perspectiva transdisciplinar na abordagem de temas sociais e

Transcrição

perspectiva transdisciplinar na abordagem de temas sociais e
COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Dr. Lenio Luiz Streck – UNESA
Prof. Dr. André Karam Trindade – IMED
Prof. Dr. Fausto Santos de Morais – IMED
Prof. Dr. Fábio Correa Souza de Oliveira – UNESA
Profª. Drª. Angela Araujo da Silveira Espindola – IMED
Profª. Drª. Henriete Karam – UFRGS
CAPA: Litogravura de Honoré Daumier.
Ilustração n. 3 da série A comédia humana.
Publicada em Le Charivari, 3 fev. 1843.
BnF. Estampes et Photographie, Rés. Dc-180b (19)-Fol.
SUMÁRIO
Apresentação
André Karam Trindade
Henriete Karam ......................................................................................................
1
1
Desigualdades sociais e criminalidade nos contos Feliz ano novo e O outro,
de Rubem Fonseca
Rosália Maria Carvalho Mourão (UESPI)
Silvana Maria Pantoja dos Santos (UESPI) ....................................................
5
2
O ponta perna de pau e a segurança jurídica
André Murilo Parente Nogueira (ITE/SP) ......................................................
17
3
Imaginar a existência na poesia literária de Mia Couto
Bernardo G. B. Nogueira (CUNP) ...................................................................
35
4
O tribunal kafkiano e os seus juristas:quem diz o direito em O processo?
Eduardo de Carvalho Rêgo (UFSC) ................................................................
44
5
Ensaio sobre a cegueira do encarceramento em massa: Saramago e a
política de criminalização da pobreza
Caio Marcelo Cordeiro Antonietto (PUC/PR) ................................................
62
Os Joões de Santo Cristo: como os excluídos são tratados no Brasil; a
renegação de suas histórias
Gabriela Loyola de Carvalho (FDSM)
Paulo Henrique Borges da Rocha (FDSM) .....................................................
78
De uma república aracdiana ao positivismo kelsiano: a busca pela “lei
perfeita”
Claudia Maria Martins Barbosa Graça (FDSM)
Gabriela Loyola de Carvalho (FDSM) .............................................................
93
Plenária maluca: o julgamento de Pedrinho, o lúdico e o direito
Hugo Rafael Pires dos Santos (UNIOESTE)
Renato Bernardi (UENP) ................................................................................
110
Tortura e direitos humanos: a releitura de um antigo paradigma sob a
ótica de O prisioneiro, de Érico Veríssimo
Luís Rosenfield (PUC/RS) ..............................................................................
137
10 A representação do juiz em O círculo de giz caucasiano, de Bertolt Brecht
André Karam Trindade (KATHÁRSIS/IMED)
Carolina Nicole Zanotto (KATHÁRSIS/IMED)
Luísa Giuliani Bernsts (KATHÁRDIS/IMED) ................................................
162
6
7
8
9
11
(Na) Beira (do) rio, (na) beira (da) vida: a mundoca no e do direito
Dyego Phablo dos Santos Porto (UESPI) ........................................................
175
12
Direito, literatura e escravidão: reflexões do constitucionalismo liberal à
brasileira a partir da obra Negrinha, de Monteiro Lobato
Fausto Santos de Morais (IMED)
Luísa Giuliani Bernsts (KATHÁRSIS/IMED) .................................................
A lesão ao princípio do devido processo legal na obra O estrangeiro, de
Albert Camus: aspectos garantistas do devido processo legal e a nfluência
dos fatores legais determinantes
Rosália Maria Carvalho Mourão (FSA-PI)
Hamílcar Giúlio Brito de Sena Oliveira (FSA-PI)
Lorenna Costa Oliveira (FSA-PI) ....................................................................
213
14 A defesa da democracia e a crítica ao decisionismo: a revolução dos
bichos e a revolução do direito
Ângela Araújo da Silveira Espíndola (IMED/UFSM)
Mariana Teixeira Monteiro (IMED)
Fabiane Carla Pilati (IMED) ...........................................................................
222
13
15
197
Sem problemas e sem angústias: a monotonia do direito hegemônico em A
morte de Iván Ilitch, de Tolstói
Maurício Flores (UFSM/IMED)
Angela Araújo da Silveira Espindola (UFSM) .................................................
242
16 A mulher machadiana estreitando as relações entre direito e literatura
Vanessa Santos de Souza (UESPI)
Silvana Pantoja (UESPI) .................................................................................
262
17
Os miseráveis: o ciclo que os tornam
Felipe da Silva Antunes (IMED)
Neuro José Zamban (IMED) ...........................................................................
274
ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
APRESENTAÇÃO
O II Colóquio Internacional de Direito e Literatura (II CIDIL), realizado de 30 de
outubro e 1º de novembro de 2013, nas dependências da Fundação Meridional (IMED),
foi dedicado à temática “A representação do juiz e o imaginário social”.
A escolha de tal tema reside na expansão do Poder Judiciário, especialmente com
o constitucionalismo do segundo pós-guerra, no papel de destaque atribuído aos
tribunais no cenário do Estado Democrático de Direito e, consequentemente, todos os
desafios resultantes desse protagonismo.
O termo “protagonista” pertence, originalmente, à esfera dos estudos literários e
designa a personagem principal de uma narrativa ou drama – que, embora se
apresente, em geral, como o herói da história, pode, também, ser um anti-herói –, ao
redor da qual se constrói toda a trama e de cuja ação dependem, direta ou
indiretamente, os acontecimentos narrados ou encenados.
Na transposição para o campo jurídico, pode-se dizer que o termo protagonista
não perde seu significado de origem, mas é sob a forma de uma derivação – mediante o
acréscimo do sufixo ismo, que remete tanto à intoxicação de um agente quanto a
movimentos sociais ou ideológicos – e associada a um adjetivo que surge a expressão
protagonismo judicial, empregada para designar o juiz como a personagem que ocupa
posição central no cenário do Estado Constitucional de Direito.
Isso se deve, como se sabe, à expansão do Poder Judiciário, ocorrida após a
Segunda Guerra Mundial – sob o impulso do (neo)constitucionalismo – e,
paralelamente, à denominada judicialização da política, tendo em vista a necessidade
de materialização dos textos constitucionais, especialmente nos países de modernidade
tardia.
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Tal fenômeno resulta, contudo, na recente ascensão do ativismo judicial – cujas
raízes remetem ao direito norte-americano – que vem sendo endossado na América
Latina por parte da doutrina e da jurisprudência, sob o argumento de que tal postura
mostra-se imprescindível para a concretização dos direitos fundamentais, sem que leve
em conta as especificidades que (con)formam cada realidade constitucional.
Com efeito, a revolução constitucional resultante do segundo pós-guerra provoca
uma ampliação dos espaços da jurisdição e, conseqüentemente, a redução dos espaços
da legislação, aumentando ainda mais a tensão entre direito e democracia, em face da
função atribuída aos tribunais constitucionais, cuja legitimidade não advém do voto,
mas conferida pela própria Constituição.
Ocorre que essa expansão da jurisdição também implicou uma profunda
modificação do papel do juiz – recorde-se, aqui, da metáfora de Montesquieu, para
quem o juiz era a boca da lei, ou ainda de Thomas Jefferson, para quem os juízes
deveriam ser como uma simples máquina –, que antes se limitava a aplicar
mecanicamente a lei, com base na noção rousseauniana de volonté générale sobre a
qual se fundara a Revolução Francesa.
Isso porque, ao contrário do modelo jacobino – para o qual o direito reduzia-se à
primazia da lei, enquanto a democracia consistia na submissão à vontade da maioria –,
o paradigma do Estado Constitucional submete o exame da validade do direito aos
juízes e tribunais, em face da produção de um direito ilegítimo verificada durante os
regimes totalitários.
Nesse contexto, portanto, em que a jurisdição constitucional torna-se uma peça
fundamental da engrenagem do Estado constitucional de direito, é que os olhares se
voltam, precisamente, para a figura do juiz, que é guindado a um papel de destaque nas
atuais democracias constitucionais.
Assim, sob a perspectiva da sociologia jurídica, é fácil observar o crescente poder
que, a partir do final do século XX, os juízes e tribunais passam a exercer sobre a vida
coletiva, seja em razão do aumento quantitativo e qualitativo da busca pela justiça
como um dos efeitos da crise geral que assola a sociedade moderna, seja como um
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fenômeno social mais amplo, em que a perda de referências e de valores surge como um
sintoma do declínio da família, do desaparecimento da religião como ícone moral e da
falência das instituições tradicionais.
Entretanto, apesar do seu papel de guardião das promessas – tanto para os
indivíduos como para toda a comunidade política –, poucos ainda são os estudos e
pesquisas sobre o protagonismo judicial, especialmente em terrae brasilis, sendo aqui,
precisamente, é onde entra a literatura, com suas narrativas, personagens, simbolismos
e representações, na construção do imaginário social.
Como se sabe, entre as inúmeras alternativas que se apresentam aos juristas para
re-pensar o direito no século XXI, o estudo do Direito e Literatura adquire especial
relevância, sobretudo tendo em vista que a possibilidade da aproximação dos campos
jurídico e literário permite aos juristas assimilarem a capacidade criadora, crítica e
inovadora da literatura e, desse modo, superarem as barreiras colocadas pelo sentido
comum teórico, reconhecendo a importância do caráter constitutivo da linguagem, no
interior dos paradigmas da intersubjetividade e da intertextualidade.
Assim, partindo dos pressupostos teóricos e metodológicos do estudo do “direito
na literatura” e, igualmente, da noção de “modelos de juiz”, formulada por François
Ost, o II CIDIL buscou auxiliar na compreensão da figura do juiz através da análise de
narrativas literárias que retratam problemas jurídicos, políticos e sociais e propôs uma
reflexão acerca do imaginário social construído em torno da representação do juiz e, de
modo geral, das instituições ligadas à justiça, a partir das obras de Ésquilo,
Shakespeare, Tolstoi, Sciascia, Brecht e Coetzee, entre outros.
De fato, a literatura, enquanto manifestação artístico-cultural, adquire papel
relevante nos estudos do imaginário social, em especial devido à sua natureza –
apontada há muito por Aristóteles – de representação do possível, que remete à
capacidade de o texto literário nos oferecer tanto múltiplas leituras e interpretações do
real quanto a compreensão do sistema simbólico erigido na busca de atribuição de
sentido às experiências humanas.
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É em virtude de tais características que as narrativas literárias possibilitam
desvelar as articulações entre discursos e práticas sociais, bem como as bases
ideológicas e os valores compartilhados em determinada cultura – o que inclui os
papéis sociais e os mecanismos das instituições nela estabelecidos e vigentes –, e é
nesse contexto que se mostra extremamente valioso e profícuo problematizar a
representação do juiz no imaginário social através da leitura e do debate de textos
literários.
Durante os três dias de atividades do II CIDIL, estabeleceu-se um importante
diálogo entre diversas comunidades acadêmicas afins (Direito, Letras, Psicologia,
Sociologia, História, Antropologia, Filosofia, etc.), cujo fio condutor foi, precisamente, a
capacidade da narrativa literária de auxiliar os juristas na árdua tarefa de desvelar a
realidade social e jurídica através da ficção.
O evento, que contou a presença de 18 ilustres conferencistas – Albano Marcos
Pepe (UFSM), Alexandre Morais da Rosa (UNIVALI), Alicia Ruiz (UBA/Argentina),
Andre Karam Trindade (IMED), Ângela Espíndola (IMED/UFSM), Carlos María
Cárcova (UBA/Argentina), Dino del Pino, Fabiana Marion Spengler (UNISC), Fausto
Santos de Morais (IMED), Henriete Karam (UFRGS), Ivan Guérios Curi (UPF), Jacinto
Nelson de Miranda Coutinho (UFPR), José Calvo González (UMA/Espanha), Kathrin
Rosenfield (UFRGS), Luís Carlos Cancellier de Olivo (UFSC), Márcia Ivana Lima e Silva
(UFRGS), Pedro Mandagará (UFRGS), Vera Karam de Chueiri (UFPR) –, reuniu um
público de 310 (trezentos e dez) pessoas, provenientes de inúmeros estados, e 41
(quarenta e um) pesquisadores de diversas unidades federativas do Brasil (RS, SC, PR,
SP, DF, GO, SE e PI) apresentaram um total de 31 (trinta e um) artigos científicos,
através de comunicações orais, dos quais 17 (dezessete) compõem estes Anais do II
Colóquio Internacional de Direito e Literatura.
Boa Leitura!
André Karam Trindade
Henriete Karam
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DESIGUALDADES SOCIAIS E CRIMINALIDADE
NOS CONTOS FELIZ ANO NOVO E O OUTRO
DE RUBEM FONSECA
R OSÁLIA M ARIA C ARVALHO M OURÃO 1
S ILVANA M ARIA P ANTOJA DOS S ANTOS 2
Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.
Mas ninguém diz como são violentas as margem
que o reprimem.
Bertolt Brecht
1
INTRODUÇÃO
O caos urbano instaurado na sociedade tem contribuído para a proliferação do
conflito humano, intensificando a crise das relações interpessoais. O perfil da cidadeserpente deslocara-se do plano real para o ficcional, favorecendo a recorrência de temas
como o da violência e criminalidade em obras literárias contemporâneas.
O inchaço desordenado das cidades a fragmenta em partículas cada vez menores,
contribuindo para o aumento das desigualdades sociais. Assim, a cidade abriga um
1
2
Professora de Direito e Literatura da Faculdade Santo Agostinho – FSA.
Professora de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí – UESPI e da Universidade
Estadual do Maranhão – UEMA; Professora de Direito e Literatura da Faculdade Santo Agostinho –
FSA.
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número cada vez maior de desempregados, miseráveis, pedintes, desabrigados,
acentuando a polêmica em torno das desigualdades sociais e violência.
A temática da virulência incide sobre muitas produções brasileiras do período
pós-64. A maior parte da obra de Rubem Fonseca se inclui nesse contexto e traz à tona
essa delicada questão vivenciada nos grandes centros urbanos.
Rubem Fonseca é formado em Direito, no entanto foi no funcionalismo público
como policial, posteriormente com funções de gabinete que exerceu boa parte de suas
atividades profissionais. Sua atuação como policial nos idos dos anos 50 foi suficiente
para que colhesse da realidade, material para a feitura de sua obra. Neste trabalho
daremos relevância aos contos Feliz ano novo e O outro, ambos problematizam a
situação das desigualdades sociais e criminalidade, cujo cenário da virulência está
circunscrito pela banalização da morte.
Os contos integram o livro Feliz ano novo, composto por 15 contos que marcam
um novo trajeto de Rubem Fonseca. São contos marcados pela liberdade de expressão,
de ruptura e de afirmação; traz à tona questões relativas à violência, crise do sistema
político e econômico brasileiro. A conjuntura da obra apresenta uma linguagem incisiva
que beira o coloquialismo e impacta pela incidência de expressões agressivas, uma
forma de tornar o mais verossímil possível a vivência de seus personagens. Dado ao
contexto de sua publicação, a obra foi censurada em dezembro de 1976, por ser
entendida como veiculadora de conteúdos que agridem a moral e os bons costumes e
instigam a violência. Nesse período, a repressão e a tortura atingiram o extremo.
2
CRIMINALIDADE E DESIGUALDADE SOCIAL
A criminalidade está ligada não somente ao agente do crime, mas, sobretudo, à
condição do homem no contexto da sociedade à qual pertence, logo, os grandes centros
urbanos são os mais impactados por essa prática delituosa que vem tomando
proporções alarmantes.
Os contos Feliz ano novo e o Outro de Rubem Fonseca suscitam uma discussão
em torno da relação (ou não) entre criminalidade e desigualdade social, subliminando a
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responsabilidade do Estado e da sociedade na garantia de bens às camadas menos
favorecidas.
Sabe-se que a combinação entre altos índices de pobreza,
excesso de demandas sociais e incapacidade de o Estado
implementar políticas redistributivas é explosiva e pode
comprometer seriamente a institucionalização da ordem
democrática em sociedades que, como a brasileira, emergiram
de experiências autoritárias. O exemplo extremo da violência
generalizada na Colômbia chama atenção para os intricados
nexos entre governabilidade e indicadores sócio-econômicos,
atestando o papel deletério que reiterados padrões de exclusão
social tendem a desempenhar no cenário político-institucional
de um país (CARVALHO, 1994, p. 131).
Não obstante, não se pode assegurar que as desigualdades sociais, por si só, sejam
causadoras de criminalidade, fosse assim, os menos favorecidos, como um todo,
estariam envolvidos em atos delituosos. O que fomenta, de fato, a criminalidade é o
emaranhado da teia de conflitos urbanos: a miséria humana destituída dos bens de
consumo, em contraste com o favorecimento das camadas abastadas; a intolerância que
gera violência das mais variadas; a segregação espacial que ocasiona a expansão
citadina de forma injusta; o individualismo que aparta as pessoas dos laços coletivos e
afetivos; o egocentrismo que instiga a competitividade; a inversão de valores, dentre
outros.
O Estado, por sua vez, insiste em combater a criminalidade com políticas
retrógradas, como o aumento de penas e intensificando a repressão policial, medidas
que não têm dado garantia nem de redução das práticas delituosas, menos ainda de
ressocialização do infrator. Como diz Toledo (1994), o delito é um “fenômeno social
complexo que não se deixa vencer totalmente por armas exclusivamente jurídicopenal”.
Por sua vez, Amilton Bueno de Carvalho, desembargador do tribunal de justiça do
Rio Grande Sul, discute essa questão na obra Direito Penal a Marteladas (2013) a
partir da obra de Nietzsche afirmando que “as sentenças serão sempre emitidas tendo
em vista mais a conservação da sociedade do que propriamente o ato praticado pelo
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indivíduo”. Dessa forma, o criminoso não é especificamente aquele que comete o delito,
mas alguém que, sendo avesso a nós, acredita-se ser capaz de cometer delito, logo,
precisa ser “banido”. “O sentido da punição é eliminar os ‘parasitas’ e assim garantir a
autodefesa da sociedade”, acrescenta Carvalho (2013, p. 77).
3
VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE EM FELIZ ANO NOVO
Feliz ano novo narra a história dos delinquentes Zequinha e Pereba e do
personagem narrador anônimo que se intitula líder do grupo. Este, apresenta um
diferencial em relação aos demais por ser analfabeto funcional, logo, a posse do
discurso na narrativa, bem como, a liderança do grupo são suas marcas de poder. Na
noite de réveillon os meliantes furtam um veículo e invadem uma mansão festiva,
roubam, cometem assassinato e estupro, depois saem tranquilamente pela porta da
frente para comemorar a virada de ano, demonstrando total frieza ante as atrocidades
cometidas.
Nos termos da Constituição Federal de 1988 os direitos são iguais, no entanto, é
sabido que parte considerável da população brasileira é destituída de tal privilégio. O
estímulo ao consumo, operado pelas galerias de luxo e pelos veículos de comunicação
de massa é considerado uma agressão contra os que se encontram à margem dos bens
capitalistas.
Em meio ao fosso entre os que têm muito e os que nada têm, paira o mesmo
desejo de aquisição dos bens de consumo. A negação a eles é nítida já no início do
conto, quando os personagens infratores não dispõem de alimento nem de vestimentas
apropriadas para o ritual da virada de ano.
Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado
roupas ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que
as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o
estoque.
Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça,
galinha morta e farofa dos macumbeiros (FONSECA, 2007, p.
13).
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Em meio aos planos para as festividades da virada de ano, o narradorpersonagem anuncia ao grupo que poderiam se apropriar das armas ilícitas de um
terceiro personagem, o Lambreta, para se safar da situação periclitante de ter que se
alimentar das oferendas de Iemanjá.O desejo de possuir os bens de consumo básicos ou
supérfluos instiga os personagens a assaltarem, visto que todos queriam passar o ano
novo festejando com amigos, com roupas novas, mesa farta, muita bebida e mulheres,
mas não tendo disposição e/ou condições para encarar um trabalho digno que lhes
deem os meios necessários para conquistarem o que almejam, retirar dos ricos.
O mundo movido pela força do capital ocasiona o sério problema das
desigualdades sociais, que por sua vez desencadeia outras delicadas questões. As
desigualdades sociais são nitidamente delineadas pelas condições de precariedade dos
integrantes do grupo, contrapondo-se ao luxo e fartura da casa invadida. A descrição é
feita pelas retinas do narrador-personagem, cuja indignação é visível em cada
detalhamento.
O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A
banheira era um buraco quadrado grande, de mármore branco,
enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado.
Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei
a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha,
brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um
alívio, muito legal (FONSECA, 2007, p. 18).
O estado de choque da anfitriã assassinada, bem como, da “moreninha”
estuprada por Pereba é colocado como causa das atrocidades por eles cometidas:
“culpada é a mulher que ficou de flozô”. Uma das vítimas, na tentativa de evitar
maiores agressões sugere que se apropriem de tudo e que partam sem receio de que
sejam denunciados. Esse comportamento irrita ainda mais os meliantes, ao ponto de o
executarem de forma brutal. “Filho-da-puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o
dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles,
nós não passávamos de três moscas no açucareiro” (FONSECA, 2007, p. 19). O ódio que
os infratores depositam na sociedade intensifica a agressão por suporem ser esta
responsável por suas situações desfavoráveis. Neste momento, o assaltante toma
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consciência das desigualdades sociais das quais é vitimado. Desprovendo aquelas
pessoas de seus bens materiais não significa nada para elas, não as atinge com
intensidade porque de onde aquelas jóias, relógios, dinheiro, ouro, cheques vieram, tem
muito mais, em contrapartida, eles, os meliantes, continuam sem acesso ao luxo e
riqueza que tanto almejam.
O narrador muda de forma clara e irônica, a própria linguagem deixa de ser
vulgar, cheia de impropérios como permeia boa parte do conto e converte-se em modos
educados quando pede encarecidamente: “Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por
favor?”. Em um primeiro momento acredita-se que tudo vai terminar bem, o próprio
Maurício parece está seguro da situação: “olhando para os outros que estavam quietos
apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz calma
minha gente, já levei este bunda suja no papo”, no entanto, o que se vê é um aumento
da carga de violência quando o assaltante mata-o com um tiro de carabina doze no
tórax, para vê-lo grudar na parede lentamente, escorregar por esta, e permanecer
sentado no chão já morto, lembrando os filmes de ação. Insatisfeito porque não obteve
o resultado esperado que grudar o homem na parede com o tiro, o narrador escolhe
aleatoriamente, outro homem, este porém ele pede que fique em frente a uma porta de
madeira, desta vez consegue alcançar o objetivo de vê-lo permanecer mais tempo
grudado a porta, enquanto escorrega lentamente.
O conto suscita, ainda, reflexão crítica em torno da fragilidade da segurança
pública (os meliantes invadem e deixam a casa pela porta da frente sem nenhuma
intimidação), A vivência em espaços urbanos tem sido gradativamente ofuscada pelo
medo da violência, o que leva a população a um aprisionamento cada vez maior em
busca de segurança.
A cidade-prisão [...], sociopoliticamente fragmentada, na qual,
crescentemente, a pobreza grassa, a violência se alastra,
territórios ilegais se superpõem ao território formalmente
controlado pelo Estado (ou pela ‘face oficial’ do Estado): os
territórios dominados por traficantes de drogas. No extremo
oposto do espectro socioeconômico, territórios de autoproteção
da classe média e da burguesia (‘condomínios exclusivos’ e,
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menos fortemente, ou mais porosamente, shopping centers)
também se multiplicam (SOUZA apud ANDRADE, 2007, p. 19).
Os personagens do conto, embora sejam socialmente marginalizados e relegados
aos guetos da cidade, permanecem próximo à zona nobre, como uma forma de manter
um status social, afinal morar na zona sul, próximo à praia, mesmo que num prédio
fétido e imundo, é melhor do que morar longe, em bairros esquecida pelo Estado.
Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos,
com os material pelas escadas, imundas e arrebentadas.
Fudido mas é zona sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar
em Vilópolis?
Ironicamente a narrativa se encerra com um final feliz aos infratores, alertando
para a impunidade. O narrador-personagem, Zequinha e Pereba, de forma metonímica,
ao cometerem os mais sérios delitos como: formação de quadrilha, invasão de
propriedade, estupro, homicídio, posse ilegal de arma, roubo, furto, vingam-se do
Estado, bem como, da sociedade que os encurralam nos guetos, nas sarjetas, ao tempo
em que brindam o “sucesso” da operação: “Que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano
Novo” (FONSECA, 2007, P. 21).
O título do conto é uma ironia, pois para aquela família de classe média alta que
teve uma noite de horror com estupros, homicídios, agressões verbais, morais,
psicológicas durante o assalto, o ano novo começou de forma violenta e os personagens
tiveram contato com uma realidade bem diferente da que eles conheciam, enquanto os
meliantes que no início da narrativa não tinham o que comer na passagem do ano,
terminaram brindando a chegada o ano novo, sem expressarem nenhum tipo de
remorso pelos atos violentos praticados. Assim, terminam impunes e livres para novas
atrocidades no ano vindouro.
4
SEGREGAÇÃO E VIOLÊNCIA EM O OUTRO
O mecanismo de exclusão da cidade gera um tipo de população que circula por
todos os espaços, exatamente porque não tem, de fato, nenhum espaço. No conto O
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outro, a cena urbana é recortada pela intolerância que se sustenta por meio da não
permissividade da aproximação de um sujeito “estranho”.
A narrativa gira em torno de um homem de negócio que é constantemente
abordado na rua por um pedinte. Ao contrário de Feliz ano novo, em O outro quem
narra os fatos é um personagem abastado que, dado ao seu perfil de executivo, favorece
que o pedinte o chame de “doutor”. Ao longo da narrativa o homem de negócios exerce
uma falsa caridade, com o intuito de se livrar rapidamente do entranho, ao tempo em
que nutre esperança de que a aproximação não se repita. Ao invés disso, o pedinte o
aborda com mais frequência ao ponto de o executivo atribuir a ele o agravamento de
seus problemas de saúde, o que o desestabiliza emocionalmente. Ocorre que o narrador
se preocupa em anunciar bem antes da primeira aproximação do pedinte, a descarga de
stress em função de um turbulento trabalho burocrático.
Como todo executivo, eu passava as manhãs dando telefonemas, lendo
memorandos, ditando cartas à minha secretária e me exasperando
com problemas. Quando chegava a hora do almoço, eu havia
trabalhado duramente. Mas sempre tinha a impressão de que não
havia feito nada útil.
[...]
Um dia comecei a sentir uma forte taquicardia. Aliás, nesse
mesmo dia, ao chegar pela manhã ao escritório surgiu ao meu
lado, na calçada, um sujeito que me acompanhou até a porta
dizendo ‘doutor, doutor, será que o senhor podia me ajudar?’
(FONSECA, 2007, p. 87).
No contexto urbano, comumente, diante do ser estranho, a primeira atitude é de
negação. Suspeitamos do outro e de suas intenções, recusamo-nos a confiar (ou não
conseguimos fazê-lo) na constante insegurança e suspeita de que o perigo está em toda
parte. Ademais, a desqualificação do outro, avesso a nós, associa-se à condição de
poder exercida pela sociedade.
Vi que o sujeito que me pedia dinheiro estava em pé, meio
escondido na esquina, me espreitando, esperando eu passar.
Dei a volta e caminhei em sentido contrário. Pouco depois ouvi
o barulho de saltos de sapatos batendo na calçada como se
alguém estivesse correndo atrás de mim. Apressei o passo,
sentindo um aperto no coração, era como se eu estivesse sendo
perseguido por alguém, um sentimento infantil de medo contra
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o qual tentei lutar, mas neste instante ele chegou ao meu lado,
dizendo, ‘doutor, doutor’ (FONSECA, 2007, p. 89).
No conto Feliz ano novo, o personagem Pereba é mal instruído, preto, pobre,
vesgo e desdentado, logo, tem os traços que o fariam ser colocado à margem. A carência
financeira, atrelada ao perfil fora dos padrões de beleza exigidos pela sociedade, forma
uma imagem estereotipada do indivíduo. Notemos que essa constatação advém do
próprio narrador-personagem, demonstrando que o sujeito infrator, ele mesmo, tem
consciência de suas exclusões.
No conto O outro, o pedinte não tem o estereótipo do personagem Pereba, no
entanto, o executivo o concebe como indivíduo mal por meio de outros atributos físicos.
Na primeira descrição, ele o vê como um “homem branco, forte, de cabelos castanhos
compridos” (p. 88), sua própria robustez já é indício de ameaça. O medo da
proximidade de um sujeito anônimo retira do executivo a capacidade de percepção,
transformando o contato em uma cena cada vez mais ameaçadora. Numa segunda
descrição, o pedinte transforma-se num sujeito com “rosto cínico e vingativo” (p. 89).
Por fim, quando é atingido o limite da aproximação, o executivo investe uma terceira
descrição: “e ele encostou o seu corpo bem junto ao meu, enquanto caminhávamos, e
eu poderia sentir o seu hálito azedo e podre de faminto. Ele era mais alto do que eu,
forte e ameaçador” (p. 90).
A sociedade e, por extensão, o Direito Penal, elege os indesejados, diz Carvalho
(2013). Concebemos “aquelas pessoas que delas queremos nos livrar, aqueles de quem
temos asco profundo”, por isso, procuramos destruí-las, ou, lançando mão de nossa
bondade e de nossos preceitos cristãos e de civilidade, “não nos permitimos aniquilálos fisicamente, então reservamos para eles um local menos indigno (a morte aos
poucos): o cárcere” (2013, p. 129).
No conto O outro a virulência se processa de modo investido: o “diferente” é
colocado na condição de inimigo, dada a sua estranheza. O outro é aquele que gera
medo, terror e insegurança. Na leitura que faz de Nietzsche e o Direito, Carvalho
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assevera que o homem concebe o inimigo “mal” inversamente à imagem que tem de si,
ele mesmo, como um sujeito “bom”:
o mundo está divido, maniqueísmo agressivo entre ‘bons’ e
‘maus’, perfeitos e imperfeitos, perfumados e fedidos, lindos e
feios, adocicados e brutos, mocinhos e bandidos, aqueles que
devem permanecer como estão, aqueles que ‘devemos mudar’
(CARVALHO, 2013, p. 103).
Dessa forma, a sociedade constrói a imagem do malfeitor, sendo necessário que
este seja segregado do convívio social. Assim, a ameaça regada pelo medo reveste-se de
violência. O limite da tolerância se dá quando o pedinte descobre a residência do
homem de negócio. A invasão da privacidade está na saturação de qualquer estado de
permissividade, então, aparentando uma falsa tranquilidade, o executivo pede licença
ao pedinte, adentra a residência, retorna friamente com uma arma e o assassina à
queima roupa. Somente diante da certeza do definitivo afastamento do Outro, da
impossibilidade de ameaça, é que o homem se dá conta da fragilidade do pedinte:
Fechei a porta, fui ao meu quarto. Voltei, abri a porta e ele ao
me ver disse ‘não faça, isso, doutor, só tenho o senhor no
mundo’. Não acabou de falar ou se falou eu não ouvi, com o
barulho do tiro. Ele caiu no chão, então vi que era um menino
franzino, de espinhas no rosto e de uma palidez tão grande que
nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia
esconder (FONSECA, 2007, p. 90).
O sujeito, aparentemente indefeso, é interpretado como agressor. Não importaria
ao executivo saber se o pedinte se configurava, de fato, uma ameaça, uma vez tendo o
perfil de estranho, por si só, já justifica a sua condenação. Como diz Nietzsche apud
Carvalho (2013, p. 130), os suspeitos são as pessoas que não podemos suportar”. Assim,
o sentido do homem moral está atrelado à sua zona de conforto, portanto, as ameaças,
sejam elas quais forem, devem ser abolidas. Nietzsche entende a punição como algo
puramente vingativo e expõe o seu entendimento de modo paradoxal: “Se algo é mau,
aquele que assume as represálias também pratica o mal” (NIETZSCH apud
CARVALHO, 2013, P. 75).
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A representação da violência não pode ser feita sem que a alteridade esteja
presente, neste caso, confirmando a ideia de que o inferno habita em todos nós, nos
nossos medos, ações. Quando o Outro, surge na figura do pedinte para o executivo, o
subalterno torna-se visível ao personagem principal que necessita colocá-lo em seu
devido lugar, longe de sua vista, de seu caminho.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enquanto em Feliz ano novo a carência de acesso aos bens de consumo é
colocada pelos meliantes como o motor de todos os seus atos ilícitos; em O outro a ação
delituosa é justificada como forma de garantir o distanciamento daquele que se
configura uma ameaça à tranquilidade, bem como, à segurança.
Se em Feliz ano novo os atos de violência são formas de liberar as fúrias dos
infratores contra o Estado e à sociedade; em O outro manifesta-se contra o indesejado.
A sociedade inquisitória brasileira impõe que aquele que se mostra contrário a nós,
“homens de bem”, precisa ser eliminada do convívio social, o que leva “a sociedade a se
precaver contra eles através de seus policiais, carcereiros e carrascos, dos seus juízes,
promotores públicos e advogados e através dos procedimentos judiciais: eles suscitam a
vingança pública” (CARVALHO, 2013, p. 77).
O comportamento do executivo é uma forma metonímica de mostrar o
aniquilamento de pessoas avessas aos padrões exigidos pela sociedade, logo, a morte do
pedinte reveste-se da simbólica da exclusão em prol da autodefesa social.
Podemos dizer, então, que a punição tanto dos personagens de Feliz ano novo em
relação ao Estado e à sociedade, quanto de O outro em relação ao estranho está
atrelada ao sentimento de vingança que retroage ao princípio da Lei de Talião.
Nietzsche diz que
As represálias são ‘indenizações’ que nos damos e que aparecem
sempre acompanhadas pela vingança: ‘o sentimento de
vingança cessa logo que o agressor se curva humilhado ou é
abatido’. [...] punição significa inferiorizar o transgressor,
excluí-lo, enchê-lo de vergonha; não se trata de prevenir um
dano através da infusão do medo, mas rebaixar socialmente o
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autor do delito, tirando dele a força de que ele dispunha
(NIETZSCHE apud CARVALHO,2013, p. 77).
Ante o exposto, constatamos que subjaz dos contos Feliz ano novo e O outro de
Rubem Fonseca uma das características mais impactantes da vida moderna: o caos
urbano, que põe em xeque a certeza de que não adianta intensificar o aparelhamento da
segurança pública, bem como, criar medidas punitivas mais rigorosas se o problema
está na própria estrutura social.
Vivemos um cenário urbano em que o homem é arremessado a contextos
estranhos que não reconhece como seu. Ao se confrontar com o fosso entre riqueza e
pobreza, com a obsessão pelo consumo e pelo dinheiro, pelo culto ao individualismo, o
homem está exposto a conflitos interpessoais, bem como, a comportamentos hostis que
estimulam a insegurança, o pavor, a violência e a criminalidade. É preciso, então, um
esforço conjunto entre Estado e sociedade com mais investimento em ações legítimas e
de maior eficácia na área social, no tocante às carências mais vultosas da sociedade.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Sait Pereira de. Sentidos e nexos conceituais da cidade contemporânea. In:
LIMA, Antonia Jesuíta de (Org.). Cidades brasileiras: atores, processos e gestão
pública. S. l.: Autêntica, 2007.
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o
Direito. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
CARVALHO, Maria Alice Rezende. Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1994.
FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. 2. ed. São Paulo: Comp. das Letras, 2007.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994.
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O PONTA PERNA DE PAU E A SEGURANÇA JURÍDICA
A NDRÉ M URILO P ARENTE N OGUEIRA 1
RESUMO: O estudo aborda tema concernente ao princípio da segurança jurídica,
verdadeiro fundamento do estado democrático de direito, relacionando com o texto
O ponta perna de pau, de Ernane Buchmann, escrito em 2005. No trabalho
buscou-se demonstrar que a ausência de previsibilidade, inclusive, no que se refere
às sentenças, é um risco à estabilidade social. Assim, o princípio em tela apresentase como relevante ferramenta para a modificação da realidade social e jurisdicional,
quando analisado nessa perspectiva.
PALAVRAS-CHAVE: segurança jurídica; Estado Democrático de Direito.
1
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por finalidade efetuar um paralelo entre a obra O ponta
perna de pau, do ano de 2005, escrita por Ernani Buchmann, e a questão da segurança
jurídica nos âmbito das relações jurídicas processuais civis instauradas perante nosso
Órgão Jurisdicional.
Busca-se, por meio do estudo, evidenciar que a produção judicial no Brasil,
atualmente, apresenta-se alijada do comprometimento de efetivar sua atividade de
forma a proporcionar homogeneização da jurisprudência, logo, previsibilidade e
confiabilidade na prestação do serviço jurisdicional.
Cenário semelhante pode ser presenciado na essência do texto literário apontado
como paradigma ao trabalho aqui elaborado, onde, em apertada síntese, denotamos
1
Advogado, Mestre em Direito, Coordenador do Curso de Direito e Docente na Disciplina de Processo
Civil da Faculdade Iteana de Botucatu – ITE/Botucatu; Presidente da 25ª Subseção da OAB/SP –
Botucatu/SP. Email: [email protected]
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que o arbitro de futebol Ataíde, pressionado pela torcida enfurecida pelo resultado
adverso em desfavor do time da casa, profere uma cusparada sem direção certa e sem
preocupação de quem seria atingido por ela e, quem o fora: um menino que nada tinha
contribuído à formação daquela situação.
Nesse viés, buscamos traçar um raciocínio tendente a demonstrar a necessidade
adoção de ferramentas que rompam determinados paradigmas do processo civil pátrio
para que, aproximando-o com o modelo dos sistemas jurídicos da common law,
tenhamos condições de construir um Estado efetivamente Democrático de Direito.
2
O PONTA PERNA DE PAU E A SEGURANÇA
JURÍDICA NA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL
Na crônica O ponta perna de pau, do ano de 2005, escrita por Ernani Buchmann,
membro da Academia Paranaense de Letras, que escrevendo sobre futebol, tange
questão cara ao Direito e à construção do Estado Democrático, a segurança jurídica,
subsumindo-se na perspectiva Direito na Literatura proposta para esse Colóquio.
São duas reflexões pertinentes a que somos levados a realizar na leitura da
mencionada crônica, uma, a atitude do árbitro Ataíde de cuspir em direção à torcida,
outra, antagonicamente, sob o ponto de vista do menino atingido pela cusparada, como
passamos a melhor explicar.
Da leitura da obra mencionada podemos constatar que, o árbitro Ataíde,
pressionado pela torcida do time local que jogava em casa, não concorreu para o
resultado negativo, entrementes, ao dirigir-se para o vestiário, ao final do jogo, fora
forte e duramente afrontado pelos torcedores que, desejosos em apontar um culpado
para aquele fatídico resultado, elegeram o juiz de futebol.
Ao sair do gramado, o juiz passa, então, a ser objeto de xingamentos, humilhações
e cusparadas, num ambiente hostil e de verdadeira pressão exercida pelos torcedores,
ansiosos em terem sua pretensão, até então resistida, satisfeita.
Como percebemos, se tivermos como ponto de partida, como premissa, os olhos
do juiz daquele jogo, muito certamente, não repreenderíamos, por completo, sua
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conduta de proferir uma cusparada em direção àqueles que lhe assolaram durante toda
partida e, ao final, lhe xingaram, cuspiram, humilharam, em razão da derrota do time
da casa, à qual ele não concorreu em nada, como bem ressalta o texto.
Aquele honesto árbitro fora injustiçado e proferiu seu revide, quase num
momento de legítima defesa, ele profere a cusparada, de forma indiscriminada, dirigida
ao léu e sem maior preocupação acerca daquele que seria por ela vitimado ou atingido
por seus efeitos e resultados; a sentença prolatada por aquele juiz de futebol, ainda que
pressionado, atingiu o público sem a menor ponderação atinente ao modo como a qual
passaria a ingressar na esfera jurídica dos torcedores que se encontravam na
arquibancada.
Tanto o é que na arquibancada encontrava-se um singelo garoto, um pequeno
menino levado pelo aglomerado de pessoas enfurecidas com a derrota do time local; na
verdade, estava ali por pura curiosidade em relação aos fatos que ocorriam, sem
qualquer intenção de cuspir no experiente árbitro Ataíde, entretanto, como o revide
fora indiscriminadamente dirigido, fora o menino vitimado com a cusparada, que,
muito embora não lhe fosse especificamente destinada, o atingiu certeiramente.
A partir das ponderações fáticas acima resumidamente apresentadas e postas na
obra O ponta perna de pau, podemos tecer um paralelo com as relações jurídicas
processuais, onde, em conformidade com a atual do sistema, a questão da verdade, do
justo ou injusto, varia, a depender do ponto de vista pessoal com que os magistrados,
ao seu livre arbítrio, tomam ou adotam, das ideologias daqueles que julgam e outras
forças que atuam sobre esses, gerando um ambiente no qual, a vontade do juiz e suas
variáveis atingem, de forma contundente, a previsibilidade e a estabilização das
relações sociais.
É certo que os fatos cuidam-se de acontecimentos pretéritos e históricos, a
verdade que não pode ser alcançada pelos homens, pela linguagem desses, posta em
documentos, papéis (o que se tem não é a verdade, mas o que se diz sobre ela), tal como
nos feitos em juízo, no entanto, essa questão não pode servir de fundamento para o
cenário de instabilidade no qual nos encontramos contemporaneamente.
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A premissa com que se parte para analisar determinado fato, por certo, implicará
no resultado a ser obtido, de tal sorte que sendo aquela falsa este último também o será,
e o deslinde do processo apontará para uma injustiça, pela confirmação e imutabilidade
de algo que é falso; inadmissível que tenhamos na seara processual uma gama de
premissas e que cada magistrado as analise de forma puramente individual e subjetiva,
implicando em julgamentos distintos para casos análogos.
Pois bem, tecidas essas ponderações a respeito do texto literário que embasa
nosso pensamento e iniciais apontamentos de natureza jurídica, pertinente se faz
traçarmos o paralelo entre o evidente cenário de insegurança jurídica que permeiam
nossa instituição Jurisdicional em face dessa mesma insegurança que surgira como
desdobramento do comportamento do juiz de futebol (magistrado) dentro do campo de
jogo (sociedade).
Nessa perspectiva a análise que somos levados a efetivar, partindo da cena de
absoluta insegurança proposta pelo texto, onde um garoto alheio é atingido por uma
cusparada expelida sem compromisso com seu resultado prático, é a de que o
Judiciário pátrio, ao julgar as milhões de causas que tramitam em seu bojo, atua de
forma muito semelhante àquela adotada pelo árbitro Ataíde.
É fácil verificar no cotidiano das lides forenses a existência de inúmeros “Ataídes”
que proferem suas sentenças e acórdãos sem o menor compromisso de uniformização
dos posicionamentos a serem adotados pelos órgãos jurisdicionais brasileiros, em suas
mais diversificadas competências e instâncias, instaurando-se um sentimento de
completa ausência de previsibilidade em relação às demandas postas em juízo,
notadamente, as concernentes ao litígio denominado “de massa” e para matérias de
direito.
É válida a lição do Ministro Luiz Fux2, para quem, ao tratar das alterações, que
estão no porvir, da lei processual civil, assim aduziu:
Essas demandas, ao serem decididas isoladamente, geram, para além
de um volume quantitativo inassimilável por juízos e tribunais,
2
O novo processo civil brasileiro, p. 23.
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abarrotando-os, o risco de decisões diferentes para causas iguais, com
grave violação da cláusula pétrea da isonomia.
É de conhecimento comum que grande parte dos, em torno, de 20 milhões de
processos que tramitam perante o Órgão Judiciário brasileiro, cuidam-se de litígios
concernentes ao contencioso massivo, ações com idêntico fundamento jurídico e, de
mais a mais, versando sobre matéria exclusivamente de direito, o que deixa pouca
margem para o livre convencimento motivado descompromissado com o resultado
uniforme para todos os litigantes, sob o risco de criarmos um verdadeiro “jogo de azar”
ao se procurar a proteção do Estado-Juiz para consagração de direitos lesados ou
ameaçados de lesão; sem constrangimento algum, efetivando um notório acinte à
isonomia, em seu aspecto formal.
A advertência proferida por Luiz Guilherme Marinoni3 bem evidencia o risco
desse diagnóstico, ao lembrar que:
As decisões do Superior Tribunal de Justiça não são respeitadas nem
no âmbito interno da Corte...o que é pior, entendem-se livres para
decidir casos iguais de forma desigual....Isso configura um atentado
contra a essência do direito e contra a efetividade do sistema jurídico
[...]
não há como ter estabilidade enquanto os juízes e tribunais ordinários
não se veem como peças de um sistema, mas se enxergam como entes
dotados de autonomia para decidir o que bem quiserem – pressupõe
visão de globalidade do sistema de produção de decisões, o que,
lamentavelmente, não ocorre.... o juiz tem poder para realizar a sua
‘justiça’ e não para colaborar com o exercício do dever estatal de
prestar a adequada tutela jurisdicional, para o que é imprescindível a
estabilidade das decisões.
Nesta senda, o presente trabalho desenvolver-se-á de tal maneira a demonstrar a
temeridade do comportamento de um Judiciário alheio a tal questão de segurança
jurídica e, acima de tudo, o risco de que tal omissão estatal pode nos levar a serem
atingidos por cusparadas que não nos foram direcionadas, quer-se dizer, a premente
possibilidade de que casos convergentes no que tange ao mérito tenham resultados
diametralmente opostos.
3
O precedente na dimensão da segurança jurídica, p. 564-567..
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Não é raro nos dias de hoje nos toparmos com situações em que colegas de
trabalho, que dividem os mesmos espaços dentro de uma repartição pública ou de uma
empresa, quiçá de vizinhos, parentes ou conhecidos que, ajuizando demandas com o
mesmo fundamento, passam, ao final, a serem regulados por normas (aquelas
formadas por força da coisa julgada material, consoante disposto no art. 472, do Código
de Processo Civil), divergentes.
Tais percepções enchem de dúvidas jurisdicionados, operadores do Direito e um
sem-número de pessoas, como investidores, economistas, empresários, que analisam o
cenário jurídico para concretização de seus planejamentos e planos de ação, muitas
vezes de extreme relevo para o progresso social de toda coletividade brasileira, ferindo,
em seu âmago, a confiabilidade nas posturas jurisdicionais.
A propósito, Patrícia Gomes Teixeira4 afirma:
Efetivamente, o subjetivismo do magistrado, que redunda em uma
prática que adiante denominamos de decisionismo, abala fortemente a
confiança do jurisdicionado, atentando, por conseguinte, contra a
segurança jurídica.
Há de se procurar distinguir entre casuísmo e decisionismo. Enquanto
no primeiro busca-se tão somente sobrelevar as especificidades e
implicações, sobretudo fáticas, do conflito sub judice, dando-lhe um
tratamento particularizado – cada processo é um processo -, sem
contudo deixar de empreender as associações e dissociações
necessárias para categorizá-lo juridicamente e, assim, decidir
fundamentada e imparcialmente, no segundo o julgador envereda pela
arbitrariedade, eis que não concebe quaisquer parâmetros legais ao
seu entendimento pessoal do que seja o justo.
Com efeito, a disparidade de decisões acerca da mesma matéria levada ao
Judiciário fomenta um clima de instabilidade e insegurança pernicioso, afastando os
que possuem pretensões em nosso país, assim como uma cusparada proferida por um
árbitro despreocupado com seu resultado, em direção a uma torcida, pode acabar por
macular os planos e pensamentos de um singelo garoto que desejava assistir a uma
partida de futebol.
4
A uniformização da jurisprudência como forma de realização de valores constitucionais, p. 738.
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A violência e a temeridade de comportamentos merece e acolhe o paralelo aqui
proposto, sem mais que notório que tais ações merecem repressão do ordenamento e,
no caso da prestação do serviço jurisdicional, ao que nos parece, essa aspiração
somente será possível mediante a adoção de práticas tendentes à homogeneização da
jurisprudência.
Daí a imprescindibilidade de se fortalecer um ambiente em nossas instituições
jurídicas a ponto de possibilitar a análise de posicionamentos jurisdicionais e
ponderação de riscos no ajuizamento de demandas ou adoção de outros
comportamentos, ou seja, nasce dessa premissa de homogeneização, o mínimo de
previsibilidade.
Aqui é bom que se diga, a propósito, que tratamos não apenas de segurança
jurídica sobre a visão de ordem jurídica positivada, mais do que isso, precisamos de
segurança jurídica advinda de julgamentos análogos para casos que assim se
circunstanciam, não bastando, para construção de um Estado Democrático de Direito,
que as leis – em seu sentido mais amplo e genérico – sejam estáveis, mas também, que
os pronunciamentos jurisdicionais também acompanhem esse raciocínio.
Por certo que a continuidade da ordem jurídica é relevante, assim como a
previsibilidade das consequências decorrentes da adoção dessa ou daquela postura ou
omissão, de tal modo que as partes envolvidas em determinada relação devem poder
antever as possíveis qualificações jurídicas advindas de seu comportamento, o que não
merece ser diferente quando estamos a versar dos partícipes processuais.
De se ventilar as palavras de Cândido Rangel Dinamarco5, para quem a segurança
jurídica possui tamanho relevo que fora elevada ao plano constitucional, tratando-se de
valor de elevadíssimo grau nas democracias modernas, enfatizamos, sustentando que
sem segurança jurídica, inclusive no tocante às decisões judiciais, insustentável a
5
Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 301.
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mantença das relações estruturantes de um Estado de Direito6 e dos alicerces que
calçam uma Democracia verdadeira substancialista e não meramente procedimental.
Na mesma esteira das assertivas acima mencionadas, em sua lição, Dinamarco7
reafirma que:
A segurança nas situações jurídicas ... é importantíssimo fator de
pacificação e tranquilidade, sabendo-se que a insegurança é um estado
perverso que prejudica os negócios, o crédito, as relações familiares e,
por isso, a felicidade pessoal das pessoas ou grupos. ...estabilidade é
um dos mais importante pesos responsáveis pelo equilíbrio entre
exigências opostas, inerentes a todo sistema processual.
Nesse silogismo podemos constatar que a busca por ferramentas de
uniformização ou homogeneização da jurisprudência busca, em sua essência, a
preservação dos elementos fundantes do Estado de Direito, o qual mostrar-se-á
fragilizado caso seu órgão jurisdicional esteja irrestritamente desprendido para o
julgamento de casos semelhantes, fazendo com que a insegurança jurídica seja uma
constante.
A previsibilidade de condutas a serem adotadas pelo Judiciário acabar por guiar
os destinos da sociedade que, por óbvio, em uma vasta gama de casos, pauta seu
comportamento a partir das linhas estabelecidas pelos provimentos jurisdicionais,
sendo indissociável o risco de rompimento das bases do Estado de Direito caso não se
consiga identificar essa linha, o que, infelizmente, podemos perceber no cenário atual.
Essa insegurança jurídica que se mostra instalada caminha de forma
inequivocamente aproximada ao comportamento adotado pelo juiz Ataíde, o qual, sem
qualquer responsabilidade ou compromisso com o resultado de seu comportamento,
proferiu seu julgamento, a cusparada, entrementes, ao assim agir acabou por prejudicar
pessoa completamente alheia aos fenômenos que ensejaram seu revide.
6
7
A propósito, o Supremo Tribunal Federal, em voto do Min. Gilmar Mendes, nos autos da Questão de
Ordem na Petição 2.900-RS, bem reconhece a relevância da segurança jurídica em nosso Estado,
sustentando que “Considera-se, hodiernamente, que o tema tem, entre nós, assento constitucional
(princípio do Estado de Direito)... Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de
Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da
própria idéia de justiça material. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=86525>. Acesso em 28 out. 2013.
Ibidem.
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É assim também o comportamento do Estado-juiz ao prolatar provimento
jurisdicional descompromissado com a realidade e as relações sociais a que está
submetido, eis que um julgamento puramente livre, pautado unicamente em suas
convicções mais subjetivas, implicará em nefastos resultados para a concretização da
pacificação social daquela localidade e, num sentido macro, de toda nação,
desvirtuando-se, pois, da finalidade primordial de toda e qualquer relação jurídicoprocessual, qual seja, a paz social com construção do sentimento de justiça.
Indubitável que todas as partes desejam ser exitosas nas demandas levadas a
juízo e que o desprovimento de seus pleitos pode gerar insatisfação pessoal, no entanto,
muito mais gravoso é o sentimento daquele que vê seu pedido rejeitado, contudo, o
requerimento de seu vizinho, parente, amigo, conhecido, enfim, de terceiros, sob o
mesmo fundamento e matéria, ser acolhido; saímos da esfera de pura insatisfação, para
a revolta, o senso-comum de injustiça, instabilidade, imprevisibilidade e insegurança
jurídica, todos, isoladamente ou em conjunto, capazes de gerar graves fissuras no
desenho constitucional do Estado Democrático de Direito.
Neste diapasão, cumpre-nos transcrever o escrito por Gustavo Santana
Nogueira8, segundo qual:
A chamada loteria judiciária é um mal que precisa ser combatido. Não
pode o Judiciário resolver casos assemelhados de maneira diferente.
Isso gera, como visto, uma enorme insegurança. Respeitar e estabilizar
os precedentes são condições necessárias para que essa imagem se
enfraqueça.
Sob esse viés, entendemos que a segurança jurídica analisada sob a premissa das
relações processuais e da produção de decisões judiciais, instalada a partir de um
mínimo de previsibilidade, um porto-seguro para a sociedade, consiste em instrumento
de sustentáculo às bases do Estado de Democrático de Direito e, por isso, merecem
maior e melhor reflexão, até porque, como vimos de ver, contemporaneamente, essa
preocupação, ao que tudo indica, apresenta-se a nós como de segundo plano. Partindo
8
Precedentes vinculantes no direito comparado e brasileiro, p. 64.
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ótica da supra ventilada, novamente, valemo-nos dos ensinamentos transmitidos por
Marinoni9:
A segurança jurídica reflete... um mínimo de continuidade..., embora
ainda não haja, na prática dos tribunais brasileiros, qualquer
preocupação com a estabilidade das decisões....Para que haja
previsibilidade, igualmente são necessárias algumas condições. Se é
certo que não há como prever uma consequência se não houver acordo
acerca da qualidade da situação em que se insere a ação capaz de
produzi-la, também é incontestável que estas dependem, para gerar
previsibilidade, da possibilidade de sua compreensão em termos
jurídicos e da confiabilidade naqueles que detém poder para afirmalas.
Estimula propositura das ações, o aumento da litigiosidade, o acúmulo
de trabalho e o aprofundamento da lentidão do Poder Judiciário.
A previsibilidade não depende da norma em que a ação se funda, mas
da interpretação judicial, é evidente que a segurança jurídica está
ligada à decisão judicial e não à norma jurídica em abstrato.
[...] um ordenamento jurídico absolutamente destituído de capacidade
de permitir previsões e qualificações jurídicas unívocas, e de gerar,
assim, um sentido de segurança nos cidadãos, não pode sobrevir
enquanto tal. Ou seja, um ordenamento inidôneo a viabilizar a
previsibilidade não pode ser qualificado de jurídico”
De se verificar que é uma verdadeira falácia acreditarmos que uma vasta
produção normativa implicaria num cenário de previsibilidade e segurança; a bem da
verdade, como se sabe, o Judiciário, em incontáveis oportunidades, é instado a se
manifestar acerca desses atos normativos, seja sob seu aspecto formal ou material, de
tal maneira que o reflexo de seus pronunciamentos, sim, servirão como balizamento da
estabilidade jurídico-social.
Assim trilhando, caso nosso Órgão Jurisdicional mostre-se descomprometido
com seu dever de alinhavar seus julgamentos, o que, lamentavelmente denotamos nos
dias de hoje, por certo caminharemos ao encontro da imprevisibilidade e, por via de
consequência, da insegurança jurídica, malferindo os primados do Estado proclamado
em nossa Constituição da República.
Por tal é que se faz necessário quebrarmos determinados grilhões que nos deixam
amarrados ao status quo e nos impede de formar uma sociedade verdadeiramente
9
Idem, p. 559.
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igualitária e justa, uma sociedade na qual o Estado respeita os direitos fundamentais
dos cidadãos e estes, por conseguinte, também se enxerguem dentro de um mesmo
cenário, em condições efetivas de isonomia, fazendo-se, pois, valer os verdadeiros
anseios constitucionais de justiça social, em seu sentido mais amplo e genérico, para
efetivarmos uma Democracia Material.
Em sua obra A resolução dos conflitos e a função judicial: no contemporâneo
estado de direito, Rodolfo de Camargo Mancuso10 enfatiza:
num mundo globalizado, onde se embatem sociedades massificadas e
competitivas, não raro sucede que o padrão de conduta, mesmo
estratificada numa norma cogente, não raro reforçada por sanções
draconianas, não consegue manter ou mesmo reduzir o ambiente de
conflituosidade geral....a simples observação dos fatos evidencia que a
vida é mais rica do que o Direito (ou “o território é maior do que o
mapa), e por isso obsessiva produção de normas – dita nomocracia –
acaba abrindo uma fenda abissal entre o mundo formal e teórico do
dever ser (a configuração lógica) e o mundo efetivo e real do ser (a
configuração ontológica). Tudo isso, na realidade pátria, induz à
visualização de dois Brasis: um legal, outro real; isso é visível em
muitas ocorrências contemporâneas..., e desse contexto não se aparta
a experiência jurídica, mesmo a da ciência processual, pese o seu
caráter instrumental e não propriamente criador de situações
jurídicas.
[...] pondo à calva um sensível erro de diagnóstico: a principal causa
do volume excessivo de processos não reside em nosso arcabouço
processual...e sim, por um outro lado, na escassez de meios, materiais
e humanos, para um melhor gerenciamento da imensa massa de
processos e, de outro lado, cultura judiciarista.
[...]
Essas e tantas outras constatações induzem a refletir que, nos dias de
hoje, a função judicial precisa ser urgentemente repensada e reciclada,
colocando-se em pauta uma reavaliação dessa função estatal.
As imposições normativas que indicam o poder do Estado em face do indivíduo,
agregada a uma cultura extremamente positivista e prolixa do ponto de vista
redacional-normativo, quando levada à solução perante os órgãos jurisdicionais tem
gerado situações verdadeiramente teratológicas sob o prisma da segurança jurídica,
chegando-se ao dado absurdo de matérias totalmente convergentes serem julgadas de
10
p. 36-39.
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modo totalmente divergente, evidenciando o contrassenso e, pior, a total
imprevisibilidade e confiabilidade da produção judicial brasileira.
É esperado que o Estado de Direito crie mecanismos que proporcionem
estabilidade judicial e possibilitem àqueles que assistem ou participem do jogo
jurisdicional, de uma forma maior ou menor, possam antever os possíveis resultados
que advirão do ajuizamento de uma ação, ainda que se trate de uma ação individual;
isso nada mais é do que consagração da segurança jurídica.
Nessa toada, a adoção de determinadas novas ferramentas mostrar-se-ia como
notório progresso da prestação jurisdicional pátria, instrumentos esses que passam por
reavaliação de nosso sistema normativo-processual e do papel do Judiciário na solução
dos conflitos sociais e que, em muitos casos, nos aproximará da cultura dos sistemas de
common law, fornecendo capacidade sistêmica de garantir previsibilidade com
segurança jurídica no seio da sociedade.
Essa nova postura, noutra banda, imporá o enfraquecimento das codificações e de
primados do processo civil pátrio, como a persuasão racional, o livre convencimento
motivado e o duplo grau de jurisdição, o que, longe de ser um regresso, ao nosso
pensar, consiste em relevante avanço de nossa Ciência Processual, notoriamente,
porque viabiliza celeridade processual acompanhada de segurança jurídica.
A propósito, chegada a hora de rompermos determinados dogmas que ainda
pairam sob o processo civil pátrio para passarmos a admitir uma mudança de postura
imprescindível à resolução dos graves problemas que assolam o jurisdicionado
brasileiro, objetivando, com isso, uma aproximação da realidade com os alicerces do
Estado Democrático, dentre os quais, a entrega da prestação jurisdicional célere, efetiva
e justa, consoante esculpido na Constituição Federal, o que contribuirá decisivamente
para formação de uma sociedade mais igualitária.
É necessário fortalecermos os precedentes jurisprudenciais e a observância do
posicionamento reiterado dos Tribunais Superiores, não olhando para eles como meras
fontes secundárias do Direito, tal como usualmente abordados, transformando-se, pois,
a matiz de nosso sistema processual.
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Tanto o é que a preocupação com a uniformidade jurisprudencial e a estabilidade
da jurisprudência, destinadas a viabilizar a previsão das consequências jurídicas da
conduta do jurisdicionado e orientar as decisões judiciais nada mais são do que
manifestação da segurança jurídica no processo, assumem papel de destaque no
Projeto de Lei nº 8.046/2010, Novo Código de Processo Civil, que na Exposição de
Motivos, assim assevera:
haver, indefinidamente, posicionamento diferentes e incompatíveis,
nos Tribunais, a respeito da mesma norma jurídica, leva a que
jurisdicionados que estejam em situações idênticas, tenham de
submeter-se a regras de conduta diferentes, ditadas por decisões
judiciais emanadas de tribunais diversos.
Esse fenômeno fragmenta o sistema, gera intranqüilidade e, por vezes,
verdadeira perplexidade na sociedade.
[...]
A segurança jurídica fica comprometida com a brusca e integral
alteração do entendimento dos tribunais sobre questões de direto.
Encampou-se, por isso, expressamente princípio no sentido de que,
uma vez firmada jurisprudência em certo sentido, esta deve, como
norma, ser mantida, salvo de houver relevantes razões recomendando
sua alteração.
Trata-se, na verdade, de um outro viés do princípio da segurança
jurídica, que recomendaria que a jurisprudência, uma vez pacificada
ou sumulada, tendesse a ser mais estável.
[...]
O novo Código prestigia o princípio da segurança jurídica, obviamente
de índole constitucional, pois se hospeda nas dobras do Estado
Democrático de Direito e visa a proteger e a preservar as justas
expectativas das pessoas.
A dispersão excessiva da jurisprudência produz intranqüilidade social
e descrédito do Poder Judiciário.
É indubitável que vivemos um momento de transformação em nosso processo
civil, onde o sopesamento de valores atinentes ao processo tem tendido para fortalecer
os precedentes judiciais em detrimento da ampla e irrestrita liberdade dos juízes
julgarem conforme convicções pessoais, muitas vezes contaminadas pelas mais
variadas formas de ingerência social na formação de seu livre convencimento.
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Em seus ensinamentos, Flávio Luis de Oliveira11, destaca, com acerto, ao nosso
sentir, que “a base que sustenta a jurisprudência vinculante seria o fato de que ela traria
estabilidade, previsibilidade, segurança jurídica e igualdade”.
Não se está a negar a questão de codificação e positivação de textos legais – em
sentido amplo - culturalmente relacionadas ao sistema da civil law, mas também não
se pode deixar de admitir que o fortalecimento dos precedentes, típico da common law,
está cada vez mais presente no sistema processual pátrio, cujo qual mostra a nítida
tendência de enrijecer os caminhos amplos e, por vezes, desmedidos proporcionados
aos julgadores.
O livre convencimento motivado e a persuasão racional dos juízes não devem ser
prestigiados a ponto de que possam levar o julgamento para uma esfera de
desvirtuamento da liberdade para liberalidade, das distorções da legalidade, da
violação da isonomia e da completa ausência de previsibilidade e de confiabilidade na
produção judicial.
Indisfarçável que as normas, ao serem interpretadas pelos juízes, podem
comportar diversas compreensões distintas, mesmo diante de casos notoriamente
semelhantes, sobretudo em matérias de fato, entretanto, o que não se pode admitir é
que a estrutura processual permita que cada qual dos juízes interprete a lei de uma
forma e, por via de consequência, cada qual dos jurisdicionados tenham soluções
distintas para o mesmo problema, sob pena de instituirmos o “caos jurisdicional”.
A instabilidade judicial advinda nessas situações gera circunstâncias que, longe
de pacificar o grupo social com justiça, institui um verdadeiro cenário de descrédito do
Judiciário, desconfiança em relação aos agentes que atuam no processo e uma incerteza
insustentável às vistas do Estado Constitucional de Direito. Impensável sustentar num
Estado de Direito que o jurisdicionado teve “sorte” por ter seu processo distribuído
para um ou outro Órgão Jurisdicional, posto que, caso tivesse o “azar” de assim não
acontecer e o seu feito fosse distribuído àqueloutro, seu pleito seria improcedente.
11
Os precedentes vinculantes são normas?, p. 184.
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Assim também em O ponta perna de pau onde a álea fora o fator decisivo para o
destino daquele menino que, ao final de toda circunstância, fora ele o vitimado pela
ausência de compromisso do arbitro Ataíde ao proferir sua sentença, a cusparada, em
face daqueles que a ele se dirigiam. Nossa sociedade se vê no lugar desse singelo
menino, pressionada contra a grade, empurrada por uma série de fatores que impõe
transformação social, contudo, muitas vezes sem saber como se portar, acaba sendo ela,
sociedade, a vitimada pelo revide advindo do Estado, na obra literária, o juiz de futebol,
na realidade, o Estado-Juiz.
O fortalecimento dos precedentes jurisdicionais é imprescindível, a mutação da
forma de se tratar o processo civil e a produção das decisões judiciais é premente,
cuidando-se, a bem da verdade, do aperfeiçoamento das instituições do Estado-Juiz,
reservando-se a assegurar a força da estabilidade pretendida pela Constituição e pela
lei, atribuindo maior coerência ao ordenamento jurídico e reduzindo os nefastos efeitos
decorrentes das decisões contraditórias que tornam mais densa a ideia de injustiça e de
falta de efetividade jurisdicional que já pairam em nossa sociedade.
Devemos, portanto, considerar como necessária e urgente a adoção de práticas
que, efetivamente, descongestionem nosso Judiciário e uniformizem a produção
judicial, construindo um ambiente de estabilidade das relações, confiabilidade e
previsibilidade das decisões, para desembocarmos na consagração da segurança
jurídica na entrega da prestação jurisdicional, o que fortalecerá, inarredavelmente, as
estruturas fundantes de um Estado de Direito que almeja ser substancial e
materialmente Democrático, tal como esculpido no conteúdo normativo de nossa
Constituição Federal.
3
CONCLUSÃO
É iniludível que a sociedade vem sofrendo transformações em uma assustadora
velocidade, as quais tem proporcionado novas formas de comunicação, interatividade e
troca de experiências entre os indivíduos mundialmente conectados e, por muitas
vezes, inclusive, desconhecidos entre si.
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Essa velocidade da informação associada ao incremento de outras ferramentas de
facilitação de acesso ao Órgão Jurisdicional viabiliza que milhares de pessoas até então
postas à margem da tutela do Estado-juiz possam buscar proteção em relação a seus
direitos e interesses, o que vem causando uma verdadeira massificação de processos
judiciais, no mais das vezes relacionadas a questões meramente de direito que não
exigem qualquer dilação probatória e que cuidam-se de “casos repetidos”.
Se por um lado essa massificação evidencia a manifestação da democracia na
seara do processo, de outro, esconde um risco considerável, concernente à pluralidade
de decisões desencontradas e desconexas em todo território nacional, gerando um
ambiente de instabilidade e insegurança jurídica que, além de prejudicar o
jurisdicionado, retira qualquer grau de previsibilidade do comportamento estatal ante a
essas ações em massa, o que pode implicar em reflexos econômicos, políticos e sociais.
O risco dessas decisões proferidas sem compromisso de homogeneizar os
julgamentos na jurisprudência pátria também pode ser constatado no âmbito do texto
O ponta perna de pau, a que nos propomos abordar como paralelo à sociedade e a
prestação jurisdicional brasileiras.
Isso porque, assim como nossa sociedade, o menino, que nada tinha a ver com as
ofensas proferidas ao juiz de futebol Ataíde – comparado ao nosso Judiciário – fora ele
o vitimado da cusparada efetuada de encontro com a torcida, logo ele, que estava ali
alheio a toda aquela situação, acabou atingido pela cusparada descompromissada de
resultados proferida pelo Ataíde; aqui, a cusparada, pode representar os provimentos
jurisdicionais ou a produção judicial, exarados de maneira descompromissada com a
uniformização, de modo a gerar em todos que assistem ao jogo jurisdicional, um
verdadeiro ambiente de instabilidade, imprevisibilidade e insegurança jurídica, o que
malfere os mais basilares sustentáculos do Estado de Direito.
Objetivando combater essa realidade, assim como proporcionar maior celeridade
ao processo civil, cuja morosidade, também, pode estar relacionada ao excesso de
demandas semelhantes, o legislador, a doutrina e a jurisprudência tem caminhado no
nítido sentido de fortalecimento das decisões jurisprudenciais, de tal sorte a instituir
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ferramentas aptas a minimizarem decisões contraditórias que conturbam o fim-último
do processo, a pacificação social.
A propósito, chegada a hora de rompermos determinados dogmas para
passarmos a admitir uma mudança de postura imprescindível à resolução dos graves
problemas que assolam o jurisdicionado brasileiro, aproximando a realidade com os
alicerces do Estado substancialmente Democrático, dentre os quais, a entrega da
prestação jurisdicional célere, efetiva e justa.
REFERÊNCIAS
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realização de valores constitucionais. In: FUX, Luiz et al. (Coord.). Processo e
constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
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IMAGINAR A EXISTÊNCIA NA POESIA LITERÁRIA DE MIA COUTO1
B ERNARDO G.B. N OGUEIRA 2
RESUMO: O trabalho que ora nos propomos busca um diálogo entre a questão da
hospitalidade, a partir da reflexão do filósofo Jacques Derrida, a questão das
nomeações, que estão discutidas no pensamento de Alain Badiou e são prementes
quando pensamos os direitos humanos por um viés não hegemônico. Nesse
caminho, a partir do que Martin Heidegger nos permite perceber em sua
conferência sobre o poético, é que encontramos com o conto O embondeiro que
sonhava pássaros de Mia Couto. Nesse sentido, o dizer poético-literário nos
empresta imaginação bastante para refletir sobre o problema da discriminação,
aqui tratada com o termo “nomeação” e ainda, a questão da hospitalidade que
revela o limite imposto à imaginação do humano. A imaginação também nos
acompanhará neste diálogo, que pretende estabelecer uma prosa infinita com a
estrutura sem estrutura do homem. A partir das palavras da literatura de Mia
Couto, queremos alimentar a filosofia de Derrida e desembocar em uma
imaginação, que ademais, é o que realiza o humano, que “poeticamente habita a
terra”.
PALAVRAS-CHAVE: poesia, imaginação, alteridade, direitos humanos.
“Poeticamente o homem habita.” Esse verso do poema de Hölderlin é alvo de uma
análise filosófica feita por Martin Heidegger. Dentre as construções reflexivas deste
ideário, o que nos interessa é a reflexão acerca da colocação do homem no mundo
enquanto poesia. A reflexão inicia com a questão sobre se, de fato, o homem habita
poeticamente o mundo. A princípio, parece-nos, o homem não habita poeticamente o
1
2
Texto orginalmente publicado na Revista Diké do curso de Direito da UNIPAC/Itabirito.
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor do Centro
Universitário Newton Paiva.
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mundo, muito ao contrário. Talvez pudéssemos dizer que apenas os próprios poetas
quanto à sua maneira de existir estejam nessa condição.
Essa dimensão, a poética, restaria mesmo impedida de se manifestar dada a
colocação do homem em uma forma revestida e permeada pela técnica, o que dentro da
nossa perspectiva obnubila e não permite ao homem essa existência poética de que fala
o Hölderlin. No entanto, ao estarmos mais próximos destes dizeres, percebemos o
quanto é real a afirmação do poeta. Ao analisar o verso “poeticamente o homem habita”
Heidegger nos ensina que é apenas por força de uma existência, de um habitar o mundo
poeticamente, que então o seu contrário mostra-se possível. Percebemos uma
existência não-poética apenas pelo fato de que o próprio habitar é fundamentalmente
poesia. Assim, apenas foi possível ao poeta afirmar esse existir na poesia porque em sua
essência o homem habita poeticamente. Essa constatação pode ser lida nas palavras de
Heidegger:
E nós habitamos poeticamente? Parece que habitamos sem a menor
poesia. Se é assim, será mentirosa e não verdadeira a palavra do
poeta? Não. A verdade de suas palavras se confirma da maneira mais
inacreditável. Pois um habitar só pode ser sem poesia porque, em sua
essência, o habitar é poético. Um pedaço de madeira nunca pode ficar
cego [...] É possível que nosso habitar sem poesia, que nossa
incapacidade de tomar uma medida provenha da estranha desmedida
que abusa das contagens e medições (HEIDEGGER, 2012).
