a cerimônia do adeus

Transcrição

a cerimônia do adeus
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A
CERIMÔNIA
DO
ADEUS
Texto de Mauro Rasi
PERSONAGENS
ASPÁZIA
JULIANO
FRANCISCO
BRUNILDE
LOURENÇO
SARTRE
SIMONE
PRIMEIRO ATO
CENÁRIO
Uma casa tradicional, antiga, do interior. A cor penetra, e
mesmo assim, criteriosamente, apenas no quarto de
Juliano, seu universo. O restante da casa permanece
restrito a mais opressiva neutralidade (em tons cinza, preto,
sépia, azulado.), como nos velhos e bons filmes preto-ebranco.
CENA UM
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A luz vai, lentamente, iluminando Aspázia, sentada feito
estátua barroca, na poltrona da sala. Juliano, em tempo
presente, ou seja, na época atual, passeia pelo proscênio.
Observa a mãe na poltrona, vai-se afastando e desaparece.
Aspázia adormeceu enquanto espera – ou estaria morta?
Um livro encapado está caído no seu colo. De repente abre
os olhos. Levanta-se (isso tudo é feito pausadamente.) e vai
até a janela. Afasta, ligeiramente, a cortina, e espia a rua, em
frente (na verdade um fundo indistinto.), onde dois
adolescentes – Juliano e Francisco – conversam, voltando
da escola.
JULIANO – Quantas patronesses já têm? (Puxa um livro de
capa vermelha com as bordas douradas, de debaixo do
braço de Francisco.) Deixa eu ler o ‘Livro de Ouro’.
FRANCISCO – Vai conferir de novo?
JULIANO (Abrindo-o) – Mas, você não fez como eu falei?
Tinha que ter aberto com a primeira-dama: com a dona Solange
Franceschini. (Devolvendo.) Agora vai ter que colar uma página
extra, para ela assinar na frente das outras.
FRANCISCO – Cola você. Pensa que eu sou seu empregado?
JULIANO (Pegando, novamente, o livro, e conferindo os
nomes das Patronesses) – Mafalda Santinho, Judith Berriel,
Carmem Martinez, Yole Sarraceni, Lilica Monteiro Grunwald,
Titá Homem Arouca, Verbena Pieroni... A Dona Verbena não
pagou?
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FRANCISCO – Eu fui cobrar. Mas quando eu cheguei aquele
gorila do filho dela, amigo do seu primo, tava lá: ficou me
sacaneando...
JULIANO (Procurando dentro do livro) – Cadê o resto do
dinheiro das Patronesses?
FRANCISCO – Tá tudo aí dentro. Tá cego?
JULIANO (Conferindo) – Você tirou dinheiro daqui!
FRANCISCO – Tirei a minha parte. Quer ficar com tudo?
JULIANO – Eu tenho que ficar com mais, porque sou o autor.
FRANCISCO – Que autor o quê? Copiou tudo!
JULIANO (Indignado) – Que copiei o quê? O que é que eu
copiei?
FRANCISCO – Copiou: que eu tenho o livro... Você tirou do...
JULIANO (Grita) – Nunca li este livro!
FRANCISCO – Taí, ó: se entregou! Eu nem disse o nome!
Como é que você diz que não leu?
JULIANO – Acabou tudo! Não vai ter mais peça! Não vai ter
mais peça!
FRANCISCO – Não vai, mesmo! O Rotary falou que não pode
ter peça com palavrão, lá! Aquela cena no final, em que eu grito
que a civilização está podre, vai ter que sair...
JULIANO (Citando Brecht, como se fosse ele próprio) –
“Triste país este, onde homens como eu são considerados
perigosos...”
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FRANCISCO – E a Baby não vai poder fazer strip-tease. A mãe
dela disse que se ela fizer, não entra mais em casa.
JULIANO (Arrasado) – Vou ter que cortar o strip-tease?
(Suspira, tristemente.) Não faz mal: ponho ela descalça, de
gola rolê e boina, em cima do piano. (Inflexível.) Mas ela vai ter
que beber maconha!
FRANCISCO (Em dúvida) – Maconha se bebe ou se fuma?
JULIANO (Hesitando) – É melhor ela fazer os dois!
FRANCISCO (Lamentando) – Nas freiras a gente não pode
fazer; no Automóvel Clube também não; no Tênis...
JULIANO (Concluindo, tristemente) – Essa cidade está
ficando pequena... (Com raiva.) A gente tem que sair desse
lugarejo atrasado, dessa província sem perspectiva...
OS DOIS (Como se fosse texto da peça deles) – “Onde não
só os cavalos usam antolhos!” (Gritam, à cidade.) “Onde não só
os cavalos usam antolhos!” (E caem na risada. Aspázia afastase da janela, apreensiva. Lá fora, os dois se despedem,
cerimoniosamente, feito dois velhos combatentes calejados
por lutas. Francisco se afasta, ainda gritando ‘onde não só
os cavalos usam antolhos! ’... Juliano entra na sala, com ar
de enfado. Aspázia precipita-se sobre ele, feito uma leoa,
tentando fazê-lo abrir a boca.).
ASPÁZIA – Abre a boca! Abre a boca!
JULIANO – O que é isso? Me larga!
ASPÁZIA – Bebeu: tô sentindo daqui!
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JULIANO – Foi gemada que eu tomei, com vinho do Porto.
ASPÁZIA – Cínico! Seu primo contou que você bebe na escola!
(Agarrando a bolsa dele e remexendo.) Solta! Deixe eu ver o
que tem aí dentro!
JULIANO – Não tem nada aí. Tem só caderno, lápis...
ASPÁZIA (Encontrando uma garrafa) – Conhaque? Então é
verdade? Bebendo conhaque na escola, ordinário, cafajeste! E
eu não queria acreditar...
JULIANO – Olha aí: tá deixando cair tudo...
ASPÁZIA – O que é isso aqui? (Folheando.) Cheio de
vagabunda nua!
JULIANO (Tomando de volta) – Meu ‘Cahier du Cinema’.
ASPÁZIA – Fazendo seu pai gastar dinheiro: se não quer
estudar, vai trabalhar, vagabundo! O que é isso aqui: ‘O
Estrangeiro’? Isso é coisa da escola?
JULIANO – Foi a professora de francês que pediu, para fazer
um trabalho sobre Camus...
ASPÁZIA – Vá atrás dessa gente, desses escritores: belas
idéias tão te enfiando na cabeça! O piano tá lá: fechado! Nunca
mais tocou nele. A freira me telefonou, dizendo que você nem
aparece mais no Conservatório! Olha só pros seus dedos: tudo
manchado de nicotina! E não era você que dizia que ia ser
concertista, que ia ser um Rubinstein?
JULIANO – Desisti: agora quer ter a bondade de me devolver o
Camus?
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ASPÁZIA – Eu vou queimar isso!
JULIANO – Como já queimou os meus Ginsberg, os meus
Faulkner, os meus Gide, os meus...
ASPÁZIA – Faço isso pro seu bem. Essa literatura está te
deixando doente. Olha pro seu estado: amarelo, abatido, pálido,
magro, cheio de olheiras de tanto ficar trancado naquele maldito
quarto. Parece um velho!
JULIANO – Estou destinado à literatura! Quero ser ao mesmo
tempo Spinoza e Stendhal.
ASPÁZIA – Vai namorar menino! Vai se divertir! Vai sair com as
moças! Larga essa vagabunda francesa...
JULIANO – Que ‘vagabunda francesa’?
ASPÁZIA – Essa tal de Simone de Buvuá. (Faz careta de
desdém.) Ah, mas eu vou entrar lá dentro, abrir bem aquela
janela, arejar bem aquele túmulo, pegar aquelas porcarias todas
e fazer uma fogueira!
JULIANO (Erguendo, ameaçadoramente, a garrafa contra
ela) – Pára! No meu quarto, ninguém entra!
ASPÁZIA – Ergue a mão pra sua mãe: ergue, indecente – que
Deus te dá um castigo que você vai ver só!
JULIANO – Olha que eu queimo os seus livrinhos de
sacanagem, hein? (Aspázia olha-o, surpresa. Ele confirma.)
De sacanagem, sim, que a senhora lê e a tia Brunilde tem. E
não adianta encapar eles e esconder não, que eu achei ‘O
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Garanhão’ e ‘Os Insaciáveis’ de Harold Robbins! Vocês já leram
a obra completa dele!
ASPÁZIA – Tá querendo dar um show, tá? Dá: dá logo um show
para a vizinhança toda ouvir e saber o demônio que você é.
JULIANO – Sua obscurantista! Sua Hitler!
ASPÁZIA – Ofende! Ofende que eu te dou um tapa na cara e
ainda deixo a marca da minha mão no seu rosto, demônio!
JULIANO (Puxando) – Larga o meu livro, sua puta! (Aspázia
dá-lhe uma bofetada no rosto.) Rasgou! Rasgou! Agora eu
vou rasgar o seu! (Corre para apanhar o livro escondido.).
ASPÁZIA – Juliano: é da sua tia! Larga! Lar... (Dá-lhe várias
bofetadas no rosto.).
JULIANO (Chorando) – É por isso que eu não gosto de voltar
pra casa. Essa casa é um inferno! Um inferno! (Corre para o
quarto.).
ASPÁZIA – Juliano! Juliano!... (Ele entra no quarto, que está
totalmente escuro, fecha a porta, ofegando. Volta-se e
acende a luz.).
CENA DOIS
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Os livros estão espalhados por toda parte. Há uma porta tipo francesa, de vidro - que se abre para um pequeno
terraço. Essa porta, em verdade, abre-se para seu mundo
interior, sua trilha do tempo, sua realidade, que tanto pode
ser S. Petersburgo, Schoenbrun ou Veneza ao entardecer.
Diante da porta estão uma cadeira de balanço e uma
‘bergère’, de frente uma para a outra – embora, quando a
cena se inicie, elas não estejam, exatamente, nesta posição,
e sim, completamente tortas. Simone de Beauvoir está
sentada na ‘bergère’, lendo e fazendo anotações, enquanto
Jean-Paul Sartre ocupa a cadeira de balanço, totalmente
absorvido na leitura. Através da porta entreaberta, vêem-se
os telhados de Paris.
JULIANO (Atirando-se, esgotado, sobre a cama) – Madame,
Monsieur: já cheguei! (Eles continuam seus afazeres, sem
olhar para ele. Juliano repara algo.) Ei, Monsieur, Madame...
as cadeiras estão tortas! (Salta da cama e vai até eles. Ajeitalhes as cadeiras, colocando-as uma de frente para a outra.
Observa que o cachimbo de Sartre está caindo.) O cachimbo
no chão, novamente! O senhor ainda me põe fogo no quarto!
(Acende-o, colocando-o na boca de Jean-Paul. Fareja algo.)
Vocês não tomaram banho? (Os dois continuam totalmente
indiferentes a ele.) Mas vocês têm que tomar. Por isso que
quando vocês tomam, fica aquela gordura negra em volta do
ralo. Eu sou discípulo de vocês, mas com isso eu não concordo.
(Verifica, desgostoso.) As toalhas nem foram tocadas! Como
é: não vão dizer nada? (Intrigado.) Que caras são essas? (Tem
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um pressentimento e corre até o armário. Sartre e Simone
olham-se, e, a seguir, olham para ele, preocupados. Juliano
abre o armário: os cabides estão vazios. Abre as gavetas:
vazias. Cada vez mais desconfiado, resolve olhar debaixo
da cama: há uma mala. Abre-a: está cheia de livros. Olha
para eles, furioso.) Onde pensam que vão?
SIMONE – Estamos preocupados com a Argélia!
SARTRE – ‘Les Temps Modernes’ foi apreendida!
SIMONE – A extrema direita colocou uma multidão no Champs
Elysées... Ouça! (Abre a porta de vidro.).
MULTIDÃO (Fora) – Fuzilem Sartre! Fuzilem Sartre! (Ela torna
a fechar.).
JULIANO (Repondo os livros da mala para as gavetas,
indiferente) – A Argélia que se dane!
SARTRE – Não pode nos manter confinados neste quarto.
Temos de participar de um comício contra a tortura!
SIMONE (Suavemente) – É preciso que você se acostume com
as nossas viagens...
SARTRE – Ele já sabe sobre Cuba?
JULIANO – Cuba? O que é que tem Cuba?
SIMONE – Sartre terá que ir à Havana!
JULIANO – Havana?...
SIMONE – Não quer ir com ele?
JULIANO – Não posso, Madame: tenho aula!
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SARTRE – Você me surpreende Juliano! Em toda a parte
encontramos uma juventude arrebatada, cuja primeira pergunta
é sempre: e Cuba?
JULIANO – Não me interessa: daqui vocês não saem!
SARTRE (Irritado) – A questão cubana diz respeito a toda a
América Latina. No momento mesmo em que escrevo isso...
JULIANO – O senhor não está escrevendo, Monsieur!
SARTRE (Continua, inflamado) – As piores ameaças pairam
sobre a ilha. A propaganda imperialista insiste em que a
revolução cubana seja comunista. Mas nada justifica essa
acusação.
JULIANO – E eu acredito no senhor? Daqui a pouco muda de
idéia e...
SARTRE (Insistindo) – Não se deve confundir essa
transformação social com aquela que levou Lênin ao poder; nem
mesmo com a que forjou a China de Mao Tsé-Tung!
JULIANO (Resmungando) – O senhor é muito volúvel!
Antigamente não morria de amores pelo Stalin? Era Stalin pra
cá, Stalin pra lá. Depois que o Kruschev denunciou os crimes
dele, o pobrezinho passou a ser um ‘fantasma’!
SARTRE – Os homens mudam: a História também! (Veste o
sobretudo, auxiliado por Simone.).
JULIANO – Estão querendo me embromar? (À Simone.) Por
que ele não vai sozinho?
SIMONE – Somos inseparáveis. Você sabe disso!
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JULIANO – Tem coragem de me deixar aqui, sozinho, com essa
psicótica? (Grita.) Que será da minha educação? Sem a
senhora, essa casa é um navio-fantasma à deriva! (Tentando
convencê-la.) Temos tanto em comum, Madame! Desde a
primeira linha senti uma afinidade tão grande: pensei que nunca
nos separaríamos. Nunca senti isso antes, com nenhuma outra
mulher... (Corrige, meio sem graça.) Quero dizer: autora!
SIMONE (Meio constrangida) – Também o tempo que
passamos juntos foi muito importante para nós. Adoramos
Araraquara! Não foi Jean-Paul? (Dá o braço para Sartre, para
sair.).
SARTRE – Falarei às massas brasileiras, quando regressar.
JULIANO (Barrando-lhes o caminho) – O senhor não poderá
ir, Monsieur: porque eu te emprestei. (Pausa grave. Sartre e
Simone trocam olhares aflitos.).
SARTRE – Você, o quê?...
JULIANO (Meio na defensiva) – Não pude negar. Ela não me
emprestou o Saint-Exupéry?
SIMONE (Indignada) – Você o trocou pelo “Pequeno Príncipe”?
SARTRE – “Ela” quem, Juliano? Você me emprestou para
quem? Não me diga que...
JULIANO (Confirmando) – Pra “Baby”, Monsieur.
SIMONE (Indignada) – Aquela que anda de lambreta?
SARTRE – Aquela paródia da Doris Day?
JULIANO (Sério) – Ela te adora, Monsieur.
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SIMONE (Chocada) – Mas o que é que ela quer com a
dialética?
JULIANO – Ela é existencialista, Madame! Veste-se toda de
preto e...
SARTRE – O existencialismo hoje adquiriu tamanha amplitude e
extensão, que não significa mais absolutamente nada...
(Agarrando-o pelo colarinho.) Exija que ela não me faça
‘orelha’, hein? Nem me devolva todo cheio de anotações
imbecis.
JULIANO – Eu peço pra ela te encapar...
SARTRE (Desesperado) – Não! Ela é capaz de usar, de novo,
aquele horrendo papel de presente cheio de florzinhas: eu fiquei
parecendo uma puta!
SIMONE (Rindo) – Nada respeitosa, aliás!
JULIANO (Assumindo uma expressão dura) – Vamos indo,
Monsieur!
SARTRE (Arrasado) – “As circunstâncias, muitas vezes, não
permitem outra superação, que não a submissão.”
SIMONE (Despedindo-se, solidária) – “É assim que será
preciso viver, meu querido. Talvez ainda com felicidade e
momentos de alegria, mas com o peso da morte, a vida
colocada entre parênteses.” (Os dois saem. Simone completa,
meio entediada.) Esse estúdio tão alegre mudou de cor. (A luz
sofre uma alteração e vai caindo, apenas o terraço se
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destaca com os telhados de Paris ao entardecer...
Passagem de tempo.).
CENA TRÊS
Brunilde, irmã de Aspázia, está na sala. Quando a cena se
inicia, elas estão no meio da conversa.
BRUNILDE – Na verdade estou feliz, Aspázia, porque vou tirar
esse outro seio. (Pausa.) Sei que a hora que ele for removido,
vou me sentir muito mais aliviada...
ASPÁZIA (Chocada) – Ô, Brunilde: não diz isso! Eu sei que
você e o Doutor Proença são espíritas, mas...
BRUNILDE (Seriamente) – Você sabia que eu fui Cleópatra?
(Aspázia não sabe o que responder. Olha, constrangida,
para ela.) E você foi uma princesa etíope, sabia?
ASPÁZIA (Sem graça) – Oh, Brunilde...
BRUNILDE – Por que você não gosta de falar das vidas
passadas?
