Fonte - Escola Secundária de Peniche

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Fonte - Escola Secundária de Peniche
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
APRESENTAÇÃO
No ano em que se reforma o director da Paideia (e da escola), o Prof. Américo Gonçalves, desvendamos o retrato do historiador Mariano Calado, prestando assim homenagem a uma das figuras centrais da cultura e da historiografia de Peniche. É aliás sob o signo
da memória que se estrutura este volume da revista, seja na revelação da cultura material
apreendida pela arqueologia, seja na reconstrução epistemológica cerzida em torno da
ciência e do discurso científico ou na simples divulgação de fontes históricas locais. Procuramos assim adiar esse destino das sociedades contemporâneas, as sociedades amnésicas,
agrilhoadas à aceleração do tempo e por isso forçadas à renúncia da recordação e da esperança, com que habitualmente se iluminam projectos e se edificam futuros. E aqui se
revelam textos – em prosa ou poesia – que nos conduzem do habitual mester intelectual à
esfera da criação, com que aumentamos a cultura e, muito modestamente, é certo, dignificamos, se não a humanidade, pelo menos a Escola Secundária de Peniche.
Miguel Dias Santos
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
AMÉRICO GONÇALVES
Uma vida dedicada ao ensino
Dediquei, entre 1970 a 2011, 40 anos ao serviço público na educação.
No lançamento do nº 2 da PAIDEIA, da qual sou director por inerência, e porque
vou passar à situação de aposentação, deixo-vos uma pequena resenha do meu percurso
na Escola.
Iniciei a minha actividade lectiva nesta escola, em Outubro de 1970, como professor do Curso Industrial de Electromecânico, leccionando a disciplina de Oficinas de
Electricidade aos 1º, 2º e 3º anos do curso acima referido. Naquele tempo, os concursos
processavam-se por candidatura dirigida ao director das escolas e passava-se ao quadro
de escola através de exame de estado. Em 1972 fui convidado pelo director da escola,
Dr. Edgar Sardinha, para fazer o exame de estado para passar ao quadro do Ministério da
Educação. Não aceitei o convite, em virtude de ter de cumprir o serviço militar. Após o
cumprimento do serviço militar (entre Outubro de 1972 e Junho de 1975), fui colocado
novamente no ensino, na escola secundária de Marvila, em Santarém, hoje escola secundária Genistal Machado, onde permaneci durante 2 anos e me profissionalizei com o estágio clássico para professores do 12º B, grupo de Electrotecnia. Em Setembro de 1977 fui
colocado na Escola Secundária da Lourinhã, começando aí as minhas funções em órgãos
de gestão e tendo ocupado o lugar de secretário no Conselho Directivo dessa escola. Penso
ter despertado, neste ano lectivo, a sensibilidade para a importância da gestão no que se
refere à educação. Após o concurso para lugar do quadro, efectivei na escola secundária de
Montemor-o-Novo, tendo solicitado destacamento para a CERCI de Peniche, onde permaneci até 1983, exercendo as funções de professor e, em acumulação, funções na direcção,
na gestão do Ensino Especial. Regressei novamente ao ensino regular e novamente à Escola Secundária da Lourinhã, onde já tinha sido colocado em lugar de quadro depois de ter
passado por Montemor-o-Novo, Loures, Marinha Grande, Rio Maior, Bombarral e Caldas
da Rainha. Após concurso público efectivei na Escola Secundária de Peniche, em 1988 tinha regressado à escola onde dera os primeiros passos como docente e onde, de facto,
me apaixonei pelo ensino e pela gestão, paixão essa que nunca perdi e que me levou, em
1993, a candidatar-me à gestão deste estabelecimento, onde exerci o cargo de Presidente
do Conselho Directivo, Presidente do Conselho Executivo e Director.
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A poucos meses do final da minha carreira recordo as dificuldades e os constrangimentos passados em mais de metade dessa carreira ao serviço da gestão do sector público.
As minhas preocupações foram dirigidas sempre e em primeiro lugar às condições físicas
da escola, pois estando estas asseguradas, todas as outras eram mais fáceis de conseguir.
Um dos principais objectivos da equipa que tomou posse para o primeiro mandato de 1993/95, foi resolver as condições das instalações desportivas da escola, que eram
obsoletas no que dizia respeito aos espaços e, em especial, aos balneários, que eram constituídos por um espaço para rapazes e um espaço para raparigas, sem condições mínimas,
nomeadamente para banhos. Hoje, esse espaço conta com três balneários masculinos e
três femininos; ao mesmo tempo foi colocado um novo piso no ginásio e fez-se a recuperação de todos os espaços desportivos exteriores, incluindo os espaços de recreio, que eram
em terra batida, e sem espaços verdes.
A segunda grande obra foi recuperar todas as salas de aula, no que respeita aos
pisos e mobiliário, e criar condições aos alunos, no seu espaço que era aberto, fechando-o,
e dando dignidade ao bufete, saindo do espaço exíguo onde funcionava.
No terceiro mandato foi necessário levar os alunos a almoçar no refeitório. Para
isso foi necessária uma enorme remodelação, começando por recuperar todo o espaço,
com uma obra em parceria com a Direcção Regional e com a Câmara Municipal, terminando com a candidatura a uma empresa para fornecimento de refeições.
Em 1999 inicia-se um novo processo de candidatura aos órgãos de gestão, com
nova legislação que dilatava os mandatos de 2 para 3 anos, e em que o Conselho Directivo
dava lugar ao Conselho Executivo, passando alguns órgãos a um novo regime de funcionamento, nomeadamente no que se refere à presidência do Conselho Pedagógico, que podia
ser assumida por outro docente em vez de, por inerência, ser do Presidente do Conselho
Executivo. Iniciou-se nesta altura, e em virtude da entrada nas escolas das novas tecnologias informáticas, a necessidade de um enorme investimento em equipamentos para que
alunos e professores pudessem ter acesso a meios mais modernos e acesso a pesquisas
mais actualizadas.
A partir de 2002 foi necessário iniciar o processo de readaptação do espaço oficinal em virtude do desaparecimento de alguns cursos (nomeadamente os cursos na área da
metalomecânica) e elaborar um projecto que desse resposta a novas necessidades, criando melhores condições de trabalho em várias áreas - artes, laboratoriais, oficinais - assim
como espaços de estudo, lúdicos, e criação de um espaço com um auditório para palestras,
encontros, seminários, etc. Apenas foi possível concretizar este projecto em 2007, sendo
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hoje um espaço de excelência para toda a comunidade educativa.
Passados que estão 18 anos na gestão da Escola Secundária de Peniche penso ter
cumprido, no essencial, o que demais era importante, ou seja, criar as melhores condições
para a prática de um processo de ensino e aprendizagem assente nos valores da cidadania
e da ética, referências de uma escola de excelência.
Não consegui cumprir o meu último objectivo que fazia, aliás, parte do meu projecto de candidatura a Director: deixar uma escola com dois espaços que considero os mais
importantes neste momento - um pavilhão gimnodesportivo coberto, para a prática desportiva, e um espaço com salas específicas, para os cursos profissionais, que para mim são
o futuro da saída para o mercado de trabalho de grande parte dos alunos, em virtude da
inexistência de áreas de formação intermédia mais especializadas. No entanto, parto com
a promessa oficial de que a escola será integrada na “Parque Escolar”, até 2013, e sofrerá
obras de raiz.
Chego ao fim da minha carreira com o sentimento de missão cumprida.
Sou um homem de “fazer coisas”. E gosto, sobretudo, de ver “obra feita”.
Deixo aos outros a tarefa teórica de enquadrar os factos em políticas, ideologias,
pedagogias ...
Para mim, esta foi a única forma por que consegui contribuir para uma escola digna, democrática e progressista.
Bem hajam todos aqueles que me acompanharam nesta minha missão: funcionários, colegas professores, encarregados de educação e alunos, que foram os melhores do
mundo, e que sempre estiveram presentes nos bons e maus momentos.
O meu muito obrigado a todos e, até sempre!
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História e Memória
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ENTREVISTA A MARIANO CALADO
por Miguel Dias Santos
Paideia (P) - Foi sempre um homem de causas e de combates. Foram as circunstâncias que lhe traçaram esse percurso de combate ou foi a sua natureza que lhe ditou os
gestos fortes e decididos? (Afinal, os grandes homens são fruto das circunstâncias históricas, da consciência individual ou das duas?)
Mariano Calado (MC) - Sem falsa modéstia, essa dos grandes homens não é comigo… Mas quanto a ter sido – e ser – um homem de causas e de combates, serei. Por um
lado, creio que por ter tido uma mãe que me ensinou a querer saber e a não me contentar
com o vegetar e um pai que sempre vi a enfrentar a vida, com sacrifícios mas com energia
e me soube ensinar também a dizer não quando era preciso, a ser solidário, especialmente para com os mais desprotegidos e a pensar que a vaidade e o orgulho, bem como a
subserviência perante os poderosos, são, normalmente, qualidades dos que têm pouco
para dar. Claro que fui aprendendo que, como alguém disse, «eu sou eu mais as minhas
circunstâncias», ou «um homem não é uma ilha», que há sempre, queira ou não queira,
um istmo a ligá-lo aos outros. E tentei sempre olhar para a frente, mesmo com todas as
minhas insuficiências e fraquezas…
P - A cultura exige a expressão livre. Parte da sua actividade cultural desenvolveuse durante a ditadura salazarista. Como é que se manifestava a censura para além do evidente controlo institucional do famoso «lápis azul?» Era através da autocensura?
MC - Quando comecei a escrever alguma coisa que se pudesse minimamente ler,
não dei pelo «lápis azul» da Censura; simplesmente porque, por esses tempos, ainda sem
uma consciência política acordada e actuante, julgo que não terei escrito coisa que pudesse ser considerada pelos censores como menos normal, ou inconveniente… Todavia, na
minha diáspora por Lisboa, nos alvores da segunda metade do século passado, ao tomar
contacto directo com certa realidade política, e ao presenciar o que se passava, por exemplo, com o jornal Juventude Operária, órgão da JOC (Juventude Operária Católica), onde
eu também colaborava, vendo páginas inteiras devolvidas pela Censura, completamente
riscadas e até, para cúmulo, certas passagens ou pensamentos do papa João XXIII, censuradas, riscadas, despertei: que é lá isso? E julgo que ainda fui a tempo de compreender o
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problema. A propósito, quando publiquei o meu livro Peniche na História e na Lenda, no
princípio da década de 60, o trabalho foi saindo em fascículos, durante 21 meses e, do
que escrevi, não foi nada riscado pela Censura. Mas o que é verdade é que o trabalho foi
sendo escrito e dado à estampa sob uma natural auto-censura, problema que, no tempo
da ditadura do Estado Novo, exercia uma verdadeira pressão sobre todos os escritores,
com a preocupação de não virem a sujeitar-se à mutilação do seu trabalho. Ora, acontece
que, se repararmos, quando, naquele livro, procurei descrever a Fortaleza, quantas linhas
dediquei ao historial da cadeia política que ali, já naquela altura, existia há perto de trinta
anos? Praticamente nada, em face do muito que, para o trabalho ser tanto quanto possível
completo, poderia ter escrito. De facto, não consultei algumas fontes que me poderiam
dar dados positivos e, por terrível autocensura, não consegui arriscar escrever o que pretendia para não ver o meu escrito esfrangalhado. Curiosamente, no meu livro de poemas
Fogo de Santelmo, na parte final, referente aos Poemas da nossa luta, poderia dizer que,
na Censura, se porventura leram aqueles versos e os leram bem, talvez que no «lápis azul»
existissem cabeças pouco inteligentes… O certo é que o livro foi publicado em Julho de
1973, precisamente nove meses antes do 25 de Abril de 1974 e nunca foi apreendido. Quer
dizer, gozou o tempo de uma gestação de nove meses (!)… como que numa premunição
para o desaparecimento do tal «lápis azul»…
P – O Penichense, publicado em 1950, foi alvo de alguma intervenção da Censura?
MC - Não, O Penichense não foi alvo da intervenção da Censura, porque não continha nada de «subversivo»! Na sua simplicidade de oito páginas, foi apenas um pequeno
gesto de muito amor por Peniche. Aliás, com sacrifício económico. Apenas, quanto ao facto de o meu nome e o do Manuel Marques Ferreira não terem aparecido no cabeçalho foi
porque tivemos de respeitar qualquer norma um pouco estúpida que exigia que, à cabeça
dos jornais, apenas poderiam figurar os nomes de pessoas que tivessem alguma formação
académica, ou que já ocupassem certas posições de responsabilidade. E o que éramos
nós? – O Marques era um competente mas humilde regente escolar; e eu, com o meu liceu
bastante incompleto, era quase um analfabeto…
P - Teve uma intervenção cívica e política ligada ao movimento operário católico
de Peniche. Que actividades desenvolviam? Como se fazia a articulação com as estruturas
nacionais?
MC - Intervenção cívica, sim. Política, no sentido estrito do termo, como pelas circunstâncias da altura se poderá facilmente imaginar, era praticamente nenhuma. Aliás, se
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por actividade política se pode entender a atitude de um moço de 19 ou 20 anos – quiçá
irreverente, mas limitado por um certo «provincianismo» pouco informado – na intervenção oral em certas assembleias, no procurar que se levassem por diante certas iniciativas
contra a injusta situação social em que viviam certos agregados familiares, na exclusão, na
pobreza, então, sim. Com os meus companheiros, demos a conhecer e procurámos dinamizar o pôr em prática dos princípios da doutrina social da Igreja, particularmente a apresentada nas encíclicas «Rerum Novarum», de Leão XIII (1891) a «Quadragesimo Anno», de
Pio XI (1931) e a «Populorum Progressio», de Paulo VI (1967), as quais causavam alguns
engulhos ao Estado Novo. E levaram-se por diante animadas assembleias; reuniões de formação e informação; campanhas de apoio aos mais desprotegidos, em defesa da solidariedade; de incentivação à prática de uma maior cultura (coisa que também não era bem vista
pela chamada «Situação», pois quanto menos se soubesse mais facilmente se poderia ser
manipulado…); levou-se por diante a prática do teatro amador; buscou-se nas actividades
desportivas o despertar do sentido do homem todo, do jogo em equipa, da participação…
A articulação de tudo isto, num movimento juvenil (a JOC) que não era apenas local, mas
diocesano, nacional, internacional, num sentir católico com jovens de Lisboa, Torres Vedras, Caldas da Rainha e outros… E recebíamos, de quando em quando, a visita formativa
de dirigentes nacionais, em representação da Direcção Diocesana e da Direcção Geral.
P - Como é que as hierarquias da Igreja viam o movimento operário católico? Procuravam o enquadramento corporativo ou estimulavam a intervenção cívica dos operários?
MC - Creio que, de uma maneira geral, com um olhar normal, a não ser num ou
noutro caso de preconceituosa aceitação, desconfiança ou receio… até porque se sentia
que, através de alguma irreverência juvenil, ia crescendo, no meio católico, a nível nacional,
a consciência social, política… Era preciso cautela… Nem tudo se poderia ou deveria dizer…
Éramos um País católico, governado por virtuosos católicos… O próprio cardeal-patriarca
D. Manuel Gonçalves Cerejeira chegou a dizer que «pela JOC uma grande esperança se levantou na terra…» Todavia, para além da tal censura sobre o Juventude Operária, também
um Congresso da JOC, a nível nacional, foi proibido de se realizar. É verdade que tivemos
muitos e bons Assistentes religiosos que nos acompanhavam nas nossas preocupações e
nos nossos trabalhos e, a nível local, sempre tivemos o apoio da hierarquia religiosa, na
visão desanuviada do saudoso Padre Manuel Bastos. E não podemos esquecer a atitude
corajosa do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes que, por ter escrito a Salazar denunciando as atrocidades da polícia política e a falta de liberdade cívica existente no País,
foi proibido de entrar em Portugal de regresso do Vaticano, nem sequer para poder acompanhar o funeral da mãe, acontecimento injusto que a todos causou revolta e encheu de
esperança de mudança…
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P - Sentiu, em 1958, que a ditadura podia cair como consequência da reacção popular à candidatura do general Humberto Delgado?
MC - Senti, de facto. Na chamada «província» talvez não se tivesse dado muito por
isso. Mas em Lisboa, no coração político do País, onde eu já trabalhava há meia dúzia de
anos, só de presenciar e auscultar as movimentações de entusiasmo da população, senti
que o sentimento de revolta se estava a generalizar de maneira extraordinária, apesar dos
tanques do exército colocados estrategicamente no Terreiro do Paço e das corridas perseguidoras dos agentes policiais que carregavam sobre os passantes, assentando-lhes as
coronhas das espingardas nas costas, como a mim aconteceu, apanhando uma «delicada»
bordoada em frente do liceu Luís de Camões... Infelizmente, tivemos de esperar ainda
quinze penosos anos!
P - A revolta da Sé surgiu como consequências das eleições presidenciais. Qual foi
a sua participação no golpe falhado?
MC - Tive, na verdade. É claro que qualquer golpe político, ou revolução, envolve
normalmente, por desgraça de todos, o emprego perigoso de armas. Pela minha parte
que, por saúde debilitada na altura, nem tropa havia sido, que nem sequer tinha pegado
alguma vez em armas verdadeiras, fora-me reservada a responsabilidade de um trabalho
na redacção de um órgão de informação que deveria sair imediatamente se a revolução
triunfasse. Infelizmente, creio que alguém terá revelado o que se pretendia e a coisa abortou. O meu interlocutor foi, apenas e só, o meu querido amigo Manuel Serra (já falecido),
amigo de há muito, desde a nossa adolescência na JOC, oficial da Marinha Mercante, que
fora dirigente jocista e com quem, ambos sonhadores, longas conversas mantínhamos pelas ruas e cafés de Lisboa…
P - Como viveu a experiência de prisioneiro político? (Esteve preso em Aljube e
Caxias)
MC - A minha experiência foi pequena, no tempo. Quando penso nos meses, anos
e anos de prisão, de falta de liberdade, que tantos adversários da ditadura sofreram, sinto
que quase não devo falar no pequeno tempo da minha reclusão. Mas foi uma experiência
humana riquíssima, porque entrar na cadeia do Aljube como um criminoso, ser fechado
atrás de duas portas num cubículo com cerca três metros de comprimento e mais ou menos de dois de largura, com um catre, ou um bailique, onde assentava um colchão cheio
de nódoas, foi um choque tremendo. Era a cela n.º 12, não esqueci, e vazaram-me lá no
dia 12 de Maio de 1959, dia em que se realizava a costumada procissão nocturna, não
apenas em Fátima mas em muitos outros lugares, possivelmente também em Peniche… e
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quando faltava uma semana para a inauguração do Monumento a Cristo-Rei, em Almada,
onde então residia! Dias depois levaram-me para Caxias, para a Sala 6 da Zona Norte,
onde fui encontrar, por surpresa minha e compreensiva alegria, o João Gomes (que era
o Presidente Geral da JOC!), o Carlos Alberto Oliveira (que era o Tesoureiro Diocesano
da JOC!), o José Hermínio Bidarra (que também fora dirigente jocista), e o Asdrúbal Teles
Pereira (ex-seminarista). Que solidão senti! Mas, ao mesmo tempo, que consciência de
ser instrumento de solidariedade, que sensação de prazer senti por, não sendo santo, me
poder sacrificar pelos outros, por aqueles que, presos ou não, viviam sem a liberdade de
ser homens, livres! Deixem-me contar que, no Aljube, quantas vezes, por não aceitar a
injustiça da situação, me sonhei um super-homem capaz de rebentar com as grades da
cela e saltar para o tejadilho de um dos eléctricos que por ali mesmo passavam, da carreira
da Graça… e desaparecer, à procura do mundo…beijar os meus filhos pequeninos... Raiva?
Ingenuidade? Talvez. Possivelmente pena daqueles que, por falsa consciência, me haviam
acorrentado ao silêncio e à agonia do corpo. À alma, não!
P - Falemos agora do percurso historiográfico e da política de memória. O livro
Peniche na História e na Lenda é muito precoce (1962) no conjunto da sua produção, mas
a restante obra historiográfica surge muito anos depois. O que aconteceu? Como surgiu o
gosto pela história?
MC - Por circunstâncias de saúde, tive de interromper os meus estudos de liceu.
A possibilidade de vir, às tantas, frequentar qualquer curso, como era meu desejo, ficou,
portanto, fora de questão. Era preciso trabalhar. Não me era possível senão sonhar… Até
que, por um acaso para mim providencial, alguém me incitou a inscrever-me num curso de
psicologia em instituição particular (que, depois, se viria a oficializar e a ser uma instituição de referência – o ISPA). E lá fui, conseguindo, com alguns sacrifícios, concluir a minha
licenciatura. Depois, se é verdade que a minha formação em Psicologia Social já vem um
pouco tarde na minha vida (1968, com quarenta anos!), também é verdade que a feitura
e conclusão do meu mestrado em História ainda vem mais tarde (1999, com setenta e
um!). Mas o que sei é que, já desde criança, a História me apaixonava. Talvez por ouvir as
estórias que minha mãe me contava, ou minha avó paterna, sentada à porta de casa, nas
quentes e longas noites ribatejanas… Ou talvez pela influência que os problemas levantados pela psicologia social (eu - outros, grupo, sociedade, interacção social, aculturação…)
me tenham trazido, reforçando a minha apetência por saber que passado nos tinha acontecido para chegarmos ao nosso presente. Mais concretamente, digo-lhe que começou a
avolumar-se dentro de mim o desejo de esquadrinhar o passado da minha terra adoptiva,
para melhor a conhecer e dar a conhecer. Mais ainda: foi mesmo um grito de raiva que me
nasceu depois da minha prisão, em 1959, ao sentir, com mais consciência, o significado da
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existência em Peniche de uma prisão política! Peniche não merecia tal vergonha, não tinha
direito a essa nódoa! Havia que procurar revisitar o seu passado e dar aos penicheiros o
gosto pela sua terra! Foi assim que, a partir de 1960, nasceu o meu Peniche na História e
na Lenda…
P - Revê-se em alguma escola historiográfica, ou considera que existe muito de
individualismo e intuitivo no ofício do historiador?
MC - Em verdade, não, até porque as minhas pesquisas não vão muito para além
de trabalhos relativamente pouco complexos. Todavia, se considero o trabalho de Alexandre Herculano extraordinário, não é menos importante para mim beber lições nos textos
de José Mattoso, de Joaquim Veríssimo Serrão, de Oliveira Marques, de António Borges
Coelho, de Pedro Gomes Barbosa, de António Marques de Almeida, de Fernand Blaudel e
de tantos outros, se bem que, aqui e além, julgo arriscar um certo individualismo, ou uma
intuição pessoal – como julgo acontecer a tantos historiadores. Porque não deixo de ter
presente a magnífica interpretação e apoio de Marc Bloch, ao escrever: «Evitemos retirar
à nossa ciência o seu quinhão de poesia. Evitemos sobretudo corar por isso, coisa que já
surpreendi em alguns. Seria espantosa tolice julgar que, pelo facto de exercer sobre a sensibilidade um apelo tão poderoso, a História fosse menos capaz de satisfazer também a
nossa inteligência».
P - Numa época em que predomina o efémero, o fugaz, o historiador conquista
espaço público e visibilidade. Como explica este fenómeno? Há lugar para o historiador no
contexto das dinâmicas locais?
MC - É verdade que, ao longo dos séculos, o Homem procurou sempre saber o
porquê da sua existência. Ora, o historiador é uma espécie de cabouqueiro do passado. Ao
pesquisar o sub-solo da vida da humanidade, está a tentar legar aos seus contemporâneos
– e aos vindouros – a vivência dos que o precederam, no desejo de projectar essa experiência na construção do presente e do futuro. Creio que só por insensatez, ou loucura, se
poderão pôr de parte, ou não ter em conta, as lições que os antepassados nos deixaram,
o seu testemunho criador. Assim, é óbvio que sim, que há lugar para o historiador, ou para
o «historiógrafo, ensaísta da história», como diz Borges Coelho. Porque toda a dinâmica
local, para dar corpo ao futuro, terá necessariamente de ter em conta o pesquisar, conhecedor e sério (e não o insensato correr da pena…), do que nos legaram as experiências de
ontem, para se não repetirem possíveis erros e se poder construir, com maior certeza, o
alinhavar do futuro.
P - Tanto a sua obra literária como a obra historiográfica reflectem a cultura e a
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memória locais. Apesar da unidade nacional que nos caracteriza, parece haver lugar para
a existência de identidades locais. Qual o papel do historiador na construção dessas identidades?
MC - É irrecusável que, para o historiador, há de facto um papel na construção da
identidade local porque através do seu trabalho de investigador da realidade do sítio – da
realidade que foi e da realidade que é – o historiador traz à luz do presente, para o futuro,
a sua identidade, os seus usos e costumes, a sua vivência própria. Não que ao historiador
deva competir a o papel de construir unidades desunidas, localidades em oposição a outras
porque desiguais, porventura uma postura de animosidade pelas diferenças existentes,
mas sim para que se possa ganhar a consciência de quem fomos para saber quem somos
e o que podemos ser. Quanto aos meus trabalhos de História – e não só – reflectirem a
cultura e a memória locais, foi quase uma inevitabilidade, pelo muito amor que tenho por
Peniche. Não sei se o terei conseguido, mas, lembrando mais uma vez Marc Bloch, não tentei fechar as portas à poesia, ao sonho, ao que sendo assim poderia ser de outro modo, à
insensibilidade que deveria ser dinamismo como saída para o progresso. De facto, cada um
de nós traz em si os genes dos seus ascendentes; e traz também o ambiente, o ser, da terra
em que porventura nasceu ou cresceu: os amigos, as brincadeiras, o ambiente, o trabalho,
as alegrias, a luz, as cores, os lutos, as vitórias e as derrotas, os sonhos… E porque só se
ama o que se conhece, é por conhecermos mais profundamente a nossa raiz, o local onde
nascemos, crescemos, vivemos e amámos, que amamos de maneira especial mais um local
que outro. Sendo de todos, é a nossa terra. Ao historiador competirá, creio, a responsabilidade de assumir a sua terra, o seu país, o seu mundo, estudar a sua identidade, lutar pela
preservação do seu património, aperfeiçoar o seu presente e colaborar na construção do
seu futuro.
P - Que áreas da história carecem de um investimento do historiador/arqueólogo
em Peniche?
MC - Sem que tal constitua desinteresse por qualquer outro motivo de descoberta,
gostaria que fosse desenvolvido um projecto mais consistente em toda a área compreendida entre a rua do Galhalhaz e a rua do Calvário, bordejando pela rua 1.º de Maio, do
Bairro de Santa Maria. Não sou arqueólogo. Mas depois que, como historiador, pude fazer
algumas pesquisas para consolidar a minha teoria de que aquela área compreenderia a
grande baía onde terão, em 1147, ancorado os navios que traziam os cruzados para auxiliarem Afonso Henriques na conquista de Lisboa, como descrevi no meu livro Da Ilha de
Peniche – baía que já existiria ao tempo da colonização romana, como o provam os fornos
ali há anos descobertos – , fiquei com a sensação de que, por toda essa área, porventura
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se esconderão os alicerces de uma póvoa romana… Utopia? Erro grosseiro de historiador?
É evidente que, hoje, difícil será partir para essa descoberta. Mas que ricos de património
histórico poderíamos ser se, alguns anos atrás, tivéssemos ousado fazer isso!
P - Há uma política para a memória e para o arquivo em Peniche? Qual o estado de
conservação dos acervos documentais identificados?
MC - Sinceramente, não conheço se há alguma política, certa e continuada, algum
plano, explícito e bem feito, para a preservação da nossa memória. O que sei é que muita
dessa documentação ainda espera que alguém, naturalmente conhecedor e responsável,
se debruce sobre o seu estudo, a sua arrumação, indexação por assuntos para fácil consulta, pesquisa e conveniente preservação. Há uns anos, barafustei um tanto pela situação
em que se encontrava o património documental, como os livros de Actas das Vereações,
antiquíssimos, depositados numa sala em que se guardavam, também, numa promiscuidade inadmissível, os utensílios de limpeza, como vassouras, pás, detergentes, papeis higiénicos, etc. Entretanto, alguma coisa se modificou, como solução de recurso, sendo levados
para dependências do Museu, na Fortaleza, muita e valiosa documentação, apesar de se
saber que, para arquivo de papéis, não seria ideal o pouso na Fortaleza, naturalmente húmida. Mas foi criado, depois, um excelente arquivo, metálico, no edifício junto à Câmara,
ainda que muita da documentação ainda continue, inexplicavelmente, nas dependências
do Museu, com todos os riscos de a humidade a prejudicar.
P - A fortaleza de Peniche e as muralhas fazem parte dos seus objectos de investigação, no quadro dos sistemas defensivos nacionais. Há projectos para a valorização deste
património? Qual o seu estado de conservação?
MC - De facto, interessei-me, desde muito novo, pela situação de certo modo original e até imponente das nossas fortificações, a ponto de, aquando do meu mestrado, as ter
escolhido como tema para a minha dissertação. Infelizmente, apesar da sua importância,
por exemplo no tempo das invasões napoleónicas, na medida em que, com as defesas de
Santarém, constituíam uma importante ala de apoio aos fortes, fortins, baterias, redutos
e entrincheiramentos das Linhas de Torres Vedras, não vi alguém pronunciar-se sobre o
assunto nas comemorações bicentenárias daquelas Linhas… É óbvio e compreensível que
sinta uma permanente mágoa pelo seu estado de conservação. É que, se nalguns troços
a cortina se encontra em regular estado de conservação, noutros parece que um cancro
a roeu, e continua a roer, sem dó nem piedade. E a falta de uma pequena pedra, em certos sítios, é razão para começar, e continuar, um pouco mais tarde, uma certa destruição,
como se pode verificar pela degradação a que, em certos trechos da muralha, se chegou.
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Sei que não depende de nós. Mas também sei que depende nós! É que parece que já nos
esquecemos que desapareceram o fortim do Cabo Carvoeiro, a bateria do Quebrado e o
Fortim do Porto da Areia …que o Forte da Luz e o do Baleal estão em ruínas… que o Forte
das Cabanas se encontra muito degradado… que o Forte da Consolação está a cair aos
bocados… que o Fortim de Santo António é uma lixeira… que do Entrincheiramento de
S. Miguel (ou Linha dos Moinhos) quase que só com uma lente é que se reconhecem os
alicerces… que do castelo de Atouguia só resta um torreão, com meia dúzia de metros de
muralha por vizinhança, e em risco de ruir!... Francamente parece-me, com muito pesar
meu, um atestado de muito e negativo desleixo para que nos possamos identificar como
um povo adulto que preza o seu património e a sua cultura; e desconheço se há algum
projecto para tratar do que está mal e evitar novas ruínas.
MS - Que projectos para o futuro?
MC - Sei que nunca se é velho para aprender. Sei que por detrás das nuvens, escuras, há sempre um sol radioso. Mas sei também que o tamanho do tempo encurta a
possibilidade de agir como desejaríamos. É verdade que, neste momento, estou a concluir
um livro (biografia-testemunho) acerca do meu saudoso Amigo Monsenhor Manuel Bastos
de Sousa. E, embora possa parecer estranho, ainda gostaria de publicar um novo livro de
poemas… um outro livro de contos… uma outra estória infantil… e até (imagine-se)! encenar uma revista teatral, para a qual até já tenho título!… O meu querer é grande. Mas creio
que é já sonhar demais, ainda que o poeta Sebastião da Gama, cuja poesia muito admiro,
me segrede, muitas vezes, que pelo sonho é que vamos…
E é, de facto!
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PERCURSO BIGRÁFICO
Por Mariano Calado
NOTA PRÉVIA, À CAUTELA…
Sou, normalmente, avesso a falar de mim, porque acho extremamente difícil e delicado botarmos palavra sobre nós próprios, passando pela contingência de, não apenas,
sermos fracos juízes em causa própria, como, mesmo que involuntariamente, podermos
ser transmissores de alguma menos verdade ou estulta vaidade. E, embora, quanto a mim,
não tenha razões especiais para incorrer em tal pecado, a verdade é que estamos sempre
sujeitos a correr o risco de sobrepujar a nossa pequenez…
Como, no entanto, julgo que me pediram que dissesse «alguma coisa de mim»,
ouso afrontar o perigo de um desnudamento que, sem eu o desejar, poderá, eventualmente
(num arremedo de «história da minha vida»…), reflectir a pecaminosa imagem de alguma
insensata imodéstia ou ridícula e despropositada presunção, até porque eu, ao escrever
as palavras que se seguem, ia-me perguntando sempre: «será que este apontamento terá
algum interesse para o que me pediram?...»
Acredito, no entanto, que será visto neste meu testemunho (talvez, ainda, com o
pecadilho de alguns – certamente muitos! - apontamentos quiçá desnecessários…), apenas
o desejo de, com a minha profunda gratidão e amizade - e o pedido de que me perdoeis
qualquer involuntária e injustificada imodéstia -, poder corresponder ao amável convite
que me fizestes, que tem tanto de simpático e amigo quanto de imerecido.
M.C.
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I - IDENTIFICAÇÃO
Mariano Fernando Rasteiro Calado Mateus, nasceu em Almeirim a 10 de Junho de
1928, filho de Joaquim Francisco Calado Mateus (de Almeirim) e de Maria da Ajuda Brito
Rasteiro Calado Mateus (de Peniche), ambos já falecidos, e foi baptizado na igreja matriz
de Nossa Senhora da Ajuda (Peniche) em 28 de Fevereiro de 1929, pelo que, com nove
meses, «pisou» Peniche pela primeira vez (ainda que já aqui tivesse vindo antes, embora
em plena «gestação»…). Entretanto, seus pais que, depois do seu casamento, tinham ido
residir em Almeirim, voltaram definitivamente para Peniche nos últimos meses de 1929 e,
portanto, veio para Peniche com menos de dois anos…
Casado, em primeiras núpcias, com Maria Augusta Lopes de Sá (já falecida), houve
quatro filhos: Maria Isabel (1954), Nuno Manuel (1955), João Paulo (1961) e Miguel Augusto (1963). De Maria Isabel tem três netos: Diogo (1979), Gonçalo (1982) e Mariana (1991)
e, de Miguel, uma: Constança (1993).
Casado, em segundas núpcias, com Dinah dos Reis Ferreira Calado Mateus.
II - FORMAÇÃO
Frequentou a escola primária em Peniche (Escola Nº. l, segunda sala do lado poente), de Outubro de 1935 a Junho de 1939.
Frequentou, desde Outubro de 1939, o antigo Liceu Nacional Sá da Bandeira, de
Santarém. Residindo com familiares em Almeirim, deslocava-se diariamente, com outros
colegas de 10, 11 ou 12 anos, de bicicleta, fazendo (ida e volta) os sete quilómetros que o
levavam ao Liceu.
Em Janeiro de 1942, no início do 2º. período do 3º ano, interrompeu os estudos,
por via de doença óssea que o reteve no leito durante quatro meses.
De Outubro de 1942 a Junho de 1943, repetiu o 3º ano liceal no extinto Instituto
D. Luís de Ataíde, de Peniche.
Em Outubro de 1943 voltou a frequentar o Liceu Nacional de Sá da Bandeira, em
Santarém, tendo concluído, em Junho, o 4º ano (com a excepção de um antipático «chumbo» a Matemática…). E, em Julho desse mesmo ano, voltou a ser apoquentado pela anterior doença óssea, que, desta vez, o levou a ficar retido, deitado, num tabuleiro-cama,
durante três anos, fazendo helioterapia em Peniche, nomeadamente na zona do Santuário
de Nossa Senhora dos Remédios.
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Em 1964, inscreveu-se na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Madrid e matriculou-se no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), escola, na altura,
ainda não oficializada mas inicialmente programada para ser integrada na Universidade
Católica (o que não chegou a acontecer), tendo concluído o curso de Psicologia Social em
1968.
Oficializado o Instituto em 1986, realizou alguns necessários trabalhos para efeitos
de integração curricular e apresentou uma dissertação sob o tema A experiência das cooperativas de pesca de Peniche - Da associação à empresa cooperativa, obtendo a Licenciatura em Psicologia Social e das Organizações.
Em 1999, realizou o Mestrado de História Regional e Local, na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, com a dissertação Fortificações da Região de Peniche, tendo
obtido a classificação de Muito Bom.
III - ACTIVIDADE PROFISSIONAL
No verão de l942, com 14 anos, teve o seu primeiro «emprego», num escritório,
com o «ordenado» (nada mau…), de 100$00…
Em 1948, depois de livre da doença óssea que o acometera e fragilizara, ia ajudando seu pai na tarefa de leitor-cobrador dos serviços eléctricos e água da Câmara Municipal
de Peniche, praticando também ao balcão do estabelecimento de electricidade de seu pai,
tendo ainda sido, durante alguns meses, como tarefeiro, fiel de um armazém da Câmara
e, de novo, por breves meses, empregado de escritório numa firma metalo-mecânica penicheira.
Ainda em 1948, interrompidos que haviam sido os estudos e encontrando-se desempregado, vai até Lisboa, numa tentativa de aprender o ofício de radiotécnico, por ser
um ofício ligado à natureza do estabelecimento de seu pai. Por manifesta «falta de jeito»…,
ao fim de alguns meses viu-se obrigado a abandonar a tentativa, não sem que tivesse conseguido reparar um (!) aparelho e ganho, com esse trabalho, a «importante» quantia de
vinte escudos!…
No final de 1949 concorreu a uma vaga de regente escolar, tendo sido colocado, de
Abril a Julho de 1950, na aldeia da Moita, da freguesia de Alvorninha (Caldas da Rainha),
com uma única turma de alunos da 1ª. à 4ª. classe, experiência difícil mas gratificante e
muito rica do ponto de vista humano.
No final de 1950 fez concurso para o Banco Nacional Ultramarino, onde foi admiti24
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do em Fevereiro de 1952 e onde trabalhou até meados de 1965.
Em Setembro de 1965 foi convidado a ingressar na Lisnave- Estaleiros Navais de
Lisboa para fundar e orientar a revista mensal «LISNAVE», de informação e formação, pelo
que saiu do B.N.U. com licença ilimitada.
Em 1971 deixou de exercer a anterior função e passou a orientar o Serviço de
Psicologia da Lisnave, do qual foi responsável até 1984.
Supervisor de estágios de finalistas do Instituto Superior de Psicologia Aplicada, de
1980 a 1983.
Em 1984, saiu da Lisnave, reingressando no Banco Nacional Ultramarino, como
psicólogo, cargo que exerceu até 1989, reformando-se da Banca nessa data.
Entretanto, de 1971 a 1984 foi orientador de seminários de Dinâmica de Grupo não
só na Lisnave-Estaleiros Navais de Lisboa como na Setenave-Estaleiros Navais de Setúbal e,
esporadicamente, no Instituto de Formação Social e do Trabalho, em Lisboa.
Formador no Instituto Superior de Gestão, de 1980 a 1982.
Director do Psicolabor-Centro de Psicologia, Formação e Organização, de 1982 a
1998.
Monitor de seminários de Recrutamento e Selecção de Pessoal na Associação Industrial Portuguesa, de 1980 a 1984.
Provisoriamente, em 1990, foi director-conservador do Museu de Peniche, tendo elaborado e apresentado ao então Presidente da Câmara Municipal de Peniche (João
Augusto Barradas), a seu pedido, um trabalho pormenorizado acerca da exposição museológica existente, seu desenvolvimento e um projecto sobre o eventual aproveitamento
global da Fortaleza.
Professor da cadeira de Gestão de Recursos Humanos no Instituto de Novas Profissões, em 1989 e 1990.
Professor das cadeiras de Psicologia Social e de Psicossociologia das Organizações,
no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, de 1988 a 1998.
Professor-Bibliotecário do Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, de 1990
a 1992.
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Vice-Presidente da Assembleia Geral de Escola no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, de 1993 a 1995.
Membro do Conselho de Redacção da Revista «Intervenção Social», do Instituto
Superior de Serviço Social de Lisboa.
IV - ACTIVIDADE LITERÁRIA E ARTÍSTICA
Começou a publicar os seus primeiros trabalhos literários com 14 anos, em O Tiroliro, suplemento infantil do diário A Voz, onde chegou a orientar a pequena secção «Sangue
Jovem».
Profundamente interessado pelo estudo da Língua e encontrando no passatempoarte do Charadismo um óptimo meio para o seu desenvolvimento, dedicou-se a ele, também desde os 14 anos, tanto em decifração como em produção, com o pseudónimo de
«Odalac», primeiro em O Tiroliro, depois em O Enigma, O Charadista, Charadismo e Cruzadismo (revista brasileira) e em diversas secções de jornais diários e semanários. Assim, em
1942, fundou, com três amigos penicheiros (João Afra, João Vargas e Adriano Marques, todos entre os 12 e os 15 anos) a Ala Charadístico-Literária «Os Audazes», que durou alguns
anos!... Depois, nos primeiros meses de 1944, em Santarém, com dois amigos, fundou o
Centro Charadístico «Os Argonautas», que pouco tempo durou…
Em 1949, dirigiu na revista Flama a secção semanal «A Voz da Esfinge». Na mesma
data, fundou no semanário leiriense A Voz do Domingo, a secção «Busílis» e, na década de
50, dirigiu na revista A Lente a secção «Eureka» e, no Jornal Juventude Operária, a secção
«Nas horas de folgar», esta sob o pseudónimo Anão Sabichão.
Foi um tempo de profundo entusiasmo e de útil aquisição de conhecimentos, «facilitado» pelo longo período de três anos de inactividade a que a doença o obrigara.
Entretanto, com as dificuldades e solicitações que a vida lhe foi oferecendo, foi
rareando o tempo para se dedicar a tal passatempo-arte, ainda que, de quando em quando, faça, com prazer, o «gostinho ao dedo»… Aliás, tal entusiasmo pelo Charadismo e a
utilidade cultural que nele sempre encontrou, levou-o a encetar e a continuar ao longo de
vários anos, a compilação de um Dicionário de Locuções, naturalmente nunca terminado
e que não se destina a publicação, mas que se encontra em dez volumes dactilografados
com cerca de quarenta mil locuções que, não só para decifração charadística mas também
para atalhar a problemas de sinonímia ou achamento de vocábulos ajustados e necessários ao exercício de alguns trabalhos literários, muito útil se tem mostrado. Esta actividade
charadística e a falta de um volume com explicações dirigidas a iniciados, levou-o, inclu26
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
sivamente, a publicar, em 1950, o seu primeiro livro (!), o pequeno manual Como fazer e
decifrar charadas…
Em 1948 estreia-se como amador de teatro, numa sala que existia num primeiro
andar da rua de Nossa Senhora da Conceição (sala conhecida, na altura, por «salão das
beatas»…), interpretando algumas pequenas peças, como «Atribulações de um distraído»,
«Uns comem os figos…», «A bomba», «O poço do bispo», nomeadamente com João Afra,
João Vargas, Manuel Marques Ferreira, Mário Madeira, Francisco Chaves, José Joaquim,
Mário José Gomes, Dionísio Costa, António Bastos, Carlos Sá, Luís dos Santos Costa, Maria
Amélia Baptista, Maria Clotilde Couto, Maria de Jesus, Graciete Guilherme e outros…
Em 1950, com Manuel Marques Ferreira e pela ocasião das Festas em honra de
Nossa Senhora da Boa Viagem, escreve, pagina e publica o número único do jornal O Penichense que, por exigências burocráticas e de censura, saiu com o Sr. João Mendes Madeira
Sobrinho como director e com o professor Sr. Horácio Daniel Ribeirinho Marques como
editor.
