MÃOS AO ALTO - WordPress.com
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MÃOS AO ALTO Texto de Paulo Goulart PERSONAGENS MULHER EMPREGADA TIA MARIDO BRANCO PRETO PRIMEIRO ATO Living de uma casa. Hall de entrada. Saídas para os interiores dos quartos. Copa e jardim de inverno. Mulher elegantemente vestida, cruza a cena em direção à copa. Empregada saindo da copa em direção dos quartos. MULHER - Tia Reni está reclamando seu chá. E não esqueça, nada de açúcar. EMPREGADA - Sim senhora... Uma com açúcar... Outra sem açúcar. Uma come carne, outra num come. Gente fina tem o que comê... e vive passando fome. TIA (Vinda do jardim, vai até o bar e se serve de licor) Vai ser hoje, ou nunca. Aos meus nenéns. (Sorve um gole). MULHER (Vinda da copa) - Dina já está trazendo o seu chazinho. Ah... Meu Deus. Nove horas e a Bia não chega. Como é que estou? TIA - Linda. Maravilhosa... (Outro tom) Só que eu acho que você, devia pensar melhor... MULHER (Cortando) - As crianças ligaram do Guarujá, voltam domingo à noite. Você devia ter ido com elas. TIA - Elas estão muito bem, com o lado árabe da família, esfiha, kibe, tabule, tio, tia, praia, areia, calor... Muito obrigado, minha querida... Eu estou otimamente bem, aqui... Depois, você iria ficar sozinha. MULHER - Eu sei muito bem o que estou fazendo, minha querida. Pela primeira vez, eu sei. TIA - Mulher separada do marido, quando dá o primeiro passo... MULHER - Ah!... Meu Deus. Vamos começar tudo de novo? (Indo ao telefone) Eu estou viva, tia. Viva. E não se preocupe, eu sei cuidar de mim. EMPREGADA (Entrando) - Seu chazinho sem açúcar, Dona Reni... TIA - Ah... Meu chazinho. Deixe aí. MULHER - Ocupado. Sempre ocupado. A Bia não larga esse telefone. EMPREGADA - Dona Flora, será que eu podia dá uma saidinha de meia hora? Sabe, minha tia tá doente, e eu queria ir na casa dela... TIA - Pode ir... Eu fico muito bem sozinha. MULHER - Nada disso... Já dispensei os caseiros, que também estão com uma "tia doente". Você vai ficar fazendo companhia pra Reni. Que programão! Mas em compensação eu deixo você ver o Chacrinha na televisão. No lugar do sambão, televisão... No lugar do Amauri, a Reni. Verifique se as portas e janelas estão bem fechadas. Você não me saia daqui. Nada de rua, ouviu? TIA - Nada de rua, ouviu? EMPREGADA - Sim senhora... Mas que a minha tia tá doente, tá. A senhora num acredita. Mas ela tá muito doente, e se acontecê alguma coisa cum ela a senhora é que é culpada. (Sai). MULHER - Está vendo o que você faz? Chantagem... Todos nesta casa, fazem chantagem... Os empregados... meus filhos... meu marido. Todos. Será que eu nasci em lugar errado? Eu só quero aquilo que eu acho que é certo. TIA - O que é certo pra você, pode não ser pro outro. MULHER - Eu sei... Eu sei. Você está assim, só porque eu vou sair com o Reinaldo, não é? Mas eu tenho esse direito. Não estou escondendo nada de ninguém. Eu sou o que sou. Assumo aquilo que faço. TIA - Eu te conheço muito bem, minha filha. Você é uma criatura, que tem tudo pra ser feliz. Mas não é. Sabe por quê? Essa sua teimosia. Quando põe uma coisa na cabeça, você radicaliza. Fica burra. É isso que você é: uma burra. MULHER - Você está a fim de estragar a minha noite, não é? Mas não vai conseguir. Eu não vou deixar. Vou sair, me divertir. Nada neste mundo vai mudar o que eu quero. Hoje será uma noite decisiva para mim. Será que você não entende, que eu posso amar outro homem e que outro homem possa me amar, como eu sou? TIA - Claro que pode. O amor pode tudo. É justamente por isso que você deve pensar no Rafy. MULHER - Não me fale nesse nome, tia. Me dá alergia. Fico toda empolada. TIA - Não sei porque essa frescura de alergia. Vocês viveram quinze anos amaram, tiveram muito bem. Se seus filhos, se ajudaram... E agora, que vocês têm tudo, que poderiam gozar a vida e ser felizes... Estão com alergia mútua. Vocês estão é com alergia de cuca. Põe essa cabeça no lugar. MULHER (Hesita) - Eu já disse que sei o que quero. E não é mais o Rafy. TIA - Você tem mesmo certeza que não quer mais o Rafy? Vocês estão apenas separados. MULHER - Há nove meses e dezoito dias. Quanto tempo perdido. Eu já devia ter feito isso há muito mais tempo. (Indo pro telefone) A Bia já deveria ter chegado. TIA - Bia e Geraldo, Flora e Dr. Reinaldo. Os dois casaizinhos, na Paulicéia Desvairada. Somando todos dá quase duzentos anos. Vai fundir o motor do carro. MULHER (Desligando o telefone) - Não responde... Devem estar chegando. TIA - É... devem estar chegando. Você está nervosa, não é minha filha? Sabe o que é isso? É a dúvida. Vou ou não vou? Dou ou não dou? Você sabe como o Rafy é ciumento. MULHER - Chega de falar no Rafy, tia. Chega. Você sabe tão bem quanto eu, que o nosso relacionamento atingiu o limite máximo que eu podia suportar. Seus números, seus remédios, suas manias. Aquele ciúme doentio, aquele servilismo da mulher árabe. Eu não agüento mais. Me sufoca. TIA - É... amor com sufoco, não dá. MULHER - Você sabe que nós estávamos nos sufocando. Nos separamos por isso. Eu precisava de um tempo... Precisava conhecer outras pessoas. valores... Reinaldo. Reciclar E foi Ele minha tão é bom tão vida, meus conhecer diferente... o Tão simples... Tão humano. TIA (Insinua) - Mas... vocês... Já? MULHER - Ora, tia... pra mim isso não é o fundamental. TIA - Só é... Tem que ser na vertical e na horizontal. Senão, não dá certo. MULHER - Não... Não acho. Pra mim, o horizontal é apenas uma extensão da vertical. TIA - E já houve essa extensão? MULHER - Não... Ainda não. TIA - Está marcado pra hoje, não está? MULHER - Não... Nós vamos sair para jantar, depois, possivelmente, uma boate e nada mais. TIA - Nada mais? MULHER - Nada mais. TIA - E você não acha que esse Dr. Reinaldo tá meio velho, não? Tem mais de sessenta, não tem? Tá mais pra lá do que pra cá. Se você está querendo mesmo fazer novas experiências, escolhe gente mais jovem, minha querida. Troque o seu carro usado por uma máquina nova. MULHER - Você é impossível, Tia Reni. Mas eu te amo muito, sabe? (Toque de campainha da rua) São eles. TIA - É... pode ser. EMPREGADA (Entrando) - Eu atendo... Eu atendo. É pra mim... Deve ser o Amauri. MULHER - Eu estou bem? Deseje-me sorte, Tia Reni. TIA - Boa sorte, doçura... MARIDO (Entrando possesso) - Onde a senhora pensa que vai? MULHER - Rafy? TIA - Meu querido... Que surpresa! MARIDO - Onde a senhora pensa que vai? MULHER - Onde eu quiser. Com licença? MARIDO - Licença, coisa nenhuma. TIA - Meu sobrinho nem me deu um beijo. Vem aqui. Vem. MARIDO - Essa mulher tá ficando louca. Só porque está separada, pensa que tem dezoito anos? Que pode fazer tudo o que dá na cabeça? Num pode, está me ouvindo? Num pode. Eu num deixa. Ai... Meu cabeça. Está estourando de dor de cabeça. TIA - Menina. Não fica parada aí. Traga água pro Dr. Rafy. Você e suas homeopatias... Vai tomar tudo isso? Piorou, hein? MARIDO - Ah... Se você soubesse o que tem sido a minha vida. Eu está mal... muito mal. Doente. Cansada. Está ouvindo, Flora? Eu me matando de trabalho e você aí, se divertindo. Você pensa que eu num sei? Eu sabe tudo. Toda seu vida. Tudo. Eu nem tem mais casa... Nem mulher... Nem filhos... Onde está Rafynha? Onde está Munira? Na Guarujá. E você? Onde você pensa que vai? Pra rua... Passear cum outra. Eu sabe tudo... Mas, no meu cabeça, ninguém põe chifre. Ninguém. Ninguém. MULHER - Eu não estou disposta, a ouvir insultos. Com licença? MARIDO - No meu cabeça ninguém põe chifre, ouviu? Senta... Eu mandou você sentá... Senta. TIA - Venha cá, minha filha... Sente. Se ele mandou sentar, nós sentamos. (Pequena pausa). EMPREGADA - Prontinho, aqui a sua água, Dr. Rafy. MARIDO - Gelada? Água gelada? Você sabe que eu num toma água gelada. Num sabe mais? EMPREGADA - Desculpe... Eu esqueci... Vou buscar outra. MARIDO - Água tem que ser natural, que nem Deus fez... Tudo na vida tem que ser natural. Que nem eu. Eu é como eu é. MULHER - Não... Você não é como era... Você piorou muito. Cada dia que passa, você fica pior. MARIDO - Olha quem fala? Como se ela fosse o mulher perfeita. Ela sabe tudo. Eu nada. Eu só sabe ganhar dinheiro. Eu ganha... Ela gasta. Eu sabe ganhar e ela pensa que sabe gastar. Mas num sabe. Num sabe... está me ouvindo? Eu dá casa, roupa, comida, dinheiro. Tudo eu dá pra você. E o que é que eu recebe em troca? Água gelada, pontapé no bunda e chifre no cabeça. EMPREGADA - Prontinho... Dr. Rafy... Água natural, do jeito que o senhor gosta. (Campainha da porta) É pra mim. (Tropeça e derruba água em cima de Rafy). MARIDO - Menina estabanada... Num vê onde pisa? EMPREGADA - Desculpa... Doutor, desculpa... Eu enxugo. TIA - Venha trocar essa camisa, Rafy. MARIDO - Vai atender essa porta, menina... Eu vai trocar de camisa... água, ni corpo quente, dá resfriado... TIA - Venha comigo, Rafy... Ainda tem roupa sua aqui... E, depois, você não pode se resfriar. MULHER (Para a Empregada que ficou recolhendo o copo) - Avise a Bia, que não posso mais sair. (Campainha da porta). EMPREGADA - Sim, senhora... Mas deve ser o Amauri. MULHER - Vai logo, menina... Mas como é que o Rafy foi me aparecer a esta hora. (Falando pra fora) Então? Quem é? EMPREGADA (Fora) - É pra mim... É o Amauri... Eu já tô entrando, Dona Flora. MULHER - Não é possível, já deveriam estar aqui. (Indo pro telefone) Iam pra casa da Bia, depois viriam pra cá. (Falando baixinho) Alô... Alô... Bia? Saiu? Há quanto tempo? (Rafy voltando com Reni. Flora desliga o telefone rapidamente, mas Rafy vê). MARIDO - Telefonando pra quem? Pra aquela outra perdida? É essa Bia que está botando coisa no seu cabeça. Troca de homem que nem eu troca de camisa. Traz água pra eu tomá homopatia. TIA - Eu vou buscar água pra você, Rafy. MULHER - Tia Reni... TIA - Não me peça para ficar, minha querida... (Sai para a copa. Pausa). MARIDO - Então, meu mulherzinha, estava pensando em sair? Beleza. Toda bonita, perfumada. Quem está esperando você? MULHER - Ninguém... E não adianta ficar com ameaças... Eu não tenho mais medo de você. MARIDO - Flora, num tem mais medo? Flora num tem mais é vergonha... Vergonha... Sabe o que é isso? Ah? Relatório... Relatório. (Mostra envelope) Tudo sobre você... Está tudo aí... Eu botou detetive atrás de você... Uma semana. Num precisou mais que uma semana. Eu sabe tudo. Meu mulher está visitando muito essa médica, Dr. Reinaldo. Está esperando por ele, não é? Como pode você fazer isso comigo? Cala a boca. Num responde... Eu num merece isso que você está fazendo. Eu sempre deu tudo pra você... Tudo. Só num dá uma coisa. Liberdade. Você casou com eu... Tem dois filhos, com eu... Tem que agüentar eu, até o fim. Eu agüenta você, você agüenta eu... Separada ou junto... Tem que agüentar. Nem que eu precisa amarrar você no pé da mesa. Você hoje num sai de casa. MULHER - Não me faça perder o respeito que ainda temos um pelo outro. MARIDO - Respeito?... Teu respeito está aqui... (Tira um revólver 22) Mete uma bala ni você... e outra nesse Dr. Reinaldo. MULHER (Apavorada) - Pelo amor de Deus, Rafy... Eu juro que não houve nada entre nós... Somos apenas bons amigos. MARIDO - Eu num quero que meu mulher tem amigo. Eu está esperando ele... Quando chegar aqui, vai ver com quem vai sair. MULHER - Você está revólver... louco, Não Rafy... faça Guarde uma esse besteira... (Chamando) Tia Reni... MARIDO - Besteira ia fazer você... Eu mostra pra você, pra ele, pra todo o mundo quem é o homem dessa casa... Eu queria que ele entrasse agora aqui... Dava um tiro na cara dele. TIA (Entrando) - Rafy... Rafy... Vira isso pra lá... Trouxe um calmante pra você... homeopatia... mas trocar? (Chamando) Ah... é Não ótimo... é Vamos Oswaldina... Traz, traz um copo de água natural pro Dr. Rafy. MARIDO (Ainda com revólver) - Olha pra ela, Reni... Fica com essa cara de quem sabe tudo... Com esse ar de superioridade... Como se eu que tivesse fazendo coisa errada... Cala a boca... E num fica me olhando assim... que eu dá um tiro ni você. EMPREGADA - Prontinho... Água pro Dr. Rafy... Ai meu Deus. TIA - Não é nada, não, menina... Vamos, Rafy... Tome isso... MARIDO - Não... Eu só toma homopatia. Está no meu paletó... Vai buscar... EMPREGADA - Sim, senhor... Qual delas que é? MARIDO - É o vidro número... 3 o 7 e o 15... Não... Não... deixa eu vai buscar. Você é muito estabanada... Eu vai... E vocês ficam sabendo de uma vez pra sempre... Quem é o dono dessa casa... Quem é o homem aqui... Eu... Eu é o único que pode falar alto aqui. Num esquece. (Rafy sai para o quarto, como machão). MULHER - O que é que eu faço? Bia e Reinaldo, estão chegando... Vai ser o maior escândalo. TIA (Calma) - É... Rafy está indo além do que eu imaginava. MULHER - Vai lá tia, conversa com ele e tire aquele revólver. EMPREGADA - Num vai tirá não... Home da raça dele, quando tem ciúme, é fogo. (Campainha da porta). MULHER - São eles... Oswaldina... Avisa que meu marido está aqui... Que eu não posso sair. EMPREGADA (Saindo) - Sim, senhora. TIA (Intrigada) - Não podem ser eles... MULHER - Só podem ser eles. TIA - É que eu... MULHER - Você o quê? TIA - Nada... Nada... Então, o Rafy já sabe do seu caso com o Dr. Reinaldo? MULHER - Não é um caso. É uma amizade sincera. Minha vontade é ir lá fora, embarcar nesse carro e sumir. TIA - Agora, minha querida, você tem que enfrentar... Talvez seja até bom... Quem sabe esta noite você define, de uma vez por todas a sua vida com o Rafy. MULHER - Por que a Oswaldina está demorando tanto? (Indo até a saída para os quartos) Ainda bem que o Rafy foi ao banheiro. Deus está nesta casa. (Entram dois assaltantes, trazendo a Empregada como escudo. Um é preto, outro branco). PRETO - É um assalto... BRANCO - Assalto... Nada de gritaria. PRETO - Vocês duas pra cá. BRANCO - Vocês duas pra cá. (Tudo muito rápido. Situação de pânico. Empregada lívida, perdeu a voz. Olhos esbugalhados. Não emite som nenhum. Só mais tarde irá gritar). PRETO - Vê se num tem mais ninguém na casa. Eu güento as pontas aqui. BRANCO - Deixa comigo. (Sai em direção dos quartos onde está Rafy. As mulheres se olham, esperando o pior). TIA - Será que eu... PRETO (Ríspido) - Fecha a matraca, coroa. TIA - Mas é que... PRETO - Cala a boca, porra. (Pausa. O Preto acua as mulheres num canto da cena e examina o ambiente com cautela). BRANCO (Fora) - Ah... Ah... Tá aqui no quarto... No quarto do casal, dentro do guarda-roupa. PRETO - Que é que tu achô aí? BRANCO - O barrigudinho... Tá escondido. No guardaroupa. (Entrando) Num disse que ia sê sopa... Só tem as muié... E já descolei o cofre... Tá escondidinho no guarda- roupa... PRETO - Então vamo trabaiá. assaltantes e Começa operação a (Descontração apreensão das assalto) dos vítimas. Se oceis colaborá direitinho, ninguém se machuca. Voceis faz a parte de voceis, que nós faz a nossa. Jogo rápido... Nóis só qué as jóia, o dinheiro e mais umas coisinhas aí. BRANCO - Num te