baixar em PDF - Litros de letras

Transcrição

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Armário sem Portas
© Karla Lima & Pya Pêra
Revisão de Texto
Luiz Teodoro
Capa
Fernando Fernandes Alves
Projeto Gráfico e Editoração
Cia. de Desenho
Impressão
Assahi
06-5836
Lima, Karla
Armário sem portas / Karla Lima e Pya Pêra. -- São Paulo:
Ed. do Autor, 2006.
1. Casais homossexuais femininos 2. Lima, Karla 3. Mulheres Relacionamentos - Humor, sátira etc. 4. Pêra, Pya I. Título.
1. Mulheres homossexuais:
Relatos autobiográficos: Sociologia ......................... 306.7663
CDD-306.7663
Não acredito em amor por meros laços de sangue.
Minha parte deste livro eu dedico à Karina, a quem eu
amaria mesmo que não fosse a melhor irmã do mundo.
Karla
Amigos são a família que a gente escolhe. Minha
parte deste livro eu dedico à família que não escolhi,
mas que amo incondicionalmente, e à família numerosa
e afetuosa que nomeei como consangüínea.
Pya
Agradecemos ao imenso
número de pessoas que
indiretamente contribuíram para a realização do Armário
sem Portas. Muitos são os amigos, os parentes, os conhecidos e até desconhecidos que fizeram parte de nossa
história. Coadjuvando ou protagonizando, eles nos
engrandeceram e tornaram suas vidas uma parte da
nossa. Aos que estão por vir: sejam muito bem-vindos!
Aos responsáveis diretos, fazemos questão de agradecer
individualmente. Famintas, esperamos não ter comido
bola. Muito obrigada, Angela Abreu, Bebete, Bell
Marcondes, Cristina Klenquen, Cristian, Dani Galego,
Dani Sato, Débora Macedo, Denise Nanica, Edu Lima,
Edwin Perez, Hanna M., Iara Viana, Karina, Laura Bacellar,
Marilia Reis, Mê Takayama, Mônica Mello, Pati Ribeiro,
Renatinho, Rodrigo Faria, Sandra K., Sérgio Brasileiro,
Sonia, Tatá e Toty pela leitura crítica do original. Suas
avaliações imparciais e gratuitas orientaram o formato
final do Armário: tamanho, número de portas e disposição das gavetas.
Muito obrigada, Dra. Liamara Soliani L. de Castro, por
sua paciência e esclarecimentos jurídicos precisos, isentos de ônus.
Muito obrigada, Fer, pela fabulosa direção de arte da
capa, muito além de nossas expectativas.
Muito obrigada, Luiz Teodoro, pelas muitas horas que
dedicou a nós e pela revisão impecável.
Muito obrigada, Rodrigo Faria, pelo capricho da orelha,
muito mais bem delineada que as nossas próprias.
Muito prazer!, 11
Meu nome é Pya com P, 13
Meu nome é Karla com K, 15
Preliminares, 17
O poder transformador da visibilidade, 19
Só mais uma coisinha antes de começar de verdade, 25
Fizemos porque pudemos, 27
Um pouco de cada uma de nós, 31
Karla Lima antes de Pya Pêra, 33
Pya Pêra antes de Karla Lima, 37
A divina arte de não se assumir, 42
A terrena ciência de se assumir, 49
Karla Lima e Pya Pêra by Karla Lima, 54
Pya Pêra e Karla Lima by Pya Pêra, 59
Um pouco de nós duas, 65
A primeira impressão nem sempre é a que fica, 67
CUCOSOPAPYA, 71
O vai-e-vem, o volta-e-vai, 76
O casamento das laranjas maduras na beira da praia, 83
O final feliz de uma história de amor improvável, 92
A transição imobiliária, 95
Nossa Senhora, Fátima!, 100
Pequenas evidências de um grande amor, 109
Rasgar seda fortalece os bíceps, 114
Jogar confete entope o ralo, 119
Apostas canceladas, concurso adiado, 122
A revelação universitária, 126
Karla Lima, 32 anos, drogada e prostituída, 129
Nem tudo são flores, 133
Santo André, 138
Um pouco de um tudo, 143
A Acústica do lar, 145
Utilidade pública, 147
Istria, 153
"Cartas, 1956 -1961", 154
Warheads, 156
Brainstorm, 158
Só o amor constrói, 161
Amélia, 162
Ai, meus peitinhos!, 164
Zélia na parada, 166
Xixi engarrafado, 170
Xixi amordaçado, 174
Suelen, 176
Ooops!, 177
Hay que envelhecer, pero sin perder la ternura jamás, 179
Jade, 182
Três tropeços que a língua me dá, 184
Quatro histórias de que ainda me lembro, 187
Duas piadas que não perdi, 194
Desnorteando o sul, o leste e o oeste, 196
Duas faces da mesma moeda, 198
+ Q.T.A., 201
"Se você fosse sincera…", 204
Troco miúdo, 206
Você é assim?, 216
Purificação, 218
Não pegue no colo nenhum humano que você possa carregar, 221
Maravilhas da tecnologia moderna, 224
Alerta aos desavisados, 227
Explicação, conclusão, resultado e apêndice, 235
Esquisitices de duas normais, 237
Perguntas de Karla, respostas de Pya, 240
O fim, finalmente, 245
É o fim!, 246
Papo de ponta-cabeça, 258
Ser e estar, 256
Ex-publicitária, ex-infeliz, 255
O malbatizado casamento gay, 253
O mundo dá voltas e os conceitos giram, 250
Meu nome é Pya com P
Nasci Patricia Yury Assumpção, por livre e espontânea vontade de meus pais.
Aos 13 anos fui apelidada de Patyury, e isso durou outros
13.
Os menos íntimos corriqueiramente escrevem meu nome
com y ou, ainda pior, com dois t e um y. Até hoje faço
inúteis esforços para convencer esses seres de que prefiro
Pati. Rejeito e abomino qualquer outra grafia.
Numa viagem a Buenos Aires o i foi substituído pelo o.
Na terra dos amantes do tango, o apelido de Patricia é
Pato. Variações amorosas da ave se tornaram minha identidade a partir de então: Patolina, Patola, Patolee. Sorte a
minha não ter havido variação entre espécies. Já pensou,
gansa ou marreca?
Recentemente, me enfronhei no mundo musical e fundei
uma banda de samba composta por nove mulheres. Como
não podia deixar de ser, precisava de um nome artístico –
escolheram Pati Cavaquinho. Ok!, foi a melhor das três
alternativas propostas. Pior seria Pati Meio Metro ou Pati
Pagodinho.
13
Acompanhando o giro de 175º de minha vida, decidi rebatizar-me. Escolhi Pya Lima. Todos sem exceção me questionam: “Pya Lima?” É, Pya Lima: P de Patricia, Y de Yury
e A de Assumpção. “E o Lima?” Lima de Karla Lima, minha mulher. Romântico, relevante e consistente, esse é
então meu novo nome.
Os mais observadores devem estar-se perguntando: “Por
que então este indefinível projeto está assinado por Karla
Lima e Pya Pêra?” Tudo na vida é uma questão de harmonia
ajustada ao contexto. Acho que assinar Pya Lima e Karla
Lima é um tanto quanto redundante e pouco estético.
Antes que alguém me ponha contra a parede (e não que
eu não goste de sê-lo, mas depende da forma e da pessoa), eu explico o porquê. Pya Pêra é o resultado de um
exercício de livre associação. Veja: Sol? Lua. Feira? Fruta.
Lima? Laranja. Laranja? Pêra. Capisco, chuvisco? Lima?
Pêra.
Aproveitando o ensejo e o prazer que o autobatismo vemme concedendo, criei mais um codinome: Pya Melancia,
para assinar alguns textos que ando desenvolvendo para
o público infantil.
Conclusão: em mim existem Pya Lima, Pya Pêra e Pya
Melancia. Para completar o pomar falta pouco e, no ritmo que as coisas andam, tudo parece conspirar para a
criação de uma horta: Pya Abobrinha, Pya Pimenta e Pya
Chuchu – o único entrave será a convivência pacífica das
múltiplas personalidades que terei que administrar em meu
dia-a-dia.
14
Meu nome é Karla com K
“Meu nome é Karla com K.” Essa sempre foi minha fala
oficial de apresentação. Um dia, na quarta série, uma
menina da classe me perguntou: “Seu nome é com M ou
com N?” Eu, que desde aquela época já era muito impaciente, disparei um irritado “Como assim?” e em resposta ela, que deve ser muito paciente até hoje, me entregou um papel com duas opções: “Carla Comcá” e “Carla
Concá”. Acabou comigo.
Meu nome não tem propriamente uma história: não foi
escolhido por admiração a uma atleta, cantora ou atriz, e
também não é resultado de promessa feita durante gestação de risco – até porque, até onde eu sei, não existe
uma Santa Karla (e minha passagem pela Terra não vai
mudar isso, conforme vocês verão adiante). O nome é
com K para manter algo da ascendência alemã (meu avô
materno se chamava Kurt) e é Karla para homenagear o
melhor amigo de meu pai, Carlos. Graças a Deus, ele não
era Ermenegildo, cujo equivalente seria feio, porém inofensivo; nem Anaclêto, muito pior pelas rimas no feminino que poderia invocar.
Tive poucos apelidos. Meus pais dizem que foi de propósito que escolheram para as filhas nomes que inibissem
15
abreviações, pois não queriam suas preciosidades chamadas de Bia, Fafá, Sil, Tuta etc. Mal sabiam eles que o
nome de minha irmã, Karina, viraria marca de armários
de cozinha a shampoo de quinta categoria, e que eu seria
associada a coisa muito pior.
Mas minha babá, ignorando as precauções de meus pais,
me apelidou de Petinho – assim, sem o r, no diminutivo e
no masculino. Ela era índia e nunca explicou a origem
disso, mas quero crer que, em seu idioma nativo, significasse qualquer coisa como “menininha lindinha de meu
coração”, e não uma premonição tipo “você é um curumim de saias que vai virar sapatão”.
Minha irmã é outra que me deu um apelido – com a
diferença de que o dela tem um significado óbvio. Embora prefira acreditar que, quando ela era criancinha, tivesse dificuldade em pronunciar Karla, no fundo suspeito
que já havia um julgamento de valor quando ela passou a
me chamar de Káka. Pelo que me lembro, houve pouca
reclamação parental sobre isso.
A Patricia, por motivos que serão esclarecidos mais adiante, me chama de Bicho, o que enterrou definitivamente
as esperanças de meus pais. Quando terminar o livro, talvez você também tenha alguma idéia de um apelido para
mim. Não me mande por e-mail.
16
O poder transformador da visibilidade
“Armário sem Portas” é o título deste projeto indefinível.
Trata-se de uma prosa cômica de cunho autobiográfico,
disposta em contos românticos, não-fictícios e tampouco
cronológicos. Não há pretensão literária, mas sim ambição
de entretenimento geral de quem se despir de preconceitos.
Antes de qualquer coisa, aponto três premissas, duas
ponderações, uma sugestão, nenhuma conclusão e ponto
final:
Premissa um: Aconselha-se ler introduções antes da obra
em si, assim como, normalmente, rola uma preliminarzinha básica antes da consumação da cópula.
Premissa dois: Pela lógica, o princípio começa no início e
o término acaba no fim.
Premissa três: Cada um é cada um, ninguém é igual a
ninguém.
Ponderação um: Conselho e lógica são relativos.
Ponderação dois: Tudo depende do ponto de referência.
19
Uma sugestão: Siga os bons conselhos de acordo com
sua própria lógica.
Nenhuma conclusão: Você pode dar seguimento a sua
leitura a partir deste ponto, ou virar o livro de pontacabeça, começar por lá e depois retornar. Tanto faz.
Ponto final: Vire, desvire e revire.
Como meu Bicho tem mais propriedade, consistência de
argumentos e desenvoltura lingüística, cabe a ela a missão de dissertar sobre o propósito deste projeto:
Historicamente, os homens heterossexuais, vivendo numa
sociedade por eles construída e regida, sempre tiveram
muito menos a reivindicar que as mulheres. Tendo feito
as leis e sendo as autoridades políticas, comandando as
igrejas e sendo as autoridades religiosas, tendo acesso
aos estudos e se tornando as autoridades médicas, detendo o capital e formando o grosso do empresariado do
País, o máximo contra o que os homens tiveram que lutar
foram suas próprias regras.
Assim, quando lhes pareceu que o divórcio era necessário, ele deixou de ser uma “ameaça à ordem institucional”. Quando quiseram unir-se a mulheres diferentes de
si, o casamento inter-racial subitamente não iria mais provocar o “desmantelamento da sociedade”. É claro que,
num exemplo como no outro, houve indignação, revolta,
previsões catastróficas. Mas quem fomentava isso eram
homens também, de modo que a adoção ou a rejeição
dos novos padrões tinha um caráter predominantemente
masculino: suas regras, suas lutas para mudá-las.
20
Todas nós com 60 anos ou menos crescemos com uma
porção de direitos já assegurados. Nós os aceitamos como
naturais, estabelecidos e óbvios, e raramente pensamos na
batalha que nossas mães e avós travaram por sua conquista.
E que batalhas! Da luta pelo voto feminino à abolição da
virgindade matrimonial compulsória, da minissaia ao cigarro em público, das calças compridas ao trabalho fora
de casa, todo novo comportamento feminino, antes de
ser aceito e incorporado como direito, passou por uma
transição lenta, cheia de revezes e pressões contrárias.
Algumas poucas almas iluminadas compreendem rapidamente os ciclos evolutivos a que os padrões sociais estão
sujeitos, e não precisam de tanto tempo para acolher a
nova realidade. Mas não é dessas raridades que se vai
tratar aqui. O que queremos abordar é o poder difusor
que cada indivíduo tem no estabelecimento mais rápido
e pacífico dessa nova realidade.
Nossa tese: a visibilidade é o princípio da aceitação. Quanto
mais você debater o assunto, quanto mais de acordo com
sua natureza viver, quanto mais der às pessoas a oportunidade de conviver com você – enfim, quanto mais aberta
e completamente sair do armário, melhor para si mesmo
e para a sociedade. Pois é só na freqüência e na qualidade do contato com gays que as pessoas conseguem
evoluir a nosso respeito. Espontaneamente, nenhum heterossexual vai achar que é chegada a hora de promover
qualquer tipo de mudança. De uma maneira geral, eles
não querem nem têm como sair de um raciocínio mirim,
mas estabelecido; de uma lógica risível, mas confortável;
de seus conceitos prévios e negativos.
Cabe a nós ajudá-los nessa superação.
21
Por acreditarmos nisso, a Patricia e eu nunca disfarçamos
nossa condição de casal. Se por um lado seria contraproducente chocar gratuitamente nossos vizinhos, trocando
beijos apaixonados no parquinho do prédio, por outro
seria contrário a nossas crenças escondermos nosso afeto
em público. Assim, estabelecemos um código de conduta
que não nos agride e, ao mesmo tempo, mostra para a
sociedade que não representamos um perigo. Resumidamente, ele estabelece que:
a. apelidos carinhosos são permitidos em qualquer
circunstância;
b. na ausência de crianças e velhinhos, são permitidos mãos dadas e toques nos cabelos, rosto e
ombros;
c. abraços e beijos são permitidos dentro do carro,
na vida noturna GLS e em eventos diurnos como
a Parada Gay.
Assim, somos vistas como um casal, respeitadas e muito
bem atendidas por um grupo enorme e variado de pessoas, que vai dos atendentes da locadora aos porteiros de
nosso e outros prédios; de nossa manicure aos garçons;
das recepcionistas de pousadas e consultórios aos caixas
do supermercado; dos entregadores de água e gás até as
depiladoras sem medo de nos excitarem nem receio de
serem agarradas.
Eventualmente, esses exemplos não serão suficientes: haverá um cínico a ironizar que, estando na posição de clientes, é natural que sejamos frontalmente bem tratadas,
ainda que pelas costas exista muita maledicência.
Então peço desculpas a quem já se enfadou e encomprido
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a lista para incluir meus próprios clientes (da época em
que era diretora de contas em agência de propaganda),
subordinados, chefes e colegas do trabalho, colegas da
faculdade e professores, familiares distantes e desconhecidos que nos sorriem, sem motivo aparente, durante o
jogging dominical.
Quanto ao maldizer fortuito, não tenho como nem por
que rebater sua ocorrência: é um fato da vida que diz
respeito a nós tanto quanto diz respeito a você, homem,
branco, de classe média, destro, heterossexual, com filhos, carta de habilitação e carro, empregado na iniciativa
privada, que teme o chefe, mas não o respeita, que esquece o aniversário de casamento, pula o banho uma vez
ou outra, que tem um time do coração e vê novela, que
já teve um caso extraconjugal, que começa a ter uma
pancinha cervejeira; você que reclama do governo, mas
não sabe em quem votou nas últimas legislativas; que
acusa o prefeito de ladrão, mas não devolve o troco recebido a mais; você que adora ser o centro das atenções no
churrasco de seu cunhado, que reprime o choro e se importa com o que pensam sobre você.
Você que se considera a salvo e normal, mas é apenas
comum – e está tão vulnerável quanto nós.
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Fizemos porque pudemos
O processo de criação deste livro foi, como diria a Patricia,
“muito louco”. Um dia cheguei da faculdade contando
uma história engraçada e ela comentou, não sei se despretensiosamente ou já com segundas intenções, que
aquilo merecia ser registrado. Eu respondi trazendo à tona
outras passagens, assumidamente querendo colocar em
prática o velho plano de escrevermos nossas memórias.
Quando nos demos conta, fazia três dias que não saíamos de casa, só rindo, tomando café, fumando, vendo
fotos e escrevendo. Usando letra grande e abrindo espaços generosos, sem esforço chegamos à 60ª página. Daí
nos empolgamos de vez.
Passamos longas madrugadas debatendo e produzindo.
Ela queria que o livro fosse cômico, eu queria que fosse
sério. Um a zero.
Ela queria contar desde a gravidez de nossas mães, eu
queria iniciar por nosso primeiro encontro. Ninguém pontuou.
Ela é fã de obras abertas em permanente construção, eu
queria terminar logo. Um a um.
Apostei que teríamos umas poucas folhas grampeadas
distribuídas gratuitamente aos amigos, ela apostou num
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calhamaço de três quilos com capa dura e que conseguiríamos vender. Jogo em andamento.
Eu detesto que mexam em meu texto, mesmo sendo a
Patricia. Reclamo, digo que está subestimando a inteligência do leitor, que está assassinando meu ritmo e que o
encadeamento do raciocínio se perdeu. Ela não se importa que eu mexa em nada, acata a maioria das sugestões e
ainda usa essa flexibilidade contra mim.
Resumindo, houve muita discordância, muita negociação
e intermináveis remendos de estilo, tamanho, linguagem
e conteúdo. No entanto, concordamos em alguns pontos
desde o início. Só chegamos até aqui porque moramos
numa cidade como São Paulo, nossa condição econômica nos permitiu, não sofremos pressões religiosas e crescemos num ambiente familiar saudável.
Viver numa pequena cidade conservadora torna impossível o anonimato das primeiras incursões. Usar apelidos
carinhosos no restaurante do bairro ou ficar de mãos dadas no cinema traz constrangimentos. Há pouca abertura
para se revelar no trabalho, na escola, no prédio, no clube – para não falar da dificuldade de encontrar seus semelhantes! Não existem a Parada Gay e boates GLS. Mas
numa metrópole como São Paulo há espaço e oportunidade para a criação de vínculos, para se inserir, ser aceito
e sentir-se pertencente. Esse é o lado bom de viver num
ambiente enorme, impessoal e cosmopolita, que nos permite levar a vida que levamos, e registrá-la em livro.
Em nosso país, ter uma condição financeira privilegiada
faz toda a diferença. É muito difícil que um indivíduo se
desenvolva completamente se todos os dias forem uma
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luta pela sobrevivência. Não sobra tempo, dinheiro nem
disponibilidade mental para nada além. Nós duas temos
apenas um mérito parcial pelo que conquistamos – a outra metade deve ser creditada às circunstâncias externas
que nos permitiram um desenvolvimento pleno.
A ausência de repressão religiosa e o desenvolvimento
em um ambiente familiar saudável também nos favoreceram. São freqüentes os casos de gays e lésbicas para quem
o processo de reconhecimento e aceitação é incrivelmente traumático. Sentir-se diferente pode ser mais confortável ou mais penoso; identificar-se como homossexual pode
ser mais fácil ou mais difícil; revelar-se pode ser mais leve
ou mais angustiante. Para o bem e para o mal, a fé religiosa e a estrutura familiar desempenham um papel fundamental nesse processo.
A maioria dos lares repudia a homossexualidade com base
em crenças religiosas e valores morais. Pode ser ignorância,
estreiteza de horizontes, falta de discernimento. Mas, geralmente, quando as famílias reprimem e tentam “curar”
um membro homossexual, estão agindo com base em
amor e instinto de proteção: elas acreditam de verdade
que o homossexual está em perigo e precisa ser salvo.
Pais e irmãos se esforçam por resgatar os gays do mau
caminho porque prevêem sofrimentos e discriminação em
vida e, no caso dos religiosos, também suplícios após a
morte. Ainda que usem métodos condenáveis, como chantagem emocional e violência física, é preciso entender que
os familiares normalmente são movidos por boas intenções. Como as igrejas não se cansam de ressaltar o caráter
desviante e pecaminoso da homossexualidade, e a sociedade impõe restrições muito severas, não é de estranhar
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que as famílias usem todos os recursos para libertar seus
membros de tanto castigo e opressão.
Os caminhos percorridos por um homossexual (descobrimento – aceitação – revelação) e por seus familiares (suspeita ou surpresa – confirmação – aceitação) tendem a
ser mais suaves e menos traumatizantes quando as diferenças são admitidas e as dificuldades, respeitadas. O empenho precisa ser mútuo, pois não é razoável esperar que
apenas a família se ajuste à situação: se a ela cabe acatar
e proteger, a nós cabe dar informação e exemplo para
que ela aprenda a lidar com a nova realidade.
A Patricia e eu crescemos em ambientes sem dogmas:
temos famílias religiosas que vivem na prática as teorias
sobre tolerância e acolhimento, e cujas relações são baseadas em respeito. Num primeiro momento, ouvir “eu
sou homossexual” não deixou nossos pais e irmãs saltitando de alegria, mas eles não usaram Deus para nos
rejeitar; buscaram n'Ele inspiração para nos compreender. Com seu amor e carinho, eles nos ampararam, e se
uniram a nós para enfrentar as adversidades.
Em acréscimo ao texto da Karla, eu gostaria de expor
minha brilhante conclusão: “Somos duas rabudas que
nasceram com a bunda virada pra Lua.” Não conseguimos lembrar-nos de nenhum episódio em que a discriminação ou o preconceito nos tenha atingido de forma que
não pudéssemos administrar. Talvez sejamos muito afortunadas; quem sabe, pouco rancorosas, ou simplesmente
desatentas ao extremo! Em meu caso específico, talvez
sejam os lapsos de memória trabalhando a meu favor.
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Karla Lima antes de Pya Pêra
Como quase tudo em minha vida, a descoberta de minha
sexualidade foi um processo muito tranqüilo e tremendamente racional.
Num sábado de sol, durante um prosaico banho, pensei:
“Quando eu for grande, vou gostar mais de mulher.”
A frase veio assim, pronta como uma conclusão técnica.
Tudo tão claro, organizado e sem dramas que nem parecia
emoção autêntica, parecia uma decisão. Eu tinha 12 anos.
Nessa época, interessei-me por uma menina pela primeira
vez. Ela era muito branquinha e às vezes aparecia na classe
com umas manchas roxas no braço. Vinha de uma família
desestruturada e enlouquecida: pai ausente, mãe saudável
vivendo de pensão por invalidez, duas irmãs mais velhas
vulgares e cruéis e uma irmã mais nova cujos cuidados
eram responsabilidade dela. Com esse ambiente doméstico delirante, não era de estranhar que tivesse notas baixas.
Em minhas fantasias, eu a resgatava daquele inferno, curava com beijos dedicados cada cicatriz e ferimento e ela,
renascida, não tirava mais notas vermelhas. Como se vê,
eu tinha sentimentos tripartites: queria protegê-la, possuí-la e lhe ensinar português.
Minha primeira transa foi aos 15 anos. Namorava o rapaz
desde os 11. Não foi nada de extraordinário: nem dor
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nem maravilhamento, nem traumas nem vontade de fazer de novo. Não transei por pressão do grupo (nunca
tive um grupo e nunca liguei pra pressão), não me arrependi depois e contei tudo para minha mãe, espontaneamente. Ela me aconselhou a tomar pílula, se dali em diante pretendesse ser sexualmente ativa, e foi comigo ao
ginecologista. Minha mãe é uma mulher extraordinária.
Durante meus 16 anos de vida hétero, considerei sexo
uma atividade bastante desagradável. Era estafante, durava muito e acontecia vezes demais. E, adivinhe só, nada
prazeroso. Um pouco por causa disso, um pouco pelo
clima que tinha em casa e um pouco por temperamento,
eu dizia a quem quisesse ouvir que não podia morrer sem
ficar com uma mulher. Contava pra todo mundo sobre
meus desejos: no colégio de freiras, no trabalho, pros parentes distantes.
Meu segundo namorado, com quem fiquei dez anos,
cansado de minha má vontade com o sexo e tipicamente
doidinho pra participar, chegou até a me arranjar uns
encontros com umas moças – que não resultaram em
nada. Eu o deixei pelo homem com quem viria a me casar.
E quando ele quis que nos casássemos, eu lhe disse,
textualmente: “Olha, eu já falei isso várias vezes e vou repetir
mais uma: eu acho que sou lésbica. Pode ser que eu nunca
experimente, pode ser que eu experimente e não goste, e
pode ser que eu experimente e conclua que essa é
realmente a minha, e daí será o fim de nosso casamento.
Não responda nada agora, pense direitinho, falamos
amanhã.” Parece frio e de fato é, um pouco. “That’s me.”
Mas, além de evitar futuras acusações sobre omissão de
informação gravíssima, eu reforcei também porque achava
que nunca iria acontecer nada mesmo, tantos anos já se
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tinham passado desde minha descoberta durante aquele
banho que o aviso era pouco mais que uma formalidade.
Nosso casamento durou quatro anos e fomos bem felizes.
Em agosto de 2002, aos 31 anos, tive um affair de poucas semanas com uma moça. Não foi bom: achei o sexo
apenas sofrível – para estar comigo ela traiu a namorada
e, ao contrário do que tínhamos combinado, foi-se gabar
pra uma pessoa de nosso trabalho. Nunca me importei
com o que pensam de mim, de modo que o problema
não era ter minha vida comentada nas ondas curtas da
“rádio peão”; o que achei intolerável foi o descumprimento de nosso acordo. Eu teria eliminado até o mais
protocolar bom-dia se tivesse sabido disso na época. Mas,
como as boas almas de plantão resolveram me preservar
da boataria, mantive com ela um relacionamento cordial,
quase afetuoso, durante mais de dois anos. Por favor,
nunca seja uma boa alma comigo.
Uma semana depois, meu marido e eu estávamos em casa
preparando o jantar quando ele me enlaçou, perguntou
se eu estava feliz, e se queria continuar casada. Caí no
choro. Agradeci que ele tivesse tomado a iniciativa da
abordagem que eu mesma, por covardia, não tomara, e
contei toda a verdade.
Meu ex-marido é um homem muito especial, por quem
tenho admiração e respeito profundo. Não sei de outro
homem que agiria com a hombridade que ele demonstrou. Por mais dois meses continuamos morando juntos,
fraternalmente.
No final de novembro daquele ano, fui com uma conhecida a uma boate GLS. Do último xixi antes de irmos embora
35
ela voltou acompanhada e sorridente: “Fiz uma amiga na
fila, posso te apresentar?” A pergunta certa, eu descobriria
em breve, era: “Quer conhecer a mulher da sua vida?”
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Pya Pêra antes de Karla Lima
Nasci gay. Algumas evidências, já na infância, descortinavam o futuro que poucos pais desejam. Brincadeira bacana era carrinho de ferro, bolinha de gude e bater figurinha. Roupa, não podia ser vestido. A tão almejada camisa
do São Paulo Futebol Clube só ganhei quando ameacei
meu pai de passar a torcer pro Corinthians. Hoje não torço nem pra um nem pro outro – não gosto de futebol.
Minha primeira paixão foi a matemática e a segunda foi a
professora da terceira série. Eu acordava mais cedo e apressava minha irmã para ser a primeira da fila. Minha mãe
não entendia nada, mas achava ótima essa disposição,
até me premiando com aumento de mesada. Agora eu
explico: na hora de entrar, a professora ia de mãos dadas
com o primeiro da fila até a sala de aula. O percurso era
de curtíssimos 50 metros e eu, instintivamente, diminuía
o passo, retardando o fim daquele momento mágico.
O ano passou e outra mão passou a conduzir os alunos à
classe. Eu não tinha mais pressa de chegar à escola, minha mãe lamentou o retorno à normalidade e a vida seguiu. Até hoje números me fascinam.
Minhas amigas relatavam o primeiro beijo como sendo
uma glória. O meu foi um show de horror, protagonizado
37
pelo Rodriguinho. Ele enfiava a língua em minha boca em
movimentos brutos e repetitivos de entra-e-sai, entra-esai. Segurando minha cabeça para que eu não escapulisse, ele tentava a todo custo criar um vácuo que sugasse
minha língua para dentro de sua boca. Na vã tentativa de
que ambas não se encontrassem, eu jogava minha língua
para o fundo da garganta, enquanto a dele continuava
perseguindo a minha, freneticamente e cada vez mais fundo. Provavelmente não durou mais de 30 segundos, mas
minha sensação foi de eternidade. Quando ele desgrudou de minha boca, o que ficou foi uma irritação cutânea
absurda, provocada pelos 35 fios pontiagudos de um bigodinho ralo. O abismo entre a glória e o show de horror
deveria estar na habilidade e no sexo do ser beijado. Ninguém parecia sentir o que eu sentia.
O universo é infinito, mas eu me sentia uma figura sem
par. Procurava, em vão, localizar pessoas com a mesma
inquietação. Atenta, notei que no mundo dos esportes as
coisas eram mais próximas de minha realidade. Feeling
quase absoluto de marinheira de primeira viagem.
Aos 12 anos, freqüentava assiduamente o clube. Meus
pais sempre me advertiam: “Patricia, cuidado no vestiário! Lá tem mulher que gosta de mulher.”
Agradeci a dica. Entrava e saía, ansiosamente, à procura
dessas tão sonhadas mulheres. Nunca encontrei nenhuma...
Milhas marinhas adiante, acabei constatando que minha
intuição estava correta. Tomei gosto pelo esporte e pelas
atletas, li as biografias da jogadora de vôlei Jacqueline
Silva e da tenista Martina Navratilova e pasmei. É isso que
sou, é isso que sinto! Pratiquei meu esporte com paixão,
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por meio dele cresci e venci, e nesse mundo encontrei
meu primeiro par.
As cobranças por comportamento socialmente aceito eram
enormes. De um lado, meus pais observavam minhas novas amigas: “Dize-me com quem andas e dir-te-ei quem
és.” Do outro, cantadas e mais cantadas juvenis de moçoilos reféns de seus hormônios em polvorosa. Acabei
não resistindo à pressão e, usando uma técnica muito
condenável, ludibriando as partes.
Enrolava um rapaz e me justificava com as atletas. Dura
missão: segurar a empolgação da testosterona por quase
um ano e arrumar desculpas esfarrapadas para as “colegas”. Condenável! Merecia prisão perpétua. Faltou dignidade, que procuro compensar hoje em dia. Ele era um
ótimo rapaz, por quem sinto muito carinho e remorso.
Namorar convencionalmente gerava um enorme desconforto interno, mas tinha lá suas vantagens. Era uma resposta pronta e crível para outras abordagens masculinas:
“Sou comprometida, tenho namorado.” Para a família, um
grande alívio. Neste caso, a dúvida é melhor que a certeza.
Vivia presa ao mundo dos esportes, acreditava que não
havia lésbicas fora dali. Achava que, para ser gay praticante, eu tinha que estar confinada nessa redoma. Dando continuidade à saga da esportista lésbica, me inscrevi
num curso pré-vestibular. A intenção era me preparar para
a Fuvest, curso de Educação Física. Qual mais seria?
Logo no primeiro dia, fui abordada por uma “sócia” com
um papo insinuante. Esquisito... eu não me considerava
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uma figura típica, minha estrutura mignon e meu jeito
espevitado sempre me fizeram escapar ao estereótipo.
No banheiro do cursinho, minha diversão predileta me
aguardava. Eu adorava admirar os surtos de emoção,
muitas vezes talhados com estilete, nas portas de madeira: caricatos pênis penetrando bundas em forma de W,
desenhados com Bic azul; ofensas chulas escritas com hidrográfica vermelha e suas retaliações em grafite: “O Celso
é um veado.” “Veado é seu pai.” “Celso, liga pro Bruno,
ele gosta de rola.” “Ana x Roberta.” “Sai fora, sapatão, e
vai pra boate da esquina!” Boate da esquina?!
Saí dali voando e dei três voltas no quarteirão. A única coisa que palidamente se parecia com uma “boate de sapatão” era um estabelecimento esverdeado, sem janelas,
com um logotipo bigodudo – Mustache. Passava ali todos
os dias, mas nunca conseguia descobrir nada. O que eu
pensava descobrir sobre uma boate de sapatão das sete
ao meio-dia?
Devidamente motorizada, seis meses depois, mudei o turno
da vigília. Passei tantas vezes em frente ao local que na
13ª vez o segurança gesticulou como quem diz: “E aí,
minha filha? Vai ou não vai?” Naquele dia não fui.
Na semana seguinte, “A Porta da Esperança” se abriu.
Mesmo não sendo uma pessoa de poucas palavras, não
sei como descrever o que senti. Foi um misto de liberdade, êxtase e ar puro, apesar da espessa nuvem de fumaça
de cigarro que flutuava no local. Com aquele novo mundo recém-descoberto, abandonei a faculdade de Educação Física e iniciei então Administração de Empresas, pois
havia descoberto um universo que nunca pensei existir.
Aquela boate me levou a um bar. No bar conheci uma
menina, essa menina me apresentou a umas tantas. E a
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tantas outras eu me apresentei. Conheci inúmeras pessoas, namorei muito e casei algumas vezes.
E vamos mudar de assunto porque a Karla com K não
gosta de desenterrar defunto.
Além do mais, o propósito do capítulo me coíbe de prosseguir ou esmiuçar minha biografia.
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A divina arte de não se assumir
Eu conheço há muito tempo a história que vem a seguir
e, mesmo assim, tive imensa dificuldade de compreender
a maneira como a Patricia a transcreveu. Além de prolixa,
ela é muito apegada a detalhes, mesmo os irrelevantes, e
acredita que a linguagem escrita é mais eficiente quanto
mais próxima está da língua falada – daí, né, você sabe,
fica tudo assim, tipo meio confuso, tá me entendendo?
Dessa forma, em solidariedade a quem, como eu, precisa
de um mínimo de método e organização para entender
enredos, providenciei um resumo esquemático:
Charles: gay não-assumido para a família – melhor amigo da Patricia.
Antônio Carlos: namorado de Charles, não-assumido
para a família nem no trabalho – dividia o apartamento
com a Patricia.
Geni: colega de trabalho de Antônio Carlos, também gay
não-assumida para a família nem no trabalho.
Fazer a linha: mostrar-se, comportar-se e agir como heterossexual nos ambientes em que sua homossexualidade
não é conhecida.
Prima, colega, sócia: gírias sinônimas de lésbica.
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E senta, que ela vai mandar história...
Como a narrativa segue por diversas linhas e envolve muitas
personagens, precisei nomear de maneira fictícia cada
uma, pois a história é verdadeira e ninguém é obrigado a
ter seus rolos expostos assim, sem mais nem menos...
Aos 21 anos, saí da casa de meus pais e fui morar com
Antônio Carlos. Ele e eu “fazíamos a linha” e simulávamos um casamento feliz, pois a proprietária do apartamento só confiaria seu imóvel a um casal. Complicado
era administrar as mentiras que estão por vir.
Antônio Carlos fazia a mesma linha, porém noutra agulha, com Geni, uma amiga do trabalho. Naquele ambiente, ele e a “colega” eram noivos. E noivos há tantos anos
que ambas as famílias faziam parte do carretel. Era linha
tanto para ela quanto pra ele.
Para quebrar o galho de Charles, eu fazia a linha com ele
na casa de seus pais. Isso justificava a presença diária de
Charles em minha casa sem levantar grandes suspeitas,
uma vez que os pais de Charles não sabiam da existência
do Antônio Carlos. Justificava para os pais de Charles, mas
não para a estereotipada síndica que regia o condomínio.
