Raízes no.033 – Março
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Raízes no.033 – Março
tzivia From: Sent: To: Subject: Shavei Israel [[email protected]] Wednesday, March 17, 2010 4:29 PM [email protected] Raizes 033 Raízes Edição n°. 33 Março 2010 Adar - 5770 Histeria Sagrada Por: Michael Freund O Sangue é a Vida Por: Rabino Eliahu Birnbaum Shabat Comunidades Marranas nas Beiras - Parte II Fonte: Maria Antonieta Garcia FLIPORTO Presença Judaica no Brasil Por: Antônio Campos A Quem Realmente Pertence a Terra de Israel Por: Guido Maisuls O Shofar do Rei da Espanha Por: Miquel Segura Histeria Sagrada Por: Michael Freund - Tradução: David Salgado Um novo mal está castigando o Oriente Médio, e pior ainda, está se extendendo global e rapidamente como as últimas doenças que temos ouvido falar. Como qualquer outra epidemia, este vil vírus vem deixando um grande rastro em seu caminho, causando uma grande quantidade de vítimas a medida que vai cruzando limites e continentes 1 Shalom! tão rápido como a ‘banda larga’ pode fazer funcionar seu laptop. É a ‘histeria sagrada’, e inclusive vem atacando alguns líderes da comunidade internacional. O sintoma mais frequente dessa doença, como qualquer médico ‘político’ pode explicar, é uma reação irracional ao direito básico e fundamental do povo de reverenciar seus próprios lugares sagrados. Em casos sumamente graves, os sintomas da doença incluem o de negar a conexão judaico-histórica a vários lugares sagrados assim como ignorar em forma intencional a enorme quantidade de evidências que refutam tais direitos. A última pessoa que foi contaminada pelo vírus não é outro senão o Presidente egípcio Hosni Mubarak, que acaba de se unir aos líderes mundiais que vem repelindo a recente publicação da lista de lugares históricos do patrimônio israelense. No dia 2 de março, durante um conversação telefônica entre o Primeiro Ministro Biniamin Netanyahu e Mubarak, este último o advertiu com respeito a “perigosa implicação da invasão ao Monte do Templo e de acrescentar a tumba dos Patriarcas e a tumba de Rachel a lista do patrimônio israelense. Cairo foi tão radical que inclusive apresentou um protesto oficial ao governo israelense. Contudo, inclusive a rude reação de Mubarak parece moderada em comparação com as frenéticas respostas da Autoridade Palestina, as quais competiram umas com as outras em sua condenação ao Estado de Israel. Tomemos por exemplo, o que disse o Líder da Autoridade Palestina, Mahmud Abas, que em sua visita a Bruxelas, no mês de fevereiro, exagerou ao declarar que a decisão israelense é “uma seria provocação que pode causar uma guerra religiosa”. O Primeiro Ministro do Hamas em Gaza, Ismail Haniya, incitou os palestinos a começarem uma nova intifada e declarou de modo desafiante: “Jerusalém é nossa, a terra é nossa, não aceitaremos tais decisões”. Organização Shavei Israel King George 58, 4°. andar Heichal Shlomo Jerusalém 94262, Israel Tel: +972-2-6256230 Fax: +972-2-6256233 E em uma reunião semanal em Ramála, o gabinete da Autoridade Palestina, foi inclusive mais além, negando a conexão judaica aos lugares de sepultamento dos patriarcas bíblicos e referindo-se a estes como “lugares arqueológicos e históricos dos palestinos”. Não foi surpreendente, o fato da comunidade internacional ter rapidamente se colocado do lado palestino em resposta a declaração israelense. A União Européia a chamou “um ato provocativo”, assim como disse o Departamento de Estado dos Estados Unidos e o coordenador especial da ONU para o processo de paz no Oriente Médio, que ainda fez uma declaração especial dizendo que se encontra “preocupado” pela decisão. Visite nosso site www.shavei.org 2 Não tenha dúvida em contatar-nos: Esta tempestade sobre as tumbas é tão absurda como ofensiva, e Israel não deveria, de forma alguma, dar o braço a torcer. [email protected] Lugares tais como Kever Rachel (Tumba de Rachel) e Mearat Hamachpelá (Tumba dos Patriarcas) fazem parte do patrimônio nacional e religioso do povo judeu, e nós não necessitamos a permissão de ninguém para restaurá-los e mantê-los. Nossa reverência por esses lugares, e nossa relação com os mesmos são anteriores a Maomé e a Jesus, e ninguém tem o direito de dizer-nos onde e como servir a D-us. De fato, todo este episódio só vem mostrar o quanto hipócritas podem ser os críticos de Israel. Além do mais, foi há 15 anos, na segunda rodada do Acordo de Oslo, em Setembro de 1995, que os palestinos mesmos, reconheceram a relação de Israel com a Tumba de Rachel. No artículo V, anexo I, do acordo, os palestinos aceitaram que “a presente situação e as práticas existentes nas tumbas devem ser preservadas”, o que significa claramente que aceitam o controle israelense e como utilizam esses lugares, e que nunca foi nada mais do que um lugar de adoração judaico. Logo, o que o chefe de negociações palestino, Saeb Erekat, declara “É uma decisão unilateral que os lugares Hebron e Betlehem sejam parte de Israel”, não é apenas absurda, mas também totalmente falsa. E tendo sido os acordos firmados na Casa Branca, para todo mundo ver, e contaram com testemunhos formais da administração do Estado e da União Européia, esperava-se que eles pudessem enxergar mais além dos caprichos palestinos. Pior ainda, ao participar do fingimento da liderança palestina, a comunidade internacional está dando-lhe crédito a este absurdo que é negar a essência judaica