A partir da década de 50 colaborou (com poemas, contos, ensaios e trabalhos de
recreio charadístico) em vários jornais e revistas, nomeadamente A Voz do Mar, O Almeirinense, Jornal de Almada, Badaladas, Jornal do Mar, República, Diário Popular, Juventude
Operária, Boletim da Cooperativa do Banco Nacional Ultramarino, Flama, O Charadista, O
Enigma…
Orientou o quinzenário Jornal do Mar, órgão do Apostolado do Mar, de 1969 a
1974.
Tem praticamente concluído (estas coisas nunca estão concluídas…) um Auxiliar de
Arcaísmos, com a compilação de cerca de onze mil entradas.
Fez um (porventura inacabado…) levantamento bibliográfico com vista à elaboração de uma carta arqueológica da região de Peniche.
Colaborou na produção, realização ou interpretação de programas radiofónicos
em: Rádio Clube Português, Rádio Renascença, Emissores Associados de Lisboa, Rádio Ribatejo, Rádio Alto Douro e Emissora Regional das Beiras e, na Emissora Nacional, foi intérprete de uma peça orientada pela escritora Alice Ogando.
Colaborou, em Almada, na formação do Cine-Clube, numa exposição de poesia
ilustrada e encenou, para alunos de um colégio do ensino secundário, uma peça de Gil
Vicente.
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Encenou, em Lisboa, uma peça num acto para a Automática Eléctrica Portuguesa.
A convite do director do Teatro de Ensaio (de Lisboa), João Sarabando, interpretou
um dos personagens da peça «O homem da flor na boca», de Luigi Pirandelo.
Realizou (e colaborou em) Recitais de Poesia em várias localidades do País (Lisboa,
Almeirim, Caldas da Rainha, Conventinho da Arrábida, Sintra, Sobral de Monte Agraço,
Costa de Caparica, Arruda dos Vinhos, Malveira, Peniche…), nos Serões para Trabalhadores
da antiga FNAT e, a convite do artista Igrejas Caeiro, como recitador oficial do antigo agrupamento radiofónico «Os Companheiros da Alegria».
Colaborou, com Igrejas Caeiro e Irene Velez, na produção e interpretação do programa semanal «A Vida é Poesia», para além de, durante alguns anos, ter escrito, diariamente, o diálogo radiofónico «O Casal Caeiro conversa com o companheiro ouvinte».
Em 1958, foi um dos intérpretes do famoso e ousado programa de Matos Maia «A
invasão dos Marcianos» (réplica de «A guerra dos mundos», de Orson Welles) transmitido
por Rádio Renascença e que tanta celeuma levantou e causou fúria entre a Censura de
então.
Em 1983, foi de novo um dos intérpretes de outro inteligente e ousado programa
(«Quando os cientistas sonham»), igualmente de Matos Maia, no Rádio Clube Português.
Em 2010 criou, para a 102FM RÁDIO, um apontamento sobre os 100 anos da implantação da República em Peniche, de que foi um dos intérpretes, tendo sido transmitido
no dia 7 de Outubro.
Como historiador, escritor e poeta, publicou as seguintes obras:
POESIA
Mar de Sempre, 1955 (esgotado).
O Abismo e as Estrelas, 1957 (esgotado).
Fogo de Santelmo, 1973 (esgotado).
Raízes de Maresia, 1995.
A Fuga do Silêncio, 2005.
Nau dos Corvos, 2008.
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FICÇÃO
Contos Portugueses - (de colab.) –Lisboa, Ed. Técnica e Artística, 1964 (esgotado).
Barco
2ª.ed.,1999.
de
Cortiça
(lit.infanto-juvenil),
1ª.ed.,Lisboa,
Multinova,
1978;
Despertar na Campina (lit. infanto-juvenil), Lisboa, Multinova, 1979 (esgotado).
A Maldição das Bruxas de Ferrel, romance, Águas Santas, Sempre-em-Pé, 2006.
TEATRO
Os Passos de Leonor, fantasia em 6 quadros (a publicar).
BIOGRAFIA
D. António Ferreira Viçoso, Bispo de Mariana, 1ª.ed., 1987 (esgotado); 2ª. ed.,
2009.
HISTÓRIA REGIONAL
Peniche na História e na Lenda, 1ª. ed., 1962; 4ª. ed., 1991 (esgotado).
Da Ilha de Peniche, 1994 (esgotado).
Peniche no Século XVIII (As Memórias Paroquiais), 1996.
Visão Cronológica da História de Peniche, 1999.
Fortificações da Região de Peniche, 2000.
História da Renda de Bilros de Peniche, 2003.
Opúsculos e comunicações:
Sobre a Fortaleza de Peniche, Peniche, CMP, 1983.
Sobre o Forte de S. João Baptista na Berlenga, Peniche, CMP, 1983.
Berlenga, a ilha do sonho, 1983.
«A fortaleza de Peniche e a renda de bilros», Actas do II Congresso sobre Monumentos Militares Portugueses, Lisboa, 1983.
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«Os 350 anos da fortaleza de Peniche e a génese da sua construção», Actas do I
Seminário do Património da Região do Oeste, Bombarral, 1995.
«Peniche da ilha à península», palestra a convite da Academia Portuguesa de ExLibris, Lisboa, 1995.
«Lembranças de Almeirim», palestra integrada nas comemorações da elevação de
Almeirim a cidade, a convite da Câmara Municipal de Almeirim, 1996.
«Considerações sobre cultura e património cultural», comunicação apresentada na Semana Cultural de Peniche, organizada pela Associação Juvenil de Peniche, Peniche, 1997.
«As fortificações de Peniche, um património a preservar», Actas do II Seminário do
Património da Região do Oeste, Sobral de Monte Agraço, 1997.
«O património histórico e cultural da área ribeirinha da albufeira do rio de S. Domingos e do litoral adjacente», comunicação apresentada no colóquio A bacia hidrográfica
do rio de S. Domingos e o litoral adjacente, organização da CMP, Ceidro, Draro e Ecoeste,
Atouguia da Baleia, 1997.
«O património histórico e cultural do planalto das Cesaredas», comunicação apresentada no colóquio O planalto das Cesaredas – valor ambiental e paisagístico a preservar, organização de Ceidro e Draro, Serra de El-Rei, 1998.
S . Pedro Gonçalves Telmo. Os pescadores de Peniche e a Confraria do Corpo Santo
– Um pouco de História, 2001.
«Há sempre sol por detrás das nuvens», palestra na Associação dos Reformados do
Concelho de Torres Vedras, 2005.
Os círios de Nossa Senhora dos Remédios, Torres Vedras, CMTV, 2006.
Conversando acerca da História do Hospital de Peniche, Peniche, HP, 2007.
ENSAIO
Como fazer e decifrar charadas, Leiria, 1950.
Auxiliar de Arcaísmos (em preparação).
Outras:
Selecção, prefácio e notas de Ana Maria, de Mariano Vicente, Lisboa, 1987.
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Prefácio de O Tempo e a Voz, de J. Rodrigues Júnior, Lisboa, 1992.
Prefácio de Caleidoscópio I, de Maria do Mar Carvalho, Peniche, 1993.
Prefácio de Caleidoscópio II, de Maria do Mar Carvalho, Peniche, 1994.
Prefácio de O eterno retorno, de Amélia Lacerda, Mafra, 1999.
Prefácio de Fragmentos de Silêncios, de António Alves Seara, Mafra, 2000.
Prefácio de Há barcos no cais, de Alice Pitau., Lisboa, 2002.
Prefácio de O mar, o amor e o tempo, de Ida Guilherme, Torres Vedras, 2005.
Prefácio de Tudo começou no mar –Peniche nos meus versos, de Vítor Russo, Torres
Vedras, 2008.
Prefácio de Um rio chamado ilusão, de António Alves Seara, Caminho das Águas
Editora, Caldas da Rainha, 2009.
Prefácio de Em solidão cresce este mar azul, de João Delgado Godinho, Terramar,
Lisboa, 2010.
Apresentação de várias obras, a solicitação dos seus autores, aquando dos respectivos lançamentos.
V – INTERVENÇÃO CÍVICA E POLÍTICA
Foi presidente da secção de Peniche da Juventude Operária Católica, de 1947 a 1952.
Em 1956 incita incessantemente Luís dos Santos Costa a fundar A Voz do Mar, ao
que ele acedeu, sendo seu colaborador desde o Nº. 1.
Subscreveu, conjuntamente com dezenas de activistas católicos e desde 1958, vários documentos de protesto contra a ditadura do Estado Novo.
Foi membro da Cooperativa Cultural Pragma.
Em 1959 foi detido pela PIDE e esteve preso nas Cadeias do Aljube e de Caxias, por
ter dado a sua participação ao chamado Golpe da Sé como um dos eventuais responsáveis
pela futura comunicação social, livre da Censura.
Na década de 60, em comemorações da Acção Católica, escreveu e encenou dois
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
Jogos Cénicos, levados a efeito, com dezenas de participantes, no Pavilhão Carlos Lopes e
no Estádio do Restelo.
Em 1962, sugeriu a hipótese da ligação dos mares do norte e do sul através do prolongamento do fosso e de uma ponte de entrada no Portão de Peniche de Cima, sugestão
que já fora proposta num projecto de Nicolau de Langres em 1650.
Também em 1962, sugeriu o alargamento e aproveitamento do fosso das muralhas
para a criação de um parque náutico para pequenos barcos a remos ou à vela e uma necessária abertura na muralha para comunicação com o Jardim, esta, aliás, já programada
há mais de cem anos.
Intervenção no 1º de Maio de 1974, na varanda dos Paços do Concelho.
Em 1975, foi candidato a deputado pelo Círculo de Leiria à Assembleia Constituinte, nas listas da Frente Socialista Popular.
Co-fundador do Sindicato Nacional dos Psicólogos, de que foi o Sócio Nº.3.
Membro da Comissão responsável pela elaboração do Código Ético do Psicólogo.
Em 1981 inicia uma campanha para a construção de um monumento em homenagem ao seu professor primário, Francisco Maria Freire, ilustre e devotado pedagogo com
cerca de 40 anos de ensino em Peniche, monumento que, pela gratidão e contribuição de
muitos dos seus antigos alunos, foi inaugurado no ano seguinte, no Largo em frente da
Escola Nº. 1.
Depois de, durante alguns anos, ter defendido a necessidade da existência de um
Museu, promoveu, em 1982, uma reunião para a qual convidou algumas pessoas interessadas no assunto. Apresentou-lhes, nessa ocasião, um extenso documento para reflexão.
Finalmente, em 1984, a CMP, da Presidência de Fátima Pata, resolveu assumir a criação do
Museu de Peniche.
Em 1986, a convite da engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo aquando da sua
candidatura à Presidência da República, foi seu mandatário no concelho de Setúbal, onde
então residia.
Fez parte, em Lisboa, dos corpos dirigentes do extinto MAD – Movimento para o
Aprofundamento da Democracia.
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Em Lisboa, foi co-fundador e dirigente da Abril – Associação Regional para a Democracia e o Desenvolvimento.
Membro do Partido Socialista desde 1990.
Sugeriu e organizou, em 1990, o I Concurso de Rendas de Bilros de Peniche por
ocasião do Dia da Rendilheira, defendendo a sua continuidade anual.
Sugeriu a realização anual dos Jogos Florais de Peniche.
Defendeu, por várias vezes, publicamente, a preservação do antigo edifício da Central Eléctrica para, nomeadamente, a sua adaptação a Biblioteca Municipal, ou Museu.
Membro da Assembleia Municipal de Peniche, eleito nas listas do P.S., de 1990 a 1998.
Defendeu, nomeadamente quando foi deputado municipal, que se levantasse um
monumento em memória de D. António Ferreira Viçoso, Bispo de Mariana (cujo processo
de beatificação se encontra em Roma), que acabou por ser inaugurado, no Largo da Igreja
de Nossa Senhora da Ajuda, em 8 de Maio de 1994.
Lembrou e defendeu, com entusiasmo, a sugestão, dada anos atrás por António
Alves Seara, da justa e urgente criação de um Monumento ao Homem do Mar.
A pedido do então Director do Hospital (Dr. Coelho) aos deputados municipais para
que sugerissem nomes para o novo hospital, em cumprimento da lei que acabara de ser
publicada, foi sua a sugestão que veio a ser aprovada: Hospital S. Pedro Gonçalves Telmo,
justificada esta por ter sido a confraria de S. Telmo quem, no século XVI, iniciara a assistência social em Peniche.
Propôs e defendeu a geminação de Peniche com Mariana (Brasil).
Intervenção na Fortaleza, em vários dos aniversários do 25 de Abril.
É membro:
• da Associação Portuguesa de Escritores;
• da Associação Portuguesa dos Amigos dos Castelos (de cujos órgãos sociais fez
parte);
• do Fórum Abel Varzim;
• do CPIHTS, Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social;
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
• da Tertúlia Edípica.
• da Peniche-Rendibilros - Associação para a defesa e promoção das rendas de
bilros de Peniche (de que foi um dos fundadores e de cujos órgãos sociais faz
parte);
• da Patrimonium -Centro de Estudos e Preservação do Património Cultural de Peniche (de que foi um dos fundadores e de cujos órgãos sociais faz parte);
• da AUSP, Associação Cultural Sénior de Peniche (de que foi um dos fundadores e
de cujos órgãos sociais faz parte), entidade a que pertence a Universidade Sénior
de Peniche que, anteriormente, sugerira dever ser criada.
• da Associação de Educação Física, Cultural e Recreativa Penichense;
• do Clube Recreativo Penichense;
• dos Bombeiros Voluntários de Peniche.
VI – VÁRIA
Em 1959, nos Jogos Florais da Vila de Peniche comemorativos do 350º. aniversário
da elevação da povoação a Vila e sede de Concelho, foi-lhe atribuído o título de «Príncipe
dos Poetas de Peniche» pela classificação alcançada na categoria «Poesia de exaltação de
uma figura ou momento da História de Peniche» (D.Luís de Ataíde), de sua autoria.
Foi-lhe conferido, em 1962, por unanimidade da Vereação, o título de Cidadão Honorário de Peniche, com atribuição da Medalha de Recompensa (Ouro) de Peniche.
Foi nomeado Sócio Honorário do CPIHTS, Centro Português de Investigação em
História e Trabalho Social.
Referenciado na Grande Enciclopédia Luso-Brasileira, Vol. XL, Fasc.480, pg.817.
Idem no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses , Vol.V.
Idem no Dicionário dos Autores do Distrito de Leiria.
Em 1996 foi homenageado pelo Rotary Club de Peniche em «reconhecimento pelos serviços prestados à comunidade».
Em Fevereiro de 2000, na sequência de proposta apresentada pelo então Presidente da Assembleia Municipal de Peniche (António José Leitão) a Câmara Municipal de
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Peniche deliberou atribuir o seu nome a uma avenida da cidade, na «artéria correspondente à antiga Estrada Nacional 114, entre o Portão de Peniche de Cima e a Avenida General
Humberto Delgado».
Em 2001, na Gala Peniche 2001-102, organização da 102 FM Rádio, foi-lhe atribuído o Prémio Prestígio e Cultura.
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Mariano Calado
Ana Margarida Silva Batalha1
Foi-me proposta a realização de um artigo acerca de um dos maiores amigos que
Peniche tem. Desde a sua infância, em parte passada a olhar o mar, a partir dos Remédios,
cresceu uma afeição e um sentimento de pertença, devidamente acarinhado ao longo dos
anos que se lhe seguiram. A ligação que criou com Peniche e as suas gentes, nunca parou
de crescer, eu diria mesmo que se agigantou, tornando o seu nome uma referência incontornável, quer ao nível cívico e da cidadania activa, quer a nível da defesa do Património e
da História Local e Regional.
Efectivamente, Mariano Calado, como penso que já se tornou evidente, sendo pois
a ele que me refiro, é e será, sempre que se falar de Peniche e da sua História e Cultura,
um nome e uma obra vasta, dificilmente alcançável no carinho e no conhecimento que
altruisticamente sempre pôs ao serviço desta “Terra que o mar abraça”.
Não se trata aqui de fazer qualquer panegírico. Os elogios para uma figura como
Mariano Calado ficam sempre curtos e aquém da realidade, como eu a conheço, no que
se refere a este verdadeiro penichense ou penicheiro, conforme for do agrado do leitor. O
Mariano Calado, o poeta e sobretudo o historiador é aquele que eu aqui pretendo evocar.
O meu colega de mestrado, que me honra com a sua amizade, o meu colega de combates
pelo património de Peniche, sempre ao lado das causas humanas e culturais do nosso
concelho, é dele que pretendo, sem a arrogância ou o atrevimento de presumir demasiado
acerca da sua paciência e bonomia, escrever algumas linhas apenas para sublinhar o quanto o admiramos, eu e muitos que em Peniche vivem.
A diversidade da intervenção literária e científica de Mariano Calado, traduzida
em poema, verso, prosa, discurso científico, romance, romance histórico, abarca vertentes
que tem como máximo denominador comum a sua dedicação a Peniche e à sua região. Ao
longo dos anos em que tem vivido na região que adoptou como sua, tem tido uma intensa
e elevada participação humanista, construindo uma imagem de empenhado e profundo
conhecedor das coisas e das causas em que se envolve, sempre em nome dos elevados
padrões do amor e da amizade que devota à nossa terra e à sua população. Se Mariano
1 Mestre em História Regional e Local. Professora no Agrupamento da Atouguia da Baleia.
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Calado não é um penichense, nado e criado, trata-se apenas de uma contingência, pois
pelo estatuto que alcançou ele é já “nosso”, isto é pertence a Peniche, faz parte do nosso
património e da nossa história e cultura, constituindo uma bandeira e um exemplo para
todos os que aqui nasceram.
O que acabo de escrever é uma singela constatação, de todos conhecida. O Mariano Calado honra-nos com a sua amizade e enriquece-nos com o seu conhecimento, o qual
partilha generosamente, em conversas, em palestras, colóquios e intervenções públicas,
mas também em artigos e livros. A sua escrita, prodigiosa pela habilidade comunicacional
e pelo ênfase dado ao verbo, torna-se um verdadeiro edifício de cultura e de conhecimento, em que o autor abre a sua alma e nos deixa antever e perceber através dos seus olhos
feitos letra, um mundo, ora poético ora científico, ora lúdico ora paladino de causas.
Centrando agora a nossa atenção sobre a sua obra, poderíamos dizer que dificilmente podemos distinguir, de entre o que já publicou, algum livro que mais se destaque.
Toda a sua obra, qualitativamente, se encontra num limiar bastante elevado, quer a nível
científico quer a nível literário, tornando injusto destacar este ou aquele título. De resto,
em Mariano Calado a poesia e a prosa estão repassadas de História e por outro lado a sua
produção historiográfica é um excelente exemplo de que se pode juntar a riqueza literária
ao discurso científico, com ganhos significativos para o leitor. Longe vão os tempos em que
a prosa científica tinha que ser enfadonha e despida de artifício e beleza literária para ser
levada a sério.
O nosso Mariano Calado abre o discurso historiográfico a um patamar de beleza da
palavra escrita que aligeira a tarefa do leitor, o qual é conduzido pelos factos, fontes, análises e interpretações de forma agradável, em que transparece a vitalidade e o alinhamento
do autor, sem que se perca a História-Ciência.
Sem recorrer ao romance histórico, em que Mariano Calado também fez a sua
incursão em A Maldição das Bruxas de Ferrel, trata-se de um autor que alcança facilmente
no seu discurso histórico, escrito ou falado, um saudável equilíbrio entre a fluência e seriedade científica e a qualidade e o entusiasmo emotivo da forma. Naquela obra, o conhecimento histórico, factual e concreto, adquirido pelo autor ao longo de anos de pesquisa
permite-lhe criar um ponto de partida, um enredo e um ambiente credível para um romance histórico sucedido. Relacionando o que poderia ter sido em 1699, com o que ocorreu
em 1976, utilizando a credibilidade das fontes históricas e preenchendo os espaços e as
necessidades do enredo com uma prolífica imaginação, servindo um objectivo final, cívico,
construtivo, apelativo e actual: o direito dos povos a intervir e a fazer o seu futuro e as
diferentes imagens do “mal”, ou os males de ontem e de hoje.
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Mas como dizíamos há pouco, se nos parece qualitativamente injusto destacar um
título ou outro, já da parte da expressão e conhecimento da sua obra junto do público em
geral, a sua marca mais emblemática é, sem dúvida, Peniche na História e Na Lenda. Publicado na sua 1ª edição em 1962 e sucessivamente reeditado, é sem dúvida a grande obra de
referência, abarcando a pré-história e história locais, abordando também temáticas mais
ou menos antropológicas/sociológicas e patrimoniais, sobretudo nos domínios da lendas
e tradições, fazendo uma abundante referenciação de fontes e autores que em diferentes
momentos aludiram a esta região.
Obviamente, “Peniche na História e na Lenda”, tratando-se de uma primeira incursão no domínio historiográfico, sofreu ao longo dos anos e das suas sucessivas reedições,
um trabalho de afeiçoamento aos desenvolvimentos que o autor foi ele próprio sofrendo,
quer no seu percurso individual quer no sentido do aprofundar das temáticas abordadas,
até à sua 4ª edição em 1991.
A Obra e o Autor são naturalmente filhos do seu tempo, como diria Fernand Braudel, e assim o mesmo acontece com Peniche na História e na Lenda, cujo alcance só poderá
ser verdadeiramente apreendido através de outros títulos que Mariano Calado levou ao
prelo e que tratam de temáticas mais parcelares, menos gerais mas que dão conta de uma
extraordinária maturação da componente historiográfica, metodológica e epistemológica.
É neste contexto que se integram e deverão entender as extraordinárias contribuições de: Da ilha de Peniche, editado em 1994; Peniche no século XVIII ; As Memórias Paroquiais, de 1996; Visão Cronológica da História de Peniche, editado em 1999; Fortificações
da Região de Peniche, de 2000; História das Rendas de Bilros de Peniche, em 2003.
Exploremos esta bibliografia. Da Ilha de Peniche, aborda uma das mais interessantes características da nossa região: a sua evolução geomorfológica. Esta evolução da morfologia da costa condiciona toda a relação desta população com o mar e o respectivo interland. Mariano Calado, sustentado por fontes devidamente trabalhadas do ponto de vista
científico, apresenta aqui uma perspectiva evolutiva da costa de Peniche e a sua relação
com o povoamento respectivo. Os avanços e recuos do mar, claramente documentados,
apresentam-nos um dinamismo costeiro que coloca a ilha de Peniche na chamada “Crónica
de Osberno” (séc. XII), dando conta do progressivo assoreamento da foz do rio de S. Domingos; a formação da lagoa de Peniche, com as difíceis travessias do istmo, inicialmente
temporário e progressivamente cada vez mais estável, até apresentar a configuração dos
nossos dias.
As memórias paroquiais, publicadas em 1996, por Mariano Calado, constituem
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
uma inequívoca intervenção do autor no domínio da publicação de fontes históricas. Tratase de um trabalho menos interpretativo, mas onde as notas de fim de página conferem um
sentido orientador e complementar de informação ao leitor. Mariano Calado aparece nessa obra com uma abordagem científica, fascinada pelo discurso em primeira mão prestado
pelos párocos das diferentes freguesias dos então concelhos de Atouguia e de Peniche. A
pedido do rei, são remetidos inquéritos à elite letrada do século XVIII em Portugal para que
descrevam os aspectos mais marcantes de cada freguesia. As respostas são um repositório
fundamental e esclarecedor do séc. XVIII nesta nossa região, tocando todas as vertentes da
actividade humana aqui desenvolvida.
A Visão Cronológica da História de Peniche, constitui um precioso auxiliar para
quem pretenda iniciar o contacto com a História local, na medida em que sequencializa alguns dos momentos marcantes da história da região, de uma forma sintética e prática. Não
fazendo uso de um aparato bibliográfico ou da indicação de fontes históricas, ao contrário
da obra anteriormente descrita, serve um público diferente, menos iniciado nas lides historiográficas. Deste modo, Mariano Calado consegue alcançar uma outra audiência, menos
interessada na faceta científica e mais dada a procurar o “simples” saber mais acerca da
sua terra.
Como Mariano Calado entendeu muito bem, as populações só valorizam o que
conhecem e se não lhes for dada oportunidade de conhecer melhor a sua terra, a sua
história e o seu património, como poderíamos então esperar que os nossos conterrâneos
valorizassem e se revissem num sentimento de pertença cada vez mais apertado acerca do
seu passado. Não o passado pelo passado, mas o conhecimento e valorização do passado
como meio de clarificação e assunção de referenciais que sejam reconhecidos e compreendidos como alicerces do futuro e que garantam uma base sólida e estável para a construção das gerações futuras.
Assim, o historiador Mariano Calado, não esgota a sua intervenção historiográfica,
produzindo ao serviço de elites ensimesmadas de adoradoras da musa da História, antes
procura colocar a História da nossa região ao alcance e ao serviço de mais e mais gente.
Não se trata de exaltar saudosismos ou de exibição de conhecimento, trata-se, com Mariano Calado, de uma partilha generosa e entusiasta de informação, para claramente se
mostrar a firmeza dos alicerces culturais das gentes que fizeram o que nós hoje somos,
garantindo a segurança e a esperança na construção de um futuro sustentado.
Em 2000, Mariano Calado dá ao prelo as Fortificações da região de Peniche. Tratase de um trabalho científico, apurado e decantado, que teve por base a sua tese de mes40
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trado em História Regional e Local, a qual foi reconhecida com a máxima avaliação pelo
respectivo júri na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
A temática gira em torno da temática do património militar no concelho de Peniche, o qual apesar de riquíssimo está constantemente sob risco de perda, quer pela acção
humana quer pela acção das intempéries ou pelo simples e paulatino desgaste provocado
pelo tempo e pelo mar. Trata-se de um brilhante e completo périplo pelas fortificações de
Peniche, ao longo do tempo e das gentes que nelas e com elas conviveram.
Esta obra recoloca claramente a perspectiva das fortificações de Peniche naquilo
de que efectivamente se trata. A memória curta, apesar de ser extremamente importante
pode ser bastante redutora quando analisamos elementos estruturantes do quotidiano
das populações, com longevidade multissecular.
Efectivamente, hoje, a fortaleza de Peniche é confundida com a prisão que durante
décadas serviu o Estado Novo. Mariano Calado não pretende nem efectua o branqueamento desse período, nem dessa utilização, mas pretende mais que abordar o século XX,
dar voz aos restantes séculos de história das fortificações do concelho, pelo que de positivo
fizeram pelos povos desta região (e mesmo do país): defesa das populações contra corsários, piratas, invasores (franceses, Ingleses) e guerras civis.
As fortificações de Peniche, na óptica de Mariano Calado, não são só sentinelas
nas muralhas e soldados nas casernas. As fortificações são-nos apresentadas como um
elemento de ligação e interacção com as populações locais, nem sempre uma sombra positiva ou negativa, mas sempre um elemento fundamental na evolução dos dinamismos da
região.
Finalmente, com a História das Rendas de Bilros de Peniche, Mariano Calado surgenos também como um historiador do quotidiano. Desde sempre associado ao associativismo em prol do património local, desde o seu início, Mariano Calado associou o seu nome
à defesa e promoção desse elemento tão fortemente identitário como são as rendas de
bilros na nossa região. A beleza e o potencial que este património representa, mereceram–
lhe uma especial atenção e resultou na obra com mais cuidadosa apresentação gráfica e
de maior plasticidade. É nas suas páginas que encontramos a beleza da História associada
à beleza da escrita e à beleza das rendas de bilros.
A História das Rendas de Bilros de Peniche, editada em 2003, será sem qualquer
dúvida a obra de referência para esta temática historiográfica e constitui um importantíssimo contributo para a preservação deste património. Outro aspecto interessante nesta
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
obra, foi o recurso a um tipo de fontes históricas cujo uso é muito menos frequente do que
as fontes escritas, estou a referir-me aos testemunhos orais. Note-se que este tipo de fonte
exige outro tipo de intervenção em termos de crítica histórica, mas resulta normalmente
num manancial informativo que ao ser reduzido a escrito alcança uma perenidade que a
história recente raramente usufrui.
Joeirar fontes da actualidade revelam-se um escolho por vezes demasiado difícil de
remover para um historiador incauto. Não foi o caso de Mariano Calado, o qual conseguiu
seleccionar a informação necessária, suficiente e correcta para ultrapassar o anedotário
da história com letra pequena e alcançar um verdadeiro ex- libris em defesa do património
da sua região.
Em matéria historiográfica este foi o mais recente contributo de Mariano Calado,
embora este meu amigo sempre consiga surpreender-nos com novas ideias, novos projectos e novas publicações. Assim, aguardo com expectativa o título da próxima.
A escrever desde 1955, Mariano Calado concedeu à poesia uma grande parte da
sua alma, felizmente que sobrou bastante para os restantes géneros e forma literárias e
culturais. O seu primeiro livro, de poesia, Mar de Sempre, foi publicado em 1955. Depois
de O Abismo e as Estrelas (1957) e de Fogo de Santelmo, em 1995 publicou Raízes de Maresia, onde se respiram, em permanente entusiasmo pela aventura e pela beleza e numa
surpreendente simbiose, os cheiros a mar e a campina. Em 2005, sob o título A Fuga do
Silêncio, publicou novos poemas.
Em 2009, surge o mais recente livro de poesia de Mariano Calado, Nau dos Corvos,
com o mar e a História sempre no horizonte poético, Mariano apresenta-se-nos num percurso feito de muitos passos e carregado de afectividade.
O poema que se segue pertence a este último trabalho, seleccionado por razões
meramente pessoais, e por me parecer bem o exemplo daquilo que faz de Mariano Calado
um verdadeiro elemento patrimonial vivo da nossa terra:
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POVO QUE VIVES DO MAR
Povo que vives do mar,
que no mar vives e sonhas,
ah, meu povo de cantar,
meu povo de sol a sol,
meu povo de mar a mar,
meu povo de mareantes
de naufrágios e chorar,
meu povo de velejar
com sereias e ternura,
companha do meu sonhar,
que vives com a loucura
de lendas para contar,
traineira da minha vida
toda de rendas vestida.
Oh, vai, meu povo moreno,
oh, vai, minha terra-força
Que tens a força do mar,
que matas a fome e o frio
à sombra do teu navio,
Nau dos Corvos, minha nau
Que não se deixa afundar.
Como eu te quero, meu povo,
sempre antigo e sempre novo,
meu povo de mar a mar!
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PROJECTO DE ESCAVAÇÃO ARQUEOLÓGICA DO SÍTIO DO MORRAÇAL
DA AJUDA - CIDADE DE PENICHE
A Câmara Municipal de Peniche que tem promovido, desde 1998, o estudo do mais
importante sítio arqueológico do período romano do município e que foi considerado, pela
eminente arqueóloga francesa Françoise Mayet, da Universidade de Bordéus III, no Simpósio Internacional de Fornos Romanos, no Seixal, como a mais importante descoberta
da antiguidade clássica que se fez na antiga província romana da Lusitânia, nos últimos 20
anos, no que diz respeito à panóplia de produção cerâmica até ao momento estudada.
Este projecto arqueológico tem permitido conhecer e compreender melhor este
sítio de época romana, as repercussões que teve no território da então ilha de Peniche e as
dinâmicas sociais e comerciais a este relacionadas.
Peniche terá sido entre o século I e IV da nossa era um centro produtor de ânforas
– contentores utilizados para o transporte de produtos na época romana – produção esta
que estaria associada ao importante porto marítimo de Peniche, central nas rotas comerciais que ligavam o Mediterrâneo ao Norte Atlântico. O estudo dos materiais anfóricos recolhidos permite afirmar que esta olaria alimentaria uma importante produção conserveira desenvolvida na área do actual concelho de Peniche, já que as ânforas aqui produzidas
destinar-se-iam essencialmente ao envase de conservas de peixe, facto demonstrativo da
antiguidade desta, ainda hoje, importante indústria local.
Evocando esta presença romana assiste-se, presentemente, à reprodução em miniatura de ânforas produzidas nesta olaria, em cerâmica e até sobre a forma de renda de
bilros de Peniche, reflexo da apropriação por parte da comunidade de Peniche desta realidade histórica.
A valorização do passado conserveiro do concelho de Peniche motivou o lançamento, por parte da Câmara Municipal de Peniche, em Julho de 2009, de uma campanha
de promoção de um dos seus maiores recursos endógenos - a sardinha -, intitulada “Peniche, Há 2000 anos a produzir conservas”.
Esta espécie, frequentemente utilizada na produção de preparados piscícolas du45
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
rante a época romana, pela sua abundância e relativa facilidade de captura e de conservação, terá alimentado a indústria conserveira implantada no actual território de Peniche. No
âmbito desta campanha foram produzidas 50 mil latas de conserva, comercializadas pela
autarquia e pelo comércio local. Ontem, como hoje, a sardinha de Peniche afirmava-se como produto de excelência
à escala global.
Pretendendo-se a valorização deste património arqueológico, associada ao projecto de Rede Museológica do Concelho de Peniche, em curso, a Câmara Municipal de Peniche encontra-se presentemente a elaborar, em articulação com a equipa de arqueologia
responsável pelos trabalhos, um projecto de musealização das estruturas identificadas,
tendo como objectivos a adequada preservação e conservação destas e, simultaneamente,
permitir a interpretação e visitação deste sítio de impar importância para a história piscatória deste território. 46
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VESTÍGIOS DE UMA OLARIA ROMANA NO MORRAÇAL DA AJUDA – PENICHE
Guilherme Cardoso2
Severino Rodrigues
Eurico de Sepúlveda
Inês Alves Ribeiro
Introdução
A Arqueologia é uma ciência auxiliar da História que utiliza processos próprios de
análise de vestígios antrópicos, de modo a transformar a sua leitura em documentos históricos que possam ser lidos e interpretados por historiadores, que assim conseguem analisar comunidades que deixaram insuficientes registos escritos.
Foi durante muito tempo exclusivamente empregue para o estudo dos vestígios
materiais até ao período romano, negligenciando o estudo das épocas posteriores, salvo
raras excepções, para as quais os documentos escritos fornecem já a informação essencial.
Hoje, devido ao seu desenvolvidamente como ciência, a Arqueologia ganhou importância
servindo, inclusivamente, para análise da época contemporânea, nomeadamente das técnicas de fabrico e construção, casos da Arqueologia Industrial e Militar, áreas em que as
informações se revelam mais escassas.
A Arqueologia debruça-se sobre os contextos: as estruturas e os objectos cientificamente recolhidos. No caso da olaria romana do Morraçal da Ajuda temos as duas daí
a grande importância de que se reveste o seu estudo, possibilitando várias abordagens
analíticas e comparativas, nomeadamente com outros sítios já investigados, permitindo
reconstituir um pouco da vivência da sociedade romana local.
Peniche na época Romana
Há dois mil anos, Peniche era uma ilha, formada na sequência da transgressão marítima ocorrida cerca de 10.000 anos, quando o degelo das calotes polares que se seguiu
à última glaciação (Wurm), levou à subida do nível do oceano Atlântico em mais de 100
metros.
2 Assembleia Distrital de Lisboa. Os restantes arqueólogos são elementos da Associação Cultural de Cascais.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
A primeira referência a Peniche encontra-se na Orla Marítima, de Avieno, traduzida para latim durante o século IV d. C., de um poema massiliota do século VI a. C., que em
determinado momento refere: “…Em seguida, encontra-se no meio do mar uma ilha abundante de ervas e consagrada a Saturno. Nela a força da natureza é tanta que, se alguém
navegando próximo dela, de imediato em volta o mar se excita: a própria ilha se agita e
a água revolta-se toda, fortemente embravecida, enquanto o resto do pélago permanece
silencioso como se fora um tanque…” (Ferreira, 1985, 21 e 22). Trata-se de uma descrição
mitológica, que pretendia manter afastados da região, pelo medo, outros navegadores mediterrânicos que quisessem usufruir das riquezas desta região peninsular.
No século I a. C., na crónica de Díon Cássio, sobre a campanha de Júlio César, durante a conquista da Lusitânia, surge uma referência a uma ilha, que se pensa ser Peniche,
onde um grupo de lusitanos se refugiou durante a perseguição que aquele general lhes
moveu, após ter atacado a cidade lusitana de Meidubriga.
Até Março de 1998 (Cardoso, Gonçalves e Rodrigues, 1998, 178), quando foi identificado um forno romano de cerâmica no Morraçal da Ajuda – durante obras de terraplanagem para a construção dos courts de ténis e da sede do Clube de Ténis de Peniche, em
Peniche só se conhecia, daquele período, uma inscrição tumular romana (Venâncio, 2000,
261) e a cabeça de uma pequena imagem antropomórfica de terracota (Vasconcelos, 1956,
185). Entretanto, as escavações arqueológicas realizadas no Morraçal, até 2001, puseram a
descoberto mais três fornos e várias entulheiras dispersas em seu redor.
Durante as obras de alargamento do Porto de Pesca de Peniche, em 2001 e 2002,
foram também recolhidos vários fragmentos de ânforas e materiais de construção romanos, de fabrico local (Venâncio, 2006, 85-89).
Em 2005, prospecções que elementos da equipa de arqueólogos do Morraçal da
Ajuda realizaram na rua das Operárias Conserveiras, detectaram-se diversos vestígios romanos, a cerca de um metro de profundidade, num estrato de argila.
Rui Venâncio, em 2006, identificou uma série de bolsas com materiais romanos,
durante a abertura de caboucos de uma urbanização, 170 metros a Nordeste da figlina3 do
Morraçal da Ajuda. A continuação da escavação do sítio pelos arqueólogos Tiago Fontes e
Raquel Santos, da empresa de arqueologia Neoépica, colocou à vista, numa área de cerca
de 600m2, uma série de estruturas do Alto Império, ligadas, provavelmente, a instalações
portuárias, estando o piso completamente atapetado de fragmentos de cerâmica provenientes, na sua maioria, da produção dos fornos de cerâmica do Morraçal, a par de alguns
3 Olaria.
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materiais importados (Neto, Rebelo, Santos e Fontes, 2007, 156).
Entretanto, a descoberta e recuperação de vestígios cerâmicos no mar, na zona
sul de Peniche, frente aos Cortiçais, por uma equipa do Centro Nacional de Actividades
Subaquáticas, dirigida por Jean-Yve Blot, possibilitou a identificação de um navio romano
transportando ânforas béticas que ali teria naufragado no século I (Blot et alii, 2006).
A figlina do Morraçal
A instalação de uma olaria no local do Morraçal terá ocorrido durante o principado de Augusto. Esta é, sem dúvida, uma das mais antigas olarias romanas existente na
Lusitânia, durante os inícios do Império. A sua construção deve-se, certamente, à fixação,
em Peniche, de um colono romano originário da Península Itálica, muito provavelmente o
produtor de ânforas Lúcio Arvénio Rústico, de que existem mais de uma centena de selos
estampados em colos (gargalos) de ânforas, recolhidos nas entulheiras de rejeitados da
figlina.
Tanto as técnicas de construção dos fornos como a sua distribuição no espaço da
oficina, demonstram que o seu proprietário dominava os conhecimentos do ofício de oleiro, empregues na época. De realçar o cuidado que colocou, pelo menos na fase inicial da
laboração, num fabrico de qualidade de ânforas e de cerâmicas de “paredes finas” (copos,
púcaros, taças e jarros para irem à mesa, que se caracterizam por terem as paredes pouco
espessas).
Os fornos
Os fornos são todos de planta circular, de corredor central, com fundações e câmara de combustão abertas no substrato geológico, constituído por margas esbranquiçadas,
para dar maior robustez às estruturas, evitando que as grandes variações térmicas a que se
encontravam sujeitas as danificassem, aproveitando, simultaneamente, o declive natural
do terreno, de modo a criar uma rampa pouco acentuada de acesso à fornalha.
As paredes externas dos fornos, com cerca de 0,8 metros de espessura, eram de
adobe, ligadas com argila e reforçadas com grandes fragmentos de ânforas que, conforme
se sucediam as fornadas, iam sendo cozidos, dando-lhes assim uma maior resistência. Nas
zonas mais externas e mais afastadas do calor central, os adobes ainda hoje se mantêm em
barro verde. Por sua vez, os arcos de suspensura, de volta perfeita, eram construídos com
tijolos maciços, previamente cozidos. As áreas anexas aos praefurniae (boca da fornalha,
onde se queimava a lenha para aquecer o forno) dos fornos 1 e 3 e a entrada da câmara de
cocção do forno 1 eram protegidas por telheiros apoiados em muros de alvenaria seca.
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O praefurnium do forno 1, de planta quadrangular, situado no extremo da galeria
de acesso à fornalha, é delimitado por um murete de tijolos com vestígios de vidrado à
superfície, resultante do reaproveitamento das antigas paredes do interior da câmara de
combustão, certamente quando estas sofriam obras periódicas de restauro4.
A câmara de cocção do forno 1 era separada da fornalha por uma grelha de tijoleira, com diversos olheiros, apoiada sobre arcos de tijolos, perpendiculares à abertura central e espaçados entre si, para assim se obter uma melhor distribuição do calor na câmara.
Toda a estrutura de suporte – ou seja, os arcos e a grelha – foi construída de raiz com tijolo
burro; as outras partes do forno eram de adobe.
O forno 1, quanto às dimensões, apurou-se ter 3,25 metros de diâmetro interno,
com 1,1 metros de altura na câmara de cozedura, enquanto o forno 3 media 3,95 metros
de diâmetro interno, faltando-lhe a grelha e toda a parte superior e finalmente o forno 2,
mais pequeno do que os outros, encontrava-se em mau estado de conservação, subsistindo unicamente parte da parede do alicerce sul, pelo que não foi possível conhecer o seu
diâmetro e comprimento correctos. No caso do forno 4, só se detectaram parte de dois dos
arcos de suspensura e de uma das paredes laterais.
Durante a escavação da câmara de cocção do forno 1, não foi observado qualquer
tipo de vestígio de cúpula, o que leva a supor que esta não seria fechada. Esta técnica possibilita enfornar e desenfornar rapidamente, sendo empregue ainda hoje, por exemplo,
em S. Pedro do Corval, Reguengos de Monsaraz, cobrindo-se, para isso, a parte superior
das peças a cozer com fragmentos de louça defeituosa, para se evitar o contacto directo
daquelas com o ar, durante a cozedura e na fase posterior, de arrefecimento.
O Forno 3 encontra-se situado na mesma área que era destinada aos courts e foi
identificado aquando da escavação do Forno 2. O aparecimento de uma vasta mancha de
cor alaranjada e cinza indiciou a existência de algo relacionado com a estrutura, selada, de
um forno de grandes dimensões.
A escavação permitiu colocar a descoberto apenas o que restava dessa enorme estrutura, que não possuía a parte superior, ou seja, a câmara de cocção, nem sequer restos
da grelha. Apresentava, no entanto, um diâmetro de perto de 4 metros (3,95 m), em que
4 Segundo o mestre Domingos Silva, oleiro de Muge, o vidrado forma-se normalmente à superfície dos tijolos
da fornalha após cerca de cem cozeduras. A perda de propriedades destes tijolos, devido às constantes cozeduras, obriga a que o oleiro os substitua esporadicamente, para evitar que a grelha desmorone. A duração de
um forno depende da técnica de construção e da sua manutenção, podendo durar perfeitamente cem anos,
como é o caso do existente na olaria de Muge, construído segundo a mesma técnica dos de Peniche, em que
as paredes originais são de tijolo de adobe e os restauros em tijolo burro.
