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2
de 14 a 20 de fevereiro de 2013
editorial
Tudo recomeça depois do carnaval
TODOS OS DIAS a vida se reproduz.
E segue. Precisamos trabalhar, produzir, consumir, estudar, comprar e
vender etc.
A vida real. E com ela, os interesses diferentes e até antagônicos das
classes sociais se reproduzem todos
os dias. No entanto, no Brasil, temos um calendário especial. A vida
política, das disputas, das lutas, dos
acordos, conciliações ou enfrentamentos, parece se paralisar do início
dos feriados de dezembro até o carnaval chegar.
Mesmo os fatos importantes da luta de classes em nível internacional,
que podem ter relevância na correlação de forças, entre classes, interesses dos países, por aqui, repercutem pouco, pelo menos na imprensa burguesa.
A Venezuela está em permanente
mobilização, em vigília, em defesa do
processo de mudanças e zelando pela
saúde de seu líder. Em um mês fizeram grandes mobilizações de massas
que envolveram praticamente toda
sua população.
Em Santiago do Chile, se reuniram
todos os países do continente americano – com exclusão do Canadá e Estados Unidos – na Comunidade dos
Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac). Um organismo interna-
cional que se contrapõe claramente à
OEA, enfrenta os interesses do imperialismo americano e quer construir
uma integração entre todos os de baixo. E ainda elegeram como Secretaria Executiva para o próximo período
nada menos do que Cuba!
Na Tunísia, os conservadores assassinaram o líder das forças de
oposição e a força do capital dissolveu o governo.
O governo de Israel, numa afronta às leis internacionais, atacou a
Síria com sua aviação, numa clara
provocação para internacionalizar a
guerra civil.
No México 40 mil camponeses
zapatistas marcharam pelas cidades de Chiapas. E mais recentemente, outros cem mil camponeses fizeram greve de fome e realizaram
passeata na capital do país, protestando contra a tentativa de liberar o
milho transgênico que a Monsanto
quer impor, após subornar os parlamentares.
Nada disso repercutiu na imprensa burguesa brasileira. Seus patrões e
editores estavam de férias nas praias
e resortes do litoral!
Da luta de classes do Brasil, pior
ainda. A linha editorial tem sido apenas encharcar as páginas com notícias de violência, para tentar man-
Temos várias
atividades
programadas e
algumas delas de
forma unitária, o
que sinaliza que a
classe trabalhadora
está construindo
espaços de maior
acúmulo de forças
ter as vendas e audiência popular. E,
as únicas duas pautas do último mês
têm sido os assassinatos em São Paulo e a tragédia da boate de Santa Maria (RS).
Felizmente o carnaval passou. Agora esperamos que tudo volte ao normal. Ou seja, a vida real da luta de
classes e dos problemas do povo possam ser de novo evidenciados.
E, ao que nos parece, se depender
dos movimentos populares o ano de
2013 será de muita mobilização. Já
temos várias atividades programadas
e algumas delas de forma unitária, o
que sinaliza que a classe trabalhadora está construindo espaços de maior
acúmulo de forças.
Assim, as centrais sindicais já
agendaram para o dia 6 de março
uma grande marcha a Brasília, para
re-pautar no Congresso e no governo
federal temas urgentes da classe trabalhadora, que vão desde os ataques
da bancada conservadora aos direitos
trabalhistas até a necessidade de retomar a luta pela redução da jornada
de trabalho para 40 horas semanais.
Na mesma semana, os vários movimentos feministas e das mulheres
trabalhadoras se mobilizarão em todo o país, em torno do dia 8 de março. Nesse período, uma ampla coalizão de movimentos da juventude,
que vai desde a UNE até setores juvenis de correntes partidárias, prometem realizar inúmeras mobilizações em torno da luta pela universalização da universidade e outros temas
da educação.
No final março e início de abril, os
professores articulados nos sindicatos da CNTE prometem se mobilizar
em todo Brasil e em Brasília, em de-
crônica
opinião Emanuel Cancella
fesa do piso nacional dos professores.
Os movimentos de petroleiros e
movimentos populares estão se preparando para iniciar em março uma
campanha nacional, que seguirá durante todo ano, contra a realização
dos leilões de petróleo, previstos pela
Agência Nacional do Petróleo (ANP),
para novembro de 2013. A realização dos leilões seria a verdadeira entrega do ouro ao bandido, pois a Petrobras já descobriu e delimitou o volume das reservas de todos os poços,
em alto mar. Agora, a ANP quer entregar para as petroleiras internacionais. Segundo os especialistas, a realização destes leilões comprometeria
nossas reservas e exploração do petróleo pelos próximos 40 anos.
Já no meio rural, com a reforma
agrária paralisada, todos os movimentos sociais do campo estão se articulando para iniciar as mobilizações em março e intensificar no tradicional abril vermelho, já que dia 17
de abril é dia internacional de luta
camponesa.
Como se vê, temos uma intensa
agenda de lutas, que vai mobilizar as
mais diferentes categorias de trabalhadores e setores da sociedade brasileira nesses primeiros meses do
ano. Portanto, mais além da folia, a
vida real segue, e com luta!
Ademar Bogo
Linderesa/CC
O ponto de apoio necessário
A grande mentira
A PETROBRAS é uma empresa estatal. Uma das diferenças entre
uma empresa privada e uma estatal é o seu compromisso não apenas com o lucro mas com um projeto de desenvolvimento nacional.
Por isso é preciso desconfiar quando se alardeia que “a Petrobras teve prejuízo em 2012”, o que é uma
grande mentira. Como nada acontece por acaso, não demorou a serem plantadas justificativas para
a privatização, como “saída inevitável para a crise”. O fato é que as
aves de rapina não descansam. Estão sempre prontas a dar o bote.
Vamos colocar os pingos nos is:
a Petrobras lucrou em 2012 R$
21,1 bilhões. Isso depois de produzir, refinar, comercializar, transportar e garantir o abastecimento
de derivados de petróleo em todo
o país. Aliás, essa é a sua função
constitucional. A título de comparação, entre as empresas brasileiras, a Petrobras continuou na liderança. Depois dela veio o Banco Itaú que lucrou R$ 13,59 bi.
Mas os bancos se utilizam de várias brechas legais para burlar o
pagamento de impostos e não têm
compromisso social, não investem
no desenvolvimento nacional.
Por exemplo: a Petrobras paga royalties à União, aos estados e municípios. A companhia
também financia 50% do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). É, ainda, a empresa que
mais paga impostos para União,
estados e municípios. Sem contar
os inúmeros projetos culturais.
Alguma outra empresa ficaria oito anos com o preço da gasolina
congelado, para impedir que a inflação e os preços disparassem?
E isso pode ser considerado ruim
para o povo brasileiro? É bom refletir sobre o papel social da empresa, antes de aplaudir aqueles
de raciocínio estreito que só calculam o lucro imediato. Historicamente, quem sempre financiou
o desenvolvimento do nosso país
foi o capital estatal.
É bom refletir sobre
o papel social da
empresa, antes de
aplaudir aqueles de
raciocínio estreito
que só calculam o
lucro imediato
Mas por que lucrou menos?
A crítica à Petrobras é por conta
da queda de seu lucro em 32%. Um
dos principais motivos da queda nos
lucros da Petrobras foi a importação
de gasolina durante certo período,
em consequência da necessidade de
suprir o mercado interno. Para estimular a indústria de automóveis, o
governo isentou os compradores do
pagamento do IPI. Resultado: aumentou significativamente a frota
de automóvel nas ruas, sem esperar
que a empresa se preparasse para a
nova demanda.
Para atender o crescimento do
consumo, a Petrobras precisou importar parte da gasolina, pagando mais caro, e revendeu no mercado interno subsidiando parte do
seu custo. Mas, a pergunta que não
quer calar: por que a Petrobras também teve que subsidiar a gasolina
repassada aos postos de bandeira estrangeira (Shell, Esso, Texaco, Rpsol
etc)? Por que os postos de bandeira
estrangeira não dividiram o prejuízo no custo final da gasolina com a
Petrobras? Com a palavra, a responsável pela fiscalização, Agência Nacional de Petróleo e Gás Combustível (ANP).
Mas a Petrobras ainda é uma empresa estatal e, por isso, pensa no futuro e não apenas no lucro imediato.
A preocupação com o futuro levou à
construção de mais cinco refinarias
o que, além de suprir o mercado interno, vai permitir a exportação de
derivados de petróleo.
Então, por que privatizar?
A sociedade tem que ficar atenta já
que a presidente da companhia, Maria das Graças Foster, encabeça uma
campanha junto à grande mídia para
desgastar a companhia e possibilitar
a privatização da Petrobras, seja por
inteiro ou, como já se cogita nos bastidores: a criação de uma empresa
de refino e a venda de 30% das ações
dessa empresa.
Foster também já vendeu blocos
de petróleo, o BS-4, na Bacia de Santos, para o megaempresário Eike Batista, através do plano de desinvestimento. Ou seja, Foster está entregando nossos poços de petróleo, que
são patrimônio de todo o povo brasileiro. Será que teremos uma nova
“privataria” pela frente?
Como os trabalhadores já fizeram
no passado — nas campanhas Fora
Collor e Fora FHC - principalmente
por conta das privatizações, está na
hora da campanha Fora Graça Foster Já! Será que as crises nos Estados Unidos, na Europa e que se refletem em todo o mundo, não foram
suficientes para mostrar o quanto o
neoliberalismo é nocivo?
Saída de Graça Foster
Os sindicatos de petróleo ligados à Federação Nacional dos Petroleiros (FNP) já discutem ação na
justiça para a destituição da presidenta da Petrobras e de sua diretoria, por priorizarem metas alheias
ao interesse nacional, e por macular a imagem da Petrobras. Foster
tem anunciado na imprensa a necessidade de sucessivos aumentos nos preços dos combustíveis,
o que prejudica a sociedade que é
quem paga a conta, e também alimentaria a alta da inflação. Uma
das formas de resolver esse problema seria rever a margem de lucro das distribuidoras, por exemplo. (A íntegra deste texto está em
www.brasildefato.com.br)
Emanuel Cancella é coordenador
da Federação Nacional dos Petroleiros
(FNP) e do Sindipetro-RJ.
APRENDEMOS COM ARQUIMEDES de Siracusa (287-212 a. C) que,
quando se quer deslocar um grande peso procura-se um ponto de apoio
fora para colocar sobre ele uma alavanca. Diante do desafio de colocar
para navegar uma embarcação de 4 toneladas, o filósofo e matemático,
diante da solução expressou: “Deem-me um ponto de apoio e uma alavanca e moverei a terra”.
Ninguém mais que os camponeses, acostumados com o peso dos obstáculos físicos sabem que com os obstáculos políticos ocorre a mesma
coisa. Sabem, mas nem sempre se convencem e por isso, se equivocam
quando buscam o ponto de apoio para colocar o instrumento e, na ausência de um, acabam colocando em seu lugar o próprio pé.
Concretamente, a partir de 2003 quando um novo conjunto de forças
chegou ao governo, derrotando aqueles que alimentavam o modelo neoliberal, os movimentos sociais do campo passaram a confiar no governo vitorioso, entregando a ele a responsabilidade de remover o obstáculo do latifúndio através da realização da reforma agrária. Uma década depois, as análises apontam que não só o latifúndio está quase intocado, como também os pés dos camponeses estão presos sob a alavanca
governamental que aposta no agronegócio, força essencial do capital e
da concepção desenvolvimentista que ora governa o país.
Vivemos como Arquimedes que equivocadamente buscava um ponto de apoio para mover a terra posicionando o instrumento sobre o
próprio obstáculo. Senão vejamos: se conforme compreendido e divulgado “a reforma agrária não tem mais espaço no atual modelo”,
por que teria ela espaço no atual governo se ambos comungam da
mesma concepção desenvolvimentista do país? Esta dúbia visão leva a apostar na institucionalidade, como ponto de apoio externo, sem
perceber que ela se tornou parte do obstáculo. Ou seja, a participação
no processo eleitoral autoriza o governo a não só não fazer as mudanças estruturais, como também a desnacionalizar cada vez mais a
terra e a economia.
Ao invés da inserção nas forças
populares, elege-se a inserção no poder
institucional burguês
Por outro lado, diante do esgotamento da eficiência das táticas históricas e da impossibilidade de remover o verdadeiro obstáculo, ao invés
de procurar o ponto de apoio fora do obstáculo para colocar o instrumento, buscam-se explicações, com avaliações do movimento, consultas, realização de eventos e congressos futuros, como se os pecados humanos fossem responsáveis pelos raios que descem do infinito.
As direções, no papel de vanguarda, ao não se darem conta que a elas
cabe a tarefa de buscar respostas orgânicas e eficientes, colocam as próprias bases como calços, ora firmando a alavanca sobre seus pés, impedindo-as de fazerem força contra o obstáculo; ora esperando que os
amigos ofereçam, pelos questionários respondidos, um ponto de apoio
onde possam firmar algum esforço, e, no intuito de “não ficar de fora”,
vagam cada vez mais para dentro e para o fundo do obstáculo.
O que está fora da institucionalidade, da reforma agrária e dos próprios movimentos que pode servir como ponto de apoio para que, estes
últimos, como alavancas desloquem mais facilmente os obstáculos, não
é outra coisa senão as forças sociais mobilizadas.
Quando se decidiu anteriormente rumar em direção à reforma agrária popular e o poder popular, não se quis dizer que a população faria a
reforma agrária para os camponeses, senão que, os movimentos, com
seu grau de experiência e consciência adquiridas, ajudariam a população a se organizar, para que ela se empenhasse em resolver os problemas em geral, dentre eles a reforma agrária; tais decisões não apenas
continuam sem aplicação, como também se vê que a marcha toma rumos opostos. Ao invés da inserção nas forças populares, elege-se a inserção no poder institucional burguês desde os municípios, aliando-se
às forças historicamente inimigas de qualquer transformação estrutural. Como Arquimedes, procura-se o ponto de apoio externo para “mover a terra”, ele não está tão distante como a lua e nem tão próximo como os pés das bases; encontra-o quem se colocar no lugar certo.
Ademar Bogo é filósofo, escritor e agricultor.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Subeditor: Eduardo Sales de Lima • Repórteres: Aline Scarso, Michelle Amaral, Patricia Benvenuti •
Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo
(Roma – Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela), Marcio Zonta (Peru) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP), Flávio Cannalonga (in memoriam),
João R. Ripper (Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Leonardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ) • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni •
Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Jade Percassi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas:
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de 14 a 20 de fevereiro de 2013
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Paulo Kliass
instantâneo
Familiar ou
agronegócio?
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l
noc
ico
Igor Fuser
Brasil subimperialista?
AOS DEZ ANOS DA POSSE de Lula como presidente, é
natural que atores sociais de todos os tipos se dediquem
ao balanço desse período. Entre outros tópicos, está na
berlinda a política externa brasileira – uma das áreas,
junto com as medidas de inclusão social, em que o governo expressou mais claramente sua face progressista. Mas
essa é uma política pública como as demais, e nela também se manifestam as contradições e ambiguidades das
gestões de Lula e Dilma.
Desde 2003, o Brasil assumiu posturas firmes contra o
imperialismo em todo um leque de questões. Destacamse a rejeição da Alca, a defesa dos governos progressistas
da América Latina contra o golpismo da direita e iniciativas de integração que enfatizam a autonomia da região,
à margem da ingerência dos EUA. Esse é, de longe, o aspecto principal. Ao mesmo tempo, o Brasil enviou e mantém tropas no Haiti em tarefas que incluem a repressão a
atos de protesto. Também fechou acordo com EUA sobre
a exportação do etanol, entre outras posições convergentes com as preferências de Washington e da burguesia local associada aos interesses estrangeiros.
É um erro qualificar política tão complexa de subimperialista. Em apoio a esse ponto de vista, costuma-se mencionar a presença crescente de empresas brasileiras em
países vizinhos, com o ostensivo apoio de Brasília. Muitos
desses empreendimentos têm de fato um caráter predatório, em contraste com o discurso cooperativo das autoridades brasileiras. Mas será isso suficiente para caracterizar o Brasil como imperialista?
Historicamente, o imperialismo se apresenta como
uma relação abrangente de dominação e exploração, na
qual uma metrópole capitalista exerce poder e influência sobre a nação dependente, bloqueando seu desenvolvimento autônomo e limitando a soberania política. Isso ocorre na América Latina? É claro que sim, mas
quem age de forma imperialista são os Estados Unidos
da América, e não o Brasil. No essencial, o governo brasileiro tem atuado em favor da autonomia e do progresso econômico e social dos vizinhos. Não faz isso por generosidade, mas porque uma América Latina mais independente faz parte do seu projeto para a inserção internacional do nosso país.
João Brant
Simbiose ideológica
MERVAL PEREIRA, colunista do jornal O Globo e da
Globo News, acaba de lançar um livro sobre o mensalão.
Quem escreve o prefácio? Carlos Ayres Britto, ex-presidente do STF. O fato de Ayres Britto ter aceitado escrever
já é simbólico, mas pior é o que ele escreve sobre Merval:
“cidadão full time e conscientemente postado no píncaro
da devoção à causa pública, entregou-se à corajosa missão
de escrever os artigos, na presciência de que a Ação Penal 470 sinalizava uma virada cultural de página no nosso país”.
Quem acompanhou a preparação para o julgamento da
Ação Penal 470 sabe que a pressão dos grupos de mídia
foi essencial para que se estabelecesse a agenda do STF.
Dois objetivos diretos estavam em vista: garantir que
Cézar Peluzo e Carlos Ayres Britto participassem do julgamento e, principalmente, garantir que este acontecesse
antes ou durante o processo eleitoral.
Ayres Britto respondeu às pressões dos grandes meios.
Fez questão de dizer, algumas vezes, que “o STF está atento à opinião pública”. O problema é que o que Ayres Britto
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chama de opinião pública é, na verdade, a opinião da Globo. Se ele fosse ouvir o conjunto de opiniões da sociedade, teria levado em conta várias outras perspectivas, entre elas aquela que defendia que os julgamentos sobre financiamento de campanha fossem feitos na ordem em
que chegaram o tribunal e aquela que defendia que não se
misturasse o julgamento com o período eleitoral.