Uma vez percebida a idéia do habitar poético como sendo aquele que realiza o
humano, ou em melhores palavras, aquele que possibilita ao humano seu próprio
habitar o mundo, refletiremos acerca da relação entre o explicitado na poesia de
Hölderlin, por intermédio do pensamento de Heidegger, e a questão da hospitalidade
em Derrida, para alcançamos nosso ínterim que é o encontro com a imaginação poética
de Mia Couto, mais propriamente em seu conto: “O embondeiro que sonhava
pássaros”.
Assim ao nos encontrarmos com Derrida e sua frase: “Um ato de hospitalidade só
pode ser poético” parece estarmos no rastro do que nos propusemos aludir com o
percurso entre o poético, a hospitalidade, a alteridade e a imaginação. Se tomarmos em
conta o dizer de que “poeticamente o homem habita”, de alguma forma a relação entre
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a hospitalidade proposta por Derrida e esse dizer dialogam e se complementam no
encontro entre homens. Esse encontro, plural pela natureza mesma da diferença,
desemboca na construção imagética – o outro é então o lócus privilegiado em que a
transcendência mesma se realiza.
A idéia de uma “hospitalidade incondicional” proposta por Derrida nos coloca
próximos ao que entendemos como sendo aquilo que Holderlin expressou em sua
poesia. Ou seja, enquanto o outro deve ser recebido sem que antes haja mesmo uma sua
interpelação conceitual e institucional, a poesia, como espaço lingüístico onde habita o
homem, seria ela mesma aquilo que denota a incondicionalidade da alteridade. A
poesia, que não é além nem aquém do humano, pois é o local de medida com o divino,
comporta ele dentro de si, distante e próximo ao mesmo tempo.
Assim, “habitar poeticamente” é um habitar em que a “hospitalidade
incondicional” mesma já se realizara. Quando Derrida nos convoca a pensar uma
hospitalidade para além da hospitalidade, está a nos lançar para o terreno do poético
no qual o humano, fugido e distante da técnica legal que efetiva uma chamada
“hospitalidade condicional”, coloca-se na dimensão aludida por Heidegger. Ora,
enquanto Derrida diz da hospitalidade como um ato poético, que se dá na medida que
recebe o outro sem medidas, em uma comunhão infinita, podemos ao mesmo tempo
perceber que nessa direção caminha os dizeres de Heidegger face à estada do homem
no poético:
Quando e por quanto tempo acontece a poesia propriamente? [...]
Enquanto perdurar junto ao coração a amizade, Pura, o homem
pode medir-se sem infelicidade com o divino...[...] Enquanto perdurar
esse advento da benevolência, o homem tem a felicidade de medir-se
com o divino. Se esse medir-se acontece com propriedade, o homem
dita poeticamente a partir da essência do poético. Se o poético
acontece com propriedade, o homem habita esta terra humanamente,
“a vida do homem” que, como diz Hölderlin em seu último poema, é
uma “vida habitante (HEIDEGGER, 2012).
E já agora seria o momento de trazermos Mia Couto para esse diálogo infinito.
Infinito por se tratar de uma prosa em que a sombra do conceito cartesiano, impedidor
por si só de um habitar poético, sai de cena. A primeira frase do conto aludido acima
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inagura essa encenação: “Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória
será bastante para lhe salvar do escuro. Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu
país era vida” (Couto, 2013). É interessante perceber como o autor traz termos que
denotam toda a prisão que as nomeações infligem ao humano em sua existência. O sol
retira a possibilidade de vida na sombra. O país destina-se ao cidadão. A memória
conta a história que aprisiona a criação.
Nesse caminho, o primeiro passo de nossa interlocução de idéias esta na medida
em que esse tal “passarinheiro” nem nome possuía, o que necessariamente o liberta de
uma colocação pré-determinada. Isso seria já um problema para os habitantes
portugueses que o discriminavam. Discriminavam pelo simples motivo de não poderem
tomar esse humano dentro de um conceito. Essa impossibilidade esta colocada pela
ausência de imaginação, dir-se-ia mesmo de uma prisão, que “organiza” a sociedade e
impede o novo. Impede a vida dentro do escuro e fora do país. Locais nos quais “aquele
que vem”, o estrangeiro, como nos fala Derrida, habitam por natureza.
A estranheza ante aquele que foge aos conceitos é o que amolda as ações dos
habitantes do local em que chega o homem dos pássaros. E é de se observar que os
pássaros sempre estão fora do chão. Local por excelência de distinção entre homens: ése daqui ou de acolá. E nesse sentido, imaginar não seria possível aos homens “presos”
ao seu chão. Chão que se erguia quando passava o passarinheiro. Essa dimensão
imagética que inaugura um outro que não pode ser qualificado esta aqui:
à volta do vendedeiro, era uma nuvem de pios, tantos que faziam
mexer as janelas [...] e os meninos inundavam as ruas. As alegrias se
intercambiavam: a gritaria das aves e o chilreio das crianças. O
homem puxava de uma muska e harmonicava sonâmbulas melodias.
O mundo inteiro se fabulava (COUTO, 2013).
A poesia de Mia Couto nos convida à habitação poética a partir das crianças que
recebiam o vendedeiro sem peias qualquer. Enquanto isso os pais reprovavam as
invenções dele. Dizia-se que aquele homem “ensinava suspeitas aos seus pequenos
filhos”. E as crianças, solícitas “àquele que vem”, à invenção e à existência que é
imaginação, recebiam com amizade poética a novidade. A ideologia determinante
impregnada no ideário dos adultos do local ordenava que o novo fosse retirado dali.
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A imaginação, que é o local em que a hospitalidade incondicional habita, posto
que é ela mesma um impossível de previsão, restara conseguida apenas aos olhos das
crianças, seres que inventam e são passivos à novidade, posto que é assim a sua
existência mesma: um inventar contínuo, sem amarras da memória aprisionadora.
A fala dos adultos continua a se inscrever no cenário do logos que impede o
existir
poético.
Impede
a
“hospitalidade
incondicional”
quando
encerram
conceitualmente aquele humano, tomando-o pela sua condição, sua cor: “Foste a casa
dele? Mas esse vagabundo tem casa? A residência dele era um embondeiro, o vago
buraco do tronco.” (Couto, 2013). E a nomeação permanecia quando insistiam, em
contrário ao que nos diz Hölderlin, que a imaginação seria um não habitar, pois o
morador do embondeiro dizia absurdos às crianças, coisas como: “aquela árvore é
muito sagrada”.
Como nos permite reconhecer Heidegger a partir de Hölderlin, o homem habita
poeticamente quando se mede com o divino. Essa seria a percepção mesma do mundo
do “passarinheiro”: “aquela árvore – como dizia o passarinheiro – era muito sagrada,
Deus plantara de cabeça pra baixo” (COUTO, 2013, grifo nosso).
Os pássaros, “todos os que no chão desconhecem morada” nos dizeres de Mia
Couto, seriam o anúncio dessa relação com a divindade, talvez porque espacialmente
estão mais próximos daquilo que a imaginação permite enxergar do divino. Assim, todo
esse novo que é revoada do existir, que é a medida do belo, trazia aos adultos um
incômodo. Não aquele que duvida pra alcançar a pureza. Mas o incômodo que é
obstáculo para a poesia. Essa ausência de imaginação tornara-se impossibilidade
mesma de viver. As crianças, ao invés, viviam a poesia dos pássaros. E a beleza, que é
indizível, continuava a assombrar os adultos.
Afinal, os colonos ainda que hesitaram: aquele negro trazia aves de
belezas jamais vistas. Ninguém podia resistir às suas cores, seus
chilreios [...] Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele
tão maravilhosas criaturas? Onde, se eles tinham já desbravado os
mais extensos matos? (COUTO, 2013).
O “outro que vem”, o estrangeiro, sofre com a austeridade do eu que quer a tudo
conformar. “Os senhores receavam as suas próprias suspeições – teria aquele negro
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direito a ingressar num mundo onde eles careciam de acesso?” (COUTO, 2013). Parece
que Mia Couto se referia ao medo, tema tão corrente em sua poesia, e que como afirma
o próprio autor, cria os maiores perigos quando disseminado. Em nosso caso, o medo
da imaginação, do desconhecido, acaba por criar a discriminação. A diferença seria o
caminho pra imaginar, pra então, habitar a poesia incondicional daquele hóspede
inesperado e desconhecido.
Esse “chegante” que altera a ordem traz a possibilidade da imaginação. Imaginar
amistosamente seria o acesso à existência poética. Mas a perturbação e o assombro dos
adultos mostram exatamente a ideologia da naturalização que cria os preconceitos. Ao
contrário, as crianças apenas se realizam na inventividade, por isso são divinas e
poéticas. Os adultos cuidavam de tentar manter a ordem. Manutenção que é marca das
discriminações de toda ordem, e, por conseguinte, da eliminação do que é criado.
Assim, ao invés da novidade habitar a existência dos adultos colonos, eles se
sentiam incomodados com aquela nova linguagem, e por não entender, preferiam
tomá-la como um problema: “Aquela música se estranhava nos moradores, mostrando
que aquele bairro não pertencia àquela terra. Afinal, os pássaros desautenticavam os
residentes, estrangeirando-lhes?” (COUTO, 2013).
Ademais, a questão do estrangeiro nos remete mesmo a Édipo, o dos pés furados,
que também sempre fora um estrangeiro onde chegara. Para essa relação vemos os
colonos a dizer sobre o passarinheiro: “O comerciante devia saber que seus passos
descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se inquietavam com aquela
desobediência, acusando o tempo. Sentiam ciúmes do passado, a arrumação das
criaturas pela sua aparência” (COUTO, 2013). Essa fala explicita o que chamamos de
naturalização, ou seja, a manutença de uma estrutura como se fosse a única correta e
factível. Mais uma vez a imaginação se perde, e poesia não há, tampouco, habitação
nela.
E nesse mar de invenção naquele bairro, as crianças davam testemunho daquilo
que Aganbem chamara de “profanação”. Essa “profanação” se dava na medida em que
as crianças se colocavam distraídas ante os conceitos e da própria situação vivida, e
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acolhiam poética e incondicionalmente o passarinheiro como se pertencesse a eles. Os
pais logo se voltariam contra essa profanação, sobretudo face um termo tão caro às
ideologias:
Até os meninos, por graça de sua sedução, se esqueciam do
comportamento. Eles se tornavam mais filhos da rua que de casa. O
passarinheiro se adentrara mesmo nos devaneios deles: - Faz conta eu
sou vosso tio. As crianças emigravam de sua condição, desdobrandose em outras felizes existências. E todos se familiavam, parentes
aparentes. [...] Os pais lhe queriam fechar o sonho, sua pequena e
infinita alma (COUTO, 2013).
Resta claro que a profanação das crianças figura no terreno do poético, da
imaginação, do devaneio, como nos fala Mia Couto. Assim, essa colocação seria mesmo
aquela que permite a existência poética. Imaginar-se medido com o divino que tudo
pode, inclusive, imaginar.
Essa autêntica revolução, que também inaugura um novo tempo, não passaria
indene pelas pestanas adormecidas dos colonos. Logo foi dado um comando para
acabar com a novidação que o passarinheiro trazia. A ordem do local pedia. A ausência
da imaginação também. Daí que partiu uma comissão de colonos para acabar com o
incômodo. A criança logo foi tentar salvá-lo. Era talvez a tentativa desesperada de
salvar a si mesmo, o fim do passarinheiro selaria o fim da imaginação, o rito de
passagem da criança para o adulto. Preso em conceitos e ordenações.
No entanto, assim se deu. Prenderam e utilizaram a força contra o inventor de
existências. O passarinheiro ainda quis tocar sua harmônica, mas as agressões não lho
permitiram. Seria o fim dos passarinhos. O fim da invenção. O policial, para se
assegurar disso lançou fora a “gaita de beiço” e o passarinheiro silenciou. A estrutura de
uma existência racional voltaria a se estabelecer. O som do passarinheiro não mais
ecoaria. Contudo, o passo nosso é em busca da imaginação e Mia Couto não hesitou em
nos abraçar com um enredo próprio dessa categoria – a da poesia que inaugura uma
relação com a divindade.
Assim, convocando mais uma vez Hölderlin, vemos a idéia da amizade entre a
criança e o passarinheiro da imaginação a realizar esse existir poético, pois o poeta traz
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um verso em que nos diz: “Enquanto durar junto ao coração a amizade...” que
Heidegger analisa a dizer que “junto ao coração” e não “no coração”. “Junto ao coração”
significa o que advém nessa essência do homem de ser aquele que habita, o que advém
como apelo da medida junto ao coração de tal maneira que o coração se volte para essa
medida. Enquanto perdurar esse advento da benevolência, o homem tem a felcidade de
medir-se com o divino” (HEIDEGGER, 2012).
Nessa senda de imaginação, quando o policial lança fora a gaita, o menino a
apanha e sai realizando essa existência imaginada pelo prisioneiro. E assim, nessa
relação com seu instrumento, que traz divindade quando tocado, retornou mais uma
vez ao tronco, habitação do passarinheiro:
O menino se enroscou aquecido em sua própria redondura. Enquanto
embarcava no sono levou a muska à boca e tocou como se fizesse o seu
embalo. Dentro, quem sabe, o passarinheiro escutasse aquele
conforto? Acordou num chilreio. Os pássaros! Mais de infinitos,
cobram toda a esquadra. Nem o mundo, em seu universal tamanho,
rea suficiente poleiro (COUTO, 2013).
Ao regressar ao tronco o menino habitara a aludida existência poética, pois
musicalmente media-se aos deuses. A hospitalidade do tronco se dera ao menino como
um leito. A morada inventada do passarinheiro recebera seu hóspede em imensa
hospitalidade, incondicional, guardando ali toda a imaginação trazida pelos pássaros,
deixando pra trás toda a verdade dos adultos.
O mundo era ali, e ao viver no tronco, o menino mais uma vez sonhou.
Adormeceu até que os adultos, presos à ideologia que não deixa viver a poesia, atearam
fogo no tronco. “O sacana do preto está dentro d árvore [...] É o gajo mais a gaita.
Toca, cabrão, que já danças! As tochas chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas
cascas” (COUTO, 2013).
Poderia ser o fim do menino. Na realidade dos adultos seria o fim do preto. Na
realidade eles nunca houveram de acessar fundamentalmente o real. Pois o poético se
dá apenas quando “perdurar junto ao coração a amizade”. Assim, por não serem
capazes da imaginação, feriram de morte seu próprio filho, que em verdade, não seria
mesmo filho daqueles colonos, posto que era fruto da imaginação, e se é assim, vive-se
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apenas por ela e nela. Daí que Mia Couto pôde encerrar assim seu conto, de maneira
que possamos perceber que habitar o poético de maneira hospitaleira e infinita é
possível apenas às crianças desenvoltas dos limites racionais do logos. Morre-se pra
viver.
Dentro – do tronco -, o menino desatara um sonho: seus cabelos se
figuravam pequeninas folhas, pernas e braços se madeiravam. Os
dedos, lenhosos, minhocavam a terra. O menino transitava de reino:
arvorejado, em estado de consentida impossibilidade. E do sonâmbulo
embondeiro subiam as mãos do passarinheiro. Tocavam as flores, as
corolas se envolucravam: nasciam espantosos pássaros e soltavam-se,
petalados, sobre a crista das chamas. As chamas? De onde chegavam
elas, excedendo a lonjura do sonho? Foi quando Tiago – a criança –
sentiu a ferida das labaredas, a sedução da cinza. Então, o menino,
aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes
(COUTO, 2013, grifo nosso).
O novo mundo o recebeu por imaginação em incondicional hospitalidade, feito
poesia.
REFERÊNCIAS
COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. 1. ed. São Paulo: Comp. das Letras, 2013.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências, 8. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança
Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012.
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O TRIBUNAL KAFKIANO E OS SEUS JURISTAS:
QUEM DIZ O DIREITO EM O PROCESSO?
E DUARDO DE C ARVALHO R ÊGO 1
RESUMO: Embora o filósofo francês Michel Foucault tenha apresentado ao mundo
a microfísica do poder em sua versão final, anos antes ela já podia ser vista nas
histórias do escritor tcheco Franz Kafka. Em obras como O processo, Na colônia
penal, O veredicto e O castelo, para citar apenas algumas, identifica-se o exercício
ininterrupto do poder disseminado na sociedade, a tal ponto de ser possível afirmar
que quase tudo advém das relações de poder. Nesse contexto, o próprio Direito –
que serve de pano de fundo para várias obras de Kafka – é vazio e se materializa
apenas nos arranjos ou favores que autor e réu de um processo conseguem
conquistar a seu favor. A constatação de que os códigos jurídicos de O processo
contêm nada mais do que figuras pornográficas demonstra a própria
insubstancialidade da lei, que, como todas as outras figuras jurídicas, é apenas uma
invenção ou idealização daqueles que dão suporte a esta grande farsa, que é o
Direito. Com Kafka, chega-se à conclusão de que os grandes e característicos
símbolos jurídicos são meras ficções – tal como os quadros pendurados nas
paredes do advogado de Josef K., que retratam juízes baixinhos como verdadeiros
gigantes – e que os verdadeiros tribunais e juristas se localizam “nos bastidores” da
Justiça: em ateliês de pintura, em cortiços humildes, em porões ou quartinhos
escondidos nos fundos de repartições públicas, etc.
PALAVRAS-CHAVE: Kafka; direito; tribunal; juristas.
1
INTRODUÇÃO
Desde pequeno, Kafka queria ser escritor, mas, ao se deparar com a escolha por
um curso universitário, fez a vontade do pai e se matriculou na Faculdade de Direito2.
1
Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC;
Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL; Bacharel
em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.
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Ainda bem, pois foi como advogado de meio período da Companhia de Seguros de
Acidentes de Trabalho de Praga que ele pôde vivenciar, de perto, o dia-a-dia do Direito
– que se tornou a partir de então pano de fundo para boa parte de sua obra – sem
deixar de se dedicar diariamente à sua verdadeira paixão: a literatura.
É importante ressaltar, contudo, que Kafka odiava o emprego, conforme pode ser
lido em seu diário pessoal:
O meu emprêgo é-me insuportável pelo fato de contrariar o meu único
desejo e a minha única vocação, que é a literatura. Como eu sou
sòmente literatura, e como não desejo nem posso ser coisa diversa, o
meu emprêgo jamais poderá atrair-me, apenas poderá ao invés disso
destruir-me inteiramente [...]. Poderia indagar-me a razão pela qual
não deixo êste êmprego – não tenho fortuna – e por que não tento
tirar a minha subsistência dos meus trabalhos literários. Apenas
poderia então apresentar esta mísera resposta de que não disponho
dessa fôrça e que, na proporção em que posso encarar o meu estado
em tôda a sua extensão, há maiores possibilidades de que o meu
emprêgo me destrua, é certo, com muita rapidez.3
É claro que a aversão em relação ao próprio emprego influenciou a opinião crítica
acerca do Direito, mas Kafka era muito inteligente e fez questão de aproveitar a sua
experiência profissional para observar o modo pelo qual o Direito se manifestava na
sociedade de seu tempo. Uma boa ideia do local de trabalho de Kafka é dada por
Leandro Konder:
2
3
Segundo relata o amigo Max Brod, “Após concluir o Ginásio [Kafka] havia estudado Química por
quatorze dias, depois Germanística (um semestre), depois Direito; este último como um recurso em
caso de urgência, sem vocação, igual a muitos de nós. Um projeto com Paul Kisch de continuar os
estudos germanísticos em Munique não foi realizado. O estudo do Direito foi iniciado entre suspiros,
como a carreira menos definida, que não levava à meta alguma ou que, por abarcar uma maior
diversidade de objetivos (advocacia, postos burocráticos, etc.), postergava a decisão por uma delas e não
reclamava, em consequência, uma vocação especial [...]. Segundo a ‘Carta ao pai’, a escolha da carreira
foi, ademais, produto do triunfo daquele, pois a carreira era ‘o principal’.” Tradução livre de: “Al
concluir el Gymnasium había estudiado Química durante catorce días, luego Germanística (un
semestre), después Derecho; esto último como recurso en caso de urgencia, sin vocación, al igual que
más de uno de nosotros. Un proyecto con Paul Kisch de continuar los estudios germanísticos en Munich
quedó sin realizar. El estudio del Derecho fue iniciado entre suspiros, como la carrera menos definida,
que no llevaba a meta alguna o que, por abarcar la mayor diversidad de metas (abogacía, puestos
burocráticos, etc.), postergaba la decisión por una de ellas y no reclamaba, en consecuencia, una
vocación especial [...]. Según la ‘Carta al padre’, la elección de carrera fue, además, producto del triunfo
de aquél, pues la carrera era ‘lo principal’” (BROD, 1974, p. 44).
KAFKA, 1964, p. 96.
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O Instituto do Seguro Operário contra Acidentes do Trabalho era uma
criação bastante típica da monarquia dos Habsburgos e da burocracia
praguense: era uma empresa racionalizada, hierarquizada, na qual a
técnica e a organização tinham aos poucos se afastado da finalidade
original de servir aos sêres humanos e tinham criado um monstro
mecânico que se movia sozinho.
No Instituto, a ordem estava posta a serviço do absurdo. As operações
do serviço eram cuidadosamente planejadas e executadas sob rigoroso
controle, porém não tinham sentido. 35.000 fábricas encaminhavam
seus empregados acidentados à organização: eles eram recebidos e
transformados em fichas; em seguida, as fichas começavam a passar
de sala em sala, se punham a percorrer intermináveis corredores e
acabavam estacionando em arquivos cheios de mofo, enquanto os
operários necessitados aguardavam, pacientemente, uma solução para
os seus problemas. O próprio prédio onde o Instituto estava instalado
já dava uma idéia do seu funcionamento: suas janelas inúteis, suas
portas sem função alguma, seus corredores tortuosos e abafados
constituíam, no conjunto, um ambiente de pesadelo do qual Kafka
jamais se esqueceu.4
A experiência profissional de Kafka autorizou o entendimento de que o âmbito
jurídico é um grande sistema burocrático que despersonaliza, ou melhor, desumaniza
os agentes do poder. E é notório que tal entendimento se refletiu integralmente na obra
literária kafkiana. Em O processo, é como se os juízes – totalmente inacessíveis a
ambas as partes de um processo – sequer existissem de fato; é como se eles fossem
apenas lendas ou mitos. Os códigos jurídicos, que deveriam trazer a letra da lei, de
modo a atender aos anseios de toda a população, são nada mais nada menos do que um
aglomerado de figuras pornográficas de mau gosto que distraem os prolatores de
sentenças. Da mesma forma, os tribunais superiores são objeto de várias histórias
grandiosas, que garantem a alguns advogados influentes um bom nome perante a
sociedade, proporcionando-lhes, inclusive, um elevado número de clientes. Mas o que
se conhece, ou o que é “real”, na verdade, são apenas os cortiços – paupérrimos e
habitados por gente muito humilde – nos quais estão instaladas as salas de audiências
em meio à mobília desgastada dos inquilinos.
Dizem que O processo é uma obra inacabada. Tudo bem, admitindo-se que, ao
menos sob o aspecto formal, realmente ela o seja, o fato é que todos os elementos
4
KONDER, 1974, p. 32-33.
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necessários para compreender o que significava o Direito para o autor tcheco estão ali.
Desde a detenção de um homem de pijamas na manhã de seu trigésimo aniversário até
o açoitamento de um criado num quartinho escuro, o Direito, em Kafka, age
sorrateiramente, por intermédio de figuras que, embora tecnicamente não possam ser
classificadas como juristas, dão impulso a todos os processos judiciais: é o advogado
que tenta fazer uso de sua influência perante o Tribunal; o pintor que tenta negociar
um atraso no processo; a lavadeira que põe fim a uma audiência; a secretária que indica
os caminhos ao acusado; enfim, são esses personagens, tidos por secundários, que dão
vida ao processo, ao tribunal e, óbvio, ao Direito.
2
A QUESTÃO DO PODER EM KAFKA
Décadas antes da conceituação foucaultiana de poder, levada ao conhecimento do
grande público por meio da célebre obra Vigiar e punir, o escritor tcheco Franz Kafka
já retratava em sua obra a microfísica5 da qual falava o filósofo francês. Em histórias
como A metamorfose, Um artista da fome, O veredicto, Na colônia penal, O castelo e
O processo, pode-se contemplar o poder como estudado por Foucault: sendo praticado
no interior dos diversos segmentos da sociedade. É que o poder, em Kafka, longe de ser
uma via de mão única, pressupõe a atuação consciente e voluntária dos dois pólos
antagônicos de qualquer relação e pode ser visto, por exemplo, na opressão exercida
pelo pai sobre o filho ou pelo filho sobre o pai, nas uniões pessoais ou profissionais que
se formam por mútuo interesse, nas mais corriqueiras trocas de favores, nas influências
5
Nas palavras do próprio Michel Foucault, “[...] o estudo desta microfísica supõe que o poder nela
exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de
dominação não sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a
técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em
atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha
perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio. Temos em
suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é o “privilégio” adquirido ou
conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas – efeito
manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados. Esse poder, por outro lado,
não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que ‘não têm’; ele os
investe, passa por eles e através deles; apóia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse
poder, apóiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança” (FOUCAULT, 2003, p. 26).
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que determinados indivíduos exercem sobre outros nas pequenas ou grandes decisões a
serem tomadas no dia-a-dia, nas relações sexuais que se praticam etc.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior enxergou essa relação entre a literatura de
Kafka e a filosofia de Foucault:
Nas histórias de Kafka, podemos visualizar o funcionamento daquela
microfísica do poder da qual Foucault nos deu a descrição histórica.
Poder que atua tanto de forma ascendente, como descendente. Poder
que, embora se cristalize em instituições como o tribunal, não existe
fora das relações sociais, sendo imanente a elas. O poder como
exercício, não como coisa. O poder que circula em todas as direções,
que é prática produtora de sentido, que se inscreve nos corpos, que os
torna sujeitos e que os assujeita. As engrenagens em que se vêem
presas, são as maquinações do poder. Porque este maquina, no
sentido de produzir conexões e desarticulações, continuidades e
rupturas, fluxos e cortes. [...] Nos escritos de Kafka a questão do poder
aparece descrita em práticas como as de erguer e abaixar a cabeça,
olhar ou não nos olhos ou no rosto.6
Não é exagerado dizer que, em O processo, Kafka apresenta o direito como
grande agenciador do poder dentro da sociedade, pois todas as relações nas quais os
personagens estão envolvidos parecem ser relações jurídicas. E o mais curioso é que,
embora o Direito esteja representado ou encarnado em grandes instâncias de poder,
como o Pai, o Advogado, o Juiz, o Tribunal, etc., somente é possível percebê-lo
verdadeiramente no interior da sociedade, de forma disseminada.
Ora, uma leitura mais atenta e abrangente da obra kafkiana conduz ao
entendimento de que o mundo jurídico de petições e ofícios, de pastas e arquivos, de
gavetas e armários é compreendido apenas pelos seres inatingíveis – geralmente altos
funcionários que gozam de um nível superior tão elevado que ninguém é capaz de,
sequer, contemplá-los pessoalmente.
Em O castelo, por exemplo, todos os habitantes da aldeia na qual se passa a
história vivem praticamente para o castelo, ainda que nunca tivessem estado lá. E não é
só isso. Todos aqueles que trabalham diretamente para o castelo são tidos como figuras
elevadas, inatingíveis. Ocorre que essas figuras, esses altos funcionários, jamais são
6
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2004, p. 22-23.
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vistos. A adoração a eles acontece mais por conta da crença na função do que
propriamente por sua existência física.
No romance, o agrimensor K., personagem principal, tentou de todas as formas
chegar ao seu superior imediato, Klamm – um alto funcionário do castelo que definia
os afazeres do seu subordinado. K. chegou até mesmo a contrair noivado com uma
suposta ex-amante de Klamm, de nome Frieda. Foi numa de suas conversas com a
noiva que K. questionou a moça sobre a possibilidade de que se arranjasse um encontro
entre ele e o alto funcionário. A resposta de Frieda foi seca e incisiva:
– É impossível – disse Frieda levantando-se um pouco e pressionando
o corpo contra K. – Que idéia!
– É necessário – disse K. – Se eu não o conseguir, você precisa fazê-lo.
– Não posso, não posso – disse Frieda. – Klamm nunca irá falar com
você. Como pode simplesmente acreditar que ele vá falar com você!
– E com você ele falaria? – perguntou K.
– Também não – disse Frieda. – Nem com você, nem comigo; são
coisas simplesmente impossíveis.7
A partir da negativa de Frieda pode-se começar a duvidar da existência real
desses indivíduos superiores.
Jane Bennett diz que “o próprio Klamm pode ser apenas uma sombra (as
descrições que os aldeões fazem sobre ele variam muito e ninguém de dentro do castelo
se lembra ao certo de um homem chamado Klamm)”8. Ele e outros personagens
poderosos seriam, talvez, apenas idealizações daqueles que idolatram ou admiram o
que eles representam.
Essas idealizações não seriam simplesmente devaneios coletivos dos habitantes
de uma sociedade, mas, sim, produção advinda das relações de poder cultivadas no
quotidiano. A figura do pai, por exemplo, é criada a partir do momento em que ele
exerce poder sobre os filhos e na medida em que os filhos o aceitam como pai; a figura
do rei é criada a partir do poder que ele exerce sobre os súditos e na medida em que os
súditos ficam fascinados com o poder. Aos poucos, torna-se difícil imaginar a vida sem
7
8
KAFKA, 2000, p. 78.
BENNETT, 1991, p. 75. Tradução livre de: “Klamm himself may be only a shadow (villagers’ descriptions
of him vary and none resembles the man called Klamm inside the Castle)”.
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o pai, o rei, o patrão ou o funcionário. Enfim, é difícil imaginar a vida sem o ente
superior.
No momento em que se embasa a participação do indivíduo na sociedade em
finalidades ditas “maiores”, como, por exemplo, a burocracia, o emprego, a família, o
amor, a lei, ou Deus, a vida humana pode passar a ser vista como útil e cheia de
significações, em vez de ser vista como vazia e sem sentido. Na verdade, talvez seja esse
incômodo vazio que crie a necessidade dos entes superiores.
3
A INSUBSTANCIALIDADE DA LEI E A FARSA DO DIREITO
Mas, justamente por ser uma idealização, a lei kafkiana é insubstancial, vale
dizer, não possui conteúdo. Em outras palavras: a lei só é válida se proporcionar o
espetáculo punitivo9. E, obviamente, não é novidade que a lei sempre precisou de um
mecanismo de punição para se fazer conhecer. Uma lei que proíbe alguma conduta e
que não prescreve uma sanção, via de regra, é ineficaz, impotente. Para se tornar eficaz,
a lei, na imensa maioria das vezes, necessita prescrever também um castigo para o seu
infrator, uma pena. Há, na verdade, praticamente uma impossibilidade de separar a lei
da ideia de castigo. Se essa separação é efetuada, a lei é sensivelmente enfraquecida.
Esvai-se a crença dos cidadãos em sua eficácia: dá-se a sua desmistificação. A lei,
enquanto representante do poder estatal, é imbuída de um caráter extra-ordinário. Ela
9
Em Na Colônia Penal, o operador da máquina narra ao oficial estrangeiro, de forma empolgada, a
beleza dos antigos espetáculos punitivos: “– [...] Como era diferente a execução nos velhos tempos! Já
um dia antes o vale inteiro estava superlotado de gente; todos vinham só para ver; de manhã cedo o
comandante aparecia com as suas damas; as fanfarras acordavam todo o acampamento; eu fazia o
anúncio de que estava tudo pronto; a sociedade  nenhum alto funcionário podia faltar  se alinhava em
volta da máquina [...]. A máquina, polida pouco antes, resplendia; praticamente a cada execução eu
dispunha de peças novas. Diante de centenas de olhos  todos os espectadores ficavam nas pontas dos
pés até aquela elevação  o condenado era posto sob o rastelo pelo próprio comandante [...]. E então
começava a execução! Nenhum som discrepante perturbava o trabalho da máquina. Muitos já nem
olhavam mais, ficavam deitados na areia com os olhos cerrados; todos sabiam: agora se faz justiça [...].
Bem, então chegava a sexta hora! Era impossível atender a todos os pedidos para ficar olhando de perto.
O comandante, com a visão que tinha das coisas, determinava que sobretudo as crianças deviam ser
levadas em consideração; eu no entanto podia permanecer lá graças à minha profissão; muitas vezes
ficava agachado no lugar com duas crianças pequenas no colo, uma à esquerda e outra à direita. Como
captávamos todos a expressão de transfiguração no rosto martirizado, como banhávamos as nossas
faces no brilho dessa justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia! Que tempos aqueles, meu
camarada!” (KAFKA, 1998, p. 49-50).
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é vista como panacéia. Todos querem a lei. Não se pode, entretanto, esquecer que a lei,
na abordagem kafkiana, é também uma daquelas instâncias poderosas idealizadas pelo
ser humano. Ela existe, mas é impalpável, inatingível. A lei é, por um lado, uma criação
do próprio homem e, por outro, já desde há muito, objeto autônomo de adoração. A lei
tornou-se ente poderoso, inatingível e ao mesmo tempo difundido nos interiores da
sociedade, dando-se, assim, a sua materialidade.
Toda relação de poder pressupõe uma opressão de um lado e alguém que a aceita
do outro. A lei dita normas, prescreve castigos e o homem as acata; no fundo, as deseja.
Kafka utilizou-se desta ideia em sua obra. Mas esse desejo não deve ser interpretado de
maneira errônea. Deleuze a Guattari advertem que
Estaríamos evidentemente equivocados se compreendêssemos aqui o
desejo como um desejo de poder, um desejo de reprimir ou mesmo de
ser reprimido, um desejo sádico e um desejo masoquista. A idéia de
Kafka não está aí. Não há um desejo de poder, é o poder que é desejo.
Não um desejo-carência, mas desejo como plenitude, exercício e
funcionamento: até em seus oficiais mais subalternos. Sendo um
agenciamento, o desejo constitui unidade estrita com as engrenagens e
as peças da máquina, com o poder da máquina. E o desejo que alguém
tem pelo poder é apenas sua fascinação diante dessas engrenagens,
sua vontade de fazer andar algumas dessas engrenagens, de ser ele
mesmo uma dessas engrenagens  ou, à falta de coisa melhor, de ser
material tratado por essas engrenagens, material que é ainda, a seu
modo, uma engrenagem10.
A lei, então, exerce seu poder exatamente na medida em que o homem o aceita.
Mas em nome de quê ocorre essa aceitação? Jeanine Nicolazzi Philippi busca esta
resposta em sua leitura cruzada entre o Direito e a psicanálise. Ela diz que o homem se
submete ao domínio da lei em nome do pai:
As estruturas sociais, políticas e jurídicas, de fato, não existem por si
mesmas; mas são sempre habitadas e modeladas por seres humanos
que lhes dão vida e significação. Essas marcas a teoria psicanalítica
ajuda a decifrar mediante a tematização de um ser desejante,
implicado no estabelecimento do laço social  uma relação de
alteridade de tipo libidinal e ambivalente, que pode ser compreendida
a partir de pares antinômicos como: aproximação/distanciamento,
amor/ódio, segurança/perseguição etc., tradutores de movimentos
10
DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 83.
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afetivos que permitem ao ser humano ancorar em outrem a satisfação
de seus desejos, fantasias e medos. Essa metáfora coloca em cena a
capacidade do inconsciente de impor a sua ordem, dogmática ab
origine, que não é outra senão aquela sustentada na remissão a um
terceiro excluído  representante da ficção da função paterna que
preside a reprodução, não meramente biológica, mas sobretudo
simbólica, da espécie humana  através do qual se pode, enfim,
estabelecer a conexão entre a legalidade subjetiva e a origem da lei da
Cidade, pronunciada a partir da tradição romano-medieval, em nome
do pai11.
Interessante traçar aqui um paralelo com a realidade kafkiana. A figura paterna
na vida e na obra de Kafka sempre representou uma instância de poder, talvez a maior
de todas. Seu próprio pai era considerado, segundo o autor, uma espécie de tirano. Não
se pode ignorar também a importância do pai em alguns textos de Kafka. Em O
veredicto, é o pai quem condena à morte, por afogamento, o próprio filho. Também em
A metamorfose o pai tem um papel importante. Neste texto é o pai quem vai atirar uma
maçã – e esta se alojará no corpo de Gregor, já metamorfoseado em inseto –, que com o
passar do tempo, vai conduzir seu filho à morte.
A lei é um grande símbolo, válido somente na medida em que é praticado, não
possuindo uma existência autônoma capaz de justificá-la fora das relações sociais. Ou
seja, a lei não é um ente metafísico, mas empírico: só é válida enquanto difundida no
interior da sociedade. E, por ser assim, não se pode deixar de perceber que o próprio
Direito é uma grande farsa, pois não está escorado no tradicional brocardo jurídico que
proclama ser justo dar a cada um o que é seu, mas, sim, num outro, que garante
benefícios àqueles que tem mais condições de exercer poder nas relações
intersubjetivas.
4
O TRIBUNAL KAFKIANO E OS SEUS JURISTAS
Em O processo, com base nas conversas entre K. e o advogado, fica claro que o
resultado final de um processo depende muito das influências externas à causa. Não é
propriamente com fundamento na lei que se irá decidir pela culpa ou a inocência de um
11
PHILIPPI, 2001, p. 154-155.
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indivíduo. O que irá determinar o seu futuro, na verdade, são as relações em que está
atuando. O leitor é levado a acreditar, em um primeiro momento, que são apenas as
relações e as trocas de favores entre advogados, juízes, promotores públicos e outros
funcionários do Poder Judiciário que são realmente decisivas para o resultado de
qualquer processo. Nesse contexto, um indivíduo que constituísse um advogado
influente e com boas relações dentro do Tribunal estaria praticamente garantindo um
resultado conveniente ao seu caso. O advogado de Josef K. tem uma boa relação com os
funcionários da Justiça, o que, certamente, segundo os comentários do Dr. Huld,
ajudaria o cliente em seu processo. De acordo com o narrador kafkiano,
Valor real só têm relações pessoais honradas, na verdade com
funcionários mais graduados, o que naturalmente significa apenas
funcionários mais graduados do escalão inferior. Só assim se pode
influenciar a continuidade do processo, embora a princípio de modo
imperceptível, mais tarde porém de maneira cada vez mais nítida. É
claro que só poucos advogados conseguem isso, e neste caso a escolha
feita por K. foi muito oportuna. Talvez um ou dois advogados mais
poderiam se credenciar com relações semelhantes às do dr. Huld12.
Nesse sentido, é relevante o modo como o Dr. Huld ficou sabendo do processo de
K. Antes mesmo da visita do acusado e de seu tio ele já havia tido notícias do processo
nos bastidores do Poder Judiciário:
 Eu sou advogado, circulo nos meios judiciais, ali se fala de diversos
processos, e os que chamam mais a atenção ficam guardados na
memória, sobretudo quando dizem respeito ao sobrinho de um amigo.
Não há nada de estranho nisso13.
Com o desenrolar da narrativa, o que se percebe, no entanto, é que não são
apenas as relações de poder advindas do Poder Judiciário que auxiliam na obtenção do
resultado de um processo judicial. Relações mais simples, que envolvem indivíduos
anônimos, também podem ser decisivas para o sucesso ou o fracasso de um processado.
Assim, é significativo que o Tribunal se localize no interior de casas populares. Em O
processo, a convivência, as trocas de favores, a prestação de serviços ou as relações
sexuais entre os chamados “homens do Direito” e as pessoas comuns se dá, a qualquer
12
13
KAFKA, 2003, p. 144-145.
Id., p. 129.
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hora do dia, quase que naturalmente, a ponto de se poder afirmar que não há, no
romance de Kafka, uma perfeita distinção entre o dia-a-dia do Poder Judiciário e o
quotidiano das pessoas comuns. Ao contrário do que se poderia pensar, a atuação do
Poder Judiciário não obsta as atividades das pessoas comuns, na mesma medida em
que os afazeres das pessoas comuns não atrapalham as tarefas realizadas pelo Poder
Judiciário. Aliás, o que ocorre é exatamente o contrário, pois os representantes do
Tribunal e as pessoas comuns influenciam-se mutuamente a todo o momento. Mais
ainda: os dois âmbitos realizam atividades complementares. Isso pode ser traduzido da
seguinte maneira: as relações de poder existentes entre os representantes dos dois
meios proporcionam a condução dos processos judiciais dos indivíduos. São os meios
judiciais, em conjunto com os meios sociais, que, em última análise, difundem, por
todos os cantos, a culpa do homem processado. Assim, afigura-se importante que um
acusado possua não somente um advogado influente e com boas relações no Tribunal,
como também pessoas anônimas  e oficialmente desvinculadas ao Poder Judiciário 
simpatizantes de sua causa.
Já na sua primeira ida à casa do advogado, K. conhece Leni, a empregada. Por sua
causa, ele abandona a conversa que vinha mantendo com o tio, o advogado e um alto
funcionário do Poder Judiciário – o Chefe de Cartório –, sob a alegação de ir ver o que
tinha acontecido na sala, após ouvir um ruído:
Mal tinha entrado na ante-sala e procurava se orientar no escuro,
quando, sobre a mão com que ainda segurava a porta, se colocou uma
pequena mão, muito menor que a de K., e fechou silenciosamente a
porta. Era a enfermeira, que havia esperado ali.
– Não aconteceu nada – cochichou ela –, só atirei um prato contra a
parede para fazê-lo sair.
No seu embaraço, K. disse:
– Também pensei na senhora14.
A atuação de Leni no processo de K. é indireta, mas relevante. Foi ela quem
explicou para o K. o significado de um dos quadros do gabinete do advogado. Era o
retrato de um Juiz:
14
Id., p. 132-133.
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Representava um homem com uma toga de juiz, estava sentado numa
cadeira alta em forma de trono, cujos dourados se destacavam em
vários pontos do quadro. O incomum era que esse juiz não estava
sentado com calma e dignidade, mas premia com firmeza o braço
esquerdo no espaldar e no braço da cadeira, mantendo, porém, o
direito completamente livre, e agarrava o braço da cadeira só com a
mão, como se no instante seguinte quisesse saltar, com uma virada
impetuosa e talvez indignada, para dizer algo decisivo, ou então para
proferir a sentença. Sem dúvida podia-se imaginar o réu ao pé da
escada, cujos degraus mais altos, cobertos por um tapete amarelo,
ainda podiam ser vistos no quadro15.
O Juiz, sem dúvida, é tido como uma das figuras poderosas de O processo, pois é
ele quem possui, na teoria, a prerrogativa de comandar e decidir os processos judiciais.
Entretanto, no romance, existem diversas espécies de juízes, que são discerníveis de
acordo com o seu nível. Josef. K. já havia tido a oportunidade de conhecer e confrontar
um Juiz de instrução – provavelmente um daqueles de nível mais baixo do Tribunal. O
Juiz que contemplava no quadro não parecia ter este baixo nível. Parecia ser titular de
um alto posto do Tribunal. Mas Leni logo adverte K. sobre a realidade da situação:
– Eu o conheço – disse Leni erguendo também os olhos para o quadro.
– Ele vem aqui freqüentemente. O quadro é da sua juventude, mas
nunca poderia ter sido nem mesmo semelhante ao retrato, pois tem
uma estatura minúscula. Por isso se fez encompridar, pois é insensato
e vaidoso, como todos aqui [...].
– Ele é um juiz de instrução – disse ela, agarrando a mão com que ele
a mantinha enlaçada e brincando com os seus dedos.
– Outra vez um juiz de instrução – disse K. decepcionado. – Os altos
funcionários se escondem. Ele, porém, está sentado numa poltronatrono.
– É tudo invenção – disse Leni, o rosto inclinado sobre a mão de K. –
Na realidade, está sentado em cima de uma cadeira de cozinha, sobre a
qual foi estendida uma velha manta de cavalo16.
A informação de Leni é muito relevante. Ora, o Juiz do quadro, apesar de parecer
um Juiz de nível alto, é apenas um Juiz comum, uma pessoa que se fez passar por um
Juiz Superior na hora da pintura de seu retrato. Enquanto funcionário do Poder
Judiciário, exerce poder, mas apenas na medida de seu ofício, não podendo ser
15
16
Id., p. 134.
Id., p. 134-135.
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considerado, em nenhuma hipótese, um alto Magistrado. Dessa forma, o homem de
estatura minúscula, sentado sobre a manta de cavalo, não é uma instância de poder tal
como o Pai, a Lei, Deus ou um Juiz superior. Como visto anteriormente, todas essas
figuras são idealizações, que são configuradas e constituídas a partir do exercício de
poder disseminado na sociedade. Para dizer mais claramente: nenhuma dessas figuras
existe fora das relações de poder. Assim, poder-se-ia, no máximo, obter-se a
representação de um Juiz superior por meio de sujeitos existentes – como, por
exemplo, um Juiz de instrução. O fato de o Juiz superior ser uma idealização e,
conseqüentemente, de não existir por si só, não impede que a crença em sua existência
real seja propagada por meio de representações como esta que K. contemplava na casa
de seu advogado. São imagens, símbolos, representações e quadros parecidos com este
que mantêm acesa a crença no Tribunal. Ainda que nenhum processado jamais tenha
visto um Juiz superior, dificilmente contesta sua existência, pois estes quadros estão
espalhados por todos os cantos: em casas de advogados, em repartições públicas, nos
Tribunais, nas casas populares e no imaginário da sociedade. A imagem do Juiz
superior imponentemente sentado em sua distinta cadeira, combinada com as diversas
histórias que se contam nos bastidores do Poder Judiciário sobre figuras como ele, faz
com que algo inventado, ou melhor, praticado, ganhe materialidade, prova de
existência. Nesse contexto, a crença na figura é muito mais importante do que sua
existência física.
A conversa que K. tem com Leni é bastante esclarecedora, não apenas para o
leitor, mas também para o próprio K. É a enfermeira do advogado quem irá dar-lhe
importantes conselhos sobre como agir em favor de sua causa, além de fornecer uma
boa idéia do funcionamento do Tribunal:
 [...] Por favor, não pergunte nomes, mas corrija os seus erros, não
seja mais tão inflexível, contra esse tribunal não é possível se defender,
é preciso fazer uma confissão. Na próxima oportunidade, faça essa
confissão. Só aí existe a possibilidade de escapar – só aí. No entanto,
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mesmo isso não é possível sem ajuda externa, mas não precisa se
angustiar por causa dessa ajuda, eu mesma vou providenciá-la17.
A explicação de Leni é decisiva. Ela exalta a necessidade de se buscar ajudas
externas ao ambiente jurídico na resolução de um processo judicial. A moça dá a
entender, inclusive, que as causas jurídicas são conduzidas e resolvidas por cidadãos
anônimos. A conclusão parece lógica, uma vez que os Juízes de instrução apenas
realizam inquéritos e os Juízes superiores são nada mais do que representações vazias
presentes em obras de arte e no imaginário da sociedade. Como já visto, a própria
localização dos Tribunais no interior de casas populares e humildes é condição sine qua
non para o funcionamento da Justiça. Aliás, em O processo, apesar da primeira
impressão ser a de que a sede do Poder Judiciário localiza-se no prédio onde se deu a
primeira audiência de Josef K., a Justiça está espalhada, na verdade, por todos os
cantos. Ela possui diversas ramificações; utiliza-se de todos os espaços que encontra
disponíveis; faz-se presente nos locais mais improváveis. Assim, não impressiona que
os guardas acusados de corrupção por K., em seu primeiro inquérito, sejam punidos
com chicotadas, por um carrasco, em um dos quartos da instituição bancária onde o
acusado trabalha. No romance kafkiano, a Justiça se faz presente, até mesmo, nos
quartinhos abandonados:
Quando, numa das noites seguintes, K. passava pelo corredor que
separava seu escritório da escada principal – dessa vez era
praticamente o último a ir para casa, apenas na expedição ainda
trabalhavam dois contínuos no pequeno campo de luz de uma
lâmpada – ouviu gemidos atrás de uma porta onde sempre supusera
existir somente um quarto de despejo, sem nunca tê-lo visto
pessoalmente [...]. No cubículo [...] estavam três homens curvados sob
o teto baixo. Uma vela fixada sobre uma estante os iluminava.
 O que estão fazendo aqui? – perguntou K. atropelando-se de
excitação, mas não em voz alta.
Um dos homens, que manifestamente dominava os outros e era o
primeiro a atrair o olhar, estava metido numa espécie de roupa escura
de couro, que deixava o pescoço nu até o peito e os braços
inteiramente à mostra. Ele não respondeu. Mas os outros dois
exclamaram:
17
KAFKA, 2003, p. 135.
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 Senhor, devemos ser espancados porque se queixou de nós para o
juiz de instrução18.
Luiz Costa Lima chama a atenção para a atuação do Tribunal. O autor percebeu
que a inexistência material do Tribunal, ou de sua localização fixa, não significa a sua
inexistência absoluta. Muito pelo contrário, não limitado a uma construção ou a uma
sede apenas, o Tribunal existe em uma proporção muito maior. O autor chega a afirmar
que a Justiça de O processo é onipresente:
O passeio que Joseph. K. empreende pelo interior do tribunal faz-lhe
ver que suas dependências se confundem e se misturam com as
residências mais modestas de seus serviçais e que sua força de castigo
se estende até mesmo ao quarto de entulhos do Banco. Invisível, de
aparência desleixada e vil, a “justiça” é onipresente.
[...] a invisibilidade do tribunal está correlacionada ao fato de a
sociedade civil, em vez de se lhe opor, mostra-se impregnada de seus
agentes, informantes e delatores, infiltrada por sua lógica diretora19.
Assim, chega-se à conclusão de que os cidadãos que estão ao redor de K. são
todos “funcionários”, que trabalham zelosos, a fim de julgar o indivíduo processado.
Josef K. parece ser o único a não perceber isso:
Apesar disso, Joseph K. não se alarma pois continua a pensar que a
lógica policial não abrangia mais que os funcionários da justiça e que
na sociedade, ao invés, continuava a vigorar a lógica do cidadão. A
resistência do acusado deriva de sua incapacidade de admitir a
interpenetração absoluta das duas esferas, a jurídico-policial e a civil.
A lógica liberal do cidadão ignorava a ameaça da lei rizomática,
estendida, e não só supervisora, sobre todos os recantos da sociedade.
K. e seu leitor, respectivamente, aprenderam e crêem que, no Estado
de direito, a lei não poderia se contrapor aos direitos da sociedade. No
entanto, ao contrário do que prega o Rechtstaat, os procedimentos a
que o processo parece obedecer não são públicos mas sigilosos e o
tribunal é invisível20.
O processo judicial que é apresentado na obra de Kafka está longe de ser
minimamente parecido com o processo judicial previsto nos códigos de processo penal
ou civil. O próprio “devido processo legal” kafkiano, embora existente, é apenas
18
19
20
Id., p. 105-106.
LIMA, 1993, p. 102-103.
Id., p. 103.
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protocolar; não visa, aparentemente nem em seu discurso oficial, a dar quaisquer
garantias ao processado; não é, portanto, mais que mero cumprimento de burocracia.
Certa mesmo é a conclusão do pintor Titorelli – servidor “informal” da Justiça
que simpatiza com o caso de K. –, após ser importunado pelos gritos das ouriçadas
meninas que escutavam do outro lado da porta a sua reunião com o Procurador Josef
K.:
– Essas meninas também fazem parte do tribunal.
 Como? – perguntou K., desviando a cabeça de lado e fitando o
pintor.
Este, porém, sentou-se outra vez em sua cadeira e disse, em parte
brincando, em parte como explicação:
 Tudo pertence ao tribunal21.
A conclusão parece lógica, quase desnecessária de se pronunciar: em Kafka, tudo
pertence ao Tribunal porque tudo é o Tribunal. Todos são funcionários ou servidores da
Justiça, porque todos influenciam em todas as decisões judiciais proferidas. No mundo
kafkiano não é preciso diploma de curso superior para ser jurista, basta participar das
relações de poder disseminadas na sociedade e que configuram e constituem a própria
idéia de Lei e de Direito.
5
CONCLUSÃO
A afirmação de que Kafka escreveu sobre Deus, a Família, o Pai, o Patrão, a
Burocracia, o Direito ou a Lei, é imprecisa. Mais correto seria dizer que ele escreveu
sobre isso tudo, mas enquanto símbolos do poder, enquanto instituições que são
configuradas e constituídas por meio das estruturas das relações de poder que
difundem a sua prática no interior da sociedade. Dito de outro modo, é plausível
sustentar que Kafka escreveu predominantemente sobre representações do poder que
não existem por si próprias, que não possuem autonomia, que, em suma, não existem.
A Lei de O processo, embora não seja conhecida, é tratada como obscena. Isto
porque se escora nas relações de poder, que as constitui e configura. Pouco importa o
21
KAFKA, 2003, p. 183.
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seu conteúdo, o que é relevante, neste contexto, é o modo como ela se manifesta, se
apresenta a todos, se mostra eficaz. A condenação de Josef. K. é desejada e manipulada
por todos. Aqueles que estão ao seu redor classificam suas atitudes como típicas de um
sujeito culpado. Grande exemplo disso são as meninas que observam, do lado de fora
do ateliê, a reunião entre K. e Titorelli. Elas parecem saber o motivo pelo qual K. está
ali, e esse motivo não é nada honroso. Do mesmo modo, as outras pessoas percebem,
nas atitudes de K., uma espécie de confissão. De boca em boca, de comentário em
comentário, K. é considerado culpado por participar dessas relações de poder. Não é
um juiz que julga K., são as próprias pessoas que estão ao seu redor. São os olhares dos
três funcionários do banco, são as carícias da empregada do advogado, são as risadas
das meninas que constroem a imagem de culpado que K. carrega.
Assim, percebe-se que o cidadão anônimo, justamente quem mais reclama da
atuação da Lei, é que a configura, torna-a eficaz. Da mesma maneira que o pintor
Titorelli em O processo faz todos acreditarem que o Direito é composto por figuras
distintas, altas e bonitas, os meios sociais, ao praticarem a Lei, dão a impressão de que
ela é autônoma, sagrada, imparcial e justa. Neste contexto, o Direito nada mais seria do
que a ciência que estuda e aplica as Leis. Entretanto, talvez a conclusão mais
significativa a que se pode chegar, com base neste estudo a partir da obra de Kafka, é a
de que o Direito é, mais do que qualquer outra coisa, o grande agenciador do poder na
sociedade.
REFERÊNCIAS
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metamorfoses, sem veredicto final. In: PASSETTI, Edson (Org.). Kafka, Foucault: sem
medos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.
BENNETT, Jane. Deceptive comfort: the power of Kafka’s stories. Political theory, n. 1,
v. 19, Feb. 1991.
BROD, Max. Kafka. Trad. de Carlos F. Grieben. Madrid: Alianza, 1974.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Trad. de Júlio
Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. de Raquel Ramalhete.
27. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
KAFKA, Franz. Diário íntimo. Trad. de Torrieri Guimarães. São Paulo: Livraria
Exposição do Livro, 1964.
KAFKA, Franz. Na colônia penal. In: KAFKA, Franz. O veredicto; Na colônia penal.
Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Comp. das Letras, 1998.
KAFKA, Franz. O castelo. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Comp. das Letras,
2000.
KAFKA, Franz. O processo. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Comp. das Letras,
2003.
KONDER, Leandro. Kafka: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
LIMA, Luiz Costa. Limites da voz: Kafka. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei: uma abordagem a partir da leitura cruzada entre
direito e psicanálise. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
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ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA DO ENCARCERAMENTO EM MASSA:
SARAMAGO E A POLÍTICA DE CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA
C AIO M ARCELO C ORDEIRO A NTONIETTO 1
RESUMO: Na obra Ensaio sobre a cegueira José Saramago trabalha a reação do
Governo diante de um problema inexplicado que acomete a população de uma
cegueira branca e a reação destas pessoas a ação governamental. De sua obra se
pode extrair os preconceitos e as arbitrariedades do Estado ao lidar com um
problema social com a aplicação de um remédio afeito a modernidade, o
encarceramento. Separam-se da sociedade os doentes até que na sua reclusão se
curem, independente do auxílio externo, mantendo-os alimentados e abandonados
a própria sorte. Na linha do que se denomina Direito na Literatura o presente
trabalho tem por objetivo fazer um paralelo entre o remédio político aplicado pelo
Governo à cegueira na obra de Saramago e o remédio político-jurídico aplicado
pelo Estado às pessoas excluídas do mercado de consumo no sistema capitalista
globalizado, qual seja, o encarceramento da pobreza. Para tanto, faz-se a análise da
obra literária destacada à luz dos estudos sobre o desenvolvimento do sistema
carcerário moderno e sua real motivação bem como das visões críticas da função da
pena de prisão. Assim a pesquisa é centralizada na busca de explicações para
manutenção de um sistema socialmente contraproducente e desumanizador que
representa o cárcere como resposta estatal válida, legítima e jurisdicionalizada no
Estado de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Direito e Literatura; José Saramago; encarceramento em
massa; processo de globalização.
1
INTRODUÇÃO
A descrição de José Saramago sobre a reação governamental em um país no qual
a população é atingida por uma doença misteriosa que se propaga descontroladamente
1
Mestrando em Direito (PUC/PR).
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em “Ensaio sobre a Cegueira” leva a reflexão sobre as políticas públicas adotadas em
momentos de crise social. Os efeitos danosos decorrentes do encarceramento a que as
pessoas são submetidas levantam indagações sobre o método punitivo da prisão na
realidade social contemporânea.
No presente trabalho, busca-se desenvolver a relação entre a obra literária de
Saramago e a política criminal de encarceramento em massa adotada globalmente nos
países de sistema econômico capitalista, nos moldes do que se entende por Direito e
Literatura. Alguns problemas são propostos para o desenvolvimento do trabalho. Em
que medida o sistema punitivo atual pode ser utilizado como instrumento de
neutralização de doentes sociais? Quem seriam os doentes sociais e como se
transmitiria esta doença? Qual seria a relação entre cárcere e problemas sociais?
É possível traçar a hipótese de que, assim como na obra de Saramago, o cárcere é
utilizado pelos Governos para conter problemas sociais e que a utilização deste meio de
controle pode gerar efeitos contraproducentes e negativos como aqueles descritos na
obra literária.
Para tanto, com base na pesquisa bibliográfica realizada, será desenvolvida uma
reflexão com o intuito de identificar a presença de pessoas socialmente doentes
passíveis de serem neutralizadas diante do sistema econômico capitalista global, a
relação entre estas pessoas doentes e o sistema de justiça criminal, especialmente na
figura do cárcere, bem como apontar consequências desta política estatal de tratamento
de problemas sociais.
2
O ENCARCERAMENTO NA OBRA DE JOSÉ SARAMAGO –
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
José Saramago ficou marcado na literatura mundial pelas características
peculiares de sua forma de escrever por meio de longos parágrafos, pouca pontuação,
continuidade de diálogos, mas especialmente pela forma como tratou de problemas
sociais e da reação humana a esses problemas com profundidade reflexiva e clareza de
pensamento.
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Na obra literária “Ensaio sobre a Cegueira” Saramago narra a reação de um
governo quando seu país se vê assolado por uma estranha e inexplicada doença que se
alastra por seus cidadãos a medida em que as pessoas infectadas tem contato físico com
pessoas ainda saudáveis. As pessoas acometidas por esta doença apresentam um único
sintoma, são acometidas por uma cegueira, porém não como a característica perda de
visão dos deficientes visuais que nada enxergam senão a escuridão, mas uma cegueira
branca, os atingidos por esta cegueira enxergam um clarão e nada mais.
Ao se deparar com esta doença que se alastra rapidamente entre seus cidadãos o
governo se vê obrigado a agir, convocam-se reuniões, os mandatórios detentores do
poder estatal são chamados a pensar e se estabelece uma medida emergencial, decidese que as pessoas infectadas pela cegueira branca serão levadas a um estabelecimento
público desativado onde serão colocadas em quarentena até que se obtenham mais
informações e conhecimentos sobre o mal que carregam.“Queria dizer que tanto
poderão ser quarenta dias, quarenta semanas, ou quarenta meses, ou quarenta anos, o
que é preciso é que não saiam de lá.”
Diante desta realidade estabelecida Saramago desenvolve ao longo de seu texto as
reações das pessoas envolvidas naquela situação, tanto dos governantes como dos
cidadãos. Diante do desconhecido e das pessoas que carregam este problema à
sociedade o governo não se acanha em tomar medidas cada vez mais enérgicas,
aumentar o número de pessoas encarceradas e aumentar o rigor do regime de
encarceramento na medida em que pioram as condições do cárcere:
o ministério da Saúde tinha avisado o ministério do Exército, Vamos
despachar quatro camionetas deles, E isso dá quantos, Uns duzentos,
Onde é que se vai meter toda essa gente, […] O caso tem remédio,
ocupam-se as camaratas todas, Sendo assim os contaminados vão ficar
em contato directo com os cegos, O mais provável é que, mais tarde ou
mais cedo, venham a cegar também.
Os cidadãos ainda saudáveis aceitam a política pública do encarceramento dos
doentes, mesmo porque focados em o seu individualismo não se preocupam em pensar
ou conhecer o que se passa para dentro das grades.
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O comportamento
das pessoas encarceradas é narrado
com detalhes
assustadores, a reação das pessoas ao tratamento estatal que acaba por excluí-las do
meio social, separá-las de suas famílias e de todos os laços que possuem no exterior do
cárcere, bem como sua adaptação as rígidas e degradantes condições a que foram
submetidas pelo Estado para retirar o problema que representam do convívio social.
Suas atitudes são cada vez menos civilizadas, amoldam sua rotina e seu comportamento
aos limites materiais e morais do cárcere, esquecem dos parâmetros de conduta social a
fim de se enquadrarem a sua nova realidade.
A realidade descrita do avanço da doença de origem e cura ainda desconhecidas e
o modelo de reação escolhido pelas autoridades públicas levam a uma situação de caos
onde se perde qualquer controle social, o carcere é abandonado e as pessoas ali
recolhidas são lançadas em um mundo desconhecido abandonadas a sua própria sorte.
Os cidadãos saem da prisão ainda doentes diante de um mundo diferente daquele que
conheciam quando foram presos, sem governo ou qualquer pessoa que lhes possa
auxiliar:
Diz-se a um cego, Estás livre, abre-se-lhe a porta que o separava do
mundo, Vai, estás livre, tornamos a dizer-lhe, e ele não vai, ficou ali
parado no meio da rua, ele e os outros estão assustados, não sabem
para onde ir, é que não há comparação entre viver num labirinto
racional, como é por definição, um manicómio, e aventurar-se, sem
mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde
a memória para nada servirá, pois apenas será capaz de mostrar a
imagem dos lugares e não os caminhos para lá chegar.
Ao final, na mesma ordem em que foram infectadas as pessoas são curadas,
voltam a seus olhos voltam a enxergar, porém o que vem não é mais o que viam.
2
OS DOENTES DA SOCIEDADE DE MERCADO GLOBAL
Para se traçar as considerações objeto deste estudo, com o paralelo entre os
doentes excluídos na sociedade descrita por Saramago e os doentes excluídos na
sociedade contemporânea é preciso descrever o processo de criação da exclusão na
sociedade capitalista. Assim, fazendo-se uma breve leitura das origens do sistema
capitalista se poderá chegar a realidade atual da sociedade de mercado global.
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ANAIS DO II CIDIL
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Ao descrever as origens do modelo econômico capitalista, Marx destaca três
pontos fundamentais para a formação do que denominou processo de acumulação
primária, ou seja, a acumulação inicial de capital que possibilitou o surgimento do
sistema capitalista. Segundo Marx, para que se pudesse desenvolver a acumulação
primária de capitais foram necessários três elementos historicamente identificáveis na
Europa, especialmente na Inglaterra, quais sejam, a expropriação das terras, a
formação de uma massa de mão de obra excedente e de um mercado de consumidores.
“E só a destruição da indústria doméstica rural pode proporcionar ao mercado interno
de um país a extensão e a solidez exigidas pelo modo capitalista de produção.”
O desenvolvimento da propriedade privada das terras nos moldes do que se tem
hoje, o fim das terras de cultivo comum e a expulsão dos camponeses do campo, o que
se denominou de cercamentos, foram etapas que possibilitaram a formação de uma
masa de desocupados nas cidades, bem como a dependência da atividade produtiva dos
campos pois aqueles que antes produziam para sua própria subsistência se viram
obrigados a vender a única coisa que lhes restava para adquirir sua subsistência, ou
seja, sua força de trabalho. Desta forma, se fecha um ciclo onde o capital pode usurpar
a força de trabalho nas condições que melhor lhe interessar e ainda dar vasão a sua
produção.
Assim, o que se observa é a formação de uma massa de pessoas excluídas
socialmente. Ao sistema capitalista é indispensável uma força reserva de trabalho,
importante para regulação do preço da mão de obra e para fragilizar a classe proletária.
Estas pessoas excluídas do mercado de trabalho, expulsas dos campos e não adaptadas
aos meios de produção capitalistas, pode ser identificada como a primeira massa
socialmente excluída, os primeiros doentes da sociedade capitalista. Conforme será
exposto adiante estas pessoas não passaram impunes ao sistema penal.
Após as sucessivas crises do modelo de economia capitalista (crise do modelo
liberal, crise do modelo de bem estar social) e a imposição das políticas econômicas
neoliberais pode se identificar um novo movimento social de exclusão, especialmente
ligado com o processo de globalização.
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ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
Desde a década de 80 do século passado o mundo passou por um processo de
integração multifacetado que se intensificou nos últimos anos com os avanços da
tecnologia de informação e transmissão de dados. A sociedade moderna é marcada por
uma realidade onde as fronteiras e as distâncias foram vencidas pelo processo de
globalização, há uma universalização mundial da economia, cultura e política, na qual
há a imposição de uma cultura dominante em detrimento das culturas locais numa
realidade complexa de interligação na qual acontecimentos em uma localidade
específica podem gerar reflexos em todas as partes do planeta. “Uma revisão dos
estudos sobre os processos de globalização mostra-nos que estamos perante um
fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, políticas, culturais,
religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo.”
Diversos efeitos podem ser identificados a partir do processo de globalização, o
trânsito mundial de pessoas e mercadorias, a extinção das culturas locais, a interrelação dos sistemas financeiros, a universalização das políticas criminais, tal como
acontece no combate estatal ao tráfico de drogas e a lavagem de capitais, mas
especialmente pode se destacar o aumento da desigualdade econômica, tanto entre os
países ricos e pobres, como entre as camadas sociais. Conforme destaca Boaventura
Santos, o poder econômico na sociedade globalizada esta concentrado em uma nova
categoria de agentes internacionais, as empresas multinacionais. “Uma das
transformações mais dramáticas produzidas pela globalização económica neoliberal
reside na enorme concentração de poder económico por parte das empresas
multinacionais:
das 100 maiores
economias
do
mundo,
47
são
empresas
multinacionais; 70 % do comércio mundial é controlado por 500 empresas
multinacionais.”
Esta nova realidade social e econômica refletirá em uma reformulada política
capitalista de exclusão social e uma forma alternativa de tratamento aos problemas da
desigualdade social. O sistema econômico de mercado global fará uma clara opção em
incluir apenas o que pode ser financeiramente valorado. A partir do momento em que o
controle da economia global passa das mão dos governos para as entidades privadas
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representadas pelas empresas multinacionais, cujos interesses e objetivos são
principalmente, ou exclusivamente, o lucro, as políticas públicas nas áreas econômicas
e sociais passam a seguir os mesmos moldes, deixa-se de lado o interesse na promoção
social do bem estar dos cidadão para se pensar em formas e modelos sociais de
potencialização de ganhos financeiros. “Estamos en presencia de una económia global
caracterizada por ser fuertemente incluyente y excluyente a la vez. Incluyente de todo
aquello capaz crear valor y excluyente de todo lo que no está valorado.”
Neste modelo social global se desenvolve uma nova categoria de massa de pessoas
oprimidas pelo capital e excluídas socialmente. Boaventura Santos destaca dois grupos
de pessoas dominadas no processo de globalização os quais teriam assumido o lugar da
classe trabalhadora oprimida no modelo de capitalismo liberal destacada no
universalismo de Marx. De um lado pode se destacar as pessoas exploradas pelo
capitalismo global, composta por setores influentes das classes trabalhadoras
(empregados de multinacionais em diversos países) que embora dominados pelo
capital globalizado estão inseridos no sistema social e econômico da economia de
mercado global e por isso adaptados, conformados e submissos a realidade. De outro
lado estão as populações oprimidas pelo capitalismo global, composta por significativo
número de pessoas excluídas deste mercado global localizados ao redor do mundo,
tanto em países periféricos como em países centrais. Segundo Boaventura Santos
“vastas populações do mundo que nem sequer têm grilhetas, ou seja, que não são
suficientemente úteis ou aptas para serem directamente exploradas pelo capital e a
quem, consequentemente, a eventual ocorrência de uma tal soaria como libertação.”
Esta nova realidade econômica, política e social nas sociedades de mercado global
controladas pelos interesses privados transnacionais de maximização de lucros
independente das consequências danosas deles advindos irá se refletir em uma nova
forma de tratamento estatal das pessoas fragilizadas. Este modelo não só aumenta o
número de pessoas em estado de fragilidade social e piora suas condições de vida, como
destorce a ação estatal em favor destes grupos de pessoas. Pode se perceber um
abandono nas políticas públicas de auxílio social, a completa destruição do modelo de
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bem estar social e sua substituição por modelos menos custosos, independentemente
dos resultados sociais alcançados.
a cristalização de um regime político liberal-paternalista – que pratica
o laissez-faire et laissez-passer em relação ao topo da estrutura de
classes, no nível dos mecanismos de produção das desigualdades, e o
paternalismo punitivo na base, no nível de suas implicações sociais e
espaciais – exige que a definição tradicional de “bem estar social” seja
abandonada, como o produto de um senso comum político e científico
ultrapassado pela realidade histórica. Ela requer que se adote uma
abordagem expansiva, que abrace de uma só vez o conjunto das ações
por meio das quais o Estado visa a modelar, classificar e controlar as
populações julgadas desviantes, dependentes e perigosas, assentadas
em seu território
Esta realidade de aumento das desigualdades e de descompromisso social com as
políticas públicas a estas pessoas reflete-se na vivencia social e no imaginário coletivo
sobre a segurança pública demandando reações nem sempre compassadas com a
realidade e as efetivas necessidades sociais. Em um momento social de aumento
aparente de insegurança, diminuição de harmonia social frente ao preconceito sobre as
pessoas mais pobres, eleitas como as responsáveis pela insegurança que bate as portas
das classes mais abastadas, abre-se espaço ao desenvolvimento de políticas simbólicas
voltadas ao fortalecimento do estado de polícia em detrimento do estado de direito.
Os níveis de segurança urbana tem baixado consideravelmente nas
sociedades que adotam o modelo do fundamentalismo de mercado,
porque polariza riqueza, produz um crescente número de
desempregados e marginalizados, deteriora os serviços sociais e
públicos, difunde valores culturais egoístas, divulga a tecnologia
lesiva, gera vivências de exclusão que impedem qualquer projeto
existencial razoável, aprofunda os antagonismos sociais e, em suma
potencializa toda conflituosidade social.
Diante desta doença da era da globalização, que se propaga descontroladamente
pela sociedade trazendo riscos as pessoas sãs perfeitamente integradas ao mercado
global o Estado é chamado a agir nos moldes que descreve Saramago:
O governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que
considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as
populações na crise que estamos a atravessar, quando parece verificarse algo de semelhante a um surto epidémico de cegueira,
provisoriamente designado por mal branco, e desejaria poder contar
com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a
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propagação do contágio, supondo que de um contágio se trata,
supondo que não estaremos apenas perante uma série de
coincidências por enquanto inexplicáveis.
