PDF – clique aqui - Revista Parênteses
Transcrição
PDF – clique aqui - Revista Parênteses
M U LHE R ES revista parênteses | edição especial #03 distribuição on-line gratuita líria porto Marilia Kubota Virna Teixeira Lígia Dabul Micheliny Verunschk Ehre 21 Assionara Souza Ana Martins Marques Marília Garcia 4 Editorial 3 Créditos e contato 39 Jussara Salazar 24 14 27 7 17 31 10 35 A igualdade de gêneros na literatura (na cultura, na sociedade, no mundo) ainda é um ponto distante no horizonte. Falta chão até que as mulheres ocupem todos seus espaços de direito. Mas os passos podem ser alargados conforme compartilhemos o que formos conquistando. Nossa proposta para esta edição especial foi, então, que cada uma das autoras convidadas indicasse uma outra mulher. Assim, de cinco crescemos para dez e o coro ficou mais forte. Se continuássemos a conta, quem sabe chegaríamos a todas as autoras (quantas delas escondidas) do mundo. Aos poucos a literatura (a cultura, a sociedade, o mundo) chega lá. Que esta nossa edição seja mais um elo na corrente, mais um passo dessa caminhada. os editores líria porto complexo vestida com poucos pelos (tinha pelagem restrita) caminhava uma mulher sem qualquer outro adereço e nua como nasceu atravessava esta vida até que um dia um cruel apontou suas estrias a mulher então corou apequenou-se cobriu-se de verdade amélia é que era mulher deserdada 5 panorama meio aos morros desce um rio tão igual fio de prata pelo verde uns pontos brancos a moverem-se sobre o pasto mais abaixo uma casinha uma chaminé fumaça e por certo outra maria a preparar as marmitas a socar arroz em casca líria porto - professora, poeta, nasceu em araguari - minas gerais, mora em araxá. escreveu os livros borboleta desfolhada e de lua, publicados em portugal em 2009 e de garimpo (finalista do prêmio jabuti em 2015) e asa de passarinho, publicados em 2014 pela editora lê. tem inúmeros poemas publicados em jornais, revistas e sites, entre eles escritoras suicidas, germina literatura, mallarmargens, zunái, raimundo, zona da palavra e participações em algumas antologias como dedo de moça e memórias embaralhadas. é autora do blogue - tanto mar. 6 Marilia Kubota só mulheres só mulheres, agora: um elefante incomoda muita gente quanto detergente limpa a fúria do gigante? quantas vozes aumentam o volume que me perca do coral que protesta contra a infame que me perca assepsia mais-valia ? dentro de bibliotecas quantas perguntas enchem esvaziam em labirintos de letras dias noites esmagados em lábios indo às tontas fome sede terror calado beber fonte grotesca cantem só mulheres ao nascer só mulheres que me perca cantem só mulheres no desalinho de linhas ao crescer só mulheres inventando o caminho cantem só mulheres como astro sozinho ao morrer só mulheres iluminando a floresta a guerra não é de vocês não é pra vocês que me perca é contra vocês de qualquer orientação não gerarão nem filhos de sentido e de razão cantem só mulheres sem violenta emoção em breve não se ouve atirando em toda seta nem a mais fina que me perca de tua palavra correta zanzando como pião da multidão de caretas saboreando só este pão 8 sei, shonagon deixa te tocar com minha flauta sou um dragão que vive de brisas tu tens cordas que atam monstros em teu jardim deixa desacatar hordas e ordens sob as quais vive fada abafada por amarfanhados travesseiros Marilia Kubota (Paranaguá, 06/04/1964) é jornalista e mestre em Estudos Literários pela UFPR. Desde 2005 orienta oficinas de criação literária. Colaborou com publicações literárias do Brasil, Argentina, Portugal, França e Turquia. Publicou os livros de poesia micropolis (2014), Esperando as Bárbaras (2012) e Selva de Sentidos (2008) e organizou a antologia Retratos Japoneses no Brasil (2010). Participa de 13 antologias de poesia e prosa. 