falei que ia sê moleza... Lá no quarto tem cofre e muito mais. PRETO - Nóis já chegamo lá. TIA (Controlando-se) - Posso falar? Vocês podem levar tudo... Mas sejam rápidos... MULHER - Sim... Rápidos... Daqui a pouco vai chegar gente. BRANCO - Num fica nervosa, gostosa. Nóis sabemo o que temo que fazê. PRETO - A chave do carro que tá aí fora... Onde qui tá? EMPREGADA (Só agora consegue gritar) - Aiiii! (Branco avança pra ela). TIA - Não machuque a menina. (A Empregada continua gritando. Branco dá-lhe um tapa. A Empregada emudece) Remédio eficiente o seu: rápido e rasteiro. BRANCO - FEBEM, Dona... Uma dose de FEBEM por dia, ninguém chia. Escreveu, num leu, pau comeu. PRETO - Tá falando muito, Branco. A chave do carro, vovó? Onde tá? BRANCO (Para Flora) - É... Onde tá a chave, gostosa? MULHER - Do Galaxie? Eu não sei... Só tenho a chave do meu... TIA (Interferindo) - Estava comigo. Eu é que estava com ele... Agora a chave... Onde eu deixei a chave? Aqui em casa um usa o carro do outro. Eu não entreguei pra você? MULHER (Não entendendo) - Não, pra mim, não... Eu só guio carro pequeno. TIA - Ah... Sim... Claro... Onde eu deixei essa chave? BRANCO - Na bolsa? TIA - Não. PRETO - No quarto? TIA e MULHER (Assustadas) - Não. PRETO - Tá no quarto. BRANCO (Pegando Flora) - Vamo lá buscá. PRETO - Pega umas malas... Tem muita coisa aqui, pra gente levá. BRANCO - Vem comigo, gostosa. Vamo pegá a chave, as mala. TIA - Não está no quarto. BRANCO - Vem, gostosa... Que ainda temo que abri aquele cofre... Depois, ocê abre as perna, que nóis vamo dá um tempo na cama. PRETO - Nada disso... Oh, meu. Primeiro o serviço. Nada de fodeção. TIA (Alto) - Ah... Lembrei. PRETO - Da chave? TIA - Da gasolina... O Galaxie está sem gasolina. Mas o tanque do Volks está cheio. MULHER - Tem razão... Leva o meu Volks, é melhor... O tanque está cheio e a chave está aqui. É só procurar... Onde está a chave? TIA - Onde está? MULHER - Onde está? Oswaldina, onde eu deixei a chave do carro? EMPREGADA (Arregala os olhos e grita) - Aiiii. TIA - Lá vem FEBEM... Cala a boca... Levanta daí e fala. EMPREGADA (Fio de voz) - Eu não posso levantar. TIA - Onde está essa chave? Vamos procurar na bolsa. MULHER - Não está... Eu mudei de bolsa. (Nervosa) Mas eu acho. Deve estar aqui... Vamos procurar, tia. Daqui a pouco chega gente... E seria muito desagradável nos encontrarem nessa situação. Aliás, já deveriam ter chegado. Vocês precisam acreditar em mim. Daqui a pouco chega gente. PRETO - Para de falá, e vê se encontra logo essa chave. BRANCO (Para Flora) - Vamo adiantá o serviço... Vamo procurá no quarto. Vem comigo, gostosa. (Mulher corre, Branco. Tia para se intervém. esconder Se do estabelece pequena confusão, de modo que o grupo fique no extremo oposto da entrada dos quartos, por onde deverá surgir Rafy, revólver em punho. Não se sabe, se ele vai enfrentar os ladrões Empregada vê Rafy e grita). EMPREGADA - Aiiii. ou fugir. MARIDO (Surpreendido pelo grito, ergue os braços) Num atira... Num atira. Eu me entrega... (Movimentação geral. Preto parte pra cima de Rafy. Toma o revólver dele). PRETO (Agarrando-o pelo paletó) - O que é que tu ia fazê, oh... meu... Ia atirá em nóis ou fugi? MARIDO - Não... Não... Ni uma coisa, ni outra. BRANCO - Onde é que tu tava escondido? MARIDO - No guarda-roupa. Pertinho do cofre. BRANCO - Como é que eu num vi? PRETO - Vistoria de merda, que ocê feiz, hein? Trabalhá, com amador, dá nisso. (Empurra Rafy para o grupo das mulheres). MARIDO (Entre dentes, para a Empregada) - Que tinha que gritá, você? TIA - Você esteve ótimo, Rafy. Parecia John Wayne. MARIDO (Para a Empregada) - Burra... Num tinha que gritá. Burra. Burra. TIA - Calma, Rafy... Calma. BRANCO - Chega de bochicho. (Grita) Cala a boca. PRETO - Vê se num grita ocê também! BRANCO - Ocê qué que a gente faiz o serviço a seco. Dá nisso. Eu num sei trabaiá sem baseado. PRETO - Fecha o bico. (Pequena pausa. Momento de tensão) Bão... Agora que chegô o dono da casa, vai sê mais faci. Ocê é o dono da casa, num é? MARIDO - É... Eu é o dono da casa. PRETO - O macho? O home da casa? MARIDO - É... o macho. O homem da casa. PRETO - Então o meu considerado aí vai colaborá cum a gente, num vai? Onde tá a chave do carro? MARIDO - Está aqui... Eu estava ouvindo tudo... quando pediram a chave: eu veio entregar ela. PRETO - E o berro aqui, era o quê? Chavero? MARIDO - Não... Não... Isso é assunto nosso. Entre eu e ela. PRETO - Ocêis já tão que nem nóis? Na base do berro? BRANCO - Deixa a gostosa comigo. Eu senti, que ela tava a perigo. Que nem nóis na FEBEM. Na base da mão. Tá em jejum, num é gostosa? Deixa comigo que eu vô apagá essa brasa. MARIDO (Negociando e defendendo a Mulher. Para Preto) - Você é o chefe, num é? Eu faz acordo. Pega tudo o que quiser... Ah? Tá aqui, meu carteira, meu relógio, meu anel... Tudo o que é meu, pode levá. Pronto, tá tudo aí. Pode levar. Eu num tem mais nada. PRETO - Mais nada? MARIDO - Nada... Hoje é sábado... Num adianta fazê cheque. Banco está fechada. Vão tê que levar o que está aqui... Leva tudo... Eu só pédi uma coisa. (Outro tom) Num toca no meu mulher. PRETO - Nóis num tâmo atraiz de muié. Querêmo é grana. Ocêis pensa que nóis, bandido, quando vê muié, qué logo comê!... Num é nada disso, não... Tem uns bunda mole, que apronta mesmo. Tudo na base da droga (intencional para Branco). E nóis que leva a fama, né Branco? Vê se manera, tá bem?... E ocê, turquinho... num vem com grupo... Isso aí é só o aperitivo... O filé, tá lá em cima, no cofre. Vamo lá abrir ele, pegá as jóia e tudo o que tivé valô. E num tente me engrupi, que aí ocê se fode... Ocê e a sua muié, vão comigo... Ocê Branco, fica aqui com a coroa e com a mina e manera, viu? Vê se num apronta. (Saem os três em direção dos quartos). TIA (Que esteve o tempo todo observando Branco) Vocês são bem distintos, não? BRANCO - Tá me gozando, Dona? TIA - Não estou, não... Eu quis dizer que vocês são distintos, diferentes. Ele é mais velho... Você é moço... Ele é preto... Você é branco... Você é mais... fogoso... Deve ser a juventude, não? BRANCO - Eu peguei FEBEM... Ele, detenção. TIA (Batendo papo) - É? E como se conheceram? BRANCO - Malandro sempre saca malandro. TIA - Vocês trabalham juntos há muito tempo? (Branco não responde. Passa a mão na boca, louco para dar uma fumadinha) Posso tomar um licorzinho? Você quer? BRANCO - Tô quereno é outra coisa. TIA - Fique à vontade. Eu vou de licorzinho. (Preto, Marido e Mulher entram, carregando duas malas vazias). PRETO - Vai enchendo essas mala. Põe essas duas pra trabaiá. Nada de moleza. Agora, vamo abri aquele cofre. Vamo... Vamo... (Voltam para os quartos). BRANCO - Bão... Vamo escolhê o que nóis vai levá... Pega uma mala aí... Ocê pega a outra. EMPREGADA - Eu não posso me levantá. BRANCO - Dexa de onda e levanta daí. EMPREGADA - Mas eu não posso. BRANCO - Ocê vai vê, se pode ou num pode. (Avança em direção dela, que rapidamente se levanta e corre de maneira cômica). TIA - Posso propor uma coisa? BRANCO - O que é? TIA - Antes de encher as malas, o meu considerado, não gostaria de queimar o seu fuminho? Enquanto isso, ela vai à cozinha trocar a calcinha, e eu vou tomar o meu licorzinho. BRANCO - Oh... Coroa... Essa é boa... Vai... Vai pra cozinha e tira a calcinha. TIA - Vai menina... Vai... (Empregada sai lentamente, como se fosse fugir. Branco fica na porta com visão para os dois lados, de olho na Empregada. Tia