A visão restrita de Ayres Britto, contudo, não se dá em
função de desconhecimento. Há, sim, um encantamento
e uma simbiose ideológica com os meios de comunicação.
Ele já tinha demonstrado esse encantamento em seu relatório sobre a lei de imprensa, no julgamento sobre a ação
TV digital e na avaliação dele sobre a classificação indicativa, em que apresenta visões que fariam corar os republicanos nos Estados Unidos (falo seriamente).
Agora, aposentado do STF, Ayres Britto, reconhecido
pela visão progressista e humanista, termina sua carreira
– por identidade ou vaidade, não importa – se dispondo a
prefaciar o livro de um dos quadros mais ativos da direita
brasileira. Que coisa.
AS ARTICULAÇÕES POLÍTICAS desse início de ano apontam para uma reforma ministerial a ser promovida pela
Presidenta Dilma em pouco espaço de tempo. Um dos possíveis elementos de mudança envolve o Ministério da Agricultura, Abastecimento e Pecuária (Mapa), onde um dos
nomes cogitados para ocupar a pasta é o da senadora Kátia
Abreu (PSD/TO), uma das mais ardorosas representantes
do agronegócio no Congresso Nacional.
Pode até ser que o resultado final das negociações não implique na presença de uma figura tão reacionária e conservadora no primeiro escalão da Esplanada dos Ministérios.
Mas o aspecto mais relevante não é tanto a do indivíduo a
ser nomeado. O ponto a ser focado pelas forças progressistas é o estabelecimento de pressão política para que a orientação das prioridades do governo na área do campo seja alterada.
As entidades do movimento ligadas aos sem terra, à reforma agrária, à agricultura familiar e outras têm sido enfáticas e unânimes em denunciar a forma como elas têm sido relegadas a segundo plano. A preocupação maior do governo, desde o início do primeiro mandato de Lula, tem sido a de atender às reivindicações dos interesses do agronegócio. Tal opção tem se manifestado nas generosas dotações
orçamentárias concedidas ao Mapa, em comparação com os
minguados recursos destinados ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Com isso, os programas de ampliação da reforma agrária e de fomento à agricultura familiar, por exemplo, têm avançado muito pouco.
A orientação da política econômica manteve a dependência para com o modelo primário exportador, em razão dos
benefícios gerados pela política de promoção de saldos expressivos na Balança Comercial. Assim, o governo brasileiro, mesmo sob a liderança do PT, terminou por reforçar a
articulação político-institucional em torno de interesses
bastante conservadores, a exemplo da Vale privatizada e do
núcleo duro do setor do agronegócio exportador (soja, carne, açúcar e café). A obsessão em conseguir recordes sucessivos nas cifras de total de exportações esconde, na verdade, as péssimas consequências para o país provocadas por
tal opção.
A agricultura familiar tende a ser
portador de maiores características
de sustentabilidade, ao inverso do
que ocorre com agronegócio
Montar um modelo estratégico em que as energias e os
recursos sejam dirigidos às atividades econômicas primárias – como mineração e agricultura – tem o sentido de provocar uma brutal transferência de renda para o exterior. O
Brasil exporta recursos da natureza a preços definidos no
mercado internacional das commodities, com alta influência dos humores especulativos dos gigantescos agentes que
atuam na área. Além disso, são atividades que incorporam
muito pouco ou quase nenhum valor agregado à nossa economia. Por outro lado, o nosso país importa produtos manufaturados de alto valor agregado, gerando renda e emprego no exterior, em especial na China. Ou seja, continuamos reproduzindo o velho esquema da divisão internacional do trabalho, em que nos submetemos à extorsão do neocolonialismo.
Assim, um dos problemas dessa prioridade concedida ao
agronegócio é relegar a agricultura familiar a um segundo plano. Essa forma de organização da atividade agrícola é responsável pela produção de quase 70% do total dos
alimentos que chegam à mesa das famílias brasileiras, mas
não obtém o reconhecimento que merece. Esse tipo de arranjo baseado na organização de pequenas propriedades e/
ou cooperativas poderia responder por um percentual ainda
mais elevado, caso contasse com recursos e capacitação técnica adequada por parte da administração pública.
Além disso, a organização da produção agropecuária com
base no modelo da pequena propriedade pode contribuir
para viabilizar um modelo gerador de mais emprego e de
redução da pressão migratória em direção aos grandes centros urbanos. A agricultura familiar tende a ser um sistema
portador de maiores características de sustentabilidade, ao
inverso do que ocorre com grande agronegócio.
A reforma ministerial pode ser um momento em que o governo refaça sua escala de prioridades. A grande maioria da
população aguarda por uma sinalização de reforço do modelo sustentável e de amenização das benesses concedidas
aos dirigentes do modelo espoliador.
fatos em foco
da Redação
Mutilação genital feminina
Cerca de 30 milhões de meninas com menos de 15 anos correm risco de sofrer mutilação genital (MGF). De acordo com dados
do Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef) divulgados em 6 de fevereiro, Dia
Internacional da Tolerância Zero contra a
Mutilação Genital Feminina, essa prática
tem diminuído, mas há ainda um grande número de garotas vulneráveis ao procedimento. Nos 29 países da África e do Oriente Médio onde a prática está concentrada, o índice
de garotas com idade entre 15 e 19 anos que
foram mutiladas é de 36%. Entre as mulheres de 45 a 49 anos, a estimativa é de 53%.
Graves consequências
Segundo a ONU, ao menos 120 milhões de
garotas e mulheres sofreram mutilação genital nesses 29 países. Desse total, 92 milhões
vivem na África. Anualmente, três milhões
de meninas são vítimas da mutilação geni-
tal por questões religiosas ou culturais. As
mulheres vítimas dessa prática podem ter
graves consequências na saúde, como problemas urinários, infecções, infertilidade e
complicações no parto.
Você sabia que...
O ex- presidente do Supremo Tribunal
Federal (STF), o advogado Ayres Britto,
que presidiu a suprema corte no chamado
processo do mensalão, com toda aquela
empáfia de Juiz soberano, e sob os holofotes
amplificados da mídia burguesa, galgou todos os postos no poder judiciário sempre por
indicação de algum padrinho, sem nunca ter
realizado nenhum concurso? Nem ter sido
eleito por ninguém?
Prisões e extradições ilegais
Após o 11 de Setembro, os Estados Unidos
conseguiram mobilizar mais de um quarto
dos governos de todo o mundo para coopera-
rem em operações de sequestro e tortura de
suspeitos de terrorismo. No total, 54 países
participaram em diferentes níveis de cooperação, com o programa de detenções secretas
e extradições extrajudiciais da agência central de inteligência dos EUA (CIA) e violaram
direitos humanos. A conclusão é de um detalhado relatório de 213 páginas organizado
pela ONG Open Society Justice Initiative,
localizada em Nova York.
1º de Maio unificado
Cresce entre os dirigentes da Força, UGT,
Nova Central, CTB e CGTB o entendimento
de se fazer um 1º de Maio Unificado valorizando os direitos trabalhistas e as leis
nascidas das lutas sociais. Um dos focos do
ato unitário deve ser a Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT), que completa 70 anos. A
valorização da CLT, no 1º de Maio Unificado,
acontece também no ano em que o 13º salário completa meio século.
Paulo Kliass é doutor em economia pela
Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante
da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e
Gestão Governamental, do governo federal.
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de 14 a 20 de fevereiro de 2013
brasil
Raquel Torres
Quatro exemplos de resistência
Luta por direitos: resistência contra remoções, despejos e demolições
MEGAEVENTOS
Representantes da Aldeia
Maracanã, Vila Autódromo,
Morro da Providência e
Manguinhos falam sobre a
luta cotidiana contra
o projeto de cidade que
não os inclui
Maíra Mathias,
Raquel Júnia e
Raquel Torres
do Rio de Janeiro
NO MEIO DO CAMINHO para deixar a
cidade mais bonita para os turistas que
chegarão ao Rio durante Copa do Mundo e Olimpíadas tinha uma comunidade. E continua tendo, graças à resistência de centenas de pessoas, apesar da investida sistemática dos governos com os
argumentos já desgastados de que não
se pode barrar o progresso, de que as famílias serão recompensadas, de que haverá assistência no deslocamento, de
que um estacionamento é mais importante agora e etc. Em entrevista ao Brasil de Fato, pessoas que participam ativamente de processos de resistência relatam as dificuldades de quatro comunidades no Rio de Janeiro que têm sido emblemáticas na luta por direitos: a
Aldeia Maracanã, localizada no terreno
do antigo Museu do Índio, ameaçada de
demolição e remoção pelas obras da Copa do Mundo; a Vila Autódromo, que
há anos sofre ameaças de despejo por
governos interessados em explorar a
área, na beira da lagoa de Jacarepaguá;
o Morro da Providência, com obras de
“revitalização” que projetam a remoção
de um terço das famílias moradoras; e o
território de Manguinhos, alvo de diversas violações aos direitos humanos pelas obras do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC). O encontro aconteRaquel Torres
Fernando Soares
ceu em uma manhã de sábado, no antigo Museu do Índio. Até a data do fechamento dessa edição, o governo estadual
havia voltado atrás da decisão de demolir o prédio do antigo museu, mas continuava inflexível em relação à remoção
da aldeia. Leia abaixo a entrevista com
Jane de Oliveira, diretora social da Associação de Moradores da Vila Autódromo, Sidney Ferreira, um dos fundadores da Comissão pelo Direito à Moradia da Providência e membro do Fórum
Comunitário do Porto, Urutau Guajajara, mais conhecido como Zé, é professor
de línguas indígenas e uma das lideranças da Aldeia Maracanã e Fernando Soares, coordenador do Laboratório de Direitos Humanos de Manguinhos e um
dos fundadores do Fórum Social da Comunidade.
“Não houve consulta
popular, o projeto foi
feito de forma totalmente
adversa às necessidades dos
moradores e à legislação”
Brasil de Fato – O que está
acontecendo nas comunidades de
vocês?
Zé Guajajara – Nossa luta tem sido
mais intensa a partir de 2006, quando ocupamos o prédio do antigo Museu
do Índio, abandonado desde 1977. Nossa ideia sempre foi a de devolver aos indígenas um patrimônio que desde a origem foi ligado a eles. Essa história remonta a 1865, quando o duque de Saxe
doou o prédio ao Império brasileiro para a criação de um centro de estudo de
sementes nativas e das populações indígenas que as manipulavam. De lá para cá, esse prédio já abrigou o Serviço
de Proteção ao Índio, fundado pelo Marechal Rondon, que é a Fundação Nacional do Índio (Funai), até finalmente
se transformar, em 1953, no Museu do
Índio. Esse patrimônio tem sido inseparável das populações indígenas. Então, em 2004 reunimos indígenas de diversas etnias e tentamos a retomada do
prédio, sem sucesso. Em 2006, já com
maior número de indígenas e apoiadores, o retomamos com uma meta clara –
a revitalização e gestão autônoma. Não
existe no Brasil um patrimônio indígena pensado e administrado por indígenas. A partir do fim de 2012 o governador Sérgio Cabral veio nos ameaçar, dizendo que comprou esse imóvel e iria
derrubar tudo para fazer qualquer coisa no lugar – shopping, estacionamento, nem o próprio governo sabe.
Sidney Ferreira – No fim de 2010,
chegou um pessoal na Providência se dizendo agente público da prefeitura, pedindo aos moradores para deixarem tirar as medidas das casas porque haveria melhorias nas habitações. E quem
não quer melhoria? É claro que a comunidade abraçou e deixou tirarem medidas. Mas, no começo de 2011, o prefeito Eduardo Paes foi à comunidade apre-
sentar o projeto dele para a Providência.
Inclusive chegou a dizer que os moradores tinham que aprender a ser espertos,
a ganhar dinheiro com os gringos, que
qualquer banca de cocada e bolinho que
um morador botasse e anunciasse que
eram receitas de uma avó escrava, os turistas iriam adorar. Afirmou isso, induzindo o povo a agir errado, e foi embora. Não houve consulta popular, nenhuma participação dos moradores, ou seja, o projeto foi feito de forma totalmente adversa às necessidades dos moradores e à legislação. Uma semana depois,
os agentes da prefeitura chegaram marcando inúmeras casas com a sigla da
SMH, Secretaria Municipal de Habitação, que a gente denomina como “Sai
Morador Hoje” – o morador que tivesse
a casa marcada teria que sair. Os termos
oferecidos para deixarmos nossas casas
eram uma indenização de valor irrisório, o aluguel social de R$ 400, ou uma
compra assistida, que é uma ilusão. No
projeto oficial, 832 famílias teriam que
ser removidas, um terço da comunidade.
Eles também ofereceram alguns apartamentos, mas, de lá pra cá, só está sendo
construído um conjunto habitacional,
com apenas 162 apartamentos.
Quem reuniu os moradores para começar a “passar vaselina” no pessoal
foi o capitão da UPP [Unidade de Polícia Pacificadora]. Mas no fim de fevereiro ele mostrou a cara e falou: “Gente,
eu trabalho para o estado, é uma hierarquia. Se cair a ordem no meu colo para tirar, eu vou botar pra fora”. A partir daí, os moradores começaram a se
organizar, primeiro em grupos separados, depois todos juntos, com a criação
da Comissão Pelo Direito à Moradia da
Providência, em março.
“Enquanto nos organizamos
em duas, três comunidades,
para conversar e traçar novas
estratégias, os grandes empresários
se organizam com o governo”
acusada de causar dano estético, dano
ao meio ambiente. Depois houve a desculpa de que tinha que ser removida para que fosse construído um centro de mídia para os Jogos Olímpicos, depois para
passar uma via da Transolímpica. Também já foi dito que a Vila ficava em área
de risco e que estava localizada no perímetro de segurança [dos atletas, durante
as Olimpíadas]. O que percebemos é que
não há um motivo baseado no interesse
público que justifique a remoção.
“Os agentes da prefeitura marcaram
inúmeras casas com a sigla da
SMH, Secretaria Municipal de
Habitação, que a gente denomina
como ‘Sai Morador Hoje’”
Fernando Soares – Manguinhos está
localizada em um entroncamento viário
da cidade. Então, se você quer ir do aeroporto para a Barra da Tijuca ou da zona Norte para o Centro, vai passar por
Manguinhos. Nesse sentido começaram a entender que é fundamental incluir Manguinhos no projeto de cidade
para Copa e Olimpíadas. A comunidade
foi escolhida para receber o PAC – em
tese, um plano de urbanização –, e, após
o anúncio desse plano, vimos mudanças
drásticas. Primeiro, os presidentes das
treze associações de moradores da comunidade foram obrigados a entregar
os cargos, a mando do tráfico de drogas, criando um ambiente político favorável – e isso é o mais inusitado – ao
processo de obras. Sempre houve uma
aliança entre Estado, empreiteiras, grupos paramilitares – seja tráfico ou milícia – e a própria UPP para favorecer esse processo de expulsão dos pobres de
áreas centrais da cidade para partes cada vez mais periféricas. A indenização,
a compra assistida, isso é irreal, as pessoas não conseguem comprar outra casa no mesmo local, como a lei manda.
Raquel Torres
Jane de Oliveira – A Vila Autódromo fica em uma região muito valorizada, é uma área plana, na beirada da Lagoa de Jacarepaguá, com a praia da Barra perto. Ao longo dos anos, várias pessoas foram assentadas lá pelo poder público e outros tantos receberam os títulos das propriedades. Só que aquela terra não é mais para pobre, pelo menos na
visão dos governantes. É uma área supervalorizada, onde as grandes empreiteiras que financiam as campanhas políticas estão loucas para entrar. Então a
Vila sofre assédio para ser removida desde a década de 1990. Os moradores lembram que na época o prefeito Eduardo
Paes, então subprefeito da Zona Oeste,
chegou a pilotar um trator para tirar as
casas. Esse foi um episódio marcante: os
moradores fizeram uma barreira humana e impediram as demolições. Na época dos Jogos Panamericanos, novamente tentaram tirar a Vila Autódromo, e, de
novo, fracassaram. A comunidade já foi
Jane de Oliveira
brasil
de 14 a 20 de fevereiro de 2013
Tânia Rêgo/ABr
Em Manguinhos, no mesmo dia que entrou a UPP, entrou a Sky, a Claro, a Tim,
a Light, ao passo que a renda das pessoas não aumentou. Os moradores começam a se sentir a necessidade de vender
os imóveis e ir para outros lugares mais
distantes e baratos.
E a UPP (inaugurada em fevereiro deste ano) veio para de certa forma manter
as relações de poder – aquelas mesmas
associações de moradores que foram impostas pelo tráfico nessa situação de golpe continuaram lá, após a entrada da
UPP. As pessoas continuam com medo de expressar sua vontade política. Alguns companheiros de Manguinhos até
hoje são impedidos de participar de processos políticos, estão sob ameaças.
E como vocês têm articulado a
resistência?
Zé Guajajara – Em 2010, participei
de um encontro sobre Belo Monte. Havia estudantes de vários campos de conhecimento e, no fim da minha fala, vários me cercaram e perguntaram: “Estamos sabendo que o governo do estado está ameaçando retirar vocês. O que
vocês, indígenas, vão fazer em relação a
isso?” Eu respondi a pergunta com outra pergunta: ora, nós, indígenas, estamos lá, defendendo o patrimônio. Mas
e vocês? O que vocês, população, irão
fazer por aquele lugar? A partir daquele momento, os estudantes começaram
a se mobilizar. Então nosso discurso
passou a ser o de que esse patrimônio
é muito pesado só para nós, indígenas.
É preciso que venham todos, e convoquem toda a comunidade científica, críticos de todas as áreas de conhecimento, ONGs, enfim, toda a sociedade civil
para essa luta aqui.
