Caliban – o outro da história
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Caliban – o outro da história
Caliban – o outro da história Somos os que fomos desfeitos no que éramos, sem jamais chegar a ser o que formos ou quiséramos. Não sabendo quem éramos, quando demorávamos inocentes neles, inscientes de nós, menos sabemos quem seremos1. Uma vez Caliban foi o senhor absoluto desta terra. Mas, hoje, Caliban precisa estudar para vencer na vida. Ainda que não saiba o nome do pai nem do filho e de nenhum espírito santo, Caliban acredita que tornará a ser o soberano novamente; ao menos, quando ele voltar a existir. Caliban é o símbolo do nativo das terras paradisíacas dos papagaios. Por essência, ele representa a imagética do Outro, isto é, a natureza abundante do mundo moderno. Sua abundância, como o próprio termo explica – “ab” (o que nega) e “undante” (o que envolve) –, significa toda a diferença contida em sua realidade fisionômica e cultural, e, por conseguinte, todo o caráter de completude que a sua presença no panorama histórico ocidental implica. Caliban é o Outro, a diferença e a completude2. 1 RIBEIRO, Darcy. Utopia selvagem – saudades da inocência perdida – uma fábula. Rio de Janeiro: Record, 1981, p. 32. 2 Compreendemos que o ano de 1492 assinala o início da era moderna, pela importante descoberta do Outro. Pois, se nessa época os europeus já não ignoravam a existência da África, ou da Índia, ou da China, dos índios da América, no entanto, nada sabiam. A consciência moderna nasce do reconhecimento de que essa diferença – a América – era uma parte essencial ao todo. A partir do encontro com os povos indígenas americanos, o mundo está completo. Neste sentido, afirmará o crítico literário Tzvetan Todorov: “Os homens descobriram a 1 Sua figura histórica surge dos relatos das cartas de viagens dos antigos conquistadores da América, mas é a partir da criação tempestade descrita e de William (1611), Shakespeare, que Caliban conceituada em irá historicamente sua se última perpetuar. como um peça A Assim, canibal, e artisticamente nomeada por Shakespeare como Caliban, a figura do indígena americano é recriada pelo autor inglês na forma de um anagrama. Contudo, aos nossos olhos, o termo anagramático vai mais além que uma charada ou um jogo verbal, ele representa a marca de uma sobrevivência. Passando por todas as adversidades históricas, do preconceito ao extermínio, Caliban é o nosso símbolo maior – aquele que resiste e sobrevive. Nesse âmbito simbólico, então, questões de identidade fazem de Caliban uma expressão legítima para se pensar a história cultural da América Latina. No processo histórico de ocidentalização deste continente, além de representar a figura do Outro, será Caliban, também, o símbolo da rebeldia contra o colonialismo europeu. É ele, pois, quem, na condição de escravo, se rebela contra Próspero, o seu dominador. Na peça teatral, em um momento de tensão entre o colonizador e o colonizado, afirmará Caliban ao seu senhor: “Agora eu sei totalidade de que fazem parte. Até então, formavam uma parte sem todo”. (TODOROV, Tzvetan. A conquista da América – a questão do outro.Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1982, p. 6.) 2 falar, e o meu proveito é poder praguejar. Que a peste o pegue, por me ensinar sua língua!”3 Esta fala do personagem dá-lhe uma dupla face: por um lado, a figura do selvagem, cuja língua nativa era tida como uma cadeia de ruídos e grunhidos pelos colonizadores; por outro, a condição anticolonialista, quando se rebela contra a língua transplantada e imposta a ele. Na peça A tempestade, outro aspecto importante desse personagem encontra-se na caracterização monstruosa de seu corpo. Imagem nada ingênua. Sua forma física o distancia do padrão europeu de beleza e o põe, indubitavelmente, na órbita da estranha raça dos selvagens; isto é, daqueles cujas faces estão longe da imagem e semelhança de Deus. De que corpo e de que voz Caliban precisaria, então, para deixar de representar a figura do monstro nos livros de história moderna? Ou seria mais correto perguntar: de que livro? O caráter contestador desse personagem desvincula-o da imagem conformista e o põe no corpo daquele que se sacrifica para asseverar uma verdade. Ao repudiar a língua do dominador, a praga rogada por ele reflete, por um lado, a condição trágica de sua perda histórica – a cultura e as 3 SHAKESPEARE, William. A tempestade. Trad. Bárbara Heliodora. Rio De Janeiro: Nova Aguilar, 1999, p. 36. 