toma o seu licor. Branco acende o seu cigarro). BRANCO - Não... Não... Num vai se escondê... Fica aí, que eu quero te vê. EMPREGADA (Fora) - Mas eu só tiro a calcinha, se eu ficá sozinha. BRANCO - Então, vai ficá molhadinha. TIA - Eu vou aí... te dar uma mãozinha. BRANCO - Fica aí... Coroa... que eu tô numa boa. Como é que é? Vai tirá ou num vai? Agora tô loco pra vê! TIA - Pra quê? BRANCO - Tô afim de comê. EMPREGADA (Fora) - Ai... Ai... Ai... Ai. TIA (Entrando no jogo, como se fora repentista) - Você vai se enrascá. BRANCO (Aceitando o desafio) - Quem sai na chuva, é pra se molhá. TIA - Você vai se encharcá. BRANCO - Tanto se me dá. O que eu quero é gozá. EMPREGADA (Fora) - Ai... Ai... Ai... Ai. TIA - Ganhou... Um a zero pra você... Sabe que você é um poeta, rapaz? Um repentista puro. BRANCO - Manda outra. TIA (Pensando ardilosamente) - Adivinhação... O que é?... O que é? Tem perna pra corrê... Todo mundo pode vê... É só se escafedê? BRANCO (Sério) - Escafedê? Deixa eu vê. (Sorri) Preciso de um fuminho. Pra pensá mais um pouquinho. TIA (Insinuando para que a Empregada fuja) - Vai devagarinho... pezinho por pezinho... Vai achar o caminho... e tudo vai dar certinho. EMPREGADA (Entrando) - O que é escafedê? TIA (Nervosa) - É correr... Escapar... Se mandar... Entendeu? BRANCO - Qual é? Num vem cum essas palavra difíci, não. Qué jogá, vamo jogá limpo. TIA - Realmente, escafeder é difícil... Muito difícil. BRANCO - Tem que sê coisa fáci... assim na base do: o pavão, tem o coringão, no coração. TIA (Sorri) - Claro... É por isso que vive de ilusão. BRANCO - Nóis é o cão: se num ganha no pé, nóis ganha na mão. TIA - É só armar confusão que, pro povão, tá tudo bão. BRANCO - Deixa de sê fulera... Senão, vai marcá bobera. TIA - Eu não sou rameira... mas te passo uma rasteira. BRANCO - A bala do meu revólver não tem açúcar. TIA - Quem chupar... Vai se engasgar. BRANCO - O cano da minha espingarda não tem torneira. TIA - Então vê se não faz besteira. BRANCO - Oh... Coroa... Ocê é das minhas... Dá um tapa aí. TIA (Dando um tapa nas costas dele) - Dou... BRANCO - Não... Não é aí... é aqui. Dá um tapinha, ocê vai vê qui barato. TIA - Eu sempre tive vontade de experimentar isso. Não nestas circunstâncias. Em todo o caso, vamos lá. BRANCO - Puxa mais forte... Assim... Olha... TIA - Pode deixar que eu chego lá. BRANCO - Você também, mina. Você também tem que entrá. (Encosta o revólver nela) Vai fumá... e sem gritá. (Empregada fuma e ri. Começa a ser criado um clima de festa de embalo) E a calcinha? Já tirô a calcinha? EMPREGADA - Ainda não... BRANCO - Mas vai tirá... Dá mais uma fumadinha... e depois tira a calcinha. Vamo vê... Um... dois... três... Tirou. EMPREGADA - Até que tá legal... BRANCO - Ocê ainda num viu nada, mina... Tia... Põe uma música aí, que eu vou dançá com a Maria sem calça. EMPREGADA - Sem calça e descalça... BRANCO - Vamo botá pra quebrá. EMPREGADA - Uma música da pesada... (A Empregada coloca música no toca-fitas. Os dois dançam. A Tia está lúcida, sem perder sua dignidade, até interessada na nova experiência. Serve-se de mais licor. Branco assumindo sua liderança. Preto, vindo dos quartos acompanhado do Marido e da Mulher, traz uma caixa de jóias. O Marido, outra caixa daquelas de cofre, onde são guardados papéis, dinheiro ou documentos. A Mulher traz uma estola de pele). PRETO (Desligando o som, louco de raiva) - Tu tá pirado, diabo? Qué enchê a cavera de fumo, enche. Mas não aqui. Panaca. Burro. Qué estragá tudo? Qué estragá tudo? Qué? BRANCO - Num grita comigo, que eu num sô moleque. Num grita comigo. EMPREGADA - Ah... Vamo dançá... Agora eu quero dançá. PRETO - Chega de bagunça... E ocê, Branco... fica na tua... que eu fico na minha... Mas quem dá as órde aqui sô eu. Tá entendido? MULHER (Pegando copo com água) - O que é que ele fez com você, Oswaldina? Tome um pouco de água. Tome. EMPREGADA - Eu num quero água... Agora eu tô quereno é ele... (Referindo-se ao Branco) A água é do seu marido... Eu num vô com a cara dele... Eu trouxe água e o senhor num tomou... Então vai tomar agora. (Joga o copo de água no rosto dele). MARIDO - Oh... Sua... (Preto dá um toco no pescoço de Oswaldina, que cai no sofá). PRETO - Todo mundo quieto, porra. TIA - Na FEBEM é tapa. Na detenção, pescoção. PRETO - Se alguém apronta mais alguma, eu prendo no banheiro. MULHER - Será que ela está bem? PRETO - Só desmaiada, daqui a cinco minuto acorda e nem sabe o que aconteceu. TIA - Então... Vamos trabalhar. O que nós vamos levar? Quadros? Pratarias? MULHER - Tia... O que a senhora está fazendo? TIA - Deixa de ser boba, menina. Não está vendo que agora estou enturmada? MARIDO - Tia Reni, eu acho que... TIA - Rafy... Coitadinho, está todo molhadinho. Você não pode se molhar... Vou buscar uma toalha pra você. (Sai em direção dos quartos. Branco vai atrás). PRETO - Essa tua tia é meio matusquela, hein? MARIDO - Ela está doente... Num diz coisa com coisa... Está ficando esclerosada. PRETO - Abre essa caixa aí. MARIDO - Eu já disse que num tem nada... É só papel... PRETO - Abre. MARIDO (Abre a caixa, tomando cuidado de esconder o fundo dela) - Olha aí. É só papel... Documentos. Coisa que só tem valor pra mim. PRETO (Desconfiado) - Ah... Abre a outra... A de jóia. MARIDO - Já vai... Já vai... Pronto. Está vendo? Eu ajuda o senhor a escolher... Eu sabe o que é bom... Eu mostra... Beleza de colar... Compro no México... Vale uma fortuna... Pode levar. Esse coisa rara... Esse outro aqui, porcaria. Num vale nada. Este obra de arte. Esse aqui, bijuteria... Este também... Tudo misturado. Eu separa o que tem de bom. (Tudo é feito rapidamente, como se fora um vendedor, e procura esconder as jóias de mais valor. Há uma considerável quantidade de jóias. Algumas, ele joga em baixo do sofá. Outras esconde no bolso, etc.) Este beleza. Este droga. Este droga... este também. PRETO - Para. Para de falá. Tu tá quereno levá uma bolacha, num tá? Bota tudo aí dentro outra veiz... Esse também... O outro que ocê escondeu... Tudo aí dentro. Tá quereno me fazê de besta? Num apronta, que eu faço, ocê dançá, um tango com uma perna só. Tu tá pensando que eu sô o quê? TIA (Entrando acompanhada embalada, na base de da Branco. Mais esclerosada) - Toalha pra você, Rafy. Bem... Agora vamos escolher o que vamos levar. Deixa comigo. Eu sei as coisas de valor, nesta casa. Isso fica... Ah, esse vaso é um horror. PRETO (Se referindo a Flora) - Num fica aí parada, vai ajudá ela. TIA - O que você acha disto aqui? Eu detesto... Você gosta? Se gostar, pode levar... Tudo é de vocês... Tudo. Que sensação gostosa, a gente poder escolher o que quiser. É ótimo. Estou adorando. Levamos bebidas também? PRETO - Alguma coisa é bom. TIA - Mas podemos consumir um pouco agora, não podemos... Esse pra você... Esse pra mim... Ah... Estou tão contente com a visita de vocês. Nem imaginam como estou feliz. Sentem aqui, vamos conversar. Quero saber a vida de vocês, Tim-Tim por TimTim. BRANCO - Essa tia é um barato. Senta aí. PRETO - Num tô aqui pra batê papo. Ocêis dois aí, acaba de enchê essas mala. (Marido e Mulher acabando de encher as malas. A caixa de jóias e a de documentos ficam de posse do Preto. Tudo simultâneo ao diálogo da Tia e Branco). TIA - E você, meu querido? Me conta a sua vida. Eu quero saber tudo. Como vai sua carreira? BRANCO - Num posso me queixá. TIA - Está contente com o seu trabalho? BRANCO - No tempo da FEBEM era dureza... agora