“A polícia chegou por cima da minha
laje, quebraram muro, caía pedra na
minha cabeça. Se eu fosse sozinho,
resistiria, mas tenho dois filhos”
Jane – Fizemos em 2010, com o Fórum
do Porto, um pedido ao Eduardo Paes
para apresentarmos uma contraproposta de urbanização da comunidade. Chegamos a montar um coletivo técnico ainda no começo daquele ano, quando descobrimos na internet uma lista de 139
comunidades ameaçadas de remoção.
Saímos de porta em porta, de comunidade em comunidade, alertando, distribuindo folhetos. Uma grande parte dessas comunidades não se mobilizou, justamente as mesmas que vieram “caindo”. Quando entregamos o plano popular para revitalizar a comunidade, em 16
de agosto de 2012, a prefeitura disse que
responderia em 45 dias, mas não se manifestou até hoje.
Sidney – Na Providência, em momento algum o secretário de Habitação, que
era o Jorge Bittar, tinha ido à comunidade. Depois que começamos a fazer o
movimento, começamos a ter visibilidade. Eu mesmo passei a receber telefonemas com assédio financeiro e intimidações para que me calasse. Em maio de
2012, depois de muito relutar, o secretário finalmente foi ao morro. Nós pedimos a palavra, e a casa caiu. Apontamos
muitas coisas erradas da obra. Uma delas foi a seguinte: aquele teleférico [teleférico que está sendo construído na comunidade] seria para quem? Para nós,
moradores, não seria. O trajeto do teleférico é o seguinte: Central do Brasil, praça Américo Brum – destruíram
a única praça da comunidade que as
crianças tinham para jogar bola, um patrimônio cultural da Providência –, e Cidade do Samba. Só que a parte mais alta
do morro é o Cruzeiro. Ou seja, você vai
ter que descer na Américo Brum, passar
pela ladeira, e daí pela escadaria, para
poder chegar ao Cruzeiro. É uma contradição de um projeto, que no fundo,
é turístico. Em momento algum somos
contra melhorias, pelo contrário. Somos
contra a bagunça.
As dificuldades desmobilizam
a comunidade? O que mais
desmobiliza?
Raquel Torres
Sidney Ferreira
7
Índio Kuati Pataxó, morador da aldeia, protesta contra a desocupação do prédio do antigo Museu do Índio
Jane – Veja a questão do Minha Casa,
Minha Vida... Uma parte da sociedade
acha que o governo está providenciando política de moradia. Mas não é verdade. O governo está produzindo política capitalista para favorecer as grandes empreiteiras. As pessoas que precisam ser beneficiadas por esse projeto
são aquelas que vivem de aluguel, não
as que já conseguiram comprar suas casas. Quando a gente chama uma assembleia e não comparecem todos os moradores, parte dos que não comparecem
vivem em casas alugadas. É uma desmobilização.
Quando a prefeitura vai à Vila Autódromo, mostra um lindo projeto, mas
não fala que ali vai ser cobrada uma
taxa de condomínio que a maioria das
pessoas não pode pagar, isso também
gera desmobilização. Tem também a
desmobilização provocada pela grande
mídia, que só anuncia o que não vai prejudicar o lado das iniciativas privadas e
dos governos. Chega para noticiar que
tal comunidade está num lugar considerado área de risco, mas nunca anuncia que o engenheiro do movimento social comprovou que ali não é área de risco. Vendem para a população uma imagem tal que quem está no processo de
remoção até começa a pensar contra o
movimento social.
“Eu aprendi que cada vez mais
a gente tem que se integrar. A
população tem que embarcar em
tudo quanto é luta social”
Fernando – Nossa mobilização de resistência ao PAC Manguinhos se deu
num cenário em que era tudo uma novidade, de certa forma as pessoas pensaram que seria um projeto de urbanização das favelas. Pensando em todo o estigma que a favela carrega, de
ser um lugar de violência, tráfico, conseguir apoio para discutir esse projeto
foi um problema. Inclusive porque, e
aí vale a pena colocar o dedo na ferida,
as ONGs acabavam fazendo o papel de
mediadoras desse processo, acabavam
funcionando como agentes do governo. E agentes que não eram necessariamente contra Manguinhos, mas não
entendiam com profundidade porque
não viviam de dentro o processo. Se é
um projeto de habitação e saneamento,
os beneficiários devem ser os moradores da favela. Só que os moradores não
são ouvidos para dizer que tipo de projeto queremos. O projeto passa por cima da cabeça deles, e as desculpas são
sempre as mesmas. “Estamos trocando
as rodas com o carro andando. Ou vocês aceitam isso e, com o tempo, a gente vai ajustando, ou não vai ter nada”.
Mas não vai ter nada? Na época, o paradoxo de Manguinhos era esse. De
certa forma, conseguir apoio da sociedade foi muito difícil. Da mídia, que
sempre tem estado ao lado dos processos hegemônicos, nem se fala. E existe
ainda o antigo coronelismo. Você tem
os mesmos coronéis políticos mandando, se eles mandam você tem que ficar
calado... Há muitos processos, então.
Um que é a ilusão de que aquilo vai ser
positivo pra você, e outro que é a coerção em si.
Existem poderes que são realmente
ameaçadores e geram a impossibilidade
de se ter uma atuação política, porque
a preservação da vida é um valor máximo. As pessoas às vezes preferem até
deixar suas casas. Eu mesmo tive que
deixar a minha. A polícia chegou por
cima da minha laje, quebraram muro,
caía pedra na minha cabeça. Se eu fosse sozinho, resistiria, mas tenho dois filhos. Resolvi sair. Não abandonei a luta,
mas aquela casa. Mas, simbolicamente,
eles estão vencendo, avançando.
Aqui, no caso do Museu do Índio, o
imaginário, aquela coisa do “bom selvagem” volta à tona e o apoio popular é grande. Mas a superação do estigma do favelado é uma coisa muito difícil ainda.
Já que vocês já tocaram
no assunto da cobertura
da mídia, como tem sido a
relação com os veículos de
imprensa?
Jane – A Globo fez uma entrevista com
o Altair Guimarães [presidente da associação de moradores da Vila Autódromo] e depois colocaram tudo invertido.
Todo mundo conhece a fala do Altair.
Eles colocaram que o Altair não queria
que a Vila Autódromo fosse para o Minha Casa, Minha Vida porque ia misturar com o povo da Cidade de Deus, Santa Cruz, do Morro do Macacos. Nós fizemos com que eles se retratassem por
causa disso. Outro dia, a Band queria
fazer uma entrevista, e eu disse que faria, mas só com uma condição: que eles
primeiro fossem entrevistar o prefeito
Eduardo Paes e, depois, a Defensoria
Pública porque os três lados tinham direito à fala, e o povo tem direito a ouvir
aquilo que está sendo colocado para fazer sua análise.
Zé Guajajara – Com a gente não é diferente. Fica claro pra quem os grandes meios de comunicação trabalham.
Às vezes parece que sai uma ou outra
matéria boa. Mas a gente tem que fazer
uma análise nas entrelinhas. Por exemplo, eles nunca mostraram a parte cultural, a parte imaterial. Sempre apenas um conflito entre indígenas e poder público. Apesar de o presidente do
Crea [Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura] vir aqui e afirmar que
a estrutura do imóvel é perfeitamente
recuperável mesmo após 30 anos de
abandono, os grandes meios de comunicação insistem em dizer que o prédio
está em ruínas – e, portanto, tem que
vir abaixo.
Sidney – Os veículos de comunicação
entram na nossa casa sem pedir permissão e passam para a gente o que
querem. Participei de várias matérias
no início, até por inocência, e na hora
de ver, percebi que as matérias, depois
de editadas, cortavam o que nós dizíamos. Isso na Globo, na Record.
O que cada um aprende com
a luta do outro e como veem
o futuro?
Zé Guajajara – A única diferença entre nós aqui é que a luta desses outros
companheiros é especifica para moradia. No nosso caso, já sabemos o tipo
de destinação que queremos para o antigo Museu do Índio. Defendemos cinco: uma delas é moradia sim, por que
não? Mas, acima de tudo, estão as destinações cultural, educacional, imaterial e religiosa.
Sidney – Eu aprendi que cada vez mais
a gente tem que se integrar. A população tem que embarcar em tudo quanto
é luta social, seja na Providência, na Vila Autódromo, na Aldeia Maracanã, etc.
E, embora a luta seja árdua, a gente vai
conseguir ganhar por batalhas. E à medida que vamos ganhando, não podemos nos acomodar. Se a gente consegue uma liminar embargando a obra,
imediatamente os promotores vão lá
e o desembargador libera de novo. Dizem que não adiantou, mas adiantou,
sim. Só quem está na luta sabe o esforço que é para chegarmos a uma liminar. Independente de qualquer coisa,
vamos ser retaliados, sofrer pressões
de tudo quanto é jeito, mas não podemos desistir.
Jane – Aprendi que a máfia é muito
bem organizada. Enquanto nos organizamos em duas, três comunidades, para
conversar e traçar novas estratégias, os
grandes empresários se organizam com
o governo. Essa é a verdadeira ditadura. Toda vez que um defensor, um médico está caminhando junto com a classe pobre, resolvendo problemas, logo
ele é transferido, retirado dali porque
está atrapalhando o progresso do outro
lado, que não quer ver a gente evoluir.
Aprendi também muita coisa sobre a luta de egos. O ego pode estar na Aldeia
Maracanã, na Vila Autódromo, na Providência, em Manguinhos. Infelizmente
a luta que fazemos é explorada por pessoas que querem se aproveitar dos movimentos sociais e das pessoas que estão sofrendo para se autopromoverem.
Finalmente, aprendi que não se faz luta
sozinho. Desde que se uniu a outras comunidades, a Vila Autódromo começou
a ter uma grande visão.
“Quando começamos
a reconhecer a luta do
outro companheiro na
nossa luta, voltamos a ter
esperanças”
Fernando – Nesse processo de luta, sofremos um desgaste muito grande. Quando começamos a reconhecer
a luta do outro companheiro na nossa
luta, voltamos a ter esperanças e perceber que a luta de Manguinhos não é só
de Manguinhos, é uma luta contra um
projeto de cidade. Em suma, percebemos hoje uma nova esperança. De certa forma o fato de fazermos essa entrevista traz em si um simbolismo, a possibilidade de aliança entre grupos que
estão sofrendo com essa perspectiva de
cidade global. Mais que pensar em derrota ou vitória, perder ou ganhar, a luta em si tem um valor. A gente pode ser
derrotado, pode ser que isso aqui um
dia caia, pode ser que Manguinhos seja toda expulsa, pode ser... Mas o fato
de não termos nos rendido, de eu ter conhecido o Guajajara, o Sidney, a Jane, é
o que vale.
Raquel Torres
Urutau Guajajara, mais conhecido como Zé
8
de 14 a 20 de fevereiro de 2013
brasil
Camponesas e feministas
Eduardo Seidl
ENTREVISTA
Mulheres do campo
preparam encontro
histórico em Brasília
para denunciar violência
de gênero e debater
políticas públicas e
desenvolvimento do
meio rural
O que é o “feminismo camponês”
defendido pelo movimento?
Rosângela – O feminismo em que a
gente se reconhece enquanto mulher está muito associado à ideia de igualdade
no sentido mais amplo, das relações sociais e de classe. Está associado ao nosso
projeto de agricultura camponesa, baseado nos pilares da agroecologia, o cuidados com os filhos, com o idosos, com
a natureza. Nós não entendemos um feminismo pra libertar apenas nós, mulheres. A sociedade como um todo está doente nas suas relações, de exploração, com o corpo da mulher, que designa códigos de beleza, de idade, etc. A
gente repudia tudo isso, mas a gente entende que isso faz parte de uma sociedade onde o que vale é o produto e não o
bem comum das famílias, das pessoas,
da natureza. O feminismo camponês está colado a uma luta mais ampla, conectada com a luta geral da classe trabalhadora, do campo e da cidade.
Pedro Rafael
de Brasília (DF)
“NA SOCIEDADE que a gente quer, basta de violência contra a mulher!”. A frase
não encerra somente o grito de denúncia
contra as violações de gênero que agridem cotidianamente a dignidade humana das mulheres. Pronunciadas pela boca milhares de camponesas, essas palavras desvelam o lugar no qual a opressão
se manifesta de forma perversamente silenciosa, oculta, distante. O meio rural
brasileiro é um enclave do patriarcado.
Construir o feminismo camponês onde
impera a orientação masculina nas relações sociais tem sido o maior desafio do
Movimento de Mulheres Camponesas
(MMC). Constituído há quase uma década, a partir de diferentes entidades e organizações de trabalhadoras rurais de todo o país, o movimento se prepara para
o seu primeiro encontro nacional. “Éramos 1,4 mil mulheres de 14 estados da federação quando articulamos a criação do
movimento, em 2004, reunindo as organizações autônomas de camponesas que
havia no país”, conta Noeli Taborda, da
direção nacional do MMC.
Dessa vez, em Brasília, pelo menos cinco mil mulheres, vindas de 22 estados, se
reunirão para quatro dias de atividades
(veja a programação), entre os dias 18
e 21 de fevereiro, no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade. A abertura
deve contar com a presença da presidenta Dilma Rousseff, segundo previsão do
Palácio do Planalto. “Já tem algum tempo que vemos a necessidade de fazer um
encontro de animação, de fortalecimento do movimento, troca de experiências
mesmo. Terá esse caráter. Vamos apresentar nossas experiências, como projeto de agricultura camponesa que o movimento defende, um olhar sobre a realidade nacional e internacional e, claro,
discutir a questão da violência”, acrescenta Noeli.
Haverá uma feira de produtos agrícolas durante o encontro. Produção totalmente agroecológica e que define o projeto de desenvolvimento rural defendido pelo movimento. “Se existe produção
de alimentação saudável no campo, pode crer que é pelas mãos das mulheres,
principalmente. Esse trabalho tem que
ser reconhecido e valorizado. A feira de
é para mostrar essa diversidade, inserida
na lógica de uma agricultura limpa, sem
veneno, sem agroquímicos”, aponta Rosângela Piovezani Cordeiro, também direção nacional do MMC.
A pouco mais de uma semana para o
início das atividades, Rosângela e Noeli receberam a reportagem do Brasil de
Fato para falar sobre as perspectivas da
organização das mulheres no campo e
detalhes do encontro. Confira os principais assuntos abordados:
“Nossa base está organizada
atualmente em 22 estados e a
expectativa é reunir ao menos cinco
mil mulheres camponesas”
Brasil de Fato – Qual o sentido de
realizar esse encontro nacional
de mulheres camponesas?
Noeli Taborda – Primeiro, é preciso
destacar que o MMC se consolidou como movimento em 2004, a partir da articulação de entidades e organizações autônomas de vários estados. Essa construção veio como necessidade consolidar
conjuntamente essas organizações. Naquele congresso de fundação foram 14
estados e cerca de 1,4 mil mulheres. De lá
para cá, fomentamos a organização nesses e em outros também. Nossa base está organizada atualmente em 22 estados
e a expectativa é reunir ao menos cinco
mil mulheres camponesas. Já tem algum
tempo que vemos a necessidade de fazer
um encontro de animação, de fortalecimento do movimento. Vamos apresentar
nossas experiências, como o projeto de
agricultura camponesa que o movimento
defende, um olhar sobre a realidade nacional e internacional e, claro, discutir a
questão da violência.
Rosângela Piovezani – O Movimento
de Mulheres Camponesas surge dentro
de uma conjuntura com muito enfrentamento e dificuldades na luta de classes
Rosângela – Tem o aspecto da falta de
informação quando se trata da violência doméstica. Normalmente, a violência acontece no fim de semana. Até que
se possa ir até a cidade denunciar, essa situação de violência amorteceu. Fora que existe toda a cultura de achar que
isso é normal, essa submissão, inclusive reforçada pela própria igreja, a família. Falta informação e meios de se fazer
denúncia.
O que está na pauta do encontro
em relação a políticas públicas
para as mulheres do campo?
Noeli - Precisamos avançar em políticas
para educação, mas voltada para a realidade camponesa, porque a educação disponível está voltada ao mercado de trabalho para a cidade. A educação é uma
política central para se avançar no campo, não só para mulheres, mas para os filhos, filhas, a família camponesa. Tem a
discussão sobre crédito para a mulher
camponesa e assistência técnica voltada para o desenvolvimento da agroecologia. E precisamos avançar no debate sobre a saúde da mulher, políticas de melhor atendimento no campo...
MMC participa com entidades e organizações de trabalhadoras rurais de ação da Via Campesina contra o agronegócio
como um todo. Trazemos um recorte especial que são as mulheres da roça. Trabalhar a valorização do trabalho, da produção e da renda das mulheres camponesas. Fazer chegar a formação políticoideológica para essas mulheres se libertarem. Trazer um debate feminista com
um olhar camponês e popular. Esse encontro vem num tempo de vida do movimento muito especial. Vamos indo para
os 10 anos do movimento nacional com
um saldo bom sobre o quanto a gente
conseguiu atingir as mulheres, sensibilizá-las para a luta, fomentar a nossa autoorganização.
Como será o Encontro?
Rosângela – Está organizado em três
eixos fundamentais porque queremos
dialogar com as bases, com a sociedade de um modo geral e com as autoridades. Faremos uma feira para mostrar a
diversidade de produção, de todos os estados, o cuidado com as sementes, com
a proteção ambiental. Na sociedade patriarcal, esse trabalho no campo, executado pela mulher, não é tido como trabalho, como renda. Mas, se existe produção de alimentação saudável, pode
crer que é pelas mãos das mulheres. Esse trabalho tem que ser reconhecido e
valorizado como renda e produção. A
feira de produção é para mostrar nosso projeto de desenvolvimento baseado na uma agricultura limpa, sem veneno, sem agroquímicos. Faremos também debates sobre a conjuntura, como
estão as mulheres no campo, nossos desafios. Isso é parte da estratégia de auto-organização do movimento. O outro
eixo tem a ver com políticas públicas,
acesso ao conhecimento. O tema é “Na
sociedade que a gente quer, basta de
violência contra a mulher”. Não dá para
continuar vivendo numa sociedade doente, onde os seres humanos, principalmente o homem, continua maltratando,
matando e explorando as mulheres nesse país. A gente quer construir outra sociedade, sem violência, com respeito às
relações de gênero, respeito à natureza. A gente defende a punição severa ao
agressor, mas não se mudar as relações
entre as pessoas, o sistema de relações
na sociedade, não adianta. Só há uma
transformação se a sociedade não estiver ancorada nesse projeto de desenvolvimento ficando no capitalismo e no patriarcado.
