceu em meio a leitura? Quem me influenciou foi meu pai. Na minha casa nunca faltou alimentos, nem livros. A gente sempre teve uma vida simples. Você tem elogiado bastante o livro Um defeito de cor, que conta a história do ponto de vista periférico. Esse é um livro da Ana Maria Gonçalves. Ela investiga alguns escritos da época da escravidão, das pessoas que sentiram na pele aquele período. Ela descreve o que era um país colonial, a Bahia, Minas Gerais, o que era o Rio de Janeiro. É fundamental pra gente conhecer a nossa história da periferia, onde estão os negros e os pobres. Fala de luta. Fala de um monte de coisas que a gente precisa ouvir, mas escritas por aqueles que sofreram. Na verdade, não é o caçador que está contando, é a caça. Como você vê a mobilização política da periferia? Num sentido mais amplo, este sarau parece mostrar isso? Ainda falta, mas as pessoas já estão se assanhando. Você vê que hoje, um bar, que antes só servia para embriagar, ser- Todas as nomenclaturas são boas. Suburbana, alternativa, marginal, divergente. Mas eu gosto de literatura periférica, porque nos pertence. Assim como a literatura grega é feita pelos gregos, a literatura negra é feita pelos negros, a literatura periférica é feita pela periferia. Como você analisa o mercado editorial para os escritores periféricos? A grande dificuldade é a distribuição. Mas uma coisa que a gente tem em comum é que a gente é marreteiro, né cara. A gente vende em escola, em porta de teatro. A gente vai pra cima. Não muda muita coisa. A gente não fica esperando a livraria Saraiva ou a Livraria Cultura. Os livros estão lá, mas a gente vai atrás do leitor. O Sarau da Cooperifa forma leitor, não forma escritor. Brasil de Fato – Estou aqui em Piraporinha, zona sul de São Paulo, no Sarau da Cooperifa, quase que me sentindo numa igreja, mas no bom sentido da palavra. Você iniciou o sarau reforçando a necessidade do silêncio para que a poesia fosse escutada. Sérgio Vaz – Comungando a palavra, né... No final do ano passado, num encontro literário no Sesc Belenzinho, você mencionou algumas influências como Clarice Lispector e Gabriel Gárcia Marques. Minha influência é Clarice Lispector; escritores latinos que tinham uma pegada política, para chegar onde eu cheguei. Eu sempre gostei de ler. Para chegar nessa literatura que eu faço hoje eu tive que beber nessa fonte, essa a grande fonte. Eu acho que surgem poetas novos, jovens, que a gente tem que ler, mas os clássicos são os clássicos. São imprescindíveis. 11 O escritor e poeta Sérgio Vaz comemora doze anos de Cooperifa “A gente quer fazer poesia” SARAU DA COOPERIFA No ano em que o Sarau da Cooperifa completa doze anos, Sérgio Vaz exalta a conquista da comunidade e a reverberação da literatura periférica ve para reunir pessoas em torno da poesia. A gente não depende da prefeitura, não depende do Estado pra ter um espaço. A gente transformou o bar. “Você vê que hoje, um bar, que antes só servia para embriagar, serve para reunir pessoas em torno da poesia” As pessoas precisam se conscientizar para que a gente não fique só reclamando. Tem que agir também. Reclamar como sempre e agir como nunca. As pessoas estão começando a se tocar que precisam trabalhar com que a gente tem. Continuar reclamando, mas fazendo. Se é uma praça, vamos para a praça; se é bar, vamos para o bar; se é igreja, vamos para a igreja. E eu acho que isso já está acontecendo. As pessoas estão usando o espaço que têm. Surgindo do povo para o povo. Não vindo de fora para dentro, mas de dentro pra fora. A Cooperifa é um movimento que não é meu, é da comunidade. Aqui se pode ler qualquer poesia. Isso era impensável há dez anos atrás. E, nesse sentido, uma participação maior do poder público seria positivo? A função do governo, do Estado, é fomentar cultura. É obrigação do caras. Agora, cabe a ele entender que tipo de patrocínio deve conceder. Uma coisa é o Estado, outra é o governo. O Estado tem que fomentar cultura, e a gente tem que ir atrás porque é dinheiro nosso. Mas a Cooperifa não tem patrocínio, não tem nada. Ela se movimenta vendendo camiseta. Como podemos conceitualizar essa literatura que você e outros tantos, como Sacolinha, Alexandre Buzzo, Ferréz, e outros tantos fazem, e que a mídia corporativa não acompanha? É marginal? É alternativa? “Minha influência é Clarice Lispector” Ao mesmo tempo, o funk também se espalha pela periferia paulistana. Longe de qualquer julgamento moralista, te questiono acerca desse fenômeno. O que é o funk? O funk é o retrato da juventude da periferia. Se você quiser entender a periferia atualmente, você precisa ouvir o funk. Esse funk reflete a educação pública de má qualidade, a falta de segurança, a falta de saúde. Esse é o resultado. As crianças e jovens que tiveram e têm uma educação falida não podem escrever letras sobre Chico Buarque. As pessoas não têm onde ficar, não têm onde ir, aí colocam o som no carro e vão curtir. Agora, o que a sociedade tem que entender é que isso é o reflexo da educação que os jovens estão recebendo. Você está otimista em relação à ampliação do número de leitores dos escritores periféricos? A nossa ideia é que as pessoas se apropriem da poesia, se apropriem da literatura. A gente não quer dominar o mundo, o país, a gente quer fazer poesia. Nossa ideia é mudar a comunidade. Se atingir outras pessoas, ótimo. Mas nossa ideia é mudar isso aqui. Interferir em nossa geografia, como diz o [poeta] Marcelino Freire. “Revolucionário é todo aquele que quer mudar o mundo e tem a coragem de começar por si mesmo”. Sérgio Vaz 12 de 14 a 20 de fevereiro de 2013 cultura Molhando as raízes CRÔNICA A cansada existência vem molhar as raízes naqueles começos de antanho para ainda tentar se rejuvenescer e chegar bem à travessia final Pistocasero/CC mais, em profissões liberais. Alguns ficaram na terra. Em seguida, os lugares queridos da infância: cada morro, cada curva do caminho, cada subida ou descida e os vastos horizontes por todos os lados, vislumbrando-se montanhas do Rio Grande do Sul e os elevados dos Campos Gerais de Santa Catarina. O olhar infantil exagera nas proporções. O que considerávamos uma subida penosa e íngreme, não passa de singela descida ou subida. Os montes imensos são apenas coxilhas. Mas ficaram iguais as profundas canhadas, as pedras por todo canto que tornavam penosa a lavoura dos colonos: o cultivo do trigo e do milho. Os parreirais tão abundantes, um para cada casa, praticamente, despareceram, pois o vinho de qualidade se tornou acessível. Aqui nos sentimos parte daquela paisagem, aqui estão nossas raízes, o lugar a partir de onde começamos a alimentar sonhos, a contemplar as estrelas nas frias noites de inverno e a nos situar no mundo. Curiosamente, quando tenho que falar em lugares tidos importantes como na Assembleia Geral da ONU ou em Harvard, remeto-me ao tempo da pedra lascada de onde vim; lembro o piá de pés descalços e cheios de bichos do pé que fui, alimentado com muita polenta e a leitura temporã de livros. Por mais esplêndidas paisagens que tenha tido ocasião de contemplar, nenhuma é interiormente mais bela do que aquela de minha infância. Porque ela é única no mudo. Tudo o que é único no universo nunca mais volta a ocorrer e por isso é