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M U
LHE
R ES
revista parênteses | edição especial #03
distribuição on-line gratuita
líria
porto
Marilia
Kubota
Virna
Teixeira
Lígia
Dabul
Micheliny
Verunschk
Ehre
21
Assionara
Souza
Ana Martins
Marques
Marília
Garcia
4
Editorial 3
Créditos e contato 39
Jussara
Salazar
24
14
27
7
17
31
10
35
A
igualdade de gêneros na literatura (na
cultura, na sociedade, no mundo) ainda é um ponto
distante no horizonte. Falta chão até que as mulheres ocupem todos seus espaços de direito. Mas os passos podem ser alargados conforme compartilhemos o
que formos conquistando.
Nossa proposta para esta edição especial foi, então,
que cada uma das autoras convidadas indicasse uma
outra mulher. Assim, de cinco crescemos para dez e o
coro ficou mais forte.
Se continuássemos a conta, quem sabe chegaríamos a todas as autoras (quantas delas escondidas) do
mundo.
Aos poucos a literatura (a cultura, a sociedade, o
mundo) chega lá. Que esta nossa edição seja mais um
elo na corrente, mais um passo dessa caminhada.
os editores
líria
porto
complexo
vestida com poucos pelos
(tinha pelagem restrita)
caminhava uma mulher
sem qualquer outro adereço
e nua como nasceu
atravessava esta vida
até que um dia um cruel
apontou suas estrias
a mulher então corou
apequenou-se
cobriu-se
de verdade
amélia
é que era
mulher
deserdada
5
panorama
meio aos morros
desce um rio
tão igual fio de prata
pelo verde uns pontos brancos
a moverem-se sobre o pasto
mais abaixo uma casinha
uma chaminé
fumaça
e por certo outra maria
a preparar as marmitas
a socar arroz
em casca
líria porto - professora, poeta, nasceu em
araguari - minas gerais, mora em araxá. escreveu os livros borboleta desfolhada e de lua, publicados em portugal em 2009 e de garimpo (finalista do prêmio jabuti em 2015) e asa de passarinho,
publicados em 2014 pela editora lê. tem inúmeros poemas publicados em jornais, revistas e
sites, entre eles escritoras suicidas, germina literatura, mallarmargens, zunái, raimundo, zona da
palavra e participações em algumas antologias
como dedo de moça e memórias embaralhadas. é
autora do blogue - tanto mar.
6
Marilia
Kubota
só mulheres
só mulheres, agora:
um elefante incomoda muita gente
quanto detergente limpa a fúria do gigante?
quantas vozes aumentam o volume
que me perca
do coral que protesta contra a infame
que me perca
assepsia mais-valia ?
dentro de bibliotecas
quantas perguntas enchem esvaziam
em labirintos de letras
dias noites esmagados
em lábios indo às tontas
fome sede terror calado
beber fonte grotesca
cantem só mulheres
ao nascer só mulheres
que me perca
cantem só mulheres
no desalinho de linhas
ao crescer só mulheres
inventando o caminho
cantem só mulheres
como astro sozinho
ao morrer só mulheres
iluminando a floresta
a guerra não é de vocês
não é pra vocês
que me perca
é contra vocês
de qualquer orientação
não gerarão nem filhos
de sentido e de razão
cantem só mulheres
sem violenta emoção
em breve não se ouve
atirando em toda seta
nem a mais fina
que me perca
de tua palavra correta
zanzando como pião
da multidão de caretas
saboreando só este pão
8
sei, shonagon
deixa te tocar
com minha flauta
sou um dragão
que vive de brisas
tu tens cordas
que atam
monstros
em teu jardim
deixa desacatar
hordas e ordens
sob as quais vive
fada abafada
por amarfanhados
travesseiros
Marilia Kubota (Paranaguá, 06/04/1964) é jornalista e mestre em Estudos Literários pela UFPR.
Desde 2005 orienta oficinas de criação literária.