ASPÁZIA (Irritada) – Não sei! Me incomoda! Eu não me sinto
bem. Já disse para você que eu não quero saber! Não quero
tocar nesse assunto! Já é tão difícil levar minha vida no
presente... Se é que eu fui: eu fui! Para que ficar revolvendo?
(Ilumina-se o quarto. Juliano está com Simone, que acabou
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de tomar um banho e usa um robe. Enxuga-se com uma
toalha. No quarto é outono. Pela porta entreaberta do
terraço vê-se o Luxemburgo, com as folhas amareladas
caindo. Juliette Greco canta ‘Folhas Mortas’ na vitrola.
Juliano segura a toalha, fazendo-a de biombo para Simone
se vestir. É visível a satisfação que ele sente, por estar a
sós, com ela.).
JULIANO – Posso te mostrar o que escrevi?
SIMONE – Por que não mostra seus textos a Sartre? Ele
incentiva tanto os jovens...
JULIANO – Ele me inibe. Fico sem jeito. Com a senhora, não:
eu fico mais à vontade! (Simone pega os textos.).
BRUNILDE – É só através do sofrimento que o espírito se
purifica, Aspázia!
ASPÁZIA – Essa história de reencarnação, ficar indo e vindo...
BRUNILDE – Aspázia...
ASPÁZIA (Nervosa) – Não adianta Brunilde. Eu gosto mesmo é
do céu dos católicos, porque vai e fica!
SIMONE (Lendo os textos) – “Vicissitude” tem dois s, Juliano!
JULIANO (Sem graça) – Eu só pus um?
BRUNILDE (Insistindo) – Mas estamos aqui, para pagar pelo
que cometemos nas outras vidas.
SIMONE (Carinhosamente pega um lápis vermelho e vai
corrigindo) – “Idiossincrasia” também.
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ASPÁZIA – Ah, eu prefiro o catolicismo, porque ele ilude a
gente: o espiritismo é muito cru.
SIMONE – “Xenófobo” é com x...
ASPÁZIA (Grita) – Juliano: sua tia está aqui.
JULIANO – Ela só tem um seio.
SIMONE (Indiferente, vestindo a roupa) – Por quê? É uma
amazona?
JULIANO – Câncer.
BRUNILDE (Insistindo) – E você sabe que o Doutor Proença
foi Akenaton?
ASPÁZIA (Cortando) – Terminou de ler “Eu e o Governador”?
BRUNILDE – Li no hospital. Pus até uma capa, porque ficava
aquele monte de médico, tudo entrando e saindo... (Remexe na
bolsa, onde aparecem alguns vidrinhos de remédios, e pega
o livro, devidamente encapado. Entrega-o à Aspázia.) Nossa:
como o Jânio era mulherengo, não? Não podia ver rabo-de-saia!
ASPÁZIA – Ah, esses políticos! A Wanda me emprestou “A
Virgem de Dezoito Quilates”. Depois, se você quiser ler...
BRUNILDE (Voltando ao assunto) – Sabia Aspázia, que o
Doutor Proença foi Akenaton?
ASPÁZIA – Só sei que hoje ele enfia a faca! Tá rico, o
miserável!
JULIANO – Submete-nos aos banhos de cobalto com a
disposição com que Cleópatra se entregava aos banhos de
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esperma. Aliás, ela vive dizendo que foi a própria. A senhora
acredita? (Simone pára um instante de fazer o que está
fazendo, e vai até a fechadura da porta espiar.).
BRUNILDE – O ‘Doutor Eça’ disse que com essa cirurgia eu
pago o meu carma de outra vida. E depois, Aspázia, eu não
tenho mais marido, não sou mais mocinha: se já tirei um, se tiver
que tirar outro, que diferença faz?
SIMONE – Ela decaiu muito do Egito pra cá.
JULIANO – Só conservou a maldade. Continua ruim feita uma
áspide. Ainda bem que não tem poder.
BRUNILDE (Ouvindo a voz de Greco) – Lourenço disse que
nunca mais viu o Juliano no clube, nem na piscina...
SIMONE (Voltando ao trabalho, bem-humorada) – Bem, ela
que se cuide, pois não deve ter reencarnado sozinha. O irmão
dela, a Otávia, o Otávio, a Calpúrnia, devem estar tudo atrás
dela. É até bom que ela permaneça irreconhecível. (Os dois
riem.).
ASPÁZIA – Ah, Brunilde: se eu pudesse afastá-lo dessa
literatura. Ele está se iludindo, indo atrás desses escritores.
Estão virando a cabeça dele.
BRUNILDE – Pior que quando abrir os olhos e quiser voltar...
ASPÁZIA – Fala isso pra ele, Brunilde! Lembra como
antigamente, ele adorava ir ao Centro com você? (Volta-se e vê
o filho parado na porta do quarto, com Simone.) Já tá com a
vagabunda francesa embaixo do braço?
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SIMONE (Chocada) – Ela, certamente, me vê com uma saia
rasgada na perna, rodando bolsinha, fumando encostada num
poste, fazendo ‘trottoir’ em Pigalle!
JULIANO (À mãe, sobre Simone) – Fique sabendo que ela
acendeu um farol para guiar as mulheres da segunda metade
deste século!
ASPÁZIA – Que acendeu farol, o quê? Queria só ver se ela
tivesse filhos...
SIMONE (Irritada) – É sempre a mesma acusação que me
fazem: sempre a mesma!
ASPÁZIA – Falar é fácil, meu filho. Dar conselhos pros outros...
Quero ver é educar um demônio como você. Cumprimenta a sua
tia. (Com desdém.) “Farol”... E vê se não me larga esse livro
jogado aqui na sala, senão eu pego ele e incinero. (Simone
estremece. Senta-se na cadeira.).
JULIANO – Oi, tia Brunilde!
BRUNILDE (Dramática, exagerada, inapropriada) – Que coisa
impressionante! Ele está a cara do Hermes, Aspázia! O nariz do
Hermes, os olhos do Hermes, a boca do Hermes...
ASPÁZIA – O pai vive comprando bilhete de loteria no nome
dele. Mas ele nunca ganhou nada!
JULIANO (Gritando) – Por que ele não compra no nome dele?
BRUNILDE (Observando-o) – Ele não ficou alto, né? Ficou
pequenininho, sem testa, sem queixo, com o nariz grande...
JULIANO – Pronto: já vai começar a invalidação.
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BRUNILDE (Orgulhosa) – O Lourenço tá com quase dois
metros! Pra falar com ele, tenho que subir num banquinho...
ASPÁZIA (Defendendo o filho) – O Juliano tem uns dentes...
Era uma maravilha! É que agora estão tudo encardidos de
nicotina, que ele não se trata. Se ele se tratasse... (Puxa o
cabelo dele.).
JULIANO (Grita) – Ai, mãe!...
ASPÁZIA – Olha o cabelo dele, que forte! Parece cabelo de
japonês.
BRUNILDE – O Lourenço puxou do nosso lado: aquela pele de
pêssego, aquele perfil clássico...
JULIANO – Isso aqui tá parecendo mercado de escravos.
(Brunilde senta em cima de Simone, na cadeira.).
JULIANO (Grita) – Cuidado, tia: não tá vendo? A senhora
sentou em cima da...
ASPÁZIA – Ele deixa essas porcarias tudo espalhadas pela
casa... (Juliano põe Simone abalroada sobre a mesa.).
SIMONE – Não se deixe provocar: você é talentoso...
JULIANO – “Talentoso”... Queria ser normal, como Franz Liszt.
BRUNILDE – Shi... lá em casa é um tal de telefone tocar atrás
do Lourenço, o dia inteiro. Parece que essa mulherada de hoje
em dia perdeu a vergonha. Ainda bem que a Vera, coitadinha,
não liga.
ASPÁZIA – Ela melhorou?
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BRUNILDE – Continua fraquinha, né? Ela é muito delicadinha,
muito miudinha.
ASPÁZIA – E o casório? Quando é que sai?
BRUNILDE – Pergunte pro seu afilhado. (O telefone toca.
Aspázia olha para a irmã, tensa. A seguir, para o filho. O
telefone continua tocando. Simone pergunta a Juliano,
baixinho.).
SIMONE – Ninguém vai atender?
ASPÁZIA – Quem será a essa hora?
JULIANO – Como ‘a essa hora’? São duas horas da tarde. Está
um sol lá fora: pára de fazer esta cara, Bela Lugosi!
ASPÁZIA – É que telefone e telegrama são duas coisas que...
BRUNILDE (Tentando tranqüilizá-la) – Devem ser garotas
atrás dele.
ASPÁZIA (Fuzilando, agressiva) – Mas ele não gosta de
garotas. Esse aí, só gosta de velhas! (Simone sente a
estocada, e fica meio constrangida. Atendendo, receosa.)
Alô!... Dois, nove, quatro... (Reconhecendo e mudando de
tom.) Oi, Baby!
BRUNILDE (Aliviada) – Não disse: são garotas!
JULIANO – Deixa que eu falo com ela.
SIMONE (Preocupada) – Aconteceu alguma coisa?
ASPÁZIA (Impedindo-o. Bruscamente assume com Baby um
tom falsérrimo) – Oi, querida: como vai? E a sua mãe? Tá
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boa? (À Brunilde, baixo.) É a filha da dona Jurema, da
‘Boutique Sacy’. (Brunilde faz cara de interessada.).
JULIANO – Deixa eu falar com ela.
ASPÁZIA (Impedindo-o) – Quem?... Sumiu?...
BRUNILDE (Curiosa) – Quem que sumiu?
ASPÁZIA (Ao telefone) – Fala com ele, querida. Eu vou
chamar. Obrigada, querida. Lembranças para a sua mãe.
(Chama, como se ele estivesse longe.) Juliano! (Antes de
entregar-lhe o telefone, diz, no seu tom habitual.) Disse que
o Sartre desapareceu. (Pronuncia Sartre com desdém, como
se estivesse falando ‘Escadinha’.).
SIMONE – Desapareceu?...
BRUNILDE (Curiosíssima) – Quem que sumiu, Aspázia?
ASPÁZIA – Ah, aquelas porcarias dele... (Em tom de fuxico.) A
Baby...
JULIANO (Ao telefone) – O Sartre sumiu?
ASPÁZIA – Não adianta: disse que procurou pela casa toda. (À
Brunilde.) Vive pegando carro aqui na esquina. Cada dia um.
Ih, tô cansada de ver!
BRUNILDE – Ela que se cuide, que homem é só sacudir é
guardar, mas mulher...
JULIANO (Desligando, à Simone, nervoso) – Vamos até lá.
SIMONE – Me leve antes até o quarto. Preciso pegar um
casaco, pôr um chapéu, uma echarpe...
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BRUNILDE (Barrando-lhes o caminho) – Lembra-se do
‘Doutor Eça’, o auxiliar do ‘Doutor Fritz’?
JULIANO – Agora não posso tia Brunilde.
BRUNILDE (Piscando para Aspázia) – Mandou um recado pra
você: disse que é pra você servir o Exército!
ASPÁZIA – Ha-ha!... Quero só ver a hora que o ‘existencialista’
for servir o Exército!
JULIANO (Espumando) – Eu não vou servir o Exército!
BRUNILDE – Mas tem de servir, Juliano! Quem não serve o
Exército não pode ser nada na vida!
JULIANO – Eu sou um poeta, um artista, um...
ASPÁZIA – “Artista”! Ha-ha! Conta pra ele, Brunilde, o ‘artista’
que desceu lá no Centro.
BRUNILDE (Com gravidade) – Você já ouviu falar em “Vitor
Hugo”?
JULIANO – Que “Vitor Hugo”?
BRUNILDE – Que escreveu aquele livro famoso: “O Corcunda
de Notre-Dame”. Conhece?
ASPÁZIA – Ele conhece, sim. É da turminha dele.
SIMONE – Estará ela falando de Victor-Marie Hugo, meu
conterrâneo?
BRUNILDE – Vira e mexe e ele desce lá no Centro. E conta o
que os artistas passam no limbo.
SIMONE – Limbo?...
BRUNILDE – Ih, ele chora!...
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JULIANO – Chora?...
ASPÁZIA – Vai escutando, vai escutando...
BRUNILDE (Sempre gravemente) – Diz que se arrependeu do
que fez... que tá muito arrependido...
SIMONE – Arrepende-se de ter sido o ‘pontífice do
romantismo’?
JULIANO (Indignado) - Tia Brunilde: Victor Hugo foi o mais
célebre poeta francês do Romantismo. Escreveu “Os
Miseráveis”, “O Noventa e Três”, “O Homem que Ri”...
SIMONE (Ajudando-o) – “Lucrecia Bórgia”, “Cromwell”, “Le Roi
S’Amuse”...
JULIANO – Foi dramaturgo, político, jornalista...
SIMONE – Liderou um movimento romântico e individualista;
pintava aquarelas belíssimas...
BRUNILDE (Sorrindo, tolerante) – Isso pra Deus não conta...
(Simone vai para o outro quarto colocar o casaco.).
JULIANO (Exasperado) – Como não conta? O que conta,
então, pra Deus?...
BRUNILDE (Segura, como se Deus lhe tivesse,
pessoalmente, confidenciado) – O que conta pra Deus é:
respeitar pai e mãe...
ASPÁZIA (Aproveitando e incluindo) – Não responder!...
BRUNILDE – Ser estudioso, trabalhador, humilde...
JULIANO (Transtornado, grita) – Que se foda Deus!
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BRUNILDE (Chocada) – Juliano!... (Simone retorna do quarto
com casaco, bolsa, etc. Está pronta para ir atrás de Sartre.).
JULIANO (Exaltado) – Não preciso de um Grande Patrão!
BRUNILDE (Chocada) – Você não acredita em Deus?
JULIANO (Citando Simone, como se a citação fosse sua) –
“Se lhe usei o nome algum dia, foi para designar um vazio que
tinha a meus olhos o brilho da plenitude!”
SIMONE (Autocitando-se, enquanto põe as luvas) – “Jogada
de um lado para o outro ao sabor da Sua graça...”
JULIANO (Continuando) – “Petrificado pelo seu julgamento
infalível”. (Os dois falam juntos, como num dueto.).
OS DOIS – “Minha existência não teria passado de uma
provação estúpida e vã!”
ASPÁZIA – É ela! É essa vagabunda francesa que está pondo o
meu filho contra mim. (Atirando-se, enlouquecida, sobre
Simone.) Eu vou destruir ela. Vou destruir essa vagabunda!
JULIANO (Detendo-a) – Mas que mania de destruir! Parece
uma saúva!
ASPÁZIA – Ela virou a cabeça do meu filho.
JULIANO – Não toque nela, sua goda, sua visigoda, sua huna...
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ASPÁZIA – Olha só o que eu faço com essa sua Simone de
Buvuá! (Dá um safanão em Simone, que cai no sofá. Juliano
dá um soco na mãe.).
BRUNILDE (Horrorizada) – Juliano!...
JULIANO (Arrependido) – Desculpe mamãe! Foi sem querer!
BRUNILDE – Ele não pensou, Aspázia.
completamente enlouquecida, pega uma faca.).
(Aspázia,
ASPÁZIA – Eu mato ele, Brunilde: eu mato ele!...
BRUNILDE – Aspázia: pelo amor de Deus!
ASPÁZIA – Amanhã vai sair no jornal: “Mãe mata filho!” – e
qualquer Tribunal vai me absolver, Brunilde, porque todos
sabem o demônio que ele é. Agora eu compreendo que uma
mãe possa matar um filho. Agora eu compreendo.
BRUNILDE – Juliano: vá para o quarto. Aspázia: tome um copo
d’água com açúcar. (Ouve-se uma multidão aproximando-se,
cantando.).
MULTIDÃO (Fora) – Avanti popolo / Faciamo greve / Viva
Kruschev / Viva etc...
SIMONE – Que é isso?
JULIANO – São os calouros de Direito.
BRUNILDE (Excitada) – É o trote, Aspázia!
MULTIDÃO (Fora) – Bandera rossa / Color de vino / Viva
Stalino etc.
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BRUNILDE (Tentando animá-la) – Vem ver os estudantes,
Aspázia! Ah, tenho uma pena dos calouros... (Correndo pra
janela.) Lourenço está com eles. (Ouvem-se gritos lá fora,
sons de baderna. Eles, entretanto, comportam-se como se
fosse o circo chegando a Macondo.).
SIMONE – Estão queimando a bandeira americana.
JULIANO – Todo ano eles queimam.
BRUNILDE – Cadê o Lourenço? Você está vendo, Juliano? (Um
boneco do Tio Sam ameaça entrar pela janela adentro,
assustando-os. Ouve-se uma porta bater na cozinha.).
ASPÁZIA – Que porta foi essa?
BRUNILDE – Foi lá na cozinha. (Uma cadeira é arrastada, na
cozinha.) Tem gente aí, Aspázia! Entrou alguém... (Aspázia vai
em direção à cozinha com a faca na mão, desaparecendo.).
ASPÁZIA (Fora) – Hermes!...
BRUNILDE (Espantada, a Juliano) – Ué: seu pai em casa a
essa hora?
ASPÁZIA (Fora) – Mas que mania de entrar pelos fundos. Por
que não entrou pela frente?... Quê? Ele fugiu? (Na sala eles se
entreolharam.) E você foi fiador, Hermes? Oh, meu Deus! Você
ficou louco? Eu te disse, eu te falei tanto... (Retorna pra sala
arrasada, chorando.) O melhor amigo dele. Agora vai ter que
pagar. (Desaba na poltrona. Grita pra cozinha, com rudeza.)