3 terras das quais ele era o senhor absoluto – e, por outro, a idéia de uma fala profética – a visão calibanesca do mundo. Com certeza, sofrimentos e a maldição punições, mas a de Caliban relação entre custou-lhe sofrimento e milagre é o que chamamos de Literatura. E, neste sentido, afirmamos ainda: Caliban é um Louco da Letra. Esta expressão, cunhada pelo filósofo Jacques Rancière, explica a grande aventura que, no caso, ambos, Caliban e a Literatura, se lançam: a busca da verdade de seus corpos. Portanto, fazemos nossas as palavras do filósofo, quando ele diz: “Se a carne é falsidade assim como seus sofrimentos, o espírito é falsidade assim como seus milagres”4. Caliban, quixotescamente, é um louco da letra, na medida em que sacrifica seu corpo em nome de uma verdade: o livro. Mas, por qual livro ele se sacrifica? Diremos: pelo livro de nossa América. A identidade latino-americana está profundamente marcada por valores etnocêntricos, “descoberta”. identidade, Saber ainda que reunir as impostos os suas a ela outros desde elementos aparências suscitem, a sua dessa hoje, imagens de ruína, é saber atestar a verdade de nossas páginas históricas, e saber verificar, também, a autenticidade dos livros que nos contam no mundo. Somos híbridos, mestiços, uma aglutinação de culturas; enfim, somos uma pluralidade de 4 vozes. No entanto, o poderio econômico primeiro mundista e as suas ambições pela hegemonia cultural massacram-nos, povos dependentes, todos os dias. Esta tensão histórica aponta para uma questão existimos? emblemática: Ou, desfigurado apesar daquilo a de América tudo, que Latina somos, acontece em existe? meramente, outro Nós um lugar, eco nas metrópoles dos grandes centros econômicos? Embora Caliban estude para ser alguém busca, na verdade, desenterrar espelhos. na vida, ele Atente-se: este gesto especulativo mescla-se luminoso e triste a um fundo escuro, como expressão da história dos sofrimentos. O ato de desenterrar espelhos imprime a sua inscrição (a dos calibans) no mundo ocidental, e esta inscrição não se dá como marco de um nascimento, senão como momento significativo de uma etapa de decadência. desencavernar A curvatura espelhos de não seu desenha corpo uma ao abaixar imagem para clássica e heróica, senão barroca e grotesca, cujas marcas são: vazio e desejo. Oculto ausente. e enigmático, Caliban tem a aparência quase O que é seu se acentua no fragmento, pois o que nele permanece não é o ideal clássico da busca da perfeição, mas o detalhe singular barroco, o pequeno objeto do saber aninhado 4 nas construções de suas ruínas. Esses pequenos RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete e outros. Rio de Janeiro: Editora 34, 5 objetos são espelhos, uma antiga predileção alegórica, que se manifesta verdade de forma ética e recém-descoberta. história a partir desenterrando. política: Caliban desses espelhos tornar tenta que, visível uma reconstruir sua aos poucos, irá Tal situação – trágica como é – remete-nos a uma passagem do romance de Darcy Ribeiro, intitulado Utopia selvagem. Referimo-nos, especificamente, à passagem quando o antropólogo Darcy, indiretamente, fala pela voz de um personagem: Somos os que fomos desfeitos no que éramos, sem jamais chegar a ser o que formos ou quiséramos. Não sabendo quem éramos quando demorávamos inocentes neles, inscientes de nós, menos sabemos quem seremos5. Como românticas. se vê, não há vagas nem para melancolias Diria, então, o filósofo Walter Benjamin: “Tanta significação, tanta sujeição à morte, porque é a morte que cava mais profundamente a linha dentada de demarcação entre corpo e significação”6. Assim sendo, o Louco da Letra sabe que a letra só é transformada em espírito pelo verbo que ganha carne, isto é, pela realização profética. Paradoxalmente, ao desenterrar o primeiro espelho, Caliban avista sua terra descarnada. A literatura calibanesca nasce 1995, p. 69 RIBEIRO, Darcy. Utopia selvagem – saudades da inocência perdida – uma fábula. Rio de Janeiro: Record, 1981, p. 32. 6 BENJAMIN, Walter. “Alegoria e drama barroco” in:Documentos de cultura. Documentos de barbárie. Trad. Celeste H. M. Ribeiro de Sousa e outros. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 22. 