Assim, o Estado é chamado a tomar providências e os cidadãos compelidos a
aceitá-las como válidas e legítimas, mesmo que produzidas na contramão dos
resultados das pesquisas científicas desenvolvidas nas áreas do Direito Penal, da
Sociologia e da Criminologia. A resposta estatal à doença dos excluídos do mercado
global
é
aplicar
antigos
remédios
a
novas
doenças
num
circulo
vicioso
contraproducente que funciona desde a escolha do sistema punitivo moderno. O Estado
da era globalizada recorre ao velho remédio do cárcere para curar seus doentes, ou
melhor dizendo, proteger as pessoas saudáveis das pessoas doentes que devem ser
neutralizadas.
3
POLÍTICA DE CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA
UMA DESTINAÇÃO AOS EXCLUÍDOS DO MERCADO GLOBAL
Diante desta realidade social de exclusão inerente ao modelo econômico
capitalista cabe ao Estado resolver o problema. Como pode se observar na análise dos
ciclos econômicos da era capitalista os benefícios são sempre reservados aos
capitalistas enquanto os prejuízos, de que ordem forem, sociais, econômicos,
ambientais, são democraticamente divididos entre a população por meio da atuação
remediadora do Estado. Assim, o problema da exclusão social na sociedade capitalista é
de competência estatal conforme apregoam as constituições modernas.
Há diversas formas em que pode se desenvolver a atividade estatal no âmbito
social a fim de erradicar pobreza, diminuir a desigualdade social, bem como promover
a inclusão ao mercado de trabalho, por certo que o Direito Penal e o encarceramento
não estão entre elas. Além do princípio basilar da intervenção mínima do direito penal
e da utilização do direito penal como última razão do Estado, os efeitos reais do cárcere
sobre a pessoa do preso deslegitimam sua utilização como forma de erradicação de
problemas sociais. Contudo, conforme ensina Juarez Cirino, embora os efeitos reais do
cárcere sejam socialmente contraproducentes, existem outros efeitos que interessam ao
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sistema de produção capitalista: “os métodos de “prevenção” dos crimes e de
“tratamento” do delinquente estigmatizam, danificam e incapacitam a população
criminalizada para o exercício da cidadania, mas o temor da prisão controla a força de
trabalho ativa, garantindo a produção material e a reprodução da ordem social.”
A história do cárcere como sistema punitivo moderno demonstra que seu
desenvolvimento está atrelado ao método de produção capitalista. É sempre necessário
destacar que, ao contrário do que se pensa no senso comum, a prisão não foi a forma
padrão de punição ao longo da história humana. Até a idade média a prisão era muito
mais um meio cautelar e processual de manter o réu a disposição para ser punido do
que a forma de punição em si. Esta modelo de prisão como forma padrão de punição
está ligado ao desenvolvimento da forma de produção capitalista. A escolha deste
modelo deve-se ao fato de que o cárcere enquanto método punitivo apresentava uma
dupla função em favor do novo sistema econômico, regular o preço da mão de obra ao
obrigar as pessoas a trabalharem pelos salários oferecidos, na medida em que se
submeter ao regime fabril seria melhor que a custódia na casa de trabalho forçado
aplicada a mendigos e vagabundos e, por outro lado, as prisões preparavam a massa
proletária formada por ex-camposes e artesão para o sistema de trabalho nas fábricas.
É na Holanda da primeira metade do século XVII que a nova
instituição da casa de trabalho atinge, no período das origens do
capitalismo, a sua forma mais desenvolvida. A criação desta nova e
original modalidade de segregação punitiva responde mais a uma
exigência conexa ao desenvolvimento geral da sociedade capitalista do
que à genialidade individual de algum reformador - como
frequentemente uma história jurídica entendida como história das
ideias ou “história do espírito” tenta convencer-nos.
Assim, o direito penal moderno, e especialmente a instituição do cárcere como
meio punitivo típico da sociedade capitalista se desenvolve com a clara função de
reproduzir as formas de dominação e exclusão social inerentes a forma de produção.
Segundo Cirino, os objetivos reais do aparelho penal são uma reprodução da
criminalidade, limitada a criminalidade da classe inferiorizada, excluindo condutas
típicas de classes dominantes e uma reprodução das relações sociais. O aparelho de
justiça criminal funciona de forma seletiva contra as pessoas excluídas socialmente,
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contra os doentes da sociedade, sendo que ao longo do período de economia liberal foi
marcado pela repressão da classe trabalhadora. Como destacam Melossi e Pavarini: “A
instituição carcerária permanece assim como uma aquisição definitiva e cada vez mais
dominante na prática punitiva burguesa, muito embora a sua função – ao menos na
Europa e até o momento em que esta situação perdurar, i. e., depois da metade do
século XIX- adquira um tom cada vez mais terrorista e de mero controle social.”
A análise do sistema penal hodierno não fica longe de sua revisão histórica. Como
destacado acima, a sociedade contemporânea caracterizada pela economia de mercado
global formou uma nova classe de oprimidos pelo capitalismo, especialmente aquela
destacada pela exclusão social em razão da sua inutilidade para o sistema, são pessoas
que não interessam nem como mão de obra e, por consequência, excluídas do mercado
de consumo, são os cegos da sociedade. A política pública aplicada a estas pessoas é
penal, sua destinação social é o cárcere.
O aparelho de justiça criminal moderno é marcado por alguns fatores peculiares,
especialmente a internacionalização das políticas criminais e sua característica de
encarceramento em massa. Grande propulsor desta realidade do encarceramento em
massa é a Guerra às Drogas declarada pelo Governo Regan na década de 80 do século
passado. Com o pretexto de combater o inimigo externo que assolava as famílias de
bem norte-americanas o Governo Americano intensificou sua presença militar em
países subdesenvolvidos como os sul-americanos e africanos bem como intensificou as
políticas de repressão interna contra imigrantes e negros.
O processo de globalização afetou a forma de produção capitalista, a realidade
social e também o aparelho de justiça criminal. Como destacado acima, o processo de
globalização e o aumento das desigualdades sociais faz surgir uma demanda por
controle social e estabilização da violência, impulsionando a opinião pública e a tomada
de decisões dos governantes. O cárcere aparece nas políticas públicas contemporâneas
como a forma central de controle das massas excluídas do mercado global, operada por
meio da neutralização dos cegos, dos outros. Zaffaroni aborda com precisão esta nova
perspectiva do sistema penal:
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O sistema penal se superdimensionou até desempenhar um papel
importante na demanda de serviços, que contribui para reduzir o
índice de desemprego. Os operadores políticos se curvam à tendência
sem variantes nem matizes partidárias e disputam clientela eleitoral
baseando-se em promessas de repressão maior. O crescimento do
sistema penal provocou o crescimento de suas características
estruturais, entre elas a seletividade racista. Tem-se advertido sobre o
perigo de que redunde em um modelo mundial.
As populações excluídas dos mercados de consumo, das facilidades e das
melhorias da economia global na era da informação, são tratadas pelo Estado como
verdadeiros estorvos sociais, a eles não se aplicam medidas de bem estar
previdenciárias, educacionais ou assistenciais mas a eles é reservada a face mais
opressora do Estado, a resposta penal. Wacquant destaca esta realidade ao explicar
como os Estados Unidos da América substituíram as políticas públicas de assistência
pela política penal, economicamente mais viável, embora socialmente mais gravosa:
a polícia, os tribunais e a prisão, são, se examinados de perto, a face
sombria e severa que o Leviatã exibe, por toda a parte, para as
categorias deserdadas e desonradas, capturadas nas cavidades das
regiões inferiores do espaço social e urbano, pela desregulamentação
econômica e pelo recuo dos esquemas de proteção social.
Assim, como na obra de Saramago, os debates entorno desta questão penal não se
mostram muito produtivos nos governos reais pois se a população excluída não é
criminosa, os criminosos são excluídos, de tal sorte que a resposta penal aparece como
remédio a ser aplicado sem contraindicações: “Temos aqui um coronel que acha que a
solução era ir matando os cegos à medida que fossem aparecendo, Mortos em vez de
cegos não alteraria muito o quadro, Estar cego não é estar morto, Sim, mas estar morto
é estar cego.”.
Mais do que tratamento terapêutico aos problemas sociais do mundo globalizado,
a insistência da utilização do cárcere como remédio aos doentes da sociedade moderna,
nos mesmos moldes em que foi adotado pelo Governo da obra do escrito português, é
um método de neutralização dos doentes. Segrega-se estas pessoas do convívio social
para que fechados nos muros altos dos presídios fiquem distantes dos olhos
incomodados com sua presença. Assim esclarece Wacquant: “A penalização serve aqui
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como uma técnica para a invisibilização dos problemas sociais que o Estado, enquanto
alavanca burocrática da vontade coletiva, não pode se preocupar mais em tratar de
forma profunda, e a prisão serve de lata de lixo judiciária em que são lançados os
dejetos humanos da sociedade de mercado.”
Esta relação entre sistema econômico e cárcere não pode deixar de ser observada,
especialmente em relação aos efeitos dela decorrentes, pois ao contrário do que se pode
pensar não se está resolvendo qualquer problema social, criminal ou de erradicação da
violência, mas está se produzindo um movimento contraproducente que impulsiona o
crescimento destes problemas que pretende combater, com ressalta Cirino: “a prisão
produz e reproduz os fenômenos que, segundo o discurso ideológico, objetiva controlar
ou reduzir.”. É necessário que se tenha a visão de que o problema não é dos outros, que
os operadores do sistema e que as pessoas que se julgam imunes ao sistema penal
fazem parte deste contexto social e que o fato de não querer enxergar as tornam tão
cegas e doentes quanto aqueles que não podem enxergar, conclui Saramago: “Penso
que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não
vêem”.
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reflexão sobre o sistema de justiça criminal adotado nas sociedades ocidentais
com base na obra “Ensaio sobre a Cegueira” permite alcançar alguns pontos de
coincidência entre a política criminal contemporânea e a reação governamental na obra
de Saramago, principalmente quando o Estado é chamado a resolver problemas sociais
decorrentes de fatores que diferenciam as pessoas. Na obra literária estudada as
pessoas eram segregadas em razão de uma doença que as acometia, uma cegueira
branca, na realidade social analisada as pessoas são segregadas por estarem em
situação de fragilidade social que as excluí do sistema de mercado global, a doença da
exclusão social.
O processo de globalização pelo qual atravessam os países na atualidade,
fenômeno multifacetado, complexo e transdisciplinar no qual se ignoram as fronteiras
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nacionais com a rápida e incontrolável circulação de pessoa, mercadorias, dinheiro e
informação entre os todos os países do mundo, gerou reflexos importantes na esfera
social e econômica. Este modelo de sociedade global concentrou o poder econômico nas
mãos das empresas privadas multinacionais, formou uma nova massa de pessoas
oprimidas pelo capital e agravou a desigualdade entre pobres e ricos. Nesta nova massa
de oprimidos formada pelo sistema capitalista global pode se identificar um grupo de
pessoas excluídas. Esta exclusão que se manifesta sob diversos ângulos, exclusão social,
exclusão cultural e mesmo exclusão jurídica, tem por fundamento principal o fato de
que estas pessoas não possuem qualquer valor financeiro para o capital, são pessoas
que não interessam como mão de obra e tão pouco compõe o mercado de consumo, são
os cegos da sociedade globalizada. Destacada esta realidade é importante identificar
quais as políticas públicas adotadas para tratar deste problema social.
Ao analisar o sistema punitivo penal desde a incorporação da prisão como forma
de punição padrão, pode-se perceber que este sistema se desenvolveu num paralelo
com o sistema de produção capitalista. O sistema penal prisional é o modelo de punição
padrão da sociedade capitalista pois é responsável por importante papel dentro do
sistema de produção, funciona como regulador do preço da mão de obra, garantidor de
força de trabalho e da força reserva de trabalho exploradas pelo capital.
Assim como o governo fez na obra literária, na sociedade globalizada o Estado
utiliza-se do sistema prisional como remédio ao problema social, neste caso não os
cegos, mas os excluídos do mercado global. As políticas públicas desenvolvidas na
sociedade globalizada, sob a influência do poder econômico das empresas
multinacionais cujo principal objetivo é financeiro, faz com que o Estado despreze os
princípios da intervenção mínimo do direito penal e do direito penal como última razão
para sobrepor as políticas punitivas às políticas sociais. O raciocínio econômico de
análise de custos faz com que se substitua as políticas inerentes ao estado de bem estar
social pelas políticas criminais transnacionais de maximização do estado punitivista. O
cárcere é utilizado como ferramenta de neutralização e destinação das pessoas
excluídas da sociedade de mercado global, é o destino dos doentes na sociedade
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contemporânea em uma política contraproducente que potencializa os problemas
sociais que simbolicamente pretende solucionar.
A apontada realidade do sistema de justiça criminal não pode passar
desapercebida ao Direito e as pessoas que integram o aparelho do poder punitivo do
Estado. É necessário que se tome em consideração esta realidade tanto no
desenvolvimento da doutrina penal como na prática do processo de criminalização, não
há mais espaço para acusadores, defensor e julgadores adstritos cegamente a letra da
lei penal, que atuam sem ter consciência da realidade maior que cerca seu papel de
pequena engrenagem da grande máquina estatal a serviço do capital. O estado de
direito constitucional, pautado no princípio da dignidade da pessoa humana exige uma
nova postura daqueles que integram o aparelho de justiça criminal, não há mais espaço
para cegos que vendo não veem.
REFERÊNCIAS
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para la profundización em la democracia. In: ARANA, Xabier; HUSAK, Douglas;e
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sociologia do direito penal. Trad. de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2002;
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2008;
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 23. ed., Trad. de Reginaldo
Sant'Ana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. v. 2.
MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema
penitenciário; séculos XVI-XIX). Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
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Boaventrura de Souza (Org.). A globalização e as ciências sociais. 2. ed. São Paulo:
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SARAMAGO. José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Comp. das Letras, 2002.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A função social da terra. Porto Alegre:
Sérgio Fabris, 2003.
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WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos: a
onda punitiva. Trad. de Sérgio Lamarão. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
ZAFFARONI, Eugenio Raul et al. Direito penal brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan,
2003. v. 1.
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OS JOÕES DE SANTO CRISTO:
COMO OS EXCLUÍDOS SÃO TRATADOS NO BRASIL;
A RENEGAÇÃO DE SUAS HISTÓRIAS
G ABRIELA L OYOLA DE C ARVALHO 1
P AULO H ENRIQUE B ORGES DA R OCHA 2
RESUMO:O presente artigo visa discutir o problema da desigualdade econômica e
social e a discriminação gerada por ambas, tendo como plano de fundo a história da
vida de João de Santo Cristo, personagem do livro Faroeste caboclo, escrito por
Jorge Leite de Siqueira. O relato da vida de João abre espaço para a discussão
central do artigo que é a coisificação do outro, em outras palavras, a teoria do Nós
X Eles. O artigo trabalha com a realidade brasileira, sua desigualdade e como os
excluídos, ou seja, os marginais, que vivem a margem da sociedade, são vistos e
tratados. Aborda-se também a diferença de tratamento gerada pela aparência e
condição financeira da pessoa, mostrando que os ditos “criminosos” nem sempre
são os únicos culpados da violência ocorrida no Brasil, muito embora sejam eles os
mais violentados. Esse trabalho pretende iniciar uma discussão sobre o modelo
social que temos e como podemos humanizar o outro e não o coisificar como ocorre
atualmente. Diferenças sociais, culturais e econômicas existem em todos os países.
A proposta do presente trabalho não é indicar uma possibilidade utópica, mas sim,
mostrar que toda pessoa que é julgada como má ou vândala tem uma história e,
essa história não pode ser deixada de lado. Há a necessidade de se enxergar o
próximo como outro ser humano, detentor de direitos e de uma história. Além de
que nenhum desses fatos podem ser excluídos para que assim possa existir uma
real igualdade entre os indivíduos.
PALAVRAS-CHAVE: discriminação; desigualdade social e econômica; excluídos.
1
2
Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Bacharel em Direito pelo Centro
Universitário de Sete Lagoas.
Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Especialista em Pedagogia Jurídica
pela Universidade Anhanguera. Bacharel em Direito pela Faculdade Pitágoras.
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INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por escopo abordar sobre a questão da discriminação
gerada a partir da desigualdade econômica e social presente na sociedade. O
preconceito enraizado nos paradigmas dos cidadãos brasileiros reflete na forma como
vemos o outro. De certa maneira, tendemos a considerar aquele excluído, à margem da
sociedade, como o bandido, o ladrão, aquele que pratica o crime, o lado mau da
sociedade. Enquanto que, na verdade, esquecemos que existe uma pessoa, por trás
desse individuo, dotada de dignidade, assim como todos os outros cidadãos, mas que
por circunstâncias sociais, raciais e econômicas não puderam ou não quiseram
desfrutar das mesmas igualdades que outros.
Partimos do pressuposto de que em virtude da diferenciação, seja ela de qual
origem for, somos melhores do que outras pessoas que não se encontram na mesma
condição do que a nossa. Vivemos em uma sociedade hipócrita que visa permanecer no
mesmo status que ocupa ou mesmo subir mais um degrau, mas que ignora as reais
necessidades dos demais, os tratando como coisas, olvidando que, na verdade, somos
frutos do mesmo sistema.
O artigo em questão buscou contextualizar tal pressuposto por meio do livro
Faroeste caboclo de Jorge Lei de Siqueira. O livro relata a história de João de Santo
Cristo, nascido de família humilde e que, por ser órfão de pai e mãe, desde muito novo,
e, em virtude de sua cor, sofre o preconceito existente na sociedade.
2
A VIDA DE JOÃO DE SANTO CRISTO
João de Santo Cristo, nascido em algum pedaço da Bahia, de um lugar chamado
Boa Vista, era filho de João Fernando, trabalhador braçal, sempre capinando a terra,
limpando a plantação de milho, fonte de seu sustento.
A vida de João nunca foi fácil. Sua mãe morreu quando pequeno; seu pai, que
batalhava todos os anos contra a seca, plantava tudo o que podia brotar e render boas
colheitas em suas terras.
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
Desde a morte de sua mãe, seu pai se tornara outra pessoa. A seca reduziu suas
terras a umas poucas notas: teve que vender suas terras ao prefeito, que não era tão
bonzinho assim, como ele pensava. Agora estava concordando com a oposição”3.A um
futuro miserável, João Fernando se entregara. Agora, bebidas, mulheres e confusões
faziam parte de sua realidade.
João de Santo Cristo já de muito pequeno praticava suas malvadezas. “Era um
menino muito esperto, muito inteligente, mas que não gostava de escola. Adorava
travessuras e vivia sempre aprontando”4. Joãozinho como era chamado, não quis se
entregar a um futuro sem perspectivas que sua família pobre e sofredora estava
condenada. Não só sua família como várias outras que no mesmo paradigma se
encontravam.
O destino nem sempre foi a favor de João. Pequeno, ainda, assistiu a morte de seu
pai. Após enfrentar a fúria de um policial, João Fernando se entregou, levou um tiro no
peito. Uns diziam que fora autodefesa, outros, covardia do policial. Para João, foi
suicídio. “João Fernando havia perdido a esperança de uma vida melhor. Havia perdido
a esperança de encontrar pessoas que realmente faziam o bem, sem interesses próprios.
Havia perdido a coragem de tentar melhorar. Havia chegado ao seu limite. Para ele, o
melhor era morrer”5.
O melhor amigo de João se chamava Zé Luiz. Assim como João “foi abandonado
por sua mãe, quando ainda era bebezinho, em um orfanato da cidade. Sempre seguiu as
maldades que os maiores faziam”6. Zé Luiz vivia fugindo do orfanato. Sempre o
resgatavam, até que um dia, cansaram de tanta bagunça que aprontava. O mundo,
então, ganhava mais um moleque de rua. Além da forte amizade, João e Zé
compartilhavam de outros fatores:
[...] era negro, também, assim como João. E já sofria com o
preconceito das pessoas. Aprendeu a roubar devido a esta
discriminação. Ia pedir as coisas, mas percebeu que era muito difícil.
3
4
5
6
SIQUEIRA, 2013, p. 5.
Id., p. 6.
Id., p. 7.
Id., p. 9.
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As pessoas se fechavam para ele. Nunca conseguiu nenhum carinho.
Sentia uma dor enorme quando pedia um prato de comida, tendo
fome, e recebia um não como resposta. Com isso, aprendeu a tomar.
Aprendeu a pegar o que não era dele. A princípio, começou a pegar
comida. Depois, passou a pegar brinquedos, roupas, e coisas desse
tipo7
João havia conhecido Zé no enterro de seu pai. “ – Minha mãe morreu, faz tempo.
Meu pai morreu ontem. Foi enterrado hoje. Mas, eu não morava com ele. Ele sempre
bebia muito e ficava jogado pelas calçadas. Eu aprendi a morar nas ruas porque não
gostava de morar com a minha tia”8 dizia João a Zé. Por desfrutarem de um passado
semelhante, a amizade entre os dois cada diz se fortificava.
Com o passar dos anos, os dois amigos cada vez mais aprontavam. João dizia que
queria ser bandido. A ousadia, agora, falava mais alto. “Se queriam alguma coisa mais
cara, tentavam roubar algo e trocar por aquilo. Foi assim com o walkman,com o
videogame,com a câmera fotográfica”9.
Ambos tinham consciência de que a vida que levavam não era certa. Por outro
lado, indignados ficam com tamanha injustiça no mundo. “Por quê uns tem muito e
outros não tem nada, que nem a gente?”10 se indignava Zé Luiz. Conversavam a respeito
de Jairzinho, um menino branquinho, limpinho que usava roupas novas.
Os garotos sentiam na pelo o que era a discriminação. “Acham que porque a gente
é preto e pobre devem ficar com medo da gente”11. Sentiam que os tratavam como
bandidos. O ódio tomava. A sede de vingança já era maior.
O mundo das drogas sempre foi acessível aos garotos. Não é atoa que de muito
novos, já haviam experimentado maconha. Sandrinha, uma menina rica, fazia parte das
travessuras dos amigos. Ninguém desconfia das confusões dos garotos quando
Sandrinha estava por perto. Zé estava gostando dela. O preconceito não atingia
somente quem estava fora do campo da discriminação, era notório também, a
7
8
9
10
11
Id., p. 10.
Id., p. 11.
Id., p. 12.
Id., p. 12.
Id., p. 13.
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discriminação do próprio João quanto ao namoro do Zé e da Sandrinha. “Você sabe...
Ela é rica; você, pobre. Ela, branca; você, negro. — Porra, João! Você também é negro e
pobre. Não está percebendo que está com preconceito?”12.
“O tempo passou e João já tinha quinze anos. A sua vida continuava igual. Não
tinha perspectivas de um futuro melhor e percebia a discriminação em tudo quanto ia
fazer. Sentia a má vontade das pessoas em ajudarem-no”13. João frequentava a escola,
já sabia ler e escrever mas não entendia as coisas complicadas que a escola ensinava. A
princípio não queria ir, mas por força dos amigos, foi convencido. João pensava que de
alguma forma s estudos poderiam ajudá-lo a mudar a direção de sua vida. Santo Cristo
não concordava muito com o que ensinavam na escola, e, em uma dessas confusões
acabou suspenso da escola. A partir de então, decidiu não mais frequentá-la. Ele
mesmo daria um rumo em sua vida.
Sua mentalidade depois disso mudou. Sabia que seria capaz de algo novo, que
mudasse a trajetória que seguia. Em uma de suas ideias, no intuito de chamar a atenção
daqueles que os ignoravam, mostrar a eles que existia, João queria pinchar o prédio da
prefeitura. Por causa disso, João foi levado ao reformatório, “quando foram levados
para o carro de polícia, João percebeu que estava diferente. O ódio que ele sentiu
durante toda a sua vida tinha mudado. Ele agora tinha ódio do sistema”14.
João, após sair do reformatório, por meio da influência do prefeito, já que
naquela época era o período eleitoral, foi um dos alvos das propagandas do candidato à
reeleição, sobre a reabilitação dos jovens delinquentes. João entra na política por meio
do Seu Raul. Esse, por sua vez, era o candidato da oposição que deu a Santo Cristo um
novo emprego em seu estabelecimento. Via em João uma forma de ascender ao poder.
João era um rapaz carismático, que conquistava o eleitorado com seus belos discursos.
E era nessa nova fase que João via a possibilidade de mudar o sistema, de eliminar a
corrupção, as mentiras, o jogo de interesses, como era a política do concorrente.
12
13
14
Id., p. 16.
Id., p. 21.
Id., p. 24.
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João participava de comícios, de entrega de folhetos, de visitas a casas
dos moradores, de palestras em escolas, e assim por diante. Aprendeu
a falar para as pessoas, sendo simples como era, e aproveitando o seu
passado pobre, demonstrava um sentimento de esperança ao povo.
Além de tudo, sempre lembrava do que havia acontecido com seu pai.
A política era um vício e ele estava gostando.15
Já no fim das eleições, João tem uma surpresa desagradável com Seu Raul. Tudo
aquilo que foi contra durante toda a campanha, agora Seu Raul queria fazer igual à
oposição. João, que imagina ser seu Raul um candidato diferente, viu nada menos do
que aquilo que abominava. Desapontando com os rumos que a eleição tomou, João
decide ir embora,
Eu vou embora. Aqui não é meu lugar. Está tudo errado. Não confio
em mais ninguém, não confio no sistema, não acredito na política. Não
tem trabalho decente, só escravidão. Os meus amigos todos estão
procurando emprego. Não tem como viver neste lugar.16
Do dinheiro do acerto de seu trabalho comprou uma passagem pra Salvador. Sem
saber ao certo qual rumo tomar, para onde ir, o que fazer, conheceu, na rodoviária,
alguém que poderia mudar seu destino. Fernando era um fazendeiro que iria à Brasília
visitar a filha. Comovido com a história de Santo Cristo, arrumou-lhe um emprego na
carpintaria de seu genro, moradia na casa de sua filha até que João pudesse caminhar
com suas próprias pernas.
Inicialmente sua vida na carpintaria era como a de qualquer outro trabalhador.
Cumpria sua carga horária e ao fim do dia só queria descansar. Do momento em que
começou a receber seu salário, as coisas mudaram. Passava agora a beber mais, sair
mais, e a fazer uso de drogas. De uma dessas noitadas, conheceu Pablo, um peruano
que vivia na Bolívia, que começava sua vida de traficante. João, todavia, não ganhava o
suficiente para alimentar seus vícios, a insatisfação começava a tomar conta dele.
Pablo, com o patrocínio de alguns traficantes do Rio de Janeiro, planejava iniciar
uma plantação de maconha. Com a ajuda de João, poderia agilizar o processo. Dessa
15
16
Id., p.44.
Id., p. 54.
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forma, João juntamente com Pablo começaram a distribuir o produto, tornando-se um
dos maiores traficantes de Brasília.
Santo Cristo, todavia, se apaixonou. Maria Lúcia era o nome dela e em nome de
seu amor por ela, abandona o tráfico. Acontece que o que João havia planejado, de
viver uma vida sem muitas regalias, ganhando seu salário mensal, não funcionou. João
sentia falta do tráfico, e assim decide retornar. Todavia, as coisas já não estavam como
antes. Vários pontos de distribuição haviam sidos tomados. Novos traficantes
ganhavam poder. A retomada de seu império seria difícil. Seu novo concorrente,
Jeremias, além de disputar o poder com João, também levava seu amor, Maria Lúcia.
Em um duelo, Santo Cristo enfrenta Jeremias. E assim o fim de João chega. Morto por
um tiro pelas costas dado por Jeremias.
3
REFLEXÃO SOBRE AS DISCRIMINAÇÕES SOFRIDAS POR JOÃO
Antes de entrar no cerne da questão da discriminação, faz-se necessário refletir
sobre a questão da violência. Há três tipos de violências: 1) a violência subjetiva, que é
quando há a vontade de praticar a violência, quando a pessoa decide praticar a
violência, passando de uma situação aparentemente violenta para uma ação violenta; 2)
a violência objetiva, que, diferente da violência subjetiva, é permanente, “[...] são as
estruturas sociais e econômicas, as permanentes relações que se reproduzem em uma sociedade
hierarquizada, excludente, desigual, opressiva e repressiva” e 3) violência simbólica, que
também é permanente e se reproduz na linguagem, na arquitetura, na arte, na moda entre
outras formas, fazendo uma distinção entre as pessoas através desses mecanismos17.
A violência simbólica e a objetiva são as violências mais danosas para a pessoa. A
discriminação está dentro das duas, na violência simbólica pode ser percebida quando
alguém diz “isso é coisa de preto”, ou quando se constrói uma galeria toda branca, pois
o branco significa puro, bom, bonito, limpo, enquanto o escuro significa o oposto. Já a
violência objetiva é visualizada diariamente quando uma pessoa tem um tratamento de
saúde de baixa qualidade por não ter dinheiro para arcar com as despesas de um
17
MAGALHÃES, 2013, p. 54.
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tratamento particular, quando uma pessoa é proibida de entrar em algum
estabelecimento por não se vestir “adequadamente”, ou por não pertencer a certo “ciclo
social”. Essas discriminações são muitas das vezes inconscientes, a forma de olhar o
diferente, o negro, o pobre, é uma forma de descriminação, que está tão enraizada na
cultura brasileira que os próprios pobres, negros, entre outras minorias se
descriminam, sendo eles os primeiros a se descriminarem. Um ótimo exemplo dos
problemas da não aceitação das diferenças é a história de Débora18, que tinha dores de
cabeça inexplicáveis, que na verdade ocorriam pelo fato de ela pentear tanto e com
tanta força os cabelos que sua cabeça ficava dolorida, e a história mais emblemaria é a
de Júlia, uma menina de oito anos, que foi surpreendida por sua mãe penteando seus
cabelos com tanta força que fez seu próprio couro cabeludo sangrar19.
Esses efeitos são sintomas e não o problema, o problema é estrutural, cultural, de
aceitação. Deve haver uma mudança, há a necessidade de se criar uma cultura de
aceitação do plural, do diferente. Não podemos aceitar que “[...]uma criança, dada a sua
fragilidade, aja desse modo buscando uma forma de afirmar para si mesma que não é
aquilo que é[...]”20. João de Sando Cristo percebeu sua auto descriminação quando seu
amigo Zé Luiz lhe contou que tinha iniciado o namoro com Sandrinha, que era amiga
dos dois. João logo argumentou se daria certo o namoro, uma vez que ela era rica e
branca ao contrário de seu amigo que era negro e pobre. Zé logo disse que isso era
discriminação e que João também era negro e pobre. Isso foi uma revelação para João,
que ao perceber seu preconceito deu razão e desejou sorte a seu amigo. Essa visão de
inferioridade é construída a partir da convivência em sociedade, mostrando que as
pessoas vítimas de preconceito, que são excluídas, assimilam a hierarquia social e a
incorporam, julgando seus atos a partir dessa hierarquização.
O Estado tem o dever de promover o respeito pelas diferenças, mostrando que a
diversidade é boa, mas o primeiro local onde a pessoa aprende o contrário é na escola.
18
19
20
A história de Débora e de Júlia são contadas por Jessé Souza, no livro Ralé brasileira.
SOUZA, 2009, p. 355.
Id.,. p. 356.
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As escolas ensinam que a uniformização é boa, que o diferente não é aceito, quem não
utiliza o uniforme, não pensa da forma que “tem” de pensar, é excluído, em alguns
casos até mesmo da própria instituição de ensino. Essa criança aprende que o padrão é
bom, que o que não está no padrão é ruim. Isso já explica a atitude de Débora e de
Júlia, que não aceitam seus cabelos, não os aceitam por não serem iguais aos padrões
de beleza, não sendo como o padrão ele é feio, é desqualificado, tem de ser alterado,
mesmo que isso signifique uma espécie de automutilação. Simbolicamente, as escolas
modernas dizem às crianças que tem de se adequar, se conformar, pois esse é o seu
lugar no sistema. Essa criança que aprende isso na escola irá de alguma forma reagir à
“ameaça” do diferente, excluindo e punindo o diferente “ruim”. Ate mesmo os
professores pecam nesse momento, a criança dita mais bonita é mais bem tratada,
recebe mais atenção21. As escolas não estão preparadas para lidar com a diferença, ao
contrário, o ensino eclesiástico adotado no Brasil, onde o professor diz a verdade
enquanto os alunos em fila o escutam e aceitam aquela verdade sem questionamento,
promovendo
assim
uma
“educação
bancária”22,
onde
o
professor
deposita
conhecimento no aluno, junto com o ideal moderno de escola, que serve para formar
operadores em fábricas, promovendo a uniformização, é uma forma de educação
escolar ultrapassada, que não atinge o objetivo de educar os alunos para conviverem em
sociedade, ao menos não em uma sociedade plural e democrática.
A instituição de ensino ensina a criança a conviver em uma sociedade
hierarquizada, seja pelo dinheiro, pela beleza ou pela cor de pele23. João de Santo
Cristo, aos 15 anos, discutiu com seu professor de português por não entender o que ele
ensinava como sendo a verdade absoluta, o que lhe rendeu uma suspensão, ele não
entendia qual era a serventia das fórmulas matemáticas, da história romana, se ele
21
22
23
MAGALHÃES, 2013, p. 55-56.
FREIRE, 1996. p. 47.
“Em outras palavras, a escola moderna ensina diariamente a criança a praticar o “bullying”. Veja-se
então a ineficiência das políticas de combate à violência, à discriminação, à corrupção que padecem,
todas, deste mal. No exemplo descrito anteriormente, a escola, o estado, os governos, criam políticas
públicas pontuais de combate ao “bullying” (a tortura mental e agressão física decorrente da
discriminação do “diferente”) ao mesmo tempo que mantêm uma estrutura simbólica que ensina a
discriminação (o “bullying”)” (MAGALHÃES, 2013, p. 56).
KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED
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nunca utilizaria esses conhecimentos em seu cotidiano. Faltou uma instrução para ele,
não o fora explicado a serventia de cada matéria, nem mesmo a necessidade de se
aprender algo que as ruas não o ensinara, ele era esperto, muito inteligente, sempre
adiantado em relação a seus colegas, mas não se enquadrava no padrão, sendo relegado
pelas engrenagens do sistema educacional.
Não adianta instituir políticas públicas de combate a violência subjetiva, sem que
haja uma mudança na estrutura socioeconômica opressiva e desigual que existe no
Brasil, que reproduzem a desigualdade, a opressão, a exclusão do “outro” diferente,
subalternizado inferiorizado24. Na realidade, o Estado Moderno é um Estado
uniformizador, normalizador, onde a partir “Desta uniformização (homogeneização)
depende a efetividade de seu poder”25.
A sociedade, embalada pela grande mídia, aposta na punição dos excluídos, dos
não enquadrados, dos não uniformizados e não normalizados. Isso cria uma forma de
higienização urbana, sendo essa a mais nova política urbana do século XXI, tornando o
Direito Penal o caminho para essa higienização, pois assim não há a necessidade de
entender o outro, basta somente prende-lo, excluí-lo, julga-lo26. Essa preferência pela
exclusão é fundamentada pela lógica “nós X eles”, sobre a qual se baseia a
modernidade, ou seja, o fato de “eles” não serem iguais a “nós”. “Eles” são coisificados,
são animalizados, não possuem alma. Essa lógica possibilitou as barbáries cometidas
contras os povos originários nas Américas, com os povos colonizados na África, e todas
as barbáries cometidas pela humanidade durante a modernidade27.
O discurso politicamente correto que é defendido atualmente é que não existe
mais, no Brasil, o dogma que define os “bons” (brancos) dos “maus” (negros), que
defende os “bons” dos “maus”, como explicar “[...] as afirmações de “orgulho racial” tão
24
25
26
27
MAGALHÃES, 2013, p. 55.
MAGALHÃES, 2012, p. 17.
MAGALHÃES, 2013, p. 57.
MAGALHÃES, 2012, p.27-28.
KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED
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frequentes quanto difusas entre brancos e mulatos no Brasil? Como explicar o
comportamento ostensivamente racista?”28
É certo dizer que o racismo brasileiro é diferente que o dos Estados Unidos. Nos
Estados Unidos há a segregação física entre os negros e brancos, tendo até igrejas onde
pessoas de certa tonalidade de pele não podem entrar. No Brasil, o racismo é diferente,
é um racismo hipócrita, onde todos se dizem não ser racista, mas quando um negro se
move contra a doxa estética, a sociedade como um todo reage de forma racista,
excluindo e desqualificando essa pessoa29. Esse tipo de racismo é insuportável, uma vez
que até a punição dos “agressores” se torna de difícil efetivação, uma vez que a reação é
espontânea e só ocorre quando um negro tenta romper com a hierarquia social
imposta.
Os atos racistas nada mais são que um esforço para “tapar o buraco” de uma
carência emocional, sendo o orgulho racial uma fonte substitutiva de autoafirmação.
Isso explica inclusive por que as classes de menor status são as mais
racistas, fato constatado por diversos estudos. Não a sua pobreza em
dinheiro, mas antes de tudo a insegurança existencial dessas pessoas
diante de um universo de insígnias de dignidade humana e de nobreza
cultural (conhecimento incorporado, gostos sofisticados), as quais elas
preenchem pouco ou sequer preenchem, faz com que elas busquem
fontes substitutivas de autoafirmação. Algo semelhante acontece com
o machismo: os homens são tanto mais dependentes da sua honra de
“macho” para se autoafirmarem como seres de valor, quanto mais são
carentes das fontes de reconhecimento referentes à situação de
classe30.
Voltando ao século XVI, uma pergunta vem à tona. Os ocidentais não tinham
espelhos? Essa pergunta é pertinente ao repensar as acusações que fizeram os
portugueses, espanhóis, holandeses e todos os outros povos modernos sobre os demais
povos, apontando as “barbáries” que os povos “menos evoluídos” cometiam, não sendo
capazes de enxergar suas próprias barbáries a partir do humanismo cristão. Na
realidade, eles tinham espelho sim, mas era o espelho de narciso, que mostrava o que
28
29
30
SOUZA, 2009, p. 377.
Id., p. 372.
Id., p. 377-378.
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eles queriam ver, ou seja, a sua “superioridade”, sua beleza escultural, tratando de um
espelho que não revela, mas esconde a verdade. Através desse espelho “nós” somos
mais evoluídos, somos melhores e devemos purificar e evoluir “eles”. “Este é um
dispositivo perigoso, pois, quando denunciamos a falta do espelho, quando afirmamos
que este “nós” comete as “selvagerias” ou “barbáries”, “nós” retruca mostrando o
espelho de narciso: “veja, não há nada de mal aqui”, ou ainda, “o mal que há não é de
nossa responsabilidade, a responsabilidade é deles que recebemos tão bem em nossa
terra”31.
No Brasil há esse espelho de narciso, onde se vê somente o que se quer enxergar.
Mesmo os que são descriminados discriminam por conta desse espelho que eles
consultam, quando o espelho lhes diz o que ele quer escutar e não a realidade, há uma
confusão enorme.
[...] o racismo ostensivo daqueles mulatos que querem acreditar ser
brancos é movido pelo esforço para negarem a própria condição de
negros. O negro que essas pessoas ofendem na escola, numa festa ou
em qualquer outra ocasião não é senão aquela negridão inadmissível
que elas veem no espelho. Projeta-se o que se odeia em si mesmo
numa figura frágil o bastante para que se possa exercer sobre ela esse
ódio. Um policial negro que não aceita o fato de ser negro será
certamente um dos mais aficionados em “dar duras” em jovens negros.
Quando o Estado entrega a uma pessoa tão existencialmente insegura
uma insígnia que de uma hora para a outra, como que num passe de
mágica, concede a ela um grande poder de violência e o peso de toda
uma instituição para legitimar o seu exercício, ele (o Estado) está
literalmente armando o racista32.
O racismo muitas das vezes ocorre em relação a condição financeira da pessoa,
uma pessoa com mais recursos financeiros é melhor tratada, sendo essa uma fusão do
capitalismo com a concepção moderna de sociedade. Na sociedade moderna, o dinheiro
encontra-se tão encrustado no consciente coletivo, que adquire, de certo modo, o
estatuto que as instituições do espaço e do tempo tinham em Kant. Percebe-se, dessa
forma, o mundo moderno e suas relações a partir das características que o dinheiro
promove, guiando-nos no sentir e pensar. A capacidade avaliativa da pessoa tende a
31
32
MAGALHÃES, 2012, p. 27-28.
SOUZA, 2009, p. 378.
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assumir a forma quantitativa do dinheiro, assim o sujeito que é mais digno, mais
importante, melhor, é o que tem mais dinheiro, sendo ele merecedor de mais “amor” e
de “atenção”33.
Privados de status econômico e social, os indivíduos invisíveis
começam a se socializar de uma maneira que os conduz a ocupar uma
posição de inferioridade em relação aos indivíduos imunes e a aceitar
a arbitrariedade por parte das autoridades públicas. Eles não mais
esperam que seus direitos sejam respeitados pelos outros ou pelas
instituições com responsabilidade em aplicar as leis. Aqueles que
reagem a essa posição degradante se tornam uma ameaça e são
tratados como inimigos. Ao mesmo tempo, os indivíduos imunes não
se consideram compelidos a respeitar aqueles que veem como
inferiores ou inimigos. O mesmo se aplica às autoridades cooptadas.
Nesse caso, um grande número de pessoas está abaixo da lei, enquanto
um grupo de privilegiados está acima do controle estatal. Dessa
maneira, o Estado que supostamente seria o responsável pela
utilização dos mecanismos formais de controle social, em
conformidade com a lei e pelos seus meios coercitivos, começa a
reproduzir parâmetros socialmente generalizados34.
As classes sociais que sofrem preconceito são violentadas diariamente por
palavras, gestos, insinuações, brincadeiras, etc., o que leva a pensar que um tipo de
pessoa é melhor que os demais, possibilitando rotular os que não se enquadram na
sociedade como vândalos, criminosos, marginais, quando na realidade são apenas
pessoas, com sonhos e desejos. João mostrou isso quando foi para o reformatório e
disse para Zé Luiz cuidar do povo que era enganado, como enganaram seu pai a vida
toda. João mesmo não se enquadrando na sociedade tinha desejos “nobres”, ele
desejava o bem das pessoas carentes, que sofriam nas mãos dos que detinham o poder.
A forma de ajudar aos seus iguais era somente aquela, por isso foi considerado
criminoso. Ele foi violentado das mais variadas formas durante toda sua vida, não
entendendo como funcionava e o porquê existia a discriminação por sua classe e sua
cor. A maioria das pessoas em sua posição se anularia, ele, por outro lado, tentou fazer
algo diferente: buscou se impor.
33
34
SOUZA, 2013.
VIEIRA, 2011, p. 41.
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CONCLUSÃO
O artigo em questão pretendeu analisar de que forma a discriminação oriunda da
desigualdade econômica e social interfere na forma de tratamento das pessoas
excluídas da sociedade. Por excluídos, entendemos aqueles que estão à margem da
sociedade, que são considerados por ela como indivíduos marginalizados.
Associamos a essa forma de exclusão social o fator da desigualdade econômica,
social e racial. Há uma tendência a considerar aquele indivíduo desprovido das mesmas
condições do que outros como um ser carente de tratamento diverso, que não pode ser
visto com a dignidade pertencente a cada cidadão. A essa atitude, de coisificar o
homem, olvidando de seu caráter humano é que nos propomos a debater.
Na verdade, a sociedade salienta-se somente para o lado do “Nós”, esquecendo-se
que, na realidade, o nós somos também eles. Quando tratamos o outro como “Eles”,
não levamos em conta existe toda uma trajetória vivida por aquele indivíduo e que, ao
invés de levarmos em conta a história que cada um carrega, optamos por rotulá-los
como à margem da sociedade em que vivemos.
Carregamos o peso da hipocrisia social quando fazemos discriminações quanto à
cor, a origem social, o peso econômico que cada cidadão alberga. Por trás de todo
cidadão assim considerado individualmente, existe um ser complexo, com várias
dimensões, que se esconde por trás do nome reducionista atribuídos a eles, tais como
“o bandido”, “o drogado”, etc.
REFERÊNCIA
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O estado plurinacional e o direito internacional
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
DE UMA REPÚBLICA ARACDIANA AO POSITIVISMO KELSENIANO:
A BUSCA PELA “LEI PERFEITA”
C LAUDIA M ARIA M ARTINS B ARBOSA G RAÇA 1
G ABRIELA L OYOLA DE C ARVALHO 2
RESUMO: O artigo pretende relacionar o conto machadiano A sereníssima
república com a obra do austríaco Hans Kelsen. Para tanto, a análise se dará a
partir da forma pela qual as aranhas articulam os procedimentos eleitorais para
alcançar o sentido único da norma. A cada nova eleição, arbítrios são identificados,
fazendo com que as aranhas busquem novas soluções, livres de fraudes e vícios.
Muito embora a busca pelo sentido unívoco da norma ou do procedimento seja
pretendido pela república aracnídea, Kelsen, em seus escritos da Teoria Pura do
Direito, alerta-nos no sentido de que não há uma única resposta correta. Na
verdade, a chamada moldura do direito avança na perspectiva de abarcar as
soluções possíveis para um caso concreto e não somente uma única solução. Dessa
forma, pretende-se demonstrar que as várias tentativas seguidas das aranhas em
reformar a lei para corrigir os defeitos da norma seria um bom arquétipo da busca
do positivismo pela lei perfeita. Além disso, intenta-se relacionar a teoria
kelseniana ao mencionado argumento, no sentido de que para o filósofo, não existe
apenas um único sentido na lei. Com efeito, pretende-se verificar que o problema
não é o texto, mas sim o que se faz com ele.
PALAVRAS-CHAVE: norma jurídica; procedimentos eleitorais; teoria kelseniana.
1
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como escopo realizar um estudo sobre a norma jurídica
tendo como base a teoria Kelseniana. Para esse fim pretende-se partir de uma análise
1
2
Mestranda pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Bolsista FAPEAM. Advogada
Mestranda pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Advogada
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do conto de Machado de Assis A sereníssima república integrante na coletânea Papeis
Avulsos em 1882.
Machado é um pensador além do seu tempo, tanto é assim, que seus escritos
permanecem plenamente atuais nos dias de hoje e, quiçá, durante toda a história da
humanidade. Sua visão de mundo é atemporal e, por isso mesmo, é possível ver-se a
atualidade por meio das lentes machadianas.
Dessa feita, pode-se dizer que a obra machadiana é como uma fonte que
possibilita a análise de problemas das mais diversas ordens, que afligem o mundo
contemporâneo.
Hans Kelsen foi um dos grandes positivistas de seu tempo. Em atenção à sua
obra, a Teoria Pura do Direito, pretendeu-se abordar a relação existente entre a busca
pela perfeição da norma jurídica no conto de Machado de Assis e, a contribuição do
austríaco ao esclarecer que, na realidade, não existe um sentido unívoco da lei, mas,
todavia, a moldura do direito, existe, para solucionar tal percalço. Isto porque, a partir
de um quadro de possibilidades normativas, seria viável a escolha de uma das normas
para aplicar-se ao caso concreto.
De certa forma, ao associarmos o conto machadiano com a teoria do austríaco,
enxergamos um paradoxo, de um lado notamos a tentativa infundada das aranhas em
pretender o sentido único da lei, e, de outro, a alternativa proposta por Kelsen, em criar
a moldura do direito, com as possibilidades jurídicas elencadas em tal.
Tivesse o conto A sereníssima república sido publicado no início do século XX e
pareceria ao leitor tratar-se de uma análise metafórica do sistema eleitoral brasileiro,
sempre em busca de reformas legislativas para solucionar problemas afetos ao sistema
eleitoral. Por isso, a escolha desse conto para realizar um estudo sobre o sistema
eleitoral brasileiro relacionando-o à teoria de Kelsen.
2
RESUMO DO CONTO A SERENÍSSIMA REPÚBLICA
O cônego Vargas realiza uma conferência perante um auditório composto por
indivíduos interessados na atividade científica onde divulga que descobriu uma aranha
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que possui uma característica atípica, qual seja, o domínio de uma linguagem rica e
variada. Explica, ainda, que teve grande dificuldade para dominar o idioma araneida a
fim de conseguir estabelecer uma comunicação com as aranhas.
No decorrer do conto, Machado descreve que o cônego, ao iniciar seus estudos,
fazia anotações em um caderno, motivo, pelo qual, as aranhas deduziram que se tratava
do registro de seus pecados, já que julgaram o homem como uma espécie de Deus,
passando por esse motivo a tentar realizar boas ações. O que, segundo o autor, denota a
ingenuidade das aranhas e a inclinação para ver numa pessoa maior um poder superior
ao delas.
O Cônego resolveu, então, dotar as aranhas de um sistema de governo, optou por
um sistema simples. As aranhas deveriam tecer um saco com o objetivo de que fossem
colocar as bolas para a realização do sistema eleitoral, as bolas deveriam ter o nome dos
candidatos que seriam retirados aleatoriamente. Os nomes sorteados seriam os eleitos.
Segundo informa o autor que assim era consolidada uma república á maneira de
Veneza.
Uma vez aceito o nome de Sereníssima República, as aranhas se encontravam
prontas para iniciar a votação. Durante a conferência, o cônego vai explicando os
problemas que ocorreram e as formas imaginadas pelas aranhas para solucionar os
problemas e, assim, dotar o sistema eleitoral de integridade. Os partidos políticos
dividiam-se com base em princípios geométricos em razão do ofício aracnídeo de tecer
teias.
Sobre esse fato, narra o cônego: “ Uns entendem que a aranha deve fazer as teias
com fios retos,é o partido retilíneo; — outros pensam, ao contrário, que as teias devem
ser trabalhadas com fios curvos, — é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro
partido,misto e central, com este postulado: — as teias devem ser urdidas de fios retos e
fios curvos; é o partido reto curvilíneo;e finalmente, uma quarta divisão política, o
partido anti-reto-curvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e
propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há
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linhas de espécie alguma. Como a geometria apenas poderia dividi-los, sem chegar
apaixoná-los, adotaram uma simbólica.”
As linhas eram interpretadas pelos diferentes segmentos da sociedade, reunindose os que possuíam uma ideologia semelhante. Ocorre que várias vezes as eleições
contiveram vícios, pequenos grupos tentavam manipular a eleição, a fim de obter os
cargos públicos.
A cada problema as aranhas tentavam encontrar uma nova maneira de evitar que
o sistema eleitoral fosse fraudado. Dentre as tentativas de corrupção a que mais se
destaca no conto é a última, na qual se tentava eleger um coletor de espórtulas,
funcionário encarregado de cobrar as rendas públicas.
Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um certo Nebraska. A bola
extraída foi a de Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe faltar a última letra; mas,
cinco testemunhas juraram,nos termos da lei, que o eleito era o próprio e único
Nebraska da república. Tudo parecia findo, quando o candidato Caneca requereu
provar que a bola extraída nãotrazia o nome de Nebraska, mas o dele. O juiz de paz
deferiu ao peticionário. Veio então um grande filólogo, — talvez o primeiro da
república, além de bom metafísico, e não vulgar matemático, — o qual provou a coisa
nestes termos:
— Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar que não é fortuita
ausência da última letra do nome Nebraska. Por que motivo foi ele
inscrito incompletamente? Não se pode dizer que por fadiga ou amor
da brevidade, pois só falta a última letra, um simples a. Carência de
espaço? Também não; vede: há ainda espaço para duas ou três sílabas.
Logo, a falta é intencional, e a intenção não pode ser outra, senão
chamar a atenção do leitor para a letra k, última escrita, desamparada,
solteira, sem sentido. Ora, por um efeito mental, que nenhuma lei
destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois modos, a forma
gráfica e a forma sônica: k e ca. O defeito, pois, no nome escrito,
chamando os olhos para a letra final, incrusta desde logo no cérebro,
esta primeira sílaba: Ca. Isto posto, o movimento natural do espírito é
ler o nome todo; volta-se ao princípio, à inicial ne, do nome Nebrask.
— Cané. — Resta a sílaba do meio, bras, cuja redução a esta outra
sílaba ca, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do
mundo.
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Por mais incrível que possa parecer a interpretação foi aceita e o resultado
modificado. Foram tentadas, ainda, várias mudanças afim de se evitar falhas no
sistema, todas, porém, foram em vão.
O Cônego conclui a conferência, chamando a atenção para o comentário de uma
aranha chamada Erasmus, encarregado de notificar a última resolução legislativa às
dez damas incumbidas de urdir o saco eleitoral, este as comparou a Penélope da
mitologia, que fazia e desfazia a famosa teia, à espera do esposo Ulisses.
Como se depreende do conto acima, Machado faz uma crítica bem humorada e
sarcástica, bem nos moldes machadianos, sobre a inutilidade da busca por uma lei
perfeita, uma vez que sempre haverá pessoas ardilosas, capazes de burlar um sistema
jurídico de forma a manipulá-lo em proveito próprio.
3
MACHADO: UM ESCRITOR ALÉM DO SEU TEMPO
Após 100 anos, as obras de Machado de Assis permanecem plenamente atuais.
Seus personagens apresentam aspetos psicológicos semelhantes aos personagens da
atualidade. Além disso, a descrição minuciosa e crítica que fazia da sociedade daquela
época possibilita entrever-se o cerne da corrupção que assola esse país até os dias de
hoje.
Em obras como Dom Casmurro, O alienista, Memórias póstumas de Brás Cubas,
dentre outras, assuntos como a degradação humana, adultério, loucura, são tratados de
maneira mordaz, os personagens machadianos são complexos, por isso mesmo, sempre
atuais, a sociedade é descrita de forma a deixar cristalinamente demonstrado as
diferenças existentes entre as classes sociais.
Machado, paradoxalmente, consegue ser claro, irônico, mordaz, mas também,
sugere, insinua, atiça a imaginação do leitor, fazendo com que esse sinta-se tentado a
penetrar no íntimo do personagem, inserir-se em seu mundo, compartilhe seus
sentimentos.
Nesse sentido Lenio Streck comentando a tragédia de Santa Maria, assim se
manifestou:
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[...] Vejam. Machado de Assis era um gênio. Há bem mais de 100 anos
já denunciava esse tipo de estratégia de buscar utilidades nas
tragédias. Nossa imprensa é expert no assunto. Está lá em Quincas
Borba. Vejam como cabe perfeitamente no caso do repórter de Porto
Alegre e naquilo denunciado na coluna:
“Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona — um triste
molambo de mulher — chorava o seu desastre, a poucos passos,
sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o
incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
- É minha, sim, meu senhor; tudo o que eu possuía neste mundo.
- Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original;
não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias
alheias”3.
Streck compara o texto machadiano com a forma como a mídia se comportou no
episódio de Santa Maria: “Entrevistaram pessoas que, por alguma razão, não foram à
Boate [...] Enfim, todos tiraram a sua casquinha. Repórteres foram tirados das férias
para irem morar em Santa Maria”4.
Machado, através de seu humor ácido, da análise do caráter humano de seus
personagens, da crítica ferrenha à sociedade de sua época consegue manter-se
constantemente atualizado, possuindo sua obra um caráter atemporal.
4
KELSEN E O POSITIVISMO CLÁSSICO
Em face a um cenário configurado em várias concepções do direito e, em meio a
inúmeras recomendações para as diferentes formas de sua aplicação, a teoria de Hans
Kelsen, se justifica.
Com base em uma concepção neopositivista de ciência, oposta a qualquer tipo de
metafísica, Kelsen busca fundar sua teoria em uma ciência genuinamente jurídica,
diferentemente da série de motivações políticas, econômicas, históricas, sociais, a
filosofia do austríaco corresponde a uma ciência rigorosamente metódica, livre dos
fatos sociais, bem como dos fatores psíquicos e, tampouco em relação às finalidades do
3
4
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/4/02/13>. Acesso em: 13 nov. 2013.
Idem
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meio societário, mas sim, tendo por objeto as normas jurídicas, mais precisamente a
linguagem das normas.
A ciência jurídica de Hans Kelsen, portanto, procuraria explicar o sentido das
proposições jurídicas e as relações que essas estabelecem com as outras.
É nesse sentido que se pretende desenvolver o presente artigo: a contribuição
filosófica da linguagem na construção do marco científico do austríaco ao esclarecer
que para a decisão jurídica não existe uma única resposta, sendo essa, todavia,
discricionária dentro do quadro das possibilidades normativas do direito.
Kelsen, é considerado um dos grandes autores positivistas. Entretanto, faz-se
necessário entender o significado de sua concepção positivista do direito.
O positivismo clássico tem por escopo banir os pressupostos metafísicos do
conhecimento científico. Concentra-se na observação dos fatos, daqueles oriundos da
realidade, daquilo passível de comprovação através da lógica. Desta feita, a
manifestação não é mais capaz de explicar e fundamentar as realidades daquele
contexto histórico. Agora, os fatos existem ou não, de maneira que todas as formas de
valoração, seja da moral, da ética, da justiça, são endereçadas ao campo da opinião que,
todavia, não é objeto da análise do conhecimento cientifico.
Os métodos teológicos e metafísicos que, relativamente a todos ou
outros gêneros de fenômenos, não são mais agora empregados por
ninguém, quer como meio de investigação, quer até mesmo como
meio de argumentação, são ainda utilizados, nesta ou naquela direção,
em tudo o que concerne aos fenômenos sociais, a despeito de essa
insuficiência já ser percebida por todos os bons espíritos, cansados de
vãs contestações intermináveis entre o direito divino e a soberania do
povo.5
Cumpre esclarecer que, na perspectiva do positivismo clássico, a atenção se volta
para os fatos perceptíveis e comprováveis com os princípios da lógica e da causalidade.
A verdade sobre tais fatos e suas leis causais concentra o pensamento dessa linha
teórica. O que, entretanto, deixa de ser ressaltado, é a busca pela validade e
5
COMTE, 1978, p. 8.
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legitimidade de mencionados fatos, ou seja, o critério de correção normativa ainda
procura por seu fundamento.
Com o positivismo jurídico, o Direito Natural, antes fundamento da ordem
normativa, passou a ocupar o campo da validade metafísica do direito. Assim, abre-se o
leque para aquilo que seria o direito natural e o direito posto, sendo o último a uma
única forma de direito legislado já que seria real, existente e comprovável.
Uma das principais contribuições desse paradigma científico foi colocar fora da
esfera de discussão, aquilo que seria positivo e incontestável. A veracidade científica,
portanto, seria aquela comprovada em fatos. A ciência do direito só poderia trabalhar
com base em fatos positivos, reais, de forma a serem atestados como ocorridos ou não,
empiricamente.
Em face dessa perspectiva, da ciência a partir da observação dos fatos, a
concepção psicológica e a sociológica surgem como divisores positivados do direito. A
questão se desdobra em que tipo de fato constitui a positividade do direito para assim
ser trabalhado no anseio científico. Para o primeiro segmento psicológico, os fatos
jurídicos são os psíquicos, oriundos do mundo subjetivo, interior cujo âmbito de análise
se concentra no livre arbítrio, no comportamento e na consciência do dever de cada um.
Direito em sentido jurídico, é tudo aquilo as pessoas, que convivem em
qualquer comunidade, reciprocamente reconhecem como norma e
regra de viver em comum. [...] Uma norma de Direito que vem a
apresentar-se como conteúdo do seu dever jurídico na medida em que
ele sabe que, por um lado, ela lhe é dirigida por certos seus
concidadãos e, por outro lado, a sua própria vontade a reconhece6.
De outro lado, a concepção sociológica funda os fatos do direito naqueles sociais,
provindos do mundo exterior, captados em sua objetividade social, ou seja, na forma
dos interesses.
Imperioso destacar que tanto para o positivismo sociológico quanto para o
positivismo psicológico os fatos devem ser compreendidos segundo a causalidade. A
identificação dessas causas, portanto, seriam capazes de explicar os acontecimentos.
Nesta perspectiva, ou se considera o direito como uma realidade que existe como fato
6
BIERLING apud LARENZ, 1997, p. 50-51.
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na consciência humana – concepção psicológica – ou, se considera o direito como um
fato social – concepção sociológica7.
Ambas as teorias traziam paradigmas reducionistas, unilaterais e equivocados. A
teoria psicológica do direito vê na vontade e no reconhecimento fundamento dos fatos
comportamentais que edificarão as perspectivas jurídicas enquanto a teoria sociológica
entende como direito o resultado de causas sociais, sejam elas econômicas, políticas,
uma vez que possuem o condão de estruturar as instituições jurídicas além de
atribuírem finalidades sociais ao direito.
Kelsen, entretanto, diferentemente da percepção do positivismo clássico, não
elencou mencionados enunciados para justificar sua teoria. Assim como a teoria
clássica procurou excluir do direito aquilo que não pertencia à norma jurídica
positivada, o austríaco, assim também o fez. Para tanto, elegeu como objeto, a norma
jurídica, afastando qualquer tipo de comportamento psíquico, social da esfera científica
de análise.
A teoria pura do direito, por sua vez, adequou-se como uma concepção moderna
do direito tanto em relação à autonomia adquirida, ao não abordar questões
psicológicas e sociais como centro da análise, sendo a norma jurídica a essência do
direito, quanto em face à garantia de abstração do direito ao ampliar seu âmbito de
aplicação. O direito, que necessitava ser independente em relação aos interesses sociais,
agora, o faz segundo a conectividade dos interesses ao Estado interventor, com o ideal
de instrumento das políticas públicas estatais8.
A positividade do direito para o austríaco encontra-se muito além da existência
positiva, constituindo-se, também, pelas normas com validade jurídica, segundo uma
norma igualmente positiva, sempre superior. A validade das normas jurídicas encontra
seu
7
8
fundamento
de
validade
naquelas
normas
igualmente
jurídicas
mas
LARENZ, 1997, p. 48.
Cumpre salientar que à época da elaboração da Teoria Pura do Direito, o modelo de Estado progredia
para um ideal interventor necessitando do direito como um de seus principais instrumentos para
concretização de políticas públicas.
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hierarquicamente superiores e pré-existentes9. Convoca, pois, para a ciência jurídica, o
objeto ideal, que seria a norma fundamental.
A ciência normativa do direito persegue não só a norma jurídica como também o
resultado das proposições a respeito do sentido nas normas. De forma a endereçar tal
positividade à validade normativa Kelsen necessita separar o direito da ciência do
direito, realizando tal façanha através da relação entre linguagem e metalinguagem.
Com o racionalismo lógico, considera a norma jurídica como a linguagem, através do
dever-ser enquanto a ciência do direito, o estudo do sentido das normas jurídicas, seria
considerado como a metalinguagem, no nível do que vem a ser o direito.
Desde já, cumpre esclarecer que nosso objetivo não é realizar um esboço histórico
da construção teórica de Kelsen, nem tão pouco realizar uma análise do que vem a ser
os enunciados afirmados em sua teoria. O que se pretende, todavia, é alcançar a relação
que existe entre a teoria pura do direito no tocante ao sentido único da norma e o conto
a Sereníssima República. Dessa forma, achamos conveniente e necessário, expor os
pressupostos que levaram o austríaco a chegar a tal conclusão, sem, contudo, realizar
uma exposição de toda a bagagem teórica envolvida nessa ação, mas, tão somente,
eleger os pontos principais de tal construção.
5
A CONTRIBUIÇÃO DA CIÊNCIA LINGUÍSTICA
Como já mencionamos a análise central do presente artigo tem por escopo,
relacionar a moldura do direito em Kelsen com a tentativa infundada das aranhas, no
conto machadiano, em procurar criar uma única resposta correta para o caso concreto.
Para tanto, não se pode olvidar da trajetória perseguida pelo austríaco na construção de
tal paradigma, sem, todavia, realizar um estudo sistemático sobre tal matéria.
A questão da linguagem se torna evidente nos escritos de Hans Kelsen. O
neopositivismo lógico inaugurou um movimento teórico baseado na análise da
linguagem procurando descrever o sentido dos fatos empíricos. O plano da relação
9
KELSEN, 2003, p. 215.
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analítica dos símbolos linguísticos será o objeto de análise da teoria em questão
utilizando, Kelsen, de tais aportes.
Sem pretender aprofundar a matéria, introduzimos, superficialmente, o
pensamento de Wittgenstein para a questão Desde o neopositivismo do Circulo de
Viena, considerando o sentido hipotético das proposições, a lógica não alcança a
realidade. Na verdade, a lógica seria representada pelos símbolos que tem o condão de
reconstruir a realidade na sua forma hipotética. A mediação entre a lógica e a realidade
do mundo, segundo Wittgenstein, se daria pela linguagem. “O mérito de Russel10 é ter
demonstrado que a forma aparentemente lógica da proposição não deve ser sua forma
real. A proposição é figuração da realidade. A proposição é modelo de pensamento da
realidade tal como a pensamos”11.
As contribuições de Carnap, seguindo a mesma lógica da análise linguistica,
ajudam numa melhor compreensão do desenvolvimento da Teoria Pura. Esse, por sua
vez, trabalha com entidades abstratas cuja facticidade está nos símbolos da linguagem
em geral, naqueles sintáticos-linguisticos. Divide a linguagem em I – constituída de
signos com operadores lógicos diferentes que permitem a passagem de uma proposição
para outra – e, em II sendo uma linguagem mais rica, complexa e mais abrangente do
que a Linguagem I. Dessa forma, a Linguagem II abrange também a I. Todavia, mesmo
para a linguagem II, Carnap considera as disciplinas normativas ou as filosofias de
valores tais como a ética, moral, o direito como proposições metafísicas não tratáveis
em termos lógico-formais12.
Carnap demonstrou que uma proposição linguística correta no nível da
Linguagem I não pode ser comprovada da mesma forma no nível da Linguagem II.
Assim como na matemática, ciência exata, acobertada pelos empirismos científicos não
permite existir axiomas completos e consistentes. Com efeito, uma proposição
10
11
12
Ver mais em Principia Mathematica, obra escrita pelo autor, famoso pelo paradoxo: o conjunto de
símbolos que contém todos os conjuntos contém também a si mesmo? Ou, quem faz a barba do barbeiro
que faz a barba de todos os homens da cidade?
WITTGENSTEIN, 1968, p. 71.
CARNAP, 2002, p. 278.
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linguística correta no nível da linguagem não pode ser afirmada no nível da
metalinguagem. Embora se construa uma linguagem rigorosa em termos da lógica, não
contraditória e coerente, ela apresentará uma margem de incerteza quando passada
para outro nível linguístico. Por mais rigorosa que seja, toda linguagem produzirá
lacunas quando da passagem de um nível para o outro.
Aplicando o mencionado pensamento à teoria kelseniana, podemos observar a
passagem de um nível para outro ao se tratar do direito – a norma jurídica – e, ciência
do direito – a proposição. Além disso, a diferença entre os níveis normativos do
ordenamento jurídico, desde a norma fundamental até os atos jurídicos corroboram
com tal premissa.
6
A LINGUAGEM EM KELSEN
Seguindo as premissas de Carnap, o austríaco, no campo do direito, diferencia a
Linguagem I, a linguagem objeto da Linguagem II, a metalinguagem. À primeira
corresponde o direito, aquele conjunto de normas que regula o comportamento
humano13. A segunda, entretanto, seria a ciência do direito, aquelas proposições que
explicitam o sentido são normas jurídicas14. A fim de se estabelecer uma unidade
analítica do direito, na mesma linha de raciocínio de Carnap, Kelsen elege uma
entidade abstrata para ser trabalhada e organizada em termos de uma ciência rigorosa
da linguagem. Para tanto, elenca a norma jurídica para esse critério, como aquele
arranjo dos símbolos linguísticos que edificam a positividade do direito.
A norma jurídica passa a ser o objeto central da ciência do direito. A positividade,
agora, configura-se, não mais nos fatores psíquicos ou fatos sociais, mas, tão somente
na normatividade jurídica. O direito, pois, seria o conjunto de normas jurídicas válidas
e por essa razão precisa ser delimitado, de forma analítica, em relação às demais esferas
sociais como a ética, a moral e a política.
13
14
KELSEN, 2003, p. 5.
Id., p. 80.
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Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito
em face dessas disciplinas (a psicologia e a sociologia, a ética e a teoria
política), fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa
conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que
obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são
impostos pela natureza do seu objeto15.
Com efeito, a norma jurídica, por sua vez, garantia o ideal da identidade do
direito em relação às demais normas da sociedade sejam elas éticas, religiosas,
econômicas além da garantia da autonomia do direito em relação a outros campos
normativos da sociedade.
A linguagem da norma, na perspectiva de Kelsen, seria entendida como um
esquema de interpretação do mundo. A teoria pura do direito, seria a resposta para
aquilo que não é sociológico, nem psicológico tampouco positivista no sentido clássico,
mas sim, dotada de normatividade, ao se basear no rigor lógico e formalístico da analise
da sintaxe da linguagem do neopositivismo lógico. O fundamento dessa teoria não pode
mais ser justificado em valores externos ao próprio direito. Exige, entretanto, que a
validade do direito circule dentro dele.
Segundo a sintaxe lógica de Carnap, Kelsen verifica a impossibilidade de se
garantir uma única resposta correta ao direito. A linguagem normativa, por mais rigor
que apresente, deverá ser interpretada tanto no contexto das normas superiores que lhe
conferem a validade jurídica quanto em relação ao contexto das proposições da ciência
do direito.
Desta feita, o direito apresenta-se para a decisão jurídica como uma moldura.
Esta por sua vez elenca inúmeras possibilidades jurídicas de decisão que impedem a
expectativa de se eleger uma única resposta correta para os casos concretos.
Analogicamente, se a linguagem, no maior rigor sintático e lógico apresenta uma
margem de indecibilidade, a linguagem normativa do direito, da mesma forma,
permitirá produzir decisões diferentes.
A decisão jurídica, portanto, não admitiria apenas uma resposta correta. A ciência
do direito sempre disponibiliza possibilidades de determinar o sentido de uma norma
15
Id., p. 1-2.
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
jurídica. Dessa análise, a possibilidade, jurídica, de duas ou mais decisões diferentes
sobre uma mesma situação concreta é válida. Para tanto, o direito permite a moldura,
dentro da qual ficam as possibilidades de sentido, na qual a decisão jurídica estará
logicamente correta.
7
DO CONTO MACHADIANO À TEORIA KELSENIANA
Como proposto inicialmente, o presente artigo pretende analisar o conto
machadiano segundo a teoria de Hans Kelsen. Importante salientar que dos escritos do
austríaco se almeja extrair a questão da impossibilidade da única resposta correta.
O conto, como já apresentado, relata a experiência das aranhas em relação aos
procedimentos e ações alusivas às eleições ocorridas na Sereníssima República.
Entretanto, diante dos vícios e equívocos ocorridos durante o processo eleitoral, as
aranhas acharam oportuno e conveniente, modificar a lei para que assim pudessem
alcançar a perfeição.
O primeiro vício encontrado no processo eletivo refere-se ao fato de que duas
bolas constantes no saco eleitoral estavam grafadas com o nome do mesmo candidato.
A solução encontrada para o caso em tela foi a de se limitar a capacidade de tal saco,
restringindo, dessa maneira, seu espaço.
Consequentemente, na eleição seguinte, em virtude da diminuição do tamanho
do saco eleitoral, um candidato deixou de ser inscrito. Agora, todavia, o erro incidiu
sobre a pessoa do oficial público, o responsável pela extração das bolas, sem se saber ao
certo se o descuido foi proposital ou não. Da conclusão, decidiu-se que na verdade, o
que ocorrera fora mera distração, não sendo tal ação passível de punição. Com efeito,
revogou-se a lei que estipulou a restrição do saco.
Diante dessas duas primeiras constatações, já se pode perceber que a perseguição
nesse modelo aracnídeo seria a tentativa de buscar a lei perfeita, ausente de lacunas e
incoerências. Em que se pese, a procura por tal ideal, a mudança, na estrutura das
normas, não necessariamente proporcionará um ordenamento mais ou menos perfeito.