intrinsecamente belo. Mas, o que me marca cada vez que visito os parentes são as festas que improvisam: come-se muito, a comida regional, os “radicci”, os vários tipos de “biscotti” e “cucas alemães”, a “fortaia”, as massas, os queijos e salames caseiros e, naturalmente, o churrasco. A maioria que ficou na terra teve pouca escolarização: falam um mistura deliciosa de dialeto vêneto e de português. A cantilena é a mesma, com forte sotaque italiano, do qual eu mesmo nunca me libertei. As mãos rudes do trabalho e os rostos vincados da luta pela vida causam forte impressão. E vigora entre todos uma benquerença e cordialidade de fazer chorar. Os abraços são de vergar as costelas e os beijos das primas mais idosas, da nossa idade, são longos e estalados. De algumas sinto o cheiro de minha própria mãe, o mesmo olhar, a mesma forma de colocar a mão à cintura. Quem resistirá a emoção? Os tempos voltam ao início misterioso da caminhada da vida. Mas temos que prosseguir. Eles vão junto no coração, agora leve e rejuvenescido porque molhou as raízes na essência da vida que é o sangue, o laço, o afeto e o amor. Leonardo Boff NA VIDA EXPERIMENTAMOS um paradoxo curioso: quanto mais avançamos em idade, mais regredimos para os tempos da infância. Parece que a vida nos convida a unir as duas pontas e começar a fazer uma síntese final. Ou, quem sabe, o ocaso da vida com a perda inevitável da vitalidade, com os ritmos mais calmos e os limites incontornáveis desta última fase inconscientemente nos levam a buscar fortalecimento lá onde tudo começou. A cansada existência vem molhar as raízes naqueles começos de antanho para ainda tentar se rejuvenescer e chegar bem à travessia final. Pois foi o que me ocorreu nesta primeira semana de fevereiro. Voltei à terra, às velhas terras (“terre vecchie”, como dizemos entre os familiares): Concórdia, no interior de Santa Catarina. A cidade e as vizinhas são conhecidas em todo Brasil por seus produtos: quem não comprou frangos Sadia de Concórdia; presunto da Perdigão de Herval do Oeste; salames de Aurora de Chapecó e linguiças de Seara? Pois todos estes frigoríficos distam poucos quilômetros uns dos outros. É uma região rica, de colonos italianos, alemães e poloneses, lugares onde o Brasil parece ter dado certo. Tudo é praticamente integrado; as casas são elegantes e coloridas; o bem-estar generalizado e não se conhecem favelas como as tantas que cercam a maioria das cidades do país. Os tempos voltam ao início misterioso da caminhada da vida. Mas temos que prosseguir. Eles vão junto no coração, agora leve e rejuvenescido porque molhou as raízes na essência da vida que é o sangue, o laço, o afeto e o amor Primeiramente, visitamos os sobreviventes da família. Do lado de minha mãe, apenas uma tia carregada de anos e de dores; do lado do meu pai, ninguém mais. Só restam primos e primas. A maioria foi para as cidades, um trabalha em Montreal, como criador de jogos da internet; outro, é diplomata; os de- Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. www.malvados.com. br dahmer PALAVRAS CRUZADAS Verticais: 1.Chico Mendes nasceu nesse estado (sigla) – Uma das maiores empresas de agrotóxicos do mundo que, neste carnaval, patrocina a escola de samba carioca Vila Isabel, com um enredo que rende homenagem à agricultura familiar. 2.Ao virar numa rua, o carro precisa dar. 3.Quem não crê na existência de deus – Órgão ligado a CNBB que, desde 1975, organiza os trabalhadores para a luta pela terra. 4.Organização Internacional do Trabalho – Os Estados Unidos dizem que os irmãos Wright o inventaram. 5.Forma coloquial de crianças chamarem mulheres mais velhas. 6.Setor que entrará em greve nacional entre os dias 23 e 25 de abril. 7.O disco de vinil com músicas também é chamado assim. 8.Pelado – Unidade chinesa de distância equivalente a 500 metros – Regra estabelecida. 9.Agência Nacional de Águas (sigla). 10.O único planeta satélite da Terra – Essa região do Brasil é composta por nove estados e possui uma população equivalente à da Itália (sigla) – Setor responsável pela seleção de pessoal dentro de uma empresa. 11.Dizia respeito a. 12.Fêmea do leão – A capital desse estado é a única que se encontra totalmente no hemisfério Norte (sigla). 13. Sigla popularmente conhecida para Organização Internacional para Padronização. 14.Nome dado aos restos ou vestígios de plantas ou animais que se encontra m nas camadas terrestres, anteriores ao atual período geológico. 15.O contrário de “início” – O verbo “poder”, em inglês, que também significa “lata”. 16.A igreja catedral de uma cidade – Período de 24 horas. 17.Segunda nota da escala musical. 18.Ex-ministro condenado pela Ação Penal 470.. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 Horizontais: 1.Nanotecnologia – STJ. 3.Abateu – MA – Boff – RS. 4.Oi. 5.Sensacionalismo. 6.Réu – Ene – Ri. 7.Ata – Lá – Gorender. 8.BA – Violência. 9.CIA – Piá – Isca. 10.PA. 11.Fato – Cypherpunks. Verticais: 1.AC – Basf. 2.Seta. 3.Ateu – CPT. 4.OIT – Avião. 5.Tia. 6.Educação. 7.LP. 8.Nu – Li – Lei. 9.ANA. 10.Lua – NE – RH. 11.Tangia. 12.Leoa – RR. 13.ISO. 14.Fósseis. 15.Fim – Can. 16.Sé – Dia. 17.Ré. 18. José Dirceu. Horizontais: 1.Capacidade de manipular um átomo, uma molécula ou um conjunto de moléculas – Superior Tribunal de Justiça (sigla). 3.Derrubou – O compositor João do Vale nasceu nesse Estado (sigla) – Leonardo (?), um dos principais nomes da Teologia da Libertação – A atriz Glória Menezes vem desse Estado (sigla). 4.Uma das operadoras de telefonia celular. 5.Nome dado à postura editorial adotada por alguns meios de comunicação que se caracteriza pela capacidade de chamar a atenção do leitor por meio do choque. 6.Que ou quem é alvo de processo judicial – Décima quarta letra do alfabeto – Dá risada. 7.Registro de uma reunião – Naquele lugar – Jacob (?), um dos mais destacados marxistas brasileiros que acaba de completar 90 anos. 8.A Guerra de Canudos aconteceu nesse estado (sigla) – Abuso da força. 9.Agência de espionagem dos Estados Unidos – Forma costumeira de se dizer “menino”, principalmente no Rio Grande do Sul e no Paraná, que vem do tupi “coração”, utilizada pelas mães indígenas para chamarem carinhosamente seus filhos – O que se põe no anzol. 10.Segundo maior estado do Brasil em extensão (sigla). 