Para complicar ainda mais a situação com D. Milu, a síndica, eu estava numa fase pouco estável. De meses em
meses, uma nova “prima” chegava do interior. Complicado era explicar a estrutura da árvore genealógica de minha família: eu tinha prima loira e peituda, outra morena
de pele com canelas grossas... Minha maior sorte foi não
ter conhecido nenhuma ruiva nesta fase!
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Quando o telefone tocava, era um pânico! Ninguém podia
atender até que a secretária eletrônica o fizesse. Em função
dos entrelaces todos, não era viável gravar uma saudação
com nossas vozes. Sem outra maneira, programamos o
telefone com a mensagem-padrão do equipamento, aliás
de procedência duvidosa: “Sorry, we are not available right
now. Please, leave your message after the tone. Thank
you. Beep.” Muitas vezes ouvíamos a saudação até o beep,
e depois beep-beep-beep. A pessoa não quisera deixar
recado ou não falava inglês, concluíamos.
Passados 36 meses, nós iríamos renovar o contrato de
locação. Como o apartamento era no último andar, vários problemas de infiltração provenientes do teto fizeram do banheiro uma zona de conflito militar. Negociamos a renovação com a proprietária do imóvel mediante
o conserto das avarias. Ela concordou, mas queria que o
condomínio assumisse a responsabilidade por danos causados em razão da má conservação das áreas comuns –
no caso, o telhado do prédio.
O resultado da excelente negociação foi uma reunião com
a proprietária, D. Milu e eu. Rebolei, rebolei, mas saí virgem
daquele forró. Repartidas as responsabilidades, a reforma
começaria no primeiro dia de minhas tão sonhadas férias.
Minha intenção era relaxar e terminar meu trabalho de
conclusão de curso. Não imaginava, entretanto, que seria
contratada imediatamente para dois novos ofícios: chefe
do empreiteiro da reforma e confidente da proprietária.
Foram dias de lama! Poeira, concreto e conversa jogada
fora. Os pedreiros, encanadores e eletricistas chegavam às
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9h e trabalhavam a todo vapor. Impossível relaxar ou
escrever. Às 14h, chegava a proprietária com as últimas
novidades: “Meu marido isso, meu marido aquilo... Minha
empregada... Meu filho... Minha sogra... Meu papagaio…”
Ô, mulherzinha mal-amada! Uma das primeiras coisas que
tive que explicar quando tudo começou foi: “Por que vocês
têm duas camas de casal, uma em cada quarto?” Não tive
muito tempo para pensar: “Antônio e eu preferimos assim...
É sempre bom manter o clima independente, variar os
ambientes na hora de fazer amor… não enjoa, quebra a
rotina!” Interessadíssima, a proprietária batia a mão em
minha coxa: “É mesmo? Vocês se dão bem? Ele é carinhoso?
Você consegue gozar com facilidade?...” Minha experiência
com homens até aquele momento não passava de uns
apertões e duas provas dos noves. Haja criatividade!
Fim da reforma. Fim das férias.
Antônio e eu costumávamos emprestar nosso apartamento para Geni, que no trabalho e para as famílias deles era
a suposta noiva de meu pretenso marido. Ao passar pela
portaria, já com as chaves previamente entregues, Geni e
sua namorada do interior se identificaram para D. Milu,
que não saía da portaria, como primas do Antônio – mais
duas primas minhas não seria possível. Subiram e foram
tratar de exterminar a saudade que as consumia.
Não mais que de repente, surge na portaria a proprietária, para entregar a tampa do vaso sanitário, última etapa
da reconstrução do banheiro. D. Milu, sem maldade alguma em seu nobre coração: “A D. Patricia não está, mas
tem duas primas do Sr. Antônio lá em cima. Pode subir.”
D. Milu nem ao menos interfonou.
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Segundo Geni nos contou posteriormente, a campainha
soou. Com uma certa tranqüilidade, ela ajeitou a blusa e
fechou o zíper enquanto dizia: “Já vai!” Ao abrir a porta,
deu de cara com a proprietária:
“Quem é você?”
Sem pestanejar e ofendida com o tom da pergunta:
“Sou a Geni, noiva do Antônio, por quê? Quem é a senhora?”
Projetando a tampa da privada em direção da Geni, ela
respondeu:
“Sou a proprietária do imóvel. Entregue esta tampa para
a mulher do seu noivo!”
Virou as costas e entrou no elevador, que continuava em
nosso andar.
Quando voltei, Geni me contou o que ocorrera. Enquanto Antônio não chegava, o telefone tocava de dez em
dez minutos. Aquela secretária eletrônica nunca falou tanto num período tão curto. Os recados eram: “Patricia,
preciso falar com você, me liga.” “Patricia, é urgente!”
“Patricia, você está em casa? Atende o telefone!…” Que
situação!
Imaginávamos que tudo o que ela mais queria era anunciar o flagra: a amante de meu marido em minha própria
casa! Todos reunidos, ensaiamos minha fala nove vezes.
Da próxima vez que o telefone tocasse eu deveria atender com voz mansa de corna calma:
“Alô!”
“Patricia?”
“Oi, tudo bom? A tampa é linda! Combinou muito com
o azulejo azul. Minha cunhada me entregou.”
“Sua cunhada?”
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“É, a Geni, a noiva do Antônio.”
“Antônio, seu marido?”
“Não, Antônio Augusto, irmão do Antônio Carlos, meu
marido.”
“Sei…”
“Todos os filhos do Seu Antônio Pinto, meu sogro, se
chamam Antônio: Antônio Augusto, Antônio Carlos,
Antônio Roberto.”
“Hã!…”
“O Antônio Augusto é o mais velho, todos o chamam de
Antônio. Antônio Carlos, meu marido, é o do meio e é
chamado por sua família de Carlos. O Antônio Roberto é
conhecido como Beto.”
“Então, quer dizer que seu cunhado Antônio Augusto
está noivo da prima dele?”
“Prima dele, quem te disse isso?”
“A D. Milu.”
“Ela confundiu, coitadinha! A D. Milu está toda estressada com os problemas do condomínio. A prima é minha.
Olha como o destino é sábio. Eles se conheceram em nosso
noivado e agora estão noivos! Adorei a tampa, bem melhor que a outra, mais macia e confortável.”
“Que bom que você gostou!”
A proprietária nunca mais ligou. Saí da casa do Antônio
antes do contrato vencer novamente e até hoje não sei
que outro fim essa história levou. Qualquer dia pergunto
pro Antônio. Bons tempos aqueles!
Conclusão: Nunca faça a linha com mais de uma agulha!
Meus comentários sobre essa patacoada:
– Fatos divertidos acontecem mais com narradores
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empolgados. Sorte de todos nós que a Patricia saiba tão
bem viver quanto contar esses causos. Pois uma germânica como eu, que acorda sem despertador, organiza
o armário para se vestir no escuro e jamais bateu a porta,
o telefone ou a mão na cara de alguém, nunca viveria
uma história dessas.
– Eu me recuso a dissimular o que sou. Isso me tira o
prazer de contar piadas no salão, mas evita que eu seja
refém de situações constrangedoras e síndicas de má-fé.
– Vivi poucas “comédias de erro”, porque evito mentir e
omitir. Resultado de tantos anos em colégio de freiras ou
puro exibicionismo, não sei. Seja como for, sou muito franca – independentemente de o assunto em pauta ser minha homossexualidade ou seu novo corte de cabelo.
A conseqüência disso tudo é que sou péssima atriz na
arte divina do disfarce, mas tenho lá algum talento para a
ciência terrena de enfrentar a realidade.
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A terrena ciência de se assumir
Quando eu transei com aquela moça, a primeira pessoa
a saber foi minha irmã – amiga e cúmplice de todas as
horas –, para quem liguei ainda antes de chegar ao
motel. Contei em seguida para meu melhor amigo,
depois a meu marido. E então faltava contar a quem
realmente importa.
Minha mãe é uma figura muito atípica. Enquanto outras
moças de boa família nascidas em 1944 aprendiam a bordar e a tocar piano, ela estudava inglês e trabalhava. Quando se esperava que os casamentos levassem em conta a
situação do noivo, ela se casou por amor com um pérapado, com quem viveu por 38 anos uma tocante luade-mel. Quando foi demitida, porque o chefe considerava seu barrigão incompatível com a função de secretária
da presidência, usou o dinheiro ganho no processo para
montar meu enxoval e abrir uma poupança. Minha mãe
foi a principal responsável por nossa educação (a bem da
verdade, cuidou bastante da educação de meu pai também!). Incentivou que minha irmã e eu aprendêssemos
um instrumento e um idioma, de maneira que, se no futuro “tudo o mais falhasse”, ao menos pudéssemos dar
aulas e não morrer de fome. Ela fala três idiomas, só aprendeu a fazer arroz depois dos 40 (é incomível até hoje!),
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viajou muito e realmente aproveitou cada uma dessas
oportunidades para conhecer costumes e realidades diferentes dos seus. Ao contrário de tantas mães, nunca se
fez de vítima ou usou de chantagem emocional contra
nós. Ama-nos com um instinto protetor que beira a ferocidade e, assim, constrói todos os dias uma relação de
genuína confiança.
Pois bem. Um dia eu a convidei para almoçar e, entre a
salada e o prato principal, anunciei que iria me separar e
expliquei o motivo. A partir daquele momento, ela chorou
todos os dias durante várias semanas. Nada poderia ter-me
preparado para aquilo. Primeiro fiquei feliz, interpretei como
emoção suas lágrimas iniciais sobre o peixe (“Que bom,
minha filha, você se encontrou!”, ou qualquer coisa do
gênero). Depois me revoltei. Quando é que “ser feliz sem
prejudicar ninguém e fazer o bem sem olhar a quem” tinha deixado de ser o referencial de certo e errado?
Eu a considerei hipócrita e reacionária; ela me achou egoísta e meio anormal. Mas, graças à ajuda de minha irmã, e
a uma sólida tradição de diálogo, conversamos, conversamos, conversamos. Eu discursava interminavelmente
para tirar suas dúvidas (foi uma bênção à parte o fato de
ela nunca ter deixado de fazer perguntas), ela lamentava
o preconceito que eu estava fadada a sofrer; ambas chorávamos o estilhaçamento de nossas mútuas expectativas
e o entendimento que julgávamos para sempre perdido.
Mas nunca brigamos, nunca gritamos; tudo muito prussiano, como convinha a nós duas.
Em menos de seis meses, estava jogando cartas na casa
dela quando ouvi, sem aquecimento nem introdução:
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“Liga pra Patricia agora. Eu vou vestir uma roupa e nós
vamos sair pra você nos apresentar.” O encontro não deu
certo naquele dia, mas ocorreu na mesma semana. De lá
pra cá – como dizê-lo sem descambar ainda mais para a
pieguice filial? – tudo são flores. Minha mãe a chama de
“genra”, refere-se a ela por “mais uma filha querida” e
fica amuada se a Patricia não telefona nem aparece durante dez dias. Preparou meu pai para a conversa que eu
viria a ter com ele em breve, contou aos amigos e ao
resto da família.
Três anos depois, ela tomava com meu pai uma cerveja de
fim de tarde, no botequim em frente a sua casa, quando
um cara cometeu a seguinte pérola: “É melhor ter um filho
drogado, assassino ou preso do que um filho veado!”
A temperança alemã também tem limites. Rubra de indignação, dedo em riste, levantou-se e proclamou, em
alto e bom som (ali, numa mesinha no meio da rua, num
boteco de última categoria, cercada de pinguços), que
aquilo era de uma ignorância sem tamanho, que ela tinha uma filha gay maravilhosa, que namorava uma moça
que era um amor de pessoa, que ambas eram muito felizes e que ela própria era feliz por tê-las próximas de si, ao
passo que ele, um bêbado estúpido, não conseguia manter por perto nem o garçom, de tanto que fedia. Atravessou a rua numa marcha firme e cheia de dignidade, largando pra trás um grupo boquiaberto e estupefato.
Uma verdadeira lady.
O outro lado da moeda:
Antes dos questionamentos mais maduros com relação a
me assumir, fui desmascarada. Não sei se sou prolixa e
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muito apegada a detalhes, como a Karla disse há pouco,
ou se minhas histórias é que são enroladas mesmo. Quem
tiver uma pista que solucione a dúvida, ou se alguém simplesmente desejar fazer qualquer ponderação pertinente,
mesmo que irrelevante, pode me mandar um e-mail.
Então senta, que lá vai mais uma...
Cultivo até hoje uma grande amizade dos tempos da carochinha, orgulho-me de tê-lo apresentado a sua esposa,
faço pose de cupido o tempo todo. Recentemente, estive
no aniversário de seu filho, que é a cara do pai, a coisa
mais linda do mundo.
Pois é, acredite quem quiser, foi esse grande e formoso
amigo que pôs a boca no trombone. Na época, ficamos
alguns anos sem nos falar, por esse motivo e suas derivações.
Freqüentando com assiduidade os bares e boates da vida,
era comum, surpreendente e, às vezes, constrangedor encontrar, deste lado, pessoas do outro lado do muro. Flagrei
“colegas” de infância, “primas” do segundo casamento
de meu tio e “sócias” da locadora de vídeo da esquina.
Foi numa dessas ocasiões que conheci a amiga da namorada de meu amigo delator. Não sabia quem ela era, investi alguns olhares insinuantes, que não surtiram efeito
naquele dia. Descobri a coincidência meses depois, numa
festa de aniversário tradicional, em que estávamos reunidos meu amigo delator, a namorada dele e minha paquera. Olhei de ladinho com cara de “Você, aqui?”, dei uma
piscadela maliciosa e, mais uma vez, não obtive sucesso.
Anos depois, acabou rolando.
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Fez-se então a conspiração. Minha paquera contou a sua
amiga, que contou a seu namorado, meu amigo: “A Pati
é sapatão!” Bastou. A história correu de boca em ouvido
e, em duas semanas, todos os meus amigos heterossexuais sabiam de minha dupla existência. Percebi olhares
tortos, risinhos e, finalmente, chegaram os conselhos e
ofertas incríveis: “Pati, você é assim porque não conhece
um homem de verdade, deixa eu te mostrar!”
A vida dupla cansa, exige muita memória, paciência e
organização. Não sou exatamente organizada, minha
memória é disléxica e meu saco não tem bolas. Basicamente,
só minha família não tinha certeza. Em crise com minha
dignidade, resolvi contar. Quebrei as fuças! Vou poupar os
detalhes sórdidos. Dois anos depois da mais dura das
revelações, saí de casa e fui morar com o Antônio Carlos.
Com a ponte construída pelo tempo e o auxílio de minhas
irmãs, em uma década nos abraçamos no meio do caminho.
Hoje, o que guardo desse episódio é um vasto repertório
de piadas. Conhecendo a origem de meus pais, orgulhome ainda mais da sabedoria com que eles administram
seus sentimentos atuais. Agradeço a minhas irmãs o empurrãozinho e a todos, minha vida.
Vencidas as barreiras pessoais e familiares, só me faltavam
as profissionais. Nesse âmbito as coisas transcorreram de
forma similar, evoluindo a cada estágio. No primeiro
emprego oficial, meus superiores e subordinados pensavam
que eu era casada com o Antônio Carlos; nas empreitadas
seguintes, eu era uma incógnita; nessa, gastei o verbo e
destrinchei o vocabulário no intuito de exterminar toda sorte
de mal-entendidos e maus entendedores.
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Karla Lima e Pya Pêra by Karla Lima
Até um ano atrás, eu não consumia álcool nem para brindar – achava incrível que as pessoas espontaneamente
bebessem coisas tão amargas, perdessem o controle de si
e ainda achassem o conjunto uma experiência positiva.
Por causa de uma dificuldade que remonta a minha infância, até hoje não sou capaz de dançar.
Como meus passatempos favoritos exigem concentração,
sempre fui mais amiga do silêncio que do ruído, e tenho
um gosto musical atípico.
Isso tudo para dar uma idéia de como eu estava me sentindo naquela boate, com minha amiga gringa, em novembro de 2002.
Em cada metro quadrado da pista, espremiam-se 12 corpos brilhantes de suor, freneticamente dançantes ao som
de uma música tão horrível quanto alta. Do posto de observação onde passei a noite sem arredar o pé, enxergava
as pessoas distorcidas pela fumaça e pelas luzes piscantes.
Dante, você de inferno sabe muito pouco!
Quando estávamos finalmente prestes a sair dali, depois
do último xixi de minha amiga, ela volta do banheiro querendo me apresentar uma mulher que tinha conhecido na
fila! Bufei. “Mas será o Benedito ou a camisola dele?! Só
uma estrangeira mesmo pra achar que eu vou ter um traço
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sequer de interesse por alguém desse lugar...” Ela foi dançar e me largou ali, frente a frente e sem assunto com uma
japonesinha que, graças a Deus, cuidava de dirigir a conversa. Foi buscar uma bebida para si e insistiu em me trazer
qualquer coisa. Encomendei um suco de laranja e logo me
arrependi: o bartender certamente riria dela, mas era tarde
para cancelar o pedido – avançava com determinação por
toda a pista e já ia alcançando o balcão. Beneficiando-me
de minha própria altura, embora prejudicada pela dela, tentava não perdê-la de vista. Depois de receber sua própria
bebida, virou-se para trás e gesticulou o que interpretei
como sendo “Eles não têm suco de laranja.” Tínhamos
acabado de nos conhecer e nossas mãos ainda não se comunicavam direito; eu pensei que tinha gesticulado de volta “Então esquece!”, mas devo ter pedido “Então traz de
outro sabor.” – pois a conversa teve prosseguimento. Ela
mimicou: “Com gelo ou sem gelo?” e eu retribuí, em pantomima: “Qualquer coisa.” Ela voltou à carga com “Açúcar ou adoçante?” e eu, já num nível perigoso de irritação,
acenei “Tanto faz, criatura!”
Muito tempo depois, ela me contou que só estava sendo
gentil, que todo aquele esforço pra obter meu suco era
uma maneira de dizer que estava gostando do papo –
ocasião em que pude esclarecer que seu empenho tinha
sido interpretado como “Minha nossa, que pessoa mais
enrolada! Se não tem suco, não tem, pronto! Mas que
drama por causa dum assunto sem a menor importância… Eu nem mesmo estou com sede!”
Bebi o suco rapidamente e me despedi, justificando que a
conversa estava boa, mas eu já estava de partida quando
ela e a gringa se conheceram; portanto, se ela me desse o
número, eu ligaria na quarta-feira. Não queria parecer
mais bruta do que geralmente já transpareço ser, e me
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achei supereducada por dar uma satisfação pra minha
pressa, assim como, ao dizer que ligaria, julguei ter deixado claro meu interesse.
Estava com minha amiga na imensa fila pra pagar quando ela ressurge, saltitante: “Eu adorei te conhecer!” Respirei fundo e dei a única possibilidade honesta de resposta: “Eu não posso dizer o mesmo, mas, se um dia eu
disser, você saberá que é verdade.” Se alguém dissesse
isso pra mim, eu ficaria encantada; pareceu-me que ela
não ficou. Não respondeu nada, murmurou um tchau inaudível e se foi. Que pessoa estranha...
Quatro dias depois, conforme o combinado, deixei o seguinte recado em sua caixa postal: “Oi, Patricia, aqui é a
Karla. A gente se conheceu no sábado, eu fiquei de ligar,
estou ligando. Você tem meu número, dá um retorno
quando puder. Um beijo.” Combinamos jantar naquela
mesma noite.
Embora a Patricia goste de fazer troça de mim e relate
esse episódio sempre que tem platéia, eu não vejo graça
nenhuma nele: anotei o telefone porque iria de fato ligar,
disse que não tinha sido especial conhecê-la porque não
tinha mesmo, e telefonei no dia marcado porque levo a
sério as coisas que digo. Ah!, por que a previsibilidade
espanta tanto as pessoas?!
O restaurante ainda estava fechado quando cheguei. Para
passar o tempo, andei até uma livraria. A meio caminho
de volta ao restaurante, a Patricia liga: “Já estou aqui.”
Ela tinha passado em casa, tomado banho e trocado de
roupa. Chegou, escolheu a mesa, pediu uma Coca, me
ligou e esperou. Estava linda, perfumada e tranqüila. Eu
não podia estar em mais oposta condição: ansiosa pelo
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encontro e não querendo fazê-la esperar, apressei o passo, cheguei esbaforida e toda suada. O “cooper” pela
Paulista certamente não contribuiu para uma imagem repousada e refrescante e, além disso, eu estava carregando uma malha, minha pasta de trabalho e uma bolsa imensa. Estava meio embaraçada.
O jantar foi maravilhoso. A conversa fluía interessante e
fácil. Deixamo-nos estar ali por muitas horas, entre antepastos e brindes, prato principal e cigarros, entre sobremesa e risos – a pequena vela central iluminando nossos
olhos e uma cumplicidade nascente.
Para prolongar o encontro, tomamos quatro cafés cada
uma – mas chegou um momento em que ou levantávamos ou desenvolveríamos ali mesmo uma úlcera perfurada. Sugeri andarmos pela Paulista. Terminamos, imagine
só, numa cafeteria. Voltamos ao restaurante pra pegar os
carros. Decidimos tomar o derradeiro.
No que parecia ser a despedida-de-verdade-agora-é-sério, ela faz cara de pidona: “Você vai viajar e eu não vou
te ver até não sei quando. Você podia me deixar alguma
coisa de lembrança...” A noite tinha sido encantadora –
que se dane a breguice –, ela era adorável, eu estava
pronta pra cair de paixão: inclinei, fechei os olhos e a
beijei. Sua reação foi meio desconcertante: “Olha a vendedora de balas!” Bolas!, quero lá saber?
Ela sugeriu darmos uma volta de carro e, no fundo de minha
cabeça, um aprendizado infantil se esgoelava: “Não aceite
presentes, não pegue carona, não vá com estranhos...”
Entrei no carro, não pus o cinto e pedi que ela não travasse
a porta. Não sei o que pensei, sou mais alta e mais forte e,
de qualquer forma, não faço o tipo aventureiro que salta
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de um carro em movimento... Mas de todo modo nada
fazia muito sentido mesmo. Ela prometeu que seria apenas
uma volta no quarteirão, mas o percurso me interessava
pouco: eu ria de nervosismo e cobria o rosto com as mãos,
pensando “Ai, meu Deus do céu! Mas o que é que eu
estou fazendo?… Sou uma louca! Que irresponsabilidade!
Onde já se viu? Eu perdi a cabeça… Mas que leviandade!…
eu sou uma inconseqüente!”
Retornadas ao ponto de origem, arrisquei: “Só viajo na
madrugada de sexta, se você quiser, pode ir jantar em
casa na quinta, só que moro numa ruazinha desconhecida e meio difícil de achar, eu não cozinho e, portanto, o
menu é lasanha congelada, você tem um guia, sabe ler
mapa, tinha outro compromisso pra amanhã?”
Na noite seguinte, ela chegou trazendo um brinquedinho
pra minha boxer. Ou eu não tinha dito que a Aretha era
uma boxer ou a Patricia não conhecia a raça: o tal mimo
resistiu menos de duas horas. Mas a Aretha retribuiu o
gesto com todo o seu afeto patístico, babístico e lingüístico.
Quando lhe fiz o convite para jantar em casa, não tinha
planejado nada mais íntimo. Por isso, em nossa primeira
noite eu não estava depilada, não tinha uma escova de
dentes nova para oferecer, ela dormiu sem travesseiro e
se enxugou com minha própria toalha de banho.
Mas, ao observá-la da janela, partindo naquele início de
sexta-feira, nossos sorrisos indicavam que nada disso tinha a menor importância.
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Pya Pêra e Karla Lima by Pya Pêra
Findo meu segundo casamento, passava dias e noites tentando afogar a frustração da derrota. Precisava resgatar a
auto-estima e a todo custo queria me vingar da dor, assassinando-a. Essas são palavras poéticas que maquiam
meu pé na jaca, chutando o pau da barraca.
Naqueles sete anos, vividos de maneira esplendorosa,
crédulas de que a prosperidade duraria até o fim de nossas
vidas, fomos muito felizes. O ano posterior a esse foi
marcado por tentativas mal-sucedidas de convívio pacífico.
A contragosto de ambas, nós nos separamos. Dessa fase
só tenho lembranças doces e afetuosas. Hoje, amigas e
mais maduras, conseguimos ver o que nos cegava.
Soltando a franga, fui parar numa boate na Vila Madalena.
Era aniversário de uma “colega” da “sócia” da “prima”
de uma amiga. Cheguei, vinda de outra festa, para cumprimentar a aniversariante, mas, antes de descobrir quem
tinha nascido naquele dia anos atrás, tinha muito que ir
ao banheiro.
Uma fila quilométrica me afastava do alívio. Logo percebi
uma gringuinha atrás de mim: ela não estava me seguindo,
apenas esperava sua vez, mais tranqüilamente. Bonitinha
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que ela era, puxei conversa. De bexigas vazias, seguimos
em direção à amiga hétero-simpatizante recém-separada
a quem ela queria me apresentar. Pensei: “Vixe!”
Nesse instante conheci quem hoje é a razão de minha
vida. A primeira impressão foi de deslumbramento. Acho
até que meu queixo estava caído quando ela se apresentou: “Oi, meu nome é Karla com K.”
Ma-ra-vi-lho-sa! Que mulher é essa? Que que é isso? Respondi a mim mesma: “Muito cimento pra minha caminhonete!”
Intimidada com tamanha beleza, acuada por seu jeito cru,
utilizei todas as técnicas de conquista que desenvolvi ao
longo de 18 anos de carreira, e acabei desapontada. Ela
estava com sono, o lugar era muito barulhento, e sua
impaciência estava prestes a virar irritação. Quando eu
não tinha mais esperanças, ela sacou seu celular e nele
anotou meu número: “Ligo para você na quarta-feira na
hora do almoço.” Pensei: “Hã, hã!... Tá bom!”
Fui então em busca do bolo – a fome me consumia naquele momento. Procurei a pessoa que justificava minha
presença na festa:
“Caramba, Pati! Onde você estava?”
“Nem te conto... Eu estava conversando com uma publicitária tudo de bom. Quem é a aniversariante? Já cortaram o bolo?”
“O bolo já era e a aniversariante foi embora uma hora
atrás.”
“Olha minha publicitária ali na fila do caixa! Vou dar o
último tiro, fica olhando.”
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Fui tentar a última cartada da noite:
“Adorei conhecer você, isso é raro em ambientes barulhentos.”
Mais ligeira que um projétil de fuzil AR-15, Karla com K
disparou:
“Não posso dizer o mesmo, mas quando eu disser você
saberá que é verdade.”
Retornei cabisbaixa:
“Você viu quem era?”
“Vi. E aí?”
“Metida pra caralho!...”
Estava no escritório quando um aviso de recado na caixa
postal de meu celular chamou minha atenção. Mecanicamente, entre uma anotação e outra, percorri os procedimentos até chegar à mensagem: “Você tem uma
nova mensagem recebida hoje, quarta-feira, às 12h01:
‘Patricia, é a Karla. Nos conhecemos no sábado. Estou
ligando conforme falei.’” Não é possível. Isso não existe! Liguei de volta, marcamos um jantar para aquela
mesma noite.
Quatro deliciosas horas entre garfadas se passaram, e
saímos para mais um cafezinho. Caminhando pela Av.
Paulista, quase a beijei, resisti. Prudência com Karla Lima
é sempre a melhor escolha. Voltamos para o restaurante
de onde saímos para mais um cafezinho. No balcão,
comentávamos sobre nossas diferenças estruturais: ela
1,72 m, eu quase 1,70 m sobre 10,5 cm de salto. Passamos
a comparar os comprimentos dos braços, estendidos lado
a lado. Um senhor da quarta idade metido a garotão se
aproximou estendendo seu braço junto aos nossos:
“O meu é maior que os das duas.”
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(Por que tem gente que não tem amor à vida?)
“Quem te perguntou?”
Acho que nem preciso identificar a autora dessa frase,
preciso?
Empapuçadas de cafezinhos, seguimos em direção aos
carros, estacionados bem em frente ao local, onde uma
vendedora de balas oferecia seus produtos. A Karla iria
passar o final de semana seguinte fora de São Paulo. Previ
que, se não tomasse uma atitude, só conseguiria algo –
se conseguisse – dali a uma semana. Calculei, somando e
subtraindo, todos os sinais corporais das últimas seis horas
e concluí que deveria arriscar. O pior que poderia acontecer
era soar algo do tipo: “Quem você pensa que é?” Pensei
na resposta: “Penso que sou eu, mas posso estar errada.”
Respirei fundo: “Você não vai deixar nada para que eu
possa me apegar até nos vermos novamente?”
Ela me beijou a boca. Um beijo safado-amoroso que me
fez tremer por dentro… eu acho que tremi por fora
também. Só quem pode afirmar é a vendedora de balas,
mas não sei por onde ela anda.
Convidei a Karla para uma voltinha no quarteirão. Sugeri
meu carro, por causa dos vidros escuros. Ela titubeou,
mas foi. O passeio no bosque só foi produtivo porque, ao
fim dele, fui convidada para comer lasanha em sua casa.
Despedimo-nos.
Nem sei como cheguei viva. Vim cantando, batucando nas
coxas, comemorando... não via nada a meu redor. O dia
seguinte se arrastou. À noite, comemos lasanha descongelada, conversamos pouco e namoramos muito.
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Na manhã seguinte, quando fui embora, o guardinha da
rua me falou bom-dia com um sorrisinho malicioso. Localizei a posição do quarto, calculei a distância entre seu
posto de observação e a janela e concluí que nós tínhamos tornado a noite dele bem divertida e barulhenta.
Naquela madrugada, ele dispensou o uso de cafeína...
Olhei pra cima e ela acenava. Meu Bicho estava de roupão com um sorriso maroto-amoroso nos lábios. Essa cena
se repetiu em minha mente 824 vezes ao longo daquele
dia, e outras tantas até mudarmos aqui pra casa.
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A primeira impressão nem sempre é a que fica
Ansiosa por apresentar a Karla a meu círculo de amigos,
organizei um programinha com seleto grupo. Estávamos
em seis, incluindo nós duas. Todas já tinham ouvido muito a respeito dela: elogios rasgados e declarações de amor
quilométricas que, de tão açucaradas, causavam nas ouvintes certa gastura.
Houve aquela falta de assunto inicial – hoje, repensando
os acontecimentos, percebi que eu mesma costurei a saia
justa. De um lado, dizia: “A Karla é descendente de alemães, um pouco fria, meio intelectualizada, não dança,
não bebe e não está acostumada a conviver com muita
gente; então, relevem qualquer contratempo… no fundo
é um doce de pessoa! Ela só precisa de um tempo para se
socializar.” Do outro: “Bicho, o povo que você vai conhecer é meio estabanado, adora pastelão com azeitona, não
perde a novela das oito, toma todas até cair e dança até a
boate fechar. Tenha um pouquinho de paciência que, no
fundo, elas têm conteúdo.” Unir pessoas que amo requer
um pouco de estratégia.
Só amenidades... A Karla se mantinha impassível diante
da piada da loira que tingiu o cabelo em busca de inteligência artificial. Morremos de rir. Assim que as gargalhadas
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embaladas por algumas cervejinhas cessaram, ela comentou: “Não querendo substituir um apotegma por um
aforismo, discordo.” Nós nos entreolhamos e não entendemos nada, mas achamos conveniente rir da piada
dela também.
Finalmente, meu Bicho foi ao toalete – saberia, enfim,
quais eram as primeiras impressões do grupo em relação
a minha nova namorada. “Nooossa, Pati! É seu número,
mas não parece muito seu estilo.” “Que deusa! Ela fala
várias línguas, hein? Se deu bem, hein, Pati?” “Tudo de
bom, um pouco séria demais, né?” Sem saber o que Karla
pensava enquanto enxugava a periquita após o xixi, e
imaginando seus bufos de impaciência, sugeri às meninas
que deixassem as piadas de lado e buscassem assuntos
mais relevantes.
“Karla, que bom que você voltou! Eu estava contando
por que meu último relacionamento acabou. Minha “ex”
é de Câncer com ascendente em Escorpião e sou de Áries
com ascendente em Sagitário. Não conseguimos superar
nossas diferenças. A Pati é de Touro com ascendente em
touro, e você?”
“Eu sou lesma canhota com ascendente em tamanduá
alérgico. Odeio Astrologia, acho uma bobagem sem tamanho. Não sei como alguém pode levar a sério um assunto imbecil desses.”
Entreolhamo-nos mais uma vez, e o silêncio tomou conta
do ambiente. Foi quando alguém relinchou como jumento
confinado faz quando avista uma égua no cio:
“Iíííóóó…óóó!” Morremos de rir e, mais uma vez, a Karla
não entendeu a piada. “Qual a graça do relincho do
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jumento confinado?” Mais tarde, expliquei: “Não é o relincho em si, são os coices que vêm antes e depois dele.”
Ela foi apelidada pelo grupo de Pit Karla e o “Iíííóóó…óóó!”
virou seu hino. Em muitas ocasiões, reuniões e viagens, o
passatempo predileto do povo até hoje é a gincana “Ai,
minha bunda!” O jogo consiste em provocar a Karla, com
muita prudência sempre, e contabilizar os coices recebidos. Vence quem ficar com a bunda mais roxa.
Trocando confidências com a irmã dela, consegui descobrir o signo de meu “Bicho-do-Mato”: Aquário com ascendente em Gêmeos. Como uma típica taurina com ascendente em Touro, na primeira oportunidade fui saber
onde estava pisando. Recorri à Internet e descobri que
pisava em ovos!
Touro & Aquário
Aquário pode ser um grande auxiliar nas questões concretas
e profissionais, mas afetivamente deixa muito a desejar.
Seus nativos são excessivamente frios e racionais para você,
taurina, que possui um enorme romantismo. Aquário preza,
acima de tudo, a liberdade, o que não combina nem um
pouco com a natureza possessiva da taurina. Além disso,
os nativos desse signo são muito extravagantes e sentem
um enorme prazer em provocar e chocar as outras pessoas,
o que não tem nada a ver com Touro, que gosta de sossego.
Mas talvez o que mais irrite a taurina seja o fato de que,
apesar de julgar ser o dono da verdade, o aquariano vive
num mundo de utopia e tem o hábito de fazer mil planos
mirabolantes que não dão em nada. Na cama, as coisas
também não rolam como deveriam, pois as pessoas de
Aquário são excessivamente desligadas e têm dificuldade
para entender as necessidades alheias.
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Hoje, o que digo sobre esse texto e os ovos que esmaguei
é: “Meu Bicho-do-Mato é a força motriz das questões concretas, afetivas e profissionais de minha vida, sem deixar
nada a desejar. A frieza inicial não passou de inicial. Sua
racionalidade me fortalece e ampara. A Karla preza a liberdade sim, e meu caráter possessivo fica ridicularizado
diante de tanta confiança mútua. Seu enorme prazer em
provocar e chocar as outras pessoas se transformou em
ótimas piadas. Os astros se equivocaram no que tange a
mil planos mirabolantes que não dão em nada: ela faz poucos planos e os concretiza. Pensar em planos mirabolantes
é minha tarefa. Ela tem dificuldade para entender as necessidades alheias, mas, como sou parte dela, deixei de ser
alheia, e na cama ela é um espetáculo; embalada por uma
tempestade, então, meu Bicho enlouquece!”
Após pequeno desvio no percurso do capítulo, retomo o
tema em questão: como sei que meu Bicho-do-Mato sente
imensa gratidão pelas pessoas que lhe concedem uma oportunidade de transformar as primeiras impressões, quase
sempre desastrosas, em segundas tentativas mais bem-sucedidas, iniciei o CUCOSOPAPYA. Não entendeu nada, né?
A Karla é bem mais habilidosa com a palavra escrita; sendo
assim, deixo a explicação do CUCOSOPAPYA nas mãos dela.
Se preferir, me ligue que eu lhe conto.
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CUCOSOPAPYA
Quando a Patricia e eu nos conhecemos, ela viu em mim
algum potencial – mas só porque tem olhos de águia.
Não fosse por essa capacidade de enxergar além do alcance, como o super-herói, não teríamos passado do primeiro encontro.
Todos os dias, independentemente da hora e da ocasião,
eu usava os mesmos anéis: na mão esquerda eram três
prateados, com golfinhos, algas e baleias, e na direita
eram três dourados, sem um tema que os unificasse. De
bater o olho em minhas seis falanges ela compreendeu
que eu gostava de anéis, que não tinha lá muito senso
estético, que não sabia ou não me preocupava em combinar os acessórios nem com a roupa nem com o programa, que misturava artesanato de latão com ouro herdado da avó e que ignorava os preceitos básicos de nãoofensa aos olhos alheios.
O tempo passava e ela me dando anéis. Uma semana do
primeiro beijo? Anel pra comemorar. Acordou apaixonadinha? Anel de presente no jantar. Lua cheia? Hummm...
esse formato redondinho vem mesmo a calhar! Eu gostava de ganhar os anéis, de fato eram todos lindos, mas
não entendia o motivo da obsessão com o assunto. Seria
trauma de infância?