Colaborou com publicações literárias do Brasil,
Argentina, Portugal, França e Turquia. Publicou
os livros de poesia micropolis (2014), Esperando as
Bárbaras (2012) e Selva de Sentidos (2008) e organizou a antologia Retratos Japoneses no Brasil (2010).
Participa de 13 antologias de poesia e prosa.
9
Virna
Teixeira
pode ser a sua mente
inventando coisas
it could be your mind
making things up
no limite olhando em volta
constantemente
on edge looking around
constantly
você se sente seguro quando sai de casa?
do you fell safe when you go out?
você tem bebido?
have you been drinking?
ninguém está te acusando
nobody is accusing you
it’s an awkward situation
é uma situação complicada
the ability to read the pros and cons
a habilidade de ler os pros e contras
to take decisions
tomar decisões
yes, there will be problems
sim haverá problemas
we’re going to ask you to stay
vamos pedir que você fique
11
se ofendeu e começou a ficar exultante
respingou chá quente no presidiário
foi um ataque religioso
me chamando de perverso
nomes
he took offense and started being elated
he splashed hot tea on inmate
it was a religion attack
calling me perverted
names
12
lendo o corão usando um chechia
de repente se acalmou
precisa de supervisão contínua
reading the koran using a chechia
he suddenly calmed down
43 tentativas de estrangulamento
he needs continuous supervision
com os lençóis e a cueca
ele gosta de se machucar
ele imita sons de animais na solitária
43 attempted hangings
with his sheets and boxer shorts
he likes to self-harm
he makes animal sounds in solitary
não sou eu é um outro
it’s not me it’s somebody else
eu já tinha lavado minhas mãos do crime
I had already washed my hands from crime
ele não ajuda às vezes
sometimes he doesn’t help
Virna Teixeira nasceu em Fortaleza. É poeta e neurologista. Tem três livros de poesia publicados no Brasil e uma plaquete em Lisboa (A Terra do Nunca
é Muito Longe, Não Edições, 2014). Publicou três títulos de poesia escocesa em tradução. Edita plaquetes pela Carnaval Press em Londres, onde vive atualmente. Estes poemas fazem parte de uma pequena seleção inédita chamada Disruptive Behaviours/ Comportamentos Perturbadores, observações sobre um
trabalho recente em hospitais psiquiátricos em Londres e num presídio inglês.
13
Lígia
Dabul
Lacre
Noturno
Pó por todos os lados
Um jardim. Tanques
mas as folhas são
cheios no centro. Flores
de água dentro. Vai.
amarelas florescendo até
No meio de pedras
a morte. Truques também
tem um líquido, então
nas foliáceas perfeitas
abre, ele pedia. Não
que periantos engolem.
chove há tempos.
Os seios sugeridos nas
Do viaduto sobe
pontas das pétalas, nas
essa poeira: Abre,
palavras soltas com os
chove agora. Não é de
nomes, amadurecidas,
lama a resina. A peça
adoçam o outono
delgada, lamelosa,
dessas linhas enquanto
primeiro. Anda,
no set escurece. A noite
até nas pedras tem.
persegue estrelas com
Olha eu mesmo,
desejo e fúria: astros
ensanguentando.
acesos, estilhaços de tudo
Pode ser uma flor
como pólen, a flor preta
molhada - eu disse
quase toda aberta para mim.
assim como um óleo
de freio, para depois
abrir.
15
Apanhos
mistura de terra esterco asas
de insetos poeira cascas
a folha esfacelada respira
entre essas cores
do outono vencido
o caule pede atalhos
com seiva quase sem vida
corto e me recolho
Lígia Dabul (Rio de Janeiro, 1959) publicou os livros Som (Bem-Te-Vi, 2005),
Luzes/Luces (Universidade de La Plata, 2008) e Nave (Lumme, 2010), e a pla-
no lugar das flores a
fome do paraíso
quete Algo do Gênero (Arqueria, 2010). Tem poemas em diversas publicações digitais e impressas, brasileiras e de outros países, às vezes traduzidos. Em 2007 recebeu bolsa de criação literária da Fundação Biblioteca
Nacional. Em 2012 foi selecionada para o Programa Poetas em Residência
de Monsanto da Universidade de Coimbra. Trabalha na Universidade
Federal Fluminense em pesquisas em antropologia e sociologia da arte.