11.Aquilo que se fez – Nome do livro do porta-voz do WikiLeaks, Julian Assange, que acaba de ser lançado. cultura de 14 a 20 de fevereiro de 2013 13 Berlim destaca Haiti Divulgação CINEMA Festival alemão exibe documentário que revela mau uso de recursos na reconstrução do Haiti depois do terremoto Nova versão de Os Miseráveis Rui Martins de Berlim (Alemanha) O TERREMOTO do dia 12 de janeiro de 2010, no Haiti, e a reconstrução do país são os temas de um dos principais filmes do Festival de Cinema de Berlim, Berlinale, do cineasta haitiano Raoul Peck, cujo título é Assistência Mortal. Exibido na mostra Berlinale Especial, trata-se de um documentário reunindo depoimentos de autoridades, como os do ex-presidente René Preval, do ex-primeiro-ministro Jean Max Bellerive, do expresidente Bill Clinton, co-presidente da Comissão Interina de Reconstrução do Haiti, mais dirigentes de ONGs e habitantes da capital Porto Príncipe. O objetivo é o de demonstrar a mobilização internacional da ajuda humanitária, tão logo ocorreu o devastador terremoto, porém, ao mesmo tempo, como essa ajuda mobilizando alguns bilhões de dólares não respondeu às necessidades básicas da população. Como explica um dos ex-ministros haitianos, os países que ofereceram assistência o fizeram sem consultar e sem a participação do governo local, enquanto as ONGs tomaram iniciativas próprias, algumas vezes absurdas. Assim, fica-se sabendo que, na remoção de detritos num dos principais sistemas de canalização das águas pluviais, três ONGs agindo isoladamente e em trechos diversos da canalização faziam e refaziam o mesmo trabalho. A primeira removeu todo o material que impedia o escoamento das águas e colocou ao lado. Ora, nas primeiras chuvas tudo entrou de novo na canalização e, a seguir, foi devidamente removido por outra ONG mais abaixo. Todo o trabalho foi perdido com novas chuvas e coube a outra ONG refazer a limpeza, isso demonstrando a O cineasta haitiano Raoul Peck, diretor de Assistência Mortal, conversa com a imprensa em evento do festival “Um caso marcante foi a construção de um novo hospital, perto de um já existente, sem autorização, ao invés de alguns quilômetros mais adiante” maneira caótica dispensada pelas organizações humanitárias. “Não existe uma coordenação das ONGs”, explica uma autoridade haitiana, “e se torna impossível contatar as 2 mil ONGs existentes, muitas delas religiosas, que evitam qualquer planificação com o governo”. “Um caso mais marcante”, explicou, “foi a construção de um novo hospital, perto de um já existente, sem qualquer autorização, ao invés de alguns quilômetros mais adiante, próximo de uma população mais carente. O resultado é que enviei tratores para impedir a construção, dada a insistência dos dirigentes da ONG, sem que eu saiba o porquê de tal interesse!” Outro absurdo relatado é o de que certas casas de emergências construídas pelas organizações humanitárias estrangeiras custaram mais caro do que se tivessem sido construídas pelos próprios haitianos. Essa discrepância entre o que se oferece e o que se precisa é acentuada logo no início do filme, quando o presidente do Haiti não entende porque os países filantrópicos enviam produtos do exterior quando poderiam ter sido comprados dentro do próprio Haiti. Raoul Peck deixa também visível um interesse de certas ONGs fazerem qualquer coisa, mesmo mais cara e nem tanto necessária, provavelmente para mostrarem serviço aos seus financiadores. Há também uma discrepância entre os totais anunciados nos planos de assistência e os dólares que realmente chegam ao Haiti. O cineasta Raoul Peck, nascido no Haiti, mas que viveu no Zaire e nos Estados Unidos, vive na França. Hoje cinquentenário, Peck se notabilizou por um filme dedicado à memória de Patrice Lumunba, herói congolês, cujo assassinato deu acesso ao poder ao ditador Mobutu. Artes marciais Filme de Wong Kar Wai retrata vida de mestre de Kung Fu de Berlim (Alemanha) A abertura do Festival foi com o filme O Grande Mestre, do cineasta Wong Kar Wai, também presidente do júri da competição internacional e prêmio de melhor diretor, em Cannes, com Felizes Juntos, história de um casal de homossexuais chineses que buscam aventura em Buenos Aires. O novo filme de Wong Kar Wai trata da vida de Ip Man, famoso mestre e divulgador chinês das artes marciais Wing Chun ou Kung Fu. A ideia de filmar a vida do mestre chinês do Kung Fu, conta o realizador Wong Kar Wai, lhe veio faz muito tempo, ao ver um documentário sobre o velho Ip Man, já cansado, um tanto esquecido, doente, mas guardando ainda um porte de nobreza do mestre de artes marciais de sua época. O que me tocou, diz Kar Wai, foi vêlo velho, rodeado de sua família, filhos e netos, extremamente zeloso de sua arte. Esse documentário da televisão só mostrava isso. De onde minha vontade de reunir o vivido por esse mestre que atravessou fases diferentes da história da China, a invasão japonesa até ir viver naquela colônia britânica, Hong Kong, onde morreu. Ip Man nunca se enriqueceu com o Kung Fu, mas rejeitou uma fortuna oferecida por Bruce Lee, que desejava uma demonstração pessoal. Fiel ao espírito de grande mestre, Ip Man, afirma o cineasta, defendia o espírito de generosidade, pelo qual deveria transmitir aos jovens da nova geração seu conhecimento, também assim recebido, mas não vendê-lo para alguém. ”Hoje as artes marciais não são praticadas com espírito guerreiro e de violência, mas como exercício benéfico para a saúde, como o ioga” Ao mesmo tempo, conta Kar Wai, fazer esse filme era uma oportunidade de ir além do Kung Fu, mostrar o código de honra de todos quantos fazem artes marciais e a maneira como utilizam essa arma que, não fora isso, poderia ser perigosa. Ao contrário, hoje as artes marciais não são praticadas com espírito guerreiro e de violência, mas como exercício benéfico para a saúde, como o ioga, diz o cineasta Kar Wai. Isso eu aprendi, porque nunca pratiquei Kung Fu, diz ainda Kar Wai, nos quatro anos de preparação e filmagem de O Grande Mestre. Sobre o clima nas filmagens, não quis alimentar ilusões, dizendo que, na verdade, os estúdios estão hoje muito ocidentalizados. O ator principal Tony Leung Chiu Wai, confirmou a visão do Kung Fu expressada pelo realizador, por ter praticando Kung Fu quatro anos, começando um ano antes das filmagens, quando se supreendeu com a modéstia e o código dos lutadores, ali tendo aprendido uma coisa importante, a disciplina e a ser mais trabalhador como ele próprio diz. Quanto ao filme, revelou que Kar Wai só mostra o que vai ser filmado no dia, deixando os atores sem uma visão do conjunto de seu papel, exceto ele que vivia o papel principal. As filmagens, conta o ator, levaram 20 meses, mas divididos em períodos que no total somaram três anos. (RM) Habi, a estrangeira Coprodução entre Brasil e Argentina é destaque em Berlim de Berlim (Alemanha) A coprodução argentino-brasileira Habi, a estrangeira é uma das atrações do Festival de Cinema de Berlim, na mostra Panorama, não só por tratar do tema da mudança de identidade, como por ser a concretização de um recente projeto de cooperação cinematográfica entre o Brasil e a Argentina. Habi tem também um produtor brasileiro de prestígio, Walter Salles. A diretora é a argentina Maria Florencia Alva- rez, autora da saborosa história de uma jovem argentina do interior que, dentro da cidade grande, no caso Buenos Aires, rompe com seu passado e assume outra vida, outras roupas, outros amigos e outra crença. Fazer como certos insetos, que se descartam de uma fase embrionária para se metamofosearem em algo diferente, é a tentação de muitos migrantes. O anonimato no novo país ou na nova cidade permite a quem quiser se desvencilhar do passado e começar uma nova vida. Assim ocorre com Anália, jovem interiorana atraída pela oportunidade de se transformar em outra pessoa, no contato com seu novo mundo, a cidade grande. Por circunstâncias diversas, Anália vai a um velório de uma muçulmana e acaba recebendo algumas de suas roupas. Curiosa, veste-se como a defunta e se deixa guiar pela nova indumentária, como se pela roupa se tivesse transformada em muçulmana. E cobre a cabeça com o chador, segundo o rito muçulmano, vai à mesquita e se identifica com