“O feminismo em que a
gente se reconhece enquanto
mulher está muito associado
à ideia de igualdade no
sentido mais amplo”
Há um desafio maior para
lidar com a temática da
desigualdade e da violência de
gênero no meio rural?
Noeli – Sim, porque a grande maioria
das camponesas fica muito limitada ao
que o companheiro decide na unidade de
produção. Elas não tomam decisão, muitas vezes são sequer consultadas, somente para assinar algum tipo de documentação, por exemplo. Na hora de decidir se
vamos plantar milho, feijão, o papel preponderante é do companheiro. A gente
vê isso muito claro nos depoimentos das
companheiras. Ao final dos cursos de formação que o movimento promove, muitas delas dizem: “foi aqui que aprendi a
ler e escrever, que eu aprendi de que sou
capaz, que meu trabalho tem valor”. É a
partir desse trabalho que a gente percebe que as mulheres vão construindo sua
emancipação. Porém, o acesso à educação e às tecnologias que se tem na cidade ainda está muito frágil no interior, isso faz com que as mulheres continuem
muito submissas. Na cidade, muitas já
são independentes. No campo, estamos
distantes dessa realidade.
Rosângela – Tem o desafio da documentação, pois os dados são alarmantes. Há uma estimativa de 9 milhões de
pessoas no Brasil sem documento e 60%
desse total estão no campo. Quando se
fala em pessoas sem documento, estamos falando de brasileiros e de brasileiras que estão à margem de tudo, da própria cidadania, sem acesso a matrícula
na escola e mesmo atendimento médico. Temos trabalhado muito a campanha de documentação, mas é preciso
uma ação pública. Essa situação reflete,
inclusive, na documentação de comprovação de profissão, de acesso à política
de crédito, assistência técnica, benefício previdenciário, enfim, todas as políticas públicas do país. A outra bandeira
fundamental que defendemos é a questão do modelo agroexportador, que tem
um impacto direto na vida das mulheres. No Brasil, não se faz reforma agrária, não se tem acesso a terra como bem
público, onde as pessoas vão viver, produzir, manter sua vida, seu lazer e tirar o
próprio sustento. O Brasil precisa avançar em uma reforma agrária mais inclusiva, mais justa, com a desapropriação
das grandes áreas produtivas. Quando
não se tem acesso à terra, é sobre as mulheres que recai a responsabilidade do
cotidiano, de cuidar dos filhos, sem ter
sequer o meio de produção básico, que
é a terra.
I Encontro Nacional de
Mulheres Camponesas
(18 a 21/2)
Programação
Dia 18
14h: abertura oficial
16h: mostra de produção das
mulheres camponesas
Noite: intervenções culturais
Dia 19
10h30: plenária “O olhar sobre a
realidade”
14h: plenária “O feminismo e as
camponesas”
20h: show cultural
Dia 20
9h: plenária “Produção de alimentos
saudáveis”
14h: plenária “Organicidade do
MMC”
Noite: intervenções culturais
Dia 21
9h: ato de mobilização contra a
violência e encerramento
brasil
de 14 a 20 de fevereiro de 2013
9
Os estranhos visitantes do Dops
DITADURA
Investigação da Comissão
da Verdade revela que
representantes da Fiesp
e do Consulado dos EUA
eram presença frequente
no centro de torturas
estamos trabalhando com essa hipótese.
Para nós, a Fiesp ia lá entregar nomes de
operários para serem reprimidos”, esclarece Seixas.
Reprodução
Documento mostra permanência de Geraldo Rezende
de Matos, da Fiesp, por cerca de 18h no prédio do Dops
Patrícia Benvenuti
da Reportagem
O QUE UM representante da Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo
(Fiesp) faria em um centro de torturas da
ditadura civil-militar (1964-1985) durante madrugadas? O que levaria um cônsul
dos Estados Unidos a esse mesmo lugar
repetidas vezes, por longas horas?
É sobre essas questões se que se debruçam atualmente os membros da Comissão da Verdade do Estado de São
Paulo “Rubens Paiva”. Por meio de investigações, a Comissão apurou que
pessoas ligadas à Fiesp e ao Consulado eram presença constante durante os
dias e as noites do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São
Paulo (Dops), um dos órgãos repressores criados pelo regime.
Para tentar esclarecer esses fatos, a
Comissão Estadual da Verdade realizará uma audiência pública em 18 de fevereiro, às 14h, na Assembleia Legislativa
(Alesp), onde apresentará os documentos que embasaram as investigações.
“Coincidência”? Cônsul estadunidense entra no Dops
cinco minutos depois do capitão Ênio Pimentel Silveira,
um dos torturadores mais famosos do período
Visitas frequentes
A chave para a descoberta foi uma
pesquisa no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ao checar os livros
de registro de entrada e saída do prédio do Dops, localizado no centro da capital paulista, integrantes da Comissão
Estadual da Verdade perceberam a frequência de dois nomes, que não faziam
parte das equipes policiais: “Dr. Geraldo Rezende de Matos”, que se apresentava no formulário como “Fiesp”, e “Dr.
Halliwell”, que assinava como “Consulado Americano”.
Além da assiduidade, despertaram
atenção os horários em que os representantes da Fiesp e do consulado estadunidense se dirigiam ao prédio do Dops e as
longas horas em que permaneciam ali.
Somente nos meses de abril a setembro de 1971 (os livros com os outros meses deste ano desapareceram), Geraldo Rezende de Matos, da Fiesp, dirigiuse ao local 40 vezes. Em uma dessas visitas, sua entrada ocorreu às 17h30min,
mas não consta horário de saída. Como
os funcionários da portaria trabalhavam
apenas até 22h, os movimentos feitos depois deste horário não eram anotados.
Significa, então, que Matos teria ficado
além das 22h.
Já em outro registro, de 24 de abril de
1972, o representante da Fiesp entra no
prédio às 18h20 e sai às 12h35 do dia seguinte, 25 de abril. Foram cerca de 18 horas no local.
dinamarquês Henning Boilesen, desvela não apenas as contribuições financeiras do protagonista (então presidente do
grupo Ultra) ao aparato militar, mas de
diversas figuras ligadas a organizações
multinacionais e instituições, incluindo
a Fiesp.
Em novembro, o coordenador da Comissão da Verdade, Cláudio Fonteles, divulgou um texto em que relaciona a Fiesp
à produção de armas para os militares
que derrubaram João Goulart da presidência em 1964. No documento, Fonteles cita um relatório confidencial produzido pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), hoje sob guarda do Arquivo
Nacional, que descreve a criação do Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI) em 31 de março de 1964, data do golpe. De acordo com o documento,
Além da assiduidade, despertaram
atenção os horários em que os
representantes da Fiesp e do
consulado estadunidense iam ao Dops
“O que o cara da Fiesp ia fazer lá? Essa
é a pergunta que fazemos”, explica o coordenador da Comissão Estadual da Verdade, Ivan Seixas.
Seixas, que também é ex-preso político e membro da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, conta que a Comissão já pediu esclarecimentos à Fiesp sobre o assunto. A federação, por sua vez, alega não ter registros de Geraldo Rezende de Matos.
De acordo com investigações da Comissão, Matos era um empresário ligado
aos ramos de metalurgia, além de possuir uma empresa de seguros e reparação que atendia militares.
“A Fiesp tem que explicar isso, não estamos inventando nada”, destaca o presidente da Comissão Estadual da Verdade, o deputado Adriano Diogo (PT-SP).
“Queremos saber por que uma pessoa
que ia ao Dops, [onde] permanecia horas
e madrugadas, assinava como representante da Fiesp”, completa.
A Fiesp foi convidada para prestar esclarecimentos sobre o caso na audiência pública do dia 18. A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da federação, que não soube informar se a instituição estará representada na audiência.
Empresariado
Os vínculos do empresariado com os
agentes da ditadura são assunto antigo
de pesquisas e estudos. O tema é a base do documentário Cidadão Boilesen
(2009), dirigido por Chaim Litewski. O
filme, que resgata a vida do empresário
“Queremos saber por que uma pessoa
que ia ao Dops, [onde] permanecia
horas e madrugadas, assinava como
representante da Fiesp”
o órgão teve a função de fornecer “armas
e equipamentos militares aos revolucionários paulistas”.
O caso de Geraldo Rezende de Matos,
no entanto, desperta na Comissão outra
suspeita. Para Seixas, é provável que as
idas de Matos ao Dops visassem a troca
de informações entre empresários, a polícia e o Exército. “Vem à cabeça de todo
mundo, quando se fala em empresários e
repressão, o financiamento. Mas nós não
Consulado
Já o “Dr. Halliwell” dos livros de registros era Claris Rowley Halliwell (19182006), cônsul estadunidense no Brasil entre 1971 e 1974. Junto à Universidade de San Diego, na Califórnia, a Comissão apurou que Halliwell teria integrado o serviço secreto dos Estados Unidos, a CIA.
Assim como Geraldo Rezende de Matos, ele também comparecia com frequência aoDops, sobretudo à noite, onde permanecia durante toda a madrugada. De abril a setembro de 1971, Halliwell
esteve no local 31 vezes, de acordo com
os registros.
Em uma das idas, em 5 de abril de
1971, seu ingresso no prédio ocorreu às
12h40min da tarde, cinco minutos depois da entrada do capitão Ênio Pimentel Silveira, torturador que ficou conhecido como “Dr. Ney”. Ambos permaneceram no prédio além das 22h.
As “coincidências” não param por aí.
Nesse mesmo dia, pela manhã, havia sido preso e levado para o Dops Devanir
José de Carvalho, dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT).
Depois de uma série de torturas, Carvalho faleceu em 7 de abril.
Para Ivan Seixas, não há como negar o
envolvimento do cônsul com os crimes.
“Nos prédios do Dops e da Oban [Operação Bandeirante], quando se torturava
não era segredo. O prédio inteiro ouvia,
a vizinhança também. O mínimo que se
pode dizer era que o ‘cara’ [cônsul] era
conivente, mas eu acho que [ele] era participante”, diz Seixas
Depois de sair do Brasil, Halliwell foi
cônsul estadunidense no Chile – onde,
um ano antes, um golpe de Estado havia
tirado do poder Salvador Allende.
“A gente acha que essas coisas são de
filme de ficção científica, que ‘na minha
terra não tem isso’. O ‘cara’ não estava levando os passaportes para a Disneylândia, era um agente da CIA”, ressalta o deputado Adriano Diogo, que integrou a
militância estudantil durante o regime.
Para o deputado, a revelação desses
registros ajudará a contar a história desse período e a revelar quem praticou e
engendrou os crimes.“Os documentos
evidenciam a existência de uma enorme organização criminosa que se reunia
nas dependências do Dops para torturas as pessoas, matar e planejar sequestros”, pontua.
Jose Cruz/ABr
Reunião de integrantes da Comissão Nacional da Verdade e de ex-militantes para prestar homenagem ao deputado Rubens Paiva, assassinado em 1971
A verdade sobre Rubens Paiva
Comissão Nacional da
Verdade declara que
ex-deputado foi morto
nas dependências do
DOI-Codi
da Reportagem
Uma das farsas forjadas por agentes da
ditadura civil-militar (1964-1985) acaba
de ser descoberta. No início de fevereiro, a Comissão Nacional da Verdade declarou que o ex-deputado Rubens Paiva,
morto em 1971, foi assassinado no Destacamento de Operações de Informações Centro de Operações de Defesa Interna
(DOI-Codi).
A investigação do caso ganhou força
em novembro do ano passado, quando
documentos do regime foram encontrados em Porto Alegre (RS) na residência
do coronel do Exército Júlio Miguel Molinas Dias, ex-comandante do DOI-Codi, morto a tiros enquanto se dirigia para sua casa.
De acordo com os documentos, Paiva
foi preso em sua casa no Rio de Janeiro
por uma equipe do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa),
em 20 de janeiro de 1971 e, no dia seguinte, entregue ao DOI-Codi. Na folha estão
descritos todos os documentos pessoais e
pertences que estavam com Paiva no momento de sua detenção.
Os registros desmontam a versão oficial da ditadura de que o ex-deputado
(cassado pelo Ato Institucional nº 1) teria sido resgatado por “terroristas” em 22
de janeiro, enquanto estava sob custódia
do Exército.
“É importante para nós que
isso esteja documentado,
é uma prova viva de que
as informações colhidas
ao longo do tempo eram
verdadeiras”
Os documentos foram entregues pelo
governador gaúcho, Tarso Genro, à Comissão Nacional da Verdade, que os confrontou com informes inéditos encontrados no Arquivo Nacional. O Informe
nº 70, de 25 de janeiro de 1971, relata o
que ocorreu com Paiva desde o dia 20 do
mesmo mês, quando foi preso, até o dia
25. No informe não há registros sobre
sua suposta fuga.
Outra informação avaliada pela Comissão foi o depoimento do tenente médico do Exército, Amilcar Lobo,
prestado à Polícia Federal em 1986. Ele
afirma ter sido chamado em sua casa
em uma madrugada de janeiro de 1971
para assistir Rubens Paiva. Levado à
cela do ex-deputado, o médico o examinou e constatou que ele estava com “abdômen em tábua, o que em linguagem
médica pode caracterizar uma hemorragia abdominal”.
Lobo afirma ainda no depoimento
que aconselhou a hospitalização do preso mas que, no dia seguinte, foi informado de que Paiva havia morrido. O médico
garantiu ainda que havia escoriações no
corpo de Paiva, resultados de tortura.
A conclusão acerca da morte de Paiva
foi apresentada em um texto assinado
pelo coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Cláudio Fonteles. Segundo o documento, “o Estado Ditatorial militar, por seus agentes públicos,
manipula, impunemente, as situações,
então engendradas, para encobrir, no
caso, o assassinato de Rubens Beyrodt
Paiva consumado no Pelotão de Investigações Criminais – PIC – do DOI/CODI
do I Exército”.
Para a professora da Universidade de
São Paulo (USP) Vera Paiva, filha de Rubens Paiva, a decisão oficial reconhece o
trabalho de investigação feito pela própria família nestes últimos 42 anos.“É
uma sensação de alívio para a família”,
afirma. “É importante para nós que isso esteja documentado, é uma prova viva
de que as informações colhidas ao longo
do tempo eram verdadeiras, diferente da
versão dos militares”, acrescenta. (PB)
10
de 14 a 20 de fevereiro de 2013
brasil
Quem nos protege dos protetores?
Rahel Patrasso/Folhapress
CRIMINALIZAÇÃO
MP de São Paulo acusa
estudantes da USP de
formação de quadrilha,
depredação e desobediência
Aline Scarso
da Reportagem
O MINISTÉRIO Público estadual, na
figura da promotora Eliana Passarelli,
acusou no dia 5 de fevereiro as 72 pessoas presas durante a desocupação da reitoria da USP (Universidade de São Paulo) em 8 de novembro de 2011. Pela suposta participação na ocupação, cinco
crimes foram imputados: formação de
quadrilha, depredação do patrimônio
público, crime ambiental por pichação,
posse de explosivos e desobediência.
De acordo com a denúncia, os acusados “com dolo determinado, associaram-se em quadrilha para o fim de cometer crimes” e, em conluio, “destruíram, inutilizaram e deterioraram coisa
alheia, pertencente ao patrimônio do
Estado, bem como picharam edificação
urbana”. Ainda segundo Eliana, na data de início da ocupação do prédio pelo
movimento estudantil, precisamente no
dia 02 de novembro, já havia a intenção
de cometerem “inúmeros crimes”.
Em entrevista ao Brasil de Fato,
a promotora diz que quer a condenação dos indiciados. “Eles queriam ser
aplaudidos. Mas não, eles são criminosos e pagarão por isso”, disse.
As principais reivindicações políticas
que impulsionaram a entrada no prédio
– o fim do convênio com a Polícia Militar
assinado pelo reitor João Grandino Rodas e o fim dos processos contra funcionários, professores e estudantes motivados por razões políticas – não foram citados na denúncia. O movimento estudantil questionava à época o papel repressor
da PM dentro da USP e fora dela, corroboradas a partir das denúncias de constantes abusos policiais contra a população, especialmente das periferias. Os estudantes também queriam o fim da política de processos administrativos motivados por manifestações políticas.
Nunca na história recente do país
um número tão grande de pessoas, reconhecidas pelo movimento estudantil
por defender a manutenção da universidade como coisa pública, havia passado por julgamento com tamanha complexidade. Somados, os crimes imputados a eles podem render no máximo oito anos de prisão.
Policial aponta arma para estudante durante reintegração de posse da reitoria da USP em novembro de 2011
tando e nos apontando armas, mandando que nos deitássemos com as mãos na
cabeça e depois desligássemos os celulares”, conta o estudante de mestrado em
Letras Fernando Bustamante, que também foi preso. Depois disso, segundo
ele, as pessoas foram retiradas do prédio. “Ficamos sentados por muito tempo
encarando a parede, enquanto escutávamos uma colega nossa gritando”, conta.
Ele se refere à estudante Rosi Santos, que
na época afirmou ter sido arrastada por
policiais para dentro da reitoria, colocada numa sala, e sofrido golpes físicos.
A decisão da 9ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo permitia a reintegração de posse a partir das 23h horas do
dia 7. Porém, conforme a determinação, deveria “ser realizada sem violência, com toda a cautela necessária à situação, mediante a participação de um
representante dos ocupantes e da autora para a melhor solução possível, observando a boa convivência acadêmica,
em um clima de paz”.