O poema “Lacre” foi publicado no livro Nave. Os poemas “Noturno” e
“Apanhos” foram publicados na SerieAlfa, números 50 (2011) e 48 (2010), respectivamente.
http://seriealfa.com/alfa/alfa50/LDabul.htm
http://seriealfa.com/alfa/alfa48/LDabul.htm
16
Micheliny
Verunschk
eu disse à árvore:
me abençoa, árvore,
sê minha avó
minha mãe
minha filha.
sê tu, árvore,
minha ilha de pássaros
e verdes
meu eterno retorno
pulmão e coração
meu berço minha rede.
ela, a árvore,
nada nem disse
e ficou ali naquela existência
sua de árvore
minha avó
minha mãe
minha filha
como todas as coisas são
sem precisão de bússolas
ou outras confirmações.
18
a velha Safo
não saiu da ilha
lira nos braços
pronta a conquistar
o mundo
ou pelo menos
atravessar o Rubicão
a velha Safo
não saiu da ilha
foi se ocupando
lira nos braços
paciente e rigorosa
mas não quis pouco
de tecer palavras
[musa encarnada]
e de se apaixonar
esse pouco da gente
por marinheiros
que com pouco
essa fauna flutuante
se contenta
e erradia
uns poucos risos
que tanto se aproxima
e barquinhos de papel.
ao fazer mesmo da poesia.
nem memória
nem saudade
nem o violento
sopro de Eros:
enquanto erro
masco chicletes
me perco
entre mensagens
e faço meu tanto
de poemas ruins
a velha Safo
apenas me sorri.
19
a mulher nua
que cavalga
capivaras
guaçuetês
antas
queixadas
a rainha
que cavalga
essa selva
em pelo
em pele
dobras
floresta
sou eu
mulher-jaguar
jaguatirica
mulher-onça
a mulher
Micheliny Verunschk é autora de Geografia
Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador
e o Nada (Edições Bagaço, 2003), A Cartografia
da Noite (Lumme Editor, 2010) e b de bruxa
que conduz
(Mariposa Cartonera, 2014). Foi finalista, em
esse continente
2004, ao prêmio Portugal Telecom com o livro
essa dança
sou eu
Geografia Íntima do Deserto. Publicou em 2014
seu primeiro romance, Nossa Teresa - vida e
morte de uma santa suicida (Editora Patuá, com
patrocínio do Programa Petrobras Cultural),
Santa Maria de la Onza
Dona Maria Lionza
vencedor do Prêmio São Paulo de 2015 e finalista do Prêmio Rio de Literatura de 2016. É doutora em Comunicação e Semiótica e mestre
em Literatura e Crítica Literária, ambos pela
sou eu
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
20
Ehre
amor,
o caminhão comedor de lixo cumpria seu dever
de mastigar as coisas que ninguém mais quer e as ruas
revelam
em coletores enfileirados nos passeios:
a xícara trincada,
jornais de ontem, revistas semanais,
potes de geleia, vidros de azeite,
lâmpadas eletrônicas,
a perna da cadeira que a raiva mutilou,
pilhas alcalinas, cactos de melancia
e uma carta escrita em papel carmim
dentro de um envelope branco, sem selo
e um nome desenhado em seu rosto.
como descartar frases erguidas com ardor e eternidade
espelhando a caligrafia de montanhas como elbruz?
quando a língua alcançou a primeira palavra,
cinco minutos no sudão
o caminhão enguiçou.