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Em poucas semanas ela alcançou o objetivo: os anéis tinham tanta personalidade, e eram tão diferentes uns dos
outros, que até eu percebia que deveriam ser usados separadamente (uns dos outros e todos dos meus). Foi assim que ela elevou minhas mãos de um carnaval permanente e sem estilo para uma justaposição de minha essência com o verniz dela. Viu só como ela enxerga longe?
Processo semelhante viveu meu guarda-roupas. Eu me
vestia para não andar por aí pelada; sempre achei que
roupa não vale o que custa, que seguir moda é de uma
idiotice sem tamanho e que um par de sapatos pretos
basta – afinal, quantos pares de sapatos você consegue
usar ao mesmo tempo?
Devagar e com jeitinho, ela me deu ou me incentivou a
comprar tudo novo. Tudo! Minhas calças de trabalho,
fiéis companheiras de muitos empregos e que ainda me
serviam perfeitamente, foram doadas para a igreja do
bairro. As malhas que faziam par com elas foram depositadas nos coletores da Campanha do Agasalho. Os sapatos e as blusas ela entregou pra uma moça que tocou a
campainha pedindo uma esmolinha pelo amor de Deus –
ela com certeza nunca recebeu tanta coisa, tão depressa,
em tão bom estado. Em menos de um minuto a Patricia
esticou pra incrédula pedinte duas sacolas cheias – obviamente, dali em diante a campainha tocaria três vezes por
semana: “Sobrou alguma coisa, dona?”
Esse processo teve uma conseqüência ruim e uma boa:
antes eu ia com qualquer coisa a qualquer lugar, e muitas
vezes saía de casa sem nem me olhar no espelho; agora
me preocupo com a aparência e, apesar de ter o dobro
de opções, às vezes não acho “a certa”, experimento várias combinações antes de sair de casa. É uma chatice!
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Por outro lado, reconheço que minhas roupas são realmente muito mais bonitas, e com uma freqüência surpreendente ouço elogios sobre como meu novo estilo valoriza alguma coisa.
Repintada a fachada, era hora de reformar o interior.
A Patricia achava positiva minha estrutura básica (“inocência, sinceridade e princípios”), mas sentia falta de acabamento. Eu era mais ou menos como uma casa sem
área social, só com quarto, banheiro e cozinha. Em mim,
tudo de particular, íntimo e supostamente reservado era
público, e não havia flores sobre a mesa, sofá para uma
visita sentar-se, nem quintal pra prender o cão de guarda.
Dizem que tenho um gênio difícil, que sou arrogante,
bruta e fria. Verdade ou mediocridade de quem julga,
estou habituada a suscitar mais antipatia que afeto. Decorre daí que minhas amizades são geralmente fruto da
perseverança do outro. Porque a maioria das pessoas se
choca no primeiro contato e não tem nenhuma razão pra
insistir num segundo, tenho poucos e queridíssimos amigos a quem sou profundamente grata: eles foram os que,
por curiosidade, masoquismo ou pagamento de promessa, concederam uma segunda oportunidade. À persistência dessas pessoas tolerantes e de boa vontade eu devo
minhas mais antigas relações sociais. E àquelas que, a
exemplo de mim mesma, não tiveram paciência, interesse ou motivo pra insistir, quero só registrar que as compreendo per-fei-ta-men-te!
Quando começou a se dedicar a minha face social, a
Patricia conseguiu de mim a primeira colaboração ativa.
Eu não fiz restrições às mudanças anteriores, mas também
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não ajudei muito. Mas este assunto era diferente. Eu não
queria que ela continuasse sofrendo de TEPANA (Tensão
Pré-Apresentação a Novos Amigos), então concordei em
me matricular no CUCOSOPAPYA (Curso de Convívio Social
Pacífico Patricia Yury Assumpção). Agora, muitos primeiros
encontros evoluem para o segundo, e quem me conhecia
antes diz que a evolução é gritante – ou melhor, é
marcante, que gritar eu nunca gritei. Se ela ainda me
chama de Bicho, é puro hábito!
O CUCOSOPAPYA é dividido em três tópicos, que podem
ser assim resumidos:
I.
Crianças:
a) São sempre bonitas para seus pais, parentes e
babás. Mesmo que você as considere uns filhotinhos de cruz-credo, diga “Mas que olhos
expressivos!”, ou então “Que mãozinha mais
gorducha!”
b) Você não precisa falar com bebês sabendo que
eles não a entendem, mas não faça cara de desprezo para o adulto que fica de “tatibitate” inclinado sobre o carrinho.
c) Não pegue no colo nenhum humano que você
consiga carregar.
II. Adultos:
a) Pessoas assistem a novelas; viva com isso.
b) Ao se impacientar com alguém, procure não
reproduzir seus pensamentos em expressões
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faciais ou de mãos. Só em último caso bufe ou
revire os olhos. Lembre-se de jamais, jamais fazer
as duas coisas simultaneamente.
c) Deixe seu amor ao debate e a fúria com que defende seus argumentos para depois do oitavo
encontro.
d) Dê seguimento a conversas inócuas; elas podem
ser o caminho para as mais profundas.
III. Amenidades:
a) Se não for perguntada, não opine sobre o novo
corte de cabelo, a calça nova nem a nova namorada de ninguém.
b) Na remota eventualidade de ser perguntada, prefira desconversar a ser honesta.
(Agora você já sabe. Se à pergunta “Que tal meus
peitos novos?” obtiver “Nossa!… tá calor, né?”
por resposta, é porque achei o implante horrível.)
Pronto, estão cumpridos os dois propósitos do capítulo:
dar à Patricia o crédito pelas mudanças operadas em mim
e garantir de antemão uma justificativa a quem eu eventualmente vier a agredir… Ainda estou estudando, caramba! Deixe de ser nhenhenhém!
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O vai-e-vem, o volta-e-vai
Dois lares, duas estruturas, duas possibilidades de
destino a cada fim de dia. Durante mais de um ano,
alternávamos um dia na casa da Karla, outro em meu
apartamento. Uma verdadeira maratona de vai-e-vem,
volta-e-vai. Os inconvenientes eram muitos, mas
irrelevantes quando comparados ao prazer de estar ao
lado dela.
Quando a mudança era daqui pra lá, eu já levava a mala
organizadinha. Na casa de meu Bicho, nem pêlo ficava
fora do lugar. Nunca tinha visto tanta funcionalidade, perfeição e capricho reunidos num só ambiente. A cozinha
parecia uma loja de meia dúzia. Tudo limpinho e arrumadinho como se vê nas vitrines: meia dúzia de copos, pratos, garfos, potes, xícaras. Meia dúzia de tudo. Ok, alguns poucos itens eram únicos, a exemplo da jarra, do
bule e da concha de sopa.
No início, tinha um pouco de medo, quase pânico, de
mexer nas coisas e não saber onde nem como recolocálas. Aos poucos, por tentativa e erro, percebi que poderia
ser um pouco mais organizada, e que meu Bicho tinha
alguma tolerância a minhas limitações.
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Um dia, pensei tê-la pego no pulo: no degrau da escada
estavam um par de sapatos, uma sacola de supermercado,
um copo d’água e uma pilha de livros.
“Bicho, o que essas bagunças estão fazendo no meio da
escada?!”
“Esperando que você suba e se manque de levar uma
parte.”
Tomou?
Método é tudo na vida da Karla com K. Ela age de acordo
com os preceitos ensinados por minha sogra. Seus movimentos são friamente calculados para economizar tempo, evitar repetições e para tocar em cada objeto uma
única vez, dando a ele o destino final.
Com isso em mente, simule Karla com K guardando as
compras do mês… Duvido que você tenha conseguido.
Eu já tentei imitá-la. Mesmo tendo observado a operação
diversas vezes, é sempre: cinco itens guardados, pããã!…
toquei duas vezes na lata de creme de leite. Quatro itens
depois, pããã!… tive que abrir a geladeira de novo. E o
pããã! não pára.
Quando a mudança era de lá pra cá, eu me sentia jogando em casa (literalmente). Esforçava-me para muquiar os
excessos de bagunça, e sobre o restante alegava excentricidade.
As mudanças eram diárias. Um transtorno para nós e um
sofrimento para os respectivos bichos de estimação, que –
dia sim, dia não – acabavam privados de nossa presença.
Em meu caso, um schnauzer macho, quase senil; no caso
da Karla, uma boxer fêmea recém-saída da puberdade.
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Eles sofriam por nossa ausência constante. Para minimizar
o drama, tentamos algumas aproximações para incluí-los
na bagagem, possibilitando assim a extensão do período
de permanência em cada casa, mas não fomos bemsucedidas nos intentos.
Além de incompatíveis no tamanho, criação e maturidade, seus temperamentos eram absolutamente opostos: a
Aretha era a cópia fidedigna de sua dona – impetuosa,
estabanada, inteligente e inocentemente feroz. Os passeios diários eram verdadeiros duelos de cabo-de-guerra:
de um lado ela, do outro uma de nós. A Aretha desenvolvia táticas cada vez mais aprimoradas para nos vencer. Ela
fingia estar entretida com o cheiro do xixi do cachorro do
vizinho e, de repente, arrancava em direção à pombinha
branca: 1 x 0.
Após uma bronca, vários solavancos e alguns minutos de
castigo sentada na calçada, ela parecia arrependida. Evitava olhar para os lados e seguia cabisbaixa. A duração
do efeito positivo da repreensão, no entanto, estava condicionada à época do ano. Explico: no inverno, na primavera e no verão, a calmaria se mantinha em média por
três minutos; no outono, durava até a folha seguinte se
desprender da próxima árvore.
Apesar de conhecer todos os pontos críticos do passeio
(o poodle da casa rosa, o pastor alemão do Sr. Fritz, o bull
terrier pirata do pitboy e a pinscher da senhora mal-humorada), sempre aparecia um elemento-surpresa: dois
meninos entregando panfletos, um casal fazendo jogging,
o motoqueiro desavisado; enfim, o passeio terminava e o
placar nunca era inferior a 9 x 0, por mais que eu me
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preparasse. Já o Bicho voltava do passeio cantando de
galo: “Hoje foi só 5 x 0.”
Certa vez, a Aretha me venceu por W.O. Tudo parecia
calmo quando, de repente, uma barata! Nesse caso, e só
nesse único caso, isso ocorreu. Ela correu atrás da barata
sem que eu oferecesse resistência nenhuma; muito pelo
contrário, soltei a guia e corri em direção à calçada oposta: “Vai, Aretha, mata!”
Proporcional à semelhança Karla-Aretha era a diferença
Patricia-Oliver. Ele era ranzinza, rabugento, irritadiço e ligeiramente apegado ao ócio. Quando saía para passear,
raramente olhava para os lados. Passava quase que indiferente a tudo, no máximo rosnava, de maneira impetuosa, se afrontado. A única semelhança entre nós era essa:
apesar do tamanho, nosso rosnado impunha respeito.
Assim como precisei submeter meu Bicho ao CUCOSOPAPYA,
nós precisávamos submetê-los ao CUCOSOPACÃES. E assim
foi: internamos os dois pupilos num canil especializado e
15 dias depois fomos apanhá-los. A eficiência do método
se comprovou: saíram de lá convivendo. Não se amavam,
mas coexistiam de maneira pacífica, respeitavam-se sem
que nenhum deles abrisse mão de seu princípio ideológico.
O diálogo é o melhor caminho ao entendimento.
Voltamos para casa, desta vez os quatro no mesmo carro.
A Aretha, excitadíssima, babava e pulava sem parar. Como
chovia, os vidros estavam fechados e embaçaram em
menos de cinco minutos. O Oliver, junto com a Aretha no
banco de trás, era esmagado pela euforia da cadela
ensandecida. Achei conveniente colocá-lo no banco da
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frente e pular pro de trás. Enciumado com as lambidas
frenéticas que a Aretha dava em meu rosto, ele rosnou
daquele jeito e ela rosnou de volta. Ai, meu Deus!… dentro
do carro fechado, na auto-estrada, vai dar bosta!
“Calma, Bicho!”
“Eu tô calma!”
Acabou que não deu. Seguimos com o Oliver sendo esmagado, a Aretha babando, e nós concentradas na abstração dos percalços momentâneos vislumbrando as vantagens da vida a quatro.
Desde então, nossas mudanças se tornaram menos freqüentes: uma semana lá no sobrado da Lapa, outra aqui.
Nossa vida realmente melhorou bastante quando passamos a mudar de casa apenas uma vez por semana. Nessa
fase, com os cães se dando relativamente bem, e com os
itens de necessidade básica duplicados e disponíveis, tínhamos uma rotina quase tranqüila. Duro mesmo tinha
sido o período anterior...
Para dar as boas-vindas à Patricia, tentei equipar minha
casa com as coisas que tinha visto na dela, começando
pelo banheiro. Até então, em meu box havia um shampoo, um condicionador, uma bucha e um sabonete. De
imediato, acrescentei um sabonete infantil (ela só usa sabonete infantil em barra), um sabonete para o rosto (que
me deu um trabalhão pra encontrar), um sabonete líquido (também infantil), um óleo pós-banho, uma outra bucha, um kit de shampoo e condicionador acompanhado
de desembaraçador de fios e máscara revitalizante, um
esfoliante corporal e uma lixa de pé. Meu box media meio
80
metro quadrado; quando passou a abrigar todos aqueles
pertences, ficou tão mais aconchegante!
Sobre a pia as mudanças foram suaves: apenas mais uma
escova, mais uma pasta e mais um fio dental (é claro que,
só pra facilitar, usávamos marcas diferentes de tudo!). Ao
gabinete, minúsculo, adicionei: discos de algodão e adstringente, esfoliante facial, regulador de oleosidade, secante em bastão, em tubo e em lápis, elásticos, grampos,
pente, escova, suas marcas favoritas de absorvente externo e interno, hidratante, talco, colônia de verão e perfume. Fora esses detalhes, a única coisa que mudou no banheiro foi a altura do espelho, que teve que ser diminuída
uns 30 centímetros – para que ela não precisasse usar
saltos pra se enxergar.
Mas as principais mudanças nem foram no aspecto físico
da casa, porque eu achava de um romantismo incrível ter
roupas dela em meu armário, seus instrumentos e livros de
estudo na estante da sala, suas guloseimas favoritas na
despensa, seu carro em frente ao portão. Mesmo quando
sua presença se manifestava no rolo de papel higiênico
terminado e não-substituído, quando a lata de Coca passava a noite sobre a mesinha da sala, quando eu descia pra
fazer café e no último degrau da escada tropeçava num pé
de tênis, e até mesmo encontrando as chaves do carro
dela em cima do fogão, continuava me divertindo com
nossas diferenças, recolhia e arrumava tudo, fazia um sermão terminado em beijo e saía pra trabalhar toda feliz.
(Minha irmã diz que nunca me imaginou tão Amélia!)
Difícil mesmo foi me acostumar a certos hábitos novos. Todas as manhãs, tínhamos que combinar onde
dormiríamos naquela noite. Entre levantar da cama e
81
estar realmente acordada e lúcida, a Patricia precisa de
umas duas horas. Manda a prudência que tudo o que
for decidido com ela nesse intervalo seja confirmado
mais tarde, quando os outros 80% de sua capacidade
intelectual estiverem disponíveis e operantes. Mas eu
só descobri isso algum tempo depois, quando já tinha
umas três ou quatro vezes ido para um destino enquanto ela me esperava em outro. E mesmo o processo de verificação vespertina não garantia muita coisa:
às vezes surgia um programa noturno e a roupa que
ela fazia questão de usar estava na casa oposta, ou
uma mudança brusca de temperatura me obrigava a
sair do trabalho, em Pinheiros, pegar uma roupa quente em casa, na Lapa, e ir dormir com ela no apartamento a 26 km de distância. Valia a pena todas as vezes.
82
O casamento das laranjas
maduras na beira da praia
Poucas piadas lésbicas circulam no meio e fora dele. Uma
das mais comuns é:
O que uma lésbica leva no segundo encontro?
O caminhão de mudança.
Se a piada fosse minha, prolixa que sou, diria:
Seu próprio caminhão lotado de Playboys, lembranças e
bilhetinhos de outros relacionamentos, pochetes de couro,
kit de manicure (Trim, escovinha e lixa), DVD pirata da
série L Word, discografia completa da Ana Carolina, Zélia
Duncan, Marina Lima e o que sobrou da obra da Simone
depois de excessivas execuções, colônia Très Brüt de
Marchand para o dia, Pólo by Kim para as tardes e Azzarro
para as noites e desodorante Axe Aerosol Touch para todas
as horas.
Confirmando o fundo de verdade dessa piada, fomos
muito breves. Salvo raríssimas exceções, quando a responsabilidade profissional falou mais alto, ela ouve meus
resmungos noturnos dia após dia desde que experimentei sua lasanha descongelada.
83
Confira a cronologia:
Dia 30 de novembro de 2002 fomos apresentadas pela
gringuinha.
Dia 4 de dezembro de 2002 ela me deu um beijo.
Dia 5 de dezembro de 2002 ela me deu vários beijos.
Dia 15 de dezembro de 2002 ficamos noivas.
Dia 3 de março de 2003 nos casamos à beira-mar.
Após 93 dias a contar da apresentação, o que equivale a
89 dias após o primeiro beijo, nos casamos. Na verdade,
esses não eram exatamente meus planos, mas, como uma
lésbica típica, sucumbi.
Resolvemos nos presentear com uma viagem a Fernando
de Noronha. Quando aceitei o presente, não imaginei o
que estava por vir. Empolgada com nossa primeira luade-mel, esqueci que não éramos casadas e subestimei
minha aerodromofobia.
Com dor na garganta por causa do nó, coração ainda
taquicárdico e a cabeça atordoada por um sem-número
de palavrões proferidos mentalmente, cheguei a Natal.
A Karla chegou plácida; então concluí que meus esforços
não deixaram transparecer o nível da fobia. Vencida a
primeira barreira, já pensava na muralha do dia seguinte:
teco-teco até a ilha. Fudeu!
Quando chegamos ao hotel onde passaríamos a noite até
o próximo pesadelo, achei que estava sonhando: assim
que entramos na suíte, duas camas de solteiro nos aguardavam. Meu coração disparou, na garganta um nó se fez
e um zumbido tapou meus ouvidos, tamanha a altura e o
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baixo calão do palavrão que meu subconsciente proferiu.
“Amor, você não reservou cama de casal?”
“Reservei, Bicho, reservei...”
“Ah, eu vou resolver isso é agora mesmo!”
A Karla saiu pisando duro, e eu atrás dela:
“Calma, calma, deve ser uma confusãozinha, deixa que
eu resolvo.”
“Mas eu estou calma!”
Ela andava simplesmente como quem tinha pressa, e eu
me esforçava como quem disputa a medalha dos 200 metros rasos nas Olimpíadas. Ela chegou antes.
Com o voucher em punho e o indicador sob o X que assinalava a opção double na reserva:
“Você sabe o que significa um X no quadradinho ao lado
da palavra double?”
“Sim, senhorita.”
“Então, por que motivo estamos no quarto 212, onde há
duas camas de solteiro e não uma de casal?”
A recepcionista, ligeiramente gaga:
“É que nós achamos que a reserva estava errada. Quando vimos Srta. Patricia e Srta. Karla, presumimos que duas
camas de solteiro seriam mais apropriadas.”
“Não me admira, dado o nível dessa espelunca, que vocês tenham larga experiência com reservas erradas. Mas
desta vez, incrivelmente, a reserva estava certa. Quarto
de casal, por favor!”
Dez minutos depois estávamos hospedadas no 269 – sugestivo, não?
Sem muitas opções, passamos o fim daquela tarde na
praia mais próxima ao hotel. No dia seguinte pela manhã
já seguiríamos rumo a Fernando de Noronha. Cheguei a
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consultar, sem a Karla saber – lógico! –, a possibilidade
de alcançar a ilha a nado, mas era fora de cogitação.
Grande, Prainha ou Mole. Acho que um desses é o nome
da praia onde estávamos – esse é um caso em que o
detalhe é muito relevante, mas eu não consigo me lembrar do nome da bendita praia de jeito nenhum. Ah! Acho
que era Praia da Benedita… não, Barraca da Benedita na
Praia Bendita. Sei lá!
A praia não era nada de tanto assim; pelo contrário, para
nosso gosto, era esquisitíssima: areia estreita, cheia de barracas com mesas e cadeiras, água não-cristalina e ambulantes desesperados por uma vendinha que fosse. A nosso
favor, só a ausência de pessoas – era uma segunda-feira.
Foi lá, às 17h30, que nos casamos. O cenário parecia
não ser o ideal, mas se tornou. Instaladas numa barraca,
sob a sombra de um guarda-sol, tomando suco de caju,
brindamos.
Nada foi premeditado, pensei no vôo do dia seguinte e
na iminente possibilidade de enfartar. Ponderei o fato de
viver uma lua-de-mel sem ao menos estar casada. Recapitulei os 93 dias mais maravilhosos de minha vida até então. Meu coração sumiu de meu peito: “Casa comigo,
Bicho?” Ela desnudou meus pensamentos como se estivesse dentro de mim. Nossos olhos simultaneamente foram umedecendo entre sorrisos tímidos. Depois de um
longo abraço, ela sacou sua inseparável caneta e em meia
face de um guardanapo escreveu a primeira cláusula de
nosso próprio contrato nupcial. Nossos olhares só se desgrudavam durante o ato da transcrição das palavras. Olhos
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nos olhos, inundados de lágrimas, nós alternamos a formulação das cláusulas. Enquanto pensava, eu sorria, brincava com o futuro, chorava e sorria. E, enquanto ela pensava, eu admirava aquela mulher tão linda.
Contrato nupcial
De um lado Patricia Yury Assumpção, portadora do RG
tal, e de outro Karla Barbosa Lima, portadora do RG tal,
firmam no presente momento o contrato nupcial regido
pelas cláusulas descritas a seguir:
1) Este casamento é baseado em amor, acima de
tudo, e também em respeito, sexo, companheirismo, cumplicidade, diálogo, apoio mútuo, verdade e lealdade – esses oito itens não necessariamente nessa ordem.
2) As partes elegem, desde já, a compreensão como
ferramenta principal das questões individuais, e
a harmonia como cenário constante em qualquer
situação.
3) As partes concordam que o desenvolvimento da
outra interessa tanto quanto o seu próprio, se não
mais. E, portanto, ambas se comprometem a ter
esse fato como objetivo principal em todas as ações.
4) Em caso de viuvez súbita e/ou precoce, caberá à
parte que ficou dar seguimento aos planos, realizações e conquistas. À parte que se foi caberá
suportá-la espiritualmente nessas ações, e preparar uma grande recepção por ocasião do reencontro.
5) As partes se comprometem a diminuir a distância entre os conceitos-chave da boa convivência,
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cada uma revendo sua parte, de modo a minimizar as diferenças entre os opostos já descobertos
e os que estão por vir.
6) Eu, Patricia, espero que ela me ame apesar dos
meus defeitos e por causa das minhas qualidades. E, em contrapartida, me comprometo a diminuir os “apesar dos defeitos” em freqüência e
intensidade, incluindo ser menos sensível e não
bufar quando ela quiser dormir.
7) Eu, Karla, espero que ela me ame apesar dos
meus defeitos e por causa das minhas qualidades. E, em contrapartida, me comprometo a diminuir os “apesar dos defeitos” em freqüência e
intensidade, incluindo ser menos bruta e não bufar
quando ela quiser discutir a relação.
§ Em ambos os casos, revirar os olhos é permitido.
A quebra de qualquer uma das cláusulas implica a revisão
do termo ora acordado, cabendo às partes a decisão sobre a renovação ou a rescisão do presente.
Natal, 3 de março de 2003.
“Eu vou vomitar! Que coisa enjoativa, quanta pieguice!
Como tem gente miudinha nesse mundo, ô meu Deus!”
Até o final de 2002, certamente essa seria minha reação
diante desse texto. Mas eu saí em férias, conheci a Patricia,
começamos a namorar e, menos de um mês depois, diante
do mesmo material, eu exclamaria, com voz melosa e
fazendo biquinho: “Ai, mas que coisa liiinda!”
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Os amigos do trabalho foram os primeiros a notar que
alguma coisa estava acontecendo comigo. Eu não tinha
ficado rica, certamente não era alegria pelo retorno ao
batente – só poderia ser um novo amor!
Pele viçosa, cabelos sedosos, olhos brilhantes e roupas
novas? Hummm!... Gentil, paciente e com um bom humor inabalável? Não foi difícil para as seis mulheres com
quem eu trabalhava acertarem em cheio e de primeira
que, sim, eu estava apaixonada! Os colegas, o chefe e
meus clientes se beneficiaram muito das mudanças que a
Patricia operou em mim – eles só não sabiam a quem
creditar o milagre.
Ela tinha-me aconselhado a manter segredo sobre nós: não
conhecendo nada do ambiente em agências, teve receio
por mim. “Se você entrar na copa e o grupinho se calar de
repente, você vai sentir-se horrível. É melhor se preservar;
pela frente todo mundo aceita e diz que acha normal, mas
cada vez que você sair de um ambiente vai ficar pensando
nas fofocas que vão fazer pelas suas costas.”
Previsivelmente, meu silêncio só contribuiu para aguçar a
curiosidade geral.
Muito tempo depois, fiquei sabendo que tinha existido
uma bolsa de apostas sobre quem era meu novo amor.
Parece até que o bolão extrapolou os limites de nosso
pequeno grupo e chegou ao pessoal da cantina. Mas
como as pessoas cuidam da vida alheia, não? Fiquei surpresa com tanta falta do que fazer.
O diretor de criação da agência estava em primeiro lugar,
com 35% dos votos; um de meus clientes recebeu quase
20%; um amigo querido de quem eu falava muito
ocupava a terceira posição e, na lanterna, figurava uma
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celebridade qualquer. Afinal, diziam os apostadores desse
item, se eu escondia tanto só podia ser alguém famoso:
atleta, ator ou cantor. Imaginavam-me na capa da Caras,
cobrindo o rosto, e um titulão denunciando tudo: “Fulano
de namorada nova; ela não é do meio.” Quando soube
disso, dei muita risada. Eu não fazia idéia de quem eram
aqueles ídolos, não reconhecia um único nome naquela
lista de artistas!
Seguindo a recomendação da Patricia, mantinha-me calada – só Deus sabe a que custo.
Finalmente, a brincadeira perdeu a graça. Passaram a se
referir a meu amante como ET – achavam legítimo, já que
eu parecia mesmo ter sido abduzida. Isso facilitava muito
as coisas para mim, pois sendo ET um substantivo masculino, eu não precisava preocupar-me em mudar pronomes possessivos, artigos e adjetivos para o outro sexo. E o
fato de eu não abrir a boca não impediu a mulherada de
participar, ainda que indiretamente, de meu romance. Por
exemplo, quando eu estava planejando a viagem para
Fernando de Noronha, elas me obrigaram a comprar uma
garrafa de champanhe, me presentearam com velas coloridas e gastaram horas me instruindo sobre a criação do
clima certo: “Aproveita quando o ET for tomar banho,
espalha as velas por lugares estratégicos e fica deitada
assim de lado, enrolada no lençol, mas pelada por baixo.
Deixa as taças por perto, mas sem que ele veja...”
A turma, numa animação incrível, não se conformava com
os obstáculos que eu apresentava: o transtorno de carregar coisas frágeis e pesadas na bagagem, a possibilidade
de o ET achar tudo e estragar a surpresa, o risco de eu
incendiar o quarto do hotel – fora a breguice inominável
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da cena: fazer charme, nua, num quarto bruxuleante! Para
ser o retrato do inferno só tinha faltado recomendação
de trilha sonora. Não sei como a Patricia teria reagido,
mas eu, certamente, teria caído numa gargalhada incontrolável e constrangida. Não me lembro se chegamos a
acender as velas, mas abrimos juntas o champanhe e nos
divertimos criando histórias para eu contar na volta: “Nossa, gente, vocês tinham toda a razão! Ele ficou louco de
desejo... Quando saiu do banho e me viu ali, com cara de
tesão, mordiscando a ponta do indicador e toda dourada
pela chama das velas, partiu para o ataque, sussurrando
coisas picantes...”
Dois meses depois da viagem, cheguei a meu limite. Eu
nunca me incomodei com maledicências e não iria começar aos 32 anos. De qualquer forma, já falavam de mim,
de modo que só haveria alteração no assunto: de “Nossa,
essa Karla é uma cavala!” iria provavelmente pra “Eu sempre desconfiei, sapatão é tudo mal-humorado mesmo!”
Contei.
E, conforme eu suspeitava, nada mudou para ninguém
em nenhum sentido. Quem não ia lá muito com minha
cara continuou não indo e quem gostava de mim continuou gostando. Simples e honesto assim.
91
O final feliz de uma história de amor improvável
Assim como a Patricia e eu não temos quase nada em
comum, a educação que demos a nossos cães também
era meio incompatível. Por isso, quando eles voltaram do
treinamento conseguindo conviver, e isso permitiu um
espaçamento nas mudanças, suspiramos aliviadas: “Nossa vida vai mudar!”
E mudou mesmo, especialmente para eles: só o que não
estranharam foram as secretárias domésticas, ambas baixinhas, gordinhas e amorosas. De resto...
O Oliver era peludo e tomava banho uma vez por semana, no petshop. A Aretha tinha pêlo curto e tomava banho a cada 15 dias, no chuveirinho de casa. Ele sempre
morou em apartamento e passeava de duas a três vezes
por dia; enquanto ela tinha a garagem pra ver pessoas e
se exercitar, e passeava uma vez só. O Oliver era mimado
com toda sorte de quitutes humanos, de pipoca a queijo
branco; a Aretha só comia ração seca e patê canino e não
pedia comida pras pessoas. E o mais importante de tudo:
o Oliver dormia no quarto da Patricia; a Aretha dormia
em sua própria casinha, no quintal.
Apesar do curso no canil, a personalidade de ambos não
mudou: um era velhinho, gordinho, e já não ligava pra
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brincadeiras, e a outra era uma adolescente atlética e cheia
de energia que brincava com qualquer coisa, incluindo seus
semelhantes em repouso inerte. Mas fechamos os olhos a
isso e, nos meses iniciais, celebramos a alegria do Oliver
por tomar menos banhos, a alegria da Aretha por ganhar
uns petiscos, a alegria da Patricia de tê-los dormindo conosco, e a dupla alegria da D. Angelina e da Fátima por
terem, cada uma, um cão a mais para paparicar.
Algum tempo depois, entretanto, ficou claro que as coisas não estavam fluindo como sonhávamos. Quando estávamos no apartamento da Patricia, a Aretha sentia falta
de ficar no portão recebendo os afagos da vizinhança, e a
Fátima chegou a destroncar o ombro ao evitar que ela
esmagasse, de brincadeira, o yorkshire do 64. Quando
estávamos na Lapa, eu tinha dificuldade de dormir com
ambos roncando no quarto, e o Oliver sentia falta dos
cânticos evangélicos da Fátima. Em ambas as moradias,
ele se ressentia de dividir as atenções e ela estava desolada pelo temperamento sedentário dele.
O Oliver cochilava no sofá e a Aretha saltava sobre ele,
arfando e babando, esperando que começasse uma perseguição – ele rosnava e ia perseguir um canto mais sossegado. O Oliver dormitava na casinha dela e ela começava a se coçar na entrada, fazendo toda a estrutura tremer, até que ele acordasse e partisse pra cima dela – ele
acordava e partia pra almofada. O Oliver tirava uma soneca, a Aretha atirava um brinquedinho em cima dele e
saía correndo – ele permanecia imóvel, dormindo com o
brinquedo caído sobre o focinho e ignorando seus latidos
de “Vem brincar comigo, vem brincar comigo!”
Aquilo irritou a Aretha a ponto de, em represália a tanta
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indiferença, ter começado a sabotar as propriedades dele:
comeu duas camas, destruiu um comedouro, transformou
um casaco de inverno em tiras bem fininhas de plush xadrez e, num ato desesperado por atenção, comeu uma
verruga que ele tinha no alto da cabeça.
Nada disso tendo funcionado, partiu para viver num sítio
fora de São Paulo. Lá, além de brincar o dia inteiro com
um outro boxer, tem todos os alunos da escola municipal
batendo ponto em seu portão.
94
A transição imobiliária
Resolver definitivamente o vai-e-vem e o volta-e-vai demandou alguma paciência. Tínhamos problemas burocráticos que nos impediam de juntar os trapos num único
teto.
Casadas e desimpedidas pela burocracia inicial, enumeramos as vantagens e desvantagens das duas alternativas
que tínhamos: ela vir pra cá ou o Oliver e eu irmos pra lá.
Elegemos meu apartamento.
Os pontos cruciais dessa decisão foram sustentados sobre 5 pilares:
Pilar 1: alugar o imóvel da Karla parecia mais provável.
Pilar 2: um dos carros teria que dormir ao relento caso
optássemos pela Lapa.
Pilar 3: havia um reduzido número de esconderijos de
bagunça no sobrado, se comparado ao existente aqui.
Pilar 4: baratas gostam mais de casa do que de apartamento.
Pilar 5: minha pouca afeição pelo guardinha da rua.
Cabe aqui a explicação e o embasamento do pilar de
sustentação número 5: havia na rua dela um guardinha
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típico desses que montam seu próprio negócio depois de
ler uma das obras do renomado Dr. Lair Ribeiro.
Seu Wander escolheu uma rua, foi de casa em casa, solicitou uma pequena contribuição mensal e pronto: estava
fundada a Wander & Ley – Segurança Patrimonial 24 horas. Um esquema e tanto: ele fazia o turno da noite, seu
sócio Ley fazia o turno da manhã e o cunhado Wal era o
folguista.
Enquanto eu não tinha a chave do sobrado (uma semana), só aparecia depois de ter a certeza de que minha
cara não iria bater na porta. Ligava dizendo que estava a
uma quadra e o Bicho me esperava no portão.
Seu Wander parecia fugir quando via meu carro – pensei
ser timidez inicial de quem ouvia muitos ruídos vindos do
quarto, próximo demais de seu posto de vigília.
Quando trocamos chaves, passei a chegar sozinha ao sobrado da Lapa. Seu Wander me olhava de canto enquanto eu girava a maçaneta e, por mais que eu procurasse
tranqüilizá-lo com sorrisinhos meigos, ele me observava
como se eu estivesse invadindo propriedade alheia e manchando a honra de sua empresa.
Cansada de me sentir uma meliante aos atentos olhos de
Seu Wander, pedi à Karla que me apresentasse oficialmente
ao dono da empresa de segurança da rua, numa
oportunidade propícia. Pra quê! Recém-chegadas do
supermercado, com sacolas penduradas por todos os
lados, completamente atrapalhadas, eu com os braços
trêmulos pelo peso das compras, sinto uma movimentação
esquisita. Ela, com a chave do portão na boca, grita em
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direção ao outro lado da rua: “Seu Wander, esta é a
Patricia!” E para mim, um pouco mais baixo: “Vida, esse
é Seu Wander.” Não sei quem de nós ficou mais
constrangido, a Karla é que não foi.
Passados seis meses de convívio diário, semanalmente intercalados, eu desisti. Se Seu Wander não quer me falar
boa-noite é um direito dele. Respeitei, mas isso nunca
deixou de me incomodar.
As coisas pioraram ainda mais quando meu carro, que
dormia na rua em frente ao portão, foi arrombado. Foi a
perda total da credibilidade daquela empresa.
Hoje estamos aqui, o sobrado está alugado, não sabemos
qual é a situação da Wander & Ley, e a vida segue exatamente como planejamos.
Sim, desde há algum tempo a vida vem seguindo, de fato,
conforme planejamos. Mas não foi sempre assim: quando eu me mudei para o que então era apenas “a casa da
Patricia”, estranhei muita coisa.
Começando por questões menores: em minha casa tinha
muita luz natural, o que sempre me encantou. Da janela
da sala eu via um pôr-do-sol lindo, celebrado barulhentamente pelos muitos passarinhos da rua. Eu morava perto
de minha família, fazia muita coisa a pé e a vizinhança era
bacana. Quando me mudei pra cá, o choque foi grande.
Se o bairro já me espantava, porta adentro também era
tudo muito estranho. Tratava-se, afinal, de uma casa pronta: não ajudei a escolher o apartamento, não participei
da decoração, não palpitei sobre o modelo dos copos nem
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na localização das tomadas. Era pior do que simplesmente alugar um imóvel mobiliado qualquer, pois tudo ali, da
cama aos espelhos do banheiro, do sofá aos cinzeiros,
havia testemunhado o casamento anterior dela. Tudo tinha permanecido, até lençóis e toalhas de banho!
A mudança em si não deu muito trabalho. Entrar de uma
maneira tão definitiva numa nova casa, numa nova vida
deu. Eu tinha vários porta-retratos, mas não estava à vontade para expor papai, mamãe e irmãzinha na sala dela –
guardei as fotos numa pasta e me desfiz das molduras.
Nenhuma divisão do armário comportava minhas roupas
no agrupamento que eu costumava ter, e acabei separando regatas de camisetas e juntando meias com cintos.