9 Virna Teixeira pode ser a sua mente inventando coisas it could be your mind making things up no limite olhando em volta constantemente on edge looking around constantly você se sente seguro quando sai de casa? do you fell safe when you go out? você tem bebido? have you been drinking? ninguém está te acusando nobody is accusing you it’s an awkward situation é uma situação complicada the ability to read the pros and cons a habilidade de ler os pros e contras to take decisions tomar decisões yes, there will be problems sim haverá problemas we’re going to ask you to stay vamos pedir que você fique 11 se ofendeu e começou a ficar exultante respingou chá quente no presidiário foi um ataque religioso me chamando de perverso nomes he took offense and started being elated he splashed hot tea on inmate it was a religion attack calling me perverted names 12 lendo o corão usando um chechia de repente se acalmou precisa de supervisão contínua reading the koran using a chechia he suddenly calmed down 43 tentativas de estrangulamento he needs continuous supervision com os lençóis e a cueca ele gosta de se machucar ele imita sons de animais na solitária 43 attempted hangings with his sheets and boxer shorts he likes to self-harm he makes animal sounds in solitary não sou eu é um outro it’s not me it’s somebody else eu já tinha lavado minhas mãos do crime I had already washed my hands from crime ele não ajuda às vezes sometimes he doesn’t help Virna Teixeira nasceu em Fortaleza. É poeta e neurologista. Tem três livros de poesia publicados no Brasil e uma plaquete em Lisboa (A Terra do Nunca é Muito Longe, Não Edições, 2014). Publicou três títulos de poesia escocesa em tradução. Edita plaquetes pela Carnaval Press em Londres, onde vive atualmente. Estes poemas fazem parte de uma pequena seleção inédita chamada Disruptive Behaviours/ Comportamentos Perturbadores, observações sobre um trabalho recente em hospitais psiquiátricos em Londres e num presídio inglês. 13 Lígia Dabul Lacre Noturno Pó por todos os lados Um jardim. Tanques mas as folhas são cheios no centro. Flores de água dentro. Vai. amarelas florescendo até No meio de pedras a morte. Truques também tem um líquido, então nas foliáceas perfeitas abre, ele pedia. Não que periantos engolem. chove há tempos. Os seios sugeridos nas Do viaduto sobe pontas das pétalas, nas essa poeira: Abre, palavras soltas com os chove agora. Não é de nomes, amadurecidas, lama a resina. A peça adoçam o outono delgada, lamelosa, dessas linhas enquanto primeiro. Anda, no set escurece. A noite até nas pedras tem. persegue estrelas com Olha eu mesmo, desejo e fúria: astros ensanguentando. acesos, estilhaços de tudo Pode ser uma flor como pólen, a flor preta molhada - eu disse quase toda aberta para mim. assim como um óleo de freio, para depois abrir. 15 Apanhos mistura de terra esterco asas de insetos poeira cascas a folha esfacelada respira entre essas cores do outono vencido o caule pede atalhos com seiva quase sem vida corto e me recolho Lígia Dabul (Rio de Janeiro, 1959) publicou os livros Som (Bem-Te-Vi, 2005), Luzes/Luces (Universidade de La Plata, 2008) e Nave (Lumme, 2010), e a pla- no lugar das flores a fome do paraíso quete Algo do Gênero (Arqueria, 2010). Tem poemas em diversas publicações digitais e impressas, brasileiras e de outros países, às vezes traduzidos. Em 2007 recebeu bolsa de criação literária da Fundação Biblioteca Nacional. Em 2012 foi selecionada para o Programa Poetas em Residência de Monsanto da Universidade de Coimbra. Trabalha na Universidade Federal Fluminense em pesquisas em antropologia e sociologia da arte. O poema “Lacre” foi