Dois funcionários da embaixada em Cartum
procuravam um cão fugitivo
entre os nativos de Nyala em Darfur
O animal havia escapado pelos fundos
enquanto a empregada lhe preparava uma ração
com aporte de L-Carnitina
No chão da rua de terra por onde eles passavam,
uma criança começou a latir
22
o arame
Casou-se com Pitt
tem seis filhos sãos
e nenhuma espinha
Angelina é linda
Angelina é rica
Angelina faz
Angelina tece
E ainda assim na carne dos lábios
em certos dias
pesa um cansaço
um medo
gordo
farto
como nos olhos de Beatriz
no nariz de Deolinda
nas maçãs de Zezé
sem filhos, moedas ou hífen entre os sobrenomes
Angelina tem espinhos
como as rosas em meio a aridez dos homens
mesmo as de plástico
Ehre. Quando nasceu, um anjo ainda menino, lhe disse: vai escrever. Ela
o respondeu: posso não, guri. Meu lápis é gago. Ele a retrucou: melhora
quando chove. Hoje, anda aqui e ali tentado pegar o peixe vivo com as
mãos. Segundo Verunschk, é poeta cronista do passado não vivido.
23
Jussara
Salazar
sumi-e
senhor
que as nossas vacas andem prenhes
aos vinte descobri
e as ovelhas plenas de lã
a palavra indelével. Pintei
que a chuva prepare a terra
dois olhos de coruja
no estrume pungente da manhã
com tinta da china
e fecunde os campos
sobre papel de arroz
Senhor dai-nos o canto
dos doidos desengdos
o desenho sumiu
dos lobos esganiçados
os laços se romperam
e os frutos senhor
o tempo foi do tempo
bicados marcados apodrecidos no chão
em que os pássaros os estranhos pássaros
escuto a máquina
revolveram exalando semeando
lavando os lençóis
transpirando latejando
modo suave-duplo-enxágue
revirando a terra
em busca de outro amanhã
25
corpo inconsútil
a linha do rio costura
o céu e a terra
a linha da terra costura
o céu e o mar
a linha do céu dobra
o inferno ao meio
Jussara Salazar é mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal
contornamos o sol
do Paraná (UFPR) e atualmente é Doutoranda da Escola de Comunicação
e Semiótica da PUC/São Paulo. Designer, artista visual e tradutora, como
a linha do tempo
não se dobra
mas fia
poeta publicou os livros: Inscritos da casa de Alice (1999), Baobá: Poemas de
Leticia Volpi, (2002), Natália (2004), Coraurissonoros (2008) Carpideiras (2011,
com a bolsa Funarte de Criação Literária em 2009) e O gato de porcelana, o
peixe de cera e as coníferas (2014).
teia de si mesma
Publicou poemas e textos em várias revistas: Tsé-Tsé (Argentina), Chain
acalenta o vento
(EUA), Rattapallax (EUA), Suplemento literário de Minas (Brasil), Galerna
e costura
a linha dos dias
(EUA/Espanha), Mandorla (México), Babel (Brasil), Cultura & Ciência (Brasil),
Sibila (Brasil), Revista Continente, Poesia Sempre (Biblioteca Nacional),
Caderno Mais! (Folha de São Paulo), Mar com Soroche (Chile), entre outros.
Faz parte das antologias Na virada do século (2002), Poesia Contemporânea
no Paraná (2002), Invenção Recife (2004), Poetry Wales (2004), Relicário Latino,
Antologia de poesia latina, (2004), Revista Continente (Imprensa oficial de
Pernambuco) e Literatura Brasileira Hoje (Publifolha, São Paulo, 2006).
Realizou leituras no Memorial da América Latina (2000), na Biblioteca
Mário de Andrade (2001), na Bienal do Livro de Pernambuco (2005), no
Espaço Haroldo de Campos – Casa das Rosas (2006), na Fliporto (2007), em
Geometry of Hope da série Poetry Readings: A celebration of Verbal and
Visual Culture in Latin American (New York University, 2007, EUA), na
Fundação Clóvis Salgado (2008, Belo Horizonte) no Projeto Incomunidade
(Portugal, 2008), em A Letra e a Voz, Fundação de Cultura da Cidade do
Recife (2009), no Instituto Cervantes de Curitiba (2010) e no Poesie Festival
de Berlin - VERSschmuggel (2012) entre outros.