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estavam circunscritos os arranques de cinco suspensuræ em tijoleira. Definiu-se, também,
um corredor de acesso ao præfurnium, que se encontrava totalmente preenchido por
materiais, entre os quais muitos rejeitados de cozeduras, que pensamos ser das últimas
produções, com lugar de destaque para a enorme quantidade de grandes fragmentos de
ânfora, para além de madeira queimada, cinzas, adobes, pedaços de tijoleira (que se revelaram pouco abundantes), e blocos de pedra (que se supõe terem pertencido às paredes
do telheiro do praefurnium). O seu entulhamento parece-nos ter sido bastante rápido.
É de referir que se conseguiu verificar o colapso da parede meridional, em direcção a sul/sudeste. No entanto, não foi possível apurar se este se deveu à pressão exercida
pela referida máquina ou se por efeito do entulhamento do forno.
Por sua vez, um quarto forno foi localizado no lado nascente do sítio arqueológico,
muito perto da Rua Calouste Gulbenkian.
Alinhamento de ânforas S9
Em 2003 descobriu-se um pequeno alinhamento de quatro ânforas Dressel 14 tardias, com boca de trompeta, paralelas a um muro de alvenaria de pedra seca, localizado a
norte da sondagem S1 (Cardoso, Rodrigues e Sepúlveda, 2006, 257). Em 2009 escavou-se
outro quadrado, mais para nascente, onde se encontrou a mesma situação com as bocas
de ânforas alinhadas pelo muro de alvenaria, do lado norte.
Temos paralelos para este tipo de estruturas na olaria do Porto dos Cacos, onde foram utilizadas ânforas D. 14, a que faltam apenas os fundos (Raposo, 1990, p. 121-122). Na
olaria romana de Can Peixau apareceram diversos alinhamentos realizados com a metade
de ânforas da forma Pascual 1 (Padrós, 1998, 186-192). Em La Milagrosa, Cádis, apareceu
um pequeno alinhamento formado por fundos e bocas de ânforas perpendicular a dois
muros, que faria parte do fecho de uma passagem para criar um novo espaço (Bernal et
alli, 2003, fig. 2 e 18, p. 158, 172-173).
Não é de admirar a utilização de ânforas com defeitos de fabrico em construções
pois, como dissemos anteriormente, no próprio forno 1 do Morraçal apareceram ânforas
no interior da parede construída com material de construção.
As entulheiras
As terraplanagens tiveram um efeito devastador nas camadas superiores do sítio
arqueológico, nomeadamente nos vestígios das entulheiras de peças rejeitadas. Não possuímos uma noção exacta do seu grau de destruição, visto que o que falta são as camadas
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superiores de uma grande área, completamente retiradas à máquina durante a terraplanagem, que chegou a atingir mais de um metro de profundidade, em zonas que estariam,
certamente, repletas de cerâmicas, a exemplo de outras olarias.
Os vestígios que sobejaram destes importantes testemunhos são as camadas inferiores de uma entulheira, no lado norte (S1), os vestígios de outra no lado oriental, já junto
à via pública (S10), duas bolsas a poente do forno 2 (F14 e G14) e, parcialmente, o interior
do forno 3, que se encontrava desactivado na fase final da olaria. Embora na área do forno
1 tenham sido encontrados diversos materiais, estes são provenientes da camada de abandono e derrube e da consequente colmatagem das depressões pelas terras das camadas
provenientes de níveis superiores, através do escorrimento de águas, devido à gravidade.
Segundo testemunhos de moradores, os vestígios de entulheiras de cerâmica prolongavam-se para lá da rua Calouste Gulbenkian, atingindo o pátio da escola Secundária.
Em S1 observou-se que as camadas inferiores eram as mais antigas, com ânforas
dos tipos Dressel 7/11, Pascual 1 e Haltern 70 com a chancela de L. Arveni Rustici e à mesma cota ao lado umas das outras para além de cerâmica comum, paredes finas, pesos de
rede, etc.
As entulheiras do lado meridional revelam uma continuidade de materiais anfóricos, mas nota-se a ausência de fragmentos de paredes finas e apenas duas marcas, tendo
sido recolhido na parte superior da camada três, de S 10, um dos dois únicos fragmentos
de terra sigillata encontrados até ao momento, em toda a área de escavação.
As duas bolsas nos quadrados G14 e F14, a poente do forno 2, revelaram a presença conjunta de fragmentos de ânforas Dressel 14 e do tipo 7-11 .
No interior da fornalha e na zona de acesso ao praefurnium do forno 3 foi recolhida a maior variedade de peças em toda a escavação, nomeadamente de ânforas de quase
todos os tipos existentes na jazida. Como já se disse, este forno encontrava-se desactivado
quando se iniciou o seu entulhamento, não sendo visível qualquer indício da grelha da
câmara de cocção, o que leva a crer que a parte superior do forno tenha sido desmontada
para se aproveitarem os seus materiais para novas construções ou para restauros; no entanto, o desmonte nunca chegou a ser concluído.
Embora, no caso do forno 1, tenhamos encontrado alguns fragmentos de ânforas
e de outras peças, a sua área não foi utilizada para despejos, constatando-se apenas a
existência de estratos de abandono; daí o seu bom estado de conservação, em relação aos
restantes fornos (a grelha foi partida pela máquina de terraplanagem). Tanto no interior da
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parede de adobe da câmara de cocção, como da galeria da fornalha junto ao praefurnium,
bem como sobre a grelha da câmara de cozedura e a soleira da porta de acesso à referida
câmara, foram recolhidos fragmentos de ânforas Dressel 14, com boca de trombeta.
As produções da figlina do Morraçal da Ajuda
As ânforas
As principais produções desta olaria foram as ânforas, seguidas da cerâmica comum, cerâmica de construção e cerâmica de paredes finas.
No caso das ânforas temos, na primeira fase, três formas distintas, que apresentam
a chancela do produtor L. Arveni Rustici: Pascual 1, Haltern 70 e Dressel 7/11 variante A.
Desta última forma conhecemos, até ao momento, mais três variantes: B, C e D.
São, sem dúvida, os modelos mais representados nas entulheiras da olaria (Cardoso, Rodrigues e Sepúlveda, 2006, 262).
Embora os fragmentos de ânfora do tipo Dressel 14 sejam muito menos comuns,
nas bocas que foram recolhidas, observa-se uma diversidade enorme de variantes desta
forma que podemos atribuir à cronologia de fabrico mas também, certamente, ao oleiro
que as fez. É de realçar a variante mais tardia desta forma, fabricada na olaria do Morraçal, que possui uma boca extrovertida, em forma de trompeta, colo largo mais ou menos
cilíndrico, ombro pouco saliente e bojo ligeiramente piriforme. Fragmentos de exemplares
desta variante encontram-se aplicados no praefurnium e no interior das paredes da câmara de cocção do forno 1 (supra). A datação desta última variante, através de datações
arqueomagnéticas e de carbono 14, no referido forno, abrange todo o século II.
Para além das formas já descritas existem mais quatro a que atribuímos a tipologia
Morraçal: 1, 2, 3 e 4. São formas menos comuns e das quais não conhecemos paralelos nos
trabalhos da especialidade já publicados. Podem tratar-se de ensaios ou de produções em
menor escala, cuja produção acabaria por não vingar.
Cerâmicas finas
Para além de ânforas e cerâmicas ditas comuns, a figlina do Morraçal também produziu imitações de terra sigillata e de peças de paredes finas, como já anteriormente referimos.
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Imitações de terra sigillata
Na câmara de combustão do forno n.º 3 foi encontrado um conjunto de vários
fragmentos que, depois de tratado em laboratório, deu lugar a três peças, as quais mais
não devem ser do que uma tentativa (?) de imitação de formas de terra sigillata, efectuada,
possivelmente, a partir de modelos de origem itálica e galo-romana.
Cerâmica de paredes finas
É também de realçar a produção de taças, copos e bilhas, que se poderão englobar
neste tipo de cerâmica. A espessura das paredes, característica fundamental destas peças,
foi, para os oleiros do Morraçal, uma técnica perfeitamente dominada, embora a aplicação
de engobes se encontre completamente ausente (Cardoso, Rodrigues e Sepúlveda, 2006,
271-273).
No corredor de acesso ao praefurnium do forno 3 recolheu-se uma taça hemisférica, da qual não possuímos toda a parte inferior, com um perfil semelhante à forma Mayet
38. Outro fragmento, muito incompleto – pois só possuímos o bordo com lábio –, parecenos corresponder à forma Mayet 37.
Recolheram-se vários fragmentos de perfil hemisférico, com a particularidade de o
seu bordo apresentar um pequeno ressalto para o interior, que foram englobados na forma Mayet 33, por possuírem ranhura na parede externa; bem como outros três fragmentos, de copos cilíndricos com paredes rugosas (cinzentas a negras, e alaranjadas), da forma
Mayet 12. Encontraram-se ainda quatro fragmentos de bilhas com paredes de espessura
entre os 1,3 mm e 3,6 mm, para as quais não conhecemos, no actual território português,
exemplares que lhes possam servir de paralelo. Classificámo-las como sendo da forma
Mayet 62, com uma diacronia de finais do séc. I a.C. até meados do séc. I d. C.
Cerâmica comum
A oportunidade que se nos apresentou, da existência de um conjunto cerâmico
que se encontrava selado no espaço inferior do forno 3, permitiu que, a partir do registo
descritivo, gráfico e fotográfico, desenvolvido em laboratório, se conseguisse seleccionar
um conjunto de desenhos que, numa tarefa sempre complexa, nos facilitaram a atribuição
de tipos e subtipos às formas encontradas. Existem fragmentos de potes, panelas, tachos,
terrinas, púcaras, jarros, cântaros, bilhas, taças/ tigelas, um funil, alguidares, tampas, pesos de rede, pesos de tear e separadores para a produção cerâmica.
As datações mais finas que obtivemos para a produção de cerâmica comum apon54
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tam para uma cronologia que se pode situar entre Augusto e os meados do século II d. C.,
que são corroboradas pela fíbula recolhida no praefurnium deste forno, do tipo Aucissa,
com aro de bronze e a marca Dornacus, datável do século I a. C. – I d. C. (Cardoso e Rodrigues, 2005, 87).
Ânforas de Peniche noutras regiões
Na última década, encontraram-se vários fragmentos de ânforas provenientes do
Morraçal da Ajuda, que transportaram os preparados piscícolas produzidos em Peniche
para diversos pontos da Lusitânia:
- Três fragmentos com o selo L. Arveni Rustici foram identificados em outras tantas
intervenções arqueológicas realizadas na ilha da Berlenga (Bugalhão, 2006, 289), em Santarém (Arruda, Viegas e Bargão, 2006, 239) e em Idanha-a-Velha (Banha, s/d), confirmando
o seu transporte marítimo até Olisipo, de onde subiam o Tejo, em embarcações fluviais,
até Santarém, Abrantes ou Vila Velha de Ródão, continuando depois o resto da viagem
em carros de bois ou no dorso de animais, até ao interior da Beira Baixa, nomeadamente
Idanha-a-Velha.
- Mais para sul, junto a Beja, na villa romana do Monte da Cegonha, foram identificados fragmentos da forma Dressel 7/11 e, na villa romana de Tourega, perto de Évora,
ânforas da forma Dressel 14, do tipo trombeta (Pinto e Lopes, 2006, 204 e 213)
- Segundo informação oral do arqueólogo Virgílio Correia, também foram recolhidas ânforas de Peniche em antigas escavações arqueológicas de Conimbriga. Por último,
já na antiga província romana da Tarraconense foram identificados, segundo o arqueólogo
Rui Morais, fragmentos de ânforas provenientes do Morraçal nas antigas cidades de Bracara Augusta e de Lucus Augusti.
Importações béticas
Entre os fragmentos de cerâmica recolhidos no Morraçal da Ajuda, existe um pequeno grupo de materiais proveniente da província romana da Bética, mais concretamente da bacia do Guadalquivir. As suas pastas são perfeitamente distintas das locais, não
deixando qualquer dúvida relativamente à sua origem: são mais claras e finas, e as linhas
de fractura são diferentes. Tais achados comprovam a ligação comercial entre a Lusitânia e
a Bética através de rotas marítimas. Existem fragmentos de cerâmica comum e de ânforas
das formas Haltern 70, Dressel 20, Beltran I, Beltran II A e IIB.
Embora estranha, esta presença de ânforas de centros produtores da Bética em
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
olarias da Lusitânia tinha já sido registada na olaria de Abul, na bacia do rio Sado (Mayet e
Tavares da Silva, 2002, 28 e 29).
Conclusões
A descoberta fortuita de um forno de cerâmica no Morraçal da Ajuda possibilitou o
início de um melhor conhecimento histórico de Peniche durante a época romana.
Através dos fragmentos de ânforas e de pesos de rede, recolhidos nas entulheiras
da olaria, ficou demonstrada a importância que detinham, em Peniche, a pesca e a indústria conserveira de peixe – em salmoura ou em molhos –, no alto Império Romano (desde
o início da nossa Era – principado de Augusto – aos finais do século II).
Quatro fornos de cerâmica, dois de grandes dimensões, alinhados em bateria, e
dois de dimensões médias, indiciam que a produção oleira local podia ser diversificada e
contínua em períodos de grande consumo, vocacionada para o abastecimento de uma população constituída por pescadores e fabricantes de conservas de peixe, dando, ao mesmo
tempo, apoio ao vulgar consumo doméstico e de luxo.
As trocas comerciais faziam-se, fundamentalmente, com a Bética, de onde se importava azeite, vinho e preparados piscícolas. De Peniche, exportava-se garum e outras salmouras de peixe para diversas regiões da Lusitânia e do noroeste da Tarraconense, futura
província da Gallæcia.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
Educação patrimonial:
Estratégias museológicas participativas no concelho de Peniche
Raquel Janeirinho5
Sinopse
O interesse do património cultural como recurso e instrumento da educação nãoformal e a importância da participação activa e criativa das comunidades no desenvolvimento local estão na base do projecto Inventário Participativo do Património Cultural, no
concelho de Peniche. A aplicação de estratégias museológicas mais democráticas e participativas é uma das prioridades do Município. Através destas, procura-se a identificação
da população com o seu património e o desenvolvimento de um sentimento de pertença,
num processo de cidadania activa, incentivando o diálogo entre várias gerações, a qualificação dos saberes, tradições e sítios como património cultural e o reconhecimento de
novas realidades patrimoniais.
Palavras-chave: Museologia Social; Património Cultural; Memória Colectiva; Inventário Participativo; Desenvolvimento e participação comunitária;
Peniche / Atouguia da Baleia.
Rede Museológica do Concelho de Peniche
Peniche possui um vasto e diversificado Património Cultural, tanto material quanto
imaterial, que pode – e deve – ser visto como ferramenta de desenvolvimento sustentável
e sustentado.
Em 2007, o município principia um processo de definição de estratégias para o
desenvolvimento de Peniche, em estreita colaboração e participação de actores locais,
num projecto denominado Magna Carta Peniche 2025. Deste instrumento resultaram seis
eixos de acção, linhas mestras do modelo de desenvolvimento pretendido, verificando-se
ser o Património Cultural um activo transversal a todos eles.
Avaliando-se o modelo de gestão de Património Cultural então em aplicação, verificou-se a
5..Técnica Superior de Antropologia da Câmara Municipal de Peniche.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
“necessidade de uma redefinição estrutural e programática do Museu
Municipal de Peniche (MMP), reconhecendo-se a premência da implementação de uma gestão municipal dos bens culturais concelhios mais estruturada e
optimizada e, ainda, face a uma notória intenção de valorização do património
cultural através de uma política cultural integrada versando um desenvolvimento económico e social sustentável, assume-se como fundamental repensar
o Museu Municipal de Peniche, reestruturando-o, dando-lhe uma nova feição,
orientação e vitalidade.” (CMP, 2009a: 1)
Foi, em consequência, proposta a criação de uma rede museológica concelhia6,
composta por vários núcleos museológicos e interpretativos, espalhados pelo concelho,
focando temáticas distintas mas complementares, e desenvolvida de forma integrada e
coerente. As funções da rede consistem em “elaborar e manter actualizado o inventário
patrimonial do concelho, definir e assegurar a conservação do património a seu cargo, realizar as acções de divulgação e valorização adequadas.” (Serra, 2009: 4).
Centro Interpretativo de Atouguia da Baleia
Um dos núcleos constitutivos da Rede Museológica do Concelho de Peniche é o
Centro Interpretativo de Atouguia da Baleia – CIAB, com sede na igreja de São José e edifício anexo, na vila de Atouguia da Baleia. Este programa museológico teve a sua génese
num projecto anterior7, que já então apresentava como objectivos:
“Trata-se de um museu de região que procurará promover o estudo,
preservação e divulgação do Património e da identidade local, capitalizando
um potencial cultural, numa perspectiva de dinamização turística. Trata-se de
assumir o desenvolvimento local sustentado, em que o património cultural interage com o desenvolvimento das actividades económicas, e em que o Museu
surge como vértice e pólo de promoção cultural, de lazer e de sociabilidade.”
(Loios, 2001: 19)
6 O projecto Rede Museológica do Concelho de Peniche foi apresentado e aprovado em Reunião de Câmara
de 11 de Maio de 2009. Para maior aprofundamento sobre os pólos, funções e objectivos da Rede, veja o programa em CMP, 2009a.
7 “Inicialmente designado Museu de Atouguia da Baleia, com o desenvolvimento do processo da criação deste
núcleo considerou-se uma reformulação funcional do mesmo (…), tendo-se adoptado, em consequência, a
designação: Centro Interpretativo de Atouguia da Baleia, e inserindo-o na Rede Museológica do Concelho de
Peniche.” (CMP, 2009b: 2)
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
Após a sua integração na Rede Museológica, com tutela municipal, desenvolveu-se
o programa museológico, a par da execução física das obras no edifício-sede deste projecto. Este programa prevê a seguinte sinopse temática8:
1. A Geologia e a Geomorfologia do Território
2. A Doação e o Foral da Vila de Atouguia: a Colonização do Território
3. A Realidade Portuária: Pesca e Comércio
4. O Povoamento de Peniche e o Declínio da Vila de Atouguia da Baleia
5. A Extinção do Concelho
6. Atouguia da Baleia no séc. XX
7. Viagem pelo Património Histórico e Cultural de Atouguia da Baleia
O CIAB pretende ser um vector de valorização do Património Cultural, funcionando
“enquanto dínamo da promoção do património cultural do concelho, com particular destaque, necessariamente, para temáticas associadas ao objecto programático do mesmo.”
(CMP, 2009b: 18). Para tal, estão previstas diversas acções museológicas que ultrapassam
as paredes do edifício sede e que antecipam a sua inauguração. É nesta perspectiva, face
ao insuficiente conhecimento sobre o património rural concelhio e à importância de envolver a população de Atouguia da Baleia9 na construção deste projecto, que se avança para o
terreno com o Inventário Participativo do Património Cultural de Atouguia da Baleia.
Inventário Participativo do Património Cultural
Assim, em 2009, procurando integrar a comunidade na construção deste seu museu, inicia-se o Inventário Participativo do Património Cultural (IP) que compreende uma
súmula de estratégias museológicas participativas10.
O inventário participativo, como estratégia de pesquisa (co-inventário), é uma das
8 Para um mais aprofundado conhecimento do enquadramento, objectivos, organização e proposta de gestão
do CIAB veja-se o Programa Museológico (CMP, 2009b).
9 E das outras freguesias do concelho, sobretudo as com uma maior representação rural, numa fase mais
avançada.
10 O trabalho de terreno, base deste artigo, apesar de definido formalmente como “Inventário Participativo
do Património Cultural de Atouguia da Baleia”, não se esgota na expressão. Este é apenas o mote e uma das
várias estratégias a serem utilizadas no estímulo da relação museu-comunidade, sendo estas estratégias mais
abrangentes, ultrapassando, inclusive, a pesquisa participada. Considera-se, genericamente, a expressão “estratégias museológicas participativas”, numa perspectiva mais processual, englobante e dinâmica, ser a mais
adequada, podendo, neste sentido, “inventário participativo” ser uma dessas vertentes de actuação.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
formas utilizadas na aproximação das instituições museológicas à comunidade.
O inventário é ainda hoje associado a uma forma de fazer característico da “velha”
museologia11, inventariando-se, sobretudo, o Património histórico-artístico. Tradicionalmente, a acção museológica de inventariação é definida como “o levantamento sistemático, actualizado e tendencialmente exaustivo dos bens culturais existentes a nível nacional,
com vista à respectiva identificação” (Artigo 19º, Lei nº 107/2001, de 8 de Setembro).
Através desta função museológica é possível, por exemplo, incorporar novas colecções no
museu bem como reestruturar as que já fazem parte do seu espólio.
Não consideramos que se esgotem aqui as suas potencialidades. Pelo contrário,
pretende-se, no projecto apresentado, a par do levantamento dos sítios de interesse patrimonial e patrimónios (in)tangíveis, a divulgação do CIAB, estimulando as populações
das diversas localidades da freguesia a participar, a serem sujeitos na definição dos activos patrimoniais, sendo co-inventariantes e actores desses “indicadores de memórias”12,
permitindo um (re)conhecimento patrimonial e um aumento da auto-estima, confiança e
sentimento de pertença identitária. Como referido em carta entregue às várias entidades
envolvidas no projecto, em Fevereiro de 2010:
“Este inventário tem três grandes objectivos:
1. O objectivo principal: estimular na população local um sentimento
de pertença, sublinhando factores de memória e identidade colectiva;
2. Contribuir para a interligação da população com o futuro CIAB, a
fim de que este seja um museu seu, onde se revejam, ao qual queiram ir como utilizadores – não apenas como visitantes – e com o
qual colaboram;
3. Aprofundar os estudos sobre o território do concelho de Peniche
para, entre outros, criar uma base de dados mais alargada e desenvolver a investigação etnográfica e histórica necessária à instalação
do CIAB.”
A metodologia seguida neste Inventário Participativo envolveu diferentes acções,
11..Por oposição a uma “nova” museologia, social, informal, comunitária, crítica, que perspectivaria o levantamento do património visto no seu sentido integral.
12..Segundo expressão de Cristina Bruno (1996).
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reportando às diversas localidades da freguesia13, que passamos a descrever.
Após um momento inicial de contactos prévios com a Junta de Freguesia e algumas
associações, realizou-se, em Fevereiro de 2010, o primeiro encontro com as entidades
recreativas, culturais, sociais ou desportivas da freguesia de Atouguia da Baleia. Após uma
primeira parte de apresentação e divulgação do projecto, realizou-se, sem introduções de
maior, a fim de não influenciar os participantes, uma dinâmica de grupo onde se pediu aos
presentes que escrevessem palavras ou expressões que considerassem como “Património”. Daí surgiu um variadíssimo quadro de propostas, englobando Património material,
móvel, imóvel, arquitectura monumental, religiosa, militar, civil e popular, e Património
imaterial nas suas diversas feições. O debate sobre o papel do Associativismo, do Património, da Preservação foi discorrendo ao longo da noite, calendarizando-se, no final, as
primeiras tertúlias a realizar nas sedes das instituições das diversas localidades.
As tertúlias foram divulgadas pelas colectividades através de pequenos cartazes e
flyers produzidos pela CMP e afixados nos comércios locais e, também, através de meios
desenvolvidos pelas próprias associações – impressões, postagem em blogs, divulgação
directa entre amigos e familiares. Nas localidades com mais do que uma instituição recreativa, cultural e/ou social, realizou-se apenas uma tertúlia, que procurou envolver as
diferentes colectividades e a população residente.
Nestas tertúlias, normalmente realizadas no café da colectividade, após uma breve apresentação do CIAB e do projecto de IP, solicita-se aos participantes que procedam
à identificação, em fotografias aéreas, dos diferentes locais que considerem de interesse
patrimonial (mapeamento – ver figuras 1 e 2), sempre estimulando à lembrança, debate
e reflexão crítica.
Realizaram-se até à presente data 15 destes encontros, entre Março e Junho de
2010, que contaram com a participação de 24 das 27 instituições existentes e abrangeram
cerca de 230 participantes. Estas reuniões constituíram oportunidades para:
• Debate e troca de opiniões, sugestões e ideias sobre o Património, a sua gestão, o centro interpretativo e outros pólos museológicos em potência,
• Reforçar as preocupações sobre patrimónios em vias de desaparecimento (nomeadamente fontes atoladas) directamente aos representantes políticos14,
13 Alto Foz, Alto Veríssimo, Atouguia da Baleia, Bolhos, Bufarda, Carnide, Carqueja, Casais Brancos, Casais do
Júlio, Casais de Mestre Mendo, Casal Faísca, Casal Moinho, Casal da Vala, Coimbrã, Consolação, Fetais, Geraldes, Lugar da Estrada, Paço, Reinaldes, Ribafria e São Bernardino.
14 As tertúlias foram acompanhadas pela Vereadora da Acção Social.
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• Recordar acontecimentos passados, perceber alterações, partilhar memórias,
• Reconhecimento da amplitude e importância do seu Património,
• Aumento da auto-estima e início de reconhecimento da importância do seu conhecimento, do seu saber e da sua memória para a construção do CIAB e para
a identidade da freguesia, qualificando esse saber como Património Cultural,
• Identificação dos locais, suas histórias e importância, bem como 1º levantamento do património imaterial da localidade,
• Delineamento de novas estratégias e identificação de inventariantes ou outros
habitantes que gostariam de ser entrevistados e/ou de participar nas próximas
acções,
• Informar os participantes de medidas de apoio social que estão a ser desenvolvidas pelo município, através do trabalho de proximidade junto das populações
do concelho de Peniche,
• Aprofundar o conhecimento das dinâmicas das associações recreativas, culturais e desportivas, perspectivando um trabalho em rede entre as mesmas.
As caminhadas de reconhecimento15 levadas a cabo no seguimento das tertúlias
permitiram uma identificação dos locais inventariados no primeiro mapeamento, a participação de novos actores, a consolidação das relações estabelecidas, o activar de antigas
memórias e despertar de novos projectos. Até à data de redacção deste artigo, realizaramse seis destas caminhadas (ver figuras 3 e 4).
Paralelamente, e como consequência destes contactos, realizou-se o levantamento de Património Imaterial, nomeadamente de práticas rituais como as procissões, por
proposta e com a colaboração dos parceiros locais, que incluiu o acompanhamento da
preparação, levantamento audiovisual, recolha e digitalização de espólio fotográfico, (co-)
preenchimento da ficha de inventário, ou apenas o levantamento audiovisual, consoante
os casos.
Outra estratégia utilizada é a realização de entrevistas semi-dirigidas em grupo ou
15 Caminhadas de reconhecimento, segundo expressão de Hugues de Varine (2002), também designadas por
nós como passeios sistemáticos de identificação, tendo como inspiração o método “transect walks” proposto
em Chambers (1992).
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individuais sobre temáticas definidas nas tertúlias. A informação até agora recolhida, na
sua generalidade foi gravada em áudio, está a ser transcrita e pretende-se que seja devolvida para confirmação e debate aos participantes/entrevistados.
Foram ainda desenvolvidas actividades exteriores a este projecto mas que têm
pressupostos comuns. Assim, enquadrado nas comemorações do Dia Internacional dos
Monumentos e Sítios, em Abril de 2010, foi realizado um percurso pedestre pelo Património histórico e rural de Coimbrã e Atouguia da Baleia. Esta visita foi interpretada pelos técnicos da CMP (Património Cultural) e por um antigo trabalhador de uma das quintas, actualmente submersas pela barragem. Também se realizaram passeios pedestres na Serra d’
El-Rei e em Ferrel. Para além destes, no último fim-de-semana de Setembro, nas Jornadas
Europeias do Património, dinamizaram-se quatro intervenções de conservação preventiva
de fontes/poços da freguesia, com apoio da comunidade local, que ajudou, consoante os
locais, no preenchimento da ficha de levantamento do estado de conservação, a remoção
de vegetação e entulho, caiamento geral e limpeza deste património arquitectónico. A participação é essencial pois permite o reconhecimento do local como “Património” e, além
disso, promove a formação de atitudes preservacionistas a partir da aplicação das acções
de conservação no quotidiano das pessoas. Permite, ainda, a apreensão do intangível associado a estes espaços e edifícios, a partilha de saberes e memórias, entre várias gerações,
e a apropriação colectiva destes patrimónios no futuro.
A multiplicidade de aglomerados rurais pertencentes à freguesia em estudo dificulta o levantamento bem como um acompanhamento próximo e sistemático das comunidades. Optou-se, numa primeira fase, por fazer uma aproximação extensiva, alargada a todas
as quinze localidades (os pequenos casais, sem colectividade, foram integrados na aldeia
mais próxima). Nestas tertúlias foi possível conhecer as inquietações actuais, os patrimónios e as tradições das diversas localidades; permitiram, ainda, a detecção de diferenças e
permanências entre elas. No futuro, mais do que intensivas investigações sobre cada uma
das localidades, procurar-se-á definir temáticas e parceiros estratégicos, através das relações que se continuarão a desenvolver. As entrevistas, as caminhadas e outros processos
de sondagem, divulgação, sensibilização e educação vão continuar a ser desenvolvidas.
A inventariação dos principais locais vai ser sujeita a levantamento das suas características, condições de conservação e potencialidades de restauro, quando relevante.
Posteriormente, pretende-se colocar esta base de dados acessível ao público em geral, e
à população atouguiense em particular. Nesta, entrará não apenas o património tangível
– móvel e imóvel – como também o intangível16. A devolução dos diversos levantamentos
16 .Considerando os seguintes campos, consoante os locais e as solicitações da comunidade residente: tradi-
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às comunidades que por direito os detêm é essencial neste processo participativo, seja
através desta base de dados, seja em cada novo contacto no terreno.
Irá fazer-se o delineamento de temas orientadores que regerão as aproximações,
mais direccionadas, de 2011 em diante, e que permitirão uma continuada participação das
populações tendo como objectivo, nomeadamente, exposições a integrar o CIAB, com a
inclusão destas no delineamento temático, no levantamento histórico e etnográfico, na
recolha do espólio, etc. Desta forma, pretende-se favorecer a interacção museu-população
e a construção conjunta e participada das várias acções de natureza museológica.
O apoio a acções museológicas desenvolvidas pela população, bem como a proposta de outras actividades culturais no seio do CIAB ou no território envolvente, permitirão
uma aproximação às comunidades, valorização, reconhecimento e divulgação do seu Património, cada vez mais reconhecido e apropriado.
No levantamento preliminar até agora apurado – alguns destes dados deverão ser
ainda verificados no terreno –, é de destacar a valorização dos seguintes activos patrimoniais da freguesia de Atouguia da Baleia:
• Sítios de interesse patrimonial associados ao elemento “água” (fontes, poços,
bicas, açudes, locais de lavagem de roupa): 117 elementos, nem todos tangíveis. Destes 62 permanecem conservados como arquitectura edificada. O
levantamento das memórias pessoais, sociais e profissionais – do intangível
– associado a estes locais verifica-se como fundamental.
• Património edificado associados à moagem dos cereais (moinhos e azenhas):
45, estando ainda visíveis a estrutura de 28 moinhos.
• Espaços associados à cultura da vinha: 88 lagares e adegas (na sua maioria já
destruídos ou desactivados).
• Arquitectura religiosa (igrejas, capelas, cruzeiros): 38
• Práticas sociais e rituais como festividades religiosas, procissões, círios: 48 (algumas delas já não se praticam).
• Diversas actividades profissionais tradicionais, com referência dos edifícios
ções e expressões orais, expressões artísticas e práticas performativas, práticas sociais, rituais e actos festivos,
conhecimentos e práticas relacionadas com a natureza e o universo e competências técnicas tradicionais – de
acordo com os domínios do PCI defendidos na Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial
(UNESCO, 2003), ratificada por Portugal em 2008.
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onde elas se praticavam: sapateiros, barbeiros, cesteiros, oleiros, rendilheiras,
ferreiros, alfaiates, lojas/mercearias/tabernas, parteiras, professores, …
• Levantamento de outro património imaterial variado como expressões orais,
contos e lendas, jogos tradicionais, saberes tradicionais como a medicina popular, o ciclo do pão, do vinho, …
A sistematização dos dados recolhidos é essencial para se proceder a uma reflexão
sobre as acções desenvolvidas e reorganizar novas iniciativas, num trabalho contínuo de
acção-reflexão (Santos, 2008). Das novas iniciativas previstas consta o alargamento do projecto a outras comunidades do concelho de Peniche.
Estratégias Museológicas Participativas: participação, desenvolvimento, valorização e cidadania
Cremos que este curto artigo permitiu aflorar a forma como diferentes estratégias
estão a ser aplicadas no desenvolvimento de acções museológicas – neste caso, essencialmente no campo da pesquisa mas que têm reflexo na vertente educativa e de comunicação do museu17.
A utilização de sequências de métodos é, cremos, uma forma vital para ampliar a
participação e aprofundar o conhecimento sobre determinado local e temática. Assim, e
não havendo metodologias únicas quando se lida com participação, procuramos ir aplicando criativamente, adaptando ao território, diferentes estratégias participativas que poderão vir a ser escolhidas e utilizadas, de forma flexível, noutros contextos sociais e territoriais. Como Santos refere:
“a ação educativa dos museus não pode ser reduzida a uma metodologia, com a aplicação de determinadas técnicas. (…) A sua riqueza está nas
escolhas que fazemos dos métodos e técnicas, em interação com os nossos pares e com os muitos sujeitos sociais envolvidos com os projectos, tendo como
referencial as nossas concepções de museologia, de museu e de educação, buscando, a cada momento, a flexibilidade necessária no sentido de adaptá-los aos
diferentes contextos e patrimônios. Assim, com a nossa criatividade, estamos
contribuindo para a construção de novos métodos e técnicas, que só terão sentido se forem contextualizados e se levarem em consideração a unidade e a
17 Consideramos, neste caso, a forma como este “novo” entendimento sobre o Património e o Museu, tendo
em conta o triângulo território-património-comunidade, teve reflexos nas acções de pesquisa, preservação e
comunicação, tomando como perspectiva a de M. C. Santos (2008), que defende a acção museológica enquanto uma acção educativa e de comunicação.
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diversidade do ser humano. (2007: 14-15)
Ainda há bastante trabalho a realizar, sendo que o projecto IP não termina com a
abertura do CIAB, prevista para meados de 2011.
Como apontado no programa museológico do Centro Interpretativo, há que procurar integrar também a população escolar18. Na senda do que já vem sido desenvolvido
pela comunidade escolar atouguiense, consideramos como muito relevante, na busca da
melhoria da qualidade do ensino, a utilização do Património Cultural como referencial para
a realização de actividades pedagógicas.
A educação patrimonial permite pensar o Património Cultural como esteio para
um exercício da cidadania e desenvolvimento social através do processo educativo. O Património é visto, por vários autores (cf. Varine ou Santos, reportando ao pensamento de
Paulo Freire), como uma das formas que permite à comunidade atingir os objectivos da
educação popular19.
Uma nova visão da museologia irrompe na segunda metade do século XX, ganhando cada vez mais expressão. Esta, considerando a função social do museu fornece à sociedade instrumentos de acção e reflexão, concebendo a preservação patrimonial enquanto
um acto e exercício de cidadania. Para tal, é necessário que o indivíduo-cidadão conheça a
realidade na qual está inserido. Neste contexto, a educação verifica-se indispensável para
uma participação plena e consciente.
Encontramo-nos então perante uma museologia participativa e comunitária, que
toma
18 “Sendo uma vila com uma importante população em idade escolar, poderá beneficiar com a construção de
um pólo cultural e pedagógico como o que este centro interpretativo pretende ser. Como foi referido na Mesa
Redonda de Santiago do Chile, o museu é um “agente incomparável da educação permanente da comunidade”
(cit. em Primo, 1999), escolar e não só.” (CMP, 2009b: 21).
19 Sendo estes, segundo Hugues de Varine:
“- a formação da consciência de sua identidade, de seu território e de sua comunidade humana de pertencimento,
- a aquisição de confiança em si (auto-estima) e nos outros, condição da participação e da cooperação ao serviço do desenvolvimentos,
- o despertar da capacidade de iniciativa e de criatividade, para que passe de consumidor e assistido a empreendedor e promotor,
- o domínio da expressão e das ferramentas de negociação, permitindo uma intervenção eficaz na esfera pública.” (Varine, 2002: 6)
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“como base o Património Cultural – que é fruto do fazer e saber do homem – e, continuando a desenvolver as funções básicas de colecta, documentação, conservação, exposição e acção cultural, todas elas direccionadas ao fazer
educativo-cultural na tentativa de despertar a consciência crítica do indivíduo,
leva-o assim a reapropriação da memória colectiva e ao direito do exercício da
sua cidadania.” (Primo, 1999: 32)
Assim, o Inventário Participativo, encarado como acção educativa e de interacção,
onde se privilegia a participação, é uma estratégia através da qual a comunidade vai recriar o seu legado patrimonial, pelo seu testemunho e vida, permitindo desta forma a reapropriação e revitalização desse Património. Nesta perspectiva, o Património e a História
não são apenas definidos pelo “Estado” ou pelas “elites”, assumindo, pelo contrário, os
membros de uma comunidade a possibilidade de serem actores da sua própria história. As
referências patrimoniais a expor na sede do CIAB bem como as interpretadas in situ são
definidas com o apoio activo da comunidade envolvente. Este tipo de estratégias museológicas participativas são essenciais para que saberes, conhecimentos, histórias de vida,
edifícios e territórios sejam qualificados como Património Cultural.
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ANEXOS
Figuras 1 e 2: Mapeamento participativo de fotografias aéreas da localidade. Coimbrã (03-05-2010) e Ribafria (24-052010).
Figura 3: Cartaz de divulgação da Caminhada de Reconhecimento em Lugar da Estrada. No fundo do
cartaz lêem-se as propostas de definição de “Património” avançadas pelos participantes da primeira
tertúlia.
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Figura 4: Caminhada de Reconhecimento. Vale da Cal, S. Bernardino, 02-09-2010
Figuras 5 e 6: Trabalhos de conservação na Fonte dos Loureiros
(Geraldes) e Fonte dos Namorados (Reinaldes), integrados nas
Jornadas Europeias do Património 2010.
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A 1ª República e o Hospital Termal das Caldas da Rainha
Nicolau Borges20
“Quero que a República, como um regime novo, cheio de justiça, cheio
de boas intenções, tenha sempre à testa dos lugares de confiança criaturas
republicanas, que façam uma política de atracção inteligentemente dirigida.
Quero trabalhar com os portugueses honestos, qualquer que seja a sua condição e origem: não quero trabalhar com os defraudadores da fazenda e da
riqueza pública.”
Gaudêncio Pires de Campos (Deputado à Assembleia Nacional Constituinte-1911)
Após a acção reformadora do Hospital Termal das Caldas da Rainha, encetada pelo
Arquitecto e Administrador do Hospital Termal caldense Rodrigo Berquó, no último quartel do séc. XIX, a gestão deste estabelecimento assistencial foi-se deteriorando de forma
progressiva e irremediável. Mediante a leitura das actas das sessões das Cortes Nacionais,
referentes a esse período temporal, podemos constatar os sinais progressivos dessa degradação, através dos sucessivos e frequentes agendamentos de diversas questões relacionadas com a gestão da entidade hospitalar caldense, do seu vastíssimo património e da
gestão do Administrador desta secular instituição.
A situação financeira do Hospital Caldense agravou-se, irremediavelmente, com a
edificação dos Pavilhões do Parque, obra de Rodrigo Berquó, e com a construção de todas
as benfeitorias realizadas por este Administrador na requalificação dos banhos termais,
nomeadamente, com o acrescento de mais um piso no edifício reedificado no reinado de
D. João V, com a aquisição de novos equipamentos termais, com a renovação e aumentando o número de banheiras do Hospital, melhorando a qualidade das águas termais,
requalificando as zonas envolventes aos banhos termais, transformando as antigas vinhas
e hortas no actual belo e frondoso parque, e muitas outras obras que transformaram as
termas das Caldas nas termas mais cosmopolitas do Portugal de finais de oitocentos.
Os investimentos foram de tal monta que haveriam de transformar a gestão desta
20 Director do CAEF-Oeste
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instituição termal e assistencial num problema financeiro de impacto nacional, originando
amplos debates, iniciativas várias e propostas de regulamentação em sede das Cortes Nacionais, transformando tal questão em problema político e económico de real e verdadeiro
interesse nacional.
A situação era, em 1908, tão grave que houve necessidade, por parte do Ministério
do Reino, no governo da ditadura de João Franco, de nomear uma comissão para apresentar uma proposta de reforma do então Hospital Real das Caldas da Rainha. Os nomes
escolhidos para fazerem parte desta comissão não deixaram dúvidas sobre a verdadeira
dimensão do problema e interesse em resolve-lo. O que se pretendia era suturar o gravíssimo problema do deficit financeiro do hospital das Caldas, o qual punha em causa a
sobrevivência da própria instituição, assumida por todos como uma autêntica referência
nacional no campo da saúde e da assistência social. Da referida comissão faziam parte o
Dr. Alfredo da Costa, o Dr. Alfredo Luís Lopes, o escritor Ramalho Ortigão e o Visconde de
Sacavém, personalidades distintas e consensuais, as quais puderam apresentar as suas
propostas de reforma para a estância balnear e hospitalar das Caldas, imunes às controvérsias que iam decorrendo no seio das Cortes e das forças políticas instaladas.
Entre 1908 e 1910, o Par do Reino Francisco José Machado, eleito pelo partido
Progressista, tribuno com uma vasta experiência política nas Cortes, ex-governador civil
de Santarém, habitual candidato eleito às Cortes pelo círculo eleitoral constituído pelos
concelhos de Caldas da Rainha, Óbidos e Peniche, tomou como “sua” causa política os
problemas que afectavam a gestão do Hospital das Caldas da Rainha, elevando, assim, tal
causa ao estatuto de real causa nacional.
A sucessão de requerimentos e pedidos de “sindicâncias” por ele propostos, colocaram a gestão do hospital das Caldas na agenda nacional, pondo a nu a sua grave situação financeira, a gestão ruinosa de que era vítima, mas também, e, principalmente, o seu
modelo de organização (Regulamento), completamente ultrapassado, porquanto ainda
subordinados aos princípios administrativos enunciados pela governação do Marquês de
Pombal, nos princípios da década de 70, do século XVIII.
Importa não esquecer que nas vésperas da implantação da República, o Hospital
das Caldas da Rainha, com o seu vastíssimo património, era um dos raros estabelecimentos
de Estado do género, sendo frequentado pelas elites nacionais e europeias. O Presidente
do Conselho de Ministros e Ministro do Reino (João Franco Castelo Branco), ele próprio,
era um frequentador assíduo dos banhos das Caldas, contando-se mesmo que, no seu
governo, o seu Ministro da Marinha, durante os meses de Verão, geria o seu Ministério
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a partir das Caldas da Rainha, o que o próprio ministro chegou a reconhecer numa das
sessões das Cortes.