publicado no livro Nave. Os poemas “Noturno” e “Apanhos” foram publicados na SerieAlfa, números 50 (2011) e 48 (2010), respectivamente. http://seriealfa.com/alfa/alfa50/LDabul.htm http://seriealfa.com/alfa/alfa48/LDabul.htm 16 Micheliny Verunschk eu disse à árvore: me abençoa, árvore, sê minha avó minha mãe minha filha. sê tu, árvore, minha ilha de pássaros e verdes meu eterno retorno pulmão e coração meu berço minha rede. ela, a árvore, nada nem disse e ficou ali naquela existência sua de árvore minha avó minha mãe minha filha como todas as coisas são sem precisão de bússolas ou outras confirmações. 18 a velha Safo não saiu da ilha lira nos braços pronta a conquistar o mundo ou pelo menos atravessar o Rubicão a velha Safo não saiu da ilha foi se ocupando lira nos braços paciente e rigorosa mas não quis pouco de tecer palavras [musa encarnada] e de se apaixonar esse pouco da gente por marinheiros que com pouco essa fauna flutuante se contenta e erradia uns poucos risos que tanto se aproxima e barquinhos de papel. ao fazer mesmo da poesia. nem memória nem saudade nem o violento sopro de Eros: enquanto erro masco chicletes me perco entre mensagens e faço meu tanto de poemas ruins a velha Safo apenas me sorri. 19 a mulher nua que cavalga capivaras guaçuetês antas queixadas a rainha que cavalga essa selva em pelo em pele dobras floresta sou eu mulher-jaguar jaguatirica mulher-onça a mulher Micheliny Verunschk é autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003), A Cartografia da Noite (Lumme Editor, 2010) e b de bruxa que conduz (Mariposa Cartonera, 2014). Foi finalista, em esse continente 2004, ao prêmio Portugal Telecom com o livro essa dança sou eu Geografia Íntima do Deserto. Publicou em 2014 seu primeiro romance, Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, com patrocínio do Programa Petrobras Cultural), Santa Maria de la Onza Dona Maria Lionza vencedor do Prêmio São Paulo de 2015 e finalista do Prêmio Rio de Literatura de 2016. É doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária, ambos pela sou eu Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 20 Ehre amor, o caminhão comedor de lixo cumpria seu dever de mastigar as coisas que ninguém mais quer e as ruas revelam em coletores enfileirados nos passeios: a xícara trincada, jornais de ontem, revistas semanais, potes de geleia, vidros de azeite, lâmpadas eletrônicas, a perna da cadeira que a raiva mutilou, pilhas alcalinas, cactos de melancia e uma carta escrita em papel carmim dentro de um envelope branco, sem selo e um nome desenhado em seu rosto. como descartar frases erguidas com ardor e eternidade espelhando a caligrafia de montanhas como elbruz? quando a língua alcançou a primeira palavra, cinco minutos no sudão o caminhão enguiçou. Dois funcionários da embaixada em Cartum procuravam um cão fugitivo entre os nativos de Nyala em Darfur O animal havia escapado pelos fundos enquanto a empregada lhe preparava uma ração com aporte de L-Carnitina No chão da rua de terra por onde eles passavam, uma criança começou a latir 22 o arame Casou-se com Pitt tem seis filhos sãos e nenhuma espinha Angelina é linda Angelina é rica Angelina faz Angelina tece E ainda assim na carne dos lábios em certos dias pesa um cansaço um medo gordo farto como nos olhos de Beatriz no nariz de Deolinda nas maçãs de Zezé sem filhos, moedas ou hífen entre os sobrenomes Angelina tem espinhos como as rosas em meio a aridez dos homens mesmo as de plástico Ehre. Quando nasceu, um anjo ainda menino, lhe disse: vai escrever. Ela o respondeu: posso não, guri. Meu lápis é gago. Ele a retrucou: melhora quando chove. Hoje, anda aqui e ali tentado pegar o peixe vivo com as mãos. Segundo Verunschk, é poeta cronista do passado não vivido. 