Caliban e Ariel: Uma revisão da oposição de José Enrique Rodó
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Caliban e Ariel: Uma revisão da oposição de José Enrique Rodó
VOLUME II - NÚMERO I CALIBAN E ARIEL: UMA REVISÃO DA OPOSIÇÃO DE JOSÉ ENRIQUE RODÓ Autor: Larissa Peixoto Vale Gomes Resumo: A utilização de literatura para estudo de fenômenos políticos não é algo novo. O descobrimento da América impulsionou Shakespeare a escrever A tempestade. Séculos mais tarde, seus personagens foram utilizados de diversas maneiras na tentativa de compreender eventos políticos: Renan tentou explicar a Comuna de Paris, Rodó e, eventualmente, Retamar, buscavam explicar a sociedade latino-americana que havia se formado e sua evolução cultural e social. O artigo a seguir procurar rever e avaliar Abstract: The use of literature for the study of political phenomena is not something new. When America was found it was the inspiration so that Shakespeare could write The Tempest. Centuries later, his characters were used in various ways in the attempt to understand political events: Renan tried to explain the Paris Commune, Rodó and, eventually, Retamar, wanted to explain the Latin-American society that had formed and its social and cultural evolution. The following article proposes to review and evaluate essas interpretações, comparando América Hispânica e a América Portuguesa e encontrando uma nova maneira de interpretar os personagens de Shakespeare. these interpretations, comparing Hispanic America and Portuguese America and finding a new way to interpret Shakespeare’s characters. Palavras-Chave: : Ariel; cultura política; arte; América Hispânica; Brasil Keywords: Ariel; political culture, art; Hispanic America; Brazil Introdução: colonização e modernização e praticidade para os colonos. Em pouco tempo, várias universidades foram construídas em pontos específicos do continente, já existindo locais de ensino superior no ano de 1538 (HOLANDA, 1995). Apesar do controle da metrópole sobre essas instituições de ensino, o avanço cultural e intelectual foi permitido para os colonos e seus filhos. Como contraponto vemos que, no Brasil, os colonos portugueses observaram a estratégia de adaptação ao ambiente e de necessidades primárias: as terras americanas eram somente para extração de bens naturais, não para povoação. Com essa diretriz, os colonos não se preocuparam em se estabelecer nas terras por mais de alguns anos. Holanda (1995) distingue dois tipos ideais para identificar o colono espanhol e o colono português. Como vimos, o colono A vida na América Latina após o descobrimento foi um processo de adaptação do estilo de vida ibérico às novas terras. A colonização espanhola na América não tinha o mero objetivo de suprir a metrópole com bens que não podiam ser encontrados na Europa. Os espanhóis tinham, como finalidade principal, transferir seu modo de vida para a colônia, criar uma continuação da Espanha no “novo” continente. Para conquistarem as terras encontradas, os colonizadores primeiro construíram suas cidades e estabeleceram seu poder administrativo, para depois se impor sobre os nativos. Os locais para construção foram cuidadosamente escolhidos, levando em conta as condições para expansão, clima e proteção; as cidades foram desenhadas para garantir conforto 102 REVISTA ELETRÔNICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS espanhol era organizado, usando um plano préestabelecido para organização da vida social – o ladrilhador. Os colonos portugueses – o semeador – se mantiveram no litoral, explorando de forma autônoma, apenas adentrando no território quando minas de pedras e metais preciosos foram encontrados; os nativos foram dizimados, escravizados ou catequizados na medida em que eram encontrados; mulheres portuguesas não vieram para o Brasil, impedindo que os colonos formassem famílias. A população brasileira não era mais portuguesa, não era nativa, nem africana: a falta de mulheres brancas e o descaso do português com relações entre raças incitaram altas taxas de miscigenação, mesmo quando a vida social colônia já havia sido estabelecida. comum. Na América espanhola