A comida está em cima do fogão. Esquenta ela. (Estende um
papelote para o filho e diz, secamente.) Tome. Seu pai
comprou esse bilhete pra você. (Juliano pega o bilhete de
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loteria, vai dizer qualquer coisa desaforada, quando um Tio
Sam, com dois enormes caninos surge na janela,
assustando-os.).
BRUNILDE – Olha o vampiro, Aspázia! (Aspázia está caída na
poltrona, apática. Brunilde faz o jogo do vampiro.) Xô, xô,
vampiro! Xô! (O Tio Sam vampiro, com sangue escorrendo
pela boca, sai da janela.).
JULIANO (Puxando Simone pela mão) – Vamos aproveitar a
confusão, Madame. (Tentam chegar até a porta, que se abre,
e surge o vampiro. Eles param. O Tio Sam entra na sala,
fechando a porta atrás de si, fingindo tê-los encurralado.).
LOURENÇO – O mundo só será feliz quando o último padre for
enforcado com as tripas do último capitalista. (Tira a máscara
de Tio Sam.).
BRUNILDE – Lourenço: seu bandido! Você nos assustou
direitinho. Bandido, bandido! (E ri. Lourenço aproxima-se de
Juliano e põe a boca sobre o seu pescoço. Juliano acariciao e deixa-se sugar, docilmente. As luzes caem. Passagem
de tempo. Passam-se algumas horas. Brunilde não está
mais lá. Simone foi novamente confinada ao quarto. Na sala
está apenas Juliano, que pratica escalas ao piano, e
Lourenço. É visível o poder que ele exerce sobre Juliano –
uma estranha afinidade. Repentinamente, Lourenço fecha a
tampa do piano.).
LOURENÇO – Toca ‘Al di La’. (Juliano toca, de ouvido,
interpretando-a ao máximo, tornando a melodia mais
melosa do que já é, como se quisesse atingir a alma do
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primo pelo excesso. Emenda com ‘Moon River’. Lourenço
reconhecendo.) ‘Moon River’. (Cantarola. Juliano ataca de
‘Tender is the Night’. Lourenço cantarola.) ‘É tão calma a
noite / A noite é de nós dois... ’ (Aspázia sai do seu quarto e
entra no banheiro.).
JULIANO (Cantarolando também) – ‘Ninguém amou assim /
Nem vai amar depois... ’
LOURENÇO – Tá comendo alguém? (Juliano não ouve – ou
finge que não ouve – e passa para outra música: ‘Exodus’.
Lourenço fecha novamente a tampa do piano. Insiste.) Tá
comendo?
JULIANO – Claro! Quando pinta...
LOURENÇO – Chegou uma menina nova lá na ‘Eny’. Novinha!
Dou quatro sem tirar de dentro. Tem um bundão, uns coxão, uns
peitinhos... Hum! Ai! Ai! Ai! (Bolina Juliano, de brincadeira.
Aspázia sai do banheiro e vem para a sala.).
JULIANO – Pára com isso!...
LOURENÇO (Jovial) – Oi, tia!
ASPÁZIA – Como é: o casório sai ou não sai?
LOURENÇO – Calma tia: tá louca pra me ver algemado?
ASPÁZIA – Casa logo, seu bobo! Um sogro rico daquele jeito:
não vai precisar trabalhar, fazer nada. (Lourenço sorri.) Com
licença um instantinho... (Ao filho.) Ô Juliano: que sujeira é
aquela lá no banheiro? Você tomou banho no bidê?
JULIANO – No bidê?...
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ASPÁZIA (Mais baixo) – Já não falei que não quero que use o
meu pó-de-arroz?
JULIANO (Empalidecendo) – Mas eu não usei!...
ASPÁZIA – Nem o meu Leite de Colônia!
JULIANO (Preocupado, olhando para o primo) – Fala baixo!
ASPÁZIA – Eu vou contar pro seu pai, hein? E vai já passar o
rodinho, que está um lago.
JULIANO (Sem graça) – Pera aí, Lourenço, que eu já volto...
(Sai.).
ASPÁZIA – Vê se tira o seu primo um pouco de dentro de casa.
Leve ele pra passear, dar umas voltas: que ele entra naquele
maldito quarto... Fica desperdiçando o talento dele. Quer ver?
(Dirige-se à cômoda e apanha uns panos. No quarto,
Simone está ansiosa, fumando. Juliano entra e fecha
rapidamente a porta atrás de si. Ela precipita-se para ele.).
SIMONE – Onde ele está? Por que não dá notícias? (Pega o
cachimbo de Sartre, que está sobre a mesinha.).
JULIANO – Madame: a senhora não passou o rodinho, outra
vez?
SIMONE – Usei a pia.
JULIANO – Mas por que a senhora tem a mania de usar a pia,
se tem Box? Por que não se mete logo debaixo do chuveiro?
Que medo de água!
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SIMONE – É o hábito! (Pega rapidamente o casaco e a bolsa
e corre até a porta.).
JULIANO (Detendo-a) – Esqueça ele, Madame! Ele é tão feio...
Sempre com aquele terno. Por que a senhora vive à sombra
dele? A senhora é muito mais inteligente, muito mais brilhante,
muito mais...
SIMONE – Meu maior sucesso na vida é Sartre! Todos sabem
disso. (Orgulhosamente.) Eu sou ‘a grande sartreuse’!
(Mudando de tom.) Agora me deixe passar ou eu grito! (Na
sala, Aspázia mostra panos de prato e toalhas pintadas por
Juliano, a Lourenço.).
ASPÁZIA – Olha só esse ramalhete! (Simone dá um grito.
Eles pensam ser mais uma das ‘loucuras’ de Juliano.
Entretanto, há certo constrangimento no ar.).
SIMONE (No quarto) – Nenhuma infelicidade jamais me virá
dele; a não ser que ele morra antes de mim. Pobre Jean-Paul:
deve estar errando pelas ruas. Talvez não saiba voltar pra
casa...
JULIANO (Cedendo, impressionado) – Está bem: irei procurálo!
SIMONE – Promete?
JULIANO – Prometo! (Suplica, da porta, antes de sair.) Mas,
por favor, não use o pó-de-arroz!
ASPÁZIA (Na sala) – Tenho até pena de usar. Olha só esse,
que maravilha! (Juliano entra e não gosta do que vê. Ela
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continua, dizendo ao filho, secamente.) Vai pegar a esteirinha
japonesa que você pintou pra mim. Tá lá no quarto.
JULIANO (Sem graça, diante do primo) – Ele não quer ver,
mãe...
ASPÁZIA (A Lourenço) – Com a mão que ele tem... A freira diz
que, se ele quisesse, podia ser um pianista de mão cheia.
JULIANO (Irritado) – Já disse que não vou ser pianista: vou ser
escritor!
ASPÁZIA (Saindo com os panos de prato) – Eu lavo as mãos,
meu filho! Se você não quer ser pianista, o problema é seu.
(Retira-se. Juliano dá um soco no teclado.).
LOURENÇO – Tá todo mundo falando...
JULIANO – Falando o quê?
LOURENÇO – Por que você não apareceu mais na piscina?
JULIANO – Venceu meu exame médico... (Lourenço faz cara
de incrédulo.).
LOURENÇO – Foram falar com a Vera, também.
JULIANO – O quê?
LOURENÇO – Perguntar se era verdade.
JULIANO – Se era verdade o quê?
LOURENÇO – O que está todo mundo falando.
JULIANO – Mas que é todo mundo?
LOURENÇO – Todo mundo.
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JULIANO – Não sei do que você está falando. (Dirige-se à
cozinha, para pegar o rodinho.).
LOURENÇO – Posso pôr minha mão no fogo? (Olham-se.
Lourenço, dominador, penetrando-o. A porta da rua se abre
e entra Sartre, de fininho, escondendo o rosto com as mãos.
Juliano está de frente para ele, Lourenço de costas. Sartre
tenta atravessar a sala na ponta dos pés, em direção ao
quarto. Como Juliano não respondeu à pergunta de
Lourenço, pois está tenso com a presença de Sartre, ele
insiste.) Posso? (Sartre esbarra num objeto e faz barulho.
Lourenço volta-se. Sartre, imediatamente se imobiliza,
permanecendo imóvel no meio da sala.).
JULIANO (Respondendo) – Não acredita em mim?
LOURENÇO – Estão sempre juntos, que nem namorados...
(Lourenço volta-se novamente para ele. Sartre recomeça a
andar em direção ao quarto. Lourenço diz.) Cuidado. (E
volta-se. Sartre pára.).
JULIANO – Por que está dizendo isso? (Aspázia entra. Vê
Sartre e dirige-se para ele, furiosa, pegando-o pelo
colarinho.) O que é que a senhora está fazendo?
ASPÁZIA – Não disse que não quero essas porcarias aqui na
sala? (Abre a porta do quarto do filho – sem acender a luz –
e atira Sartre lá dentro. Ele cai nos braços de Simone.) Se eu
pegar de novo, eu queimo!
SIMONE (No quarto, que está escuro. A luz que o ilumina é
apenas a que vem do terraço) – Você está bem?
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SARTRE (Exibindo o rosto todo rabiscado) – Olhe o que ela
me fez! (Na sala, o telefone toca. Aliás, começou a tocar
assim que Sartre foi atirado dentro do quarto.).
LOURENÇO – Deixa tocar: é a Vera!
JULIANO – Vocês brigaram?
LOURENÇO – Ela agora resolveu pegar no meu pé.
ASPÁZIA – Mas vocês não estão noivos, não vão se casar?
LOURENÇO (Com humor) – E daí, tia? Todo o homem não se
casa? E depois, come-se melhor em casa do que no
restaurante... (Baixinho, ao primo.) E também porque quero ter
o bordel dentro de casa. (Pisca, dando um sorriso
encantador. Juliano fica ao mesmo tempo constrangido e
fascinado.).
ASPÁZIA (Olhando para o telefone, que continua tocando) –
É... deixa eu ir cuidar da comida do meu ‘freguês’! (Vai para a
cozinha.).
JULIANO – Como é que você tem tanta certeza que é ela?
LOURENÇO – Conheço. Ela vai desistir: quer ver só? (O
telefone pára de tocar.).
JULIANO – Você não ama ela?
LOURENÇO – ‘Um buraco é um buraco’. (Tira um revólver
debaixo do suéter.) Guarda pra mim? Não quero sair armado.
JULIANO – Pra que você está usando isso?
LOURENÇO – Esconde no seu quarto.
JULIANO – No meu quarto?...
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LOURENÇO – Escute: não quero sair com o ‘ferro’, hoje. Posso
me esquentar...
JULIANO – Aonde você vai?
LOURENÇO – Sair com a Mara.
JULIANO – A Mara?... Mas ela não é a melhor amiga da Vera?
LOURENÇO – Pode ser mulher do meu melhor amigo: cantou
no meu ouvido, dança! Amanhã eu passo aqui, pra pegar. (Vai
saindo, mas volta.) E não se esqueça: tá todo mundo falando.
(Ri e desaparece. Juliano vai para o quarto, com o revólver.
No quarto, Simone está limpando o rosto de Sartre, com um
lenço úmido.).
SARTRE – Estou parecendo parede de mictório público.
SIMONE – Tem até endereço...
SARTRE – Nunca mais me empreste para aquela maluca.
JULIANO – Fugir, Monsieur! Ficou louco? Já pensou se te
pegam na rua? Ia virar embrulho de peixe, que nem as músicas
do João Sebastião Bach.
SIMONE (Esfregando) – Se ao menos fosse a lápis. Mas
esferográfica não sai... (Juliano procura um lugar para
esconder a arma. Aspázia sai da cozinha com um pratinho
para Hermes e dirige-se para o seu quarto.).
JULIANO (Irônico) – Ela diz que anota porque ele diz cada
coisa bárbara.
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SARTRE (Furioso) – Bárbara é ela! E duplamente: já está em
decadência, sem nunca sequer ter ascendido!
SIMONE (Ouvindo ruídos de Aspázia) – Fique quieto, JeanPaul. (Aspázia entra em seu quarto, falando.).
ASPÁZIA – Ele me agrediu, Hermes. Me deu um soco. A
Brunilde ficou horrorizada. (Desaparecendo dentro do
quarto.).
SARTRE – Abaixe essa arma. Estou faminto.
JULIANO (Achando um lugar para esconder a arma) – Vou
ver se arrumo alguma coisa. (Vai para a sala. Na sala, a porta
do quarto dos pais está entreaberta. Há luz e vozes lá
dentro. Juliano pára e escuta. Do pai, propriamente dito,
ouvem-se apenas sons de pigarros, tosse e outros ‘ruídos
de vítima’.).
ASPÁZIA (Fora) – Ela acha que ele pode ter disritmia cerebral,
e que ela conhece um neurologista excelente... Você tem que
convencer o seu filho a fazer um eletroencefalograma. (Juliano
se afasta em direção à cozinha. Hermes tem um acesso de
tosse, com catarro.) Essa tosse, Hermes! Você não vai ver o
que é? Que tuberculose? Se fosse tuberculose... Vou buscar o
xarope. (Na cozinha, Juliano abre a geladeira. Aspázia,
ouvindo o barulho, vem para a sala.) Já tá na geladeira? Não
janta: depois fica aí!
JULIANO – Eu não vou fazer nenhum eletroencefalograma: faça
você. É você que está louca!
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ASPÁZIA – Ah, quer dizer que agora já deu também pra ficar
ouvindo atrás das portas?
JULIANO – Vou-me embora daqui pra nunca mais ver a sua
cara.
ASPÁZIA – Quando completar vinte e um anos pode dar o fora.
Mas, enquanto você for menor de idade, trata de ir baixando as
asinhas.
JULIANO – Vou trabalhar, minha filha. Ser independente.
ASPÁZIA – ‘Independente’... Faz-me rir! Você nunca será nada
na vida, meu filho. Preguiçoso do jeito que você é...
JULIANO (Gritando) – Eu vou embora, agora! Eu te odeio.
Tenho ódio de você. Ódio!
ASPÁZIA – Olha que eu chamo a polícia, hein? Se teu pai não
dá jeito em você, eu chamo a polícia pra dar, hein? Deixa eu ver
o que é que você tá levando aí? (Juliano fecha a geladeira
com o pé. Tem nas mãos uma bandeja com queijo, pão,
frutas, etc. Pega também uma garrafa de vinho. Aspázia
gritando.) Deixa essa garrafa de vinho aí! (Juliano corre com
as coisas para o quarto. Aspázia grita ao marido.) Tá se
trancando no quarto com uma garrafa de vinho, Hermes!
(Hermes tosse.) Você está matando o seu pai! (Juliano entra
no quarto e grita à Simone.).
JULIANO (No quarto) – Tranque a porta. Depressa! (Simone
corre e fecha a porta à chave.).
ASPÁZIA (Esmurrando a porta) – Matando o seu pai,
assassino!
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JULIANO (Depondo a bandeja sobre a escrivaninha) – Sou
um prisioneiro, Madame, dessa casa, dessa cidade, desse
corpo, (grita.) dessa mãe! (Grita.) Clitemnestra!
ASPÁZIA – Vagabundo! (Afastando-se da porta.) Só faltava
essa: virar um alcoólatra, agora! (Entra em seu quarto,
falando. Fora.) Seu filho tá lá: bebendo de novo. Você tem que
tomar uma providência. Uma bela hora.
SIMONE (No quarto) – Jean-Paul também foi prisioneiro do
avô, não foi, meu querido? Entre a primeira revolução russa e o
primeiro conflito mundial, um homem do século XIX impunha ao
neto, as idéias em voga na época de Luis Felipe.
SARTRE (Servindo-se de queijo) – Eu ia iniciar a corrida
levando uma desvantagem de oitenta anos pela frente...
JULIANO – Se o senhor acha isso desvantagem, imagine eu,
então, com essa mãe que vive no século V antes de Cristo.
SARTRE (Comendo) – Meu avô se propôs a criar um menino
prodígio.
JULIANO (Irônico) – E conseguiu.
SARTRE (Oferecendo um pedaço de queijo à Simone, que
aceita. Recorda) – ‘Sabe o que é estar à mercê de um avô
aposentado, encarnando oito gerações de paixão pelo ensino
primário?’
SIMONE (Penalizada) – ‘Quantas influências culturais
derramadas sem critério em cima de uma pobre criança
indefesa... ’ Pobre Poulou.
JULIANO – ‘Poulou’?...
SARTRE – Era o meu apelido.
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JULIANO (Encantado) – ‘Poulou’!... Me diz, Poulou: você não
sofreu com sua mãe? Ela não te enchia o saco?
SARTRE – Quando me mostraram uma moça enorme dizendo
que era minha mãe... Bem, eu seria capaz de jurar que fosse
minha irmã mais velha. Ela me contou suas desventuras – que
ouvi com muita pena. Mais tarde decidi que haveria de casar-me
com ela, para protegê-la. Foi a promessa que lhe fiz.
JULIANO – Casar com ela?...
SARTRE – Anne-Marie: quero dizer, minha mãe-irmã, minha
amante incestuosa... (Recordando.) Era o Paraíso! Eu
acordava de manhã, zonzo de contentamento, encantado com a
sorte de ter nascido na família mais unida que existia, no país
mais lindo do mundo! (Aspázia sai do seu quarto, falando.).