Pela sua importância assistencial, social e cultural não é de estranhar que a gestão
do Hospital Real caldense merecesse a atenção política dos pares do reino nos últimos
anos de regime monárquico. Os ataques cerrados e contínuos do representante eleitoral
do Partido Progressista eleito pelo círculo de Peniche mantiveram-se até ao fim da Monarquia, sendo constantes as denúncias sobre aquilo que ele considerava como actos de
gestão danosa para com o património do hospital caldense, tais como o corte sistemático
de árvores na mata, com o intuito da sua venda e para produção de carvão; o corte do
velho (centenário) ulmeiro do Largo da Copa; o prejuízo crónico da farmácia do Hospital; a
compra de mobílias para o Palácio Real; as comissões extras pagas a alguns trabalhadores
do Hospital, etc. Adversário dos Regeneradores não perdia nenhuma oportunidade para
denunciar a má gestão dos seus adversários políticos, na tentativa de demitir a administração do Hospital simpatizante do partido adversário.
A implantação da República veio encontrar as finanças do Hospital das Caldas
numa situação gravíssima. Tão grave que houve mesmo a necessidade de o governo tomar
à sua conta o pagamento de 12:751$455 réis à Caixa Geral de Depósitos, quantia proveniente dos juros e amortização de um empréstimo feito ainda no tempo da administração
do arquitecto Rodrigo Berquó.
Entretanto, os resultados da sindicância feita ainda antes da queda da monarquia
à gestão do Hospital das Caldas só vieram a ser conhecidos e debatidos no ano de 1911,
comprovando a gravidade da sua situação financeira diagnosticada.
Agora, a partir da Sala das Sessões da Assembleia Nacional Constituinte, a 7 de
Julho, é o deputado, eleito pelo círculo n.º 30, Gaudêncio Pires de Campos, que assume a
liderança do processo de fiscalização política e administrativa, questionando a Assembleia,
solicitando relatórios e dinamizando a procura de soluções para a resolução dos graves
problemas financeiros que afectavam a instituição hospitalar das Caldas da Rainha.
Das suas iniciativas resultaram a ordenação de uma sindicância à gestão do Hospital Rainha Dona Leonor, a qual foi nomeada pelo Ministro do Interior do Governo Provisório, António José de Almeida, sendo a equipa constituída pelos sindicantes Carlos Maria
Pereira e Aurélio da Costa Ferreira. Estes sindicantes apresentaram ao Parlamento o seu
relatório de sindicância, no dia 21 de Maio de 1911, o qual se iniciava de seguinte forma:
“Em primeiro lugar devo dizer a V. Exa. e à Câmara que o Hospital das
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Caldas da Rainha é uma verdadeira colegiada de cónegos, e para prova do
que digo basta mostrar uns dados estatísticos, que aqui tenho, por onde se vê
que ele tem dentro dos seus muros nada menos do que 88 empregados, afora
aqueles que as exigências do serviço reclamam, e tudo isso unicamente para
os 3 meses em que o estabelecimento está aberto. Aquilo não é um hospital, é
uma colegiada de cónegos e bem gordinhos que alguns são!
Antes de entrar na apreciação da sindicância ao hospital das Caldas da
Rainha, permita-me V. Exa. Sr. Presidente e a Câmara, que eu leia umas notas
do movimento hospitalar. Assim em 1906 houve no hospital 2:500 pensionistas
dos quais 1:000 gratuitos, cujas despesas são nos termos da lei, cobertas pela
administração.
Em 1907, foram 2:000; manteve-se mais ou menos o mesmo número.
Em 1908, 1909, a mesma coisa e, em 1910, há um ligeiro aumento nos pensionistas gratuitos. Mas se é certo que a frequência se manteve durante estes
anos, é certo também que a despesa quase duplicou, e os benefícios aos pobres
estacionaram.
Coligindo os números de receita e despesa do hospital das Caldas, especialidade que me reservo tratar na discussão do Orçamento, porque hei-de demonstrar que no hospital das Caldas se gastam 35 contos de réis para engordar
a colegiada dos cónegos e o seu reitor, que o Estado está pagando, à sombra
dum regulamento estupendo; rende por ano quantia superior a 17 contos de
réis; e o erário público, defraudado por mil formas, não pode dispensar quantia
tão importante.
O que se tem praticado é extraordinário, é fantástico, tanto em falta de
direcção clínica, como, e sobretudo, na parte administrativa. O rendimento, a
receita ordinária do hospital é de perto de 17:500$000 réis, e a despesa sobe
a 34.522$000 réis; há portanto, um deficit que, segundo a lei de Fevereiro de
1904, artigo 37.°, tem de ser coberto pelos cofres públicos(…).”
O relatório continua descendo ao pormenor de acusar o administrador de ser um
agente empregador ao serviço do partido a que pertencia (um “valhacoito de caciques
políticos, que tem servido unicamente para empregar os amigos e afilhados desses caciques”), identificando vícios de gestão, de forma, desvios e abusos praticados ao nível dos
salários, regalias, e das comissões cobradas e pagas.
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Como consequência desta denúncia, de eminente ruptura financeira da administração das termas caldenses, propõe-se o fim das “comedorias” do director, da entrega
da gestão dos pavilhões do parque, a extinção da farmácia do Hospital, e outras medidas
tendentes a efectivar o saneamento financeiro do crónico deficit das contas apresentadas
pela administração do Hospital. Propõe-se ainda a alteração do seu Regulamento, o qual
deveria considerar a instituição de uma gestão administrativa e não médica.
Apesar das iniciativas do Deputado Gaudêncio Pires de Campos, no entanto, o Projecto-Lei sobre o Hospital das Caldas da Rainha só haveria de dar entrada no Parlamento,
por iniciativa dos Deputados Afonso Ferreira e Francisco de Sales Ramos da Costa, a 1403-1912, visando dois objectivos fundamentais: Em primeiro lugar, libertar as finanças nacionais dos pesados encargos financeiros que o orçamento do estado tinha com gestão do
Hospital das Caldas; em segundo lugar, possibilitar que a referida instituição se reformasse
na perspectiva de contribuir para a prosperidade económica das Caldas da Rainha.
O Projecto-Lei sugere a concessão de algumas das valências do Hospital a privados, nas seguintes condições: “(…)uma empresa ou companhia bem
organizada, que tome conta da exploração do balneário, tem logo à sua disposição um grande edifício que pode adaptar a hotel moderno, que é o chamado Hospital de D. Carlos, mais conhecido pelo nome de pavilhões, situado no
parque, muito próximo do balneário, com o qual se pode facilmente ligar por
meio duma passagem coberta, o que é importantíssimo para se estabelecer
uma época balnear de inverno em boas condições. O parque é bom, sendo susceptível de melhoria e aperfeiçoamento que o tornem ainda mais aprazível. A
companhia pode também explorar a chamada Agua Santa, perto da vila, e a
água mineral de Salir do Porto. Nesta praia pode ainda utilizar-se o banho de
mar de pequena onda, o único recomendado como meio terapêutico, e o banho
quente. Junto desta praia fica a pequena e linda baía de S. Martinho, magnífica
para todo o género de esport náutico, tara apreciado pela gente rica e sobretudo pelos estrangeiros.
A Foz do Arelho e lagoa de Óbidos, que lhe fica junta, prestam-se também a uma larga e proveitosa exploração, pondo-as em rápida comunicação
cora as Caldas, o que não é difícil nem dispendioso, por meio de qualquer sistema de viação acelerada.
A Foz do Arelho constitui uma estação climatérica de primeira ordem,
pela excelência do seu clima de inverno, o que a torna particularmente reco77
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
mendável para residência de convalescentes e de indivíduos débeis, escrofulosos, linfáticos, etc.
Assim a situação das Caldas da Rainha é, repetimos, uma situação privilegiada paro o fim a que é aplicada por que a todas as condições já enumeradas
reúne ainda a extraordinária abundância de magníficas frutas que ali concorrem do vizinho concelho de Alcobaça, a proximidade de monumentos célebres,
como o antigo mosteiro desta vila, o de Mafra e o da Batalha, a ligação fácil
e rápida com a Praia da Nazaré, e enfim, tantos outros atractivos que podem,
bem aproveitados, concorrer para aí chamar grande frequência, não só de nacionais, mas principalmente de estrangeiros, sobretudo se o jogo for permitido
legalmente (…)”.
O Projecto de lei apresentava, assim, duas importantes dimensões: por um lado,
consagrava a administração do Estado sobre o Hospital D. Leonor, dimensão de assistência
pública e de respeito pela vontade testamentária da Rainha Dona Leonor; por outro lado,
pressupunha uma dimensão empresarial, definida pela via da concessão aos privados dos
Pavilhões do Parque e pelo eventual licenciamento do jogo(Casino). Propunha ainda a desanexação e entrega à Câmara da vila das Caldas da Rainha a gestão do Hospital de Santo
Isidoro e a supressão da farmácia do Hospital.
Eis o Projecto de Lei (versão integral), apresentado pelo Deputado António Ferreira, em 14 de Março de 1912:
“Artigo 1.° É o Governo autorizado a alienar por contracto de arrendamento, a empresa individual ou colectiva que para este fim se constitua, a
exploração do estabelecimento balnear anexo ao hospital de D. Leonor, das Caldas da Rainha, e bem assim a das respectivas dependências, constituídas pelos
pavilhões denominados Berquó, pelo clube de recreio e pelo parque.
Art. 2.° O hospital de Santo Isidoro fera desanexado da administração
do hospital de D. Leonor e entregue ao município das Caldas da Rainha com os
respectivos rendimentos privativos, provenientes do legado de Isidoro Inácio
Alves de Carvalho e Aguiar, ficando a sua direcção e serviços clínicos a cargo
dos médicos do partido municipal da vila.
Art. 3.° As capelas de Nossa Senhora do Pópulo e de S. Lourenço serão
entregues à corporação ou corporações cultuais da vila que existam ou venham
a existir e delas queiram encarregar-se, ou, em caso contrário, serão encerra78
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
das.
Art. 4.° E extinta a farmácia privativa do hospital de D. Leonor e suprimidos os lugares existentes de farmacêutico e ajudante, que são empregados
contratados.
§ único. A administração do hospital de D. Leonor contratará, mediante
concurso, com qualquer das farmácias da vila o fornecimento dos medicamentos necessários ao serviço do hospital e dos pobres da vila, na conformidade
das obrigações que ao mesmo hospital competem.
Art. 5.° O estado reserva a administração do hospital de D. Leonor e das
suas rendas próprias, e do rendimento que cobrar do arrendamento do balneário e respectivas dependências destinará o que for necessário para suprir a
deficiência daquelas rendas em relação à despesa do referido hospital e ainda
para subsidiar o município das Caldas da Rainha por qualquer encargo que a
este provenha da administração do hospital de Santo Isidoro.
Art. 6.° O pessoal técnico, administrativo e serventuário, actualmente
ao serviço dos estabelecimentos hospitalares e suas dependências, será distribuído conforme as necessidades do serviço do hospital de D. Leonor e do balneário e suas dependências a cargo da empresa concessionária.
§ 1.° A empresa concessionária obrigar-se há pelo contracto a manter
e respeitar os direitos adquiridos, em virtude de lei, dos empregados existentes
que passarem para o seu serviço privativo, obrigação que findará em caso de
demissão legalmente justificada.
§ 2.° O Governo poderá destinar a outros serviços dependentes da assistência pública os empregados que sejam dispensáveis ás necessidades do
hospital de D. Leonor ou da empresa, e cujo provimento tenha garantia legal. O
pessoal contratado poderá ser dispensado.
Art. 7.° A empresa concessionária obrigar-se há também pelo contracto
a fornecer os banhos e todas as aplicações hidroterápicas que lhe forem requisitadas para tratamento de doentes pobres.
Art. 8.° A mesma empresa poderá aproveitar a exploração da chamada
água santa e a água mineral de Salir do Porto, obrigando-se, porem, a fornecer
banhos gratuitos aos pobres; poderá estabelecer casinos e hotéis, não só na
79
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
vila mas ainda na Foz do Arelho e noutros pontos das proximidades da mesma
vila, e promover, enfim, todos os melhoramentos que tendam a valorizar a região das Caldas da Rainha como estação das águas e climatérica.
Art. 9.° O Governo organizará, de harmonia com esta lei e legislação
aplicável, as bases do concurso e contracto de adjudicação a que esta mesma
lei se refere, e organizará também os necessários regulamentos administrativo
e técnico do hospital de D. Leonor, sancionando os que a empresa concessionária haja de elaborar para os serviços que ficam a seu cargo.
Art. 10.° A empresa concessionária será considerada para todos os efeitos como empresa portuguesa e sujeita às leis portuguesas, não podendo fazer
parte dos seus corpos gerentes indivíduos que não possuam a qualidade de
cidadãos portugueses.
Art. 11.° O Governo dará conta ao Congresso do uso que fizer destas
autorizações.
Art. 12.° Fica revogada a legislação em contrário. Sala das Sessões, em
14 de Março de 1912. = O Deputado, Afonso Ferreira.”
O Projecto de Lei haveria de ser aprovado, haveria de originar a constituição de
uma comissão incumbida de proceder ao levantamento e inventário de todo o Património
pertencente ao Hospital (auto de arrolamento do Hospital Rainha D. Leonor das Caldas da
Rainha, de 1913), haveria ainda de extinguir a farmácia do Hospital Termal. No entanto, as
outras medidas enunciadas e propostas haveriam de ficar por cumprir, nomeadamente a
proibição dos estrangeiros poderem concorrer à concessão, agravada com a profunda crise
económica enfrentada pelos vários governos políticos republicanos, cumulada com a participação de Portugal na Primeira Grande Guerra Mundial e com a profunda instabilidade
política adiaram a recuperação económica e social das termas caldenses.
Fontes:
Diário da Câmara dos Pares do Reino - 1880-1910
Actas da Assembleia Nacional Constituinte – 1911
Diários da Câmara dos Pares do Reino – 1911-1920
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CIÊNCIA E PEDAGOGIA
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
As origens da Ciência
Orlando Figueiredo21
Introdução
Dificilmente encontrarei quem discorde comigo quando afirmo que na base das
transformações sociais, que conduziram ao mundo globalizado do século XX, está o conhecimento científico. A ciência e a tecnologia transformaram a relação dos humanos com
o mundo não humano, (re)construíram sociedades e influenciam a vida quotidiana de todos os habitantes (humanos e não humanos) do planeta. À primeira vista, pode parecer
exagerado dizer que a ciência influencia a vida de todos os habitantes (não humanos) do
planeta. Como posso afirmar que um inseto perdido no arvoredo de uma floresta tropical pode ser influenciado pela ciência? A resposta a esta pergunta é dada pela própria
ciência. A compreensão da interligação da complexa teia da vida planetária (Capra, 1997)
associada ao reconhecimento do poder de intervenção que o Homo sapiens sapiens tem
no mundo (Almeida, 2006), iluminam a resposta à questão que coloquei anteriormente.
Com efeito, as alterações climáticas antropogénicas impõem constrangimentos a todos
os nichos ecológicos da Terra. A aventura da ciência chega a um ponto em que, mais do
que saber ciência é importante saber sobre a ciência (Murcia, 2009); compreender como
é produzida, entender a sua estrutura interna, conhecer as suas relações com a sociedade
e a tecnologia e desenhar o seu papel na construção de um futuro inevitavelmente global
e tecnológico.
As disciplinas metacientíficas, desde as mais tradicionais história e filosofia da ciência, às mais recentes sociologia e psicologia da ciência, procuram deslindar e teorizar o que
está por detrás do conhecimento científico; como afirma Carrilho (1994), as metaciências
têm como objetivo compreender, descrever e determinar as características do que é específico da cientificidade. A forma como as sociedades olham e valorizam o conhecimento
científico tem implicações profundas na sua organização e na sua relação com o mundo
não-humano (Almeida, 2006; Figueiredo, Almeida, & César, 2004). Esta é, talvez, a principal
razão que me leva a defender a importância de promover um conhecimento circunstancial
do conhecimento científico; um conhecimento que não se afaste dos contextos onde foi
produzido, mas os abrace e os valorize como instrumentos capazes de dar significado so21 Professor do Departamento de Matemática e Ciências Experimentais da Escola Secundária de Peniche.
83
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
cial e histórico a um instrumento epistémico, que pelo seu poder, se exige democrático na
distribuição e na construção.
Vivemos na sociedade do conhecimento (Hargreaves, 2003) e ter conhecimento é
um trunfo nas sociedades do século XXI. Desde a segunda metade do século XX que conhecimento equivale a poder. Como exemplo desta equivalência posso referir o investimento
que, durante a Segunda Guerra Mundial, os Aliados fizeram na investigação científica, que
conduziu à construção da bomba atómica e lhes deu a vitória. Porém não é a este tipo de
poder que me refiro; nem ao poder de construir artefactos e bens de consumo – frequentemente supérfluos – que depois de colocados no, insano e sôfrego, mercado global geram
riqueza para alguns e dissabores para muitos. O poder mais importante que provém de
sociedades (ou setores sociais) cientificamente literatos é a possibilidade de se construírem mundividências operativas do real; artefactos intelectuais que podem ser colocados
no mercado a baixo preço (ou mesmo a preço zero) e são capazes de mover e mudar paradigmas e sociedades, fazer revoluções e construir realidades. Um cidadão que domine o
conhecimento científico poderá dar um contributo mais eficaz e esclarecido nas decisões
sociais da comunidade onde está inserido. Uma sociedade cientificamente educada é uma
sociedade mais esclarecida e, consequentemente, mais democrática.
A ciência inspirada nas conceções setecentistas e oitocentistas mostrou-se por vezes arrogante e colonizadora dos saberes tradicionais sobretudo de culturas distantes da
cultura ocidental. Demasiadas vezes, saberes de sociedades tradicionais foram colocados,
levianamente, na prateleira das superstições e dos mitos sem interesse algum, além da
curiosidade exótica que despertam. Saberes, hoje reconhecidos, como tendo sido capazes
de gerir a relação dos humanos com o mundo não-humano de forma muito mais harmoniosa e integrada do que a ciência algumas vez conseguiu. Mas a ciência não excluiu
somente saberes; juntamente com esses saberes foram excluídas indivíduos, setores sociais e mesmo sociedades inteiras, do acesso ao conhecimento científico que é a norma.
Porém, certamente que o leitor concordará comigo, quando refiro que uma das maiores
(se não mesmo a maior) qualidade da ciência é a sua capacidade de se criticar e renovar; é
precisamente no seio desta capacidade que surgem novos olhares sobre a ciência e sobre
a forma como esta se constrói e evolui; é no caldo desta autocrítica que se identificam e
rescrevem novas características de cientificidade e a ciência assume um novo papel neste
mundo que ela própria inventou.
Para começarmos a vislumbrar melhor o que é afinal esta grande aventura da ciência iremos procurar discernir quais são as suas origens.
84
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
Scientia é conhecimento
A palavra portuguesa ciência tem origem no vocábulo latino scientia cujo significado é “o conhecimento de…”; depois de procurar noutras línguas como é o caso do espanhol, do francês, do italiano ou do inglês verifiquei que os termos usados para designar
esta área do conhecimento são idênticos – la ciencia, em espanhol; science, em inglês;
la science, em francês e scienza, em italiano – e com origem no termo latino que referi.
Também encontrei designações idênticas em línguas de origens distantes como é o caso do
japonês que transformou o vocábulo latino em サイエンス (saiensu). Noutras línguas europeias encontrei palavras com origens distintas do latim scientia, mas com sentido idêntico.
É o caso do alemão onde ciência se designa por wissenschaft e pode ser traduzido por
comunidade (schaft) do conhecimento (wissen); nas línguas aparentadas com o alemão,
como o dinamarquês ou as línguas escandinavas, são usados termos idênticos ao exemplo
germânico. Em grego ciência diz-se επιστήμη (epistími) que significa conhecimento e em
hindu विज्ञान (vijñāna) que pode ser traduzido por conhecimento ou sabedoria. A minha limitada cultura linguística não me permitiu ir mais longe neste domínio, mas desconfio que na maioria das línguas a designação deste cânone de conhecimentos tenha seguido
padrões idênticos aos que descrevi. Posso então afirmar, com alguma segurança, que a
nível mundial o termo ciência é conotado com conhecimento. Mas que conhecimento,
que sabedoria é esta que têm direito a designação própria – ciência? Onde surgiu? Como
evoluiu? Quais as suas características?
Um jantar com discurso
Em Londres, no dia 27 de Outubro de 1930, decorreu um jantar em honra de Albert Einstein (1879 – 1955); George Bernard Shaw (1856 – 1950) é incumbido de proferir
o discurso de homenagem ao cientista, intitulado An appreciation. A determinada altura
do discurso Shaw diz:
“Estes oito grandes homens [Pitágoras, Ptolomeu, Kepler, Copérnico,
Aristóteles, Galileu, Newton e Einstein] foram os fazedores de um dos lados da
humanidade, que apresenta dois lados. A um dos lados chamamos religião e
ao outro ciência. A religião está sempre certa. A religião protege-nos do grande problema que todos teremos de enfrentar. A ciência está sempre errada; é
o próprio artifício dos homens. A ciência não consegue resolver um problema
sem levantar dez novos problemas” (Einstein, 1931/2009, p. 33).
Bernard Shaw deixa transparecer algumas das características da ciência, nomeadamente a sua capacidade de se questionar e buscar soluções ainda que efémeras e cir85
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
cunstanciais. No entanto, e como Bernard Shaw sublinha, é esta característica – ainda que
não seja a única – que lhe permite o mérito de distinção de outras áreas do conhecimento,
como a religião. Parece-me que, numa primeira análise, talvez esta característica não seja
exclusiva da ciência, mas não posso negar que ela está subjacente àquilo que costumamos,
numa asserção de senso-comum, apelidar de conhecimento científico. Mas não posso ficar
por aqui. Não é minha intenção responder às perguntas que coloquei anteriormente, nem
mesmo discuti-las de forma sistemática, uma a uma; irei antes procurar apresentar alguns
olhares que influenciaram a construção da minha perspetiva sobre o que é a ciência.
As origens
Parece-me interessante procurar as origens do empreendimento científico; porém,
estou consciente que, tal como refere Fara (2009), localizar no espaço-tempo as origens da
ciência, longe de constituir um consenso na comunidade científica, é uma decisão pessoal,
subjetiva e circunstancial.
Não é incomum deparar-me com afirmações que atestam que a ciência (moderna)
se iniciou com as ideias revolucionárias de Copérnico e Galileu. Muitos cientistas (e talvez
ainda mais não-cientistas), tal como Gribbin (2003) e Bryson (2005), indicam o ano de 1543
– data publicação do De Revolutionibus Orbium Coelestium, de Nicolau Copérnico – como
o ano em que as ideias científicas modernas começaram a tomar forma. Serei, contudo,
injusto para com os filósofos da Grécia Helénica – reconhecidos como cientistas de pleno
direito no discurso de Bernard Shaw – se assumir esta data como o início do empreendimento científico.
Não precisarei argumentar muito para reclamar o estatuto científico do teorema
de Pitágoras, da geometria de Euclides ou da física de Aristóteles e Ptolomeu. Em relação aos dois primeiros, a atribuição do estatuto é pacífico. Talvez os personagens sejam,
mais frequentemente, olhados como filósofos do que como cientistas, mas a aplicabilidade atual das suas ideias no domínio da ciência permite que o estatuto de ciência lhes seja
atribuído de forma consensual. O mesmo não poderei afirmar das ideias de Aristóteles e
Ptolomeu. O facto de as suas teorias terem sido refutadas e de a sua refutação coincidir
com a emergência do empreendimento científico moderno, conduz a uma maior dificuldade da atribuição do estatuto de científico à física de Aristóteles e ao modelo geocêntrico
de Ptolomeu. Esta conceção alternativa leva a que muitos professores quando se referem,
nas suas aulas, às teorias científicas refutadas, conduzam os alunos
à consideração frequente de que os nossos antecessores sofriam de
uma certa ingenuidade coletiva, já para não referir situações nas quais essas
86
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
teorias são apresentadas como claro sinal de insensatez, em que conceções
desprovidas de cientificidade são contrapostas às ideias atuais, estas sim «científicas» [aspas no original], verdadeiras e definitivas (Almeida, 2000, p. 29).
Este ideia parece-me particularmente bizarra se tiver em conta que, à semelhança do geocentrismo aristotélico refutado por Copérnico e Galileu, também a mecânica
newtoniana for refutada, mas, desta feita, por Einstein. Ainda que a mecânica clássica continue a ser útil e usada em inúmeras aplicações científicas e tecnológicas, a verdade é
que os pressupostos ontológicos onde ela assenta foram derrubados. O espaço absoluto
de Newton, palco de todos os eventos que se davam num tempo também ele absoluto e
com uma cadência única para todo o universo, foram substituídos pelo estranho mundo
da relatividade, onde o espaço e o tempo perdem o seu caráter absoluto e passam a ser
grandezas dependentes da velocidade do corpo em estudo e do observador. Também a velha física de Aristóteles e Ptolomeu ainda tem as suas aplicações atuais. O que é uma carta
celeste, se não uma representação geocêntrica de uma pequena porção do Universo? Da
mesma forma que usar uma carta celeste não obriga o indivíduo a aceitar uma conceção
geocêntrica do mundo, também o uso da mecânica clássica não leva a uma aceitação dos
seus pressupostos ontológicos.
Parece-me que as razões que levam a um tratamento discriminatório das diversas
teorias científicas se prendem mais com as conceções acerca da ciência, do que com a
natureza das teorias em causa. Reabilitado o estatuto científico de algumas mundividências dos filósofos helénicos, talvez tenha conseguido encontrar as coordenadas espáciotemporais do início da atividade científica. Porém, se assim o fizesse assumiria uma posição eurocêntrica com algum cunho colonialista. Tal como afirmou Bernard Shaw, por cada
resposta dada, dez novas se colocam…
Fora da Europa, antes colonização, também se fazia ciência e são várias as evidências dessa situação. Na minha opinião, a mais elegante evidência da universalidade dos
contributos para construção científica é utilizada diariamente por todos nós; tem usos tão
corriqueiros como determinar o preço a pagar pelo pequeno-almoço até aos sofisticados
cálculos que manteem satélites em órbita e o mundo tecnológico a funcionar: trata-se do
sistema de numeração decimal, vulgarmente conhecido por numeração árabe, mas que
deveria ser apelidado de numeração indiana. Este sistema, introduzido por Leonardo Fibonacci (1170-1250) na Europa do século XII, deve o seu nome ocidental ao facto de o
referido matemático o ter aprendido através dos árabes. No entanto, sabe-se – e são várias
as lendas que o atestam – que os árabes os aprenderam com os indianos. Na verdade, este
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88
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oriano com que estamos
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
Nesta conceção, o cientista, partindo das observações do fenómeno, identifica
(melhor será dizer constrói) padrões a partir dos quais formula hipóteses; as hipóteses
são sujeitas a ensaios empíricos e transmutam-se em teorias; as teorias, se resistirem ao
passar dos tempos, acabam por ser reconhecidas como leis generalistas. Esta ideia está
fortemente enraizada nas conceções de senso-comum sobre a ciência. Exemplo disso é o
uso que alguns cristãos conservadores – que defendem o ensino do criacionismo bíblico
como teoria alternativa viável ao evolucionismo – fizeram dela. Estas pessoas defendem
que o evolucionismo é apenas uma teoria científica e não uma lei e que por isso ainda não
está definitivamente provada (Dawkins, 2009).
Figura 1 - Conceção comum da estrutura hierárquica do conhecimento científico.
Ainda que consiga encontrar algum paralelismo entre algumas instâncias da história da ciência e as duas primeiras etapas da figura – observações e hipótese – como o
estabelecimento empírico das relações entre volume e pressão de um gás, por exemplo, as
conceções sobre as duas etapas seguinte não poderiam estar mais longe da realidade. Procurarei então esclarecer as diferenças entre uma teoria e uma lei (ou princípio) científico.
Para clarificar a situação, usarei a Lei (ou princípio) da Gravitação Universal, enunciado por Isaac Newton (1643 – 1727) na sua obra-prima Philosophiæ Naturalis Principia
Mathematica, publicada pela primeira vez em 1687. De acordo com Newton todos os corpos no Universo estão sujeitos a atração mútua por ação da força gravítica. A intensidade
dessa atração (Fg) é diretamente proporcional às massas (m1 e m2) dos corpos que se atraem, inversamente proporcional ao quadrado da distância (R) que os separa e a constante
de proporcionalidade é a Constante de Gravitação Universal (G). Em linguagem matemática pode escrever-se:
89
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
Como o próprio nome indica este enunciado constitui uma lei ou um princípio e
não uma teoria. Subjacente a esta classificação está o facto de a Lei da Gravitação Universal
estabelecer uma relação entre quatro variáveis – a força gravítica a que os corpos estão
sujeitos, as massas dos corpos que se estão a atrair e a distância que os separa. Contudo
esta lei da física não dá qualquer justificação para que esta atração se dê, nem explica a
sua natureza. Somente estabelece, de um modo empírico, a relação – neste caso quantitativa – entre as diferentes variáveis em jogo. Newton nunca estabeleceu uma teoria da
gravitação. Ele reconhece que apesar de ter sido capaz de quantificar a força gravítica, não
tem qualquer explicação para a atração universal, nem tem nada a dizer sobre a natureza
desta atração. Não tendo melhor explicação acaba por dizer que os corpos se atraem por
ser essa a vontade de Deus.
Somente no século XX é que Einstein avança com uma explicação para a atração
universal a que todos os corpos do Universo estão sujeitos. Einstein compreende que aquilo que Newton dizia ser a vontade de Deus, pode ser explicado por um espaço-tempo
flexível que se curva perto de corpos materiais com massa, sendo que essa curvatura é
tanto mais acentuada quanto maior for a massa do corpo e menor for a distância do corpo ao ponto do espaço-tempo considerado. Num espaço curvo, os planetas não podem
deslocar-se em linha reta e descrevem órbitas (quase) fechadas em torno do Sol. Não é
minha intenção alongar-me em explicações detalhadas da relatividade. Para a discussão
em causa, basta que o leitor saiba que, na perspetiva de Einstein, a relação estabelecida
por Newton mantém-se válida, mas há uma explicação do processo pelo qual os corpos
se atraem. É por isso que posso afirmar que Einstein estabeleceu uma teoria da gravidade
enquanto Newton avançou com um princípio relacional da mesma. Esta é a diferença entre uma Teoria e uma Lei. Enquanto que a teoria explica e descreve os processos por que
determinado fenómeno ocorrem, as leis (ou princípios) estabelecem relações entre duas
ou mais variáveis. Também Aristóteles tinha construído uma teoria da gravidade. Quando
o filósofo estabelece a sua cosmologia dos quatro elementos – Terra, Água, Ar e Fogo – e
explica que uma pedra cai (ou afunda) ou que o fogo de uma fogueira se eleva no ar porque
ambos procuram o seu lugar natural, está a construir uma teoria da gravidade e explica o
comportamento dos corpos com base na sua constituição elementar. Julgo que, de uma
determinada perspetiva, Aristóteles foi mais longe que Newton na explicação da gravidade.
90
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
A ciência encontra-se cheia de episódios de leis que foram estabelecidas empiricamente e cujas teorias explicativas foram desenvolvidas mais tarde. Somente a título de
exemplo indico duas instâncias: uma no domínio da química-física e outra no âmbito da
biologia. No primeiro caso, refiro-me àquela que ficou conhecida pela lei de Boyle-Mariotte, e que estabelece a relação quantitativa entre a variação da pressão e do volume de uma
massa de gás, que se encontra a temperatura constante. Robert Boyle (1627 – 1691) publicou esta lei em 1662; no entanto, apenas em 1738 é que Daniel Bernoulli (1700 – 1782)
desenvolve a Teoria Cinética dos Gases que fornece uma explicação para que os valores do
volume e da pressão de um gás se relacionem da forma como Boyle havia estabelecido.
Também no domínio da biologia encontramos leis que foram estabelecidas muito antes
das teorias que as explicam. Um exemplo são as conhecidas Leis da hereditariedade de
Gregor Mendel (1822 – 1884). O frade austríaco, recorrendo ao cruzamento de diversas
variedades de ervilheiras de cheiro, conseguiu identificar e estabelecer alguns padrões que
regulam a hereditariedade de determinadas características. A teoria que viria a descrever
o processo como as características são herdadas só surgiu após o isolamento da molécula
de DNA, por James Watson (1928 – ) e Francis Crick (1916 – 2004), no princípio da década
de 50 do século XX.
Tecno-ciência
A clarificação que acabei de fazer acerca das diferenças entre as teorias e as leis
científicas é importante para enquadrar a reflexão que se segue sobre as origens da ciência. Na segunda metade do século XVIII, mais propriamente entre 1763 e 1775, James
Watt (1736 – 1819) desenvolve a máquina a vapor a partir de modelos anteriores mais
rudimentares. Sendo uma máquina térmica, o seu funcionamento é descrito pelas leis da
termodinâmica. No entanto, estas leis, ao invés de servirem de base para a conceção e projeto da máquina a vapor, surgem bastante tardiamente – algumas mais de cem anos depois
da invenção de Watt. Este é um dos vários exemplos do desenvolvimento de uma tecnologia, que antecede a construção de uma teoria que a suporta. Trata-se de um desenvolvimento fundado em princípios empíricos e em processos de tentativa-erro. Na realidade, o
aperfeiçoamento das máquinas térmicas conduziu à construção de muitas das ideias que
estão hoje subjacentes à termodinâmica moderna. É um exemplo claro de como ciência
e tecnologia são uma só realidade e não duas realidades distintas como muitos parecem
conceber. Derruba a ideia de que os desenvolvimentos tecnológicos têm por base teorias
e conhecimentos científicos e mostra como se pode desenvolver uma parte significativa de
uma teoria científica a partir de um projeto de inovação e melhoria tecnológica.
O desenvolvimento da máquina a vapor, e dos aspetos de progresso científico que
91
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
lhes estão associados, é consensualmente aceite como um acontecimento da história da
ciência. São precisamente as características peculiares deste episódio que me remetem a
reflexão para outro nível. Histórias idênticas à anterior surgem noutras áreas do conhecimento que, tradicionalmente, não são tidas como científicas. Histórias em que o desenvolvimento tecnológico se consegue à custa de processos empíricos de tentativa-erro. Um
desses exemplos é o domínio do fogo. Se na época de James Watt a humanidade aprendeu
a converter o fogo em trabalho mecânico, foi há muito mais tempo que aprendemos a
fazer uso doméstico desta tecnologia. É claro que não se conhecem os detalhes que rodearam este passo fundamental dos nossos antepassados, mas creio não ser abusivo assumir
que se tratou de um processo empírico que poderá, eventualmente, ter partido de alguma
observação e prosseguiu com a tentativa de se conseguir o seu domínio. Se este desenvolvimento tecnológico não é tido como científico deve-se mais às conceções enviesadas
da ciência, que proliferam por aí, do que à sua própria natureza. À luz do que discuti anteriormente, não tenho dificuldades em classificar este (e outros) eventos históricos como
processos de desenvolvimento científico. Não serão as farmacopeias das tribos ancestrais,
também conhecimento científico? Certamente que o leitor não terá grande dificuldade
em concordar comigo de que estes corpos de conhecimento merecem, tanto quanto os
conselhos e recomendações de Hipócrates, o estatuto de científicos.
O fogo e outras ciências não humanas
Investigações recentes encontraram indícios empíricos que há 790 000 anos espécies hominídeas fizeram uso doméstico do fogo, numa região que hoje pertence a Israel
(Balter, 2004). Estes não são os únicos vestígios do uso doméstico do fogo desta época.
Também os há na Ásia continental e em África. Alguns antropólogos estimam que o uso doméstico do fogo possa ter surgido em espécies hominídeas entre 0,7 e 1,5 milhões de anos
atrás. Ainda que, apesar de apontarem nesse sentido, as evidências deste uso domesticado
ancestral do fogo sejam indiretas, o domínio desta nova tecnologia explica a colonização
de regiões mais frias do globo – como é o caso do planalto de Gadeb na Etiópia ou a Europa
e as regiões frias da Ásia – por espécies hominídeas, cujas características fisiológicas não
permitem uma sobrevivência nestas regiões, sem recursos tecnológicos (Cela-Conde &
Ayala, 2007). A espécie humana – Homo sapiens sapiens – surgiu algures entre os 130 000
e os 200 000 anos atrás (Cela-Conde & Ayala, 2007; Sapp, 2003), muito depois dos primeiros registos de uso doméstico do fogo. Antes de os humanos colonizarem as regiões mais
remotas do planeta, estas eram habitadas por espécies hominídeas não humanas como o
Homo erectus – surgido há 1,8 milhões de anos – e pelo Homo heidelbergensis – surgido
há 500 000 anos. Foram precisamente estas espécies as primeiras a dominar a tecnologia
do fogo e, de acordo com Wrangham (2009), usavam-no não só para se aquecerem, mas
92
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
também para cozinharem alimentos.
Se o leitor comparar as naturezas dos processos que conduziram ao domínio da
tecnologia fogo e ao domínio da tecnologia máquina-a-vapor, certamente verificará que
as semelhanças são maiores que as diferenças, pelo que ambos poderão ser considerados
processos científicos de conquista tecnológica. Posto isto, posso afirmar com alguma segurança, que as origens do empreendimento científico são anteriores à origem da humanidade; a ciência – talvez o empreendimento que mais orgulho trouxe à espécie humana – tem
as suas origens fora da humanidade.
As evidências da existência de ciência não humana não se ficam por umas vagas
memórias com milhões de anos. Hoje mesmo, enquanto escrevo estas palavras, existem
grupos de primatas a construírem e a utilizarem farmacopeias de plantas medicinais. Os
estudos de Huffman e Michael (2003) salientam o recurso a plantas medicinais em espécies de primatas diferenciadas como o chimpanzé (Pan troglodytes), o bonobo, também
conhecido como chimpanzé pigmeu (Pan paniscus) e o gorila (Gorilla gorilla). O uso de
medicamentos por animais não humanos, é também referido por Newton (1991); este autor chega a defender a possibilidade de farmacologistas (humanos) poderem desenvolver
ideias de novos medicamentos inspiradas pelo uso que estes primatas lhes dão. Grupos
diferentes de primatas da mesma espécie usam plantas diferentes com propósitos idênticos. A farmacopeia é de um determinado grupo, não é comum a todos os elementos da
espécie; é um conhecimento cultural de um determinado grupo. Esta situação elimina o
gasto, argumento de que os comportamentos de todos os animais não humanos são manifestações inconscientes do instinto. A procura de medicamentos para expelir parasitas
intestinais, ou apaziguar uma dor de estômago, revela um caráter investigativo de, pelo
menos, alguns membros destas espécies, associada à capacidade de construir conhecimento característico de um grupo-tribo, atestam a sua capacidade destas espécies produzirem cultura.
Antes de terminar…
…gostaria de deixar claro que não é minha intenção defender que as sociedades
de chimpanzés, bonobos e gorilas fazem investigação científica e produzem conhecimento
de forma semelhante à dos humanos, ou que o H. erectus e o H. heidelbergensis fossem
exímios investigadores no domínio da tecno-ciência. Deixo essa decisão ao leitor. É, porém, minha intenção levantar questões e dúvidas sobre as certezas acerca do que é ou
não ciência. Sublinhar que as fronteiras do conhecimento (tal como as dos países) são
construções artificiais pouco claras. Admito ter imensa dificuldade, no que toca a deter93
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
minadas áreas do conhecimento, em discernir acerca da sua cientificidade. Quando se
manifesta a superstição absurda e ignorante; quando se mercantilizam favores do divino
a troco de sacrifícios ou feitiços; quando se defendem teorias ou ideias – frequentemente
causadoras de grande sofrimento – porque vêm escritas num livro alegadamente revelado
por Deus, não tenho qualquer dúvida em colocar esse conhecimento na prateleira das
inutilidades a serem recordadas como curiosidades interessantes produzidas pela inventiva mente humana. Porém, quando me deparo com mundividências apresentadas sobre a
forma poética do mito, em que a metáfora assume um papel tão importante como na construção e comunicação científica, quando o animismo do mundo natural se confunde com
as qualidades que percebemos nele, surgem as dúvidas da adjetivação. Estas narrativas
parecem-se mais com uma ciência descrita em palavras próprias que relata a diversidade
e unidade simultânea do Universo duma maneira distinta na forma, mas igual na natureza
à das descrições científicas.
O que é a ciência? Esta é uma pergunta colocada inúmeras vezes por inúmeras pessoas e com inúmeras respostas. A origem da ciência perde-se na vastidão dos milénios e
antecede a própria humanidade. Mais do que uma construção humana é uma herança deixada pelos nossos antepassados; mais do que uma afirmação do papel especial que parece
ter sido atribuído aos humanos, é uma lição de humildade que recorda aos (presunçosos)
H. sapiens sapiens que estão hoje tão ligados ao mundo natural como sempre o estiveram
e que, com os olhos postos no passado e, usando as conquistas do saberes científicos, podem olhar em frente e construir um futuro mais justo e sustentado para todas as espécies
que habitam a Terra.
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As práticas de investigação com alunos de 10.º ano de escolaridade: um contributo para a aprendizagem em Biologia
Alice Mariete Inglês Fernandes de Oliveira Carvalho23
O actual enquadramento legal dos programas para o ensino da Ciência dá relevância à componente prático-experimental. A componente prática deverá ser parte integrante
e fundamental do processo de ensino e de aprendizagem visando integrar as dimensões
teórica e prática, numa perspectiva construtivista da aprendizagem, valorizando os conhecimentos prévios dos alunos, bem como as suas vivências e objectivos, na medida em que
são condicionantes das suas aprendizagens DES (2001).
Tendo em conta o âmbito alargado das actividades práticas, estas contribuem para
a compreensão conceptual de conhecimentos, para a aquisição de conhecimentos procedimentais e para o desenvolvimento de atitudes e de valores. Também, ao promoverem
a utilização de linguagem científica e a utilização de metodologia científica, as actividades
práticas levam a que os alunos adquiriram técnicas de trabalho incentivadoras de cooperação entre eles, desenvolvam competências facilitadoras da construção de conceitos
abstractos e melhorem progressivamente o seu método de trabalho, tornando-os mais
autónomos, responsáveis e com atitudes positivas relativamente à Ciência (DES, 2001).
A utilização de diversas situações de aprendizagem, com base em trabalho prático
como seja, o trabalho experimental, o trabalho laboratorial ou trabalho de campo, ao serem orientadas para o desenvolvimento de competências que requeiram o envolvimento
cognitivo, irá proporcionar aos alunos um ambiente de aprendizagem em que eles sejam
encorajados a explorar, a testar as suas ideias, a recolher evidências, a interpretar com
base nas evidências recolhidas, a tomar decisões e a elaborar conclusões previamente
desconhecidas dos alunos, desenvolvendo, também, a capacidade de utilizar evidências na
construção de argumentos (Leite & Esteves, 2005).
As novas exigências prescritas na legislação estão em consonância com um mundo
em constante mudança, com o aumento de requisitos dos mercados de trabalho, que leva
a que o ser-se “competente” para um dado trabalho, há poucas décadas, pode requer hoje
uma especificidade muito maior das ditas competências (Roldão, 2008). A Escola é chama23 Professora do Departamento de Matemática e Ciências Experimentais da Escola Secundária de Peniche
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
da a desempenhar um papel essencial na promoção e desenvolvimento de indivíduos com
capacidades de intervenção e de cidadania para responder às novas exigências.
O sucesso das reformas e das reorganizações curriculares passa, também, pela mudança de concepções dos professores, de forma a interiorizarem as finalidades daquelas,
quer a nível da implementação de situações de aprendizagem, promovendo um ensino
orientado para o desenvolvimento de competências, quer na utilização da avaliação como
aprendizagem (Roldão, 2008).