destes lugares. Mesmo não sendo um erudito na Bíblia ou um estudioso arqueólogo, para reconhecer a antiga e indiscutível natureza judaica da tumba de Rachel e da tumbas dos Patriarcas, mas ao argumentar ao contrario, apenas para que tenhamos uma idéia, é como se quiséssemos dizer que a terra é plana, que Elvis está vivo e a lua é de queixo. É assim como deveriam ser vistas as queixas palestinas. Obviamente, o profesor comteporâneo, Zev Vilnai, em seu monumental estudo “Tumbas Sagradas na Terra Santa”, disse que: “A Caverna de 3 Machpelá e a tumba dos patriarcas foram conhecidas durante todas as épocas, e os judeus se referem a elas com grande estima”. (Vol. 1, p. 102). Do mesmo modo, com respeito a Tumba de Rachel, Vilnai, que é considerado especialista no tema, escreveu que “é conhecida ao longo de todas as gerações, desde a mais antiga até a mais recente” (Vol.1, p.149). Porém o triste fato é que a história e a realidade nem sempre são levadas em conta, quando se trata da maneira pela qual o mundo vê Israel. Consumidos pela “histeria sagrada”, preferem insultar e inclusive denegrir as nossas antigas tradições e ainda estão lhes dando, aos palestinos, argumentos para não querer retornar a mesa de negociações. Podem reclamar o quanto quiserem! Aqueles, assim como eu, que apreciam e visitam os lugares sagrados do judaísmo, continuarão a visitá-los independente de aprovação ou não de terceiros. E estou feliz de que o governo finalmente tenha decidido investir o dinheiro necessário para renovar e restaurar esses lugares sagrados. Não temos porque pedir perdão por respeitar aos patriarcas e matriarcas do povo judeu, e é uma bênção que nossa geração tenha acesso a tais lugares. Valorizar nosso passado, está claro, não é um pecado; porém, permitir que o menosprezem, aí sim, é uma grave falta. Retornar O Sangue é a Vida - Parashat Tsav Por: Rabino Eliahu Birnbaum - Tradução: David Salgado ““E sangue não comerei em todas as vossas moradas, da ave e do quadrúpede. Toda alma que comer algum sangue, será banida de seu povo”. (Vaicrá 7, 26-27) A Torá destaca várias vezes nesta parashá e em outros capítulos, a proibição de comer o sangue dos animais. A retórica desse preceito acentua a sua importância no judaísmo. Esta é uma das proibições que deve ser respeitada por todos os homens: judeus e não judeus, já que figura na Torá e no marco dos sete preceitos dos filhos de Noé. O consumo de sangue foi explicado em diferentes gerações como uma medida higiênica e em outras como um protesto contra as práticas idólatras. Em nossos dias, é possível explicar o sentido da proibição de comer sangue como um meio educativo que utiliza a Torá com o objetivo de ensinar-nos os valores concernentes ao respeito dos direitos de todo ser vivo. Segundo a Torá, o assassinato representa a maior ameaça a humanidade. Assim, receou o Eterno, que comendo a carne com o sangue o homem pudesse chegar a perder o respeito pela vida e cometer assassinatos. Desde o Gênesis aprendemos que no princípio D-us criou o homem como um ser vegetariano. Após o dilúvio, nos tempos de Noé, foi concedida ao homem a possibilidade de comer carne de animais. No entanto, esta opção poderia sugerir ao 4 homem que a vida do próximo não era demasiadamente importante. Por isso foram proibidos o assassinato e o suicídio. A Torá legitima nesta parashá e também em outros textos, afirmações que são aceitas em nossos dias por pessoas vegetarianas, que afirmam que sacrificar animais para comer leva a diminuição da sensibilidade do homem frente a atentados contra a vida. Por isso, a Torá não se contentou com proibir o assassinato, mas tratou também de impor ao homem a aversão pelo sangue. A Torá determinou que o sangue é a vida e por isso é proibido bebê-lo. Está permitido comer carne apenas quando o sacrifício do animal é realizado de acordo com a forma que estabelece a lei, e depois de ter extraído dele todo o seu sangue. A halachá (lei) nos ensina como extrair todo o sangue do animal, com sal ou assando-o. Parece que as proibições da Torá em relação ao sangue deixaram profundas marcas no povo judeu, que ficou muito impressionado com o fato de que, mesmo sendo permitido comer carne, deve-se ser extremamente cuidadoso com respeito ao sangue. Por isso, não nos surpreende o típico rechaço dos judeus com respeito a guerra, ao combate ou ao assassinato, já que isso constitui uma conseqüência direta da proibição bíblica de beber sangue. A preocupação diante da eventual perda do valor da vida humana está presente em outra lei referente ao sangue. Depois de tirar a vida a um animal por meio da “shechitá” (abate ritual de animais), deve-se em seguida cobrir com terra o sangue para escondêlo. Esta lei limita-se ao caso do sacrifício de aves e não de gado; isso está relacionado com o fato de que na antiguidade era necessário caçar as aves, e a caça obriga o homem a comportar-se cruelmente quando comparado a maneira necessária para sacrificar um animal que se encontra no campo ou próximo de sua casa; por isso, para que o caçador possa libertar-se dos sentimentos de culpa e fazer retornar seu sentido humanitário, a Torá lhe ordena realizar este ato especial: cobrir o sangue depois do sacrifício. O rabino Abraham Itzchak haCohen Kuk expressa em seus escritos uma visão sumamente interessante sobre o tema: “O sentimento de vergonha é o começo do arrependimento... Cobre o sangue! Afasta a