ASPÁZIA (Saindo do quarto) – E eu não tô cansada? Tô que
tô, morta, que fico em pé o dia inteiro, correndo pela casa. Larga
de ser hipocondríaco, Hermes! Que mania de doença!... Queria
ver se fosse coisa séria, mesmo. (Juliano abre a porta,
inspirado, e diz à mãe.).
JULIANO – Para que brigarmos, minha mãe incestuosa, minha
mamãe-irmã?
ASPÁZIA (Recuando, assustada) – Que conversa é essa?...
JULIANO – Dê-me um beijo, vamos: façamos as pazes!
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ASPÁZIA – Ai, que bafo! Você está bêbado. (Ele agarra-a,
beijando-a a força, na boca. Ela desvencilha-se dele,
enchendo-o de bofetadas.) Anormal! Indecente! (Grita.)
Hermes: vem ver o que ele tá falando pra mim! Aberração! Seu
imoral!... (Chora. Juliano tranca-se, novamente, no quarto.
Aspázia tranca-se, chorando, no seu.).
JULIANO – Definitivamente ela não é uma Schweitzer!
SARTRE – Ah, os Schweitzer também se escandalizaram com a
minha autobiografia: a história de um homem de cinqüenta anos,
filho de pequeno-burgueses e que foi joguete de uma
mistificação até o dia em que descobriu que é possível tornar-se
joguete das circunstâncias.
SIMONE – Brilhante! ‘As Palavras’ é simplesmente brilhante.
JULIANO – Também eu, um dia, escreverei um livro – um, não
– arrasando a minha família. Não vou deixar pedra sobre pedra.
(Abre a porta e grita.) Vou contar todos os seus podres, revelar
toda a sua mesquinhez e burrice! (Bate a porta. Aspázia abre a
porta do seu quarto e grita.).
ASPÁZIA – Não me chame de burra! (Bate a porta.).
SARTRE (Servindo-se de vinho, rindo) – Ainda hoje o incesto
é, sem dúvida, o único laço de parentesco que me comove.
(Leva o vinho à boca, cuspindo-o, imediatamente.) O que é
isso?... Veneno?
JULIANO – É ‘Sangue de Boi’. Não há ‘Chateau Laffite’, nem
‘Mouton Cadet’. O senhor bem sabe que eles não distinguem
uma ‘Cristal’ de uma ‘Georges Albert’. (Desnuda, subitamente,
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Simone, da cintura para cima. Ela tem uma revistinha
enfiada na cintura.).
SIMONE – Não ponha essas revistinhas dentro de mim. Sintome suja. (Juliano acha uma carta dentro da revista.).
JULIANO – O que é isso aqui?
SIMONE – Dê-me isso!
JULIANO – ‘Nelson, my love’... Quem é Nelson?
SARTRE – O amante americano de Simone!
JULIANO (Chocado) – E o senhor admite isso?
SARTRE – Também vivo rodeado de mulheres e sempre com
vontade de conhecer novas...
JULIANO – Vocês são promíscuos!
SIMONE – Não, Juliano! Há os ‘amores necessários’ e os
‘contingentes’. Sartre é um amor ‘necessário’.
JULIANO – Chama de ‘contingente’ isso? (Lê. Ouve-se a voz
off de Simone.) ‘Penso em abandonar tudo, ir viver com você:
lavar a roupa, a louça, varrer o chão, fazer as compras da
casa...’
SARTRE – Nunca pretendemos impor nossa relação como
modelo.
JULIANO – E ele lhe escreve também?
SIMONE – Sei suas cartas de cor. E elas são longas... No
entanto, como é difícil fazer amor por correspondência!
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JULIANO (Lendo, morto de ciúmes – ouve-se a voz de
Simone, off) – ‘Estou louca para estar novamente em seus
braços...’ Que mau gosto. Não acredito que a senhora tenha
escrito isso.
SIMONE – No entanto, escrevi. Assumo-a. agora, me devolva.
(Juliano rasga a carta em mil pedaços e atira-a sobre ela.
Ela tenta catar os pedaços, soluçando.) Mas está ficando
louco, esse menino?
SARTRE – Quando o primo vem, ele fica assim...
JULIANO (Tomando o vinho pelo gargalo) – Calem a boca aí,
vocês dois. Parecem duas galinhas da Alsácia. Vocês,
estrangeiros, são gozados: pensam que podem vir aqui enganar
a gente... (Tira os óculos de Sartre.).
SARTRE – Meus óculos: devolva!
JULIANO – Aqui, vesguinho, ó! Aqui, ó! (Sartre tateia pelo
quarto, sem enxergar.).
SIMONE – Devolva Juliano: ele não enxerga!
JULIANO – Se abrir a boca de novo, eu piso em cima, hein?
Aqui não é a Sorbonne, não. Isso aqui é Terceiro Mundo,
ouviram bem? Aqui vocês entram no couro. (Simone agarra os
óculos e devolve-os a Sartre.) E não venham me dizer que ‘a
relação profunda entre os homens é feita pela violência e
nhenhenhém’. Já tô cheio dessa cultura morta.
SIMONE – Morta? Alto lá: não enquanto Jean-Paul Sartre
estiver vivo. Jean-Paul é o último intelectual francês. (Tira dos
bolsos de Sartre uma infinidade de recortes de jornais com
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críticas sobre o seu trabalho, lendo-as com grande
emoção.) ‘Um prestígio sem possibilidades de comparação’ –
escreve o crítico do ‘Les Temps’; ‘Um dos artistas mais
indiscutíveis’, diz o ‘Le Monde’; ‘De uma ousadia tão rara que
merece os maiores elogios’, diz o ‘L’oeuvre’; ‘Poeta autêntico’,
‘Fica-se deslumbrado’, etc., etc., etc. afirma o crítico do ‘ParisMidi’. (Juliano abre a gaveta e tira os seus recortes. Lê,
confrontando-os com os de Sartre.).
JULIANO – ‘No Tênis Clube, ontem, diante de distinta e seleta
platéia, foi levada à cena, pelos amadores da cidade, a peça
existencialista de autoria do jovem Juliano, filho dileto do casal
Aspázia/Hermes Fonseca... ’
SARTRE (Irônico) – ‘Um escritor magistral de quem se pode
esperar tudo’; ‘um talento prodigioso explode a cada página’;
‘aguardamos com impaciência as obras e as lições que ainda
virão’ – diz o ‘Le Figaro’!
JULIANO – ‘Esse menino parece que já nasce feito’ – diz o
‘Correio da Noroeste’! (A Sartre.) Tá com ciúmes, tá?
SIMONE (Gritando) – Ninguém melhor do que Sartre soube
exprimir o horror de viver!
JULIANO – Ai, ai, ai, nosso Luis XIV: ‘Après lui, le néant!’
SARTRE (Guardando o jornal com as críticas no bolso) –
Deixe pra lá, Castor, senão ele me tira os óculos de novo.
JULIANO – ‘Castor’? Mas que festival de apelidos!
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SIMONE (Furiosa, tentando colar a carta) – Sou chamada
assim pelos velhos amigos, pelas pessoas queridas. Eu não te
dou esse direito.
JULIANO – A senhora foi muito mimada, Madame. Devia era ter
apanhado quando pequena, levado umas boas palmadas. O
senhor também, ‘reizinho’. ‘Poulou’... ‘Castor e Poulou... ’
(Folheia a revistinha de sacanagem.).
SARTRE (Indignado) – Até quando vai continuar nos mantendo
prisioneiros aqui nesse ‘sótão’, como se fôssemos a família
Frank, vivendo de sobressaltos e tomando vinagre?
JULIANO (Bebendo) – Se quiserem beber: é isso o que tem.
SARTRE (Tentando, heroicamente, não perder a calma) –
Devo presidir o Tribunal Russell; apoiar a emigração dos judeus
perseguidos na União Soviética...
SIMONE – Boicotar as Olimpíadas...
SARTRE – Os americanos agridem no Vietnam; os soviéticos
em Praga! (Grita.) Milhares de manifestos esperam nossa
assinatura!
JULIANO (Indiferente) – Até eu completar a maioridade ficarão
aqui, comigo. É bom irem se acostumando... (No terraço,
começam a se distinguir, meio envoltos pela névoa, o arame
farpado e as torres de um campo de concentração.).
SIMONE (Exclama) – Treblinka!...
SARTRE (A Juliano) – Não banque o SS comigo.
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JULIANO (Folheando a revista de sacanagem) – Aqui só há
duas soluções: submeter-se ou usar a imaginação... (Leva a
mão ao pau. Pelo alto-falante da torre do campo, vem a voz
de Aspázia, entremeada pela tosse de Hermes.).
ASPÁZIA (Fora, através do alto-falante) – ‘Está de castigo!
Não vai sair de casa! Avise às suas amiguinhas, aquelas
vagabundas, que você está de castigo! E não me peça dinheiro!
A mim você não engana. Eu te conheço, meu filho. Você é um
‘chupim’: só quer viver à custa do seu pai. Vai trabalhar
vagabundo! Não era você que dizia que ia ser concertista? E vá
passar o rodinho no banheiro!’ (Simone fecha a porta do
terraço – a voz desaparece. Volta-se para Sartre e diz.).
SIMONE – Estamos numa colônia de férias forçada, e sem
nenhum objetivo. (Olham para Juliano, que se masturba. As
luzes caem para se acenderem na sala, sobre Aspázia, de
robe, sentada na poltrona, lendo ‘O Garanhão’, de Harold
Robbins.).
ASPÁZIA – ‘Já então a toalha que o cobria levantou-se feito
uma tenda. Tire a roupa – disse. Ela se despiu e estendeu-se na
cama. Era toda mel e ouro, salvo na estreita faixa em torno dos
pequenos seios túrgidos e no triângulo dos quadris. O rosa-coral
dos bicos dos seios desabrochava para ele quando... ’ (Barulho
no quarto. Ela volta-se e grita para o marido.) Tá procurando
o doce de leite? Pera aí, que eu escondi, senão o teu filho mete
a colher e azeda. (Lendo, novamente.) ‘E a doce pelúcia entre
as pernas começa a rebrilhar em minúsculos brilhantes... ’
JULIANO (No quarto, meio embriagado) – Vamos fazer amor.
SARTRE – O ato sexual não me interessa.
JULIANO – Não falei com você, cegueta!
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JULIANO (Puxando Simone) – Vem. (Simone repele-o com
determinação.).
ASPÁZIA – ‘Colocou-me na boca com ruídos que lhe vinham do
fundo da garganta. ’
JULIANO – A senhora não sente desejo?
SIMONE (Dando-lhe um café) – Nunca fui uma fisiológica.
Devaneios, talvez...
JULIANO (Recusando o café com aspereza. Levanta da
cama e vai até a máquina de escrever) – Hipócrita! (Bate
alguma coisa à máquina.).
ASPÁZIA – ‘Tomou na boca um dos testículos e depois o outro.’
SIMONE – Nenhum homem jamais me tocou sem que
estivéssemos ligados por uma grande amizade. (Olha
ternamente para Sartre.) O desejo, em mim, sempre esteve
ligado aos sentimentos.
JULIANO – Vai me dizer que nunca sentiu um desejo
puramente físico, uma ‘sexualidade anônima’ que pudesse ser
satisfeita com qualquer um?
SIMONE – Nunca! Nunca! Nunca me passaria pela cabeça.
ASPÁZIA – ‘Ele a puxou para a cama e começou a rolar o corpo
sobre ela.’
SIMONE – Nunca me ocorreu sair à procura de um homem.
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ASPÁZIA – ‘Não – disse ela. Fiquei quietinho. Quem vai fazer
tudo sou eu.’
JULIANO (Irônico) – Não é engraçado mamãe pensar que a
senhora é uma puta? (Começa a vestir-se para sair.).
SARTRE (Igualmente malicioso) – No fundo, não passa de
uma puritana.
ASPÁZIA (Não mais se contendo. Lendo com crescente
excitação) – ‘Tornou-se a deitar e ela ficou de joelhos sobre ele.
As mãos grandes e fortes agarraram-na pelas nádegas,
enquanto ele a penetrava.’
JULIANO – Não existem só homens. Nunca teve relações com
uma mulher?
SIMONE – Sempre tive grandes relações de amizade com
mulheres. Porém, jamais me despertaram paixão. (Convicta.)
Jamais! Sem dúvida, um condicionamento da minha educação...
JULIANO (Agressivo) – Não agüento mais ouvir a senhora falar
de sua educação...
SARTRE (Baixinho) – Nem eu.
ASPÁZIA – ‘Ela se abraçou a ele até cessar o seu doloroso
tremor e sentir a umidade dele escorrer de dentro dela pelas
coxas...’ (Hermes tosse. Aspázia olha para o quarto. A porta
está entreaberta e há luz lá dentro.).
SIMONE – Não foi apenas uma questão de educação. As
minhas leituras... (Olha com desdém para a revistinha de
sacanagem.) as influências que marcaram a minha infância...
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(Aspázia fecha o livro, levanta-se e caminha em direção ao
quarto, como se em direção ao cadafalso ou ao seu
destino.) Elas me empurraram para a heterossexualidade.
(Aspázia na porta, deixa cair o robe, desaparecendo lá
dentro. A luz do quarto se apaga.).
JULIANO – Acha o homossexual inaceitável?
SIMONE – Mas, não, não! Certamente que não: é totalmente
aceitável. Inclusive acho que as mulheres não deviam mais ser
condicionadas unicamente pelo desejo dos homens. Tanto mais
que a meu ver, toda a mulher, hoje, é um pouco... um pouco
homossexual.
SARTRE (Taxativo) – As mulheres são mais desejáveis que os
homens. Gosto muito mais de conversar sobre coisas triviais
com elas do que discutir filosofia com Aron.
SIMONE – É o desejo do outro que me puxa. Jamais desejaria
um homem que não me desejasse.
JULIANO – Eu, pelo contrário, ‘tenho as mãos sujas. Até os
cotovelos. Mergulhei-as na merda e no sangue...’
SARTRE (Reconhecendo a citação) – Ei, rapazinho, essa
citação é minha. E eu a empreguei num contexto muito
diferente...
JULIANO – Sua obra não mais lhe pertence, Monsieur. E eu
dou a ela o uso que bem entender.
SARTRE – Oh, se eu pudesse escolher os meus leitores...
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JULIANO (Segurando-o com violência) – Escute aqui, Seu
‘pato manco’: lá fora, você pode ser muito importante, mas aqui
você é tolerado, ouviu bem? Só não te meti num sebo por causa
dela. Fecha essa matraca! (Encaminha-se para a porta.).
SARTRE (Ordenando) – Tire essa roupa, e já pra cama!
SIMONE (Intrigada, pois já é de madrugada) – Aonde ele vai?
SARTRE – Oferecer-se pelas ruas.
JULIANO (Voltando-se, cínico) – Ora: o senhor não ama os
malditos? Não vomita páginas e páginas sobre eles? Estou
tentando ser o pior possível. Quem sabe mereça do senhor uma
monstruosa homenagem?
SARTRE – Palhaço!
JULIANO – Sim, Monsieur: sou um comediante... E um mártir!
SARTRE (Grita) – Pare de me citar: ou te estrangulo!
SIMONE (Apreensiva) – Jean-Paul!...
JULIANO (Assustado com a mudança de tom de Sartre) –
Como uma pessoa normal poderá interessá-lo? Como uma
pessoa normal poderá servir de pretexto para que o senhor fale
de si mesmo?
SARTRE (Crescendo, ameaçadoramente) – Paródia bizarra
de Oscar Wilde! Simulacro de Gide! Imitação vulgar de
Cocteau...
SIMONE (Preocupada) – Jean-Paul: cuidado com a sua
hipertensão. Você vai ter uma crise renal...
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SARTRE – Leitor de orelhas! Capta apenas a máscara, o verniz.
Nem um plágio eficiente consegue ser. Homossexual de
vilarejo... Exibicionista infantil...
JULIANO (Recuando) – O senhor me respeite. Também sou
um intelectual, um artista!
SARTRE – Onde está sua obra, fedelho? O que foi que você
produziu? (Pega os papéis de Juliano, com desprezo.) É isso
aqui os seus ensaios, seus romances, suas peças, suas
críticas? (Lê, atirando-os para o alto.) ‘Minha mãe é isso;
minha mãe é aquilo; o inferno é minha mãe; minha mãe não me
ama; minha mãe não me compreende; minha mãe é...’
Malcriações de Édipo de província. Nada que um bom par de
chinelas não possam resolver. Volte ao piano. Você não tem
nada a fazer na literatura. (Juliano está petrificado. Simone
deixa escapar certo orgulho pela atitude viril de Sartre.
Sartre, enfim, recupera sua virilidade. Juliano dirige-se à
porta, olhando para Simone, como se fosse ela a
responsável.).
JULIANO (Com ódio) – Pois bem, Monsieur: ‘agirei de tal modo
que a sociedade me tratará sempre como um objeto, jamais
como uma pessoa!’ (Sai. Sartre grita, correndo até a porta.).
SARTRE – Você não é Jean Genet! (Simone esboça um gesto
para deter Juliano. Sartre, porém, a desestimula. Ela fica
parada na porta do quarto, olhando-o atravessar a sala –
que está na penumbra -, cujo opressor silêncio noturno se
faz sentir feito uma pesada bruma. Ele abre a porta da rua e
sai, silenciosamente. Aspázia sai do quarto – sem acender a
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luz – e vem para a sala, também silenciosamente. Vai até a
janela, afasta a cortina e olha para a rua. Sob um poste,
Juliano aguarda, fumando. De repente ouve passos, vê
alguém – que não pode ver – e vai atrás. Aspázia deixa cair
a cortina. Seu olhar é atraído para Simone, parada na porta
do quarto. Olham-se: duas mães impotentes se
confrontando. Simone fecha lentamente a porta.).