as outras mulheres seguidoras de Alá como se fosse uma delas. Fascinada por esse novo mundo, que lhe compensa a ruptura do passado com uma sensação de nova vida, se dá um outro nome Habiba Rafat. Para sobreviver nessa nova identidade, consegue um emprego num supermercado árabe, aluga um lugar para morar, onde pode viver só pela primeira vez, passa a ter uma amiga muçulmana, Yasmin, e tudo parece funcionar nessa nova vida, até se apaixonar por um jovem libanês. Habi é o primeiro longa metragem de Maria Florenzia Alvarez. (RM) Já em cartaz na Inglaterra, Berlinale exibe também, na mostra Especial o filme de Tom Hooper, uma nova versão do romance de Vitor Hugo, publicado em 1862. A história de Jean Valjean, perseguido, preso e enviado à prisão por ter roubado um pão, contando as misérias dos pobres de todo o mundo, e da avareza do casal Thénardier, onde Fantine deixara sua filha Cosette, continua emocionando leitores e espectadores. Não se pode esquecer que o escritor Vitor Hugo, que viveu parte de sua vida no exílio, não escondia suas ideias socialistas e sua condenação da exploração gerada pelo advento da industrialização. A história de Jean Valjean inclui também o incansável inspetor de polícia Javert, fiel aos princípios da época de que a prisão devia ser uma punição, um pouco o inferno para os que desobedecessem a lei. Sem perceber que a lei serve principalmente para a manutenção, no poder, dos opressores de todo tipo. (RM) Brasil fora da competição internacional Berlim não tem nenhum longa metragem brasileiro na competição do 63º Festival Internacional de Cinema de Berlim, mas concorre com três curtas, na mostra Geração, entre eles uma inédita coprodução brasileiro-vietnamita, O caminhão de meu pai , de Maurício Osaki. Os outros dois curtas – Desestimação, de Ricardo de Podestá, e O pacote,de Rafael Aidar revelam uma nova geração emergente de jovens cineastas brasileiros, preparando-se para ocupar o espaço deixado pelos veteranos do cinema nacional. Esse mesmo quadro se revela, de maneira mais marcante, na competição internacional, onde cineastas e atores internacionais consagrados concorrem com realizadores em início de carreira. É o caso de Gus van Sant, Steven Soderbergh e o iraniano Jafar Panahi fazendo frente a jovens realizadores, cujos nomes começam a ser conhecidos. Se na Berlinale anterior, foi uma jovem negra congolêsa, pouco mais que estreante, a ganhadora do Urso de Ouro como melhor atriz, este ano participam da disputa Juliette Binoche e Catherine Deneuve face às emergentes. Na mostra Panorama Especial estão dois filmes brasileiros – Flores Raras, de Bruno Barreto, e Hélio Oiticica, de Cesar Oiticica Filho. (RM) Thatcher e a política social inglesa Também na mostra Berlinale Especial está o filme do cineasta inglês Ken Loach, com o sugestivo título de O espírito de 45, ano do fim da guerra, quando a vitória dos trabalhistas significou uma série de nacionalizações dos serviços públicos minas, estradas de ferro, eletricidade, gás, portos, serviços de assistência médica e o próprio Banco da Inglaterra. Ora, esse socialismo inglês foi totalmente anulado na época da primeira-ministra Margareth Thatcher , de 1979 a 1990, que aplicou um programa de privatização, precedendo o atual neoliberalismo, que se alastra pela Europa e pelo mundo. (RM) 14 de 14 a 20 de fevereiro de 2013 américa latina O impeachment de Lugo como “lição a futuros governantes” Rafael Alejandro Urzúa Urzúa/CC PARAGUAI Documento revela a falta de evidências para a destituição do ex-presidente paraguaio Natália Viana de Assunção (Paraguai) COM APENAS NOVE páginas, o documento que fundamentou o impeachment de Lugo é impressionante. Segundo a Constituição paraguaia, promulgada em 1992, o presidente, ministros, o procurador-geral da República, o controladorgeral os integrantes do Tribunal Superior eleitoral podem ser destituídos pelo Congresso por “má gestão” – acusação usada contra Lugo. Os fundamentos apresentados são cinco. Primeiro, o Congresso acusa Lugo pela realização, em maio de 2009, do II Encontro Latino-Americano de Jovens pela Mudança, realizado no Comando de Engenharia das Forças Armadas. O fato, considerado gravíssimo e tachado como “ato político” no seio das Forças Armadas, causou ainda mais consternação porque os jovens alçaram uma bandeira de Che Guevara durante o encontro. Fernando Lugo acompanha noticiário poucos dias antes do golpe O documento diz que o governo de Lugo é “o único responsável como instigador e facilitador das recentes invasões de terra” A seguir o libelo lista o que chama de “caso Ñacunday”, referindo-se a diversas ocupações de terras realizadas no distrito de mesmo nome, próximo à fronteira com Brasil e Argentina. O documento diz que o governo de Lugo é “o único responsável como instigador e facilitador das recentes invasões de terra na zona”. A acusação remete à candente questão fronteiriça. Após a promulgação de um decreto presidencial em outubro de 2011, que determinava que terras a 50 km das fronteiras não podem, por lei, pertencer a estrangeiros, o Congresso acusa o governo Lugo de ter “ingressado em imóveis de colonos, sob o pretexto de reali- zar o trabalho de demarcação da franja de exclusão fonteiriça”, mas na realidade para permitir que a Associação Nacional de Carperos (sem-terra) comandasse o exército. A acusação, afinal, é de que Lugo “utiliza as forças militares para gerar um verdadeiro estado de pânico na região”. Pior: o presidente “se mostrava sempre com portas abertas aos líderes dessas invasões” como José Rodriguez e Eulálio Lopes, dirigentes da Liga Nacional de Carperos, e Victoriano Lopez, líder camponês da zona de Ñacunday. Ao reunir-se com eles, na visão da Câmara de Deputados, Lugo estava “dando uma mensagem clara” sobre seu “incondicional apoio” a “atos de violência e comissão de delito”. Ou seja: a acusação contra Lugo é de manter diálogo com lideranças camponesas. O terceiro ponto listado é descrito, genericamente, de “crescente insegurança”. Segundo a Câmara dos Deputados, “ficou mais que demonstrada a falta de vontade do governo de combater o Exército do Povo Paraguaio (EPP)” – a pequena guerrilha que se situa no norte do país. “Todos os membros desta honorável Câmara de Deputados conhecemos os vínculos que o presidente Lugo sempre manteve com grupos de sequestradores” da ala militar do EPP, prossegue o documento, sem maiores detalhes. Além disso, argumenta a câmara, Lugo e seus ministros agiram de forma “absolutamente equivocada” ao tratar da matança de Curuguaty. O crime? “Tratar de maneira igual policiais covardemente assassinados e aqueles que foram protagonistas destes crimes” – os primeiros seriam os policiais e os segundos, camponeses. A cláusula democrática de Ushuaya II é descrita, em letras garrafais, como “UM ATENTADO CONTRA A SOBERANIA” do país. “A principal característica do Protocolo de Ushuaia II é a identificação do Estado com a figura dos presidentes para, em nome da ‘defesa da democracia’, defenderem uns ao outros”. A seguir, vem o último e mais extenso ponto, a matança de Curuguaty, cuja introdução estabelece que o presidente “representa hoje o que há de mais nefasto para o povo paraguaio”. “Não cabe dúvida que a responsabilidade política e