vergonha! Estas ações darão frutos com o tempo, e a educação das gerações acontecerá. O protesto silencioso se transformará algum dia, depois que gerações tenham consumido carne cuidando as regulamentações concernentes a matança, ao exame do animal, o salgar... em um chamado irresistível que será finalmente compreendido. As prescrições referentes a matança ritual, parte delas, tem por objetivo amenizar o sofrimento do animal, dandonos consciência de que estamos tratando com um ser vivo, não de um inanimado e abandonado”. O rabino Kuk nos apresenta uma visão ideal e sumamente utópica do consumo de carne e sangue pelo homem, porém assim mesmo, nos ensina a definir a relação que deve existir entre o ser humano e o resto dos seres vivos no mundo. [email protected] Retornar 5 Comunidades Marranas nas Beiras - Parte II Por: Maria Antonieta Garcia …No Porto crescia o movimento liderado por Barros Basto. Era o renascer do Judaísmo nas Beiras e Trás-os-Montes. O jornal Ha-Lapid vai noticiando a renovação de um saber e de um fazer cultivado durante gerações. O conhecimento da perseverança dos marranos portugueses através de A Obra do Resgate de Barros Basto, do livro de Samuel Schwarz, despertou o interesse do mundo judaico. Em Janeiro de 1926, Lucien Wolf vem a Portugal a pedido da Anglo Jewish Association, da Alliance Israélite Universelle e da Spanish Portuguese Jew's Congregation. Visitou Lisboa, Guarda, Belmonte, Caria, Covilhã, Coimbra e Porto. “Constatou directamente que tais marranos não eram um mito, pois não só travou relações com eles mas também assistiu as suas reuniões culturais.”14 O relatório que elaborou esteve na origem da criação de “... um comité para ajudar os marranos portugueses”15. A 7 de Setembro de 1926, Paul Goodman, secretário do Portuguese Marranos Committee, informa Barros Basto sobre a constituição do referido comité16. Entretanto, o jornal Ha-Lapid divulga a história, cultura e preceitos judaicos, noticia os acontecimentos relevantes da vida das comunidades (vida comunal) e de A Obra do Resgate. É perceptível o interesse em motivar os descendentes de judeus para assumirem a identidade religiosa e exorcizar o medo. Escreve: “Nós que temos opiniões religiosas bem definidas inspiramos simpatia aos nossos adversários, entre os quais, apesar da diferença de credos, temos sinceras amizades''. Afirma mais Ben Rosh: “Um adversário nobre e leal tem direito sempre ao respeito do seu antagonista (...). Todo aquele que, para não ser perturbado na sua digestão, se entrega a uma doblez de carácter, só merece dos combatentes das várias crenças o desprezo (...)”17. Diga-se que este comportamento proselitista, de alguma forma, valer-lhe-ia desconfiança e incompreensão... Mas a Obra do Resgate continuava. E sabemos assim que “Em Janeiro (1927), seguiram para Belmonte, fazer uma visita aos anussim daquela vila, alguns jovens excursionistas da Associação de Juventude Israelita ‘Hehaber’, que tiveram o prazer de ser recebidos em diversas casas criptojudias de Belmonte. Demoraram-se dois dias, e ficaram encantados com as amabilidades daquelas famílias, especialmente com as Sr.as e Srs. Pereira de Sousa (...). O Ex.mo Senhor Engenheiro Samuel Schwarz que se encontrava, na ocasião nesta visita em Belmonte, acompanhou os jovens do ‘Hehaber’”(...)18. O Yom Kippur é celebrado, em 1928, na mesma localidade. Está presente, de novo, Samuel Schwarz que distribui exemplares do livro Kether Malkhuth,19 editado pela Comunidade do Porto. No mesmo ano Barros Basto “... leva a mensagem do Resgate a várias ‘povoações de marranos’: Vila Real, Chaves, Rebordelo, Vinhais, Macedo de Cavaleiros, Mogadouro, Vilarinho, Lagoaça, Moncorvo, Cedovim, Covilhã, Belmonte, Fundão e Aveiro.”20. Em Maio de 1929 “... visita em Castelo Branco alguns criptojudeus a quem deu várias explicações sobre o judaísmo e distribuiu vários livros, jornais e estampas judaicas.”21. É, porém, a Covilhã que merece maior atenção. No dia 4 de Maio de 1929, numa reunião de várias famílias “... em casa da Ex-ma Sr.ª D. Amélia Fernandes, bondosa e caritativa senhora cripto-judia, fiel observante dos ritos judaicos que lhe ensinaram seus pais foi decidida a fundação duma Comunidade legal judaica, de acordo com as leis da República Portuguesa”22. Deliberam ainda que os estatutos seriam iguais aos da Comunidade do Porto. Dia 6 de Maio, em casa de José Henriques Pereira de Sousa, em Belmonte, decidem que o núcleo cripto-judeu da vila ficaria “adstrito à 6 Comunidade da Covilhã”. Em Caria, o líder do Movimento do Resgate é Francisco Mendes Morão. Samuel Schwarz é, então, considerado como “... o mensageiro do Resgate do distrito de Castelo Branco”; Ben Rosh di-lo-o “... um amigo da nossa causa” que, com Lucien Wolf e Paul Goodman “... em todos os lares criptojudaicos devem ser memoriados e abençoados”. Com a queda da primeira República, em 1926,o medo cresce , “... está arreigado no espírito de muita gente.” Ainda assim, as reuniões de criptojudeus continuam. A 29 de Julho de 1929 é legalizada no Governo Civil de Castelo Branco, a Comunidade Israelita da Covilhã. Elegem corpos gerentes; Francisco Henriques Gabinete será o Presidente da Junta Directora; Samuel Schwarz manter-se-à Presidente da Assembleia Geral. A Sinagoga da Comunidade, Shaaré Kaballah (Porta da Tradição) é inaugurada em Setembro de 1929. O jornal refere a presença da M.me Oulman e de M.me Gradis que, na