O ensino orientado para o desenvolvimento de competências leva a assumir a responsabilidade de criar situações que dêem relevo às questões pessoais e sociais e em que
os alunos se integrem e mobilizem as suas experiências, de modo a que a aprendizagem
promova o envolvimento cognitivo de cada um que está a aprender (Galvão et al., 2006).
O professor deverá estar consciente da necessidade de fazer constantemente uma
reflexão do processo de ensino que promove e deve investigar quais as mudanças que
ocorrem nas competências dos alunos quando são implementadas novas experiências de
aprendizagem e novas estratégias de avaliação (Alarcão, 2001).
Praia & Marques (1997) salientam a importância na mudança de atitude dos professores, no sentido de ultrapassarem a aceitação do empirismo clássico que considera a
Ciência como uma simples descoberta, baseada na observação e na confirmação experimental positiva e inquestionável, para compreenderem a importância do desenvolvimento
cognitivo-reflexivo, adquirindo o aluno o papel decisivo na construção do seu conhecimento.
A utilização de práticas de investigação, com base em situações problema, proporciona aos alunos uma compreensão dos procedimentos e estratégias de investigação
científica, bem como uma compreensão dos conceitos científicos (Miguéns, 1999).
Este estudo consistiu na implementação de actividades de investigação na componente de Biologia, da disciplina de Biologia e Geologia, no 10.º ano. Pretendeu-se promover uma gestão eficaz dos conteúdos e uma estreita ligação entre a realidade da sala de
aula, as exigências actuais do ensino das ciências, a inovação de metodologias e o recente
enquadramento legal curricular. Com esta abordagem pretendeu-se, também, desenvolver a compreensão deste tema tão actual que constitui o ensino experimental e as práticas
de investigação, bem como as competências preconizadas no currículo.
Este trabalho tinha como objectivos a atingir:
98
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i) envolver os alunos em práticas de investigação inovadoras de modo a suscitarlhes o interesse, promovendo a integração dos conhecimentos prévios e a estruturação
dos novos saberes;
ii) permitir que os alunos compreendam os processos mentais de construção do
conhecimento científico;
iii) desenvolver nos alunos competências subjacentes às práticas de investigação
científica;
iv) contribuir para o reforço das competências profissionais, bem como para a melhoria das práticas pedagógicas da investigadora, numa perspectiva de professor como investigador da sua prática.
Propõe-se que os alunos se confrontem com um trabalho de pesquisa dinâmico,
com um percurso de aquisição progressiva de concepções mais científicas, uma vez que
terão que prever, explicar, reflectir e fundamentar o seu trabalho e as suas comunicações,
de modo a promoverem o sucesso escolar das suas aprendizagens. Perrenoud (2000) afirma que uma verdadeira “situação-problema obriga a transpor um obstáculo graças a uma
aprendizagem inédita” (p. 31) sendo, sem dúvida, um modo ideal de levar os alunos a
construírem os seus conhecimentos científicos.
Este estudo tinha como questão principal: - Qual a influência das práticas de investigação para a aprendizagem em Ciência? Para responder a esta questão colocaram-se as
seguintes subquestões:
i) Qual a relação das práticas de investigação e a motivação dos alunos para a
aprendizagem de Biologia?
ii) Como é que as práticas de investigação promovem o desenvolvimento das competências preconizadas no currículo?
iii) Quais as potencialidades das práticas de investigação no desenvolvimento do
pensamento científico?
Na abordagem teórica ao pensamento científico deu-se relevo às perspectivas de
Karl Popper, que propôs o método hipotético-dedutivo, assente no princípio da falsificação da teoria, e de Thomas Kuhn, que distingue duas modalidades do trabalho científico,
a ciência normal e a ciência extraordinária, ambos como filósofos da Ciência, bem como
às perspectivas de Piaget e Vygotsky que se centraram no pensamento ligado à aprendiza99
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
gem. Tanto Piaget como Vygotsky são construtivistas, pois as suas concepções do desenvolvimento intelectual referem que a inteligência é construída a partir das interacções entre
o homem e o ambiente. Contudo, os seus pensamentos divergem quanto à sequência dos
processos de aprendizagem e de desenvolvimento mental. Para Vygotsky, é a aprendizagem que gera o desenvolvimento mental; para Piaget, é o contrário, é o desenvolvimento
progressivo das estruturas intelectuais que torna o indivíduo capaz de aprender (Argento,
sd).
Segundo o currículo da disciplina de Biologia e Geologia é necessário desenvolver
competências dos domínios conceptuais, procedimentais e atitudinais. As competências
desenvolvem-se em diferentes contextos mobilizando diferentes saberes adquiridos (Galvão et al., 2006).
Dourado (2006) refere que há estudos cujos resultados apontam para a importância das actividades de investigação no desenvolvimento de competências nos diferentes
domínios: conceptual (aquisição de conhecimento específico), procedimental (formulação
de problemas) e atitudinal (envolvimento dos alunos na implementação das actividades e
promoção de comportamentos sociais com a realização das actividades em grupo).
Na abordagem à motivação dos alunos para a aprendizagem em Ciência, analisouse a teoria de Bandura (1986; 1993), de acordo com a qual, motivação pode ser considerada como um comportamento orientado para um objectivo suportado nas expectativas
antecipadas do que cada um pode realizar para obter resultados e da percepção dos julgamentos de auto-eficácia para executar as acções. Os julgamentos de auto-eficácia de um
indivíduo determinam o seu nível de motivação, na medida em que criam um incentivo
para agir em determinada direcção, antecipando mentalmente as expectativas dos resultados a obter.
Na área académica as crenças de auto-eficácia são julgamentos pessoais quanto
à capacidade de executar uma determinada tarefa e num nível de qualidade esperada
(Schunk, 1991). Assim, no contexto escolar, o aluno motiva-se para se envolver em actividades de aprendizagem se acreditar que, com os seus conhecimentos, atitudes e habilidades, poderá adquirir novos conhecimentos, dominar o conteúdo e melhorar as suas
capacidades (Bzuneck, 2004).
Em sala de aula, as crenças de auto-eficácia dos alunos podem ser aumentadas
se eles forem orientados para desenvolverem tarefas com objectivos ou metas a serem
cumpridos. Estas metas terão efeito sobre a motivação se forem próximas, específicas e de
nível adequado de dificuldade (Bandura & Schunk 1981).
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Relativamente ao trabalho prático e ao ensino das Ciências verifica-se que, nos documentos oficiais e nos textos de vários autores, as designações “trabalho prático”, “trabalho laboratorial” e “trabalho experimental” nem sempre são utilizadas com o mesmo significado. Hodson (1988) apresenta uma distinção entre estes termos consoante os contextos
em que são utilizados. Assim, “trabalho prático” é um conceito com um significado mais
geral, em que se incluem todas as actividades que exigem o envolvimento activo do aluno,
que pode ser nos domínios psicomotor, cognitivo e afectivo. Nesta perspectiva, a definição
de trabalho prático tem um âmbito mais abrangente e inclui actividades laboratoriais, trabalhos de campo, actividades de resolução de exercícios ou de problemas de papel e lápis,
utilização de um programa informático de simulação, pesquisa de informação na internet
ou na biblioteca, entre outros. “Trabalho laboratorial” diz respeito a actividades que envolvem utilização de materiais de laboratório. Embora estes materiais também possam ser
usados em actividades de campo, as actividades laboratoriais realizam-se num laboratório
ou numa sala de aula normal, desde que não haja problemas de segurança, enquanto as
actividades de campo têm lugar ao ar livre, no local onde os fenómenos acontecem ou
os materiais existem (Pedrinaci, Sequeiros & Garcia, 1992). “Trabalho experimental” corresponde a actividades que envolvem controlo e manipulação de variáveis, podendo ser
realizadas no laboratório ou no campo. Deste modo, o critério que está na base da distinção entre as actividades experimentais das não experimentais tem a ver com o facto de se
controlar e manipular, ou não, variáveis e o critério que permite distinguir as actividades
laboratoriais das de campo tem a ver, fundamentalmente, com o local onde a actividade
decorre (Leite, 2001) e não com a adopção de metodologias específicas (Dourado, 2001).
A figura 1 representa, de entre os recursos didácticos que os professores têm à sua
disposição, o trabalho prático e a sua relação com o trabalho laboratorial, experimental e
de campo (Leite, 2000).
Figura1. Relação entre trabalho prático, laboratorial, experimental e de campo (adaptado de Leite, 2000).
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
As práticas de investigação, segundo Miguéns (1999), são um tipo de trabalho prático que “não é encarado como estar activo a fazer coisas, mas estar activo a pensar sobre
as coisas, para as fazer e depois de as fazer” (p. 91).
As actividades investigativas de resolução de problemas pressupõem questionamento e reflexão, podendo emergir perguntas tais como: “Que questões poderão adquirir
estatuto de problemas? Quem as considera problemas: o professor, os alunos ou o professor e os alunos? Que papel deverá o professor assumir na orientação e desenvolvimento,
pelos alunos, de tp (trabalho prático) deste tipo?” (Pedrosa, 2001, p. 31).
Muitas vezes as actividades laboratoriais são confundidas com investigações (Leite,
2001). As actividades laboratoriais podem apresentar diferentes graus de complexidade e
exigência para os alunos, mas apenas as que se apresentam como problemas para o aluno
resolver, se podem designar de investigações (Woolnough & Allsop, 1985).
De acordo com a perspectiva de Wellington (2000) as actividades de natureza investigativa e de resolução de problemas apresentam diferentes graus de abertura, podendo conferir liberdade para os alunos tomarem decisões na formulação de problemas, nos
materiais e equipamentos a utilizar, nos procedimentos a seguir, no tratamento de dados,
na interpretação de resultados e no confronto destes com as hipóteses previamente formuladas. Este autor apresenta uma tipologia de investigações, que podem ou não ser de
resolução de problemas, esquematizada na figura 2.
Figura 2. Dimensões de uma actividade de investigação (adaptado de Wellington, 2000).
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A metodologia seguida neste estudo teve por base o paradigma de métodos mistos, utilizando-se um desenho quasi-experimental, de um só grupo simples com pré-teste
e pós-teste, sem grupo de controlo.
O estudo envolveu vinte e três alunos, do 10.º ano de escolaridade, na realização
de actividades de investigação em Biologia.
Para a recolha de dados recorreu-se à aplicação de inquéritos por questionário,
após a realização de cada uma das actividades de investigação. Utilizou-se, ainda, notas
de campo da investigadora provenientes da observação das aulas em que as actividades
foram implementadas.
Para o tratamento de dados obtidos a partir da administração dos questionários
aos participantes do estudo, optou-se, relativamente às respostas das questões fechadas,
pela análise quantitativa através da estatística descritiva e, para as respostas das questões
abertas, pelo tratamento através da análise de conteúdo.
Apresentam-se os resultados provenientes dos inquéritos, começando com a questão principal: - Qual a influência das práticas de investigação para a aprendizagem em
Ciência?
Segundo os participantes, as práticas de investigação permitiram aumentar os conhecimentos sobre os temas abordados, uma vez que despertaram o interesse por serem
do tipo laboratorial/experimental, permitiram compreender e integrar os fenómenos e revelaram potencialidades para a apropriação de conhecimento.
As dificuldades sentidas foram na interpretação da tarefa, na identificação do problema e no planeamento do desenho investigativo.
Como dificuldades resolvidas, os alunos apontaram a interpretação do que é solicitado, a obtenção de informação para concretizar a actividade, a elaboração do relatório e
a forma de trabalhar, no laboratório e em grupo.
Os resultados permitem inferir que as práticas de investigação influenciaram positivamente a aprendizagem em Ciência, persistindo, ainda, algumas dificuldades na identificação do problema e no planeamento da investigação.
Seguem-se os resultados alcançados através das subquestões de investigação.
- Qual a relação das práticas de investigação e a motivação dos alunos para a
aprendizagem de Biologia?
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Pelos resultados obtidos, verificou-se que os alunos ganharam confiança nas suas
capacidades, mencionaram já serem capazes de realizar recolha de informação de forma
eficaz, consideraram interessante as práticas de investigação especialmente por terem sido
actividades laboratoriais/experimentais e referiram que aumentaram os seus conhecimentos relativamente aos conteúdos leccionados. Pelos resultados, infere-se que a realização
das práticas de investigação permitiu desenvolver, nos alunos, expectativas positivas quanto às suas capacidades de realizar as acções propostas, estimulando-os agir, motivando-os
para a aprendizagem em Biologia.
- Como é que as práticas de investigação promovem o desenvolvimento das competências preconizadas no currículo?
Os participantes do estudo consideraram que as práticas de investigação foram
facilitadoras da aprendizagem, permitindo a compreensão e interpretação de fenómenos competências dos domínios conceptual e procedimental; as comunicações dos resultados
à turma permitiram ouvir diversos pontos de vista, perceber a informação e corrigir os
erros - competências dos domínios procedimental e atitudinal; as práticas de investigação
permitiram melhorar a organização do trabalho em grupo e as relações interpessoais competências do domínio atitudinal. Pelo exposto, através das práticas de investigação foi
possível promover o desenvolvimentos das competências preconizadas no currículo.
- Quais as potencialidades das práticas de investigação no desenvolvimento do
pensamento científico?
Através dos resultados obtidos verificou-se que foram superadas dificuldades na
compreensão da actividade proposta, na organização do trabalho e na elaboração do relatório. Os participantes consideraram que assistir às comunicações dos colegas permitiu desenvolver o raciocínio sobre os temas estudados. Persistiram, ainda, dificuldades na identificação do problema, na formulação das hipóteses e no planeamento da investigação.
As práticas de investigação promoveram o desenvolvimento do raciocínio hipotético-dedutivo e do pensamento lógico-abstracto, contribuindo de forma positiva para
desenvolver o pensamento científico. Porém, as dificuldades apontadas na identificação
do problema e na formulação das hipóteses podem ser reveladoras que, de algum modo,
ficaram comprometidos alguns dos requisitos cognitivos fundamentais para o desenvolvimento do pensamento científico.
Os critérios usados neste estudo indicaram que, com as práticas de investigação
implementadas, os participantes ficaram motivados para a aprendizagem dos conteúdos,
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desenvolveram as competências preconizadas no currículo e apresentaram progressos no
desenvolvimento do pensamento científico. Conclui-se, assim, que as práticas de investigação implementadas permitiram influenciar de forma positiva a aprendizagem em Ciência
nos participantes deste estudo e que foram atingidos os objectivos propostos para este
trabalho.
Como limitações do estudo aponta-se o número reduzido de participantes, o facto
de o grupo ter sido escolhido sem aleatoriedade, a impossibilidade de proceder a uma
pilotagem, a subjectividade na categorização na análise de conteúdo, o tempo para o desenvolvimento das práticas de investigação que necessitavam de um contexto próprio e o
possível enviesamento pela acumulação das funções de professor e de investigador.
Como recomendações para estudos posteriores, propõem-se replicar o estudo com
outros intervenientes e com outros conteúdos (de Biologia e de Geologia), implementar
práticas de investigação abrangendo diferentes níveis de escolaridade e alargar o estudo
a outros critérios para a aprendizagem em Ciência (participação dos alunos, interacções
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CORPO, AFECTIVIDADE E SEXUALIDADE
Laura Diniz24
Introdução
O que é a ética da sexualidade?
Representa o conjunto de princípios e significados que presidem à nossa acção no
campo da sexualidade. Como encaramos o corpo e a relação sexual com o outro? Como
escolhemos agir e que significado tem a sexualidade para nós? Será que o corpo do outro
se distingue do que ele é como pessoa? O que pretendemos da nossa vida sexual? Como a
relacionamos com a afectividade que nos constitui?
Respeito o outro ou uso-o? Entrego-me ou fecho-me? Como posso enquadrar esta
dimensão da minha vida no meu livre arbítrio? Sou determinado por impulsos irracionais
ou escolho o sentido que dou aos meus actos? O que é a liberdade sexual? O que é o
respeito pelas escolhas sexuais dos outros? Onde termina a minha liberdade e começa a
do outro? O que prefiro e o que rejeito? Que valor tem o sexo e o amor que se lhe pode
juntar? Faz sentido o sexo fora do horizonte de uma afectividade? Como encaro esta forma
de prazer e o que estou disposto a fazer para o alcançar?
As respostas que dermos a estas questões irão definir o nosso carácter em termos
de vivência da sexualidade. Será que podemos furtar-nos a respondê-las? Só se não quisermos compreender o significado que essa dimensão da nossa vida tem para nós. Não,
não podemos fugir a estas questões. Elas impõem-se desde o momento em que somos
seres sexuados em relação com outros seres sexuados. Podemos até não ter consciência
das respostas que damos nem fazer as perguntas a nós próprios, mas as nossas acções e o
sentido que essas acções têm para nós (as nossas intenções), respondem-lhes na mesma,
definindo a nossa identidade sexual. Nesse caso, andaremos um pouco à deriva mas não
escapamos à inevitabilidade de atribuir um sentido ao que fazemos e de nos construirmos
nesse sentido.
Todas estas questões estão ligadas e o que se impõe desde o princípio é que tenhamos uma posição consciente e fundamentada. Cada um precisa de definir para si próprio a
24. Professora do Departamento de Ciências Sociais e Humanas da Escola Secundária de Peniche.
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maneira como quer viver esta dimensão extraordinária da vida humana. A sexualidade, ao
supor a presença de outro, obriga-me a definir-me na minha presença para ele.
A reflexão sobre a sexualidade e a afectividade deve, portanto, constituir um tema
incontornável para a definição de nós próprios e a escolha do ser humano que queremos
construir. A nossa vida e o nosso equilíbrio psíquico dependem desta reflexão. Porque também não dizer, a nossa felicidade e realização como pessoas?
O corpo, a afectividade e a sexualidade são os três vértices do triângulo temático
que escolhemos. Pelo facto de cada um manter relações muito estreitas com os outros
dois, é legítimo pô-los em relação simultaneamente. Porquê este triângulo? Talvez porque
ao querer falar sobre um destes temas tivesse que falar dos outros dois. Por outro lado,
talvez não. O que acontece é que Merleau-Ponty conseguiu definitivamente chamar a nossa atenção para esta relação. Podíamos falar do corpo objectivo, do corpo como objecto
de conhecimento e, nesse caso, não seria absolutamente necessário falar na afectividade
nem na sexualidade. Mas o facto é que se mostra muito mais importante, neste momento,
falar do corpo vivido e na vivência do corpo. Mostra-se, então, cada vez mais necessária
uma Filosofia da Afectividade que confira valor à afectividade e um estatuto próprio à sexualidade.
Querendo estudar o corpo como ser sexuado no âmbito de uma afectividade foi
necessário, antes de tudo, apresentar todas as dificuldades que este estudo nos apresentou. Um dos factores que contribuiu para a possibilidade desta reflexão foi o conhecimento
do caso de Schn., um caso patológico que sustentou, se assim se pode dizer, a validade do
nosso discurso. Podemos, assim, mostrar com uma base segura a não autonomia da sexualidade, o seu valor simbólico e o seu entrelaçamento com todas as outras dimensões da
existência.
Tendo como pano de fundo a Fenomenologia, como guias Merleau-Ponty, Paul Ricoeur e Alfonse de Waelhens, e não esquecendo a valiosa contribuição de Freud e da Psicanálise, vamos apresentar uma forma de pensar o corpo como “meio” afectivo e o papel
da sexualidade como base de toda a relação humana. Vamos também dar muita atenção à
constituição do sentido pessoal e interpessoal na relação afectiva e sexuada.
Advertimos para o facto de a nossa reflexão poder revestir-se de uma orientação
marcadamente pessoal. Devido ao carácter da afectividade que surge logo numa forma
singular, ao ser investida de sentido apenas numa vivência, não podemos deixar de imprimir à nossa reflexão o sentido próprio que aprendemos a dar-lhe.
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1. O corpo como mediador
A nossa vivência faz-se no mundo. O nosso horizonte de experiências e conhecimento é o mundo. Conhecemo-nos ou desconhecemo-nos no mundo. Amamos no mundo. É nele que desenvolvemos o nosso desejo de saber e é nele que o vamos afogando e
renovando. É nele que vivemos com os outros. É o nosso leito, a nossa alimentação, o nosso instrumento, o nosso acompanhante, o nosso professor, o nosso inspirador, o que nos
suscita a interrogação. Ele é um conjunto de coisas e seres que nos envolvem, nos situam,
nos ocupam, nos atraem, que nos pedem para ser explicadas.
As coisas são como a moldura que dá a dimensão ao quadro que nós somos. É por
relação a elas que investigamos onde começamos e acabamos, as potencialidades que
temos; é a partir delas que sabemos que não somos senão um modo de ser. Definimos o
nosso ‘eu’ por relação às coisas. É pelo modo como nos relacionamos com o que está fora
de nós que nos definimos e encontramos. É no contraste com o que nos rodeia que nos
situamos e interrogamos.
Ao mesmo tempo em que existe uma diferença radical entre este ‘eu’ e as coisas,
existe também uma conveniência e uma proximidade. Essa proximidade é pelo corpo que
somos: corpo entre corpos, parte entre partes, ser entre seres. As coisas são-nos ao mesmo tempo familiares porque somos, pelo corpo, presença com elas no mundo. O espanto
que primeiro é provocado pelo mundo volta-se depois para nós próprios e força-nos a colocar-nos perante ele. “Se portanto nós não podemos definir-nos senão pelas coisas, como
as coisas não se podem definir a não ser por nós, esta proximidade radical desenvolve-se e
forma-se no seio de um meio, de um elemento mediador que não é nem eu nem coisa (ou
que é, também, um e outro): o corpo.”25
É também porque temos um corpo que podemos furtar-nos ao mundo. É através
do corpo que nos abrimos ou fechamos ao mundo. Quer isto dizer que o corpo é já um
‘eu’: um eu corporal. O ‘eu’ passa no corpo, o corpo vivido “é um quase-sujeito, um Eu
natural.”26
Merleau-Ponty realça o corpo como existência; é no corpo que podemos desistir
da nossa existência e é no corpo que ela se realiza. O corpo manifesta a existência; é o meio
da existência. “Ele é a possibilidade da minha existência se demitir dela mesma (...) Mas
justamente porque ele se pode fechar ao mundo, o meu corpo é também o que me abre e
25 WAELHENS, A. de, Existence et signification, p. 192.
26 TILLIETTE, X., Merleau-Ponty ou la mesure de l’homme, p. 59.
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me põe em situação.”27 É através dele que comunicamos, tudo o que esboçamos na interioridade é manifestado no corpo. É também por intermédio dele que nos abrimos aos outros
e que os reconhecemos nos seus corpos. Para que haja relação, para que a existência seja
como é, “é preciso que eu seja o meu exterior, e que o corpo de outro seja ele próprio.”28.
O corpo é o mediador; é uma potência inesgotável para receber e deixar passar
outras coisas. Para isso ele pode até cair no anonimato sem, no entanto, ser transparente.
Para além de ele ser ‘opaco’ para os outros - e é o nosso meio de manifestação - ele tem o
poder de guardar, de gravar em si, como se de uma memória se tratasse, tudo o que nos
acontece.
Como diz Merleau-Ponty, o corpo é o “lugar de apropriação”29, o lugar onde tornamos próprio o mundo, onde o assumimos e lhe atribuímos o primeiro sentido. “O que é
perceber senão encontrar-se comprometido entre as coisas, numa espécie de convivência
e familiaridade, em nome de uma participação irrecusável, e isto antes de toda a tomada
de consciência?”30
Na medida em que é pelo corpo e no corpo que participamos no conjunto da realidade, ele exprime as modalidades da existência, simboliza-a. O corpo “é um nó de significações viventes”31. A forma como ele é um sinal ou um símbolo não é arbitrária ou decidida; o corpo vivido é sinal do que viveu e a cada momento o vivido se manifesta no corpo.
Não é por acaso que, sendo a tristeza um sentimento, nós dizemos que “há caras tristes”;
é porque reconhecemos a tristeza no rosto do outro.
Não só “o corpo pode simbolizar a existência porque a realiza e é a sua actualidade”32,
como pode especificar-se em diversas intenções fundamentais e simbolizar cada uma. Relativamente a toda a existência do sujeito “a sexualidade não é apenas um sinal, mas ainda
um sinal privilegiado.”33 Interessa, então, compreender como e porquê.
2. Afectividade e sexualidade
Importa agora introduzir o tema da sexualidade. Foi necessário criar toda uma atmosfera onde ela possa inserir-se com naturalidade. Depois de termos feito uma aproxi27. Phénomenologie de la Perception (P.P.), p.192.
28. P. P., Avant-propos, p. VII.
29. P. P., p. 180.
30. TILLIETTE, X., ob. Cit., p. 59.
31. P. P., p. 177.
32. P. P., p. 192.
33. P. P., p. 186.
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mação ao papel do corpo na nossa vivência total, convém fazer convergir a nossa intenção
reflexiva para a sexualidade humana.
Como se ligam a afectividade e a sexualidade, que relação é estabelecida no e com
o corpo? A relação entre a corporalidade e a sexualidade parece-nos mais evidente. O corpo é o lugar e o “meio” da sexualidade e esta é uma forma de manifestação e de expressão
do corpo.
A situação sexual compromete todo o corpo; desperta-o, arranca-o às coisas e fá-lo
voltar-se para si mesmo. Desta forma a sexualidade provoca a unidade do corpo consigo
mesmo. O homem não só vê e toca como pode ver-se e tocar-se e é visto e tocado. A
sexualidade é uma das formas mais intensas de troca, de participação no todo da vida. O
corpo não é só o meio através do qual nos surge o mundo, ele possui também um autoconhecimento e este nem sempre é redutível a palavras e apreensível pelo acto lúcido do
‘cogito’.
Dizíamos que a sexualidade é um modo privilegiado pelo qual o corpo toma conhecimento de si, se dá a si próprio uma unidade significativa. Por se estar a passar qualquer
coisa de importante em si, o corpo alheia-se das coisas. Esta protagonização do corpo não
exclui, como é evidente, parte alguma do homem, é o homem no e pelo seu corpo que se
encontra comprometido sexualmente.
Ao dirigir-se para outro corpo, porque lhe é constitutivo aparecer, o corpo impõese como uma unidade, como um próprio. Por outro lado, ao estarmos na presença de outro corpo animado somos passíveis de ser afectados por ele. Também a sexualidade está
em estreita relação com o mistério da vida pois participa nele. Neste caso, no caso em que
a sexualidade engendra a possibilidade da geração, percebe-se melhor como a afectividade pode seguir a sexualidade.
A sexualidade e a afectividade são, cada uma de seu modo, lugares privilegiados
de partilha, de dádiva. Se, no entanto, podem acontecer aparentemente desligadas, se a
nossa experiência nos mostra a afectividade sem envolvimento de sexualidade e comportamentos sexuais desacompanhados de afectividade, importa compreender bem a relação
que mantêm e as possibilidades e origens dessa relação. É necessário, antes de tudo, saber
o que entendemos por sexualidade se quisermos mostrar que é por intermédio dela que o
corpo é o “meio” afectivo.
3. A não autonomia da sexualidade
Em termos gerais podemos dizer que antes de Freud – porque Freud marcou uma
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ruptura perfeitamente identificável – se fazia corresponder o sexual ao genital, estando a
sexualidade restringida a uma localização anatomicamente delimitada, com uma estrutura
autónoma, reduzida a um conjunto de processos biológicos e fisiológicos. Uma das razões
por que Freud foi tão mal compreendido deve-se ao facto de os seus opositores identificarem o sexual com o genital e não terem, assim, visto o significado real da sua teoria.
Quanto à extensão da sua noção de sexualidade é necessário deixar claro que
Freud nunca pretendeu que sentimentos afectivos como a amizade ou certas emoções
estéticas fossem, em si próprios, elementos sexuais. Apenas manteve e se esforçou por
demonstrar que estes elementos derivavam da pulsão sexual, da libido, mas que teriam
sido deslocados e transformados.
A Psicanálise mal compreendida ou tomada literalmente pode resultar num pansexualismo. Vista assim não nos ajudará em nada a compreender o que é a sexualidade pois
dizer que ela é tudo é tão vago e indefinido como dizer que ela é nada; “torna-se assim
impossível classificá-la ou defini-Ia por oposição ao que ela não é.”34
Merleau—Ponty prefere desenvolver a sua investigação da sexualidade começando por refutar outra teoria clássica. Para isso foi preciso provar que a sexualidade não é
um aparelho reflexo autónomo, estritamente corporal, que seja desencadeado por um
facto ou um objecto definido, um dispositivo natural que reage a estímulos do meio. A
concepção da sexualidade que ele nos apresenta, para depois refutar, é marcada por uma
orientação visivelmente empirista. Merleau-Ponty chama-nos indirectamente a atenção
para o facto de ser esta a concepção comum ou vulgar que temos da sexualidade ao dizer:
“concebemos vulgarmente a afectividade como um mosaico de estados afectivos, prazeres
e dores fechados sobre si mesmos, que não se compreendem nem se podem explicar senão pela nossa organização corporal”35. Por outro lado, podemos notar que ele estabelece
uma ligação muito estreita entre a afectividade e a sexualidade já que introduz a segunda
dentro do âmbito geral da primeira.
Partindo do princípio de que no homem os sentimentos coexistem com a inteligência e se fazem penetrar por ela, temos que admitir “que simples representações podem
destituir os estímulos naturais do prazer ou da dor, segundo leis de associação de ideias ou
do reflexo condicionado”36 e assumir a partir daí o papel de provocar sentimentos. Estas
substituições e transferências formam um mundo de representações aparentemente des34 WAELHENS, A. de, Existence et Signification, p. 205.
35 P. P., p. 180.
36 Ibidem.
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ligadas dos estímulos corporais mas que continuam a ter o poder de provocar os sentimentos que esses estímulos provocaram. A recordação torna presente o sentimento que essa
dor provocou. Curiosamente não é da dor que nos recordamos mas do sentimento que ela
provocou em nós. Existe um mecanismo psíquico de defesa que nos impede de recordar a
dor mas que não deixa de nos representar claramente a causa dessa dor.
Se a afectividade e a sexualidade se reduzissem a esta consequência calculável a
partir de factos imediatamente ligados a representações derivadas, toda a falta da sexualidade se deveria reconduzir ou à perda de certas representações ou a um enfraquecimento
do prazer, isto é, devido ao desaparecimento ou da causa ou do efeito.
Para provar que o problema da sexualidade não se pode pensar a partir destas premissas Merleau-Ponty apresenta-nos o caso de Schn., um homem que sofreu uma lesão
cerebral circunscrita na esfera occipital. Todos os centros cerebrais e locais da sexualidade
estão intactos mas as funções de integração estão fortemente enfraquecidas. Schn. não
possui a capacidade de encontrar uma interpretação afectiva ou ideológica do mundo, que
é para ele afectivamente neutro. Ele não tem uma visão própria do mundo nem um acto
de pensamento autêntico; por não ter uma relação afectiva com o mundo, ele não possui
a intuição do nome nem um círculo de significações próprio, não é capaz de dotar de um
sentido próprio a realidade que o rodeia.37 Visto que este homem mantém intacto biológica e fisiologicamente todo o seu aparelho sexual, se este sistema fosse efectivamente autónomo, estando ele liberado por relação à sua auto-crítica, seria de esperar que o impulso
sexual, deixado a si mesmo, se intensificasse e se desencadeasse com mais facilidade e frequência. “Se a sexualidade fosse, no homem, um aparelho reflexo autónomo, se o objecto
sexual viesse atender um órgão de prazer anatomicamente definido, a lesão cerebral deveria ter por efeito liberar esses automatismos e traduzir-se por um comportamento sexual
acentuado.”38 Não estaria a animalidade mais desacorrentada e deixada a si mesma? Se a
sexualidade fosse um instinto, esse instinto não se manifestaria mais livremente?
Pois o que acontece é exactamente o inverso. Schn. perdeu o apetite sexual, o desejo sexual não se constitui nele. Não é estimulado pelas situações e visões consideradas
eróticas e estimulantes pelos outros homens. No entanto, Schn. mantém a capacidade de
atingir o orgasmo numa relação sexual. Quando uma situação é provocada ele conserva a
possibilidade de obter prazer e obtém-no.
Portanto não é por um enfraquecimento no prazer que ele não procura o contacto
37. Cfr. P. P., p. 182.
38. P. P., p. 182.
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sexual. As explicações da sexualidade apenas pela organização corporal ou pela função de
manutenção da espécie não são válidas ao caso de Schn. Também aquela interpretação
da Psicanálise para a qual o sexo é tudo, perde validade neste caso; então o doente teria
perdido todo o seu mecanismo inconsciente do qual o impulso sexual é dono?
Schn. perdeu a capacidade de projectar para si um mundo sexual, o corpo visível
é percebido como um simples objecto. No não-doente a percepção de um corpo “está
habitada por uma percepção mais secreta: o corpo visível é sustentado por um esquema
sexual, estritamente individual que acentua as zonas erógenas, desenha uma fisionomia
sexual e apela para os gestos do corpo (...) ele mesmo integrado nesta totalidade afectiva.
(...). É preciso que haja um Eros ou uma Libido que animem um mundo original, dando
valor ou significação sexuais aos estímulos exteriores e desenhem para cada sujeito o uso
que ele fará do seu corpo objectivo.”39
A patologia mostra-nos a existência de uma zona vital entre o automatismo e a
representação, “onde se elaboram as possibilidades sexuais do doente, a par com as suas
possibilidades motrizes, perceptivas e mesmo intelectuais.”40. A partir de agora já não podemos incluir a sexualidade numa concepção que defina o homem pelo seu poder de representação. A sexualidade deve ser vista como uma dimensão que envolve o homem
inteiro, uma dimensão tão própria a cada homem como as suas dimensões intelectual, volitiva, afectiva ou ética. “Não se trata, portanto, de um automatismo periférico mas de uma
intencionalidade que segue o movimento geral da existência.”41 Para que os objectos e as
percepções tomem uma significação sexuaI é necessário pôr em movimento uma “intenção sexualizante”42. Existe um mundo da sexualidade, um mundo de significações nascidas
da própria vivência do sujeito, que apenas é despertado quando uma intenção correlativa
se forma e se situa nele. “É a capacidade de ver o mundo fundamental da percepção segundo diversas dimensões e atitudes, de projectar ou de edificar mundos no mundo”43.
Schn. perdeu o poder de projectar para si um mundo sexual, perdeu o acesso ao
mundo simbólico do erotismo, e toda essa atmosfera de significação é tão vital para a sua
sexualidade que sem ela o impulso biológico não se manifesta. Sem uma intenção que
apele para uma iniciativa sexual, sem que a sua volição esteja comprometida, não existe
desejo sexual. Porque o homem é um ser complexo, porque a sua animalidade é perpas39. Ibidem.
40. Ibidem.
41. P. P., p. 183.
42. WAELHENS, A. de, Une philosophie de l’ambiguité, p. 145.
43. Idem, p. 146.
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sada de inteligência e se estrutura numa consciência, também a sexualidade é uma intencionalidade enraizada num mundo específico e individual de significação. É caso para dizer
que, no homem, tudo conspira. O homem é ‘um’ em tudo, tudo se edifica a partir de uma
única base vivencial e todas as suas manifestações apontam para a forma como o sujeito
escolheu existir. A sexualidade constitui uma perspectiva na qual se reflecte essa escolha
existencial; “não é, portanto, um ciclo autónomo. Ela está ligada interiormente a todo o
ser que conhece e age”44.
4. Sexualidade como “sensibilização” a outro
Neste momento, após termos afastado algumas concepções que reduziam e isolavam a sexualidade como não reveladora de sentido e de termos descoberto uma sexualidade plenamente enraizada na existência humana, impõe-se a pergunta: o que entendemos
por sexualidade? Ao dizer o que ela não é apontámos para viários caminhos que permanecerão em aberto, por desvendar, se não insistirmos em os percorrer. Auxiliámo-nos, inclusivamente, de alguns conceitos da Psicanálise e introduzimos algumas ideias que devem ainda ser esclarecidas e desenvolvidas. Por outro lado, o diálogo com a Psicanálise mostrou-se
incontornável e é por aí que vamos começar. Não podemos negar que a contribuição de
Freud para o alargamento de uma discussão em torno da sexualidade foi decisiva.
Já no capítulo anterior utilizámos um conceito seu exactamente para abrir uma
via de compreensão para o problema da sexualidade: o conceito de libido. Para Freud a
sexualidade do homem não surge bruscamente, completa, após a puberdade mas começa
logo na primeira infância. Por outro lado, ela não se limita aos órgãos genitais mas implica
todo o corpo humano. De modo implícito ou explícito todas as épocas da vida e todas as
partes do corpo são capazes de desempenhar um papel sexual. A libido é susceptível de
inúmeras transformações e adaptações, ela é essencialmente plástica e móvel. A sexualidade, na medida em que não é procriação, não é mais que um poder indeterminado que
deve estabelecer para si um fim e uma forma.
A libido começa por se apoiar, na infância, nas puIsões de conservação do ‘eu’,
nomeadamente nas que estão ligadas à nutrição e à agressividade, mas tende a fixar para
si um objecto. É neste desenvolvimento da libido, e na fixação progressiva do seu fim e
objecto, que se vislumbra a arqueologia de toda a formação psíquica do indivíduo. Neste
sentido, Freud leva-nos a pensar que a vida sexual de um homem é uma certa expressão de
si próprio pois toda a sua escolha existencial se reflecte na forma e no objecto que acaba
por fixar para a sua libido. Também toda a evolução da sua libido é determinante como
44. P. P., p. 184.
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estrutura de existência que é.
Merleau-Ponty considera que a sexualidade é uma das dimensões originais no homem. Tal como temos que nos alimentar e respirar para poder viver, e só depois é possível
viver tal ou tal mundo, também é preciso “ser nas cores e Iuzes pela visão, nos sons pelo
ouvido, no corpo de outro pela sexualidade, antes de aceder à vida de relações humanas”45.
A sexualidade é, como diz de Waelhens, a estrutura original de “sensibilização ao corpo
de outro”46.É originariamente o meio de abertura ao outro, através do corpo simbólico.
É como fonte de símbolos que o corpo se compromete com diferentes mundos. A libido,
como uma energia, como um investimento, é uma forma de relação com os outros. Investe
os outros de um significado pessoal, dirige-se para eles de uma forma muito particular. E
conforme os nossos contactos com o mundo e com os outros se vão sucedendo vamos
desenvolvendo uma forma cada vez mais própria de ser em relação. A sexualidade é a
infra-estrutura que suporta toda a vida de relações inter-humanas, é a base a partir da qual
o homem constrói a sua maneira de viver as relações humanas. É importante deixar aqui
bem claro que a sexualidade não é sempre esta sexualidade adulta de que temos consciência. Se já na infância ela é um dos pilares que suporta a vida de relação é porque a energia
que a alimenta não intervém e impulsiona sempre da mesma maneira. A libido “é o poder
geral que tem o sujeito psicofísico de aderir a diferentes meios, de se fixar por diferentes
experiências, de adquirir estruturas de conduta.”47. Não queremos dizer com isto que todas
as relações lnter-humanas se traduzam em termos sexuais e dependam dela como o efeito
da causa, o que queremos dizer é que todas supõem a sexualidade a título de condição necessária, embora não suficiente. É devido ao seu carácter quantitativa e qualitativamente
variável48 que a libido se instaura como a estrutura original “que faz com que um homem
tenha uma história.”49
Se, por um lado, ela é a força de investimento que nos impele para a relação com
os outros e o mundo de significação que primitivamente se constitui como base da relação inter-humana, por outro, ela é significativa nela mesma e exprime a maneira de ser
do homem com respeito ao mundo. “A história sexual de um homem dá a chave da sua
vida”50 porque é uma das dimensões significativas de um único homem. O homem possui a
mesma estrutura de comportamento em todas as dimensões da sua existência, portanto,
45. P. P., p. 186.
46. WAELHENS, A. de, Une philosophie de l’ambiguité, p.147.
47. P. P., p. 185.
48. Cfr. FREUD, S., Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p.93.
49 .P. P., p. 185.
50. Ibidem.
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todas elas reflectem a mesma escolha existencial e nos dão conta de uma mesma pessoa.
O homem possui urna unidade de ser que suporta o modo como ele está em situação.
Como “sensibilização” ao corpo de outro a sexualidade não pode ser originariamente determinada como relação a um dos sexos. Freud explica-nos como, por exemplo,
a própria feminilidade só se constitui no fim de uma longa evolução e metamorfose51. A
sexualidade é, antes de mais, um modo de integração na existência, só progressivamente
ela vai fixar para si uma forma e um objecto e comprometer-se de forma mais convergente,
que apele para uma manifestação mais unificada e pessoalizada. Enquanto ela é o meio
primitivo de relação com o corpo de outro, ela é expressão. De Waelhens adverte-nos
quanto à natureza desta expressão: “não convém entender aqui expressão no sentido em
que dizemos que a palavra exprime o pensamento. É que, com efeito, este último caso
define a expressão mais perfeita. Mas se a expressão é o carácter constitutivo de
uma consciência existente e se portanto ela comporta tantas fases evolutivas quanto o ser
comporta modos de integração, o modo de integração mais primitivo que é a sexualidade
chamará a instauração de um sentido, de uma expressão, igualmente primitivos.”52.
Como diria Freud, a libido tende a ser canalizada para várias manifestações e parte dela
é sublimada e desviada para modos de ser que só muito indirectamente parecem ligar-se
com a sexualidade. A parte mais importante da libido investe-se numa relação sexual fortemente vivida, que exija o máximo de presença e manifestação.
“A percepção erótica é uma intencionalidade que não é a pura ‘consciência de alguma coisa’. É o género de significação distinto da significação intelectual. Através de um
corpo ela visa um outro corpo, ela faz-se no mundo e não numa consciência.”53 A forma
como a sexualidade é “sensível” ao corpo de outro constitui-se no seio de um esquema
corporal sexual integrado numa totalidade afectiva. A sexualidade não é autónoma, como
já provámos, ela é vivida em constante entrelaçamento com as outras dimensões significativas do homem e, em especial, com a sua dimensão afectiva pois o modo sexual é ainda
uma maneira de se ser afectado.
Por estar tão ligada com a afectividade compreendemos melhor que comungue da
mesma irredutibilidade ao elemento do Logos e que igualmente seja tão estranha à reflexão teórica. Ela não se deixa penetrar completamente por uma consciência, grande parte
dela permanece obscuramente intraduzível e fora do alcance da compreensão.
51. Cfr. FREUD, S., A feminilidade.
52. WAELHENS, A. de, op. cit., p.149.
53. P. P., p. 183.
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Existência e sexualidade
Merleau-Ponty apresenta-nos a Psicanálise como representando um duplo movimento de pensamento. “Se por um lado ela insiste na infra-estrutura sexual da vida, por
outro ela ‘dilata’ a noção de sexualidade ao ponto de aí integrar toda a existência.”54. No
capítulo anterior mostrámos uma acepção da sexualidade como infra-estrutura da vida,
descrevendo-a como infra-estrutura da relação inter-humana. Não mostrámos, porém, se
a consequência deste alargamento se traduz como integrando toda a existência. Se esta
questão não for clarificada as respostas e conclusões da Psicanálise permanecerão ambíguas. Quer isto dizer que “toda a existência tem uma significação sexual ou que todo o
fenómeno sexual tem uma significação existencial?”55. De facto, o que Merleau-Ponty quer
esclarecer é os limites dentro dos quais se pode entender a sexualidade. Para além de se
poder cair no erro de dizer que a sexualidade é tudo e, portanto é tão identificável como
nada, também se pode querer estar a dar apenas outro nome para designar a existência.