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ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
O terceiro equívoco acontece em virtude da falta da grafia de uma das letras
referentes aos nomes dos candidatos. Por se tratar de erro puramente literário, uma
elipse, seria necessário rever a lei, já que, segundo aquelas circunstâncias, ninguém
poderia ser punido. A solução acertou-se na mudança do saco, agora feito de malhas,
Diante de um novo vício, a ideia das malhas foi condenada, restaurando o saco
para sua antiga forma, mas, para evitar futuras contradições, novo procedimento foi
formulado. Desta vez, 5 pessoas que jurassem ser o nome inscrito, o nome do
candidato, a eleição seria válida.
Antes de adentrarmos no último vício relatado no conto, acredita-se ser de fácil
percepção que os vícios apresentados constituem um arquétipo daquilo que Kelsen
rejeita: a busca pela perfeição.
Nota-se que para cada nova ordem normativa, se espera um comportamento
único, sendo aquela ação fora das expectativas previstas, uma anomalia ao
procedimento eleitoral, tornando necessária a mudança da lei para uma nova que
assegure as condições exatas para o funcionamento perfeito do sistema.
Dos relatos apresentados, todos eles demonstraram a tentativa de se alcançar o
sentido único da norma, sem se considerar as demais possibilidades passíveis de tutela.
A cada nova lei, novos vícios. Mas, a percepção de que se poderia alcançar uma melhor
eficiência estipulando-se as possibilidades normativas determináveis, não é observada.
A relação de tais atitudes à teoria kelseniana se torna evidente. O austríaco
reconhece a falta de possibilidade de se pretender a uma única resposta correta. Mesmo
a linguagem, por mais rigorosa que seja não é capaz de alcançar a lógica perfeita. E
assim, também o é em relação às normas jurídicas.
Por fim, em virtude do novo estatuto, um novo caso surgiu. A disputa dessa vez
era entre o candidato Caneca e Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Todavia, o
equívoco encontrava-se na falta da última letra do nome Nebraska. Apesar de o
processo eleitoral aparentar ter seguindo todos os procedimentos, o candidato caneca
requereu sua defesa. Após o deferimento de seu pedido, articulou seu argumento, como
exposto no tópico do resumo do conto. O que se chama a atenção neste episódio é que,
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apesar do texto legal estar coerente com as finalidades do ordenamento jurídico, ainda
assim, criam-se circunstâncias extralegais a fim de se fazer do texto legal, o que bem se
pretende, como fez o candidato Caneca.
A decisão jurídica, como apresentada por Kelsen, não é uma decisão que decide
sobre qualquer coisa, sem um quadro de possibilidades decisórias elencadas. Na
verdade, para a Teoria Pura do Direito, faz-se necessário o rol de determinações
normativas.
9
CONCLUSÃO
O conto machadiano A sereníssima república chama a atenção pela
atemporalidade da obra, a qual permite a discussão de assuntos que ainda nos tempos
atuais, são polêmicos, assim como o processo eleitoral. Para o presente artigo,
entretanto, o ideal proposto foi discutir a procura por uma lei que tenha um único
sentido, seja perfeita por si só e que, além disso, produza apenas as consequências nelas
previstas. Em que pese tal pressuposto, já se sabe que seria infrutífero se criar normas
jurídicas com a prerrogativa de serem únicas nas suas possibilidades em razão dos
complexos casos concretos em que lhes são propostas. Dessa maneira, seria necessário
não apenas uma única resposta, mas várias capazes de serem extraídas do mandamento
legal.
A escolha de Hans Kelsen como marco teórico para o desenvolvimento do
presente artigo coadunou-se com a ideia de relacioná-lo à tentativa infundada da
república das aranhas em buscar a lei perfeita, vale dizer, o sentido único da norma
jurídica. O austríaco, na construção da Teoria Pura do Direito, esclarece que a
pretensão de se alcançar o sentido unívoco da norma jurídica torna-se impossível. Isto
porque, nem mesmo a mais exata das linguagens, a ciência da matemática, consegue ter
sua proposições perfeitas. As lacunas e incoerências encontradas em tais signos
linguísticos fazem parte do corpo normativo jurídico. A tentativa de se atingir a
perfeição das normas resulta por ser um projeto infundado. Por essa mesma razão, o
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austríaco elabora a chamada moldura do direito, capaz de abarcar o rol de
possibilidades determináveis à aplicação ao caso concreto.
REFERÊNCIA
ASSIS, Machado. Papéis avulsos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CARNAP, Rudolf. The logical syntax of language. Trad. de Amethe Smeaton. Illinois:
Open Court, 2002.
COMTE, August. Curso de filosofia positiva. Trad. de José Arthur Giannotti e Miguel
Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Trad. de João Baptista Machado. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. de José Lamego. Lisboa:
Fundação Calouse Gulbenkian, 1997.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Trad. de José Arthur
Giannotti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
PLENÁRIA MALUCA:
O JULGAMENTO DE PEDRINHO, O LÚDICO E O DIREITO
H UGO R AFAEL P IRES DOS S ANTOS 1
R ENATO B ERNARDI 2
RESUMO: O Supremo Tribunal Federal julgará, em sessão plenária, o Mandado de
Segurança n°. 30.952, impetrado na Corte Suprema pelo Instituto de Advocacia
Racial e pelo técnico em gestão educacional Antonio Gomes da Costa Neto,
suscitando eventuais aspectos racistas na obra Caçadas de Pedrinho, do escritor
Monteiro Lobato. Diante disso, o presente artigo apresentará um julgamento feito
pelos próprios personagens do autor, que contará também com a participação
especial de um quadro expressionista de Anita Malfatti. O objetivo deste trabalho é
aproximar do Direito o universo lúdico que envolve o tema, visando a resolver o
conflito entre os princípios constitucionais da liberdade de expressão e do repúdio
ao racismo.
PALAVRAS-CHAVE: Aspectos racistas; Caçadas de Pedrinho; Monteiro Lobato;
universo lúdico; direito; conflito.
1
2
Graduado em Letras/Literatura pela Universidade do Norte Pioneiro (2009); Acadêmico de Direito nas
Fio – Ourinhos, SP.
Bacharel em Direito pela Instituição Toledo de Ensino – ITE-Bauru (1992), Mestre em Direito
Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino – ITE-Bauru (2003) e Doutor em Direito do Estado
(sub-área Direito Tributário) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP (2009). Foi
Coordenador da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos - FIO (2006/2007). É
Coordenador do PROJURIS Estudos Jurídicos Ltda. Professor efetivo do curso de Pós-Graduação
stricto sensu - Mestrado - e do curso de Graduação da Faculdade de Direito do Centro de Ciências
Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP, Campus de Jacarezinho.
Professor dos cursos de pós-graduação lato sensu - Especialização - do PROJURIS/FIO. Professor
licenciado do curso de Graduação da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos FIO. Tem experiência na gestão acadêmica e na docência superior na área de Direito, com ênfase em
Direito Constitucional, Direito Tributário e direito administrativo. autor de vários artigos na área
jurídica e do livro a inviolabilidade do Sigilo de Dados. Procurador do Estado de São Paulo desde 1994.
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ANAIS DO II CIDIL
1
V. 2, N. 1, JUL. 2014
O LÚDICO: O CASO SOB O JULGAMENTO DA TURMA DO SÍTIO
Ora, ora, vejam só quem está a lhes falar nessa estória maluca3 que envolve todos
do Sítio do Pica-pau Amarelo, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. Eu sou o
Jeca Tatu, conhecido de vocês de outras passagens. Mas, fiquem tranquilos, pois me
cansei do campo e da vida pacata que eu levava, e vim-me embora para a cidade, onde
me tornei amigo de gente importante4 e aprendi a ler e a escrever corretamente, de
modo que não vos causarei nenhum estrago neste relato. Contudo, devo dizer a meu
crédito, que pretendo contar-lhes o ocorrido de uma forma bastante diferente, diria até
um tanto quanto poética, suscitando o lado lúdico da vida. Pois, vejam, estou farto do
juridiquês que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo5.
A estória é a seguinte: a Cuca ficou sabendo que o Pedrinho, em uma de suas
caçadas com os seus amigos, havia chamado a Tia Nastácia de "macaca de carvão"6 e
isso, segundo a Cuca, revelaria fortes traços racistas contra a população negra de todo o
país. Por conseguinte, impetrou no Supremo Tribunal Federal um Mandado de
Segurança7, em que pediu a punição de Pedrinho, para que fosse impedido de
frequentar quaisquer escolas da rede pública de ensino. A acusação sustenta que o
presente caso não é algo banal, pois enseja a recriação, de geração em geração, da
prática nefasta do racismo.
Avisados da denúncia contra Pedrinho, a turma do sítio decidiu resolver a
questão em sessão plenária, que ficou organizada da seguinte maneira: a Cuca será a
advogada de acusação, defendendo que houve racismo nas falas do Pedrinho; o
Pedrinho fará a sua própria defesa; o Procurador-Geral será o Marquês de Rabicó; e os
onze ministros da Casa serão: a Emília, que insistiu por demais para participar do
julgamento, pois disse ter argumentos fortíssimos para sua fundamentação; aí vem o
3
4
5
6
7
Neologismo proposto por João Ribeiro para se referir a conto popular, folclórico.
Referência ao poema Vou-me embora pra Pasárgada, Manuel Bandeira.
Alusão à Poética, Manuel Bandeira.
Na literalidade do livro Caçadas de Pedrinho é o próprio narrador (Monteiro Lobato) que chama a Tia
Nastácia de “macaca de carvão”, mas no universo deste artigo, optamos por imputar este ato a Pedrinho,
que como será visto adiante, representará por vezes o seu autor.
MS 30952 a ser julgado em Sessão Plenária pelo STF.
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
Visconde de Sabugosa; o Detetive X B2; senhor Fritz Muller; o moleque risonho e
peralta, Saci; o Tio Barnabé, sempre com uma boa estória para contar; o Zé Brasil, que
tem afinidades com o comunismo; a embirrada da Narizinho; e por fim, um tal de
Homem de Sete Cores, pois pasmem, ele quis participar do julgamento porque guarda
uma mágoa muito grande da turma do sítio, mas uma mágoa que não chega a ser ódio,
segundo ele8.
Cada um dos membros terá o seu momento de falar e defender o seu voto. As
partes manifestar-se-ão em acusação e defesa, respeitando-se sempre o decoro da casa,
e já fique de sobreaviso a boneca Emilia para que não extrapole nas suas
argumentações, pois todos sabemos que essa boneca de pano tem aptidão à fala, e
quando começa não quer mais parar. A tia Nastácia, coitadinha, está apreensiva com
essa reunião, pois ama todos do sítio, e disse que jamais queria ver o mal do Pedrinho.
A Dona Benta, por seu turno, optou por nem assistir ao julgamento, preferiu ficar
em casa fazendo bolinhos de chuva para toda a turma, pois sabe que as sessões
plenárias são demasiadamente demoradas e cansativas. E o último recado que importa
repassar é o de que estamos em um mundo de imaginação, onde boneca de pano fala e
um quadro modernista cheio de cores terá direito a voto, ao lado de um porquinho que
se diz marquês, de um sabugo que se diz visconde, e de toda uma trupe para lá de
animada, que sabe da importância que tem essa decisão para a História do Brasil, bem
como para as gerações futuras.
Lido o resumo deste trabalho, convido-os a entrar conosco nessa fantástica
viagem que une Direito, princípios constitucionais, História, fantasia e realidade.
Com a palavra, convido a doutora Cuca a apresentar a sua acusação.
8
Quadro da Anita Malfatti. Todos sabem que Monteiro Lobato criticou assiduamente as tendências
artísticas de Anita; creio que esta seja a hora da vingança, pois o Homem de Sete Cores terá a
oportunidade de votar pela condenação de Pedrinho. Muito se discutiu se isso não seria motivo de
impedimento ou suspeição, mas a decisão foi unânime no sentido de que o Exmo. Ministro deveria
participar da Plenária para acalourar ainda mais o debate, e é claro, colorir o ambiente com as suas sete
cores.
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112
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1.1
V. 2, N. 1, JUL. 2014
Doutora Cuca
Senhoras e senhores, Excelentíssimos Ministros que compõem esta sessão
plenária, recebam os meus cumprimentos.
Passo a compor a minha acusação sob o prisma de que Pedrinho cometeu racismo
contra Tia Nastácia, atingindo a honra de todas as pessoas negras do Brasil, em razão
das suas ofensas contra a pobre Tia, ao chamá-la de "macaca de carvão".
É fato sabido e notório que exposições desse tipo subjugam a cultura negra,
relegando todo um grupo de pessoas ao escárnio; não podemos ser coniventes com
ações dessa natureza, haja vista que nossa sociedade padece de um sentimento de
racismo perene e sorrateiro, diferentemente dos Estados Unidos da América onde a
existência um ódio racial declarado favorece a defesa dos oprimidos, pois não se
esconde entre piadas e histórias de mau gosto. Se isso é bom, eu realmente não sei
dizer, e também não pretendo entrar no mérito dessa questão, mas a bem ver, fato é
que no Brasil ninguém se tacha como racista, mas esse mal se revela em pequenas
palavras e pequenos gestos, que se perpetuam em torpes e nefastos costumes.
Posto isso, se me permitem, trago à baila uma profecia que ouvi certa vez no meio
da floresta, em uma das poucas vezes que deixei minha caverna para buscar produtos
para as minhas poções mágicas:
Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles negros, índios
supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa
que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se
conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a
gente insensível e brutal, que também somos. Como descendentes de
escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da maldade
destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento da dor
intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da
brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas
em pasto de nossa fúria9.
Vejam só, nobres colegas, somos oriundos de uma sociedade escravocrata, que
sacrificou a vida de milhares de pessoas pelo lucro, que explorou a mão de obra de pais
e filhos, em busca de um enriquecimento perverso e desmedido. Deixamos de lado
9
Cf. Darcy Ribeiro, O povo brasileiro.
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
nossos sentimentos pelo próximo, a troco de dinheiro e mais dinheiro. Ora, depois de
séculos de lutas e de conquistas, depois de leis criadas para proteger os negros e criar
mecanismos para a sua inserção social, será plausível pactuarmos com as práticas
racistas do menino Pedrinho?
Ademais, impende frisar que fundamento minha acusação no ordenamento
jurídico pátrio, afinal, quando não estou ocupada com os meus afazeres e minhas
malvadezas, estou sempre pesquisando os códigos, pois quero crer que as leis possuem
mais eficácia que minhas poções mágicas, e espero sair hoje desta sessão satisfeita com
a realização da Justiça!
Para concluir minha acusação, confesso nutro uma inveja muito, muito grande
pela turma do sítio, e que não topo nenhum de seus moradores, mas, a bem da verdade,
não é esse o sentimento que me move aqui hoje para pedir a condenação do Pedrinho,
uma vez que sobrepuja em mim o desejo de ver extinta toda e qualquer forma de
racismo neste país, o desejo de fazer valer o repúdio da Constituição Federal ao
racismo, conforme eu li, naquele prolixo livro, num fim de tarde sombrio em minha
caverna10.
Finalmente, e para não me alongar ainda mais, requeiro que Pedrinho seja
condenado pela prática de racismo e, como punição, não possa mais frequentar
nenhuma escola da rede pública de ensino.
1.2
Doutor Pedrinho
Bom dia a todos. Quero saudar os Excelentíssimos Ministros e dizer que, muito
embora as acusações que me foram feitas sejam gravíssimas, pretendo não falar de
mim nesta Suprema Corte, pois a História está a meu lado para mostrar que eu não sou
culpado.
Hoje eu quero falar da Tia, essa pessoa fantástica que fez e faz parte da minha
vida, e creio que da vida de muita gente neste país, de modo que ao final do meu
10
Ver Art. 4º, VIII, CRFB/88.
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114
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
discurso ficará claro que eu não tive a intenção de menosprezá-la, ao contrário do que
me acusou a Cuca.
Tia Nastácia é uma danada!
Pessoa bondosa por natureza, cujos ensinamentos me ajudaram a ser o que sou
hoje. Com ela, eu aprendi que não é preciso muito na vida para ser feliz.
Nas minhas noites sem sono, me fazia viajar com suas histórias sobre o folclore
brasileiro, ensinando-me quase sem querer, com a sua doçura, coisas sobre o meu
Brasil, para que eu aprendesse a valorizar a minha História e a não cultuar apenas os
valores estrangeiros, tão enraizados em nossos costumes. E por falar em doçura, como
esquecer do sabor dos quitutes que só a Tia Nastácia sabe fazer?!
Se vocês não sabem, essa danada cozinhou até para São Jorge, na Lua! E digo
mais, depois de provar seus biscoitos de polvilho, o Minotauro nunca mais comeu
gente, só queria saber dos benditos docinhos!
A Tia Nastácia é realmente uma pessoa fantástica!
Certa vez, enquanto ela me preparava para dormir, dois passarinhos vieram à
janela do meu quarto, e foram testemunhas do amor recíproco que há entre nós. Os
dois pararam para ouvir as estórias que ela me contava e, e ao final, entoaram uma
canção em homenagem à Tia:
Sinhá Nastácia que conta história Sinhá
Nastácia sabe agradar Sinhá Nastácia
que quando nina Acaba por cochilar
Sinhá Nastácia vai murmurando
estória para ninar...11
Não pretendo me estender mais, porque estou realmente emocionado, e como já
disse a Cuca, espero que a Justiça seja feita aqui hoje. E mesmo que eu seja condenado,
se essa for a Justiça, eu só peço que não me afastem da Tia e dos meus amigos; porque
eu sei que mesmo que eu não possa mais frequentar nenhuma escola, eu tenho muito a
aprender com a turma do Sítio.
11
Música de Dorival Caymmi, interpretada também por Zeca Pagodinho.
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ANAIS DO II CIDIL
1.3
V. 2, N. 1, JUL. 2014
Procurador-Geral: Marquês De Rabicó
Eminentes Ministros, também serei breve nas minhas considerações, tendo em
vista que pretendo me pautar tão somente no sistema jurídico brasileiro para análise do
presente caso.
Ora vejamos, o réu chamou a Tia Nastácia de "macaca de carvão", e essa
expressão configura, em tese, o crime de racismo, tipificado no artigo 20 da Lei
7.716/89, pois, ao chamar a cozinheira de "macaca", implicitamente imputou uma
qualidade pejorativa a todo um grupo de pessoas da cor preta.
Para inibir crimes dessa natureza, nossa Carta Magna prevê em seu artigo 4°,
VIII, um repúdio ao racismo, equiparando-o ao terrorismo.
A bem ver, parece-me correta essa postura repressora do nosso constituinte,
porque toda forma de racismo é atroz, segrega os povos e aniquila a união e a boa
convivência entre as mais diversas culturas.
Ora, caros colegas, o texto do artigo 20 da Lei 7.716/89 estabelece que é racismo:
"Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, etnia, religião ou
procedência nacional".
De acordo com os elementos de prova, Pedrinho praticou o crime de racismo
contra a Tia Nastácia. O réu tenta nos emocionar com o seu discurso romântico,
exaltando as qualidades da suposta vítima, mas não menciona que por vezes a Tia
tentou me cozinhar, sendo que em uma dessas cenas quase fatídicas, fui salvo pela
Narizinho, de modo que se ela não tivesse chegado eu não estaria aqui hoje como
Procurador. Ou seja, o réu nos descreve a Tia de forma platônica, apenas e tão somente
para desviar o foco da acusação.
Não obstante, cumpra-se o diploma legal. As emoções não devem ser acolhidas
neste julgamento.
1.4
Excelentíssima Ministra Emília
Ai que raiva que me dá esse Marquês fajuto de meia tigela! Olha aqui, seu
Procurador, não me venha com esse papo de "as emoções não devem ser acolhidas
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
neste julgamento", pois se você não sabe, toda forma de justiça fria e vazia não é senão
injustiça! O que o senhor fez com as suas emoções? Comeu-as também, seu procurador
de comidas inveterado!
1.5
Jeca Tatu interrompe Emília
Infelizmente, a boneca Emília perdeu seu direito de voto e deverá se retirar do
plenário. Pois, como eu havia dito no início desta sessão, os membros desta casa devem
manter o decoro em suas manifestações. Não toleraremos mais as loucuras da
"gentinha"12. Com a devida vênia retornemos aos votos. Passo agora a palavra ao nobre
e sábio Ministro Visconde de Sabugosa.
1.6
Excelentíssimo Ministro Visconde De Sabugosa
Boa tarde a todos os presentes a este julgamento. Lamentável o episódio ocorrido,
mas todos já esperávamos algo de surpreendente na pronúncia da peculiar boneca
Emília, pois nessas horas os nervos ficam à flor da espiga, digo, à flor da pele13.
Então, vejamos, a acusação está baseada em uma suposta frase racista
pronunciada pelo menino Pedrinho contra a Tia Nastácia. A acusação da Cuca está
muito bem fundamentada, haja vista que suscitou elementos históricos relevantes. A
manifestação do eminente Procurador, por sua vez, nos trouxe fundamentos jurídicos
suficientes para se punir a prática maléfica do racismo. A defesa do Pedrinho foi
magnânima, e concordo com cada palavra dita por ele sobre a idoneidade, a bondade e
a simplicidade da Tia Nastácia.
Feito esse breve apanhado das considerações até aqui, afirmo no tocante ao
combate ao racismo, que concordo com tudo o que foi dito pelos acusadores. No
entanto, no caso sub judice não há elementos configuradores da prática delitiva,
especialmente se analisarmos o contexto em que foram exteriorizadas tais palavras.
12
13
Como costumava chamá-la carinhosamente, em alguns livros, Monteiro Lobato.
O Visconde morre de medo da boneca Emília, por isso tentou justificar a atitude dela.
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117
ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
Ademais, o próprio texto é solucionador desse impasse. Relembremos: Tia
Nastácia estava em apuros, desesperada em virtude da chegada das onças e de outras
feras extremamente perigosas, que avançavam para atacar o pessoal do sítio. Sem saber
o que fazer, no auge da sua aflição, a única saída para se salvar era subir no mastro
apontado pela menina Cléo, e foi o que ela fez. Subiu com tal agilidade, esquecida de
seus numerosos reumatismos, que até parecia não ter feito outra coisa senão trepar em
mastros (LOBATO, 2009, p. 39). Sua destreza, impulsionada pelo desespero de buscar
a salvação, era tal qual a de uma macaca acostumada a viver nas alturas. Vejam só a
força que tem o desespero do ser humano diante da ameaça de morte, capaz de aflorarlhe talentos até então desconhecidos da sua natureza. Nesse contexto, não vislumbro
nenhuma agressão à moral da tão venerada Tia Nastácia. O termo empregado "macaca
de carvão" tem o objetivo de reforçar a idéia de que a Tia naquele instante demonstrou
habilidade surpreendente, e subiu com a agilidade de um macaco no mastro.
Ora, se não fosse a situação de risco que se apresentava naquele cenário, em que
sobrevivemos por pouco ao ataque das onças, uma senhora de idade avançada, cheia de
dores pelo corpo, não teria obtido êxito em sua fuga. De tal sorte que, para demonstrar
a façanha ocorrida naquele momento de êxtase em que estávamos, por termos sido
salvos, e por também ter se salvado a Tia, foi que houve a comparação.
Ante o exposto, não vislumbro nenhum traço racista na fala de Pedrinho, cuja
única intenção, como ficou demonstrado, foi a de exaltar a agilidade da Tia em ter se
salvado do ataque das onças, nada mais que isso.
1.7
Excelentíssimo Ministro Detetive X B2
Minhas saudações aos Senhores.
Quando tomei conhecimento deste caso, encaminhei um pedido a esta Corte
Suprema, solicitando a minha participação no julgamento. Como todos sabem, eu
pertenço às Forças Armadas do País, e possuo exímios dotes para a investigação.
Missão dada é missão cumprida!
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118
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O governo sabe o que faz (LOBATO, 2009, p. 60)!14
Após as minhas diligências, verifiquei existir notadamente, neste caso, um
conflito entre dois princípios constitucionais, quais sejam: repúdio ao racismo versus
liberdade de expressão. Pois bem, nossa Carta Magna prega o repúdio ao racismo,
equiparando-o ao terrorismo, e o estabelece imprescritível e inafiançável.
Nota-se, clarividente, a severidade com que o constituinte tratou de tal crime.
Não obstante, cuidou de resguardar também, dentre outros, o princípio da liberdade de
expressão; eis onde surge o nosso conflito.
O bom senso deve prevalecer em decisões de casos como este; em que ambos os
direitos
são
tutelados
pela
Carta
Maior.
Cumpre
ainda
lembrar
que,
independentemente do princípio valorado, a opção por um deles não retira o status de
constitucional do outro.
Teria Pedrinho subjugado toda uma cultura negra com a sua frase em sentido
pejorativo? Teria apenas exercido sua liberdade de expressão? Pedrinho é racista?
Ser ou não ser? - eis a questão!15
A situação é verdadeiramente delicada, mas compartilho da tese defendida pelo
eminente Ministro Visconde de Sabugosa, ou seja, ponderando sobre o assunto, a
escolha mais adequada, neste caso, é o privilégio à liberdade de expressão. Pedrinho
apenas exerceu o seu direito constitucional de se exprimir, não restando configurada,
portanto, a prática delitiva do racismo.
O governo sabe o que faz!
1.8
Excelentíssimo Ministro Fritz Müller
O nobre colega lembrou bem o conflito de princípios que se apresenta no
presente caso. Todavia, ouso discordar do seu posicionamento, Eminente Ministro,
uma vez que não vislumbro um conflito direto de princípios, já que, caso seja
14
15
O respeitadíssimo Detetive X B2, não se cansa de repetir o jargão “O governo sabe o que faz”.
Frase célebre de Hamlet, William Shakespeare.
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
condenado por racismo, Pedrinho não perdeu o seu direito de expressão. Explicarei
melhor.
O conflito de princípios se verifica nos casos em que devemos optar por um dos
valores garantidos constitucionalmente. Notem que o direito à liberdade de expressão
se exaure no momento em que o indivíduo teve a liberdade de concluir a sua pronúncia,
de tal sorte que não pode ser meio para dissimular as consequentes responsabilidades
que esse discurso porventura gerar. Ou seja, se a liberdade de expressão gerar uma
ofensa verbal, o ofendido pode perseguir seu direito à reparação do dano.
Ora, Pedrinho teve a liberdade de se expressar e, se for o caso, deve ser
responsabilizado se a sua pronúncia atingiu a honra e a moral dos seus interlocutores.
E, ao que se evidencia, essa tal comparação feita entre Tia Nastácia e uma "macaca de
carvão" soa com conotação pejorativa, o que justifica, em tese, que o acusado seja
impedido de frequentar quaisquer escolas da rede pública do país como forma de
punição.
1.9
Excelentíssimo Ministro Conselheiro
Caminhamos para o final da tarde e é natural que o cansaço vá nos tomando e
trancando nossos olhos e ouvidos para o verdadeiro entendimento do caso. Por isso,
serei o mais sucinto possível.
Diante da complexidade do caso e da constatação de que as duas correntes de
argumentação são boas e convincentes, eu proponho um acordo entre as partes.
Pedrinho deve ser punido, mas proibi-lo de frequentar as escolas públicas é uma
pena severa demais, desproporcional eu diria. A solução mais plausível é a de que
Pedrinho seja submetido um acompanhamento didático de qualidade, para que lhe seja
transmitida a história dos povos africanos. De outro norte, Pedrinho deve ser
identificado como o menino que deixou de ser racista, e essa informação deve ser
pública, ao acesso de todos.
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120
ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
1.10 Excelentíssimo Ministro Saci
Oi gente, vocês me desculpem se eu começar a rir sem motivos, mas é que sou
assim mesmo, estou sempre de bem com a vida. E aqui em mim a tristeza chora de
tanto rir.
Vamos terminar logo com isso, porque já estou ficando cheio de fome, e a Cuca já
me instruiu sobre o que eu tenho que falar. A Tia Nastácia é culpada, digo, é vítima de
racismo nesta história. Eu estou sempre rodeando o sítio e sou testemunha dos maus
tratos que a pobre Tia sofre diariamente.
Para falar a verdade, esse povo do Sítio só gosta dela porque a Tia cozinha que é
uma delícia, e porque ela conta muitas estórias do folclore brasileiro, e também porque
ela é a pessoa mais bondosa que todos nós já conhecemos. Só por isso que gostam dela.
Eu sou a favor da condenação do Pedrinho por racismo. Ele merece ser impedido
de frequentar as escolas, e isso até será bom porque daí a gente vai poder brincar junto,
escondido o dia inteiro.
Antes de finalizar, eu trouxe aqui uma lista com algumas reivindicações a fazer, e
gostaria que os senhores anotassem aí, para depois a gente poder fazer uma sessão
plenária para discutir sobre isso também:
eu quero uma muleta, cansei de ficar pulando num pé só;
preciso de roupas novas, tenho aversão ao vermelho;
necessito urgentemente de um boné, essa minha touca não está com nada;
por último, me chamem de Sacir, porque Saci não soa bem16.
1.11 Excelentíssimo Ministro Tio Barnabé
Boa noite minha gente, como é que vocês estão? Muito cansados? Oxalá que esse
julgamento logo se acabe. Por sinal, um julgamento muito importante para nós lá do
Sítio e para todos que se encantam com uma estória bem contada.
16
Crítica ao politicamente correto, em detrimento a perda de identidade das obras literárias.
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121
ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
Eu não vou falar de leis e nem de Constituição, mesmo porque o que eu gosto de
fazer é contar estórias, não sou bom para os causos jurídicos. Se ninguém se importar,
eu quero contar, em poucas palavras, como é a nossa vida lá no sítio donde a gente
mora.
Nós vivemos em perfeita harmonia lá no campo; lá a gente ouve até o cantar dos
pirilampos. Ah! Como é boa a nossa vida. Eu fiquei até triste pelo amigo Jeca Tatu, o
senhor não podia ter deixado a fazenda não rapaz, a vida na cidade é muito agitada, e as
pessoas são desconfiadas por demais, ninguém acredita em ninguém. Tudo tem que ter
prova. Tudo tem que estar escrito. É um querendo o mau do outro. Isso não é certo não.
A vida no campo é regada de bondade, lá não tem essas de papel não, se falou está
falado! E não carece de mais nada. O que mata essa gente moderna é a maldita
desconfiança de tudo e de todos, para eles tudo tem um duplo sentido, tudo é para o
mal.
Eu pergunto para vocês, seus modernos desconfiados: vocês acham mesmo que o
sinhozinho ia querer o mau da Tia? Que ele ia querer desmerecer essa danada da
Nastácia? Se é ela que nos lembra a todo instante dos nossos valores, dos nossos
costumes; se é ela que conta estórias de ninar para essa meninada toda; se é ela que faz
renascer em nós o orgulho de sermos brasileiros?
O sinhozinho soltou uma palavra de tão contente que estava de ter visto a Tia se
salvar, porque o desespero deu a ela os mesmos dotes de um macaco, que dos animais é
o mais rápido para subir em árvores. Se não fosse esses dotes de última hora, a Nastácia
já teria morrido fazia tempo, porque aquelas onças raivosas já tinham comido era
tudinho a tia.
O momento é de alegria, não de acusação. Vamos é parar de ficar acusando os
outros; vamos nos preocupar em fazer o bem, simplesmente isso. E de tudo que eu já
vivi, eu posso garantir com toda a minha sinceridade que a Literatura, os causos do
folclore brasileiro e toda forma de arte só fazem o bem, nunca o mau. Deixa a meninada
brincar, e aproveitar essa que é a melhor fase da vida, a infância.
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ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
É claro que o Pedrinho é inocente! E esse moleque Saci vai ver comigo quando ele
voltar lá pro Sítio. Ah! Se eu te pego.
1.12 Excelentíssimo Ministro Zé Brasil
Caros Ministros, meus cumprimentos a todos.
Os defensores de Pedrinho apresentaram como argumento a tese de que não se
pode analisar o caso sem o contexto em que foi dita a suposta ofensa. Eu gostaria de ir
um pouco além, e dizer que não se deve analisar a frase, ora em questão, sem trazer à
tona um pouco da História do país. Isso é, para se entender o que se pede, não basta
explicar o momento de desespero da Tia em fugir das onças e a consequente frase de
"exaltação" do Pedrinho; deve- se voltar os olhos ao passado e, por conseguinte,
avançar para o presente.
Pois bem, como a Cuca já ressaltou em sua acusação, o Brasil foi uma sociedade
escravocrata onde pessoas de determinado grupo foram escravizadas e submetidas a
condições subumanas, fruto da ambição do homem e da falta de sensibilidade e
solidariedade para com o próximo.
Após quase 350 longos e terríveis anos, um homem cria aquela que seria uma das
leis mais significativas do país, quiçá a mais importante. Com apenas dois artigos e em
sucintas quatro linhas, Joaquim Nabuco pôs fim à exploração mais perversa que este
País já vivenciou. Era a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 1888.
Nada obstante, Nabuco falou pouco. Uma prática perversa não se resolveria em
apenas dois artigos; deveria ter escrito mais, pois os negros absolvidos não tinham para
onde ir; ficaram abandonados, sem emprego, sem casa, sem comida, foram remetidos
às margens da sociedade, onde permaneceram, a sua grande maioria, por mais longos e
sacrificantes anos. A liberdade conquistada só tinha uma vantagem concreta: de
escravos do senhor de engenho, passaram a ser escravos do sistema.
Ao decorrer do tempo, eis que os negros foram ascendendo aos poucos na escala
social, e hoje aquele grupo antes esquecido às margens, consegue questionar as
amarras e ofensas que sempre estiveram presentes em sua trajetória.
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ANAIS DO II CIDIL
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Importante observar que atualmente se trava uma luta muito grande contra o
racismo, pois esse costume nefasto, arraigado aos costumes brasileiros, perpetua-se de
geração em geração, e um dos modos dele se propagar é, sem dúvida, por meio da arte e
dos meios de comunicação, que querem fazer crer que o racismo é algo banal, quando
isso não é verdade!
O racismo é coisa séria e vem fantasiado de piadas, de anedotas que se dizem
engraçadas. É temeroso ensinar às nossas crianças que certas formas de combatê-lo é
sensacionalismo, é politicagem. Devemos ficar atentos às palavras que pronunciamos,
pois elas ferem.
Em consequência, toda arte que anunciava o negro como marginal, toda
literatura que desmerecia o ex-escravo e toda forma de racismo, ainda que sob a
alcunha de descrição contextual da época, devem ser extintas do novo modelo social
que ora se almeja. Pois:
Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua
origem ou, ainda, por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam
aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar
(MANDELA, 1994).
Necessário dizer que eu não condeno o menino Pedrinho pela comparação infeliz
que fez à Tia Nastácia, ele é um menino da sua época e que viveu sob fortes cargas
racistas, haja vista que os negros até pouco tempo não tinham expressividade no
âmbito social.
Mas bem se sabe que não se pode valer da própria torpeza, ou seja, muito embora
Pedrinho também seja vítima do seu tempo, fato é que atualmente não se admite mais
quaisquer atos com elementos racistas que ofendam a dignidade da pessoa humana.
Diante do exposto, ainda que me arda o coração, peço a condenação do pobre
Pedrinho, haja vista que, como diria meu amigo, um andarilho que fica sentado o dia
todo lá na praça a conversar comigo: "é preciso que os homens bons respeitem as leis
más, para que os homens maus respeitem as leis boas"17.
17
Alusão a Sócrates, o filósofo grego da praça pública (Ágora).
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ANAIS DO II CIDIL
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1.13 Excelentíssima Ministra Narizinho
Ai gente, vocês não acham que estão exagerando demais nas acusações? Nossa! É
uma história de crianças, onde o mais importante é se divertir, brincar, ouvir estórias
do nosso folclore.
Vocês que acusam o Pedrinho não conseguem entender o verdadeiro espírito da
arte. Toda criança é arteira, as brincadeiras são as nossas únicas responsabilidades.
Incriminar o Pedrinho é descarregar um fardo muito pesado e negativo sobre as nossas
costas, até porque não é somente o Pedrinho que será punido, mas, indiretamente, toda
a turma do Sítio.
As melhores aventuras que eu vivi foram lá no sítio da nossa avó. Como é bom
viver essa história! Me divirto muito com a turma do Sítio, com a estressada da Emília,
que só sabe dar ordens ao pobre do Visconde, e o Marquês de Rabicó que só pensa em
comida!? Ah! - a Tia Nastácia, com os seus quitutes maravilhosos! Tem o Tio Barnabé;
o Quindim, que não veio aqui hoje, mas que é um rinoceronte muito amável.
Sinceramente falando, nós vivemos em perfeita harmonia.
Não teríamos motivos para querer o mau da Tia. O Pedrinho é inocente, de mau
gosto é pedir explicações sérias a uma história que envolve magia, sonhos e imaginação.
Pedir explicações sérias, sob fortes acusações de racismo, é que deveria ser um crime,
pois estão tentando matar a nossa Literatura. O que a gente quer é brincar e se divertir.
Não estamos aqui para criar problemas!
No nosso mundo "não temos tempo para mais nada, ser feliz nos consome"18.
1.14 Discurso Final - Jeca Tatu
Boa noite, Excelentíssimos Companheiros!
Infelizmente, o Homem de Sete Cores teve que se retirar do julgamento no final
da tarde, porque já começava a cair a noite e ele tinha que estar de volta ao museu antes
de escurecer o dia. O que é lamentável, uma vez que seria épico ver a vingança histórica
18
Alusão a Adélia Prado.
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125
ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
dele contra a turma do Sítio. Ele com certeza tinha muita coisa a falar com todo o seu
expressionismo19.
Assim sendo, aguardamos pelo voto do Eminente Ministro Homem de Sete Cores,
que deverá ser colhido ainda este ano.
Devo agradecer a participação de todos; aos presentes, muito obrigado por
permanecerem até ao final do julgamento, e corram que os bolinhos de chuva da Dona
Benta já devem estar murchos, tamanha foi a demora deste encontro.
No mais, tenho extrema convicção de que foi muito construtiva esta reunião de
magia e realidade. Realidade, por vezes, tão triste de ser encarada distante dos sonhos e
da imaginação.
Depois de horas de argumentos opostos, o que se retira de lição é que está
demonstrado que o Direito comporta toda forma de arte. A arte é que não suportaria
uma invasão do Direito.
O artista clama por liberdade de expressão, pois todo tipo de censura, ou
repreensão, silencia aos poucos a cultura de um povo, tornando-a vazia e ao mesmo
tempo cheia de regras e dogmas incertos, até que ela se esvai devagarinho nos braços
da santa ignorância.
A sessão plenária está encerrada, aguardamos ansiosos pela decisão do Supremo
Tribunal Federal.
Tenham todos um bom retorno aos seus mundos reais, mas levem um pouco da
fantasia.
2
O
DIREITO:
O
COTEJO
DO
CASO
CONCRETO
COM
A
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. UMA INTERPRETAÇÃO VIÁVEL
2.1
A manifestação do pensamento como expressão do estado
democrático
Na democracia brasileira e, mais precisamente, na plenitude do Estado
Democrático de Direito, é direito conferido ao cidadão pela Constituição Federal, no
19
Referência à tendência expressionista da pintora Anita Malfatti.
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126
ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
inciso IV, do art. 5°, manifestar-se, articulando seu pensamento, restringindo a lei
somente o anonimato.
Na mesma esteira, registra-se que a Constituição Federal também assegura a livre
expressão
da
atividade
intelectual,
artística,
científica
e
de
comunicação,
independentemente de censura ou licença, vale dizer que para tal manifestação
ninguém precisa pedir autorização a quem quer que seja, conforme previsto no inciso
IX, ainda do art. 5°.
Assim, não há dúvida quanto ao direito do cidadão em poder manifestar-se; nem
ao fato de que essa manifestação não pode ser objeto de censura, haja vista a expressa
proibição posta na Constituição Federal20. Assim, parte-se do pressuposto de que a
manifestação do pensamento é direito fundamental defeso de qualquer espécie de
censura.
2.2
O caráter relativo dos direitos fundamentais
Certo é que mesmo um direito fundamental pode conhecer limitações.
Por restrição de um direito fundamental se entende a limitação ou diminuição do
âmbito material de incidência da norma concessiva, tornando mais estreito o núcleo
protegido pelo dispositivo constitucional, interferindo diretamente no conteúdo do
direito fundamental que a norma visa a proteger.
A característica da limitabilidade não é indispensável à existência dos direitos
fundamentais, mas decorre de uma necessidade externa ao direito, que é de
compatibilizar os direitos de diferentes indivíduos, como também os direitos
individuais e os bens coletivos (SCHÂFER, 2001, p. 62).
Os direitos fundamentais, dentre eles a livre manifestação do pensamento,
embora detentores da característica da imprescritibilidade, não são direitos absolutos,
pois, no ordenamento jurídico, como sistema que é (BOBBIO, 1977, p. 71.), todas as
20
Art. 5º, inciso IX: é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença e Art. 220, § 2º: É vedada toda e qualquer censura de
natureza política, ideológica e artística.
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127
ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
posições jurídicas são limitadas, por se encontrarem em relação próxima entre si e com
outros bens constitucionalmente protegidos.
A modernidade, segundo Boaventura de Souza Santos (1995, p. 91), confinou-nos
numa ética individualista, uma microética que nos impede de pedir, ou sequer de
pensar responsabilidades por acontecimentos globais, como a catástrofe nuclear ou
ecológica, em que todos, mas ninguém individualmente, parecem poder ser
responsabilizados. A inadequação de uma teoria tradicional dos direitos fundamentais
reside justamente nesta questão: os direitos são considerados a partir de uma ética
individualista, que está em choque com uma sociedade que exige uma macroética, na
qual as responsabilidades e as relações se mostram essencialmente coletivas.
Os direitos e as garantias individuais não mais podem ser apreciados a partir de
uma esfera absoluta de titularidade individual, pois as ações da humanidade, bem
como suas consequências, estão centradas na esfera do difuso, em que se mostra
impossível a determinação específica das titularidades das pretensões: crimes da
macrocriminalidade, invasão da privacidade por meio da "Internet", agressões contra o
meio ambiente, criminalidade organizada internacional, catástrofes nucleares etc
(SCHÂFER, 2001, p. 64).
Nesse pensar, vislumbra-se a possibilidade de serem impostas limitações aos
direitos fundamentais.
2.2.1
Espécies de restrições aos direitos fundamentais
Referidas restrições podem ser de duas ordens:
restrições ou limites expressos na Constituição, englobando as
restrições diretamente constitucionais (previstas expressamente na
Constituição)
e
as
restrições
efetuadas
pela
legislação
infraconstitucional com expressa autorização da Constituição
(restrições indiretamente constitucionais); e
restrições ou limites imanentes, que decorram da convivência dos
direitos e que, portanto, não se encontram expressos na Constituição,
mas decorrem de uma interpretação sistemática do ordenamento
jurídico.
KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED
128
ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
O primeiro grupo de restrições aos direitos fundamentais é composto da seguinte
maneira (SCHÂFER, 2001, p. 147):
A - Restrições que decorrem direta e expressamente da Constituição: a própria
Constituição, ao conferir o direito, estabelece a hipótese de restrição. Ou seja,
o direito é conferido agregado à sua restrição. Exemplos: a liberdade de
expressão, prevista no artigo 5°, inciso IV21; a inviolabilidade de domicílio,
sendo que o próprio texto da Constituição Federal restringe tal direito em caso
de flagrante delito, ou desastre, ou para a prestação de socorro22; o direito à
propriedade, cuja utilização pelo Poder Público é permitida no caso de
iminente perigo público23.
B - Restrições cuja imposição pela lei infraconstitucional está autorizada pela
Constituição: nessa hipótese restritiva, a Constituição expressamente autoriza
que a restrição ao direito fundamental seja imposta pela legislação
infraconstitucional, sendo o controle da constitucionalidade dessas restrições
efetuado pelo princípio da proporcionalidade. Exemplos: a liberdade no
exercício de trabalho, ofício ou profissão prevista no artigo 5°, inciso XIII, da
Constituição Federal24, e o artigo 8° da Lei 8.906/94 (Estatuto dos
Advogados), que torna obrigatória a aprovação no exame de Ordem para o
exercício da advocacia; a pessoalidade da pena criminal, permitindo-se à
legislação infraconstitucional que estabeleça o cumprimento, pelos sucessores,
da reparação de danos e do perdimento de bens, prevista no artigo 5°, inciso
XLV25.
21
22
23
24
25
"é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato".
“a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador,
salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por
determinação judicial".
"no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular,
assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano".
"é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que
a lei estabelecer".
"nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação
do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o
limite do valor do patrimônio transferido".
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
C - Restrições cuja imposição pelo Poder Judiciário está autorizada pela
Constituição: essa hipótese de autorização constitucional para limitação aos
direitos fundamentais embasa-se no poder conferido diretamente pela
Constituição ao magistrado, na qualidade de agente político integrante de um
dos Poderes da República. A peculiaridade dessa espécie de autorização reside
no fato de que cabe ao Poder Judiciário, no exercício de sua função típica
(jurisdição),
preencher,
no
caso
concreto,
respeitadas
as
garantias
constitucionais, os elementos fáticos e jurídicos autorizadores da mitigação
dos direitos fundamentais. A Constituição, ao prever a possibilidade da
restrição ao direito, descreve, abstratamente, os pressupostos de sua
incidência, delegando ao magistrado a adequação concreta desses postulados.
A restrição somente pode ser constatada a partir da junção de dois fenômenos
distintos, quais sejam, a previsão constitucional abstrata e a fundamentação
concreta do juiz. Exemplos: o direito à inviolabilidade do domicílio e a
possibilidade de, durante o dia, por ordem judicial, ser limitado o direito
(artigo 5°, inciso XI, da Constituição Federal); o direito à liberdade, passível
de restrição em caso de, no que interessa ao estudo do presente tópico, ordem
escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (artigo 5°, inciso
LXI, da Constituição Federal)26.
Examinados os casos de possibilidade de restrições ou limitações expressas na
Constituição Federal, resta analisar, agora, os casos de restrições ou limites imanentes,
que decorrem da convivência dos direitos e que, portanto, não se encontram expressos
na Constituição, mas decorrem de uma interpretação sistemática do ordenamento
jurídico.
A concepção teórica dos limites imanentes possui estreita ligação com o caráter
de princípio dos direitos fundamentais. Os princípios são mandados de otimização
caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, e que a
26
"ninguém será preso se não em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade
judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos
em lei".
KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED
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ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
medida devida de seu cumprimento não somente depende das possibilidades reais
senão também das jurídicas, não contendo mandados definitivos senão somente prima
facie.
Dessa idéia decorre que os direitos fundamentais, em sua maioria, não são
previamente limitados (existência de uma norma restritiva), senão que as limitações
decorrem de questões ligadas a aspectos externos a sua concepção original, em virtude
da necessidade concreta e prática de convivência com outras esferas, individuais ou
coletivas, mas sempre constitucionalmente protegidas.
2.3
A colisão de princípios constitucionais
Quando dois princípios jurídicos entram em colisão irreversível, um deles
obrigatoriamente tem de ceder diante do outro, o que não significa que haja a
necessidade de ser declarada a invalidade de um dos princípios, mas sim apenas que,
sob determinadas condições, um princípio tem mais peso ou importância do que outro,
ao passo que em outras circunstâncias poderá ocorrer o inverso.
Em se tratando de restrições (limites) imanentes aos direitos fundamentais, a
ponderação entre os bens em conflito é um método constitucionalmente adequado à
preservação dos respectivos núcleos essenciais. A ponderação de bens, no caso
concreto, é um método de desenvolvimento do Direito que se presta a solucionar
colisões de normas, bem como para delimitar as esferas de aplicação das normas que se
entrecruzam e, com isso, concretizar os direitos cujo âmbito ficou em aberto,
estabelecendo-se uma clara prevalência valorativa dos bens tutelados pela Constituição
Federal, o que determina que a lesão de um bem não deve ir além do que é necessário
ou, pelo menos, "defensável", em virtude de outro bem ou de um objetivo jurídico
reconhecido como de grau superior em determinada situação levada ao conhecimento
do intérprete (SCHÂFER, 2001, p. 78).
A ponderação ou o balanceamento de bens para a solução de conflitos de bens
constitucionais, segundo J. J. Gomes Canotilho (1998, p. 1112), pressupõe a existência
de, pelo menos, dois bens ou direitos cujos suportes fáticos e jurídicos se entrecruzem
KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
de modo a impedir a realização de seus objetivos em toda a sua intensidade. Ou seja, o
intérprete se depara com uma colisão entre dois ou mais direitos constitucionais,
traduzindo uma impossibilidade de convivência em sua plenitude dos respectivos
núcleos protegidos. Como segundo elemento para a aplicação da ponderação, de acordo
com o mesmo autor, é necessária a inexistência de norma abstrata prevendo a
prevalência de um dos direitos em conflito, pois nesse caso o balanceamento e a opção
sobre a ascendência hierárquica teriam sido resolvidas pela própria norma
constitucional.
Por fim, são indispensáveis a justificação e a motivação da regra de prevalência
parcial assente na ponderação, tendo-se presente o princípio da segurança jurídica.
Ou seja, a fundamentação sobre a necessidade e a extensão dos limites a serem
impostos aos direitos fundamentais, bem como o resultado da aplicação da ponderação
- elegendo-se o princípio de maior valor no caso concreto - são requisitos inafastáveis,
pois conferem racionalidade ao método.
Não há uma lista abstrata estabelecendo a prevalência de alguns princípios sobre
outros, mas em cada situação concreta é possível efetuar-se a hierarquização para o
caso, conforme os pesos prevalecentes, devendo a situação ser resolvida pela máxima
da unidade da Constituição, segundo a qual todas as normas contidas numa
Constituição têm igual dignidade abstrata.
2.3.1 O princípio da proporcionalidade
De acordo com o princípio da proporcionalidade, sempre que haja restrições
colidentes com direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, o intérprete
deve atuar segundo o princípio da justa medida, vale dizer, deve atuar escolhendo,
dentre as medidas necessárias para atingir os fins legais, aquelas que impliquem o
sacrifício mínimo dos direitos dos cidadãos. As restrições que afetem os direitos e
interesses destes têm como limite a imprescindibilidade da garantia do interesse
público, não se devendo utilizar medidas mais gravosas quando outras que o sejam
menos forem suficientes para atingir os fins da lei.
KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED
132
ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
Em seu sentido amplo, portanto, quer significar o princípio da proporcionalidade
a proibição do excesso, o que equivale a dizer que as restrições a direitos somente
podem ser efetuadas se houver estrita necessidade para a preservação de outras
posições constitucionalmente protegidas. O Poder Público deve agir estritamente na
busca do interesse público. A finalidade, e não a vontade, é que preside a ação da
autoridade pública (SCHÂFER, 2001, pp. 106/107).
De todo modo, consagrando-se a liberdade e a justiça como escopo final desse
princípio, é de se ver que ele é constitucionalmente determinado, em muitos
momentos, ainda que de forma implícita.
Inicialmente, a proporcionalidade se depreende no próprio preâmbulo da
Constituição brasileira, o qual, em particular, distingue-se do de outras constituições
por apresentar duas partes distintas, a primeira firmando a legitimidade formal do
Estado e a segunda referindo uma série de fins e objetivos a serem perseguidos por esse
Estado. Revelando-se como princípio orientador de Justiça, pode-se afirmar que o
princípio da proporcionalidade se mostra como um princípio implícito no preâmbulo
da Constituição.
No Brasil, o princípio da proporcionalidade não é disposto de forma expressa.
Com minoritária discordância, os autores pátrios, ladeados pelo Supremo
Tribunal Federal, entendem ser ele previsto pelo artigo 5°, inciso LIV27 o, da
Constituição Federal. Dessa forma, a sedes materiae do princípio da proibição do
excesso se encontraria caracterizado na idéia do due process of law.
O princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso, limitando o poder
do Estado, constitui um princípio geral do Direito Público, o qual rege o
estabelecimento e a aplicação de toda a sorte de medidas restritivas de direitos e de
liberdades, obrigando, assim, a uma necessária ponderação entre a gravidade da
conduta imputada, o bem jurídico protegido e as subsequentes consequências jurídicas.
Percebe-se que seu conteúdo é múltiplo, podendo ser dividido em vários
momentos. Inicialmente, poder-se-ia vislumbrar uma necessária proporcionalidade
27
“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
abstrata ou legislativa, em que ocorre a seleção qualitativa dos direitos postos em
situação de confronto.
Num segundo momento, percebe-se um princípio de proporcionalidade concreta
ou judicial, segundo o qual o magistrado, quando do julgamento de uma dada causa,
valorará os direitos em conflito e, finalmente, ter-se-ia a aplicação de um princípio da
proporcionalidade executória, que corresponderia, de fato, à opção do magistrado por
tal ou qual direito na situação posta em exame.
2.3.1.1
Princípios da proporcionalidade e da razoabilidade
Faz-se mister breve incursão sobre a aplicação dos princípios da razoabilidade e
da proporcionalidade no Direito Constitucional.
Segundo tais princípios, cabe ao Poder Judiciário, ao examinar certas restrições
de direitos, apreciar até que ponto são elas justificadas pelo interesse público,
admitindo-as como legítimas ou não.
Luís Roberto Barroso (1996, pp. l60/l75, passim) analisou o assunto, mostrando
que o princípio da razoabilidade teve, tradicionalmente, sua incidência no âmbito do
Poder Executivo, voltado que estava para o exercício do poder de polícia na área do
direito administrativo e para os limites da interferência do Estado na vida privada.
Embora a Constituição Federal de 1988 não tenha feito referência expressa ao
princípio da razoabilidade, tal princípio integra o direito constitucional brasileiro,
podendo ser aplicado pelo intérprete da Constituição "integrando de modo implícito o
sistema, como um princípio constitucional não-escrito" ou, ainda, poderá ser extraído
da cláusula do due process of law (art. 5°, LIV), em razão do caráter substantivo que se
deva emprestar à cláusula (BARROSO, 1996, pp. l60/l75, passim).
A restrição de um direito fundamental depende de dois pressupostos, que são a
existência de conflito entre direitos fundamentais ou interesses constitucionalmente
assegurados e a verificação da possibilidade de aplicação do princípio da
proporcionalidade, interpretação sutil do princípio da igualdade, segundo o qual todas
as disposições jurídicas que importem em restrições devem ser pertinentes ao
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ordenamento jurídico, sendo necessárias e proporcionais para a obtenção da finalidade
pretendida.
Havendo um conflito entre duas liberdades públicas sem que haja explícita
credencial constitucional, dever-se-á proceder à ponderação ou concordância prática
dos direitos fundamentais em confronto, mediante a conciliação de ambos (MORAES,
1997. p. 210).
O Ministro Gilmar Ferreira Mendes formula sustentação semelhante ao aduzir
que a validade da medida que produza limitação do direito fundamental depende da
verificação de proporcionalidade entre os fins e as conseqüências observadas. Posto
isso, toda restrição ao exercício de direitos fundamentais deve ser adequada ou idônea e
não gravosa ou necessária (MORAES, 1997. p. 211).
3
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cotejando as doutrinas acima com o caso concreto em exame, pode-se concluir
que a intenção dos impetrantes, de anular ato homologatório do parecer do Conselho
Nacional de Educação (CNE) que liberou a adoção de livros do autor vai de encontro ao
direito fundamental de livre expressão do pensamento.
No caso em apreço não há que se falar em racismo. A extensão dada pelos
impetrantes à publicação está longe daquilo que foi imaginado pelo autor em 1933, ano
de publicação da obra. Não se trata, aqui, de conflito entre os preceitos constitucionais
de liberdade de expressão e de vedação ao racismo.
As disposições constitucionais pertinentes à liberdade de expressão não
autorizam o controle, por parte do Estado, da produção de conhecimento ou da
divulgação de informação. Qualquer tipo de controle desse tipo que interfira na
liberdade profissional criativa no momento do próprio acesso à produção, controle
prévio que, em verdade, caracteriza censura prévia das liberdades de expressão e de
informação, expressamente vedada pelo art. 5°, inciso IX, da Constituição. A
impossibilidade do estabelecimento de controles estatais sobre o acesso à cultura leva à
conclusão de que não pode o Estado criar um organismo para a fiscalização desse
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direito fundamental. O exercício do poder de polícia do Estado é vedado nesse campo
em que imperam as liberdades de expressão e de informação.
E, partindo do pressuposto de que a vedação da utilização da obra configura
censura, a resposta à questão discutida no presente estudo é dada pela própria
Constituição Federal, que, além de garantir a liberdade de expressão veda, qualquer
espécie de censura.
REFERÊNCIAS
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<http://veja.abrilxom.br/blog/augusto-nunes/feira-livre/vou-me-embora-prapasargada-um- poema-de-manuel-bandeira>. Acesso em: 14 mar. 2013.
em:
BANDEIRA, Manuel. Poética. Disponível em: <http://nelsonsouzza.blogspot.com.br
/2013/02/poetica-manuel-bandeira.html>. Acesso em 14 de março de 2013.
BARROSO, Luís Roberto. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade do
Direito Constitucional. Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro, n. 4, 1996.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 9. ed.. Brasília: UnB, 1977.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra:
Almedina, 1998.
LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho. 3. ed. São Paulo: Globo, 2009.
LOBATO, Monteiro. Zé Brasil. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1947.
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cronologia/mandela/index.shtml>. Acesso em: 14 mar. 2013.
MORAES, Guilherme Braga Penã de. Dos direitos fundamentais: contribuição para
uma teoria. 1. ed. Rio de Janeiro: LTR, 1997.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo:
Cia. das Letras, 1995
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pósmodernidade. São Paulo: Cortez, 1995.
SCHÂFER, Jairo Gilberto. Direitos fundamentais: proteção e restrição. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2001.
KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED
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TORTURA E DIREITOS HUMANOS:
A RELEITURA DE UM ANTIGO PARADIGMA
SOB A ÓTICA DE O PRISIONEIRO, DE ÉRICO VERÍSSIMO.
L UIS R OSENFIELD 1
RESUMO: O objetivo do presente trabalho é iniciar, a partir da análise do romance
O prisioneiro, de Erico Veríssimo, um debate sobre direitos humanos na
atualidade. A literatura é aqui o fio condutor da reflexão, em razão de sua qualidade
empática, usado para repensar problemáticas da ciência jurídica, inserindo-se o
estudo na tradição do Direito e Literatura. A composição do trabalho é feita por um
breve estudo comparativo entre as ideias construídas por Günther Jakobs e Luigi
Ferrajoli sobre o terrorismo, tortura e direito penal do inimigo; assim como de
jurisprudência internacional no que tange à Lei de Segurança Aérea alemã,
considerada inconstitucional recentemente, esta relacionada com a Lei do Abate
brasileira. Em suma, trata-se de uma abordagem interdisciplinar que abrange
temáticas relacionadas a tortura e democracia, terrorismo e direitos humanos, a
partir de releitura da obra literária.
PALAVRAS-CHAVE: terrorismo; tortura; direitos humanos; direito e literatura;
democracia.
1
O DIREITO A REBOQUE DA LITERATURA
O objetivo do presente trabalho é realizar, a partir da análise do romance O
prisioneiro, de Erico Veríssimo, uma reflexão acerca do respeito aos direitos humanos
na atualidade. Os desoladores diagnósticos contidos na obra, proferidos por Erico há
mais de quatro décadas são, ainda hoje, munidos de intensa e perturbadora atualidade.
O autor elabora, com uma rica e engenhosa escrita, um minucioso e complexo
1
Graduado em Direito (PUC/RS). Mestrando em Direito (IMED/RS).
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panorama da situação geopolítica internacional dos anos sessenta. Em face da
relevância das lúcidas noções de política encontradas na obra, este se alça,
naturalmente, como objeto de análise ideal para uma abordagem interdisciplinar. A
literatura é um instrumento valioso e indispensável para se repensar a ciência jurídica,
e uma série de obras literárias possuem, por excelência, o condão de nortear reflexões
do gênero, tal como Os Miseráveis, de Victor Hugo, Crime e Castigo, de Fiódor
Dostoiévski ou O estrangeiro, de Albert Camus. Esse tipo abordagem interdisciplinar
se funda na tradição do Direito e Literatura, representando uma crítica inserida no
ramo do Direito na Literatura. Apesar da ainda pequena representatividade do campo
do Direito e Literatura no Brasil, em uma série de países — notadamente nos Estados
Unidos, na França, na Alemanha e na Itália —, já existe uma forte e consistente
bibliografia sobre o assunto (TRINDADE; GUBERT, 2008, p. 24-33).
A meta aqui é de, a partir da bela argumentação de Veríssimo, construir uma
ponte com o Direito e realizar uma reflexão utilizando da capacidade da literatura de
rever questões controversas sob um diferente escopo. Embora o épico regional — O
Tempo e o Vento —, que eleva Erico para um novo patamar dentro da literatura
nacional, seja, ainda hoje, amplamente conhecido, obras que mereceriam maior
destaque da crítica e maior volume de análise ficam, por vezes, à margem de textos
mais conhecidos. Esse seria o caso de O prisioneiro, escrito num período de
maturidade intelectual do autor, obra que alavanca um momento universalista de sua
escritura. É sublinhada, no enredo, uma vasta gama de questões polêmicas da época
que eram objeto de angústia, incômodo e indignação do escritor. São esses conflitos,
incrustados na tinta de cada página do breve corpo textual, que abrem problemáticas
controversas do âmbito jurídico.
Apesar de não existir uma indicação clara e explícita sobre o lugar da história há
sugestões bastante fortes de que o ambiente físico corresponde ao da Guerra do Vietnã.
As críticas desferidas pelo escritor gaúcho não se limitam apenas à intervenção
estadunidense na região — marcada pelos infindáveis abusos aos direitos humanos —,
nos anos sessenta até meados dos anos setenta, mas também ao forte protagonismo
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europeu, notadamente francês, na região décadas antes. Dentro do clima de especial
horror que inunda essa guerra no sudeste asiático, são desveladas importantes e
pesadas angústias, assim como dilemas que ocorrem num contexto de práticas
perversas e nefastas. Tanto é que Erico, em dedicatória a seus netos, confessa ter sido
afetado pessoalmente ao escrever o romance.
O pilar argumentativo terá por base a análise do evento principal ilustrado na
obra, o caso emblemático de tortura de prisioneiro de guerra. De fato, no final do
romance, o protagonista conhecido como "tenente" defronta-se com um impasse. Sobre
seus ombros repousa a decisão de permitir, ou não, a tortura de um prisioneiro de
guerra a fim de arrancar dele informação sobre a localização de explosivos plantados
em alguma edificação da cidade. Detonados, os explosivos ocasionarão a morte de um
número considerável de civis. Essa controvérsia, que opõe a vida e a dignidade de uns
em troca da necessidade de salvaguardar e dar segurança para um coletivo,
potencializada pela sóbria escrita de Veríssimo, é um núcleo importante no argumento
que pretendemos apresentar e permite refletir sobre questões relevantes acerca dos
direitos humanos.
2
GUERRA, TERRORISMO & TORTURA:
O ENREDO DE O PRISIONEIRO
O romance é ambientado num país quente, úmido e de nome desconhecido, em
meio a um turbulento período de guerra. A sensação de stress e tensão é constante e
isso se dá, em grande parte, pela existência de vários focos de guerrilha na cidade e
região. As personagens, majoritariamente homens — o "coronel", o "tenente", o
"major", a "médica", a "prostituta", o "proxeneta", o "sargento", o "capitão-médico" —,
tampouco possuem nomes, a distinção sendo sempre feita a partir de seus ofícios.
Imersos nos horrores da guerra, as ações dos interlocutores são permeadas por uma
atmosfera especialmente violenta e cruel. As descrições, tanto dos abusos cometidos
pelos rebeldes, quanto dos excessos perpetrados pelo exército ocidental, ilustram o
clima de terror que cerca o enredo. O próprio Erico define seu romance como uma
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
"espécie de parábola moderna sobre vários aspectos da estupidez humana". As duras
críticas às barbáries da guerra do Vietnã, além de numerosas, são veementes e
contundentes.
O "coronel" e o "major", as primeiras figuras introduzidas na história, inauguram
a trama com discussões sobre os caminhos da guerra, esboçando comentários sobre
moral e religião. Este embate verbal entre altos oficiais das Forças Armadas retrata bem
o viés da crítica feita contra a maneira perversa com que são conduzidos os combates
contra os rebeldes. Da mesma forma, não são poupadas de dura crítica as nefastas
ações praticadas pelos rebeldes asiáticos contra o exército estrangeiro. O pensamento
do "coronel" é imprescindível para ilustrar:
Um quadro de horror iluminou-se em sua mente. A coisa se passara
havia pouco mais de quatro meses. Visitara uma aldeia do Sul recémdestruída pelos guerrilheiros comunistas. As cinzas das cabanas
incendiadas estavam ainda quentes quando ele lá chegara. Segundo o
relato do único sobrevivente do massacre, famílias inteiras haviam
sido queimadas vivas dentro de suas palhoças. Dera-se, porém, aos
maiorais da povoação um "tratamento especial". Tinham sido
primeiro castrados e depois decapitados, e seus órgãos genitais
pendurados nos galhos de uma árvore. Moscas enxameavam ao redor
dos cadáveres, cujo fedor pútrido empestava o ar. Numa das
extremidades duma lança de bambu, enfiada no ânus de um dos
corpos, estava presa uma tabuleta com algumas palavras escritas na
língua da terra: "Este é o fim que espera todos os que colaboram com
os imperialistas brancos e seus lacaios" (VERÍSSIMO, 2008, p. 31).
O "tenente", personagem principal, conduz a história para seu pesado desfecho.
Filho de mãe branca com pai negro é constantemente assolado por um forte complexo
de culpa em razão de sua descendência afro-americana. O contexto político que esse
tenente mestiço se vê inserido, desde infância e adolescência, é de intensa e brutal
discriminação por parte das numerosas organizações racistas dos Estados Unidos.
Marcado por experiências traumáticas na juventude, é assolado por questões mal
resolvidas sobre a sua situação racial e sente, também, uma forte negação das raízes
negras oriundas do lado paterno. A partir dessa relação ambígua com sua identidade
negra, somada às intempéries da guerra, gradualmente se consolida em sua psique um
estado de quase paranóia, que acaba por colocá-lo num estado de fragilidade
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psicológica. Cenas dos horrores da guerra lhe perseguem e surgem em sua mente
constantemente:
O sargento branco que comandava a operação de limpeza, dissera que
havia alguns "macacos amarelos" escondidos numa caverna próxima,
e que a solução mais prática e segura para fazê-los vir para fora era
"chamuscá-los" com um lança chamas. O tenente lembrava-se dos
homens esqueléticos e lívidos que tinham saído a correr e o urrar da
boca da caverna, com os corpos incendiados, e se atiravam no chão,
rolavam na relva, tentando apagar o fogo que lhes devorava as
carnes... (VERÍSSIMO, 2008, p. 47).
O "tenente" vive a iminência da baixa do Exército, o que significa a consequente
volta para sua família — mulher e filho — em sua terra natal. Todavia, vive sentimentos
conflituosos quanto ao seu regresso para casa. Possui um sentimento de culpa por estar
envolvido com uma prostituta asiática denominada apenas de "K.", com a qual não
consegue sequer se comunicar, em razão da barreira da língua, a não ser por mímicas e
gestos.
Às vésperas de seu retorno ao seu país, o "tenente" convida uma amiga,
denominada como a "médica", para jantar. Durante o jantar, conversam sobre diversas
temáticas polêmicas com admirável profundidade: das atrocidades da guerra até os
complexos de negação da identidade negra do "tenente". Segundo as denotações
encontradas no texto, deduz-se que a "médica" seja uma descendente de franceses que
imigraram na época colonial. Em função de haver se apegado à cultura, ao povo e à
terra, a sua família decide criar raízes na Ásia.
A "médica" conta ao "tenente" parte da trágica história de sua vida: relatou que,
com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o país foi invadido por tropas de outra
nação e sua família inteira posta em um campo de concentração na península asiática.
Sua mãe morreu de disenteria e seu pai foi executado sumariamente. Não bastassem
esses horrores, os invasores a violaram múltiplas vezes, razão pela qual ela se quedou a
beira da loucura e da depressão. Por intermédio da Cruz Vermelha, enviaram-na para a
casa de um tio em sua terra natal, o que significou sua salvação. Ao chegar em seu
antigo país, descobriu-se grávida e abortou o feto. Após anos de tratamento psiquiátrico
e, depois de restabelecida sua sanidade, seguiu um curso universitário e retomou,
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gradualmente, a sua vida. Quando da morte de seu tio, herdou um polpudo patrimônio.
Sentiu-se deslocada na pátria de origem dos pais, que não considerava a sua, então
decidiu voltar para a Ásia, onde fundou um orfanato para meninas que, com a guerra,
tornou-se ainda mais importante auxílio às vítimas da violência.
Após o intenso encontro com a "médica", o "tenente" se desloca para o bordel da
cidade para passar sua última noite junto de sua amada "K.". Lamenta não conseguir
sequer se comunicar com a prostituta e, diante do eminente regresso para sua terra
natal, fere-lhe a impossibilidade de se despedir dignamente em razão da barreira do
idioma. Sente-se sensibilizado pela fragilidade daquela miúda menina de doze anos, tão
jovem e tão bela, obrigada a se degradar — explorada pelo "proxeneta" asiático — para
ganhar alguns trocados. Logo após sair do bordel, no centro da cidade, o tenente sente
uma explosão brutal. Momentos depois, recuperado do choque inicial, dá-se conta que
o prédio em que "K." estava acabara de ser alvo de um ataque terrorista desferido pelos
rebeldes. O "tenente" vaga pelos escombros por uma hora, desnorteado e confuso,
procurando por "K.", até que a encontra morta no chão.
Após se recompor, o "tenente" é subitamente interpelado pelo "major", que lhe
avisa que o "coronel" deseja vê-lo em regime de urgência no quartel-general. Ao se
reunir com o "coronel", lhe é dada a informação de que dois rebeldes foram capturados
e responsabilizados pelo ataque. Um deles foi morto após perseguição; o segundo,
capturado vivo. O prisioneiro sobrevivente, munido de furiosa convicção de seus ideais,
afirma presunçosamente que há mais uma bomba programada para ser detonada em
cinco horas. Escolhido por consenso de seus superiores hierárquicos, "major" e
"coronel", o "tenente" é conclamado a realizar o interrogatório no prisioneiro. Ao
"tenente", que se encontra em situação de iminente desligamento definitivo das Forças
Armadas, assombrado por suas contradições raciais e, também, fragilizado pela morte
de "K.", lhe é dada essa permissão informal para fazer uso de todos meios possíveis
para retirar a informação do prisioneiro asiático.
Sua incumbência é de interrogar o preso da maneira que bem entender, desde
que alcance êxito em extrair as informações sobre a localização dos explosivos. A tarefa
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de salvaguardar o coletivo — as possíveis vítimas dos explosivos — repousa em seus
ombros. Outras duas pessoas acompanham-no, o "capitão-médico", judeu sobrevivente
do holocausto, e o "sargento", especialista em práticas de tortura. Em face da atroz
tarefa que lhe é designada, conforme as horas passam, sem perspectivas de alcançar o
sucesso desejado, o tenente acede em recorrer à medidas extremas para obter as
direções necessárias. Em meio a um turbilhão de contradições, permite expressamente
que o sargento utilize-se de métodos de tortura contra o prisioneiro. Sem conseguir
sequer presenciar a sessão de tortura, irrompe porta afora e escuta os urros de agonia
do torturado:
O tenente precipitou-se para fora da cela, batendo a porta atrás de si, e
saiu a andar às tontas pelo corredor deserto. Mas não tão depressa que
não pudesse ser alcançado por um grito humano horripilante, um urro
de animal ferido de morte. Levou as mãos ao meio das pernas,
encostou uma face na parede da galeria, depois tapou os ouvidos com
os punhos.
Por alguns instantes ainda ouviu os gritos lancinantes do prisioneiro,
entremeados das exclamações do sargento. Depois - quanto tempo?
dois minutos? três? cinco? dez? - fez-se um grande silêncio.
Uma figura surgiu no fundo do corredor e aproximou-se do tenente, a
passo acelerado. Era o capitão-médico, que exclamava:
— Suspendam o interrogatório! Foi encontrada a bomba!