ocasião, oferecem 300 escudos “para serem distribuídos por pobres criptojudeus.”23. No mesmo ano, em Outubro, noticia o Ha-Lapid que “... uma quarentena de fiéis reuniu-se em oração em Kippur, na Sinagoga da Covilhã”; em 1930, inscrevem-se como membros da comunidade “... declarando desejarem professar abertamente o Judaísmo 36 criptojudeus.”24. As visitas à cidade tornam-se frequentes. A vinda de “... Abraham Brozinski, importante negociante e escritor hebraico da Polónia...” acompanhado por Samuel Schwarz, foi motivo para a realização duma: “reunião com assistência de criptojudeus da melhor sociedade covilhanense.”25 No Fundão, efectuam-se também encontros, são distribuídos livros de orações e “... estampas com a figura de Moisés”. Na Yeshivá Rosh Pinah, do Porto, inscrevem-se jovens que deveriam ser os futuros guias espirituais das comunidades. Frequentada, entre outros, por 5 belmontenses, 4 fundanenses, 4 covilhanenses, aprendiam práticas e rituais da Lei de Moisés. Apesar de todo o dinamismo, o movimento de Barros Basto não vingou. Os processos militar e da P.I.D.E. arrastam à queda do projecto da Obra do Resgate. O nazismo, o estabelecimento do Estado Novo, as lutas de liderança entre judeus portugueses e os que no país se refugiavam, geram afastamentos, conflitos, a queda. Era o tempo das verdades indiscutíveis - Deus, Pátria, Família, Autoridade -; foi o tempo duma nova clausura religiosa por parte dos marranos. Barros Basto e Samuel Schwarz verificaram que foram mulheres que memorizaram e transmitiram rituais e textos ou os escreviam26. O medo reinstalara-se e das comunidades que, então, se organizaram na Beira e tiveram local de culto, em vários locais da região mantinha-se o acender das candeias com torcidas de linho; a Páscoa marcada pela Haggadah judaica (a limpeza meticulosa das casas, por exemplo); muitas orações27; hábitos alimentares (o sangrar os animais, certos enchidos (alheiras) e, quem sabe?, doces conventuais que, não tendo leite na confecção, podem acompanhar pratos de peixe e carne); influências culturais (a ideia de Portugal como nação escolhida, o messianismo...). Usos e costumes a que afeiçoaram novas significações. Mas em Idanha-a-Nova, na década de 70, contava-nos uma avó que não colhia as partes laterais dos campos que cultivava. O pobre, assim, podia fazer o pão e colher a fruta. E não ensinavam rabinos que os homem não devia cortar o cabelo dos lados (peot) para lembrar este preceito? Que origem tem, também, o ‘fumo’, o pedaço de pano preto rasgado, que beirões colocam no braço, em sinal de luto? E o pão distribuído durante os funerais, em certas 7 aldeias? E a ablução dos cadáveres? A ausência de chefes religiosos, o distanciamento relativamente aos textos sagrados, redundou maioritariamente na assimilação dos judeus. Nos anos 90, nas comunidades beirãs da Covilhã, do Fundão, de Penamacor, de Pinhel sobrevive a memória duma ascendência judaica. Em alguns casos, independentemente da adesão à religião mosaica (podem ser mesmo católicos praticantes), repetem a afirmação identitária judaica, ou seja, assumem um judaísmo que se situa numa penumbra epistemológica. Afinal, também na Beira, como escreve Edgar Morin, judeu tornou-se um adjectivo que admite graus e tonalidades diversas. Só Belmonte preservou um núcleo duro, construiu uma matriz cultural que abriu o caminho para o ‘retorno’ ao Judaísmo ortodoxo. Apesar do medo. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, belmontenses retiveram a existência duma ‘lista’ elaborada por pessoas que eram manifestamente anti-semitas. Dizem, referindo-se ao suposto lider: “... era um germanófilo. Ameaçava a comunidade com a divulgação e a denúncia na Alemanha, de pessoas da vila seguidoras da nossa Lei”. Era um homem de poder e estas ameaças, a deslocação à Alemanha, garantiam obediência, conformismo e desencadearam muitos receios. Explicam: “Às vezes fugiam e dormiam nas ‘palheiras’ com o medo de serem apanhados”. Durante o Estado Novo, também foram as mulheres as iniciadoras, as mestras do Judaísmo. É o tempo do prestígio das H'azzanot, das rezadeiras. A tradição que seguiam, fundamentada na memória, traíra conhecimentos e práticas. Mas a opção endogâmica favorecia a continuidade cúltica, o segredo face ao Outro. O anti-judaísmo e o anti-semitismo desenharam solidariedades entre os judeus, alimentavam a cadeia de transmissão de fazeres e saberes. Com Samuel Schwarz soubemos que, desde a Inquisição, as candeias de Sabat nunca se apagaram, que o jejum de 24 horas de Yom Kippur se cumpria rigorosamente, que o Purim da Santa Rainha Ester não fora esquecido, que a Pessah era vivida com “pão asmo” ou ``dismos'', com “ervas amargosas”, com a purificação das casas, reafirmando a esperança: “Para o ano que vem, em Jerusalém”. Soubemos que os casamentos se realizavam primeiro, segundo a Lei de Moisés; percebemos a génese das histórias dos abafadores28, quando conhecemos os rituais funerários que as mulheres realizavam antes de chamarem sacerdotes católicos e médicos, reiterando uma afirmação identitária judaica. Na década de 80, quando foi possível o convívio com a comunidade, estes preceitos mantinham-se. Transmitidos oralmente, no feminino, contavam também alguns lares judaicos com o livro de Samuel Schwarz que guardavam ciosamente. Era o recurso certo, quando a memória traía. Judeus belmontenses, desde 1925, tinham à mão o manual do perfeito criptojudeu. Assim preservaram rituais e textos de orações, tecendo uma coesão securizante que a partilha religiosa sustentava. Perpetuavam discursos de fé e invocavam a identidade de povo escolhido: ``... Adonai, nosso Rei e Rei de todo o mundo que escolheste em nós mais que todos, e nos deste a Tua Santa Lei (...)''