De acordo com Fernando, em nenhum momento no dia 8 foi dado aviso prévio para que as pessoas pudessem sair do prédio e nem havia a presença de um oficial de justiça. Os policiais apenas entraram e as prenderam.
“De modo algum deram aviso. Informaram na assembleia que a reitoria havia
se comprometido a não efetivar a reintegração de posse antes da próxima rodada de negociações, que aconteceria
na quarta-feira [dia 9]. Há também declarações na mídia do comando da PM
descartando a possibilidade de reintegração naquele dia”, diz.
Em entrevista ao G1 depois da desocupação, a coronel Maria Yamamoto
afirmou que não houve enfrentamento.
“Eles [alunos] foram pegos de surpresa, não tiveram nenhuma reação (...).
A chegada foi silenciosa. Em menos de
dez minutos, o prédio já estava ocupado
e eles, contidos”, explicou.
Vânia e Fernando também afirmam
que o prédio estava intacto até a entrada da polícia. Também dizem que
os artefatos explosivos foram plantados. “Pude ouvir, e outros colegas conseguiram ver os policiais quebrando o
patrimônio da reitoria. Os poucos estudantes que conseguiram filmar algo tiveram os equipamentos confiscados”,
conta Fernando. O zelo com o prédio,
segundo ele, era uma preocupação do
movimento estudantil. “O movimento
teve o tempo inteiro o cuidado de zelar
pelo patrimônio, que é público e de todos os que sustentam a universidade”,
destaca.
De acordo com a denúncia, os
acusados “com dolo determinado,
associaram-se em quadrilha para o
fim de cometer crimes”
Na prática, a promotora Eliana Passarelli está incapacitada de defender a
sua tese de acusação, já que o Foro Regional de Pinheiros – para onde foi encaminhado o inquérito –, não tem competência para processar e julgar crimes
cuja pena seja de reclusão. Sendo assim, a denúncia já foi remetida ao Foro
Criminal Central da Barra Funda, mas,
até o momento, não houve a aceitação
da mesma por nenhum juiz.
Antes da acusação da promotoria, a
USP já havia distribuído penas internas aos envolvidos, que variaram entre
5 e 15 dias de suspensão. Em decisão tomada pelo Fórum dos Processados, instância que representa as pessoas que foram presas, os estudantes punidos decidiram que vão começar o ano letivo
frequentando as aulas normalmente. O
mesmo posicionamento foi tomado pelos funcionários, que não suspenderam
as atividades laborais.
As pessoas que foram presas na desocupação da reitoria são na sua maioria
estudantes da própria USP, além de trabalhadores da instituição e apoiadores.
A estudante de filosofia Vânia de Oliveira Gonzalez é uma delas. Ela conta
que na noite do dia 7 de novembro foi
até a assembleia para se informar sobre o que acontecia. O encontro acabou tarde e Vânia perdeu o ônibus para voltar para casa. Decidiu ficar na reitoria. “Às 4h40 eu estava em frente ao
prédio quando vi muitos carros e caminhões de polícia. Entrei na reitoria pra
buscar minha mochila, mas fui impedida de sair por policiais que apontavam
armas pra mim. Perguntei por que estava sendo presa e eles disseram, porque
você não saiu”, conta.
De acordo com a promotora Eliana
Passarelli, no dia dos fatos, o Comando
de Choque solicitou aos denunciados que
desocupassem o local de modo pacífico.
A versão é contestada pelos estudantes.
“Fomos acordados com os policiais gri-
De acordo com nota da Comissão Jurídica em Defesa de Estudantes e Trabalhadores, o Código Penal não admite
responsabilização coletiva e “o próprio
Ministério Público reconhece a ausência de individualização da conduta dos
supostos envolvidos, demonstrando absoluta inaptidão da denúncia.”
Sem identificar a autoria dos fatos, segundo eles, é impossível que os envolvidos possam exercer o direito de defesa de
forma adequada. “Existe a prova de que
objetos foram quebrados, porém isso não
basta. É necessário dizer quem quebrou e
o que quebrou. Se você acusa todo mundo de ter quebrado tudo, fica muito fácil
[para a acusação] porque o acusado não
tem como se defender”, afirma o advogado Alexandre Pacheco Martins.
“Há uma linha política
clara do governo do estado
há algum tempo e que teve
seu estopim na enorme
repressão da desocupação
do Pinheirinho”
Para a promotora Eliana Passarelli,
as ações estão individualizadas na medida em que os acusados formam uma
quadrilha. “Eles permaneceram dentro
do prédio, não saíram quando deveriam
ter saído, foram presos em flagrante e
delito, está mais do que caracterizada a
ação criminosa”, defende.
Na acusação, mesmo os estudantes
presos fora do prédio – algo que foi reconhecido pela apuração interna dos fatos feita pela USP – foram indiciados de
terem quebrado o patrimônio da reitoria, descumprirem a ordem judicial e
formarem quadrilha criminosa. A mesma imputação coube ao repórter Diogo
Terra Vargas, que na época fazia reportagem para o site da revista Vice sobre
o movimento estudantil e foi preso enquanto trabalhava.
A denúncia do Ministério Público
contra estudantes e funcionários motivou a solidariedade do movimento estudantil em nível nacional. A União Nacional dos Estudantes (UNE) repudiou
o que chamou de criminalização dos
movimentos sociais e do movimento estudantil. “A UNE e a UEE-SP se posicionam contrariamente a toda e qual-
Aline Scarso
O outro lado
A não individualização dos atos
Cerca de 5 mil pessoas participaram de protesto no centro de São Paulo em repúdio à ação da PM
quer forma de cerceamento de liberdade, tendo como um de seus maiores
princípios a luta pela livre expressão e
manifestação”, disse em nota.
A Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre afirmou que, ao assustar os
estudantes, o objetivo da ação é derrotar o movimento estudantil da USP. “Vimos ao longo da gestão de João Grandino Rodas uma forte perseguição ao movimento estudantil e de trabalhadores,
fazendo coro à política do PSDB, em
São Paulo, de criminalização dos movimentos sociais”, ressaltou.
Para a União da Juventude Socialista,
a denúncia do Ministério Público “não
passa de mais uma tentativa de calar o
movimento estudantil”. Outras organizações estudantis atuantes na Universidade de São Paulo como Juventude às
Ruas, Território Livre e Aliança da Juventude Revolucionária também se posicionaram ao lado dos punidos.
Já o Diretório Central dos Estudantes Livre da USP destacou a falta de democracia na gestão da universidade, expressa pelo atual reitor João Grandino
Rodas. “O convênio assinado com a polícia militar não foi em nenhum momento debatido junto à comunidade universitária e não solucionou o problema da
falta de segurança que até hoje permanece dentro da Cidade Universitária”.
Segundo a funcionária da USP, Diana Assunção, uma das 72 pessoas presas e diretora do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), o Ministério Público agiu em conjunto com a reitoria e o governo estadual com o objetivo de reprimir e desestruturar os movimentos políticos organizados dentro da
instituição e que fazem oposição à política de privatização da universidade.
“Há uma linha política clara do governo do estado há algum tempo e que teve seu estopim na enorme repressão da
desocupação do Pinheirinho. Também
teve expressão na repressão de trabalhadores sem-teto, na política de internação compulsória para usuários
de crack, ou seja, numa série de coisas
que expressam uma política de conjunto do governo do PSDB; e a USP não está de fora disso.” Segundo a sindicalista, a universidade tem proporcionado a
abertura ao capital privado para se tornar mais competitiva nos rankings internacionais, além de demitir a contagotas trabalhadores, ancorada em um
programa de avaliação do desenvolvimento do trabalho de cada funcionário.
Em 2007, depois da violenta desocupação de um prédio da administração
da Unesp em Araraquara, que resultou na prisão de 100 estudantes, o professor departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp de Marília,
Jair Pinheiro, chamou a atenção para o
estágio avançado de criminalização dos
movimentos sociais, crescente desde a
década de 1990. Segundo previu, o movimento estudantil seria a bola da vez.
“Testemunha esta inflexão o fato de que
há hoje inúmeros militantes de movimentos sociais presos ou respondendo
a processos penais por suas atividades
políticas”, afirmou em artigo publicado
no Diário de Marília, destacando o papel do direito penal na repressão. “Na
base desta inflexão está um duplo processo de judicialização da política: uma
inversão segundo a qual a política não é
mais espaço de criação de direito, mas
este [o direito] instrumento de regulação daquela [a política] e a adoção do
direito penal como instrumento privilegiado dessa regulação”, argumenta.
cultura
de 14 a 20 de fevereiro de 2013
Marcelo Min/Governo da Bahia
Eduardo Sales de Lima
da Reportagem
NO BAR DO ZÉ Batidão não faltou cerveja; nem poesia. Por entre as mesas
daquela quarta-feira à noite (30 de janeiro) o silêncio também era uma prece. Mas só para deixar que Zumbi ou
Nossa Senhora pudessem se transfigurar a partir do microfone. Poderia ser
dito,“se pá”, que aconteceu até declaração de amizade em forma de poesia.
Entre as declamações como não se comover com a voz possante e pulsante de
Dona Edite, uma das estrelas da noite?
Passada uma hora e meia de poesia,
um dos maestros da noite, que quando criança passava o dia todo lendo no
bazar do pai, pausa a venda de camisas
do sarau para “trocar uma ideia” com o
Brasil de Fato.
Cem anos de solidão o “chamou” para
viver como poesia. Uma vez disse que,
quando criança, não sabia que era pobre porque todos ao seu redor eram
iguais: “Só quando visitei o Bexiga
[bairro central de São Paulo], com seus
prédios, compreendi melhor as coisas”.
Para ele,“viver dói, por isso o sonho”. E,
agora Sérgio Vaz? O que vai nos dizer
na esquina do bar do Zé Batidão?
“A gente deve muito ao Hip
Hop, que surgiu na periferia”
Qual é a importância disso?
A formação do leitor é super importante porque o cara que lê se torna uma
cidadão, e um cidadão muda o seu bairro. É disso que a gente precisa. O cara, quando lê, sabe para onde o ônibus
vai, onde para; sabe em quem votar, sabe assinar o cheque. A gente começa a
querer fazer coisas que nós queremos, e
não o que os outros querem. Porque as
pessoas que governam este país leem e
leem muito. Então a gente tem que ler
também para não sermos dominados.
Como você vê o Hip Hop e os
saraus da cidade? Que influência
um tem sobre o outro?
A gente deve muito ao Hip Hop, que
surgiu na periferia. O sarau complementou isso. A gente é convidado para ir ao show de rap e convida os caras
para vir aqui. Então, isso é uma grande
harmonia, porque todos somos da periferia. E a gente tem gratidão pelo rap
que foi o primeiro que deu o grito da periferia. Na verdade, a gente está junto e
misturado.
Já são doze anos de Cooperifa.
Eu acho que esse silêncio faz parte
desses doze anos, como uma conquista da comunidade. Depois de adorar o
deus chamado trabalho, as pessoas vêm
aqui para comungar a palavra, a amizade. É isso que a periferia está vivendo, tem a violência mas existe a cultura também.
“Na minha casa nunca faltou
alimentos, nem livros”
Você cresceu em meio a leitura?
Quem me influenciou foi meu pai.
Na minha casa nunca faltou alimentos,
nem livros. A gente sempre teve uma vida simples.
Você tem elogiado bastante o
livro Um defeito de cor, que
conta a história do ponto de
vista periférico.
Esse é um livro da Ana Maria Gonçalves. Ela investiga alguns escritos da época da escravidão, das pessoas que sentiram na pele aquele período. Ela descreve o que era um país colonial, a Bahia,
Minas Gerais, o que era o Rio de Janeiro. É fundamental pra gente conhecer a
nossa história da periferia, onde estão
os negros e os pobres. Fala de luta. Fala
de um monte de coisas que a gente precisa ouvir, mas escritas por aqueles que
sofreram. Na verdade, não é o caçador
que está contando, é a caça.
Como você vê a mobilização
política da periferia? Num
sentido mais amplo, este sarau
parece mostrar isso?
Ainda falta, mas as pessoas já estão se
assanhando. Você vê que hoje, um bar,
que antes só servia para embriagar, ser-
Todas as nomenclaturas são boas. Suburbana, alternativa, marginal, divergente. Mas eu gosto de literatura periférica, porque nos pertence. Assim como a literatura grega é feita pelos gregos, a literatura negra é feita pelos negros, a literatura periférica é feita pela
periferia.
Como você analisa o mercado
editorial para os escritores
periféricos?
A grande dificuldade é a distribuição.
Mas uma coisa que a gente tem em comum é que a gente é marreteiro, né cara. A gente vende em escola, em porta de teatro. A gente vai pra cima. Não
muda muita coisa. A gente não fica esperando a livraria Saraiva ou a Livraria
Cultura. Os livros estão lá, mas a gente
vai atrás do leitor. O Sarau da Cooperifa
forma leitor, não forma escritor.
Brasil de Fato – Estou aqui em
Piraporinha, zona sul de São
Paulo, no Sarau da Cooperifa,
quase que me sentindo numa
igreja, mas no bom sentido da
palavra. Você iniciou o sarau
reforçando a necessidade do
silêncio para que a poesia fosse
escutada.
Sérgio Vaz – Comungando a palavra, né...
No final do ano passado, num
encontro literário no Sesc
Belenzinho, você mencionou
algumas influências como
Clarice Lispector e Gabriel
Gárcia Marques.
Minha influência é Clarice Lispector;
escritores latinos que tinham uma pegada política, para chegar onde eu cheguei. Eu sempre gostei de ler.
Para chegar nessa literatura que eu
faço hoje eu tive que beber nessa fonte, essa a grande fonte. Eu acho que surgem poetas novos, jovens, que a gente
tem que ler, mas os clássicos são os
clássicos. São imprescindíveis.
11
O escritor e poeta Sérgio Vaz comemora doze anos de Cooperifa
“A gente quer
fazer poesia”
SARAU DA COOPERIFA No ano em que o
Sarau da Cooperifa completa doze anos, Sérgio
Vaz exalta a conquista da comunidade e a
reverberação da literatura periférica
ve para reunir pessoas em torno da poesia. A gente não depende da prefeitura,
não depende do Estado pra ter um espaço. A gente transformou o bar.
“Você vê que hoje, um bar, que antes
só servia para embriagar, serve para
reunir pessoas em torno da poesia”
As pessoas precisam se conscientizar para que a gente não fique só reclamando. Tem que agir também. Reclamar como sempre e agir como nunca.
As pessoas estão começando a se tocar
que precisam trabalhar com que a gente
tem. Continuar reclamando, mas fazendo. Se é uma praça, vamos para a praça; se é bar, vamos para o bar; se é igreja, vamos para a igreja. E eu acho que
isso já está acontecendo. As pessoas estão usando o espaço que têm. Surgindo
do povo para o povo. Não vindo de fora para dentro, mas de dentro pra fora.
A Cooperifa é um movimento que não é
meu, é da comunidade. Aqui se pode ler
qualquer poesia. Isso era impensável há
dez anos atrás.
E, nesse sentido, uma
participação maior do poder
público seria positivo?
A função do governo, do Estado, é fomentar cultura. É obrigação do caras.
Agora, cabe a ele entender que tipo de
patrocínio deve conceder. Uma coisa
é o Estado, outra é o governo. O Estado tem que fomentar cultura, e a gente
tem que ir atrás porque é dinheiro nosso. Mas a Cooperifa não tem patrocínio,
não tem nada. Ela se movimenta vendendo camiseta.
Como podemos conceitualizar
essa literatura que você e
outros tantos, como Sacolinha,
Alexandre Buzzo, Ferréz, e
outros tantos fazem, e que
a mídia corporativa não
acompanha? É marginal? É
alternativa?
“Minha influência é Clarice
Lispector”
Ao mesmo tempo, o funk
também se espalha pela
periferia paulistana. Longe de
qualquer julgamento moralista,
te questiono acerca desse
fenômeno.
O que é o funk? O funk é o retrato
da juventude da periferia. Se você quiser entender a periferia atualmente, você precisa ouvir o funk. Esse funk reflete a educação pública de má qualidade, a falta de segurança, a falta de saúde. Esse é o resultado. As crianças e jovens que tiveram e têm uma educação
falida não podem escrever letras sobre
Chico Buarque. As pessoas não têm onde ficar, não têm onde ir, aí colocam o
som no carro e vão curtir. Agora, o que
a sociedade tem que entender é que isso é o reflexo da educação que os jovens
estão recebendo.
Você está otimista em relação
à ampliação do número
de leitores dos escritores
periféricos?
A nossa ideia é que as pessoas se
apropriem da poesia, se apropriem da
literatura. A gente não quer dominar o
mundo, o país, a gente quer fazer poesia. Nossa ideia é mudar a comunidade.
Se atingir outras pessoas, ótimo. Mas
nossa ideia é mudar isso aqui. Interferir
em nossa geografia, como diz o [poeta]
Marcelino Freire.
“Revolucionário é todo aquele
que quer mudar o mundo e
tem a coragem de começar
por si mesmo”.
Sérgio Vaz
12
de 14 a 20 de fevereiro de 2013
cultura
Molhando as raízes
CRÔNICA A cansada existência
vem molhar as raízes naqueles
começos de antanho para ainda
tentar se rejuvenescer e chegar
bem à travessia final
Pistocasero/CC
mais, em profissões liberais. Alguns ficaram na terra.
Em seguida, os lugares queridos da
infância: cada morro, cada curva do caminho, cada subida ou descida e os vastos horizontes por todos os lados, vislumbrando-se montanhas do Rio Grande do Sul e os elevados dos Campos Gerais de Santa Catarina. O olhar infantil
exagera nas proporções. O que considerávamos uma subida penosa e íngreme,
não passa de singela descida ou subida.
Os montes imensos são apenas coxilhas.
Mas ficaram iguais as profundas canhadas, as pedras por todo canto que tornavam penosa a lavoura dos colonos: o
cultivo do trigo e do milho. Os parreirais
tão abundantes, um para cada casa, praticamente, despareceram, pois o vinho
de qualidade se tornou acessível.