FIM DO PRIMEIRO ATO
SEGUNDO ATO
CENA UM
Mesmo cenário. Aspázia, na janela da sala, ocupa a mesma
posição do término do Primeiro Ato. Olha apreensiva, para
uma suástica pintada no muro da frente. Afasta-se,
preocupada. Decide invadir o quarto do filho. Entra e
começa a recolher livros e papéis, determinada. Simone e
Sartre encolhem-se num canto, intrigados. Aspázia vai e
vem do quarto à cozinha, carregando livros. A campainha
toca. Ela vai atender, apreensiva.
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SARTRE – Estou tomado por visões, Castor: cidades
amotinadas, todas as cortinas de ferro foram abaixadas, sangue
nas encruzilhadas e na maionese das mercearias!
SIMONE – Você tem imaginação demais, Jean-Paul! É
propenso demais ao horror.
SARTRE – Que será que ela pretende?... Um auto-de-fé?
(Depois de hesitar, Aspázia abre a porta. Brunilde entra
agitada.).
BRUNILDE – Três dias!... Três dias que ele não dá notícias,
Aspázia! Estou desesperada! Será que aconteceu alguma
coisa?
ASPÁZIA – Mas ontem eu vi ele num carro.
BRUNILDE – O Lourenço?... Ontem?
ASPÁZIA – Passou por aqui, pela frente, numa daquelas peruas
cheias de gente... eu acho que tavam armados.
BRUNILDE (Chorando) – Por que ele faz isso comigo? Ele
sabe que eu estou muito doente, que já estou até com a
operação marcada, que posso, inclusive...
ASPÁZIA – Você viu o que pintaram ali na parede das freiras?
BRUNILDE – Cadê o Juliano?
ASPÁZIA – Foi pra escola.
BRUNILDE – Será que ele sabe de alguma coisa?
ASPÁZIA – Tenho que me apressar antes que ele volte.
BRUNILDE – Que é que você está fazendo?
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ASPÁZIA – Não viu o filho da... que mora ali, no outro
quarteirão?
BRUNILDE – Sumiu, mesmo?...
ASPÁZIA – Uns dizem que foi a polícia: outros, que foi o
Exército.
BRUNILDE – Imagino o que a mãe desse rapaz não está
sofrendo... (Recomeça a chorar.) Não gosto de ver ele assim.
Tava tão alterado...
ASPÁZIA – Quem?
BRUNILDE – Lourenço. Disse que iam prender uns
estudantes...
ASPÁZIA – Mas por que ele se mete com essa gente?
BRUNILDE – Eu peço tanto pra ele não ir, ficar com a Vera...
Mas, não. Quando aquele major telefona, ele fica... diz que tem
que ir junto, grita comigo, não me ouve. (Cala-se. Fica
sombria.) Tô com um pressentimento tão ruim, Aspázia!
ASPÁZIA – Ele vai aparecer: você vai ver. Não é a primeira vez
que ele some. Vai: me ajude aqui que você se distrai. Deve
estar numa boa farra.
BRUNILDE – Meu medo é que ele esteja bebendo. Ele não
pode beber, Aspázia. Quando ele bebe, ele faz bobagem.
(Mudando de tom.) Falar em bobagem, Aspázia: o Lourenço
viu o ensaio da nova peça do Juliano. Diz que eles vão jogar um
pedaço de fígado cru na cara da mulher do prefeito...
ASPÁZIA – Fígado cru?
BRUNILDE – Na esposa do comendador!
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ASPÁZIA – Oh, meu Deus! Ele quer matar o pai dele de
vergonha.
BRUNILDE – Diz que fala até de mim: que eu sou doente, que
não tenho um seio, que sou isso e aquilo...
ASPÁZIA – Os outros só falam bem da família, só elogiam: ele
não. Parece que quer nos expor à execração pública.
BRUNILDE – Se eu fosse você, eu impedia, Aspázia. Impedia,
porque vai ser um escândalo. Diz que aquela menina, a filha da
Jurema...
ASPÁZIA (Pronuncia o nome com ódio) – A Baby!
BRUNILDE (Horrorizada) – Diz que fica nua!
ASPÁZIA – Ah, aquela lá faz qualquer coisa pra aparecer.
BRUNILDE – Dizem que ela abriu a porteira lá da chácara do
Seu Hipólito, coitado... pra fazer reforma agrária.
ASPÁZIA (Indignada) – Que fazer ‘reforma agrária’! Aquela lá?
BRUNILDE – Destruíram todos os gerânios da Dona Lúcia. Ela
falou: ‘Brunilde, você precisava ver – pareciam uns cavalos!’
ASPÁZIA – Que querem esses estudantes, afinal? Você sabe?
(Brunilde segue Aspázia até o quarto, tentando tirar o filho,
que lhe volta novamente à cabeça.).
BRUNILDE – Nossa: esse quarto está precisando é de uma boa
faxina. (Aspázia pega uns livros e leva-os para a cozinha.
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Brunilde vem atrás dela, carregando alguns.) Que é isso?
Chinês?
ASPÁZIA – Sei lá! Mas traz aqui, depressa, que eu estou
queimando tudo aqui na cozinha.
SIMONE – Que barulho é esse?...
SARTRE – Parecem chamas crepitando...
ASPÁZIA – Olhe lá, que também está cheio de retratos daquele
barbudo que tá lá na Bolívia...
BRUNILDE – Sabia que ele é médico?
ASPÁZIA – Em vez de exercer a profissão foi se meter em...
BRUNILDE (Grita) – Aqui, Aspázia! Achei um, chamado... (põe
os óculos para ler.) ‘O Vermelho e o Negro’.
ASPÁZIA – Traz também. (Volta à cozinha.) Não achei foi a
vagabunda francesa. Ele deve ter levado ela com ele para a
escola. (Simone e Sartre, aproveitando uma distração de
Brunilde, tentam alcançar a porta da rua, levando poucos
pertences. Abrem a porta e dão de cara com a suástica
pintada no muro.).
SIMONE – Uma suástica na parede das freiras!...
SARTRE – E elas nem são progressistas... (Fecham,
rapidamente, a porta, assustados. Brunilde vem por trás e
agarra Simone.).
BRUNILDE (Grita) – Achei Aspázia! Não é esse aqui? (Põe os
óculos.) ‘Simone de...’
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ASPÁZIA (Aparecendo na porta da cozinha, com uma
garrafa de álcool na mão) – Traz aqui que eu tô com o álcool.
(Brunilde arrasta Simone pelo pescoço. Juliano chega da
escola, com Francisco. Entra falando.).
JULIANO – Não teve aula. (Dando conta do que está
acontecendo.) Pára! Que estão fazendo?
SIMONE – Ela já queimou Calígula, Salambô, Madame Bovary...
SARTRE – Miguel Strogoff!...
JULIANO (Pegando do chão, horrorizado) – Meu Júlio Verne!
ASPÁZIA – Quer ser preso, quer? Já não prenderam o filho
da... (Juliano faz sinal para que ela repare em Francisco, que
está parado na porta. Ela abranda o tom.) Oi, Francisquinho!
Alguma notícia do seu irmão?
FRANCISCO – Não, senhora...
ASPÁZIA – Sua mãe, coitada, deve estar...
BRUNILDE (Nervosa) – Juliano: o Lourenço disse para onde
ia?
JULIANO (Recolhendo os livros chamuscados) – Você não
foi princesa etíope coisa nenhuma: foi Torquemada!
ASPÁZIA (Grita) – Hermes: ele tá me ofendendo, Hermes!
(Hermes tosse.).
BRUNILDE – Ela foi princesa etíope, sim. Quem foi
Torquemada foi...
JULIANO – Cale a boca aí, ‘Cleópatra’!
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ASPÁZIA – Ele aproveita porque sabe que o pai não pode
levantar, senão dava uma surra nele...
JULIANO (Vindo da cozinha com um livro torrado) – Sua
burra!... ‘O Prisioneiro de Zenda’ não é subversivo!
ASPÁZIA (Furiosa) – Não me chame de burra!
JULIANO (Chorando diante de restos de papéis queimados)
– Minhas peças de teatro!
ASPÁZIA – Tudo contra a família, Brunilde; contra a sociedade!
JULIANO (Grita) – Eu odeio a sociedade! Odeio!
BRUNILDE – Você é muito revoltado.
ASPÁZIA – Enquanto ele não destruir a família, ele não
sossega.
JULIANO – Essa família burguesa, horrorosa!
ASPÁZIA – Você, por acaso, é nobre?
JULIANO (Superior, megalômano) – Eu sou um Habsburg,
minha cara, um Romanov! Você deve ter me raptado em algum
palácio! Eu não sou seu filho!
ASPÁZIA – Não é mesmo! ‘Romanov’... era só o que me
faltava. (Resmunga.) Deixa as meias todas jogadas pelo quarto:
não põe no cesto de roupa suja...
JULIANO (Expulsando-a) – Saiam do meu quarto, as duas.
Fora! Xô! Xô! (Fecha a porta. Nisso lembra-se de que Simone
ficou do lado de fora. Abre e puxa-a para dentro. Nesse
ínterim, Sartre ligou o rádio – desses antigos, de caixa
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ovalada. Ouvem-se sons indistintos. A transmissão está
muito ruim. Entra música. Sartre anuncia com gravidade.).
SARTRE – Mataram García Lorca! (Todos se olham
penalizados. A música aumenta.).
ASPÁZIA (Na sala) – Ele não vive na realidade, Brunilde. Pensa
que o mundo é só fantasia...
SARTRE (No quarto) – Foi Hemingway que deu a notícia.
SIMONE – Se não estiver bêbado... (Sartre está junto ao rádio
– de vez em quando se ouvem fragmentos de canções
revolucionárias republicanas, entremeadas por estática.).
ASPÁZIA (Na sala) – Nunca vi gostar tanto de velharia. Parece
que vive no passado.
JULIANO (No quarto, surpreso, como se o futuro pessimista
que se anunciava houvesse chegado depressa demais) – Já
começou a Guerra Civil Espanhola?...
SIMONE – Sim, Juliano. O fascismo se instala às nossas portas.
Estamos no limiar da catástrofe.
SARTRE – Apenas um ensaio do que irá suceder muito em
breve.
ASPÁZIA (Na sala) – Em vez de se preocupar com o aqui, o
agora, não: vive só preocupado com gente que ele nem
conhece.
BRUNILDE – Aspázia: vê se me ajuda a convencer Lourenço a
ir trabalhar com o sogro.
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ASPÁZIA (Magoada) – Tirou o retrato do Hermes do portaretratos e pôs aquele barbudo, aquele estranho.
SARTRE (No quarto, captando algo no rádio, grita) – Málaga
caiu!
TODOS (Consternados) – Málaga!...
BRUNILDE (Na sala) – Que futuro tem um advogado, Aspázia?
ASPÁZIA – Que é que aquele homem fez por ele, Brunilde? O
quê?
SARTRE (No quarto, tentando ouvir um discurso de ‘La
Pasionaria’) – ‘La Pasionaria’ está dizendo que os fascistas ‘no
pasarán’.
BRUNILDE – Todo o mundo é advogado no Brasil, Aspázia!
JULIANO (Emocionado, a Francisco) – No pasarán! No
pasarán!
ASPÁZIA – O pai se matando por ele e...
FRANCISCO (Emocionado) – No pasarán!
BRUNILDE – Lourenço precisa de algo que tenha futuro.
ASPÁZIA (Decidindo-se) – Ah, não. Mas isso não vai ficar
assim. (Dirige-se ao quarto do filho. Brunilde vai atrás.
Aspázia abre a porta, seguida por Brunilde, no momento
exato em que todos estão gritando, olhando para a porta,
como se desafiando o destino.).
TODOS (Emocionados) – No pasarán! (Aspázia fecha a porta,
depressa, achando que eles estão gritando para ela.).
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ASPÁZIA (Na sala) – Não vai passar, mesmo! Vai levar bomba
de novo! Vão ser reprovados outra vez: você e o seu amiguinho.
(À Brunilde, furiosa.) História do Brasil que é bom, ele não
estuda.
SARTRE (No quarto, verificando que a caneca está vazia) –
Vá buscar mais café. E traga mais aspirinas.
JULIANO – O senhor abusa da anfetamina, Monsieur. Por que
não cuida da saúde?
SARTRE – Pra quê, se viver consiste em observar sem parar?
Há mais ou menos dez anos sou um homem que acorda, curado
de longo, amargo e doce desatino, que custa a se acostumar,
que tem que achar graça nos erros que cometeu e não sabe
mais o que fazer com a vida... (Põe-se a falar sem parar.).
SIMONE – Vá depressa: Sartre não pode parar. (Juliano dirigese à cozinha. Na sala, Brunilde está tensa, à espera de
algum acontecimento.).
ASPÁZIA – Eu não venço comprar café. Ele quer levar o pai à
falência. Faz piquenique no quarto.
SIMONE (A Francisco, após captar algo no rádio) – Avise
Juliano que Franco se prepara para entrar em Madri. E peça
para ele me trazer um uísque. (Francisco abre a porta e ouve
Aspázia falando dele. Permanece com a porta entreaberta,
ouvindo.).
ASPÁZIA – Esse menino não presta, Brunilde. Aliás: a família
toda dele é desajustada. Diz que vai ser ‘ator’. É ele que leva o
Juliano pro mau caminho; fica enfiando minhoca na cabeça dele.
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(Brunilde volta-se e vê Francisco. Fica sem graça e sorri.
Francisco fecha a porta, constrangido. Brunilde vai avisar
Aspázia, quando a campainha toca. Ela, então,
imediatamente se levanta, enquanto Aspázia vai abrir,
continuando a falar.) O Juliano não fumava; o Juliano não
bebia; o Juliano não me respondia; era outro menino! Depois
que se junto com esse daí, mudou completamente.
(Categórica.) Eu vou proibir ele de entrar aqui em casa! (Entra
Lourenço.).
BRUNILDE – Onde você se meteu?... Eu já tava ficando
desesperada.
LOURENÇO (Distante, perdido, finalmente diz) – Por que
estão com tanto medo? (Juliano aparece na porta da cozinha
com uma garrafa térmica. Francisco toma coragem, abre a
porta e sai do quarto.).
FRANCISCO – Juliano: Franco está entrando em Madri!... (Ao
ver Francisco, Lourenço sai, imediatamente, do estado de
apatia, como se tivesse levado um choque.).
LOURENÇO (Como se estivesse vendo um fantasma) – O
que ele está fazendo aqui?...
JULIANO – Ele é meu amigo...
FRANCISCO (Mortalmente constrangido) – Eu já vou indo,
Juliano...
JULIANO – Não vai levar o Sartre?
FRANCISCO – Depois você me empresta... (Lourenço segurao fortemente pelo braço.).
LOURENÇO – Não quero ver você aqui, nunca mais!
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JULIANO – Lourenço!... (Francisco cai num pranto
convulsivo e sai apressadamente.).
BRUNILDE – Não é melhor irmos para casa?... (Ele não
responde. Vai até a janela, afasta a cortina e espia Francisco
afastar-se. Aspázia resolve ajudar a irmã.).
ASPÁZIA (Piscando para a irmã) – Brunilde: o ‘Doutor Eça’
não tinha mandado um recado pro Lourenço?
BRUNILDE (Entendendo) – Ah, é! Lourenço: ele quer falar
urgente com você! (Lourenço ri e continua rindo cada vez
mais.) Lourenço!...
LOURENÇO (Rindo sem parar) – Ela conversa com os
espíritos: bate papo com eles.
BRUNILDE – Meu filho: não deboche... (Olha para o alto,
como se pedindo perdão para os espíritos presentes.).
LOURENÇO (Grita) – Sua doida!
ASPÁZIA – Lourenço!... (Juliano vai para o quarto.).
LOURENÇO (Um tanto circunspecto) – Da morte ninguém
volta. (Caminha em direção ao quarto de Juliano.).
SIMONE (No quarto, a Juliano, excitada) – Hitler invadiu a
Tchecoslováquia! Chamberlain...
JULIANO (Fazendo-a calar-se) – Shhhh! (Sartre desliga,
rapidamente, o rádio e fecha, silenciosamente, a porta do
terraço. Lourenço entra no quarto. Simone se esconde na
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estante. Lourenço tem nas mãos, um belo relógio, desses
antigos, de pôr no bolsinho do colete. Brinca, meio
nervosamente, com a correntinha do relógio nas mãos.).
LOURENÇO (Dando uma geral no quarto, com os olhos) –
Então é aqui que você se esconde? (Repara na porta fechada
do terraço.) Esta porta dá pra onde? (Abre a porta: não há
nada, atrás. Apenas um fundo neutro, indistinto. Lourenço
volta-se para ele, irritado.) Por que está sempre com ele?
JULIANO – É o meu melhor amigo.
LOURENÇO – Não te disse pra tomar cuidado?
JULIANO – Por causa do irmão dele?...
LOURENÇO – Por que essa pergunta?
JULIANO – Por nada... Que motivo poderia haver?
LOURENÇO (Grita) – Eu é que faço as perguntas! Nunca vi o
irmão dele. Nem sei quem é. O que me preocupa é o falatório
envolvendo o nome da nossa família.
JULIANO – A Vera ligou umas duzentas vezes. Onde é que
você estava?