. Louvavam “... o Deus de Abraão, a constrição de David, a ciência de Salomão, a vitória de Gedeão, e o aviso que teve Lot, a felicidade de Jacob, o espírito de Elias, a caridade de Tobias e a paciência de Job”. Suplicavam: “... que não sejamos presos, nem feridos, nem mortos, nem nas mãos dos nossos inimigos postos”. Manifestavam o desejo de “... gozar a felicidade de Jerusalém...”, de aceder à Terra da Promissão. 8 Surpreendemo-nos ainda com textos ouvidos em Belmonte, que repetiam as palavras que os Inquisidores tinham registado nos processos de cristãos-novos. Entre outras, verificámos que a oração que acompanha o acender das candeias de Sábado, um momento sagrado, não se alterara, durante cinco séculos. Escrevia F. Brenner: “Concrétement (...) dans leur quotidien, on ne peut décéler aucun signe apparent de judaïsme...”29. Não eram circuncidados, não possuíam livros sagrados, não falavam hebraico, não havia Sinagoga, nem rabinos. Mundo indecifrável para judeus que se habituaram a atribuir a pertença judaica a partir de critérios de que a prática marrânica se desvia. Todavia, sempre guardaram tempos históricos com marca de sagrado. Guardar o Sábado é repetir o gesto divino; jejuar em Yom Kippur é lembrar as transgressões aos mandamentos judaicos, penitenciar-se; o Purim de Ester não fora esquecido porque a fraternidade de destinos, valorizou uma rainha que escondeu a identidade, mas foi salvadora do povo judeu; a Pessah é um elixir da esperança. Em suma A prática da endogamia, a fidelidade a uma filosofia, à Lei de Moisés, o anti-judaísmo e o anti-semitismo, a presença de Samuel Schwarz na vila, o querer ser judeu, a crença na pertença ao povo escolhido, na errância redentora e a espera messiânica garantiram a manutenção duma mundivivência, de um património cultural específico. Os judeus de Belmonte são herdeiros do marranismo: homens desenraizados fruíram a sua religião, com carta de alforria; confrontados hoje com práticas rabínicas ortodoxas alguns aceitam-nas; para outros o peso da re-educação, da conversão foi insustentável. Mantiveram a sua autarcia judaica, renunciando à religião oficial; são os neo-marranos a construir a riqueza polimorfa do Judaísmo. Notas de rodapé • ... culturais''14 Cf. “A Obra do Resgate 1926”, Ha-Lapid, Porto Yiar de 5687 (Maio de 1927), p. 7. • ... portugueses''15 Idem. • ...e16 “Rabi Bueno Mesquita, Sir Francis A. Montefiore, Baronet, Mr. Leon B. Castello, Mr. Eustace A. Lindo, Mr. Eduardo Lumbroso Mocatta, Mr. Jonathan Pinto como representantes da Congregaçãp Israelita Portuguesa de Londres; Sua Eminência Sapientissima o Snr Israel Levy, Rabbi-mór de França, como representante da Alliance Israélite; os Snrs. Elkan N. Adler, O. E. d'Avigdor-Goldsmith, Leonard G. Montefiore e Joseph Prag, como representantes da Anglo Jewish Association; e ainda os Snrs. Dr. Lionel D. Barnett, Dr. M. L. Ettinghausen, Dr. Cecil Roth, Mr. Isaac Cansino. Mr. Wilfred S. Samuel, Mr. Lucien Wolf e Paul Goodman”. - Ha-Lapid, Maio, 1927. • ... (...)''17 In Ha-Lapid, 1928, n.º 14, pp. 2 e 3. • ... (...)18 Ha-Lapid, Janeiro, 1928, p. 8. • ... Malkhuth,19 Idem, p. 7. Poema em forma de oração de Salomão Ibn Gabirol. • ... Aveiro''20 Ha-Lapid, Fevereiro, 1928. 9 • ... judaicas''21 Ha-Lapid, Abril-Maio, 1929. • ... Portuguesa''22 Idem. Junta Directora: Presidente: Francisco Henriques Gabinete; Secretário: A. Fernandes; tesoureira: Adelaide Nunes Monteiro; vogais: Maria Amélia Fernandes, Guilhermina Nunes Monteiro; Presidente da Assembleia Geral: Samuel Schwarz. Lemos: “Os estatutos foram apresentados pelo Presidente da referida comunidade, o Snr. Francisco Henriques Gabinete, digníssimo Inspector da Fiscalização dos Tabacos e foram assinados pelos seguintes membros da comunidade: Manuel de Sousa Chicha; José de Sousa Morão; Francisco António da Cunha; António Almeida Teixeira; José Rodrigues Morão, Manuel de Sousa Chicha Júnior; António da Cunha, José de Sousa Chicha.” • ... criptojudeus''23 Ha-Lapid, Setembro-Outubro, 1929. • ... criptojudeus''24 Idem. • ... covilhanense.25 Ibidem. • ... escreviam26 Cf. A referência a manuscritos de orações que Barros Basto transcreve em Ha-Lapid, pertencente a Perpétua da Costa. • ...orações27 Em Pinhel, Ermelinda Costa e Josefa de Campos Costa rezavam orações judias com outras mulheres, viradas para Oriente, no primeiro quartel deste século. • ...abafadores28 Garantiam sacerdotes católicos e médicos que os chamavam tardiamente no momento da morte; a esta demora associaram a ideia da existência de abafadores ou afogadores judeus que impediam a revelação/denúncia/confissão de segredos da comunidades abafando os moribundos. Cremos, porém, que é o cumprimento dos rituais funerários, longos, que as mulheres efectuavam, que explicam a chamada tardia de uns e de outros. • ... judaïsme...''29 In Libération, op. cit.. Retornar A quem Realmente Pertence a Terra de Israel? Por: Guido Maisuls - Kiriat Bialik/Israel 10 Nosso povo judeu sofreu através da história grandes e dolorosos exílios, expulsões, genocídios, perseguições e discriminações, injustas