Se as palavras ‘existência’ e ‘sexualidade’ existem não é por acaso e o facto de serem derivações de ‘existir’ e de ‘sexo’, respectivamente, também nos poderá ajudar a compreender
qualquer coisa. Existir nunca é uma determinação, é um “estado” a determinar. Por ter um
carácter tão geral, por envolver todo o nosso ser no mundo, lutamos perpetuamente com a
dificuldade de não podermos circunscrever o seu significado. Compreender o que é existir
é uma das tarefas mais constitutivas do homem e é uma tarefa sem fim: várias vidas foram
consumidas nesse esforço e nós não conseguimos deixar de a considerar também nossa. O
facto de existirmos é a condição de possibilidade para que tudo connosco se passe desta
maneira. A existência é o fundamento que suporta tudo o que pudermos significar.
O que sabemos é que a existência está ligada à vida. Outra coisa de que tomámos
consciência é que a vida sexual não pode ser circunscrita pois a sexualidade toma muitas
formas. Isto não significa que afoguemos a sexualidade na existência e que não consigamos
identificá-la como um modo particular da existência. Devemos então dizer que a sexualidade é um reflexo da existência ou que “não é mais que uma expressão da nossa maneira
geral de projectar o nosso meio?”56. Assim já a encaramos como sendo uma expressão da
nossa existência total. Mas como é que ela exprime a existência?
“Ou bem que as palavras não têm algum sentido ou bem que a vida sexual designa
um sector da nossa vida que esteja em relações particulares com a existência do sexo.”57.
54 t P. P., p. 185.
55 t Ibidem.
56 t Ibidem.
57 t P. P., p. 186.
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No entanto, o sexo não existe independentemente do homem sexuado, não se podendo
pensar sem ser engrenado na vida total do sujeito. Por outro lado ainda, o sexo existe
como meio de ultrapassar a solidão, impulsiona-nos para o outro. E se podemos dizer que
no homem tudo conspira, quando a união sexual de dois seres acontece não é apenas o
sexo que está presente simultaneamente e que é manifestado, é o homem inteiro que se
revela na conspiração de todas as suas dimensões vivenciais entrelaçadas. A relação corporal íntima com alguém não acontece só no corpo objectivo, ela estende-se ao corpo vivido
do outro, à unidade de ser que está a manifestar-se e que se reveste de uma intencionalidade que apela para uma resposta que desenhe o mesmo movimento.
A sexualidade é a plena manifestação do corpo vivido. “É no corpo que eu experimento por mim mesmo o sentido mais profundo que cada um de nós concede espontaneamente ao verbo existir, isto é, ser-lá e manifestar-se.”58 Por outro lado é na sexualidade que o corpo abandona o mundo de objectos para se apresentar como um absoluto,
totalmente manifesto. “Toda a mímica sexual tem por fim reduzir o corpo a ele-mesmo.”59
Desta forma não só a sexualidade exprime a existência porque a realiza intimamente como
também é um signo privilegiado ao manifestar o corpo próprio absolutamente. Lembremos como uma neurose nos apresenta como sintomas mais visíveis aqueles que estão
ligados à vida sexual do doente.
O corpo é uma presença incontornável em nós, é a única presença que não pode
transformar-se em ausência. Toda a nossa vivência se faz no corpo; como expressão, como
sinal, o corpo “não indica apenas a sua significação, ele está habitado por ela, ele é de certa maneira aquilo que ele significa”60. O corpo é um nó de significações viventes. “É desta
maneira que o corpo exprime a existência total, não porque ele seja um acompanhamento
exterior mas porque ela se realiza nele.”61 Não há uma verdadeira oposição entre a exterioridade e a interioridade. Nós somos ainda o nosso exterior, ele está marcado pela nossa vivência mais íntima e mais incomunicável. Sendo a existência uma “encarnação perpétua”62,
e sendo o corpo o lugar privilegiado de expressão da totalidade que somos, não é legítimo
discutir se é o corpo ou a existência que constituem a originalidade do ser humano. Não
há que querer reduzir o corpo à existência ou vice-versa pois no homem não se definem
limites como se fossemos um todo constituído de partes separáveis. “A existência não é
uma ordem de factos (…) mas o meio equívoco da sua comunicação, o ponto onde os seus
58. WAELHENS, A. de, Existence et Signification, p. 205.
59. Ibidem.
60. P. P., p. 188.
61. P. P., p. 193.
62. P. P., p. 194.
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limites se fundem, ou ainda a sua trama comum”63.
Cada traço, cada expressão humana revela um todo que subjaz a toda a manifestação. É conforme o sentido que um indivíduo é capaz de tirar do mundo e das relações
em que vive que ele constituirá um mundo simbólico afectivo e sexual. Tudo aponta para
a acepção da sexualidade generalizada a toda a expressão corporal. Se a sexualidade é a
forma de manifestação absoluta do corpo próprio num esquema puramente individual de
significação, ela é a base que sustenta a nossa vida de relação com os outros, então desde
a origem ela estende-se a todas as nossas estruturas de comportamento. Corremos o risco
de a reduzir e mutilar se lhe quisermos atribuir um papel definido. Ao termos generalizado, com Freud, a noção de sexualidade encontramo-nos face a uma sexualidade que “se
esconde a si mesma sob uma máscara de generalidade”64. Não querendo transcender esta
dimensão original pela redução às representações distintas da consciência nem, por outro
lado, sem pretender situá-la a um nível inconsciente, de onde ela possa estar disfarçadamente presente em todos os conteúdos manifestos da mesma consciência, Merleau-Ponty
prefere convidar-nos a pensar a sexualidade como uma atmosfera constantemente presente na vida humana.65
A sexualidade é, assim, uma presença incontornável em nós, “uma bruma individual através da qual nós percebemos o mundo.”66. A sexualidade pode aparecer sob muitas
formas, estabelecer muitas relações que, sem serem inconscientes também não a evocam
expressamente. Da mesma forma que nós percorremos uma distância a pé sem termos
consciência dos movimentos musculares do nosso corpo e não precisamos de comandar
conscientemente a sucessão dos passos que damos, também a sexualidade, “sem ser o objecto de um acto de consciência expresso, pode motivar as formas privilegiadas da minha
experiência.”67.
O homem é um ser sexuado e, como tal, o mundo tem para ele um valor sexual,
existe uma dimensão em si que lhe permite reconhecer essa significação. Se colhemos
significação de tudo o que é connosco no mundo, muito mais teríamos que nos abrir a
algo que vem de encontro a isto que também somos. Isto a que demos o nome de sexo
permite-nos participar numa das dimensões mais espantosas e misteriosas da vida. A sexualidade permite-nos o conhecimento mais próximo do mistério da vida; através dela
63. Ibidem.
64. P. P., p. 196.
65. Cfr. Ibidem.
66. Ibidem.
67. P. P., p. 197.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
participamos, nós próprios, no mistério e no encantamento da vida. Ela constitui o elo de
ligação mais forte com a vida. Não podia, por tal, deixar de ser uma das bases mais significativas da nossa existência.
Por outro lado, a sexualidade força-nos à afecção, a ser afectados e afectivos. Através dela somos passíveis de ser afectados, primeiro pelos outros e depois pelas próprias
coisas. A sexualidade exige um comprometimento total do homem, não há como entrar e
sair impassível ou inalterado dela como se se tratasse de um modo alheio à consciência,
a que esta não tivesse acesso e, logo, não lhe aparecesse. O homem, como consciência,
não pode deixar de percepcionar esse fenómeno. A sexualidade compromete todo o homem quando o abre ao mundo da afectividade. A maternidade, por exemplo, engendrada na sexualidade, é automaticamente um meio poderosíssimo de afectividade. Uma das
dimensões mais fundamentais da vida é engendrada na sexualidade: a geração, a criação
de novas existências. Não motiva a sexualidade algumas das formas mais privilegiadas da
nossa experiência?
Dizemos que é a sexualidade que manifesta mais absolutamente o corpo porque,
para além de habitar, como quem se habita, o corpo, é ela que está mais intimamente
ligada com o corpo como ser criado (porque foi gerado por corpos e através de corpos) e
como possibilidade de dar vida a outros corpos. A sexualidade está colocada no centro do
mistério da existência, e porque a existência nos move ao espanto e ao desejo de saber,
por vezes ela pode ser vista como o sol do qual irradia a luz que nos cega. A teoria que liga
directamente o inconsciente e a sexualidade deve surgir desta impressão de claro-escuro,
da imagem do sol que cega e nos permite apenas sentir o seu calor no escuro.
Esta atmosfera em que vivemos, tal como vivemos pensando, estende-se na existência tal como a existência se estende nela. É que “esta existência é a repetição e a explicação de uma situação sexual, e assim ela tem sempre pelo menos um duplo sentido. (…)
É impossível assinalar, por uma decisão ou uma acção dada, a parte da motivação sexual
e a das outras motivações, impossível caracterizar uma decisão ou um acto como ‘sexual’
ou ‘não sexual’.”68
Se “definimos o homem pela sua experiência, isto é, pela sua maneira própria de
pôr em forma o mundo (...) um homem sem mão ou sem sistema sexual é tão inconcebível como um homem sem pensamento.”69. É que, de facto, faz tão parte da definição do
homem, tal como ele vive, a sua dimensão de trabalho e de acção como a sua dimensão
racional e a sua dimensão afectiva e sexuada. A existência humana é “o meio onde se com68. Ibidem.
69. P. P., p. 198.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
preende a comunicação do corpo e do espírito”70.
A vida sexual exprime tanto a existência como a vida ética ou a vida intelectual a
exprimem. São mundos de significação de um mesmo fenómeno humano.
Conclusão
Depois de percorrido todo este caminho que nos ocupou tão profundamente, importa ainda dizer que a reflexão sobre a afectividade compete não só ao filósofo mas é
imprescindível a cada ser humano. Compreende isso quem quer que a faça. O esforço de
reflexão sobre a nossa afectividade leva-nos a uma melhor assunção dela e, através de um
maior comprometimento com ela, a um melhor comprometimento connosco.
É necessário desvanecer o preconceito de que a afectividade é uma coisa “lamechas” ou sentimentalista. Já vimos que não é assim. A afectividade, à partida por intermédio da sexualidade, é uma dimensão do homem que lhe é tão vital como a respiração
e tão natural como o desejo de conhecer. Se atendermos ao mundo mesmo, à vida que
temos e à existência que somos, vemos a vida afectiva como uma das coordenadas mais
determinantes na vida total do sujeito. E isso é algo que sentimos propriamente, que nos
diz respeito como pessoas.
O facto de notarmos que a nossa intersubjectividade depende, em última instância,
do meio afectivo em que crescemos, talvez sirva para que amemos mais as nossas crianças
e assumamos uma posição mais responsável e mais atenta à nossa afectividade.
Por outro lado, assumir esta perspectiva ambígua de pensar que está atenta ao
sentido das coisas sem pretender erigir uma verdade universal e imutável, é aceitar uma
tarefa sem fim. O nosso estudo da afectividade vai durar o tempo da nossa existência.
Começámos por dizer que esta reflexão é imprescindível a cada homem. A nossa
educação devia incluir uma sensibilização particular ao modo de ser afectivo, mostrando
desde cedo como a assunção e a constituição do sentido da nossa afectividade é vital para
uma vida mais ou menos realizada e que, contra todos os fatalismos e circunstâncias prévias, esta tarefa depende de cada um.
Porque é com os outros que vivemos, e porque a afectividade nos abre aos outros
pela reciprocidade e pela partilha, uma vida afectiva mais comprometida contribuiria para
um melhor relacionamento com os outros e, consequentemente, para uma melhor aceitação de si e para uma vida mais feliz. Tudo e todos no mundo beneficiariam com isto. Por
70. P. P., p. 187.
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outro lado, porque tudo está ligado ao homem, talvez a sexualidade deixasse de ser tão
mal interpretada e tão mal resolvida.
Se na base do preconceito está o desconhecimento e do estereótipo está a indisponibilidade para reflectir sobre a realidade dos outros, então, podemos afirmar que uma
reflexão deste tipo pode abrir caminhos para uma nova atitude em relação à nossa sexualidade e à sexualidade dos outros, contribuindo para uma maior tolerância e respeito pela
diferença. Não um respeito distante e higiénico mas uma aceitação baseada na compreensão. Encarando a sexualidade como um fenómeno total que diz tanto do homem como
qualquer outra dimensão humana, não a vemos como um acidente, secundário e separado
da pessoa que se é, mas como parte constituinte do ser que se é. Não podemos conhecer o
outro e aceitá-lo se não encararmos a sua sexualidade como integrada em si, dependente
do que ele propriamente é. Não será possível, assim, respeitar e compreender o homem
se não respeitarmos e compreendermos a sua sexualidade.
Bibliografia
Obras do autor
MERLEAU-PONTY, Maurice, Phénoménologie de la perception, Paris. Gallimard,
1945 .
____________, Sinais, (trad. do francês), Lisboa, Ed . Minotauro, s. d.
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Obras sobre o autor
TILLIETTE, Xavier, Merleau-Ponty ou la mesure de l’homme, Paris , Seghers, 1970 .
WAELHENS, Alfonse de, Une philosophie de l’ambiguité. L’existentialisme de Merleau-Ponty, Louvain , Ed. Nauwelaerts, 1970 .
Outras obras
FREUD, Sigmund, Três ensaios sobre a Teoria da sexualidade, (trad. do inglês),
Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1989, vol. 11 .
RICOEUR. Paul, Histoire et veritê , Paris, Senil, 1955 .
ROUGEMONT, Denis de, O amor e o ocidente, (trad. do francês), Lisboa, Vega, 1989
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CULTURA
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O romance português contemporâneo – cartografia breve a
partir de o anjo ancorado de josé cardoso pires
João Luís Moreira71
Bifronte, o romance informa e inventa. Fixa
a realidade e evita-lhe o contorno.
Vergílio Ferreira
Roxana Eminescu, num estudo publicado pela célebre colecção «Biblioteca Breve»,
refere que se torna importante, no contexto do estudo ou sistematização da novelística
portuguesa da segunda metade do século XX, determinar «a “unidade na diversidade”, (…)
encontrar através de tão variados temas e estilos o que há de comum no romance português actual» (Eminescu, 1983, p. 12). De facto, basta, como se costuma dizer, «dar uma vista de olhos» a várias publicações críticas ou artigos sobre o assunto e ficaremos com a ideia
de que, de facto, tanto no campo da poesia como no campo da ficção, poucas literaturas,
como observou Maria Alzira Seixo, se poderão orgulhar de apresentar, em relação a um período tão curto, um conjunto tão forte de excelentes e esteticamente relevantes autores, o
que teve como consequência, devido às diferenças de «background» de formação, o surgimento de uma enorme quantidade de estilos narrativos e de escritas diferentes entre si,
mas, por vezes, trabalhando os mesmos tópicos. Obviamente, fazer aqui o levantamento
dessas grandes linhas de força da ficção contemporânea seria interessantíssimo, mas isso
ultrapassaria o âmbito do presente estudo e obrigaria a algo muito mais complexo.
Sabemos que, tal como em relação a outras épocas, que a lição francesa ou anglosaxónica estão subjacentes a quase tudo o que cá se foi produzindo, desde Gustave Flaubert, passando por James Joyce ou Virginia Woolf, até Franz Kafka, mas o que é preciso
também referir é que os nossos escritores sempre conseguiram fugir, de algum modo, ao
peso da «Influência» e souberam imprimir às obras que foram escrevendo uma origina71 Professor do Departamento de Línguas.
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lidade e uma qualidade que ombreiam com as mais relevantes vanguardas e obras importadas, pelo que se me afigura muito interessante analisar a capacidade que os nossos
autores têm demonstrado para fazer uma saudável síntese de tudo o que, sob a égide da
já debatidíssima Modernidade, foi sendo feito desde os finais do século XIX até hoje. Aliás,
creio mesmo que, sempre que, em alguns períodos, a nossa literatura assumiu contornos
demasiado programáticos – veja-se o caso do Neo-realismo ou do Surrealismo -, colandose a manifestos ou regras de escola, a vida dessas tendências não foi longa, pelo menos
em relação ao que poderíamos chamar o seu «Estado puro». Por sua vez, os textos que
procuraram espelhar essas mesmas tendências, construídos de acordo com um código
pré-determinado, valem, ainda hoje, por isso mesmo, embora não queira, com isto, desvalorizar a sua qualidade literária e a sua relevância dentro do cânone. Um caso que ilustra
bem este sentimento de fuga à literatura-manifesto é o de Carlos de Oliveira, por exemplo,
cujos romances, depois de reescritos, apesar de se notar neles as suas raízes neo-realistas,
pouco ou nada, na sua versão final, ficaram a dever à corrente que os viu nascer, derivando
para algo único dentro do conjunto da produção romanesca da segunda metade do século
XX. Foram, assim, recorrentes as dissidências, as fugas, as subversões no seio das várias
correntes, o que, do ponto de vista estético, não é desastroso nem nos deve causar má
impressão, pois até originou um fenómeno interessante, que é o da constante novidade, a
apresentação de riquíssimas variantes pessoais, resultantes do «talento individual» (ainda
T.S. Eliot) que cada autor imprime na obra que vai criando.
Após estes primeiros pressupostos, cumpre agora dizer que, face a um tão grande
número de excelentes ficcionistas, qualquer escolha resultaria redutora, pelo que os critérios seguidos foram, mais do que o gosto pessoal pela obra enunciada, o facto de esta
ilustrar algumas das linhas de força da narrativa portuguesa contemporânea, bem como
a ausência de outras. Além destes dois pormenores, foi ainda relevante para esta selecção a forma como nela surge trabalhado um certo Portugal. E cumpre deixar um alerta
importante: não se trata aqui de, mais uma vez, exorcizar um tempo e um contexto muito
desfavoráveis para o País, essa «ida ao muro das lamentações» está feita. Já se falou muito
de prisão, de tortura, de opressão, de miséria, pelo que não se pretenderá apenas transcrever provas disso. Será um dos caminhos, mas o que motiva este trabalho é, antes de
tudo, ver a forma como esse contexto de fechamento motivou uma interessante abertura
na forma como esse fechamento se disse. Aliás, esta é uma tese que defendo há muito:
por muito perversa e prejudicial que tenha sido a ditadura, ela teve o dom de fazer com
que os nossos escritores tivessem de recorrer a todas as formas que podiam para superar
esta limitação. O resultado foi uma torrente de excelentes narrativas, com formas muito
originais de exprimir o horror, a solidão, o medo, o isolamento…
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Antes propriamente de entrar na abordagem de O Anjo Ancorado (1958), gostaria
de chamar a atenção para três aspectos, já que se fala de narrativa contemporânea. O primeiro tem a ver com o facto de não ser possível falar da narrativa mais recente sem referir
o papel crucial desempenhado pelos ficcionistas do século XIX, nomeadamente Alexandre
Herculano, Camilo Castelo Branco ou Eça de Queirós, responsáveis, por uma longa linhagem de notáveis descendentes, salvaguardando as devidas distâncias em termos estéticos,
claro está.
O segundo prende-se com a relevância de figuras como Raul Brandão ou Aquilino
Ribeiro. Em relação ao primeiro, Álvaro Manuel Machado salienta a posição de charneira
que o mesmo ocupa, ou seja, o autor de A Novelística Portuguesa Contemporânea vê nele
a figura que se situa entre os modelos mais clássicos, como os dois já referidos, e os praticantes mais novos, que não puderam escrever ficção sem os conhecer72; isto um pouco
à luz do que Pessoa também representa em relação a Cesário, Nobre ou Pessanha, anteriores a si, portanto, e, depois, a todos os poetas posteriores. Em relação ao segundo, há
que vê-lo como o autor que faz a ligação com algumas linhas da narrativa do século XIX,
que retoma a «veia peninsular», para utilizar uma expressão de Óscar Lopes, e revitaliza a
figura do pícaro, mas também – e isto é importante - como o romancista que empresta à
ficção a Poesia, tom que viria depois a ser explorado por uma série de ficcionistas.
O terceiro pormenor prende-se com a salvaguarda em relação a dois sub-géneros
narrativos a que, necessariamente, se tem de fazer referência – a novela e o conto. Ao
longo do século XX, muitos ficcionistas ou começaram por aí o seu itinerário ou neles se
especializaram, pelo que temos de os ver como se de textos de aprendizagem se tratassem, pequenos laboratórios onde foi possível ir experimentando, errando, refazendo, experimentando de novo, reescrevendo, enfim, amadurecendo. Podemos, assim, encontrar
grandiosos cultores do conto e da novela, como Irene Lisboa, José Gomes Ferreira, Miguel
Torga, Vergílio Ferreira, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Sophia de Mello Breyner,
Maria Isabel Barreno, tal como o próprio José Cardoso Pires, entre outros, alguns dos quais
vieram, depois, em fases mais adiantadas da sua obra, a produzir aqueles que são, hoje,
considerados os seus romances mais representativos.
Parece-me, assim, chegada a altura de retomar a epígrafe que, como é óbvio, não
72 Em relação a Raul Brandão (1867-1930) e a Aquilino Ribeiro (1885-1963) como figuras tutelares para os
autores do século XX, creio fazer sentido e ser justo referir ainda Agustina Bessa Luís, que não só bebeu em
ambas as fontes, como também criou uma obra sem paralelo no que diz respeito à renovação da linguagem
narrativa, constituindo-se como importante influência para uma série de escritoras que, a partir dos anos 60,
consolidaram uma escrita onde o universo e imaginário femininos ganharam enorme relevância e densidade,
como Maria Velho da Costa ou Lídia Jorge.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
é leviana. Ao invés, vem ao encontro de uma das coisas que mais me faz aderir ou não a
um texto, seja ele um poema, um conto, um romance ou a simples letra de uma música: a
capacidade que esse texto tem de «fixar a realidade», mas de, de qualquer forma, (re)criála ou, sub-repticiamente ou não, fugir-lhe, subvertendo-a até, e ensinando sempre quem
com ele interage. Resumindo: com o passar dos anos, em relação a qualquer tipo de mensagem literária, fui aderindo à ideia que Ruy Belo expressava em relação ao papel do poeta
na «Cidade»; dizia ele que o verdadeiro poeta, tem de sujar as mãos nos problemas do seu
tempo, algo que, parece-me, se pode estender, a toda a produção literária mais recente e
que remete para a forma mais crua como o olhar do autor percebe e diz o real. Em relação
ao romancista, podemos atentar no que escreveu o já mencionado Aquilino Ribeiro no seu
prefácio à segunda edição de Volfrâmio:
“O romancista vai de indivíduo em indivíduo, como a abelha quando
forrageia o pólen, e a um pede o físico, a outro a índole, a este uma anedota,
àquele um pormenor característico, e assim amassa por aglutinação os seus
figurantes. Feita a dosagem com inteligência e obtido um bom ajustamento,
ninguém dirá que não foram copiados do natural e que não «falam». E o orgulho do criador estará em dar a ilusão de que são cópias exactas do mundo
de carne e osso” (Ribeiro, 1985, p. 5).
Convém reter que esta atitude aquiliniana, ainda próxima da fidelidade ao real,
mais adiante no século XX, veio a ser enriquecida com a ambiguidade e com a exploração
dos aspectos mais fugidios de uma realidade ameaçadora, de lição surrealista, e com a importância que em toda a Europa tiveram as novas correntes linguísticas, que levaram a que
os autores começassem a dar muita importância à «palavra», com muitas obras a reflectir
esta «reflexão especulativa da escrita sobre a escrita» (Cordeiro: 1997, p. 111). De facto, a
gradual focagem do autor na forma como se diz, por vezes em detrimento do que se diz,
levou ao experimentalismo e à exploração dos limites do género.
Romances como Caranguejo, de Ruben A. (1954), A Muralha, de Agustina BessaLuís e Ângulo Raso, de Fernanda Botelho, ambos publicados em 1957, A Cidade das Flores,
de Augusto Abelaira e Gaivotas em Terra, de David Mourão-Ferreira, ambos publicados em
1959, são textos em que os autores conseguiram, em alguns aspectos, ir mais longe que
Cardoso Pires no que diz respeito à subversão das regras mais clássicas do género narrativo, mas é precisamente aí que reside o interesse de O Anjo Ancorado; na forma ainda
tímida ou subtil como o autor inclui o que de novo estava a ser incorporado na ficção, sem,
com isso, rasurar aquilo que faz parte do seu estilo, como veremos.
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O Anjo Ancorado é, então, pelo que foi dito acima, de entre os produzidos na sua
década, um dos que se situam próximo da ficção de contornos mais tradicionais. Novo
na linguagem, mas clássico na forma, este texto de José Cardoso Pires faz parte de um
razoável conjunto de textos cujo título remete para o aprisionamento, sentimento que se
coaduna na perfeição com o contexto de produção, dado que se vivia em plena ditadura.
Além disso, este é um romance que, em termos temporais, se situa numa encruzilhada de
influências. Por um lado, há que ter em conta o seu significado no que diz respeito à obra
de José Cardoso Pires na sua globalidade, dado que este pequeno romance (que o autor
classifica de «fábula»), segundo Mário Dionísio, funciona como um ponto de viragem na
obra do autor, pois confirmou, nele, a voz e as temáticas que deixara antever nas duas
primeiras publicações, Caminheiros e outros Contos (1949) e Histórias de Amor (1952) e
apresentou outros aspectos que desenvolveria, mais à frente, em O Hóspede de Job (1963)
e, sobretudo, em Delfim (1968). Por outro lado, há que ter em conta a gradual dissolução
do Neo-realismo ou as várias direcções que esta corrente foi seguindo até apresentar variantes bastante interessantes, já com contaminações do Surrealismo (também já filtrado)
e do nouveau roman. O autor não foi decerto alheio às linhas de força neo-realistas, pois
conseguimos ainda sentir em O Anjo Ancorado a sensibilidade e a atenção dedicada àqueles que menos tinham e podiam, mas, o que me parece mais relevante, é a oscilação da
acção entre dois espaços que, pelas suas características e pelo papel que desempenham
como cenários dos acontecimentos narrados, não esquecendo, obviamente, as personagens que nele se movem, assumem uma simbologia interessante de deslindar e onde se
sente, como se sentia nos romances neo-realistas, a agulha da denúncia a injectar a visão
crítica do autor. Começarei precisamente por aqui.
No curto mas clarividente texto que abre a edição consultada, pode ler-se: «Nos
anos cinquenta, Portugal era um espaço fechado, um lugar de infelicidade e de solidão»
(Tabucchi, in O Anjo Ancorado, 1999, p.7), espaço que, devido a estas características, exercia sobre os cidadãos efeitos adivinháveis, que José Cardoso Pires capta da seguinte forma
em E Agora, José?:
Lá vai o Português, lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a, de
facto, e que remédio – índias, naufrágios, cruzes de Padrão (as mais pesadas). Labuta a
côdea de sol a sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. Mal nasce deixa de ser criança:
fica logo com oito séculos» (Pires, 1977, p. 19).
Voltamos a encontrar a mesma ideia em Cortes, segundo livro da chamada tetralogia lusitana, em que, apesar de publicado em 1978, se pode ler no terceiro capítulo:
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
Arminda quer subtrair-se à opacidade que ocupa a casa, reflectida
no país que o presente torna totalmente cercado de muralha, assaltada por
violentos mares dum lado, do outro lava solidificada, gretada entre margens deixadas descarnadas, tudo pedra agressiva, ângulos cortantes, rocha
ou marisco tumefacto (…) (Faria, 1978, p. 15).
De facto, parece estarmos na presença de um traço comum a muitos escritores
que, das mais variadas formas deram conta deste pequeno enclave que era o país que tinham. Os exemplos são inúmeros. Em O Anjo Ancorado, veja-se a descrição de S. Romão:
Povoado, povoado, não seria muito justo chamar a meia dúzia de
casas assim, perdidas pró esquecimento no alto das falésias. Casas? Também nem isso. Um punhado de gaiolas, quando muito – gaiolas de adobe e
falheiro, empoleiradas sobre o oceano e com ventos e gritos de aves marinhas a salpicarem-nas de cima. (Pires, 1999, p.56).
E mais adiante:
Era uma aldeola de desgraça e apresentava-se numa estranha posição perante o mundo. Não parecia virada para os astros, se bem que encarrapitada a tão grande altura; ligada ao mar, ainda menos, pois toda a
sua tendência era apegar-se à rocha para não se espatifar lá em baixo. E
quanto à terra firme, virava-lhe costas muito simplesmente (Pires, 1999, p.
71).
Se transpusermos isto para o país, ficamos, claro, com a ideia de que isto não é
apenas um artifício romanesco, como o próprio autor quer fazer crer com a nota final que
encerra a publicação e na qual tece não só considerações sobre a classificação genológica
da obra, mas também sobre o espaço, que é o aqui interessa por agora. A posteriori73, o
autor reflecte sobre alguns pormenores do texto e, em relação ao espaço, escreve:
Guardo e confirmo estas linhas de 1958. Repenso-as agora, 1984,
sobre o fundo esmaecido dos casebres de S. Romão assinalados pela noite
fora por um piscar de aviso, o farol de Peniche. Mas Peniche também não
existia. Apesar de porto e vila de pesca era apenas um forte de prisioneiros
políticos, uma luz misteriosa que pontuava a história de S. Romão (Pires,
1999, p. 157).
73 É importante a nota do editor, que diz que esta edição teve em conta a 8.ª, publicada em 1990, a última
revista pelo autor, que já acrescentara esta nota final, escrita, contudo, alguns anos antes, em 1984.
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Ou seja: não acreditem em nada, mas tenham em conta tudo, pois nada no meu
texto é inocente, parece ser esta a mensagem. Aliás, é esta costura muito bem conseguida
entre o suposto fabulário e a realidade que, quanto a mim, funciona como outra das grandes qualidades deste texto.
Toda a acção se passa em torno da vinda de João e Guida a S. Romão (representantes, segundo Mário Cláudio, «dos bem instalados ou acomodados, de Lisboa») e a sensação que causam junto dos moradores da pequena povoação piscatória, os «ignorados
famintos dum lugarejo para os lados de Peniche, pescadores que só na vazante vão ao
mar» (Pires, 1999, p. 32).
Mas O Anjo Ancorado é muito mais do que isso. Mais uma vez, socorramo-nos das
palavras de António Tabucchi, com nova chamada de atenção para a citação que serve de
epígrafe. Observa, então, o crítico:
Como um detective que tem de resolver um mistério, ele agarra os
muitos pedaços de que é feita a realidade e começa a pôr hipóteses a fim
de a reconstruir, decompõe-a e recompõe-a, aceita jogar o jogo das combinações. E, assim, inventa «o ponto de vista» muito antes de a narratologia
o ter teorizado. O Delfim é construído sobre pontos de vista, a Balada da
Praia dos Cães é construída sobre pontos de vista, até O Anjo Ancorado é
construído sobre pontos de vista. Há o ponto de vista de uma criança que
quer vender uma renda de Peniche, o ponto de vista de um velho que tem
de matar a sua fome, o ponto de vista de um pássaro que tem de fugir ao
velho, o ponto de vista de um homem de má consciência e o ponto de vista
de uma rapariga que olha a realidade através de poesias de mau gosto.
Mas, interrogo-me, onde está o ponto de vista do autor? (Tabucchi, in O
Anjo Ancorado, 1999, p.9).
Se esta citação é importante para percebermos a importância de José Cardoso Pires como ficcionista, não o é menos para percebermos a construção do romance e a sua
oscilação entre a tradição e a novidade. Se, como já vimos, o texto vai buscar sentido à
fábula (como a fábula do crocodilo ou adjectivo «fabuloso», aplicado ao mero caçado por
João nas profundezas da costa de S. Romão) ou às histórias tradicionais («Andava naquelas
paragens um velho muito velho que corria atrás de um perdigoto sem conseguir deitar-lhe
a mão.» (Pires, 1999, p. 111)), muitos dos recursos nele presentes começam, a partir de
então, a ver-se na ficção: notas de rodapé com informação adicional e comentários do nar135
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
rador acerca das personagens; o provérbio ou o aforismo; referências históricas com valor
simbólico; citações de outros autores, mais ou menos directas, como são o caso da inspirada em Karl Marx (A Religião é o ópio do povo (1843), a retirada de Henrique V, de William
Shakespeare: «We few, we happy few, we band of brothers» ou, por último, os dois versos
da canção da autoria de Fred E. Ahlert e Roy Turk, «I’ll get by (As long as I have you)»,
editada em 1928, mas cantada e gravada posteriormente por vários outros artistas. Esta
última referência, aliás, é mais um subsídio para a tese de que nada aqui é inocente. Se
não vejamos: João e Guida entram em S. Romão, a bordo do Talbot vermelho que, segundo
o narrador, «Parecia uma barca radiosa a vogar num mundo antigo» (p. 57), portanto, à
partida, deslocado ali, naquele espaço de pobreza e de isolamento, e, na rádio, ouve-se a
música «I’ll get by (as long as I have you)». Guida coloca o som mais alto, dizendo: «Adoro
a voz deste tipo». Ora, de acordo com o historial desta canção, em 1958, precisamente no
ano em que José Cardoso Pires ultimava o romance, Billy Williams lançou um single com
um «cover» desta canção, algo que muitos outros cantores e cantoras fizeram a partir de
1928, entre os quais Bing Crosby. Este aparente cruzamento das experiências do autor com
as das personagens é mais um dos aspectos em que poderemos considerar O Anjo Ancorado como uma narrativa interessante do ponto de vista da construção da ficção. No entanto,
há outro dado que talvez não tenha escapado ao autor; a segunda estrofe da canção reza
assim: «Poverty / May come to me, it’s true / But what care I / Say I’ll get by / As long as I
have you» (Pires, 1999, p. 56). Será mera coincidência a música falar da pobreza, mas também do facto de esta pobreza não significar nada para o sujeito poético desde que tenha
a companhia da amada? De facto, ambos, no final do romance, saem de S. Romão em alta
velocidade, quase atropelando o rapazito, como se não tivessem por lá passado, sendo o
único testemunho daquela passagem o mero que João caçou e que, mesmo assim, não
matou a fome de nenhum dos habitantes do vilarejo. Levianamente, após o contacto com
a realidade gritante dos habitantes de S. Romão, João pergunta a Guida: «Que faz você
amanhã?», ao que ela responde: «Não sei. E você?», como se a vida e a sobrevivência de
uns não tivesse expressão em face da ociosidade de outros.
Todas estas referências, porém, apesar de o autor as classificar como «um recurso
do descritivo» ou como «certos apontamentos» obrigam a um papel activo da parte do
leitor, já que parecem surgir no texto de forma truncada. Num dos capítulos, o décimo
terceiro para ser exacto, em que se traça o passado de João, ficamos a saber que o «agora
viajante do carro vermelho» (ironia), dirigia comícios na Universidade onde afirmava, subvertendo a expressão de Marx: «O Medo, (…) o medo, amigos, é o ópio do povo». (Pires,
1999, p. 104). Guida, ao ouvir a história de João, lembra-se desta frase, mas escrita de outra forma numa parede de um bar em Kungsgatan, Estocolmo, onde se lia: «Opium is the
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Religion of the People». E assim acaba por ser Guida que, apesar da superficialidade que a
caracteriza, acaba por nos dar, a propósito, uma lição de moral:
Cada Juventude tem o seu código», comentou a rapariga muito para
si. «E também as suas verdades que se aprendem à custa da desilusão. Hoje
uma verdade, amanhã outra… Verdades sobre verdades. O mais giro á que
as palavras são as mesmas. O mais giro e o mais triste, custa-me dizê-lo.
(Pires, 1999, p. 105)
Da mesma forma, a peça de Shakespeare, Henry V, de onde é retirada a citação,
que surge datada de 1598, os mesmos algarismos que formam uma data significativa, que
é da publicação deste mesmo romance – 1958. Veja-se que, tal como Guida observa em
relação à expressão de Marx, a ordem das palavras é outra, mas pelo menos uma verdade
continua lá, também aqui, a ordem dos algarismos é outra, mas o significado das palavras de Henrique V não se deve perder. Recordemos que este discurso proferido pelo Rei
antes da batalha de Agincourt teve o efeito de unir os combatentes ingleses em torno da
causa do Rei, motivando-as a lutar apesar da exustão. Esta citação aliás, que parece estar
a ser utilizada por João para ilustrar apenas as intenções de Guida em relação ao relacionamento descomprometido de ambos, poderá trazer mais água no bico do que a que, à
partida, poderíamos pensar. Logo de seguida, o narrador reforça uma expressão dentro
dessa citação - «We band of brothers», expressão que tem vindo a ser utilizada ao longo
dos tempos em várias ocasiões de luta contra algo. Lord Nelson, por exemplo, antes da
batalha de Trafalgar, referiu-se ao conjunto dos oficiais que combatiam sob as suas ordens
utilizando a mesma expressão; na peça Guilherme Tell (1804), de Friedrich Schiller, o grupo
de guerreiros fiéis a Wilhelm Tell resolve tornar-se um «band os brothers» para, acabar
com a tirania que grassa na sua terra e, durante a Guerra Civil americana, Stephen Douglas, embora referindo-se à geração anterior à sua, mas que assegurou a independência
e a democracia, utilizou-a. Estaremos aqui em presença de uma exortação – codificada - à
luta? Não estávamos, quando o romance foi publicado, muito perto de um acontecimento político importante: a candidatura do general Humberto Delgado, que, apesar de tê-la
formalizado apenas em Junho de 1958, desde 1956 era referido como um dos grandes
contrapesos ao poder de Oliveira Salazar? Enfim, mais uns enfeites narrativos que fazem
toda a diferença.
Cabe, por isso, ao leitor de O Anjo Ancorado, retirar daqui as suas conclusões.
Claro que as leituras poderão ser múltiplas, mas veja-se: como se explica que o antigo estudante interventivo seja agora um acomodado? Seria possível surgir numa parede de um
bar, em Lisboa, a citação de Marx; tanto a verdadeira como a subvertida? Não era verdade
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que, tanto na época da juventude de João («a geração de 45»), como na do próprio autor, o
Medo toldava os espíritos e impedia uma acção concertada em prol da mudança ansiada?
Enfim, é o texto a convocar-nos, a colocar-nos questões.
Falta, porém, dar atenção a uma: Quem é, afinal, o Anjo Ancorado? Tudo parece
apontar para Guida, mas desde logo o narrador marca bem que a obra não vai ser sobre
este «Anjo», pois mais importante que o nome é o adjectivo. O paradoxo do título levanos a um exercício interessante, que é perceber as razões da sua ancoragem. A isotopia é
desde logo instaurada no início da obra, com a epígrafe que a abre, que, aliás, não existia
na primeira edição, retirada da Notícia do Cerco de Bizâncio e em que se pode ler: «Assim
foi que, estando a cidade sitiada e o valoroso Constantino defendendo-a nos baluartes,
dentro dela os monges continuavam em discussão acesa sobre qual seria o sexo dos anjos…» (Pires, 1999, p. 53). Além desta, exceptuando o título, claro, são seis as ocasiões em
que a figura do Anjo surge na obra, de forma mais ou menos directa. Em primeiro lugar,
poderemos desde logo retomar a entrada do Talbot vermelho em S. Romão, que parecia,
como já foi referido, «uma barca radiosa a vogar num mundo antigo» (Pires, 1999, p. 57).
Recordais-vos da Barca do Anjo no Auto da Barca do Inferno? Mais adiante, o narrador reitera: «A barca navegava entre esperas, perseguida pelo cão de Lázaro e pela brisa empestada de peixe» (Pires, 1999, p. 57). No serão passado na casa da Parede, noite em que João
conhecera Guida, o narrador dá conta da primeira impressão deste sobre ela: «Parecia-se
com um anjo dos retábulos de igreja, na posição em que estava. Um anjo à espera da revelação». (Pires, 1999, p. 82). Algum tempo depois, ainda no mesmo serão, muda de opinião
sobre ela: «E de novo a comparou com uma figura de retábulo, um anjo discreto, mas de
maneira nenhuma um anjo à espera da revelação como a princípio julgara.» (Pires, 1999, p.
86), de seguida, vem de novo à baila o Anjo através do comentário cáustico de João sobre
uma observação infeliz do escultor, que monopolizava a conversa e que o narrador, ironicamente, apelida de «escultor-crocodilo»: «Os anjos escutam e o frade blasfema. Heróis
do mar, nobre povo…» (Pires, 1999, p. 86) e será ainda em torno das artes que o narrador,
agora com a atenção de todos voltada para uma cena de caça representada numa tapeçaria, em frente à qual se encontram Guida e o escultor, dá conta de João, sentado, um pouco
afastado da cena, mas «voltado para o crocodilo e para o anjo» (Pires, 1999, p. 87).
Guida surge, assim, associada à figura do Anjo, no entanto, tanto ela como João,
poderão ser vistos como os representantes de uma geração muito marcada pela diferença bastante vincada que existia entre as diferentes classes sociais, de que a cena de caça
representada na tapeçaria é ilustrativa: «Mostrava-nos uma cena de floresta em que os
criados a pé eram da altura dos galgos, enquanto que os Senhores apareciam à escala dos
símbolos da natureza criada por Deus, os carvalhos majestosos, céus e distâncias» (Pires,
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1999, p. 87), simbologia que João acaba por corroborar ao pensar, a propósito de outra
afirmação infeliz do escultor: «Pois, sim. Nessa altura ainda não se tinha descoberto a
Perspectiva mas já havia uma perspectiva de classe. E está aí bem clara para quem o quiser
entender. Abre os olhos, mano crocodilo. Limpa-me esses óculos. Ou estás de cataratas?»
(Pires, 1999, p. 87-88). Este é um problema identificado pela personagem e que se poderá
transpor para a realidade do Portugal dos anos 50. As coordenadas do neo-realismo, nas
quais poderemos radicar a formação de Cardoso Pires, estão aqui presentes, mas a denúncia vai mais longe, pois a indiferença de ambos os jovens, a superficialidade dos presentes
no serão da Parede, o comodismo a que se recolheu a Geração de 45, parecem retratar,
afinal de contas, uma geração ancorada. É por isso que é preciso cautela na apreciação deste «Anjo»; o angelismo aqui trabalhado assume contornos negativos, ao contrário do que
tradicionalmente se observa. Não será descabido, por isso, associar esta geração, a propósito desta observação, a algumas outras que entraram nas nossas fronteiras via tela de
cinema. Fernando Martinho, num interessante trabalho intitulado «Um Anjo na Falésia»,
chama inclusivamente a atenção para as sucessivas gerações retratadas que, ou se entendiam como «gerações perdidas» ou gostavam que as vissem desse modo, e que a figura de
James Dean, o imortal ícone, tão bem soube representar. Esta dificuldade de ancoragem,
noutros países, embora por outras razões, também se fez sentir e o cinema e a literatura
(basta que nos lembremos de Jack Kerouac e o seu On the Road) foram muito eficazes na
fixação deste mal-estar. Aliás, esta ligação dos textos de Cardoso Pires ao cinema, daria,
por si só, matéria para outro trabalho, o que vem também em abono da inclusão de O
Anjo Ancorado no vasto conjunto de obras, tanto narrativas como poéticas, que recorrem
à articulação da literatura com outras formas de arte, nomeadamente as artes pictóricas,
a chamada literatura ecfrástica, que teve a sua época.