LOURENÇO (Exibindo o relógio) – Gosta?
JULIANO – Que relógio é esse?
LOURENÇO – Por que quer saber? É um ‘Patek-Phillip’.
Ganhei. (Guarda-o no bolso, ou pensa assim, pois, sem
perceber, deixa-o cair: Juliano, entretanto, também não vê o
relógio cair e pergunta.).
JULIANO – Da Mara?...
LOURENÇO – Está fazendo chantagem comigo, a cadela!
63
JULIANO – Chantagem?...
LOURENÇO – Está grávida. Ameaçou contar pra Vera.
(Levanta-se, parando diante de Simone, imóvel na estante,
como se resolvesse contar para ela.) Estávamos na estrada,
quando ela me contou. ‘Vamos transar’ – eu disse. Ela foi
tirando a roupa e, quando ficou nuazinha, empurrei ela pra fora
com o pé e arranquei com o carro. (Lourenço diz isso,
absolutamente não achando que tenha feito nada de mau:
ele agiu certo, ele é a vítima nessa história sórdida. Olha
para o primo, como quem diz: ‘olha como aproveitam de
mim, porque sou bom...’).
JULIANO – Deixou ela nua na estrada?
LOURENÇO (Reparando no cachimbo de Sartre que está
sobre a mesinha) – Desde quando você está fumando
cachimbo?
JULIANO – Deixou?...
LOURENÇO (Puxa um papel que está na máquina de
escrever de Simone. Lê) – ‘É impossível jogar luz sobre a
própria vida sem iluminar, num ponto ou outro, a dos outros’.
(Pensa um pouco a respeito e pergunta.) Foi você que
escreveu isso?
JULIANO (Mentindo) – Foi.
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LOURENÇO – Vê se deixa a minha vida apagada. Você pode
não gostar do que vai ver... (Na sala, o telefone toca.
Lourenço grita do quarto, mas Brunilde, na sala, atende.).
BRUNILDE – Alô!...
LOURENÇO (Grita) – Eu não vou falar com ela!
BRUNILDE – É um homem te procurando. Diz que é um amigo.
(Lourenço vai até o telefone. Há uma tensão disfarçada no
ar.).
LOURENÇO – Alô! É ele... Por que ligou para cá? Não disse
que eu ligava? (Vai ficando meio transtornado com o que
ouve, embora procure disfarçar. Aspázia, tentando diminuir
a tensão, oferece.).
ASPÁZIA – Alguém quer doce de leite?... Quer? (Ninguém
responde.).
LOURENÇO (Pálido) – Já estou indo... (Desliga. Tenta
parecer normal.).
BRUNILDE – Liga pra Vera, Lourenço. Eu prometi que assim
que você chegasse... (Lourenço caminha em direção ao
quarto.).
LOURENÇO (No quarto, a Juliano) – Me dá o revólver.
(Juliano vai pegar. Entrega-o.) Qualquer problema, sabe que
conta comigo. (Esconde o revólver sob a roupa.) Me preocupo
com você. (Dá-lhe um beijo viril no rosto e sai do quarto. Na
sala, Brunilde está no telefone. Ao vê-lo, tapa o bocal com a
mão e diz.).
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BRUNILDE – Fala com ela, Lourenço. Está tão doentinha,
coitadinha... (Ele sequer olha para ela. Dirige-se para a porta,
abre-a e sai.) Lourenço, aonde você vai?... Já dei tudo que era
desculpa: nem sei mais o que inventar... (Sai.).
ASPÁZIA – Você tem razão: nossos filhos precisam casar. Eles
precisam encontrar a tranqüilidade. (Ouve a porta bater. A irmã
saiu. Hermes tosse. Ela pergunta, com resignação.) Tá com
fome?
CENA DOIS
Algum tempo depois, no quarto de Juliano. Simone e Sartre
lêem e trabalham, como sempre. Do terraço descortina-se
Saint-Germain Des Près. Francisco e Juliano estão sobre a
cama, onde há uma infinidade de livros de Regis Debray,
Lênin, Guevara, Rosa Luxemburgo, Marx, Mao, Julião... Um
pôster, parcialmente queimado, de Guevara está pregado na
parede. Juliano lê, emocionado.
JULIANO – ‘Toma, es sólo un corazón... tenlo en tu mano... y
cuando llegue el dia... abre tu mano para que el sol lo caliente!’
(Francisco levanta-se, emocionado, em direção ao pôster,
acaricia-o com ternura e respeito, como se afagasse um
defunto querido.).
FRANCISCO – Viu o corpo no helicóptero?...
JULIANO – Não tive coragem.
66
FRANCISCO – A cara dos índios!... Aquele militar boliviano de
óculos Ray-ban!
JULIANO – Deve ser traficante.
FRANCISCO – A Baby acha que podemos ir pra Serra do Mar
ou da Mantiqueira: que o importante é plantarmos uma semente,
que o país todo, num átimo, se levantará! Ela tem um plano: vai
expô-lo assim que chegar. (Sartre se inquieta.).
JULIANO (Indo até a eletrola e pondo Joan Baez) – Ela não
virá.
FRANCISCO (Decepcionado) – Não?... (Sartre suspira,
aliviado.).
JULIANO – Está arrasada! Diz que não tem ânimo para nada: tá
jogada no divã, catatônica, ouvindo Violeta Parra. Já ensopou
três lenços.
FRANCISCO – O que vamos fazer?
JULIANO – Ler!...
SARTRE (Falando sem tirar os olhos do jornal) – Castro fez
um discurso de mais de sete horas, atacando os intelectuais
franceses.
JULIANO – Por quê?
SIMONE – Porque assinamos uma delicada cartinha de
protesto, contra a prisão de Padilla.
67
FRANCISCO (A Juliano, baixinho, meio com vergonha de
não saber) – Quem é Padilla?...
JULIANO – Um poeta cubano, acusado de pederastia.
FRANCISCO (Como se dando razão à detenção) – Vamos
ver. (Em tom de desafio, para Sartre.) Debray diz que uma
porta acaba de abrir-se no país.
SARTRE (Sem tirar os olhos do jornal) – Que uma porta se
abriu é inegável. (Olhando-os com olhar malicioso.) Não se
pode, todavia, prever o que vai passar através dessa porta. (Dá
um risinho safado e volta ao jornal.).
FRANCISCO (Lendo, emocionado) – ‘Fidel, te haré un corto
relato: salimos por la noche con cuatro caballos, pues era
imposible salir en camiones, porque se temia una emboscada...’
(Soluçando.) Ele morreu, Juliano: acabou-se!
JULIANO (Tentando consolar Francisco) – Bem, nós estamos
vivos...
FRANCISCO (Amargo) – Vivos! Espectros, como a Baby,
catatônica no divã! (Grita.) Não quero passar a vida ouvindo
Violeta Parra! Tá me dando uma dor de cabeça... (Nesse
ínterim, Simone trocou Joan Baez por Ravel, e foi
contemplar a vista de Saint-Germain Des Prés, tomando um
drinque no terraço. Juliano censura-a.).
JULIANO – Madame!...
SIMONE – Ravel está acima da política.
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SARTRE (Fechando o jornal) – Padilla foi solto. Redigiu uma
autocrítica delirante. Acusa meio mundo de ser agente da CIA.
(Abre e fecha o ‘L’Humanité’.) A mulher dele também fez sua
autocrítica: declarou que a política a tratou com ‘ternura’... (Abre
o ‘Le Monde’.).
FRANCISCO (Indignado) – Só falta ele dizer que uma
verdadeira gangue de policiais controla a ilha. (Desconfiado.)
Ele não é da CIA, não?
JULIANO – Shhhh!
SARTRE (Fecha o jornal e suspira) – Castro me considera um
inimigo.
JULIANO – O senhor se abala com isso?
SARTRE – Há muito tempo não tenho mais ilusões sobre
Cuba...
FRANCISCO – Não sei como você vai atrás dele. Esse tipo de
‘pensador’ já era. Ação, Juliano, ação!
SARTRE – Desde quando eu me engajei em política, eu não
perdi nunca o sentido da liberdade. Nunca pertenci a nenhum
partido – mas sempre achei que o colonialismo é um roubo! E
que, mais cedo ou mais tarde, os colonialistas vão ter que abrir
mão de suas colônias. Eu visitei o Brasil em 1960. Em 1964 os
militares tomaram o poder. Eu apoiei as guerrilhas urbanas...
(Francisco corta-o.).
FRANCISCO – Falar de guerrilha em Saint-Germain Des Près!...
Tem que fazer como o Debray – ir pra selva! (Olha-os com
desprezo.) Esses dois não sobreviveriam um dia dormindo ao
69
relento, atacados por mosquitos gigantescos, serpentes
venenosas; sujeitos à areia movediça, à febre dos pântanos...
SARTRE – Pena na Bolívia não haver pigmeus: a aventura
ficaria completa!
FRANCISCO (Grita) – O mundo não se transforma no papel.
Pensa, por acaso, que a Terra não se moverá se o senhor não
pensar a respeito?
SARTRE – Todo mundo fala de mim e vive me jogando lama.
Desconfio, Castor, que seja esse o meu destino. (Preocupado.)
Logo eu, que sempre soube dizer o que as pessoas queriam
ouvir...
SIMONE (Carinhosa) – Não se martirize Jean-Paul! Nenhum
outro escritor deste século escreveu sobre tantos assuntos:
política, literatura, crítica literária, jornalismo, estética... (Sartre
reassume o orgulho.).
FRANCISCO – Estou me sentindo uma traça de biblioteca.
Diga-lhes: você não daria tudo para estar, agora, em Sierra
Maestra? (Juliano não responde. Olha meio indeciso, para
Sartre e Simone.) Eu, você, a Baby...
SARTRE (Baixo, à Simone) – Não me surpreenderia encontrar
a Baby numa reunião do Politburo!
JULIANO – Prefiro lutar com as palavras.
FRANCISCO (Chocado) – O quê?... Prefere ficar pensando em
vez de agir? Você também é traça de biblioteca?
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JULIANO – Amo os livros. (Tira a camisa e veste um robe de
seda, como se para dar início a um ritual. Exibe um livro,
todo chamuscado.) Não parece um minissantuário?
(Francisco olha, com má vontade.) Toque-o! (Ele toca, malhumorado.) Honre suas mãos com a sua poeira. (Mantendo as
mãos do amigo sobre o livro.) Quando era pequeno, achava
que os livros eram ‘caixas’.
FRANCISCO (Desconcertado) – Caixas?...
JULIANO – Sim: que se fendiam como ostras, e descobria a
nudez de seus órgãos interiores...
SARTRE (Desconfiado) – Estou reconhecendo este texto!...
JULIANO – Folhas amarelecidas e emboloradas, ligeiramente
intumescidas... (Francisco retira a mão de sobre o livro,
assustado.).
FRANCISCO (Senta-se na cama) – Hoje é o pior dia da minha
vida. O pior! (Tenta chorar, mas não consegue.) Não consigo
nem chorar. Põe Joan Baez de novo? (Juliano volta-se para a
vitrola e põe ‘Mon Coeurs S’Ouvre à ta Voix’, de ‘Sansão e
Dalila’, com a Callas. Francisco fica desconfiado.) O que é
isso? (Juliano olha-o significativamente.).
JULIANO – Callas: ‘Sansão e Dalila’, a cena da sedução.
(Embora estejam os dois muito desconcertados – como se
não fossem os atores certos para aquela peça -, Juliano
dispõe-se a encarnar, senão os maneirismos, pelo menos o
‘clima’ dessas situações, geralmente protagonizadas por
homossexuais de meia-idade.).
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FRANCISCO (Assustado) – Por que está me olhando desse
jeito?...
JULIANO – Desse jeito, como?...
FRANCISCO – Assim...
JULIANO – Ora: é o meu jeito.
FRANCISCO – Tá parecendo um...
JULIANO – Quer tomar alguma coisa?
FRANCISCO – Tem rum?
SARTRE – Quem ele pensa que é: Visconti cortejando Alain
Delon? (Enquanto Juliano prepara a bebida, Francisco abre
o Debray e lê, desconfiado, de olho nele.).
FRANCISCO – ‘Llegamos ahora al punto más importante: la
nueva política imperialista para con Latinoamérica.’ (Juliano
oferece-lhe o copo. Ele pega. Juliano retém-lhe a mão.) Por
que está segurando a minha mão? Solte o meu dedo...
JULIANO – Não!...
FRANCISCO – Solta! (Puxa o dedo. Senta na cama e
continua a ler.) ‘Aqui hay que abandonar todo simplismo y...’
JULIANO (Sentando a seu lado, bebericando) – Abandonar o
quê?
FRANCISCO (Censurando-o) – Preste atenção. (Juliano
coloca meio corpo sobre o seu, fazendo menção de acender
o abajur que está do outro lado da cama. Francisco dá um
salto.) Que está fazendo?...
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JULIANO – Vou acender o abajur... (Acende. Francisco torna
a sentar e continua a ler.).
FRANCISCO – ‘Y ver el imperialismo tal como es, o sea,
complejo.’ (A luz do abajur pisca e apaga. Juliano debruça-se
sobre ele para mexer no interruptor.).
SARTRE – Castor, ele vai estuprá-lo!...
SIMONE – Segura ele, Jean-Paul! (Juliano deixa-se cair sobre
ele, e tenta beijá-lo. Francisco dá um pulo, empurrando
Juliano, que bate com a cabeça na cabeceira da cama;
Francisco machuca o cotovelo na quina; o abajur voa longe.
Um desastre completo.).
FRANCISCO (Gemendo) – Ai, meu cotovelo!...
SIMONE (Socorrendo Juliano) – Não se deixe dominar pela
sensualidade. Não há risco maior para um criador.
SARTRE – Faça como Freud: sublime!
JULIANO – Ai! Pare de falar e vê se não rachou a minha
cabeça. (A Francisco.) Estou doente.
FRANCISCO (Abraçando a Debray) – Você tem que lutar
contra essa anomalia. Vamos para a Serra do Mar...
JULIANO (Grita, ameaçador) – Doente!
FRANCISCO (Em pânico) – Não há desvio que a luta armada
não cure! (Senta o Debray na cabeça dele, atordoando-o.
Então, subitamente, repara no ‘Patek-Phillip’ caído ao chão,
ao lado da bergère.) Onde achou isso? (Pega o relógio.)
Como foi que ele veio parar aqui?...
JULIANO – Lourenço deve tê-lo esquecido...
73
FRANCISCO – Lourenço?... Mas esse é o relógio do meu irmão!
JULIANO – Seu irmão?...
FRANCISCO – É o ‘Patek-Phillip’ que meu avô deu pra ele.
Como é que estava com Lourenço? (Olham-se intrigados.
Juliano desliga a vitrola.).
JULIANO – Que relação pode haver entre seu irmão e
Lourenço? Eles não se conheciam.
FRANCISCO – Estiveram juntos no trote.
JULIANO – Ele me disse que nunca o viu.
FRANCISCO (Grita) – Mentiu! Muita gente sumiu da faculdade!
SIMONE (A Sartre) – Pra mim está claro que o primo é um
fascista de direita...
JULIANO – Seu irmão não é nenhum anjo. Você mesmo não
disse que ele tinha uma lista dos burgueses que deveriam ser
assassinados?
SARTRE (Observando) – Não se esqueça Castor, que direita e
esquerda são duas paralelas que, de uma forma ou de outra,
acabam sempre se encontrando. Principalmente na América
Latina, onde os pobres infelizes são obrigados a viver sob um
regime de força de esquerda ou sob o tacão dos militares...
SIMONE (Com sinceridade) – Haverá algum lugar no mundo
onde possamos colocar nossa esperança? (Pausa.) Vou buscar
mais café.
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SARTRE – Tome cuidado. (Simone abre a porta,
cautelosamente, e vai até a cozinha, atravessando a sala –
que está na penumbra – como se andasse sobre terreno
minado. A porta do quarto de Aspázia está levemente
entreaberta. Ouve-se o som de TV e a luz característica do
vídeo. A tosse intermitente de Hermes. Simone desaparece
dentro da cozinha.).
FRANCISCO (No quarto) – Me lembro agora, que ele me disse
que da última vez que foi interrogado, ouviu o seu nome.
JULIANO (Surpreso) – O meu?...
FRANCISCO – Contou que estava sendo interrogado numa
dessas casas que eles usam como disfarce e... (A campainha
toca. Simone tenta correr para o quarto, mas Aspázia sai do
seu quarto, de robe, e vem abrir a porta.) Ele não podia ver,
porque estava encapuzado, mas percebeu que entre eles havia
um bêbado, que chorava e dizia: ‘eu bebo por causa do Juliano’!
ASPÁZIA (Abrindo) – Lourenço!... (Ele entra sem dizer nada.
Ela vai atrás, deixando a porta entreaberta.) Sua mãe ligou; a
Vera também, e até uma tal de... Mara! Disse que tá te
esperando no... (Dá um pedaço de papel para ele.) Tome: eu
anotei o endereço. (Ele deita no sofá.).
LOURENÇO – Estou cansado, tia. Tão cansado... (Fecha os
olhos, parecendo dormir. Ela faz uma pausa e, a seguir,
chama-o.).
ASPÁZIA – Lourenço!... (Ele abre os olhos e olha-a
fixamente, como se quisesse ver através dela. Ela fica meio
assustada e diz.) Vou te trazer um café bem forte... (Vai para a
75
cozinha. Entra, mas logo sai com Simone, colocando-a no
sofá, ao lado dele. Ficam os dois, Simone e Lourenço, lado
a lado. Lourenço está com os olhos fechados. Do quarto
chegam as vozes de Juliano e Francisco.).