O tenente olhou para ele, aparvalhado, como se não tivesse
compreendido o sentido daquelas palavras. Enquanto ambos
caminhavam na direção da cela, o doutor contou:
— Uma irmã do prisioneiro procurou um de nossos oficiais e
confessou tudo espontaneamente para salvar a vida do rapaz... A
bomba tinha sido colocada no dormitório de um colégio de moças... do
outro lado do rio. Foi desmontada há poucos minutos... (VERÍSSIMO,
2008, p. 125).
Após receber essa notícia, completamente aturdido arrependido por ter permitido
a atrocidade se perpetuar, o "tenente", inicia uma jornada sem rumo pela cidade
assombrado pelas lembranças da cela de tortura:
Pensava no gravador, no olho verde, nos carretéis rodando... Sua
memória era uma fita magnética que registrara não só as vozes mas
também as imagens e os odores daquelas horas horrendas, na cela.
Pensou no prisioneiro caído sobre as lajes, morto, as pernas abertas,
os escrotos esmigalhados... Santo Deus! Como tinha sido capaz de
permitir uma coisa daquelas? E tudo inútil! No momento mesmo em
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que o sargento torturava o prisioneiro, a bomba estava sendo
desmontada pelos peritos do Exército (VERÍSSIMO, 2008, p. 128).
Durante o percurso errante pela cidade, o "tenente" avista um templo católico e,
apesar de comungar fé batista, decide se confessar com um padre. Após breve discussão
no confessionário, desentende-se com o sacerdote e volta a vagar pela vila. Ao sair da
igreja, dá conta que está há poucas quadras do orfanato de sua amiga "médica". Bate na
porta da amiga, que lhe recebe de maneira calorosa e houve seu depoimento
angustiado. É confortado por alguns momentos por sua amiga quando, em meio a dor e
ao arrependimento, ressuscita em seu corpo uma sensação de calor e virilidade. Sente o
sangue pulsar fortemente, começa a levantar sua cabeça das coxas da médica e a se
virar em direção ao sexo dela. Apesar de sua amiga não logo o esbofetear, nega-lhe os
beijos na boca e, após instantes, empurra-o para longe, de maneira que o "tenente" cai
no chão a respirar com dificuldade. A "médica" pede que vá embora, embora ela não o
faça munida de raiva ou rancor, e o "tenente", profundamente envergonhado, caminha
mais uma vez em direção ao luar da noite.
Dirige-se, dessa vez, de volta ao hotel militar, onde está hospedado. Encontra com
o "capitão-médico", que lhe avisa que não irá a acobertar os atos para os quais o
"tenente" havia dado aval. Avisa-lhe que, de qualquer maneira, o corpo do rebelde já
estava sendo submetido, naquele momento, a uma necropsia. Subitamente, o "capitãomédico" recebe uma ligação: aviões da Marinha haviam bombardeado com napalm
uma aldeia aliada, onde estavam acampados soldados do Exército, totalizando mais de
trinta mortes e cerca de oitenta feridos. Os dois dirigem-se ao hospital central, que
começa a se apinhar com homens desfigurados com feridas de um vermelho-vivo que já
começam a se tornar purulentas.
O "tenente" encosta-se em uma parede, assolado por uma náusea que lhe remói o
estômago. Passa a andar pela rua desconcertado. Um jipe da Polícia do Exército passa
pelo lado contrário da rua e estaciona cinco metros adiante. Um soldado lhe interpela,
pedindo seus documentos. Em sua cabeça, ouve somente frases de conteúdo racial,
como se estivesse, mais uma vez, sendo alvo de injustiças e ameaças. Em meio ao
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estado de surto, projetando alucinações de xingamentos racistas desferidos pelo
soldado, toma o fuzil das mãos do militar e passa a atirar a esmo, atingindo os faróis do
jipe. Logo é atingido por uma rajada de fuzil disparada pela guarnição, que lhe
atravessa o peito de lado a lado, momento em que tomba e sangra até a morte.
3
DA FICÇÃO PARA A REALIDADE
É dentro dessa miscelânea de guerra, terrorismo e tortura que surgem questões
pertinentes para um debate acerca dos direitos humanos na atualidade do contexto
internacional. Muitas problemáticas se impõem, como, por exemplo, a discussão sobre
qual seria o limite legal para apontar, abstratamente, qual seria um direito humano
"correto" para se defender. Ou se seria constitucional, caso viesse a ser legislado, buscar
na tortura um instrumento salvamento de vidas. Em razão de questões vinculadas à
guerra, terrorismo e tortura estarem em voga nas reflexões teóricas em âmbito
internacional, sendo amplamente abordadas por diferentes setores da sociedade civil
mundial e das comunidades intelectuais de diversas nações, é que se impõe trazer
temáticas como esta para reflexão em terrae brasilis. Embora o Brasil, histórica e
geograficamente, tenha passado ao largo de situações de guerra, com algumas raras
exceções, e, ainda na atualidade, hipóteses de terrorismo seja ainda uma realidade um
tanto quanto distante, permanece essencial se debruçar acerca do assunto diante de
relações internacionais cada vez mais globalizadas. A imprescindibilidade desse debate
toma contornos ainda mais claros e delineados tendo em mente que o Brasil, em face de
seu crescimento econômico e de seus avanços democráticos, almeja ocupar
futuramente um assento no Conselho Permanente de Segurança da ONU e lugar de
proeminente destaque no cenário político internacional.
Sendo assim, a reflexão se legitima diante da necessidade da sociedade de
construir numa cultura de proteção efetiva dos direitos humanos. Ao fim e ao cabo, o
que se busca aqui é um norte para estas questões controversas, e o intuito é de
encontrar maneiras adequadas para conduzir os atos e as medidas de segurança por
parte dos Estados, ações estas que sejam aceitas pela sociedade civil e, principalmente,
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tenha conformidade com a constituição. É vital que se acredite nos pressupostos
estabelecidos pela coletividade no texto constitucional, que é uma construção do estado
de consciência que as sociedades se encontram, e se busque uma interação harmônica
das coletividades de cada nação: e isso pode ser conquistado através da solidificação de
uma proteção dos direitos humanos em âmbito global.
O amalgamento de situações de respeito ao outra de forma prática deve ser
conduzido de maneira em que a consolidação de uma cultura de direitos humanos não
se restrinja apenas à formalidades de ratificação de tratados ou de convenções
internacionais, por vezes despidas de aplicabilidade prática ou de aceitação no
ordenamento jurídico nacional. Na construção de uma maturidade democrática,
impõe-se que diferentes legitimações e convencimentos não continuem a possuir o
condão de, perpetua e sistematicamente, servir como justificação para usurpar a vida e
a dignidade humana. Agamben aponta com lucidez, quando tristemente analisa as
experiências nazistas, em como a perda de respeito — de reconhecimento — de outros
seres humanos, além de abrir caminho para a devastação da dignidade humana, pode
conduzir, in extremis, a processos que subtraem até mesmo o direito à morte
(AGAMBEN, 2003, p. 43-93).
3.1
A conjuntura do medo no cenário internacional
e a eterna necessidade da criação de inimigos
O recrudescimento das tentativas de paz e das tensões étnico-religiosas na
atualidade tem como marco o ataque contra as torres gêmeas no fatídico 11 de setembro
de 2001. O paradigma estadunidense é ilustrativo para mostrar como, através de
incitação constante e sistemática de um sentimento de medo na população, opera-se
com relativa facilidade a supressão de direitos em âmbito doméstico e, na política
externa, a legitimação de guerras e intervenções assimétricas em outros países. Após o
ataque às torres gêmeas, a principal ação política do governo Bush foi a guerra do
Afeganistão e, mais tarde, ainda no contexto de guerra ao terror, embora sob diferente
justificação, a guerra do Iraque. No campo jurídico, a consequência mais evidente aos
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ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
fatídicos atentados contra as torres gêmeas foi a promulgação, com impressionante
celeridade, em cerca de sessenta dias depois dos ataques, do USA Patriot Act pelo
governo Bush, um grande texto legislativo recentemente prorrogado parcialmente pelo
presidente Barack Obama. A referida legislação é extensa e, dentre outras medidas,
reduz drasticamente controles sobre agências de inteligência e polícias, são
"simplificados" os pressupostos para realização de prisão e detenção e a privacidade
individual, inerente à cultura liberal americana, é reduzida em nome de maior poder
investigativo. A análise feita por Agamben mostra com propriedade os perigos à ordem
constitucional que é a consagração de medidas como essa, em que se institui um estado
de exceção:
A novidade da "ordem" do presidente Bush está em anular
radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa
forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável. Os talibãs
capturados no Afeganistão, além de não gozarem do estatuto de POW
[prisioneiro de guerra] de acordo com a Convenção de Genebra,
tampouco gozam daquele de acusado segundo as leis norteamericanas. Nem prisioneiros nem acusados, mas apenas detainees,
são objeto de uma pura dominação de fato, de uma detenção
indeterminada não só no sentido temporal mas também quanto à sua
própria natureza, porque totalmente fora da lei e do controle
judiciário. A única comparação possível é com a situação jurídica dos
judeus nos Lager nazistas: juntamente com a cidadania, haviam
perdido toda identidade jurídica, mas conservavam pelo menos a
identidade de judeus. Como Judith Butler mostrou claramente, do
detainee de Guantánamo a vida nua atinge sua máxima
indeterminação (AGAMBEN, 2004, p. 14-15).
Ao fim e ao cabo, um dos bastiões históricos da democracia, criou, após a queda
de seu arquiinimigo, o comunismo soviético, um novo mal a combater com imensurável
força e às custas das liberdades civis americanas: o terrorismo. Nota-se que, apesar dos
ataques terroristas à central financeira do mundo, Nova Iorque, representar a guinada
da política americana contra o terrorismo, a construção do clima de tensão e
insegurança que se instaura nos Estados Unidos não é um fenômeno recente. Barry
Glassner, sociólogo americano, aponta para a maneira como convergências entre
mídias, governos e interesses escusos possuem o poder de criar, a partir de métodos
diversos, a consolidação de uma cultura do medo. Sua pesquisa consistiu em minuciosa
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
coleta de material que perdurou durante longo período de tempo. Imerso na análise de
estatísticas, reportagens, declarações e entrevistas, elaborou um contraponto ao senso
comum dominado pelo medo. Basicamente, a tecla que pressiona é a seguinte: por que,
hoje, a população possui tantos temores, quando, na verdade, a humanidade nunca
esteve tão segura?
Glassner é objetivo e contundente para ilustrar, a partir de casos concretos, como,
por vezes, um singular evento anormal pode criar temor em grupos diversos de pessoas.
Em 1995, no até então mais trágico atentado terrorista doméstico da história dos
Estados Unidos, um prédio administrativo de Oklahoma City foi brutalmente
dinamitado através de um ataque de carro-bomba, totalizando um total de 168 mortes,
608 feridos e 324 prédios destruídos ou danificados num raio de dezesseis quadras. O
editorial de um dos grandes jornais americanos, o New York Post, no dia seguinte ao
episódio, especulou no seguinte sentido: como um carro-bomba indica a ação de
terroristas do Oriente Médio, é seguro assumir que o objetivo é promover terror
amplo e anarquia, desorganizando a vida americana. Dias depois, descobriu-se que
os dois jovens responsabilizados pelos pilares da organização do atentado eram homens
brancos da região central do país, ligados a milícias de orientação política de extrema
direita, descontentes com políticas domésticas do governo federal americano
(GLASSNER, 2003, p. 22). Recentemente, a Noruega também foi assolada por um
trágico ataque similar, cometido por um militante das fileiras de sua política de
extrema-direita. Embora eventos trágicos como esse, infelizmente, tomem lugar em
diversos países do mundo, hão de ser coibidos de maneira condizente com as práticas
democráticas constitucionais. A síntese de Glassner resume bem a maneira com que
deve ser pensada a questão — é melhor que aprendamos a pôr em dúvida nossos
medos supervalorizados antes que eles nos destruam. Os medos válidos têm sua razão
de ser: dão-nos dicas do perigo. Os medos falsos e exagerados causam apenas apuro
(GLASSNER, 2003, p. 22-26).
Superestimar a ameaça terrorista — que de maneira alguma implica que se deixe
de investigar, de julgar e de coibir as práticas de terror ― surge como um perigo
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148
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
democrático quando cria zonas cinzentas para o seu combate, sendo a ponta do iceberg
a conhecida prisão política americana de Guantânamo, na ilha de Cuba. Atualmente,
surgem regularmente indícios de existência de black site prisons na Europa: prisões
clandestinas usadas pelo serviço secreto americano, em países como Lituânia, Romênia
e Polônia, que serviriam como localidades de interrogatório por intermédio de tortura
(GOETZ e SANDBERG, 2012; SANDBERG, 2012). A partir da criação desse inimigo
sem face, digno de ser combatido sem clemência, que se desvela o caminho do arbítrio:
é institucionalizada e glorificada a barbárie. A decisão americana de criar um homem
indigno de direitos consagrados aos cidadãos vai de encontro com toda sua tradição
democrática liberal, que foi consagrada através de séculos. No caso do estreitamento
das liberdades individuais para o combate ao terrorismo, geralmente associado ao
islamismo árabe e persa, o processo é ancorado na distorção da realidade, no uso
sensacionalista de tragédias e na instrumentalização de casos de comoção pública para
criar um campo fértil para a ascensão de leis cujo conteúdo afronta as garantias civis
imprescindíveis para manutenção de um Estado Democrático de Direito.
O intelectual americano Alan M. Dershowitz, advogado judeu que, curiosamente,
é conhecido como ferrenho defensor das liberdades individuais, é um dos que coaduna
com a teoria de um uso "necessário" e "controlado" da tortura em casos específicos. Seu
pilar de argumentação é de que a escalada do terrorismo continuará sendo inevitável
caso não se permita, sob autorização judicial, a prática de tortura para obter
informações (DERHOWITZ, 2002, p. 23-42). Sua proposta parece ignorar
completamente os princípios basilares da Constituição americana; partir de
pressupostos de que ela permitiria defender um "bem superior", que ele denomina de
segurança do cidadão comum, através de tortura, é inverossímil. Suas assertivas
destoam da realidade do que é a prática de tortura mundo afora, e a idéia de que os fins
justificam os meios, cumpre lembrar, são, por excelência, marca registrada de regimes
totalitários. A argumentação autoritária de Dershowitz faz lembrar da maneira
categórica com que Beccaria se insurge, no século XVII, contra os abusos cometidos na
prática jurídica da Europa, em que descreve a ineficiência da tortura como instrumento
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149
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
judicial. Na época, a coletividade dava aos juízes a competência de arbitrar que
acusados fossem torturados por dias até que admitissem o delito ao qual eram
imputados, mesmo com indícios de inocência (BECCARIA, 2002, p. 69-76).
Por fim, é ilustrativo — e essencialmente significativo — lembrar como, através de
abusos típicos de estado de exceção, no contexto de guerra ao terror, foi executado
sumariamente, com 8 disparos na cabeça, o imigrante brasileiro Jean Charles de
Menezes, em 2005, numa estação do metrô de Londres. Na ocasião, a Polícia
Metropolitana teria confundido o brasileiro com um terrorista islâmico e atirando a
esmo antes mesmo que Jean pudesse falar algo. Os agentes estavam perseguindo um
suspeito de terrorismo de origem etíope, naturalizado britânico, e assassinaram o
brasileiro pois pensavam que qualquer ação corporal da vítima pudesse, acionar
explosivos nas linhas do metrô. Munidos de parcas informações sobre o suspeito e
incitados pelo momento de tensão vivenciados por tentativas fracassadas de atentados,
dias antes, a força policial, com má formação para este tipo de ação, assassinou um
inocente. Um retrato da incompetência policial2.
4
AS (POSSÍVEIS) RESPOSTAS JURÍDICAS
AOS EXTREMOS DA VIOLÊNCIA
Feita esta breve e parcial ambientação do panorama político mundial de guerra
ao terror, incitada pela análise da trama de O prisioneiro, urge-se trazer certas questões
para a reflexão em âmbito jurídico. Essa capacidade empática proporcionada pela
literatura, que nos oportuniza vivenciar situações que, por outros meios, estariam fora
do nosso alcance, é essencial para revisitar espaços ― nesse caso as áreas cinzentas
entre o Direito e a política ― através do inesgotável alcance que a obra literária possui
2
Até hoje nenhum agente policial foi punido individualmente pelos excessos cometidos. A Polícia
Metropolitana fora responsabilizada e condenada a pagar apenas uma multa de 100.000,00 libras
esterlinas, soma considerada baixíssima em comparação a outros casos. Recentemente, o trágico caso de
Jean Charles de Menezes foi consagrado através do filme brasileiro Jean Charles (2009), dirigido por
Henrique Goldman e estrelado por Selton Mello. Na Inglaterra, o incidente causou tanta comoção que
foi brindado com peças de teatro, intituladas Oh well never mind goodbye, Stockwell e This much is
true. Informações retiradas dos jornais Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e The Guardian.
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
para reorganizar nossas perspectivas da realidade. Determinadas cenas do romance são
a incorporação de críticas veementes da barbárie oficializada por um discurso de
Estado que denunciam a selvageria e a violência da guerra. Um dos trechos da obra, o
embate moral entre o "tenente", oficial que dá permissão para a prática da tortura, e o
"capitão-médico", judeu sobrevivente do holocausto, é excelente para cumprir a função
de elo para a nossa discussão:
O médico deixou a toalha cair no chão. Sem levar em conta a
interrupção, prosseguiu:
— Você há pouco pôs o seu problema em termos de meios e fins. Eu
não aceito a idéia de que os fins justificam os meios. O cão danado que
era o chefe dos nazistas aceitava esse princípio. O mesmo acontecia
com o sinistro ditador comunista. Um invocava como objetivo sagrado
a defesa da raça ariana, que era um mito, uma mentira. O outro
achava que todos os meios eram bons para promover a socialização do
mundo. Pense nos milhões de criaturas humanas que morreram,
perderam a liberdade e foram vítimas de atrocidades e injustiças por
causa dessas falácias...
O tenente pôs-se de pé.
— Não vim aqui para discutir política ou filosofia.
— Para que veio, então?
— Não sei. Nem quero saber.
— Mas espere, tenente, você vai embarcar de volta para a pátria dentro
de poucas horas. Nossos caminhos se separam aqui e agora. Quero
terminar meu argumento. Naquela cela subterrânea, havia uma pessoa
viva de carne, osso, sangue e nervos... dotada duma alma. Era lícito
mandar torturá-la para salvar... uma abstração? Sim, tenente, os
ditadores que mencionei costumavam falar nessa dupla abstração que
é a Humanidade do Futuro. Quem eram as pessoas que a bomba ia
destruir? Naquele momento em que o prisioneiro ficou a sua mercê,
tenente, não passavam de abstrações, hipóteses. E quem lhe garantia a
existência real da segunda bomba? Não podia ter tudo invenção
vingativa do terrorista moribundo?
— Mas ficou provado que era uma realidade!
— O que não altera todo o raciocínio que acabei de expor
(VERÍSSIMO, 2008, p. 147).
A questão que se impõe: o torturado é "menos humano", ou indigno da qualidade
de cidadão e, dessa forma, deveria ter sua dignidade e sua vida sacrificada em prol do
coletivo? Nesse contexto de perigo iminente verificado na trama, seria necessário criar
limbos onde a tortura é autorizada e considerada legítima? O asiático, no contexto do
livro, é referido pelos americanos como o asiático amarelo, como o oriental vil e
KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED
151
ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
maldito que apenas representa um inimigo a ser combatido e eliminado sem clemência.
A crítica aqui é que, independentemente da situação, no caso da tortura, seja ela em
tempos de paz ou de guerra, se esquece da condição do outro de ser humano, detentor
de garantia de dignidade e de vida. Para que se caminhe no sentido da maturidade dos
sistemas democráticos, é necessária a criação de consensos de respeitabilidade as
condições mínimas de dignidade, não passível da constante intervenção de leis típicas
de estados de exceção que suprimam direitos constitucionalmente estabelecidos, de
forma a criar uma cultura de direitos humanos que represente o que se almeja como
condição mínima de uma existência em sociedade.
Na atualidade a manutenção do respeito aos princípios democráticos essenciais é
imprescindível para evitar um retrocesso nas conquistas alcançadas nas democracias
mundiais. Isso significa mostrar o quão incompatível é, em pleno terceiro milênio, que
aconteçam diariamente práticas perversas como execução sumária e tortura. Questões
como essa ganham distância da população quando essas afrontas aos direitos humanos
se tornam, dia após dia, gradualmente, institucionalizadas e consideradas normais e
legítimas — em nome dos mais distintos fins e intenções. Diante do medo crescente da
comunidade global das práticas terroristas, é pertinente fornecer informações
coerentes sobre assunto. Temas como esse devem ser debatidos publicamente e com
seriedade, pois, inevitavelmente, está em jogo uma questão humanitária e, diante da
inércia e da falta de pressão das mídias e da sociedade civil, a necessidade de respeito
aos direitos humanos é, sistematicamente, ignorada e esquecida. É importante, para
munir de coerência e clareza, que discussões acerca da aplicação do Direito, da criação
legislativa e das limitações jurídicas do uso de força por parte do Estado façam parte do
cotidiano da nação.
Dois juristas se posicionam, antagonicamente, nesse embate sobre a correta
condução jurídica do paradigma do terror: Luigi Ferrajoli e Günther Jakobs. Jurista
alemão, Jakobs estabelece que é imprescindível, para a manutenção da ordem jurídica,
medidas de exceção contra atos que atentem contra a estrutura do corpo social e das
instituições do Estado para, assim, fazer reinar a segurança social (JAKOBS, 2009, p.
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152
ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
61). Em síntese, postula a legitimidade de um Direito Penal do inimigo, teoria
construída desde 1985, desvinculado completamente da estrutura geral do Direito
Penal (que se limitaria a regulamentar os delitos cometidos pelo corpo social
"cidadão"), competente para utilizar da coação e do uso da força contra quem atente
contra os princípios basilares do Estado. Esse Direito Penal do "outro", segundo
Jakobs, através desse distanciamento do Direito Penal da "pessoa normal", seria o
método menos danoso para se estabelecer uma situação de segurança para população.
Explicita que é desnecessário entrelaçar todo o Direito Penal com fragmentos de
regulamentações próprias do Direito Penal do inimigo (JAKOBS, 2009, p. 47). Dessa
maneira, argumenta pela impossibilidade de tratar os inimigos do Estado como pessoa
(JAKOBS, 2009, p. 58). Através da supressão do status de cidadão, o terrorista — o
inimigo — estaria suscetível ao arbítrio de um Estado não comprometido com ideais de
um Estado de Direito, que contaria com a necessária legitimação jurídica e disporia da
utilização de métodos não-ortodoxos para obter êxito no combate às ameaças contra as
instituições. Nas palavras do autor: o Direito Penal dirigido especificamente contra
terroristas tem, no entanto, mais o comprometimento de garantir a segurança do que
o de manter a vigência do ordenamento jurídico (JAKOBS, 2009, p. 60-61).
Luigi Ferrajoli, por sua vez, insurge-se contra essa maneira de fundamentação
pragmaticista da guerra e da luta contra o terrorismo, reafirmando o princípio da
legalidade no ordenamento jurídico: reitera que o Direito é, antes de mais nada, uma
garantia elementar da construção democrática, e não um conjunto de formas vazias ou
procedimentos abstratos meramente vigentes. Nessa esteira, insere-se o debate sobre a
supressão total de direitos — em plena era de constitucionalismo democrático — de
terroristas e presos de guerra que são submetidos à práticas de exceção típicas de
regimes autoritários. Ferrajoli critica a definição dada pelo governo norte-americano às
ações terroristas como "atos de guerra" — mesmo apesar da gravidade de atentados
como o ocorrido em 11 de setembro de 2001. Desenvolve, inclusive, a noção de que os
atos terroristas são (deveriam ser) considerados delitos de competência exclusiva de
justiça criminal comum e, consequentemente, consideradas ilegítimas as desmesuradas
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ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
retaliações dos países desenvolvidos contra, por exemplo, o Afeganistão. A mais
acertada síntese do autor é de que a racionalidade e a civilidade, noções tão bem quistas
pela cultura ocidental, deveriam, exatamente, contrapor-se à brutalidade dos atos
terroristas — ao invés de se optar por um modelo de guerra perpétua no lugar do
diálogo racional (FERRAJOLI, 2004, p. 27-33 e 51-73).
Quanto ao uso da guerra nessa cruzada contra o terror, há quase quarenta e cinco
anos atrás, quando da publicação de O prisioneiro, Erico evidenciava o uso do
argumento da intervenção militar como "missão civilizatória" americana na Ásia-doSudeste, na qual o avanço comunista seria a grande o mal a ser extirpado. Hoje, essa
mesma "missão civilizatória" toma contornos de "guerra ética" ou de "missão
humanitária" — situações, estas, que Ferrajoli argumenta não existirem, pois toda a
guerra se caracteriza por uso arbitrário de força. Com esse uso desenfreado da força
bélica dos Estados, infelizmente se consolida, na modernidade, uma guerra infinita de
caráter assimétrico (FERRAJOLI, 2009, p. 13-33). A elucidação do sofrimento vivido
pelas populações civis em situação de guerra, contrastado às denúncias genéricas que
se faz contra o terrorismo, como a da "jihad global", mostram o quanto é ilegítimo,
falso e falacioso o posicionamento das potências mundiais como vítimas. Ressalta que
as consequências das intervenções militares resultam na usurpação da dignidade e da
vida de populações civis e, também, numa enorme desestruturação do tecido social das
sociedades atingidas — e esses danos são imensuravelmente superiores aos pretextos
genéricos empregados na guerra ao terror, como o "perigo às democracias ocidentais"
ou "do terrorismo como maneira de promover a anarquia no Ocidente". Com isso, surge
um questionamento frequente na obra de Ferrajoli, em que ele compara também com a
situação do terrorismo na Itália nos anos oitenta: as organizações terroristas possuem,
de fato, o poder de afrontar as instituições democráticas dos Estados? (FERRAJOLI,
2006, p. 765-769).
Cumpre ressaltar aqui que o autor italiano não nega a necessidade de
investimentos em políticas de segurança para coibir atentados. A crítica repousa na
condução desmesurada da comunidade internacional contra as práticas terroristas,
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onde não se verificou práticas objetivas e eficazes de investigação de células terroristas
ou de coordenação entre serviços de inteligência para a localização e a entrega para a
justiça de membros de células terroristas. No lugar de condutas guiadas pelo direito
internacional, a partir de racionalidade, inteligência e cautela — enfim, ações estas
norteadas por princípios democráticos essenciais —, optou-se pela guerra, pela
reiterada prática de tortura contra presos políticos e pela legitimação de práticas
arbitrárias. Pelo raciocínio de Ferrajoli, no momento em que os Estados liberais
coadunam com a própria lógica do terrorismo que, por excelência, rege-se por uma
anti-racionalidade, significa que sucumbem ao plano de instauração de violência
imposta por seu inimigo e, assim, retroalimentam as práticas de violência irracional as
quais pretendem eliminar (FERRAJOLI, 2009, p. 14-17).
Eugênio Raúl Zaffaroni, ministro da Suprema Corte Argentina, é objetivo em
delimitar o cerne da questão concernente a instrumentalização do inimigo do Estado.
Retrata com excelente ponderação a inerente incompatibilidade da personificação dos
inimigos da democracia no Estado Constitucional de Direito:
Nossa tese é que o inimigo da sociedade ou estranho, quer dizer, o ser
humano considerado como ente perigoso ou daninho e não como
pessoa com autonomia ética, de acordo com a teoria política, só é
compatível com um modo de Estado absoluto e que,
conseqüentemente, as concessões do penalismo têm sido,
definitivamente, obstáculos absolutistas que a doutrina penal colocou
como pedras no caminho da realização dos Estados constitucionais de
direito (ZAFFARONI, 2007, p. 9-10).
A almejada realização do Estado Constitucional de Direito a que Zaffaroni se
refere depende da formação de uma comunidade jurídica que saiba identificar e,
consequentemente, proteger os direitos os quais são imperativos para a construção
democrática. Para que se confirme, de fato, um sistema garantidor de direitos
humanos, é essencial que se forme, além da necessária cultura de reconhecimento de
direitos que assegurem a todos uma existência digna, tribunais constitucionais se
posicionem como efetivos protetores desses direitos. A partir de decisões que
reafirmam e protegem a vida e a dignidade da pessoa humana — especialmente quando
em sede de tribunal constitucional — é oxigenado o debate para que se alcance um
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
regime democrático-constitucional que prima pela sua legitimidade para com a
sociedade através do respeito aos direitos humanos.
4.1
A lição alemã para a criação de uma cultura de respeito à vida
e à dignidade da pessoa humana
Na jurisprudência internacional, a decisão do Tribunal Constitucional Alemão
sobre a inconstitucionalidade da Lei de Segurança Aérea é paradigmática. A lei fora
promulgada em um período conturbado, após os atentados terroristas de onze de
setembro, e estava em vigor desde janeiro de 2005. O referido diploma legal explicitava
que era autorizado, em último caso, as Forças Armadas intervirem por meio de força,
com intermédio de autorização do ministro da Defesa, quando de sequestro de
aeronave civil por terroristas que, possivelmente, pudessem vir a usar o avião como
arma. O que ficou evidenciado na decisão do Tribunal Constitucional foi que a vida e a
dignidade dos cidadãos que estivessem, hipoteticamente, no avião, deveriam ser
resguardadas constitucionalmente. Os tripulantes da aeronave, nessa situação, não
poderiam ser tratados como objetos e, seu destino, tampouco, ser considerado selado
em razão do sequestro. Optou-se, então, pela impossibilidade de se validar uma lei que
dê ao Estado o arbítrio para decidir sobre quem vive e quem morre. A corte negou ao
Estado alemão esse poder de ingerência, esse sopesamento sobre quais direitos
humanos seriam convenientes para a proteção no caso concreto. Outro argumento
usado se refere à restrição de que, em âmbito interno, as Forças Armadas, em tempos
de paz, só poderiam agir em caso da catástrofe natural e acidentes graves (TRIBUNAL
FEDERAL CONSTITUCIONAL ALEMÃO, 2006).
O que foi posto em pauta, nesse caso, foi a defesa da dignidade da pessoa humana
e da vida dos cidadãos, opondo-se firmemente contra a criação dos fantasmas do perigo
em muitos regimes democráticos nas últimas décadas. O jurista e escritor alemão,
Bernhard Schlink, se posicionou duramente contrário às condutas da ala mais
conservadora da política alemã que, ainda hoje, insistem em defender a aprovação de
legislações duras contra o terrorismo (SCHLINK, 2012) Para ele, medidas que atentem,
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como foi no caso da Lei de Segurança Aérea, contra a vida dos reféns na aeronave, em
nome da virtual segurança de civis em terra, é uma clara afronta à ordem
constitucional. Mais do que isso, Schlink considera que procedimentos nesse sentido
seriam portas abertas para, mais adiante, no desenrolar dos anos, a própria tortura ser
explicitamente sancionada pelo Estado. Esta lição prática de correta condução da
jurisdição constitucional é de grande importância para denotar a maturidade com que a
prática constitucional contemporânea deve ser ater em nome da manutenção das
ordens democráticas. Decisões como esta que fortalecem uma coerente cultura de
respeito aos direitos humanos na ordem global.
No Brasil, houve promulgação de lei com características similares a Lei de
Segurança Aérea alemã, conhecida comumente como Lei do Abate. A lei foi elaborada
com intuito de combater o narcotráfico e de defender o espaço aéreo brasileiro. Apesar
de ter sido duramente criticada pela comunidade jurídica, que denunciou o seu
conteúdo inconstitucional, a lei ainda é vigente, talvez em grande parte pela falta de
pressão da população e, até mesmo, pelo apoio do senso comum do povo à eterna
guerra contra as drogas. As críticas repousam sobre a série de vícios de
constitucionalidade em que a lei estaria eivada: a ausência do due process of law, a
desproporcionalidade da lei penal, a institucionalização da pena de morte, a afronta e a
usurpação dos diretos à vida e à dignidade da pessoa humana (GOMES, 2012)
(MAGALHÃES, 2012). O caso concreto que ilustra o perigo representado por essa lei é
fato acontecido no Peru em 2001. Uma missionária e sua filha morreram após seu avião
ter sido abatido equivocadamente pela Força Aérea peruana — os aparelhos de
comunicação da aeronave estavam estragados e ela não conseguiu se comunicar com as
autoridades, motivo pela qual a legislação foi amplamente discutida em terras
peruanas. No Brasil, nenhum partido ousou se urgir contra a lei, apenas poucos
cidadãos, como o Deputado Federal Fernando Gabeira, posicionaram-se sobre o
assunto. Gabeira argumenta contra a tentativa dos defensores da lei de esvaziar
possibilidade e existência de qualquer medida alternativa para realizar a abordagem
das aeronaves, pintando como único caminho adequado a aniquilação sumária das
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
aeronaves suspeitas. Foram por ele também relatadas as tentativas frustradas de
provocar o Supremo Tribunal Federal, nas quais nenhum partido político ousou se
posicionar contra uma lei que conta com amplo apoio da opinião pública, o que
acarretaria um desgaste eleitoral devastador e, por essa razão, ainda não houve
posicionamento da Corte Constitucional sobre o assunto (GABEIRA, 2012).
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em razão da clareza conceitual, da sensibilidade arrojada e das bem elaboradas
alegorias que Veríssimo lança mão é que se optou por utilizar O prisioneiro para
desvelar importantes lições para concebermos problemas da atualidade políticojurídica sob diferente ótica. Resta essencial mostrar que as práticas de arbítrio não
podem se desvincular das limitações constitucionais, sob pena de aniquilar toda e
qualquer pretensão democrática de uma sociedade. A legitimação de atos como a
tortura, por vezes protegida por mantos político-ideológicos, é o verdadeiro caminho
para o arbítrio — mesmo em situações limite como a vivida, na obra, pelo "tenente". A
presença dos inimigos-a-combater sempre será elemento presente nos ideários
coletivos: o que, em momento algum, significa que essa necessidade de segurança da
população civil comporte a supressão do estatuto de pessoa humana de alguns como
medida imprescindível para resguardo de um coletivo. Práticas de repetida afronta
contra o princípio da dignidade humana são delírios de sociedades doentes e, apenas
com esperança de abertura para um diálogo entre as culturas, interação esta que não é
fácil nem imediata, é que se criará a perspectiva de vislumbrar um mundo mais
pacífico. O que se verifica na imersão nessa temática é que a reiterada tentativa, sobre
diferentes argumentações e discursos de legitimação, de se criar condições de
aceitabilidade para a tortura é um fenômeno que tende a se repetir na História.
Erico, no longínquo ano de 1967, no auge da Guerra Fria, criticou com ferocidade
os mandos e desmandos das nações, independentemente das orientações políticas, no
que tange às afrontas aos direitos humanos — em sua obra impera uma dura
indignação contra os abusos perpetrados de maneira cruel e reiterada, tanto pelas
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nações comunistas quanto pelas capitalistas, para perseguir fins postos como justos,
sejam eles o que forem. Na América Latina, todavia, sequer seria preciso da literatura
para ilustrar o que a tortura institucionalizada trouxe para todo continente durante as
ditaduras militares (ARNS, 1996, p. 31-48 e 203-273) (SÁBATO, 1984, p. 16-41) Esse
debate, em plena era democrática, não pode continuar a se guiar por orientações
políticas, a necessidade de uma visão apolítica desse panorama é uma característica que
se impõe. É essencial mostrar que práticas arbitrárias, como a tortura, não condizem
com um Estado Democrático de Direito. Se não forem respeitados, pois, os
instrumentos jurídicos de conformidade constitucional para coibir práticas de terror, é
a própria coletividade dos homens que se pretende democrática que passa a se autoaterrorizar. É válido rememorar que, na ditadura argentina (1976-1983), o sistema de
repressão atingiu tal ponto de perversão que, após a intensa repressão nos primeiros
anos de regime, não havia outro método investigativo a não ser a tortura nos porões.
(SÁBATO, 1984, p. 31-39).
Vive-se num mundo que não possui uma polarização clara e definida, as
mudanças são rápidas e, por vezes, difíceis de perceber. A complexidade com que
estamos inseridos hoje no mundo globalizado, não raro, gera obstáculos para distinguir
e discernir o que, de fato, merece nossa indignação e consequente engajamento.
Tampouco foi desprovido de desafios elaborar a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 1948, explica Stéphan Hessel, o mais novo dentre os que participaram da
redação do documento adotado pela ONU. Em seu pequeno manifesto, redigido
recentemente, intitulado Indignez-vous!, explica que, no movimento da Resistência, o
espírito de indignação e irresignação contra o nazismo foi a principal convicção e força
espiritual para alavancar a libertação de uma França aliada ao nazismo. No contexto do
pós-guerra, sabia que a Declaração de 1948 não tinha alcance jurídico, e sim
declaratório, mas ilustra o poder possuído por aquela afirmação de direitos mínimos:
empecilhos em sua concretização não a impediram de desempenhar um papel central e
protagonista na defesa contra a opressão e a barbárie em diversos momentos a partir da
metade do século XX (HESSEL, 2011, p. 30-36). Hessel entende que a violência dá as
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costas à esperança: prega que a humanidade deve aprender a se guiar pela nãoviolência. Para isso, propõe uma insurreição pacífica contra o senso comum que aponta
para a violência como o único caminho a ser trilhado. Transcrevo os anseios do autor:
A mensagem de uma Mandela, de um Luther King encontra toda sua
pertinência em um mundo que ultrapasso o confronto das ideologias e
o totalitarismo conquistados. É uma mensagem de esperança na
capacidade das sociedades modernas de ultrapassar os conflitos por
meio de uma compreensão mútua e de uma paciência vigilante. Para
alcançá-la, devemos nos basear nos direitos, cuja violação, qualquer
que seja o autor, sempre há de provocar nossa indignação. Não se
pode transigir sobre esses direitos (HESSEL, 2011, p. 32).
É através da busca da formação de uma cultura de respeito aos direitos humanos
que se constitui a real liberdade do homem no mundo de hoje. Idéias como as de
Hessel, guiadas pela sabedoria que emana de uma vida de lutas e conquistas, objetivos
estes que nunca se pretenderam facilmente alcançáveis, que devem nortear o debate
das novas gerações sobre como encarar os desafios da modernidade, seja o âmbito qual
for — político, jurídico, social ou econômico — para construir sistemas de democracia
plena e de culto às necessidades mínimas de existência de populações inteiras.
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Jurisprudência
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15.2.2006, Absatz-Nr. (1 - 156).
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A REPRESENTAÇÃO DO JUIZ EM O CÍRCULO DE GIZ CAUCASIANO,
DE BERTOLD BRECHT
A NDRÉ K ARAM T RINDADE 1
C AROLINA N ICOLE Z ANOTTO 2
L UÍSA G IULIANI B ERNSTS 3
RESUMO: A pesquisa possui a finalidade de explorar a figura do juiz através da
literatura, com base na noção de modelos de juiz formulada por François Ost. A
partir da obra de Bertold Brecht, O círculo de giz caucasiano, escrita em 1944, é
possível evidenciar a representação do juiz Azdak, personagem do livro, como uma
forma de apresentação dos problemas acerca da liberdade decisória do juiz,
independentemente de seu engajamento aos critérios sugeridos pelo Direito.
Utilizando-se de aspectos fenomenológicos-hermenêuticos, faz-se possível
constatar que, durante a evolução histórica das ciências jurídicas, como resultado
de uma superação de paradigmas até então vigentes, o Poder Judiciário ganhou
papel de destaque na sociedade, alterando a figura representada pelo Magistrado,
cujo perfil será retratado no presente trabalho
PALAVRAS-CHAVE: direito na literatura; a representação dos juízes; decisão
judicial.
1
INTRODUÇÃO
O principal objetivo a ser atingido neste ensaio é a reflexão acerca das
possibilidades de compreensão dos fenômenos jurídicos através da Literatura, mais
1
2
3
Doutor e Mestre em Direito Público (Università Degli Studi Roma Tre/ Itália). Professor da Escola de
Direito da IMED e CESUCA. Email: [email protected]
Acadêmica do curso de Direito da Faculdade Meridional – IMED. Bolsista FAPERRGS Membro do
Grupo de Estudos em Direito e Literatura Katharsis. Email: [email protected].
Acadêmica do curso de Direito da Faculdade Meridional – IMED. Bolsista do Programa de iniciação
científica da IMED. Membro do Grupo de Estudos em Direito e Literatura Katharsis. Email:
[email protected]
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especificamente da peça o O círculo de giz caucasiano, do escritor alemão Bertolt
Brecht.
Sendo assim, a pesquisa realizada segue como orientação metodológica a
fenomenologia-hermenêutica, buscando através da Literatura novas perspectivas à
compreensão dos problemas jurídicos. A análise teórica de textos literários clássicos,
nacionais e estrangeiros, possibilita identificar, nos mesmos, elementos conectores
destes com a Teoria do Direito e com a Filosofia no Direito.
Dessa forma, o estudo busca evidenciar a semelhança entre a Ciência do Direito e
da Literatura, a partir da compreensão proposta pela corrente direito na literatura.
Pretende-se, portanto, apresentar e refletir, à luz da literatura, temas centrais da
Ciência do Direito dando destaque à figura do juiz por influência dos modelos de juiz
propostos por François Ost.
2
DIREITO NA LITERATURA
Embora muito recente no Brasil – onde ainda existem poucas pesquisas
interdisciplinares jusliterárias –, o estudo do Direito e Literatura atravessa o século XX,
especialmente na Europa e nos Estados Unidos.
O direito e a literatura se assemelham em diversos pontos. Contudo, o estudo
dessas interseções ainda é um tema relativamente novo no âmbito acadêmico. As
correntes que estudam essas relações podem ser divididas em três. A primeira delas é o
direito da literatura, que trata da regulação que o ordenamento jurídico confere a
problemas ligados à produção intelectual. Há, também, o direito como literatura, que
possui maior expressividade nos Estados Unidos, e cujos estudos buscam relacionar a
interpretação do âmbito jurídico com o literário. Por fim, a corrente do direito na
literatura, com a qual trabalharemos.
A corrente do direito na literatura – analisada como direito a partir da literatura
– parte da premissa de que algumas questões jurídicas se encontram melhores
formuladas e esclarecidas em obras literárias do que em muitos dos manuais jurídicos
especializados (TRINDADE; GUBERT, 2008, p.49).
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François Ost, em sua obra intitulada Contar a lei, propõe a elucidação de
questões jurídicas através da liberdade trazida pela literatura por meio das narrativas
(OST, 2005, p. 48-58). O autor diferencia direito e literatura em quatro principais
aspectos.
Primeiramente, no que diz respeito ao papel destes, enquanto o da literatura é
por em desordem as convenções, suspender as certezas e liberar os possíveis, o papel
do direito é de codificar a realidade (OST, 2005, p. 48-58). Essa caracterização de Ost
implica em certa ambiguidade. Isso porque, a Ciência do Direito vem fazendo
movimentos para ultrapassar as noções jurídicas rasas que acabam equiparando o
Direito ao Direito Positivo. Nesse sentido, novos questionamentos sobre a Teoria das
Fontes do Direito podem dar vasão à discussão sobre o alcance normativo – codificador
– do Direito Positivo e o papel do intérprete nesse processo.
Em segundo, a literatura ao contrário do direito, não possui a função social de
estabilizar expectativas e tranquilizar as angústias da sociedade, sendo possível, assim,
a exploração de todos os meios para concretização de um determinado fim, criando-se
dessa forma a possibilidade de inovações decorrentes do emprego de um olhar crítico
(OST, 2005, p. 48-58). Não se pode negar, entretanto, que o leitor ao conhecer a
condição reacionária da literatura não possa empregá-la como forma de denunciar
impropriedades dogmáticas do Direito. Nesse sentido, entende-se que a Literatura
ampara a crítica, evidenciando o pluralismo na compreensão do Direito.
Um terceiro ponto de divergência surge da análise dos estatutos dos indivíduos de
que fala cada um desses discursos. No Direito o homem encontra uma vinculação à sua
conduta, passando a seguir uma referência de comportamento padrão, fonte de
inspiração da atitude dos demais membros da sociedade, enquanto na literatura nada é
impossível, cabe ao escritor a possibilidade de contestar as convenções sociais, criar
personagens rebeldes que não abdicam de sua função de agente transformador da
sociedade (OST, 2005, p. 48-58). O que parece ficar ocluso a Ost nessa diferenciação é
que o Direito precisa apresentar essa condição de intersubjetividade. Isto é, de
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elementos comuns nos quais as condutas podem ter como seus pressupostos. Para o
Direito, essa pressuposição dá segurança às relações.
A quarta diferença reside no fato de que o direito trata e descreve aquilo que é
abstrato e comum, já a literatura não, descreve as singularidades de uma história
particular (OST, 2004, p.12-16.). Novamente, ressalva deve ser feita a diferenciação
proposta pelo autor. O Direito também acaba tratando do particular. Aliás, grande
parte dos questionamentos sobre a justiça do Direito (Positivo) acaba sendo anunciado
mediante o contraste normativo entre previsões gerais e abstratas – ideal típico do
direito positivo codificado – e a sua aplicação ao caso concreto.
Ao mencionar em sua obra que “a literatura adota em muitos domínios a forma
da casuística, na qual a exposição do caso, misturando relato e argumentação, destinase a levar à descoberta e a à aplicação da lei” (OST, 2010, p. 53), François Ost retoma a
ideia da capacidade de incentivo trazido pela literatura ao direito. Esse diálogo faz com
que os juristas, através da análise feita às obras literárias, ampliem seus horizontes e
descubram, a partir dos fatos narrados pelas mesmas, soluções para os casos da
realidade. Facilitando dessa forma a resolução de conflitos e sinalizando qual seria a
aplicação correta da lei.
Seria, dessa forma, possível constatar que, o jurista que adota uma postura
crítica, desenvolvida através da literatura, perante os conflitos propostos pelo direito,
descobre a capacidade de contribuir para a melhor concretização da justiça e do bem
estar social. Uma vez que a narrativa poderá indicar possibilidades diferentes de análise
do problema, facilitando, assim, a aplicação da lei de forma correta, e,
consequentemente, trazendo benefícios ao sistema Jurídico. Para ilustrar esse papel
desempenhado pela literatura no jurista, pode ser mencionada a seguinte passagem de
Ost:
O jurista que desembarca em terra literária assemelha-se a Colombo
pondo os pés no novo mundo – ignorante da natureza exata de sua
descoberta: ilha ou continente? Índia ou América? Muitas outras
surpresas ainda o esperam, e ele certamente será obrigado a modificar
mais de uma vez o traçado dos mapas que traçou presuntivamente
(OST, 2004, p. 58).
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Contudo, não se desconhece a crítica sobre a relação entre o Direito e a
Literatura. Há aqueles, no exemplo de Rodrigo Díez Gargari que assumem uma postura
cética quanto a troca produtiva entre esses âmbitos do saber. Entende o autor que o
constitucionalismo moderno fez com que o direito passasse a ser entendido de outra
forma. A interpretação e argumentação jurídica afastam-se cada vez mais da teoria
positivista, uma vez que as normas presentes no texto constitucional possuem uma
grande amplitude e indeterminação, enfatizando a necessidade do desenvolvimento da
teoria da argumentação. Ou seja, o autor reconhece a transformação da prática jurídica
e as novas demandas resultantes desse processo, contudo acredita ser grande de mais o
salto entre a hermenêutica e a argumentação jurídica à literatura (GARGARI, 2008. p.
149-175).
A ideia de que a literatura é capaz de formar melhores cidadãos, segundo Gargari,
apenas alimenta a esperança desmedida sobre o papel da literatura, o pensador não
acredita que aquele indivíduo que possui falhas em sua formação irá repará-las com a
literatura tornando-se um melhor servidor público. Ao referir-se ao método de análise
dos textos legais da mesma forma que são efetuadas nos literários, Díez aponta para a
possibilidade que a utilização dos meios interpretativos, próprios da literatura, resulte
na superficialização dos temas tratados pelas ciências jurídicas (GARGARI, 2008. p.
149-175).
Mesmo conhecendo as críticas proferidas por Gargari, assume-se que a Literatura
acaba contribuindo ao Direito, nos termos da proposta de Ost, pois permite que
questões holísticas sobre o funcionamento ou a legitimidade do Direito – decisão – não
tematizadas pela dogmática jurídica tradicional apareçam e mereçam maior atenção do
jurista. Assim, particularmente, estudar o Direito na Literatura é recepcionar no
âmbito jurídico problemas que, na operacionalidade cotidiana do Direito, não se
mostram evidentes.
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3
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DA LITERATURA À AZDAK
A partir dos pressupostos do estudo do Direito na Literatura, o trabalho teve
como seu objeto o livro: O círculo de giz caucasiano, de Bertolt Brecht, procurando
identificar elementos que pudessem caracterizar a figura do juiz apresentada na obra.
O livro estudado foi escrito em 1944, nos Estados Unidos, representando uma
peça que narra a estória sobre a disputa da posse de um determinado vale. De olho na
peça, especula-se que a obra faz menção, mesmo que indiretamente, ao momento
histórico de reconstrução da Rússia Soviética por consequência da destruição
proveniente da primeira Guerra Mundial (BRECHT, 2010, p. 12). Interessa destacar
que a obra apresenta uma peça dentro da peça, cuja encenação é observada pelos
personagens como forma de compreender de que forma modelar a decisão sobre a
posse do vale, questão tratada na narrativa (BRECHT, 2010, p. 13).
Assim, a peça dentro da peça tem como objeto o litígio sobre a guarda de uma
criança. Isto é, apresenta a disputa travada entre a mãe de criação e a mãe de sangue do
menino Miguel. Inspirado por uma lenda chinesa, semelhante a historia do juízo
salomônico, Brecht demonstra a necessidade da resolução dos problemas quanto à
posse das terras seguir o exemplo da decisão do juiz Azdak na disputa pela guarda do
menino Miguel.
Na peça, Grucha salva a vida do filhinho do Governador de alguma cidade da
Geórgia medieval, que fora assassinado durante uma revolta política. Ocorre que, após
ser restabelecida a ordem social, a mãe de sangue, que havia abandonado o filho
durante a fuga, reivindica a guarda do menino.
Nesse momento entra em cena Azdak, o juiz dos pobres, beberrão e corrupto, o
qual, para resolver o caso, manda que tracem no chão um círculo de giz, no qual o
menino será colocado, devendo cada mãe puxar a criança para o seu lado fora do
círculo. Grucha perde, porque não puxa a criança com toda a sua força para não
machucá-la. Mas Azdak entende que, diante da situação, quem deveria ficar com o
menino é Grucha, por ter agido ela de forma verdadeiramente maternal.
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Manuel Bandeira ao prefaciar o livro assinala que “a moral da peça é que as coisas
devem caber àqueles que são bons para elas” (BRECHT, 2010, p. 19).
Fica a pergunta que orientou a pesquisa: quem é o juiz? O juiz era Azdak, escrivão
do povoado, representado na peça que serve de modelo à resolução da disputa do vale.
O juiz Azdak teria sido nomeado pelos couraceiros após chegar ao tribunal
alegando que havia abrigado o Grão-Duque fugitivo, e, merecia severa condenação por
ser um traidor da aldeia. Ao longo da conversa mantida com os couraceiros, pouco
intelectuais, Azdak demonstra conhecer das relações jurídicas e da história da aldeia,
além de possuir ideias semelhantes dos atuais governantes da comunidade.
Seja por esse motivo ou porque todos os juízes e pretendentes ao cargo tinham
sido enforcados, os soldados decidem nomeá-lo como Juiz do vilarejo, baseados na
justificativa de que os juízes anteriores de boa índole se transformaram em tratantes.
Em seu artigo intitulado “O juiz em Azdak: um estudo de hermenêutica jurídica
na peça O círculo de giz caucasiano, de Bertold Brecht”, publicado nos anais do
Conpedi de Belo Horizonte, Luis Gustavo Cardoso, descreve a figura do juiz,
demonstrando ao fim que suas decisões eram irregulares, de um estranho racionalismo,
utilizando-se de uma justiça própria, peculiar e concreta. O autor relaciona o problema
apresentado pelo livro com a hermenêutica jurídica, na maneira de adotar a
interpretação como linha de pensamento. Entretanto, pouco escreve sobre o dilema das
decisões do juiz e a relação com o direito (CARDOSO, 2008. p.4992-5003).
Ao contrário de Cardoso, trataremos da figura do juiz a fim de possibilitar sua
relação com o direito e com os problemas atuais enfrentados pelo Judiciário na
motivação das decisões dos juízes, que, por sua vez, adotam uma postura desvinculada
das fontes do direito. Atitude, essa, que ocasiona problemas na efetivação da justiça e
concretização dos direitos fundamentais.
Ao analisar a narrativa, a figura do juiz é caracterizada, entre outras, pela
parcialidade adotada por Azdak na resolução dos problemas apresentados a ele. Em um
primeiro momento, faz-se possível perceber que ele tende a beneficiar o proletariado,
contudo, com o passar do tempo, essa característica deixa de ser marcante, cedendo
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espaço a uma conduta imprevisível. O destaque à conduta do juiz é a falta de apego às
leis, o que pode ser visto na peça quando Azdak utiliza o código como assento. Para
ilustrar as particularidades e a instabilidade do Juiz Azdak na peça, referimos três
decisões proferidas por ele ao longo da história.
A primeira delas se refere a um crime de extorsão em que há um Inválido, um
Médico e um coxo. Na situação o inválido custeou os estudos do médico, este, por sua
vez, nunca lhe pagou e, após formado, tratava seus pacientes gratuitamente. Por se
assustar com o fato, o homem ficou inválido. Já o coxo alega erro médico, que operou a
perna errada. Ao se defender o médico acredita ter recolhido os honorários por meio de
seu assistente. Simultaneamente, um homem e acusado de chantagem, nega, e diz que
estava verificando se o proprietário tinha violentado a sobrinha, o proprietário lhe disse
que não e deu-lhe dinheiro para pagar os estudos musicais de seu tio. O juiz decide,
provada a extorsão, condenar o inválido ao pagamento de multa, o coxo a receber como
indenização uma garrafa de aguardente francesa. Ao chantagista ceder ao Promotor
metade dos honorários, pois o tribunal não divulgou o nome do proprietário e ao
médico a absolvição por erro profissional (BRECHT, 2010, p.153-156).
Já na segunda decisão o juiz adota ideias diferentes em relação aos primeiros dois
conflitos, aqui, decide a favor dos pobres, no entanto sem nenhum embasamento legal
aparente. Neste caso uma camponesa é acusada de ter detido uma vaca pertencente a
um proprietário, além disso, foi encontrado com ela outros pertencentes, e quando se
reclamou o pagamento de um arrendamento a acusada, os proprietários reivindicam os
bens e a acusada alega milagre de um santo. O juiz após escutar todas as partes, profere
sua decisão dizendo que os proprietários devem pagar multa por desacreditar nas
palavras da camponesa, favorecendo, portanto, a parte mais fraca (BRECHT, 2010, p.
163).
O ato de o Juiz Azdak ignorar os códigos é retratado na passagem abaixo, em que
Azdak diz a Schauva seu ajudante e promotor público:
Vá me buscar o livro grosso em que me sento. Shauva apanha o livro
na cadeira, Azdak o abre: Isto é um código, podem dar testemunho de
que sempre me utilizei dele. Shauva: Sim, pra sentar-se em cima.
Azdak : Agora é melhor consulta-lo pra ver o que eles me podem
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chimpar. Pois eu costumava fazer vista grossa aos que nada tinham,
isto vai me custar cara. Ajudei a pobreza a se sustentar nas magras
pernas, e eles me levarão isso à conta de bebedeira; meti o nariz nos
bolsos dos ricos, o que é considerado uma obscenidade (BRECHT,
2010, p. 166).
A atuação do juiz Azdak acaba, de certa maneira, representando a possibilidade
de o juiz decidir os problemas jurídicos de acordo com as suas convicções. Pela
narrativa da peça, parece evidente que Azdak pouco se importava com o conteúdo do
Direito Positivo. Especula-se, ser por isso o seu descaso com os códigos. Ou melhor, a
sua ironia com aquilo que estava previsto nos códigos.
A cena em que Azdak solicita o código para se sentar sobre ele pode,
simbolicamente, representar duas questões diversas. Dependendo do conceito de
Direito que se pretende, a interpretação poderá ser diferente. Isto é, poderia a cena
representar tanto a importância do intérprete na dação do sentido jurídico quanto a
ignorância que o intérprete pode fazer das leis.
Nesse sentido, a formação do conceito de direito a partir do entendimento da
corrente doutrinária proposta por H. L. A. Hart e aquela proposta por Ronald Dworkin
pode ser evidenciada fomentando essas interpretações. Ao dissertar acerca da
discricionariedade judicial Hart sinaliza para o conflito, mas contundente entre sua
teoria e a Dworkiniana. Segundo ele, qualquer sistema jurídico pode ser indeterminado
ou incompleto, e assim sendo, caberia ao juiz criar um “novo direito” endossado pelo
poder discricionário a ele investido (HART, 2009. p. 351). Essa teoria esta ligada ao
fato de se concepção de Direito permitiria que o jurista, em última ratio, pudesse,
inclusive, deixar de lado o Direito Positivo, exercendo as suas próprias convicções,
sentimentos pessoais para resolver os problemas. Assim quando Azdak opta pelas suas
preferências pessoais, fazendo do código das leis mero apoio ao seu ato, estaria
relegando o poder normativo do Direito Positivo.
De outra sorte, para Ronald Dworkin, o juiz nunca teria a oportunidade de sair do
âmbito do direito. Não poderia ele exercer o seu poder discricionário. Inclusive,
considerar o que está escrito no código faria parte da sua responsabilidade jurídica. É
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nesse sentido que Dworkin reclama que os juízes não podem dizer que a Constituição
expressa (simplesmente) as suas próprias convicções (DWORKIN, 2006, p. 15).
Ao decidir sobre determinado caso cujo precedente não existe, o juiz deve
considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual
essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história. O juiz tem a
responsabilidade de continuar essa história no futuro a partir de suas atitudes
(DWORKIN, 2005, p. 238).
Sobre a influência da literatura nas tomadas de decisões pelos juízes, Dworkin
alerta para a presença de casos similares com aqueles que com os quais o juiz pode se
deparar em livros. Casos plausivelmente similares com aqueles a ele demandados,
decididos há décadas ou mesmo há séculos por muitos outros juízes, de estilos e
filosofias judiciais diferentes (DWORKIN, 2005, p. 238).
A cena descrita na peça parece indicar isso: que o juiz tem participação ativa da
realização do Direito. E se ele não age com responsabilidade, pode simplesmente
ignorar o direito posto e a função desse direito para determinar as condutas na
sociedade.
Esse dilema interpretativo parece remeter a atual discussão sobre os limites da
interpretação do Direito, em que se coloca a discussão sobre o positivismo jurídico e o
pós-positivismo. Isso é, pode o juiz interpretar o Direito independente das leis e da
Constituição?
Ao trazer a narrativa para a realidade, verifica-se que as características presentes
no juiz da peça se assemelham e podem ser comparadas as posturas de alguns juízes na
atualidade, que utilizam, por diversas vezes, a discricionariedade, atos de vontade para
decidir determinado conflito, se distanciando da lei (STRECK, 2010, p. 87-89).
Segundo Ost, “um juiz deve ser capaz de dar voz aos sem-voz, de arrancar sujeitos
do anonimato e dos clichês redutores nos quais o discurso se encerra” (OST, 2004,
p.51). Ou seja, o juiz representa a sociedade para que se proceda à justiça.
Dessa maneira, a figura de Azdak permite a reflexão sobre a atuação do juiz que
ignora as leis ou as interpreta independentemente da Constituição, entendendo possuir
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liberdade para decidir como se fosse legislador (STRECK, 2010, p. 87-89). Aliás, essa
marca apresentada por Azdak parece ser aquilo que move os juízes que utilizam dos
princípios jurídicos como ferramental justificador das decisões sob a chancela do
denominado “pós-positivismo” (STRECK, 2010, p. 87-89), sem representar, no
entanto, a responsabilidade do juiz no ato de tomada de decisão, como evidencia
Rigaux,
O problema da interpretação que está no centro do raciocínio
judiciário não tem por único objeto a inteligência dos textos
normativos escritos, emanantes de uma autoridade pública (lei,
regulamento, ato administrativo, decisão judicial etc.). O costume, os
usos, os atos jurídicos privados, os comportamentos individuais,
inclusive aqueles que não se revestem de uma forma oral (gestos,
silêncios, ações e inações, omissões) oferecem-se a interpretação
judiciária (RIGAUX, 2000, p. 306).
Demonstra o autor, na passagem citada, que o juiz é dotado de todos os meios
necessários para interpretar de maneira correta e comprometida com o bem comum,
sem usar artifícios. Entretanto, reiteradas vezes, o que se percebe é a irrelevância
adotada pelo Juiz perante os instrumentos existentes, cuja atitude torna precário o
sistema, já que afeta diversos interessados que estão em busca da resolução de seus
conflitos de maneira justa. Esvaziando, portanto, o real papel do Juiz e da Ciência
Jurídica.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista o momento de crise por qual passa o judiciário, a discussão acerca
da influência da literatura na formação de um senso crítico aguçado nos Magistrados,
traz a tona a necessidade de adequar ao novo paradigma constitucionalista fincado em
uma nova visão apreciativa acerca da Ciência e da prática jurídica.
A pesquisa de fenômenos jurídicos através da obra de Bertolt Brecht e da corrente
do direito na literatura, fundamentada em François Ost, propicia uma visão nítida da
contribuição que a literatura traz ao direito. Uma vez que, conforme se viu, a literatura
possibilita, entre outros fatores, diversas visões através dos quais auxiliam as
compreensões das relações jurídicas e humanas.
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Portanto, tornar-se necessário que a Ciência do Direito se utilize da literatura na
busca pelo desenvolvimento crítico, bem como para ampliação de horizontes
proporcionados pelo contato com as obras literárias. Na tentativa de evitar a tendência
de estereotipar e abstrair os problemas jurídicos, o direito pode recorrer à literatura e,
assim, promover a descaracterização dos padrões, levando em conta a singularidade
das narrativas, suas situações e personagens. Isto porque, como se sabe, a literatura
possui a capacidade de explorar todas as saídas possíveis de um mesmo caminho,
abandonando a “linha reta”, representada pela codificação dos fatos, presente no
direito aplicado.
REFERÊNCIAS
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Cosac Naify, 2010.
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peça O círculo de giz caucasiano, de Bertold Brecht. In: Congresso Nacional Conselho
Nacional de Pesquisa em Pós-Graduação em Direito, 16, 2008, Belo Horizonte. Anais...
Belo Horizonte, 2008.
DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito: definiçao e conceitos
básicos; norma jurídica; fontes, interpretação e ramos do direito; sujeito de direito e
fatos jurídicos; relações entre direito, justiça, moral e política; direito e linguagem. São
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2009.
OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Unisinos,
2004.
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RIGAUX, François. A lei dos juízes. Tradução Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2010.
TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. Direito e Literatura:
aproximações e perspectivas para se pensar o direito. In: TRINDADE, André Karam;
GUBERT, Roberta Magalhães. (Org.) Direito & literatura: reflexões teóricas. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
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(NA) BEIRA (DO) RIO, (NA) BEIRA (DA) VIDA:
A MUNDOCA NO DIREITO
D YEGO P HABLO D OS S ANTOS P ORTO 1
RESUMO: O presente artigo objetiva analisar as possíveis e necessárias relações
entre direito e literatura a partir da obra Beira rio beira vida do piauiense Assis
Brasil, cuja narrativa retrata a vida de pessoas marginalizadas pelos poderes
públicos. Primeiramente, apresenta-se o processo de “gestação” do artigo, ou seja,
os motivos (conscientes e, talvez, inconscientes) que lhe condicionaram.
Posteriormente, são expostas as correntes que fazem parte do movimento “direito e
literatura”, optando-se pela abordagem que retrate o “direito na literatura”. Após,
pretende-se (re)discutir o (in)efetivo papel do Direito em transformar a realidade,
problematizando seu caráter, assumido no contexto pós-Segunda guerra, de plus
normativo, fazendo-se, para tanto, um breve relato do constitucionalismo para se
analisar a forma pela qual o Estado se propôs a intervir na realidade desde sua
feição Liberal até sua conformação de Estado Democrático de Direito. Aposta-se,
por fim, no caráter compromissório da Constituição, para que o Direito não seja
identificado com a personagem mundoca; que não possua um “mundo oco”; e que
seu discurso, por fim, não se configure numa mera promessa de amor (Warat).
PALAVRAS-CHAVE: direito e literatura; marginalização; estado democrático de
direito.
1
ANGÚSTIA E REVOLTA: POR QUE DIREITO E LITERATURA?
A grande pergunta que devemos fazer ao se iniciar um estudo que intercale
direito e literatura é: por que estudar direito e literatura, hoje? O que é isto – direito e
literatura? Serve para quê? Qual a importância de se introjetar a “fábula” literária nos
1
Acadêmico de Direito da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) – VIII bloco. Membro do Grupo de
Estudos “Justiça, Simbolismo e Sociedade” (UESPI). Estagiário da Justiça Federal, Seção Piauí –
Subseção Judiciária de Parnaíba
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estudos jurídicos, nos códigos, na prática forense, enfim, na vivência do Direito? Ou de
outro modo: quais os potenciais que a literatura nos fornece para que possamos
visualizar suas denúncias ao discurso jurídico? Ou ainda: de que forma a literatura
antecipa a vida e, por consequência, as grandes discussões jurídicas?2
Essas perguntas são imprescindíveis para delinearmos os caminhos pelos quais
iremos traçar neste trabalho. Afinal, em tempos de estandardização da ciência jurídica,
em tempos de um ensino jurídico prêt-à-porter e prêt-à-pense, como se refere ad
nauseam Lenio Streck, fica até mesmo difícil de explicarmos a alguém o porquê de tal
estudo. Não raro, vemos pessoas (do estudante ao Desembargador) se perguntando
qual a utilidade em fazer esse tipo de intercâmbio (e, pasmem, até mesmo outros
intercâmbios!). Tal desinteresse, certamente, tem relação umbilical com o próprio
ensino jurídico acima denunciado, de tal forma que fica difícil de saber quem origina
quem. Passa-se a ter, assim, um ensino cuja epistemologia ainda é presa a uma espécie
de pedagogia profissionalizante, bastando ver, salvo algumas exceções, os cursos
jurídicos espalhados pelo Brasil direcionados ao exame da Ordem dos Advogados do
2
Há um conto fantástico de Machado de Assis intitulado “Ideias do canário” que de uma forma ou de
outra antecipa alguns pontos que mais adiante serão objetos de estudo tanto pela filosofia hermenêutica
(Heidegger) como pela hermenêutica filosófica (Gadamer), assim como acaba antecipando alguns
conceitos lacanianos (imaginário, real e simbólico). No conto, temos um canário filósofo numa loja de
belchior que foi comprado pelo Sr. Macedo. Este, encantado com o canário, leva-o para casa. Antes,
porém, indaga-lhe se não sentia saudade do “espaço azul e infinito”. Ao que o canário responde: “ – Que
coisa é essa de azul e infinito?”. Depois, conceitua o mundo. E arremata: “– Fora daí, tudo é ilusão”. Na
casa do Sr. Macedo – este fazendo anotações científicas, o que parece ser uma ironia machadiana à
pretensão metodológica da ciência em abarcar algo que foge de sua alçada – o canário, uma vez mais,
conceitua o mundo. E, de novo, arremata: “ – Tudo o mais é ilusão é mentira”. Aqui, podemos trabalhar
com o conceito de real em Lacan, pois este seria o impossível, o não simbolizado, portanto, a rigor, o que
não existe para o canário. Algo que seria ilusão. Sobre os conceitos de imaginário, real e simbólico em
Lacan, Cf. Streck (1999, p. 134-136). Até mesmo a distinção tão festejada entre “easy case” e “hard
case”, se metaforizada no conto, perderia sentido. Isto porque o canário só vai entrar em contato com o
“céu azul” algum tempo depois que estava na gaiola da loja de belchior. Surpreendentemente, depois
que fugiu da casa do Sr. Macedo, é encontrado num jardim vasto, e, indagado, novamente, a respeito do
mundo, responde: “ – O mundo é um espaço infinito e azul, com o sol por cima”. Ora, na gaiola, seria
muito “difícil” saber o que seria céu azul. Passou-se um tempo e o dito “céu azul” sofreu uma Lichtung
(clareira), apareceu, manifestou-se como tal, passando a ser algo mensurável, simbolizado, simples,
comum, numa palavra, “fácil”. Assim, de forma análoga, a ideia de caso fácil e difícil vai estar na
compreensão do sujeito, e não de forma antecipada como se as coisas possuíssem uma suficiência
ôntica. Nesse sentido, Cf. Fernandes (2010, p. 69) e Streck (2008, p. 298-301).
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Brasil e aos concursos públicos3, de maneira que daqui a algum tempo talvez
reivindiquem por uma disciplina chamada “Teoria Geral dos Concursos Públicos” ou
“Exame da OAB”.
Nesse contexto, o Direito é identificado como uma atividade “prática” e fruto tão
somente da “experiência forense”. Afinal, “isso é só coisa teórica, na prática é
diferente”; “direito é oriundo da prática que se absorve no dia a dia forense”. É claro
que o Direito trabalha com casos práticos, com pessoas de carne e osso, com seres
humanos. Ora, esse é um dos motivos que, paradoxalmente, faz com que a literatura,
dentre outros saberes, sirva de substrato ao Direito, pois ela trabalha com processos
subjetivos, com a imaginação, com vivências e nos possibilita desta forma nos vermos
no outro, no que se está a passar naquela outra realidade4. Com isso a compreensão do
processo como instância de vivências, de vidas, de seres humanos, de problemas
relacionados à exclusão social e a má prestação de direitos sociais – e não meramente
como a instauração de um procedimento que inicia uma “lide” e trabalha com “sujeitos
de direitos” que na verdade não são sujeitos5 – fica mais fácil de ser percebida. E mais:
mal essas pessoas (as que defendem que Direito seja tão somente fruto da prática e dos
3
4
5
Como se refere Trindade (2013) em texto recente publicado no Conjur, “aqui, em terrae brasilis, os
cursos se voltam à aprovação no Exame de Ordem. Tanto é assim que, periodicamente, divulgamos o
ranking das faculdades que obtêm maior percentual de egressos aprovados na OAB, como se isso fosse
um atestado de qualidade. Isto para não falar do tal Selo OAB, certificado às instituições
recomendadas”.
Claro que será impossível experimentar exatamente o que esta outra realidade denúncia. Isso porque,
como seres humanos que somos, possuímos vivências próprias e sentimentos próprios. Não podemos
sentir o que os outros sentem da mesma maneira. Mas, paradoxalmente, o mundo é um só e é através da
comunicação no mundo que podemos sairmos-de-nós-mesmos, embora desde outros lugares, desde
outras situações. Essa é a condição humana que temos que humildemente reconhecer. Como diz
Merleau-Ponty (2009, p. 22-23), “é dentro do mundo que nos comunicamos, através daquilo que nossa
vida tem de articulado [...] nós vemos verdadeiramente a coisa mesma e a mesma coisa – e, ao mesmo
tempo, não alcanço nunca a vivência de outrem. É no mundo que nos reunimos. [...] só através do
mundo posso sair de mim mesmo. Então é mesmo verdade que os ‘mundos privados’ se comunicam
entre si, que cada um deles se dá a seu titular como variante de um mundo comum. A comunicação
transforma-nos em testemunhas de um mundo único”.
Luís Alberto Warat não entende o individuo como sujeito do Direito, e sim como indivíduo a partir da
perspectiva do amor e do desejo (MONDARDO, 2000, p. 66). Dessa forma a interação com-o-outro será
vista desde uma perspectiva afetiva e dialógica, assim como poderiam ser, respectiva e
exemplificativamente, tanto o contato do advogado com seu cliente, como a estrutura de um processo
num Estado que se intitule Democrático. Sobre a feição dialógica e policêntrica do processo assumida
nos marcos de um Estado Democrático de Direito, Cf. Nunes (2013).
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“casos concretos”) sabem que retornam, inconscientemente, ao velho positivismo
fático, cuja compreensão requer, necessariamente, um horizonte teórico. Aliás, tal
problemática deita raízes na história das tradições jurídicas6.