As prateleiras da sapateira eram tão próximas que minhas botas só entravam dobradas.
Equilibrar o cotidiano gastronômico foi uma diversão à
parte. A Patricia, quando acorda, só toma café preto e
não come nada até o almoço, quando então se alimenta
como um caminhoneiro – sem trocadilho. É viciada em
Coca Light (além de café), passa mal se não comer um
doce depois da refeição e não costuma jantar.
Pela manhã eu me alimento muito bem; no almoço faço
refeições leves – e também sou viciada em café, mas não
faço questão de sobremesa, não tomo Coca-Cola e não
durmo sem jantar.
Por fim, enquanto minha D. Angelina chegava antes das
nove, a Fátima não tem como chegar antes das onze e
meia. Isso significa preparar o café da manhã diante da
louça suja do jantar.
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Em poucos meses, ajeitamos tudo. Para que a casa refletisse minha chegada, a Patricia decidiu que faríamos uma
reforma: mudamos a cor de algumas paredes, trocamos
o piso todo, compramos um colchão delicioso e novos
porta-retratos. Para que eu me sentisse em casa de verdade, decidi que ela tinha que arrumar o escritório – e
não é que ela arrumou?!
Acertamos a despensa pra incluir muitos litros de leite, e
a geladeira pra receber frutas e verduras. Até a Fátima
gostou de trocar almoços de 4.000 calorias por uns peixinhos com legumes de vez em quando!
Por conta de nosso desequilíbrio no quesito altura, deixei
de usar as botas altas – mas nem por isso dispenso uma
massagem nos pés, aproveitando que o sofá daqui é imenso
e me permite deitar escarrapachada feito uma madame.
Através das janelas imensas da sala vemos quando uma
tempestade se aproxima e corremos pra fazer amor. De
meu novo quarto, assistir ao amanhecer é lindo.
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Nossa Senhora, Fátima!
Fátima já viu e ouviu coisas de que até Deus duvida. Por
essa razão e outras tantas, dedicamos um capítulo em
sua homenagem.
Ela é minha fiel escudeira desde o tempo do Antônio
Carlos. Conheço seus dramas tanto quanto ela conhece
os meus. Somos como irmãs. Não sei definir quem é a
mais velha – não importa. Se os caros leitores colaborarem
com esta empreitada, divulgando para desconhecidos,
presenteando amigos secretos e punindo sogras, quem
sabe a Karla e eu conseguiremos manter seus proventos
em dia e tê-la em nossa companhia até que ela possa
montar seu próprio negócio.
A Fátima é uma figura ímpar, 15 centímetros menor que
eu, 15 quilos acima de seu peso ideal, radicada em São
Paulo há 29 anos, proveniente de Pernambuco, mais precisamente Vitória de Santo Antão, bairro Cidade de Deus.
Como fiel missionária da Assembléia de Deus, Ministério
Belém, ela participa do coral da igreja. Pratica seus cantos
pela casa, com sua voz de contralto, e só abaixa o volume
quando digo: “Fátimaaa... Pelamordedeus!”
100
Não há como esconder intimidades de uma pessoa tão
próxima: ela sabe tudo o que se passa conosco e com
nossos amigos. Mas é sempre muito discreta. Outro dia
ela me perguntou:
“Aquela moça do olho azul já fez as paz com a dos cabelo esquisito?”
“Já sim, Fatinha.”
“Ai, que bênça!”
Ela já flagrou beijinho na boca, cochilo em posição de
conchinha no sofá: “Disculpa incomodá vocês, mais vocês querem que eu passe um cafezinho?”
Trabalhar com a Fátima por perto é bem doce, mas pouco
produtivo. De 30 em 30 minutos ela aparece: “Tá tudo
bem aí?” “Tô lá no quarto, qualquer coisa é só chamá.”
“Vô estendê as roupa, viu?” “Cês vão tomá banho agora? Eu queria lavá o banheiro.” E assim vai, sem fim.
Seu bordão de despedida é sua marca registrada:
“Necessita de algo?”
“Não, Fátima, está tudo em ordem. Chegue bem em casa.
Até amanhã.”
A capacidade de socialização da Fátima é algo incrível:
“Boa tarde! Por gentileza, a Srta. Karla Lima está?”
“Tá não, menina, mas Patricia está. Ela tá no quarto arrumando a bagunça dela porque Karla vai chegá. E, cê sabe,
Karla permite bagunça, mas não muita. Ela já devi di tá
terminando… qué que eu chame ela?”
“Não, não, não é necessário. Você sabe me informar a
que horas consigo falar com a Srta. Karla?”
“Ahhh!, dependi! Que hora é agora? Só um minutinho,
queu vô vê no relógio da cunzinha...” Minutos depois:
101
“Ahhh!, agora é dez pras três, acho que Karla só vai voltá
dipois que ela passá na casa di sua mãe. A mãe dela pediu foi um livro emprestado, mas num deve di demorá
muito não, porque Patricia tá arrumando as coisa muito
afobada, acho que Karla tá pra chegá. Num qué falá com
Patricia não?”
“Fátimaaa, quem é no telefone?”
“Só um minutinho... Sei não, Patricia.”
“Vê quem é.”
“É Silvana, dum banco Pan-mericano!”
Sem exceção, todos os nossos amigos adoram a Fátima, e
quando alguém aparece em casa é a maior festa. Ela abraça, beija, diz que estava morrendo de saudades, e sei que
estava mesmo. Assim como nós, no entanto, todos têm
um certo receio de ligar aqui pra casa quando estão com
pressa. Para saber se estamos em casa, paciência e espírito de perseverança são fundamentais. Quem ligou tem
que contar como estão as coisas no lar, o que anda fazendo no trabalho, ouvir as boas novas sobre o almoço que
Fátima patrocinou a sua família no domingo e, de quebra, ficar sabendo qual foi a tarefa interrompida para que
a chamada fosse atendida.
Outro dia liguei para casa desesperada:
“Fatinha!”
“Oiii, Patriiicia! Cê num tá em casa não? Bem que eu
reparei. Tá tudo bem? Qué falá com Karlinha? Ela também num tá não. Eu estava limpando os vrídu… como
tem pó aqui nessa casa! Semana passada eu limpei, mas
parece que tem trêis mês que eu não limpo. Onti teve
festa lá em casa. Foi uma bênça!”
“Que bom, Fatinha! A Karla está comigo. Tá tudo ótimo
102
(nem estava, mas foi só para evitar um desvio maior no
percurso). Estou com muita pressa. Preciso urgente do número do telefone do Dr. Mário, advogado, que está anotado na agenda esverdeada em cima da mesa de jantar.”
“Agenda esverdemuada?”
“Parecida com verde, mais ou menos verde.”
“E é? Mais ou menos verde chama esverdemuado? Sabia
não… Só um minuto que eu vou checar.” Tic-tac, tic-tac:
“Tem não, Patricia. Tem uma agenda em cima da mesa
de jantar, mais é cinza.”
“É essa mesmo, Fatinha! Qual é o número do Dr. Mário?
Rapidinho, por favor!”
“Achei não... tem um monte de coisa escrita, mas não
tem escrito Mário não.”
“Lê o que está escrito pra mim, Fatinha!”
“Ligar para Robiiinson, pagar o dentiiista… Víxe, Patricia!
Você num pagô o hôme ainda?”
“Não, Fatinha, ainda não paguei! O número do telefone
do Dr. Mário fica no fim da agenda: lá atrás tem uma
parte onde tem uma letrinha no alto… a primeira página
desta parte tem um A bem grande, na segunda um B; vai
até a página com a letra M e lê o que tá escrito.”
“Ah, bom! Agora num tem mais erro. Acheeei!”
“Qual é o número?”
“Ah, peraí que eu fechei a agenda amuada! É doise, sete
quatro… Víxe, Patricia!, que número é esse?”
“Como é que eu vou saber, Fatinha? Você é que está com
a agenda na mão!”
“Pois você tem que começá a caprichá mais nas letra, tua
letra tá muito ruim de entendê, acho que é o nove ou o
treis, dipois é oitcho, cinco e no último é igual ao que eu
falei primeiro.”
“Ok, brigada, Fatinha! Depois a gente conversa.”
103
“Tá bom, então. Beeeijo! Num demora pra voltá que eu
quero te amostrá uma coisa pra você.”
“Tá, Fatinha!”
“Mande um beijinho pra Karlinha tumbém.”
“Tá, Fatinha!!”
Nós e a Fátima sofremos muito com a morte do Oliver,
nosso cão. Fátima preferia chamá-lo de Ólivi. Ela foi fundamental no condicionamento básico: xixi no jornal, senta, deita, e participou ativamente das decisões com relação à altura e à periodicidade da tosa.
Nunca faltou papo entre eles. Algumas vezes acordava
com a voz da Fátima vinda da cozinha. Cambaleante, ia
conferir o que estava acontecendo e topava com ambos
conversando. Sentados frente a frente, ela acariciava vigorosamente a cabeça dele a ponto de os olhos esticarem até a parte branca do globo se mostrar: “Ólivi, sua
mãe tá drumindo, ela já vai acordá. Num fica assim tristinho que a Fátima ama você. Cê tá cherosiiinho! Vem aqui,
meu nêgo, dá um cherinho pra Fátima.”
Outras vezes, ouvia seus cânticos evangélicos vindos da
área de serviço. Em busca de uma calça limpa, deparava
com a mesma cena. “Fatinha, o que você tá fazendo?”
“Tô calmando os nervo do Ólivi. Ele tá muito agitado
hoje. Já saiu da caminha e foi drumi no sofá, largô o
sofá e foi pra almofada umas trêis vez desde a hora que
eu cheguei. Num pára quieto de jeito nenhum! Então
resolvi cantá um pouquinho pra deixá ele mais calmo.
Você não sabe, Patricia, mas essas música acalma as
aflição!”
“Tá certo, Fatinha!”
104
Ao fim das conversas, independentemente do assunto,
ela o abraçava, mordia e amassava o pobrezinho. Era uma
farra vê-los assim. Aos 12 anos ele se foi e, até hoje, eu e
a Fátima choramos quando algo nos faz lembrar dele.
E, por falar no Oliver, a Karla tem uns acréscimos a fazer:
A Fátima sempre falava conosco por intermédio dele, e
foi numa dessas que soltou mais uma pérola. Estou eu
lendo jornal, está ela com ele em alegre convescote. Segue-se animado monólogo: “Então, Ólivi, daqui a pouco
você vai andá de carro, visse? Que tu tá meio catinguento, cos pêlo tudo gruvinhado. Vai voltá cherôôôso! Assim
que terminá com o jornal, Karlinha te leva, viu? Essa sua
segunda mãe é tão boazinha!… Quer dizer, terceira –
não, bom, hummm... quarta, ou melhor, sua nova mãe é
tão boazinha!…”
A Fátima tem um nariz muito especial. Se ficamos no escritório até tarde, mesmo que a janela fique aberta durante toda a noite, ela chega na manhã seguinte e vai
logo acusando: “Mas ônti vocês fumáru que foi uma coisa, hein?!” Ao determinar os produtos de limpeza que
devemos comprar, não se importa com marca nem com
rendimento: é pelo cheirinho. E se minha irmã pernoita
no sofá e vai embora antes que a Fátima chegue, ela se
lamenta: “Poxa! Karina acabou de sair, não foi? Um minutinho antes e eu pegava ela aqui...” Para o desenvolvimento desse senso olfativo privilegiado, contou com a
prestimosa ajuda da Patricia, que, ao nunca guardar as
roupas limpas, nem pôr para lavar as sujas, condicionou a
Fátima a cheirar tudo. Cabe a ela então dar o veredicto.
Um dia, pouco depois de minha mudança, entrei no closet
105
e peguei-a cheirando minha blusa com verdadeiro ardor
investigativo.
“Fátima!”
“Oooi, Karlinha! Qué alguma coisa?” Era a calma em pessoa, não se sentia surpreendida em ato ilícito.
“Sim, quero que você pare de cheirar minha blusa! O que
você está fazendo?”
“Tô cheraaando! Se não, como vô sabê se precisa lavá?
Cas de Patricia eu faço assim...”
“Então, Fátima, ‘cas’ minhas você não precisa se preocupar não, viu? Tudo meu que precisar ser lavado eu mesma vou colocar no cesto de roupa suja. Por favor, nunca
mais cheire nenhuma roupa minha, tá bom?”
Sua decepção era visível:
“Tá bom, se você não qué eu não chêro, mas as de Patricia
vô continuá, que ela sozinha não sabe dicidir o que tem
de lavá e o que dá pra usá de novo!”
Cá pra mim, desconfio que até hoje ela cheire, sim, minhas roupas.
A cordialidade fria de minhas primeiras interações com a
Fátima deixava a Patricia de cabelos e pêlos em pé. Em
minha defesa, alego que sempre a tratei com respeito e
que sou naturalmente lerda para desenvolver carinho pelas pessoas – de maneira geral, acredito que educação
basta.
Assim, enquanto às sextas-feiras a Patricia se despede com
“Tchau, Fatinha! Bom fim de semana, descansa e fica com
Deus, viu? Manda um beijo pros seus filhos – aliás, faz
tempo que não pergunto deles... Sua filha tá gostando
da escola nova? Seu menino mais velho conseguiu arranjar outro emprego? E a lojinha de sua mãe, tá indo bem?
Ah!, que bênção, né, Fatinha? Então olha, aproveita pra
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ficar com eles, viu? Dorme bastante, fica bem descansadinha, que a gente se vê na segunda-feira, se Deus quiser. Um beijo", eu me limito a um “Tchau, Fátima, bom
fim de semana.” – ainda que sincero.
A Patricia acha que trabalhar com a Fátima por perto é
doce, porém improdutivo. Pois eu estou certa da mais
absoluta impossibilidade de fazer perto de ambas qualquer coisa que demande o trabalho conjunto de mais de
dois neurônios! Ou será que meus neurônios é que são
muito frescos?
Cansada de ouvir sermões quinzenais sobre a maneira
“correta” de me dirigir a Fátima, decidi reduzir os diálogos ao mínimo, fazendo por escrito perguntas e pedidos.
Pareceu dar certo, embora as diferenças entre nossos estilos continuassem:
“Fatinha, deixei umas roupas pra passar em cima do cesto de roupa limpa. Por favor, deixe separadas, pois eu vou
levar pra viagem no feriado – estou muito cansada e branquela. Volto na segunda queimadinha e com cara de saúde. Um beijo. Mande um beijo também pras crianças.
Obrigada. Tenha um ótimo fim de semana. Fique com
Deus. Patricia. Ah!, Fatinha, escondi uma baguncinha na
segunda gaveta de meu criado-mudo; pode deixar lá, a
Karla não vai ver. Quando eu voltar, escondo em outro
lugar. Um beijo. Fique com Deus. Patricia.”
Resposta: “Ok. Beijo. Fátima.”
“Fátima, favor passar e pendurar essa calça. Obrigada.
Karla.”
Resposta: “Ok. Beijo. Fátima.”
“Fátima, por favor complete a lista, vou ao mercado amanhã. Obrigada. Karla.”
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Resposta: “Ok. Beijo. Fátima.”
A revelação sobre como, afinal, a Fátima nunca se deixou
intimidar por meu estilo sério veio com a seguinte troca
de bilhetes:
“Fátima, minha mãe vem aqui hoje. Por favor, lembre a
Patricia de deixar a sala e o escritório em ordem.”
Resposta: “Não deu. Beijo. Fátima.”
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Pequenas evidências de um grande amor
Provas de amor estão contidas em mínimos detalhes cotidianos. Num domingo chove-mas-não-molha, não tive
alternativa senão preparar o almoço. Fosse uma tempestade daquelas, estaria eu fazendo amor com meu Bicho
enlouquecido. Não sendo, acabei de touca na cabeça cozinhando feijão.
Estávamos de tagarelice pós-brunch em meio à cozinha
absolutamente revirada. Ao embalar o que tinha sobrado da salada, pela quadringentésima septuagésima oitava vez, não resisti à beleza do momento: “Filme de
PVC é a melhor invenção da vida moderna! Quem será
que inventou essa maravilha? Olha, Bicho, que lindo!!!
Não é demais?”
Senti um olhar doce quando consegui abandonar o recipiente no devido compartimento da geladeira. O olhar
veio acompanhado de uma declaração:
“É a quadringentésima septuagésima oitava vez que você
diz isso, e eu te amo.”
Sem entender, mas gostando do que ouvi:
“Bicho, sei que você me ama, mas como você sabe
que é a quadringentésima septuagésima oitava vez?
Andou contando? O que é que o cu tem a ver com a
calça?”
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“É claro que não contei, meu amor, e o cu não tem nada
a ver com a calça! Hoje, me dei conta de que você já
presenciou seiscentas e vinte e uma ligações que fiz pro
meu banco.”
Aí a ficha caiu...
Sempre que a Karla faz uma operação bancária pelo telefone, ela invariavelmente desliga e declara: “Eu amo este
banco! Nenhum operador usa gerúndio, nunca me ligaram pra vender nada, tudo funciona tão direitinho!… Não
é o máximo?” Sem entrar nos pormenores do ciúme que
o banco me causa, já respondi seiscentas e vinte e uma
vezes: “É sim, meu Bicho!”
Esse episódio me chamou a atenção para as pequenas
provas cotidianas de amor que passam despercebidas, e
não deveriam.
Só para constar, e ganhar uns pontinhos, relaciono:
– Quando escrevo, penso sempre no que ela vai achar.
– Escondo a bagunça para não a aborrecer.
– Comprei 15 pacotes de 12 caixas de fósforos cada um.
Espalhei, bem escondidinhos, pela casa toda pra não sumir com o isqueiro dela.
– Quando vamos dormir em horários diferentes e ela me
pergunta no dia seguinte a que horas fui deitar, sempre
reduzo umas duas horas para ela não se preocupar com
minha falta de sono.
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– Por preguiça de trocar, nunca acabo com o papel
higiênico. Se for o último quadradinho do rolo, dou uma
chacoalhadinha e tá tudo certo.
Já que isso conta pontos, vou somar os meus:
– Minha prova de amor relacionada ao papel higiênico é
levar um rolo novo para o banheiro antes que o que está
em uso acabe. Assim a Patricia não precisa ficar só na
chacoalhadinha.
– Desvio os olhos da bagunça que ela espalha pela casa
toda. Em conseqüência, morro de dor na nuca por passar
a vida olhando para o teto!
– Apanho todas as moedas caídas sem que ela compreenda a relação entre o tilintar de seu despir e nosso cofrinho sempre abastecido.
– Mantenho em meu carro um maço dos cigarros que ela
fuma.
– Se vou dormir antes, abro o lençol de seu lado para que
se sinta bem-vinda quando for deitar.
– Ela não come sozinha, por isso sento-me para acompanhá-la mesmo que não tenha um pingo de apetite.
– Escondo bilhetinhos e telefono durante o dia só para
dizer o quanto a amo.
Como se vê, sofro de uma espécie de dupla personalidade: por um lado, creio na separação dos corpos e na
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independência das mentes, gosto de fazer certos programas sozinha e a incentivo a sair sem mim; por outro,
sou romântica a ponto de gerar náuseas. E o pior ainda
está por vir...
Muito antes de saber que isso era um hábito ligeiro entre
artistas, e cada vez mais um processo reversível, pensava
que tatuagens eram a última instância das provas de amor.
Afinal, o que poderia ser mais categórico do que espontaneamente passar por um processo dolorido para marcar o próprio corpo com um desenho ou palavra que gritasse “eu aaamo!”? Naturalmente, queria num lugar bem
chamativo. Em abril de 2003, mês seguinte a nosso casamento, minha irmã me levou ao estúdio. Substituí o lugar
explícito por um outro bem escondidinho, mas o que perdi em visibilidade ganhei em simbolismo – e não doeu
nada. Não fosse pelo barulho do motorzinho, bem que
poderia ter dormido naquela maca.
Por alguns dias, torturei a Patricia com uma gincana maluca, instigando-a a adivinhar o que eu estava prestes a
fazer e oferecendo, em troca, a realização de um desejo
qualquer. Tinha a certeza do que ela pediria e só comecei
a brincadeira porque sabia que ela não iria adivinhar nunquinha da silva – eu, hein?
Estava me achando o supra-sumo do romantismo: fiz um
mistério enorme, preparei toda uma cena, coloquei-a sentada na cama de olhos fechados e tal. Postei-me a sua
frente e autorizei: pode abrir. A cara dela não foi bem
como eu tinha fantasiado.
Ok, eu tinha Bepantol® pra todo lado, estava embalada
em filme de PVC como resto de salada, a tatuagem em si
não era de compreensão imediata porque era composta
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de símbolos e não letras… Seja lá como for, o choque foi
muito maior que a surpresa, e ela parecia mais aterrorizada que feliz. Esteve por uns 20 segundos congelada, de
mãos espalmadas, boca aberta e olhos arregalados. Saiu
do transe, leu a legenda que eu tinha providenciado para
a decodificação do desenho, disse que eu era louca, pediu desculpas pela pressa e saiu às carreiras para um show
que faria em Santo André!
E eu que achei que estar embalada no tão admirado filme
de PVC iria potencializar a reação...
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Rasgar seda fortalece os bíceps
Minha carreira como musicista profissional durou pouco
mais de um ano. Na fase amadora, conciliava minha antiga profissão e a música, mas, com o avanço da carreira
artística, administrar os dois ofícios era impossível. Logo,
optei pelo mais divertido.
Nesses dois gloriosos anos, realizei inúmeros sonhos, me
emocionei, criei novos vínculos, aprofundei alguns já existentes, conheci pessoas, passei por vários apuros, cresci
(ainda não superei 1,60 m, mas chego lá!), morri de rir e
me acabei de chorar. Aproveitei intensamente todos os
momentos mágicos que o samba me proporcionou.
A pergunta que não quer calar: Por que parou? Parou por
quê? Por que parou? Parou por quê?
Parei por cinco motivos principais:
Primeiro: vida de artista cansa.
Segundo: não nasci para ser artista.
Terceiro: quando um hobby vira obrigação, deixa de ser
hobby.
Quarto: morria de saudade de meu Bicho.
Quinto: insinuante barriguinha típica de sambista.
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Na época, a Karla trabalhava em horários regulares e típicos de publicitário; em contrapartida, meus compromissos podem ser resumidos da seguinte forma: reunião às
segundas, ensaio às quartas e shows de quinta a domingo. Nos dias úteis, os compromissos eram noturnos; nos
finais de semana, vespertinos e, muitas vezes, fora de São
Paulo. Conclusão: restavam-nos as noites de terça.
Durante a semana, quando possível, acordava só para fazer companhia para meu Bicho durante o desjejum e o
banho. Mas, assim que ela saía, voltava para o berço voando. Regularmente, passava na agência para almoçarmos
juntas e, no final de semana, ajeitávamos as tarefas para
maximizar o tempo a duas.
Quanto mais a banda evoluía, menos tempo eu tinha com
a Karla. Meus sentimentos estavam muito confusos: se
por um lado o sucesso era meu objetivo, por outro eu me
ressentia quando a empresária comunicava mais um show
agendado. Algo não parecia coerente. Ponderei e concluí
que deveria voltar à posição de musicista amadora apaixonada.
Já nessa posição, iniciei uma dietinha básica para sumir
com aquele pneuzinho adquirido durante minha estada
no mundo do samba. A aquisição foi inevitável, indesejável, mas completamente explicável: a maioria das casas
onde nos apresentávamos oferecia à banda cerveja e pastel como cortesias. Quando não jantava os de carne, jantava os de queijo, e para a sobremesa reservava os de
palmito. Trabalhava sentada e, para suportar o calor do
momento sob a luz dos refletores, só mesmo tomando
uma cervejinha gelada. Fora do palco, que fique claro,
porque em cima dele a empresária não deixava. Pode ser
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que ela venha a ler essa obra e eu não gostaria de sofrer
retaliações retroativas.
Durante o primeiro ano, conseguia contrair os músculos
abdominais para disfarçar a calosidade, e a presença do
cavaquinho junto a meu corpo facilitava um pouco minha vida.
No segundo ano, tinha que manter ereta a postura e literalmente encolher a barriga até o fôlego se esvair. Com
falta de ar, meu desempenho começou a despencar. Troquei o figurino e, para ocultar os excessos, passei a usar
blusas mais soltinhas. Se continuasse nesse ritmo, em três
anos não sei se meu banquinho iria resistir.
Por falar em banquinho, eis uma das muitas histórias que
vivi:
Havia alguns meses que nos apresentávamos aos domingos numa casa GLS: público cativo, fiel e adorável, ao
qual devemos muito e seremos eternamente gratas (digo
isso em nome de todas as integrantes da banda). Depois
de conceder o devido crédito e prestar a singela, porém
justa, homenagem, prossigo.
Ficávamos muito à vontade no ambiente, felizes e cintilantes por estarmos ali, todas reunidas, fazendo algo que muito
nos orgulhava. O show era composto por quatro sets de
50 minutos cada, com 15 minutos de intervalo entre eles.
Por mais absurdo e cansativo que possa parecer, o ambiente tinha tanta energia que saíamos de lá renovadas e prontas para encarar mais uma semana.
Ainda no primeiro set do show, a casa se encontrava razoavelmente transitável, e aquela seria a única oportunidade
116
da noite para extravasar minha euforia. Sim, porque dali a
30min o lugar estaria tão cheio que mal conseguiria me
mexer, com o agravante de o palco ser muito pequeno
para abrigar todas as integrantes, o que deixava a mim e a
violonista fora dele, e no corpo a corpo com a platéia.
Nem sei o que me deu naquele dia. Executávamos o
“Bagaço da Laranja” – música de Arlindo Cruz e Zeca
Pagodinho, sucesso na voz de Jovelina Pérola Negra –,
quando, do nada, resolvi fazer graça e esbanjar meu samba
no pé. Levantei do banquinho, rebolei, chacoalhei, gastei
literalmente o salto do sapato – bom, ao menos isso é o
que eu acho que fiz.
Muito solícita, a pandeirista da banda afastou meu banquinho, abrindo espaço para o sapateado hipnótico. Encerrado o show à parte, sentei no banquinho que não
estava no lugar onde deveria. Com os resultados óbvios,
nádegas roxas e doloridas, mantive o andamento sob gargalhadas daquelas que presenciaram a cena. Quem viu
viu. Para quem não viu não tem replay.
Para ser artista tem que ser artista.
Foram dois anos absolutamente sen-sa-cio-nais! Com a
banda, conheci grandes ídolos, entre eles D. Ivone Lara,
Beth Carvalho, Monarco, Leci Brandão, Teresa Cristina,
D. Inah, Vó Maria e Tia Surica.
Na memória e para a posteridade, guardo todos os bons
e inusitados momentos que vivi.
A minha família do samba:
OBRIGADA POR TANTA VIDA, TANTO APRENDIZADO, TANTA
RECOMPENSA!!!
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Para meu Bicho, reservo a última seda a ser rasgada antes
do encerramento do capítulo: obrigada por estar a meu
lado, trabalhando nos bastidores para me fortalecer, enxugando lágrimas, compartilhando sorrisos, me amparando nos momentos frágeis, transpondo comigo barreiras,
sempre vibrando e me enchendo de orgulho e admiração. Sem você nada disso teria sido possível.
Rasguei!
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Jogar confete entope o ralo
Ao contrário da Patricia, eu não tenho uma segunda família para quem rasgar seda – a primeira e única era composta de papai, mamãe, irmãzinha e eu até o dia 8 de
abril, quando passamos a ser apenas mamãe, irmãzinha e
eu. O papai de minha feliz, unida e pequena família morreu durante a elaboração deste livro. Suspeito que nosso
luto será longo, proporcional ao tamanho dele, tanto em
medidas físicas quanto em bom humor e generosidade.
Quem teve a sorte de conhecer meu pai certamente vai
concordar que a vida é muito menos alegre agora que ele
foi fazer festa em outro lugar.
Mas, pondo de parte famílias primárias e secundárias, vou
ignorar meus bíceps atrofiados de nascença e partir para
uma rasgação de seda a uns poucos merecedores:
Os convidados cantaram os parabéns, o aniversariante
apagou as velinhas e, para garantir o seu, pediu ao adulto que cortava o bolo: “Eu quero um pedaço com… com...”
Agoniada com a amnésia temporária do menino e louca
por uma fatia de Floresta Negra, ajudei: “…cereja, você
quer o seu com cereja!” Eu não o conhecia – tinha sido
levada a sua festa mais ou menos como penetra – e concordo que essa abordagem foi meio abrupta, mas e daí?
119
Naquele 14 de agosto de 1977, graças ao lapso de memória dele e a minha intervenção, conheci meu melhor
amigo. Quase 30 anos depois, nos orgulhamos de ter 89%
de nossas vidas preenchidas por essa amizade. Atualizamos os cálculos todos os anos e nem 101% seriam suficientes para registrar tudo o que eu sinto por ele.
Empolgada por esse aquecimento, também rasgo uns
metros para outro amigo, tão querido quanto ranzinza.
Seu humor cáustico ajudou a lapidar o meu e, em mais
de uma década, não sacrificou por mim nem uma única
piada – sinal inequívoco de que nossa amizade não se
perde.
A essa altura do campeonato, meus bracinhos mirrados
já estão doloridos. Mas tomo fôlego e rasgo mais uns
tantos fardos, desta vez para os amigos que fizeram valer
minha vida em Lisboa: tenho um carinho oceânico por
duas raparigas e um gajo d’além-mar.
Agora estou cercada de tirinhas de seda brilhante. Os fiapos suspensos no ar irritam meu nariz. A imagem surreal
me faz lembrar da médica de loucos, a espeleóloga que
há mais de dois anos conduz minhas visitas monitoradas
ao interior de mim mesma. Quem a indicou foi um amigo
por quem eu enxugo o suor, bebo água e retomo, animadíssima, a rasgação: uma pessoa adorável, um profissional incrível, um sujeito que já era tudo de bom muito
antes de a expressão ser inventada.
Pela falta de prática, estou exausta, com os pobres bíceps
em frangalhos. Meus braços não poderiam nem com um
último retalho, mesmo que ainda existisse alguma seda
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intacta no mundo. Mas, ora, ora, e para que servem os
dentes?! Por certas duas amigas muito, muito especiais,
eu desfiaria o tecido até na unha! Com a boca ou com as
mãos, não importa: para reforçar minha admiração e sublinhar meu afeto, qualquer coisa; para lhes agradecer e
retribuir a amizade, tudo.
Amigos antigos devidamente reconhecidos, falta quem
mais importa: para o amor de minha vida, todos os sacos
de confete que eu puder encontrar. Atiro ao alto milhares
de pastilhas de papel colorido, cada uma simbolizando
um sorriso, um momento feliz, um não tão feliz assim,
mas que virou aprendizado. As moedinhas flutuantes representam piscadelas cúmplices, beijos, conversas longas,
declarações, planos. O mais imediato, a propósito, é desentupir todos os ralos da casa.
121
Apostas canceladas, concurso adiado
Novembro de 2005 foi marcado por uma guinada de
180 graus em nossas vidas. Meu Bicho abandonou sua
carreira de publicitária e não sabia o que faria da vida.
Eu desisti de minha jornada como musicista profissional
e tampouco sabia o que o destino me aprontaria.
Perdidas, felizes, desnorteadas e radiantes, seguimos para
nossa terceira lua-de-mel. Planejamos tudo, dividimos a
viagem em três fases:
Primeira: uma semana em Itacaré para comemorar o encerramento das respectivas carreiras profissionais abandonadas.
Segunda: três dias em Salvador para separar as fases.
Terceira: uma semana na Chapada Diamantina para comemorar em grande estilo nossa nova vida de desempregadas convictas.
O planejamento e a organização da viagem foram meticulosos: em se tratando de Karla com K, não deixamos
escapar nada; em se tratando de Pya com P, nada correu
conforme o previsto. Passamos 15 dias em Itacaré, 1 dia
em Salvador e 2 dias em Imbassaí.
Itacaré é paradisíaco! Que lugar é esse?! Não resistimos
ao encanto, por isso os planos rolaram cachoeira abaixo.
122
Na alta temporada, porém, esse paraíso deve ser uma
desventura calamitosa. Há quem goste de agito, o que
definitivamente não é o nosso caso.
Tínhamos a Natureza e os moradores locais como companhia e nada poderia ter sido mais perfeito, não fosse a
característica comportamental dos homens itacareenses.
Confesso que a beleza dos rapazes era impressionante.
Traziam em seus peitos uma negritude maravilhosa; em
seus sorrisos, o reflexo da bênção que Deus concedeu àquele
lugar; e em seus corpos, a força esculpida pelo suor.
Em contrapartida, a ausência de noção era típica de quem
é explorado e/ou explora o turismo sexual. Não condeno
nenhum tipo de comportamento, desde que as respostas
às seguintes perguntas sejam todas afirmativas: está fazendo por opção consciente e não prejudica ninguém que
não saiba defender-se? É vacinado? Já completou a maioridade? Está fazendo por livre e espontânea vontade e
prazer? Sabe como prevenir DSTs? Estando tudo certo pra
quem pratica, pra mim também.
Eis que surgem duas “gringas” ajeitadinhas, desacompanhadas, perambulando pela cidade deserta… foi aberta a
temporada de caça!
Não sei se por inocência ou por condicionamento, os rapazes todos de Itacaré ofereceram seus préstimos como
guias especiais e professores de forró. Alguns gentilmente ofereceram sua moradia como opção de hospedagem.
Quanta solicitude! Pela quantidade de ofertas, e pelas
caras de indignação que observamos quando recusávamos os serviços, notamos que a ausência de noção talvez
fosse nossa. “Como assim, vêm para Itacaré sozinhas e
123
não querem provar o sabor do homem baiano?” Pois é, a
gente não é muito “comum”.
Agíamos como nosso código de conduta estabelece: andávamos de mãos dadas, pequenos gestos de afeto não
eram reprimidos e nossos apelidos carinhosos estavam
incorporados.
Esse panorama, aliado às sucessivas e incansáveis recusas, não foi suficiente para afugentar os caçadores. Desenvolvemos, então, outra técnica, que se mostrou mais
eficiente: ao andar pela cidade, mantínhamos o olhar perdido no horizonte. Caso uma aproximação masculina fosse
notada, olhávamos para o céu: “Acho que amanhã vai
chover!” Não aguardávamos a resposta e seguíamos:
“Que lua linda!” Prosseguíamos: “Pena que tem poucas
estrelas e muitas nuvens!” E só abandonávamos as observações sobre o firmamento quando o perigo iminente
já estivesse afastado.
Caso nosso olhar cruzasse eventualmente com o dos rapazes que pulavam em busca de atenção, não desviávamos: mantínhamos a troca fixa, com o queixo baixo, sobrancelha arqueada, e conseqüente testa coberta de rugas, revirávamos os olhos até que as íris sumissem sob as
pálpebras. Nesse caso único, aliávamos também o bufo.
Em último caso, se a aproximação fosse trás-çoeira (por
trás), desconsiderávamos as regras do código de conduta
e, mesmo havendo crianças e velhinhos por perto, beijávamo-nos na boca.
Numa quarta-feira, na hora do almoço, entre uma praia e
outra, encostamos na padaria. Permaneci no carro, enquanto meu Bicho foi comprar sorvete. De volta, estávamos decidindo qual seria o próximo destino quando um
124
itacareense se aproximou sorrateiramente do vidro e desferiu:
“Nossa, que sorvete mais gostoso! Você precisa de um
guia? Posso te mostrar o que Itacaré tem de melhor.”
Corajoooso!…
“Se eu precisasse de um guia, não iria ser alguém como
você.”
“Ah!, mas por que não?”
Burriiinho!…
“Porque eu nunca escolheria alguém que oferecesse seus
serviços comentando meu sorvete!”
“Eu não falei nada de mais. O sorvete é gostoso mesmo.”
Liiiso!…
“Então compra um e vai chupar também.”
Tomou?
Uma semana de esforços depois, conseguimos deixar claras nossas intenções, e concluímos que fomos tão abordadas porque não havia muita opção de escolha. A aposta “Quem vai conseguir pegar uma das duas?” ficou sem
vencedor. O dinheiro foi devolvido aos participantes e o
concurso foi cancelado.
Esclarecidas as devidas posições, permanecemos mais uma
semana na cidade, e então conhecemos o melhor lado
dos itacareenses. Nós nos apaixonamos!
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A revelação universitária
Por influência do namorado da época, abandonei o Magistério (no qual tinha me matriculado para fugir da Matemática) e me mudei para uma escola técnica pra cursar o
colegial em Propaganda. Na ocasião, nem sabia o que era
uma agência, só me certifiquei de continuar não tendo
nenhuma matéria de Exatas. Fiz alguns estágios, concluído
o curso arranjei um emprego e a vida seguiu sem que eu
nem me realizasse na profissão, nem me interessasse por
qualquer outra. Deixei-me estar como Atendimento, insatisfeita e reclamando, por 16 longos anos...