26
Assionara
Souza
Tableaux
O segundo ainda se debatia num canto do jardim
Sonhei com gatos e peixes e pinturas a óleo
Me vi incapaz de salvá-los
Não nesta ordem
Decidi continuar a fuga
Lembro antes do cheiro da tinta
Mas o segundo peixe deu um volteio
E mãos revirando a caixa de pincéis
Saltando e caindo no piso
Senti-me isolada no mundo
Isso partiu meu coração
Pensei:”Quero sair. Esse cheiro de tinta está me matando”
Meu egoísmo se acovardou
Havia mais alguém ali
Joguei os peixes num balde com água
E me olhava de modo hesitante
Em sonho, tudo se arranja
Com o pincel espetado no ar
Investigando se deveria ou não acrescentar mais tinta e onde
Então foi a vez dos gatos
Talvez uma leve pincelada nesse canto de olho
Eram dois gatos
Ou na curva do pescoço
O primeiro tão ágil e faminto quanto o segundo
sugerindo um pulsar de veias
Alcei o balde acima da cabeça
- Vou pegar mais água. _Avisei
Os gatos me rodeavam
E saí num passo lento
O tanto amar me entontecia
Como se ainda fosse voltar
Precisava me livrar dos gatos
Tudo pura mentira
Lancei o olhar para fora do sonho
Deparei-me com uma mirada hesitante
Foi aí que vieram os peixes
Algo entre curioso e decidido
Eram dois peixes
Senti me espetarem o canto do olho
O primeiro estava pior que o segundo
E o cheiro de tinta invadiu todo o quarto
28
Águas de Ariel
Ariel, agora, daqui desta janela
O céu é cinza e o vento forte anuncia chuva
Não tenho mais medo de chuva, Ariel
Bebo a água das tempestades
E danço no jardim entre relâmpagos e trovões
Arco retesado a quem desejar te ferir
Somos a promessa de Athena
Nossos corpos, nossas regras
Rachar a cabeça de Zeus
Extirpar costelas até abrandar
A pele dura do antigo homem
E declarar a existência híbrida
Sonhar Ser. Tornar-se Ser
Ao longe, o azul das montanhas celebram
O encanto de tua ousadia
Nesses tempos intranquilos
Em que corpos de mulheres
São silenciados e assassinados
Teu corpo, maior que a tarde,
Projeta-se além de estradas e estrelas
O novo menino parido de si
Inteiro e estonteante
Ariel, Ariel
Todas as águas murmuram teu nome
29
Minha mãe e eu
Estávamos na sala minha mãe e eu
Ela fazia aviamentos numa saia xadrez
E eu lia a história de Branca de Neve
Virando as páginas assim que as personagens do disquinho azul alcançavam a última linha
Terminar de ouvir atiçava a vontade de ouvir de novo
Mal sabia que alimentava naquele gesto o pequeno monstro do desejo incontrolável
O carro parou na frente de casa
Com uma brusca freada
Olhamo-nos, minha mãe e eu, com a mudez sincera de quem sabe que as cenas do próximo capítulo só servem para abalar o coração
Bateram palmas lá fora
Ela largou a costura
Eu desliguei o disquinho
E toda a paz de nossas tardes
Foi varrida pelo vendaval da notícia que o homem trouxe
Hoje percebo que ela manteve os cabelos longos somente até aquele dia
Sempre que ouço a história de Branca de Neve
Esbarro naquele ponto em que o caçador arranca o coração de um cordeiro
Assionara Souza é escritora. Além dos livros publicados, seus textos podem ser lidos nos sites www.literaturaemtransito.com e
www.escritorassuicidas.com.br
30
Ana
Martins
Marques
Bilhete
Eu deixei um bilhete sobre a mesa para quando você acordar. Eu
tive que sair muito cedo e não sabia exatamente que palavras
deixar. Eu queria te dizer várias coisas sobre a noite, coisas que
começariam com palavras claras e doces, mas ligeiramente
ácidas, e depois um pequeno segredo e uma declaração firme e
discreta e por fim uma frase que seria fria por fora e quente por
dentro como uma sobremesa francesa. Mas foi tão difícil, o sol
batia de leve sobre a mesa, você dormia tão próximo e eu ainda
não tinha calçado os sapatos, o que certamente interferiu um
pouco na minha caligrafia. Seu apartamento de manhã ainda
decorado com os restos da noite. Eu não sabia o que dizer, e se a
única caneta que encontrei era vermelha você pode supor meu
sobressalto e então eu apenas escrevi
É tão tarde, mas
eu estou pronta
se você estiver
e desenhei sem cuidado no canto esquerdo do papel um pequeno
veleiro.