a língua nacional logo se tornou a língua cotidiana, estabelecendo uma ligação entre esses territórios, do que seria o México até a Bacia do Prata. No Brasil, durante muitos anos, prevaleceu a língua-geral, uma mistura de português e tupi-guarani, sendo que o português formal era usado apenas em ocasiões extraordinárias (HOLANDA, 1995). Anderson aponta para a criação de uma população endógena na América espanhola que, ao contrário da população brasileira, viam-se como espanhóis que viviam na América. Os criollos (filhos de espanhóis, nascidos na colônia) eram cidadãos que tinham uma nacionalidade dupla: nascidos na América, não eram escravos nem servos; imposições econômicas e administrativas sobre Benedict Anderson mostra como uma identidade esses descendentes tiveram como conseqüência pode ser forjada baseada em alguns pontos comuns a formulação de uma identidade nacional distinta de um dado grupo em um espaço geográfico. daquela espanhola. A nação é uma criação baseada em fronteiras A teoria de Anderson (1991) procura explicar a geográficas estabelecidas pelos seres humanos formação de identidades nacionais, forjadas para (não pela natureza) e dentro dessas fronteiras que sejam específicas a um povo que não tem nada pressupõem-se a existência de uma comunidade em comum exceto viver dentro das fronteiras que possui história e valores culturais comuns e, delimitadas do Estado-nação. As “comunidades especialmente, um senso de dever em relação a imaginadas” são, portanto, a criação de valores essa comunidade (ANDERSON, 1991). O Tratado que sejam determinados como comuns para que de Tordesilhas definiu quais partes do território exista uma coesão nacional; quando essa coesão americano cabiam à Espanha e a Portugal, não existe, conflitos políticos e/ou guerras civis estabelecendo os limites geográficos onde esses eclodem. A língua, normalmente, é a primeira dois países podiam se expandir. Essa expansão dessas características comuns que devem unir indicava uma transferência de pessoas, estruturas, um povo. No entanto, são vários os lugares que políticas e valores para um território desconhecido convivem pacificamente com mais de uma língua e, mais importante, já povoado. Era necessário (o que não quer dizer que esse tenha sempre que os povos originais fossem exterminados ou sido o caso). Outra característica que pode unir doutrinados, para que se encaixassem no modo uma população nacional é a participação em de vida de seus colonizadores. Dessa forma, algum conflito internacional. A existência de a primeira medida para a formação identitária heróis nacionais, figuras emblemáticas que, desses locais foi o estabelecimento de uma língua colocadas em pedestais, afirma uma tradição, 103 VOLUME II - NÚMERO I uma ascendência comum entre os que vivem no território. Também a formulação de uma arte nacional, criada na língua comum, com fatos e hábitos que sejam reconhecíveis para os nacionais como seus e pelos estrangeiros como não-seus. A América hispano-americana, ao contrário da portuguesa, teve a oportunidade de construir, pouco a pouco, uma identidade nacional, mesmo que fragmentada em diferentes Estados-nação e com conflitos entre indígenas e descendentes de espanhóis que se sustentam até hoje. Foi permitido aos colonos a formação de uma burocracia especializada e de uma elite política e cultural que puderam formular um pensamento político detalhado. De Bolívar a Martí e Che Guevara, a América espanhola teve heróis não só próprios, mas formados de maneira autônoma e espontânea. A urbanização da América espanhola se tornou o ponto central da cultura regional; após o fim da colonização, as cidades absorveram uma grande quantidade de imigrantes, atraindo-os com leis de propriedade e cidadania favoráveis, especialmente na região da Bacia do Prata. As cidades passaram a ser grandes centros cosmopolitas e industrializados, sendo epicentro dos conflitos culturais e políticos gerados pela imigração e modernização entre criollos (elite tradicional) e a nova população urbana. Nelas encontra-se o paradoxo do conservador e do moderno, expressos em diferentes símbolos de identidade coletiva (MITRE, 2003). Entre [o]s primeir[o]s [valores tradicionais] destacase o nacionalismo oligárquico arquitetado pela classe criolla, a qual, ameaçada pela onda migratória, procurará criar mecanismos de integração e de controle social a partir do fortalecimento e difusão de seus próprios valores. Com tal propósito, ela acudirá às suas raízes agrárias para dali extrair os elementos com os quais construir a imagem do ‘ser nacional’. O recurso à história cumprirá então uma importante função legitimadora. (...) No extremo oposto estão as mitologias que, geradas no mesmo espaço, exprimem o desenraizamento dos recémchegados. Pelo seu representativo, referir-nosemos ao aparecimento, neste período, do culto à metrópole, o qual, a partir de imagens da própria cidade cosmopolita, estrutura um discurso que, longe de reivindicar vínculos com uma história concreta, aspira a diluí-la, lançando mão de símbolos eminentemente supranacionais, capazes de ser significativos para as mais diversas tradições. Para que a cidade possa ser apropriada por todos os grupos, ela não deverá identificar-se com o passado de nenhum (MITRE, 2003:110-111). Ariel: um personagem entre a tradição e a modernidade O começo da Escola de Frankfurt e sua crítica à sociedade de massas chamaram a atenção para a vulgarização cultural e política que estava ocorrendo em decorrência da modernização não só latino-americana, mas mundial. Os pensadores da América Latina também começaram a se preocupar com o avanço das massas, da cultura popular e da democracia. De acordo com Anderson (1991), as independências hispanoamericanas (e podemos incluir a brasileira) não tiveram nenhum componente popular, sendo forjadas por movimentos de elites que buscavam terminar com o abuso de poder da metrópole. Sendo assim, são essas elites que passam a ocupar as posições formais e informais de poder, excluindo o povo do processo político e cultural. De acordo com Ramos (2008), a modernização da vida social ocidental, gerada pela mudança na urbanização, nos padrões demográficos e nos modos de produção, fez com que os intelectuais da época não se identificassem como parte dos eventos que estavam acontecendo. Pelo contrário, a elite cultural fazia questão de se manter fora desses processos, observá-los com estranhamento e distância e discuti-los como uma “crise”. Em oposição ao crescimento da “massa popular”, da 104 REVISTA ELETRÔNICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS industrialização e de uma cultura popular – uma arte vulgar para as massas – cresce também uma cultura de crítica, que se sustenta em oposição a esse novo modo de vida, clamando o ócio, a arte pela arte, uma vida não alienada. A arte incorporada ao mercado aparece aí cortada pelas mesmas leis do descomunal que orienta a cultura urbana. A figura do negro acuado, que paradoxalmente vive da agressão da multidão, não é gratuita; para Martí, o mercado submete o artista a uma intensa degradação, também paralela à transformação dos signos da tradição, do Livro da Cultura – hipogrifos, esfinges e constritores – e estranhas máquinas de entretenimento. A incorporação descompõe as sonatas. Faz do artista uma figura social decadente (RAMOS, 2008:233. Grifo no original.). Ramos (2008:239) afirma que esses intelectuais necessitavam dessa afirmação de oposição por se encontrarem deslocados, tirados de sua zona de conforto. Era uma forma de auto-afirmação de sua importância. Ao serem “marginalizados”, podiam criticar, já que estavam “acima” e “fora” daquelas circunstâncias. No entanto, eram aquelas circunstâncias que os excluíam; a elite cultural tradicional não estava do lado de fora e sim sendo afetada pelas mudanças que estavam ocorrendo. Esse é o contexto histórico em que se encontra José Enrique Rodó (1991) – um espanto e contemplação frente à modernidade que chegava sem pedir licença no começo do século XX. Os personagens utilizados por Rodó para expressar seus temores e suas soluções eram produtos da imaginação vitoriana de Shakespeare, intrigado pelas descobertas feitas no século XVI. Caliban, Ariel e Próspero foram desenhados para serem personificações das forças sociais