Da mesma forma que, na obra, não surge um agente de mudança que se indigne
com o facto de estas duas pessoas comerem, com fastio, um mero enorme, enquanto a
escassos metros um rapaz e uma rapariga tentam, a todo o custo, vender uma renda de
Peniche ou um velho se veja forçado a caçar um perdigoto para lhe matar a fome, também não surge, da parte do narrador ou sequer do autor, uma solução para esta situação
gritante, não só no que diz respeito às desigualdades, mas também em relação à inércia,
daí que possamos atribuir todo o crédito às palavras de António Tabucchi quando afirma
ser este um romance sobre a infelicidade e a solidão, não só do indivíduo, mas também da
sociedade, enfim, de um país inteiro, todos ancorados.
Em relação a outras grandes linhas de força da narrativa contemporânea, não encontramos em O Anjo Ancorado a atenção profunda que outros romancistas deram à História ou a figuras históricas, mais distantes ou próximas no tempo, e que se observa em
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Agustina, Almeida Faria, Ruben A., José Saramago ou João de Melo, de forma a reinterpretá-la simbolicamente e retirar dela as devidas lições, embora Fernando Martinho lhe
reconheça alguma verdade documental. Da mesma forma, não encontramos aqui a lição
do realismo mágico sul-americano, que se observa em O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge,
ou em Jangada de Pedra, de José Saramago, e que fez escola entre nós. Finalmente, não é
possível ainda associar O Anjo Ancorado à meta-ficção, uma das grandes áreas temáticas
do romance actual, presente num grande número de textos, algo que, no que diz respeito
à produção romanesca de Cardoso, viria a surgir dez anos mais tarde, em O Delfim, que é
considerada a obra-prima do autor. Apesar disto, poderemos ver neste texto a marca de
uma geração inteira, assolada pela crescente descrença em relação a um qualquer impulso renovador e perceber nele o «gradual desvanecimento das convenções neo-realistas»
(Cabral, 2003, p. 48), o que o coloca no conjunto das grandes obras de ficção da segunda
metade do século XX a partir das quais é possível traçar a cartografia do romance português contemporâneo.
Bibliografia activa:
Pires, José Cardoso, O Anjo Ancorado, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1999, 10.ª
Edição.
Bilbiografia passiva:
Cabral, Eunice, «A Revolução Malograda e os seus Sucessos Literários», in José Cardoso Pires. Uma Vírgula na Paisagem, Org. de Maria Lúcia Lepecki, Roma, Bulzoni, 2003,
p. 43-53.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
Coelho, Nelly Novaes, «Linguagem e ambiguidade na ficção portuguesa contemporânea», Colóquio Letras, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 12, Março 1973, p.
68-74.
Cordeiro, Cristina Robalo, «Os Limites do Romanesco – sobre romance», in Colóquio Letras, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 143/144, Janeiro 1997, p. 111-133
Eminescu, Roxana, Novas Coordenadas no Romance Português, Lisboa, ICMP, Biblioteca Breve, 1983.
Faria, Almeida, Cortes, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1978.
Lourenço, Eduardo Lourenço, «Literatura e revolução», in Colóquio Letras, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 78, Março 1984, p. 7-16.
Martinho, Fernando J. B., «Um Anjo Sobre a Falésia», in José Cardoso Pires. Uma
Vírgula na Paisagem, Org. de Maria Lúcia Lepecki, Roma, Bulzoni, 2003, p. 55-60.
Pires, José Cardoso, E Agora, José?, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1977, 2. ª Edição, p. 19.
Ribeiro, Aquilino, Volfrâmio, Lisboa, Bertrand Editora, 1985.
Seixo, Maria Alzira, «Dez Anos de Literatura Portuguesa (1974-1984)», in Colóquio
Letras, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 78, Março 1984, p. 30-42.
Wood, James, A Mecânica da Ficção, Lisboa, Quetzal Editores, 2010.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
José Saramago
José Diniz74
Este mundo, não nos fatigaremos de o repetir, é uma
comédia de enganos.
Jangada de Pedra
José Saramago
Imagine, caro leitor, que por um desses acasos em que o destino é fértil, a Península Ibérica se desprendia do resto da Europa Continental e flutuava em pleno Atlântico,
ou que, uma cegueira inusitada, branca por sinal, e altamente contagiosa se propagava a
uma velocidade vertiginosa, ou que alguém andava por aí a recolher as vontades que, finda
a vida do corpo, deste se libertam, ou que Ricardo Reis estava de volta e nos convidava a
visitar Lisboa, ou que a morte depois de não matar ninguém por um período de sete meses, se fazia anunciar numa carta fechada em envelope lilás, ou ainda que, contra todas as
estatísticas os votos em branco fossem a larga maioria nas urnas. Se permitir que o sonho
o envolva e que a imaginação se solte e se perca nestes assuntos, no fundo, tão absurdos
ou tão plausíveis como quaisquer outros deste mundo onírico, correrá sérios riscos de
encontrar por aí Blimunda Sete Luas, Baltazar Sete Sóis, o homem que cegou enquanto
tranquilamente viajava no seu automóvel, Pedro Orce, Joaquim Sassa e Joana Carda, os ministros tacanhos no espírito e parcos na inteligência que desesperadamente reagiam aos
resultados eleitorais, ou outros que tais. Efectivamente, arriscava-se a encontrar algumas
das fascinantes personagens dos romances de José Saramago.
Ler Saramago é viver uma aventura nos limites ténues que separam o real do
simplesmente possível, é entrar em mundos que sendo meramente imaginários apresentam, talvez, o mesmo grau de coerência e de absurdo que este que tocamos e julgamos
conhecer. Com Saramago experimentamos aquela sensação única de tornar tangível o inverosímil, e o mundo recria-se a toques de uma pena mágica.
74 .Professor do Departamento de Ciências Sociais e Humanas da Escola Secundária de Peniche.
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A criatividade de Saramago é sem limites, os seus romances estão muito para além
dos temas comuns, podem contar histórias de amor, podem ser palco da tragédia humana nas suas múltiplas dimensões, podem manipular a história ou relatar com verdade o
inverosímil, como tantos outros, mas são sempre fecundos e verdadeiramente originais e
acima de tudo, são simples, na medida em que se apresentam como inteiros e participam
da unidade original que a tudo confere sentido. Parecem nascer de um parto sem dor, tal
é o modo natural como a trama e os personagens se nos oferecem. Como o próprio Saramago disse, “eu, no fundo, não invento nada. Sou apenas alguém que se limita a levantar
uma pedra e a pôr à vista o que está por baixo. Não é minha culpa se de vez em quando
me saem monstros.”75 A sua escrita tem o poder do grito que abafa a dor, a beleza do canto
com que a natureza é capaz de gerar, a luz que dá vida à cor. Saramago é arte, a sua obra
é um novo mundo, criado com o génio, a perícia e a audácia só ao alcance daqueles que
convivem com os deuses.
O nosso prémio Nobel é subversivo e polémico, com ele Jesus Cristo ditou-nos um
evangelho e a igreja e os políticos deste país, lá do cume onde se julgam qualquer coisa
ridiculamente a mais, levantaram-se em coro para o queimar na fogueira feita palavras das
mentalidades tacanhas. José Saramago não soube, nem quis, ser querido por todos, mas
foi, por força de um talento inigualável, orgulho de um povo, facto que, convenhamos,
não é fácil para quem não é jogador de futebol ou corredor de meio fundo. Saramago é
insolente, inconveniente e definitivamente à parte do fluir mecânico que, com enfado, vai
alimentando o desenrolar da nossa vida, comuns mortais presos à força esmagadora das
evidências inquestionáveis.
Nos romances de Saramago o insólito veste-se do traje de todos os dias e convive
connosco, entranhando-se nas nossas vidas com o mesmo sentido de todos os absurdos
que abraçamos como se fossem peças de um todo coerente. Neles torna-se possível viver o extraordinário, o irracional do mágico, o insondável do misterioso, com a mesma
naturalidade com que comungamos da vida na nossa luta por acontecer no emaranhado
daquilo que aceitamos como familiar. E é assim que nos seus romances se torna grandiosa
a vida dos homens vulgares ou nos tornamos parentes daqueles que estão para além da
nossa compreensão das coisas e são capazes daquilo que só concebemos no engenho de
deus ou de outro ser qualquer inventado por nós, que investido do inverosímil, mascara os
actos de realidade. Não é de estranhar, portanto, que desafiando a razão, mãe da ciência
e senhora da engrenagem em que se entrelaçam os milagres disto que é estar sendo, nos
diga que “são as coincidências a própria lógica do mundo”76. É talvez por isso que as suas
75 .Citado in, Revista Visão, nº 321
76. Jangada de Pedra, p. 127.
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personagens sejam capazes de façanhas extraordinárias e exijam ao real que se transfigure
de acordo com os ângulos com que se desenham. E mesmo aquelas que na aparência se
assemelham aos homens e mulheres que habitam este mundo, têm a fragrância da imortalidade como constitutiva e são tocadas pela majestade da glória de se ser único, transportando no peito e na alma a humanidade rendida.
Cada personagem dos romances de Saramago encarna a totalidade da existência,
dotando-a do sentido que teima escapar-lhe e, quer seja o profundo e enigmático Ricardo
Reis que visita Pessoa no seu túmulo, ou o trabalhador alentejano vergado pela impunidade aqueles que se arrogam senhores desse pequeno nada que nos habita e a que chamamos liberdade, percebemos nelas a densidade que simultaneamente revela e esconde este
não sei quê que torna possível a improbabilidade de sermos. E é assim que nos fala dos
homens que carregaram as pedras que são hoje convento77, que faz da morte gente78, dos
ministros escória risível79 ou torna um simples revisor senhor da história80. Saramago empresta aos seus personagens uma aura que os torna primogénitos da mãe terra ao mesmo
tempo que transcendem os limites da racionalidade e da temporalidade. É sempre com inigualável maestria que desenha e dá vida aos homens e às mulheres que nos seus romances se desnudam num espectáculo que nos arrebata e nos torna maiores no esforço por
caminhar com eles. E em tudo isto é singularmente sublime, no prodígio da imaginação,
no modo incomparável com que põe as palavras a conviver umas com as outras, no brilho
ofuscante das imagens, na profundidade das ideias, na simplicidade tocante com que nos
aconchega a alma pelo reconhecimento da nossa natureza e da nossa singularidade nos
impressionantes quadros humanos que criou.
Desatar os nós de que são feitos os laços das teias construídas por J. Saramago é,
sem dúvida, uma experiência única e, simultaneamente, riquíssima. A sua escrita abraçanos, perdemo-nos nela como nas ilusões de que são feitas as coisas boas, faz-nos voar pelas
palavras como se estas obedecessem a uma sequência natural, umas atrás das outras, com
leveza, numa ordem perfeita. Como ele próprio diz, “este falar é como as cerejas pega-se
numa vêm logo outras atrás, (…) o que custa é soltá-las umas das outras, é o mesmo que
acontece com as palavras, uma palavra nunca vem só, mesmo a palavra solidão precisa de
quem a sofra e ainda bem”.81
77. Memorial do Convento.
78. As Intermitências da Morte.
79. Ensaio sobre a Lucidez.
80 .História do Cerco de Lisboa.
81. Levantado do Chão, p. 331
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Com este autor descobrimos uma nova forma de usar a nossa língua que redunda
num novo modo de pensar em português. O nosso autor cria um ritmo novo, com ousadas supressões de marcas gráficas nos diálogos, substituições de pontos finais por vírgulas
num exercício multiplicado, criando uma leitura contínua e sem paragens, em suspensão
quase de alma. Aquele discurso, estranho numa primeira impressão, rapidamente nos arrebata, como se estivesse ao serviço da trama que se desenrola, conferindo-lhe o ritmo
que nos faz viver as situações, que nos faz caminhar a par dos personagens, vestindo as
suas causas, experimentando as suas angústias, desfrutando das suas alegrias. As suas
palavras são mais do que o seu sentido, mais do que a musicalidade que decorre do ritmo
da sua sequência, mais do que o seu soar ao serem ditas. As palavras escritas de Saramago
são o universo no seu eloquente desvelamento. E nós, ao lê-las, sentimo-nos sua pertença, como se a sua vida nos fosse tão íntima como os pecados que nos envergonham ou as
alegrias experimentadas na primeira paixão.
Regra geral, os romances de Saramago crescem ao redor de uma intuição ou
ideia central que exige a nossa rendição. Vence-nos por força da simplicidade e da originalidade com que nos cativa. É isso que acontece em Romances como o Ensaio Sobre a
Cegueira, A Jangada de Pedra, As Intermitências da Morte ou o Ensaio Sobre a Lucidez. São
ideias apaixonantes que rapidamente nos envolvem e despertam em nós, a par de uma
admiração que nos prende, uma curiosidade irresistível que nos faz voar pelos meandros
de cada mundo novo que nasce à sua volta. Toda a obra de Saramago é grande, mas permitam-me que destaque como obras maiores o Memorial do Convento, o Evangelho Segundo
Jesus Cristo e Levantado do Chão. Nelas a literatura, como sempre acontece com os eleitos
maiores entre os maiores, veste-se de gala e concretiza-se numa das suas mais fabulosas
criações. E se em Levantado do Chão a passagem da ignóbil tortura de Germano Santos
Vidigal às mãos dos agentes Escarro e Escarrilho, descrita do ponto de vista de uma formiga, constitui um marco assinalável onde o génio, a imaginação a sensibilidade e a emoção
se fundem numa explosão de beleza, já em o Evangelho Segundo Jesus Cristo, o diálogo
entre Jesus e o diabo é um exemplo por excelência do olhar crítico, da visão penetrante, do
estilo mordaz, da atitude provocante com que Saramago soube condimentar a sua visão do
mundo que em arte nos ofereceu. No Memorial, que inesquecivelmente começa com a visita do rei aos aposentos da rainha para a empranhar, Saramago soube encontrar o sentido
para a vida daqueles que anonimamente cumprem com a sua parte para a concretização
dos desígnios de todos e mostrar como o amor pode ‘transgredir a condição humana’ sem
deixar de ser belo e comovente.
Mesmo quando se aproveita de factos históricos como pretexto, Saramago desviase daquilo que ocorre em muitos romances históricos que se limitam a reproduzir os factos
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conhecidos relegando para segundo plano a ficção, e entretece os dados históricos num
tecido ficcional que se mantém sempre predominante, salvaguardando aquele modo tão
peculiar de ver a realidade. Saramago não se vê como um escritor histórico mas antes
como um autor de uma história na História. O seu argumento traduz-se numa estratégia
narrativa que entrecruza três planos relevando o da ficção da história e o do fantástico em
detrimento do plano da História. Desta forma, assistimos a um rescrever da história com
novos protagonistas e um novo sentido, em meu entender, mais envolvente, mais dominador, talvez porque nele caminhamos numa fronteira não definida que, por tal, não limita a
nossa imaginação e nela “os nossos possíveis, as nossas pobres verdades, as nossas pequenas liberdades serão sempre ficções alternativas que «não sabemos» e que começam onde
a verdade é momentaneamente abolida, no ponto em que fica precariamente suspensa —
no início em que tudo sempre acaba e em que tudo de novo começa”.82
Acresce a tudo isto que Saramago tem aquele dom de dizer as coisas como
nós gostaríamos de as ter dito, e que é apanágio daqueles que nós, simples mortais, apelidamos de génios: di-las com simplicidade mas, também, com um profundo sentido crítico
e uma ironia atrevida condimentada por um sentido de humor fino mas altamente eficaz.
As imagens por si criadas são expressão da sua capacidade em aliar a subversão e a beleza,
tal como é patente nesta pequena passagem em que Saramago se refere à criação, “As
salas de aula sucediam-se umas às outras, ao longo de corredores que davam a volta ao
colégio, respirava-se por toda a parte o cheiro a giz, quase tão antigo como o dos corpos,
não falta mesmo quem sustente que Deus, antes de se pôr a amassar o barro com que depois os fabricou, começou por desenhar com pau de giz o homem e a mulher na superfície
da primeira noite, daí é que nos veio a única certeza que temos, a de que fomos, somos e
seremos pó, e que em uma noite profunda como aquela nos perderemos.”83
Por tudo isto e muito mais que é pertença das obras e aqui não cabe, proponho
que se vençam as resistências e a preguiça, que nos sentemos confortavelmente e, num
gesto sempre agradável e renovado, abramos na primeira página um qualquer romance de
Saramago, é que, na literatura como no amor, é sempre melhor viver do que ouvir contar
a história. BOA LEITURA!
Nota: José Saramago foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1998, a
sua obra é vastíssima e concretiza-se em diferentes géneros, desde o conto e a poesia até
82 FINAZZI-AGRÒ, ETTORE, «DA CAPO» O Texto como Palimpsesto na «História do Cerco de Lisboa», in Colóquio Letras, nº151/152.
83 SARAMAGO, JOSÉ, Todos os Nomes.
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ao teatro. Dela, cingindo-nos aos romances, destacamos: Objecto Quase (1978), Levantado do Chão (1980), Memorial do Convento (1982), O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984),
Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989), O Evangelho Segundo Jesus
Cristo (1991), Ensaio Sobre a Cegueira (1995), Todos os Nomes (1997), A Caverna (2000),
O Homem Duplicado (2002), Ensaio Sobre a Lucidez (2004), As Intermitências da Morte
(2005), A Viagem do Elefante (2008), Caim (2009)
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Poesia
Jorge Danado
O motim
Fui a causa do motim,
Esperei pelo momento certo
Para aniquilar o ídolo
Que o concílio dos monarcas da manipulação
Desenhou a giz branco
No fundo negro da escuridão
Da noite mais longa
Para êxtase triunfal
Dos que se alimentam às cegas
Das cataduras improvisadas em bebedeira.
Os impolutos
Explodiram,
Derramaram a seiva viscosa dos dogmas
Em cascatas de virtudes virginais.
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Os sujos,
Os da comida podre nos dentes,
De alma manchada de morte ociosa
Ensaiam sinfonias de horror
Contaminam as águas benzidas
Pela mórbida sensatez insípida.
Os desistentes
Depositaram a vontade no poço do esquecimento
Deixaram os braços correr ao longo do corpo
Até as mãos se unirem aos pés.
Realizaram-se em ausência antecipada.
Os loucos,
Ah, os loucos
Resgataram a essência do real.
O individualismo consistentemente esquizofrénico
Imolou-se em ordem à verdade.
Entornaram o dia na paisagem do inconsciente.
Dormem descansados.
Os miseráveis
Continuam a chegar para o grande banquete,
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Reúnem-se porque respiram gravidade.
Partilham o calor dos corpos
Metáforas estéreis da existência.
São e basta-lhes,
Viver é um pormenor.
Os mentirosos,
De má fé inventaram a esperança
Desafiaram as evidências
E do óbvio fizeram língua bifurcada.
Agora
O retorno só é possível
Mediante contorcionismo metafísico.
Os imortais,
Conspiram iludir a eternidade
Forçam os abismos da finitude.
São exímios sedutores,
Por eles
As bacantes divorciam-se do deus,
O mundo pára para escutar o seu canto.
Infelizes rogam pelo decompor da carne.
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A estátua de bronze
Cansada da indiferença
Desertou do seu posto.
Só ela notou
Que faltaram à chamada
Os fatalmente felizes.
Perguntou por eles
Às fachadas dos edifícios
Que pálidas de medo
Circundavam a praça.
Os impolutos, os sujos, os desistentes,
Os loucos, os miseráveis, os mentirosos,
Os imortais.
Juntos choraram a partida do ídolo,
As lágrimas,
Guiadas pelas cifras do caos
Fundiram-se revoltas,
Foram espasmos, ânsias e tormentos
Sossegaram enfim em leve ondulação.
Os de sempre,
Os fatalmente felizes
Banharam em deleite
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O sossego errante
Em que se instalaram.
Os ignorantes
Príncipes do tempo,
Descansam nas certezas,
Dispensam a razão.
São sentir
Modelos de adaptação
Realização possível da perfeição.
Faltaram à chamada
Porque não faziam falta.
Os senhores ficam de fora
Esperam predadores
Pelo que sempre sobra.
A estátua de bronze sentiu-se só
Acabou-se o motim
E eu nunca saí de mim.
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Esse objecto mágico chamado livro!
Ângela Malheiros84
Foi-me pedido que escrevesse um artigo que falasse de livros, de um livro que
tivesse lido e aconselhasse.
É certo que ao longo da vida já foram muitos os livros lidos (embora haja, de longe,
quem leia muito mais do que eu); que o meu contacto com eles é diário, até pela profissão
que tenho; e não há dúvida que adoro livros… mas escolher um é tarefa quase impossível!
Por isso, optei por escrever sobre a minha relação com os livros e como este objecto me
encanta.
Desde que me lembro, que gosto de livros. Na infância eram os contos tradicionais em livros de papel e de pano (daqueles com as folhas recortadas), a “Anita” (de que
recordo particularmente os títulos “Anita no ballet” e “Anita e a festa das flores”) e pouco
mais.
Depois vieram “Os cinco” (de Enid Blyton) e a “Patrícia” (de Julie Campbell) com os
seus mistérios por resolver e consequentes aventuras.
Neste entretanto, muitos dos desenhos animados que me encantavam eram também personagens literárias: caso de Tom Sawyer (da obra de Mark Twain) e dos três mosqueteiros (do livro homónimo de Alexandre Dumas) …mas julgo que, na altura, não tinha
consciência disso. Lembro-me ainda de ter lido, com estas idades, “A princesinha” de Frances Hodgson Burnett, uma história sobre as reviravoltas que a vida por vezes dá e a importância que tem a forma como as encaramos.
Nesta fase já frequentava a Biblioteca Municipal e Calouste Gulbenkian sediada na
Largo do Município e era aqui que encontrava sempre bons e novos motivos de leitura.
Foi assim que, durante a adolescência, “dei de caras” com Miguel Torga (e os seus diários),
António Alçada Baptista, David Mourão-Ferreira e Vergílio Ferreira, quatro autores portugueses de quem li muitos textos no início da juventude. Começou também aqui a minha
84 Biblioteca Municipal de Peniche
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relação preferencial com os autores latino-americanos, nomeadamente Gabriel GarciaMarquez e Isabel Allende.
A par dos livros, surge o interesse por outro tipo de leituras - a de jornais e, sobretudo, de revistas. Nesta fase não dispensava a leitura do Sete, semanário cultural com
artigos sobre cinema, música e teatro, que saía às quintas-feiras!
E é ainda nesta fase que descubro a beleza da poesia: para além de Torga e Mourão-Ferreira, encontro António Gedeão, Florbela Espanca, Fernando Pessoa e José Gomes
Ferreira.
Sendo aluna de humanísticas fizeram parte do rol de leituras obrigatórias, no Secundário, entre outras: “Os Maias”, do Eça, que gostei bastante de ler; “As viagens na minha terra”, de Garrett; e “Eurico, o presbítero”, de Alexandre Herculano, que confesso não
ter conseguido ler!
Durante a Faculdade marcou-me particularmente um livro, sugerido pelo Prof. Jacinto Godinho: “A vida depois de Deus” de Douglas Coupland - o autor do célebre “Geração
X”- um livro com uma estrutura “leve”, quase em jeito de diário, com pequenas mas profundas reflexões sobre a vida, a morte, o amor, o dia-a-dia…
De há uma dúzia de anos a esta parte, tantos quantos os de trabalho na Biblioteca,
muitos são os livros e autores que se têm cruzado no meu caminho. Pessoalmente, gosto
de reler os autores que já citei acima e fui descobrindo outros que me dão prazer ler, como
é o caso da italiana Sveva Casati-Modignani, do francês Guillaume Musso ou da portuguesa Rosa Lobato de Faria, entretanto falecida.
Gosto destes autores, como outras pessoas gostam de Nora Roberts, Nicholas Sparks, Jodi Picoult, Philippa Gregory ou Ken Follett, só para citar alguns dos escritores mais
procurados na Biblioteca.
Tenho vindo também a descobrir um outro mundo maravilhoso que é o da literatura dita “para a infância”, mas que habitualmente tem o condão de encantar “miúdos e
graúdos”, com obras manifestamente interessantes ao nível do texto e da ilustração.
E por mais dias que passem, e livros que me passem pelas mãos, nunca me canso
de ler, de querer estar a par das novidades editoriais, de leituras diagonais também… que
o tempo não estica e não dá para ler tudo aquilo que por um ou outro motivo gostaria de
ler. Porque, se até agora, tenho falado essencialmente de poesia e literatura de ficção, a
verdade é que há livros sobre tudo. Livros sobre arte ou ciências aplicadas, livros sobre jar156
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dinagem ou trabalhos manuais, livros de cozinha, de psicologia, de desporto, de história.
Livros que nos ensinam, que nos divertem, que nos guiam, que nos elucidam sobre este
ou aquele assunto. Livros que contam vidas –as chamadas biografias, que também gosto
particularmente de ler - e inspiram outras tantas vidas!
E há livros com som, livros com cheiro, livros com texturas, livros em pano, papel
ou plástico, livros interactivos…
Na verdade é-me difícil imaginar a minha vida sem livros e julgo que o próprio
mundo não seria o mesmo sem este objecto. A propósito, recordo uma colecção de livros,
recentemente lançada com o jornal Público, intitulada Livros que mudaram o mundo: conjunto de 20 livros do qual faziam parte títulos como “A Origem das Espécies” de Darwin, a
“Bíblia”, “O Contrato Social” de Rousseau ou o “Alcorão”.
Livros e leitura…um tema que daria “pano para mangas” que é como quem diz
muitas linhas mais… Mas, para não cansar o leitor, fico-me por aqui. Espero, pelo menos,
que este texto tenha servido para motivar outras tantas leituras, sobre as quais não há que
fazer juízos de valor, como tanto gosta uma certa elite intelectual. O que verdadeiramente
importa é ler! Porque ler é não estar só, é aprender, é saber, é viajar, é imaginar, é criar…
é tantas coisas quantas os leitores quiserem que seja. Não temo o seu desaparecimento,
porque acredito que nenhuma nova tecnologia tem o condão de o substituir, ou não fosse
o livro um objecto mágico: poderoso, encantatório, belo e transformador!
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Fontes
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Apresentação
Júlio César da Costa Machado nasceu a 1 de Outubro de 1835, em Lisboa, e morreu
na mesma cidade a 12 de Janeiro de 1890. Foi jornalista, tradutor e escritor, tendo abarcado os diferentes géneros literários, como o romance, teatro, conto, crónica e folhetim. A
sua precocidade literária começou aos 14 anos com o romance Estrela de Alva, publicado
na revista Semana, e, em 1852, com 17 anos, publicou o romance Cláudio. Foi folhetinista
na Revolução de Setembro, substituindo o seu mestre António Pedro Lopes de Mendonça,
e publicou A Vida Em Lisboa (2 vol., 1858), Contos ao Luar (1861), Cenas da Minha Terra
(1862), Recordações de Paris e Londres (1862), Contos a Vapor (1863), Em Espanha (1865),
Do Chiado a Veneza (1867), À Lareira (1872), Manhãs e Noites (1873) e Apontamentos de
Um folhetinista (1878, memórias). A sua vida familiar teve um epílogo trágico, primeiro
com o suicídio do único filho, em 1890, e depois com o seu próprio suicídio, cortando as
veias do pulso. Júlio César Machado foi coevo de Camilo Castelo Branco que lhe cinzelou o
retrato em impressivos Esboços de Apreciações Literárias, que a seguir transcrevemos:
Este Júlio César Machado, que aí vês tão medrado no folhetim e no
romance, conheci-o, há treze anos, com todas as meninices de espírito e rosto.
Não sei como ele foi dar comigo a escrever o «Anátema» n’um cubículo da rua
do Oiro. O que me lembra é que me saiu muito engraçado o Machadinho, e fiquei admirado, quando me ele disse que tinha um romance em começo, e muitos romances embrionários. Parece-me que o romance começado se chamava
«Estrela d’alva.» Bem escolhido titulo para a alvorada de um esplêndido dia!
Mandei publicar na «Semana» jornal literário, o começado romance do
pequeno, cuidando que ele se deteria a compor e recompor a continuação, por
algumas semanas.
Um dia, sentou-se Júlio à minha banca, pediu-me papel, e escreveu ali
mesmo a continuação do romance, conversando ao mesmo tempo, em variados assuntos académicos, desde a escola realista da novela francesa até ao
nariz aquilino da minha vizinha.
Conheci o pai de Júlio César Machado. Era um sujeito de trinta e tantos
anos, se me não engano. Penso que foi o filho que m’o apresentou. O bom pai,
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quando me via, apertava-me afectuosamente a mão, e dizia: «Desenvolva-me
o rapaz que tem jeito para as letras.» Isto era-me dito com simpática vaidade,
e muita alegria de esperanças.
Esperanças!.. O pai de Júlio César morreu dois anos depois, legando
ao filho o coração identificado no coração da viúva, um tesouro de que o romancista nos tem mostrado as jóias, aquela amada e amantíssima senhora em
volta da qual o bom filho vai, às temporadas, colher as melhores flores dos seus
livros.
Júlio César ficou aí em Lisboa, neste deserto de Lisboa sem maná do cio,
sem anelos da terra de Chanan. E assim, desamparado da miraculosa influição
que alentava o povo hebreu, Júlio César realizou o milagre de viver.
A meu juízo, a máxima prova da fortaleza do homem está no aguentarse um literato por quatro anos de iniciação, n’este infernal mister de escritor.
O snr. Alexandre Herculano diz ironicamente e aviltantemente para o homem:
«Glória ao rei da criação que, tiritando, geme!» O eminente historiador, em
hora de menos zanga, teria visto a grandeza, do homem no seu mais admirável
modo de ser, e diria: «Glória ao rei da criação, que, escrevendo, vive!» Esta exclamação, porém, não seria entendida no estrangeiro, onde cada escritor com
o renome de Júlio César Machado faz supor, pelo que consome, que tem uma
serie descendente de estômagos, e que morre devorado por prazeres.
N’aquele tempo em que Júlio começou a escrever, os editores e os empreiteiros de jornais eram uns facínoras. Lopes de Mendonça, aquele brilhante
espírito que já agora só tem olhos para ver trevas antepostas à sepultura, escrevia folhetins a doze mil reis por mês. Os doutíssimos em ciência de governar
nações, alçapremas que erguiam e derrubavam governos, e ameaçavam dinastias, escreviam a razão de quatro centos e oitenta reis o artigo. Estes varões
desinteresseiros, mormente os últimos, davam a lembrar heróicos talentos de
Grécia e Roma, que desciam à Ágora e ao Fórum a salvar, por muito menos, as
repúblicas, e iam contentes para casa, com uma coroa cívica de carvalho ou de
outro qualquer vegetal barato. Os primeiros, poetas e romancistas, como Ésquilo ou Apuleio, também não eram mais arremessados em ambições, nem davam
ao diabo o engenho quando tantalizavam diante das vidraças do Matta. Devia
então ensaiar-se, pelo menos com os literatos, em Portugal, um todo-nada do
regime da Arcádia. O editor Lopes seria o primaz na glória de arregimentar os
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escritores em banda do barditos para quem a bolota das selvas germânicas
eram pasteis de nata.
Voltando ao nosso Júlio, meu caro Biester : penso que a primeira onda
do Pactolo, que lhe inundou as algibeiras, rompeu do teatro do Ginásio para
onde Júlio César inventava, imitava, e traduzia comédias; mas aquela rica onda
era má por ser digestiva de mais: os cobres, que apremiavam o escritor novel,
eram logo consumidos n’ela, como acontece em Cantanhede, na «fonte das
fervenças» cujas águas, no dizer do oratoriano Bernardes, até o ferro comem.
Aqui há finos pespontos de alegoria, se me não engano. N’estes embelecos do
discurso só dão boa saída os engenhos preclaros, como diz Aristóteles... qui
praeclari sunt ingenii.
O primeiro livro de Júlio César, de que tenho noticia, era uma colecção
de romancinhos, mui ligeiramente escritos, muito imaginosos e apoucados em
verdade. A linguagem não era mais portuguesa que a forma. Os personagens
eram lá de fora. Júlio César não achava aqui vida para observar e trasladar. Era
como ave mal implumada, nascida em montados calvos, que se namora dos
arvoredos vistos ao longe, e, ao voejar para eles, cai de fraca para tamanho
ímpeto.
Deu depois alguns dramas, que eu nunca vi, e em seguimento a Vida em
Lisboa, romance de estreitas dimensões, mas exactíssimo, a meu ver, nos pontos
observados em curtos horizontes. O dizer pecava ainda por muito afrancesado;
era, porém, assim o genuíno dizer dos personagens na vida real. O autor não
entrançou no entrecho, sequer, um professor de primeiras letras com vaidades
de ter lido o frei Luís de Sousa. Eram rapazes e raparigas que falavam, como
viviam, muito à francesa. Por este lado não se há-de acoimar o romance.
Apareceu Júlio César folhetinista, e muita gente disse que a feição mais
literária do escritor era o folhetim. Quem assim o conceituava chamando-lhe
Janin ou Planche, conferia-lhe diplomas que valem mais que os de grande romancista ou grande poeta. Saber muito, e saber dizer o muito que sabe com
muita graça, parece-me ser a condição de algum folhetinista bem sorteado.
Possuir um sem o outro dos predicados é meia vocação, meia glória que não
vinga jamais a metade que lhe falta.
Júlio César Machado tinha a clara e fluente linguagem, que o género
requer; tinha ironias e remoques comedidos, como a cortesania manda; real163
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çava no bem discernir o quilate das óperas cantadas, do cantor louvável, e do
actor inteligente ; achava de pronto as finas pedras do livro novo, e assoprava
mui delicadamente o cisco em que se delapidavam, de jeito e modo que não
fosse incomodar os olhos do autor. Estes felizes atributos deram ao folhetinista
de diversos jornais um bem ganhado e soado nome. O vazio que eu, porém,
achei nos seus folhetins era justamente o que lhe tem acareado muitos amigos:
minguavam em crítica, doutrina, conselho, e ensinamento. Ora, esta falta não
se há-de arguir ao entendimento de Júlio César: é uma virtude n’ele, bondade
de coração, dom que ele trouxe algum tanto abastardado de Paris, porque, já
n’um d’estes últimos dias, o vimos mofando de si próprio, à conta das frases sacramentais com que ele saudava um livro novo, ou canonizava um actor velho.
O que eu nunca vi foi escritor mais subtil e engenhoso no dar noticia de
uma obra, feita por pessoa que se não contenta com admirá-la, e quer, á fina
força, que o mundo esteja com a sua admiração. Nestes lances, em que o bemquerente moço se tem visto tantas vezes entalado, é que está a expiação do
talento. «O autor vai ficar contente - dirá entre si Júlio César - mas a crítica dos
meus irmãos em letras que juízo fará de mim?» Cisma, e acrescenta: «Digam o
que quiserem: mais me pago da glória de ser bom que da glória de ser justo.»
Formosa alma!
Júlio César escreveu três biografias de actores, e a da cantora, Lotti. Ainda as releio com prazer. Até o estilo lhe enfeitaram as graças lusitanas
n’aquelas boas horas em que nos deu o mais relevante punho do seu engenho.
Parece-me admirável a biografia de Taborda; é extremamente chistosa a de
Sargedas e Isidoro; tem raptos de levantado sentimento e poesia a de Lotti.
Popularizou-se singularmente o livro denominado: «Contos ao luar.»
Raro jornal ficou silencioso à saudação dos romancinhos que tinham sido impressos em jornais, e (esquisitice da caprichosa voga, que libra em juízos do
mundo!) despercebidos à primeira leitura. O merecimento dos «Contos ao
Luar» é o da singeleza, e da suma verdade. Júlio prima na graça, na naturalidade, - não amaneirada, a mais artificial de quantas há do dialogo; e acelera
habilmente as descrições, como quem sabe até onde chega o fôlego do leitor. E,
depois, vai muito no ar infantil com que diz as coisas que até os velhos amam
ler, como se lh’as dessem na verdura dos anos. A boa mãe, ou o bom filho que
leram a dedicatória das Cenas na minha terra» deviam ficar querendo muito
da alma ao livro. N’estes mimos de inteligência, e — para assim o dizermos —
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juvenialidades afectuosas que nos vem simpaticamente alvoroçar, é que está o
melhor, a magia do condão literário de Júlio César.
Por que é que o publico deu menos valor às «Cenas na minha terra?»
Isso é que eu não sei, meu amigo. Pois vê tu que há n’este volume umas vinte
páginas finais que sobreluzem a quantas por aí vivem na memória das incansáveis leitoras dos «Contos.» Ali, o amor tinha uma filosofia, a desgraça também,
o coração uma autópsia, e cada quadro uma explicação minudenciosa desde os
longes do horizonte até aos contornos da primeira luz. Júlio César entrou-se da
sua ideia, burilou-a, deu-lhe as grandes formas dos mestres mais venerados, e
enganou-se com o seu mundo.
Ei-lo aqui está emendado nos «Passeios e Fantasias.» Isto é mais leve,
mais ao correr da imagição, (que corre para Paris), mais conversável, e feminil.
O romance de Teófilo Gautier — Jéan et Jeannete, penso que é — está primorosamente imitado. Ri mui de vontade com o baile da negraria, originalíssimo,
como muito mais que o auctor não pediu emprestado a Gauthier. Invejo tudo
que é dizer depressa, e dar-me completa ideia do que eu só poderia examinar
em muitas horas. Isso tem o nosso Júlio sempre, com o sobrelevante merecimento de raro falsear as cores e as vozes. Os outros escritos d’este volume,
mais ou menos cuidados na frase, lêem-se aprasivelmente. Há uma graça que é
universal, seja qual for a língua que, no-la dê. Uma coisa há aí chamada «graça
portuguesa» que eu não sei bem o que seja. O grande Garrett foi quase sempre
engraçado em francês no Arco de Sant’Anna. Se chamam graça portuguesa aos
chistes da «Eufrosina» e dos «Vilhalpandos» e do Gil Vicente, Deus nos acuda,
que não há maior desenxabidez, nem do antro de Trofonius eu creio se possa
sair mais carrancudo que da leitura d’aqueles modelos de facécia nacional!
Temos conversado a respeito de Júlio César.
O que eu anseio agora d’ele é o livro de Paris, com as muitas novidades
de um espírito observador, novidades em nossa língua não imitadas de alguns
maus livros que por aí correm de viagens, e recordações, de viagens. O Júlio não
nos há-de dar histórias engenhadas no quarto do hotel, ou a bordo do vapor.
Diga-nos as impressões das pessoas e das coisas, sinceras e naturais, de modo
que a suspeita de serem fantasias nos não venha aguar o prazer de termos no
seu livro a fotografia moral de Paris. Bem sabe ele como é rápido o fotografar,
e bem sabemos nós que não devemos pedir-lhe mais que o esboço das coisas,
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aperfeiçoado depois pelo sexto sentido do talento. Dois meses para estudar a
capital do mundo! Não faz milagre nenhum o Júlio! Eu tenho falado com muitas
pessoas que lá estiveram menos tempo, e trouxeram nada menos, que todos os
monumentos de Paris n’um cadernito que lá custa quatro sous.
O que devemos esperar de Júlio César é um livro muito divertido, muito
risonho, e todo graças características do seu original estilo. O laborioso moço
escreverá assim muitos, hauridos por esse mundo, com o meio punhado de oiro
a que deixar hipotecado o seu talento. Decorridos anos, quando a fadiga lhe
esfriar o engenho e a vontade, vá Júlio César bandear-se com a caterva de sandeus, que enxameiam às portas das secretarias, e grite bem alto: «Aqui estou
eu que também não sirvo para mais nada. Agora sim, mereci uma colocação
na república!»
In Esboços de Apreciações Literárias, Porto, Em Casa da Viuva Moré, 1865, p. 169177.
Nota: Na transcrição do capítulo da obra Scenas da Minha Terra, com o título «Peniche», mantivemos a grafia original.
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Peniche
O sino da egreja de S. Pedro dava quatro horas, na tarde em que eu cheguei a Peniche.
Não é uma coisa fácil atravessar a praia por causa da areia, e é menos facil ainda ter
a certeza de poder entrar na villa, por causa da agua. Vae um pobre homem perfeitamente
socegado da sua vida, e sem a menor aspiração a aventuras de jornada, e, quando a sorte
o quer, eil-o em frente de Peniche a dizer adeus para a praça, a fazer perguntas e a dar respostas, que nunca vão em concordancia, porque a bulha do mar leva as palavras,
- e sem poder, o infeliz, entrar por fórma alguma na peninsula, que em marés cheias
se torna perfeitamente em ilha, deixando refrescar os seus muros pelas ondas que lh’os
cobrem !...
Peniche é triste então, e todavia é n’essas horas que Peniche é bella! O mar estende-se por aquella praia nua e solitaria, em ondas transparentes mas pesadas, que o vento
parece a custo erguer. O ar que alli corre é vivo! Cortante! implacável! e quando o sol se
debruça pelo mar, olha a gente para o fundo, e parece-lhe vêr templos, palacios, idolos,
mas em ruinas, como tudo que se esconde nos tumulos. Quando passa n’aquellas alturas
um vapôr, ninguem dirá que é uma machina, mas um ser destinado a combater e subjugar
os elementos, obedecendo como nós ao sopro que os leva, e que elles domam! Assim
como nós tiramos do globo em que vivemos as forças que nos dão vida, tambem o vapôr
pede ao occeano o motôr que o faz correr; e ao passar por Peniche, elle domina o mar com
as suas proprias ondas, rolando como monarcha por cima do seu tumulo, que dir-se-hia ir
convertendo em fumo!...
Os rochedos fragosos que cercam Peniche pelo mar, parecem dizer que é a natureza que a defende, e cada um cuida pelo poder da phantasia voltar o curso das edades, e
achar-se ha quasi dois mil annos entre os Hermiaios, perseguidos por Julio Cesar - o meu
glorioso homonymo - e indo refugiar-se n’aquelle torrão solitario, erguido d’entre o mar,
e considerado nesse tempo por uma das Berlengas. Oh! Pobres Herminios, que noite escura atravessaram alli, que noite de inverno, fria, pesada, e sem orvalho, em que apenas
se sentiria cair n’alma ageada, e em que o vento que gemia na praia não levantava senão
grãos d’areia !
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Eu tenho a cópia da inscripção de um marco desse tempo, encontrado ha pouco na
demolição de um muro, e cautelosamente arrecadado logo por Figueira Cervantes, agente
consular de França em Peniche, cavalheiro de um merecimento distincto e prestativo. ‘
Ella diz assim :
Pompeias A . C.
E. Pacat. Ile.
L. Terentius Fur
nus M. R. I. T. Et I. Te
rentius Rufus
E. C.
que parece dever traduzir-se : Neste cabo de Pompeo, vence pelas armas os Herminios Lucio Terencio Furno e Julio Terencio Rufo, Militares Romanos no tempo da era de
Cesar.
O acaso, porém, que sempre protege os cronistas, fez-me encontrar n’um papel,
que o vento já ia levando para o mar, se eu não consigo tão depressa apanhal-o, esta outra
interpretação :
Pompei a campona edund pacat. Hinc espernegatum, Lucius Terentius Furnus maritus Ritae, Inguis toninhae, et Julius Terentius Rufo escalatas cavallas.
O que, sem duvida alguma, significa :
Aqui na taberna de Pompeo, comeram pacatamente, Lucio Terencio Furno, marido
de Rita, e Julio Terencio caixa de Rufo, cavalas escalladas, inguias, e espermegado com
azeite de toninha.