32
Dez desenhos
escritos
No canto esquerdo
*
*
com traço grosso
Dançando
Eu não sei falar
e vermelho
desenho
as palavras certas
uma maçã.
o desejo
não sei demonstrar
Se eu soubesse
da dança.
teoremas
não tinha posado
não sei traçar
com meu coração
*
mapas, diagramas
na compoteira.
Esta aquarelinha
não sei interpretar
vermelha
sonhos ou cartas
*
pendurada na parede:
e só posso te dedicar
Quadriculado
aí está meu coração.
este desenho
azul e negro
que ainda não existe.
azul e negro:
*
piscinas à noite.
Você
*
na pista de dança
Se eu pudesse
*
traçando círculos
punha um vidro em volta
Vou fazer um desenhinho
de cigarro
deste museuzinho de palavras.
que é pra você entender
contra o fundo
o que eu queria dizer
sem fundo
mas não disse.
da noite.
*
*
Sob este sol de carvão
As pedras as estrelas
vou escrever
os seios os aeroplanos
umas palmeiras altas.
os lábios a lápis.
33
Um postal
Não se entra, sabe-se, duas vezes no mesmo rio, mas tampouco
duas vezes no mesmo livro, na mesma pessoa, duas vezes
no mesmo elevador, na mesma livraria, no mesmo bar ou
armarinho, no mesmo vestido de verão, no mesmo shopping de
subúrbio
era aquela tarde, brilhava tudo, brilhavam as luzes da cidade
que apenas se acendiam e brilhava um resto de sol jogado sobre
os telhados como um resto de cerveja que se deita fora a uma
árvore nova, brilhava o mar, sabíamos que brilhava embora dali
não se visse, brilhavam no mar as esponjas-do-mar, brilhavam
as folhas das árvores e brilhava o meu nome na sua boca com seu
bigode de espuma, brilhavam seus brincos baratos, brilhavam
seus olhos de uma cor sem nome, brilhavam os nomes das cores
não entramos de novo em acordo, não se entra duas vezes em
acordo, ficamos, longamente ficamos, naquele dia que só depois
seria o último
Ana Martins Marques nasceu em Belo Horizonte,
em 1977. É formada em letras e doutora em literatura comparada pela UFMG. Publicou A vida
submarina (Scriptum, 2009), Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011) e O livro das
semelhanças (Companhia das Letras, 2015).
“Bilhete” e “Dez desenhos escritos” integram A
vida submarina (Scriptum, 2009). “Um postal” é
inédito.
34
Marília
Garcia
a garota de belfast ordena
a teus pés alfabeticamente
98 voltas pelo parque antes de cair em
a intimidade era teatro
círculos sobre o próprio peso
...