principais que se confrontavam na época, o Velho e o Novo Mundo. A maioria das interpretações sobre a peça A tempestade, coloca Próspero como uma representação da Europa, e Caliban e Ariel, a América, os servos. Caliban seria um servo rebelde, talvez um anagrama da palavra “canibal”, enquanto Ariel seria o servo esclarecido e obediente. Outra importante interpretação/ utilização desses personagens e dessa técnica é a de Renan, em 1878. Após a Comuna de Paris, a elite política européia se encontrava temerosa da possibilidade da ascensão ao poder pelo povo. Renan expressou esse temor colocando Caliban como uma representação do povo, para ele, uma massa disforme, incapaz de raciocínio abstrato, voltada para somente para satisfação imediata de suas vontades. Rodó, inspirado pela crítica à cultura de massas e influenciado por Renan, a quem chamava de “mestre”, reinterpretou os personagens de Shakespeare na situação da América Latina na virada do século. Próspero continua sendo a Europa, agora mais velha e sábia e Caliban representa a força destruidora que é a influência estadunidense, especialmente a influência cultural. Assim, “el problema fundamental considerado por Rodó no era específicamente hispano-americano: era, es, el problema de la relación entre la cultura y la democracia” (MARICHAL, 1978:80). O maior representante de como a cultura de massas e a abertura dos caminhos políticos pela democracia eram os Estados Unidos. O american way of life representava a possibilidade de tomada da política pela maioria, pelo povo sem educação e sem objetivos altruístas. Ao se preocupar com a cultura de massas e o regime democrático, Rodó percebeu como isso se dava nos EUA e como começava a influenciar a América Latina. De acordo com Ramos (2008), Rodó fazia parte dos intelectuais que buscavam uma purificação 105 VOLUME II - NÚMERO I da cultura e da língua hispano-americana, quase egoísta e atomizado estadunidense.1 No entanto, uma justificação de porque essa cultura deveria ao contrário do que fez Platão quando também ser mantida. tentou provar que pela educação dava-se a escolha dos melhores governantes (MITRE, 2003:115), O ensaio de Rodó busca determinar uma forma ele não propõe um diálogo. O texto de Rodó é de conciliar o relacionamento entre povo e elite um monólogo, onde Próspero (representação de forma a manter a cultura hispano-americana da Europa, Grécia, especialmente) fala com intocada pela cultura estadunidense. Ele trabalha, jovens hispano-americanos sobre o perigo então, na construção de uma democracia do Caliban (representação dos EUA). Não há aristocrática, baseada na meritocracia. A conversa, debate ou discussão, demonstrando democracia não deveria ser um jogo de número que a América Latina, pelo menos ainda, não é para o apaziguamento das massas, nem usada Ariel. O “filho do ar” nada mais é do que uma para a busca de bem material; sendo a democracia estátua, posta ao lado de Próspero como um um evento inevitável, Ariel deveria ser o símbolo objetivo a ser alcançado pela juventude (RODÓ, da democracia, a busca por interesses ideais 1991). Dessa forma, dificilmente pode-se ver (RODÓ, 1991). Ariel como um objetivo alcançável. Os jovens, colocados como a grande esperança, obviamente podem ser impulsionados para qualquer uma Assim, sendo insensato pensar como Renan, em obter uma consagração mais positiva de todas das posições; são espaços em brancos, prontos as superioridades morais, a realidade de uma para serem ensinados sem questionamentos. Os hierarquia razoável, o domínio eficiente dos altos dotes da inteligência e da vontade, com a destruição livres são considerados os que têm “domínio da igualdade democrática, só cabe pensar na de si”, mas só têm esse domínio os que aderem educação e na reforma da democracia. (...) Não há distinção que se confunda e se anule mais aos ensinamentos de Próspero, que se dedicam facilmente no espírito do povo do que a que ensina ao ócio, ao pensamento abstrato e ao culto ao que a igualdade democrática pode significar uma igual possibilidade, mas nunca uma igual realidade, belo (RODÓ, 1991:35-39). Se o passado foi dos de influência