tô numa boa... A cana ainda num me enquadrô. TIA - E a família? Como vai a sua família? BRANCO - Família? TIA - É... Seu pai? Sua mãe? BRANCO - Meu pai eu nunca vi. TIA - Por quê? BRANCO - Minha mãe era puta. TIA - Puta? BRANCO - Eu sou filho de puta. TIA - Ah... Sei... Sei... O que foi feito dela? BRANCO - Morreu, quando eu tinha deiz ano. Mas eu ainda me lembro dela... Era bonita... Faturava uma nota. Até que a gente vivia bem. Mas, aí, um outro filho da puta que explorava ela começô a me enchê o saco. Era cacete, todo o dia. TIA - E a sua mãe? BRANCO - Sabe como é. Mãe é mãe... e puta é puta. É uma dureza... TIA - Deve ser... Mas aí, o que aconteceu... BRANCO - O cara continuava explorando ela e me baixando o cacete... Minha mãe nem sabia, porque mãe-puta num tem tempo de vê as sacanage que os outro faz pra nóis, que é filho da puta. Até que um dia... peguei ele de jeito e dei umas furada nele. Foi um salseiro... Baixou a cana... e num deu outra. FEBEM. Foi lá que eu aprendi o que é a vida. PRETO - Cala esse bico... Tá falando demais. TIA - Ih... Esse teu sócio é tão sério. BRANCO - Num é meu sócio, não... Qué dizê... Esse é o primeiro serviço que fazemo junto. PRETO - Fecha a matraca... Senão vai levá porrada, seu burro. TIA - Eu fico fascinada com essas estórias. Aí você foi pra FEBEM? Pode falar, que eu te dou cobertura... Somos dois, contra um. BRANCO (Contra-gosto) - É. TIA - E sua mãe morreu, enquanto você estava lá? BRANCO - Foi o que me disseram, Dona. EMPREGADA (Acordando no sofá, sem saber o que houve) - Ai... Meu pescoço... ai... ai... Onde estou? O que eu tenho que fazê? O que aconteceu? (Olhando) Ah... Ah... Ah... Assalto... Assalto... Estamos sendo assaltados... (Ameaça gritar). BRANCO (Avançando pra ela) - Aprendeu, hein? PRETO - Vamo dá no pé... Pega a Tereza e amarra eles. BRANCO - Ela também? (Referindo-se a Reni). PRETO - Claro... Eles tem de ficá amarrado, mordaçado, e nóis se manda no carro dele. MARIDO - Eu pode pedir um favor? Deixa meu caixa de documentos... Ah? Tudo o que tem aí só tem valor pra eu... Deixa meu caixa de documentos? Ah? PRETO - Eu devia levá, procê deixá de sê muquirana. Mas procê num dizê que nóis num é legal... Toma... Fica cum ela. (No que atira a caixa, ela se abre e, do fundo, caem diversas notas verdes; dólares, dinheiro estrangeiro, letras de câmbio, enfim, papéis de valores, a melhor parte do assalto) Turquinho, filho da puta... MARIDO (Rápido) - O que é isso? O que é isso, Flora? Onde você arranjou esse dinheiro? Você tinha tudo isso? Eu num sabia? Eu num sabia. PRETO - Tu é muito vivo... Tá quereno salvá a pele... Mas pra cima de mim num cola. MARIDO - Eu juro... Eu juro que num sabia que tinha todo esse dinheiro aí dentro. Fala pra eles, Flora. Fala... MULHER (Que não entendeu o jogo) - Eu... Eu... PRETO - Teu marido tá quereno te entrutá. MARIDO (Se esforçando para que ela entenda) - Fala pra eles... Que foi outro que te deu esse dinheiro... Eu nem sabia... Eu é marido traído. Eu não sabia. PRETO - Tu é mesmo filho da puta, hein, turquinho? BRANCO (Sádico) - Vamo fazê uma roda de fogo cum ele? PRETO - É... Ele tá mereceno uma roda de fogo. MARIDO - Que vai fazer cum eu? Num faz nada cum eu... Eu já deu tudo o que tinha... Tudo... As jóias eu compro pra ela... dinheiro... anel... E leva isso também... Pode levar... Num é meu... é dela... (Representando o marido traído, quase chora) Leva tudo... Eu foi enganado. Eu sabia... sabia que tinha outro na seu vida... Outro que te dava dinheiro... Outro que ocupava meu lugar... Sabe o que você é? Adúltera... Isso que você é. TIA (Que percebe tudo) - Você está exagerando, Rafy. EMPREGADA - Num tá não, Dona Reni... Tá mostrando que é. MULHER - Isso mesmo... Está mostrando quem é... Chega de mentiras... Eu não quero mais saber de você... Do seu dinheiro... de nada... Vocês, me ajudaram a tomar a decisão... Eu não quero mais saber de você, Rafy. MARIDO - Num liga, pra ela... Ela está se aproveitando da situação. Há um ano que a gente está separado... BRANCO - Eu num disse que a gostosa tava a perigo? MULHER - Sempre estive. Meu casamento foi um erro... Um erro de quinze anos. MARIDO - Num diz bestera, mulher. MULHER - Quer saber de uma coisa? Pega seu dinheiro e enfia... enfia... PRETO - No cu. MULHER - Pega a tua vida e enfia... PRETO - No cu. MULHER - Enfia tudo dentro de você. Porque você sozinho se basta... Eu não quero mais saber de você. PRETO - Tô doido pra botá ele na roda de fogo. MARIDO - Espera... Espera... Todo mundo contra eu? Ninguém vê meu lado? O que eu lutou? O que eu fez? E tudo sozinho, com meu suor, com meu cabeça... E tudo pra quem?... Pra quem? Pra você... Pra nossos filhos. PRETO - E procê... né, turquinho?... Mais procê. EMPREGADA - Mais pra ele mesmo. Trabalho aqui há dois ano. Eu posso dizê da diferença. Toca ele na roda de fogo. BRANCO - Ocê sabe o que é roda de fogo? EMPREGADA - Deve ser gozado, né? PRETO - É gozado... mas é fogo. Aí pro meio, turquinho... Agora ocê vai dançá. BRANCO - Vamo lá, turquinho... Vamo vê se ocê é bom de pé. TIA - Vocês não vão machucá-lo, não é? MULHER - Não façam nada, por favor. MARIDO - Está pensando que eu tem medo. Eu nem tem medo... Mas pra fazer roda de fogo com eu, que vai ganhar com isso? Vamos conversar, é conversando que a gente se entende... Vamo fazê roda de papo, ah? Melhor... Faz roda de jogo... Isso, roda de jogo... O jogo que quiser, eu topo... Eu paga dois por um. PRETO - Num tem mais nada pra pagá... Ou tem? Se ocê tivé escondendo mais alguma coisa de nóis, vai sê pió. MARIDO - Eu faz nota promissória... E no cartera, ainda tem cartão SOS. Vai lá e saca. PRETO - Aquele que enfia e sai dinheiro? É uma boa... Então, ocê vai com nóis. Nóis só vai te sortá, depois que gastá o cartão. Jogá pra quê? MARIDO - Eu vai jogá meu roda... Se eu ganhar, num entra no roda de fogo... Combinado? PRETO - Tá legal... Branco, prepara a mesa. MARIDO - Que vai ser? Pôquer? Pif-paf? Escopa? 21? Sete e meio? PRETO - Queda de braço. MARIDO - O quê? PRETO - Isso mesmo... Queda de braço. MARIDO - Mas isso num é jogo. PRETO - Quem disse que num é? Vai sê queda de braço. Senta aí... Fui campeão na Detenção. Vamo vê se ocê é bom de braço, que nem é de prosa. (Todos cercam os dois. Para surpresa geral, Rafy é bom de braço). BRANCO - Num é que o turquinho é bom de braço? PRETO - Tá suano, turquinho?... Nada de truque... Jogo limpo. TIA - Não deixa ele virar o teu pulso, Rafy... Força... MULHER - Segura, Rafy... Segura... PRETO (Falando lento, entre dentes) - Depois que ocê perdê, vai subi nessa mesa... Vai tirá a roupa... peça por peça... Vai ficá só de cueca. Pra cada peça, nóis tira uma bala do revólver... Vai ficá só uma bala... Aí ocê vai dançá... Pezinho pra cá... pezinho pra lá... Vai cantá e dançá. Agora, força, Força. (Preto derruba Rafy. Expectativa geral). BRANCO - Põe ele na roda... MULHER - Não. Não façam isso... PRETO - Vamo atirá duas veiz... Uma pra Deus... outra pro diabo... Se ocê escapá... Tá perdoado. MULHER - Pelo amor de Deus... Não façam isso. Vocês já têm tudo o que querem. Vão embora. PRETO - O que se perde, na queda de braço, tem que sê pago. Ele perdeu, tem que pagá. MULHER - Isso não faz sentido. Matar uma pessoa só porque perdeu uma queda de braço? PRETO - Quem falô em matá? BRANCO - Nóis atira é no pé. MULHER - Isso é uma crueldade... Eu é que sou culpada... Eu não devia ter dito o que disse. Não