Consultar - Diário da Grande Guerra

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Consultar - Diário da Grande Guerra
O GÉNIO DO POVO
Março de 1916.
A^azina, Kuangar, Naulila ... Nomes que soam
como bofetadas.
Depois hesita-se, disputa-se, combate-se. Já a
face arrefece. Alguns querem mesmo oferecer a
outra. Mais um passo: requisitam-se os navios...
E a hora grande bateu: estala a declaração da
Alemanha.
Na Câmara a sala, de pé, desde as carteiras
até às galerias, ao formigueiro humano, delira
e aclama, com uma só boca: Viva a República!
Viva a guerra!
As almas abriram caminho dumas para as outras e a emoção de cada um multiplica-se pelo
entusiasmo frenético da turba. Ao meu lado este
grande Gavroche, que passou a vida a rir e a
descrer, tem os olhos afogados em lágrimas. Uma
voz vai erguer-se talvez com fria dúvida, mas a
onda de fogo tudo engole.
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Memórias da Grande Guerra
Uma seriedade nova vinca as frontes e põe
labaredas nos olhos. Comungamos a Pátria; somos em estado de graça.
Não durmo nessa noite. É um diálogo entre
mim e a consciência. Decido oferecer-me para
partir, e ao dia seguinte, em carta ao Ministro da
Guerra, Norton de Matos, declaro-lhe sacrificar a
essa grande obrigação os sagrados deveres de família, pois entendo que esta guerra terá para o bem
da Humanidade conseqúèncias tamanhas, quais
ninguém mesmo pode prever desde já.
Por terras de Portugal, nas cidades, o povo
ergue-se ao grito de guerra. Em Lisboa uma multidão imensa vai à Câmara Municipal manifestar
ao Chefe do Estado o seu apoio. Céu azul-rútilo.
Dia de apoteose na Terra e nas almas. Olavo Bilac, o grande Poeta brasileiro, assiste ao desfilar
da multidão e do alto duma varanda saúda o
Povo que o aclama. Ao sair do Palácio do Município, na carruagem presidencial, além do ministro
inglês e do Chefe do Govêrno, Dr. A. J. d'Almeida, vai também Guerra Junqueiro. Os dois
poetas lusitanos, epónimos das duas nações, sagram com a sua assistência o acto ingénuo da turba.
Irá então reatar-se o ciclo truncado das nossas lutas épicas? Irá cumprir-se a profecia de
Edgard Quinet?
Quando êle, em 1845, visitava Portugal, dizia de nós:
*Dans 4e silence qui les environne, ces hom-
O Génio do Povo
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mes ont 1'air de continuer la bataille autour du
corps du roi Sebastien.»
E acrescentava:
*Et pourtant, malgré cet engourdissement
mortel, je jurerai que le feu moral couve encore
quelque part. Cette terre recommencera de trembler et de jeter des éclairs.»
Em verdade, a nossa vida, há um século, denuncia-se apenas por isolados clarões de relâmpago. Esta nação, mal lhe roubaram a escota e a
espada, que descobriu e avassalou meio mundo,
ficou-se para aí abismada na contemplação da
sua última aventura heróica.
O pensamento da sua independência inda a
levanta para resgatar a liberdade, e, apenas quando a afrontam no seu brio, estremece e ergue-se
toda ela, fulgurada pela mesma raiva: é na aurora
e no ocaso do século XIX, — com as invasões napoleónicas e com o ultimatum. Mas, esfriada a
canicula patriótica, recai a dormitar. Só a mudança de regimen de novo a abala profundamente, de tal modo reacendeu aos seus olhos a estrela da esperança.
É inútil negá-lo: uma grande parte da nação
não pensa nem. sofre. Há três séculos que está
entorpecida. Ignorância, egoismo e cobardia. São
o zero à esquerda. Por si nada valem. E dentre
os que se disputam a primazia de factores da
massa inerte, os valores mais altos uniram-se em
torno à bandeira da República por adaptação ne-
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Memórias da Grande Guerra
cessaria a esta lei natural: só as formas e as ideias
progressivas são elementos de vida contínua, isto
é, se multiplicam.
Foi essa parte da nação —poucos chefes e
muito povo—, que, ao estalar a grande guerra,
encarnou genialmente esta verdade.
E mais o povo do que os chefes.
Os grandes nunca a disseram toda. Mas a
arraia teve relâmpagos de intuição secreta. Em
Portugal é assim: calam-se os profetas da grei,
mas a Sibila do Povo lá delira os oráculos.
Que diabo fazemos
sôbre a Terra?
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Ocupamos, mercê das colónias, um lugar entre as maiores nações. Mas trata-se duma presença
meramente passiva e corporal. Obstruímos o Mundo. Eis a ocasião de tomar lugar na viçla, em presença activa do espírito. De contrário, o desmedido corpo morre, e arredam-nos, sem clemência,
do caminho dos vivos.
O nosso esforço colonizador elevára-nos à função preeminente de pátria-mãe duma outra nação.
Desprezámos há muito tão elevado encargo, o que
só redunda em desprestígio próprio. Excelente
ensejo para recuperar o -ascendente materno, tornando-nos, pelo exemplo, a'sua inspiradora moral.
E como? Encarnando o ideal comum, obedecendo ao génio da raça a que as duas nações
pertencem. Vitalizando-nos, do mesmo passo voltávamos a radiar energias fecundas.
Trata-se duma luta mundial de grave risco e