e prestígio entre todos os membros que lutaram pela nação e o presente dos que a de uma sociedade organizada. (...) O verdadeiro, o digno conceito de igualdade repousa na idéia de que constroem, o futuro deve ser dos que mantém, todos os seres racionais são dotados por natureza de estável e elevada moralmente. No futuro existe faculdades capazes de um desenvolvimento nobre. O dever do Estado consiste em colocar todos os o idealismo, a abstração, a vitória de Ariel sob o membros da sociedade em condições eqüitativas de comando de Próspero (RODÓ, 1991). buscar seu aperfeiçoamento (RODÓ, 1991:62-63. Grifos no original.). Rodó quer demonstrar a importância da educação na definição de um povo, de sua cultura e de sua política, afirmando uma cultura latinoamericana valorosa, altruísta, construída no ócio e na abstração e oposta ao utilitarismo frio, 1 Rodó opõe os EUA à Inglaterra, afirmando que o utilitarismo inglês, sendo baseado na aristocracia tradicional e historicamente estabelecida não tem os vícios do utilitarismo estadunidense (RODÓ, 1991:82). Os EUA almejam uma sociedade no “meio”, medíocre em todos os aspectos, nivelada por baixo (RODÓ, 1991:85), para garantir a igualdade de todos. Inclusive a religião é utilizada para garantir o utilitarismo extremo naquele país. 106 REVISTA ELETRÔNICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS Diante dessa polarização, os esforços de Rodó serão dirigidos à promoção de um ideal medianeiro que permita a introdução de mudanças no sistema social e político de maneira a ajustá-lo às novas circunstâncias, conservando, ao mesmo tempo, a herança do passado como matriz da identidade coletiva. Nesse contexto, a apologia do sistema democrático e a crítica de suas deformações, de um lado, e o ataque ao utilitarismo norte-americano, de outro, assumem um sentido muito concreto na obra... (MITRE, 2003:105). Frente aos paradoxos existentes nas idéias de Rodó, outro autor desenvolveu seu pensamento nos três personagens criados por Shakespeare. Escrevendo nos anos 70 do século XX, Roberto Fernandez Retamar não se incomodou com a crítica aos EUA, sua influência cultural e seu imperialismo político. Porém, para ele, a designação de Caliban era outra (FLORES, 2006). Para ele a cultura latino-americana deveria ser representada não por Ariel, o criado obediente de Próspero, mas sim por Caliban, o escravo rebelde que, sem preocupações abstratas, procura libertar-se de sua situação de subordinação injusta. São dois os pontos principais para os quais Retamar chama a atenção: a mestiçagem e a língua (VIOR, 2001). Ele afirma que a mestiçagem, especialmente nas colônias, é um aspecto cultural expressivo e que todo homem e toda cultura é mestiça. Enquanto em alguns países (como EUA) a imagem de uma homogeneidade cultural (e racial) é forçada, nos países da América Latina isso não acontece. Se compararmos com o caso brasileiro, a “democracia racial” é que se apresenta como idéia de unidade coletiva. Apesar das diferenças culturais, européias, indígenas, africanas (e nacionais?), a população se encontra unificada numa mesma língua, a que foi estabelecida pelos colonizadores. O personagem de Caliban de Shakespeare, para Retamar, servia para degradar a imagem do colonizado e acalmar os europeus; no entanto, por muito tempo, os próprios descendentes dos colonizados acreditaram nessa imagem distorcida. Assim, Retamar propõe uma redesignação dos personagens, o colonizador passa a ser os EUA e o colonizado volta a ser Caliban, mas ressignificado. Ariel é descrito como a elite intelectual que serve aos propósitos do imperialista e dominador Próspero (RETAMAR, 1974). Ou seja, Ariel é tão servo de Próspero quando Caliban, mas aceita sua servidão. A cultura latino-americana é a cultura de Caliban, a cultura da resistência. A visão de Rodó era de enaltecer nossa cultura e denunciar o que a ameaçava – por isso ele a identificava com Ariel. No caso rodoniano, se Próspero era a Europa, logo, fazia sentido a atribuição de Caliban aos EUA e Ariel à América Latina; a visão de Retamar exclui a dicotomia Europa-América, modificando, então as atribuições. Existe uma