5 6 de uma maldição anti-colonialista, representada na busca de liberdade pelo espírito da terra. Atualmente vivemos em uma, digamos, aldeia de nomes trocados; porém, existiam, antes, aqui, outros conceitos e outras havia expressões. – como concreto, diria Entre Claude fundamentada na a gente primitiva Lévi-Strauss idéia do – desse uma lugar, ciência saber do utilizado. Precisava-se decifrar o enigma da existência, por isso, as espécies animais e vegetais não eram só conhecidas quando se tornavam úteis; mas todas já classificadas úteis porque logo a vida deve ser decifrada. O saber utilizado era a vontade de conhecer pela necessidade de conhecer. Decidia-se que era preciso levar tudo em conta, porque se dava muito valor à formação de uma memória. E, assim, a vida é: em algum momento ou lugar, ela nos reclama por algo que devemos saber; logo, entre os ditos povos primitivos, a ciência do concreto é a certeza de que tudo nessa vida é digno de interesse7. Mas, então, como se deu, no mundo dos chamados povos civilizados, esse processo de descarnação? Partamos, pois, de uma suposição, isto é, de uma imagem literária. 7 Neste sentido, reproduzimos a fala de Lévi-Strauss, quando ele faz-nos ver a existência de um espírito científico entre os povos, ditos primitivos: “...para elaborar as técnicas, muitas vezes longas e complexas, que permitissem cultivar sem terra, ou então sem água, transformar grãos ou raízes tóxicas em alimentos, ou então, ainda, utilizar essa toxidade para a caça, a guerra, o ritual, foi preciso, não duvidamos, uma atitude de espírito verdadeiramente científica, uma curiosidade assídua e sempre desperta, uma vontade de conhecer pelo prazer de conhecer, porque uma pequena fração apenas das observações e das experiências (às quais é preciso supor que tenham sido inspiradas, então, e sobretudo, pelo gosto de saber) poderiam dar resultados 7 Com a aldeia no espelho e este pousado na palma da mão, vê-se, além do rosto de Caliban, também a imagem de uma grande máscara sem olhos. Assim, em parte, assiste-se, extraordinariamente, a uma das primeiras faces do homem - já múltipla em realidades culturais, complexa em mundos simbólicos –, e, em contrapartida, assiste-se, por extensão, a uma imensa enterrando máscara suas encobrindo diferentes de visões, sombras esta desenhando um face, perfil cultural unívoco e etnocêntrico. Máscara sem olhos para as belezas do mundo. Aos poucos, o sonho da máscara cega faz com que a face primitiva e rebelde de Caliban vá deixando de existir. Em princípio, pode parecer-nos que a funcionalidade da máscara colonialista encontrar-se-ia na condição de assimilar uma outridade – a face americana –, de criar fusões, de assumir aglutinações e perdas, e, com isso, de se reformular e de flexibilizar os seus próprios limites e campos canônicos. Mas, com o decorrer do tempo, não é isso o que acontece. A presença da máscara sem olhos representará a memória de uma história cruel, bárbara e inominável. Após o período das sondagens, os efeitos da Conquista efetivarão um processo de descarnação das identidades culturais indígenas. Entre inumeráveis exemplos citemos, apenas, uma passagem, práticos e imediatamente utilizáveis”. (LÉVI-STRAUSS, Claude. Pensamento selvagem. Trad. Maria Celeste 8 relatada pelo Frei Bartolomé de Las Casas, a respeito das barbaridades ocorridas na província da Nicarágua, por volta do ano de 1522: A maior das calamidades que despovoaram essa Província foi a licença dada por esse Governador aos espanhóis, de pedir escravos aos caciques e senhores. Todos os meses obtinham do governador uma licença para cinqüenta escravos que eram requisitados sob ameaça de que, se não os dessem, fariam-nos queimar vivos ou ser devorados pelos cães. E como ordinariamente os índios não têm escravos e é muito quando um cacique tem dois, três ou quatro, eles se dirigiam a seus súditos e tomavam primeiramente os órfãos e, em seguida, a quem tivesse dois filhos pediam um, e a quem tivesse três tomavam dois; e assim o cacique os fornecia no número exigido pelo tirano, com grandes prantos e gritos do povo: pois, ao que parece, os índios amam seus filhos com ternura8. Por não conhecer, historicamente, o nome do pai, nem do filho e de nenhum espírito santo, Caliban pertence ao espaço dos povos oprimidos. Contudo, ainda que tenha sido caçado e queimado vivo, devorado por cães e pisoteado por cavalos, cortado e retalhado por espadas, arrebentado pelos estilhaços do ferro e da pólvora, ou mesmo combalido por doenças infecciosas, Caliban resistiu. Por isso, sob o signo do verbo encarnado, identificamos a formação de uma literatura da Costa e Souza e Almir de Oliveira Aguiar. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 35.) LAS CASAS, Frei Bartolomé de. Brevíssima relação da destruição das Índias. O paraíso destruído. A sangrenta história da conquista da América espanhola. Trad. Heraldo Barbuy.Porto Alegre: L&PM, 1985, p.50. 8 9 calibanesca, cuja realização da maldição traduz sua mais profunda marca. Vale lembrar, neste caso, que o escritor norte-americano Edgar Allan Poe, em seu conto “A máscara da morte rubra”9, efetiva a maldição de Caliban; assim como também, historicamente, o verbo ganha carne pelo agito rebelde dos escravos negros e pelas guerras indígenas. Deveras, cada ação contrária à dominação colonialista representará uma ação calibanesca. Bem, até o momento, resumimos a colonização da América Latina sob a imagem de dois símbolos: Caliban e Máscara Sem Olhos. Cabe esclarecer, contudo, que este segundo elemento simbólico, Máscara Sem Olhos, não se limita, exclusivamente, à extinção dos povos indígenas pela violência. A inexistência do indígena, europeu, objetivo ainda etnocêntrico, se cuja desenhado articula intenção pelo por era um projeto projeto promover a econômico político deculturação indígena através da manipulação ideológica. Desta forma, a história que anuncia a existência do continente americano conta, à sua maneira, o que bem quer e o que mal pensa compreender. O projeto Máscara Sem Olhos significa, 9 Neste conto de Poe, “A máscara da morte rubra”, o príncipe Próspero é morto por uma praga misteriosa, que atinge a todos indistintamente. Ainda que Próspero tente fugir da tal praga, ela o encontra em um baile à fantasia, na figura de um ente mascarado. O conto encerra com a morte do príncipe e a fantasia da morte rubra caída, ao lado do corpo de Próspero, em um dos salões do castelo. (POE, Edigar Allan. “A máscara da morte rubra” in: Ficção completa, poesia & ensaios.Trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997). 10 portanto, a formulação econômica e cultural também do de modelo uma cópia europeu nas política, colônias americanas. Uma passagem curiosa nos oferece o escritor cubano Alejo Carpentier, em seu romance A harpa e a sombra. Tal passagem, em nosso ponto mencionado identidades. de projeto vista, de caracteriza descarnação Referimo-nos ao momento e o de em prenúncio do encarnação de que o narrador- personagem, Cristóvão Colombo, fala de seus sentimentos em relação à descoberta da terra do novo mundo. Diz ele, assim: Havia que descobrir essa terra nova. Mas, ao tentar fazê-lo, me achei diante da perplexidade de quem tem de dar nome a coisas que devem ter nomes, posto que nada que não tenha nome pode ser imaginado, mas esses nomes me eram ignorados e eu não era um novo Adão, escolhido por seu Criador, para dar nome às coisas. Podia inventar palavras, certamente; mas a palavra apenas não mostra a coisa, se a coisa não é conhecida de antes10. O processo de descarnação desdobra-se em um processo de encarnação. O fim da cultura nativa americana implica o transplante da cultura do mundo civilizado para as Américas. Por essas razões, aos nossos olhos, o mundo moderno nasce autoritário e demoníaco; ou seja, criando uma visão 10 O romance A harpa e a sombra discute o valor moral do descobrimento da América, a partir de um julgamento feito ao seu descobridor, Cristóvão Colombo. Dividido em três partes, o autor do romance oferece-nos, na segunda parte, um Colombo assumindo a narração do texto, para contar e, sobretudo, confessar seus verdadeiros sentimentos em relação àqueles momentos tão profundamente revolucionários à história da humanidade. (CARPENTIER, Alejo. A harpa e a sombra.. Trad. Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand, 1987, p. 99). 