Aqui nos sentimos parte daquela paisagem, aqui estão nossas raízes, o lugar
a partir de onde começamos a alimentar sonhos, a contemplar as estrelas nas
frias noites de inverno e a nos situar no
mundo. Curiosamente, quando tenho
que falar em lugares tidos importantes
como na Assembleia Geral da ONU ou
em Harvard, remeto-me ao tempo da
pedra lascada de onde vim; lembro o
piá de pés descalços e cheios de bichos
do pé que fui, alimentado com muita
polenta e a leitura temporã de livros.
Por mais esplêndidas paisagens que tenha tido ocasião de contemplar, nenhuma é interiormente mais bela do que
aquela de minha infância. Porque ela é
única no mudo. Tudo o que é único no
universo nunca mais volta a ocorrer e
por isso é intrinsecamente belo.
Mas, o que me marca cada vez que visito os parentes são as festas que improvisam: come-se muito, a comida regional, os “radicci”, os vários tipos de “biscotti” e “cucas alemães”, a “fortaia”, as
massas, os queijos e salames caseiros
e, naturalmente, o churrasco. A maioria que ficou na terra teve pouca escolarização: falam um mistura deliciosa de
dialeto vêneto e de português. A cantilena é a mesma, com forte sotaque italiano, do qual eu mesmo nunca me libertei. As mãos rudes do trabalho e os
rostos vincados da luta pela vida causam forte impressão. E vigora entre todos uma benquerença e cordialidade de
fazer chorar. Os abraços são de vergar
as costelas e os beijos das primas mais
idosas, da nossa idade, são longos e estalados. De algumas sinto o cheiro de
minha própria mãe, o mesmo olhar, a
mesma forma de colocar a mão à cintura. Quem resistirá a emoção?
Os tempos voltam ao início misterioso da caminhada da vida. Mas temos
que prosseguir. Eles vão junto no coração, agora leve e rejuvenescido porque
molhou as raízes na essência da vida
que é o sangue, o laço, o afeto e o amor.
Leonardo Boff
NA VIDA EXPERIMENTAMOS um paradoxo curioso: quanto mais avançamos
em idade, mais regredimos para os tempos da infância. Parece que a vida nos
convida a unir as duas pontas e começar a fazer uma síntese final. Ou, quem
sabe, o ocaso da vida com a perda inevitável da vitalidade, com os ritmos mais
calmos e os limites incontornáveis desta última fase inconscientemente nos levam a buscar fortalecimento lá onde tudo começou. A cansada existência vem
molhar as raízes naqueles começos de
antanho para ainda tentar se rejuvenescer e chegar bem à travessia final.
Pois foi o que me ocorreu nesta primeira semana de fevereiro. Voltei à terra, às velhas terras (“terre vecchie”, como dizemos entre os familiares): Concórdia, no interior de Santa Catarina. A
cidade e as vizinhas são conhecidas em
todo Brasil por seus produtos: quem
não comprou frangos Sadia de Concórdia; presunto da Perdigão de Herval
do Oeste; salames de Aurora de Chapecó e linguiças de Seara? Pois todos estes frigoríficos distam poucos quilômetros uns dos outros. É uma região rica,
de colonos italianos, alemães e poloneses, lugares onde o Brasil parece ter dado certo. Tudo é praticamente integrado; as casas são elegantes e coloridas; o
bem-estar generalizado e não se conhecem favelas como as tantas que cercam
a maioria das cidades do país.
Os tempos voltam ao início misterioso
da caminhada da vida. Mas temos que
prosseguir. Eles vão junto no coração,
agora leve e rejuvenescido porque
molhou as raízes na essência da vida
que é o sangue, o laço, o afeto e o amor
Primeiramente, visitamos os sobreviventes da família. Do lado de minha
mãe, apenas uma tia carregada de anos
e de dores; do lado do meu pai, ninguém mais. Só restam primos e primas.
A maioria foi para as cidades, um trabalha em Montreal, como criador de jogos
da internet; outro, é diplomata; os de-
Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.
www.malvados.com. br
dahmer
PALAVRAS CRUZADAS
Verticais: 1.Chico Mendes nasceu nesse estado (sigla) – Uma das maiores empresas de agrotóxicos
do mundo que, neste carnaval, patrocina a escola de samba carioca Vila Isabel, com um enredo que
rende homenagem à agricultura familiar. 2.Ao virar numa rua, o carro precisa dar. 3.Quem não crê
na existência de deus – Órgão ligado a CNBB que, desde 1975, organiza os trabalhadores para a
luta pela terra. 4.Organização Internacional do Trabalho – Os Estados Unidos dizem que os irmãos
Wright o inventaram. 5.Forma coloquial de crianças chamarem mulheres mais velhas. 6.Setor que
entrará em greve nacional entre os dias 23 e 25 de abril. 7.O disco de vinil com músicas também é
chamado assim. 8.Pelado – Unidade chinesa de distância equivalente a 500 metros – Regra estabelecida. 9.Agência Nacional de Águas (sigla). 10.O único planeta satélite da Terra – Essa região do
Brasil é composta por nove estados e possui uma população equivalente à da Itália (sigla) – Setor
responsável pela seleção de pessoal dentro de uma empresa. 11.Dizia respeito a. 12.Fêmea do
leão – A capital desse estado é a única que se encontra totalmente no hemisfério Norte (sigla). 13.
Sigla popularmente conhecida para Organização Internacional para Padronização. 14.Nome dado
aos restos ou vestígios de plantas ou animais que se encontra m nas camadas terrestres, anteriores
ao atual período geológico. 15.O contrário de “início” – O verbo “poder”, em inglês, que também
significa “lata”. 16.A igreja catedral de uma cidade – Período de 24 horas. 17.Segunda nota da escala
musical. 18.Ex-ministro condenado pela Ação Penal 470..
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Horizontais: 1.Nanotecnologia – STJ. 3.Abateu – MA – Boff – RS. 4.Oi. 5.Sensacionalismo.
6.Réu – Ene – Ri. 7.Ata – Lá – Gorender. 8.BA – Violência. 9.CIA – Piá – Isca. 10.PA. 11.Fato
– Cypherpunks.
Verticais: 1.AC – Basf. 2.Seta. 3.Ateu – CPT. 4.OIT – Avião. 5.Tia. 6.Educação. 7.LP. 8.Nu – Li
– Lei. 9.ANA. 10.Lua – NE – RH. 11.Tangia. 12.Leoa – RR. 13.ISO. 14.Fósseis. 15.Fim – Can.
16.Sé – Dia. 17.Ré. 18. José Dirceu.
Horizontais: 1.Capacidade de manipular um átomo, uma molécula ou um conjunto de moléculas
– Superior Tribunal de Justiça (sigla). 3.Derrubou – O compositor João do Vale nasceu nesse Estado
(sigla) – Leonardo (?), um dos principais nomes da Teologia da Libertação – A atriz Glória Menezes
vem desse Estado (sigla). 4.Uma das operadoras de telefonia celular. 5.Nome dado à postura editorial adotada por alguns meios de comunicação que se caracteriza pela capacidade de chamar a
atenção do leitor por meio do choque. 6.Que ou quem é alvo de processo judicial – Décima quarta
letra do alfabeto – Dá risada. 7.Registro de uma reunião – Naquele lugar – Jacob (?), um dos mais
destacados marxistas brasileiros que acaba de completar 90 anos. 8.A Guerra de Canudos aconteceu nesse estado (sigla) – Abuso da força. 9.Agência de espionagem dos Estados Unidos – Forma
costumeira de se dizer “menino”, principalmente no Rio Grande do Sul e no Paraná, que vem do tupi
“coração”, utilizada pelas mães indígenas para chamarem carinhosamente seus filhos – O que se
põe no anzol. 10.Segundo maior estado do Brasil em extensão (sigla). 11.Aquilo que se fez – Nome
do livro do porta-voz do WikiLeaks, Julian Assange, que acaba de ser lançado.
cultura
de 14 a 20 de fevereiro de 2013
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Berlim destaca Haiti
Divulgação
CINEMA Festival alemão
exibe documentário que
revela mau uso de recursos
na reconstrução do Haiti
depois do terremoto
Nova versão de
Os Miseráveis
Rui Martins
de Berlim (Alemanha)
O TERREMOTO do dia 12 de janeiro de
2010, no Haiti, e a reconstrução do país
são os temas de um dos principais filmes
do Festival de Cinema de Berlim, Berlinale, do cineasta haitiano Raoul Peck,
cujo título é Assistência Mortal.
Exibido na mostra Berlinale Especial,
trata-se de um documentário reunindo
depoimentos de autoridades, como os do
ex-presidente René Preval, do ex-primeiro-ministro Jean Max Bellerive, do expresidente Bill Clinton, co-presidente da
Comissão Interina de Reconstrução do
Haiti, mais dirigentes de ONGs e habitantes da capital Porto Príncipe.
O objetivo é o de demonstrar a mobilização internacional da ajuda humanitária, tão logo ocorreu o devastador terremoto, porém, ao mesmo tempo, como essa ajuda mobilizando alguns bilhões de dólares não respondeu às necessidades básicas da população. Como explica um dos ex-ministros haitianos, os
países que ofereceram assistência o fizeram sem consultar e sem a participação
do governo local, enquanto as ONGs tomaram iniciativas próprias, algumas vezes absurdas.
Assim, fica-se sabendo que, na remoção de detritos num dos principais sistemas de canalização das águas pluviais,
três ONGs agindo isoladamente e em trechos diversos da canalização faziam e refaziam o mesmo trabalho. A primeira removeu todo o material que impedia o escoamento das águas e colocou ao lado.
Ora, nas primeiras chuvas tudo entrou
de novo na canalização e, a seguir, foi
devidamente removido por outra ONG
mais abaixo. Todo o trabalho foi perdido
com novas chuvas e coube a outra ONG
refazer a limpeza, isso demonstrando a
O cineasta haitiano Raoul Peck, diretor de Assistência Mortal, conversa com a imprensa em evento do festival
“Um caso marcante foi a
construção de um novo
hospital, perto de um já
existente, sem autorização,
ao invés de alguns
quilômetros mais adiante”
maneira caótica dispensada pelas organizações humanitárias.
“Não existe uma coordenação das
ONGs”, explica uma autoridade haitiana, “e se torna impossível contatar as 2
mil ONGs existentes, muitas delas religiosas, que evitam qualquer planificação com o governo”. “Um caso mais
marcante”, explicou, “foi a construção
de um novo hospital, perto de um já
existente, sem qualquer autorização, ao
invés de alguns quilômetros mais adiante, próximo de uma população mais carente. O resultado é que enviei tratores
para impedir a construção, dada a insistência dos dirigentes da ONG, sem que
eu saiba o porquê de tal interesse!” Outro absurdo relatado é o de que certas
casas de emergências construídas pelas organizações humanitárias estrangeiras custaram mais caro do que se tivessem sido construídas pelos próprios
haitianos. Essa discrepância entre o que
se oferece e o que se precisa é acentuada logo no início do filme, quando o presidente do Haiti não entende porque os
países filantrópicos enviam produtos do
exterior quando poderiam ter sido comprados dentro do próprio Haiti.
Raoul Peck deixa também visível um
interesse de certas ONGs fazerem qualquer coisa, mesmo mais cara e nem tanto
necessária, provavelmente para mostrarem serviço aos seus financiadores. Há
também uma discrepância entre os totais anunciados nos planos de assistência e os dólares que realmente chegam
ao Haiti.
O cineasta Raoul Peck, nascido no Haiti, mas que viveu no Zaire e nos Estados
Unidos, vive na França. Hoje cinquentenário, Peck se notabilizou por um filme
dedicado à memória de Patrice Lumunba, herói congolês, cujo assassinato deu
acesso ao poder ao ditador Mobutu.
Artes marciais
Filme de Wong Kar Wai
retrata vida de mestre
de Kung Fu
de Berlim (Alemanha)
A abertura do Festival foi com o filme O Grande Mestre, do cineasta Wong
Kar Wai, também presidente do júri da
competição internacional e prêmio de
melhor diretor, em Cannes, com Felizes
Juntos, história de um casal de homossexuais chineses que buscam aventura
em Buenos Aires.
O novo filme de Wong Kar Wai trata
da vida de Ip Man, famoso mestre e divulgador chinês das artes marciais Wing
Chun ou Kung Fu. A ideia de filmar a vida do mestre chinês do Kung Fu, conta o realizador Wong Kar Wai, lhe veio
faz muito tempo, ao ver um documentário sobre o velho Ip Man, já cansado, um
tanto esquecido, doente, mas guardando ainda um porte de nobreza do mestre
de artes marciais de sua época.
O que me tocou, diz Kar Wai, foi vêlo velho, rodeado de sua família, filhos
e netos, extremamente zeloso de sua arte. Esse documentário da televisão só
mostrava isso. De onde minha vontade
de reunir o vivido por esse mestre que
atravessou fases diferentes da história
da China, a invasão japonesa até ir viver
naquela colônia britânica, Hong Kong,
onde morreu.
Ip Man nunca se enriqueceu com o
Kung Fu, mas rejeitou uma fortuna oferecida por Bruce Lee, que desejava uma
demonstração pessoal. Fiel ao espírito de grande mestre, Ip Man, afirma o
cineasta, defendia o espírito de generosidade, pelo qual deveria transmitir
aos jovens da nova geração seu conhecimento, também assim recebido, mas
não vendê-lo para alguém.
”Hoje as artes marciais não
são praticadas com espírito
guerreiro e de violência, mas
como exercício benéfico para
a saúde, como o ioga”
Ao mesmo tempo, conta Kar Wai, fazer esse filme era uma oportunidade de
ir além do Kung Fu, mostrar o código
de honra de todos quantos fazem artes
marciais e a maneira como utilizam essa arma que, não fora isso, poderia ser
perigosa. Ao contrário, hoje as artes
marciais não são praticadas com espírito guerreiro e de violência, mas como
exercício benéfico para a saúde, como o
ioga, diz o cineasta Kar Wai.
Isso eu aprendi, porque nunca pratiquei Kung Fu, diz ainda Kar Wai, nos
quatro anos de preparação e filmagem
de O Grande Mestre. Sobre o clima nas
filmagens, não quis alimentar ilusões,
dizendo que, na verdade, os estúdios estão hoje muito ocidentalizados.
O ator principal Tony Leung Chiu
Wai, confirmou a visão do Kung Fu expressada pelo realizador, por ter praticando Kung Fu quatro anos, começando
um ano antes das filmagens, quando se
supreendeu com a modéstia e o código
dos lutadores, ali tendo aprendido uma
coisa importante, a disciplina e a ser
mais trabalhador como ele próprio diz.
Quanto ao filme, revelou que Kar Wai só
mostra o que vai ser filmado no dia, deixando os atores sem uma visão do conjunto de seu papel, exceto ele que vivia o
papel principal.
As filmagens, conta o ator, levaram 20
meses, mas divididos em períodos que
no total somaram três anos. (RM)
Habi, a estrangeira
Coprodução entre
Brasil e Argentina é
destaque em Berlim
de Berlim (Alemanha)
A coprodução argentino-brasileira Habi, a estrangeira é uma das atrações do
Festival de Cinema de Berlim, na mostra
Panorama, não só por tratar do tema da
mudança de identidade, como por ser a
concretização de um recente projeto de
cooperação cinematográfica entre o Brasil e a Argentina.
Habi tem também um produtor brasileiro de prestígio, Walter Salles. A diretora é a argentina Maria Florencia Alva-
rez, autora da saborosa história de uma
jovem argentina do interior que, dentro
da cidade grande, no caso Buenos Aires,
rompe com seu passado e assume outra
vida, outras roupas, outros amigos e outra crença.
Fazer como certos insetos, que se descartam de uma fase embrionária para se
metamofosearem em algo diferente, é a
tentação de muitos migrantes. O anonimato no novo país ou na nova cidade
permite a quem quiser se desvencilhar
do passado e começar uma nova vida.
Assim ocorre com Anália, jovem interiorana atraída pela oportunidade de se
transformar em outra pessoa, no contato
com seu novo mundo, a cidade grande.
Por circunstâncias diversas, Anália vai a
um velório de uma muçulmana e acaba
recebendo algumas de suas roupas.
Curiosa, veste-se como a defunta e se
deixa guiar pela nova indumentária, como se pela roupa se tivesse transformada em muçulmana. E cobre a cabeça com
o chador, segundo o rito muçulmano, vai
à mesquita e se identifica com as outras
mulheres seguidoras de Alá como se fosse uma delas. Fascinada por esse novo
mundo, que lhe compensa a ruptura do
passado com uma sensação de nova vida,
se dá um outro nome Habiba Rafat. Para
sobreviver nessa nova identidade, consegue um emprego num supermercado
árabe, aluga um lugar para morar, onde
pode viver só pela primeira vez, passa a
ter uma amiga muçulmana, Yasmin, e tudo parece funcionar nessa nova vida, até
se apaixonar por um jovem libanês.
Habi é o primeiro longa metragem de
Maria Florenzia Alvarez. (RM)
Já em cartaz na Inglaterra, Berlinale exibe também, na mostra Especial o filme de Tom Hooper, uma
nova versão do romance de Vitor
Hugo, publicado em 1862.
A história de Jean Valjean, perseguido, preso e enviado à prisão por
ter roubado um pão, contando as
misérias dos pobres de todo o mundo, e da avareza do casal Thénardier,
onde Fantine deixara sua filha Cosette, continua emocionando leitores
e espectadores. Não se pode esquecer que o escritor Vitor Hugo, que viveu parte de sua vida no exílio, não
escondia suas ideias socialistas e sua
condenação da exploração gerada
pelo advento da industrialização.
A história de Jean Valjean inclui
também o incansável inspetor de
polícia Javert, fiel aos princípios
da época de que a prisão devia ser
uma punição, um pouco o inferno
para os que desobedecessem a lei.