acusações, conversões forçadas e assimilações obrigadas e nossa gente resistiu como pode: lutando de frente, fugindo, escondendo-se, adaptando-se, camuflando-se com o medo, nadando contra a corrente e as vezes a favor dela. O objetivo foi sempre sobreviver como pessoa e como judeu, agarrando-se a um de nossos mais sagrados princípios: nosso amor à vida. Isto trouxe como consequência que hoje, ao redor do mundo, apareçamos com diferentes aparências, com diversos idiomas, com distintas cores de pele, com costumes multifacéticos, inclusive com aspectos difíceis de identificarmos como tais. Por isso hoje o judaísmo é multi-étnico e pluralista porém compartindo uma origem e um grande destino em comum. Nos últimos sessenta anos temos sido merecedores de ver e viver o começo de nosso retorno ao nosso lar ancestral, a Terra de Israel. Desde os primórdios da civilização temos sido como um impetuoso e arrebatado rio caudaloso que arrancando desde as primeiras vertentes de água pura e cristalina em nossa formação como nação tem recorrido grandes distâncias históricas. Deteve-se em numerosos açudes e represas e em seguida continuou sua persistente marcha em direção ao nosso grande destino final: restabelecermos e nos realizarmos definitivamente como povo em nosso Lar Nacional e assim conviver de forma harmônica no seio das nações do mundo, contribuindo com o que temos de mais valioso e colocando-nos a serviço da humanidade, até mesmo com, nossas vidas. Nosso caudaloso rio vem viajando impetuoso e nada nem ninguém o pode frear nem tão pouco fazê-lo mudar seu rumo, nem nossos dirigentes mais mediocres e de curta visão, nem nossos inimigos mais crueis e sanguinários. Seus afluentes estão colmados de todos aqueles que são e somos os autênticos proprietários da Terra de Israel. Somos os descendentes das tribos perdidas, os anussim, os filhos dos judeus perdidos em todas as assimilações forçadas, perseguições e genocídios aos que nos vimos expostos, os gentis que querem subir ao trem e que desejam sinceramente ser judeus e finalmente nós, os judeus oficiais e com papeis. São seus passageiros os “anussim”, os forçados, em hebraico. Um judeu que foi forçado a abandonar o judaísmo contra sua vontade, e que faz tudo que pode para continuar praticando seus princípios sob a condição de coerção. Acredita-se que uns sessenta milhões dos habitantes da América Latina são descendentes desses primeiros judeus secretos, daqueles que chegaram buscando novos lugares para viver em paz ao redor de sua fé, são milhões de pessoas que se viram condenadas a não saber suas verdadeiras raízes e identidade. 11 Na Espanha é impossível dar cifras sobre os anussim, porque continuam escondidos, porém as pessoas que se reclamam descendentes de judeus são milhares. “Em todas as partes, nas 52 províncias espanholas, existem judeus secretos, porém a Espanha segue sendo um país muito anti-semita e ainda não nos sentimos seguros”. Os filhos de Menashé, cerca de um milhão de pessoas, que vivem atualmente no noreste da Índia e são uma das dez tribos perdidas. Conhecidos em Israel como Benei Menashé (Filhos de Menashé), trata-se de uma tribo de entre 750.000 a 1,2 milhões pessoas e que estão assentadas nas regiões Mizoram e Manipur, no noroeste da Índia, junto a fronteira com Myanmar (antiga Birmânia). Somente uns 6.000 a 7.000 são por enquanto judeus, já que o resto se converteu ao cristianismo com a colonização britânica dessa região. Os judeus de Uganda: a Comunidade Abayudaya (o povo de Iehudá). Localizada entre terrenos acidentados e os vales de Uganda Oriental vive uma comunidade de 500 ugandeses negros que praticam o judaísmo. Vem praticando há gerações e suas sinagogas, geralmente feitas em barracas de barro, estão situadas em quatro povos diferentes nas redondezas de uma cidade chamada Mbale. Os judeus-Lemba: Existem uns 40.000 Lemba sulafricanos que se consideram como judeus descendentes dos Falasha. Estes Lemba praticam a circuncisão, guardam um dia de descanso semanal e evitam comer carne de porco e hipopôtamo, tudo isso considerado por eles como parte de sua herança cultural judaica. Uma equipe de genetistas tem encontrado um percentual anormal de homens Lemba que levam em seu cromossomo masculino uma série de sucessões de DNA que é característico dos Cohanin, os sacerdotes judeus considerados descendentes de Aron. Seu porta-voz Ahmadiel ben Iehudá, afirma que os “nigro spirituals”, as baladas sobre Sion e do rio Jordão que cantavam os escravos africanos nos Estados Unidos provam suas raízes hebraicas. A tribo Telugu vive no sul da Nigéria. Nas primeiras décadas do século XIX se converteram ao cristianismo. Em 1981 cinquenta famílias da tribo começaram a estudar judaísmo e hebraico, e se declararam descendentes da tribo de Efraim. Tratase de umas 400 famílias que vivem em Nigéria. Segundo sua tradição vieram do Marrocos, e dizem descender da tribo de Efraim. A Tribo Pashtun, com 40 milhões de pessoas, habitam o Pakistão e o Afeganistão. São muçulmanos, porém têm costumes similares aos dos judeus: descansam aos sábados, acendem velas nas sextas-feiras, usam uma indumentária parecida ao talit, rezam em direção a Jerusalém e não cortam o cabelo dos lados da cabeça. Centenas de famílias na Colômbia, decidiram entregar-se completamente ao judaísmo sem ter laços históricos nem mesmo ascendência, condições indispensáveis para ser chamado judeu. São pessoas