penal dos trágicos eventos registrados recaem sobre o presidente Lugo”. Os deputados reiteram sua cer- teza de que o conflito de Curuguaty foi premeditado, e de que as forças de segurança foram vítimas de uma “emboscada” armada no local. Junto a essas gravíssimas suspeitas, que se confirmadas mais que justificariam o impeachment de um presidente em qualquer país democrático, a acusação não apresenta nenhuma – nenhuma – evidência. Explica o documento: “todas as causas mencionadas acima são de pública notoriedade, motivo pelo qual não necessitam ser provadas, conforme o nosso ordenamento jurídico”. Vai além. “Todas as evidências, que são públicas, demonstram que os acontecimentos da semana passada não foram fruto de uma circunstância derivada de um descontrole ocasional, pelo contrário, foi um ato premeditado, onde se emboscou as forças da ordem pública, graças à atitude cúmplice do Presidente da República”, diz a parte final da acusação. Que conclui com um alerta: Lugo “não somente deve ser removido por juízo político como deve ser submetido à justiça pelos fatos ocorridos, a fim que isso sirva de lição a futuros governantes”. (Confira a íntegra em apublica.org) INTERNACIONAL Na Tunísia, assassinato causa revolta popular Reprodução VIOLÊNCIA Chokri Belaid era um dos deputados que mais criticavam o governo por sua arrogância tes de ser morto que Bel Aid denunciou publicamente o sectarismo desavergonhado do partido islâmico como prática constante para permanecer no poder e bloquear os trabalhos dos constituintes. Ele apontou que, no mês de janeiro, toda vez que os islâmicos do Ennahada estavam prestes a perder uma votação, tornaram-se constantes as paralisações de trabalhos invocando o auxílio dos teólogos que denunciavam inexistentes violações do Islã na Assembleia Constituinte. E foi assim que os trabalhos nessa casa praticamente ficaram bloqueados, permitindo ao governo de transição continuar por mais um ano. Achille Lollo de Roma (Itália) NA MANHÃ do dia 5 de fevereiro, em Túnis, dois homens do grupo salafita “Liga para a Proteção da Revolução” matavam a tiros Chokri Bel Aid, deputado da sigla de esquerda Partido dos Patriotas Democratas Unificados (PPDU) e líder da Frente Popular. Já à tarde as ruas da capital e das principais cidades eram ocupadas por manifestantes. Nos dias seguintes, 6 e 7, a polícia atacava os revoltosos que, enfurecidos, destruíram quase todas os diretórios do partido islâmico Ennahda. No dia 8, a União Geral dos Trabalhadores (UGT) e os partidos da oposição proclamavam luto nacional e uma greve geral para celebrar o funeral de Bel Aid. Com o covarde assassinato de Chokri Belaid, os salafitas e jihadistas da Liga para a Proteção da Revolução e os fundamentalistas que se apoderaram do partido islâmico moderado Ennahda - hoje na coalizão de governo formada com os partidos de centro direita Ettakatol e Congresso para a República – quebraram uma aparente paz social que pode se transformar em guerra civil se os islâmicos do Ennahda continuarem ainda no governo, por todo o mundo conhecido por despótico e ineficiente. De fato, em outubro de 2011, os islâmicos do Ennahda, graças aos petrodólares do Qatar e da Arábia Saudita, rea- Já à tarde as ruas da capital e das principais cidades eram ocupadas por manifestantes O político Chokri Bel Aid, assassinado em Túnis no início de fevereiro lizaram uma milionária campanha eleitoral dando a cada tunisiano a certeza de que seus sonhos seriam realizados. E foi com a compra dos votos nas mesquitas e nas lojas dos comerciantes ligados à Irmandade Muçulmana que o Ennahda ganhou capturando 40% da preferência do eleitorado, elegendo 90 dos 217 parlamentares. Desta forma, a Irmandade Muçulmana da Tunísia alcançava o primeiro objetivo para agradar o império estadunidense e as transnacionais após a derrubada de Ben Ali, isto é: impedir que a coalizão de partidos de esquerda e leigos, enca- beçada pelo Partido Comunista da Tunísia, ganhasse as eleições. Assim, Moncef Marzouki era eleito presidente e Hamadi al-Jebali era nomeado primeiro-ministro com o encargo de chefiar os trabalhos da Assembleia Constituinte e de dirigir o governo transitório durante um ano. Após esse período e com a nascente Constituição haveria, finalmente, novas eleições. Despóticos Chokri Bel Aid era um dos deputados que mais criticavam o governo pela sua arrogância e, sobretudo, pela incapacidade de governar. Foi pouco an- E foi nesse clima que no fim do mês de janeiro Chokri Bel Aid confessou a seu pai que ele poderia ser o próximo alvo dos conservadores do partido islâmico Ennahada, tanto que já dormia em lugares diferentes e todas suas movimentações durante o dia eram feitas para despistar eventuais assassinos, visto que o ministério do Interior achou “desnecessário dar a Bel Aid uma escolta armada”. O porta-voz oficial da Frente Popular, Hamma Hammami, após a morte de Bel Aid declarou: “a responsabilidade do assassinado de Chokri Bel Aid é do poder, isto é, o governo, o presidente da república, o ministério do Interior e a maioria da Assembleia Constituinte são os responsáveis. Eles são mandatários desse assassinato. Eles hoje encobrem os assassinos.” Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália e editor do programa TV Quadrante Informativo internacional de 14 a 20 de fevereiro de 2013 15 Limpeza étnica em Israel Reprodução ORIENTE MÉDIO Autoridades israelenses reconhecem processo de esterilização de judias etíopes Baby Siqueira Abrão correspondente no Oriente Médio O RECONHECIMENTO, por parte das autoridades israelenses, da esterilização das mulheres etíopes que professam a religião judaica – e que migram para Israel usando a “lei do retorno” (allyah), segundo a qual todo judeu do mundo pode “voltar” a Israel, mesmo que jamais tenha posto os pés lá – foi manchete em quase toda a mídia internacional, corporativa e independente, há pouco mais de uma semana. A questão levantou debates intensos em círculos feministas, de direitos humanos, dos direitos da população negra e na sociedade israelense. Uma leitura atenta das cartas dos leitores publicadas na mídia de Israel mostra uma maioria perplexa e crítica, mas houve também quem defendesse a esterilização, e não foram poucos – espelho de uma sociedade política, econômica, social, religiosa e culturalmente bastante diversificada. E dividida. Mas com um novo Parlamento tomando posse e discussões em torno do futuro primeiro-ministro – Benjamin Netanyhau deve ser eleito para seu segundo mandato consecutivo, e o terceiro não consecutivo –, além do tema recorrente da “ameaça” representada pelo Irã atômico e da “necessidade” de impedir que os iranianos fabriquem bombas nucleares, acabaram pondo um ponto final no debate sobre a esterilização. Mas isso não significa esquecê-lo. O fato levantou questões importantes sobre o tratamento dispensado a imigrantes pobres e negros – e em particular às mulheres desse grupo. O debate precisa ser retomado pelas sociedades israelense e internacional para evitar que práticas assim, que violam direitos humanos básicos, voltem a ocorrer. Na última década, a taxa de natalidade entre as mulheres etíopes de Israel teve uma queda de 50% Primeiro alerta Na última década, a taxa de natalidade