11 etnocêntrica do mundo sob realidades apocalípticas. signos extermínio, de a tutela Neste de uma sentido, tortura, em racismo e geração de síntese, os autoritarismo formarão a face mais trágica da base política no sistema colonial latino-americano. algumas linhas de Não fronteira obstante, que cabe-nos separam a apontar nossa visão calibanesca desse desolhar da máscara. Reparamos que o conceito de moderno pode, no mínimo, ter dois sentidos. Por um lado, realmente, ele é mesmo o mundo expansionista hegemonia da de é comercial Mas, cultura moderno sobreviver e moderno visão cultural. antagônica conceito da resistir abundância, lucrativa e da relendo criticamente calibanesca, podemos de forma ao diferente. choque negação entre e o Ser Eu e envolvimento. busca a da força entender o moderno é o Outro – A história literária tem narrativas próprias que ilustram esta questão. Por causa delas, podemos apontar os conceitos da dúvida e da dualidade como marcas do moderno. Por exemplo: a dupla Quixote e Sancho representa o fim das idéias absolutas. Esse romance baliza literária: a um novo palavra conceito de profética. verificação Assim, da aparecem obra as narrativas picarescas, tornando visíveis, mimeticamente, os excluídos, os párias e os anti-heróis. 12 Por tudo conceito de isso acreditamos moderno deva que, levar na em América conta Latina, duas o visões políticas, elaboradas a partir de tudo o que foi mencionado acima – a visão ocidentalizante e a visão calibanesca. Por um lado, refletimos uma face copiada do modelo colonializador, mas, por outro, expressamos a face plural de nosso hibridismo étnico. Os povos ibéricos instituíram verdadeiras cruzadas neste continente, a fim de que se pudesse, aqui, instaurar a terra utópica: lucrativa e passiva. Porém, a marca da outridade americana implica realidades diferentes e adversas ao processo de homogeneização colonialista. Em termos de formação da identidade, é preciso compreender que a política de europeização da América Latina relativizou-se com a existência, aqui, de uma pluralidade cultural e, também, com a participação dos movimentos em busca de soberania política e artística. Somos desta forma modernos, porque somos calibanescos; logo, somos o outro da história. Oportunamente, chamamos a atenção, neste instante, para um tipo de personagem que muito vem ajudar na compreensão da identidade latino-americana: o pícaro. Surgido entre os meados do século XVI e XVII, o pícaro foi criado na Espanha e proibida sua circulação nas colônias, porque suas peripécias contrastavam e ridicularizavam os feitos cavaleirescos e a hipocrisia da sociedade burguesa. Uma forma de narrativa que 13 em vez de relatar “as aventuras fantásticas do cavaleiro andante” ou de idealizar “inverossímeis pastores polidamente apaixonados” – como diz o professor Mario Gonzales – , opta por uma narração em primeira pessoa, acerca da vida de um marginalizado em luta pela sobrevivência. Uma análise das narrativas picarescas segue, necessariamente, uma trajetória, cujos passos rastreiam o caminho evolutivo do personagem principal. A este ensaio, propriamente, interessa-nos pouco o estudo valorativo desses textos, senão aproximar a figura do pícaro à de Caliban. No decorrer do tempo, as transformações históricas sofridas pelo pícaro implicam um acompanhamento dos problemas modernos. Por tudo isso, pode-se até falar em neopicaresca, sabendo que não se perde sua marca principal: o sabor aguçado da paródia crítica à sociedade contemporânea. Uma das características principais da narrativa picaresca, além do forte teor realista, é a preferência pelo sujo, o abjeto, o plebeu. Esta preferência contrapõe-se, é claro, a exagerada idealização da vida dos romances de cavaleria e pastoril. Pondo a sociedade sob o ponto de vista do pícaro, este sujeito bastardo, abandonado à sorte, necessitando aguçar a inteligência para sobreviver, sempre espreitado pela fome, ela, a sociedade, é descrita pelo olhar dos deserdados da sorte, pela gente vagabunda. Por tudo isso, 14 tal descrição forma um verdadeiro relato humano, cheio de interesse e vida. O desenho desse aspecto da realidade, mostrado pelas narrativas modernos, picarescas, na medida inaugura em que a linhagem atravessa a dos romances fronteira social palaciana e chega à esfera periférica das classes deserdadas. Ser moderno, pois, é revelar a abundância do mundo; ou seja, mostrar aquilo que nos nega e nos envolve. Moderno é o outro. Não obstante, não nos esqueçamos que esse “outro” pertence ao espaço da exclusão. Ao se estudar a história da América Latina, devemos levar em consideração sua real dualidade. Em um aspecto, tem-se a voz banida do outro; em outro aspecto, tem-se a tradição escritural que os europeus dos séculos XV e XVI trouxeram para cá. Esta tradição nutriase de quatro arquivos: direito, teologia, administração e historiografia. Nos