Nesse intervalo, comecei três faculdades e não terminei
nenhuma, cada vez por um motivo, e estava convencida
de que voltar a estudar não era para mim.
Mas, num dia de janeiro de 2006, a Patricia encasquetou:
“Você não está trabalhando, está há anos tentando mudar
de profissão, por que não aproveita e presta vestibular?
Você vai ter tempo de se dedicar ao curso e já pode ir
conseguindo um estágio em outro mercado, quem sabe?
Já sei, você presta pra Jornalismo. Seu pai vai ficar tão
feliz! Ele sempre não quis que você fosse jornalista? Então!
Você adora escrever, aliás você escreve muito bem, todo
mundo te fala isso, não fala? Olha, em vez de procurar
emprego em agência de novo, e começar a reclamar em
dois palitos, vai estudar! Passa pra cá esse classificado de
126
jornal, que você não vai mandar currículo pra lugar
nenhum, vamos é ver quais faculdades ainda aceitam
inscrições para o vestibular. Abre a Internet, vai!”
Ai, meu Deus! Onde é que desliga essa mulher?
Em parte porque ela tinha certa razão e em parte só pelo
retorno do silêncio ao lar, concordei – mas impus uma
condição: “Você vai estudar também. Pode ir escolhendo
um curso qualquer aí!”
Começamos as respectivas faculdades 15 dias depois, no
mesmo campus e no mesmo horário: eu em Jornalismo,
ela em Serviço Social. Combinamos agir normalmente,
ou seja, nada de escandalosamente agressivo, mas nada
de disfarces ou mentiras. Apesar do ambiente heterogêneo e da convivência inescapável dos quatro anos seguintes, manteríamos os mesmos apelidos amorosos e o mesmo comportamento carinhoso que temos em todos os
outros ambientes. Isso, ao menos, foi no que ela me fez
acreditar: na realidade, a Patricia fugiu do curso na segunda aula! Pensei que, com a ausência dela, ficaria até
mais fácil manter a discrição – e, de fato, os primeiros
dias transcorreram sem nenhum incidente.
Mas, numa certa aula de Redação, a professora pediu aos
alunos que levassem anúncios de conteúdo implícito e,
para exemplificar o que era isso, apresentou uma peça da
Havaianas cujo título era: Todas as vantagens de medir
1,80 m sem calçar 39. Aquilo não fazia o menor sentido
para mim – nem explícito, nem implícito. Questionei.
E a mestra, didaticamente: “Quem usa Havaianas desfruta todos os benefícios de ter 1,80 m de altura sem precisar ser sapatão.” Espontaneamente, soltei: “Ué?! Sapatão
eu também sou, nem por isso meço 1,80 m nem calço 39!
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De verdade, eu não estou entendendo. Bom, vai ver é
porque sou parte do assunto, e estar tão próxima dificulta a compreensão, né?” Ninguém riu nem olhou em minha direção. Não houve um silêncio constrangedor. Não
houve rejeição nem rodinhas fofoqueiras durante o intervalo. Teria sido civilidade de meus colegas? Indiferença?
Ou mera surdez?
No exercício seguinte, nós deveríamos indicar as características geográficas, etárias e de gênero do texto que ela
leria. Começava com “Cara, tô azarando uma mina (...)”
e terminava não importa como. Um aplicado aluno prontamente anunciou: “Bom, as gírias são dos anos 80, o
texto só pode ter sido dito por um homem...” Indignada
com a memória curta de meu digníssimo colega, indaguei com veemência: “Como assim, só por um homem?!”
Aí, sim, a classe riu.
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Karla Lima, 32 anos, drogada e prostituída
Quando conheci a Karla, ela não consumia álcool nem
por educação, não dançava nem com reza brava e tampouco gostava de fazer sexo. Muitas coisas mudaram nestes mais de três anos de convivência.
A começar pelo sexo. Em outras experiências que vivi, costumava fazer sexo, amar e fazer amor. Meu relacionamento com o Bicho foi diferente: nesse caso amei, fiz amor e
fiz sexo. Hoje fazemos amor com sexo amado, amamos
fazer sexo com amor, e às vezes só sexo por sexo.
No quesito álcool, as coisas caminharam um pouco mais
lentamente:
“Experimenta essa caipirinha, tá superfraquinha!”
“Urgh!”
“Dá uma bicadinha neste mojito!”
“Blargh!”
“Esta marguerita tá uma delícia, que provar?”
“Não.”
“Saquê nem parece álcool!”
“Só se for pra você.”
Percebi que, por livre e espontânea vontade ela não iria
sair disso. Então comecei a roubar no jogo: fiz uma batida
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de coco e disse que era suco e não tinha vodca. Fui
desmascarada e perdi 3 pontos.
Não sei explicar exatamente por que agia assim, ou melhor, eu sei. Para comemorar meu 34º aniversário pedi à
Karla que me desse de presente seu corpinho ligeiramente desorientado por uma bebida alcoólica qualquer.
Ela concordou, mas advertiu: “Quando te perguntarem
o que te dei de aniversário, corre o risco de você dizer:
‘Deu um trabalhão, vomitou, teve dor de cabeça, virou
de lado, roncou e babou a noite inteira.’” Achei melhor
não arriscar e troquei o pedido sacaninha por um CD da
Mart’nália.
Eis que, não mais do que de repente, ela fez uma promessa de Ano Novo: “A partir do réveillon, vou começar
a beber.” Faltavam oito meses para o fim do ano corrente, mas antes tarde do que nunca. Como a Karla faz tudo
o que diz, ela começou a beber. Devagarzinho, e só vinho
tinto suave – quando é um pouco mais seco, ela invariavelmente comenta: “Não entendo como pode você pôr
na boca uma coisa líquida e ela ficar mais seca do que
estava antes!”
Hoje em dia, só depois de meia garrafa é que ela começa
a sentir os efeitos do álcool no organismo, se levanta e
anda sem tirar os pés do chão. Isso mesmo, arrasta os pés
como se tivesse calçando um par de esquis.
Costumo controlar a velocidade, o porcentual alcoólico
da marca do vinho e a quantidade de beliscos ingeridos
durante o processo, para garantir sua presença em nossa
festinha. Ora funciona, ora não. Quando ela falta, preciso
confessar: festejo sozinha mesmo.
130
A Karla tinha fumado maconha uma única vez e, de acordo com o relato, a experiência foi péssima: sua pressão
caiu, os lábios e as pontas dos dedos ficaram roxos, suas
pernas se descontrolaram e ela vomitou a noite toda.
Se tem algo que eu me orgulho em dizer é: “A Karla fez
inúmeras coisas inéditas comigo.” Suponho que a adrenalina dessas novas aventuras a tenha motivado a reviver
experiências traumáticas e, quem sabe, superá-las. Não
foi bem o caso da próxima história.
Ganhamos um baseadinho de presente e incentivei que
ela fumasse, já com o pensamento na festinha. Após dois
tragos, ela se sentiu tonta e quis deitar-se. Tentei acalmála, sugeri um banho gelado e fui buscar uma Coca. Quando
voltei, ela tinha vomitado ao lado da cama e já se sentia
bem melhor. Acompanhei seu banho, ela colocou um pijama e falava sem parar… falava, falava, falava. Senti que
as coisas estavam sob controle e fui tratar de limpar a
bagunça do quarto. Peguei balde, pano de chão, outro
balde, água, desinfetante, e ela atrás de mim sem parar
de falar, falar, falar. Estava na pior parte do processo da
limpeza e ela escorando a porta do aposento: “Tô com
fome.” O Bicho foi para a cozinha e voltou com um pacote de Doritos Nachos – falava, falava, falava. Pensou que
a porta do quarto pudesse cair e resolveu escorá-la novamente. Um Doritos, 15 frases; outro Doritos, 21 frases.
“É bom isso aqui, né?” Mais um Doritos, e eu agachada
limpando seu mal-estar. Como é que pode uma pessoa
assim?!
Esse episódio encerrou definitivamente a carreira de experimentações ilícitas de meu Bicho e, segundo ela, tudo
131
o que eu acabei de contar é a mais deslavada das mentiras que ela já ouviu.
No quesito dança, as coisas andam paradas. Não há o
que faça meu Bicho se soltar. Sentada, ela arrisca um chacoalhar de ombros, pequenos socos descoordenados no
ar e movimentos afirmativos de cabeça. A conjunção das
três oscilações é hilária e perigosa, pois seus cotovelos
são pontudos e seus punhos, certeiros. Suspeito até que
minhas gargalhadas venham inibindo sua evolução, mas
não consigo evitar.
De pé ela ainda não tentou, mas acho melhor assim. Com
a força destrambelhada que tem, uma joelhada poderia
ser fatal.
Quero registrar minha discordância com o “prostituída”
do título deste capítulo, totalmente redigido pela Patricia.
Não me lembro de jamais ter sido paga por fazer sexo
com ela. Ou será que ela abriu uma poupança secreta pra
remunerar nossos amorzinhos, e um dia vou descobrir
que nossa vida sexual, além de extremamente prazerosa,
ainda me rendeu uma aposentadoria confortável?
132
Nem tudo são flores
A equação perfeita para sincronizar e maximizar a produtividade de nossos encontros sexuais só aconteceu depois
que limitamos o período de atuação. Nunca antes de duas
horas depois de meu despertar e nunca depois de a gravidade vencer a resistência das pálpebras de meu Bicho.
Logo, nossas tardes é que são quentes.
Com as tardes ocupadas, revezávamos o uso do computador nos horários livres. Antes do início desta nova empreitada, conseguia esperar minha vez quase serena, depois... não conseguia conter minha compulsão ávida por
digitar a tal história que me ocorrera ou buscar uma informação na Internet para concluir um raciocínio. Naquele momento eu tinha que, eu necessitava, eu carecia invadir o turno da Karla.
Para pôr fim a minhas aflições e acelerar o processo evolutivo da obra, adquirimos mais um micro, ligamos em
rede e, desde então, passamos horas a fio sentadas em
frente a nossas respectivas máquinas, ela de costas para
mim, olhando para a parede, e eu de costas para ela,
olhando a paisagem. Entre nós uma impressora, e conosco a Fátima.
133
Ao redecorar o ambiente, posicionamos estrategicamente os micros sobre a mesa, de tal forma que os monitores
e o vidro da janela funcionassem como espelhos, evitando assim torcicolos crônicos, e facilitando a recuperação
em caso de perda súbita e momentânea de inspiração.
Quando isso acontece, olho para o vidro da janela, ou a
tela do monitor, em busca da imagem refletida de meu
Bicho.
Nestes anos de convívio, a Karla colaborou muito com
meu autoconhecimento. Ela desvendou facetas de minha
personalidade que eu desconhecia. Logo de cara, diagnosticou: dislexia, descoordenação e prolixidade. Tentei
derrubar suas teorias, mas aos poucos tive que me render
a suas constatações certeiras.
Ok, sou prolixa! Quem não notou ainda notará em breve.
O caminho mais curto nem sempre é o mais perfumado!
A descoordenação motora só percebi quando comparei
os tec-tec-tecs vindos do teclado de meu Bicho com os
tec…tec…tecs vindos do meu. Ai, me dá nos “neuvos”!
A mulher parece uma metralhadora desenfreada.
Com relação à dislexia, o processo foi mais lento e doloroso. Quis esquivar-me dos primeiros indícios alegando
fatores os mais diversos. No fim, assumi.
Tudo começou com orientações de trajeto:
“Bicho, vira à direita na próxima. Não… é pro outro lado!”
“Caramba! Se é do outro lado, não é à direita.”
“Então tá, faz a volta no quarteirão. Vira à esquerda no
farol. Não, Bicho, esquerda, esquerda, esquerda!”
134
“Eu virei à esquerda!”
“É, né?”
Convencionamos, então: vira pro seu lado ou vira pro meu.
Seguiu assim:
“Putz, Bicho! Derrubei iorgurte no endrendom de nossa
propiedade!”
“Vidinha, derrubou iogurte no edredom de nossa propriedade?”
“É, mas foi sem querer.”
“Não é isso: derrubei i-o-gur-te no e-dre-don de nossa
pro-pri-e-da-de!”
“E o que foi que eu disse?”
“Derrubei iorgurte no endrendom de nossa propiedade!”
“Ah!, Bicho, isso é coisa de família! Cresci ouvindo isso;
lá em casa todo mundo fala assim.”
“Êita, bando de inguinorante!...”
Segui evitando palavras traiçoeiras, mas meu vocabulário
estava ficando um tanto quanto limitado...
Continuamos:
“Bicho, Bicho, encontrei a ADB na Internet. Você sabia
que existe uma Associação Brasileira de Dislexia?”
“AD o quê?”
“ADB – Associação Brasileira de Dislexia.”
“Não seria ABD mais apropriado?”
“Acho que é mais apropiado mesmo, Bicho.”
Por fim:
Ao digitar um parágrafo, não posso desviar os olhos dos
quadradinhos que identificam as letras no teclado. Sendo
assim, digito e depois confiro na tela como ficou. Ficou
tudo pintadinho de vermelho!
135
Se, ao digitar, a Patricia pode contar com o sublinhado
rubro do corretor ortográfico, quando ela fala não há grifo verbal que me ajude. Claro que o contexto ajuda, mas
eu não sou muito esperta, e às vezes tenho dificuldades,
mesmo deduzindo o enredo...
“Vida, o que é essa cicatriz?”
“Numa Copa, eu quebrei um copo e pisei no caco.”
“É mesmo? Faz tempo?”
“Não sei direito... Quando que tem copo?”
“O ano todo, meu amor!”
“Então, fui pegar uma Coca, caí e pisei na Copa.”
“Você pisou na Copa?!”
“É, e entrou um copo aqui.”
“Inteiro?!”
“Quando eu caí no copo, entrou um caco de Coca aqui.
Assim que vi, tirei a Copa do pé sozinha.”
“Uau, pudera que tenha ficado uma cicatriz tão grande!”
Se não sei o contexto, é ainda mais difícil – e ela não
perde a oportunidade de mangar de mim, provavelmente
por vingança a todas as vezes em que eu a corrigi.
“Bichão, pega o coiso pra mim? Tá em cima da coisa.”
“Vida, preciso de pelo menos uma pista... O coiso a ser
pego é objeto, alimento…?”
“Bom, eu uso pra falar com as pessoas, mas se você quiser engolir é só se preparar pra saída... Vai que a anteninha enrosca, né?”
Uma vez, eu já estava deitada e ela ainda na sala, enrolando. Falei que viesse logo pra cama, queria dormir de
conchinha.
136
“E quem vai ser a concha, e quem vai ser o molusgo?”
“Vida, molusgo!”
“Ah!, já sei... Falei uma anamolia, né? Molúsgulo, Bichão,
molúsgulo.”
Tive que me levantar e vir registrar isso.
137
Santo André
Chamamos de primeira lua-de-mel a viagem para
Noronha, em 2003, e de terceira lua-de-mel as férias em
Itacaré, em 2005. Ora – estará pensando o leitor atento –,
o que houve com a segunda?
Houve muito sol, houve episódios incríveis e fotos belíssimas! Em 2004, nossa viagem romântica também foi para
a Bahia: Santo André.
No Estado de São Paulo, Santo André é um município industrial de poucos atrativos turísticos. Assim, quando o
Charles (o namorado do Antônio Carlos, lembra-se?) sugeriu esse destino para nossa segunda lua-de-mel, levamos na brincadeira. Santo André? Fazer o que em Santo
André, cara-pálida? Conhecer umas metalúrgicas, fazer city
tour pelas montadoras? Santa ignorância, mania de paulistano achar que sua cidade é o centro do País!... Mal sabíamos que nosso aprendizado não tinha nem começado!
Primeiro, conhecemos Santa Cruz Cabrália, o ponto exato
onde o Brasil foi descoberto. Depois comprovamos o
espírito empreendedor dos baianos da região, que
mantêm letreiros, cardápios e muitas outras informações
escritas em hebraico para atender ao turismo intenso de
israelenses. Aprendemos de uma vez por todas que lugares
138
agitados como Arraial d’Ajuda não são para nós. Quanto
a Santo André, é uma vila de pescadores com 200
habitantes, 25 km ao norte de Porto Seguro, com um
hotel que é tuuudo de mais bacana.
Nos primeiros dias, aproveitamos que o hotel abrigava
um spa e nos divertimos com os serviços disponíveis: fizemos ofurô com essências afrodisíacas, recebemos hidratação com leite de coco e a melhor massagem ayurvédica
de nossas vidas. Embora os hóspedes do hotel pudessem
usufruir os serviços do spa, obviamente quem estava em
tratamento lá não podia comer no restaurante do hotel.
E foi assim que tomamos lições inesquecíveis sobre comportamento humano. Todos os dias, pacientes gordinhas
tentavam subornar-nos pelo tráfico de um croissant, uma
fatia de bolo, um copinho de batida. Eu negava peremptoriamente, mas a Patricia, entre a sacanagem e o coração mole, antes de recusar a proposta descrevia várias
outras possibilidades.
“Bolo de cenoura mesmo, tem certeza? Olha que a
mousse de cacau é muito melhor... Lagosta? Já que é pra
pecar, vai logo pra lingüiça defumada!”
E negociava o preço com requintes de crueldade: “Uma
cerveja vai te custar mais que a torta de limão. Sei que
você vai revender lá dentro...”
No quinto dia, chegamos ao meio da tarde sem nenhuma
abordagem. Pensamos que tivessem desistido, e nos
cumprimentamos por não ter corrompido a dieta de
ninguém. Foi quando uma menina de uns sete anos se
aproximou com uma história de partir o coração: seus
pais tinham saído de escuna pela manhã, à espera deles
139
ela tinha perdido o horário do almoço e, se não lhe
déssemos um pouco de nosso lanche, ela ficaria sem comer
até que eles voltassem. Ela estava quase chorando – e a
Patricia, empática como ela só, também já tinha os olhos
úmidos. Ponderamos: um hotel daqueles mandaria os pais
para uma atividade externa tão longa e deixaria uma
criança daquela idade sem um recreador? Óbvio que não.
Prova disso é que seu pai, um senhor de 174 quilos, nos
espiava pela fresta do refeitório... Lição daquele dia: com
fome, a ética paterna vai para o espaço!
Na manhã seguinte alugamos um carro para explorar as
redondezas, e os aprendizados continuaram. Na entrada
de Belmonte, a placa ensinava que aquela era uma
“Felizcidade”. O guia explicou, peito inflado de orgulho
pátrio, que na praça central nós veríamos a maior estátua
de crustáceo do mundo! Poucos metros adiante, um
imenso guaiamum de concreto parecia dar-lhe razão.
Em Santo Antônio nossa lição ficou incompleta, pois numa
fachada lia-se: “Protético. Dentadura. Ponte. Roach.” – e
nunca descobrimos o que significa roach.
Em Mogiquiçaba vimos a importância que uma casa de
carnes pode ter na vida de alguém. Lá a fachada do açougue informava: “Carne moída, carne de 1ª, de 2ª e carne
com osso”. Nome do estabelecimento? A Força da Mulher.
Num ponto de ônibus, uma placa pintada a mão anunciava os produtos de outro comerciante: “Vende-se marisco, lãmbreta, hostra e guaiamum e caramguejo. Falar
com Sidnaj.” Tentamos, mas ele não estava por perto.
O fato de as portas estarem fechadas sob o aviso “Aberto
dia e noite” em nada diminuiu o ensinamento do Sr.
Andrade: “Funerária Andrade. Venda de passagens para
sua última morada.” Imbatível!
140
Na fila da balsa de volta ao hotel, um apito insistente nos
chamou a atenção. Quando viramos pra trás, sentimonos obrigadas a registrar em foto o carrinho do apitador:
“Milho Verde do Cabral, até banguelo come.” Assim
mesmo: banguelo.
Enquanto estivemos em Santo André, a Patricia quis adotar três ou quatro guris – o William, da balsa, ela quase
importou de verdade, incentivada pelo fato de o menino
não ter família e ter sido tão afetuoso com ela. Mas voltou
à razão quando aleguei que calçá-lo, metê-lo no ambiente
fechado de uma escola, fazê-lo viver num apartamento
em São Paulo e tirar-lhe o sono na rede, as brincadeiras
de água e rua com outros meninos seriam mais maldade
que caridade.
Convencida de que não seria viável trazer para São Paulo
nem os cães nem os garotos, a Patricia decidiu que viveríamos em Santo André. Durante horas planejamos nossa
nova vida: aos funcionários do turismo daríamos cursos
técnicos e aulas de inglês; seus filhos nós iríamos alfabetizar; para jovens mães ela ensinaria costura industrial; aos
pais, carpintaria; aos jovens, computação. E, com todos,
promoveria animadas rodas de samba. Montaríamos fundações, ONGs, institutos, negócios, estratégias.
Só com muito esforço conseguimos voltar a São Paulo.
141
A acústica do lar
Absolutamente absortas com a execução desta obra, trancafiamo-nos durante o final de semana. Empolgadíssimas,
transcrevíamos nossas passagens, mas um compromisso
agendado dois meses antes estava a nossa espera.
A Karla não gosta de ser interrompida enquanto escreve.
Fez questão de fechar o capítulo antes de se aprontar, e
acabou sentindo-se atrasada. Sempre pontual, foi-se arrumar no maior estresse. Eu, desencanada com o horário
(dez minutos a mais, cinco horas a menos, tanto faz),
interrompi o capítulo, me vesti e aguardava na sala, tranqüilamente, terminando o que tinha começado.
Karla, do quarto: “Temos realmente que ir a esta festa?”
Eu, da sala: “Tem um maço de cigarros no meu carro.”
“Que roupa é adequada?”
“Qualquer coisa, você fuma do meu.”
“Não estou conseguindo escolher uma roupa sozinha!”
“Prometo que não vou te deixar sozinha na festa.”
“Vou colocar qualquer uma, depois não reclama!”
“Nós não vamos demorar muito. Pra ser sincera, por que
não cancelamos o programa?”
“Eu vou assim mesmo. Já estou pronta!”
“Eu também te amo, meu amor!”
145
Fomos à festa. Tudo o que mais queríamos era retornar.
No carro, voltando para casa:
“Bicho, por que você colocou essa calça social para uma
festinha de amigos tão informal?”
“Eu te avisei, agora é tarde para reclamar. Quisesse dar
palpite, fizesse antes.”
“Eu nem mesmo queria ir à festa!”
“Então, por que fomos...?”
Concluímos que foi a acústica do lar que nos obrigou.
146
Utilidade pública
Neste caso, dez minutos a mais ou cinco horas a menos
fizeram toda a diferença.
Durante uma temporada, as meninas do samba e eu nos
apresentávamos todas as quartas-feiras num famoso bar
da região central de São Paulo. Passávamos o som às 18h,
eu voltava para casa, tomava um banho, jantava e retornava para a apresentação às 22h.
Naquele dia, tudo começou atrapalhado: o técnico chegou uma hora atrasado, a passagem de som foi complicada e a microfonia deixou dores em todas as cabeças.
Cogitei a possibilidade de não voltar pra casa, mas não
havia roupa para tomar emprestada e meu traje naquele
momento era desaconselhável. Enchi-me de coragem e
enfrentei os 25 quilômetros de trânsito no horário do rush,
pós-tempestade de verão, que me separavam de casa.
Tudo pa-ra-do! Pensei numa alternativa de rota, mas teria
que fazer uma pequena conversão proibida: atravessar
uma ilha. Assim que subi na guia, o Sr. Policial Militar
estava a minha espera:
“Seu guarda, eu sou artista. Pelo amor de Deus, deixa eu
ir! O senhor me desculpa, por favor! Agi por impulso.
Prometo que vou ser boazinha. Estou atrasada para o show.
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A empresária vai me matar! O senhor já ouviu falar da
banda? Eu preciso tomar banho. O show começa daqui a
uma hora e meia. Quebra essa. Se o senhor quiser, tem um
ingresso vip para o senhor e para sua namorada, esposa,
enfim, pra quem o senhor quiser levar… tem também o
CD. Posso pedir para todas as integrantes assinarem.”
“Documento do carro e habilitação, por favor.”
Ele se afastou e foi checar a papelada. Voltou:
“Senhora, sinto informá-la, porém seu veículo será
apreendido.”
“Ok, senhor! Apreenda o carro, mas me deixe ir embora,
por favor! O senhor pode ficar com ele, eu só preciso
pegar o cavaquinho. Conforme lhe expliquei anteriormente, eu não posso perder a hora de jeito nenhum. Me libera, tenha piedade da classe artística, é duro viver de música! Não posso chegar atrasada, o show é muito importante. Justo hoje, o pessoal de uma gravadora poderosa
irá assistir à apresentação. Nosso futuro depende disso, é
uma oportunidade única. Não há outra cavaquinista na
banda. O senhor sabe, né? Sem o cavaquinho, o samba
perde o swing. A empresária é muito severa. Minha vida
está em suas mãos! Pelo amor de Deus, deixa eu tomar
banho, preciso estar cheirosa e arrumada! Eu estou toda
suada e maltrapilha.”
“Senhora.”
“Sim, senhor. Ah! E tem mais... Eu não lhe falei, mas a
ordem do repertório está comigo, sem ela o show não
tem como...”
“Senhora.”
“Pois não, senhor!”
“Só um instante que vou checar com meu comandante.”
O oficial retornou com o bloquinho, inspecionou o veículo e concluiu:
148
“A senhora fez uma conversão proibida, sua seta direita
não está funcionando, sua placa está ilegível, seu extintor
de incêndio está vencido, seus pneus estão carecas e a
película do vidro está fora da especificação permitida por
lei. Seu documento será retido e a senhora tem uma semana
para se dirigir ao Detran com as devidas regularizações.”
“Então tá, então. Muito obrigada! O senhor não sabe,
mas salvou minha vida, nem sei como lhe agradecer. Se
as meninas estivessem aqui, elas também agradeceriam.
A empresária pode ligar para o senhor para confirmar
minha história.”
“Ok, senhora. Boa noite!”
“Boa noite para o senhor também! Fica com Deus, bom
serviço e obrigada mais uma vez. Passa lá quando o senhor terminar.”
Depois disso tudo, cheguei em casa na hora de sair e,
para completar, tinha os bolsos repletos de bilhetinhos
amarelos autografados pelo Sr. Guarda. Tomei banho feito gato, me arrumei, apanhei umas bolachinhas no armário e deixei para finalizar os detalhes no caminho de volta
ao bar, como faz meu Bicho.
A Karla tem como filosofia não desperdiçar minutos. Assim, ela costuma aproveitar o tempo perdido à espera do
sinal verde hidratando as mãos, lixando as unhas, fazendo as cutículas, pondo em dia a leitura e tudo o mais que
for produtivo na maximização dos segundos vividos.
Seguindo seus ensinamentos, um quilômetro adiante eu
já estava maquiada e com os colares no pescoço. No
segundo, o cabelo se encontrava penteado. No terceiro,
hidratei as mãos e passei o desodorante. Cinco metros
149
depois, comecei a sentir um cheiro insuportável. Rapidamente detectei sua origem: minhas axilas! “Como
assim?!” O banho não foi dos mais caprichados da
história, mas sair dele daquele jeito teria sido impossível. Nem se tivesse jantado pizza de aliche com alho
e passado o maior nervoso correndo a maratona do
meio-dia no Deserto do Saara eu poderia ter um décimo daquele cheiro! “Como assim?! Como assim?!
Como assim?!”
Sem alternativa, voltei para casa e tomei uma senhora
ducha. Que cheiro era aquele! Pelamordedeus! Saí do
banho sem saber se o cheiro havia desaparecido. Minha
capacidade de julgamento estava abalada e minhas narinas, impregnadas com aquela catinga. Antes mais atrasada que fedorenta!
De volta, a caminho do bar, eu buscava explicações que
desvendassem o aparecimento daquele mau cheiro súbito que havia me acometido. Avançava sinais vermelhos e
ignorava radares pensando: “Como é que pode?!”
Suspeitei do desodorante e debatia a lógica comigo mesma: “Claro, deve estar vencido! Como assim, vencido?
Desodorante tem data de validade? Ah, deve ter! Vai ver
tomou muito sol! Muito sol? Qual é a marca desse troço?
Afinal, por que é mesmo que eu tenho um desodorante
em meu carro? Eu nem uso desodorante!… O Bicho usa.
A Karla? Não, não pode ser! Ela adora economizar dinheiro e não liga pra marcas. Por mais barato que fosse,
ela não compraria um desodorante roll-on com este perfume. Perfume? Nem a pau, Juvenal!”
150
O sinal fechou. A minha frente dois educados motoristas
aguardavam a luz verde para seguir adiante, impedindo
minha oitava transgressão. Como estava à mercê da situação, fui checar o dito cujo, digo, o maldito desodorante.
Assim que tirei a tampa, o ar ficou denso. Eu sentia as
minúsculas partículas de fedor presas entre os “dois Os”
do oxigênio desembestando nariz adentro. Contive a ânsia de vômito fechando a boca com uma das mãos. Com
o indicador e o polegar da outra mão, impedi a entrada
de novas partículas. O farol abriu, o ar já me faltava,
minhas mãos estavam ocupadas, os vidros estavam fechados e o carro estava em ponto-morto. Fudeu! Fui ovacionada por um coro de buzinas: “bibi, fonfom, pã-pãpã-pã, io-io-ióóóó”. Destemida, mais forte que a Formiga
Atômica, mais rápida que o The Flash e mais poderosa
que a Ísis, soltei as duas mãos, engatei a marcha, abri os
vidros, joguei o inimigo janela afora e vomitei.
Refeita, segui em direção a meu destino. Recapitulei a
vida útil do artigo de higiene, que não era tão velho assim. Lembrei-me da última vez em que meu Bicho tinha
usado o desodorante: sábado antes do almoço. “É, sábado antes do almoço!”
Pois é, sábado tínhamos saído para almoçar, deixamos o
veículo no estacionamento conveniado. Ao retornar, nos
deparamos com o manobrista dentro de meu carro
ouvindo um sambinha e remexendo no console. Quando
ele percebeu minha presença, se recompôs:
“Dona, estava tentando arrumar seu porta-luvas, ele não
fecha! Bom esse CD do Arlindo Cruz, né? A senhora gosta de samba, né? Eu adoro! Até a próxima.”
151
Senti uma certa invasão de privacidade, mas acabei relevando para não perder o bom humor. Não imaginava,
porém, arruiná-lo na quarta à noite. O cidadão trabalhador, funcionário daquele estabelecimento, querendo manter o bom serviço e preservar a imagem da referida empresa, resolveu dar um trato no visual: penteou seu cabelo
com minha escova, hidratou suas mãos calejadas com meu
creme e calibrou suas malcheirosas axilas com meu desodorante, deixando pra trás sinais óbvios e marcantes de
sua presença.
Conclusão: sempre carregue consigo seu desodorante rollon; caso não seja possível, nunca deixe de cheirá-lo antes
de aplicar, ou melhor, lembre-se sempre de que nos frascos
mais improváveis talvez se encontrem as piores inhacas.
Só para constar: contrariando todas as expectativas, recuperei meu humor e o show atrasou só uns minutinhos.
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Istria
Numa manhã chuvosa de um sábado qualquer, ouvia os
click-clicks frenéticos vindos do mouse pilotado por meu
Bicho. Os estalidos eram intercalados com bufos e som
de socos na mesa. Intrigada, perguntei:
“O que foi?”
Atenta, ouvi:
“Que merda! Estou tentando descobrir onde fica Istria!”
Ponderei. Não me contive:
“Ah, Bicho!... na bunda, nas coxas, às vezes na barriga,
depende...”
Sua reação foi inversa a minha expectativa:
“Na Croácia! É sério, vem ver o mapa! Fica perto de Buzet,
Barbariga, Porec e Rabao.”
153
“Cartas, 1956-1961”
Dia 3 de julho de 2003, aguardavam-me em casa a
Patricia, um pacote em forma de livro e um bilhetinho de
amor. Que meigo!
Deu-se então um fato inédito em minha vida: ganhei o
primeiro livro que julguei estar além de minha capacidade de compreensão!
Segundo ela, quando foi à livraria escolher um presente
adequado para a ocasião (quatro meses de casadas), selecionou as opções de acordo com o tamanho da letra,
dando preferência às bem miudinhas. Passou então a analisar o conteúdo e separou em três categorias: pouco compreensível, nada compreensível e sânscrito. Optou por
“Cartas, 1956-1961”, do Jung, achando tratar-se da dupla do Yin. Yang, Jung, Tang, Ving… sua dislexia a confunde, judiaçãozinha!
Investi duas horas tentando reverter a situação e acabei
me dando por vencida. Reclamei, fiz biquinho, disse que
me sentia humilhada. Ela, sensibilizada com minha frustração, me reconfortou: “Quem mandou posar de intelectual?” Pedi que ela trocasse por algo mais à altura de
minha verdadeira capacidade.
154
No dia seguinte ela me trouxe um gibi da Turma da
Mônica...
Chuif! Aqui se faz, aqui se paga!
155
Warheads
Numa parada para um cafezinho, não pude resistir a um
lançamento exposto de forma impecável junto ao caixa:
Balas “Warheads” – embaladas uma a uma, em diversas
cores e sabores. No display, uma chamada: “Experimente
se puder!!!” Eu pude.
A caminho de casa resolvi provar uma delas. Detalhe: o
carro seguia a 70 km por hora, os vidros estavam fechados e a porta travada. Tinha uma das mãos no volante, a
outra abrindo a embalagem da bala e, entre as pernas,
um copo d’água pela metade e sem lacre. Pus a bala na
boca e… travei. Foram os segundos mais longos de minha vida, até que recobrei as funções motoras e consegui
cuspir a bala no banco do passageiro.
Aquela seria minha melhor oportunidade de provar para
a Karla que limão não é salgadinho e carambola verde
não é amarga. Determinada, passei a conduzir o veículo a
120 km por hora.
Planejei tudo, pensei até em fotografar as caretas “inguinóticas” (caretas cheias de ínguas) que a Karla
certamente faria ao chupar a tal bala. Fiz a maior propaganda:
156
“Essa bala é muito louca, você tem que provar. Experimenta, vai? Por favor! Se você me ama, chupa só uminha!”
Depois da chantagem de quinta, meu Bicho pôs a bala na
boca. Eu salivei, meus olhos se encheram de lágrimas,
minhas bochechas rosaram, um calafrio quase me
derrubou, e ela:
“O que é que tem de tão especial na bala?”
“Bicho, ela é megaácida, azeda pra caralho!”
“Não é azeda, é salgadinha! Parece bolhinha de gás de
refrigerante!”
Depois de degustar a bala até o fim, ela notou algo diferente na textura de sua língua, que mais parecia uma lixa.
Em frente ao espelho, constatou suas papilas gustativas
em pandarecos: “Nossa, acho que estou impotente por
uns dias, justo hoje que você está depiladinha!”
Eu, desapontada por não ter conseguido fazê-la sentir o
sabor azedo, e ela, frustrada com o sexo postergado para
o dia seguinte, fomos juntas pôr a língua estropiada de
molho no mel.
157
Brainstorm
No dia 3 de junho de 2003, retornamos ao restaurante
onde ganhei meu primeiro beijo para comemorar o fim
do período de experiência do contrato nupcial. Não mencionamos antes, mas, assim como nos contratos de trabalho, tínhamos que cumprir 90 dias para sermos efetivadas como esposa e mulher.
Celebrando as respectivas efetivações, revivemos nossas
histórias entre garfadas e gargalhadas. Após o sexto cafezinho, com cãibras nas bochechas, comentei despretensiosamente: “Ai, Bicho, isso daria um livro!” Até hoje
a Karla tem certa dificuldade em entender a coloquialidade de alguns comentários. Como ela não costuma dizer
nada por dizer, leva ao pé da letra tudo o que ouve.
Um pequeno desvio só para ilustrar: na despedida do
jantarzinho que marcou a apresentação oficial de meu
Bicho-do-Mato a minha irmã do meio e meu cunhado, com
o elevador já a nossa espera, despedíamo-nos no hall.
Eu: “Tchau, gente! Obrigada pelo jantar. Estava tudo muito
gostoso. Foi bem divertido. Vamos marcar mais vezes.”
Minha irmã: “Vamos sim. Me liga que a gente combina.”
O Bicho-do-Mato: “Obrigada por tudo. Até logo.”
“Obrigada de quê? Foi um prazer.” Minha irmã a puxou
158
para um abraço mais carinhoso, e ao fim: “Sabe, Karla,
eu gosto muito de você!”
Ninguém naquele hall esperava ouvir:
“Por que você está falando isso, como assim?”
Achei melhor poupar a todos:
“O elevador está apitando, tem alguém precisando dele.”
O percurso de volta foi longo, apesar dos poucos quilômetros que nos separavam do destino final:
“Bicho, não é assim que você deve se portar, ainda mais
em se tratando de minha irmã. Ela quis ser agradável, e
demonstrar que você é bem-vinda!”
“Então por que ela simplesmente não disse ‘Você é bemvinda!’, já que era isso que ela queria?”
“Porque as pessoas não são tão literais assim.”