entre as mulheres etíopes de Israel teve uma queda de 50%. Há mais de cinco anos a hipótese da esterilização veio à tona, em consequência dos relatos das etíopes. Pequena parte da mídia israelense noticiou o fato, mas as autoridades de Israel sempre o negaram. Foi o trabalho da pesquisadora Sabba Reuven, levado ao ar pela jornalista Gal Gabay no programa Vacuum, da TV Educativa de Israel, que escancarou o fato, no início de dezembro de 2012. As entrevistadas foram claras: são obrigadas a tomar, a cada três meses, as injeções de Depo-Provera, anticoncepcional cujo efeito é de longo prazo. Vacuum chegou a acompanhar uma delas ao posto de saúde – a filmagem, feita sem o conhecimento dos funcionários, tem baixa qualidade e está nublada para evitar o reconhecimento das pessoas envolvidas, mas ainda assim registra a prática. O problema maior é que a verdade jamais foi dita a essas mulheres. A esterilização, segundo os relatos delas, começa na Etiópia, nos “campos de trânsito”, nome dos locais para onde são levados os judeus africanos que querem emigrar para Israel. “Entre 1980 e 1990 milhares de judeus etíopes passaram meses nesses campos, na Etiópia e no Sudão”, escreveu Efrat Yardai, porta-voz da Associação Israelense de Judeus Etíopes, em artigo para o jornal Haaretz. “Centenas morreram apenas porque o país que supostamente devia ser um refúgio seguro para os judeus decidiu que ainda não era a hora certa, ou que eles não poderiam ser absorvidos ao mesmo tempo, ou que não eram judeus o bastante... Quem já tinha ouvido falar de judeus negros?”, ela provoca. Vida controlada Para Efrat, as injeções de Depo-Provera são parte da atitude do governo israelense em relação aos imigrantes africanos. Hoje em dia, nos campos de trânsito, os futuros imigrantes são obrigados a enfrentar “uma desorganização burocrática terrível, uma carga que lhes é imposta para que provem que estão aptos a viver em Israel”. Ao chegar ao novo país, de acordo com Efrat, eles passam a receber “tratamento” em centros de assimilação. As crianças são enviadas a escolas religiosas e incluídas num programa de educação “especial”, enquanto os pais “permanecem em guetos e as mulheres con- Mãe e filha judias de origem etíope passam por entrevista no aeroporto de israelense Ben Gurion, perto de Tel Aviv tinuam a receber as injeções. [As autoridades] dizem que não temos escolha. As políticas repressivas, racistas e paternalistas prosseguem – políticas que supostamente seriam no melhor interesse dos imigrantes, que não sabem o que é melhor para eles”, ironiza ela. Efrat vai além, afirmando que esse controle completo sobre a vida dos imigrantes é feito apenas em relação aos etíopes e impede que eles se adaptem a Israel. “A desculpa de que eles precisam estar preparados para viver num país moderno levam-nos a um processo de lavagem cerebral que os torna dependentes das instituições estatais de assimilação”, denuncia a porta-voz. As entrevistadas de Gal Gabay sustentam as denúncias de Efrat Yardai. “Em Adis Abeba [Etiópia] eles marcaram uma reunião conosco (...) Disseram que, se continuássemos tendo muitos filhos, não conseguiríamos emprego em Israel. (...) Disseram que as injeções seriam dadas para evitar esse sofrimento, e que a cada três meses tínhamos de tomá-las”, contou uma imigrante. “E vocês aceitaram tomá-las?”, perguntou a jornalista. “Não. Nós não queríamos tomar. Recusamos. Mas eles disseram que não tínhamos escolha.” A esterilização, segundo os relatos delas, começa na Etiópia, nos “campos de trânsito” Contracepção forçada Nenhuma das etíopes sabia qual era a substância injetada em seus corpos. Ninguém as avisou de que o Depo-Provera é um anticoncepcional aplicado apenas em último caso, como na esterilização de mulheres aprisionadas ou que não têm controle sobre as próprias ações. Tampouco lhes contaram que o Depo-Provera tem um histórico nada recomendável. Entre 1967 e 1978 a substância foi injetada em 13 mil mulheres (metade negras) da Geórgia, Estados Unidos, que também não sabiam que eram cobaias. Muitas adoeceram e algumas acabaram morrendo durante o experimento, de acordo com uma pesquisa realizada em 2009 pela Isha L’Isha, organização feminista sediada em Haifa, Israel. A mesma pesquisa apontou que 60% das injeções de Depo-Provera, em Israel, são destinadas às etíopes. O segundo grupo mais visado é o de mulheres sob várias formas de custódia. Os efeitos colaterais variam, mas o mais comum é a osteoporose, que fragiliza os ossos e expõe as mulheres ao risco de quebrá-los com frequência. Coordenadora do projeto Mulheres e Tecnologias Médicas da Isha, Hedva Eyal afirmou que o documento foi encarado com desinteresse pelas autoridades do país e que muitos “batiam a porta na cara” das integrantes da organização. “É estarrecedor constatar como os testemunhos das mulheres são rejeitados, em especial os das mulheres pobres e negras”, desabafa Hedva. As autoridades não levam em contam que “as decisões sobre a saúde e a fertilidade das mulheres podem e devem ser tomadas apenas por elas”, que para isso precisam ter acesso pleno a todas as informações importantes sobre o assunto. “Mas não foi esse o caso, ao que parece”, afirma ela. Reprodução Caixa do anticoncepcional de longo prazo Depo-Provera, do laboratório Pfizer Explicações contraditórias Autoridades médicas afirmam que contracepção é feita de maneira voluntária da correspondente no Oriente Médio Rick Hodes, diretor médico do American Jewish Joint Distribution Committee, entidade que administra os programas de contracepção de etíopes que desejam emigrar para Israel e os centros de assimilação em território israelense, nega as acusações. “As mulheres procuram o programa porque desejam planejamento familiar”, afirma ele. “Apresentamos as várias opções e elas escolhem [... se desejam] a contracepção e o método. E escolhem quando descontinuar o tratamento. Sempre foi assim”, diz Holdes, informando que atualmente a comissão cuida de 4,5 mil “potenciais emigrantes a Israel”, com uma média de 85 visitas mensais a famílias que, segundo ele, aderiram ao programa de planejamento familiar. A decisão tomada pelo Ministério da Saúde israelense, porém, contradiz as declarações de Rick Hodes. Depois que as denúncias do Vacuum foram ao ar – e diante das críticas generalizadas em Israel e no exterior, assim como da pressão exercida pelas organizações feministas e de direitos humanos israelenses – , o diretor geral do ministério, Roni Gamzu, enviou instruções às quatro HMOs (sigla em inglês para as Organizações de Manutenção da Saúde, que cuidam dessa área no país) para que cessem a apli- cação do Depo-Provera. Na carta enviada aos ginecologistas das HMOs, Gamzu solicita que não seja feita a “renovação das prescrições” da substância para mulheres “de origem etíope” se por algum motivo “elas puderem não ter compreendido as implicações do tratamento”. “Isso sugere que o ministério colaborou com essa política racista, aplicada numa população fragilizada. Ainda estou chocada com o fato” Para Ziva Mekonen-Dego, executivachefe da Associação Israelense de Judeus Etíopes, a decisão do ministério é importante, mas não basta. “Esperamos que o ministro da saúde responsabilizese totalmente por essas mulheres”. Isso