98 vezes dizia o mesmo:
a tomar chá, quase na borda
você pode ou não pensar em algo
a voz em off nas montanhas
definitivo. parecia a garota de belfast com
abre a boca, deusa
sua memória dobrada como um paraquedas
abria a cortina
dentro do tecido eletrizado.
acho que é mentira
enquanto falava descia a
escada lateral recortando os ruídos
pode ou não pensar que era sua voz em mountain hill
da orquestra. a roda da bicicleta
a uma velocidade de 1 km/h ou mil. antes
girando em loop esfarelando os
de voltar para a irlanda já começara a perder. entende
reflexos no ar e seis horas parada diante
que só depois de o blindex esfarinhado contra a
do ralo, pode ou não pensar em algo, sentada na beira do
cabeça, só em poucos segundos até que a cabeça
quarto. olha de longe quando o carro
contra o blindex, mas era apenas parte
passa, desce à noite pelos trilhos
do trajeto, não tinha como calcular as noites ou linhas
quando tudo é uma vingança
em que passaria.
fala de pontes atravessando os túneis
da cidade e ordena a teus pés
alfabeticamente
“como extrair o áudio de uma imagem
congelada” era a etiqueta que colava nas paredes
para tentar descobrir como chegar com precisão
a anoitecer sobre a cidade
e ao fundo a voz pela fresta
a câmera em rasante
a ordenar este livro:
a correspondência
a curriola consolava
agora nessa contramão
a dor
agora chega
a espera
agora é a sua vez
36
agora estamos em movimento
agora pouco sentimental
agora sou profissional
água
água na boca
agulhadas
ou vertigem das alturas. você pode acordar trinta anos
depois com a imagem ainda mais viva
quando o quarto está às cegas
as cartas
as cartas, quando chegavam
as lupas desistem
as mulheres e as crianças
asas batendo
atravessa a ponte
atravessando a grande ponte
atravessa vários túneis da cidade
autobiografia. não, biografia
aviso que vou virando um avião
azul deixo as chaves soltas no balcão
azul que não me espanta
37
Num dia branco
segura a borda da mesa com
Apêndice a Num dia
branco (com Lise Sarfati)
o cabelo vermelho vamos
a cortina em ondas na
para a polônia
sala, semicírculos de luz
ver a neve
que cobrem
andava tão dispersa assim
o chão, pouco a pouco
ele nunca conheceu a família com ganas
uma imagem recorrente: “dehors
de frio. sempre aquele
maintenant...” mas não sabe, um
movimento
pedaço de terra cravado naquele
preciso ler outras
oceano e viver ali: seu nome
coisas a frase cortada
não vem no lugar do destinatário não
no mesmo ponto fresta de luz
mais de 100 quilômetros de
onde fala uma gargalhada
escuta e a caixa do correio
assomada à janela quando o vê
quebrada pode deixar a
do outro lado da rua procurando o
chave que o inquilino encontrará
castelo.
tem olheira e casaco azul
cabelo curto, segura a ponta
os cabelos curtos, deitada no sofá
da mesa e mastiga as sílabas
amarelo. todos falam alguma
em sua língua.
língua eslava (sabe que perdeu alguém
para sempre). no fim do ano, vamos
cruzar o estreito. andava tão dispersa
assim pelo movimento ele
nunca
viu a neve.
Marília Garcia é tradutora e autora dos livros 20 poemas para o seu walkman (2007) e Um teste de resistores (2014), entre outros. O poema “A garota de Belfast
ordena A teus pés alfabeticamente” foi publicado originalmente em A nossos pés (2008), antologia em homenagem a Ana Cristina Cesar, e depois saiu em
Um teste de resistores. “Num dia branco” e “Apêndice a Num dia Branco” fazem parte do livro 20 poemas para o seu walkman (2007).
38
Edição
Bruno Palma e Silva
Lubi Prates
Projeto gráfico
Bruno Palma e Silva
palmaesilva.com.br
A Parênteses tem distribuição livre e gratuita, sinta-se à vontade para compartilhar.
Não encorajamos, porém, nenhum tipo de adaptação e/ou de uso comercial dos materiais. Nesses casos, os autores devem ser consultados.
Todos os textos aqui reunidos são, e sempre serão, de propriedade de suas autoras, cuja gentileza agradecemos.
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