façam isso com ele. TIA - Eu estou vendo que é um código de honra... Mas a gente podia dar um jeitinho, não podia? PRETO - Não... A senhora disse tudo. É uma questão de honra... começa tirando... Sobe... a subir Vamo... na Primeira Sobe. mesa) bala... O E (Rafy vamo paletó... Segunda... a camisa... Tercera... a calça... Quarta... o sapato... Quinta... As meia... Só ficô a cueca... Tá aqui... Agora roda... Roda... BRANCO - Roda... Roda... e canta... Canta, Turquinho... (Rafy começa a cantar uma música ritmada... Vai cantando... O tambor do revólver girando). PRETO - Agora... ocê vai dançá... Dança... Turquinho... Dança... BRANCO - Roda... Roda... (Preto fecha o tambor do revólver. Aponta para os pés de Rafy, que pula de pé em pé como se estivesse desviando de um tiro. Música cantada por ele funde com música de sonoplastia, aumentando cada vez mais e Rafy dançando alucinadamente, à medida que o pano vai se fechando para o final do Primeiro Ato). FIM DO PRIMEIRO ATO SEGUNDO ATO Ao abrir o pano, mesmo clima de onde terminou. Música de sonoplastia funde com som de campainha da rua... Vai baixando o som... Campainha cada vez mais forte. Para tudo. Batidas na porta de entrada. BIA (Voz fora, distante) - Tia Reni... É a Bia... Está me ouvindo? (Pausa, tensão) Tia Reni... Abre a porta... O que está acontecendo aí? Abre a porta... (Rapidamente encosta o Preto cano do Sou segura eu... a Bia. Tia e revólver em sua cabeça). PRETO (Baixo) - Despache ela... Diz que tá tudo bem e despache ela. TIA - Oh... Bia... Você chegou em má hora... Já estou de camisola. BIA - Está tudo bem? TIA - Está... Está... BIA - A Oswaldina está aí com você? TIA - Está... Está. BIA - Você não precisa de nada? TIA - Nada... Nada... BIA - Então eu já vou indo... Diz pra Flora que o Reinaldo ficou muito triste com o desencontro. E que estima as melhoras do Rafynho. TIA - Digo... Digo... BIA - Já que você não quer mesmo abrir essa porta, eu vou embora... Durma bem... Tchau. Bye. Bye. TIA - Tchau... Tchau. Bye, bye. (Movimento coletivo). PRETO - Todo mundo quieto. TIA - Eu fiz a minha parte direitinho, não fiz? PRETO - Pega tudo aí, que nóis vai se mandá. BRANCO - E num vamo acabá o que nóis começô? PRETO - Pintô gente no pedaço. Vamo se mandá. MULHER - Graça a Deus. PRETO - Mas vamo levá ele de refém... MARIDO - Pra que levá eu? BRANCO - Procê continuá a dançá. PRETO - Amarra as duas na cadeira... Bunda cum bunda... TIA (Dando uma de esclerosada) - Deixa que eu amarro... Eu estou integrada na turma e tenho que fazer alguma coisa, não tenho? PRETO (Ríspido) - Amarra as duas. A coroa cum ela. TIA - Eu me recuso... BRANCO - Vem tia... Eu num queria te amarrá... Mas num tem outro jeito. PRETO - Ocê vai fechando as mala. (Referindo-se à Empregada. Rafy começa a vestir as calças) Tu vai é assim... MARIDO - Assim como? PRETO - De cuecas. Nóis ainda temo que acertá nossas conta. MARIDO - Sem camisa eu num vai. Eu num pode andar sem camisa... PRETO - Num reclama... Num me enche o saco... que tu vai é em pelo... MARIDO - Pelada? Nunca... Eu num pode... Num pode tomá vento... Fica resfriada... Mamãe criou eu assim... Com camisa de baixo... Num pode tomá vento. PRETO - Se ocê num pará de falá... Nóis te leva pro Embu. BRANCO - Te mete chumbo no... MARIDO - Eu vai... Eu vai... TIA - Não vai... Eu é que vou em seu lugar. MARIDO - Tá ficando louca, Reni? Eu é que vai. TIA (Meio esclerosada) - Eu já disse que vou... Não discuta comigo... Eu sou a matriarca da família... Sou eu quem decide... Quero viver a aventura desta noite... Envolta nas sombras... Vivendo os perigos, numa corrida louca... Perseguida pelos desígnios da vida ou da morte... Eu nasci assim... Vou morrer assim. MARIDO - Eu é que vai... Lugar de mulher é no casa... Isso é assunto de homem. Num discute mais... Acabou. Com camisa ou sem camisa. Eu é que vai. MULHER - Deixa ao menos ele vestir uma camisa? PRETO - Você é que vai, turquinho. Eu quero distância dessa louca... Veste logo essa camisa e vem comigo. Vamo dá uma geral na casa. Ainda tem umas coisinha aí pra levá... Ocê também vem, pra ajudá carregá... Amarra as duas... Branco. (Saem para os quartos, Preto, Rafy e a Empregada. Pausa). BRANCO - Coroa... Ocê é um barato... Tava quereno... í cum a gente?... É uma barra. TIA (Virando o jogo para o Branco. Não se sabe se ela diz a verdade ou não) - Nasci, para viver perigosamente. BRANCO - Por mim, eu te levava. TIA - Como é o seu nome? BRANCO (Hesitante) - José. TIA - José? José... Bonito nome... você é muito parecido com uma pessoa que eu amei... Muito. Os mesmos olhos... O mesmo cabelo. A mesma boca. BRANCO - Ele era legal? TIA - Muito... Muito legal. Era jovem e forte, assim como você. Achava que a vida devia ser vivida intensamente, a cada dia, a cada hora, a cada minuto. BRANCO - Que nem eu. TIA - Detestava dormir... Era tanta energia... Tanta vontade de viver que só dormia, quando não agüentava mais... BRANCO - Que nem eu... TIA - Tempos maravilhosos, em que estivemos juntos... Uma só cabeça... Um só corpo... Um só vida. MULHER (Enternecida, emocionada) - Eu nunca soube desse seu amor... TIA - Ele foi meu... Só meu. Meu grande amor. BRANCO - Num existe amor. TIA - Tudo é amor. As pessoas, os objetos, a alegria, a dor... Tudo é amor. (Olha fixo para Branco. com Branco, muito fascinado, amor) Me dá olhando-a um beijo. (Branco, lentamente, se aproxima e a beija como filho, depois como homem, como gente - beijo na boca) Isso é amor... (Pausa. Clima bonito. Branco se aninha no colo de Reni. Telefone toca. Branco pula. Não sabe o que fazer. Telefone continua tocando. Preto volta com Rafy e a Empregada. Ela vem carregada de roupas, chapéu na cabeça). PRETO - Dexa tocá... TIA - Deve ser a Bia... (Preto deixa tocar). PRETO - Dexa... tocá... TIA - Eu estou dizendo que deve ser a Bia... Será que ela desconfiou de alguma coisa?... Posso atender? PRETO - Atende... Faz voz de sono... E diz que tá tudo em orde. TIA (Atendendo) - Alô... Alô... É Reni. Ah... É você? PRETO - Quem é? TIA - Munira... Filhinha deles... Tudo bem, Munira... O que você quer? MULHER - Munira... Aconteceu alguma coisa? TIA - Não... Tudo bem... Quer falar com você... MARIDO - Ela pode falar? PRETO - Fala rápido. MULHER (Nervosa) - Oh... Meu Deus... Eu não posso. MARIDO - Fica calma... Eu pode falar ni lugar dela? PRETO - Acaba cum isso logo de uma veiz... MARIDO (No telefone) - Alô... filhinha... Papai... é papai, veio conversar um pouquinho com mamãe... Está tudo em paz... Está... Está... Eu num está brigando cum mamãe... Por que mamãe num fala? Ela vai falar. Vai dizer alô pra você... (Para Preto) Só vai dizer alô. MULHER (Controlando-se) - Alô, filhinha... Está tudo bem... Papai e mamãe estão conversando calmamente, sem problemas. O que? Sim... Sim... Tudo vai terminar bem... se Deus quiser. Volta amanhã, sim... Outro pra você. (Desliga. Começa a chorar). MARIDO - Num chora... Tudo vai acabar bem, eu sei. PRETO - Vamo pará cum isso... Branco, amarra as muié e taca esparadrapo nas boca dela. BRANCO (Olha para a tia, sem saber o que fazer) - Eu vô amarrá as duas primeiro. MARIDO - Olha... Num dá pra nóis fazer composição? Eu promete, não chama a polícia... Eu num chama. Nós fica aqui quietinho, deixa vocês ir embora. Vocês leva tudo e deixa nós. PRETO - Tu tá pensando que eu sô otário? É só virá as costa, qui ocê sai gritando qui nem louco. MARIDO - Eu jura que num grita. PRETO - Ocê