Sem perceber que a lei serve principalmente para a manutenção,
no poder, dos opressores de todo
tipo. (RM)
Brasil fora da
competição
internacional
Berlim não tem nenhum longa
metragem brasileiro na competição
do 63º Festival Internacional de Cinema de Berlim, mas concorre com
três curtas, na mostra Geração, entre eles uma inédita coprodução
brasileiro-vietnamita, O caminhão
de meu pai , de Maurício Osaki.
Os outros dois curtas – Desestimação, de Ricardo de Podestá, e
O pacote,de Rafael Aidar revelam
uma nova geração emergente de
jovens cineastas brasileiros, preparando-se para ocupar o espaço deixado pelos veteranos do cinema
nacional.
Esse mesmo quadro se revela, de
maneira mais marcante, na competição internacional, onde cineastas e atores internacionais consagrados concorrem com realizadores
em início de carreira. É o caso de
Gus van Sant, Steven Soderbergh
e o iraniano Jafar Panahi fazendo
frente a jovens realizadores, cujos
nomes começam a ser conhecidos.
Se na Berlinale anterior, foi uma
jovem negra congolêsa, pouco mais
que estreante, a ganhadora do Urso de Ouro como melhor atriz, este ano participam da disputa Juliette Binoche e Catherine Deneuve face às emergentes.
Na mostra Panorama Especial estão dois filmes brasileiros – Flores
Raras, de Bruno Barreto, e Hélio Oiticica, de Cesar Oiticica Filho. (RM)
Thatcher e a política
social inglesa
Também na mostra Berlinale Especial está o filme do cineasta inglês Ken Loach, com o sugestivo título de O espírito de 45, ano do fim
da guerra, quando a vitória dos trabalhistas significou uma série de
nacionalizações dos serviços públicos minas, estradas de ferro, eletricidade, gás, portos, serviços de assistência médica e o próprio Banco
da Inglaterra.
Ora, esse socialismo inglês foi totalmente anulado na época da primeira-ministra Margareth Thatcher , de 1979 a 1990, que aplicou
um programa de privatização, precedendo o atual neoliberalismo,
que se alastra pela Europa e pelo
mundo. (RM)
14
de 14 a 20 de fevereiro de 2013
américa latina
O impeachment de Lugo como
“lição a futuros governantes”
Rafael Alejandro Urzúa Urzúa/CC
PARAGUAI Documento revela a falta
de evidências para a destituição do
ex-presidente paraguaio
Natália Viana
de Assunção (Paraguai)
COM APENAS NOVE páginas, o documento que fundamentou o impeachment
de Lugo é impressionante. Segundo a
Constituição paraguaia, promulgada em
1992, o presidente, ministros, o procurador-geral da República, o controladorgeral os integrantes do Tribunal Superior
eleitoral podem ser destituídos pelo Congresso por “má gestão” – acusação usada
contra Lugo. Os fundamentos apresentados são cinco.
Primeiro, o Congresso acusa Lugo pela realização, em maio de 2009, do II Encontro Latino-Americano de Jovens pela Mudança, realizado no Comando de
Engenharia das Forças Armadas. O fato, considerado gravíssimo e tachado como “ato político” no seio das Forças Armadas, causou ainda mais consternação
porque os jovens alçaram uma bandeira
de Che Guevara durante o encontro.
Fernando Lugo acompanha noticiário poucos dias antes do golpe
O documento diz que o governo de
Lugo é “o único responsável como
instigador e facilitador das recentes
invasões de terra”
A seguir o libelo lista o que chama de
“caso Ñacunday”, referindo-se a diversas
ocupações de terras realizadas no distrito de mesmo nome, próximo à fronteira
com Brasil e Argentina.
O documento diz que o governo de
Lugo é “o único responsável como instigador e facilitador das recentes invasões de terra na zona”. A acusação remete à candente questão fronteiriça.
Após a promulgação de um decreto presidencial em outubro de 2011, que determinava que terras a 50 km das fronteiras não podem, por lei, pertencer a
estrangeiros, o Congresso acusa o governo Lugo de ter “ingressado em imóveis de colonos, sob o pretexto de reali-
zar o trabalho de demarcação da franja de exclusão fonteiriça”, mas na realidade para permitir que a Associação
Nacional de Carperos (sem-terra) comandasse o exército. A acusação, afinal, é de que Lugo “utiliza as forças militares para gerar um verdadeiro estado
de pânico na região”.
Pior: o presidente “se mostrava sempre com portas abertas aos líderes dessas invasões” como José Rodriguez e
Eulálio Lopes, dirigentes da Liga Nacional de Carperos, e Victoriano Lopez, líder camponês da zona de Ñacunday. Ao
reunir-se com eles, na visão da Câmara
de Deputados, Lugo estava “dando uma
mensagem clara” sobre seu “incondicional apoio” a “atos de violência e comissão de delito”. Ou seja: a acusação contra Lugo é de manter diálogo com lideranças camponesas.
O terceiro ponto listado é descrito, genericamente, de “crescente insegurança”. Segundo a Câmara dos Deputados,
“ficou mais que demonstrada a falta de
vontade do governo de combater o Exército do Povo Paraguaio (EPP)” – a pequena guerrilha que se situa no norte do
país. “Todos os membros desta honorável Câmara de Deputados conhecemos
os vínculos que o presidente Lugo sempre manteve com grupos de sequestradores” da ala militar do EPP, prossegue o
documento, sem maiores detalhes.
Além disso, argumenta a câmara, Lugo
e seus ministros agiram de forma “absolutamente equivocada” ao tratar da matança de Curuguaty. O crime? “Tratar de
maneira igual policiais covardemente assassinados e aqueles que foram protagonistas destes crimes” – os primeiros seriam os policiais e os segundos, camponeses.
A cláusula democrática de Ushuaya
II é descrita, em letras garrafais, como
“UM ATENTADO CONTRA A SOBERANIA” do país. “A principal característica
do Protocolo de Ushuaia II é a identificação do Estado com a figura dos presidentes para, em nome da ‘defesa da democracia’, defenderem uns ao outros”.
A seguir, vem o último e mais extenso
ponto, a matança de Curuguaty, cuja introdução estabelece que o presidente “representa hoje o que há de mais nefasto
para o povo paraguaio”.
“Não cabe dúvida que a responsabilidade política e penal dos trágicos eventos registrados recaem sobre o presidente Lugo”. Os deputados reiteram sua cer-
teza de que o conflito de Curuguaty foi
premeditado, e de que as forças de segurança foram vítimas de uma “emboscada” armada no local.
Junto a essas gravíssimas suspeitas,
que se confirmadas mais que justificariam o impeachment de um presidente
em qualquer país democrático, a acusação não apresenta nenhuma – nenhuma
– evidência. Explica o documento: “todas
as causas mencionadas acima são de pública notoriedade, motivo pelo qual não
necessitam ser provadas, conforme o
nosso ordenamento jurídico”.
Vai além. “Todas as evidências, que
são públicas, demonstram que os acontecimentos da semana passada não foram fruto de uma circunstância derivada de um descontrole ocasional, pelo
contrário, foi um ato premeditado, onde se emboscou as forças da ordem pública, graças à atitude cúmplice do Presidente da República”, diz a parte final
da acusação. Que conclui com um alerta: Lugo “não somente deve ser removido por juízo político como deve ser
submetido à justiça pelos fatos ocorridos, a fim que isso sirva de lição a futuros governantes”. (Confira a íntegra em
apublica.org)
INTERNACIONAL
Na Tunísia, assassinato
causa revolta popular
Reprodução
VIOLÊNCIA
Chokri Belaid era um
dos deputados que mais
criticavam o governo por
sua arrogância
tes de ser morto que Bel Aid denunciou
publicamente o sectarismo desavergonhado do partido islâmico como prática constante para permanecer no poder
e bloquear os trabalhos dos constituintes. Ele apontou que, no mês de janeiro,
toda vez que os islâmicos do Ennahada
estavam prestes a perder uma votação,
tornaram-se constantes as paralisações
de trabalhos invocando o auxílio dos teólogos que denunciavam inexistentes
violações do Islã na Assembleia Constituinte. E foi assim que os trabalhos nessa casa praticamente ficaram bloqueados, permitindo ao governo de transição
continuar por mais um ano.
Achille Lollo
de Roma (Itália)
NA MANHÃ do dia 5 de fevereiro, em
Túnis, dois homens do grupo salafita “Liga para a Proteção da Revolução” matavam a tiros Chokri Bel Aid, deputado da
sigla de esquerda Partido dos Patriotas
Democratas Unificados (PPDU) e líder
da Frente Popular.
Já à tarde as ruas da capital e das
principais cidades eram ocupadas por
manifestantes. Nos dias seguintes, 6 e
7, a polícia atacava os revoltosos que,
enfurecidos, destruíram quase todas
os diretórios do partido islâmico Ennahda. No dia 8, a União Geral dos Trabalhadores (UGT) e os partidos da oposição proclamavam luto nacional e uma
greve geral para celebrar o funeral de
Bel Aid.
Com o covarde assassinato de Chokri
Belaid, os salafitas e jihadistas da Liga
para a Proteção da Revolução e os fundamentalistas que se apoderaram do partido islâmico moderado Ennahda - hoje na coalizão de governo formada com
os partidos de centro direita Ettakatol e
Congresso para a República – quebraram uma aparente paz social que pode
se transformar em guerra civil se os islâmicos do Ennahda continuarem ainda
no governo, por todo o mundo conhecido
por despótico e ineficiente.
De fato, em outubro de 2011, os islâmicos do Ennahda, graças aos petrodólares do Qatar e da Arábia Saudita, rea-
Já à tarde as ruas da capital e das principais
cidades eram ocupadas por manifestantes
O político Chokri Bel Aid, assassinado em Túnis no início de fevereiro
lizaram uma milionária campanha eleitoral dando a cada tunisiano a certeza
de que seus sonhos seriam realizados.
E foi com a compra dos votos nas mesquitas e nas lojas dos comerciantes ligados à Irmandade Muçulmana que o Ennahda ganhou capturando 40% da preferência do eleitorado, elegendo 90 dos
217 parlamentares.
Desta forma, a Irmandade Muçulmana
da Tunísia alcançava o primeiro objetivo
para agradar o império estadunidense e
as transnacionais após a derrubada de
Ben Ali, isto é: impedir que a coalizão
de partidos de esquerda e leigos, enca-
beçada pelo Partido Comunista da Tunísia, ganhasse as eleições. Assim, Moncef
Marzouki era eleito presidente e Hamadi
al-Jebali era nomeado primeiro-ministro
com o encargo de chefiar os trabalhos da
Assembleia Constituinte e de dirigir o governo transitório durante um ano. Após
esse período e com a nascente Constituição haveria, finalmente, novas eleições.
Despóticos
Chokri Bel Aid era um dos deputados que mais criticavam o governo pela sua arrogância e, sobretudo, pela incapacidade de governar. Foi pouco an-
E foi nesse clima que no fim do mês
de janeiro Chokri Bel Aid confessou a
seu pai que ele poderia ser o próximo alvo dos conservadores do partido islâmico Ennahada, tanto que já dormia em lugares diferentes e todas suas movimentações durante o dia eram feitas para despistar eventuais assassinos, visto que o
ministério do Interior achou “desnecessário dar a Bel Aid uma escolta armada”.
O porta-voz oficial da Frente Popular,
Hamma Hammami, após a morte de Bel
Aid declarou: “a responsabilidade do assassinado de Chokri Bel Aid é do poder,
isto é, o governo, o presidente da república, o ministério do Interior e a maioria da Assembleia Constituinte são os
responsáveis. Eles são mandatários desse assassinato. Eles hoje encobrem os assassinos.”
Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália e editor
do programa TV Quadrante Informativo
internacional
de 14 a 20 de fevereiro de 2013
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Limpeza étnica em Israel
Reprodução
ORIENTE MÉDIO
Autoridades israelenses
reconhecem processo
de esterilização de
judias etíopes
Baby Siqueira Abrão
correspondente no Oriente Médio
O RECONHECIMENTO, por parte das
autoridades israelenses, da esterilização
das mulheres etíopes que professam a religião judaica – e que migram para Israel usando a “lei do retorno” (allyah), segundo a qual todo judeu do mundo pode “voltar” a Israel, mesmo que jamais
tenha posto os pés lá – foi manchete em
quase toda a mídia internacional, corporativa e independente, há pouco mais de
uma semana. A questão levantou debates intensos em círculos feministas, de
direitos humanos, dos direitos da população negra e na sociedade israelense.
Uma leitura atenta das cartas dos leitores publicadas na mídia de Israel mostra
uma maioria perplexa e crítica, mas houve também quem defendesse a esterilização, e não foram poucos – espelho de
uma sociedade política, econômica, social, religiosa e culturalmente bastante
diversificada. E dividida.
Mas com um novo Parlamento tomando posse e discussões em torno do futuro primeiro-ministro – Benjamin Netanyhau deve ser eleito para seu segundo mandato consecutivo, e o terceiro não
consecutivo –, além do tema recorrente
da “ameaça” representada pelo Irã atômico e da “necessidade” de impedir que
os iranianos fabriquem bombas nucleares, acabaram pondo um ponto final no
debate sobre a esterilização. Mas isso
não significa esquecê-lo. O fato levantou
questões importantes sobre o tratamento dispensado a imigrantes pobres e negros – e em particular às mulheres desse
grupo. O debate precisa ser retomado pelas sociedades israelense e internacional
para evitar que práticas assim, que violam direitos humanos básicos, voltem a
ocorrer.
Na última década, a taxa de
natalidade entre as mulheres
etíopes de Israel teve uma
queda de 50%
Primeiro alerta
Na última década, a taxa de natalidade entre as mulheres etíopes de Israel teve uma queda de 50%. Há mais de cinco
anos a hipótese da esterilização veio à tona, em consequência dos relatos das etíopes. Pequena parte da mídia israelense
noticiou o fato, mas as autoridades de Israel sempre o negaram. Foi o trabalho da
pesquisadora Sabba Reuven, levado ao
ar pela jornalista Gal Gabay no programa Vacuum, da TV Educativa de Israel,
que escancarou o fato, no início de dezembro de 2012.
As entrevistadas foram claras: são obrigadas a tomar, a cada três meses, as injeções de Depo-Provera, anticoncepcional cujo efeito é de longo prazo. Vacuum
chegou a acompanhar uma delas ao posto de saúde – a filmagem, feita sem o conhecimento dos funcionários, tem baixa
qualidade e está nublada para evitar o reconhecimento das pessoas envolvidas,
mas ainda assim registra a prática.
O problema maior é que a verdade jamais foi dita a essas mulheres. A esterilização, segundo os relatos delas, começa na Etiópia, nos “campos de trânsito”, nome dos locais para onde são levados os judeus africanos que querem emigrar para Israel. “Entre 1980 e 1990 milhares de judeus etíopes passaram meses
nesses campos, na Etiópia e no Sudão”,
escreveu Efrat Yardai, porta-voz da Associação Israelense de Judeus Etíopes,
em artigo para o jornal Haaretz. “Centenas morreram apenas porque o país que
supostamente devia ser um refúgio seguro para os judeus decidiu que ainda não
era a hora certa, ou que eles não poderiam ser absorvidos ao mesmo tempo, ou
que não eram judeus o bastante... Quem
já tinha ouvido falar de judeus negros?”,
ela provoca.
Vida controlada
Para Efrat, as injeções de Depo-Provera são parte da atitude do governo israelense em relação aos imigrantes africanos. Hoje em dia, nos campos de trânsito, os futuros imigrantes são obrigados a
enfrentar “uma desorganização burocrática terrível, uma carga que lhes é imposta para que provem que estão aptos a viver em Israel”. Ao chegar ao novo país, de
acordo com Efrat, eles passam a receber
“tratamento” em centros de assimilação.
As crianças são enviadas a escolas religiosas e incluídas num programa de educação “especial”, enquanto os pais “permanecem em guetos e as mulheres con-
Mãe e filha judias de origem etíope passam por entrevista no aeroporto de israelense Ben Gurion, perto de Tel Aviv
tinuam a receber as injeções. [As autoridades] dizem que não temos escolha. As
políticas repressivas, racistas e paternalistas prosseguem – políticas que supostamente seriam no melhor interesse dos
imigrantes, que não sabem o que é melhor para eles”, ironiza ela.
Efrat vai além, afirmando que esse
controle completo sobre a vida dos imigrantes é feito apenas em relação aos etíopes e impede que eles se adaptem a Israel. “A desculpa de que eles precisam estar preparados para viver num país moderno levam-nos a um processo de lavagem cerebral que os torna dependentes
das instituições estatais de assimilação”,
denuncia a porta-voz.
As entrevistadas de Gal Gabay sustentam as denúncias de Efrat Yardai. “Em
Adis Abeba [Etiópia] eles marcaram
uma reunião conosco (...) Disseram que,
se continuássemos tendo muitos filhos,
não conseguiríamos emprego em Israel.
(...) Disseram que as injeções seriam dadas para evitar esse sofrimento, e que a
cada três meses tínhamos de tomá-las”,
contou uma imigrante. “E vocês aceitaram tomá-las?”, perguntou a jornalista.
“Não. Nós não queríamos tomar. Recusamos. Mas eles disseram que não tínhamos escolha.”
A esterilização, segundo
os relatos delas,
começa na Etiópia, nos
“campos de trânsito”
Contracepção forçada
Nenhuma das etíopes sabia qual era
a substância injetada em seus corpos.
Ninguém as avisou de que o Depo-Provera é um anticoncepcional aplicado
apenas em último caso, como na esterilização de mulheres aprisionadas ou
que não têm controle sobre as próprias
ações. Tampouco lhes contaram que
o Depo-Provera tem um histórico nada recomendável. Entre 1967 e 1978 a
substância foi injetada em 13 mil mulheres (metade negras) da Geórgia, Estados Unidos, que também não sabiam
que eram cobaias. Muitas adoeceram
e algumas acabaram morrendo durante o experimento, de acordo com uma
pesquisa realizada em 2009 pela Isha
L’Isha, organização feminista sediada em Haifa, Israel. A mesma pesquisa apontou que 60% das injeções de Depo-Provera, em Israel, são destinadas às
etíopes. O segundo grupo mais visado é
o de mulheres sob várias formas de custódia. Os efeitos colaterais variam, mas
o mais comum é a osteoporose, que fragiliza os ossos e expõe as mulheres ao
risco de quebrá-los com frequência.