dicotomia Ariel-Caliban? Em todas suas interpretações e significações, os personagens de A tempestade foram forçados a algum tipo de oposição. Os servos, obediente ou rebelde; alta cultura ou cultura popular; elite ou massas. O Brasil, ao ser ver finalmente livre da dominação portuguesa, foi forçado a aceitar a dominação inglesa e depois, a estadunidense. Desde o começo do século XX, desde a Semana de Arte Moderna, essas submissões têm sido colocadas na berlinda pelos artistas brasileiros.2 2 MERQUIOR, José Guilherme. A lição de Lobato. In: Guardados da memória. Associação Brasileira de 107 VOLUME II - NÚMERO I Obras como O Manifesto Antropofágico e Macunaíma – o herói sem nenhum caráter foram produzidas com o objetivo de apresentar a cultura brasileira como uma construção original forjada da absorção e deglutição das culturas que nos foram apresentadas. O canibalismo metafórico servia para explicar a capacidade de metamorfose e adaptação do brasileiro e sua procura por uma cultura própria. A América hispano-americana, por outro lado, pôde, por muito tempo, construir sua cultura nativa, algo que se apresentava, indubitavelmente, como hispano-americano. Rodó era parte da elite cultural que se via como autônoma, própria em seu pensamento e visão. que é nosso, não deles. O grande problema das duas visões apresentadas aqui é a dificuldade em perceber Caliban e Ariel como duas partes da mesma moeda, os dois gumes da faca, duas frontes unidas contra o mesmo dominador. As possibilidades de ação desses muitos territórios, especialmente no campo cultural, foram muitas e nada foi levado em vão. O que proponho aqui é repensarmos a oposição de Caliban e Ariel não como uma oposição, mas, na realidade, uma união. Rodó identificou ambos com partes diferentes da América: o mau e o bom servo; Retamar os viu como o rebelde e o dominado (RETAMAR, 1974). Mas, se a melhor defesa é o ataque, Caliban e Ariel não são opostos – são complementares. Juntos, Caliban e Ariel formam várias estratégias de oposição, da mais óbvia à mais sutil, do protesto à poesia. Mais importante, enquanto Caliban, o canibal, deglute, digere e transforma o que forçam em sua garganta, Ariel reformula, estuda e cria o americanismo na República Velha brasileira”. In: Letras. Disponível em: www.academia.org.br/abl/media/ RB%2057-GUARDADOS%20DA%20MEMORIA.pdf. Antes da revolução artística e cultural apresentada pela Semana de Arte Moderna, a concepção aristocrática de Rodó era corrente no Brasil. Sua grande expressão se encontrava no autor Monteiro Lobato que, apesar de grande admirador dos EUA, também via como solução para o Brasil o direcionamento político social feito pela elite intelectual. Referências bibliográficas ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Cia. das Letras, 1991. FLORES, Maria Bernadete Ramos. “O mito de Caliban na interpretação do Brasil acerca do Diálogos Latinoamericanos, n° 11, 2006. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Cia. das Letras, 1995. MARICHAL, Juan. “De Martí a Rodó: el idealismo democrático (1870-1910)”. Cuatro fases de la historia intelectual latinoamericana. Cáteo, 1978. MERQUIOR, José Guilherme. “A lição de Lobato”. In: Guardados da memória. Associação Brasileira de Letras. Disponível em: www.academia.org.br/abl/media/RB%20 57-GUARDADOS%20DA%20MEMORIA.pdf MITRE, Antonio. “Fenômenos de massa na sociedade oligárquica – o despontar da modernidade em Ariel de Rodó”. In: MITRE, Antonio. O dilema do centauro – Ensaios de teoria da história e pensamento latino-americano. 108 REVISTA ELETRÔNICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS UFMG, 2003. RAMOS, Julio. “A fragmentação da república das letras” e “Massa, cultura, latino-americanismo”. In: RAMOS, Julio. Desencontros da modernidade na América Latina – Literatura e política no século 19. UFMG, 2008. RETAMAR, Roberto Fernandez. Caliban – Apuntes sobre la cultura em nuestra América. Diógenes, 1974. RODÓ, Jose Enrique. Ariel. UNICAMP, 1991. VIOR, Eduardo J. “Visiones de Caliban, visiones de America”. In: El Hermes Criollo. año 1, número 1, octubre 2001. 109
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