O leitor gosa de toda a sua liberdade para escolher d’estas duas traducções a que
mais lhe agrade, na certeza de que qualquer d’ellas acompanha á letra a phrase latina, o
que nos dá as melhores garantias... de estarem ambas fieis!...
A primeira impressão ao chegar a Peniche, é verdadeiramente alegre : a villa esta
ver-se nas agoas, não com os ares de uma coquette, mas com a expressão melancholica da
noiva de um maritimo. Parece um pequenino mundo á parte, entregue todo á solidão do
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seu destino e á original poesia d’elle. Quando o maraccommette a praça, e o vento redemoinha raivoso, Peniche parece esconder-se atraz das suas muralhas, medrosa de morrer.
Na immensidade da praia que parece confundir-se com o céo, sente-se cada um entregue
sem deffesa a um poder mysterioso, e na tempestade que rebenta, ou no grão d’areia que
estremece, vê-se o infinito surgir atravez dos seus limites e debaixo dos seus véos, o infinito em grandeza assim como o infinito em pequenez, porque é n’estas duas extremidades
que se manifesta Deus!
E tambem, quando o dia vae sereno e limpido, que horisonte aquelle, em que o sol
brilha explendido, innundando o céo com os seus raios e derramando-os com amor sobre
a terra e sobre o mar, franjando-se como em milhões de prismas com as cores tão variadas
da sua luz, que a cada instante mudam e tomam um aspecto novo. Se algumas nuvens
pairam na atmosphera, faz-se uma alternativa de sombra e de luz, que vem ao longo do
porto, dar ao baluarte da Misericordia e ao das cabanas o colorido meio phantastico de
um quadro admiravel.
Depois de atravessarmos quasi toda a praia, eu e o meu amigo Pinto, disse-nos o
arrieiro por estas palavras :
- Os senhores então, para onde é que vão?
- Para Peniche rapaz ! Para Peniche !
- Mas é que isso agora não póde ser !
- Não póde ser ?
- Não póde ser de feitio nenhum !
- Porque motivo? Vaes assassinar-nos?
- Por ‘môr das aguas !
- Ah ! por ‘môr das aguas ! Vamos lá sempre a explorar terreno, se estás por isso.
Partimos com o ar mais desassombrado a procurar um palmo de terra por onde
penetrassemos na villa; infelizmente, porém, o mar não nos dava licença, e tivemos que
esperar ao vento, a cavallo, extaticos, e furiosos, que Peniche deixasse de banhar os pés.
Foi negocio para perto de duas horas, durante as quaes fizemos ao arrieiro os discursos
mais importantes, sem repararmos que elle estava a dormir.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
- Tu dormes, rapaz ! n’uma situação d’estas, em frente do mar, ao lado do mar, adeante do mar - quando nós estamos afflictos, anciosos; com a dôr no coração, frio no nariz,
e uma lagrima - palavra d’honra ! uma lagrima ao canto do olho, - atreves-te tu a dormir !
Mas, isso é a acção de um grande homem, é o procedimento de um espirito elevado e discreto, tu não és um arrieiro, és um sabio: não te chamas Thomé, chamas-te Montesquieu
! Nem conheces o teu valor n’este momento; o teu espirito admirar-te-hia, se te déssem
noticias d’elle; és o homem d’esta epoca, nada mais nem menos; lá por Lisboa deixam
os rapazes de dormir para aprender philosophia ; é uma toleima : deviam, ao contrario,
estudar philosophia para apprender a dormir ! És tu que comprehendes a situação, como
dizem os artigos de fundo : quem tivera fortuna, que já te não largara ; dormes com o ar de
quem ensina ; estás talhado para o Curso Superior de lettras !
O arrieiro esfregou os olhos.
- É que eu ha sete noites que durmo a andar, e não ha coisa que mais me cance. Os
senhores nem a cavallo podem dormir, com o medo que levam de dar comsigo em terra,
mas nós quando vamos em estrada direita damos corda ás pernas e deixamo-nos dormir
!
- A andar, homem, estás doido !
- Pois a andar é que eu digo aos senhores. Na cama dormem os tafues. Eu tive uma
rapariga, que era peixeira em Giraldes, que deixou um rapaz por meu respeito, desgostosa
de vêr que o maldito não podia estar a pescar e a dormir ao mesmo tempo, como quasi
todos fazem. Não ha defeito que mais desgoste uma mulher, do que dizer-lhe o beldroegas do seu mais que tudo:- «Então agora adeus, que me vou dormir ! » Se eu tivesse a
vida socegada que os senhores teem, chegava-me a noite para fazer um relogio ! Tambem,
quando chego ás estalagens, se acho um banco em que me estenda, ou uma pouca de
palha em que me embrulhe, estou satisfeito do somno duas horas depois.
- Como pódes viver dormindo tão pouco?
- Mas é que eu durmo muito depressa !..
Esta resposta maravilhou-nos. Dormia depressa !
Elle fechou outra vez os olhos, e principiou a roncar. Ao pé mesmo do seu ouvido,
gemia o mar como um louco. Nada o inquietava, nada o opprimia; roncava sempre. Quando a maré deu em fim licença, démos-lhe com o pé, e accordamol-o :
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
- Arrieico ?
- Que temos ?
- Vamos entrar em Peniche.
- Já não é sem tempo ! respondeu, erguendo-se de um pulo, o caminhando adeante de nós, a cantar não sei que trova, que principiava assim:
Ninguém se fie em banquetes
Nem em amigos fingidos,
Quem sempre andam unidos
Para nos darem traquetes!
Atravessamos as primeiras ruas de Peniche ao cair da, tarde. As casas tinham uma
apparencia de irregularidade despretenciosa, que logo me agradou. Por uma estreitinha
fresta da janella as senhoras, - que em Peniche nunca deixam vêr a cara - espreitavam-nos
cheias de recato. Eu assim que observei isto, dei-me logo ares de Don Juan, e inclinei o
chapéo sobre o olho direito. Mais adeante encontrámos umas creaturas de mantilha, que
teem a habilidade de a enviesar por tal feitio, que não se lhe distingue senão a ponta do
nariz, D’essa vez foi o meu companheiro que preparou o seu melhor sorriso, e me disse a
meia voz :
- Que te parece isto ?
-Uma ilha encantada !
- Não sentes o mysterio em redor de nós?
- Sinto.
- Não prevês, como nos contos do Oriente, que alguma aventura se prepara? Estas mulheres que passam envolvidas na sua longa mantilha, vendo-nos sem parecerem
olhar-nos, não te accordam desejos ? Aquell’outras, que nos espreitam por entre a fisga
da janella e bichanam entre si ao passo que nos contemplam, não te inspiram esperanças?
Todo este silencio, toda esta solidão, a poesia mesmo desta villa isolada sobre o mar, estão
a fallar d’amores nocturnos: Ha o quer que seja da Torre de Nesle n’esta terra, e em to171
PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
cando a recolher verás se uma velha mensageira vem ou não collocar-nos no dedo o annel
de convite de alguma mysteriosa Margarida, que só o ,que não hade ter é o animo de nos
atirar ao mar.
Apeámos-nos emfim, e tratámos, como era proprio, de vêr se podiamos jantar. Em
Peniche, porém, não havia senão sarda, pão e vinho, e como não era prudente escolher
uma só destas coisas, escolhemos vinho, pão, e sarda.
O arrieiro que ficou comnosco, disse-nos alegremente, empunbando um copo de
meia canada :
- Mulheres, querem-se de Leiria ; dôce, das freiras; e sarda, de Peniche. Lá vae á
saude !
A sarda, effectivamente, era de um sabor finissimo, e acompanhada da impreterivel cebolla engrolada exigia uma copiosa libação de vinho branco, que sabia horrivelmente
a enxofre, graças aos preparaticos com que se havia evitado o oidium ás vinhas. O arrieiro
ria, e despejava copo sobre copo:
- Venha mais phosphoro ! dizia elle. Quero vêr se accendo este interior !
As tabernas de Peniche teem um caracter de seriedade digna de menção. Os soldados que estão em destacamento n’esta villa, pensam sempre mais em namorar do que
em beber. O porquê d’isto ignora-se, a não ser pela belleza das raparigas, circumstancia
que para mim não é ponto de fé, porque não ha vêl-as senão de relance, quando as espreitamos ao sair da missa, ou no tempo dos banhos ao avistal-as de madrugada escondidas
atraz dos rochedos que lhes servem de barracas ! Nas tabernas de Peniche os arrieiros
que vão de passagem, e os maritimos, são apenas quien se divierte; o dono da locanda
empresta uma guitarra, e alli se enceta um desafio de cantigas a qual hade dizer peior da
sua vida, e demonstrar com mais graça os contras da profissão que exerce. Uma das tabernas da villa, a que fica no fim da rua de S. Pedro, é celebre pelo caso dos tres beberrões,
que se affirma ter acontecido alli. Eram tres catraeiros chegados das Berlengas com um
passageiro que tinha ido visital-as; passa-se o caso ao cair da noite, e na vespera de Natal ;
como os tres eram do mesmo barco, altercaram quaes haviam de ir n’essa noite ainda para
a Consolação, podendo um ficar em Peniche para cear com a familia e ir á missa do gallo.
Razão pucha razão, e elles a praguejarem com tal força que as palavras pareciam trovões.
- Leva de desordem! disse o dono da taberna. Tirem vocês á sorte qual hade ir-se
embora, e está partida a contenda!
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- Lembra bem o da locanda! disseram os catraeiros. Salta em riba do balcão uma
moeda de cobre, e vae cruzes por um e cunhos por outro!
- Isso não presta, e leva muito tempo! redarguiu o patrão da tavolagem. Uma canada a cada um, e ganha a partida o que comer menos para a despejar.
E tres canadas de vinho se collocaram sobre o balcão, uma deante de cada uma
dos maritimos.
- Sô Zéi disse um d’elles; salta uma azeitona. Uma azeitona lhe foi dada.
- Lá vae á nossa! retrocou o barqueiro depois de comer a azeitona.
- Não deites o caroço fóra, diabo! Dá cá essa isca!
E, depois de lamber o caroço, o segundo maritimo, bebeu a sua canada.
O terceiro olhou-os por um instante em reflexão, depois pegou do braço a um dos
seus companheiros, e, em tom mysterioso, lhe dirigiu estas palavras:
- Dize-me ahi azeitona ao ouvido!
O outro disse-lhe ao ouvido:
-Azeitona!
O terceiro maritimo depois de ouvir esta palavra, despejou a sua canada.
Os outros dois partiram para a Consolação, e elle ceou com a mulher, e foi á missa
do gallo.
Em quanto a nós, depois de saciados da immortal sarda já citada, despedimo-nos
cortezmente do arrieiro, que estava a comer e a dormir, e fomos procurar fortuna.
Quando se chega a uma terra em que se não tem relações, a maneira mais engenhosa e ao mesmo tempo mais simples de a contrair, é ir á noite á botica. É na botica que
se reunem cair da noite as principaes notabilidades de uma villa; alli se dizem as melhores
phrases, se contam as melhores noticias, e se levantam as maiores calumnias. Como eu
sabia isto, dirigi-me sem a menar demora á pharmacia principal da terra, onde comprei
não me lembro já que remedio, e onde encontrei dois cavalheiros que me offereceram
para passar a noite no club, tratando-me logo pelo meu nome. Na crise de obscurantismo
em que eu me encontrava, encheu-me de satisfação o achar-me em paiz de conhecimento.
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PAIDEIA. REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 2 (2011)
Estabeleceu-se logo alli conversa preliminar, e, quando meia hora depois fui apresentado
no club, parecia-me já estar entre amigos que não tinham nada de amigos… de Peniche
Que posso dizer do club d’esta villa? É uma casa onde se passam as noites jogando,
conversando, ou lendo. As senhoras são tão rebeldes á vida agradavel, que os sócios do
club não se permittem sequer a tentativa de dar um baile. Tem de ordinario, já no principio
d’este livro o disse, os habitantes de cada terra o seu caracter particular; das damas de
Peniche se refere sempre o serem dificeis á luz, á alegria, á sociedade: estava uma ocasião
uma senhora d’esta villa encostada a uma arvore, e um marinheiro que a viu, disse sorrindo: - É o fructo mais duro que uma arvore póde dar !...
A afabilidade, a galanteria, a delicadeza com que me acolheram os socios do club,
foram de me encantar. Retirei ás onze horas, contente da noite, contente de Peniche, e
contente de mim, -a que me acontece raras vezes. O meu companheiro encheu-me de
inquietação, porque o vi preoccupado :
- Em que pensas tu ?
- Na ceia!
Esto brevis et placebis, diz a phrase; a concisão d’aquella resposta não me deixava
que replicar, e não fiz mais do que apressar o passo. Ao chegarmos á tasca, o arrieiro estava
sentado a uma mesa, a jogar a bisca e a dormir.
Que ha que se coma, patrão?
- Sarda.
- Mais nada?
- Nada mais.
- Venha sarda, pois !
- O arrieiro abriu os olhos e olhou para nós :
- Toca a dormir, hein ?
- Isso é o que parece aos senhores? Eu estava agora, mas era a reflectir !.
- Estavas a reflectir! Em que ?
- No que acaba de me contar este rapazola que faz a bisca commigo. Pelos modos
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um diabo alma das Caldas foi comido pelos lobos a noite passada ; bem se diz que a fome
é negra ! Não lhe deu tempo sequer de escolherem carne de outra terra !
Este epigramma de um penicheiro a um caldense é cheio de feição, porque o povo
das duas villas não póde ver-se. O arrieiro, quando lhe demos vinho, bebeu tranquillamente á saude dos lobos, e adormeceu depois sobre as cartas como se acabasse n’esse instante
de socegar a sua consciencia.
Ás dez horas da manhã do dia seguinte, o meu companheiro, eu, e o nosso amigo
Costa Bello, montamos a cavallo e partimos a visitar a Senhora dos Remedios. A Senhora
dos Remedios é uma capellinha á borda do mar, ao oeste de Peniche, em frente das Berlengas, na extremidade de um campo. Tem a egrejinha cinco altares. Na porta da entrada
veem-se uns emblemas representando o sol, a lua, quatro estrellas, e as cinco chagas, por
cima d’estes dois versos :
Sem os rogos de Maria
Nada alcançam os mortaes.
Ha para com esta capeilinha a maior devoção do povo. Os cirios principiam em 15
de Agosto, e terminam em meado de Novembro com o cirio de Peniche, chamado o Cirio
da Villa. Quando ha falta de peixe, ou por occasião de naufragio, a devoção dos maritimos
recorre á Senhora em preces e votos. A egreja sustenta-se das esmollas, que os romeiros
levam ao cofre. N’uma das capellas está um Senhor deitado; diz o povo que a capella tem
largado, e que o Senhor tem estendido. Vá isto por conta de quem o affirma, visto dar-lhe
gosto, e a nós não nos fazer mal! O certo é para mim, que aquella poetica capellinha tem
um grande poder para accordar nas almas a fé. Quando uma pessoa alli esta, principia a
scismar, a phantasiar, a esperar ; é escusado querer ser mais forte do que a imaginação,
porque n’aquelle logar a imaginação é mais forte sempre que nós. Uma impressão que
nem se pode combater, nem destruir, nem intender sequer, vem subitamente contradizer
as mais claras razões do espirito, e desmentir as suas negativas mais intrepidas. Escutam-se
alli não sei que mysteriusos ruidos : parece haver uma coisa, qualquer que vive surdamente na materia, e que, quando tudo se calla, levanta a voz para nos fallar,--uma linguagem
que não se define, que eu náo sei dizer-lhes o que é, magestosa como o silencio, obscura
como a noite !
Voltamos, visitando algumas fazendas e provandu da uva, que este anno em Peniche era excellente. 0 que não encontrámos nunca, por mais que as procurassemos, eram
arvores que se erguessem acima dosmuros.0 clima desabrido d’esta peninsula não as deixa
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crescer. Em compensação o que ha de menos em arvores ha de mais em pedras, que nunca
vi tal quantidade em minha vida; até muros de pedra é que servem de vallados ás fazendas
!
Entrei de novo em Peniche á hora de jantar. Que espectaculo, me esperava! Não
encontrei pelas ruas senão gente carregada de peixe; este levava um safio, aquelle um
besugo, o outro uma corvina, uma doirada, um ruivo, um redovalho, que sei eu ! Haviam
chegado os barcos da pesca, e vinham cheiinhos a não poderem mais; de todos os lados
não se ouvia senão o grito de :
- Robalio ! roballo!
- Quem quer cachucho!
- O rico peixe gallo! o rico peixe gallo!
- Chicharrinho! chicharrinho fresco!
- Redovalho ás postas! Redovalho ás postas!
E as mulheres dos logares de venda a pesarem o peixe, e toda a gente a comprar, e
a levar para casa ! Fomos ainda dar um passeio pela villa. A praça de Peniche é realmente
uma coisa para ver; consta de seis grandes baluartes, defendendo esta fortificação o isthmo
e as enseadas do norte e sul; o contorno da fortificação tem de extensão quasi seiscentas
braças : a praça foi mandada levantar por ordem de D. João lir, debaixo da direcção do Conde d’Athouguia D. Luiz d’Athayde, que foi duas vezes vice-rei da Índia, e concluida no tempo
de D. João IV, sob a inspecção de D. Jeronymo d’Athayde, tambem conde d’Athouguia.
Em todas as ruas, rara é a casa baixa em que não se vejam as rendeiras a trabalhar.
Ha alguma coisa que sensibilisa n’aquelle espectaculo simples, sereno, e humilde. Ellas
estão sentadas, juntinhas umas ás outras, entretidas com os seus bilros, e os seu torçal,
sem affastarem os olhos de cima da obra. Uma sociedade empresaria adianta-lhes os aviamentos, e dá-lhes uma bagatela pelo seu trabalho de cada dia. As pobres rendeiras assim
vivem, a trabalhar desde o romper do dia, felizes apenas quando algum viajante tem a
curiosidade de querer um cabeção, ou umas rendas, para trazer em lembrança de Peniche,
e lhes paga mais generosamente. Apesar do seu vestido humilde, e do ar de pobresa que
de si respiram, ha uma curiosa elegancia na finura e distincção das suas mãos ; como as
rendas não podem lavar-se, são obrigadas ellas a conservarem sempre as mãos no mais
escrupuloso aceio.
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Oh! castas innocentes! oh candidas pobresinhas! Como ellas atravessam amarguradamente a vida,preparando enfeites para as felizes do mundo ! Simplices donzellas, que
purificaes pela honestidade o ar de miseria que vos pesa ! os anjos por estarem de luto não
dei.Yam de ser anjos, e as suas lagrimas em vez de murcharem as flores da alma, avivamlhes o brilho, desenvolvem-lhes os perfumes, abrem os corações á doçura, e ás virtudes da
humildade. Atravez das vossas rendas, vê-se o céo! oh! innocentes, trabalhae, trabalhae,
pobresinhas! Nos casamentos, nos bailes, nas festas, esses cabeções, esses punhos, esses
pequeninos lenços para conservar na mão, assístirão por vós ás alegrias da, vaidade ; ainda
bem qué lá não estaes, coitadas, para não empallidecerdes de pena quando ouvisseis chamar rendas de França, ás rendas que vós fizestes !
Oh! ficae ahi, e trabalhae, pobresinhas !
De madrugada, quando os gallos e os barqueiros principiavam a dar signal de si,
montavamos nós a cavallo, e atrávessavamos tranquillamente a praia, e o nevoeiro horrivel que a cobria. O arrieiro praguejava como um damnado, os cavallos tinham um somno
horrivel, e nós um frio de sorvete. Verdade, verdade, havia uma côr phantastica n’aquella
partida: o mar gemia escondido atraz da nevoa, a areia estava toda humida da geada, o
céo não queria deixar ver-se, e nós não tinhamos sequer a força de fallar. Ha occasiões em
que parece á gente que as almas do outro mundo não são chiméras: o nevoeiro parecia
tomar as fórmas conhecidas de seres outr’ora queridos, que não vivem já senão na nossa
memoria. Melancholicos, scismaticos, silenciosos, fomos cavalgando por aquella enorme
praia solitaria.
- Que callada de coelhos! dizia o arrieiro. Vae a chegar-me a tristeza não tarda
nada; se não bebo uma pinga de vinho, sou capaz de ter por ahi al gum desmaio ! Eu cá me
sinto! Quando me dão estas debilidades, ou beber, ou dormir : minha mulher, que Deus
tenha... quando a levar para si, porque pelas boas obras d’ella é natural que ainda lá não
esteja, disse-me sempre, que o somno é como os chupistas, não se chega senão para quem
vive bem; mas commigo a modo que falha a regra, porque quanto peior vivo mais somno
tenho!
Ao chegarmos a valle de Maceira, entramos n’ uma estalagem para almoçar:
- Ovos fritos e vinho, patroa!
A estalajadeira principiou a frigir os ovos, e a estender uma toalha sobre o balcão.
Depois, mediu o vinho, tirou os ovos do lume, puchou-nos um banco, e disse-nos depois
com serenidade:
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- O que os senhores não teem, é pão!
- Não temos pão? Mas, mande-o buscar!
- Não ha pão na terra, senhores; ao meio dia é que se ha de cozer. Só se o senhor
cura tiver ainda algum pedaço, mas a minha confiança não chega a ir lá pedir-lh’o.
O arrieiro vasou o vinho na frigideira, mecheu com a colher, e encheu os copos.
-Bebam os senhores, que isto é muito peitoral!
Á saude d’esta povoação, que, pelos modos, bebe mais do que come! Viva Valle de
Maceira !
- Viva Valle de Maceira!.., exclamámos nós, bebendo, e em seguida montando a
cavallo.
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ACTIVIDADES
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APONTAMENTO SOBRE O CLUBE ECOLÓGICO “O AIRINHO”
Francisco Félix85
Resumo
Este apontamento constitui uma forma de sintetizar e dar a conhecer as actividades
desenvolvidas pelo Clube Ecológico “O Airinho”, praticamente ao longo de uma década.
Pretende-se também mostrar o potencial formativo associado a organizações deste tipo.
1. Introdução
A ideia de escrever sobre o assunto desenvolveu-se na sequência da participação
do autor como orador na IV edição da Convenção «Sou de Peniche»86, no painel Ambiente,
Património Natural e Cultural. Nesse encontro, promovido pela ADEPE – Associação para
o Desenvolvimento de Peniche, a comunicação apresentada intitulou-se Educação para o
Ambiente – O Caso da Escola Secundária de Peniche. Uma vez que à concepção da comunicação esteve subjacente o trabalho desenvolvido pelo Clube Ecológico “O Airinho” (CEA),
entre 1993 e 2002, foi necessário recorrer aos documentos associados ao funcionamento
desse clube ambiental da Escola Secundária de Peniche (ESP). Com o distanciamento que a
passagem do tempo permite, chegou-se à conclusão de que faria todo o sentido deixar um
registo organizado e que, de alguma forma, reflectisse o trabalho desenvolvido nos cerca
de dez anos de actividade do clube, em prol da Educação Ambiental no concelho de Peniche. Uzzel et al. (1998) referem que a Educação Ambiental deve assentar na capacidade de
acção dos alunos. Registe-se também que, no painel referido, um grupo de alunos da ESP
divulgou o trabalho efectuado na Área de Projecto (AP), focando também as questões ambientais87. Aliás, muitos dos projectos realizados em AP acabam por ter uma componente
forte no que concerne à defesa do ambiente e conservação da natureza, nomeadamente
a nível local.
2. Trabalho desenvolvido pelo Clube Ecológico “O Airinho” entre 1993 e 2002
85 Departamento de Matemática e Ciências Experimentais. Professor responsável pelo Clube Ecológico “O
Airinho”, da Escola Secundária de Peniche, entre 1993 e 2002. Mestre em Ciências da Terra e da Vida para o
Ensino pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
86 Peniche, 11 e 12 de Junho de 2010.
87 Projecto A Saúde e os Alimentos (2009/2010).
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Com este artigo, pretende-se dar conta das actividades mais significativas dentro
do campo de acção do CEA e que contribuíram para o desenvolvimento de atitudes enquadradas no designado desenvolvimento sustentável. Segundo Santos (2007), o discurso do
desenvolvimento sustentável é o mais equilibrado e promissor que temos à nossa disposição.
2.1. Génese do clube
Em 1993, surgiu a possibilidade de se concorrer a um projecto promovido pela
Comissão das Comunidades Europeias, projectos-piloto dos jovens88, optando-se, neste
caso, por uma iniciativa no contexto da defesa do ambiente e conservação da natureza. A
proposta acabou por não ser subvencionada, mas o grupo de alunos considerou importante tentar concretizar algumas das actividades programadas. O nome do clube, escolhido
pelos discentes, relaciona-se com uma ave emblemática da conservação da natureza no
concelho de Peniche – o airo, que os locais tratam carinhosamente por airinho (Fig. 1). Nascia assim o CEA, ficando como data de referência o dia 21 de Março de 1993. Note-se que
a organização de acções envolvendo a temática ambiental e, particularmente, a Reserva
Natural das Berlengas terão contribuído para a necessidade de criação de um grupo com
aquelas finalidades.
Figura 1. Logótipo do Clube Ecológico “O Airinho”.
88 Acções prioritárias para a juventude, Acção III - Promoção do espírito de iniciativa e da criatividade dos
jovens.
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2.2. Actividades e projectos
No final do ano lectivo 1992/1993, o CEA arrancou com o jornal de parede Ecologia em Recortes89, utilizando-se para isso uma das vitrinas disponíveis na escola. Tentou-se
chamar a atenção para os grandes temas da Ecologia e, por outro lado, atrair outros jovens
para a organização, nomeadamente alunos do 3.º Ciclo do Ensino Básico. “A Ecologia é o
ramo das ciências da vida que estuda as relações dos organismos vivos entre si e com o seu
ambiente físico” (Melo & Pimenta, 1993, p. 15).
Com o clube minimamente estruturado, o ano lectivo de 1993/1994 foi marcado pelo envolvimento entusiástico dos alunos, o que tornou possível a concretização das
seguintes actividades90: exposição Peniche, contrastes ecológicos91; exposição e colóquio
sobre a Reserva Natural das Berlengas; intercâmbio com o Clube Ambiental MARAMAR92;
À Descoberta da Papôa93; e colaboração com A Voz do Mar.
O projecto Península das 7 praias – um litoral ameaçado, apoiado pelo Instituto
de Inovação Educacional, constituiu um marco importante na vida do CEA. Assim, no ano
lectivo 1994/1995, são disponibilizados recursos que possibilitaram um trabalho de maior
profundidade. Destaque para várias acções neste âmbito: exposição – Áreas Protegidas
de Portugal Continental; participação na organização da mostra O Navio do Último Inca;
visita ao Parque Natural da Serra da Estrela; participação no Inter-escolas 95 e em cursos
práticos na Reserva Natural das Berlengas. A campanha de reciclagem do vidro, com a
participação de todas as escolas do 1.º Ciclo do Ensino Básico do concelho de Peniche, foi
uma operação bem sucedida. Os alunos do CEA visitaram todas as turmas e, através de
uma dramatização, chamaram a atenção para a importância da reciclagem do vidro (Fig.
2). Nesse ano, iniciaram-se também as actividades de férias sob a designação genérica de
Em busca de paisagens desaparecidas94.
89 Note-se que esta actividade acompanhou sempre o crescimento do clube.
90 Actividades integradas no projecto Viva a Escola e PEPT 2000.
91 Apresentada em vários estabelecimentos de ensino do concelho de Peniche.
92 Escola C+S Dr. Rui Grácio (Montelavar).
93 Actividade de Educação Ambiental realizada na zona da Papôa; ao longo dos anos esta actividade foi retomada, sendo melhorada e adaptada às diferentes necessidades educativas.
94 Em 11 de Agosto de 1997, o suplemento Tribo (Correio da Manhã) publicou uma reportagem centrada
numa visita à Reserva Natural das Berlengas.
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Figura 2. Diploma concedido aos alunos participantes na campanha de recolha do vidro.
Durante alguns anos, no final de cada ano lectivo, os alunos eram convidados a
participar em passeios, geralmente a pé ou de bicicleta, com o objectivo de conhecerem
ambientes em progressiva transformação. A actividade terminava em festa, quase sempre
com um acampamento no Pinhal Municipal do Vale Grande. De seguida, referem-se exemplos dessas viagens e/ou temas contemplados: Grutas da Furninha, Bolhos e Casa da Moura, moinhos e fontes da península de Peniche, Reserva Natural das Berlengas, Planalto das
Cesaredas, Baleal, Consolação, Falha de Ferrel, margens da albufeira do rio de S. Domingos
e diversidade biológica na zona intertidal. No Forum de Projectos de Inovação e Investigação, realizado no Centro de Congressos da Feira Internacional de Lisboa, nos dias 6 e 7 de
Setembro de 1995, surgiu a oportunidade de mostrar através de póster e de videograma o
trabalho desenvolvido no âmbito do projecto seleccionado.
Em 1995/1996, as actividades centraram-se no projecto Clube Ecológico “O Airinho” – Um olhar atento sobre a península, desta vez com o apoio do Ministério do Ambiente e Recursos Naturais, através do Instituto de Promoção Ambiental (IPAMB). À medida
que o clube ia crescendo, cimentou-se o trabalho em colaboração com outros estabelecimentos de ensino e também com clubes95 existentes na Escola Secundária de Peniche.
95 Nomeadamente com os clubes de Moral e de Vídeo.
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A exposição O Património Natural em Desenhos, efectuada em estreita articulação com
a Escola EB 2,3 D. Luís de Ataíde, representou uma maneira de se poder apreciar o vasto
património natural do concelho sob a perspectiva dos alunos do 6.º ano de escolaridade.
Em De pequenino se torce o destino, experimentou-se a Educação Ambiental junto das
crianças dos jardins-de-infância. A Canção do Airinho, integrada numa pequena dramatização, sustentou uma série de actividades complementares. Vamos Limpar a Papôa registou
também elevada adesão, num momento em que o Projecto Coastwatch se estava a consolidar em Portugal. A realização do colóquio Ambiente em Peniche, com a participação
do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Peniche, foi uma forma de os alunos poderem
expressar os seus pontos de vista no que respeita à temática em causa e de divulgarem a
visão da população do concelho, recolhida através da realização de inquéritos.
Nos anos 90, e na sequência da criação da Rede Nacional de Áreas Protegidas,
procedeu-se à reclassificação das áreas existentes, para que melhor se adaptassem à nova
legislação, assistindo-se também à criação de Áreas Protegidas de importância estratégica
[Ref. sitográfica 1]. A organização da exposição A Protecção da Natureza na Região Autónoma da Madeira ajudou na interiorização dos conceitos associados a esta problemática e,
simultaneamente, reforçou o papel dos jovens na disseminação deste tipo de ideias. Deuse continuidade à comemoração do Dia Mundial da Floresta e apostou-se na observação
da avifauna. A visita ao Parque Natural da Serra de S. Mamede foi um dos momentos altos
do trabalho efectuado em 1996/1997, especialmente no que respeita à participação no
percurso pedestre das Carreiras, realizado, em parte, sobre uma calçada medieval.
As principais novidades referentes a 1997/1998 residiram no lançamento de uma
campanha de recolha de pilhas usadas na Escola Secundária de Peniche, estrutura embrionária de um trabalho de maior envergadura que seria desenvolvido nos anos seguintes, e
na apresentação de um espectáculo envolvendo fantoches (Fig. 3) e palhaços. As crianças
dos jardins-de-infância adoraram aquela forma lúdica de reflectir sobre o ambiente. Mais
uma vez se recorreu aos professores de Educação Visual e Tecnológica, da EB 2,3 D. Luís
de Ataíde, para orientarem os seus alunos na construção de cenários e restantes adereços.
A turma do 6.º ano envolvida no projecto desenhou situações ambientais humorísticas
referentes ao nosso concelho. A par destas iniciativas, o CEA continuou com algumas das
actividades de referência. Desta vez, deu-se a conhecer as áreas protegidas da Região Autónoma dos Açores e visitou-se o Parque Natural da Serra da Malcata e a região de Idanha.
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Figura 3. Materiais usados no espectáculo de fantoches.
Com Crescer numa Orla Costeira Fantástica96, foi possível desenvolver um conjunto
alargado de actividades, possibilitando também a participação de um elevado número de
crianças e jovens. Salientam-se apenas as acções mais representativas: preparação de Um
conto na floresta97; elaboração de poesias sobre a árvore, com base em frases recolhidas
junto das crianças dos jardins-de-infância; edição de um postal ilustrado, recorrendo-se a
trabalhos feitos por alunos do 2.º Ciclo do Ensino Básico, tendo por tema a importância
das dunas; e campanha de recolha de pilhas usadas nas escolas da cidade de Peniche. Em
relação a esta última actividade, foi possível editar um folheto98 alusivo ao tema, num momento em que o sistema de recolha selectiva de resíduos estava implementado de forma
incipiente e ainda não havia no concelho recolha sistemática de pilhas usadas. Oliveira
(1989) considera que os folhetos são umas das formas mais relevantes de sensibilização
para a problemática do ambiente e da conservação da natureza. Houve ainda oportunidade de se efectuar uma visita subordinada ao tema Entre Douro e Tua99. Na II Mostra de Projectos Escolares de Educação Ambiental, realizada no dia 18 de Junho de 1999, no Centro
Cultural e de Congressos de Aveiro, pôde-se apresentar o trabalho realizado no projecto de
Educação Ambiental referenciado.
96 Projecto de Educação Ambiental 98/99 n.º 40, aprovado pelo IPAMB.
97 Por motivos vários, a dramatização só pôde ser representada no ano lectivo seguinte.
98 Também com o apoio do Projecto Escola Promotora de Saúde.
99 Incluiu passeio até ao Parque Eólico da Fonte da Mesa (Lamego).
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A partir do ano lectivo 1999/2000, começaram-se a notar algumas dificuldades na
integração de novos membros no CEA, a que não terá sido alheio o facto de a escola se
ter tornado numa instituição de vocação centrada no Ensino Secundário. Recorde-se que
muitos alunos se inscreviam no clube no 7.º ano de escolaridade e participavam nas actividades até à saída deste estabelecimento de ensino. Além disso, conseguiam trazer outros
colegas para o clube. Mesmo tendo em conta os considerandos expostos, o CEA continuou
a intervir de acordo com os objectivos subjacentes a uma estrutura deste tipo. Foi neste
ano lectivo que, no Pinhal Municipal do Vale Grande, se representou Um conto na floresta
– adaptação de uma história tradicional, com recurso a adereços produzidos por alunos
da EB 2,3 D. Luís de Ataíde, e ao qual, mais uma vez, assistiram crianças dos jardins-deinfância. Investiu-se também em tarefas relacionadas com a ave representada no logótipo
do CEA e em contactos vários com o responsável, nesse tempo, pela Reserva Natural das
Berlengas, Dr. António Teixeira. Destaque ainda para a comemoração do Dia Mundial da
Floresta, com o auxílio de cartazes colocados estrategicamente nas árvores do pátio. Numa
organização conjunta com o Curso de Educação e Formação – Profissional Inicial 9.º M3, foi
possível estender a campanha de recolha de pilhas usadas praticamente a todas as escolas
do concelho. O desdobrável (Fig. 4) utilizado no ano anterior foi adaptado e reeditado e
construíram-se pilhões para colocar nas escolas.
Figura 4. Capa do desdobrável editado aquando
da realização da campanha de recolhas de pilhas
usadas nas escolas do concelho de Peniche.
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Além dos encontros semanais100, continuou-se a colaboração com várias entidades.
O CEA colaborou com o Agrupamento de Escolas de Peniche ao nível do projecto Está nas
minhas mãos viver as Ciências. No decurso do seminário Ambiente – Conhecê-lo Melhor
para Melhor o Preservar, promovido pelo Centro de Formação de Professores de Peniche,
deu-se a conhecer o envolvimento do CEA na Educação Ambiental. A exposição O Silêncio dos Inocentes foi também uma das mais-valias do plano de actividades referente a
2000/2001, ou seja, chamou-se à atenção dos sacrifícios inúteis a que alguns animais são
sujeitos. Uma Tarde na Papôa permitiu retomar a utilização da Papôa como espaço privilegiado de actividades ecológicas. O jogo-mistério associado ao evento foi sempre do agrado
dos participantes, assim como dos organizadores.
No último ano de funcionamento do clube (2001/2002), foram encetadas algumas
tarefas relevantes no contexto da Educação Ambiental. Assim, o CEA colaborou activamente na organização das Olimpíadas do Ambiente e no Projecto Coastwatch101, neste caso
em colaboração com a Associação Arméria – Movimento Ambientalista de Peniche. Foram também efectuadas várias visitas de estudo, a saber: ETAR de Peniche, Farol do Cabo
Carvoeiro e Paul da Tornada. Um Olhar Atento sobre o Cabo Carvoeiro foi uma exposição
interessante de organizar e que acabou por trazer algumas novidades relativamente a esta
parcela do território português. O debate Biodiversidade na Reserva Natural das Berlengas
(Fig.5), com a presença do Dr. António Teixeira, foi também um dos momentos mais sugestivos do ano. Afinal, aquela área protegida está deveras ligada à divulgação e conservação
do património natural no concelho de Peniche.
100 Registe-se que os encontros vêm desde a formação do clube e que constituíram uma tarefa imprescindível
para o seu funcionamento.
101 Actividades que ainda hoje se realizam na Escola Secundária de Peniche.
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Figura 5. Pormenor de cartaz utilizado na divulgação do debate Biodiversidade na
Reserva Natural das Berlengas.
2.3. Um balanço
Durante praticamente uma década, o CEA envolveu-se e comprometeu-se com
uma variedade de actividades pensadas de acordo com os valores da Educação Ambiental.
Os alunos que passaram pelo clube empenharam-se ao máximo para concretizarem as
actividades idealizadas, superando as expectativas, mesmo as mais optimistas. O trabalho
foi-se fazendo de acordo com o sentir dos participantes e com o contributo de todos.
Participar em projectos promovidos por outras entidades, intervir junto da comunidade educativa local, conviver com alunos e professores de outros clubes e de outras
escolas foram dos aspectos mais relevantes neste contexto.
Para a concretização das acções elencadas, foi fundamental a colaboração e apoio
de diversos agentes. As direcções da escola incentivaram a realização das actividades e
sentiu-se o apoio do corpo docente, assim como dos funcionários. As entidades locais,
quando solicitadas, também nunca negaram o apoio, desde a Câmara Municipal de Peniche até aos professores e responsáveis pelos diferentes estabelecimentos de ensino. O
jornal A Voz do Mar e a rádio local estiveram sempre receptivos para dar conta dos eventos
realizados ou a realizar.
Algumas actividades só foram possíveis em articulação com os clubes de Moral,
de Vídeo e de Rendas, da ESP, orientados respectivamente pelos professores Francisco
Domingos, João Fernandes e Liabela Fernandes. O apoio fornecido sucessivamente pelos
projectos Viva a Escola e Escola Promotora de Saúde foi fundamental para ultrapassar
determinados constrangimentos. Aproveita-se a oportunidade para agradecer a colaboração das professoras Guilhermina Santos e Ana Varela enquanto responsáveis por aqueles
projectos. Sem a colaboração dos professores de Educação Visual e Tecnológica da EB 2,3
D. Luís de Ataíde, não teria sido possível alcançar o sucesso junto das crianças. Assim, o
contributo dos professores Elisa Silva, José Coelho, Lídia Rodrigues e Maria do Rosário Barbosa revestiu-se de extrema importância. Sempre que foi necessário recorrer a cartazes,
desdobráveis e outros elementos estéticos, contou-se com o apoio da professora Aida Félix
e do professor Horácio Guerra. O Dr. António Teixeira, responsável pela Reserva Natural
das Berlengas, mostrou-se sempre disponível para auxiliar o CEA, especialmente nas actividades que se relacionavam com aquela área protegida. Contou-se sempre com o apoio
inequívoco do grupo de Biologia e Geologia.
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Em síntese, este apontamento constitui uma maneira de agradecer a todos os
que, de uma forma ou outra, possibilitaram o crescimento e desenvolvimento do Clube
Ecológico “O Airinho”.
E, para terminar, um obrigado à direcção da revista Paideia por publicar o presente
artigo.
3. Referências bibliográficas e sitográficas
Melo, J. J., & Pimenta, C. (1993). O que é a Ecologia?. Lisboa: Difusão Cultural.
Oliveira, L. F. (1989). Educação Ambiental. Lisboa: Texto Editora.
Santos, F. D. (2007). Que futuro? Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento e Ambiente.
Lisboa: Gradiva.
Uzzel, D., Fontes, P. J., Jensen, B. B., Vognsen, C., Uhrenholdt, G., Gottesdiener, H.,
Davalon, J., & Kofoed, J. (1998). As crianças como agentes da mudança ambiental. Porto:
Campo das Letras.
[1] http://www.igeo.pt/atlas/cap1/cap1e_2.html (acedido em 26 de Fevereiro de
2010).
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Outras Actividades
Encontro 50 Anos
Realizou-se, no dia 10 de Dezembro de 2009, no contexto dos cinquenta anos da
inauguração do actual edifício da Escola Secundária de Peniche, o Encontro 50 Anos, que
contou com as seguintes participações: Dr. Américo Gonçalves (Director da Escola Secundária de Peniche; Doutor António Matoso Martinho (Centro de Estudos Interdisciplinares
do Séc. XX, da Universidade de Coimbra); Mestre José Victor Silva (Assessor do Director
para o Ensino Profissional da Escola Secundária de Peniche); Doutor Luís Capucha (Presidente da Associação Nacional para a Qualificação).
Durante o encontro foi apresentado o estudo Contributos para a História do Ensino
Técnico-profissional em Peniche, da autoria do Doutor Miguel Dias Santos (Escola Secundária de Peniche e Centro de Estudos Interdisciplinares do Séc. XX, da Universidade de
Coimbra).
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ÍNDICE
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Miguel Dias Santos, Apresentação
Américo Gonçalves, Uma vida dedicada ao ensino
Miguel Dias Santos, Entrevista a Mariano calado
Mariano calado, Percurso Biográfico
Ana Margarida Silva Batalha, Mariano Calado
Projecto de escavação arqueológica do sítio do morraçal da ajuda - cidade de peniche
Guilherme Cardoso, Severino Rodrigues, Eurico de Sepúlveda, Inês Alves Ribeiro,
Vestígios de uma olaria romana no morraçal da ajuda – peniche
Raquel Janeirinho, Educação patrimonial: Estratégias museológicas participativas
no concelho de Peniche
Nicolau Borges, A 1ª República e o Hospital Termal das Caldas da Rainha
Orlando Figueiredo, As origens da Ciência
Alice Mariete Inglês Fernandes de Oliveira Carvalho, As práticas de investigação
com alunos de 10.º ano de escolaridade: um contributo para a aprendizagem em Biologia
Laura Diniz, Corpo, afectividade e sexualidade
João Luís Moreira, o romance português contemporâneo – cartografia breve a partir de o anjo ancorado de josé cardoso pires
José Diniz, José Saramago
Jorge Danado, Poesia (O Motim)
Ângela Malheiros, Esse objecto mágico chamado livro! -Camilo Castelo Branco, Júlio César Machado -Júlio César Machado, Scenas da Minha Terra
Francisco Félix, Apontamento sobre o clube ecológico “o airinho”
Outras Actividades
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