Coordenadora do projeto Mulheres
e Tecnologias Médicas da Isha, Hedva
Eyal afirmou que o documento foi encarado com desinteresse pelas autoridades
do país e que muitos “batiam a porta na
cara” das integrantes da organização. “É
estarrecedor constatar como os testemunhos das mulheres são rejeitados, em especial os das mulheres pobres e negras”,
desabafa Hedva. As autoridades não levam em contam que “as decisões sobre
a saúde e a fertilidade das mulheres podem e devem ser tomadas apenas por
elas”, que para isso precisam ter acesso
pleno a todas as informações importantes sobre o assunto. “Mas não foi esse o
caso, ao que parece”, afirma ela.
Reprodução
Caixa do anticoncepcional de longo prazo Depo-Provera, do laboratório Pfizer
Explicações contraditórias
Autoridades médicas
afirmam que
contracepção é feita de
maneira voluntária
da correspondente no Oriente Médio
Rick Hodes, diretor médico do American Jewish Joint Distribution Committee, entidade que administra os programas de contracepção de etíopes que desejam emigrar para Israel e os centros
de assimilação em território israelense,
nega as acusações. “As mulheres procuram o programa porque desejam planejamento familiar”, afirma ele. “Apresentamos as várias opções e elas escolhem
[... se desejam] a contracepção e o método. E escolhem quando descontinuar o
tratamento. Sempre foi assim”, diz Holdes, informando que atualmente a comissão cuida de 4,5 mil “potenciais emigrantes a Israel”, com uma média de 85
visitas mensais a famílias que, segundo
ele, aderiram ao programa de planejamento familiar.
A decisão tomada pelo Ministério da
Saúde israelense, porém, contradiz as
declarações de Rick Hodes. Depois que
as denúncias do Vacuum foram ao ar –
e diante das críticas generalizadas em Israel e no exterior, assim como da pressão exercida pelas organizações feministas e de direitos humanos israelenses –
, o diretor geral do ministério, Roni Gamzu, enviou instruções às quatro HMOs
(sigla em inglês para as Organizações de
Manutenção da Saúde, que cuidam dessa área no país) para que cessem a apli-
cação do Depo-Provera. Na carta enviada
aos ginecologistas das HMOs, Gamzu solicita que não seja feita a “renovação das
prescrições” da substância para mulheres “de origem etíope” se por algum motivo “elas puderem não ter compreendido as implicações do tratamento”.
“Isso sugere que o ministério
colaborou com essa política
racista, aplicada numa
população fragilizada. Ainda
estou chocada com o fato”
Para Ziva Mekonen-Dego, executivachefe da Associação Israelense de Judeus Etíopes, a decisão do ministério é
importante, mas não basta. “Esperamos
que o ministro da saúde responsabilizese totalmente por essas mulheres”. Isso
significa, por exemplo, atender a solicitação das ONGs israelenses e da ACRI, a
Associação de Direitos Civis em Israel, de
que seja formada uma equipe com profissionais de saúde e “facilitadores culturais” para supervisionar o bem-estar clínico e emocional das mulheres. Mekonen-Dego, assistente social nascida na
Etiópia, afirma que as autoridades, embora negassem as práticas, sabiam delas
e de seus efeitos numa população tão pequena (atualmente, cerca de 120 mil judeus etíopes vivem em Israel): “Isso sugere que o ministério colaborou com, ou
até mesmo conduziu, essa política racista, aplicada numa população fragilizada.
Ainda estou chocada com o fato”. (BSA)
O crime de genocídio
Se as acusações de contracepção forçada feitas ao governo e os órgãos oficiais de Israel forem provadas, os responsáveis correm o risco de responder
pelo crime de genocídio.
De acordo com a Convenção de Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, adotada pela resolução 260 (III) A da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 9 de dezembro de 1948, o genocídio é a “intenção de destruir, no todo
ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso” por meio, entre
outras práticas, de “causar sério dano físico ou mental aos membros do grupo; infligir ao grupo, de maneira deliberada, condições de vida calculadas para provocar sua destruição física, no todo ou em parte; impor medidas destinadas a prevenir nascimentos no grupo; transferir de modo forçado as crianças de um grupo para outro” [artigo 2, itens (b), (c), (d), (e)].
Além do genocídio, são puníveis outros atos relacionados ao crime. O artigo 3 estabelece quais são eles: genocídio; conspiração para cometê-lo; incitamento direto e público para que ele aconteça; tentativas e cumplicidade de
prática de genocídio.
16
de 14 a 20 de fevereiro de 2013
internacional
Jean Salem, uma filosofia
para transformar o mundo
Reprodução
ENTREVISTA
Especialista em
materialismo grego e
latino, e no pensamento
marxista, escritor francês
critica as “falsas esquerdas”
e a descoordenação da
luta dos trabalhadores
Milton Pinheiro
de Paris (França)
“JEAN SALEM é um daqueles intelectuais humanistas, cada vez mais raros, que
são homens de cultura integrada”. O elogio desferido por Miguel Urbano Rodrigues aconteceu em outubro de 2012, ao
comentar o lançamento da edição portuguesa do livro A Felicidade ou a Arte
de Ser Feliz Quando os Tempos São Difíceis, do escritor francês.
Lutar pela felicidade, de acordo com
Salem, também autor de Lênin e a Revolução, é um dever em meio à escalada da
barbárie capitalista.
Filho do revolucionário e escritor Henri Alleg, o filósofo escreve artigos para
diversos jornais franceses e estrangeiros.
Quanto às lutas concretas em que se envolve, elas visam essencialmente, segundo ele, à reconstrução de um movimento
autenticamente revolucionário na França e no mundo.
Ao Brasil de Fato, Salem lança luz
sobre o que foi a França de Nicolas
Sarkozy e o que é a de François Hollande. Tece considerações acerca das lutas
sociais na Europa que pecam por falta
de coordenação política. Fala da imagem
midiática do Brasil na Europa, mas enfatiza a visão segundo a qual ele, de fato,
nos compreende.
Brasil de Fato – Você é um filósofo
que estuda os materialistas na
filosofia grega e romana; marxista
ligado às lutas dos trabalhadores
em seu país e no mundo, a
exemplo de seu apoio ao MST
no Brasil, foi sempre vinculado
às ideias comunistas. Quem é o
intelectual orgânico Jean Salem,
sua história e suas lutas?
Jean Salem – Tenho, de fato, dedicado
uma dúzia de anos e mais de uma dúzia
de livros a estudar de maneira intensa o
materialismo antigo: aquele de Demócrito, de Epicuro e de Lucrécio. No meio
dos anos de 1980, enquanto tudo parecia colapsar ao lado dos Partidos Comunistas da Europa, e do “socialismo real”,
eu decidi enfrentar os trabalhos acadêmicos sobre esse assunto. Mais que compor uma milésima tese sobre Marx, eu
tentei (como o próprio Marx em sua tese de doutorado) conhecer mais de perto
esses autores que ousaram enfrentar os
preconceitos religiosos e que já estavam
decididos a levantar um canto do véu, ou
seja, a propor uma visão racional de tudo
o que nos cerca. Uma visão que permanece compatível com a ciência moderna.
Tenho também dedicado leituras a Maupassant, à Renascença italiana, à felicidade, e tenho organizado diversos livros
de filosofia e de lógica matemática.
Agora, você me pergunta sobre minhas
lutas. Elas são muitas: eu me encontro
na Coréia, em Portugal, na América Latina, em congressos ou reuniões animadas
pelos progressistas. Tomando o cuidado,
sempre, de não cair no que eu chamaria
de “jet-altermundismo”: muitos se perdem nele, outros aí se corrompem.
“Sarkozy, que se vangloria de
o denominarem ‘Sarkozy, o
americano’ [entenda-se, dos
EUA], tudo fez para alinhar
a política francesa com a da
Casa Branca”
O projeto de Sarkozy,
completamente enquadrado na
ação imperialista pelo mundo,
em especial no norte da África,
foi derrotado eleitoralmente. Mas
como fica a França com François
Hollande?
É evidente que Sarkozy encarnou um
estilo de chefe de Estado de cultura medíocre, vulgar até, rompendo com a tradição de uma França onde, durante longo tempo, se quis crer que os notáveis deveriam aparecer como mais que simples
representantes do meio de negócios.
Sarkozy, que se vangloria de o denominarem “Sarkozy, o americano” [entendase, dos EUA], tudo fez para alinhar a po-
O filósofo marxista Jean Salem
lítica francesa com a da Casa Branca.
Antes mesmo de assumir a presidência da república, em maio de 2007, [ainda que já ocupasse o cargo de Ministro
do Interior] frequentava assiduamente
a embaixada americana em Paris. E ele
não hesitava em criticar a posição oficial
da França – da França que em fevereiro de 2002 vetou, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, a tentativa dos
EUA aprovar a invasão do Iraque. Teve
papel auxiliar nas guerras empreendidas
pelo império no norte da África.
Quanto à política interna, Sarkozy tentou limitar o direito de greve, “reformou” as aposentadorias, inflou os sentimentos xenófobos e exacerbou a psicose
da delinquência, assim como os temores
mais primitivos. Promoveu uma redução
das despesas públicas que desmantelou
a saúde pública, desorganizou a Universidade, oprimindo-a cada dia mais.
O governo François Hollande, o que
mudou? Muito pouco. Mas a única medida, a única, que parecia fazer pender
um pouco à esquerda o seu governo foi a
tentativa de taxar em 75% os ganhos suplementares de uma pessoa rica, o que
geraria pelo menos 100 milhões de euros de receita. Mas essa medida foi declarada inconstitucional por um dos
bastiões do conservadorismo: o Conselho constitucional. Quanto à atitude
francesa face à situação na Síria, ela foi
mais extrema e unilateral do que Obama! Eis que a pequena guerra levada pelo senhor Hollande ao Mali vem completar o quadro de comportamento dessa
esquerda de direita, essa “esquerda” que
parece cada vez mais à direita.
Quais são as lutas que têm
pautado os trabalhadores
franceses e europeus?
As lutas existem, é claro. Ainda que
elas se “beneficiem” de um impressionante silêncio midiático. Elas se dão
“com as costas na parede”, como dizemos em francês. Os trabalhadores da
PSA Peugeot Citroën, em Aulnay, na periferia de Paris, fizeram greve para protestar contra o plano de licenciamento
que os ameaça. E a direção da fábrica
recorreu ao lock out, ou seja, ela fechou
provisoriamente as portas!
Mas as lutas seguem, bem e belas, eu
repito! Em maio de 2012 os portugueses pararam massivamente; a Itália conheceu uma greve geral acompanhada
de manifestações impressionantes; os
gregos foram às ruas contra os planos
da União Europeia e do FMI; os jovens
na Espanha e os “indignados” em geral
conseguiram que falassem deles, tanto
pela ação surpresa, quanto por surpreender os sindicatos, que estavam muito ocupados em negociar uma redução
da idade de aposentadoria a fim de assegurar a “paz social” visando tranquilizar
“os mercados”.
A questão não é tanto de ausência
de lutas, mas de falta de coordenação,
de perspectiva: nós estamos morrendo, literalmente, por falta de organização, por ausência de um partido digno
de seu nome!
Como professor da Sorbonne,
você tem sido responsável
por um ciclo de cursos sobre
o marxismo. Quais são as
presenças mais importantes
de teóricos desse campo de
pensamento?
Nós lançamos em 2005 um seminário intitulado “Marx no século XXI”, na
Sorbonne. Para afirmar ali a presença do
marxismo, que diziam morto há tempos.
A ideia que preside a apresentação desse
seminário era um pouco análoga àquela que conduziu Lênin a fundar seu jornal Iskra, um jornal destinado a reunir,
a agrupar mil energias até então dispersas na Rússia dos czares. Para nós, se trata de convidar todos aqueles que trabalharam, ou pensavam trabalhar, “no seu
canto”, isoladamente, nas condições atuais de pesquisa na França e no exterior:
pois, aqui, particularmente, as pesquisas
marxistas foram durante longo tempo
marginalizadas, senão censuradas. Claro
que a vinda de Domenico Losurdo, Enrique Dussel, David Harvey, ou a de Georges Labica, André Tosel, Daniel Bensaid,
Michel Löwy, Slavoj Zizek, etc., constituíram grandes momentos do seminário!
“Meu pai nos deu a imagem de
um homem que triunfou sobre
seus torturadores, redigindo
um livro, A questão”
Você é um intelectual acadêmico
vinculado ao pensamento
marxista e comunista com uma
importante história de vida: é
filho do legendário comunista
Henri Alleg. O que você nos diz
sobre a vida deste revolucionário
internacionalista?
Meu pai nos deu a imagem de um homem que triunfou sobre seus torturadores, redigindo um livro, A questão.
Ele os denunciou e fez saber, a todo
mundo, qual era o método ao qual se
costumava recorrer na Argélia durante a guerra colonial; e que a história e
as lutas dos povos demonstraram que
o sistema colonialista, inelutavelmente, deveria colapsar.
Henri Alleg é filho de uma inglesa e de
um polonês, judeus, que se encontraram
em Londres e vieram para Paris. Mas
ele se apaixona pela Argélia, onde se fixa. Depois de ser militante e membro do
Partido Comunista argelino, ele se torna,
em 1950, diretor do jornal Argélia Republicana, onde militou em favor da independência. E é como jornalista comunista que sofreu as perseguições e as torturas durante anos de prisão, e depois
[após sua fuga] enfrentou o exílio nos
países socialistas.
Meu pai seguiu seu combate internacionalista trabalhando como redator, e
depois como secretário geral do jornal
L’Humanité. De suas grandes reportagens na China, nos EUA, na União Sovi-
ética, em Cuba, ele extraiu numerosos livros. O último é seu livro de memórias,
Memória argelina, publicado em 2005,
pela editora Stock.
Como intelectual e militante
comunista você deve viajar
por várias partes do mundo. O
que nos diz sobre as lutas dos
trabalhadores? Há algo de novo
no front?
Sim, tenho tido a felicidade de ser
convidado por universidades em todo
o mundo. E tenho participado de muitas reuniões, algumas vezes acadêmicas, porém mais frequentemente políticas. Isso abre horizontes à reflexão. Na
China pude constatar que o problema da
poluição nas cidades não se reduz, nem
um pouco, a um tema de propaganda inventada pelas redações ocidentais. Vi
também o extraordinário progresso desse país, que o Império cerca de maneira
já ameaçadora.
Na Rússia se pode ver os efeitos do capitalismo selvagem imposto a partir do
golpe de 1991: lojas abertas 24 horas por
dia, sete dias por semana; reino do business e da corrupção generalizada; desigualdades ainda mais gritantes que na
França, etc.
Mas eu fiquei impressionado, recentemente, pela seriedade e organização dos
camaradas coreanos, que organizaram
em setembro último, em Seul, um importante fórum internacional. Eles estão lidando com um modelo quase acabado de “democracia” completamente
formal: uma lei dita de “segurança nacional” (que durante muito tempo era chamada simplesmente de “lei anticomunista”) permite, de fato, que o governo jogue na cadeia qualquer um que diga uma
palavra que seja a favor da reunificação
com o norte, qualquer um que denuncie
o sistema de forma um pouco mais radical. Pude ver, nesse país longínquo (que
a China e o Japão nos fazem quase esquecer), homens e mulheres dos quais
a determinação, a coragem e a qualidade humana me lembraram as belas figuras de comunistas que, na minha juventude, eu admirava.
“Em compensação, se fala
muito pouco, na Europa, das
desigualdades abissais que
subsistem no Brasil”
Como analista de profunda
convicção internacionalista,
qual a sua análise sobre o
Brasil e qual a mensagem que
você deixaria para aqueles
que lutam pela emancipação
humana, em nosso País?
Dei aulas, durante algumas semanas,
na USP, e dei algumas conferências na
Universidade São Judas Tadeu. Foi em
2007. Devorei sua literatura (Machado
de Assis me agrada tanto quanto Sterne
e certos romancistas franceses que, como Crébillon, por exemplo, eu aprecio
particularmente). Sem querer dar lições
e menos ainda ser um intelectual que
emite julgamentos sem conhecer grande
coisa sobre o que fala, o que eu posso dizer é que a imagem “midiática” do Brasil mudou radicalmente nos últimos 20
anos. Do Brasil dos trabalhadores superexplorados, que durante muito tempo
nosso imaginário ocidental prontamente reduzia ao Nordeste, e a sua miséria
apavorante, do Brasil que era descrito,
por exemplo, em Cacau de Jorge Amado, passamos a um Brasil que nossas mídias apresentam como um país em pleno
progresso, como um gigante em formação, como um “concorrente” muito sério
para as economias cambaleantes da velha Europa, e etc.
Essa evolução foi acompanhada por
uma unanimidade alardeando sem qualquer nuance a política do governo Lula. Quando o Tesouro estadunidense, os
grandes bancos de negócios e as agências de classificação dirigem louvações a
vocês, é normal que a mídia do sistema
trate o Brasil com uma deferência entusiasta. Já a questão da corrupção foi
enfocada de passagem por nossa mídia
oficial. Em compensação, se fala muito pouco, na Europa, das desigualdades
abissais que subsistem no Brasil.
Jean Salem é filósofo, militante das lutas
anticapitalistas e comunistas, estudioso
da filosofia materialista greco-romana,
professor da Universidade de Paris I
(Sorbonne), onde coordena o seminário
“Marx no Século XXI” e é diretor do Centro
Para a História do Pensamento Moderno.
Milton Pinheiro é Professor de Ciência
Política da Universidade do Estado da Bahia
(Uneb) e editor da revista Novos Temas
Tradução: Ernesto Pichler.