JULIANO – O seu irmão inventou isso.
FRANCISCO – Por que ele iria inventar? Ele nunca suspeitou
que entre o torturador bêbado e você pudesse haver qualquer
ligação.
JULIANO (Grita) – E não há! (Ao ouvir a voz de Francisco,
Lourenço, imediatamente, desperta. Levanta-se e caminha
em direção à porta do quarto. Simone está imponente no
sofá. Ele entreabre, ligeiramente, a porta e espia. Aspázia
sai da cozinha com uma xícara na mão.).
ASPÁZIA – Está bem forte... (Vê o sobrinho parado na porta,
espiando. Ele volta-se para ela.).
LOURENÇO – Shhhhhh! (Ela fica parada no meio da sala,
segurando a xícara.).
FRANCISCO (No quarto) – E tem mais: no dia que ele
desapareceu, alguém ligou lá pra casa, dizendo que um tal de
‘Luciano’ queria falar com ele.
JULIANO – Não pensa que fui eu que liguei, pensa? (Sartre,
vendo a porta entreaberta, pensa ser Simone, e caminha em
direção a ela.).
SARTRE – Castor?... É claro que foi Lourenço. Deve estar
metido até o pescoço nisso. Por que não seguem a pista mais
óbvia? E pensar que ‘A Flauta Mágica’ é aquela simplicidade...
76
(Abre a porta. Lourenço irrompe para dentro, derrubandoo.).
LOURENÇO – Mas olhem o que vejo: as duas bonecas!
(Chama.) Tia: venha ver. Peguei as duas! No flagra! (Aspázia
pára na porta, sem entrar. Simone, aproveitando a
confusão, levanta-se do sofá e aproxima-se também da
porta. Para Francisco, que está com o relógio na mão.) Não
disse que não queria mais te ver aqui?
JULIANO – Pára com isso!...
LOURENÇO – Esse relógio, por acaso, é seu? (Francisco faz
que não com a cabeça. Aterrorizado, estende o relógio para
ele. Lourenço acerta as horas e dá corda.) Tenho nojo de
vocês. Nojo! (Para Juliano.) Conta pra ela por que não foi mais
à piscina!
JULIANO – Já disse que foi porque venceu meu exame médico
e...
LOURENÇO (Grita) – Conta!
ASPÁZIA (Ouvindo Hermes tossir) – Olha lá: vocês estão
assustando o Hermes. Ele está ficando assustado...
LOURENÇO – Os dois estavam...
JULIANO (Grita) – É mentira!
LOURENÇO – Mas o pior vem depois, no vestiário...
ASPÁZIA (Grita) – Não quero saber!
JULIANO – Que prazer você sente em me humilhar?
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LOURENÇO – Eu?... Mas eu quero te ajudar. Pergunte à Vera
se não é verdade. Sem mim, você estaria perdido. (Para
Francisco.) Não vai contar o que aconteceu no vestiário?
(Francisco olha para o relógio nas mãos dele.).
FRANCISCO (Grita, denunciando Juliano) – Foi ele! Ele que
quis! Ele que quis. Eu não queria. Ele insistiu, me obrigou...
(Hermes tosse.).
LOURENÇO – Está ouvindo, tio Hermes? (Hermes faz
silêncio.).
ASPÁZIA – Não é nada, não, Hermes. Está tudo bem. É o
Juliano que está lendo uma peça de teatro. (A eles.) Agora
chega! Vamos cada um pra sua casa... (Aspázia olha para
Lourenço determinada a enfrentá-lo, se necessário. Tenta
ocultar o ódio que sente naquele instante pelo sobrinho, por
obrigá-la a encarar revelações que lhe causam desconforto
e que ela, simplesmente, se recusa a confrontar.) Vai pra sua
casa! (Lourenço olha para Juliano, como se sua boa-fé
houvesse mais uma vez sido traída.).
LOURENÇO – Você me decepcionou. Completamente!
(Aspázia perde finalmente o controle e explode.).
ASPÁZIA – Vai pra sua casa! (Num ímpeto agarra o braço de
Lourenço, que a olha espantado, porém não opõe
resistência, deixando-se conduzir até a porta. Ele sai.
Aspázia fecha a porta. No quarto de Juliano estão todos
arrasados. Francisco não sabe o que dizer. Não conseguem
olhar-se no olho.).
78
FRANCISCO – Vou indo... (Pára. Volta-se.) Fiquei com medo,
Juliano. Sabia que era isso que ele queria ouvir e menti...
Desculpe. (Faz um gesto em direção a ele. Juliano empurra
Sartre.).
ASPÁZIA (Grita da sala) – Juliano: chega!
JULIANO – Leva o Sartre.
SARTRE (Protesta) – Mas... (Francisco pega-o, agradecido,
como se o Sartre fosse o símbolo do perdão de Juliano. Diz,
com lágrimas nos olhos.).
FRANCISCO – Obrigado... Vou ler com a maior atenção.
SARTRE (Impotente, voltando-se para Simone) – Castor!...
(Saem. Juliano fecha a porta. No terraço, Paris retornou.
Simone está abatida, triste, sentada ao lado do rádio.
Juliano liga-o: ouve-se ‘J’attendrai’, com Rina Ketty. Juliano
senta-se à máquina e começa a escrever. Na sala, Francisco
– com Sartre – despede-se de Aspázia.).
ASPÁZIA – Por favor, vá para sua casa. (Ele sai com Sartre.
Aspázia desaba arrasada na poltrona: as revelações de
Lourenço causaram-lhe uma insuportável solidão.
Permanece apática, olhando para o vazio. No quarto,
Simone levanta-se e vai ao terraço. Ao fundo, o Sena, com a
Ilha da Cité. Ela pergunta, sem se voltar.).
SIMONE – Por que você nunca me empresta? (Ele pára de
escrever, desliga o rádio. Levanta-se, olha-a e responde.).
JULIANO – Porque você é minha! (O Sena escurece, como se
a noite tivesse, subitamente, caído sobre Paris. Os dois
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estão contra o terraço. Simone leva os dedos sobre os
lábios dele e murmura.).
SIMONE – Mon petit Julian... (Ele segura a mão dela sobre os
lábios e beija. Na sala, Aspázia continua sentada, apática.
No quarto, a silhueta dele e de Simone abraçados na
contraluz, tendo ao fundo a Notre-Dame. A luz vai caindo
lentamente.).
FIM DO SEGUNDO ATO
TERCEIRO ATO
CENA UM
Quarto de Juliano. Madrugada. Juliano dorme, estirado na
cama. O dorso nu. Simone, iluminada apenas pela luz de um
pequeno abajur, sobre o bureau, escreve uma carta a seu
amante americano.
SIMONE (Off) – ‘Nelson, meu único amor. (Pára. Verifica se
Juliano está dormindo e continua.) Apesar de você estar em
Chicago e eu em Paris, não estamos separados. Porque nada
nem ninguém nos poderá separar. Jamais! Serei sua mulher
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para sempre. (Como que pressentindo algo, pára: pareceu
ter ouvido ruídos na sala. Lourenço está na sala, no escuro.
Dá alguns passos em silêncio e pára. Simone continua,
baixinho, para não acordar Juliano.) Meu amor distante... Te
procuro em vão pelas ruas de Paris. Quando nos
reencontrarmos, dentro de... (Faz uma pausa, olhando
preocupada para a porta. Continua.) Oh, meu amado do
Mississipi – mon cher amour -, meu verdadeiro marido, meu
único amor.’ (Na sala, Lourenço caminha em direção à porta
do quarto e abre-a. Simone, imediatamente cala-se, olhando
surpresa para ele, que permanece parado na porta.
Finalmente caminha em direção à cama e fica olhando o
primo dormir. Juliano, então, acorda.).
LOURENÇO (Pausado e ameaçador) – Soube que está me
investigando... (Empurra Simone. Abre a gavetinha do bureau
e começa a remexer nos papéis.).
JULIANO – O que está procurando?
LOURENÇO – Cadê aquela coisa que escreveu?
JULIANO – Que coisa?
LOURENÇO – Sobre ‘jogar luz sobre a vida dos outros...’
(Volta-se para ele.) Vim te dizer isso: não mexa comigo. (Volta
a procurar. Desiste. Volta-se angustiado para ele.) Por que
ele faz isso? (Ouvem-se buzinas lá fora. Ele olha irritado em
direção à sala.).
JULIANO – Por que eu te ameaço?
LOURENÇO – Soube que vai fazer um eletro...
JULIANO (Grita) – Por que eu te ameaço?
LOURENÇO – Você está doente. Tem que se tratar.
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JULIANO – Qual é o seu segredo?
LOURENÇO – Não tenho segredo algum.
JULIANO – O que foi que eu ‘quase’ descobri?
LOURENÇO – O quê? (Grita.) Nada! Nada! Não tenho nada a
esconder. (Ameaçando-o.) Deixe a minha vida em paz. É a
última vez que te aviso. Você está maluco, ó. É o que todo
mundo diz.
JULIANO – Pensa que me assusta com essa história de todo
mundo? Sei, agora, que todo mundo não passa de você mesmo.
Todo mundo é a sua solidão, Lourenço.
LOURENÇO (Tentando não parecer atingido) – Minha o
quê?...
JULIANO – Quer saber por que não fui mais à piscina?
LOURENÇO – A verdade?
JULIANO – Você, Lourenço, me expulsou.
LOURENÇO (Indignado) – Eu te defendi!
JULIANO – Sim, você me ‘defendeu’. (Grita.) Do que você
mesmo criou!
LOURENÇO – Você é fraco. Sem mim estará perdido. Eles vão
te trucidar, vão te destruir!
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JULIANO – Quer me transformar em vítima. Mas isso eu não
vou permitir. Está me entendendo? Nunca serei uma vítima.
Nem sua nem de ninguém!
LOURENÇO – Se há uma vítima aqui, sou eu.
JULIANO – Você?...
LOURENÇO – Eu é que sou a vítima. Sua vítima, Juliano. Sua!
(Simone tenta, discretamente, intervir.).
SIMONE – Juliano...
LOURENÇO (Abatido) – Quanta ingratidão. (Grita.) Você está
doente. Está louco!
SIMONE – Impossível amar ou detestar essa entidade: o
Homem!
LOURENÇO (Empurrando-a) – Esse livro está sempre no
caminho.
JULIANO (Grita) – Deixa ela em paz!
LOURENÇO – ‘Ela’? ‘Ela’ quem, Juliano? Não digo que está
maluquinho? É apenas um livro idiota, tolo e inútil. (Dá um
pontapé em Simone. Juliano pula em cima dele.).
JULIANO – Deixe ela em paz! (Com tristeza.) Eu sei, Lourenço.
LOURENÇO – Sabe o quê?
JULIANO – Eu sei!
LOURENÇO (Grita) – O quê? O quê? O quê?
JULIANO – O mesmo que o seu todo mundo sabe!
LOURENÇO – Eu te odeio! Eu te mato!
JULIANO – Some da minha vida: desaparece!
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LOURENÇO – Pensa que vai se livrar de mim? Pensa? Eu
nunca vou te deixar em paz! Nunca! (Lutam pelo chão.
Aspázia sai do quarto vestindo o robe. Olha assustada para
a porta do quarto do filho, mas dirige-se à janela, para
espiar quem está buzinando. Depois, vai em direção à porta
do quarto do filho, mas não tem coragem de abrir. Bate.).
ASPÁZIA – Juliano!... Estão buzinando. Tem gente aí com
você? (Lourenço abre. Aspázia surpreende-se.) Lourenço!...
É de madrugada.
LOURENÇO – Estão fazendo a maior sacanagem comigo, tia. A
maior.
ASPÁZIA – Vocês brigaram? Seu pai – Juliano; sua mãe –
Lourenço - está doente...
LOURENÇO – Todos que me cercam estão doentes. Vivo no
meio de doentes. Sou o único são.
JULIANO (Grita) – É você quem os torna doentes!
ASPÁZIA – Tem uma moça lá fora, num carro. Tá me
parecendo ser aquela amiga da Vera, a... (Buzinas.).
LOURENÇO (Transtornado) – Aquela puta vai se ver comigo.
(Vai saindo do quarto.).
ASPÁZIA (Ao filho) – Escuta: quando fui ver quem estava
buzinando, vi uma mulher lá na esquina, olhando pra cá. Me
pareceu ser a mãe do Francisquinho. (Lourenço, na sala, ao
84
ouvir, pára.) Que é que ela está fazendo ali na esquina de
madrugada? (Juliano vai até a janela e espia. Lourenço
observa e sai.) Que é que está acontecendo? (Grita.) Fala!
JULIANO – Nada!...
ASPÁZIA – Que houve com o Lourenço? Ele se meteu em
alguma encrenca? Que é que ele fez? Que é que ele fez?
SIMONE (A Juliano) – Acho melhor você ir atrás dele. (Juliano
sai atrás do primo. Aspázia tenta detê-lo.).
ASPÁZIA – Juliano: aonde você vai? Volte aqui! (Simone tocaa no braço. Aspázia olha assombrada para ela. Simone
senta-se calmamente no sofá e acende um cigarro. Oferece
para Aspázia.) Eu não fumo, obrigada... (Mas aceita. Simone
acende para ela. Ela também senta. Ficam as duas sentadas
no sofá, fumando. Após alguns segundos, Aspázia fala.)
Soube que você recusa a maternidade...
SIMONE – Não. Não a recuso. Acho apenas que é uma
armadilha infantil para uma mulher...
ASPÁZIA – Mas... somos mulheres!
SIMONE – Ninguém nasce mulher: torna-se mulher! Como não
se pode dizer às mulheres: ‘é uma tarefa sagrada limpar as
panelas’, dizem: ‘é uma tarefa sagrada criar filhos’.
ASPÁZIA – E não é sagrado?...
SIMONE – Já perguntaram alguma vez a Sartre ou a algum
homem se, por nunca ter sido pai, se sente um ser humano
incompleto? (Silêncio de Aspázia. Tempo.).
ASPÁZIA – Lamenta não ter tido filhos?
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SIMONE – Oh, não. Felicito-me diariamente por isso. Quando
vejo essas avós que, em vez de ter um pouco de tempo para si
mesmas, são obrigadas a cuidar dos netos...
ASPÁZIA – Tem razão. (Examina as mãos, as unhas
descascadas.) Não temos mesmo tempo para nada. Mas,
então, por que as pessoas dão tanta importância à família, aos
filhos?
SIMONE – No todo, vivem uma grande solidão. Não têm
amigos, amor, ternura, ninguém. Estão sós. Portanto, fazem
filhos para terem alguém. (Aspázia fica meio incomodada.
Simone continua.) Dá-se o mesmo com o filho: ele se torna um
substituto.
ASPÁZIA – Juliano!...
SIMONE – Em todo o caso, quando cresce, livra-se. Um filho
não constitui absolutamente uma garantia contra a solidão!
ASPÁZIA (Refletindo) – Tem razão. ‘Amo meu filho, mas esse
sentimento não é suficiente para me encher de alegria. Sou uma
mãe frustrada, nem um pouco orgulhosa de ser mãe.’
SIMONE – Para as mulheres que não fazem mais nada, o
casamento é uma espécie de carreira, porém infeliz.
ASPÁZIA – Está querendo dizer que a mulher que se dedica ao
marido e aos filhos está destinada ao fracasso?
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SIMONE – Esposa não é profissão! (Hermes tosse. Elas se
olham.) É preciso que as mulheres trabalhem. Elas devem
participar da marcha do mundo, de uma maneira ativa.
ASPÁZIA (Nervosa) – Mas e as mulheres que já são casadas,
que têm filhos?
SIMONE – Acho que uma mulher dona-de-casa de mais de 35
anos, já está praticamente liquidada.
ASPÁZIA (Chocada) – Oh, não! Não é absolutamente verdade.
Podemos ainda nos defender.
SIMONE – Há mulheres que não têm mais possibilidades.
ASPÁZIA (Horrorizada) – Você quer destruir a família!
SIMONE (Admitindo, com firmeza) – Sim! Como muitas
feministas, desejo a extinção da família, mas sem saber
exatamente o que colocar em seu lugar. Afinal de contas, eu
teria podido me casar com Sartre, mas fomos ajuizados o
suficiente para não o fazer.
ASPÁZIA (Desconfiada) – O que você quer com meu filho?
Veio da França para roubá-lo?
SIMONE – Melhor seria se me perguntasse o que o seu filho
busca em mim. (Pela porta, que permanece entreaberta,
Sartre entra. Dirige-se, apressadamente, para o quarto,
passando por elas, sem vê-las. Simone chama-o.) Jean-Paul.
(Ele pára, olha para elas, intrigado.).
ASPÁZIA – Esse é o...?
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SIMONE – Jean-Paul: essa é a mãe do Juliano. Do nosso ‘petit
Julian’.
SARTRE (Desconfiado) – Já nos conhecemos. Você quase nos
queimou.
ASPÁZIA (Desculpando-se) – Oh: Juliano me deixa num
estado...
SARTRE (Intrigado) – Sobre o que falavam?
SIMONE – Sobre filhos. Sente-se aqui conosco.
SARTRE (Sentando-se no meio delas) – Fazer filhos, não há
coisa melhor: tê-los, que iniqüidade. (Hermes tosse. Ruído de
gavetas.).
ASPÁZIA (Levantando-se) – Ele não está achando o xarope...