significa, por exemplo, atender a solicitação das ONGs israelenses e da ACRI, a Associação de Direitos Civis em Israel, de que seja formada uma equipe com profissionais de saúde e “facilitadores culturais” para supervisionar o bem-estar clínico e emocional das mulheres. Mekonen-Dego, assistente social nascida na Etiópia, afirma que as autoridades, embora negassem as práticas, sabiam delas e de seus efeitos numa população tão pequena (atualmente, cerca de 120 mil judeus etíopes vivem em Israel): “Isso sugere que o ministério colaborou com, ou até mesmo conduziu, essa política racista, aplicada numa população fragilizada. Ainda estou chocada com o fato”. (BSA) O crime de genocídio Se as acusações de contracepção forçada feitas ao governo e os órgãos oficiais de Israel forem provadas, os responsáveis correm o risco de responder pelo crime de genocídio. De acordo com a Convenção de Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, adotada pela resolução 260 (III) A da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 9 de dezembro de 1948, o genocídio é a “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso” por meio, entre outras práticas, de “causar sério dano físico ou mental aos membros do grupo; infligir ao grupo, de maneira deliberada, condições de vida calculadas para provocar sua destruição física, no todo ou em parte; impor medidas destinadas a prevenir nascimentos no grupo; transferir de modo forçado as crianças de um grupo para outro” [artigo 2, itens (b), (c), (d), (e)]. Além do genocídio, são puníveis outros atos relacionados ao crime. O artigo 3 estabelece quais são eles: genocídio; conspiração para cometê-lo; incitamento direto e público para que ele aconteça; tentativas e cumplicidade de prática de genocídio. 16 de 14 a 20 de fevereiro de 2013 internacional Jean Salem, uma filosofia para transformar o mundo Reprodução ENTREVISTA Especialista em materialismo grego e latino, e no pensamento marxista, escritor francês critica as “falsas esquerdas” e a descoordenação da luta dos trabalhadores Milton Pinheiro de Paris (França) “JEAN SALEM é um daqueles intelectuais humanistas, cada vez mais raros, que são homens de cultura integrada”. O elogio desferido por Miguel Urbano Rodrigues aconteceu em outubro de 2012, ao comentar o lançamento da edição portuguesa do livro A Felicidade ou a Arte de Ser Feliz Quando os Tempos São Difíceis, do escritor francês. Lutar pela felicidade, de acordo com Salem, também autor de Lênin e a Revolução, é um dever em meio à escalada da barbárie capitalista. Filho do revolucionário e escritor Henri Alleg, o filósofo escreve artigos para diversos jornais franceses e estrangeiros. Quanto às lutas concretas em que se envolve, elas visam essencialmente, segundo ele, à reconstrução de um movimento autenticamente revolucionário na França e no mundo. Ao Brasil de Fato, Salem lança luz sobre o que foi a França de Nicolas Sarkozy e o que é a de François Hollande. Tece considerações acerca das lutas sociais na Europa que pecam por falta de coordenação política. Fala da imagem midiática do Brasil na Europa, mas enfatiza a visão segundo a qual ele, de fato, nos compreende. Brasil de Fato – Você é um filósofo que estuda os materialistas na filosofia grega e romana; marxista ligado às lutas dos trabalhadores em seu país e no mundo, a exemplo de seu apoio ao MST no Brasil, foi sempre vinculado às ideias comunistas. Quem é o intelectual orgânico Jean Salem, sua história e suas lutas? Jean Salem – Tenho, de fato, dedicado uma dúzia de anos e mais de uma dúzia de livros a estudar de maneira intensa o materialismo antigo: aquele de Demócrito, de Epicuro e de Lucrécio. No meio dos anos de 1980, enquanto tudo parecia colapsar ao lado dos Partidos Comunistas da Europa, e do “socialismo real”, eu decidi enfrentar os trabalhos acadêmicos sobre esse assunto. Mais que compor uma milésima tese sobre Marx, eu tentei (como o próprio Marx em sua tese de doutorado) conhecer mais de perto esses autores que ousaram enfrentar os preconceitos religiosos e que já estavam decididos a levantar um canto do véu, ou seja, a propor uma visão racional de tudo o que nos cerca. Uma visão que permanece compatível com a ciência moderna. Tenho também dedicado leituras a Maupassant, à Renascença italiana, à felicidade, e tenho organizado diversos livros de filosofia e de lógica matemática. Agora, você me pergunta sobre minhas lutas. Elas são muitas: eu me encontro na Coréia, em Portugal, na América Latina, em congressos ou reuniões animadas pelos progressistas. Tomando o cuidado, sempre, de não cair no que eu chamaria de “jet-altermundismo”: muitos se perdem nele, outros aí se corrompem. “Sarkozy, que se vangloria de o denominarem ‘Sarkozy, o americano’ [entenda-se, dos EUA], tudo fez para alinhar a política francesa com a da Casa Branca” O projeto de Sarkozy, completamente enquadrado na ação imperialista pelo mundo, em especial no norte da África, foi derrotado eleitoralmente. Mas como fica a França com François Hollande? É evidente que Sarkozy encarnou um estilo de chefe de Estado de cultura medíocre, vulgar até, rompendo com a tradição de uma França onde, durante longo tempo, se quis crer que os notáveis deveriam aparecer como mais que simples representantes do meio de negócios. Sarkozy, que se vangloria de o denominarem “Sarkozy, o americano” [entendase, dos EUA], tudo fez para alinhar a po- O filósofo marxista Jean Salem lítica francesa com a da Casa Branca. Antes mesmo de assumir a presidência da república, em maio de 2007, [ainda que já ocupasse o cargo de Ministro do Interior] frequentava assiduamente a embaixada americana em Paris. E ele não hesitava em criticar a posição oficial da França – da França que em fevereiro de 2002 vetou, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, a tentativa dos EUA aprovar a invasão do Iraque. Teve papel auxiliar nas guerras empreendidas pelo império no norte da África. Quanto à política interna, Sarkozy tentou limitar o direito de greve, “reformou” as aposentadorias, inflou os sentimentos xenófobos e exacerbou a psicose da delinquência, assim como os temores mais primitivos. Promoveu uma redução das despesas públicas que desmantelou a saúde pública, desorganizou a Universidade, oprimindo-a cada dia mais. O governo François Hollande, o que mudou? Muito pouco. Mas a única medida, a única, que parecia fazer pender um pouco à esquerda o seu governo foi a tentativa de taxar em 75% os ganhos suplementares de uma pessoa rica, o que geraria pelo menos 100 milhões de euros de receita. Mas essa medida foi declarada inconstitucional por um dos bastiões do conservadorismo: o Conselho constitucional. Quanto à atitude francesa face à situação na Síria, ela foi mais extrema e unilateral do que Obama! Eis que a pequena guerra levada pelo senhor Hollande ao Mali vem completar o quadro de comportamento dessa esquerda de direita, essa “esquerda” que parece cada vez mais à direita. Quais são as lutas que têm pautado os trabalhadores franceses e europeus? As lutas existem, é claro. Ainda que elas se “beneficiem” de um impressionante silêncio midiático. Elas se dão “com as costas na parede”, como dizemos em francês. Os trabalhadores da PSA Peugeot Citroën, em Aulnay, na periferia