comuns que após terem participado de outros religiões têm como meta converter-se em judeus e viver em Israel, a terra prometida. Enquanto os judeus etíopes se adaptam lenta porém, decididamente a nossa sociedade israelense, não podemos abandonar os cerca de 10.000 “Falash Mura” – cujos ancestrais judeus foram obrigados a converter-se ao cristianismo desde os fins do século XIX – que ainda esperam a oportunidade para poder emigrar a sua terra e reunir-se com seus irmãos. Temos o direito e a autoridade moral de desviar do nosso grande leito todos estes legítimos herdeiros de nossa Terra? Impedir-lhes de fazer parte do grande reencontro 12 de todas as diásporas? Todos nós temos o direito e o dever de poder ser herdeiros da Terra de Israel e de continuar viajando até o final da história, e ver a tão esperada desembocadura de nosso caudaloso rio no largo e profundo Oceano do Futuro. Publicado no jornal Aurora Retornar FLIPORTO 2010 - Presença Judaica no Brasil Por: Antônio Campos* FLIPORTO – VI Festa Literária de Porto de Galinhas De 11 a 14 de Novembro de 2010 Tema: A Literatura Judaica e o Mundo Ibero-Americano Escritora Homenageada – Clarice Lispector Recentemente o presidente Lula participou, no Recife, de uma cerimônia pelo Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. A Sinagoga Kahal Zur Israel – a primeira das Américas, situada à Rua do Bom Jesus, antiga Rua dos Judeus – ficou lotada para assistir a uma bela cerimônia religiosa, incluindo apresentação artística com violino e leituras poéticas. Alguns ali (os mais novos) talvez não soubessem ser de autoria de um cristão-novo português chamado Bento Teixeira o que para muitos é a primeira obra poética do Brasil: Prosopopeia. Outros, por ventura, desconhecem que há ainda os que defendem ser do intelectual judeu português Isaac Aboab da Fonseca as primeiras poesias escritas em nossas terras. O rabino Aboab da Fonseca foi o primeiro religioso judeu nas Américas, enviado ao Recife para chefiar a então crescente comunidade judaica, quando da tomada da cidade pelos holandeses. Independente de qual corrente de historiadores esteja certa, fica evidenciado que a semente da herança cultural judaica no mundo ibero-americano foi plantada em solo pernambucano. Pernambuco é no Brasil o lugar que mais cedo definiu uma clara vocação para o cosmopolitismo. O que primeiro organizou-se em torno da cultura, não só da cana-de-açúcar, mas do urbanismo, das artes, das ciências. Foi especificamente no século 17 que essa característica se evidenciou, mais precisamente nos anos que vão de 1630 a 1654. O famoso tempo dos flamengos ou, mais popularmente, dos holandeses, estudado exaustivamente pelo historiador José Antônio Gonsalves de Mello. Os judeus constituíram-se em uma importante presença dessa época, que se tornou há muito uma das mais analisadas do ponto de vista histórico da cultura pernambucana. Gonsalves de Mello também fez sobre eles um elaborado estudo e diversos outros trabalhos foram publicados abordando a temática dos judeus que vieram para Pernambuco nesse período. O “povo de Israel” deixou traços que não 13 podem ser apagados da história e da imaginação pernambucanas, entre eles a edificação da sinagoga na Rua do Bom Jesus e a aventura dos que saíram daqui para a outra América onde ajudaram a fundar a cidade que veio a ser Nova Iorque. Na verdade, os judeus estão em Pernambuco desde o início da colonização. A partir da chegada de Pedro Álvares Cabral em terras brasileiras, Olinda, sede da então capitania hereditária, e Recife foram destinos para vários judeus e cristãos novos (judeus convertidos ao cristianismo por medo da Inquisição) vindos da Península Ibérica (Portugal e Espanha). Graças à influência judaica, o povo pernambucano aprendeu a cultivar, com igual intensidade, o gosto pelo cosmopolitismo e por suas raízes mais profundas, instaurando um forte orgulho regional, tão peculiar nesse efervescente pedaço do Brasil. Além disso, reconhecidamente exímios comerciantes, os judeus do Recife foram responsáveis diretos pela consolidação da cidade como importante polo comercial no Nordeste do país. Os judeus deram uma contribuição riquíssima, em variados aspectos, sobretudo à cultura de Pernambuco. É inteiramente reconhecida a inseparável influência deles no tocante às identidades ibéricas e transnacionais do Estado. Aliás, se fizermos um exercício de trocadilhos, podemos até observar que o Estado foi o berço de uma América Ladina, dentro da América Latina, uma vez que o Ladino é um dialeto judeuhispânico, o idioma dos sefaraditas, os judeus de Sefarad, nome hebraico da Península Ibérica. O Ladino tornou-se uma língua caracteristicamente judaica apenas depois da expulsão dos judeus da Espanha – até então era apenas a língua da província onde moravam. Quando os judeus foram expulsos da Espanha e de Portugal, perdeu-se o contato com o desenvolvimento posterior da língua, mas continuaram a usá-la em comunidades formadas nos países para os quais emigraram. A natural consideração de todos esses fatos levou a Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas (Fliporto) a definir o tema para o evento este ano: A literatura judaica e o mundo ibero-americano. Nesse contexto, a escritora Clarice Lispector foi escolhida para ser a homenageada da VI Fliporto. Além de ter uma obra literária digna de todas as homenagens, Clarice era de família judia de origem ucraniana