SIMONE – Exploram as mulheres e elas se deixam explorar em
nome do amor. (Aspázia faz menção de ir para o quarto. Mas
volta-se para ela e pergunta.).
ASPÁZIA – Você é feliz?
SIMONE – Bem... em toda a minha vida, jamais encontrei
alguém que fosse tão dotada à felicidade como eu.
SARTRE (Completando) – Nem que se empenhasse com tanta
teimosia... (Aspázia olha pela janela. O dia está clareando.).
ASPÁZIA – Ela não está mais lá. (Preocupada.) Já está
clareando... (Juliano surge na porta, ofegante. Sartre e
Simone correm para o quarto. Aspázia cai em si, ao ver o
filho.) Meu filho... O que houve? Onde você esteve? (Faz um
88
gesto em direção a ele. Mas ele recusa e vai para o quarto.
Ela vai atrás dele.).
SIMONE (No quarto) – Que houve?
JULIANO (Enciumado) – Não quero ver de novo vocês dois
com ela. É só eu sair e vocês confraternizam com o inimigo?
Que estavam falando? Ela não entende de literatura, nem de
política, nem de filosofia, nem de... (Desconfiado.) Era de mim
que estava falando? (Grita.) Era?
SIMONE – Conseguiu alcançá-lo?
JULIANO (Ameaçando-os) – Se estiverem armando algum
complô... (Pelo terraço vê-se Paris à noite. Holofotes rasgam
o céu à cata de aviões inimigos. O alarme antiaéreo soa.
Sartre ajuda Juliano a fechar a janela e a cortina.).
SARTRE – Malditos boches! (Ao longe se ouve o som de
canhões antiaéreos.).
JULIANO – O que o senhor está fazendo aqui? Eu não te dei
pro Francisco?
SARTRE – Os carrascos cristãos são os piores, Castor...
(Abraça Simone. Aspázia entra no quarto.).
ASPÁZIA – Você tem que me contar o que está acontecendo.
Que é que o seu primo veio fazer aqui? Que é que a dona Célia
estava fazendo lá na esquina? Você não se mete com ele, hein?
Não se mete com...
JULIANO – Ponha-se daqui pra fora. Esse território é proibido
para você.
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ASPÁZIA (Grita) – Mas eu tenho que saber. Eu não sou seu
pai, não. Aliás... diga pra sua ‘amiguinha francesa’ que as
teorias dela aqui em casa, ó: não funcionam. Aqui quem manda
sou eu! (Hermes tosse. Ela grita.) E você aí, pode tossir à
vontade!
SARTRE (Baixinho, à Simone) – Já houve um progresso: pelo
menos não te chamou de vagabunda... (Vai até o rádio e ligao.).
VOZ DA LOCUÇÃO DO RÁDIO – ‘Les sanglots longs des
violons de l’automne blessent mon coeur d’une languer
monotone... etc.’ (Simone, reconhecendo a senha do dia D,
exclama.).
SIMONE – Verlaine!...
JULIANO – Verlaine!... (Correm ambos para o rádio.).
SARTRE – Os aliados desembarcaram na Normandia!
(Abraçam-se. ‘A Marselhesa’ começa a se ouvir, a princípio,
baixinho. Eles abrem a janela do terraço: fogos de artifício
saúdam a libertação, mas Juliano não está feliz. A
campainha toca. Aspázia fica agitada.).
ASPÁZIA (Nervosa) – Oh, meu Deus! Quem será agora? (Vai
abrir. Brunilde entra, nervosíssima.).
BRUNILDE – Lourenço não dormiu em casa. Desapareceu de
novo. Estou com pressentimento que dessa vez...
ASPÁZIA – Ele esteve aqui, de madrugada.
BRUNILDE – De madrugada?...
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ASPÁZIA – Foi uma coisa horrível! Teve uma briga com o
Juliano; aquela mulher – lembra - que eu te contei que eu vi que
estava rondando a casa? É a dona Célia, a mãe de
Francisquinho.
BRUNILDE – A do rapaz que...
ASPÁZIA – Ontem é que eu descobri. Daí, quando eu falei isso,
ele saiu feito louco. Parecia um alucinado.
BRUNILDE – Mas... por que isso? Por quê? (Lourenço entra
pela cozinha. Elas continuam sem vê-lo.).
ASPÁZIA – Eu perguntei ao Juliano, mas ele não quer dizer
nada. (Lembrando.) Ah, tem também aquela tal de Mara, amiga
da Vera, que ficou buzinando aqui a noite toda.
BRUNILDE (Com ódio) – É ela! É ela, Aspázia, que está
virando a cabeça do Lourenço. O meu medo é esse, Aspázia:
que a Vera acabe descobrindo e... A pior coisa que poderia me
acontecer seria morrer sem ver o meu filho casado. Eu peço a
Deus. Depois Ele pode me levar que nada mais me prende aqui.
(Volta-se e vê o filho.) Lourenço!... (Ele não diz palavra.
Caminha em direção ao quarto de Juliano. Brunilde
insistindo.) Lourenço!...
ASPÁZIA (Preocupada com o estado da irmã) – Brunilde...
calma. (Lourenço abre a porta do quarto. Os dois primos
olham-se fixamente.).
BRUNILDE – Estou passando mal, Aspázia... (Entra em
pânico.) Ai, Aspázia! Tô me sentindo mal. Olha como eu estou
tremendo! Ai, Aspázia, tá ficando tudo preto... (Cai.).
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ASPÁZIA (Grita) – Lourenço!... Sua mãe está passando mal.
(Tentando levantar a irmã.) Brunilde!... Levanta! (Lourenço
volta-se e vai até a cozinha.).
BRUNILDE (Balbuciando, caída no chão) – Chame os
‘Mensageiros da Paz’...
ASPÁZIA – Mas, chamar como?... Não tem nenhum médico seu
que seja vivo? (Coloca a irmã deitada no sofá. Lourenço
volta com um copo d’água. A seguir, abre a bolsa dela, pega
o vidrinho de remédio, tira um e faz a mãe tomar. Ela toma –
obedientemente - totalmente entregue aos cuidados do
filho. Ele ajeita a roupa dela, ajeita-lhe um pouco o cabelo.
Ela diz, meio sem graça, porém orgulhosa, para Aspázia.).
BRUNILDE – Ele é o meu enfermeiro. (Aperta a mão do filho
contra o peito. Lourenço levanta, olha em direção ao quarto,
para Juliano, e murmura.).
LOURENÇO – Se a Vera ligar... (Brunilde, imediatamente,
levanta-se, pega a mão dele, emocionada, e completa.).
BRUNILDE – Diz que ele já-já liga pra ela. (E conduz o filho,
que não põe resistência, até a porta. Juliano caminha
lentamente e fecha a porta do quarto, no mesmo instante
em que Lourenço e a mãe deixam a casa. Passagem de
tempo. Os últimos acordes de ‘A Marselhesa’ vêm encontrar
Sartre prostrado na cama de Juliano. Está muito doente.).
JULIANO (Baixo) – Ele está em perigo?
SIMONE – Sim.
SARTRE – Um dia tem que acabar.
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JULIANO (Tentando animá-lo) – Picasso morreu aos noventa
e dois anos.
SIMONE – Você ainda teria vinte e quatro anos de vida...
SARTRE – Vinte e quatro anos não é muito...
SIMONE (Tirando-lhe a temperatura) – O médico disse que o
álcool e o fumo são seus maiores inimigos. Só pode tomar um
copo de vinho no almoço. (Eles se olham. Olham para Sartre,
que adormeceu.) Shhhhhh!... (Sartre murmura algo,
dormindo. Simone enxuga-lhe a testa.) Delira. Diz que se
encontrou com operários...
JULIANO (A Sartre) – Em que está pensando?
SARTRE – Em nada. Não estou presente.
JULIANO – Onde está?
SARTRE – Estou vazio. (Juliano e Simone trocam olhares.
Aspázia volta da rua. Está vestida sobriamente. Dirige-se à
porta do quarto do filho – que está trancada. Hermes tosse.
Ela então começa a falar com o marido, mas dirigindo-se,
em verdade, ao quarto do filho.).
ASPÁZIA – Foi pouca gente. (Vai tirando a roupa.) O pessoal
do Centro; os doutores Proença e Zuiani carregaram o caixão. E
Lourenço, é claro. A Vera não foi. Não está passando bem.
Também, ela está entrando no sétimo mês... (Fica em dúvida.)
Sete ou oito? (Diante da porta do filho.) Ela gostava tanto de
você, Juliano. (Hermes tosse.) O Dr. Proença leu uma
mensagem que aquele espírito mandou pra ela. Bonita! Fez todo
mundo chorar.
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JULIANO – Pobre ‘Cleópatra’. Nessas horas já deve ter se
encontrado com Osíris.
ASPÁZIA – Quando o caixão desceu, Lourenço atirou uma rosa
vermelha. Ele devia ter atirado branca. (Diz essa última frase
bem próxima à porta do quarto do filho. Encosta o ouvido,
tentando escutar alguma coisa lá dentro. Hermes tosse. Ela
dirige-se à cozinha.).
JULIANO – Pelo menos viu o filho casado. Era o seu maior
sonho. Morria de medo de deixá-lo sozinho. No entanto, ele
sempre estará sozinho.
ASPÁZIA (Voltando da cozinha com um vidro de xarope) –
Você está ficando viciado neste xarope... (Desaparece no
quarto. No quarto de Juliano, Simone e Juliano falam
baixinho. Sartre dorme.).
JULIANO – Ele está cego?
SIMONE (Confirmando) – Não aceita que eu o ajude a cortar a
carne. Seus lábios estão insensíveis; luta com os espaguetes,
leva à boca bocados enormes, deixando-os cair... a boca fica
suja de comida, mas sua memória, íntegra! (Sartre acorda.).
SARTRE – Continuo tão inteligente quanto antes?
SIMONE – Não é a morte que o preocupa: é seu cérebro!
JULIANO – Quer que eu leia a correspondência de Baudelaire?
(Sartre adormece, novamente.).
SIMONE (Enxugando-lhe a testa) – Deseja que grande número
de maoístas acompanhe seu caixão. (À menção da palavra
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‘caixão’, Juliano tenta deitar-se no seu lado da cama, mas
Simone o impede.) Não... A gangrena!
JULIANO – Gangrena?...
SIMONE – Sartre está morrendo! (Pausa.) Deixe-nos ir, Juliano.
(Pausa.).
JULIANO – Quer me deixar?
SIMONE (Olhando carinhosamente para Sartre, que dorme)
– É o meu destino! Morreremos no mesmo dia, na mesma hora:
seremos enterrados na mesma tumba...
JULIANO – Não fale em morte. Vocês salvaram a minha vida.
Sem vocês, eu teria enlouquecido ou me suicidado ou tudo seria
diferente; talvez até para melhor, quem sabe?
SIMONE – Quem sabe? (Pondo uns livros numa valise.)
Levaremos apenas alguns poucos livros. Quer ficar com o
Strindberg?
JULIANO (Aceitando) – Obrigado. (Comovido.) Vocês foram
meus verdadeiros pais.
SARTRE (Acordando, intrigado) – Que é que ele está
falando? Nunca desejei ter um filho. Nunca procurei em minhas
relações com homens mais jovens, um substituto da relação
paternal. (Exaltando-se.) Não sou seu pai!
SIMONE (Delicadamente) – Vista o sobretudo, Jean-Paul.
Vamos para casa.
SARTRE – Casa?... (Levanta-se, ajudado por ela. Veste o
casaco, põe o chapéu. Murmura.) Montparnasse?...
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JULIANO – Adeus, Monsieur. (À Simone.) Posso chamá-la de
Castor? (Ela assente.) Adeus, Castor. (Abre a porta do
terraço, que agora está ao nível de uma ruela de
Montparnasse. Sartre sai feliz, amparado por Simone. As
luzes vão caindo, lentamente. Passagem de tempo. Juliano
e Aspázia estão no quarto do pai. Hermes tosse.).
ASPÁZIA (Off) – Seu pai está dizendo que São Paulo também
foi mártir da verdade e queimaram ele.
JULIANO (Off) – O homem não é senão um projeto: só existe
na medida em que se realiza. (Vem para a sala. Traz uma
mala. Aspázia vai atrás.).
ASPÁZIA – Vai deixar também o seu amigo? O irmão não
apareceu mais; a mãe teve aquela morte horrível...
JULIANO – Não importa o que foi feito com a gente. Importante
é o que a gente faz daquilo que fizeram com a gente.
ASPÁZIA – Não me venha com essas malditas citações! Você
nunca vai deixar de ser papagaio, de ficar repetindo os outros?
JULIANO – Por isso estou indo, mãe. Tenho que ver o mundo
com meus próprios olhos. E fazer o meu julgamento. Não posso
mais continuar lendo a respeito. Preciso ter a liberdade de
escolha e de renúncia.
ASPÁZIA – Mas como é que você vai fazer para viver lá fora?
Não sabe fazer nada, dorme até tarde, é um preguiçoso...
JULIANO – Eu me viro.
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ASPÁZIA – Se vira... Tem coragem de me deixar aqui, sozinha
com o seu pai doente? (Hermes tosse.).
JULIANO – Tenho que viver a minha vida.
ASPÁZIA – E a minha? Sua amiga francesa tinha razão: um
filho não é mesmo garantia contra a solidão...
JULIANO – Não vai se despedir de mim?
ASPÁZIA – Se sair por aquela porta, não apareça nunca mais.
JULIANO (Hesita) – Estou indo. (Hermes tosse.).
ASPÁZIA – Vai. Que está esperando?
JULIANO – Vou só tomar um copo d’água e... (Faz menção de
ir à cozinha.).
ASPÁZIA – Vai nada. Eu te conheço. (Ao marido.) Ele mudou
de idéia, Hermes. Vai ficar. (Tenta tirar a mala da mão dele.)
Agora vamos parar de palhaçada, guardar essa mala e... (Tira a
mala das mãos dele. Vai indo com ela para o quarto.) Ah,
seu primo ligou. Disse que a Vera está passando bem e que é
homem. Vai se chamar Juliano. (Ele pega a mala das mãos
dela e sai correndo. Ela chama.) Juliano!... (Corre até a
janela. Francisco está na esquina, esperando-o. Juliano
aproxima-se dele e despedem-se, formalmente. Juliano
desaparece. Hermes tosse. Aspázia vai até a cômoda, retira
uns lençóis. Vai até o quarto do filho e cobre os móveis. As
luzes vão caindo.).
FIM DO FLASH-BACK
ÉPOCA ATUAL
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Juliano surge no palco como no início. Dedilha o piano e
finalmente caminha em direção ao quarto. Abre a porta: os
móveis estão cobertos pelos lençóis. Ele entra. Pega o
cachimbo de Sartre, toca na ‘bergère’ de Simone, nos
papéis, nos discos de Baez, no livro de Debray... Olha para
a porta do terraço, eu está fechada; começa a caminhar em
direção a ela – o coração batendo forte. Abre-a e não há
nada. Nada restou daquele ‘mundo’. Ele torna a fechar
rapidamente e volta-se. Aspázia sai do seu quarto. Usa um
vestido novo – presente que Juliano trouxe para ela.
ASPÁZIA – Adorei! Ficou perfeito! Não vou precisar nem
apertar. (Noutro tom, para o filho.) Está do jeito que você
deixou. Desde que você foi embora, ninguém mais entrou aí
dentro. Deve estar empoeirado... (Ela o abraça.) Você está
muito bem, Juliano. Está bonito, tá com uma pele boa.
(Reparando.) Cresceu?...
JULIANO (Sorrindo) – Não, não vá começar com o ‘Mercado
de Escravos’. (Pega uma pequena valise.) Tenho de ir.
ASPÁZIA – Mas já?... Depois de tanto tempo... Mal chegou, já
vai embora? Achei que fosse passar, pelo menos, o fim de
semana. A gente só te vê, agora, nas revistas. Seu primo
sempre pergunta por você. Ele agora é delegado de polícia em
tupã. Tá muito bem de vida.
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JULIANO (Beijando-a) – Tá na hora, mãe. Tenho de ir.
(Hermes tosse. Juliano olha para a porta do quarto do pai.)
Dá um beijo nele. (Vai indo em direção à porta da rua.).
ASPÁZIA – Ah, ia acabar até nem falando, mas tem uma
surpresa pra você. (Ele pára.) Ele ganhou um ‘terno’ na Loto.
JULIANO – Um ‘terno’?...
ASPÁZIA – É pouco, mas já é alguma coisa... (Juliano sorri.)
Ele recorta tudo o que sai sobre você nos jornais. Vê se manda
uns jornais de lá pra ele, que aqui é difícil chegar... Vê se com o
sucesso não se esquece da gente.
JULIANO – Adeus, mãe. (Abre a porta e sai. Ela vai até a
janela e fica o vendo desaparecer ao longe. A seguir, pega o
Harold Robbins e senta-se na poltrona para ler. Hermes
tosse. Ela olha para a porta do quarto do filho. Põe o livro
de lado e vai caminhando em direção a ela. Hermes tosse
como que a chamando. Ela hesita, mas dirige-se à porta e a
abre. O quarto está escuro. Ela entra. Acende a luz. Pega o
cachimbo, toca na ‘bergère’, nos papéis, nos discos, nos
livros... Olha para a porta do terraço, vai caminhando para
ela. Enche-se de coragem e abre-a totalmente: Paris surge
no terraço, e está nevando. Ela vai para a varanda do
terraço e abre os braços para a neve.).
FIM