“Certo, mas ela disse ‘Eu gosto de você!’ Como pode
saber? Ela mal me conhece!”
“Ai, Bicho! Ela gosta de você pelas coisas que eu conto a
seu respeito e pela felicidade que percebe em minha vida
desde que você chegou.” Enfim...
Retornando ao ponto antes do último desvio.
“Ai, Bicho, isso daria um livro!”
“Um livro? Mas com que objetivo?”
“Sei lá, um livro sem objetivos!”
“Mas por que haveria um livro sem objetivos?”
“Ok, então o livro teria dois objetivos. Primeiro: divertir as
autoras e... e… esse livro teria um só objetivo! Já não
basta?”
A Karla entrou no espírito:
“É, poderia ser um seguro-velhice ou, antes, um seguroterceira-idade-tediosa. Quando tivermos vivido mais de
40 anos de boas gargalhadas, certamente não lembraremos das primeiras. Seria um desperdício não usarmos
159
nossas próprias piadas para confortar nossos invernos a
partir de 2042!”
“É isso, Bicho!”
Adiante com a sobremesa e outros três cafezinhos,
pensávamos no título de nosso livro e não imaginávamos
que, muito antes de a terceira-idade-tediosa chegar,
iríamos esquentar nossa segunda-idade e antecipar o
seguro-velhice.
Alucinadas pela cafeína e embaladas pela endorfina, cogitamos as seguintes alternativas:
Bicho: “A Arte da Paz – segundo Moon Tza.”
Eu: “Não, não entendi.”
Bicho: “Julieta e Henriqueta.”
Eu: “Antonieta e Anacleta no Reino das Etas.”
Bicho: “O Castelo das Bruxas Gostosas.”
Eu: “Não, muito metido.”
Bicho: “Homens São de Marte, Mulheres São Demais.”
Eu: “Que tal alguma coisa mais pop? ‘Ela É Aquário, Eu
Sou Touro.’”
Bicho: “De jeito nenhum!”
Eu: “Que tal: Ela É Touro, Eu Sou Aquário.”
Bicho: “Piorou!”
Eu: “Ok. ‘Uma É Touro, a Outra Aquário.’ Ou ‘Uma É
Aquário, a Outra É Touro.’”
Bicho: “Vira o disco, criatura!”
Eu: “Taurina Ternurinha & Germânica Cética.”
Bicho: “Já sei! Taurina Ternurinha & Bicho Frio, Amargo e
Incapaz de Amar.”
Eu: “Ah, não, Bichooo!”
Ao fim concordamos com: “Touro no Aquário.”
160
Só o amor constrói
Durante nosso primeiro jantar, a Patricia levou mais de 40
minutos para me explicar o que fazia para ganhar a vida,
e outros muitos para dizer que tocava cavaquinho. Começou dizendo que adorava choro, que a comida estava
muito saborosa, que sua tia-avó era fã da Clara Nunes,
que a moça da mesa ao lado era muito esquisita, que ela
fazia aulas particulares de música uma vez por semana...
Desembucha, criatura!
Com o passar dos meses, entendi o porquê de tanto cuidado para comunicar algo tão simples. Os shows de samba a que assisti, com e por ela, superam a casa da centena. Com meu gosto musical atípico, samba nem remotamente fazia parte de meu repertório. Hoje, posso debater
sobre esse gênero com alguma propriedade, reconheço o
Sr. Argemiro do Patrocínio pelo timbre, Nelson Sargento
pelo sotaque, até a biografia da D. Zica da Mangueira eu
li. Coisas do amor!
Agora, churrasco com pagode, para mim, continua sendo um binômio insuportável, tanto pelo funeral dos animais quanto pelo sacrifício dos ouvidos.
161
Amélia
Em benefício de meu próprio bem-estar, diariamente contribuo com o processo de despertar da Patricia. Passo o
café, faço a primeira chamada, preparo o cappuccino,
sigo com a segunda chamada, leio o jornal todo e volto à
carga. Tudo muito suave, para não irritá-la logo cedo (mesmo que já passe do meio-dia, o horário do despertar, pra
ela, é sempre “cedo”).
Mas minha suavidade nem sempre encontra correspondência no ritmo dela: apesar das duas horas necessárias
para realmente acordar, a pessoa sai da cama, todas as
manhãs, querendo contar tudo o que sonhou. O amor
nos prega dessas também...
“A gente estava em casa – não era essa casa, mas era
nossa casa –, daí chegou alguém, que eu não consigo
lembrar quem era, mas era alguém que a gente conhecia. Ele queria levar a gente ao aeroporto. Nós fomos premiadas no sorteio daquela viagem… sabe aquele papelzinho que a gente preencheu ontem no supermercado, até
que você não quis participar e eu fiz um em seu nome?
Então, daí ele disse que tinham ligado pra avisar que fomos sorteadas, mas que os organizadores tentaram ligar
aqui e o telefone só deu ocupado. Por que será? Bom, daí
162
a gente tinha que arrumar a mala porque o avião iria sair
em duas horas. Eu estava com um monte de tremiliques
por causa do medo de avião e não conseguia fazer as
malas… Sabe aquela mala verde? Eu não conseguia achar
de jeito nenhum. E você ficava falando ‘Calma!’ e eu respondia ‘Eu tô calma!’ Nossa, Bicho! Normalmente é o
contrário. Será que isso significa alguma coisa? Será que
eu queria ser você? Bom, aí eu me lembrei de que eu
tinha preenchido dois cupons, um em seu nome com a
opção Caribe com acompanhante e outro em meu nome
com a opção Bariloche com acompanhante, e eu perguntei pro homem pra onde era e ele só dizia ‘uma de vocês
ganhou, eu não sei qual!’ Eu estava em pânico, não sabia
que tipo de roupa pôr na mala. Você colocou uma calça,
uma camiseta, uma calcinha, um sutiã, um par de meias,
um agasalho e um biquíni, e disse que sua mala já estava
pronta. Eu nem conseguia encontrar a mala verde. Sabe
qual? Daí peguei a azul mesmo. Mas ela era muito pequena e minhas roupas não cabiam. Quando eu estava
sentada em cima dela para fechar o zíper, você me acordou. O que você acha que este sonho significa?”
Ai, o amor!...
163
Ai, meus peitinhos!
Ai, meus peitinhos, digo, os peitões de meu Bicho! Nesses 18 anos de carreira nunca havia pilotado peitinhos
tão empinadinhos, firmes e proporcionais. Inicialmente,
senti grande dificuldade em manuseá-los, mas por fim
desenvolvi uma técnica especial sem precedentes.
Além de momentos prazerosos, os mamilos, digo pupilos, enriquecem o repertório de entretenimento familiar.
Durante um almoço de domingo, a Karla apanhou meus
queridinhos, um em cada mão:
“Nossa, meus seios estão tão doloridos!”
“Como assim? Nem brinquei com eles ontem!”
“Acho que vou menstruar.”
“Ah, então deve ser dislexia mamária!”
“Vida, dislexia na mama?”
“Você nunca ouviu falar?”
“Em dislexia mamária não. Que tal displasia?”
“Displasia, dislexia, disbulia, não bole comigo não, causa
discórdia e dissabor. A gente tá comendo!”
Outra vez, estávamos numa loja metida a chique, comprando uma blusa metida a chique, para uma ocasião
verdadeiramente chique. A Karla já tinha provado uns oito
164
modelos e nada parecia adequado. O vendedor, não querendo perder a venda, e querendo ganhar literalmente a
cliente, estava ignorando minha presença, por mais que
eu me fizesse notar.
Ele ajeitava a blusa no corpo dela: “Essa blusa é a sua
cara, muito linda!”
Eu: “Não, Bicho. Essa blusa não é tão linda como seu
rosto. Acho até que ela não valoriza o que você tem de
melhor.” Olhei para os seios dela.
Bicho: “O que eu tenho de melhor não pode ser vestido
por nenhuma blusa, é o cérebro!”
Eu para o vendedor: “Viu só?”
O vendedor para a Karla: “Tem uma branca decotada que
vai destacar o seu colo, deixando a imaginação livre para
a segunda coisa que você tem de melhor.”
Eu para o vendedor, que até então me ignorava: “A imaginação é livre, mas a ação é só minha!”
Relei as costas da mão bem de leve em meus dois queridinhos e saímos da loja de mãos dadas, morrendo de rir.
Mesmo porque 250 reais num pedaço de pano… nem a
pau, Juvenal!
165
Zélia na parada
Nunca fui muito fã de televisão. Quando me separei,
passaram-se semanas até que eu percebesse que ela
continuava na sala. Apesar de hoje em dia eu até ver alguns
programas com a Patricia, até três anos atrás raramente me
lembrava da existência desse objeto. Eu adoro jornal, mas
gosto de pouquíssimas revistas – três, pra ser sincera. Rádio?
Os locutores me irritam muito e as propagandas, ainda mais.
Ou seja, nunca sei quem são as celebridades do momento,
não reconheço no discurso alheio os bordões cômicos da
moda e não sei cantarolar nem o refrão do hit do momento.
Confesso: eu nunca tinha ouvido falar de uma cantora
chamada Zélia Duncan. Pode rir.
Assim, era com grande espanto que ouvia, de vez em
quando: “Nossa, você é a cara da Zélia!” Lembrando-me
daquela ex-ministra da Economia de dentinhos separados, tinha que me conter pra não dar na cara do incauto.
Meu queixo proeminente vem-me rendendo comparações
desde sempre: Cristiane Torloni, Segourney Weaver, barracuda... Mas o que isso tinha a ver com a Zélia?
Quando deixei meu cabelo crescer, os cachos acentuaram
a semelhança e as frases se tornaram mais claras: “Todo
166
mundo te fala que você é a cara da Zélia Duncan, né?”
Ah-há! Então a Zélia não era aquela que dançava bolero
e usava mangas bufantes? Meno male!
Pesquisei, e longa vida à Internet! Zélia Cristina Duncan, cantora niteroiense sobre quem o João Pimentel disse, em
O Globo: “Zélia Duncan é a melhor cantora de um mundo
pop cujo entorno ela recusa. Sempre teve aversão a revistas
de fofoca, festas, à imagem em detrimento da arte.” Uau!
E numa edição online do JB, o Tárik de Souza escreveu
sobre ela um texto chamado “Na linha das cantoras pensadoras”. Nossa! Como pude desconhecer uma pessoa
dessas por tanto tempo?
Devidamente familiarizada com a aparência e a obra da
Zélia, deixei de me importar com as comparações – apesar de ela ser sete anos mais velha.
Muitas vezes me pararam pra pedir autógrafo. Obviamente, nunca tive o mau gosto de dar, apesar dos incentivos
dos amigos espíritos de porco. Nem por brincadeira me
apetece ser outra pessoa, donde minha resposta-padrão
é categórica: “Eu NÃO sou a Zélia Duncan, eu só sou queixuda!” Se alguém achou que era mentira chiliquenta da
artista, peço desculpas a ela.
Mas a Patricia também lhe deve desculpas. Uma vez, estávamos no Shopping Ibirapuera quando uma menina de
cabelos cor-de-laranja veio me abordar. Eu não assinei seu
bloco, discursei mecanicamente sobre os cachos e queixos, desculpei-me e saí andando, sozinha. A Patricia tinha
ficado pra trás, gabando-se de estar com uma artista:
“É a Zélia sim, é que ela não gosta disso, é tímida...”
167
A Patricia adora as ocasiões em que me confundem. Do
alto de seu 1,58 m e meio, olha pra todo mundo com
ares superiores: “Eu namoro a Zélia, tá, meu bem?” Uma
vez, no final de um show, postei-me perto da saída de
emergência, esperando o tumulto diminuir para ir embora. Uma moça cutucou a amiga e se aproximou, caderninho em punho. Sentindo o perigo iminente, escapei rapidamente pela escada de incêndio.
Mas na Parada Gay de 2005 não havia rota de fuga. Eu,
de óculos escuros, ainda mais parecida com a Zélia, e a
Patricia, posando de gatinha e se sentindo, não deixávamos espaço para dúvidas...
Íamos pela Paulista, abraçadas, curtindo o clima e as pessoas,
apreciando os carros de som e celebrando viver numa cidade
como São Paulo… não mais que de repente, uma menina
grita a plenos pulmões: “Olha, é a Zélia!” Assustada, corri.
Pensando agora, é claro que foi a pior reação possível, mas
na hora não estava raciocinando direito. A menina e suas
colegas vinham em minha direção, braços ameaçadoramente
estendidos, olhos muito abertos, salivando. Paniquei!
Elas se aproximavam rapidamente. A Patricia, arrependida de sua postura exibicionista, tentava convencê-las do
engano e, ao mesmo tempo, me segurar. O bloco perseguidor se avolumou, até quem não tinha idéia do que
estava acontecendo se juntou ao grupo e saiu atrás de
mim. Eu estava de-ses-pe-ra-da. Gritava “Eu não sou a
Zélia, eu NÃO sou, NÃO sou a Zélia”, mas parece que
todo mundo só ouvia a última palavra e pensava: “Nossa,
é a Zélia!”, e juntava-se à horda.
Refugiei-me bem no fundo de um café lotado, fiz um
rabo-de-cavalo e fiquei de costas para a porta. Logo a
168
Patricia chegou. O funcionário serviu água, café, nos deixou fumar, serviu mais dois cafés. Apesar dos muitos clientes, não nos apressou para desocupar a mesa. Quando
fomos pagar, ele me deu uma piscadinha e propôs um
escambo: “Me dá um autógrafo?”
169
Xixi engarrafado
Esta é mais uma daquelas. Íamos passar o final de semana com minha família no Litoral Norte de São Paulo
e, desavisadas, saímos às 20h de uma sexta-feira de
janeiro de 2006. Só nós e mais 558 mil infelizes tivemos a mesma brilhante idéia. Levamos uma hora até a
estrada que conduz ao litoral. Por precaução, paramos
num dos poucos postos de serviços que existem antes
da descida da serra – nós e 824 outras pessoas. No
banheiro feminino encontravam-se 25% da população
flutuante do estabelecimento; portanto, não fomos ao
toalete. Coca Light gelada não havia. Irritada, peguei
uma garrafinha de 500 ml de água morna e levei 32
minutos no caixa.
Seguimos viagem, alternando canções e prosas. Quinze
quilômetros antes de Bertioga, fomos obrigadas a parar.
Ficamos ali, naquele mesmo ponto, por 19 minutos, andamos dois metros, esperamos 12 minutos, andamos
meio metro, e assim foi, digo, não foi. O percurso até a
casa de meus pais é cumprido em uma hora e meia,
respeitando-se os limites de velocidade e em condições
normais de tráfego. Naquele dia, as coisas foram bem
diferentes.
170
Esgotaram-se os CDs inéditos. A D. Ivone Lara cantou três
vezes as canções do último trabalho, e aquela era a última música da quarta passagem do Sisters of Mercy. Graças a Deus! A próxima escolha era minha: Paulinho da
Viola pela quinta vez.
Em meio à torturante repetição auditiva, ora mais sentida
por mim, ora pelo Bicho:
“Nossa, eu preciso muito fazer xixi!”
“Eu já estou sentindo o meu sair pelos ouvidos.”
“Onde está a garrafinha de água?”
“A água acabou faz tempo, Bicho!”
“E você acha que eu quero tomar água, apertada do jeito
que estou?”
“Sei lá, coraçãozinho! O que mais seria?”
“Vou fazer xixi na garrafa!”
“Você? Xixi?… na garrafa?” Pensei melhor, e achei que
ela iria mesmo! (Tudo o que ela fala que vai fazer faz...)
Como pode uma pessoa séria como a Karla Lima com K,
1,72 m, pontual, cética, metódica e organizada, dignarse a fazer xixi numa garrafinha dentro de um Celta, parada numa estrada em companhia de 125 mil espectadores? Podendo.
Fechamos os vidros, que por sorte são bem escuros, e
ligamos o ar-condicionado. Ela se ajeitou. Abaixou as
calças. Posicionou a garrafinha e nós mijamos de rir. Mijamos de rir no sentido figurado, até então. Ríamos tanto que ela não conseguia manter a garrafinha imóvel.
Por precaução, forramos o banco do passageiro com uma
flanelinha amarela. Silêncio absoluto. Nada. Gargalhadas. Silêncio absoluto. Nada. Gargalhadas. Achei que
171
não sairíamos desse ciclo vicioso, e as gargalhadas estavam me pondo em apuros também. Virei em direção ao
outro lado e prometi não olhar nem falar mais nada.
Silêncio absoluto. Pensei: “Vou dar uma forcinha.” Imitei o som de xixi saindo de periquita:
“Shshshshshsh…”
“Fiz! Eu fiz, eu fiz!”
“Deixa eu ver, deixa eu ver! Tá quentinho? Vazou? Coube? É amarelinho ou é amarelão?”
Cuidadosamente, meu Bicho tirou a garrafinha debaixo de si e colocou ao alcance de nossos olhos. A garrafinha estava VA-ZI-A, completamente vazia. Nem uma
só gota de líquido amarelinho quentinho, só algumas
remanescentes gotículas de água morna, absolutamente
cristalinas.
“Não é possível! Eu juro que fiz xixi!”
“Só se foi no banco, quá-quá-quá-quá!”
Passei a mão sobre a flanela, nada.
“O banco não foi pro saco, deve ter escorrido no tapete.”
A Karla bateu os pés no tapete e nada respingou. Incrédula, esticou os braços e passou as mãos no chão.
Nada.
“Eu juro, fiz xixi, juro!”
Olhamos para o teto, procuramos no porta-luvas, no console e nada.
“Bicho, só se subiu pra cabeça. Você vai ficar doidona!”
Enfim, chegamos. Pardas. Por mais apertada que estivesse, fiz questão de conferir se havia ou não xixi na
bexiga de meu Bicho. Havia. E não era pouco. Em minha
vez, não pude deixar passar em branco: fiz xixi na
garrafinha, mesmo tendo uma privada a minha disposição. Setecentos e trinta e poucos mililitros. Quase uma
172
garrafinha e meia de 500 ml. Pode perguntar pra Karla.
Ela testemunhou o evento. Ela não mente. E, só dessa
vez, falou que iria fazer e não fez.
173
Xixi amordaçado
Se minha vidinha se orgulha de mim por eu realmente fazer o que falo, só posso retribuir sua admiração confessando meu orgulho por ela muitas vezes não fazer o que diz!
Embora seja dois anos mais velha que eu, em muitos aspectos ela parece mais nova – bem mais nova, por volta
assim de uns 30 anos a menos...
Alguns exemplos concretos para evitar acusações de leviandade: ela deixa tudo para a última hora, incluindo
comprar presentes na semana de Natal. Poderia ser apenas um comportamento procrastinador, mas passa à infantilidade quando se tem expectativa de encontrar facilmente uma vaga no estacionamento! Ou não? Também
se assemelha a uma criança por espalhar suas coisas pela
casa toda – é claro que depois, já atrasada para sair, desperdiça preciosos minutos procurando a chave de casa, a
do carro, o celular, a carteira...
A Patricia anota os dados mais importantes em papéis
soltos encontrados ao acaso sobre a mesa: envelopes usados, o verso do cartão de visitas de uma pessoa sem nenhuma relação com o assunto, páginas de uma agenda
de 2003 que ela vai passar a limpo qualquer hora dessas… Dali a algumas semanas, não lembrando mais a que
se refere aquela informação, e pressionada por minhas
174
cobranças de arrumar o escritório, enfia tudo na gaveta
do criado-mudo.
Mas sua criança interior se manifesta de maneira mais
contundente mesmo é no jogo “por quanto tempo será
que consigo segurar o xixi?”
Ela precisa ser lembrada de ir ao banheiro antes de sairmos de qualquer lugar; caso contrário, chega ao destino
invariavelmente passando mal. Muitas vezes chegamos à
casa de meus pais e ela passou direto por eles: lábios
comprimidos, mal acenando um tchauzinho, fez um longuíssimo xixi e voltou à sala, como se nada fosse, para
então cumprimentá-los.
O caminho inverso traz as mesmas armadilhas, com a diferença de reunir mais testemunhas, visto que nosso prédio tem muitas câmeras de vigilância. Os porteiros tanto
acreditavam que os tremeliques da chegada se deviam à
presença de espíritos no ambiente que uma vez lhe perguntaram discretamente se faria “um trabalho” pra um
deles! Respondemos educadamente que não e nunca revelamos que os trejeitos de mãe-de-santo em plena função nada mais eram que fluidos urinários retidos por tempo
demais.
Quando ela ameaça “Vou fazer xixi na calça… dessa vez
eu vou mesmo, não tô conseguindo segurar, ferrou!”,
nem me preocupo mais – sei que isso está na categoria
não-cumprimento de promessas, e me consolo pensando
tratar-se de puro exercício do pubococcígeo.
175
Suelen
Foi um desencontro total. Enquanto eu acabava de me
arrumar, a Patricia desceu até a garagem pra pegar não
sei o que no carro.
Quando eu saí do quarto e não a encontrei em casa, supus que estivesse a minha espera na garagem; então tomei o elevador atrás dela.
Cheguei ao segundo subsolo e caminhei até o carro, mas
ela não estava.
O faxineiro, que havia presenciado toda a cena, veio em
meu socorro:
“A Suéla já subiu.”
“Quem? Suelen? De quem você está falando?”
“Da su... a... sué, a su... ela já subiu, já. A sua-ela subiu.”
176
Ooops!
Como qualquer ser humano, Karla Lima também escorrega. A diferença entre nós é a quantidade de deslizes.
Como o placar é muito desfavorável para mim, eu exalto
e divulgo qualquer mínimo tropicão dela. A contagem
atual é 1.526 x 9 – não podia deixar passar em branco
meu oitavo ponto:
27/09/04
Amor,
Se você tem guardado os últimos bilhetes, e se eles têm
data, na nossa velhice vamos nos lembrar com carinho da
longínqua época de gravação de seu primeiro CD, quando você chegava depois de mim com tanta freqüência
que os bilhetes eram à base de três por semana.
Este, por exemplo, é para dizer que:
Eu te amo.
Muito.
Tô esperando beijo, como sempre.
K.
28/09/04
Como assim? Se eu tenho guardado os últimos bilhetes?
Como eu poderia?
Eu tenho usado o verso dos seus para escrever os meus!
177
Quem deveria estar guardando os bilhetes para nosso futuro de recordações é você, meu grande e maior amor!
Bom dia!
Amo você.
P.
178
Hay que envelhecer, pero
sin perder la ternura jamás
A primeira vez que pensamos em escrever um livro foi em
2003. Na época não chegamos a elaborar um projeto
editorial, mas, como já sabíamos que seria biográfico e
engraçado, começamos a anotar as passagens mais interessantes (principalmente em guardanapos e toalhinhas
de bandeja, o que faz de nossas lembranças registros
manuscritos respingados de molho de tomate, vinho e
muito café).
Durante a produção do “Armário”, três anos depois, resgatamos aqueles papéis antigos e encontramos verdadeiras preciosidades, como esta:
“Preciso contar três fatos que, embora não sejam cômicos, precisam de qualquer jeito fazer parte de nossa obra.
Ok, o propósito é esquentar nossos invernos quando formos velhas, mas a ternura, talvez até mais que o riso,
aquece.
1) Nós nos conhecemos em 30/11/2002 e saímos
para jantar em 04/12. Ou seja, quando passamos uma semana juntas no sítio, pouco antes do
Ano Novo, fazia menos de um mês que nos conhecíamos. Numa refeição (não sei se café da
manhã ou lanche, mas é irrelevante), a Patricia
179
me observava roer a casca duma fatia de pão de
forma. Perguntou: ‘Você sempre deixa o melhor
para o final?’ Fiquei muito impressionada com
isso. Mal sabia que aquilo não era um insight
raro e particularmente inspirado – era, na verdade, uma pequena amostra de sua aguçada percepção...
2) Andávamos num shopping que eu conhecia muito mal, perto de minha nova casa. Íamos a uma
loja que eu não sabia onde ficava; portanto, andava ao lado da Patricia, um passo atrás. Eu não
tinha feito careta, bufado nem revirado os olhos
quando, às tantas, ela constata: ‘Você odeia quando não sabe para onde vai, né?’ Hehehe!... dois
a zero pra ternurinha perceptiva!
3) Quando peguei esse papel, eu sabia quais eram
as três histórias, mas contei duas e esqueci a última! Só tenho 32 anos, minha memória piora a
cada dia. Ainda não é trágico, mas temo que um
dia venha a ser. Well, já que minha mulher é uma
palhaça, ao menos isso me torna a cada ano uma
platéia melhor para suas piadas! Que, cá pra nós,
nem são assim tão engraçadas, mas enfim...”
Estávamos de namorico no sofá, em clima de aconchego
e intimidade, relendo esses bilhetes, rindo das coisas que
vivemos e tecendo conjecturas sobre nosso futuro.
“Vida, você já imaginou como vai ser quando nós formos
velhinhas?”
“Já, e me preocupa pronunciar ‘Bicho’ usando dentadura...”
“Do jeito que minha memória fica cada vez pior, você vai
ter que se apresentar pra mim toda manhã!”
180
“Pois é, Bichinho, o duro é que você não dá direito na
primeira vez, né?”
Minutos depois:
“Bicho, eu acho melhor desenhar.”
“Desenhar o que, criatura?”
“O mapa com a localização dos buraquinhos!”
181
Jade
Um chefe muito querido estava saindo da agência e decidimos fazer-lhe uma festinha de despedida. Éramos uma
equipe de sete mulheres e ele, certamente, já esperava
mais esse agrado – mimado que tinha sido, por todas
nós, durante mais de um ano.
Organizamo-nos em duplas: a primeira cuidou dos comes
e bebes, a segunda da decoração e a terceira da pintura e
fantasias. Sim, porque o bota-fora era temático. A terceira
dupla pediu que nós levássemos lenços e se certificou, várias vezes, de que todas os tínhamos, caso contrário alguém levaria um extra. Na hora, eu não entendi a surpresa
que causei ao afirmar que pra mim não seria necessário,
eu tinha lenço sim e o levaria sem nenhum problema.
Eu trabalhava bastante naquela época, de maneira que
tive pouco envolvimento com os preparativos: no dia seguinte ao arranjo, comprei os refrigerantes que me cabiam, guardei no armário e não pensei mais no assunto.
No dia da festa, a equipe três fez a maquiagem e instruiu:
ponham seus lenços e fiquem na pose, ele vai chegar
daqui a pouco. “Ponham seus lenços?!” Achei estranho,
mas, como precisava terminar um negócio e tinha pouco
182
tempo, foquei no trabalho e não ergui os olhos até
acabar.
Só faltava eu: elas já estavam prontas, imóveis em suas
poses, gritando meu nome. Quando levantei a cabeça,
não sabia se ria ou chorava. As cinco estavam dispostas
em leque, tinham uma quantidade ridícula de delineador
e – pasmem! – écharpes coloridas enroladas na cabeça,
rosto e ombros. Mas o que era aquilo?!
O chefe chegou e a performance foi encenada sem minha presença. Graças a Deus! Teria sido ridículo simular
uma dança do ventre com o lenço branco de meu pai
sobre a cabeça...
183
Três tropeços que a língua me dá
Meu Bicho passa a vida corrigindo meus tropeços lingüísticos, mesmo tendo diagnosticado minha dislexia. Muito pela
graça, pouco pela expectativa de que eu venha a me curar.
Já expliquei dezenas de vezes que minha língua não acompanha meu raciocínio, por isso eu me enrolo. Chamo o
Rodolfo de Rinaldo, a Débora de Roberta, o Seu Carlos
de Dr. Oswaldo, porque ao ver uma pessoa eu enxergo
mais além, e o que vejo, na verdade, é o nome que ela
deveria adotar para ser mais bem-sucedida de acordo com
a numerologia. Como ela não acredita nessas coisas, meu
argumento fica manco. Se bem que, no quesito língua,
essa é a única reclamação.
Tropeço um:
Apesar de ter organizado grande parte do repertório da
banda, nunca tive coragem de sugerir uma de minhas
músicas preferidas: “Amor e Festança”, de Toninho Gerais
e Adalto Magalha. Seu refrão contém os seguintes versos:
“Dodô cantou pra Nanã na Ribeira ô ô
Vovó foi lá perfumar a ladeira ô ô
Eu quero ver mô jogar capoeira ô ô
Na festa do beira-mar”
184
Eu não consigo passar do primeiro:
“Dodô nanô pra cantar na Ribeira ô ô
Dodô cantou Naná na Ribeira ô ô
Dodô nanô a Naná na Ribeira ô ô”
E não sai disso, por nada. Acho que deve ser meu lado de
compositora abelhuda falando mais alto.
Tropeço dois:
Num sábado feliz qualquer, estávamos passeando pela
cidade:
“Bicho, olha aquela menina com daddy lock!”
“Que menina? Com o quê?!”
“Aquela de blusa amarela com dead locks.”
“De blusa amarela com dead locks?”
“Ali, Bicho, encostada no murro, de blusa amarela com
dread lots.”
“Ah, aquela com dreadlock!”
“É, com dreadlock. Você estava tirando o maior pêlo de
minha cara, né, Bichão?”
“E desde quando eu tenho cara de depiladora?”
Tropeço três:
Terça-feira de carnaval, fomos ao cinema de um shopping
assistir ao filme “Brokeback Mountain”. Chegamos em
cima da hora. Enquanto meu Bicho foi estacionar o carro,
subi em direção à bilheteria para garantir nossos ingressos,
mas antes de sair do carro me certifiquei mais quatro vezes
do nome do filme: “Brokeback Mountain”. Brokeback
Mountain. Brokeback Mountain. Brokeback Mountain.
Antes de chegar ao primeiro subsolo, percebi que alguma
coisa não soava bem: Blockback Mountain. Subindo as
185
escadas rolantes, achei que estava piorando: Breakback
Mountain. No térreo, concluí que o caso não tinha mais
solução: Blackback Mountain, Brokeblack Mountain... Na
fila da bilheteria, eu insistia: Blokeblack Mountain,
Blowbook Moutain. Chegou minha vez:
“Por favor, duas entradas para o Black… Broke… Block…
Back… Bloke… Book Mountain.”
“Qual filme, senhora?”
“Aquele um lá, daqueles dois lá, naquela montanha lá,
você sabe qual.”
“Ah, pois não! ‘Brokeback Mountain’.”
“Isso! Tirô daqui!”
186
Quatro histórias de que ainda me lembro
Credito meu problema de lapsos de memória a três fatores distintos: tudo me abstrai, o tempo passa e o mundo
é grande.
Esmiúço em partes:
Um: minha memória imediata é quase normal, ou seja,
consigo lembrar um número de telefone em tempo suficiente para discá-lo, desde que nada me abstraia. O problema é que tudo me abstrai.
Dois: a passagem do tempo é inevitável, e com ele se vão
os fatos. Tenho imensa dificuldade em me lembrar das
coisas 30 minutos passados.
Três: o mundo é grande e meu déficit de memória muitas
vezes me impede de apreender novas informações. Quando conheço alguma pessoa, demoro até conseguir arquivar seu nome e suas referências. Quando reencontro alguém, não consigo ligar o nome à pessoa, o fato à
circunstância e a circunstância ao evento… aí, danou-se.
Como conheço muita gente, e eu quero sempre mais,
não dou conta. Dou vexame.
187
A quantidade de lapsos que a memória me proporcionou
nos últimos anos beira a casa dos milhares. Eles ocorrem
com tanta freqüência que não consigo me lembrar do
mais recente. Ocasionalmente me lembro, mas sempre
mais tarde do que deveria. Quando dou conta do último
lapso, ele já virou antepenúltimo. O que é que eu estava
dizendo mesmo?
Ah! Problemas de memória...
Numa certa ocasião, fui apresentada a um ser monocromaticamente bege. A tonalidade uniforme da pessoa era
composta pela tintura Koleston “louro-mate-médio” aplicada no cabelo, 250 g de pó compacto “Promessa de
Charme” e uma batinha bufante amarelo-pastel com um
decote em forma de abismo que deixava à mostra sua
última aquisição: um par de airbags de 360 ml.
Finda a conversa, pedi sua caneta emprestada para anotar o endereço de meu blog. A Shirley se foi e a caneta
ficou comigo.
Semanas mais tarde a reencontrei: “Shirley, fiquei com
seu lápis.” Ela disse que não tinha problema, mas que
seu nome não era Shirley, era Sharon. No mês seguinte,
convicta, me dirigi a ela: “Oi, Sheyla!”
Noutra ocasião, após um show, estava eu de bobeira na
saída da casa onde a banda havia-se apresentado. Dali a
pouco:
“Pati, nossa, quanto tempo! Cadê a Karlinha? Vocês estão bem?”
“Puxa, quanto tempo! A Karla não veio, ela está em casa.
Está tudo ótimo. E com você?”
188
A conversa se estendeu, ela me apresentou sua namorada, falamos de seu trabalho, do meu, e eu contei de minhas últimas peripécias… e nada: não conseguia ligar a
pessoa aos fatos que ela relatava. Ela me deu várias pistas, sabia que a conhecia e bem, e vice-versa, e nem assim as nuvens clareavam. Quanto mais o tempo passava,
mais desesperada eu ficava. Pensava: “Nossa, eu estou
ficando louca! Não é possível! Eu sei que a conheço, mas,
de onde? Caramba! Como é o nome dela, meu Deus? Ela
tem uma letrinha L pendurada no pescoço! Deve ser Laura.
Será? Laís? Lois? Que merda! O que eu faço?”
Minha salvação apareceu!
Uma das integrantes da banda juntou-se à roda.
Eu estava certa de que minha aflição iria ter fim:
Integrante da banda: “E aí? Tudo?”
Menina com o L no pescoço: “Tudo, e você?”
Integrante da banda: “Tranqüilo. Já vou indo, estou cansada.
Eu te ligo e a gente conversa. Falô, Pati Cavaquinho, a
gente se vê amanhã no show.”
Eu: “Espera, espera! Tenho que falar com você, só um
minutinho...”
Eu me afastei e cochichei no ouvido da integrante da banda: “Pelo amor de Deus, quem é essa pessoa? Estou falando com ela há mais de 30 minutos. Sei quem ela é,
mas não consigo me lembrar de onde eu a conheço, nem
qual é o nome dela. Me ajuda!”
Integrante da banda: “Pati, você é doida. Quantas cervejas você tomou?”
Eu: “Só duas. É sério. Não me conformo. Não é possível!”
Integrante da banda: “Pati, o nome dela é Luiza. Ela passou o feriado do carnaval com a gente no sítio. Foram
quatro dias juntas, lembra?”
Eu: “Nooossa! Puta que pariu! Que foda! É lógico!!!”
189
Outro dia, num outro show da banda:
“Oi, Pati! Tudo bom? Quanto tempo!”
Certa, porém não muito, achei que sabia quem era a pessoa tão afetuosa que havia me abraçado. Seu nome, claro, eu não me lembraria:
“Oi!… E aí? Eu estou ótima, agora sou fotógrafa da banda. E você? E a Tia Surica?”
“Eu estou bem. Acho que a Tia Surica também deve estar.”
“Vocês vão fazer um show no Sesc, né? Estou me programando para dar um pulinho lá...”
“Vamos?”
“Eu vi no jornal, semana que vem. A Tia Surica está por aí?”
“Eu não vi, não...”
“Deixa eu terminar com as fotos aqui, depois a gente
conversa melhor. Você vai ficar até o fim?”
“Vou sim, sem problemas.”
Pensei: “Nossa, que esquisito! Como assim?! A pessoa é
empresária da Tia Surica e não sabe nada a respeito dela?
Tem alguma coisa estranha. Ou ela é relapsa ou eu sou
louca. É... acho que eu não tô muito boa hoje!”
Fim da sessão de fotos, achei melhor abrir o jogo:
“Você não é quem eu estava pensando, né?”
“Não, não sou...”
“Me desculpa, quem é você mesmo?”
Por fim, e antes que eu me esqueça, a quarta história:
A banda se apresentava numa conhecida e tradicional
casa de samba de São Paulo quando, do nada, uma menina linda subiu ao palco seguindo em minha direção,
minutos antes do início do show – ato que não era permitido. Ela me abraçou com carinho:
190
“Pati, que legal você aqui!”
“É. A casa é muito boa, supertradicional. Está cheio, né?”
Eu não tinha a menor idéia de quem ela era. Tentei arrancar alguma coisa:
“E aí? Você já conhecia a casa?”
“Não. Foi a maior coincidência. Vim para o aniversário de
um amigo. Quando fiquei sabendo que vocês é que iam
tocar, fiquei muito feliz! Como vão as coisas? Sua irmã
está aí?”
Pensei: “Minha irmã? Nossa! O que minha irmã está fazendo nessa conversa? Será que ela é amiga de minha
irmã? Ela parece bem mais nova que minha irmã do meio,
e mais velha que minha irmã mais nova. Lá vou eu...”
“Me diz, você já viu nosso show ao vivo?”
“Claro, Pati! Você não lembra?”
“Ah!…”
Fui salva pelo gongo, digo, pela empresária: “Vamo, gente, começa logo! Dá pra ser ou tá difícil?”