Já, então, que a literatura envolve processos de subjetividades, penso que seria
impossível a um mortal escritor (seja do que for!) não se envolver pelo drama e pelos
relatos inscritos em suas narrativas. Como se referiu certa feita Gabriel Garcia Márquez
(apud CARVALHO, 2013, p. 5), ao lhe perguntarem como fazia para escrever, disse que
começa com letra maiúscula, termina com ponto final e no meio expressa-se aquilo que
se está sentindo.
Nessa trilha de pensamento, friso que a intenção do presente artigo é
escandalosamente menos científica7 do que possa parecer, se por científico
6
7
O Direito inglês de tradição common law se constitui em práticas jurídicas advinda dos Tribunais e dos
juízes, daí porque a importância dos precedentes naquele sistema, ao contrário do direito construído na
tradição civil law cuja característica é a de ser ensinado nas universidades, cientificamente, dando-se
importância, por consequência, aos estudos doutrinários. Sobre tal problemática, abordando a distinção
entre precedentes e súmulas vinculantes em suas respectivas tradições jurídicas, Cf. Streck (2013).
Uma observação importante: não ter pretensão “científica” significa, no presente artigo, trabalhar com
instâncias e processos de subjetividades que foram deixados do lado de fora do monastério da
modernidade, esta entendida como um projeto cuja narrativa exige um sujeito neutro, imparcial e
asséptico, onde o saber é valorizado em detrimento da imaginação, da loucura, do absurdo, do onírico,
do surreal, do amor, da ficção, do desejo, dimensões que sem dúvidas fazem parte de uma narrativa
literária. Penso que essa é a única maneira de criarmos fissuras no instituído, de ousar, de inovar, de
criar, “porque a não-razão do desejo deve revelar a inconsistência do mundo razoável. A ilusão da
verdade deve morrer para dar passo a um novo mundo amoroso fundado numa ilusão que a razão
logocêntrica chamará loucura (WARAT apud MONDARDO, 2000, p. 47)”. No mesmo sentido de
colocar em xeque e de problematizar o discurso científico, posto, repisando, em termos específicos, ou
seja, a partir de um debate que confronte paradigmas; a partir de uma perspectiva hermenêutica
(filosófica), Cf. Tese de Doutorado de Costa (2008, p. 8). Afinal, o que quer que seja denominado de
“ciência” vai ser sempre produto de uma vontade de saber que subjuga, ordena e classifica o que merece
e o que não merece entrar no seu repertório, assim como vai ser fruto, também, de uma prescrição para
que o conhecimento seja visto como algo verificável e útil (FOUCAULT, 2013, p. 5). É dessa forma que a
subjetividade, o desejo, a sensibilidade, a arte, porque não incorporadas no repertório científico-teóricoracionalizante da modernidade, ficaram marginalizadas, postas de lado e excluídas do rótulo científico.
Nesse sentido, um dos maiores nomes “rebeldes” que tivemos creio ter sido o de Luís Alberto Warat,
jurista argentino radicado no Brasil falecido em 2010 cuja obra ainda influencia uma legião de
estudiosos do Direito. Inovou como ninguém o estudo de muitas disciplinas, inclusive quando falava de
carnavalização e cabarés. Como diz Mondardo (2000, p. 78) “[Warat] tentou trazer o teatro, o cinema, a
poética em geral, e o cotidiano imaginário dos alunos à sala [...]”, assim como ministrou a única
disciplina no mundo que falava, num curso de Direito, sobre o amor (MONDARDO, 2000, p. 97), ideia
tida como subversiva. Sobre a trajetória de Warat no Brasil, assim como os momentos de seu magistério
(técnico-instrumental e antidogmático; epistemológico; político-afetivo; de carnavalização; e
psicanalítico), consultar Mondardo (2000). Sobre as possibilidades de uma concepção emancipatória do
Direito baseada em alguns autores, tais como Cornelius Castoriadis, Michel Foucault e Luís Alberto
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entendermos e partirmos de um determinado paradigma. Dessa forma as escritas aqui
marcadas são, inevitavelmente, frutos de minhas próprias inquietações, angústias,
indignação, revolta8. Este é o lugar da minha fala, do meu discurso, da minha situação
hermenêutica9. Foi inevitável, como se verá adiante.
Falo aqui, pois, como um experimentador, e não como um pretenso teórico.
Tomo como minhas as palavras de Foucault (apud BERNARDES, 2012, p. 53):
[...] É certo que jamais penso a mesma coisa porque meus livros são
para mim experiências [...] Uma experiência é algo do qual se sai a si
mesmo transformado [...] o livro me transforma e transforma o livro
precedente. Sou um experimentador e não um teórico. Chamo de
teórico aquele que constrói um sistema geral [...] e o aplica de maneira
uniforme a diferentes campos. Não é meu caso. Sou um
experimentador no sentido de que escrevo para me transformar a mim
mesmo e não mais pensar a mesma coisa anteriormente.
O trecho relatado por Foucault faz lembrar a metodologia empregada por Warat,
ao se denominar cartógrafo10. Tal metodologia consistiria numa escrita camaleônica ao
se transformar de acordo com as paisagens, sentimentos, desejos, etc, numa tentativa
de romper o imaginário instituído. É uma forma de o próprio investigador se ver imerso
numa realidade que atribui sentido (MONDARDO, 2000, p. 24-25), e, portanto, com
ela dialogar. Conjuga-se, assim, a atribuição de sentido com o contexto existencial no
qual o intérprete está inserido, jogado mesmo. O estágio em Parnaíba – mais adiante
8
9
10
Warat, a partir da experiência do espaço Cabaret Macunaíma instaurado por Warat na Unb, Cf.
Gonçalves (2007).
Revolta aqui no sentido que emprega Albert Camus, como sendo um sentimento solidário (e não
solitário) evitando-se, assim, o solipsismo característico, aqui sim, do absurdo. O homem do absurdo é
solitário; o da revolta é solidário. Dessa forma, haverá uma reformulação do cogito cartesiano,
passando-se a ter não mais o “penso, logo existo”, mas sim “revolto-me, logo somos” (PIMENTEL, 2010,
p. 21-22). Sentimos, também, a ideia de solidariedade na “rebeldia” de Warat, onde sempre convocava
outras pessoas para formar uma corrente de pensamento (MONDARDO, 2000, p. 27).
Como diz Stein (2010, p. 106), ” [...] Sem uma certa situação hermenêutica, não seríamos capazes
sequer de escolher um livro”. Por isso, continua o filósofo gaúcho, “cada um que vai estudar uma ciência
ou determinada área de ciência, já andou certo pedaço de caminho. Ele se preparou para isso. Passou no
vestibular, teve alguns cursos” (ibidem). Assim, inexoravelmente, “todo trabalho científico é um
caminho de investigação. Esse caminho de investigação tem muito a ver com a própria biografia, com a
própria formação intelectual” (ibidem).
O trecho nos remete também à fala de Stein (2010, p. 91), para quem a hermenêutica, nas ciências
humanas, faz com que as etapas de uma investigação não fiquem fixadas em um momento, mas sim
sejam transformadas sucessivamente.
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explicitarei tal condição; a obra (cujo relato aborda a vida de parnaibanos) e o autor
(Assis Brasil, também parnaibano) se conjugam numa só e mesma coisa.
Na medida em que a literatura é o reflexo de uma realidade política, social e
econômica – ainda mais quando estamos nos referindo a obras que possuem forte
apelo social, abordando a vida de pessoas miseráveis e excluídas do sistema de
prestação social, como é o caso de Beira rio beira vida11 – o “experimento” foucaultiano
e a “cartografia” waratiana parecem ser, a meu ver, belos vieses de análise literária, pois
vai ser precisamente através de uma obra que narre a miséria vista pelos miseráveis, e
não pelos patronos intelectuais, que poderemos pensar numa escrita verdadeiramente
autêntica e inovadora12; uma escrita, enfim, onde justamente o “experimento” se faz
presente.
Dito isso tudo, há ainda algo mais – e fundamental – a ser dito: como atermador
que fui da Justiça Federal Seção Piauí – Subseção Parnaíba – me vi em muitas
11
12
O livro é escrito na década de 60 do século XX que, em linhas gerais, aborda a história de personagens
que viviam na beira do Rio Parnaíba, espaço onde se tinha a continuidade de vidas condenadas a se
repetir, somando-se, ainda, a prostituição que parecia ser uma sina (como uma tatuagem) passada de
geração para geração. Além disso, temos uma crítica nítida a uma sociedade recortada, onde há
efetivamente um apartheid socioeconômico. Nesse sentido, temos a fala do narrador: “Eles nasceram na
cidade para dar esmolas, elas nasceram no cais para receber” (BRASIL, 2012, p. 53). Por oportuno, cabe
registrar o trecho de um texto feito por Fausto Cunha (2013, p. 5-6) na parte introdutória do livro que, a
meu ver, sintetiza com maestria a obra do parnaibano: “É o retrato insolúvel duma comunidade
sufocada pelo primitivismo capitalista, um mundo em que a sociedade se estratificou implacavelmente,
onde as prostitutas são prostitutas, os pobres são pobres, os ricos são ricos – quase à revelia do eventual
saldo financeiro. Não existem vasos comunicantes. Quem quiser realizar-se, terá de fugir, terá de ir para
fora. As dobradiças do sistema estão, porém, de tal modo enferrujadas que a fuga é praticamente
impossível. O personagem Jessé – sofrido e patético – alimenta a quimera de uma ruptura com o meio,
e é por ele destruído. O rio pertence aos ricos, as casas pertencem as ricos, a religião pertence aos ricos.
Os descontentes podem sumir simplesmente daquele cenário imutável; mas se não souberem, como
Jessé, fugir à atração atávica do lugar de origem, serão consumidos no fogo de sua nulidade social. Não
é pelo dinheiro largado pelos homens que a rameira Cremilda – uma das figuras soberbas da nova ficção
brasileira – penetrará na sociedade. Num mundo de horizontes compactamente fechados, a miséria
passa de pai a filho, de mãe a filha, quem conscientizar a sua desgraça vai sofrer em dobro. Mais uma
vez Beira rio beira vida é um livro oportuno, porque aparece no momento em que nosso pais sofre a
mais brutal pressão capitalista de sua história, em que de todos os lados o povo vê fecharem-se as
janelas da respiração econômica. Entramos num processo de nivelamento por baixo, em que os de baixo
serão ainda mais esmagados”. Ao Direito, o livro acaba servindo, patentemente, como uma denúncia à
ausência do Estado e da Constituição para com aquelas pessoas.
Fausto Cunha (2013, p. 5) afirma que a obra “é uma ironia que, numa época em que tantos poetas e
ensaístas brasileiros se arrogaram a formulações de uma literatura popular e de revolta, seja Beira rio
beira vida o único livro autêntico dentro dessas ordens de ideias. O diálogo direto, a linguagem alusiva,
a miséria vista pelos miseráveis, e não pelos seus patronos intelectuais”.
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situações envolvido pelos relatos, desde os mais variados, de vivências expostas na
minha frente. Pessoas muito(!) pobres que não tinham como viver de forma digna, da
forma como promete a Constituição, da forma como promete a Modernidade – aqui
entendida como Estado Social – e seu projeto, da forma como prometem os pomposos
operadores jurídicos em entrevistas e “presos” em seus escritórios luxuosos13. Aliás,
tivesse o ordenamento jurídico brasileiro controle simbólico de constitucionalidade, os
escritórios, em grande parte, padeceriam de inconstitucionalidade simbólicodarwiniana (sim, pois quanto à clientela, já na ornamentação arquitetônica dos
escritórios, há uma exclusão natural em relação aos que vivem na beira do rio e na beira
da vida!)14. Pessoas, enfim, que não possuíam salário digno para sobreviver, sendo que
a maioria não tinha a própria palavra salário mínimo (o que seria isto – o salário
mínimo?) em seu vocabulário, em seu mundo. Se o limite do nosso mundo acaba sendo
o limite da nossa linguagem (Wittgenstein), e, portanto, ter mundo é ter linguagem,
podemos dizer, também, que ter um salário (digno) é ter mundo, ainda mais numa
sociedade de regime capitalista. E ainda mais mesmo em se tratando de um direito
social-fundamental (art. 7º, IV, CF/88).
13
14
Um pequeno obter dictum: é no mínimo ridículo – desculpem-me, mas não encontrei outra palavra – o
fato de muitos profissionais do Direito fazerem menção ao luxo, prestígio, poder e “glamour” de suas
profissões, quando, na verdade, deveriam se preocupar com a concretização do texto constitucional.
Veja-se, nesse sentido, as seguintes falas de alguns juristas numa revista conceituada do Piauí: “O
sucesso na carreira de muitos profissionais da área passou a ser objeto de desejo e com isso o glamour
da profissão foi inevitável. Escritórios luxuosos, casas cobiçadas, viagens pelo mundo é a realidade de
muitos que, com muito trabalho e dedicação, conseguiram construir em torno de si um universo de
prestígio” (SOUSA, 2012, p. 30). O outro arremata: “A advocacia pode dar a oportunidade de estar no
meio de vários grupos, posso ‘está’ no grupo dos bons advogados, dos bons clientes, no meio social da
noite, no círculo acadêmico, permite experimentar vários tipos de glamour, e de alguma maneira
elitizado” (ibidem.) – grifo nosso. Daí cair como uma luva a fala de Streck (1999, p. 68), para quem,
baseado em Bourdieu, a preocupação do jurista, banalizado em seu habitus, é reverter seu saber
profissional em capital simbólico perante a sociedade, combinando-se autoridade, prestígio,
conhecimento e reputação.
No decorrer deste trabalho quando me referir às pessoas que vivem na “beira do rio e na beira da vida”
estarei me utilizando da frase num sentido metafórico, pois não só me refiro aos que vivem literalmente
na beira do rio, mas sim aos que, de forma geral, são excluídos pelo Direito, aos que vivem na beira dos
direitos, pelas e nas beiradas. Faz-se, assim, uma espécie de “repercussão geral” da expressão.
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Diante disso tudo, o Direito, enquanto promessa de igualdade e justiça, parecia
acenar com uma mera promessa de amor (Warat)15, aquelas feitas para não serem
cumpridas jamais, aquelas feitas para serem reverberadas retoricamente. Nada mais.
De tal forma que a Constituição, vez ou outra, lembrava um mero pedaço de papel
(Lassale) que não servia para nada, e condicionada, de fato, pelos “fatores reais de
poder”. No entanto tinha que acreditar firmemente que havia saída, e que a
Constituição, soerguida no contexto pós-88, deveria de fato transformar a realidade
daquelas pessoas. A angústia era gritante. Aquilo me doía profundamente.
O artigo 3º da Constituição de 198816, que parece ser uma espécie de bússola
hermenêutica, de certa forma me confortava de maneira tal que passei a acreditar
(tinha que acreditar!) numa hermenêutica que transforme a realidade a partir e desde
o texto constitucional, e não a partir dos fatos, como quer a Tópica17, para não se correr
o risco do Direito se tornar uma espécie de “Diário Oficial” dos fatores sociais. Daí a
necessidade de uma adequada compreensão do texto constitucional – mormente
daqueles dispositivos que dizem respeito a direitos de prestações sociais e positivas. Daí
a necessidade, na mesma proporção, de uma vontade18 de constituição proposta por
Konrad Hesse (1991).
15
16
17
18
A metáfora, segundo Gonçalves (2007, p. 9), foi identificada por Warat como aquelas promessas feitas
pelos amantes no auge de suas paixões, sem nenhum compromisso, contudo, com seu cumprimento. O
discurso da modernidade parece ser também uma promessa de amor.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma
sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
O problema da Tópica (Viehweg) é que a gente pode chegar a casuísmos exagerados, tendo-se decisões
totalmente ad hoc, ferindo a integridade e coerência do Direito. Então, devemos partir do texto para que
possamos atribuir um grau de transformação social ao Direito. Se partirmos da realidade, o Direito será
aquilo que os “fatos e a realidade” dizem que é, sendo transformado de forma destrutiva pelos “fatos”,
além do fato de ganhar, com isso, um caráter meramente instrumental, ficando a reboque dos fatos
sociais. A crítica à Tópica aqui delineada não pode, contudo, como sustenta Luís Roberto Barroso (2010,
p. 164), ser identificada a um apego exacerbado a uma visão sistemática do Direito. No mesmo sentido
aqui delineado, Cf. Fernandes (2010, p. 53-54). Defendendo a Tópica como um método renovador,
antipositivista e antiformalista, Cf. Bonavides (2004, p. 488-517).
Penso que uma possível interpretação que fizesse uma relação da vontade constitucional com a vontade
solipsista, denunciada por Lênio Streck desde há muito, não seria autêntica. Esta tem que (e deve) ser
rechaçada de plano. Que fique bem claro. A vontade, nos termos propostos por Hesse, é de
normatividade constitucional, e não solipsista.
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Portanto, e finalizando este primeiro tópico, o que se vivencia estará presente em
qualquer trabalho, porquanto estamos inseridos numa realidade histórica que constitui
nosso ser. E a escolha da obra Beira rio beira vida, frise-se, não foi de forma alguma
aleatória. Escolher algo envolve, para além de um ato aparentemente banal, toda uma
inquietação e angústia que, mesmo veladas, manifestam-se em nossas escolhas19. É
como se a nossa existência pulsasse e dissesse: é este. Não há ser humano, portanto,
que já desde sempre não esteja formado culturalmente, e que já não esteja, desse modo,
na historicidade e na facticidade20.
2
O DIREITO NA LITERATURA:
EM BUSCA DE HETEROPOLOGIA(S)
A proposta de intercalar o direito com a literatura foi uma empreitada surgida no
ambiente acadêmico norte-americano, com o intuito de pôr em xeque a tradição
positivista do direito, abalando suas estruturas tidas como perfeitas, completas,
sistemáticas e seguras21 (não é a toa que temos expressões que remetem a tais ideias,
tais como “ordenamento jurídico” – que parece ter surgido na tradição jurídica com
Kelsen e Bobbio22 –, “completude” – conceito surgido no contexto do século XIX,
materializado e consubstanciado no Código Civil Napoleônico – e “segurança jurídica”
– essa palavra que, parafraseando Cecília Meireles, não há ninguém que não entenda e
ninguém que explique23.
A literatura, pelo seu caráter subversivo, desmorona (ou no mínimo põe
seriamente em xeque) muito dos mitos referentes à teoria do direito que aprendemos
19
20
21
22
23
Como assevera Costa (2008, p. 8) “o autor é sempre muito opaco a si mesmo, aos seus motivos
inconscientes, aos seus preconceitos silenciosos, às lacunas do seu horizonte de compreensão”.
Por isso que “compreender uma obra literária não é uma espécie de conhecimento científico que foge da
existência para um mundo de conceitos; é um encontro histórico que apela para a experiência pessoal de
quem está no mundo (PALMER, 2006, p. 21).
Cf. Hubert e Sartoti (2010, p. 204).
Nesse mesmo sentido, Cf. Streck, Oliveira e Trindade (2013, p. 13).
Warat (apud MONDARDO, 2000, p. 108), a respeito da tão bem quista segurança jurídica – e até
ironizando-a, diz o seguinte: “Os juristas tentam desenvolver um discurso que enuncia a tranquilidade
de uma vida social amparada pelas palavras de uma lei que simula prever todas as possibilidades de
conflito: a famosa segurança jurídica”.
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nas faculdades (igualdade, verdade real, imparcialidade do julgador, neutralidade
científica, etc.). Com efeito, a denúncia que a literatura faz do jurídico provém,
certamente, já do modo mesmo de como o direito é ensinado nas faculdades, aplicado
nos tribunais, praticado cotidianamente e daquilo que ele sempre-tem-sido (STRECK,
2009, p. 71).
Dessa forma, podemos dizer que a literatura traduz o que a sociedade pensa sobre
o Direito, pensamento este que, muito embora possa vir revestido de senso comum – e
até mesmo de ingenuidades – apresenta a ciência jurídica de forma nua, crua, e, por
isso mesmo, impactante. Penso que essa “cutucada” se dá precisamente através do
choque que a dogmática sofre com o fato bruto (o real) – no caso, a literatura –, através
daquilo não codificado e simbolizado pelo seu habitus.
Talvez aí se encontre um dilema: de um lado o senso comum, o que pensam sobre
o direito; de outro, um discurso que se pretende científico. O olhar daquele sobre este
se reveste, por vezes, como sustenta Cunha (2010, p. 16), baseado em Louis Altthusser e
Braz Teixeira, numa “filosofia espontânea”, conceito que se aplica às pessoas que,
mesmo sem intenção, acabam filosofando, e, por consequência, desvelando coisas para
nós até então ou complexas ou, à primeira vista, absurdas. O mesmo procede com a
literatura: muitas obras, mesmo sem intenção do autor, acabam abordando de forma
fantástica, e criativa, temas afeitos ao Direito. Numa palavra: o próprio intercâmbio do
direito com a literatura resulta, por si só, nesse “susto”. Há aí, certamente, uma fusão
de horizontes. E é nesta fusão que advém o susto, o impacto, o não-dito. Desse modo,
poder-se-ia dizer que há uma fusão de absurdo(s).
Num sentido amplo, o movimento direito e literatura, segundo Trindade (2012,
p. 13-14) possui basicamente três vertentes: o direito na literatura; o direito como
literatura; e o direito da literatura. Das três perspectivas, a vertente que interessará a
este trabalho será a que estuda o direito na literatura, por nos possibilitar um
referencial problematizante e reflexivo.
A corrente do “direito na literatura”, surgido na Europa, aborda a maneira pela
qual a literatura, em suas narrativas, representa as instituições jurídicas, políticas, a
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criminalidade, a democracia, a desigualdade, a república, a ciência, o papel do juiz, etc.;
significações estas que resultam, como dito linhas acima, da maneira que o Direito já-oé-mesmo-desde-sempre.
Tal fato demonstra que a ciência jurídica não pode ser analisada de forma
meramente normativa, fechada, autônoma, estática e isolada do tecido social, pois nele
está inserido, e de dentro dele, portanto, deve ser interpretada. A vida pulsa na
literatura; no direito, parece estar morta, na medida em que os códigos trabalham com
conceitos e ideias estanques24, os doutrinadores falam em hipóteses numerus clausus
(como se a realidade pudesse ser aprisionada e enclausurada na lei), em coisa julgada
(como se o tempo pudesse ser petrificado e paralisado pela lei), e por aí vai.
Frise-se, ademais, que, nessa corrente, a intenção não é de forma alguma sair
“catando” nas obras literárias alguns cases, leis ou institutos jurídicos, como se, para
que houvesse tal intercâmbio, a obra tivesse que necessariamente abordar questões
estritamente jurídicas. A intenção não é essa porque não se objetiva discutir a partir da
lei ou do direito, mas para além de seus confins. Ironicamente uma obra literária que
não possua nada de direito pode nos ajudar a compreender alguns fenômenos de forma
mais dinâmica e global do que alguns manuais jurídicos. E, nesse momento, exsurge o
caráter criativo, arrebatador e, de certa forma, transcendental da obra literária e seu
viés, portanto, hermenêutico. A ideia de produção de sentidos na literatura é, pois,
patente, possibilitando que vejamos a ciência jurídica desde um outro lugar. Dito de
outra forma: a literatura possibilita, ao Direito, uma heteropologia. O Direito, assim
como
precisa
de
grandes
narrativas,
necessita,
urgentemente,
de
grandes
heteropologias. E é em busca dela(s) que estamos.
Por sua vez, a corrente do “direito como literatura”, ainda com Trindade, examina
os textos jurídicos levando-se em consideração os métodos próprios da literatura,
24
Não é sem motivo que Cunha (2010, p. 17), problematizando o jurídico na obra “O Pequeno Príncipe”,
diz que os nossos doutrinadores, comparando-os ao geógrafo, personagem do livro que dizia escrever
coisas eternas, têm a ambição, também, de escreverem ideias sólidas e eternas. O que seria a dita
cognição “exauriente” que permeia as tutelas definitivas no processo civil? Não há, aí, no fundo, um
desejo de solidez, de perenidade, de certeza absoluta? O mesmo não sucederia com a segurança
jurídica?
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transpondo a racionalidade da crítica literária às decisões jurídicas25. Parece que aqui
também não encontramos um lugar adequado ao nosso propósito, tendo em vista que
não queremos transportar uma racionalidade a outra; queremos, antes, destronar, a
partir da literatura, a racionalidade jurídica. Criar fissuras. Pedir, com Rosa e Staffen
(2011, p. 184), uma licença poética sem compromisso com regras ou epistemologias.
Já o movimento do “direito da literatura” não aborda, a rigor, o direito a partir
de um olhar crítico, e sim meramente técnico, estando submetido mais a conceitos
jurídicos (direitos autorais, por exemplo) do que a um olhar transdisciplinar26. Como
dito, não abordaremos tal vertente no presente trabalho. Obviamente que possui sua
importância a quem se proponha a estudá-lo; porém, no âmbito de uma reflexão que
intente demonstrar a maneira pela qual as obras literárias simbolizam e representam as
promessas jurídicas, parece não ser um bom caminho.
A aprendizagem interdisciplinar, por outro lado, que podemos retirar da
perspectiva que aborda o direito na literatura é nítida. Aqui podemos, a partir da
literatura, fazer uma grande metáfora do direito, de seus dilemas e – no que toca ao
presente estudo – de suas promessas incumpridas. Podemos também, com Cunha
(2010, p. 13), e reafirmando o objetivo de não “catar” em obras literárias assuntos
jurídicos, fazer apenas uma transposição simbólica, retirando do literato discussões e
problemas que secularmente assolam o Direito. Afora isso, há também, ironicamente –
pois a narrativa literária se configura de forma indisciplinada, como se fosse,
parafraseando Warat27, um circo mambembe, safado e marginal –, o caráter “didático”
da literatura em problematizarmos o Direito. Repetindo: algumas questões são mais
bem elucidadas e compreendidas através da literatura do que pelo próprio direito.
25
26
27
Cf. Trindade (2012, p. 14). Aliás, nesse sentido, sobre a racionalidade reinante nas análises literárias,
temos as palavras de Palmer (2006, p. 18), para quem “a crítica moderna literária tornou-se cada vez
mais tecnológica. Imitou-se cada vez mais a abordagem do cientista. O texto de uma obra literária (mau
grado a sua existência autônoma) tende a ser encarado com um objecto – um objecto estético [...] a
imagem do cientista, que isola um objecto para ver como ele é feito, tornou-se o modelo dominante na
arte da interpretação”.
Cf. Trindade (2012, p. 14).
Cf. Warat (apud Mondardo, 2000, p. 47).
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Dentro dessa moldura exposta até aqui, podemos já dizer, com segurança, que as
questões levantadas pelo livro Beira rio beira vida podem ser problematizadas no
Direito, dentre as quais: a importância que assume a Jurisdição Constitucional perante
vidas renegadas pelos poderes públicos, e, igualmente, na concretização e promoção
dos direitos sociais-fundamentais (moradia, educação, alimentação, saúde, etc.); as
fases pelas quais passou o Estado (e consequentemente o Constitucionalismo) e o seu
papel de intervir na realidade; o papel de plus normativo – como quer Streck (2002, p.
18-19 e 127) – assumido pelo Direito no contexto pós-Segunda guerra; os conceitos de
subcidadania e sobrecidadania (e o binômio acesso-dependência) trabalhados por
Marcelo Neves (2013); e, até mesmo, fazer um paralelo com a parábola “Diante da Lei”
de Franz Kafka, na medida em que o camponês pode ser tido como as pessoas que estão
nas beiras do Direito, sem que se consiga acessá-lo.
Com efeito, as grandes promessas que temos na Constituição de 1988, embora
passados 25 anos de sua promulgação, não foram cumpridas/efetivadas. A
Constituição, essa Outra desconhecida, embora formalmente vigente, acontece no
plano fático (no mundo da vida) como ineficaz – ainda mais no que toca aos direitos de
prestações sociais. Isto para não relembrarmos e revisitarmos aqui seu forte caráter
simbólico, crítica feita por Marcelo Neves (2011) desde a década de 90.
Somando-se a isso, temos ainda o fato de que há na atualidade, segundo Bolzan
de Morais e Streck (2014, p. 82), um discurso neoliberal pós-moderno que intenta a
todo momento enxugar o Estado e seu caráter assumido, ao longo dos tempos, de
Welfare State. A realidade, pelo contrário, não se compatibiliza com esse ideário, na
medida em que ainda temos pessoas morrendo de fome, analfabetas, favelados, semtetos, mendigos, indigentes, numa palavra: beiradeiros. Resumindo: as promessas da
modernidade ainda não foram cumpridas.
Mas para entendermos que tais promessas ainda não foram cumpridas, temos,
antes, que termos uma adequada compreensão do que seja esse tal Estado Democrático
de Direito – para que não ganhe contornos de um conceito anêmico –, e de como sua
conformação se deu ao longo dos tempos. Dessa forma, ficará mais fácil de
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visualizarmos o motivo pelo qual o Estado ainda tenha que estatuir e a Constituição
ainda constituir28.
3
POR UMA CONSTITUIÇÃO QUE AINDA CONSTITUA,
POR UM ESTADO AINDA ESTATUINTE!
O debate de certa forma remonta a uma velha discussão travada entre aqueles
que defendem uma postura substancialista da Constituição e, doutro lado, aqueles que
a enxergam através de um viés procedimental. No presente tópico darei ênfase,
entretanto, aos aspectos relacionados à Teoria do Estado (um breve relato de sua
conformação desde sua feição Liberal até os dias atuais) casados com o
Constitucionalismo, sem pretensões, contudo, a-históricas.
Em linhas gerais, as Constituições promulgadas desde o século XVIII possuíram o
objetivo de conter o poder do rei, assim como o de garantir alguns direitos básicos aos
indivíduos – palavra que, naquele contexto, possuía uma forte carga semântica. Como
existia uma contraposição entre Estado e Sociedade, sendo aquele visto como ruim e
esta como boa, havia a necessidade de se garantir o máximo possível de liberdades e
garantias individuais. O Estado e a coisa pública eram vistos, pois, como algo maléfico,
ruim29. A propriedade e o indivíduo eram, por consequência, o centro de todas as
preocupações.
Nessa ordem de pensamento, não caberia ao Estado intervir nas relações
particulares, regidas até então por coordenação. Assim, o constitucionalismo liberal se
pautava sob valores individuais; baseava-se num Estado Mínimo. Isto possibilitou com
que fosse construída uma teoria jusnaturalista para firmar o ser/indivíduo perante o
Estado. Naquele contexto, tal ideia seria uma evolução em relação ao ancién regime, na
28
29
Na fala exposta a seguir, fica nítido que Mundoca nunca se apegou a nada, nunca, pois, “constituiu”
alguma coisa: “O que foi que você criou, Mundoca? Nada. Nunca se apegou a coisa alguma (BRASIL,
2012, p. 33). Mundoca era niilista, passiva, conformada com a realidade. O que está-aí é assim e pronto.
Não muda. Penso que o Direito não deve ser assim. Nesse outro trecho temos a confirmação (niilista) de
forma incisiva: “Quando [Mundoca] corresse não seria por desespero, mas porque não estaria certa
ainda de nenhum caminho” (BRASIL, 2012, p. 113).
Nesse sentido, Cf. Morais; Streck (2014, p. 40 e 44).
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medida em que firmava o homem como detentor de direitos, assim como aquele que
deteria autonomia perante os dogmas, os mitos e as crenças medievais. Mais ainda:
firmava o homem perante o mundo o que, ao fim e ao cabo, impulsionará a filosofia da
consciência30, calcada na relação sujeito-objeto.
Chegando no século XIX, o Estado, em decorrência das revoluções pelas quais
passara no momento, engendradas pelas reivindicações socialistas, começou a dar
ênfase a aspectos sociais e incluí-los em sua agenda política. Desse modo, o Estado
passou a incorporar em seus textos dispositivos que tratassem de matérias não somente
concernentes aos direitos individuais, mas, igualmente, aos direitos ditos de segunda
dimensão – sociais –, agindo, portanto, como ator privilegiado31. Aqui já começamos a
tratar um pouco do que temos a dizer em relação à obra do parnaibano.
As primeiras constituições que incorporaram em seus textos dispositivos sociais
foram as do México (1917) e Alemanha (1919). Aqui temos a positivação, por parte dos
ordenamentos jurídicos, da ideia de Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), cujo
projeto passa ser o de promoção social (MORAIS; STRECK, 2014, p. 78-79). O Estado
agora, para alem de ordenar, tinha o papel de promover a realidade.
Passando pelo século XX, tivemos as duas grandes guerras que, muito embora
tenham sido catastróficas, foram para com o Direito generosas, no sentido de que, a
partir de então, houve uma preocupação por parte dos juristas em formular novas
teorias – pós-positivistas – que dessem conta de uma nova realidade. O Direito, como
todos sabemos, não conseguiu barrar as duas grandes guerras, servindo, muito pelo
contrário, como fator de legitimidade em relação aos regimes ditatoriais.
Nesse contexto pós-Segunda guerra, instaurou-se a ideia de um Estado
Democrático de Direito. À feição ordenadora do Estado Liberal e promovedora do
Estado Social, agregou-se uma feição transformadora, vale dizer, o Estado
Democrático de Direito passou a ser plus normativo em relação às formulações
30
31
Cf., a respeito, Streck, Oliveira e Trindade (2013, p. 8).
Cf. Morais; Streck (2014, p. 64).
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anteriores32. A Lei aparece, então, como instrumento de transformação social. Daí
porque a formulação teórica do Estado Democrático de Direito apontar para o resgate
das promessas incumpridas da modernidade, ocasião que ganha relevância em países
de modernidade periférica tardia, como o Brasil. Portanto, há, nitidamente, um
surgimento co-originário entre a ideia de Estado Democrático de Direito e do
Constitucionalismo pós-Segunda guerra33. E é nesse exato momento onde cresce a
importância, antes destacada, da Jurisdição Constitucional perante a vida dos
“beiradeiros”.
E a riqueza da obra Beira rio beira vida está justamente em apontar um fosso
jurídico-social, e, a partir daí, problematizar um modelo de Estado e Constituição que
se tem, para, então, ir-se em busca de um modelo no qual efetivamente insira em seu
arcabouço o papel transformador que o Direito tem(!) que assumir nesses novos
tempos. Em última instância, a obra nos leva a refletir até que ponto o capitalismo
(excludente) não entraria em choque com um projeto (includente) de democracia
social.
Diante disso tudo, o que fazer? Cair na armadilha do discurso ideológico
neoliberal (de certa forma niilista) ou apostar, com Boaventura de Sousa Santos (apud
MORAIS; STRECK, 2014, p. 84), num Estado forte? O que podemos fazer para que as
prostitutas e os boêmios que viv(iam)em na beira do rio, não se alimentem uma vez por
dia, comendo rapadura e feijão (MORAIS, 2013, p. 14), assim como as personagens
Luíza (mãe) e Mundoca (filha)?34 O que podemos fazer para que o Direito não seja
“oco”, assim como Mund-oca – personagem que quase não falava e mandava todos
irem ao inferno?35 Queremos um Direito mudo, tímido, apático, oco?
32
33
34
35
Cf. Morais; Streck (2014, p. 100).
Cf. Morais; Streck (2014, p. 105).
Cf. Brasil (2012, p. 27): “Nossa chegada em casa era como uma festa, carregada de coisa, peixe, siri,
camarão, era mesmo que uma festa, descascar os bichos, ferver a água, fazer o pirão, comer sentindo a
quentura, o gosto bom, era mesmo que uma festa. A gente nem reparava que comia só uma vez por dia,
você sabe Mundoca, você bem sabe disso”.
Cf. Brasil (2012, p. 18).
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As questões levantadas em Beira rio beira vida nos levam a crer que não. Isto
porque o Direito, em países periféricos como o Brasil, possui peculiaridades próprias a
serem enfrentadas. Para além do (brevíssimo) escorço histórico feito linhas atrás, no
caso do Brasil, temos problemas sui generis que não podem ser renegados. Se é certo
que um núcleo mínimo pode conformar uma teoria geral da Constituição ou do Estado
em países ocidentais que adotaram o modelo político-democrático, é certo também, por
outro lado, que um núcleo específico diferencia cada Estado. E este núcleo diz respeito
à implementação dos direitos sociais-fundamentais36 e sua variabilidade no tempo e no
espaço.
Daí a importância de se desenvolver uma Teoria adequada a determinados países.
Aliás, o Direito, nesse sentido, podemos dizer, tem que ter um DNA, uma (adequada
compreensão da) história que o constitui. Luíza não sabia ao certo quem era seu pai.
Nunca soube37. Mundoca, por sua vez, não tinha história, pois não tinha passado,
deixava-se passar pela vida, não tinha memória. Não tinha, pois, DNA – não o
biológico, mas o historial38. E a memória, no presente texto, significou trazer à baila as
fases pelas quais passou o Estado para que seu papel de (ainda) transformar a realidade
não seja esquecido. O esquecimento é a barbárie, são pessoas morrendo de fome, sem
ter onde morar, sem ter acesso à escola, sem ter acesso ao hospital público de
qualidade, morrendo em filas de hospitais, sendo presas por furto de sabonete, de
galinha, de bicicleta. O esquecimento é o esquecimento do Estado para com essas
pessoas.
36
37
38
Morais; Streck (2014, p. 117-118).
A fala de Luíza, nesse sentido, é direta: “[...] Qualquer um ela [Cremilda] dizia que era meu pai [...]”
(BRASIL, 2012, p. 34).
Cf. BRASIL (2012, p. 113): “Você ontem falou de noite, Mundoca, falou muito e alto. Não me lembro,
respondia. Não se lembrava de nada, pois não tinha passado pela vida. Não me lembro, não se lembrava
nem da avó, que a torturava, nem dos homens que beliscavam sua bunda, nem das pescarias nas
malocas do rio, nem de nada. Sua vida era plana, passava pelo cais de manhã e à noite, não como etapas
de cada dia, mas como etapas de um caminho repetido, sem começo nem fim. Não ia nem vinha. Ia
sempre para o mesmo lugar, ou vinha sempre da mesma porta”.
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CONSIDERAÇÕES
FINAIS:
EM
BUSCA
DAS
PROMESSAS
PERDIDAS OU DAS RAZÕES PELAS QUAIS SÓ É JUSTO CANTAR SE
O NOSSO CANTO ARRASTA AS PESSOAS E AS COISAS QUE NÂO
TÊM VOZ39
O presente texto pode(ria) ser tido perfeitamente como um Manifesto de
Resistência. Penso que ainda temos que falar sobre Modernidade – e o não
cumprimento de sua narrativa de Vida Boa – por diversos motivos. Para citar o
principal deles, invoco a fala de Jacinto Coutinho (2002, p. 9), para quem a discussão
sobre pós-modernidade caberia, talvez, a um alemão; num país onde se morre de fome,
não. E arremata o professor paranaense: “Por isso que cansa o discurso, cansa o
gueriguéri, cansa o blablablá. É como se ressoasse pelo país: e daí meu amigo, eu quero
comer!” (ibidem).
Portanto, se o Estado Social ainda não se efetivou em países periféricos,
marginais e “beiradeiros”, o principal agente transformador da sociedade tem que ser
exatamente o Estado. Daí porque seja mais adequado defender a Constituição no seu
viés procedimental em países nos quais o Estado (Social) se fez efetivamente presente.
Mas num país em que se tem um déficit constitucional em relação aos direitos sociais, a
alternativa é ainda lutar pelas promessas insculpidas na Constituição. Assis Brasil, que
nem jurista é, talvez saiba disso.
O movimento direito e literatura nos faz (re)pensar as fronteiras que cindem a
“realidade” da “ficção” (e vice-versa). Para citar um exemplo, transcrevo um trecho de
um livro (oriundo da dissertação de mestrado) de Erasmo Morais (2013, p.14), cujos
relatos abordam a vida de pessoas de “carne e osso”:
Este é um livro em que também aparecem como personagens gente
como seu Mano Velho, como Maria Marruá, como Vicência, como
Soledade, como Augusto, como Resendo, como Baixa o Flande; a
39
Retirado de Gullar (2008, p. 1074): “Disso quis eu fazer a minha poesia, dessa matéria humilde e
humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é
justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz. [...] quis fazer [do
canto] a expressão desse drama, o ponto de ignição onde, se possível, alguma luz esplenderá: uma luz da
terra, uma luz do chão – nossa. [...] Noutras palavras: uma poesia que revelasse a universalidade
latente no nosso dia, no nosso dia a dia, na nossa vida de marginais da história”.
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população da beira rio, os embarcadiços e vareiros, os estivadores e os
policiais, as prostitutas e os boêmios; convivendo no dia a dia,
trabalhando duro; se alimentando uma vez por dia, comendo rapadura
com feijão sentados em mesas cobertas com toalhas quadriculadas;
suando embaixo de sacas ou sobre suas embarcações; se amando ao
som da música romântica, dançando nos forrós à luz de querosene;
bebendo cachaça nos bares de beira de cais e beira de rua; fazendo
sexo com os clientes e com suas prostitutas preferidas; trocando tapas,
socos, pontapés, e facadas; lutando pela sobrevivência em meio a
miséria, a exploração, ao abandono dos poderes públicos; enrijecendo
seus corpos e suas almas neste mundo líquido, escorregadio, cheio de
precipícios e sorvedouros, de códigos às vezes fluídos e lábeis, às vezes
duros e estritos; homens e mulheres tentando domar os escarpados da
existência, vencer as barrancas da vida.
E então, que zona nebulosa é essa que separa ficção de realidade? Se trocarmos os
nomes das pessoas acima citadas pelas personagens de Beira rio beira vida, teríamos,
efetivamente, alguma mudança? E, pelo contrário, se trocássemos as personagens do
livro pelas pessoas citadas (que existem ou existiram de fato), haveria diferença? Às
vezes tenho a impressão, assim como Assis Brasil em sua outra obra intitulada A vida
não é real, que, de fato, a vida não é real.
Enfim. Todo texto é fruto, no fundo, de algo que nos vem remoendo. É fruto de
algo que vem gritando, gemendo, martirizando. E quando gestado, vai embora, vai para
o mundo. De tal sorte que talvez não sejamos mais o mesmo, posto que os textos, desde
a minha visão, são experiências e vivências que nos transformam. Livrei-me de um.
Tinha que ter feito isto: gritado. Mas não só. Tinha que ter trazido todos os co-autores
que atendi no serviço de atermação; todos aqueles que, no processo de escrita,
sussurram em nossos ouvidos. A angústia, talvez, tenha diminuído. Que venha o
próximo. E tudo o mais é ilusão e mentira!
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DIREITO, ESCRAVIDÃO E LITERATURA:
REFLEXÕES DO CONSTITUCIONALISMO LIBERAL À BRASILEIRA
A PARTIR DA OBRA NEGRINHA, DE MONTEIRO LOBATO
F AUSTO S ANTOS DE M ORAIS 1
L UÍSA G IULIANI B ERNSTS 2
RESUMO: O Direito Imperial brasileiro figurava como legislação simbólica visto
que não conseguia dar a mínima proteção ao negro contra a sua escravidão.
Desenvolvendo essa hipótese, o presente trabalho se orienta pelo método
fenomenológico hermenêutico, promovendo a revisão bibliográfica e legislativa
para especular a (in)efetividade da legislação anti escrava durante o século XIX e
XX. Tal denúncia só foi possível por leitura da obra “Negrinha” de Monteiro
Lobato.
PALAVRAS-CHAVE: direito e literatura; direitos fundamentais; constitucionalismo
simbólico.
1
INTRODUÇÃO
“Assim foi – e essa consciência a matou”. O final do conto Negrinha, de Monteiro
Lobato, a menina negra, de aproximadamente 7 anos, ambientada no início do século
XX, no Brasil, morre por adquirir consciência de sua alma. Alma essa que a
humanizava, tanto quanto as sobrinhas da patroa. Alma essa morta, talvez, por um
1
2
Doutor e Mestre em Direito Público (UNISINOS). Professor da Escola de Direito da Faculdade
Meridional (IMED). Advogado Email: [email protected]
Graduanda do curso de Direito da Faculdade Meridional – IMED. Bolsista do Programa de iniciação
científica da IMED. Membro do Grupo de Estudos em Direito e Literatura Katharsis. Email:
[email protected]
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cotidiano social escravocrata que, no papel, garantia constitucionalmente o direito à
igualdade.
A negrinha, por ser igual, mas diferente, percebeu que a sua alma nunca seria
livre para poder brincar com as sobrinhas da patroa porque, na melhor das hipóteses, a
coisificação do seu ser, permitiria tão somente a sua condição de boneca. Coisa, objeto,
propriedade, mas não pessoa.
Antes mesmo de maiores consolidações dogmático-jurídicas sobre o conceito de
dignidade da pessoa humana, a obra de Monteiro Lobato coloca em evidência o
problema do ser humano numa (in)existente sociedade escravocrata no Brasil. E mais,
a dificuldade dessa cultura ser modificada tão somente pelo Direito.
Esse ensaio jurídico-literário propõe um estudo que apresenta especulações sobre
um Brasil escravocrata muito após as revoluções liberais. Mostra-se, portanto, a
segregação político-jurídica ao escravo, negro, que constitucionalmente deveria ser
livre. É nesse ponto que se homenageia o fundamento da legitimidade da proteção
constitucional à comunidade quilombola brasileira pela Constituição de 1988. Ou seja,
este artigo trabalha com a hipótese que a comunidade quilombola brasileira era o único
movimento que conseguiu assegurar ao negro a liberdade e igualdade, ideais
reclamados pelas revoluções liberais.
Essa tarefa se dará num viés negativo, pela idealização do constitucionalismo
simbólico do século XIX e XX no Brasil. Assim, apresentar-se-á a tentativa de
constitucionalização da proteção ao negro contra a escravidão, bem como a sucessão de
leis anti-escravagistas, do século XIX, incapazes de assegurar “o direito à alma da
negrinha”. Ou seja, um direito à dignidade.
Para cumprir essa tarefa o presente trabalho orientou-se pelo método
fenomenológico-hermenêutico, valendo-se dos conhecimentos jurídicos prévios para,
numa revisão bibliográfica e legislativa, estabelecer novas conjecturas por força da
poises da matriz teórica do Direito e Literatura.
2
A PROPOSTA DO DIREITO E LITERATURA
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Ao se adotar aquilo que pode ser chamado de matriz teórica do Direito e
Literatura, procura-se, na imbricação desses campos do saber, explorar aspectos
cotidianamente ocultos ao conhecimento jurídico orientados ao dogmatismo dos
imperativos jurídicos
Isso porque, não é difícil compreender que grande parte dos teóricos do Direito
não se dão conta da necessidade de reorientação do Direito a partir do seu contexto de
realização. Um bom exemplo dessa condição é o fato de ainda hoje a transmissão do
conhecimento jurídico nas universidades e na pesquisa se limitam, por vezes, ao
conhecimento abstrato das normas jurídicas.
A utilização de textos literários serve como um meio provocador que acaba por
resultar em uma revisão dos conceitos clássicos utilizados tradicionalmente pelas
Ciências Jurídicas, ampliando-se, por conta disso, a perspectiva sobre os fenômenos
jurídicos, muitas vezes, fechados zeteticamente e descompassados com o atual
paradigma vigente no Estado Democrático de Direito.
Para além disso, o estudo da tradição jurídica – ou, como se quiser, da história do
Direito – pelo viés da literatura permite que fenômenos tidos como juridicamente
inexistentes – como era o caso da escravidão no século XIX – acabem sendo
reapresentados como um elemento de incapacidade do Direito lidar com o contexto
social politico a que se referia.
Por isso, a corrente do Direito na Literatura – analisada como direito a partir da
literatura – parte da premissa de que algumas questões jurídicas se encontram
melhores formuladas e esclarecidas em obras literárias do que em muitos dos manuais
jurídicos especializados (TRINDADE; GUBERT, 2008, p. 49).
O direcionamento do debate às questões sociais explicitadas pela literatura faz
com que o Direito tenha que enfrentar uma complexidade que lhe é estranha (OST,
2005, p. 48-58), diferente daquela tradicionalmente conhecida da subsunção dos fatos
à lei. Na literatura, os fatos estão num contexto que denunciam a impossibilidade lógica
da simples dedução (ROHDEN, 2009, p. 62). Por meio das narrativas, o jurista se dá
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conta que o fenômeno social não pode ser reduzido à lógica formal, mas que demanda
uma outra forma de conhecer.
Esse conhecer exigido pela Literatura, ensina ao Direito, ou melhor, à Ciência do
Direito, que os fenômenos sociais antes de serem descritos, exigem do jurista um ato de
compreensão (Verstehen) (STEIN, 2009). E mais, esse compreender pode ser cada vez
mais apurado a partir de um movimento fenomenológico-hermenêutico. Na Literatura
isso aparece na participação que o leitor possui na constituição do sentido da obra
literária, cujo sentido é cada vez é apropriado diante do alargamento da consciência do
intérprete sobre as coisas, o âmbito social e político.
Entende Trindade que a literatura, enquanto arte, recria cenários do passado,
trazendo à tona diversos temas para reflexão do jurista. Nessa esteira, “os juristas vêm
recorrendo ao conteúdo e à forma literária na tentativa de superar o desafio de repensar o direito” (TRINDADE, 2008, p. 61).
Sob a tutela de Ost a Literatura procura impor desordem às convenções jurídicas,
suspender as certezas e liberar os possíveis, enquanto que ao Direito ficaria a função de
codificar a realidade (2005, p. 48-58). Essa caracterização de Ost implica em certa
ambiguidade. Isso porque, a Ciência do Direito vem fazendo movimentos para
ultrapassar as noções jurídicas rasas que acabam equiparando o Direito ao Direito
Positivo. Nesse sentido, novos questionamentos sobre a Teoria das Fontes do Direito
podem dar vasão à discussão sobre o alcance normativo – codificador – do Direito
Positivo e o papel do intérprete nesse processo.
A Literatura acaba contribuindo ao Direito, pois permite que questões holísticas
sobre o funcionamento ou a legitimidade do Direito – decisão – não tematizadas pela
dogmática jurídica tradicional apareçam e mereçam maior atenção do jurista. Assim,
particularmente, estudar o Direito na Literatura é recepcionar no âmbito jurídico
problemas que, na operacionalidade cotidiana do Direito, não se mostram evidentes. É
acreditando nisso que se utilizou a obra Negrinha de Monteiro Lobato, para por em
questão o modelo liberal de direito que simbolicamente era vigente no Brasil do século
XIX-XX.
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A obra Negrinha, cuja denominação é igual à personagem principal do conto, foi
escrita no início do século XX e apresenta a história de uma menina mulata de sete
anos de idade. Deixada por sua mãe escrava para criação pelo seu dono, passou a ser
considerada órfã, sendo criada entre insultos e maus-tratos.
Conforme relata o conto, o corpo da menina era a prova dessa condição, em que
se identificavam sinais decorrentes das agressões reiteradas que lhe eram infligidas
pela dona da casa em que morava. Fica evidente pelo conto que a “Negrinha” tinha sido
criada entre insultos e maus tratos.
A responsável pela Negrinha era Dona Inácia, relatada como antiga senhora de
escravos especializada em maltratar as crianças. Na figura da Dona Inácia, especula-se,
espelhava-se a consciência da sociedade brasileira escravocrata do final do século XIX e
início do XX. Isso fica claro no texto quando, por exemplo, Dona Inácia se manifesta
criticando a lei que procurou igualar as condições entre negros e brancos no Brasil.
Outra questão que chama a atenção no conto eram os castigos imprimidos à
Negrinha. Por certa vez, por ter se desentendido com outro morador da casa –
ofendendo verbalmente a pessoa -, a Negrinha foi punida com a ordem de colocar em
sua boca um ovo quente, recém tirado da água fervente, devendo assim permanecer até
que o ovo esfriasse.
A obra relata o marcante episódio em que as sobrinhas de Dona Inácia visitam a
fazenda no período das férias. Foi nessa oportunidade que a Negrinha pode brincar
com as outras meninas.
Todavia, especula-se, diante da impossibilidade de ser criança, mas apenas coisa,
tanto quanto as bonecas, Negrinha morre por ter adquirido a consciência de sua alma.
Mas nesse condição, talvez, estaria destinada a viver a vida de coisa, tal como as
bonecas. Ou seja, não via outro horizonte que não de propriedade.
No fim, o conto mostra a triste realidade da época para o negro escravo, o que se
atribui ao fato da Dona Inácia sentir saudades da Negrinha após a morte da menina.
Todavia, o que motivava essas saudades, seriam apenas o gozo que Dona Inácia possuía
quando judiava da menina.
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O PAPEL DO LIBERALISMO
E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DE LIBERDADE E IGUALDADE
Esta objetiva apresentar o ideal liberal oitocentista que visava obter, pelo Direito,
a segurança de liberdade e igualdade. Pode-se falar, aqui, numa doutrina liberal
concebida após o processo de industrialização. Seria, portanto, um momento em que o
movimento econômico e social referente ao final do século XIX, reflete na alteração
substancial no modelo liberal de Estado limitado, até então vigente, para uma
concepção de Estado Intervencionista (STRECK, 2004, p. 51).
O liberalismo partiu para uma vinculação íntima com o pensamento político e
social, convertendo-se numa ideologia do poder, caracterizado, de início, pelo seu
conteúdo revolucionário e vanguardeiro. Tomando dimensão histórica, entrava no
reino da realidade parar impugnar uma nova ordem de valores (BONAVIDES;
ANDRADE, 2008, p. 102).
Nesse contexto, entende-se que o conceito de Estado de Direito emerge aliado ao
conteúdo próprio do liberalismo, impondo assim, aos liames jurídicos do Estado a
concreção do ideário liberal relativo ao princípio da legalidade (STRECK, 2004, p. 89).
Naquele momento Estado de Direito significaria o respeito estrito dos poderes
soberanos à legalidade, como principal produto de um período histórico de
consolidação dos reclames das revoluções oitocentistas. Para tanto, a noção de
equiparação entre o Direito e a lei era a forma de manter e assegurar as conquistas das
revoluções no século XIX. Seria por força da lei que a liberdade e igualdade seriam
assegurados a todos.
Essa exigência confiava na figura do legislador como ator protagonista da
juridicidade (NEVES, 2008, p. 186). Eram submetidos à Lei, representação máxima da
vontade do povo, os Poderes Executivo e Judiciário. A limitação e regulamentação do
poder do Estado tornaram-se premissas para que os direitos dos indivíduos fossem
garantidos (DIMOULIS, 2003, p. 130).
Tem-se a consubstanciação do conteúdo político do liberalismo na forma jurídica
do Estado, cuja nota central apresenta-se como uma limitação jurídico-legal negativa,
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ou seja, ao Estado cabia o estabelecimento de instrumentos jurídicos que assegurassem
o livre desenvolvimento das pretensões individuais, ao lado das restrições impostas à
sua atuação positiva (STRECK, 2004, p. 91).
No plano político, o ideário do liberalismo evidencia a necessidade de garantia
das liberdades fundamentais, consideradas como inerentes à pessoa humana e depois,
como um meio de assegurar essa liberdade, configura-se a necessidade de uma
constituição e da divisão de poderes, garantindo-se o direito de representação apenas
aos setores considerados como “ativos”, isto é, proprietários, empresários e indivíduos
de rendas mais elevadas (FALCON, 1989, p. 62).
A expansão dos ideais revolucionários oriundos das revoluções liberais do século
XVIII evidenciaram a incapacidade das grandes potências europeias, cujos modelos
absolutistas monárquicos ainda encontravam-se enraizados na formação estatal, em
lidar com o contágio espontâneo referente consciência de novas demandas sociais.
Em face deste complexo processo de irradiação do revolucionarismo, reformas
não puderam deixar de figurar o cenário mundial. Dentre as três ondas revolucionárias
principais no mundo ocidental ocorridas entre 1815 e 1848, aquela que acolhe o período
entre 1820 e 1824 representa o emparelhamento do Brasil às tendências mundiais. Em
1822, o Brasil separou-se de Portugal e tornou-se, como doutrina Hobsbawm, o mais
importante dos novos Estados. Sendo assim reconhecidos primeiramente pelos Norte
Americanos e logo após pelos britânicos, que trataram de concluir tratados comerciais
(HOBSBAWN, 1977, p. 128).
Com a separação do Brasil de Portugal, a aplicação do ordenamento jurídico
português deixa de ser coerente. A emancipação política precisou de uma emancipação
jurídica, que foi realizada pela Carta Constitucional de 1824 (AGRA, 2012, p. 59). A
primeira Constituição brasileira é marcada, durante o processo constitucional, traduz o
conflito entre conservadores e liberais radicais, pelo choque entre o Imperador e os
constituintes. Enquanto os primeiros aderiram ao processo constituinte em defesa de
uma centralização política e limitação do direito ao voto, os liberais defendiam um
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modelo político mais próximo às conquistas burguesas (CATTONI; ALVES, 2011, p.
172).
Desse conflito, surge uma legislação muitas vezes incoerente em que pese a
proteção de grande parte da população brasileira, uma vez sabido que o liberalismo e a
busca de igualdade, desde sua concepção em Locke, um aristocrata, esbarra no conflito
de interesses entre dominadores e as demandas dos dominados.
4
AS RELAÇÕES ESCRAVOCRATAS NO BRASIL IMPERIAL
O Brasil, fundado sob ideais do patriarcado rural e escravocrata, permaneceu na
condição de colônia de Portugal até o começo do século XIX. A vinda da família real
portuguesa, em 1808, foi o principal de uma série de acontecimentos que culminaram
com a independência política em 1822.
A mudança no cenário político brasileiro não significou transformação de vulto
em sua composição social, a despeito do incipiente processo de urbanização verificado.
Na monarquia, como adverte Sérgio Buarque de Holanda, permaneciam os fazendeiros
escravocratas e seus filhos, educados nas profissões liberais, como os sujeitos que
monopolizavam todas as posições de mando, a exemplo de parlamentos e ministérios
(HOLANDA, 1971, p. 41). Nessa esteira, “é nítido que os juristas e os legisladores
exprimiam o máximo de consciência possível da classe escravista, na busca da
legitimação de suas atitudes e valores para si e para a sociedade como um todo”
(MALERBA, 1994, p. 17).
Nesse passo, a manutenção da escravidão no Brasil, notadamente sob o formato
de grandes latifúndios, contribuiu para o atraso do Brasil na corrida industrial.
Enquanto a Inglaterra, principal potência mundial do período, já havia iniciado o seu
desenvolvimento fabril em meados do século XVIII, o Brasil independente permanecia
conservador e aristocrático.
Na impossibilidade de formação de uma classe operária, a mão-de-obra escrava
sustentava a classe dominante, com o apoio espiritual da Igreja Católica, religião oficial
do Império. Joaquim Nabuco, abolicionista e expectador in loco da vida na Corte,
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descreve que grande número de padres possuía escravos, sem que o celibato clerical o
proibisse (NABUCO, 2000, p. 133).
A breve exposição desse cenário se justifica na condição de pano de fundo cultural
que marca a edição de leis que procuram regulamentar as relações escravas. Embora já
em 1850 houvessem leis que reconheciam a possibilidade de liberdade dos escravos, os
valores culturais da sociedade escravista à época não se coadunavam com a ideia
progressista de libertação dos escravos (MALERBA, 1994, p. 18).
Na próxima seção serão apresentados os principais marcos normativos
relacionados a erradicação da relação escrava o que, pelo menos formalmente, fazia do
discurso jurídico um campo que apontada para a mudança.
5
A REAÇÃO DO DIREITO POR MEIO DA LEGALIDADE:
O MODELO DE PROTEÇÃO CONTRA A ESCRAVATURA
No desenvolvimento do regime legal escravocrata considerar-se-á as leis
promulgados a partir do Império que regulamentam, direta ou indiretamente, as
relações de escravidão para que, na próxima seção seja possível concluir o raciocínio
considerando a noção de constituição simbólica.
A independência nacional em 1822 não significou mudanças radicais no regime
escravista praticado pela antiga colônia portuguesa. “Expressão do regime liberal
instituído pelos dominadores” (FREITAS, 1982, p. 85) a Carta Constitucional de 1824,
representava uma inovação por introduzir em seu artigo 179 uma declaração de direitos
(AGRA, 2012, p. 58) que, embora previsse a inviolabilidade dos Direitos Civis e
Políticos dos cidadãos Brasileiros (art. 179, caput), considerando o escravo liberto
nascido no país como seu cidadão (art. 6), negava aos escravos a condição de eleitor,
pois conforme dispunha o artigo 94, inciso II Poderiam ser eleitores, e votar na eleição
dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Província todos, os que
podiam votar na Assembleia Paroquial, excetuando-se os libertos. Muito embora
houvesse o signo da igualdade positivado no texto constitucional (art. 179, inciso XIII).
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Embora a condição de cidadão brasileiro fosse reconhecida constitucionalmente
aos filhos dos escravos, a legislação infraconstitucional vigente no período imperial,
pouco tratava dos direitos dos escravos, com exceção ao Código Criminal de 1830. Isto
porque, o referido marco normativo ao tratar dos “Crimes Justificáveis”, previa ao
artigo 14, § 6°, que os senhores que castigassem seus escravos de forma moderada não
sofreriam com a persecução penal. O mesmo estatuto previa através do artigo 60 que o
escravo poderia ser condenado à pena de até 50 açoites por dia.
Cedendo as pressões inglesas que visionavam por fim ao tráfico negreiro, em
busca de um mercado consumidor, a legislação infraconstitucional brasileira seguia no
sentido de resguardar os direitos dos escravos. No dia 7 de novembro de 1831, foi
sancionada a Lei Feijó que, de caráter liberal, determinava a todo o escravo que
adentrasse no território Brasileiro a condição de livre, bem como a extensão do tipo
penal do art 179, que dizia “Reluzir á escravidão a pessoa livre, que se achar em posse
da sua liberdade”, aos importadores de escravos. No entanto, essa lei não passou de um
meio de tapear as imposições estrangeiras, uma vez que não encontrava efetividade
alguma em terrae brasilis.
Já no ano de 1845, mais uma vez sob pressão inglesa, o Brasil assina o tratado de
Bill Aberdeen, que atribuiu à Inglaterra a jurisdição sobre as embarcações e escravos,
tendo em vista que tal legislação (Aberdeen Act) proibia o comércio de escravos entre a
África e a América, tendo como fundamento findar o emprego da mão de obra escrava.
Não é possível analisar a intenção inglesa com a promulgação deste ato de forma
ingênua, visto que somente embarcações que favorecessem ao Brasil seriam
consideradas empregadas ao tráfico e apreendidas pela Inglaterra (NABUCO, 2010, p.
43).
A segunda parte do século XIX foi o momento histórico em que a legislação
regulamentadora das relações escravagistas inaugurou leis que indicaram a tendência
ao abolicionismo. Em 1850, surge a Lei Eusébio de Queiroz (Lei n° 581, de
04/09/1850), que devolve a jurisdição punitiva sobre as embarcações brasileiras ou
estrangeiras presentes no mar territorial brasileiro, ao Brasil, procurando da mesma
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206
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forma proibir o tráfico negreiro. Pouco mais de vinte anos, a Lei do Ventre Livre (Lei n°
2.040, de 28/09/1971) estabelece que os filhos de mãe escrava, a partir daquele
momento, seriam livres. Por sua vez, em 28/09/1885, promulgou-se a Lei dos
Sexagenários (Lei nº 3.270, de 28/09/1885), procurando regulamentar a manutenção e
prolongação dos serviços escravos até atingirem determinada idade.
Nos dois últimos dispositivos citados, é evidente a contradição no próprio texto
da legislação. Enquanto a Lei do Ventre Livre estabelecia a alforria dos filhos de
escravas, também determinava que caberia ao proprietário da mãe deste, encarar o
custeio e criação do liberto até os oito anos de idade, cabendo ao Estado indenizar o
“senhor de escravos” por tal ato ou então, o segundo poderia empregar o trabalho do
descendente até que este completasse 21 anos de idade. Na Lei dos Sexagenários, era
concedido ao escravo que superasse a idade de 60 anos a liberdade, desde que este
conseguisse arcar com a indenização da perda de sua propriedade a título de alforria.
Essa compensação dar-se-ia pelo emprego de seu trabalho por mais 3 anos, como
forma de pagamento de sua liberdade. Aqueles que completassem 65 anos de idade
deixavam de ter o dever de serviço.
Finalmente, a Lei Áurea foi o instrumento jurídico utilizado para extinguir,
formalmente, as relações escravas no território brasileiro. Por ato da Princesa Isabel,
promulgou-se a Lei Imperial de n° 3.353, em 13/05/1888, determinado o fim da
escravidão do Brasil.
Seguindo a reflexão, a próxima seção apresentará a questão do simbolismo na
legislação, como meio de evidenciar a situação ordem jurídica brasileira que marcou o
século XIX e XX.
6
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA DOS DIREITOS
DE LIBERDADE NO BRASIL DO SÉCULO XIX E XX
A presente seção serve para sustentar e apresentar argumentos quanto a
legislação simbólica como problema do regime escravocrata que predominou no Brasil
durante do século XIX e XX. Essa hipótese só tem o seu valor ao se considerar que
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naquele momento histórico havia uma luta global para realização dos direitos de
liberdade.
Também como produto dessa onda dos direitos de liberdade, o Brasil adota uma
Constituição (1824) que endossa o modelo liberal mas parece não conseguir lidar de
fato com os problemas político-jurídicos da época. Corroborando isso, a Constituição
vai inaugurar a figura do Poder Moderador – exercido pelo Monarca – e o controle de
interpretação das leis e aplicação da Constituição como função precípua do Poder
Legislativo (MENDES, 2009, P. 186).
Entretanto, a rotina da época parecia ser outra. Embora a Constituição primasse
pelos direitos de liberdade (de imprensa, por exemplo), na prática o poder do
Imperador se fazia prevalecer à letra da Constituição, seja por poder controlar os atos
dos outros poderes mediante o exercício do poder moderador ou pela possibilidade de
determinar o parlamento, condicionado o exercício político na condição de se (VILLA,
2011, p. 18). Aliás, não se pode esquecer que a própria carta constitucional de 1824, no
artigo 99 garantia que “a pessoa do imperador é inviolável e sagrada; ele não está
sujeito à responsabilidade alguma”.
Esse poder na mão do imperador era, inclusive, o que impossibilitava ao
judiciário
as
qualidades
ora
democráticas
da
independência,
autonomia
e
imparcialidade. Isso pois, se não houvesse confluência nos entendimentos políticos
entre o judiciário e a opção do Imperador, ressonava o poder de império em suspender
os juízes por queixas contra eles, conforme previa o artigo 154 daquele constituição.
Talvez esteja aqui o ponto nevrálgico. Não havia de fato a separação entre os
poderes, especialmente, inexistindo ao poder judiciário a possibilidade de fazer valer a
Constituição – competência esta, inclusive, privativa do poder legislativo controlado
pelo Imperador.
Mesmo não sendo seguro afirmar que o Imperador endossava o modelo
escravocrata da época, também não é possível descartar a impossibilidade de ação do
império contra os senhores de escravos. Isso pois, era essa a classe dominante que
tinha acesso ao sistema eleitoral e que participava do governo.
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Outro ponto um tanto quanto contraditório seria a previsão constitucional de
cidadãos brasileiros, fossem eles ingênuos ou libertos (artigo 6°). A própria realidade
tomava conta do Direito ao ter como pressuposto a existência de cidadãos filhos de
escravos como cidadãos brasileiros (SILVA, 2011, p. 172).
Como se viu em seção anterior, mesmo existindo legislação visando a proibição
da relação escrava, um quadro de ilegalidade perdurou no Brasil, o que se dava pela
“indiferença dos Poderes Públicos e impotência da Magistratura, composta, também,
em parte, de proprietários de africanos” (SILVA, 2011, p. 173). É com olhos nisso que se
afirma a condição simbólica do Direito à época.
A questão da legislação simbólica está usualmente relacionada com a distinção
entre variáveis instrumentais, expressivas e simbólicas. As funções instrumentais
representam a tentativa consciente de alcançar resultados objetivos mediante a ação. Já
no que diz respeito as atitudes expressivas em face das simbólicas, tem-se que esta
caracteriza-se pela imediatidade da satisfação das respectivas necessidades enquanto
aquela, a simbólica, se relaciona com o problema da solução de conflitos de interesses
(NEVES, 2007, p. 22).
Na prática dos sistemas sociais estão presentes sempre as três variáveis
supracitadas. Assim, "legislação simbólica" representa o predomínio da ação simbólica
no que se refere ao sistema jurídico, da atividade legiferante e do seu produto, em
detrimento da função jurídico-instrumental (NEVES, 2007, p. 23).
Valendo-se da teoria dos sistemas é possível dizer que o Direito como subsistema
social não conseguia impor a sua autonomia à sociedade (CLAM, 2005, p. 119), eis que
não conseguia cumprir a sua função de proteção aos direitos de liberdade – ou contra
escravocrata. Assim, seria apenas através da sua função, notadamente através de
processos seletivos, que o sistema parcial institui a forma própria de interagir com a
sociedade (LUHMANN, 1983, p. 175). Nesse sentido, não havia interpenetração e
acoplamento estrutural entre o Direito da época e a sociedade a que se referida,
deixando, portanto, de cumprir com a sua funcionalidade específica (ROCHA, 2005, p.
41) de proteção às liberdades.
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Uma quantidade considerável de leis desempenham funções sociais latentes em
contradição com sua eficácia normativo-jurídica, considerando que a atividade
legiferante constitui um momento de intersecção entre os sistemas políticos e jurídicos,
pode-se definir a legislação simbólica como produção de textos cuja referência
manifesta à realidade é a normativo-jurídica, mas que serve a finalidades políticas de
caráter não especificamente normativo-jurídico (NEVES, 2007, p. 30).
Face a tentativa de produzir confiança no sistema político e jurídico, o legislador
elabora diplomas normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, sem que com
isso haja o mínimo de condições para a efetivação de determinadas normas. (NEVES,
2007, p. 36). Segundo Marcelo Neves, as leis não são instrumentos capazes de
modificar a realidade de forma direta, uma vez que as variáveis normativo-jurídicas
defrontam-se com outras variáveis orientadas por outros códigos e critérios sistêmicos.
Dessa forma, parece mais precavido afirmar-se que a legislação-álibi destina-se a criar
a imagem de um Estado que reponde normativamente aos problemas reais da
sociedade, embora as respectivas relações sociais não sejam realmente normalizadas de
maneira consequente conforme o respectivo texto legal (NEVES, 2007, p.39).
Analisando o contexto brasileiro à época - inclusive, com resquícios à fase
republicana – tem-se que a proteção ao negro mediante o combate legal da escravidão
não passou de um recurso retórico e simbólico que caracteriza a ausência de eficácia do
Direito como instituição autônoma de regulação do Poder.
7
CONCLUSÃO
O conto Negrinha, de Monteiro Lobato, serve de denúncia literária quanto ao
simbolismo do sistema legal de proteção do negro contra um modelo de organização
social que dependia da mão de obra escrava. Esso modelo repercutiu também no século
XX, conforme retrata o conto.
Juntamente com a essa conclusão geral acima, este trabalho se mostrou apto para
apresentar a fecundidade das relações entre Direito e Literatura, bem como ilustrar
como que o simples apego à função legislativa do Direito não resolve os problemas
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sociais considerando, principalmente, que a efetividade jurídica é um problema que
transcende o campo da normatividade jurídica, exigindo transformações também nos
modelos políticos e econômicos da sociedade a que se refere.