dois primeiros, associados – o direito e a teologia -, estão os fundamentos ideológicos da pretendida superioridade dos europeus, a respeito dos demais povos do mundo. Pela escritura administrativa, o fim das sociedades sem Estado, das leis sem coerção, da palavra verdadeira do chefe à tribo. Por fim, pela escritura historiográfica, a projeção do imaginário europeu nas novas terras descobertas. E, neste caso, referimo-nos aos mitos, às lendas, às 15 quimeras, assuntos do maior interesse para os rastreadores de fortuna e para os caçadores de sonho. Silenciada, a América recebe, então, o nome que não tinha, e vê seus campos abertos às figuras que não existiam. Nasce a Terra da Utopia e, nela, toda uma população de monstrengos: gigantes, macacos que cantam, homens com orelhas que se arrastam pelo chão, outros com cabeças de cães e ainda outros acéfalos, sem contar aqueles cujos rostos encontram-se na altura do ventre e do tórax. Neste sentido, segundo Miguel Rojas Mix, é difícil distinguir entre o que é monstro e o que é homem selvagem; afirma ele: Ambos possuem todos os defeitos que execra a sociedade civilizada, ambos representam a natureza frente à cultura. A monstruosidade não existe mais que com relação a uma ordem estabelecida, por referência a uma cultura. É a identidade do outro11. Na Europa ainda se pensa que, tendo sido criados à imagem e semelhança de Deus, tudo o que se apartar de sua representação será monstruoso. O homem ocidental é o paradigma: ao menos o mais perfeito. Como se pensa que o corpo é reflexo da alma, todo ser “diferente” é considerado daninho ou diabólico. Na Terra da Utopia – terra dos papagaios –, Caliban volta a desenterrar outro espelho e vê o fim do mundo. 16 Descarnada por projetos religiosos e comerciais, a América conheceu a farsa e a violência. A manipulação ideológica e a censura transitam no mesmo espaço em que circulam a aculturação e o genocídio. Cristóvão Colombo pensou a América como o Éden, o Paraíso Terrestre; mas depois sonharam-na diferente. A figura do índio idílico em seu Éden tropical dá lugar à do antropófago no Inferno Verde. Tomados como mercadorias, os valores indígenas sempre oscilaram. Mas, como a utopia sempre foi aqui, afirmaria o professor Darcy Ribeiro, a respeito desses povos explorados e massacrados: Lavados das feridas da exploração, curados dos vexames da opressão, eles se reconstruirão como culturas autênticas para florescer outra vez como civilizações autônomas12. Neste símbolo, sentido, propomos impostas a nós. além também de propormos algumas Caliban reelaborações como nosso conceituais É a dialética de Caliban – assimilar como honra aquilo que o colonialismo considerava como injúria – ser negros, inconfidentes, cimarrones, crioulos, mestiços, latino-americanos. Conforme afirma Roberto Fernández Retamar, em seu condição livro de Caliban Caliban e outros significa ensaios: repensar “Assumir nossa nossa história a 11 ROJAS MIX, Miguel. “Los monstruos: mitos de legitimación de la conquista?” in: América Latina – palavra, literatura e cultura.. Org. Ana Pizarro. SP: Fundação Memorial da América Latina, 1993, p. 127. 12 RIBEIRO, Darcy. América Latina – a pátria grande.RJ: Guanabara, 1986, p.75. 17 partir do lado, outro do ponto de vista do outro protagonista”13. Essas nossas breves palavras buscaram fazer, na medida do possível, uma intelectuais revigora da reflexão América a história a respeito Latina. deste A do nosso natureza continente. papel de calibanesca Sua profecia e, ao mesmo tempo, seu abandono social fazem de nós – calibans – a imagem dúbia dos questões como senhores do a nosso caminhos de nossa destino, que tomamos identidade. como sempre todos, diante Contudo, acreditou de seremos Darcy Ribeiro, como sempre acreditamos todos nós. Paulo César Prazeres Moura Dr. Literatura Comparada U.F.R.J./2001 13 FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. Caliban e outros ensaios. Trad. Maria Elena Matte Hiriart e Emir Sader. São Paulo: Busca Vida, 1988, pp.32-3. 18 BREVE CURRÍCULO PAULO CÉSAR PRAZERES MOURA é ator, diretor e escritor de teatro. Além disso, é mestre e doutor em Letras, na área de Literatura Comparada, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. No magistério, Pedagogia Estado da do atualmente, Fundação Rio de de trabalha Apoio Janeiro, na à na Faculdade Escola cidade de Técnica Campos de do dos Goytacazes. 19