“Deixa eu te falar: temos que começar. No intervalo a
gente conversa. Onde você está sentada?”
“Ali. Junto com aquele povo!”
Ela apontou para o canto oposto, onde uma centena de
meninas lindas mais outra de meninos sarados se encontravam.
Passei os 45 minutos seguintes fazendo uma força incrível. Só eu sei.
Assim que aquele set acabou, corri à procura de socorro:
“Alguém sabe quem era aquela menina que subiu ao palco para falar comigo? Alguém viu? Alguém me ajude,
por favor!”
191
Ninguém pôde.
Por um instante pensei em não procurá-la, mas desisti.
Além de extremamente grosseiro, eu não poderia dormir
sem saber quem ela era. Segui à procura da moça, quando percebi que não me lembrava sequer de sua fisionomia: “E agora? Ai, meu Deus! Oh, eu de novo!…” Fui
lentamente em direção ao local que ela havia me apontado como sendo nosso ponto de encontro.
Naquele dia, todas as muitas meninas que eu encarei devem ter pensado: “Nossa! A cavaquinista da banda é um
sapatão descarado!” Até que:
“Pati! Que bom que você veio! Deixa eu te apresentar
pro pessoal. Esta é a fulana, este é o sicrano...”
Ela me apresentou a uma dúzia de pessoas.
Saí dali aliviada por ela me ter abordado novamente. Não
fosse sua iniciativa, eu teria passado batido por ela. Minha angústia, porém, saiu dali quadruplicada: “Quem é
esta menina? Ai, meu saco!”
Meses se passaram e eu não tinha conseguido associar a
moça com nada, nem com ninguém. Falei com minhas
irmãs sobre o ocorrido e não houve nem sinal de fumaça.
Eu me dei por louca.
Um ano depois, conversando com o Charles, falávamos da
banda. Ele comentou despretensiosamente que a irmã de
uma amiga em comum havia assistido a um show numa
casa bem interessante! Bingo! A irmã de nossa amiga
conheceu minha irmã num show beneficente que fizemos!
Ela era a bonitinha do ano passado! Pronto! Fim do mistério!
Fim do caso! Veredicto: culpada, mas inocente no fundo.
Como raramente dou ponto sem nó, a inclusão deste capítulo foi pretexto para embasar minha defesa e me
192
desculpar com todos aqueles que tiveram seus nomes
trocados e suas fisionomias embaçadas.
Se por acaso eu, um dia, vier a lhe perguntar como vai
seu pé de laranja ou se sua mosca de estimação melhorou, releve. Agradeço de antemão.
193
Duas piadas que não perdi
Quando teve início a temporada dos Jogos Universitários,
faltava uma pessoa no time de futebol feminino. As recusas das outras moças foram aceitas sem discussão: “Machuca muito, a gente sai cheia de mancha roxa!”, “Se
não der pra tomar banho em seguida, eu não quero. Não
vou ficar fedida até chegar em casa!” Mas, quando o
grupo organizador veio falar comigo, nenhum de meus
argumentos os convencia: “Não entendo nada de futebol. Jamais chutei uma bola na minha vida. Vai ser um
vexame, nunca tive jeito pra esporte nenhum. Eu não quero!” Desistiram quando posei de educadora indignada:
“Gente, presta atenção, nem toda sapatão gosta de futebol, tá? Mas que coisa!” Gargalhada geral.
Adoro o humor como método de ensino. O riso desarma
e os resultados são muito elucidativos. Durante um happy
hour no final de 2005, as meninas da agência se divertiam
matando comigo suas curiosidades sobre a vida de lésbica.
Uma delas, pedindo desculpas pela indiscrição, revelou
sua dúvida mais cruel: “Mas me fala: entre vocês rola um
acordo antidepilação durante o inverno?” Como vantagem
extra, a abordagem humorística permite uns comentários
mais irreverentes e ácidos, e isso não pode ser desprezado.
Se as perguntas não surgem espontaneamente, sempre se
194
pode dar um empurrãozinho. Uma vez, eu estava no carro
com três amigos do trabalho quando fiz uma barbeiragem
incrível. Não resisti à oportunidade de provocar uma conversa sobre estereótipos: “Pois é, rapazes, uma lésbica pode
dirigir tão mal quanto as namoradas de vocês!”
195
Desnorteando o sul, o leste e o oeste
A Karla carrega seu amuleto por onde quer que vá. Segundo ela, não importa o destino, sua nécessaire vai junto. Ambas já se perderam muito, mas unidas sempre encontram uma solução para os casos mais perdidos.
O domínio da definição de direita/esquerda e a obediência cega às placas de trânsito auxiliam meu Bicho e sua
fiel companheira a se orientarem, mas isso nunca impediu as voltas homéricas.
Em frente, à direita ou à esquerda, Karla segue à risca o
que as chapas verdes indicam.
Elas não mentem, mas nem sempre estão por toda a cidade ou informam os destinos com a precisão necessária.
Não me lembro de ter visto nenhuma sinalização com a
informação “Casa da Mãe” ou “Consultório do Dentista”. Assim, meu Bicho segue à procura de instruções que
a conduzam, passeando com sua sacolinha pela cidade,
até que encontre uma placa amiga e servil.
Só para ilustrar, cito versão curta-metragem do incidente
de longa quilometragem: Karla saía da Praça João Mendes
a caminho da casa de sua mãe, localizada na Pompéia
(seis quilômetros, aproximadamente). Leu todas as placas
196
disponíveis, mas só reconheceu uma: Jabaquara. Seguiu,
cheia de si, pois sabia que lá havia uma placa indicando
Zona Oeste, onde fica a Pompéia. Resumo: Praça João
Mendes–Jabaquara = 20 km, Jabaquara–Pompéia = 20 km.
Total rodado = 40 km.
Cansado de se perder, meu Bicho desenvolveu uma técnica infalível: iniciava o percurso sempre do mesmo ponto
de partida, seu sobrado na Lapa.
Com o domínio das rotas a partir de casa, independentemente do tempo e do combustível, chegava sã e salva a
seu destino.
Ao sair da agência em direção à casa de sua mãe, passava
no sobrado; ao sair da casa de sua mãe vindo para meu
apartamento, passava no sobrado; ao sair de minha casa
e seguir para a agência, passava no sobrado. E o sobrado
continuava em pé, à espera da próxima visita.
Nestes três anos muita coisa mudou: o ponto de referência atual fica a 26 km do antigo.
197
Duas faces da mesma moeda
A moeda não é de 50 centavos, nem de 25, muito menos
de 10. A moeda em questão é a irmã da respectiva mulher,
ou seja, a cunhada. A Karla tem duas e eu só tenho uma.
A minha fez questão de avalizar o quanto antes meu ingresso na família Lima. Três dias depois do grande amasso, ela desviou sua rota e deu um jeito de fazer uma visitinha de médico. Fui pega no contrapé, não havia preparado um discurso oficial nem acendido velas para meu
anjo da guarda, quando alguém girou o miolo da fechadura do portão:
“Karla, tem alguém abrindo o portão!”
“Eu sei, é minha irmã.”
Pulei do sofá e arregalei os olhos:
“Sua irmã? Por que você não me avisou antes?”
“Por que é que eu haveria de avisar? É minha irmã e já
está aí mesmo…”
E lá estava eu, entre a Karina no portão e a Karla na
cozinha. Pensei em correr para o quarto, mas eis que minha cunhada já ultrapassava a porta.
“Oi! Você deve ser a Patty, né?”
“É. Sou a Pati. Você deve ser a Karina, né?”
“É, pois é.”
“Pois é, né?”
198
Meu Bicho chegou à sala após essa conversa monossilábica, sem saber que já nos havíamos apresentado:
“Patricia, esta é a Karina. Karina, esta é a Patricia. É bom
que vocês se gostem.”
E nós nos gostamos e muito. Hoje em dia a Kaka é minha
grande (1,80 m) e melhor cunhada (Karla não tem outros
irmãos). Ela é meu ouvido de todas as horas, a quem
confio minha vida e propriedade (ela tem a chave de casa)
e sua felicidade é premissa para meus bons dias.
A outra face da moeda se deu 15 dias depois. Absolutamente preparadas, as partes se encontraram numa
lanchonete perto daqui. De um lado, para meu Bicho:
“Karla, minha irmã é dez anos mais nova que eu, meio
destrambelhada, adora pastelão com alcaparras, não perde
a novela das seis, toma todas sem cair e dança até com a
boate fechada. Tenha um pouquinho de paciência, que
no fundo ela tem conteúdo.”
Do outro, para minha irmã mais nova: “Tatá, a Karla é
descendente de alemães, um pouco fria, meio intelectualizada, não dança, não bebe e não está acostumada a
conviver com muita gente, então releve qualquer contratempo, porque no fundo é um doce de pessoa. Ela só
precisa de um tempo para se socializar.”
Nem sei quantas vezes disse essas mesmas frases na fase
inicial, foram tantas quantas as apresentações que promovi.
Chegamos com bastante antecedência e, enquanto
aguardávamos minha irmã e seu marido, nos divertimos
lendo um texto que Karla havia desenvolvido sobre o mais
Q.T.A. Mais Q.T.A.? Aguarde e saberá. Finda a leitura, ao
contrário de nosso código de conduta, beijamos na boca mesmo. Se alguém viu, fingiu que não viu ou não se
199
incomodou em ter visto. Se ninguém viu foi uma pena,
porque o beijo foi dos mais cheios de amor e ternura.
Enfim, o casal de pombinhos chegou. A conversa estava
superdesencontrada. Não sei por que nessas horas as pessoas apelam para piadas. A Karla não entendia as nossas,
e eles não entendiam as dela. Finalmente, ela foi fazer o
xixi que nós aguardávamos com ansiedade.
“E aí, Tatá?”
“Nossa, acabei de fazer uma prova cruel na Facul! Nunca
precisei de tanta concentração junta como pra entender
o que uma pessoa fala. Tô exausta! Pô, Dennis, colabora,
presta atenção que ela fala difícil!”
De bexiga vazia, ela acabou entrando no clima, mesmo
sendo a protagonista das piadas. Como a maioria ela não
entendia, não se ofendeu. Continuou achando o papo
oco, porém, dado o grande número de gargalhadas, rendeu-se à descontração. Entre uma e outra, minha irmã
soltava: “Ri, Dennis, a piada já acabou!” Ou: “Não ri,
Dennis, não era uma piada!”
E assim seguimos até a última da noite:
“Não pega nada, Dennis, na próxima vez a gente traz o
dicionário!”
Em sua defesa, minha irmã alega troca mútua de conhecimentos de origem longínqua: “Se a Karla não me conhecesse, ela continuaria pensando que frescobol é um
esporte com bola praticado por frescos e rave é uma ‘Reunião Amigável de Veículos Envenenados’ ou, ainda, ‘Rota
Alternativa para Veículos Enguiçados’.”
200
+ Q.T.A.
O primeiro “eu te amo” a gente nunca esquece. Às vezes,
não nos lembramos das voltas e dos dilemas que vivemos
antes do anúncio em si, mas isso é só um detalhe quando
comparado à paixão que nos impulsiona a oficializar.
Sete dias após o grande amasso, eu queria gritar a célebre frase, mas não sem antes testar a possível repercussão do ato. Ameaçava: “Adoro você!”, “Te adoro!” e
obtinha receptividade. Fui ganhando confiança e pondo
minhas manguinhas de fora, até o dia em que uma
mensagem de texto chegou a meu celular: “Uma
mensagem no meio da tarde só para fazer sorrir a mulher
que eu adoro.” Rápida como um flash, rebati: “A mulher
que você adora está sorrindo, ansiosa para dizer
pessoalmente que + Q.T.A.” Elocubrando sobre a sigla, a
Karla gastou horas desenvolvendo uma teoria e, à noite,
me entregou o resultado daquele esforço impresso num
sulfite. Espero que seus superiores da época não leiam
este livro, e não descubram que ela, além de ter usado o
papel, a energia e a impressora da agência, passou a tarde
toda pensando bobagem, ao invés de finalizar a
apresentação daquela concorrência. Reproduzo a seguir
íntegra do documento:
201
Tico & Teco, os neurônios da amiga da menina do banheiro, desvendam o + Q.T.A. – um enigma intelectual de
alto nível!
Interpretações do Tico:
1. “Mais” Que Tara Absurda!
2. “Mais” Quanto Tesão, Ave!
3. “Mais” Quem Tocou Aqui?
4. “Mais” Quem Teria Aceitado?
5. Mais Quintas Taradas Assim!
6. Mais Quocientes Transparentes Assim!
7. Mais Quedas de Tiranos Assassinos!
8. Mais Quadros Tintos de Anil!
9. “Mais” Quase Tomei Água!
10. “Mais” Que Tataravó Ansiosa!
11. Mais Quadris Tagarelas Amorosos!
12. Mais Quindins, Tatuagens e Admiração!
13. Menos quedas, mais qualidade, mais quantidade!
14. Menos tédio, mais tempestades, mais tesão!
15. Menos arrogância, mais azul, mais amor!
Interpretações do Teco:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
202
“Mais” Que Tesouro Abençoado!
“Mais” Quem Trouxe Ameixas?
“Mais” Quando Teremos Asas?
Mais Quartas Taradas Assim! (Tico alega plágio...)
Mais Queijos Tortos Amassados!
Mais Quilos Toráxico-Abdominais!
Mais Quarentonas Tesudas Ajudando!
8. Mais Queimadas Totalmente Abandonadas...
9. “Mais” Que Tablete Azedo!
10. Mais Quebra-cabeças Terminados Antecipadamente!
11. “Mais” Que Tarefa Agradável!
12. Mais Quilometragem Terminada em Amor.
13. Menos queixumes, mais quitutes, mais química.
14. Menos teimosia, mais teatro, mais tâmaras.
15. Menos abalos, mais abraços, mais aplausos.
Depois de 25 minutos de gargalhadas, entre lágrimas de
risos, disse que a amava pela primeira vez:
“Mais Que Te A, Karla Lima! Mais que te adoro. Eu te amo!”
Seguiu-se um longo beijo e 42 testemunhas podem confirmar minha versão dos fatos.
203
“Se você fosse sincera…”
Quando eu era criança, meus pais moraram fora durante
seis meses, período em que vivi com meus avós maternos, alemães. Como foi nessa época que comecei a falar,
acabei desenvolvendo um r meio forte, que carrego até
hoje. Porque me orgulho da ascendência germânica e
porque não tolero ser tomada por algo que não sou,
irrita-me muitíssimo quando alguém pergunta (ou pior,
afirma!) se tenho língua presa. Língua presa é a... Para
mostrar ao interlocutor como ele está errado, há duas
possibilidades: ou explico a história da convivência com
os avós alemães ou, simplesmente, respondo com uma
piada bem ferina, concluindo, com um sorriso: “Tá vendo? Minha língua pode ser tudo, menos presa!...”
A Patricia ignora solenemente as origens de meu sotaque.
Para ela, o que importa é o efeito e não a causa. Há mais de
três anos, semanalmente, ela me pede para repetir: “A Maria
foi comprar bateria na padaria do Moreira.”, “Quarta-feira
vou pra praia com a Beatriz.” ou “Em Araraquara tem araras
verdes que fazem cracracrá ao entardecer.” O pior é que
nem sempre se trata de brincadeira privada.
Imaginem o ridículo da cena: quatro adultos conversam
discretamente num restaurante. Adulto um pede a adulto
204
dois: “Bicho, fala aquilo lá pra elas...” Adulto dois finge
amarrar o sapato e demora a voltar. Adultos três e quatro
se entreolham um pouco desconcertados. Adulto um
insiste: “Ah!, fala, Bicho! É tão bonitinho!…” Adulto dois
emerge das profundezas sob a mesa e fala. Adultos três e
quatro sorriem amarelo. Adulto um solta uma gargalhada
escandalosa. Mesas em torno olham discretamente.
Adulto dois abaixa para amarrar o outro sapato.
Até minha própria mãe deixou de achar isso bonitinho há
uns 30 anos! A questão, portanto, era equilibrar os anseios da Patricia sem pagar os micos decorrentes do teatrinho público.
Resolvi esse dilema no Natal de 2004, ajudada por minha
mãe (promovida a técnica de iluminação), minha irmã
(maquiadora quase profissional) e uma amiga videomaker
(a única ali que sabia o que estava fazendo). Vesti um
chapeuzinho de Papai Noel e registrei em VHS, tão afinadinha quanto possível:
“Se você fosse sincerrra, ô ô ô ô… Aurrrooorrraaa...
Veja só que bom que errra…
Ô ô ô ô… Aurrrooorrraaa!”
205
Troco miúdo
Conforme já está fartamente demonstrado, Patricia e eu
raramente concordamos logo de cara, e o tamanho deste
livro não haveria de ser uma exceção...
“Quantas páginas você acha que o ‘Armário’ vai ter?”
“Ah!, Bicho… pelo menos umas 200, né?”
“Como assim, pelo menos 200?! Eu achei que seriam no
máximo dos máximos umas 120... Como vamos preencher 200 páginas, criatura? Só se a gente usar uma tipologia imensa, espaços duplos em tudo e ainda por cima
inserir páginas em branco para separar os capítulos... Amor,
seja realista!”
“Realismo é a sua praia, não a minha, Bichão!”
Combinamos continuar escrevendo sem nos preocupar.
Quando as histórias tivessem sido contadas, pararíamos, independentemente do número de páginas
alcançado.
Numa segunda-feira chuvosa, enquanto escrevíamos, ela
pulou da cadeira e anunciou, sem nenhum contexto preparatório, que havia tido uma “idéia brilhante”: publicar
alguns de nossos bilhetes. Protestei.
206
“Ei, isso é golpe baixo! E não faz o menor sentido. Você
só quer fazer um livro bem gordo e ganhar a aposta.
Quem vai querer ler nossos bilhetes? E, mesmo que as
pessoas tenham essa curiosidade – do que eu duvido
muito –, como vamos selecionar? Só eu tenho duas pastas cheias, são centenas, fora os seus! Além do mais,
bilhetes são coisas meio íntimas, não sei se quero ficar
expondo nossa vida desse jeito. Está certo que isso tudo
já é uma exposição mesmo, mas, sei lá, é diferente...”
Sem a menor cerimônia, ela me largou falando sozinha,
levantou o queixo, empinou a bunda e saiu pisando duro,
a desaforada! Minutos mais tarde encontrei-a sentada na
cama cercada por montes de papel: brancos e coloridos,
manuscritos e impressos, folhas de caderno e guardanapos de cafeteria, cartões, dobraduras e origamis… três anos
de amor em retalhos de celulose. Ai, que coisa mais liiinda!
Passamos dois dias num delicioso processo de ler, comentar e relembrar as histórias por trás de cada um, e eu não
me rendi à publicação dos tais bilhetes. Apenas, por especial deferência, concordei em divulgar aqueles que provam o esforço em diminuir a-bagunça-dela-de-cada-dia.
Em minha opinião, a questão organizacional do lar foi a
mais alta e larga barreira a ser transposta. A Karla com K
tem muita dificuldade em enxergar a realidade sob ângulos distintos. Credito essa deficiência ao oftalmologista
que realizou a cirurgia de correção dos dois graus e meio
de sua miopia.
Conjecturo: “Nem toda bagunça é desorganizada – a
arrumação depende da lógica, toda lógica tem uma
207
explicação, toda explicação tem fundamento, todo
fundamento é válido, toda validade depende do espaço,
todo espaço tem lugar, em todo lugar sempre cabe mais
uma coisinha...”
Depois de quatro horas de negociações e chantagenzinhas baratas, meu Bicho concordou com a divulgação
dos bilhetes sobre o referido assunto. Seguem a compilação deles e a conclusão dos fatos:
09/04/04
Amore de mi vida,
Você veio pra casa direitinho?
A que horas quer acordar?
Um beijo, e dorme bem, mulher mais amada!
PS: O que sua toalha de rosto está fazendo na varanda há
dois dias? Você colocou lá para ela tomar a fresca e observar a paisagem?
K.
10/04/04
Bicho,
Cheguei direitinho.
Tenho que acordar às 9h estourando!
Agora me diz: onde é que eu iria arrumar uma mulher
tão inteligente e sábia como você?
Garota esperta, eu te amo!
P.
09/03/05
Ai, que saudade!
Meu Deus, que bagunça!
Nossa, como eu te amo!
208
Fui buscar minha placa no dentista. Ele já avisou que as
primeiras noites vão ser desconfortáveis e que tudo vai ficar dolorido por dois ou três dias. Ela é meio grande e me
impede de fechar a boca direito, provavelmente vou roncar... Vai vendo a cena de horror que te espera na cama!
Estou indo dormir cedo, vou acordar às 7h40 de novo e
te chamo.
Parece que o tempo está virando, tem um vento esquisito, espero que tenha chegado bem em casa.
O ossinho do Oliver está lá escondido. Quando eu tirei,
ele não ficou procurando, nem precisei substituir por um
biscoito. Tá vendo, como você acostuma mal os seres viventes a sua volta? Do cachorro a sua mulher...
Eu te amo, te adoro, te infinito, vem deitar logo!
Bjs. E dorme bem!
K.
10/03/05
Bicho,
Estou com medo da cena que me aguarda. Vou entrar no
quarto de costas e pôr os tampões no ouvido. Ok?
Amanhã, quando for me acordar, tire a placa antes, please.
Onde você escondeu o ossinho do Oliver?
Quando eu cheguei, ele ficou me pedindo a guloseima.
Revirei a casa toda e não encontrei. Ele foi dormir revoltado!
Foi você que bagunçou a sala ou foi ele?
Beijos.
Amo você, meu Frankensteinzinho!
P.
24/03/05
Amor,
Olha pra esse escritório e me diz, honestamente: eu mereço?
209
Daí olha pra essa mesa, pro closet, pro seu criado-mudo e
repete a pergunta.
Se você respondeu “não” a duas ou mais questões, toma
providências!
Eu já fiz minha parte e coloquei nas caixas as “fotos do
passado”.
Minha bagunceira amada!
K.
25/03/05
Bicho, bagunça faz parte de um processo, eu chego lá.
Enquanto isso, conto com sua benevolência e solicito clemência.
Amo você, por isso tenho me esforçado bastante. Sei que
os resultados não são satisfatórios, mas vou mudar a estratégia e adotar um novo lema de vida: “O céu é o limite, a organização é meu sonho de consumo e o método é
minha nova moeda.”
Será que será possível?
Será que serei bem-sucedida?
Só sei que sou louca por você!
Saudades muitas.
Amo você.
Me acorde mais cedo. Quem sabe comece hoje mesmo a
comprar um pedacinho do céu?
P.
26/03/05
Amor,
Se a bagunça é parte do processo, acho que o escritório
está indo muito bem! No dia que você “chegar lá”, ao
menos não haverá lixo no chão? Ou foi o Oliver que fez
essa sujeira?
210
Adorei o novo repertório! O set das rainhas ficou lindo, o
som estava terrível, prejudicou vocês. Na segunda entrada melhorou bastante, fui embora antes da terceira, espero que tenha corrido melhor.
Estou te esperando na cama, vem me dar um beijinho.
Amo você.
K.
27/03/05
Bicho,
Foi seu filho postiço que revirou o lixo do escritório!
Quando eu saí, estava tudo limpinho!
O som melhorou bastante e terminamos bem.
São 4h, amanhã tenho uma reunião às 11h. Você poderia
me chamar quando sair, só para ganhar um beijinho, e
depois poderia me ligar às 10h pra me tirar da cama? Eu
mereço?
Eu te amo, meu Bichinho.
PS: Estou esperando o coelhinho da Páscoa com muita
ansiedade, para ganhar ovinhos e dar vááárias trepadinhas, que não precisam ser rapidinhas, mas têm que ser
numerosas.
P.
26/04/05
Amor,
Qual foi o furacão que passou nessa sala? Foi o mesmo
que passou no escritório?
Passei na minha mãe, ela contou tudo a nosso respeito a
meus tios. Depois te falo.
Espero que o ensaio tenha sido bom.
Eu te amo. Dorme bem. Me beija quando chegar.
K.
211
27/04/05
Bicho,
O furacão da sala se formou no Atlântico e o do escritório, no Pacífico.
Aviso aos navegantes: “Está-se formando mais um furacão no Índico! Preparem-se!”
O ensaio foi médio.
Espero que seus tios não tenham te excomungado.
Já vou te beijar, só mais um minutinho.
Amo você.
P.
10/05/05
Amor, que susto ao entrar. Tudo tão arrumado que,
se não fosse o Oliver, eu ia achar que estava na casa
errada!
Muito bom, vidinha, tem quase a aparência de um lar...
Minha mãe manda beijos e diz que está com saudades, a
Karina está animada com o novo projeto.
Estou com uma baita dor de cabeça e meio irritada, deve
ser TPM...
Amor, tô adorando seu método/processo/filosofia de arrumação, viu?
Continue assim, boa menina!
Eu te amo, eu te amo, eu te amo.
Bjs.
K.
11/05/05
É, Bicho...
Unidos, eu e o Oliver chegaremos lá!...
Amanhã vai ter reunião e não ensaio.
212
Vou me programar para almoçarmos juntas.
Amo você, meu “colaçãozinho”!
P.
13/05/05
Vou sair cedo, junto com você.
Me acorde esfregando suas pernocas lisinhas nas minhas.
Não tem show hoje à noite.
Quer tomar um vinho e assistir a um vídeo ou você prefere ir ao cinema?
Vê se não bagunça a casa! Não quero saber de bagunça
por aqui!
Eu te amo, meu Bicho!
PS: Você deixou o cinzeiro sujo em cima da mesa...
P.
17/05/05
Amor,
Dessa vez você se superou!
Me surpreendeu muito. A casa está tão vazia que quase
faz eco. Não sei como dizer isso e espero que você entenda: nossa casinha, nosso lar, nosso ninho está tão arrumado que parece um apartamento-modelo decorado para
venda! Tão limpo e organizado que parece desabitado!
Não tem vida, falta calor humano, falta registro de presença, de existência, de energia. Espero que você esteja
sorrindo dessa ironia e não brava com minha aparente
incongruência. Sim, a bagunça me incomoda; sim, a casa
antes era um misto de albergue e cortiço... mas assim
também já é demais!
Os CDs nas gavetas, a estante com os livros de música
está no lugar ideal e o escritório triplicou de tamanho.
Agora vê se larga bolsa, pastas e cavaquinho aqui na mesa
213
pra ver se eu volto a reconhecer o ambiente...
Pode guardar esse bilhete pra me mostrar no futuro, caso
eu venha a reclamar de novo do excesso de bagunça...
Eu te amo.
Bjs.
K.
Na manhã seguinte, quando acordei, quaaanta diferença! Meu amor tinha encontrado o ponto de equilíbrio
perfeito entre a baderna e o excesso de arrumação. Tinha
feito uma arruaça organizada! Explico: em cada superfície disponível havia um objeto fora de lugar – mas tudo
combinando! Na quina do corredor com a sala, um par
de calças jeans repousava sobre o chão com uma perna
em cada ambiente. Em cada canto da mesa retangular,
um objeto também retangular estava alinhado. Entre um
móvel e outro, um pé de sapato – mas bem centralizado!
As gavetas estavam alternadamente abertas e fechadas,
conforme sua posição no armário... Morri de rir, morri de
amor. Essa mulher não existe. Claro que tive que enfrentar meu próprio bilhete na vez seguinte em que reclamei
da bagunça, mas nem me importei muito. O que são uns
copos usados, umas latas vazias e uns CDs espalhados
comparados à convivência sublime que temos?
Até hoje, mantenho o original desse bilhete na segunda
gaveta de meu criado-mudo, e uma cópia em minha bolsa. Sempre o resgato em situações de perigo iminente.
“Escreveu e não leu, pau comeu – digo: escreveu e me
deu, se f...”
Ressalvo, porém, que meus esforços homéricos para
remodelar a organização dos pertences só foram bemsucedidos porque, durante a reformulação, contei com o
214
auxílio de três mudanças estruturais:
Primeira: pedi a um marceneiro que instalasse uma fechadura na segunda gaveta de meu criado-mudo. Só existem duas chaves – uma é minha, a outra é da Fatinha.
Segunda: na ocasião da reforma, isolamos parte da sala,
construindo duas paredes de gesso. Batizamos o cantinho de muquifo. Lá só é permitida a entrada de pessoas
devidamente autorizadas, e meu Bicho não é uma delas.
Terceira: delimitamos uma sólida linha imaginária que divide o escritório em duas nações. Do lado de cá eu sou a
Rainha, do lado de lá ela é a Imperatriz.
Sem esses subterfúgios, certamente eu estaria fadada ao
fiasco.
215
Você é assim?
A Patricia e seus golpes baixos!... Não que ela se incomode
em perder (longe disso!), mas que ela faz de tudo pra ganhar uma aposta, ah, isso faz! Ainda insistindo no tamanho mínimo do livro, ela sugeriu, na maior cara-de-pau:
“Bicho, e se a gente fizesse um teste?”
“Um pré-teste? De quê? De target, de preço?”
“Não, coração, de gayzice, de sapatice.”
“Mas que embasamento você tem para elaborar um teste assim? Com que objetivo? E quem vai perder tempo
com uma bobagem dessas?”
“Eu não tenho embasamento nenhum, só alguma experiência prática. Não sei se as pessoas vão chegar a uma
conclusão, nem ao menos se elas vão conseguir responder. Mas tentar todo mundo vai, coraçãozinho! Ninguém
resiste a um teste.”
Eu resisto. Se cai em minhas mãos um questionário chamado “Como você se enxerga?”, penso logo “Me olhando no espelho”. A Patricia, ao contrário, não perde uma
oportunidade. Não se intimida nem com assuntos alheios
a sua vida (“Seu filho é hiperativo?”), nem com os temas
que ela já sabe que domina completamente (“Qual sua
habilidade com números?”).
216
Na ginecologista, ela fez um “Você é organizada?” Dá pra
acreditar?! No oftalmologista, preencheu um “O que você
sabe sobre Heráldica e Numismática?”, mesmo nem sabendo o que são essas ciências! Na recepção do dentista
fez o pior de todos: “Você é paranormal?” O resultado foi
positivo e ela começou a ouvir vozes no mesmo instante!
Pensando bem, eu é que não reparei... Todo esse tempo,
achei que ela fosse uma hipocondríaca incurável, mas ela
só freqüentava consultórios atrás de revistas!
Maníaca por médicos, por enfermeiras ou testes, não me
deixei convencer. Concordo que o livro seja de humor,
mas daí a encher lingüiça com um assunto desse (baixíssimo) nível, nem pensar!
217
Purificação
Convencida de que eu não concordaria de jeito nenhum
em incluir testes em nosso livro, a Patricia mudou de argumento.
“E se a gente falasse de cocô? É isso, Bicho! Vamos lá pro
computador escrever sobre cocô. Mandei muito bem agora, hein, coração? Esse capítulo vai ficar demais, todo
mundo adora falar de cocô!”
“Todo mundo é muita gente. Todo mundo quem? Eu não
gosto. Aliás, acho uma humilhação que seres evoluídos
como os humanos ainda precisem defecar. A gente deveria comer o suficiente para sustentar o organismo e mais
nada, não gerar sobras só para não haver dejetos a serem
expelidos. Mas que assunto péssimo!... Imagine as pessoas lendo, descuidadas, rindo – de repente viram a página e levam com um capítulo nojento na cara. Definitivamente, uma idéia repugnante. Só poderia ter vindo de
você ou de minha irmã mesmo. Se testes e fezes forem
suas únicas alternativas para um livro gordo, eu me rendo
à publicação até de nossos mapas astrais!”
O mais triste é que as conversas sobre esse assunto
não são raras. Às vezes, ela anuncia: “Bicho, vou fazer
218
cocozinho, tá?” Não entendo a razão disso. Por que, em
nome de Deus, uma pessoa acha que precisa anunciar
uma coisa dessas?! E eu lá quero saber? Basta avisar que
o banheiro estará fechado por dez minutos – um
comunicado eficiente, curto e discreto. Outras vezes,
desrespeitando meu aviso, ela entra no banheiro do qual
acabei de sair e faz troça: “Coraçãozinho! Como pode
uma mulher tão cheirosa fazer um cocô tão fedorento?
Você tá podrinha! O que a gente comeu ontem? Vem cá,
meu fedozinho mais lindo, me dá um beijo!”
Eu fico constrangida só de ouvir essas coisas, mas ela insiste em aprofundar nossa proximidade excrementícia até
a consumação presencial do fato! Mal me vê entrando
no banheiro, ela se aboleta do lado de fora e tenta me
convencer a destrancar: alega que é a última fronteira da
intimidade, que ama tudo o que vem de mim, que existe
até um caráter romântico em fazer cocô de porta aberta!
Obviamente, enquanto ela está colada à porta eu não
relaxo, e no final ainda tenho de ouvir que demoro muito
mais do que ela no banheiro! Humpf!
Acho que a Patricia tem questões não resolvidas com sua
fase anal, quer dizer, que tipo de pessoa analisa as próprias fezes e sai do banheiro comentando? E não pense que
são observações genéricas (“Puxa, estava com uma dor
de barriga!…”). Trata-se de apreciação analítica mesmo!
Inclui descritivo de coloração, relatório de consistência,
balanço sobre proporção e até, argh!, especulações sobre o cheiro! Tudo com bastante naturalidade e nenhuma noção. Ela se diverte estabelecendo relações entre os
fatos e, devaneando, relembra passagens asquerosas sobre privadas entupidas, descargas quebradas, falta de
219
papel higiênico, e narrativas cômicas (cômicas?!), como
aquela em que defecou sobre um formigueiro e os insetos fizeram das fezes uma ponte para lhe morder o bumbum!
Pronto. Consegui preencher algumas páginas com esse
tema fétido e assim me livrar da ameaça de seus puns
número três. Ela ainda estica a conversa e sugere que
nosso segundo livro seja sobre isso... “Nosso? Seu com
quem, cara pálida?!”
“Meu com quem quiser! Já tenho até o título: Uma Obra
Sobre Obrar – Contos Reunidos. Como você não quer ser
uma das colaboradoras, vou buscar outros parceiros.”
Quem quiser participar desse consistente empreendimento
editorial, mande sua experiência por e-mail ou ligue contando sua história. Deixe a Karla fora disso. Aguardo, ansiosa, seu fax.
220
Não pegue no colo nenhum
humano que você possa carregar
Essa parece daquelas ironias que o mundo nos proporciona. Por falta de um sobrinho, minhas irmãs providenciaram logo sete. Minha irmã do meio teve trigêmeas, quatro anos depois outros gêmeos, perfazendo cinco. A mais
nova tem duas meninas e diz que não pára por aí.
A Karla sempre teve pânico de crianças – ela nunca havia
convivido com nenhuma. Justo, claro e compreensível.
Como minhas sobrinhas são muito apegadas a mim, meu
Bicho não teve muita alternativa senão se adaptar aos
poucos a essa situação inusitada.
O primeiro contato, não fosse trágico, seria cômico:
“Meninas, venham conhecer a Tia Karla. Ela tem a língua
presa e fala de um jeito muito esquisito. Pede pra ela
falar: ‘O sapo-currurru comeu carrurru em Carruarru.’ Se
ela não conseguir, pede pra ela falar: ‘As arrarras de
Arrarraquarra estão prresas no arrame.’ Ou, ainda: ‘Na
padarria da D. Aurrorra, lá em Madurreirra, não tem
baterria.’”
Em coro:
“Tia Karla, fala isso aí que a Tia Pati falou.”
“Eu tenho cara de palhaça?”
Para não causar polêmicas, intervim:
“A cara não é de palhaça, mas o nariz tá cheio de meleca.”
221
Meu Bicho ainda não tinha muita sensibilidade nem percepção do humor infantil: acabou sem entender a piada
e foi checar a situação da limpeza da narina no espelho
do banheiro.
Refeição servida, todas disputavam um lugar próximo ao
meu. A Karla posicionou-se na cabeceira oposta da extensa mesa. O almoço transcorria pacífico entre guerras
de caroços de azeitona e cascas de uva. Foi quando seu
celular tocou:
“Conceição? Tás boa?
Tá tudo fixe? Que giro!
Estou fora de casa, chamo-te mais tarde.
Muitos beijinhos.
Adeuzinho, rapariga!”
Todas calaram para ouvir a Tia Karla ao telefone. Assim
que ela desligou, uma das meninas:
“Rapariga?”
“Rapariga é a maneira como se costuma falar das moças
em Portugal.”
Sem entender muito bem a explicação, minhas sobrinhas concluíram que o apelido da Tia Karla era rapariga.
O apelido pegou em função das rimas férteis que o codinome proporciona: rapariga, cabeça de espiga. Rapariga,
bumbum de formiga. Rapariga, focinho de lombriga. Rapariga tá com pum na barriga.
A mais sensível de minhas sobrinhas trigêmeas é ligeiramente avessa a brincadeiras fúteis. Percebendo a Tia
Karla levemente deslocada, dirigiu-se a ela e se sentou
em seu colo, oferecendo sua compaixão diante de tamanho constrangimento.