e viveu parte da infância no Recife (1925-1934), residindo em um casarão da Praça Maciel Pinheiro, tradicional reduto judeu no centro da cidade. Em sua diáspora, a nação judaica legou ao Brasil um dos pontos mais altos de sua Literatura. * Escritor e Advogado Retornar O Shofar do Rei da Espanha Por: Miquel Segura 14 Há alguns anos atrás, Juan Carlos, Rei da Espanha convidou o Grande Rabino de Israel – Rav Yonah Metzger para comemorar o 800° aniversário da morte de Maimônides, o ilustre Rabí Moshê Ben Maimón (o Rambam), médico filósofo talmudista que nasceu em Córdoba, Espanha. Durante a cerimônia, Rav Metzger ofereceu ao Rei um magnífico Shofar, muito comprido e encorvado, cravejado de prata e com a coroa real gravada. O Rei Juan Carlos o examinou durante um longo tempo e perguntou por sua origem. Rav Metzger falava em hebraico enquanto o embaixador de Israel na Espanha, Don Victor Harel, traduzia ao espanhol: “Vem da África este objeto?” perguntou o Rei. “Não Majestade, vem da Terra de Israel”. Cada vez mais perplexo, o Rei perguntou se aquele objeto era usado nas corridas e Rav Metzger explicou cortesmente que o judaísmo impedia fazer sofrer inutilmente aos animais. “Pois então, para que serve este chifre de animal?” Rav Metzger aproveitou esta conversa para recordar ao Rei um capítulo doloroso da história dos judeus da Espanha. O Rei o escutou atentamente: “Majestade, este presente vai permitir-nos terminar definitivamente com uma história. Faz mais de 500 anos, a Idade de Ouro do judaísmo teminou bruscamente quando seus antepassados, o Rei Fernando e sua esposa Isabel, incitados pelo inquisidor Torquemada, expulsaram a meus antepassados. Os judeus que tanto haviam contribuído ao desenvolvimento de seu país tiveram que fugir, abandonando todos seus bens para instalar-se em países mais hospitaleiros. Alguns ficaram na Espanha e se converteram guardando em segredo suas leis e seus costumes. Atuavam como católicos devotos porém respeitavam as leis da Torá, acendendo suas velas de Shabat nos armários para que ninguém desse conta. Nos dias de festa aqueles Marranos se reuniam nos sótãos para rezar”. “Nossa oração de Kol Nidrei, no início do ofício de Yom Kipur está atribuída a esses Marranos que anulavam desta maneira suas declarações de pertinência ao catolicismo. Rezavam com fervor e voz muito baixa para que a Inquisição que sabia torturar e queimar aos heréticos não os descobrisse. Para Rosh Hashaná, enfrentavam um dilema: podiam rezar com voz baixa porém e o Shofar? Um chefe de orquestra de origem judaica, encontrou uma solução original. Propôs ao Rei organizar um concerto gratuito para apresentar diversos instrumentos de sopro, vindos de todos os países e de todas as épocas. O Rei que adorava música ficou encantado. O chefe de orquestra propôs a data de Rosh Hashaná. O Rei, a Rainha, os ministros e os cortesãos sentaram-se na primeira fila; todos os demais puseram-se atrás e entre eles os Marranos. Os músicos apresentaram diferentes instrumentos, desde a flauta do pastor até a trombeta do soldado; o chefe de orquestra propôs soprar ele mesmo num chifre de carneiro, que apresentou como o mais antigo dos instrumentos de sopro conhecido”. “O Rei e a Rainha se interessaram por aquela curiosidade, admiraram esse instrumento; o maestro levou-o a boca enquanto, ao fundo da sala, os Marranos pronunciavam com voz baixa as duas bênçãos: ‘Bendito sejas Tu Eterno nosso D-us, Rei do Universo que nos tem santificado com seus Mandamentos e nos ordenado a escutar o Shofar. Bendito sejas Tu Eterno nosso D-us, Rei do Universo, que nos conservaste a vida, nos fizeste existir e chegar até este momento’. O chefe de orquestra tocou o Shofar como o exige a Halachá e todos os espectadores calaram. Foi muito aplaudido”. “Hoje, Majestade”, prosseguiu o Rav Meztger, “voltamos a nos encontrar, quinhentos 15 anos mais tarde, de maneira mais amistosa. Como Grande Rabino de Israel, me sinto muito feliz de voltar à Espanha. Em nome de meu povo gostaria de agradecer a Sua Majestade, pois agora os judeus podem viver livres em seu país. Gozam de uma liberdade de culto e no dia de Rosh Hashaná, podem tocar o Shofar nas sinagogas restauradas. Graças a D-us, posso, hoje, oferecer a Sua Majestade este Shofar sem esconder-me pois Sua Majestade é um soberano atento à democracia. Agora na Espanha todos podem rezar sem medo”. Aceitando o Shofar, disse o Rei: “Senhor Grão Rabino, tenho recebido muitos presentes e troféus de muitos homens de Estado do mundo inteiro. Porém este presente é portador de um significado histórico e fico-lhe muito grato por este Shofar e sua história”. Rav Metzger declarou ao Rei que queria dar-lhe uma bênção, como está recomendado pelos sábios. Os dois ficaram de pé, Rav Metzger fechou os olhos, levantou as mãos sobre a cabeça do Rei e disse a bênção com grande fervor. Quando terminou Rav Metzger abriu os olhos e viu que o Rei chorava sem querer esconderse… Segundo a história, a mãe de Fernando I, Rei que firmou a expulsão dos judeus no ano 1492, e que deixou a Inquisição instalar-se durante séculos, era judia. Chamava-se Juana Enríquez, e sua mãe era Paloma bat Guedaliah (Paloma filha de Guedaliah). O avô paterno de Juana Enríquez é Alonso Enríquez, senhor de Medina de Rioseco (1354-1429) cujo pai é Fabrique de Castilla e cuja mãe é Paloma bat Guedaliah, neta de Shlomo Hazaken ben David, descendente do rei David. 16