23 Jussara Salazar sumi-e senhor que as nossas vacas andem prenhes aos vinte descobri e as ovelhas plenas de lã a palavra indelével. Pintei que a chuva prepare a terra dois olhos de coruja no estrume pungente da manhã com tinta da china e fecunde os campos sobre papel de arroz Senhor dai-nos o canto dos doidos desengdos o desenho sumiu dos lobos esganiçados os laços se romperam e os frutos senhor o tempo foi do tempo bicados marcados apodrecidos no chão em que os pássaros os estranhos pássaros escuto a máquina revolveram exalando semeando lavando os lençóis transpirando latejando modo suave-duplo-enxágue revirando a terra em busca de outro amanhã 25 corpo inconsútil a linha do rio costura o céu e a terra a linha da terra costura o céu e o mar a linha do céu dobra o inferno ao meio Jussara Salazar é mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal contornamos o sol do Paraná (UFPR) e atualmente é Doutoranda da Escola de Comunicação e Semiótica da PUC/São Paulo. Designer, artista visual e tradutora, como a linha do tempo não se dobra mas fia poeta publicou os livros: Inscritos da casa de Alice (1999), Baobá: Poemas de Leticia Volpi, (2002), Natália (2004), Coraurissonoros (2008) Carpideiras (2011, com a bolsa Funarte de Criação Literária em 2009) e O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas (2014). teia de si mesma Publicou poemas e textos em várias revistas: Tsé-Tsé (Argentina), Chain acalenta o vento (EUA), Rattapallax (EUA), Suplemento literário de Minas (Brasil), Galerna e costura a linha dos dias (EUA/Espanha), Mandorla (México), Babel (Brasil), Cultura & Ciência (Brasil), Sibila (Brasil), Revista Continente, Poesia Sempre (Biblioteca Nacional), Caderno Mais! (Folha de São Paulo), Mar com Soroche (Chile), entre outros. Faz parte das antologias Na virada do século (2002), Poesia Contemporânea no Paraná (2002), Invenção Recife (2004), Poetry Wales (2004), Relicário Latino, Antologia de poesia latina, (2004), Revista Continente (Imprensa oficial de Pernambuco) e Literatura Brasileira Hoje (Publifolha, São Paulo, 2006). Realizou leituras no Memorial da América Latina (2000), na Biblioteca Mário de Andrade (2001), na Bienal do Livro de Pernambuco (2005), no Espaço Haroldo de Campos – Casa das Rosas (2006), na Fliporto (2007), em Geometry of Hope da série Poetry Readings: A celebration of Verbal and Visual Culture in Latin American (New York University, 2007, EUA), na Fundação Clóvis Salgado (2008, Belo Horizonte) no Projeto Incomunidade (Portugal, 2008), em A Letra e a Voz, Fundação de Cultura da Cidade do Recife (2009), no Instituto Cervantes de Curitiba (2010) e no Poesie Festival de Berlin - VERSschmuggel (2012) entre outros. 26 Assionara Souza Tableaux O segundo ainda se debatia num canto do jardim Sonhei com gatos e peixes e pinturas a óleo Me vi incapaz de salvá-los Não nesta ordem Decidi continuar a fuga Lembro antes do cheiro da tinta Mas o segundo peixe deu um volteio E mãos revirando a caixa de pincéis Saltando e caindo no piso Senti-me isolada no mundo Isso partiu meu coração Pensei:”Quero sair. Esse cheiro de tinta está me matando” Meu egoísmo se acovardou Havia mais alguém ali Joguei os peixes num balde com água E me olhava de modo hesitante Em sonho, tudo se arranja Com o pincel espetado no ar Investigando se deveria ou não acrescentar mais tinta e onde Então foi a vez dos gatos Talvez uma leve pincelada nesse canto de olho Eram dois gatos Ou na curva do pescoço O primeiro tão ágil e faminto quanto o segundo sugerindo um pulsar de veias Alcei o balde acima da cabeça - Vou pegar mais água. _Avisei Os gatos me rodeavam E saí num passo lento O tanto amar me entontecia Como se ainda fosse voltar