“Tirem essa criança do meu colo, tirem do meu colo.”
Bastou. Todas, achando a maior graça, pularam no colo
222
da Rapariga. Sabendo de seu real pânico, corri em seu
socorro.
Um ano depois desse episódio, a Rapariga lê histórias,
brinca de palavras cruzadas, ensina o significado de palavras como aristocracia, onomatopéia e circunspecção de
maneira tão didática quanto inteligível. Pena nossos encontros não serem tão freqüentes como desejamos!
Completamente adaptada a crianças de três a seis anos,
hoje meu Bicho se especializa na fase de zero a três. Com
a chegada da nova leva, ela está desenvolvendo outras
habilidades. Há seis meses, após um almoço em família,
encontravam-se no sofá a Rapariga e minha sobrinha de
um ano. Lado a lado, a Karla tentava entretê-la com o
fundo de uma caixa de quebra-cabeças, onde os modelos
disponíveis estavam expostos:
“Olha, é a Praça Vermelha em Moscou!”
“Co-cou. Co-cou.”
“Estas aqui são as Cataratas do Niágara!”
“Ága, ága.”
Minha irmã viu a cena, sentou-se ao lado das duas e, na
tentativa de otimizar o processo de interação: “Karla, esse
é o Miau! E aquele ali é o Pocotó!”
223
Maravilhas da tecnologia moderna
Em julho de 2003, escrevi um longo e-mail para uma amiga
que mora em Londres. Como nossa correspondência não
era muito freqüente, cada mensagem era o resultado de
muitos meses de notícias acumuladas. Nosso último contato tinha sido no início daquele ano, por isso precisei de
algum tempo para atualizá-la sobre meu emprego novo,
nossos amigos em comum e, claro, sobre a Patricia.
Imprimi o e-mail para mostrar pra ela – queria que soubesse o que eu andava falando sobre nós para meus amigos.
Naquela sexta-feira, encerrei o expediente precisamente
às 18h30, e caímos na estrada para um weekend romântico fora de São Paulo.
Já íamos bem adiantadas pela estrada quando me lembrei do e-mail. Abri a bolsa toda animadinha para mostrá-lo e paniquei. Não estava lá! Relembrei os momentos
anteriores a minha saída da agência e me dei conta de têlo esquecido na impressora. Oh, não! A impressora era
partilhada por todo o departamento e, àquela altura, minhas mais íntimas declarações de amor deveriam estar
circulando de mão em mão! Eu não me conformava com
um esquecimento daquela gravidade. A Patricia ria sem
parar, não sei se de vergonha, de nervosismo ou simplesmente de minha cara.
224
Telefonei pedindo a ajuda de uma colega que sempre saía
tarde, uma pessoa bem próxima e gay também. Rápida e
discretamente, ela recolheu minhas confissões, guardou,
e ainda mandou um SMS tranqüilizador: “Circulação ao
redor da impressora permaneceu normal, seu e-mail não
foi afixado perto do café nem exibido no quadro de avisos. Um beijo e até segunda.” Ufa!
Naquela época eu trabalhava com Marketing Direto e
era uma apaixonada pelas tecnologias da comunicação.
Achava o máximo que uma empresa pudesse identificar
individualmente seus consumidores, comunicar-se com
eles de maneira cada vez mais relevante e personalizada, com isso fazendo-os se sentirem reconhecidos e valorizados. Esse encantamento me fazia prestar muita
atenção em novos meios, ferramentas, conteúdos e formatos.
Pouco depois, ainda não completamente refeita do episódio, chegamos ao primeiro pedágio da estrada. Na lateral da cabine, uma plaquinha luminosa nos cumprimentava, toda simpática: “Boa noite, Patricia.”
Eu estava encantada com a tecnologia por trás daquilo, e
nem me passou pela cabeça que poderia ser mera coincidência entre os nomes:
“Nossa, que coisa muito legal, que incrível!”
“O que, Bicho?”
“A concessionária da estrada cumprimentar os motoristas um a um! Você não viu? Na cabine do pedágio tinha
um boa-noite com seu nome!”
“Ah, claro! Impressionante mesmo, Bicho! Só fico pensando no luminoso dizendo ‘Bom dia, Cooperativa de Táxi
XPTO – Qualidade, Segurança e Pontualidade’ ou, então,
225
‘Boa tarde, Viação Intermunicipal e Interestadual de Vila
dos Cachorrinhos!’”
Só quando ela não resistiu mais e caiu numa sonora gargalhada foi que eu me dei conta do tamanho da bobagem que tinha acabado de dizer. Acreditando numa megaultra-supersofisticada tecnologia, ainda insistia em me
explicar: “Mas não seria muito interessante se fosse possível? Imagine se existisse, como seria sen-sa-cio-nal!”
226
Alerta aos desavisados
Por trás da Karla com K segura, convicta e sagaz existe
um bicho cheio de tremores espasmódicos, gritinhos histéricos e fricotes descontrolados. Seu lado oculto vem à
tona com pequenos estímulos: um mugido bovino fora
de hora é capaz de desencadear um ataque epilético, um
inocente besouro em singelo passeio vespertino provoca
frenéticos movimentos como se ela pisasse sobre brasas
com os pés descalços.
Como essa característica comportamental beira a psicopatia caracterizada por falta de controle sobre atos e emoções, a Karla, assim que tem oportunidade, informa a
todos os conhecidos e desconhecidos sobre sua impossibilidade de lidar com o inusitado. Traduzindo: ela não pode
assustar-se, nem sentir cócegas.
Já ocorreram alguns casos em que tanto a vítima quanto
o agressor sofreram danos físicos em decorrência do distúrbio. Não sei precisar quem nasceu primeiro: o ovo ou a
galinha, nem quem de vítima passou a agressor ou de
agressor a vítima.
Numa disputa juvenil pela posse de um determinado papel, Karla Lima trincou duas costelas de seu coleguinha.
227
Ela balançava o sulfite suspenso por seus já longos braços
fora do alcance do baixo rapaz. Sentindo que suas chances eram mínimas, ele resolveu roubar no jogo: com seus
dois indicadores rijos e mal-intencionados, Robertinho
cutucou, simultaneamente, o fígado de um lado e o baço
do outro. Pra quê! Um milésimo de segundo após o ato
ilícito, o desavisado encontrava-se abraçado a si mesmo
rolando no chão.
Massagear os pés de meu Bicho requer uma técnica que
vai além do deslizamento, malaxação e tapotagem. Três
premissas são fundamentais para enfrentar o ousado ato:
espírito aventureiro, bravura e muito queixo. Acima de
tudo, o maxilar deve ser inabalável e resistente a toda
sorte de pontapés.
Para evitar contratempos no lar, antes de entrar em qualquer cômodo onde meu Bicho se encontra, eu anuncio
minha chegada pisando duro, se estou calçada – nestas
circunstâncias, os vizinhos do andar de baixo sempre sabem por onde eu ando –, ou assoviando, se descalça.
Prevenir é melhor que acudir.
Solidária com patologistas de plantão, descrevo alguns
episódios pertinentes ao assunto. Creio que meus relatos
contribuirão para o avanço da ciência, seja embasando
teses de mestrado ou, simplesmente, entretendo os estudiosos nas horas vagas.
Havia dois dias que a Karla tinha-me presenteado com a
chave de sua casa na Lapa. Cheguei toda animada, e logo
percebi que ela já me aguardava ao som ensurdecedor de
uma banda barulhenta ao extremo. Ao abrir o portão, fui
228
recepcionada pela Aretha, com pulos e lambidas pra lá
de úmidas e empolgadas. Dei atenção suficiente até que
a cadela matasse sua feroz saudade. Como a porta estava aberta, entrei na sala: “Oi, cheguei!” Coloquei minha
pequena bagagem sobre o sofá, enquanto sua voz se sobrepunha ao potente vocalista da banda. Como meu
manifesto de chegada não fez a menor diferença em sua
vida naquele instante, segui em sua direção. Ela se virou e
gritou, digo, berrou.
Não fossem o chacoalhar frenético dos braços, os olhos
esbugalhados e a boca escancarada, eu teria pensado:
“Nossa, como ela fica feliz quando me vê!” As pernas de
meu Bicho amoleceram e ela se abandonou no chão, cobrindo seu rosto com as mãos. Tremia e chorava descontroladamente. Parecia não haver ar no planeta tamanha a
força que ela fazia para inspirar. Após 15 minutos, ela se
recompôs:
“Que puta susto você me deu!”
Não havia presenciado nada parecido em minha vida e,
apesar de estar ciente dessa faceta de meu Bicho, em
minha defesa só pude dizer:
“Que puta susto VOCÊ me deu!”
Trinta de janeiro de 2003, aniversário de 32 anos da Karla.
O primeiro em que eu figurava na lista de convidados.
Chamei alguns amigos próximos, porém desavisados, para
participar da festa.
Estávamos arrumando a mesa para acender as velinhas
quando Charles chegou – aquele meu amigo, namorado
do Antônio Carlos, noivo da Geni. Querendo fazer graça,
talvez por conta do atraso, ele chegou sorrateiro, se
posicionou atrás da Karla e cutucou suas costelas. Mais
229
uma vez: Pra quê! Um milésimo de segundo após a
surpresa, encontravam-se no chão várias mesas, algumas
cadeiras e diversos convidados. O bolo foi poupado e não
houve ferimentos graves. Muito mais sorte que juízo!
Naquele mesmo ano, num mês de que não me lembro,
fomos ao cinema assistir a um filme japonês, chinês, coreano, sei lá! A protagonista fazia xixi quando gozava, e
gozava o tempo todo! O líquido escorria pelo meio-fio e
se juntava à água de um riacho onde havia uma ponte
vermelha, roxa, cor-de-abóbora, sei lá! Não estou muito
segura se o enredo era esse mesmo, mas esse é meu registro, e ponto. Xixi gozado amarelando o rio da ponte
colorida que não caiu.
Não sabemos qual foi o fim, mas provavelmente todos os
peixes ficaram boiando por excesso de uréia na água. Saímos do cinema quando o filme deu uma guinada e os
golpes inspirados no Bruce Lee dominaram a tela. Como
escatologia se associa a artes marciais, só o diretor pode
explicar. Responsável pela “brilhante” sugestão, meu
Bicho, assim que chegamos ao carro, tentou redimir-se:
“Eu te devo uma, pode cobrar.”
Tentei negociar o mico do filme oriental por algumas
fantasias sexuais, mas não rolou. Segundo ela, eu poderia
escolher um filme que não fosse seu estilo para assistirmos
juntas, e nada mais. A Karla adora cinema europeu, detesta
filme chavão e obviamente foge dos suspenses e passa
longe dos de terror. Dois anos depois, ao ver um outdoor
anunciando o filme “Constantine”:
“Bicho, vamos ver!”
“De jeito nenhum! Lembra daquele trailer que me fez
perder a respiração?”
230
“Lembro. Era o trailer desse filme?”
“Lógico que era!”
“Era?”
“Era!”
Após ler uma crítica favorável e ouvir diversos comentários elogiosos sobre a atuação, a direção e os efeitos especiais, a Karla resolveu saldar sua dívida antiga. Eu nem
me lembrava da pendência quando ela propôs:
“Sabe aquela dívida do filme japonês?”
“Dívida? Filme japonês?”
“É, vidinha, aquele filme que eu sugeri e nós abandonamos no meio.”
“Ah, sei, sei! O do xixi venenoso. Você me deve uma!”
“Então, eu vou assistir ‘Constantine’ com você.”
“‘Constantine?’”
“Vida, aquele do outdoor!”
“Nossa, Bichão! Jura?”
“Juro. Mas tem uma condição: você não pode me obrigar a ouvir o filme. A sonoplastia potencializa o susto.
E tem mais: nas cenas pré-ataque vou fechar os olhos
também. E outra: você está proibida de ‘mangar d’eu’.”
“Combinado.”
Fomos. Era um dia de semana e a sala estava com 51,53%
de ocupação: em nossa fila, um casal ao lado da Karla e
ninguém do meu. Transcorridos alguns minutos, ela começava a ganhar confiança, destampando os ouvidos nas
cenas menos perigosas. Mais alguns e ela permanecia
apenas com as mãos travadas nos braços da poltrona, e
só fechava os olhos nas partes críticas, mantendo os ouvidos livres.
Com o controle da situação literalmente em suas mãos,
ela relaxou um pouco mais, soltando um braço da cadeira
231
e pegando em minha coxa. Eu estava num misto esquisito
de apreensão e excitação: apreensiva com a possibilidade
de ela surtar a qualquer instante e excitada com sua mão
apertando vigorosamente minha coxa.
Do nada, a filha da puta da assombração em forma de
barata, abelha, mosquito, sei lá, tomou conta da tela. De
novo, novamente, outra vez: Pra quê! Um milésimo de
segundo após o ataque, meu Bicho foi parar no chão,
como um muçulmano que cumpre seus rituais com afinco. A diferença foi o choro, a tremedeira e o ataque violento de falta de ar.
Eu e o casal ao lado dela nos assustamos mais que qualquer um naquela sala. Depois que eles entenderam que
se tratava de uma anomalia comportamental, prestavam
mais atenção às reações da Karla ao ver o filme do que à
própria película. Com certeza eles se divertiram mais com
a comédia do que com o suspense.
A mim restou a culpa. A ela, 15 minutos de fama.
Quinze minutos de fama? Isso não é nada comparado
aos 25 minutos de estrelato que protagonizei na história
a seguir.
Em Portugal, os caixas automáticos para saque são, muitas
vezes, meros buracos nas paredes externas dos edifícios.
A 1,20 m da calçada, incrustado na fachada de um prédio,
fica o equipamento – não é um cubículo fechado, não
tem porta. Um Joaquim vem caminhando, pára, insere o
cartão, pega o dinheiro e continua andando, durante o
dia ou à noite, com a mesma tranqüilidade. Admirei-me
daquilo durante todo o tempo em que vivi em Lisboa.
Embora essa operação ao ar livre seja muito inconveniente
232
na estação das chuvas, ela pressupõe uma segurança
pública invejável e impensável para nós. A falta de privacidade, porém, sempre me incomodou – e lá interessa
pro Miguel atrás de mim quanto eu estou sacando?
Um dia, parei para usar o caixa de um movimentado café
perto de meu trabalho. Nunca me habituei a lidar com
dinheiro em público, no meio da rua, de modo que sempre ficava meio tensa com a situação. Para ajudar, naquela sexta-feira eu carregava um guarda-chuva, uma pasta
cheia de layouts e minha bolsa. Mal a portinhola cuspiu
as notas, senti uma pressão na costela esquerda. Tive cócegas, mas não olhei para o lado, petrifiquei-me na certeza de haver um revólver encostado em mim. Gritei, minhas pernas amoleceram e eu desabei no chão já chorando, enquanto os layouts deslizavam pra fora da pasta e o
guarda-chuva voava pra longe. Formou-se uma pequena
multidão murmurante (“Ê-pá! Mas o que se passa com a
gaja? Com o caraças, tu viste o que houve?”). O garçom
se agachou a meu lado oferecendo água com açúcar, um
rapaz saiu recolhendo meus anúncios, eu batia os dentes
e não conseguia respirar. Quando recobrei a consciência
e a visão, não gostei nada do que vi: a culpada por aquilo
tudo era só uma colega de trabalho. Mãos sobre o rosto,
morrendo de constrangimento, ela só queria desaparecer
dali. Antes tivesse ido embora, mas não, deixou-se estar,
xingando todos os imigrantes da ex-colônia de exibidos,
escandalosos e rebentos de mães promíscuas. Apesar de
considerarem perfeitamente aceitável o escarro público,
hábito que abrange sexagenárias de coque e unhas impecáveis, distintos senhores e executivas de tailleur e bico
fino, os portugueses são discretos. Orgulham-se de não
fazer em público nada que chame a atenção, odeiam ter
233
holofotes e olhos voltados para si. Depois de expô-la a
tamanho vexame, a D. Conceição nunca voltou a falar
comigo...
No fim dessa novela luso-brasileira, ganhei uma inimiga e
o garçom ainda me cobrou 150 escudos pela água com
açúcar!
Mas faniquitos involuntários não resultam apenas em inimizades e prejuízos financeiros. Na verdade, podem até
poupar algum dinheiro.
Uma vez, eu estava presa num congestionamento monstruoso. Recém-chegada da Bahia, curtia ainda um estado
contemplativo: o céu azul é mais importante que o trânsito, o sol tem mais valor que o combustível que você desperdiça ali parado, e o carnaval está quase chegando.
Não estressa, meu rei!
Ouvindo música suave, com uma revista aberta no colo e
fumando tranqüilamente, eu era a pata ideal para um
ladrãozinho de ocasião. O rapaz se aproximou do carro,
inclinou-se na janela e ameaçou: “Aê, na moral, passa
tudo, não buzina e não acelera. Vai, rápido, senão eu te
furo aqui mesmo!”
Comecei a tremer e a suar, praticamente desfalecendo ao
volante:
“Moço, eu vou desmaiar, não posso levar susto… Ai, meu
Deus, tô passando mal, não sinto as pernas!...”
Indignado com minha reação e frustrado por não levar
nada, o assaltante foi embora me dando a maior dura:
“Ô, calma aí, dona! Segura tua onda aí… Tá loco, cê é
doente? Sai fora, maluca, vai se tratá!”
234
Explicação, conclusão, resultado e apêndice
Prolixidade: qualidade do prolixo.
Prolixo: muito longo ou difuso; superabundante, excessivo, demasiado.
Dislexia: distúrbio ou transtorno de aprendizagem na área
de leitura, escrita e soletração.
Disléxico: relativo a, ou que sofre de dislexia.
Eu sou prolixa porque sou disléxica e só escorrego porque
minha memória é manca.
Explicação: poucos percebem minha comprovada e assumida
dislexia porque fujo das palavras perigosas e traiçoeiras como
gato foge do banho e o vampiro foge da cruz.
Não consigo pronunciar lagarto, mendigo, murcha, bola
de gude e tantas outras. Para não passar por “inguinorante”, eu as evito. No açougue, em vez de dizer “Um
quilo de largarto, por favor!”, eu peço: “Por favor, eu
gostaria de um quilo daquela carne de boi que fica entre
a chã-de-dentro e a chã-de-fora, excelente para assar.”
Brincando com minhas sobrinhas eu tenho duas opções:
“Quem quer brincar com aquelas bolinhas pequenininhas,
coloridinhas, lisinhas, de vidro?” Ou “Quem quer jogar
bola de gule?”
235
Conclusão: para evitar as palavras impronunciáveis, sou
obrigada a dar uma grande volta, transformando uma
frase simples num longa-metragem.
Resultado: prolixidade.
Apêndice: algumas vezes a técnica falha e acabo escorregando, digo coisas que soam estranhas, mas a culpa é do
lapso de memória! Eventualmente, escapam-me as palavras proibidas.
236
Esquisitices de duas normais
Pessoas normais também têm lá suas esquisitices. Para
provar essa teoria, organizamos uma lista segmentada
por tópicos específicos, na qual a excentricidade de cada
uma, inversamente proporcional à da outra, pode ser
demonstrada.
Quesito: características gastronômicas.
Karla Lima: Nunca como salada em dia de chuva.
Pya Pêra: Adoro figo em calda com bacon e salame com
doce de leite.
Quesito: lateralidade.
K. L.: Apesar de ser destra, opero o mouse com a mão
esquerda para exercitar o outro lado do cérebro.
P. P.: Uso a mão de lá para coçar o cotovelo de cá, e viceversa.
Quesito: condução de veículos de terceiros.
K. L.: Estranho o banco, o acelerador, o câmbio, a embreagem, os retrovisores e principalmente os freios. Após 200
metros fico tonta e enjoada, resmungo, bufo e reviro os
olhinhos.
P. P.: Dirijo qualquer veículo sem olhar para a frente
enquanto falo ao celular, ajeito o espelho, anoto um
237
recado, dou um gole na Coca-Cola, mudo a marcha e
acendo um cigarro. Ignoro as buzinas alheias.
Quesito: manias à mesa.
K. L.: Quando estou com fome, como qualquer coisa, independentemente de temperatura e estado de conservação.
P. P.: Para comer, equilíbrio e companhia são fundamentais – nunca sozinha, compenso o sal com alguma coisa
doce e monto meu prato de forma que tudo acabe ao
mesmo tempo. Nunca dá certo, e invariavelmente tenho
que colocar um pouco mais disto ou daquilo.
Quesito: pudor.
K. L.: Despudorada, perambulo pelada pela casa.
P. P.: Desesperada, saio fechando as persianas.
Quesito: multifuncionalidade.
K. L.: Ou assovio ou chupo cana.
P. P.: Assovio, chupo cana e passo fio dental ao mesmo
tempo.
Quesito: excentricidade.
K. L.: Simetria que beira o TOC.
P. P.: Ando pela casa com um pé de meia e outro sem, lavo
uma mão e não molho a outra.
Quesito: método.
K. L.: Só começo uma atividade quando ponho fim à anterior.
P. P.: Começo 12 atividades e, mesmo sem concluir nenhuma, parto em busca de novas.
238
Quesito: organização.
K. L.: Todo pêlo e fio de cabelo têm seu devido lugar.
P. P.: Enquanto não defino a melhor localização, vario a
estadia dos pêlos entre a segunda gaveta do criado-mudo
e a bancada do escritório.
Quesito: generosidade.
K. L.: Economizo palavras ocas.
P. P.: Adoro jogar conversa fora.
239
Perguntas de Karla, respostas de Pya
Nunca entendi as pessoas que acordam de mau humor.
Por mais difícil que seja sair da cama, um dia cheio de
possibilidades nos espera lá fora, coisas incríveis podem
acontecer... E antes que qualquer uma delas realmente
aconteça uma pessoa já está de mal com a vida! Como
pode? Quando nos conhecemos, a Patricia era assim. Sua
rabugice matutina me indignava um pouco, mas com o
tempo passei a achar até uma certa graça naquilo e, por
fim, ela mudou tanto que, hoje em dia, tenho que pedir
que ela tagarele um pouco menos!
No começo, tinha outra coisa nela que eu não compreendia:
a mania de perguntar, sem contexto específico nem razão
aparente. “O que você está pensando?” Eu ficava muito desconfortável com aquilo. Achava estranhíssimo, me sentia invadida por uma bisbilhotice sem cabimento. Com a convivência, ela parou de perguntar e eu, quando me lembro, partilho
algumas bobagens que vagueiam por minha cabeça.
Entre os esforços de adaptação que ambas fazemos e a
tolerância da outra em relação às diferenças, uma querela
permanece: a Patricia nunca guarda o que tira do lugar,
retarda tanto quanto pode a arrumação das coisas e
arranja resposta para tudo.
240
Minhas reações a isso variam. Às vezes dou risada de tanta cara-de-pau, às vezes não vejo graça nenhuma e fico
de marcação cerrada até que ela faça e, às vezes, eu bufo
e resolvo pessoalmente.
Quando a questiono com perguntas diretas, ainda que
capciosas, obtenho respostas procrastinadoras, ainda que
amorosas. Observe os exemplos a seguir e me responda,
sinceramente: é muito amor, não é não?
“Vida, quando você vai limpar o escritório?”
“Que dia é hoje?”
“Nossa, amor, seu carro está tão limpinho!… O que aconteceu?”
“Choveu?!”
“Amor, o que a luz do quarto está fazendo acesa?”
“Iluminando a cama, ué!”
“Vidinha, você sabia que tem um pé de tênis seu na sala e
o outro pé do mesmo par na cozinha? O que aconteceu?”
“Eu sei. Eles brigaram.”
“Vida, você não vai sair do telefone?”
“De qual? Do fixo? Que dia é hoje?”
“Nossa, amor! Por que você comprou esta bota? Que
tamanho de salto é este?”
“É meu esforço pra tirar seus seios de minha boca.”
“Amor, seu carro tá parecendo um chiqueiro. O que acontece?”
“É tudo culpa desse monte de lixo, ué!”
241
“Vida, cadê meu isqueiro?”
“Que dia foi ontem?”
“Vidinha, quando você vai trocar essa lâmpada queimada?”
“Que dia é hoje?”
“Amor, você está comendo pizza de bacon com geléia de
framboesa?!”
“Pois é... Acabou o figo em calda...”
“Amor, põe a mão na boca pra tossir. Você sabia que é
muito feio tossir assim?”
“Escapou, eu estava com a mão ocupada.”
“Ocupada com o quê?”
“Segurando a outra.”
“Vida, você nunca dá descarga quando faz xixi. O que
acontece?”
“Estou ajudando a salvar o planeta.”
“Vidinha, o que o fio dental usado está fazendo em cima
da pia?”
“Companhia para a tampa da pasta que eu deixei cair no
ralo.”
“Amor, você não vai tomar banho?”
“Que dia é hoje?”
“Amor, que dia você vai cortar seu cabelo?”
“Em que lua nós estamos?”
“Vidinha, arroz, feijão, macarrão e banana, como é que
pode?!”
242
“É mesmo, Bicho, tá faltando a mistura!”
“Amor, por que você nunca fecha a tampa da garrafa
térmica?”
“Pra facilitar sua vida, meu Bicho.”
“Amor, o que duas chaves de fenda estão fazendo embaixo da cama?”
“Fofocando?…”
“Vida, quando você vai devolver o filme na locadora?”
“Que dia é hoje?”
“Amor, o que você está fazendo com a mão aí?”
“Carinho...”
“Amor, você não vem dormir?”
“Só mais umas horinhas...”
“Amor, por que você sempre volta do supermercado com
tantos itens supérfluos?”
“Su-o quê? Não, Bicho, é lan-ça-men-to. Não é ‘su...’ isso
aí.”
“Vida, hoje é dia 3 de março, sexta-feira. Quando você
vai arrumar esta bagunça que você já prometeu arrumar
três vezes?”
“Que horas são?”
243
É o fim!
Noventa dias depois de termos começado a escrever o
“Armário sem Portas”, debatíamos Patricia e eu como
haveríamos de terminá-lo. Estávamos à beira de uma depressão pós-parto. Durante esses dois meses nós nos divertimos como nunca: consumimos centenas de litros de
café e Coca Light, estreitamos ainda mais nossos vínculos, rimos de nos fartar, vivemos momentos incríveis de
ternura, conhecemos pessoas, aprendemos muitíssimo –
enfim, construímos juntas uma obra! E eis que era chegada a hora de terminar.
“Já sei, Bicho, a gente termina com aqueles seus textos
do blog! A gente podia fazer mais uma parte, só para
eles. Que tal? Pelo menos mais gente iria ler!”
“De jeito nenhum! Em primeiro lugar, não tem pertinência,
o livro é cômico e leve, meus textos são meio deprê. Além
do mais, não sei se tanta gente assim vai ler o ‘Armário’...
Olha que meu blog já tem mais de 73 hits, tá?”
“Nossa, Bichão! Tuuudo isso? Mas que coisa, hein? Mais
de 73 hits em menos de cinco meses – tenho certeza de
que deve ser um recorde!”
246
Suspeitei que ela estava mangando de mim.
“Ah!, vai ser tão ruim não ter mais o livro pra escrever,
né?”
Ficava uma tentando consolar a outra, depois a outra consolava a uma, e nada de passar a tal saudade antecipada
que, verdade seja dita, já nos rondava desde a conclusão
dos primeiros capítulos de “Um pouco de um tudo”. Como
seria a vida depois disso? Entre celebrar o que conquistamos até então e planejar os projetos seguintes, ela filosofava:
“Pois é, Bicho! Agora que a gente já escreveu um livro, só
falta fazer uma árvore e plantar um filho, né?”
Deixei passar sem corrigir a dislexia contaminando o ditado: “É verdade. E, por falar em plantar filhos, e se a gente
fosse para o quarto e fizesse mais umas tentativas? Estou
sentindo que hoje vai dar certo...”
Durante algumas horas nos dedicamos com afinco, mas
alguma coisa nós estamos fazendo errado, pois mais uma
vez não deu certo.
Ainda faltava a terceira missão da vida: “Já sei. Enquanto
a gente continua tentando o filho, vamos cuidar das árvores. E, pra não deixar brecha para o azar, além de umas
mudas, vamos plantar também umas surdas e cegas, que
tal?”
247
O mundo dá voltas e os conceitos giram
Parece-nos óbvio que os padrões e princípios de uma
pessoa resultam de vários fatores, tais como contexto
histórico, lugar e época em que vive, ambiente familiar,
aprendizado formal e informal, experiências diversas. Uma
breve vista d’olhos pela História é suficiente para mostrar
que os parâmetros oscilam bastante, e que noções de
certo e errado são fluidas e temporais. Não existe juízo de
valor intrínseco ao ser humano: o que é escandaloso hoje
pode ter sido moralmente aceitável ontem; uma proibição aqui pode não fazer sentido em outro lugar; o que
causa estranheza a mim pode parecer lógico e natural
para você. Portanto, quem há de determinar um certo
definitivo? Quem se arrisca a definir o que é indiscutivelmente errado? Nenhuma alma que se pretenda esclarecida, nós supomos.
É por essa razão que, para nós, tolerância é sinal de inteligência. Não é o caso de ter a cabeça tão aberta que
nada se segure lá dentro, mas é o caso de analisar criticamente o mundo ao redor, perguntar-se “por quê?” e “por
que não?” e querer verdadeiramente ouvir a opinião do
outro. Nós, inclusive, adoraríamos conhecer a sua.
250
romântico, é poder adotar uma criança conjuntamente, é
ser herdeiro(a) automático(a) sem que haja a necessidade
prévia de testá-lo(a) como tal, é poder somar rendas para
financiar a aquisição de um imóvel, é incluir o(a) parceiro(a)
no plano de saúde sem ter que declará-lo(a) como
dependente em seu Imposto de Renda, é participar dos
programas oficiais de apoio à família, é autorizar
procedimentos cirúrgicos de risco independentemente da
posição dos familiares, é receber aposentadoria em caso
de morte do(a) parceiro(a) sem ter que brigar por isso.
Lutar pelo direito de se unir de papel passado é, acima de
tudo, sair da posição de refém do entendimento de quem
julga sua causa. Como o casamento gay não é reconhecido pela Constituição, e não há suficiente jurisprudência,
a sentença do juiz não será favorável quando considerada a estrita legalidade. Desconsiderada, e com base na
sociedade de fato, poderá ser favorável.
Diferença não deveria significar desigualdade. Casais heterossexuais diferem uns dos outros em dezenas de aspectos – aliás, apenas os une, justamente, a heterossexualidade –, nem por isso são desiguais perante a lei.
Enquanto todas as limitações e impossibilidades ficarem
justificadas legalmente pela inexistência da figura jurídica
do casal gay, não adianta a comunidade GLS brigar pelo
direito ao casamento. O primeiro passo é reformular o
texto constitucional, de maneira que as uniões entre homossexuais sejam equiparadas às heterossexuais – com
esse nome ou outro qualquer. Pense nisso nas próximas
eleições legislativas.
251
Partindo dessa origem, achamos contraproducente aplicar o termo casamento para referenciar uniões homossexuais, já que as principais igrejas cristãs condenam esses
relacionamentos. Muito de vez em quando, a Igreja Católica se arrepende de erros do passado e vem a público
se desculpar. Nesse intervalo, que pode levar séculos, falemos de ajuntamento gay, boda gay, parceria gay, tanto
faz. Por que gastar energias com um problema que pode,
simplesmente, ser evitado? Além do mais, não nos interessa aqui debater o direito canônico, e sim o direito civil
em um Estado laico! Enquanto não chega o Pedido de
Perdão especificamente dirigido aos homossexuais, concentremo-nos na questão jurídica.
A Constituição Federal, lei maior do País, à qual todas as
outras estão submetidas, não considera que duas pessoas do mesmo sexo possam ser casadas – simplesmente,
não existe sociedade conjugal composta por duas mulheres ou por dois homens. Explicitamente, no § 3º do artigo
226 da Constituição Federal de 1988 está escrito: “Para
efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,
devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” Mais
adiante, no § 5º, lê-se: “Os direitos e deveres referentes à
sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem
e pela mulher.” Ou seja, uniões gays não são consideradas entidade familiar, a lei não deve facilitar sua conversão em casamento e, em decorrência disso, tudo que diga
respeito a um casal fica restrito às uniões heterossexuais.
Essa situação de clandestinidade gera problemas e
dificuldades de toda espécie. Lutar pelo direito de se unir
de papel passado não é espernear por um momento
252
O malbatizado casamento gay
Este foi o capítulo que mais dificuldades tivemos para
escrever – aliás, o último a ficar pronto. O tema é vasto
e se presta a muitas abordagens, em combinações praticamente infinitas: antropológica, econômica, religiosa,
jurídica, filosófica, moral, política, histórica e cultural,
entre outras.
Foram muitos os questionamentos: um livro que se pretende cômico deve falar dum assunto tão espinhoso?
Por outro lado, podemos ignorar uma questão desse
peso? Será que este texto não vai enfadar o leitor? Mas
sua ausência não poderá irritá-lo mais ainda?
A missão era dura: não entediar quem comprou o livro
para se divertir; não deixar de lado um aspecto importante da vida homossexual; sermos sérias e não chatas, sermos leves, mas não rasas. Ufa!
Isso posto, vamos a ela: a união entre pessoas do mesmo
sexo. Somos contrárias à nomenclatura “casamento” gay.
A palavra casamento deriva de uma instituição que se
iniciou pela Igreja, se transformou em instituto de Direito,
específico para tratar da relação de direito natural: união
de homem e mulher voltada à criação de família pelo
fenômeno da procriação.
253
irrecorrível tem um aspecto muito conveniente. Por
conclusão lógica: se não existe ex-homossexual, é de se
supor que também não existam ex-heterossexuais; donde
se conclui que, se você já não nasceu veadinho ou
sapatinha, está “a salvo”. Que reconfortante!
Obviamente, a questão não é essa. Os ditados não se
aplicam igualmente às três situações porque, ao contrário de se prostituir e cometer crimes, que são comportamentos, ser homossexual é uma condição. Não é atitude,
não é opção; é traço inerente, é característica inata.
É por isso que nessa situação, e não nos exemplos anteriores, pode-se afirmar que, realmente, não existe um “ex”.
Não podem existir ex-gays nem ex-lésbicas pelo simples
fato de que, não sendo um aprendizado nem uma habilidade, a homossexualidade não pode ser alterada. Assim,
independentemente de assumir sua homossexualidade
para si e para os outros, um homossexual é sempre um
homossexual.
Um gay ou lésbica não assumido não deixa de sê-lo, por
muito que durante toda a vida apenas se relacione emocional e fisicamente com pessoas do sexo oposto, que se
case e tenha doze filhos.
O mesmo raciocínio se aplica, naturalmente, aos heterossexuais e bissexuais: você é o que é.
Parece-me que o que importa, verdadeiramente, é abandonar comportamentos prejudiciais a si ou aos outros, e
nunca desistir de viver conforme aquilo que se é. O que
importa, no fundo, é nunca ser um ex-feliz.
254
Ex-publicitária, ex-infeliz
“Não existe ex-criminoso.”
“Uma vez puta, sempre puta.”
São convicções populares que você provavelmente já ouviu mais de uma vez.
Os ex-bandidos podem permanecer honestos por décadas
e, ainda assim, não faltará quem atribua qualquer deslize a
seu passado. Se já tiverem sido fichados ou, pior, se estiveram
presos, então, nem se fala: levou uma multa, atrasou a
entrega do IR, teve um momento de fúria? Em outra pessoa,
uma falha poderia resultar de um dia difícil, de um momento
delicado na vida, mas no cotidiano do ex-criminoso o
destempero é rapidamente atribuído à antiga bandidagem.
Similarmente, uma mulher pode até sair da vida, mas, no
imaginário social, uma certa tendência à prostituição estará sempre presente, seja sob a forma física, seja no
âmbito moral: faltou com a ética, gastou além de suas
possibilidades, envolveu-se num romance dramático?
A interpretação comum está pronta e engatilhada: “Também, o que mais se poderia esperar duma puta?”
No caso dos gays, as sentenças também são definitivas:
“Não existe ex-bicha, não existe ex-lésbica”. Esse veredicto
255
Ser e estar
Esteja você começando por aqui ou lendo estas páginas
já tendo terminado o livro, não tem a menor relevância.
Fundamental é que você vire, desvire e revire.
Propositalmente, esta introdução e os três capítulos a seguir estão de ponta-cabeça.
O motivo de eles estarem assim dispostos é nenhum.
Quando questionadas, porém, alegaremos dinamismo,
originalidade ou, simplesmente, falta de coisa melhor para
fazer.
A localização e a orientação podem até não importar
muito, mas a existência deste papo, sim.
Evidentemente, com meros três textos não temos a pretensão de esgotar o assunto – nem a paciência do leitor,
como diz o ditado. Quisemos apenas registrar nossa visão
sobre alguns aspectos mais sérios da vida homossexual, e
escolhemos os que nos são mais próximos e familiares.
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