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212
ANAIS DO II CIDIL
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A LESÃO AO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
NA OBRA O ESTRANGEIRO, DE ALBERT CAMUS:
ASPECTOS GARANTISTAS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
E A INFLUENCIA DOS FATORES LEGAIS DETERMINANTES
R OSÁLIA M ARIA C ARVALHO M OURÃO 1
H AMÍLCAR G IÚLIO B RITO DE S ENA O LIVEIRA 2
L ORENNA C OSTA O LIVEIRA 3
RESUMO: O presente trabalho se propõe a analisar a lesão ao Princípio do Devido
Processo Legal na obra O estrangeiro de Albert Camus, escrita em 1957, utilizandose de um enfoque jus-filosófico e antropológico, onde se procurará delimitar a
influência dos fatores sociais determinantes no curso do Processo, bem como a
espetacularização judicial; além do mecanismo de Decisão Convencida do
magistrado. Partindo-se da análise de conjunturas políticas e sociais que servem
para compreender a forma como se dá a construção da sentença judicial, observase como um Estado que, em tese, deveria assegurar o império da Democracia e da
Justiça, se curva a conceitos pré-constituídos e pré-julgados, encapados de uma
pseudolegalidade, que nada mais fazem que distanciar os indivíduos que
apresentam tendências comportamentais diferenciadas, por meio da busca
quimérica de homogeneização social excludente e da persecução de um monismo
jurídico desumanizador e míope. No conceito apresentado por Albert Camus, em
sua célebre obra – marco do existencialismo absurdista que despontara no século
XX – tal qual como acontece no processo kafkiano, o indivíduo passa a ser visto
despido de sua humanidade, desconsiderando-se sua condição humana e passando
a receber o mesmo tratamento que se destina a um mero amontoado de papeis que
compõe autos – analisado, nesse cenário, por juízes cada vez mais mecânicos e
desprovidos de sensibilidade, que se isolam em suas togas como deuses no Olimpo.
PALAVRAS-CHAVE: estrangeiro; processo legal; fatores sociais determinantes;
decisão convencida.
1
2
3
Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPI; Graduada em Direito
pelo Instituto Camilo Filho – ICF; Professora de Direito e Literatura da Faculdade Santo Agostinho –
FSA.
Graduando de Direito do 10º Período da Faculdade Santo Agostinho – FSA.
Graduanda de Direito do 8º Período da Faculdade Santo Agostinho – FSA
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INTRODUÇÃO
Em O estrangeiro, nos deparamos com um relato inquietante de um homem a
parte de seu tempo e de sua sociedade em virtude de suas crenças particulares – para
ser mais preciso, pela ausência delas – bem como pelo modo de se relacionar em
sociedade. Um indivíduo por vezes perturbado em razão de uma ausência de
perspectivas para o futuro, imerso quase que constantemente em um sentimento blasé,
que acaba por leva-lo a um fatídico evento ensejador de uma espiral inquisitória e
autoritária, na qual a sociedade o discrimina, o acusa, o julga, o condena e o executa,
pelo simples fato de ser diferente. Como se depreende da leitura do trecho a seguir,
podemos chegar a conclusão de que o processo apresentado por Albert Camus4, tal qual
o processo kafkiano, apresenta forte influência de fatores sociais que excluem as
garantias jurídicas típicas do Estado Democrático de Direito:
Mesmo no banco dos réus é sempre interessante ouvir falar de si
mesmo. Durante as falas do promotor e do meu advogado, posso dizer
que se falou muito de mim, e talvez até mais de mim do que do meu
crime.[...] Resumiu os fatos a partir da morte de mamãe. Relembrou
minha insensibilidade, o meu desconhecimento da idade dela, o meu
banho de mar no dia seguinte, com uma mulher, o cinema, Fernandel,
e por fim a volta com Marie (grifo nosso).
Desta maneira, a característica marcante do processo apresentado por Camus é
justamente a presença de fatores sociais – alicerçados na Moral particular dos
espectadores do fato - a sobreporem-se às garantias fundamentais que são asseguradas
à todos os indivíduos. Nesse diapasão, é possível depreender que, embora formalmente
trate-se de um processo judicial, a situação vivenciada pelo protagonista afigura-se
muito mais como um processo social, no bojo do qual são distorcidos os valores
norteadores de um julgamento justo e imparcial, para que se alcance a manutenção do
status quo reinante naquele momento, fazendo assim com que a discriminação
travestida de legalidade faça seu trottoir; e desvirtue in totum a finalidade do processo
como instrumento por intermédio do qual o Estado exerce o seu direito de punir,
entregando a cada um a tutela jurisdicional a que faça jus.
4
CAMUS, 2008, p. 102-103.
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A VISÃO SOCIAL CAMUSIANA
E A VALORAÇÃO DO SER HUMANO
A narrativa camusiana é bastante marcante em face da maneira como o autor
expõe de forma crua e com uma sensibilidade própria a falta de perspectivas de seus
personagens,
bastante
marcados
pela
frieza
e
pela
indiferença,
elementos
característicos de um mundo onde impera a desolação e a desesperança; em que a vida,
em todas as suas nuances, não passa de meras frivolidades de uma sociedade que
insiste em viver de forma não autêntica. Visão esta que é amplificada no conjunto de
obras que formam o ciclo do absurdo, da qual O estrangeiro faz parte:
Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um
telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentimos
pêsames.” Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem5.
Em face do trecho extraído da referida obra, é possível vislumbrar a característica
mais marcante da obra camusiana, que é precisamente a presença do absurdo e do
pessimismo, tão típicos de um momento histórico no qual a sociedade vivia imersa na
descrença e no ceticismo; conforme se pode deduzir pelo que diz Horácio González6,
quando da análise do escritor franco-argelino:
Antes de um ilustrador literário das teses filosóficas, Camus pertence à
ordem da literatura. A tentativa de traduzi-lo filosoficamente nunca o
completa. Esse programa de equivalências e traduções foi Sartre, na
verdade, quem percorreu cabalmente. E ele não deixa de ter razão
quando diz que Camus, em O Mito de Sísifo, parece não ter
compreendido bem Keirkegaard, Jaspers ou Heidegger. Pode-se
acrescentar também Husserl. Porém, essa “não compreensão” dos
filósofos da existência ou dos fenomenológos é decorrente de sua
intenção de literaturizá-los, de fazê-los colaborar em uma outra
montagem comandada pela ideia de absurdo retirada de seu exercício
de mediterraneidade.
A partir desse panorama, observamos que impera na obra camusiana o
sentimento de inadequação do homem ao meio em que se insere, ou que, no muito, este
meio está indiscutivelmente fora do controle do indivíduo, posto que, no mesmo, tudo é
5
6
Id., p. 7.
GONZÁLEZ, 2002, p. 52-53.
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um absurdo. Não existe uma lógica, não existem perspectivas que orientem a vida que
deve ser vivida. É como se tudo houvesse sido jogado no ventilador – estruturas PR-efabricadas de modos de vida, montadas ao acaso, quase como quadros de vida que não
aparentam ter nenhuma conexão lógica; o que nos permite arrematar que o próprio
homem, com suas paixões e dissimulações, é o ser mais absurdo de todos (mais até que
os seus próprios arquétipos sociais).
O ser humano para Camus, portanto, passa a ter um valor relativizado, sendo,
pois, nesse sentido, a maioria dos valores postos em sociedade valores inventados por
esse mesmo homem que, a contrario sensu de constituir-se como o mentor dessa
mesma sociedade, também se constitui com ser inventado – e que se sujeita às agruras
e benesses que o modelo de sociedade por ele concebido proporciona. Apresentando
então sempre a busca por um sentido, que se constitui humanamente impossível de ser
alcançado, o homem digladia-se diariamente com sua própria consciência e com a
consciência da existência “do outro” - embora não se possa ter certeza sobre serem
esses sentidos inteligíveis ou não por parte do ser.
Desta maneira, para Camus, a tentativa da sociedade de dar sentido à vida por
meio da religião ou qualquer outra resposta em um primeiro momento satisfatória, na
verdade, consubstancia-se como um ato de ilusão – uma quimera que para nada mais
presta-se além de adiar momentaneamente o confronto com o absurdo, e, portanto,
com a própria essência humana que é pontuada por lacunas de sentido.
3
O DEVIDO PROCESSO LEGAL
COMO GARANTIA DE LIBERDADE DO INDIVÍDUO
O que é o processo, especialmente o de natureza penal? Como se chegar a
paradigmas válidos de ponderação valoratícia que permitam um julgamento justo e
equânime para aquele que se encontra no banco dos réus? Estes e muitos outros são
questionamentos bastante pertinentes no atual momento social, em que o crime antes
de mais nada, se tornou um evento midiático, em que o importante é o “furo”, a notícia
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em tempo real, o recrudescimento da violência e a superexposição do sangue como
produto de consumo de massa.
Pensar em processo penal, antes de mais nada, não nos remete a um simples
meio para aplicar o direito penal e punir os cidadãos acusados da prática de um delito?
Muito antes disso, pensamos em um instrumento imprescindível para a aplicação dessa
punição. Como o caminho necessário a ser percorrido quando se pretende acusar,
condenar e (se for o caso) punir alguém.
Com base no que nos informa Daniel Achutti7, observa-se um ponto de vital
importância do modo como o processo vai se desenrolar - qual seja, o modo como o
processo é visto em si e a sua finalidade -, é que quando apercebe-se o processo como
mero objeto de aplicação do direito material, corre-se o perigo de cair no lugar comum
do simples positivismo legalista que aplica a lei de maneira cega e irresponsável,
desconsiderando o caso concreto com suas peculiaridades e nuances; e que tornam o
processo “o algo” que ele realmente é: a garantia de uma aplicação efetiva da justiça
social pretendida pelo constituinte e pelo legislador infraconstitucional. Fato este que
não se observa ao longo da leitura do estrangeiro, de modo que cumpre, nesse
momento, ressaltar um dos perigos que sempre rodeiam o ordenamento jurídico e seus
instrumentos - a utilização dos meios coercitivos do Estado para o tolhimento da
liberdade individual, bem como para a imposição de um único padrão social de
“normalidade”; sendo o diferente, nessa toada, visto como um estranho, perigoso ao
status quo, de modo a caracterizar-se, assim, como um verdadeiro “estrangeiro” entre
seus semelhantes. Como salienta Renata Almeida da Costa8, quando nos informa da
natureza do interrogatório de Mersault:
Por ser um desigual, não só pelo fato de ser um estrangeiro (ou de
sentir-se um estrangeiro) o personagem é submetido ao procedimento
inquisitorial. Nos interrogatórios, não se analisa o fato por ele
praticado (a princípio tão simples de ser entendido), mas sim, sua
personalidade e moralidade. Como exemplo há os questionamentos
acerca do comportamento do réu perante a morte de sua mãe e diante
7
8
SÖHNGEN, 2010, p. 21.
TRINDADE; SCHWARTZ, 2008, p. 222.
KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED
217
ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
da fé católica (crença em Deus, imagem do crucifixo, noções sobre o
suplício de Jesus).
Para Alexandre de Moraes9, a garantia assegurada pelo princípio do Devido
Processo Legal apresenta duas vertentes que permitem ao indivíduo que este possa se
salvaguardar de possíveis desmandos da entidade Estatal, como se observa a seguir:
O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo,
atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade,
quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições
com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa
técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de
provas, de ser processado e julgado por juiz competente, aos recursos,
à decisão imutável, à revisão criminal).
Mas para que esta dupla proteção possa ser efetivada, é necessário que, antes de
qualquer coisa, se observe a imparcialidade daquele que julga, bem como o senso de
justiça daqueles que atuam no processo; pois de nada adianta a garantia de tais
instrumentos de proteção se aqueles que fazem parte da relação processual atuam de
forma míope, guiados por uma moral distorcida e excludente, como nos mostra Renata
Almeida da Costa10:
Mesmo assim, não obstante a existência de algumas características
acusatórias no processo de “O estrangeiro”, não se pode negar a forte
reprovação legal e moral que recai sobre o réu, através dos atos do juiz
e de seu próprio advogado. Ambos se detêm a analisar a conduta do
acusado através de fatos pretéritos ao cometimento do crime. Vejamse as narrativas dos diálogos entre o réu e o advogado e entre o réu e o
juiz. Nas primeiras, os fatos versam sobre a morte da mãe do acusado;
nas segundas, sobre a fé do acusado nos símbolos da Igreja Católica.
4
A PRESSÃO SOCIAL NOS RUMOS DO PROCESSO:
A DECISÃO CONVENCIDA DO JUIZ
Para Daniel Achutti11, o aspecto humano do profissional do Direito é elemento
extremamente relevante na sua práxis, uma vez que não é concebível dissociar tal
9
10
11
MORAES, 2010, p.107.
TRINDADE; SCHWARTZ, 2008. p. 227.
SÖHNGEN, 2010, p. 25.
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ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
aspecto para a hipotética consecução de um modelo jurídico estritamente legalista e
frio, que só existe no campo das ideias e das ficções jurídicas:
Devemos pensar nos operadores jurídicos como seres humanos que,
definitivamente, o são. Conforme as lições de Ricardo Timm de Souza,
podemos pensar que o “‘humano’ é o que, penetrado de
temporalidade, não é absolutamente concebível sem ela”. Um
operador jurídico que se julgue fixado à lei e que se pensa isento de
influências subjetivas quando das suas considerações jurídicas, dentre
outros mitos, certamente não está inserido no tempo, ou seja: poderia
ser considerado uma máquina, ou, para lembrar Montesquieu, “la
bouche de la loi”. Por assim se considerar, estaria fora da
temporalidade humana, algo próximo a um semi-Deus – intangível,
pois não sujeito a intempéries temporais.
Partindo-se do que foi proposto acima, é imprescindível que se observe como a
sociedade com as suas diversas formas de manifestação, acaba por induzir, mesmo que
inconscientemente, o julgador a decidir de maneira A ou B; e aqui é oportuno destacar
o papel que a mídia tem exercido ultimamente – que, nos mais das vezes, por ser
veículo tendencioso e sem uma adequação com a realidade fática, cria um clamor social
tão maciço que condena o acusado antes mesmo do início do processo; atuando, assim
como fator determinante de muitas das decisões judiciais, que quase que em sua
totalidade não passam de escolhas arbitrárias do magistrado, posto que a decisão em si
é algo pensado, que surge de uma fundamentação trazida à luz pelo conjunto
probatório que é apresentado ao magistrado, ou no muito assim o deveria ser.
É certo que uma das garantias para que o processo seja justo e equânime é aquela
assegurada pelo princípio do livre convencimento motivado, segundo a qual, o
magistrado, na análise do caso concreto, tem liberdade para proferir sua decisão desde
que esta seja justificada. Nessa esteira, então, entender-se-ia que no processo devem
ser apresentadas diversas provas que vão orientar e motivar o juiz para que decida de
maneira A ou B; mas o que realmente pode ocorrer, e aqui surge a “Decisão
Convencida” do juiz, é um verdadeiro perigo que ronda o devido processo legal, posto
que o juiz corre o risco de que primeiro decida independente do que venha a ocorrer no
processo – concretizando o famigerado “primado da hipótese sobre o fato -, sendo
orientado por convicções de cunho pessoal, moral e filosóficas que dizem apenas
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
respeito à sua pessoa, ou a parcela social da qual este faz parte; de modo a apenas fazer
depois um malabarismo hermenêutico para que sua decisão, desde sempre convencida
por fatores alheios ao processo – diga-se fatores sociais determinantes – torne-se
travestida de uma aparente legalidade, como acontece na obra em análise, na qual todo
o processo por qual passa Mersault é orientado por convicções morais e religiosas do
juiz e demais sujeitos processuais – ocorrendo, desta feita, uma juridicidade vazia de
sentido, ou de pelo menos um sentido realmente jurídico de um Estado Democrático de
Direto; configurando, assim, valores processuais vazios de valor efetivo.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto no presente trabalho, percebe-se que embora o Direito
constitua-se como uma ciência que busca a ordenação social e a implantação de um
plano de pacificação com a resolução efetiva dos conflitos que surgem no seio da
sociedade, o que realmente (e infelizmente) influi decisivamente são os fatores sociais,
que se configuram como determinantes e, no mais das vezes, acabam por intensificar as
discriminações e a segregação entre os indivíduos. Devendo então o Direito e,
principalmente, o profissional do mundo jurídico, valer-se de um conjunto de valores
que traduzam os verdadeiros anseios de justiça (valores estes que só são alcançados por
meio de uma reflexão filosófica e sociológica da própria sociedade); sabendo sim da
importância dos conceitos morais e religiosos que estão compreendidos no seio da
sociedade, mas sem permitir que estes conceitos determinem a segregação de
indivíduos por seguirem conceitos diferentes dos da maioria de modo a, assim, evitar
que se reproduzam em nosso ordenamento jurídico processos tais quais como o que
Mersault sofreu – o qual, a bem da verdade, em um Estado Democrático de Direito,
pode ser chamado de tudo, menos de processo.
REFERÊNCIAS
ACHUTTI, Daniel. O processo penal entre a clareza da racionalidade jurídica e a
complexidade da cultura contemporânea: apontamentos desde o Ensaio sobre a
cegueira e O estrangeiro. In: SÖHNGEN, Clarice Beatriz da Costa; PANDOLFO,
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
Alexandre Costi. (Org.) Encontros entre Direito e Literatura II – ética, estética e
política. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010. p. 21-35.
CAMUS, Albert. O estrangeiro (1957). Trad. de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro:
Record, 2008.
COSTA, Renata Almeida da. Albert Camus e o processo penal: aporte garantistas ao
interrogatório do “estrangeiro”. In: TRINDADE, André; SCHWARTZ, Germano (Org.)
Direito e literatura: o encontro entre Themis e Apolo. Curitiba: Juruá, 2008. p. 221236.
GONZÁLEZ, Horacio. Albert Camus: a libertinagem do sol. São Paulo: Brasiliense,
2002.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2010.
SÖHNGEN, Clarice Beatriz da Costa; PANDOLFO, Alexandre Costi. (Org.) Encontros
entre Direito e Literatura II: ética, estética e política. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010.
TRINDADE, André; SCHWARTZ, Germano (Org.) Direito e literatura: o encontro
entre Themis e Apolo. Curitiba: Juruá, 2008.
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
A DEFESA DA DEMOCRACIA E A CRÍTICA AO DECISIONISMO:
A REVOLUÇÃO DOS BICHOS E A REVOLUÇÃO DO DIREITO
 NGELA A RAÚJO DA S ILVEIRA E SPÍNDOLA
F ABIANE C ARLA P ILATI
M ARINA T EIXEIRA M ONTEIRO
1
2
3
RESUMO: Existem inúmeras relações entre o Direito e a Literatura. A obra "A
revolução dos bichos", de George Orwell, publicado em 1945 traz uma crítica
intensa às relações de poder, conectando-se irrefutavelmente com a dimensão do
Direito. A obra é uma defesa da democracia e um ataque ao autoritarismo e às
arbitrariedades. O Estado Democrático de Direito consagrou direitos e garantias
fundamentais, pretendendo romper com a tradição do Estado liberal. Entretanto,
em decorrência, especialmente, do histórico jurídico-político brasileiro, não raras
vezes, verifica-se uma verdadeira politização do direito, o que faz com que a
criação, interpretação e modificação das normas jurídicas fiquem condicionadas à
ideologia de determinados grupos de indivíduos. E, mais do que isso, muitas vezes
a máquina judiciária serve de mecanismo para obtenção de vantagens desses
poucos indivíduos, em detrimento da coletividade. É nesse contexto, que a “A
Revolução dos Bichos” encontra correlação com a sociedade contemporânea, isto é,
na trama, os animais de determinada fazenda promovem uma revolução e criam
seu próprio sistema legal, ao qual denominam “Animalismo”, estabelecendo, para
tanto, um arcabouço de regras a serem seguidas. Contudo, ao longo da história, os
porcos, únicos plenamente alfabetizados, vão modificando os artigos do código que
criaram de acordo com seus interesses, aproveitando-se, principalmente, da
ignorância e analfabetismo dos outros animais, quebrando com ideal inicial da
1
2
3
Doutora em Direito pela UNISINOS. Professora e Pesquisadora da Escola de Direito da IMED/Passo
Fundo. Professora Adjunta do Departamento de Direito da UFSM. Coordenadora e Orientadora do
grupo de pesquisa “O Neoconstitucionalismo e o processo civil como um tempo e um lugar possíveis
para concretização efetiva e democrática dos Direitos Fundamentais”. Advogada.
Acadêmica de Direito do VIII nível na IMED – Faculdade Meridional, Grupo de Pesquisa “O
Neoconstitucionalismo e o processo civil como um tempo e um lugar possíveis para concretização
efetiva e democrática dos Direitos Fundamentais”.
Acadêmica de Direito do VIII nível na IMED – Faculdade Meridional, Grupo de Pesquisa “O
Neoconstitucionalismo e o processo civil como um tempo e um lugar possíveis para concretização
efetiva e democrática dos Direitos Fundamentais”. Bolsista de Iniciação Científica PROBIC/FAPERGS.
Estagiária da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul.
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
revolução de criação de uma comunidade igualitária e que propiciasse bem-estar a
todos.
PALAVRAS-CHAVE: A Revolução dos Bichos - Estado Democrático de Direito –
Democracia - Decisionismo
1
INTRODUÇÃO
Escrita por George Orwell e publicada no ano de 1945, a obra A revolução dos
bichos permite a análise de diversos temas relacionados ao direito, principalmente no
que tange a críticas aos regimes totalitários. O presente artigo, longe de esgotar as
inúmeras leituras que podem ser feitas da obra em comparação com o direito, irá
abordar três temas específicos.
Tendo em vista que a sociedade está em constante mudança, e que, ao longo do
tempo, a maneira com que se estabelecem as relações sociais assumem novos formatos,
o direito entra para regular e estabelecer o contrato social assumido pela população em
determinado espaço de tempo. Nesse viés, o primeiro tema que será abordado é a
revolução do direito, que acontece com as mudanças paradigmáticas. A partir da
constituição de 1988, o Brasil estabeleceu o Estado Democrático de Direito, e desde lá
vem criando mecanismos para efetivar os ideais desse paradigma. No livro em análise,
os bichos também estabelecem um novo paradigma, o Animalismo, uma vez que o
anterior não se mostrava suficiente para atender suas necessidades. O livro narra a
adaptação dos animais frente ao sistema estabelecido e as dificuldades que vem
surgindo para consolidá-lo. Faz-se necessária a comparação da revolução narrada com
a transformação que o direito brasileiro vem enfrentando para adaptar-se aos ideais do
Estado Democrático de Direito estabelecidos na constituição.
O segundo e terceiro tópico que serão abordados se complementam. A
democracia e o decisionismo. A partir do momento que os animais estabeleceram as
regras do novo paradigma, com a concordância de todos, estabeleceu-se um contrato
social, o qual todos ficariam comprometidos a efetivar. Tanto é que no livro os animais
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
auxiliam e trabalham incansavelmente nas tarefas necessárias ao bom funcionamento
da fazenda e cujos benefícios se converteriam em prol de todos. Também, no início do
novo paradigma, participavam das reuniões que eram realizadas para estabelecer
tarefas e atividades. A partir do momento em que os porcos (principalmente o
personagem Napoleão), que ficaram no comando da fazenda, começam a decidir de
forma adversa aos mandamentos do Animalismo, alterando as leis conforme seus
interesses, há uma quebra com o contrato social, e, portanto, com a democracia. O
decisionismo judicial é denunciado nesse momento da obra, uma vez que os porcos
começam a decidir de forma desvinculada ao “ordenamento jurídico” estabelecido.
Também não há força que barre as arbitrariedades dos porcos, o que significa que não
há coercitibilidade nas regras estabelecidas.
A análise desses temas a partir da obra é elementar para a compreensão da
mudança de paradigma pela qual está passando o ordenamento jurídico brasileiro. O
autor descreve com propriedade as dificuldades que surgem a partir do estabelecimento
de um novo sistema quando trata do Animalismo. A literatura vem para propor uma
análise complexa e objetiva da dinâmica da sociedade, e a partir desta o direito vai ser
estabelecido. É a partir da reflexão dessa obra literária que inferimos o quanto é preciso
pensar um novo sistema para que ele tenha coercitibilidade e não fuja do interesse da
maioria em detrimento dos ideais de minorias.
2
DIREITO E LITERATURA:
UMA INTERSECÇÃO POSSÍVEL E NECESSÁRIA
O estudo do direito exige uma visão ampla e crítica dos fatos e da sociedade,
tendo em vista que seu objeto de análise reside, justamente, nas interações sociais.
Entretanto, o que se percebe, hodiernamente, é a expansão de uma cultura jurídica
dogmática, sendo que, não raras vezes, durante o estudo jurídico, questões
hermenêuticas, filosóficas e sociológicas ficam em segundo plano. É nesse contexto,
portanto, que surge a importância do direito e literatura ou direito na literatura, como
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
mecanismo de ampliação da compreensão da ciência jurídica para além das concepções
meramente dogmáticas ou restritas.
Assim, tem-se que cada obra literária, mais do que “contar uma história”,
transporta o leitor para determinado momento histórico, que pode ser no passado,
futuro e mesmo no presente, porém, apresentando-lhe, via de regra, perspectiva
diferenciada daquela a qual ele está habituado. Nesse contexto, ao longo de cada
narrativa, a todo instante, analisa-se o comportamento dos personagens e contexto
social, político e até mesmo jurídico em que se passa a história, permitindo e
incentivando-se a noção crítica acerca do comportamento humano, das relações de
poder, convenções sociais, etc.
Nesse sentido, ao apresentar um “parâmetro revolucionário” para o paradigma
jurídico através da idéia do Direito curvo (GONZÁLEZ, 2003, p.36), descreve a
importância da Investigação narrativa da direito e, nesse contexto, a relevância do
estudo de direito e literatura:
A investigação narrativa em direito se conservou plenamente, e
inclusive incrementou, seu originário vínculo com as Humanidades,
em particular com a Literatura, de modo que a maioria dos atuais
desenvolvimentos narrativos que envolvem o fenômeno jurídico se
ressituam no terreno Direito e Literatura e, como modalidade
estrutural de intersecção , dentro do que concretamente se apresenta
por Direito e Literatura (GONZÁLES, 2013, p. 45).
E, dessa forma, a literatura no direto incentiva à interdisciplinariedade, à
compreensão crítica dos fatos sociais, ressalta a importância da linguagem e
hermenêutica jurídica, possibilitando, ainda, que se repense o direito a partir de casos
concretos (mesmo que fictícios) e não mais concepções somente teóricas.
Conforme se verifica na prática cotidiana, a arte – literatura, pintura, musica,
etc.- desempenha papel fundamental no estímulo à criatividade, à imaginação, à
discussão, à perspectivas diversas dos fatos, agregando ao leitor idiossincrasia
diferenciada a cada leitura, ampliando sua visão do mundo. E, na esfera jurídica, da
mesma forma, a literatura, cada vez mais tem sido reconhecida como tendo
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ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
importância cabal no desenvolvimento de uma visão mais crítica e menos dogmática do
estudo do direito. Consoante ponderam TRINDADE e GUBERT (2008, p. 13):
Quando se considera o caráter desruptor e crítico da obra literária, há
de se levar em conta que ela – ao contrário da obra jurídica – é uma
obra de arte, na medida em que se caracteriza pela maravilha do
enigma e por sua inquietante estranheza, que são capazes de
suspender as evidências, afastar aquilo que é dado, dissolver as
certezas e romper com as convenções. A obra de arte produz,
mediante a imaginação, um deslocamento no olhar, cuja maior
virtude está na ampliação e fusão dos horizontes, de modo que tudo
se passa como se através dela, o real possibilitasse o surgimento de
mundos e situações até então não pensados (grifo nosso).
Nesse contexto, tem-se que a crescente complexidade social, reclama novas
posturas dos operadores jurídicos (STRECK, 2009, p. 17), assim como novéis
mecanismos que auxiliem dos fenômenos sociais. E, nesse sentido, verifica-se que a
literatura apresenta-se como importante ferramenta de fomento à interdisciplinaridade
no estudo do direito, “na medida em que se baseia no cruzamento dos caminhos do
direito com as demais áreas do conhecimento – fundando um espaço crítico por
excelência” (TRINDADE e GUBERT, 2008, p. 12), permitindo, portanto, uma análise
mais profunda da conjuntura social, o que possibilita, no âmbito jurídico, a discussão e
solução das demandas judiciais.
Em outras palavras, a literatura é indispensável para uma compreensão mais
profunda da realidade social, o que na esfera jurídica, culmina na superação da
dogmática jurídica, conquanto retira do operador do direito a possibilidade um “prêt –
à – porter significativo contendo uma resposta pronta e rápida” (STRECK, 2009, p.
32) para o caso (fictício) em análise e apresenta-lhe a possibilidade de discussão mais
profunda e completa da questão em pauta.
3
A REVOLUÇÃO DOS BICHOS: BREVE RESUMO DA OBRA
A obra A revolução dos bichos4 foi escrita por George Orwell e publicada no ano
de 1945. A narrativa tem como cenário uma fazenda, controlada por humanos, na qual
4
ORWELL, 2003.
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os animais sustentam a economia do local. Isso tanto através da força física (como no
caso dos cavalos) quanto através de recursos naturais, como lã, ovos e carne. Embora
sejam diretamente ligados à renda da fazenda, não participam dos frutos e rendimentos
dela, pois recebem pouca comida e são muito explorados. Certo dia, um porco chamado
Major reúne todos os animais da fazenda e faz uma reflexão sobre o sistema que estão
vivendo, onde os animais são fonte de renda e os humanos os que usufruem e
exploram. Propõe, portanto, uma rebelião, a tomada do poder por parte dos animais.
Dias depois dessa reunião, o porco morre. Os animais, entretanto, não
abandonam as ideias propostas por Major, principalmente os demais porcos. Na
oportunidade em que o dono da fazenda bebe demais, esquecendo-se de alimentar os
animais, estes, cansados desse sistema, avançam contra o humano e o expulsam da
fazenda. A mulher dele também foge do local. Os porcos, dotados de inteligência
superior à dos demais animas da fazenda, aprendem a ler e aos poucos vão tomando a
frente na revolução. São os porcos, principalmente Bola de Neve e Napoleão os
responsáveis pelas decisões a partir daquele momento. Bola de Neve, entretanto, busca
incluir os demais animais da fazenda, possibilitando que votem nas reuniões e também
promove diferentes atividades para eles, entre as quais a alfabetização. Quanto a esta
atividade, embora alguns animais tenham aprendido a ler (superficialmente), não havia
o domínio da língua tal como os porcos.
Após a revolução ter se instaurado, os animais reuniram-se (sempre a partir da
iniciativa dos porcos) para decidir quais seriam os mandamentos primados por todos,
os quais foram escritos em uma parede da granja. Em suma, os mandamentos
afastavam todas as condutas propriamente humanas, as quais eram repudiadas pelos
animais, e idealizavam a igualdade entre estes. Para citar alguns: “Nenhum animal
dormirá em camas”; “Nenhum animal beberá álcool”; e, “Todos os animais são iguais”.
Tais mandamentos foram resumidos na máxima “Quatro pernas bom, duas pernas
ruim” para facilitar a compreensão do contrato social por aqueles que não tinham o
domínio da leitura.
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Muito embora Bola de Neve concentrasse sua liderança na finalidade de melhorar
as condições de vida dos animais, primando pela efetivação dos mandamentos,
Napoleão sempre se mostrava contra suas ideias, o que gerava discussão entre os dois
porcos. E, no momento em que os humanos tentaram retomar a posse da granja, foi
Bola de Neve quem lutou junto com os animais para impedir tal ato.
Em uma das reuniões da fazenda, Napoleão expulsa Bola de Neve com o auxílio
de cães ferozes, os quais havia secretamente treinado para defendê-lo. A partir desse
momento há uma reviravolta, pois os animais começam a ser manipulados segundo os
interesses de Napoleão. Ademais, todos os atos do porco são justificados pela ideia de
que ele sempre está defendendo os interesses dos animais e que as atitudes que vão
sendo tomadas são essenciais para manter a fazenda longe dos humanos. Napoleão
também constrói a ideia de que todos os planos e propostas de Bola de Neve tinham
como pano de fundo auxiliar os humanos na retomada da granja, criando a imagem de
que Bola de Neve seria na verdade um traidor.
Os animais da fazenda, com exceção dos porcos, trabalhavam arduamente para
construir o novo sistema. Quem mais trabalhava era o cavalo Sansão, que tinha certeza
de que as decisões dos porcos eram voltadas para o bem comum e detinha, inclusive, o
lema “trabalharei mais ainda”.
É possível inferir, ao longo da narrativa, que por mais que os animais tivessem
estabelecido o Animalismo, o pensamento de Napoleão – que se tornara o líder na
granja-, continuava permeado pela estrutura do sistema antigo, qual seja, os animais
trabalhavam e moviam a economia da fazenda e um pequeno grupo liderava e usufruía
dos rendimentos.
Com o passar do tempo, Napoleão vai assumindo as posturas tanto repudiadas
pelo Animalismo, as quais são características do regime anterior. Fornece pouco
alimento ao restante dos animais e começa alterar arbitrariamente a legislação na
medida em que vai assumindo a postura dos humanos. Quando começa a ingerir bebida
alcoólica, o mandamento referente a tal prática passa a ser “nenhum animal beberá
álcool em excesso” Quando passa a morar na casa dos humanos e dormir nos quartos o
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
mandamento passa a ser “Nenhum animal dormirá em camas com lençóis”, quando os
animais começam a interagir com os humanos e andar sobre quatro pernas a antes
máxima passa a ser “quatro pernas bom, duas pernas melhor”. E assim por diante.
O contrato social é modificado de tal forma que a fazenda não só volta a manter
os padrões anteriores ao Animalismo como a situação dos animais passa a ser pior que
outrora. Tanto é que, em uma conversa com Napoleão (mais ao final da obra), um dos
humanos se mostra admirado com a sistemática do porco, uma vez que na granja dos
animais estes trabalham muito mais e com muito pouca comida, chegando a dizer que
irá implantar na fazenda do qual é dono várias das técnicas de Napoleão.
O último mandamento que é modificado é o da igualdade, que irá aparecer no
muro da granja no lugar de todos os outros: “Todos os animais são iguais, mas alguns
são mais iguais do que os outros”. Em suma, esse mandamento embasa o sistema
primado por Napoleão e que, na realidade, acaba por ser similar ou pior que aquele dos
humanos.
No final da narrativa, os animais assistem uma briga entre humanos e porcos,
decorrente de um desentendimento em um jogo de cartas que estava acontecendo na
casa de Napoleão, onde as expressões, a aparência e as atitudes porcas e humanas eram
tão semelhantes que os animais não conseguiam distinguir mais quem era porco, quem
era humano.
4
A REVOLUÇÃO DO DIREITO E A REVOLUÇÃO DOS BICHOS:
A MUDANÇA DE PARADIGMAS
Passados mais de vinte anos da promulgação da Constituição Federal, é visível
que, quanto ao ordenamento jurídico infraconstitucional, ainda se tem muito a fazer
para efetivar os ideais do Estado Democrático de Direito, paradigma estabelecido pela
CF/88. A comparação (e reflexão) que se faz a partir da obra de George Orwell parte da
revolução que tentou implantar o Animalismo. As dificuldades para assumir um novo
sistema são inerentes ao momento de transição paradigmática, uma vez que ainda
estão presentes muitos dos pensamentos e da estrutura do anterior. É preciso,
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entretanto, mudanças institucionais e ideológicas para a superação do paradigma em
decadência, sob pena de se continuar com a mesma dinâmica anterior (que é o que
acontece no livro), mesmo que as relações sociais e jurídicas tenham mudado.
Ovídio Baptista aponta que há elevadíssimo sentido de autopreservação das
instituições5. Há “uma tendência que nos leva a ter o status quo como racional”6.O autor
aponta, que “quando indagamos a respeito das coisas, já temos uma ideia prévia de sua
essência, ‘fala já a história’”7, o que demonstra a dimensão de nossas pré-compreensões.
Ademais, “somos induzidos a supor que o status quo, as coisas, sempre existiram, tal
como nós as vemos agora. Mesmo as “coisas” criadas pela cultura. Temos uma
tendência a naturalizá-las”8. As instituições e o significado que elas assumem são
criações da própria sociedade, da coletividade, que, depois de criadas, são tidas como
dadas, tornam-se fixas, rígidas9, “sempre há, nas instituições um elemento central,
potente e eficaz de autoperpetuação”10. Daí denota-se a dificuldade de abandonar o
antigo paradigma, de romper com antigos dogmas, com pré-compreensões e construir
novas instituições.
Para efetuar mudanças no cenário jurídico e adaptar (ou criar) instituições aos
novos ideais, é necessário reconhecer o tempo do direito11, é preciso reconhecer o
momento temporal o qual a sociedade está vivenciando, nesse sentido:
O tempo é uma instituição social, uma construção social: o tempo
temporaliza-se, diz Ost. Temporaliza-se conforme a cultura de uma
determinada sociedade. Daí falar-se que há uma interação dialética
entre o tempo e o direito: há um elo entre a temporalização social do
tempo e a instituição jurídica da sociedade, eis que o direito contribui
para a instituição do social, ou seja, contribui para estreitar o elo social
e oferecer pontos de referência (sentido e valor) à sociedade
(ESPINDOLA, 2008).
5
6
7
8
9
10
11
SILVA, 2013.
MARCUSE apud SILVA, 2013.
Ibidem.
Ib.
CASTORADIS apud SILVA, 2013.
SILVA, 2013.
ESPINDOLA, 2008, p. 37.
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O tempo no qual estamos inseridos, entretanto, é um tempo de mudanças, que
irão, inevitavelmente, atingir o cenário do direito na sociedade12:
Não se pode negar que a humanidade testemunha um período
histórico marcado pela aceleração do tempo e pela compreensão do
espaço. Informática, realidade virtual, cibernética, robótica, bioética,
biotecnologia, capitais, mercadorias, mercados, enfim, as informações
contemporâneas, em uma velocidade instantânea, rompem as
fronteiras tradicionais (ESPINDOLA, 2008).
As mudanças nas relações sociais precisam ser observadas para criação de
mecanismos que efetivem e concretizem direitos. Entretanto, os ideais do paradigma
dominante da modernidade, o racionalista, continuam a permear o direito brasileiro.
Muitas das concepções do antigo modelo continuam arraigadas em nosso ordenamento
jurídico e em nos nossos sistemas processuais13. Aí encontra-se boa parte da dificuldade
de concretização do Estado Democrático de Direito. A estrutura do paradigma anterior
vem sendo mantida (!). Para a compreensão do paradigma racionalista, cabe utilizar a
explanação de Angela Espindola:
O paradigma dominante da modernidade – o modelo de racionalidade
científica que cobre a ciência moderna – constituiu-se, em especial, a
partir da revolução científica do século XVI, quando se deu o
rompimento com o tradicional pensamento aristotélico-medieval,
assumindo-se como um ambicioso e revolucionário paradigma
sociocultural assente numa tentativa dinâmica entre regulação social e
emancipação social. O espectro do paradigma dominante apresentava
o método científico baseado na observação, descrição e sistematização
das informações da natureza, mediada pelo crivo da razão e da lógica.
[...] A razão e o método científico eram tomados como as únicas fontes
de conhecimento válido (ESPÍNDOLA, 2008).
A influência desse paradigma no direito atual está presente principalmente nas
instituições de direito processual civil, que ainda mantêm muitas das concepções do
racionalismo intrínsecas à dinâmica processual. Ovídio Baptista aponta inúmeras
vinculações ao paradigma anterior, cabendo citar: o princípio da “separação de
poderes”, que vincula o juiz a buscar a intenção do legislador quando criou
determinada norma e, assim, aplicar a “vontade da lei” ao caso concreto; a opção pelo
12
13
Id., p. 275.
Nesse sentido, consultar Silva (2006).
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
rito ordinário no processo civil; a utilização da “cognição exauriente” que faz com que o
juiz busque a certeza, a “vontade da lei”, que fique vinculado aos fatos conhecidos e
provados no decorrer do processo; a opção pelo contraditório prévio, entre outros14.
Entretanto, a partir das concepções do paradigma racionalista, a tutela estatal
apresenta-se de forma repressiva e reparadora, o que denota dificuldade em aplicar
tutelas preventivas e concretizar direitos. Tal como explana Angela Espíndola:
Não se pode imaginar a concretização de direitos, pensando-se
exclusivamente sob a órbita de uma jurisdição repressiva ou do
processo de conhecimento do rito ordinário, calcado sobre o mito da
certeza jurídica e da universalização da obrigação. Não são raros os
direitos que não podem ser traduzidos a uma conotação patrimonial e
que a reparação do dano consiste em mero consolo e não em efetiva
concretização de direito (a exemplo dos direitos ligados à honra, à
educação, à saúde, à intimidade...). Pensar em concretização de
direitos é pensar em um processo jurisdicional efetivo, célere e
democrático; é pensar em jurisdição protetiva, logo preventiva, além
de repressiva (ESPINDOLA, 2008).
Muito embora nosso ordenamento jurídico ainda carregue muito dos dogmas do
paradigma anterior, é evidente a movimentação legislativa na tentativa de consolidar os
ideais do Estado Democrático de Direito. Entre essas mudanças, cabe citar lei
11.419/06, que normatiza a virtualização do judiciário e regulamenta o processo
eletrônico. O processo eletrônico trouxe inúmeros benefícios para a processualística
brasileira, cabendo citar a publicidade dos atos processuais, a acessibilidade a
documentos do processo, a possibilidade de os servidores ficarem adstritos a tarefas
próprias do andamento processual e não meramente burocráticas (como grampear e
numerar folhas, por exemplo) e também contribui para a efetivação da garantia do
acesso à justiça15.
Também cabe citar que foi firmado um pacto entre os três poderes do Estado,
objetivando tornar o judiciário mais eficiente e acessível à população, no qual foram
firmados onze compromissos. Tanto nas reformas legislativas como no referido pacto o
ponto em comum que pode ser observado é a “atenção ao tempo, ou seja, na luta contra
14
15
Id.
ESPINDOLA; MONTEIRO; PILATI, 2012.
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a morosidade do Judiciário, contra a intempestividade da prestação jurisdicional e a
efetividade das suas decisões”16. Quanto ao pacto entre os três poderes:
A parte infraconstitucional da Reforma do Judiciário possui mais de
20 projetos de lei em tramitação, incluindo, além do processo civil, os
processos trabalhista e penal. Na verdade, são projetos que se inserem
no compromisso assumido, em conjunto, pelos três poderes do Estado
e que recebeu o nome de Pacto de Estado em favor do Judiciário mais
Rápido e Republicano, assinado em 15/12/2004, [..]. Esse pacto
enumera onze compromissos com o objetivo de tornar o Poder
Judiciário mais eficiente e acessível à população. Estes onze
compromissos são: (1) Implementação da Reforma Constitucional do
Judiciário; (2) Reforma do Sistema Recursal e dos Procedimentos; (3)
Defensoria pública e Acesso à Justiça; (4) Juizados Especiais e Justiça
Itinerante; (5) Execução Fiscal; (6) Precatórios; (7) Graves Violações
contra Direitos Humanos; (8) Informatização; (9) Produção de Dados
e Indicadores Estatísticos; (10) Coerência entre Atuação
administrativa e as Orientações Jurisprudenciais já Pacificadas; e, (11)
Incentivo à Aplicação das Penas Alternativas (ESPINDOLA, 2008).
As dificuldades narradas por Orwell na “Revolução dos bichos” para atingir os
ideais do Animalismo são inerentes às transições paradigmáticas. É importante,
portanto, o reconhecimento do tempo em que se está inserido para que se construam as
instituições jurídicas capazes de concretizar os ideais propostos no contrato social. Sem
dúvida, se o paradigma anterior foi esgotado e não se mostra eficaz para atender os
novos direitos, algumas das concepções que se tinham à época terão que ser
abandonadas ou modificadas. Napoleão, no livro, buscou manter a mesma estrutura e
concepções do paradigma anterior, afastando, inclusive, o contrato social firmado pelos
animais. E foi tal postura impossibilitou a perpetuação do Animalismo.
5
A DEFESA DA DEMOCRACIA E A CRÍTICA AO DECISIONISMO
De fato, o livro de George Orwell permite inúmeras compreensões a partir da
temática jurídica, política, sociológica, filosófica, etc. Entretanto, em decorrência,
especialmente do contexto histórico em que foi escrito, isto é, em 1945, no mundo pósGuerra, sua narrativa contempla uma intensa crítica às relações de poder, combatendo
16
ESPINDOLA, 2008, p. 190.
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o autoritarismo e às arbitrariedades, constituindo,o a obra, sobremaneira, uma defesa à
democracia.
Assim, “A revolução dos bichos” apresenta, de forma geral, uma crítica ao
totalitarismo, à opressão, arbitrariedade e discricionariedade. Isso fica notório,
inclusive tendo em vista que não é somente nesta narrativa, particularmente, que o
autor reafirma sua preocupação para com a democracia, ao contrário na obra 1984, por
exemplo, essas questões são trazidas à baila. Consonante pondera SANDRA REGINA
MARTINI VIAL:
George Orwell nos encaminha e/ou desencaminha para várias
reflexões, como a que versa sobre as relações sociais em um mundo
onde tudo e todos são controlados por alguém incontrolável. Este
alguém ora aparece como Estado, ora aparece como chefe; contudo é
um aparecer não aparecendo, é algo ou alguém onipresente na
ausência e na presença [...]. As revelações feitas por Orwell, em muitos
momentos, trazem par nosso pensamento diversas situações que
identificamos em nossa sociedade. Ao lê-lo, tem-se o sentimento de
estar revendo o nosso passado, vendo o presente e imaginando o
futuro (VIAL, 2008, p. 180).
A partir dessas rápidas considerações, percebe-se que “A revolução dos bichos”
encontra-se irrefutavelmente atrelada à dimensão do direito. Nesse ínterim, com a
ultrapassagem do Estado Liberal, o Estado Democrático de Direito traz ínsito em suas
premissas a noção de constitucionalização do direito, primando, ainda por uma
compreensão do direito a partir de direito e garantias fundamentais, com o escopo de
garantia do bem-estar geral.
E, nesse caso, pode-se dizer que a revolução do direito pode ser compreendida,
também no sentido de que, pós-positivismo, há a necessidade de inclusão no estudo
jurídico da hermenêutica, filosofia do direito, etc. Entretanto, não raras, vezes, ainda
que com o advento do Estado Democrático de Direito, ainda reside a compreensão
restrita do estudo do direito, e nesse contexto preleciona STRECK (2007, p. 1/2)17:
É necessário ter em conta que o novo constitucionalismo e a revolução
copernicana proporcionada pela invasão da filosófica da linguagem
[...] não consegue superar a relevante circunstância de que ainda
17
Prefácio da obra de Hommerding (2007).
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vivemos em um mundo jurídico que busca exorcizar os fatos e
conflitos tratados pelo direito.
Conectando-se essas premissas à “Revolução dos Bichos”, verificamos que na
obra em comento, após a tomada de poder pelos animais, os mesmos instituíram o
“Animalismo” e, como forma de regramento social, elencaram os chamados “Sete
Mandamentos” que deveriam ser observados por todos os integrantes da fazenda.
Assim era constituídos “Sete Mandamentos”:
Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
O que andar sobre quatro pernas, ou tenha asas é amigo.
Nenhum animal usará roupa.
Nenhum animal dormirá em cama.
Nenhum animal beberá álcool.
Nenhum animal matará outro animal.
Todos os animais são iguais (ORWELL, 2003, p. 19).
Percebe-se, portanto, que os animais acabaram por ratificar um contrato social,
através do estabelecimento parâmetros para que sua conduta não se assemelhasse às
atitudes tipicamente humanas, haja vista que a revolução visava, justamente, a
superação da realidade à que estavam submetidos quando sob as ordens do fazendeiro
Jones.
Entretanto, ao longo da história, os porcos, únicos animais plenamente
alfabetizados, acabam por modificar as ordens de acordo com seus interesses
individuais, em detrimento do bem-estar da coletividade, aproveitando-se, sobretudo,
da ignorância e do analfabetismo dos demais animais. No trecho que transcrevemos
abaixo, fica notória essa conjuntura:
Foi mais ou menos por essa época que os porcos, de repente,
mudaram-se para a casa-grande, onde fixaram residência. Novamente
os bichos julgaram lembrar-se de que havia uma resolução contra isso,
aprovada nos primeiros dias e, novamente Garganta conseguiu
convencê-los do contrário. [...] Quitéria, que tinha a impressão de
lembrar-se de uma lei específica contra camas, foi até o fundo do
celeiro e tentou decifrar os Sete Mandamentos que lá estavam escritos.
Sentindo-se incapaz de ler mais do que algumas letras separadamente,
foi chamar Maricota.
- Maricota – pediu ela -, leia para mim, por favor, o Quarto
Mandamento. Não diz qualquer coisa de nunca dormir em camas?
Com alguma dificuldade, Maricota soletrou o mandamento:
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- Diz que “Nenhum animal dormirá em cama com lençóis.
Interessante, Quitéria não se recordava dessa menção a lençóis no
Quarto Mandamento. Mas se estava escrito na parede, devia haver. E
Garganta que por acaso passava nesse momento, acompanhado de
dois cachorros, colocou tudo na perspectiva adequada (ORWELL,
2003, p. 49).
A partir dos trechos narrados é possível fazer uma analogia entre “Os Sete
Mandamentos” e a Constituição Federal, haja vista que estes primeiros faziam as vezes
de normas constitucionais, no contexto da história. E, dessa forma, se fazenda dos
bichos, era possível a modificação de suas normas sem maiores critérios, isso
denunciava a pouca força normativa desses institutos, visto que poderiam ser alterados
a qualquer tempo. E, da mesma forma, no direito brasileiro, é necessário cautela
quando da criação de mecanismos de alteração das normas constitucionais, sob pena
de fragilidade da Carta Magna e do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido,
preceitua STRECK (2009, p. 327) que:
Quando tramitam emendas constitucionais no parlamento da
República que buscam estabelecer mini-reformas constituintes – a
mais recente diz respeito ao aproveitamento da eleição municipal de
2008 para autorizar que o Congresso Nacional, por maioria absoluta
em votação unicameral, promova alterações na Constituição acerca do
poder político e do judiciário – ou outras que até mesmo, em plena
democracia, pretendem a instalação de uma assembléia constituinte, é
necessário explicitar que qualquer perspectiva hermêutica, na matriz
aqui defendida, depende fundamentalmente do respeito à
Constituição e das regras impostas por ela mesma para sua
alteração. [...] Quaisquer teses em contrário são exercícios de
golpismo.
Isso quer dizer que, assim como na fazenda dos Bichos, “Os Sete Mandamentos”
constituíam um contrato social, Constituição Federal é a norma basilar de todo o
ordenamento jurídico brasileiro, o que lhe confere força normativa suficiente para
determinar os princípios diretivos, segundo os quais devem-se formar a unidade
política e as tarefas estatais a serem exercidas, regulando procedimentos de pacificação
de conflitos no interior da sociedade, criando bases e normalizando traços
fundamentais da ordem total jurídica18, sendo também, portanto um contrato social.
18
NERY JR., 2010, p. 38.
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E, para garantia do Estado Democrático de Direito é indispensável que a criação,
interpretação e modificação das normas jurídicas estejam em consonância com os
ditames constitucionais, inclusive, quando estas digam respeito à Propostas de
Emendas Constitucionais19, tendo em vista que “uma democracia só se consolida
quando todos os Poderes da República apreendem que a constituição é a explicitação
do contrato social e o estatuto jurídico do político” (STRECK, 2009, p.328).
Ademais, assim como na obra de George Orwell onde a modificação das regras
estabelecidas favorecia atendia apenas aos interesses dos porcos, não se pode, em um
regime democrático aceitar a criação ou modificação das normas jurídicas que
favoreçam determinados grupos de indivíduos em detrimento da coletividade, sendo
necessária a aplicação das leis de forma a contemplar todos os cidadão. Pondera
Hommerding (2007. p. 29) que:
Somente as condições processuais da gênese democrática das leis
asseguram a legitimidade do direito. [...] Assim, é indispensável a
institucionalização de espaços imparciais que viabilizem a conversão
das pluralidades e a produção de consensos, a partir de um
procedimento que permita a inclusão de todos os cidadãos nos
ambientes discursivos. Desse modo, numa sociedade pluralista, a
fundamentação das normas jurídicas é resultado de um procedimento
democrático que garanta a participação de todos na formulação do
Direito (grifo nosso).
Frise-se que essa ideia de direcionamento das normas jurídicas a determinados
grupos indivíduos ocorre, sobretudo, a partir das interferências econômicas, sociais e
principalmente em decorrência da politização do direito, o que igualmente demonstra
fragilidade dos institutos constitucionais. Nesse caso, para defesa da democracia e da
Constituição seria necessário, cada vez mais, atribuir autonomia ao direito,
desvencilhando-o, o quanto possível, de interesses econômicos, políticos, dentre outros,
que não tenham como objetivo um bem-estar coletivo, ratificando, dessa forma, as
premissas do Estado Democrático de Direito.
19
Conforme preceitua Lênio Streck (2009, p. 327): “Como se sabe, a Constituição somente pode ser
alterada por emenda constitucional que obedeça ao quorum de 3/5 em votação bicameral e em dois
turnos, respeitadas ainda, as proibições explícitas e implícitas do poder reformador. [...] A vingar
qualquer das propostas de emendas [...] que estabeleçam autorizações plebiscitárias[...], o Brasil será a
primeira democracia que se autodissolve, fazendo um haraquiri institucional.”
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A partir dessa concepção de autonomia do direito infere-se que “a constituição
[...] é, assim, a manifestação desse grau de autonomia do direito, isto é, deve ser
compreendido como a sua dimensão autônoma face às outras dimensões com ele
intercambiáveis, como por exemplo, a política, a economia e a mora.” (STRECK, 2009,
p. 330), com o intuito, justamente, de que a norma jurídica atenda o ideal de
pacificação dos conflitos e bem-estar geral, a que pretende o Estado Democrático de
Direito20. A calhar a visão de STRECK (2009, p. 331) acerca das interferências do direito
na criação, aplicação e interpretação das normas jurídicas:
Não é demais referir, nessa altura, que a autonomia adquirida pelo
direito implica o crescimento do controle de constitucionalidade das
leis, que é fundamentalmente contramajoritário. Mas, se diminui o
espaço de poder da vontade geral e se aumenta o espaço da jurisdição
(contramajoritarismo), parece evidente que, para a preservação dessa
autonomia do direito, torna-se necessário implementar mecanismos
de controle daquilo que é o repositório do deslocamento do pólo de
tensão da legislação para a jurisdição: as decisões judiciais. E isso
implica discutir o cerne da teoria do direito, isto é, o problema da
discricionariedade da interpretação (grifo nosso).
Dessa forma, verifica-se que uma das principais maneiras de conferir autonomia
ao direito, efetuando um maior controle de constitucionalidade é, justamente,
combater decisionismos e discricionariedades nas decisões judiciais, tendo em vista
que a autonomia do direito não pode implicar indeterminabilidade desse mesmo
direito construído democraticamente, se assim se pensar, esta será substituída pelo
pragmatismo jurídico que coloca o direito em permanente estado de exceção (STRECK,
2009, p. 331), haja vista a falta de balizar para aplicação das normas jurídicas.
Nesse ínterim, a despeito do que ocorria na trama de “A revolução dos bichos”, o
direito brasileiro não pode ficar adstrito à decisões judiciais arbitrárias, sem vinculação
com os textos legais, em especial, com as normas constitucionais, sob pena de
enfraquecimento das bases democráticas estabelecidas. Em outras palavras, “ o grande
dilema contemporâneo será, assim, o de construir as condições para evitar que a justiça
20
Conforme preceitua Lênio Streck (2009, p. 330): “Às faceta ordenadora (Estado Liberal de Direito) e
promovedora (Estado Social de Direito), o Estado Democrático de Direito agrega um plus, representado
por sua função nitidamente transformadora, uma vez que os textos constitucionais passam a
institucionalizar um ‘ideal de vida boa’[...]” (grifo nosso).
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constitucional (ou o poder dos juízes) se sobreponha ao próprio direito” (STRECK,
2009, p. 339), comprometendo, assim como na narrativa de Orwell, o ideal de uma
sociedade justa, democrática e igualitária.
6
CONCLUSÃO
A obra de George Orwell permite a reflexão dos três temas propostos através de
um viés literário. É um estudo do direito para além dos livros e doutrinas dos quais
estamos acostumados a extrair nossas compreensões. O livro estimula a liberdade de
interpretação da narrativa, a análise de uma ficção, onde cada leitor pode encontrar
elementos novos dos quais podem ser extraídas comparações com o direito.
Quando analisamos a mudança paradigmática ocorrida a partir da “positivação”
do Animalismo, é possível extrair várias lições aplicáveis às concepções jurídicas. Entre
elas, o quanto a vinculação às instituições, aos ideais e à estrutura do paradigma
anterior barra a concretização de um novo sistema. E no caso prático, exposto ao longo
do item “A revolução do direito e “A revolução dos bichos”: A mudança de
paradigmas” também é possível verificar que ainda estamos vinculados a muitos dos
conceitos primados pela racionalidade científica. A importância de ter-se claro o tempo
do direito, e as necessidades primadas pela sociedade, é o que vai direcionar a criação
de mecanismos, de instituições que sejam eficazes para concretizar os direitos. As
relações sociais e jurídicas vão se transformando ao longo do tempo, a forma de tutela
estatal e das próprias instituições jurídicas precisam se adaptar às transformações.
Muitas concepções próprias do sistema anterior terão que ser superadas.
Da mesma forma, o Estado Democrático de Direito visa o rompimento com as
premissas do Estado Liberal, entretanto, não raras vezes, observa-se ainda um sistema
legal repleto de decisionismos e discricionaridades, que atentam contra o próprio
regime
democrático
e
demonstram,
em
última
instância,
uma
baixa
constitucionalidade.
Portanto, é necessário, sobretudo que as normas constitucionais sirvam, de fato,
como balizas para todo o ordenamento jurídico, tendo em vista sua inexorável força
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normativa e que, para tanto, qualquer mecanismo de modificação de quaisquer
diplomas legais seja observado com cautela, para que não se ponha em risco o Estado
Democrático de Direito e a Constituição Federal, que primam pela concretização de
direitos e garantias fundamentais, visando o bem-estar comum. E isto pressupõe a
superação do positivismo pela compreensão hermenêutica do direito e, em última
análise, verdadeira reformulação do paradigma jurídico pátrio.
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SEM PROBLEMAS E SEM ANGÚSTIAS:
A MONOTONIA DO DIREITO HEGÊMONICO
EM A MORTE DE IVÁN ILITCH, DE TOLSTÓI
M AURÍCIO P EDROSO F LORES 1
A NGELA A RAÚJO DA S ILVEIRA E SPINDOLA 2
RESUMO: A morte de Iván Ilitch de Tolstói permite inúmeras interconexões entre o
Direito e a Literatura. Pretende-se, com base nesta obra, problematizar os possíveis
sentidos e lugares mais adequados para a construção e a realização do direito. Sem
perder de vista o contexto histórico-literário da narrativa, empreende-se uma
análise com enfoque nas características do protagonista da obra, um juiz que
vislumbra e aplica o direito conforme sua concepção de vida simples e decorosa,
onde qualquer espécie de interação complexa é prontamente descartada. Tal forma
de tratar o direito acarreta numa completa dissociação entre o mundo jurídico e o
mundo real, sendo que o primeiro passa a ser visto apenas como meio de satisfazer
as suas ambições arrivistas e de seus colegas. Porém, ao ver-se diante da morte, as
angústias de Iván Ilitch quanto ao sentido de sua vida nos proporcionam contestar
também sua visão restrita e hegemônica acerca do direito, frequentemente
empregada de forma monótona pelos operadores jurídicos.
PALAVRAS-CHAVE: Tolstói; hegemonia; monotonia; direito.
1
INTRODUÇÃO: ENTRE AUTOR E PERSONAGEM
Em 1886, ano de publicação da novela A morte de Iván Ilitch3, Tolstói era já um
autor consagrado e reconhecido nacional e internacionalmente. Mais do que isso, o
1
2
3
Acadêmico do 8º semestre do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, com estágio de
doutoramento na Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em Direito pela mesma IES. Graduada em
Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Atualmente é Professora da IMED Escola de Direito e
Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Tolstói havia começado a escrever a obra ainda em 1881 e, após tê-la deixado de lado em 1883, retomoua no ano seguinte (BARTLETT, 2013, p. 381).
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escritor já havia passado por incontáveis experiências, empreendido múltiplos projetos
e modificado diversas vezes sua forma de enxergar o mundo – especialmente no que
tange às relações humanas, que sofriam agudas transformações na Rússia do século
XIX.
Seu ímpeto acentuado e a desmedida paixão que colocava em suas realizações
podem ser, ao menos em parte, explicados por algo que o próprio Tolstói identificava
como uma qualidade de sua família: dikost – vocábulo com significados variados na
língua russa. Ainda que o termo possa ser mais bem traduzido por “espírito selvagem”,
excentricidade ou estranheza – atributos normalmente relacionados a indivíduos
antissociais – Tolstói o definia de forma positiva, como “paixão e ousadia, ardor e
veemência”, algo que “denotava originalidade e independência de pensamento, bem
como a propensão para fazer o contrário do que fazem todas as outras pessoas”.4 Não
deixa de ser elucidativa da presença desta qualidade a imensa dificuldade de se
enquadrar a obra do escritor, seja no todo ou em singularidades, dentro de alguma
escola ou movimento literário – seu estilo único costuma levar à conclusão de que
Tolstói era, mais do que qualquer coisa, um “tolstoísta”.
Aos 58 anos de idade, quando conclui A morte de Iván Ilitch, Tolstói já havia
passado de nobre aristocrata que frenquentava requintados bailes e perdia fortunas em
mesas de jogo a sectário religioso preocupado com a educação dos camponeses, classe
marcada pelo estigma da servidão. Neste ínterim, entre outras atividades paralelas,
estudou direito (não chegando, no entanto, a concluir o curso), serviu ao exército russo
(momento em que escreveu os Contos de Sebastópol, que lhe granjearam fama de
escritor na Rússia), publicou os célebres Guerra e paz e Anna Kariênina (que o
lançaram à consagração), escreveu uma Cartilha com um método inovador de ensino
voltado especialmente à erradicação do analfabetismo camponês, traduziu e
interpretou os Evangelhos e, sobretudo, tornou-se uma espécie de “czar espiritual”, a
4
Ibid., p. 74.
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243
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quem o governo russo cautelosamente vigiava, incapaz de responder de forma enérgica
a suas constantes afrontas.5
Ao relevar tais informações, percebe-se que a importância de contextualizar o
histórico do autor – fundamental para a compreensão de uma obra literária – possui,
no caso de A morte de Iván Ilitch, uma interessante particularidade. É possível afirmar
que, em maior ou menor medida, a história de vida do personagem que protagoniza a
novela parece ser uma verdadeira antítese daquilo que foi a vida de seu autor.
Enquanto vemos Iván Ilitch idolatrar a alta sociedade e copiar fielmente seus costumes,
Tolstói refuta os hábitos aristocráticos e busca uma aproximação constante com o estilo
de vida camponês. Se, de um lado, o personagem busca uma vida marcada pela leveza e
pelo decoro, o escritor, de outro, clama por confronto e por mudanças.
Estas considerações iniciais, tanto como outros paralelos entre autor e
personagem a serem desnudados ao longo deste artigo, contribuem para que lancemos
luz sobre a vida deste juiz simples e obtuso a quem Tolstói imprimiu, além de uma
personalidade essencialmente contrária a sua, o nome de Iván Ilitch.
2
A SAGA BUROCRÁTICA DE IVÁN ILITCH
Se Tolstói, como dissemos, orgulhava-se de seu modo de pensar e agir de forma
diferente aos demais, Iván Ilitch, por sua vez, não se envergonha de trilhar o mesmo
caminho que fora seguido por seu pai. Este último, incompetente para exercer qualquer
função substancial e não podendo ser demitido pelo governo, recebia “postos
inventados e fictícios, percebendo vencimentos em rublos não fictícios”6. Eis aqui o
primeiro aspecto marcante na narrativa da vida do personagem: a linearidade de sua
história, intimamente ligada a de seu pai. Embora ao longo da obra seja possível inferir
5
6
Talvez porque temesse reações adversas, o governo jamais ousou prender Tolstói – diferentemente do
que fez com diversos amigos e colaboradores do escritor.
TOLSTÓI, 2011, p. 29.
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que Iván Ilitch talvez não fosse tão burocraticamente inútil como seu progenitor o era,
não irá se perceber “nenhuma evolução no sentido humano”7.
Característica fundamental de Iván Ilitch é a constante ideia de mediocridade que
atravessa praticamente toda a sua vida, a começar pelo fato de que era o segundo entre
três filhos, nem “tão frio e metódico como o mais velho nem tão impetuoso como o
caçula”8. Iván Ilitch coloca-se, entre o irmão mais velho, que está prestes a assumir a
mesma situação do pai, e o mais novo, que fracassara em diversos empregos e era
ignorado pela família, como um perfeito termo médio entre os dois, equilibrado e
correto.
Com efeito, ao longo de sua carreira este estigma da mediania irá prendê-lo de tal
modo que o desestimulará a buscar o real sentido de sua própria vida, que passa a ser
uma eterna cópia das maneiras, das ações e dos pontos de vista das pessoas
consideradas importantes. Assim, sem se dar conta, Iván Ilitch se converte em padrão,
adotando um modo de vida comum em todos os aspectos, impossível de ser destacado
em meio à multidão de indivíduos que o circunda. Tal efeito fica evidente no seguinte
trecho, onde Tolstói – ao narrar a decoração da casa realizada pelo personagem –
também lança uma crítica sagaz à aristocracia russa de posições inferiores:
Na realidade, isso é o que acontece com todas as pessoas que não são
muito ricas, mas que querem se parecer com os ricos e, por isso, só
ficam parecidas umas com as outras: tapeçaria, madeira negra, tapetes
e bronzes, o escuro e o brilhante – tudo aquilo que todas as pessoas de
certo tipo fazem para ficarem parecidas com todas as pessoas de certo
tipo. E aqui, com ele, era tudo tão parecido que não dava sequer para
chamar a atenção, mas para ele tudo isso parecia algo muito especial.9
A fim de saciar seus desejos arrivistas, Iván Ilitch adere ao serviço burocrático –
para um homem da sua condição, cuja linhagem familiar não pertence à nobreza, o
único meio possível para conquistar riqueza.
2.1
7
8
9
Os “homens novos”
BEZERRA, 2010, p. 139.
TOLSTÓI, 2011, p. 30.
Ibid., p. 47.
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Se, quando ainda na faculdade, Iván Ilitch “cometera atos que na época lhe
pareciam grandes imundícies”10, a partir do seu primeiro emprego a aprovação dos
extratos sociais mais elevados e a tentativa de fazer com que sua vida transcorra da
forma mais agradável possível passam a ser os únicos dois princípios que norteiam sua
conduta. Desde logo, Iván Ilitch começa a mostrar pontualidade, honestidade e decoro,
além de uma enorme “habilidade de separar o lado oficial, sem misturá-lo com sua vida
real”11, qualidades muito apreciadas na burocracia e que o levarão a progredir
rapidamente na carreira.
Após concluir seus dez longos anos de estudos em Direito, Iván Ilitch parte para a
província, onde assume o posto de funcionário do governador, conseguido por
indicação do pai. Ironicamente, um dos encargos assumidos pelo personagem é o de
cuidar de causas envolvendo dissidentes religiosos – perseguidos pela Igreja Ortodoxa
Russa, esses numerosos grupos contavam com grande apoio de Tolstói, ele próprio um
dissidente12.
O contato com os dissidentes é também significativo por ser a única situação em
que Iván Ilitch terá a sua frente indivíduos cujo estilo de vida excêntrico é incapaz de
despertar nele qualquer admiração. Nos cargos seguintes, o personagem terá diante de
si pessoas cada vez mais importantes, o que lhe proporcionará uma sensação de poder
bastante peculiar. Mesmo que em seu posto provinciano, quando lidava com pessoas
consideradas inferiores por ele, as tratava amigavelmente, sem “246anda246-las”,
cinco anos depois, ao assumir o cargo de juiz de instrução, Iván Ilitch passa a sentir
que,
[...] sem exceção, todas essas pessoas importantes, autossuficientes,
estavam em suas mãos; e que bastaria apenas escrever certas cartas
num papel de cabeçalho oficial para que uma pessoa importante,
autossuficiente, fosse trazida à sua presença na qualidade de acusado
10
11
12
Ibid., p. 30.
Ibid., p. 49.
É ilustrativo o fato de que Tolstói teve papel fundamental na migração de mais de 7.500 integrantes da
seita dos Dukhobors – vítimas de perseguição religiosa na Rússia – para o Canadá. Além de ajudar a
arrecadar fundos junto a colaboradores, o escritor custeou boa parte do valor necessário para a viagem
graças aos royalties oriundos da publicação de seu último romance, Ressurreição (BARTLETT, 2013, p.
467-468).
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ou de testemunha; e essa pessoa, caso ele não quisesse 247anda-la
sentar-se, ficaria de pé diante dele, respondendo às suas perguntas.13
Talvez porque abusar de seu poder fosse algo indecoroso, mal visto pela
sociedade, Iván Ilitch gostava de atenuar sua importância em relação às demais
pessoas, guardando somente para si toda a satisfação que o poder latente pode
proporcionar ao ocupante de um importante cargo14.
Contudo, na transição de Iván Ilitch para o cargo de juiz de instrução, talvez o
fato mais relevante seja a motivação para que tal promoção acontecesse. De acordo com
a narrativa, haviam sido criadas novas instituições judiciárias, onde “eram necessários
homens novos”15. A criação de tais instituições guarda íntima relação com as reformas
liberais implantadas pelo czar Alexandre II, iniciadas sobretudo em razão do novo
panorama social estabelecido desde que a servidão da gleba fora abolida, em 1861. Uma
dessas “Grandes Reformas” – conforme ficaram conhecidas – foi a do sistema legal
russo, que, a partir de 1864, ganhou feições mais ocidentais, com a instituição de novos
tribunais e a proeminência de figuras até então desconhecidas, tais como advogados e
outros profissionais da área jurídica. Anos depois, quando se viu forçado a comparecer
em juízo diante de “um jovem insignificante e pretensioso que cerceava suas
liberdades”16 e que o responsabilizou pela morte suspeita de um camponês de Iásnaia
Poliana17, Tolstói demonstrou profundo desagrado pelo novo ordenamento jurídico da
Rússia. Na ocasião, revoltado com as novas leis e instituições, chegou a começar um
artigo onde expressaria seu total desprezo por elas – mas acabou por abandoná-lo18.
13
14
15
16
17
18
Ibid., p. 34.
Poucas coisas desagradavam tanto a Tolstói, um pacificista, como uma autoridade que abusava do
exercício de seus poderes. Este tema é tratado especialmente na última fase de sua obra de ficção, sendo
talvez no conto Depois do baile, publicado postumamente, onde seu desprezo por esta espécie de
despotismo se revela com maior contundência.
Ibid., p. 33.
BARTLETT, 2013, p. 288.
Embora tenha intercalado períodos morando em Moscou ou São Petersburgo, Tolstói viveu
praticamente toda a sua vida em Iásnaia Poliana, propriedade que recebeu como herança.
“As novas leis e sua aplicação” seria o nome deste artigo.
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Em sentido contrário ao da indignação de Tolstói, Iván Ilitch aproveita-se das
reformas liberais da melhor forma possível, colocando-se como um dos “homens
novos” de que o governo tanto necessitava. Neste âmbito, é provável que o fato do
personagem possuir ares de um liberalismo comedido não seja mera coincidência, mas
carregue certo tom de crítica por parte do autor – afinal, o novo sistema jurídicoadministrativo russo que tanto o desagradara era composto fundamentalmente por
adeptos de concepções liberais, os quais jamais ousariam, todavia, por em dúvida a
autoridade do czar.