vai cum nóis... Ainda tem o cartão pra tirá dinheiro... Quero vê como isso funciona. Cartão SOS. Vamo vê se ele vem socorrê nóis. MARIDO - Está bem... Está bem. Eu vai. Mas num faz nada com Mulher, está bem? Eu está vendo que o senhor é um ladrão direito. Que faz tudo organizado. Eu gosta de gente organizado. PRETO - E nóis é mesmo. Tudo organizado. Tem muito amador aí, que bagunça o coreto. Eu não. Eu sou um profissional. (Branco terminou de colar os esparadrapos. Fica olhando para a Tia) Já acabou? Agora ela. BRANCO - Ela não. PRETO - Como não? Tem que amarrá e mordaçá. BRANCO - Ela não... Ela não. PRETO - Deixa de sê besta. Tô mandando, amarra, tem que amarrá. BRANCO - Ninguém amarra ela. PRETO - Tô dando uma órde, tem que obedecê. Tá querendo levá umas porrada, moleque? BRANCO - Eu num sô moleque. PRETO - Amarra. BRANCO - Num amarro. (Telefone toca). PRETO - Tô dizendo que nóis temo que se mandá e ocê fica aí enchendo saco. TIA - Atendo ou não atendo? PRETO - Deixa tocá... TIA - Agora deve ser a Bia. PRETO - Deixa tocá. MARIDO - Eu acha melhor atender... PRETO - Deixa tocá... TIA - Olha, eu atendo e despisto a Bia... Ela é muito burra. Se eu não atender ela vai desconfiar de alguma coisa. Ela é burra, mas não é tapada... Fofoqueira como ninguém... Depois... PRETO - Atende logo de uma veiz... E despacha ela. TIA - Alô... Alô... Bia... Não, minha querida... Não me acordou, não... Você sabe que eu não durmo cedo. Estava vendo televisão. Um filme chatíssimo... sobre guerra... PRETO - Despacha logo, saco. TIA - O quê? Como se chama? É... Are been roubed (Estamos Sendo Assaltados)... Entendeu? Desculpe, mas tenho que desligar. Meu dia hoje foi muito cansativo... Ah, o autor é: Help... Help. Boa noite. (Desliga). PRETO - Que é que tava falando em língua estrangêra? TIA - O nome de um livro, que ela está querendo comprar: Are been roubed. PRETO - Se ocê tá aprontando alguma, vai levá porrada. BRANCO - Se encostá a mão nela... Vai tê comigo. PRETO - Ocê num viu que ela dedou nóis? Vai levá porrada. BRANCO - Num encosta nela. PRETO - Qual é garotão? Ficou amarrado na coroa? Resolveu dá uma de bãozinho? BRANCO - Ela é minha amiga... Me tratou como gente. PRETO - E eu vô te tratá do jeito que ocê tá acostumado: na porrada. BRANCO - Vem... Vem... Que eu te apago. (Preto avança. Branco aponta o revólver pra ele, e segura Rafy como escudo. Preto faz o mesmo com Reni. Frases soltas). TIA - Cuidado. MARIDO - Me solta. PRETO - Eu te pego. BRANCO - Eu te apago, criolo. MULHER - Não atirem... Pelo amor de Deus... Não atirem... EMPREGADA - Ai... Ai... Ai... Ai. MARIDO - Espera... Espera... Eu dá a solução... Eu tem solução... Quer ouvir? Ah? Eu amarra Tia Reni... está bem? Eu amarra Tia Reni... Você amarra eu... Pronto. Ninguém briga. Ninguém sai ferido... Está bom? Daqui a pouco chega gente. Toca telefone. Ah?... Quando sócio começa a brigar o melhor é separar. E num precisa levá eu cum vocês... Só vai atrapalhar... Então? Pode amarrar ela? PRETO - Pode... Amarra logo de uma veiz... E vamo se mandá. TIA - Por favor, meu rapaz... Eu quero ficar amarrada... Eu lhe peço. É melhor para todos nós. BRANCO - Tá bom... Se a senhora pede. Tá bom. MARIDO - E eu? Eu também fica amarrada, num fica? Assim vocês têm tempo de fugir e tudo acaba bem. PRETO - Vamo amarrá eles e dá no pé. (Em duas cadeiras separadas são amarrados Reni e Rafy. Preto termina primeiro e coloca esparadrapo na boca de Reni) Lá fora nóis acerta nossa diferença... Vô encostá o carro aqui perto... Vamo carregá o que pudé. (Branco também coloca esparadrapo na boca de Rafy. Volta-se para a Tia e tira o seu esparadrapo). BRANCO - Eu quero dizê... que nunca vô esquecê de você. TIA - Cuide-se, meu rapaz. Quem sabe um dia, você encontre o seu caminho. BRANCO - Antes de i... eu tinha uma coisa pra pedi. TIA (Suave e fazendo o jogo das palavras) - Se eu puder atender... Com muito prazer. BRANCO (Com um sorriso, quase garoto) - Eu tô cum desejo... de te dá mais um beijo. TIA - Com muita alegria... te dou um beijo de tia. BRANCO - Adeus, tia... Até um dia. (Dá um beijo suave, que vai ficando mais forte) Adeus, tia... Até um dia. (Entra Preto. Ação rápida. Carregam tudo o que podem. Desligam telefone, enfim tomam todas as providências nestes casos). PRETO (Ameaçador) - Se um de ocêis dedá nóis... Um dia... eu volto aqui. Volto aqui e acabo cum um... Acabo cum um. (Percebe que a Tia está sem esparadrapo. Coloca de novo nela. Ao sair apaga a luz. Silêncio. Surge Branco devagar e tira o esparadrapo da boca da Tia. Sorri e sai correndo. Gemidos coletivos). TIA - Calma... Calma... Deus queira que a Bia tenha entendido o meu recado. (Música. Passagem de tempo. Quase um balé das cadeiras e seus ocupantes. Grunhidos. Gemidos. Deve-se sentir o passar das horas. Luz voltando com o amanhecer. Rafy está se libertando de suas amarras). MARIDO (Exausto) - Consegui... Pronto... Eu consegui... Eu livra você... Espera... Espera... (Vai desamarrando Tia e Flora. Empregada não. Estão exaustos. Tensos. Cada um, de acordo com seu temperamento, vai botando pra fora o que sente). TIA - Graças a Deus. (Mulher levanta, vai falar, olha tudo e desmaia). MARIDO - Flora... Que tem você? (A Empregada fica gemendo, amarrada, enquanto Rafy leva Flora para o sofá) Num fica assim Flora... O pior já passou... Que tem ela, Reni? Está desmaiada? TIA - Não deve ser nada... Traga um pouco de água... (A Empregada geme). MARIDO - Já vai... Eu vai buscar água... Já solta você... TIA (Chamando) - Flora... Flora... Acorde... (A Empregada geme). MARIDO (Voltando) - Pronto... Dá água pra ela... Eu já solta você... Pronto... Pronto... Já vai ficar livre... EMPREGADA (Quando se vê livre, ataca Rafy) - Por que o senhor fez isso comigo? Eu também sou gente... Desgraçado... Eu te mato... Desgraçado. Desgraçado... Eu sou gente... Num sou animal. TIA (Que estava tentando dar água para Flora, levanta e joga água no rosto da Empregada) Toma... Um pouco de água fria, acalma. (A Empregada com o susto, para de gritar, olha para um, para outro e vai se sentando, choramingando baixinho). MARIDO - Que noite... Que noite... Como é que ela está? Ainda desmaiada? Flora... Acorda... É eu... Rafy. TIA - Vou buscar um pouco de amônia... E uma boa dose de calmante pra cada um. (Sai em direção dos quartos). MARIDO - Flora... Florinha... Num fica assim... Fala cum eu... Fala. E você aí para de chorar. (A Empregada chora mais alto) Florinha... fala cum eu... Eu mandou parar de chorar... (A Empregada chora altíssimo) Quer chorar... Vai chorar lá na cozinha... E vê se chora mais baixo. (A Empregada sai, chorando cada vez mais alto, em direção da cozinha) Ai... Deus... Eu está tonta... e sem calça. Eu ainda está sem calça... Onde está meu calça? Onde está? (Encontra, começa a vestir) Roda de fogo... Nunca mais vai esquecer isso... Roda de fogo... TIA - Dá pra ela cheirar... MARIDO - Me dá aqui... TIA - Oswaldina? Onde está a Oswaldina? MARIDO - Foi chorar lá na cozinha... TIA (Indo em direção da cozinha e saindo) - Oswaldina, menina... Me calmantes... ajude Está a uma procurar bagunça os nos quartos, não acho nada. MARIDO - Cheira, Florinha... Cheira... Num acorda... Ai Deus. Ela num acorda? Precisa chamar um médico... Levaram Num carro... tem Ai, telefone... Deus. (Flora acordando). MULHER - O que aconteceu? MARIDO - Acordou... Graças a Deus, acordou. MULHER (Em sobressalto) - Onde estão eles? Polícia... Chama