de Paris, fizeram greve para protestar contra o plano de licenciamento que os ameaça. E a direção da fábrica recorreu ao lock out, ou seja, ela fechou provisoriamente as portas! Mas as lutas seguem, bem e belas, eu repito! Em maio de 2012 os portugueses pararam massivamente; a Itália conheceu uma greve geral acompanhada de manifestações impressionantes; os gregos foram às ruas contra os planos da União Europeia e do FMI; os jovens na Espanha e os “indignados” em geral conseguiram que falassem deles, tanto pela ação surpresa, quanto por surpreender os sindicatos, que estavam muito ocupados em negociar uma redução da idade de aposentadoria a fim de assegurar a “paz social” visando tranquilizar “os mercados”. A questão não é tanto de ausência de lutas, mas de falta de coordenação, de perspectiva: nós estamos morrendo, literalmente, por falta de organização, por ausência de um partido digno de seu nome! Como professor da Sorbonne, você tem sido responsável por um ciclo de cursos sobre o marxismo. Quais são as presenças mais importantes de teóricos desse campo de pensamento? Nós lançamos em 2005 um seminário intitulado “Marx no século XXI”, na Sorbonne. Para afirmar ali a presença do marxismo, que diziam morto há tempos. A ideia que preside a apresentação desse seminário era um pouco análoga àquela que conduziu Lênin a fundar seu jornal Iskra, um jornal destinado a reunir, a agrupar mil energias até então dispersas na Rússia dos czares. Para nós, se trata de convidar todos aqueles que trabalharam, ou pensavam trabalhar, “no seu canto”, isoladamente, nas condições atuais de pesquisa na França e no exterior: pois, aqui, particularmente, as pesquisas marxistas foram durante longo tempo marginalizadas, senão censuradas. Claro que a vinda de Domenico Losurdo, Enrique Dussel, David Harvey, ou a de Georges Labica, André Tosel, Daniel Bensaid, Michel Löwy, Slavoj Zizek, etc., constituíram grandes momentos do seminário! “Meu pai nos deu a imagem de um homem que triunfou sobre seus torturadores, redigindo um livro, A questão” Você é um intelectual acadêmico vinculado ao pensamento marxista e comunista com uma importante história de vida: é filho do legendário comunista Henri Alleg. O que você nos diz sobre a vida deste revolucionário internacionalista? Meu pai nos deu a imagem de um homem que triunfou sobre seus torturadores, redigindo um livro, A questão. Ele os denunciou e fez saber, a todo mundo, qual era o método ao qual se costumava recorrer na Argélia durante a guerra colonial; e que a história e as lutas dos povos demonstraram que o sistema colonialista, inelutavelmente, deveria colapsar. Henri Alleg é filho de uma inglesa e de um polonês, judeus, que se encontraram em Londres e vieram para Paris. Mas ele se apaixona pela Argélia, onde se fixa. Depois de ser militante e membro do Partido Comunista argelino, ele se torna, em 1950, diretor do jornal Argélia Republicana, onde militou em favor da independência. E é como jornalista comunista que sofreu as perseguições e as torturas durante anos de prisão, e depois [após sua fuga] enfrentou o exílio nos países socialistas. Meu pai seguiu seu combate internacionalista trabalhando como redator, e depois como secretário geral do jornal L’Humanité. De suas grandes reportagens na China, nos EUA, na União Sovi- ética, em Cuba, ele extraiu numerosos livros. O último é seu livro de memórias, Memória argelina, publicado em 2005, pela editora Stock. Como intelectual e militante comunista você deve viajar por várias partes do mundo. O que nos diz sobre as lutas dos trabalhadores? Há algo de novo no front? Sim, tenho tido a felicidade de ser convidado por universidades em todo o mundo. E tenho participado de muitas reuniões, algumas vezes acadêmicas, porém mais frequentemente políticas. Isso abre horizontes à reflexão. Na China pude constatar que o problema da poluição nas cidades não se reduz, nem um pouco, a um tema de propaganda inventada pelas redações ocidentais. Vi também o extraordinário progresso desse país, que o Império cerca de maneira já ameaçadora. Na Rússia se pode ver os efeitos do capitalismo selvagem imposto a partir do golpe de 1991: lojas abertas 24 horas por dia, sete dias por semana; reino do business e da corrupção generalizada; desigualdades ainda mais gritantes que na França, etc. Mas eu fiquei impressionado, recentemente, pela seriedade e organização dos camaradas coreanos, que organizaram em setembro último, em Seul, um importante fórum internacional. Eles estão lidando com um modelo quase acabado de “democracia” completamente formal: uma lei dita de “segurança nacional” (que durante muito tempo era chamada simplesmente de “lei anticomunista”) permite, de fato, que o governo jogue na cadeia qualquer um que diga uma palavra que seja a favor da reunificação com o norte, qualquer um que denuncie o sistema de forma um pouco mais radical. Pude ver, nesse país longínquo (que a China e o Japão nos fazem quase esquecer), homens e mulheres dos quais a determinação, a coragem e a qualidade humana me lembraram as belas figuras de comunistas que, na minha juventude, eu admirava. “Em compensação, se fala muito pouco, na Europa, das desigualdades abissais que subsistem no Brasil” Como analista de profunda convicção internacionalista, qual a sua análise sobre o Brasil e qual a mensagem que você deixaria para aqueles que lutam pela emancipação humana, em nosso País? Dei aulas, durante algumas semanas, na USP, e dei algumas conferências na Universidade São Judas Tadeu. Foi em 2007. Devorei sua literatura (Machado de Assis me agrada tanto quanto Sterne e certos romancistas franceses que, como Crébillon, por exemplo, eu aprecio particularmente). Sem querer dar lições e menos ainda ser um intelectual que emite julgamentos sem conhecer grande coisa sobre o que fala, o que eu posso dizer é que a imagem “midiática” do Brasil mudou radicalmente nos últimos 20 anos. Do Brasil dos trabalhadores superexplorados, que durante muito tempo nosso imaginário ocidental prontamente reduzia ao Nordeste, e a sua miséria apavorante, do Brasil que era descrito, por exemplo, em Cacau de Jorge Amado, passamos a um Brasil que nossas mídias apresentam como um país em pleno progresso, como um gigante em formação, como um “concorrente” muito sério para as economias cambaleantes da velha Europa, e etc. Essa evolução foi acompanhada por uma unanimidade alardeando sem qualquer nuance a política do governo Lula. Quando o Tesouro estadunidense, os grandes bancos de negócios e as agências de classificação dirigem louvações a vocês, é normal que a mídia do sistema trate o Brasil com uma deferência entusiasta. Já a questão da corrupção foi enfocada de passagem por nossa mídia oficial. Em compensação, se fala muito pouco, na Europa, das desigualdades abissais que subsistem no Brasil. Jean Salem é filósofo, militante das lutas anticapitalistas e comunistas, estudioso da filosofia materialista greco-romana, professor da Universidade de Paris I (Sorbonne), onde coordena o seminário “Marx no Século XXI” e é diretor do Centro Para a História do Pensamento Moderno. Milton Pinheiro é Professor de Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e editor da revista Novos Temas Tradução: Ernesto Pichler.