Embora seja muito improvável que Tolstói tenha se inspirado no juiz19 que o
colocou sob prisão domiciliar pelo suposto assassinato de um camponês ao criar Iván
Ilitch, o personagem pode bem representar o tipo de autoridade que o escritor
repudiava:
[...] Iván Ilitch logo adquiriu o hábito de afastar de si todas as
circunstâncias alheias ao serviço, e circunscrever o mais complicado
dos casos de tal forma que ele só externamente se refletia no papel,
excluindo totalmente seu ponto de vista pessoal e, sobretudo,
observando todas as formalidades exigidas. Isso era coisa inteiramente
nova. E ele foi um dos primeiros a colocar na prática o apêndice dos
Códigos de 1864.20
Pioneiro, Iván Ilitch emerge como símbolo das novas reformas do sistema legal
russo. Mas essa novidade parece de certa forma contaminada com algo bem anterior a
ela, que a reprime e a modifica, impedindo que ela seja, de fato, “nova”. Iván Ilitch, ao
mesmo tempo em que se coloca como um “homem novo”, na verdade é um homem com
opiniões previamente formuladas e uma filosofia de vida imutável, e que acaba por
aplicar suas restritas concepções acerca da vida também no âmbito de seu trabalho. Sua
tarefa como juiz, da mesma forma que sua vida, tem de ser agradável, sem espaço para
dúvidas ou angústias. E esse modo de lidar com a função que lhe é delegada, nos faz ver
Tolstói, parece estar muito longe daquilo que os cidadãos russos realmente
necessitavam. O sistema vigente precisava apenas de homens novos, não de homens
19
20
Na verdade, tudo indica que Tolstói tenha se inspirado em Iván Ilitch Miétchniknov, “um promotor de
justiça que falecera de câncer em 1881, aos 45 anos” (ALMEIDA, 2011, p. 62).
TOLSTÓI, 2011, p. 34.
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inovadores. Assim, muito embora as instituições houvessem mudado, e até mesmo as
formalidades já não fossem as mesmas, nada de essencial parece mudar entre o que faz
Iván Ilitch e aquilo que seu pai fazia, transformando o serviço burocrático numa eterna
continuação do mesmo.
2.2 Sistema injusto ou indivíduo injustiçado?
Ao encontrar uma moça “agradável, bonitinha e absolutamente correta”21 que se
enamora dele, Iván Ilitch, ainda que sem demonstrar intenções muito claras, decide por
casar-se. O casamento, que lhe parecera tão conveniente no princípio, origina,
entretanto, situações complexas e penosas. Especialmente após a gravidez de Prascóvia
Fiódorovna, sua mulher, Iván Ilitch percebe que o ambiente familiar é lugar de
discussões frequentes, de problemas, de angústias – coisas com as quais ele jamais se
deparara nas relações sociais advindas do pequeno círculo social que frequentava, onde
inclusive conhecera sua esposa.
Como forma de escapar dos constantes e cada vez mais insuportáveis conflitos
dentro de casa, Iván Ilitch busca refúgio no trabalho, único local onde ainda era
possível preservar “a independência do seu próprio mundo”.22 É somente através do
serviço público que o personagem resgata seu ideal de uma vida leve e agradável que,
diga-se de passagem, era “considerado por ele como próprio da vida em geral”.23
Durante dezesseis anos, Iván Ilitch concentra a maior parte de seu interesse no
serviço público, o que parece ser uma fórmula infalível a fim de garantir a tranquilidade
que almeja. É quando então sofre um primeiro golpe, justamente no ambiente do
trabalho, lugar até então insuspeito como fonte de preocupações:
Já era um velho procurador, que recusara diversas transferências
aguardando um posto mais desejável, quando, inesperadamente,
surgiu uma circunstância desagradável que quase abalou a
tranquilidade de sua vida. Iván Ilitch esperava por um cargo de
presidente numa cidade universitária, mas Hoppe, não se sabe como,
passou-lhe à frente e conseguiu esse posto. Iván Ilitch irritou-se, pôs21
22
23
Id., p. 36.
Id., p. 37.
Id., p. 36.
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se a censurá-lo e acabou por desavir-se com ele e com a chegia mais
imediata. As relações esfriaram e, na promoção seguinte, ele foi
novamente ignorado.24
Coincidentemente, no mesmo ano, Iván Ilitch constata que seu salário já não
dava conta de suas despesas, e, juntando os dois fatos como se conexos fossem, se sente
vítima de enorme injustiça. Ao ser ultrapassado na promoção que julgara ser-lhe
devida, havia sido abandonado por todos, fossem chefes ou familiares – nem seu pai
reconhece qualquer obrigação em ajudá-lo. No verão, Iván Ilitch parte com a mulher
rumo à aldeia de seu cunhado – a fim de evitar possíveis interpretações de que o
personagem tenha se retirado para o interior a fim de procurar sossego e reflexão para
sua vida, o narrador já assevera que o motivo da viagem era apenas aliviar despesas.
Pouco afeito ao ambiente bucólico, acaba por entediar-se rapidamente. O tédio
evolui aos poucos para uma angústia terrível e, antes que ela o consuma, Iván Ilitch
resolve tomar uma atitude a fim de que o estado de coisas não permanecesse o mesmo.
Cansado de lamentar sua própria sorte, parte para Petersburgo com o intuito de
arrumar um cargo com melhor salário, não importava em que ministério ou
departamento fosse. Por obra do acaso, a viagem é bem sucedida: Iván Ilitch consegue
um posto cujos vencimentos superam suas expectativas, e então, da mesma forma
súbita com que aparecera, esvai-se “todo o ressentimento em relação aos seus antigos
desafetos e a todo o ministério”.25
A consciência do personagem em relação a seu revés, bem como a lição
proporcionada pelo seu posterior sucesso, formam, juntos, um elemento essencial para
compor o quadro de sua personalidade, e que servirá muito bem como aporte para a
reflexão a ser proposta. Em momento algum Iván Ilitch cogita se o sistema é, em si,
justo ou injusto. Ele se considera injustiçado, mas considera que o sistema está posto e
que seu funcionamento não guarda qualquer relação com um fato cuja causa é, para ele,
um infortúnio absolutamente individual. Assim, tão logo recebe um ótimo cargo e as
coisas voltam ao normal, a consciência da injustiça sofrida, em função de um mero
24
25
Id., p. 41.
Id., p. 43.
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acaso, se desfaz – quem antes o humilhara, agora distribui-lhe lisonjas. Com um novo
cargo, numa nova cidade, Iván Ilitch sente-se, enfim, feliz – ainda que tal felicidade
somente signifique ter aquilo que já era de se esperar.
2.3 Alienação de si mesmo
Superado o episódio da promoção devido às circunstâncias extremamente
favoráveis, Iván Ilitch pode enfim viver com o conforto pelo qual ansiava – além de
menos angústias, havia mais dinheiro. Encontra uma casa encantadora para morar na
nova cidade, tão adequada quanto ele e sua mulher poderiam imaginar – “como se tudo
tivesse sido planejado de propósito para eles”26, narra Tolstói com um breve acento
irônico. A partir daí, entrega-se à arrumação do lar, em seus mínimos detalhes.
Milhares de rublos são gastos em móveis, tapeçarias, bronzes. Incapaz de elevar sua
própria personalidade, mas ávido por destacar-se de alguma forma perante seus pares,
Iván Ilitch entrega-se ao “culto dos objetos materiais e do conforto”27, e reencontra
nesta atividade muito da satisfação que há algum tempo lhe fugira.
Antes o trabalho, agora o planejamento e a decoração da casa – é sempre
premente a necessidade de Iván Ilitch em se concentrar em algo, mas desde que essa
fixação recaia sobre um objeto valorizado aos olhos da alta sociedade. Assim, embora o
objeto de interesse não seja o mesmo, o processo de alienação é bastante semelhante
àquele operado no âmbito do serviço burocrático, estrutura monótona que dispensa
personalidades. Por meio de mobílias, tapetes e cortinas, Iván Ilitch se reifica – assume
a forma daquilo que compra. Graças a essas preocupações materiais, somadas às
práticas cotidianas no trabalho, onde simplesmente “lia documentos, examinava
processos, confrontava depoimentos e aplicava as leis”28, Iván Ilitch não apenas
transforma o direito num lugar estéril, mas também “extingue-se como individualidade
26
27
28
Id., p. 44.
BEZERRA, 2010, p. 144.
TOLSTÓI, 2011, p. 49.
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e esteriliza-se como agente de sua própria vontade”.29 Inteiramente alheio a esse
fenômeno, escreve à esposa: “sinto que rejuvenesci uns quinze anos”.30
3
A PROCURA POR DIAGNÓSTICOS
A esta altura dos acontecimentos, a narrativa certamente já permite ao leitor uma
estimável tomada de consciência acerca das situações narradas e o que elas
representam – o leitor mais consciente até mesmo já as relacionou com sua própria
vida. Mas isto, embora seja um dos objetivos de Tolstói, não é o suficiente: é preciso
que o personagem, também ele, tome consciência de sua situação. E então o gênio do
escritor se encarrega de fazer com que uma experiência profundamente reveladora
comece a partir de um incidente aparentemente patético. Ao subir uma escada
enquanto mostrava ao tapeceiro o jeito como queria o drapeado da cortina, Iván Ilitch
sofre uma queda à primeira vista insignificante, mas posteriormente fatal. Tudo
começa com um mal-estar, que evolui para um constante desconforto, que acarreta um
terrível mau-humor, que afeta as relações com as outras pessoas, que por sua vez
provoca angústias – o que também desencadeia uma dor aguda – até que, ao final de
tudo, quando finalmente dá por si, nosso juiz da Corte Judiciária já está em seu leito de
morte, sem muito compreender de que forma chegara até ali.
No decorrer dos últimos nove capítulos da novela, Iván Ilitch vê o mundo que
construiu a sua volta desmoronar por completo em razão, por incrível que lhe pareça,
de uma insignificante cortina. Mas, antes de analisarmos a questão da morte, de
importância fundamental no contexto da obra, faz sentido que se coloque a seguinte
pergunta: que mundo foi esse que Iván Ilitch supostamente construiu? As
características apontadas no capítulo anterior poderão ser úteis para compreender o
processo de formação não só do mundo fictício de Iván Ilitch, como do mundo jurídico
em geral, que com o primeiro demonstra notável semelhança.
29
30
BEZERRA, 2010, p. 141.
TOLSTÓI, 2011, p. 46.
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3.1
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A sensação de vazio
Havíamos começado por destacar a questão da novidade – ou, melhor dizendo,
da ausência de inovação. O sistema que aliena Iván Ilitch em seu presente – e que
também o conecta ao passado de seu pai, em razão de sua linearidade – parece tão
hermeticamente perfeito, tão cheio de si, que qualquer tentativa de interferir em seu
funcionamento soa como perda de tempo. Basta notar que nem Iván Ilitch, nem
qualquer um de seus colegas, sequer cogitam algo do tipo – optam, isso sim, pelo
liberalismo vazio típico dos altos círculos sociais.
Parte desta engrenagem imutável, o meio jurídico aparece não como um lugar de
construção de sentidos, mas como um território vazio – como a mente daqueles que o
alimentam – a ser facilmente colonizado pela burocracia e suas formalidades. O direito
emerge como mera forma de estabilizar as expectativas de um grupo dominante que se
traduz, superficialmente, por “hábitos e valores estéticos”31, os quais Iván Ilitch, atraído
“como uma mosca pela luz”32, desde muito cedo procura copiar.
A visão do Outro, daquele que não faz ou não quer fazer parte do sistema, visão
esta fundamental para que se introduza algo de verdadeiramente novo no direito,
inexiste para Iván Ilitch. Quando dirige seu olhar aos demais indivíduos, só consegue
divisar pessoas iguais a ele. Tolhido de sua personalidade, acaba por ver nos outros
somente a si mesmo e, quando procura o que seria a própria essência de seu ser, não
enxerga ninguém.
No tribunal onde trabalha, para todas as direções que se aponte, Iván Ilitch só
avista homens “novos” como ele, agindo da mesma forma, de acordo com os mesmos
hábitos, seguindo os mesmos costumes – e considera tudo isso perfeitamente
adequado. Para ele e seus colegas, o Outro é uma figura assaz distante, que só serve,
quando muito, para elucidar a lógica de Kiesewetter33 (eles, contrariamente, jamais
poderiam se imaginar substituindo Caio na equação mortal).
31
32
33
BEZERRA, 2010, p. 144.
TOLSTÓI, 2011, p. 30.
“Caio é um homem, os homens são mortais, portanto Caio é mortal” (Id., p. 69).
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À exceção dos encontros com os dissidentes religiosos que anteriormente
mencionamos e dos quais não há qualquer relato minimamente preciso, a narrativa não
nos proporciona inferir qualquer espécie de contato, fora dos trâmites burocráticos,
entre Iván Ilitch e aqueles que se encontram sob seu poder de decisão. O único direito
que Iván Ilitch e seus colegas conhecem é o da sala de audiências ou das páginas dos
processos – locais onde o direito termina, mas onde jamais começa. Este direito estéril,
que refuta o contato com a realidade porque o considera desnecessário, este direito que
se autolegitima na repetição de suas próprias práticas, é o direito das meras
formalidades burocráticas, que nada de novo tem a prescrever para os problemas dos
indivíduos, senão equacioná-los e redistribuí-los. Com efeito, a imperfeição deste
método se revelará diante de Iván Ilitch por ocasião de sua doença, que pode ser
concebida como espécie de metáfora para demonstrar a decrepitude do sistema que
alimenta.
3.2 O processo fatal
Ao tratar com um médico à procura de um diagnóstico para a doença que lhe
aflige, Iván Ilitch tem um lampejo de consciência que, mesmo incipiente, é suficiente
para ao menos desestabilizar suas antigas seguranças e reavaliar suas próprias ações.
Tal episódio é contado pelo narrador da seguinte forma:
Tudo se deu como ele esperava; tudo aconteceu como sempre: tanto a
espera como os empolados modos doutorais, seus velhos conhecidos,
aqueles mesmos que ele próprio assumia no tribunal, e a apalpação, e
a auscultação, e as perguntas que exigiam respostas já conhecidas e
obviamente desnecessárias, e ao ar significativo que queria dizer ‘trate
de submeter-se que nós cuidaremos do assunto, nós cá sabemos sem
sombra de dúvida como resolver tudo, e resolvemos de uma única
forma qualquer que seja a pessoa’.34
Para o juiz ou para o médico, não importa o homem – só importa a conveniência
do procedimento a ser adotado. Como Iván Ilitch costumava fazer diante dos réus,
agora “o médico famoso posava e representava diante dele.”35 Era ele agora também
34
35
Id., p. 54-55.
Id., p. 55.
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réu, mas num processo muito diferente daqueles em que sabia perfeitamente como
proceder: no processo de sua própria vida. Vieram outros médicos, mais ou menos
famosos, mas todos eles diziam a mesma coisa: pode ser um apêndice, um rim
flutuante, não se descarta também outra coisa – aos ouvidos do doente, tudo quanto
eles diziam soava como nada. Receitados diversos medicamentos, empreendidos vários
tratamentos, ainda restava algo de incurável – senão no corpo, talvez na alma.
Através dos médicos, Iván Ilitch sequer soube se seu caso era ou não grave: foi
sabê-lo apenas por experiência própria. E é também através de uma espécie de delírio,
trazido pela dor e pela insônia, que o personagem descobre a verdadeira natureza do
mal que lhe atormenta:
Não é do apêndice, nem do rim, que se trata. Trata-se da vida... e da
morte. Sim, houve a vida, e eis que ela se esvai, vai-se embora e eu não
posso segurá-la. Para quê me iludir? Pois não está evidente para todos,
menos para mim mesmo, que estou morrendo, que tudo é apenas uma
questão de semanas, dias; ainda hoje, quem sabe? Havia luz e agora
são trevas. Eu estava aqui, e agora, para lá!36
Após um duro processo de aceitação da morte, Iván Ilitch concebe-a como mais
do que o fim da vida, ponto de vista pouco tradicional em seu meio. Com a ajuda de
Guerássim, o camponês de ar leve e aparentemente ingênuo37 despojado da falsidade
dos indivíduos entregues aos caprichos do decoro injustificável, Iván Ilitch enxerga sua
proximidade com a morte como a oportunidade de desconstrução das coisas pelas
quais vivera.
Entre o sistema, que lhe imprimiu determinados hábitos e costumes, e a família,
que cresceu à sua imagem e semelhança, Iván Ilitch coloca-se ao mesmo tempo como
produto e como legitimador de um modo de vida que nunca achou por bem questionar
– por definição, um modo de vida hegemônico. Como bem constata Paulo Bezerra,
“família e burocracia, juntas, fazem parte de um mesmo sistema de valores, do mesmo
36
37
Id., p. 66.
Como bem interpreta Gramsci, “característico em Tolstói é precisamente que a sabedoria ingênua e
instintiva do povo, enunciada mesmo através de uma palavra casual, ilumine e determine uma crise no
homem culto” (GRAMSCI, 2002, p. 119). Tal expediente é retomado, por exemplo, na novela Senhor e
Servo, onde o proprietário de terras Vassili Andrêitch morre de frio em meio a uma nevasca na estrada,
mas, devido ao calor de seu corpo, acaba por salvar a vida de seu serviçal, Nikita.
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ciclo da morte no qual Iván Ilitch imolou-se em vida”.38 Criado longe desse sistema
funesto, Guerássim é o único ser humano que o protagonista deseja ter ao seu redor,
dispensando até mesmo a presença da mulher junto ao seu leito de morte: “Sai! Sai!
Deixa-me”39, diz a ela.
Em razão do terrível diagnóstico feito por sua própria conta, Iván Ilitch prescreve
a si mesmo, como uma espécie de cura, o total afastamento de tudo que remeta ao
modo como vivera. Deste modo, supera a banalizada concepção de morte recorrente em
seu antigo círculo social, “onde ela é reduzida a um desagradável acaso, a algo
indecente que só provoca dor e pavor.”40 Sem que houvesse tempo hábil para curar sua
vida, o que resta é conquistar uma morte que seja verdadeiramente sua, de um modo
como a vida, agora perdida, nunca fora:
[...] só depois de se sentir bem consigo mesmo, de reencontrar sua real
essência humana e superar a dor e o pavor da morte é que [Iván Ilitch]
conquista sua própria concepção de morte e consegue morrer. Tem
sua própria morte, sem afetação macabra, natural, totalmente
contrária à outra morte concebida em seu meio.41
Através do raciocínio que compara o diagnóstico da doença de Iván Ilitch ao
diagnóstico do sistema mórbido que se apropriou de sua vida e retirou sua
essencialidade humana, abre-se a possibilidade de se tecer algumas considerações
acerca do papel relegado ao direito em meio a esta encenação dramática. Quaisquer
ponderações desta natureza estão, evidentemente, à sombra de meras interpretações da
obra, em que pese as circunstâncias aludidas no primeiro capítulo. Bem antes de
questionar o direito vigente, a novela de Tolstói tem a clara intenção de trazer ao leitor
um homem cuja história de vida é “a mais simples e comum, e a mais terrível”.42 Porém,
38
39
40
41
42
BEZERRA, 2010, p. 138.
TOLSTÓI, 2011, p. 100.
BEZERRA, 2010, p. 148.
Id., ib.
TOLSTÓI, 2011, p. 29.
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se o fato de Iván Ilitch ser um profissional da área jurídica constitui ou não um puro
acaso isso é algo que, na presente análise, pouco nos interessa.43
Nosso intuito a partir de agora é, com base nos apontamentos anteriores, ligar
alguns dos pontos existentes entre narrativa e realidade, entre o trabalho realizado por
Iván Ilitch e a aplicação do direito de um modo mais geral. Para tanto, faz-se imperiosa
uma breve abordagem em relação a aspectos da teoria jurídica, fazendo-se referência,
sobretudo, à introdução da problemática da hegemonia no estudo do direito.
4
A HEGEMONIA NO DIREITO
A noção de hegemonia, aqui empregada a partir de uma perspectiva gramsciana,
se refere a uma Weltanschauung (visão de mundo) que exerce uma espécie de
dominação sobre as preferências de um grupo de indivíduos, e que se consolida através
da prática permanente levada a efeito pelos mesmos agentes que são por ela orientados.
Em outras palavras, a hegemonia pode ser expressa como um processo sutil de
dominação onde os próprios “dominados” contribuem para que o mesmo se mantenha,
na medida em que simplesmente reproduzem aquilo que lhes é prescrito – ideologias,
costumes, juízos morais etc.
Ainda que pareçam antiquíssimas, oriundas de tempos imemoriais, tais práticas
são muitas vezes oriundas de contextos específicos recentemente formados, e é tão
somente a exaustiva repetição com que são empregadas que lhes sedimenta.
Disseminada por diversas fontes, na arte, na economia, na política e até mesmo no
direito, a hegemonia é uma espécie de substância invisível – como uma doença que foge
a qualquer possibilidade de diagnóstico. A fim de que sejam obedecidos, os hábitos e
costumes reproduzidos por Iván Ilitch, por exemplo, não advém de um manifesto poder
coercitivo. Entretanto, onde a hegemonia é mais fortemente sentida – como no recém
reformado judiciário russo do século XIX – as práticas dominantes tendem a se
43
De fato, nem mesmo ao personagem isso parece interessar, como já anteriormente mencionamos por
ocasião de sua viagem à Petersburgo: “Viajava com um só fim: conseguir um posto de cinco mil rublos
de ordenado. Ele já não se atinha a nenhum ministério, diretório ou tipo de atividade. Só procurava um
cargo, um lugar para ganhar cinco mil rublos [...]” (Id., p. 42).
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consolidar de tal forma que passam a valer quase como lei, e então dificilmente alguém
se mostra capaz de contestá-las.
Considerando que o direito, “como a moralidade, a religião, ou a cultura,
encontra-se em sua totalidade na esfera do ideológico”44, a suposta neutralidade
assumida por Iván Ilitch no exercício do cargo é, na verdade, um posicionamento a
favor das formas dominantes – ou seja, por mais que pareça vazia, não é totalmente
desprovida de conteúdo. Mesmo que carregue o espectro da neutralidade, a prática
jurídica, em cujo emprego burocrático Iván Ilitch se revelará um mestre, “gera entre os
sujeitos uma concepção específica sobre a maneira correta de viver, sobre o que é o
direito”.45 Ao condenar o mundo exterior que jamais teve a curiosidade de conhecer,
desprezando-o como uma desnecessária perturbação do decoro, Iván Ilitch está de fato
afastando a possibilidade de se pensar além do que está posto pelo sistema. Aquilo que
está mais próximo da natureza, e portanto mais complexo e incalculável do que a lei
criada pelos homens, não cabe na funesta ritualística judiciária que emprega.
Com efeito, seria um erro acreditar que Iván Ilitch, individualmente, pensa o
direito desta ou daquela maneira. Iván Ilitch enxerga o direito através da maneira que
crê ser a única existente, a mesma que todos ao seu redor não cansam de compartilhar.
Seguindo este raciocínio, quem pode dizer que seu ideal de uma vida agradável contém
qualquer imperfeição? Obviamente ninguém que reconhece seu sucesso na carreira
poderia dizê-lo. Mas então se contrai uma doença misteriosa e se procuram inúmeros
médicos, todos eles indiferentes às suas aflições. A esta altura, Iván Ilitch tem diante de
si a seguinte questão: afinal, não têm eles também o direito de executar seu trabalho da
forma mais agradável possível, sem realmente se preocuparem com a saúde dos
doentes que lhes acorrem?
Iván Ilitch se submete às suas práticas, e acha que todas elas não passam de
encenações fajutas, irritantemente monótonas – mas, e seus procedimentos como juiz,
o que são eles senão o lamentável exercício da manutenção do mesmo? Se para o
44
45
BUCKEL; FISCHER-LESCANO, 2009, p. 474.
Id., p. 481.
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médico “tanto fazia, que ele, Iván Ilitch, estivesse mal”46, que mais se poderia fazer? O
que é o direito, ou a medicina, quando os homens não importam?
A aplicação da teoria da hegemonia no direito parece ser capaz de fornecer ao
menos uma resposta. Quando o homem não importa, certamente algo superior a ele
deve importar. A tarefa principal consiste então em determinar o que importa – no caso
de Iván Ilitch, seu modo de viver agradável e decoroso. Mas isso, conforme já
sublinhamos, não é matéria inata de sua personalidade, ou então nada teria lhe
parecido uma “imundície” nos tempos da Faculdade de Direito. Por mais que réus e
processos sejam diferentes, torna-se preciso manter o foco. A hegemonia assume o
papel de direcionar o interesse de seus agentes para aquilo que considera essencial. Seu
recado parece ser: “preocupe-se com os rublos, com a decoração da casa, com o
drapeado da cortina” – o trabalho, ao contrário, não é lugar de preocupações, é só fazer
aquilo que é de praxe, sem fugir do esperado. E então Iván Ilitch, concentrado no que
importa, cai de uma escada, e morre.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura, muito em função de sua capacidade de expressar situações tão
amplas (lembremos o absurdo em Camus, os labirintos sem saída em Kafka, ou mesmo
o realismo mágico latino-americano), pode ser caracterizada – sobretudo ao se falar em
interações próprias da teoria sistêmica – como uma perfeita “observação de segunda
ordem”.47 Se a produção de hegemonia é mesmo invisível aos olhos dos que por ela são
constrangidos, a literatura emerge como uma lente capaz de revelar suas práticas ou
desmistificar suas fontes, sem que seja preciso recorrer, por exemplo, a categorias
teóricas próprias das ciências sociais. Ao retratar o real sob um enfoque particular, a
obra literária nos mostra que o próprio real, por mais esmagador que seja, “não é senão
uma modalidade do possível”.48
46
47
48
Id., p. 55.
KORFMANN, 2003, p. 52.
OST, 2005, p. 34.
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Tolstói, sobretudo em sua última literatura, se propõe a escrever obras acessíveis
aos leitores nos mais distintos estágios de leitura, mas ao mesmo tempo sem deixar de
lado seu enorme talento em retratar a condição humana. Neste quesito, A morte de
Iván Ilitch é uma novela exemplar, pois possibilita, através de um texto aparentemente
simples, diversos níveis de interpretações. O panorama da obra aqui proposto, na
esteira das conexões possíveis entre Direito e Literatura, foi balizado, de um lado, pelos
significados atribuíveis às ações do sujeito, Iván Ilitch; de outro, pela relação destas
com a prática jurídica generalizada, ou seja, o objeto. Com aporte no conceito de
hegemonia, tomado a partir de uma releitura de Gramsci, empreendeu-se uma busca
pelas fontes do “imaginário jurídico”49 que permeia as práticas de Iván Ilitch e seus
pares.
Dito imaginário – mais monótono do que imaginativo – pode ser descrito como
um lugar estéril, solo infértil que guarda a menor relação possível com a realidade
fática. Não somente há uma separação aguda entre real e formal, mas nota-se também
uma supervalorização do último em detrimento do primeiro. Diante de uma natureza
morta, cuja existência só é percebida quando as funções vitais do corpo começam a
falhar, a dogmática aparece como soberana.
Neste contexto, o direito emerge como “relação social congelada e opaca”50, de
onde nada se pode esperar além da reprodução da mesmice – mesmos hábitos, mesmos
métodos, mesmos ritos. Essa monotonia, que não pode ser confundida com a
neutralidade, nada mais é do que um produto da cultura hegemônica, cuja capacidade
de atuação está sujeita ao trabalho de indivíduos como Iván Ilitch, que sempre
procuram evitar incômodos naquilo que fazem. Operadores assépticos do sistema, são
eles os responsáveis por difundir a concepção dominante, trabalho que prescinde de
qualquer inventividade, e que exatamente por isso pode ser tão agradavelmente
executado, sem problemas e sem angústias. Não passa pela cabeça de qualquer um
deles, por exemplo, que o direito pode, paradoxalmente, se encontrar fora do próprio
49
50
Noção formulada pelo sociólogo do direito A. J. Arnaud e tomada de empréstimo por François Ost
(2005, p. 20).
BUCKEL; FISCHER-LESCANO, 2009, p. 479.
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direito – não só em outras áreas do conhecimento, mas também nas distintas faces do
cotidiano.
Iván Ilitch é forçado a alimentar o sistema, mas de um modo substancialmente
diferente ao do regime servil. Trabalha naquilo que acredita ser o correto, mas que na
verdade é tão somente aquilo que os homens bem sucedidos pensam ser o correto.
Destituído da imagem de um Outro, paga o preço de, ao se olhar no espelho, não
reconhecer a si próprio. Tão certo quanto ao modo como a vida deve correr, somente à
hora da morte se mostra capaz de se questionar: “E se de fato toda a minha vida, a vida
consciente, não foi ‘como devia ter sido’?”.51
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Luiza Nascimento. A representação da morte na obra de Tolstói. 2011.
Dissertação (Mestrado em Língua e Cultura Russa) – Universidade de São Paulo,
FFLCH,
São
Paulo,
2011.
Disponível
em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde-16082012-120919/>. Acesso
em: 10 nov. 2013.
BARTLETT, Rosamund. Tolstói: a biografia. Trad. de Renato Marques. 1. ed. São
Paulo: Globo, 2013.
BEZERRA, Paulo. Alienação a auto-imolação em “A morte de Ivan Ilitch”. Fragmentos,
Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 137-149, jan./jun. 2010.
BUCKEL, Sonja; FISCHER-LESCANO, Andreas. Reconsiderando Gramsci: hegemonia
no direito global. Rev. Direito GV, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 471-490, jul./dez. 2009.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
v. 6.
KORFMANN, Michael. A literatura moderna como observação de segunda ordem: uma
introdução ao pensamento sistêmico de Niklas Luhmann. Pandaemonium
Germanicum, São Paulo, v. 6, p. 47-66, 2003.
OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo, RS:
Unisinos, 2005.
TOLSTÓI, Lev. A morte de Iván Ilitch e outras histórias. Trad. de Tatiana Belinky.
Barueri: Manole, 2011.
51
TOLSTÓI, 2011, p. 98.
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A MULHER MACHADIANA ESTREITANDO
AS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E LITERATURA
V ANESSA S ANTOS D E S OUZA 1
S ILVANA M ARIA P ANTOJA D OS S ANTOS 2
RESUMO: A violência contra a mulher perdura ao longo dos séculos como uma
espécie de pandemia e um mal banalizado, repassando valores patriarcais e
culpando a vítima pelas agressões sofridas – sejam elas físicas ou morais. O tema
repercutiu na produção de muitos escritores do século XIX, incluindo Machado de
Assis. Assim, com este trabalho objetivamos analisar a violência contra a mulher a
partir dos contos Mariana e O relógio de ouro publicados em Jornal das Famílias
em 1871 e 1873, respectivamente. Os contos em questão deixam transparecer que a
sociedade estruturada nos moldes patriarcal impõe valores, comportamentos e
penalidades à mulher que se desviam das normas de conduta. Apesar de o Estado
criar medidas de proteção à mulher, na contemporaneidade ainda é grande o
número de abusivas violências contra a mulher. Muitas ainda permanecem
resistindo à denúncias ou por darem crédito a ineficácia da lei, ou por se
resignarem no que julgam inerente a sua condição de mulher.
PALAVRAS-CHAVE: direito; literatura; gênero; Machado de Assis.
1
POR QUE DIREITO E LITERATURA?
A literatura possui uma plurisignificância que abrange diversas áreas do
conhecimento. Mais do que “imitar a vida”, a literatura “antecipa a vida”, quando em
uma obra consegue antever acontecimentos sociais, intelectuais ou filosóficos, partindo
da premissa da sensibilidade artística. O direito, por sua vez, também se agarra a
1
²
Graduanda do Curso de Letras/Português da Universidade Estadual do Piauí – UESPI.
Profª de Literatura de Língua Portuguesa da Universidade Estadual do Piauí – UESPI.
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diversas pontes do conhecimento, pois ele por si só não efetiva seu objetivo de
jurisprudência. Para tanto, a ligação com outras áreas são necessárias: a filosofia, a
história, a economia, a lingüística, a psicanálise, a sociologia e a literatura servem para
repensar a moralidade e os valores éticos além da normatividade Constitucional.
Já a literatura, além dos laços correlatos com as outras áreas citadas acima, ainda
dispõe da autenticidade e expressividade individual; por essas vias se percebe que o
encontro do direito com a Arte literária institucionalizam um estudo que é conveniente
para ambas as mesmas. A literatura denotando uma função social ao engajar sua
linguagem ficciosa no que podem os operadores do direito compreender a
aplicabilidade de suas leis sem o prisma da não-normatividade. Não obstante, apesar
das diferenças, o encontro não casual da literatura com o direito decorre por uma razão
explícita: os anseios que tais possuem por justiça. A primeira, sob o discurso velado da
poesia, e a segunda, na difusão do estabelecimento de uma ordem utópica contra as
desigualdades.
Esse estudo parte de um tripé ramificado: O direito na literatura, que procura
extrair temas jurídicos numa obra literária e a partir dela compreendê-los; o direito
como literatura, que é a própria produção jurídica em termos literários; e o direito da
literatura, que cuida dos direitos do autor, do ponto de vista da garantia e certificação
de sua obra.
Para nós interessa-nos somente o primeiro, pois a partir dessa noção de direito
na literatura é que poderemos compreender, em vias de fato, a iniqüidade de uma
época em que as leis defendiam os homens que matavam “por amor”.
Para o presente artigo foram escolhidos dois contos Machadianos que deslindam
o viés moral do século XIX, ainda que se apresentem no seu caráter atemporal, visto
que apesar de tais legislações já terem sido banidas, a violência contra a mulher é um
fato atual e preocupante.
O relógio de ouro e Mariana foram publicados originalmente em jornal no ano
de 1873 e 1891, respectivamente. Ambos os contos trazem mulheres que sofreram
algum tipo de violência. A primeira uma violência física e a segunda um mal psíquico,
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provocado justamente pela guia de comportamento que a sociedade impõe para a
mulher, sobretudo se ela for viúva.
Mais desses causos Machadianos serão deslindados no decorrer deste artigo, por
enquanto esclarecemos que com esta pesquisa temos o propósito de analisar como a
literatura pode contribuir para desvendar as carências legislativas de uma época, ou
mais ainda como a literatura é capaz de subsidiar a vida através do terreno fictício.
2
A APLICABILIDADE DAS LEIS NUMA REBOBINADA HISTÓRIA:
INVERSÃO DE PAPEIS.
Durante a passagem do Brasil Colonial para um país republicano as agressões
movidas por “amor” não era tão comuns. Entretanto, com a difusão da imprensa as
manchetes de jornais passaram a sobressaltar a sociedade carioca com algumas notícias
sangrentas. Isso porque no século XIX as Ordenações Filipinas que ainda vigoravam na
época defendiam o homem que matava a esposa e o amante.
Em 1830, com a implantação de um Código Criminal do Império, o adultério
passou a ser punido em termos legislativos – com pena de um a três anos de prisão com
trabalho forçado. Embora a punição fosse a mesma para o homem ou mulher adúltera,
a mulher sempre sofria mais moralmente; um reflexo disso está na produção de
crônicas da época, em que tratavam a imagem da mulher como ser tentador que
impulsiona o homem ao erro.
No Código Penal de 1890 começou uma pequena abertura que amenizavam os
crimes passionais, sobretudo perante o argumento de privações de sentidos no
momento do crime. No entanto a mulher, nestes casos, era sempre vista como culpada,
mesmo quando vítima. Na literatura, os adjetivos atribuídos as personagens femininas
denotavam qualidades um tanto depreciativas no âmbito da moral, valendo ressaltar a
descrição dada por Bentinho a Capitu, impossível de esquecer “seus olhos de cigana
oblíqua e dissimulada”, revelando uma das várias características “típicas femininas”
que os escritores costumavam batizar em suas personagens.
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A tendência da época era defender os homens nesses crimes, sendo que “a outra
parte das partes” nunca era ouvida. A punição vinha para mulher normalmente sem
possibilidade de defesa, já que até a produção dos cronistas também não era a favor da
“impunidade em casos de infidelidade”.
Em 1889, entretanto, se passou a questionar a postura e a impunidade dos
assassinos “por amor” – ou seriam assassinos do amor? Nota-se a mudança de visões
refletidamente através das crônicas desse período, em que até os autores que antes
defendiam os agressores agora os condenam, como é o caso de Raul Pompéia.
Outros autores como João Luso, Coelho Neto e Lima Barreto acatavam sem
piedade os uxoricidas. Indo além, Lima Barreto até provocava o feminismo por não ir
avante a favor da própria defesa.
Apesar das muitas controvérsias inseridas nessa época, tanto legislativa quanto
literária, começou-se aí a tentativa do início de uma liberdade – o amor além do senso
não contratual e outras vertentes.
Em 2006 entrou em vigor a Lei nª 11.340/2006, mais conhecida como Maria da
Penha, que trata de punir a violência doméstica e familiar contra a mulher, seja ela de
qual for a intensidade, fato que contribuiu para que passasse a existir, pelo menos no
terreno legislativo, a consciência de que crime cometido contra a mulher é também um
atentado contra os direitos humanos, conforme estatui o art. 6ª da LMP. De acordo
com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2011 mais de 26 mil prisões em
flagrante e quatro mil prisões preventivas após a execução da Lei Maria da Penha.
Porém, em muitos estados o Ministério Público dá prioridade à conciliação, não à
denúncia, além do fato de muitas delegacias da Mulher não estarem aptas ao devido
funcionamento. Apesar de ser referência para o mundo, a Lei Maria da Penha falha no
quesito denúncia: muitas mulheres ainda permanecem sofrendo agressões por acharem
que isso diz respeito a sua condição de mulher. O problema não é legislativo, mas
também cultural, pois faz parte de uma cultura patriarcal que continua se alastrando,
mesmo estando já bastante disseminada e arraigada na sociedade. É bem difícil
convencer a essas mulheres que o Estado as protege, pois há muitas lacunas e
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ineficácias nas leis em não cumprir algumas medidas preventivas que de fato previnem
um mal premeditado nestes casos.
Neste sentido, as mesmas mulheres se desarmam da condição de vítimas e vão as
ruas reivindicar a ruptura do silêncio e exigir punições mais severas para os agressores.
O século XXI está sendo marcado por manifestações feministas que agora não
reivindicam mais igualdade salarial, direito de voto, ou mesmo a oportunidade de
estudar ou trabalhar. A mulher do século XXI já tem tudo isto, mas se mantém presa
aos moldes culturais dos séculos anteriores, de onde a sociedade ainda perpetua muitos
valores de submissão e dominação sexual. Portanto, o que vale agora é se ver livre das
ameaças de estupro, de agressões, de torturas pelo simples fato de ser mulher. Um grito
de “Agora ou Nunca” vai às ruas para dizer que não quer mais assistir os índices de
violência contra a mulher dando ibope na TV pelo número espantoso que estampa a
chamada das reportagens – e muito menos protagonizá-lo. Se não dá para mudar o
passado, ou dar “direito ao esquecimento”, que pelo menos a conscientização dos
homens comece a não trazer vítimas futuras – que não sejam elas suas próprias filhas
ou suas próximas esposas.
3
O DIREITO NA LITERATURA: CONTOS MACHADIANOS
DESLINDANDO ‘CAUSOS’ DE INTERESSE JURÍDICO
A obra de Machado de Assis inclui-se na representação da sociedade carioca do
século XIX. Como vimos, a lei ainda protegia o homem agressor, e alguns literatos da
época transformavam a vítimas em algozes em suas crônicas de jornais. Machado,
entretanto, sempre se utilizou da ironia para retratar o que decerto o incomodava. Os
dois contos escolhidos para uma breve análise nesse artigo revelam o caráter
desinibidor de um assunto ainda pudico para o período em que se instaurava. A estética
da recepção explica: na época em que foi publicado, a interpretação pode não ter sido a
mesma de quando hoje, alertados sobre a violência mais visível e desmascarada contra
a mulher. Mas aí vai dois “causos” Machadianos que contribuem para a discussão do
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direito, sobretudo no que diz respeito à perpetuação da idéia de que a violência se inicia
com os valores patriarcais dogmáticos.
3.1
Mariana: Viuvez é atestado de infelicidade?
“O que será feito de Mariana?”
Assim começa o conto de Machado de Assis escrito em 1891 na principal via de
comunicação da época: Os Jornais das famílias. Foi justamente no século XIX que o
gênero conto começou a se popularizar, já que antes prevaleciam as publicações de
romances em folhetins. Machado costumava publicar seus contos em jornais para
depois reuni-los em coletânea.
“O que será feito de Mariana?”
A pergunta de Evaristo se repete também duas vezes ainda no primeiro capítulo.
Na condição de “ex amor”, após ter passado ausente dezoito anos na cidade parisiense,
Evaristo retorna ao Brasil sob a desculpa de “ver o novo aspecto das cousas”, depois de
um repórter lhe falar da revolução no Rio de Janeiro, referindo-se mais uma vez ao
relato documental de Machado sobre a transição do Brasil-Colônia para a república.
A dúvida de como se encontrava Mariana o faz procurar informações sobre ela:
soube que ainda morava na mesma casa, encontrava-se bem casada e ainda bem
disposta, apesar dos seus quarenta e oito anos. A partir daí, como narra o autor, a
Evaristo:
... Crescera-lhe o desejo de ver Mariana. Que olhos teriam um para o
outro? Que visões antigas viriam transformar a realidade presente? A
viagem de Evaristo, cumpre sabê-lo, não foi de recreio, senão de cura.
Agora que a lei do tempo fizera sua obra, que efeito produziria neles,
quando se encontrassem, o espectro de 1872, aquele triste ano da
separação que quase o pôs doido, e quase a deixou morta?
(MACHADO, 2011, p.81).
Mariana, após a separação do amado, ingeriu veneno. O outro não pode se
despedir nem saber o que acontecera: já embarcava. Depois anos após ela se casa com
Xavier, a quem diz não amá-lo.
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No segundo capítulo do conto os dois se reencontram na casa de Mariana,
vertendo um diálogo de saudades e revelações. Mais ainda porque:
Nenhum perguntou nada que se referisse ao passado, porque ainda
não havia passado; ambos estavam no presente, as horas tinham
parado, tão instantâneas e tão fixas, que pareciam haver sido
ensaiadas na véspera para esta representação única e interminável
(MACHADO, 2011, p. 82).
Num primeiro momento, Mariana diz: “Morria por ti. Há uma hora que te espero,
ansiosa, quase chorando, mas bem vês que estou risonha e alegre, tudo porque o
melhor dos homens entrou nesta sala”. A todo instante a personagem revela um amor
incandescente por Evaristo, o que lhe parece ser recíproco, pois o mesmo insiste que ela
ama o marido, e se entristece por isso, ao que ela desponta: “Xavier é meu marido; não
hei de mandá-lo embora, nem castigá-lo, nem matá-lo, só porque eu e você nos
amamos”. E por fim, as desconfianças do antigo amor se findam após o juramento da
perpetuidade do sentimento, assomado a reconciliação de beijos e contatos, que são
interrompidos por um chamado na porta.
Era o anúncio de um mau súbito de Xavier. A esposa vai socorrê-lo; Evaristo acha
prudente se abster da situação. Despede-se e já encontra Mariana terminantemente
mudada, como se percebe no seguinte trecho:
Nem os olhos nem a mão de Mariana revelaram em relação a ele um
impressão qualquer, e a despedida fez-se como entre pessoas
indiferentes. Certo, amor acabara, a data era remota, o coração
envelhecera com o tempo, e o marido estava a expirar; mas, refletia
ele, como explicar que, ao cabo de dezoito anos de separação, Mariana
visse diante de si um homem que tanta parte tivera em sua vida, sem o
menor abalo, espanto, constrangimento que fosse? Eis aí um mistério
(MACHADO, 2011, p. 86).
Após a morte de Xavier, Evaristo ainda tentou fazer visitas a Mariana, mas ela
encontrava-se incomunicável. Observou os comentários dos parentes, sobretudo
quando diziam: “vê-se que se amavam muito”, acreditando no real estado de abalo da
viúva.
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Porém, ainda assim, quis fazer uma última tentativa após dois meses da morte do
marido. Não tendo sucesso, a encontrou na rua, mas ela fez que não viu, tal como revela
o trecho:
A pouca distância viu sair da igreja do Espírito Santo uma senhora de
luto, que lhe pareceu Mariana. Era Mariana; vinha a pé, ao passar pela
carruagem olhou para ele, fez que o não conhecia, e foi andando, de
modo que o cumprimento de Evaristo ficou sem resposta. Este ainda
quis mandar para o carro e parou quando já havia passado a igreja e
Mariana ia um grande pedaço adiante. Apeou-se, não obstante, e
desandou o caminho; mas, fosse respeito ou despeito, trocou de
resolução, meteu-se no carro e partiu (MACHADO, 2011, p. 86).
No fim, Evaristo divaga com um amigo a respeito das peças que “caem e outras
que ficam no repertório”, reafirmando o valor da obra Machadiana que não termina
com o fim de sua estrutura. Em nenhum momento o autor deixa com clareza o que
ficou na vida de Mariana e Evaristo, mas deixa pistas suficientes para que o leitor saiba
que não ficaram juntos por uma convenção social, sobretudo no que diz respeito a
viuvez do século XIX.
Retomando a pergunta inicial do tópico, se viuvez é atestado de infelicidade, o
que se pode dizer é que: o causo de Mariana, embora esteja ilustrado no terreno ficcioso
do conto, não se distancia da realidade. Mariana, vencendo as vontades do amor, se
vestiu do luto convencional, o que se espera de uma recém viúva. A violência e as
imposições às mulheres começam no que dizem respeito aos postulados sociais que se
direcionam a elas com interesse de conduta. Um comportamento diferente do de
Mariana abriria espaço para especulações de traições ou outras atitudes reprovativas.
Uma mulher do século XXI tem que ser fiel ao marido quando vivo e quando morto,
mesmo que o contrário teste de fidelidade não aconteça no inverso, como veremos na
análise do conto a seguir.
3.2 Agressão por cogitação de traição: quando há o medo de
prognosticar na companheira uma atitude habitual nele próprio
O relógio de ouro trata de um terrível impasse entre Luís Negreiros e Clarinha. O
autor do Otelo Brasileiro acertou novamente ao criar esse conto: o ciúme retumbante
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do personagem assusta, e faz até com que o leitor possa cogitar realmente na traição da
mulher.
O relógio lustroso e elegante que aparece sobre uma mesa do quarto desde já
causa desconfiança. Primeiramente Luís Negreiros tem uma reação colérica, para só
depois reatar a paciência e perguntar de quem era o relógio. Como ela não responde o
homem fica terrivelmente enfurecido, e após atirar o relógio ao chão ele continua a
perguntar, mas ela permanece negando saber de onde vem o ‘fatal relógio’. A agressão
se evidencia no seguinte trecho:
Luís Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; contevese. A mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa
pequena. Não se pôde conter Luís Negreiros. Caminhou para ela, e,
segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse:
— Não me responderás, demônio? Não me explicarás esse enigma?
Clarinha fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe
soltou os pulsos que estavam arrochados. Noutras circunstâncias é
provável que Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse perdão de a
haver machucado. Naquela nem se lembrou disso; deixou-a no meio
da sala e entrou a passear de novo, sempre agitado, parando de
quando em quando, como se meditasse algum desfecho trágico
(MACHADO, 2013).
Depois, ao jantar, Luís Negreiros ainda se torna esperançoso de que o relógio
viera do sogro, mas Clarinha continua indiferente sobre a origem daquele instrumento
horário. Durante a ceia, o visível silêncio de Clarinha prossegue e causa desconforto até
ao pai, Sr. Meireles:
— Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo
impaciente. Teu marido está alegre tu pareces-me abatida e
preocupada. Que tens?
Clarinha não respondeu: Luís Negreiros, sem saber o que havia de
dizer, tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles
levantou os ombros.
— Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que
é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes que nem a sombra
me verão.
— Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela
mulher que desatou a chorar (MACHADO, 2013).
Terminado o jantar, Luís Negreiros ainda tencionou saber o que afinal se passava,
já que desde cedo o misterioso relógio causava discórdias entre o casal, e até Sr.
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Meireles percebera que havia algo de estranho com a filha. O próprio Luís Negreiros
havia, por algum momento, pensado que o relógio seria de presente para ele, já que no
dia seguinte completaria anos. Porém, estando enganado e a esposa ainda mais reclusa
no aposento noturno, ele chegou-se a ela ainda mais colérico e impaciente, proferindo:
— Clarinha, disse ele, este momento é solene. Responde-me ao que te
pergunto desde esta tarde?
A moça não respondeu.
— Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua
vida.
A moça levantou os ombros.
Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido
lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu:
— Responde, demônio, ou morres!
Clarinha soltou um grito.
— Espera! disse ela.
Luís Negreiros recuou.
— Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao
teu escritório já te não achou lá: foi o que o portador me disse.
Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato
estas linhas:
Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança.
Tua Iaiá (MACHADO, 2013).
Aí terminado o conto, percebe-se que a razão da desconfiança foi invertida e
justificada: quem afinal tivera uma amante era Luís Negreiros, o agressor.
O conto não toma partido de nenhum dos lados e não faz discurso panfletário.
Pelo contrário, reflete apenas, com lealdade e fealdade a situação em que muitas
mulheres se encontram desde a virada dos séculos: as traições dos maridos e a total
desconfiança que as esposas façam o mesmo, partindo para agressões fundadas em
ciúmes e precipitações.
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enquanto em O relógio de ouro há a execução da violência física, em Mariana se
extrai uma tortura de teor psicológico, quando a sociedade impõe valores e
comportamentos que se desviam do desejo natural do ser humano (neste caso ainda
mais subjugada por ser mulher]. No segundo conto há a explícita agressão narrada nos
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trechos citadas acima, justificáveis por momentos de furor do personagem ao imaginar
a esposa sendo presenteada pelo amante. Tudo não passava de um prognóstico mal
dado: Luís Negreiros é quem tinha uma amante, fato que Clarinha descobriu e a fez se
calar em sofrimento, manifestando-se enfim apenas em defesa a própria vida, quando o
marido resolve ameaçá-la por ter perdido a paciência com tanto silêncio e mistério.
Machado de Assis, com o artifício do não-dito literário, conseguiu “inocentar” Clarinha,
quando ao final do enredo se confirma a traição por parte do agressor, passando-a da
sua caracterização de dissimulada a vítima.
A leitura dos contos Machadianos contribui para uma reflexão crítica a respeito
da condição da mulher na contemporaneidade, cujas pesquisas recentes divulgadas
pela ONU trazem dados alarmantes sobre a violência contra a mulher: “7 a cada 10
mulheres no mundo todo sofrerão algum tipo de violência durante a vida”, afirma a
Revista ISTO É. É possível dizer por fim que a mulher sofre violência antes mesmo de
nascer, a partir do momento em que foi concebida num mundo de valores arraigados
na supremacia incontestável do ‘provedor’, virando séculos em permanência e
resistência. Cabe a literatura, na sua função formadora do homem, de tornar público
tais relatos de violência, inserir a conscientização no leitor da ruptura do silêncio, e
assim evitá-los que continuem banais ou intrínsecos da condição feminina. E ao direito,
a partir do tripé literário (autor, obra, leitor), buscar soluções além do que já foi dito na
legislação ou no poder judiciário. A literatura, embora não seja realidade, “imita a
vida”, a e vida de muitas mulheres encontram-se ainda em situação de descaso por elas
não saberem como usar as leis que a favorecem, ou porque não acreditam na existência
de um Estado que de fato as protejam, ou porque absorveram os valores patriarcais de
tal forma que acabam considerando essa violência parte comum da vida.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Contos escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2011.
ASSIS, Machado de. O relógio de ouro. Disponível em: <http://machado.mec.gov.br/
images/stories/html/contos/macn002.htm#orelogiodeouroPEREIRA>. Acesso em: 13
nov. 2013.
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MONDARDO, Dilsa de. 20 anos rebeldes: o direito à luz da proposta filosófica
pedagógica de L. A. Warat. Florianópolis: Diploma Legal, 2000.
PEREIRA, Gilene Margarete. Resignação feminina ou disseminação?: Uma leitura de
"O relógio de ouro", de Machado de Assis. Disponível em: <http://www.assis.unesp.br
/Home/PosGraduacao/Letras/RevistaMiscelanea/v4/v4cilene.pdf>. Acesso em 13 nov.
2013.
ROCHA, Francisco Idílio Ferreira. Constitucionalidade da Lei Maria da Penha.
Disponível em: <http://www.uniaraxa.edu.br/ojs/index.php/juridica/article/view
/61/53>. Acesso em: 13 nov. 2013.
DAUDÉN, Laura. Mulheres sobre ataque. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/
reportagens/279673_MULHERES+SOB+ATAQUE>. Acesso em 5 set. 2013.
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OS MISERÁVEIS: O CICLO QUE OS TORNAM
F ELIPE DA S ILVA A NTUNES 1
N EURO J OSÉ Z AMBAN 2
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo abordar a relação entre a miséria e
atos infracionais. Em um primeiro momento, talvez, soe como uma afirmação de
certo modo preconceituosa, na verdade este preconceito é real. Para tanto, basta
observar-se as proporções que chegaram as casas penitenciárias, que estão
superlotadas de infratores pobres, com pouca ou nada de escolaridade, e
miseráveis, resultando em que “não se tenha lugar para os criminosos de colarinho
branco”. As gritantes desigualdades que assolam a sociedade brasileira, que
embora tenham diminuído sensivelmente, estão materializadas na perversa
situação em que se encontram as penitenciárias do país. Eventualmente são
divulgadas estatísticas estarrecedoras que impressionam e reportagens de forte
repercussão. A reação do Estado é tímida e insuficiente, como será destacado a
seguir. Porque situações dessa natureza persistem no decorrer das décadas sem
ações ou preocupações sérias e exequíveis? E ainda, por fim, tentar-se-á indicar
meios, práticos e eficazes, para a inclusão destes que a sociedade, há muito tempo,
tem rejeitado.
PALAVRAS CHAVE: sistema prisional; identidade infracional; infrator.
1
INTRODUÇÃO
Uma família, muito pobre – no sentido material da palavra – vê-se sem
mantimentos em sua dispenssa e sem dinheiro para comprar. Tal familia, cuja é
1
2
Acadêmico do Curso de Graduação em Direito - Faculdade Meridional (IMED) de Passo Fundo/RS.
Membro do projeto de pesquisa: Multiculturalismo, Minorias e Espaço Público, Coordenado pelo Prof.
Dr. Neuro José Zambam. E-mail: [email protected].
Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor dos Cursos de Direito e Administração da Faculdade
Meridional – IMED de Passo Fundo. Membro do Grupo de Trabalho, Ética e cidadania da Anpof
(Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Filosofia). Pesquisador da Faculdade
Meridional. Coordenador do Grupo de Pesquisa: Multiculturalismo, minorias e espaço público. E-mail:
[email protected]
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composta pela mãe, seu filho e seu irmão, não encontra subterfúgios para saciarem a
sua fome. O tio, que já não aguenta mais tal situação, obriga-se a roubar um pedaço de
pão, sendo então, após isso, preso. Durante o cumprimento de sua pena, que já era
árdua o bastante pelos motivos que a causaram, é ainda mais desumana pela maneira
que são impostos os trabalhos, bem como pela arbitrariedade dos comandantes da
penitenciária, então, Jean Valjean – o homem que fora preso – decide que o melhor a
fazer é tentar fugir do restante da pena. Recapturado pelos guardas, tem a sua pena
majorada, totalizando, desta forma intermináveis 19 anos de prisão, com trabalhos
desumanos e com o mínimo de alimento, o suficiente para manter os detentos com
força para trabalhar.
Pois bem, o fato supranarrado retrata-se no filme Os miseráveis de Bille August,
drama que serve como um dos embasamentos para a confecção deste artigo.
Analisando o ocorrido, pode-se concluir que a situação caótica pela qual a família de
Jean Valjean enfrentava já era infeliz o bastante, por não terem trabalho nem ao menos
o que comer. Ele roubou – ainda que um pedaço de pão – é verdade, mas seria o
suficiente para encarcerá-lo por quase 20 anos?
Não esquecendo que o fato deu-se na França, mudaremos o cenário do ocorrido,
trazendo a situação para o nosso Estado brasileiro, mudando, de igual forma, o tempo
do ocorrido – que no filme se dá em meio à revolução protagonizadora do início do
século XIX – e tentaremos colocar nos dias de hoje, haja visto que não existem
“porquês” para ánalise estrita do filme, ou seja, a legislação francesa e de mais de dois
séculos, isto por que o presente estudo direciona-se à estudantes da nossa legislação.
2
UMA VIDA MISERÁVEL:
A PORTA FECHADA PARA AS OPORTUNIDADES
Obviamente é necessário e imprescindível lutar contra o crime, mas a luta
somente será eficiente, de modo a dar uma resposta positiva, a partir do momento em
que combater o crime passe a ser uma “segunda prioridade”, redirecionando, deste
modo, as forças estatais para combater as causas que resultam no crime. Proporcionar
melhores condições de vida para a população, dando-lhe saúde, trabalho, educação e
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275
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
lazer – como se pode afirmar, tais garantias estão previstas na nossa Constituição
Federal de 1988, elencadas como Direitos Fundamentais, que são, destaca-se, a
essência do DNA de um Estado Democrático de Direito, e não meras “regalias” que
ficam à discricionariedade da boa vontade estatal.
Parafraseando o supra explicitado, um paciente procura um especialista porque
sente fortes dores abdominais. O médico, sem dar muita atenção à exames a fim de
diagnosticar as causas da moléstia, receita analgésicos extremamente fortes. As dores
passam, corolário da grande quantidade de medicamentos que amenizam a dor. Porém,
enquanto isso, a causa das dores vão se proliferando no organismo do paciente,
silenciosamente, pois este já não sente mais as dores, que vinham para informar que
algo não estava certo. O medicamento, com o passar do tempo, não surte mais os
efeitos esperados, o que faz o paciente procurar um outro médico. Este, por sua vez,
antes de diagnosticar qualquer droga farmacêutica, examina incessantemente o
paciente, até que descobre o que estava causando as dores. E aquilo, que no princípio
de tudo era um pequeno tumor, já tomou conta de praticamente todos os órgãos do
paciente, ao qual só resta agora, esperar os seus últimos dias de vida.
Trazendo a paráfrase para o nosso tema, estabelecemos o paciente como a
sociedade, o médico como o nosso Estado, e o câncer como as mazelas sociais – e aqui
incluem-se a miséria, os crimes e os criminosos. Pois bem, se o Estado se preocupar,
efetivamente em buscar as causas das lotações penitenciárias - por exemplo, o presídio
central de Porto Alegre – considerado o pior do Brasil em 2012, segundo Machado
(2012) ultrapassa os 200% de sua capacidade3 - indubitavelmente a situação da
sociedade irá melhorar. Isso porque basta olharmos para o interior das celas, onde,
segundo a estatística supra, um espaço que é destinado a dez detentos existem mais de
vinte, veremos que a grande maioria já encontrava-se em uma situação de miséria e
sofrimento, pobre no sentido material da palavra e ainda, por vezes, sem uma base
familiar para lhe prestar auxílio. Sem oportunidade, pois lhe faltaram ensinamentos,
educação e outras coisas indispensáveis à toda e qualquer criança, esta tornar-se-á um
adulto sem ambições, que preocupa-se somente em conseguir o sustento de hoje,
3
MACHADO, 2012.
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conseguindo colocar comida na mesa da sua família. A miséria é fruto do próprio
capitalismo, visto que o poder econômico, indubitavelmente acaba por se acumular em
pequenos percentuais da sociedade, enquanto a grande maioria carece até mesmo dos
serviços básicos. Esse fruto capitalista tem sua consequência explicada por Augusto
Jobim do Amaral4:
Quando determinadas pessoas tornam-se incapazes de gozar o jogo
consumista, elas são os “objetos fora do lugar” e agora figuram como
“novos impuros”. Duas políticas estatais contraditórias, no viés de
Bauman5, são difundidas para a preservação da pureza da vida
consumista. Por um lado, exige-se o aumento da liberdade de
consumo,
e
nada
pode
obstar
(vide
privatizações,
desregulamentações...); contudo, por outro prisma, deve-se lidar com
as conseqüências da primeira postura e a isso o discurso público dá o
nome de “lei e ordem”. Aqueles que não se encaixam no modelo agora
devem ser “administrados” e mantidos em xeque, e a sua remoção
deve ser desempenhada ao menor custo possível. Como se sabe que a
remoção do excedente, do refugo, mostra-se menos custosa do que seu
reaproveitamento, a isso deve ser dado prioridade. Assim é mais
barato excluir e encar(cer)ar os consumidores falhos (grifo nosso).
A partir do momento em que o Estado passar a se preocupar em qualificar a mão
de obra da sociedade, principalmente daqueles que estão mais excluídos desta, aqueles,
na medida em que se qualificam, conseguiram um bom emprego, e terão meios para a
subsistência sua e de sua família. Trabalhando, este terá um certo poder aquisitivo, que
por sua vez, gerará impostos para o Estado.
Desta forma, não se pode dizer que seriam “gastos” tantos reais com a educação, e
sim que o Estado estaria fazendo um investimento, do qual, logo mais será
recompensado. E ainda, evidentemente iria diminuir os índices de criminalidade.
Proporcionar novas oportunidades àqueles que de muito vem sendo excluídos
pela sociedade, é um progresso que, a um Estado que se DIGNA Democrático de
Direito, não surge como uma opção, e sim como uma obrigatória necessidade. Prevenir
é melhor que remediar, como já nos mostrava Beccaria6 (1763):
4
5
6
AMARAL, 2008, p. 49.
BAUDRILLARD apud AMARAL, 2008.
BECCARIA, 2002.
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É preferível prevenir os delitos a ter de puni-los; e todo legislador
sábio deve antes procurar impedir o mal que repará-lo, pois uma boa
legislação não é mais do que a arte de proporcionar aos homens a
maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que
se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta
existência.
Cabe à sociedade como um todo, e a cada um de nós, individualmente lutarmos
pela melhorar social do nosso Estado Democrático de Direito. O fato de vivermos em
sociedade ressalta a importância que cada um exerce para o crescimento desta, pois ela
é composta, não pelo seu todo em si, mas por cada unidade. Seria uma espécie de “bem
contra o mal”, na qual a família deve ensinar a luta contra os desejos errôneos do nosso
“id”. Freud, no século XIX, em O mal estar da civilização7 conduz:
[...] é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída
sobre a renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a
não-satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de
instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo
dos relacionamentos sociais entre os humanos e, como já sabemos, é a
causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm que lutar.
E, quando essas medidas não forem suficientes para reprimir e coagir a execução
das atitudes infracionais, é necessário punir, mas punir como inteligência, propiciando
meios para que o infrator possa se recuperar e mudar o seu destino, que
hodiernamente, não mostra nenhuma mudança de diagnóstico, ou seja, a dor estará
“amenizada” enquanto o detento estiver preso, mas o que se tem feito para “exterminar
com este câncer social?”.
3
A IDENTIDADE INFRACIONAL QUE IMPREGNA
NO DNA DO INFRATOR
Não havendo outro meio eficaz para reprimir os índices de violência e inibir a
criminalidade, se faz necessário uma punição mais severa. Destas cabe ressaltar a pena
privativa de liberdade, que, no sistema penal brasileiro, constitui a medida mais
gravosa de punição. Então, cabe, agora, uma análise, não só durante a aplicação desta,
7
FREUD apud CARVALHO, 2008.
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mas também, e principalmente, como deveria, o Estado proceder após o término da
pena. Esta pena constitui o máximo de poder punitivo do Estado – jus puniendi. Isto
ocorre porque é um direito que confronta diretamente com o jus libertatis, ou seja, o
direito de liberdade do indivíduo. Deste modo, é necessário uma “remodelação” das
normas que acabam por eleger os indesejados da sociedade, ou seja, aquelas pessoas
das quais queremos nos livrar, e pelo fato da sociedade ser demasiadamente “boa”,
“civilizada” e “cristã”, opta por não aniquilar estes fisicamente, pois seria algo muito
indigno, é melhor lançá-los “em um local melhor”, qual seja, o cárcere8.
Cabe, primeiramente, se é que existe a possibilidade de escalonamento dessas
obrigações, à família reprimir a violência, introduzindo valores morais no caráter de
seus descendentes. Não afastando, em momento algum, a responsabilidade estatal em
prestar assistência, educação, dar emprego e condições viabilizadoras de um
desenvolvimento pleno.
O fato de vivermos em sociedade ressalta a importância que cada um exerce para
o crescimento desta, pois ela é composta, não pelo seu todo em si, mas por cada um de
nós. Seria uma espécie de “bem contra o mal”, na qual a família deve ensinar a luta
contra os desejos errôneos do nosso “id”. Freud, no século XIX, em O mal estar da
civilização9 conduz
[...] é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída
sobre a renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a
não-satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de
instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo
dos relacionamentos sociais entre os humanos e, como já sabemos, é a
causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm que lutar.
E ainda, esse mesmo renomado autor, conclui, a sua linha de raciocínio, em O
futuro de uma ilusão10: “toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia
aos instintos”.
8
9
10
CARVALHO, 2008.
FREUD, apud CARVALHO, 2008.
Id.
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Quem tem o poder de fazer a sociedade se erigir sobre a coerção aos instintos, da
qual Freud fala, é justamente a família, pelo fato de que esta está mais próximo do
indivíduo, é ela quem passa as primeiras “regras da vida”, bem como o dever ser que
necessita ser seguido para que se tenha uma sociedade harmônica.
É preciso, primeiramente saber dosar as penas, não as definindo nem além, nem
aquém daquilo que se faz necessário em cada caso, prezando-se sempre pela
reabilitação social, de modo que a pena tenha um caráter ressocializador do indivíduo
infrator, possibilitando, desta forma, que, ao término do cumprimento da sua sentença,
ele possa conviver novamente em sociedade. Para que isto ocorra, é necessário um
“evoluir” por parte da sociedade, deixando de lado os preconceitos, que tentem a
rotular um ex detento, de modo que ele fique marcado para sempre. Mas também, se
faz necessária, uma intervenção estatal, de modo que se criem políticas voltadas para
esta fase da vida do detento, que pode ser considerada o marco “x”, onde ele pode
deixar a vida criminosa ou voltar para ela.
As políticas de egresso podem, até mesmo, ser consideradas mais importantes
que a própria pena, pois é justamente ela que, oferecendo, principalmente, educação e
emprego. Obviamente também devem-se preocupar com outros problemas, como dar
um acompanhamento psicológico à família, para que aceite o delinquente novamente
em seu seio, por exemplo - aos detentos, irá garantir uma ressocialização daquele que
cometeu um crime.
Se o detento, ao sair da prisão, não encontra emprego, pelo fato das pessoas não
empregarem um ex-presidiário em sua empresa, casa ou escritório, seja por
preconceito ou não, mas o fato é que ninguém se propõe a isto, ele terá que encontrar
outro meio para sobreviver, garantir o seu sustento e ainda, em repetidos casos, dar
comida e suprir as necessidades básicas de filhos e mulheres, ao não conseguir um
emprego, em grande maioria das vezes, terá que cometer os mesmos delitos, ou delitos
ainda piores que os que já levaram a privação da sua liberdade. Isto tudo serve para
que, ao invés de o infrator voltar a cometer delitos, ele tenha uma nova oportunidade.
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4
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INCLUSÃO DOS EXCLUÍDOS:
A PORTA ABERTA PARA AS OPORTUNIDADES
Desta maneira, é evidente a necessidade de se encontrar meios eficazes para
sanar essa problemática, que não fica limitada somente à vida daquele que, com o
findar do cumprimento de sua sentença, não encontra meios que o possibilitem viver
fora da criminalidade, porquanto este voltará a delinquir, mas também quem sofrerá
será a sociedade, pois terá a paz e o bem comum violados pela quebra da norma penal.
Colocando Valjean em outro contexto, imagina-se que este, ao sair da prisão,
fosse contemplado com uma política Estatal de egresso para a sociedade. Tal política,
como já supra mencionada, preocupada em empregar este ex-detento, mas não sem
antes ter o profissionalizado, isto ainda dentro da prisão, possibilitando, desta forma, a
este encontrar um emprego digno, com o qual possa garantir o seu sustento e o de sua
família.
É ao menos reprimida a possibilidade dele voltar para o mundo do crime, haja
visto que este só entrou neste meio cruel pela necessidade, pois não tinha com o que
alimentar-se, nem a sua irmã ou sua sobrinha. A propósito, trazendo tal situação para
dentro do ordenamento jurídico brasileiro, tal situação não seria merecedora da
excludente de ilicitude “estado de necessidade”? Ainda que não a fosse, seriam
necessários quase 20 anos de reclusão para corrigir este erro, se é que podemos chamar
assim a luta de alguém para não perecer em inanição.
Essa mudança deve começar ainda dentro das penitenciárias, nas quais os
detentos devem receber educação e ainda, cursos profissionalizantes, a fim de não
deixar ociosos os detentos, porquanto, custará mais caro ao Estado e ainda não
transformará em nada o quadro da criminalidade. Hodiernamente os detentos e exdetentos são uma espécie de sociedade dentro de outra sociedade, pois são vistos não
como sujeitos de direitos, “porque ao violarem o direito de outra pessoa, têm
suprimidos todos os seus”.
De modo algum estamos pregando contra a punição àqueles que infringiram a
norma penal. Pelo contrário. Sustenta-se que se deve, sim, ser punido por cada erro
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V. 2, N. 1, JUL. 2014
cometido, porém, punido de maneira racional, oferecendo meios para que aqueles que
erraram possam mudar o seu destino, que hoje, está fadado a permanecer na exclusão
social e perecer na miséria.
É ilógico dizermos que se a Valjean fosse oportunizado trabalhar, recebendo um
salário digno, de modo que garantisse o seu sustento, este optasse por viver no mundo
do crime. Logo, conclui-se que oportunizar uma mudança por parte do detento, estará
se corroborando diretamente para a diminuição dos índices de criminalidade.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a análise dos elementos expostos, concluí-se que as políticas de egresso dos
detentos se fazem tão, se não mais importantes que a própria punição. Isto por se tratar
da parte mais delicada do cumprimento da pena, pois consiste no retorno do detento à
sociedade, é o momento em que se determinará as condições de convivência entre esta
e aquele. É o instante em que vai se direcionar a nova trajetória daquele que violou as
normas penais, se continuará no mundo do crime ou não. Definirá se o meio para
garantir a sobrevivência dele e de seus dependentes será o trabalho ou continuará
sendo os delitos.
É necessário e inevitável punir aquele que não respeita as regras do nosso
ordenamento jurídico; Caso contrário se estaria impossibilitando a convivência em
sociedade, de modo que não se faria mais obrigatório o respeito a legislação que regula
nossas vidas. Porém, a punição deverá ser racional, isto é, pensada em todas as suas
fases. Primeiro é mais importante buscar-se meios a fim de evitar que ocorram as
condutas típicas ilícitas, pois se deletaria todos os problemas resultantes de tal, isto é, a
violação dos bens jurídicos, a traumatização das vítimas, bem como a punição do
infrator, que no caso, não existiria. Sucessivamente, caso não se consiga reprimir o
crime, de modo que este não ocorra, se faz necessário a supramencionada punição.
Porém, esta não deve ser vista de modo singular, isto é, não consiste somente em
colocar o infrator em uma cela penitenciária. A punição não é definida com o binômio
errou e prendeu. Ademais, esta punição deve ser impessoal, de modo que, ainda nas
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ANAIS DO II CIDIL
V. 2, N. 1, JUL. 2014
tipificação, criada pelo legislador, se faz necessária a qualidade de impessoalidade, de
modo que não se criem tipos para pessoas pré-definidas, de modo que acabe por se
instigar os chamados “crimes de colarinho branco”.
A conscientização de que estamos lidando com o maior bem jurídico tutelado em
nosso ordenamento é inescusável. A liberdade do indivíduo é sobre todos os outros
direitos, o bem mais tutelado, mesmo pela magna carta de 1988. Tirar a liberdade as
vezes é inevitável, porém, junto com a repressão deve-se pensar em como possibilitar
que o infrator não volte a errar, a fim de se evitar nova punição e danos aos bens
jurídicos das possíveis vítimas. As políticas de egresso devem andar de mãos dadas com
a execução das penas, afim de possibilitar que o detento se ressocialize e se possibilite o
seu retorno e convivência em sociedade, de modo pacífico.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, S. Freud criminólogo: a contribuição da psicanálise na crítica aos valores
fundacionais das ciências criminais. Revista Direito e Psicanálise, v. 1, p. 107-137,
2008.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2002.
MACHADO, Wagner: Fórum da Questão Penitenciária elabora carta relatando limitações do
Presídio Central de Porto Alegre. Rádio Guaíba, Porto Alegre, 02 ago. 2012.
AMARAL, Augusto Jobim do. Violência e processo penal: cítica transdisciplinar sobre
a limitação do poder punitivo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o
direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
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