a Polícia! Eles não estão mais aqui? Então? Tia Reni? Eles levaram a Tia Reni? MARIDO - Não. Não... Tia Reni está aqui... Fica calma... Fica calma. MULHER - Chama a Polícia, Rafy. Chama a Polícia... Eu estou com medo. Não me deixe sozinha. Eu não posso ficar sozinha. MARIDO - Eu está aqui, Flora... Fica calma... Se controla. MULHER - Eu quero me controlar e não consigo... Está vendo? Meu queixo não para de tremer... Está vendo? (Riso descontrolado). MARIDO - Eu também está assim... meio descontrolada... MULHER - Me abrace, Rafy... Me abrace forte. MARIDO - Sim... Sim... Forte... Bem forte. TIA (Entrando) - Água com açúcar... Só tem água com açúcar... Eles levaram tudo... até meus remédios... Pra você... Pra você e pra mim... Tim-Tim. (Bebem, se olham, olham para a sala). MARIDO - Que noite... MULHER - Uma noite é uma vida. MARIDO - Que noite. MULHER - Que noite. TIA - Que noite... maravilhosa... não acharam? MARIDO - Eu num se importa com o que perdeu esta noite. TIA - Quem perdeu? Vocês ganharam... Não acham que ganharam? MULHER - Não sei... Eu ainda não sei. MARIDO - Eu nem vai chamar Polícia... Polícia, pra quê? TIA - Isso mesmo... Polícia pra quê? Esse é um assunto doméstico-familiar. Não mete Polícia nisso... Que tal um licorzinho, hein? MARIDO -Eu precisa falar pra vocês que depois do que nós passou esta noite, eu é outro homem. MULHER - Eu também, nunca mais serei a mesma. TIA - Tim-Tim. Tim-Tim. MULHER - Eu ainda estou muito nervosa... Quero me acalmar e não consigo. Tudo está tão confuso. É como se eles ainda estivessem por aqui. Eu não quero mais ficar nesta casa, Rafy... TIA - Isso passa... Calma... Toma mais um pouquinho de água com açúcar. MULHER - Eu ainda estou vendo aqueles dois ali. MARIDO - Onde? Onde? MULHER - Ali... Aqui... Em toda a parte... A casa está impregnada... Eu sinto até o cheiro deles. Que sensação horrível... Eu pensei que fosse morrer. MARIDO - Eu também... Quando eles estavam aqui... é como se eu estava sendo julgado... e condenado pra morrer. TIA - Que exagero... MARIDO -Meu vida passou inteira no meu cabeça... Aí, eu vi que a vida num vale nada. Que tudo pode acabar de uma hora pra outra. Que entra ladrão, no seu casa... E muda tudo... O que é seu... Num é mais seu... Nem casa, nem mulher, nada... Nada... É como um revolução. MULHER - Revolução? MARIDO - Isto mesmo... Revolução. Onde ninguém tem mais direito... O direito é de quem tem arma... Quem manda é quem tem revólver. É quem tem poder. Ganha quem é mais forte... Quem tem a arma... TIA - Nem sempre, Rafy. Nem sempre. MULHER - Eu preciso fazer alguma coisa, senão eu vou explodir... TIA - Quebra esse copo. MULHER (Atirando o copo no chão) - Que raiva... O culpado de tudo é você. MARIDO - Eu? MULHER - Você sim... Ditador... Fascista... Quem sempre usou revólver nesta casa, foi você... Você nunca passou de um ditador doméstico. De um machista... De um torturador. TIA - Agora você também está exagerando. MARIDO - Deixa ela falar... Que mais? Pode falar... Eu deixa. MULHER - Ditador... Unha (Enfraquecendo) de fome... Machista... Egoísta... Jogador... Comedor de alho... kibe... tabule... Eu detesto comida árabe. Como é que fui me casar com você? Seu... Seu... Barrigudo... Peludo... Macaco... Isso que você é... Um macaco. MARIDO - Acabou? Está mais calma? MULHER - Ditador. TIA - Flora, você não acha que, agora, a gente pode ir consertando o que se estragou? MARIDO - Não... Não é consertando... É mudando... Mudando. Depois desta noite eu mudou... Não está vendo que eu mudou? MULHER - Será? MARIDO - E você também tem que mudar. MULHER - Eu? MARIDO - Você, sim... Num percebe que houve um revolução na casa? Que a partir de hoje, de agora, eu vai renunciar? Eu num quer mais ser ditador de nada... Isso que eu aprendeu esta noite... TIA - Bravos... Rafy. MARIDO - Agora, nós vai viver numa democracia... De hoje em diante, nesta casa, cada um vai fazer o que acha que deve fazer. A democracia começa é dentro da casa da gente. Isso eu aprendeu... A democracia começa é na casa. TIA - Viva a democracia familiar. MARIDO - Eu está falando coisa séria... Eu, nesta casa, era quem? O poder. O ditador. Você era quem? A oposição... Nóis dois briga... Briga... E você põe pano quente... e num resolve nada. Quinze anos, nóis viveu assim... Agora chega. Acabou. (A Empregada entrando com malinha na mão). EMPREGADA - Eu vim avisá que tô indo embora. TIA - Pra onde? EMPREGADA - Pra casa da minha tia. TIA - A esta hora? Deixa de bobagem, menina... Leva as suas coisas de volta... Amanhã você está mais calma e nós conversamos. EMPREGADA - Não senhora... Eu quero saí. TIA - Bobagem, menina... Logo agora, que vamos começar a viver numa democracia? MARIDO - Isso mesmo, Oswaldina... Eu pédi. Fica, está bem? Flora, pega a mala dela... Ela vai ficar... MULHER - Se ela quiser ficar. MARIDO - Como se ela quiser? Eu estou mandando ela ficar... Ela fica. MULHER - Se ela quiser ficar... MARIDO - Ah... Sim. Se ela quiser ficar... Eu ainda não estou acostumado... Eu pédi. Ah? Vai lá dentro, prepara um cafezinho, que nóis vai começar vida nova. MULHER - Vida nova. EMPREGADA - É verdade mesmo, Dona Reni? TIA - Não está vendo?... Fica... Vamos fazer mais uma experiência. EMPREGADA - O senhor também vai ficar? MARIDO - Eu?... Não sei... não depende de mim... EMPREGADA - Fica, Dona Flora? MULHER - Não sei, não depende só de mim. TIA - Que tal se fizéssemos uma experiência... gradual? Anistia também deve começar pela casa, vocês não acham? MARIDO - Eu acha. TIA - Então? EMPREGADA - Se é assim, eu fico. TIA - Rafy? MARIDO - Eu fica. TIA - Flora? MULHER - Se ele quiser ficar... TIA - Unanimidade de votos... Ficamos todos. Agora vai preparar um cafezinho, pra todos nós... Vai... Vai... (Empregada sai). MARIDO - Agora que eu estou pensando melhor. Vocês num acha que eu devia chamar a Polícia? MULHER - Polícia? TIA - Não, amanhã a gente fala sobre isso... (Espanto) Bia! MULHER - O que tem a Bia? TIA - Será que ela não entendeu o meu recado? Eu fui bem clara, não? Are been roubed... Estamos sendo assaltados... Help... Help... Ela é meio burrinha, não? MULHER - Vai ver ela interpretou de outra forma. MARIDO (Ciuminho) - Pensou que era recado do Dr. Reinaldo? TIA - Olha a anistia, Rafy. MARIDO - Desculpa... Eu ainda num está acostumada... MULHER - Rafy... Eu estou com a minha cabeça estourando... Procura nas suas homeopatias e vê se tem alguma coisa pra dor de cabeça. MARIDO - Tem... Tem... Tem homeopatia que é ótima pra enxaqueca... você... (Sai). Eu vai buscar pra MULHER - Posso te perguntar uma coisa? TIA - O que? MULHER - Por que beijou aquele rapaz? TIA - Por quê? Por amor. MULHER - Eu não consigo entender... TIA - Nem pode. MULHER - Ele é parecido com outra pessoa que você amou? TIA - Todos os jovens são parecidos. MULHER - Mas ele existiu, não existiu? TIA - Aqui dentro, existiu. (Sirene de Polícia. Vozerio. Batidas na porta). VOZ (Fora) - É a Polícia... A casa está cercada... Saia de mãos pra cima... VOZ DE BIA - A Polícia está aqui... VOZ 2 - É a Polícia... Se resisti nóis atira... MARIDO (Vindo, apavorado) - Num atira... Num atira... (Todos apavorados. Clima de assalto. Todos falando ao mesmo tempo). TODOS - Não atirem. Não atirem... (Em meio à confusão, a casa é assaltada, nos mesmos moldes do assalto dos ladrões com os mesmos atores, que, representaram os papéis de Branco e Preto, agora vestidos de policiais). FIM