Precisava me livrar dos gatos Tudo pura mentira Lancei o olhar para fora do sonho Deparei-me com uma mirada hesitante Foi aí que vieram os peixes Algo entre curioso e decidido Eram dois peixes Senti me espetarem o canto do olho O primeiro estava pior que o segundo E o cheiro de tinta invadiu todo o quarto 28 Águas de Ariel Ariel, agora, daqui desta janela O céu é cinza e o vento forte anuncia chuva Não tenho mais medo de chuva, Ariel Bebo a água das tempestades E danço no jardim entre relâmpagos e trovões Arco retesado a quem desejar te ferir Somos a promessa de Athena Nossos corpos, nossas regras Rachar a cabeça de Zeus Extirpar costelas até abrandar A pele dura do antigo homem E declarar a existência híbrida Sonhar Ser. Tornar-se Ser Ao longe, o azul das montanhas celebram O encanto de tua ousadia Nesses tempos intranquilos Em que corpos de mulheres São silenciados e assassinados Teu corpo, maior que a tarde, Projeta-se além de estradas e estrelas O novo menino parido de si Inteiro e estonteante Ariel, Ariel Todas as águas murmuram teu nome 29 Minha mãe e eu Estávamos na sala minha mãe e eu Ela fazia aviamentos numa saia xadrez E eu lia a história de Branca de Neve Virando as páginas assim que as personagens do disquinho azul alcançavam a última linha Terminar de ouvir atiçava a vontade de ouvir de novo Mal sabia que alimentava naquele gesto o pequeno monstro do desejo incontrolável O carro parou na frente de casa Com uma brusca freada Olhamo-nos, minha mãe e eu, com a mudez sincera de quem sabe que as cenas do próximo capítulo só servem para abalar o coração Bateram palmas lá fora Ela largou a costura Eu desliguei o disquinho E toda a paz de nossas tardes Foi varrida pelo vendaval da notícia que o homem trouxe Hoje percebo que ela manteve os cabelos longos somente até aquele dia Sempre que ouço a história de Branca de Neve Esbarro naquele ponto em que o caçador arranca o coração de um cordeiro Assionara Souza é escritora. Além dos livros publicados, seus textos podem ser lidos nos sites www.literaturaemtransito.com e www.escritorassuicidas.com.br 30 Ana Martins Marques Bilhete Eu deixei um bilhete sobre a mesa para quando você acordar. Eu tive que sair muito cedo e não sabia exatamente que palavras deixar. Eu queria te dizer várias coisas sobre a noite, coisas que começariam com palavras claras e doces, mas ligeiramente ácidas, e depois um pequeno segredo e uma declaração firme e discreta e por fim uma frase que seria fria por fora e quente por dentro como uma sobremesa francesa. Mas foi tão difícil, o sol batia de leve sobre a mesa, você dormia tão próximo e eu ainda não tinha calçado os sapatos, o que certamente interferiu um pouco na minha caligrafia. Seu apartamento de manhã ainda decorado com os restos da noite. Eu não sabia o que dizer, e se a única caneta que encontrei era vermelha você pode supor meu sobressalto e então eu apenas escrevi É tão tarde, mas eu estou pronta se você estiver e desenhei sem cuidado no canto esquerdo do papel um pequeno veleiro. 32 Dez desenhos escritos No canto esquerdo * * com traço grosso Dançando Eu não sei falar e vermelho desenho as palavras certas uma maçã. o desejo não sei demonstrar Se eu soubesse da dança. teoremas não tinha posado não sei traçar com meu coração * mapas, diagramas na compoteira. Esta aquarelinha não sei interpretar vermelha sonhos ou cartas * pendurada na parede: e só posso te dedicar Quadriculado aí está meu coração. este desenho azul e negro que ainda não existe. azul e negro: * piscinas à noite. Você * na pista de dança Se eu pudesse * traçando círculos punha um vidro em volta Vou fazer um desenhinho de cigarro deste museuzinho de palavras. que é pra você entender contra o fundo o que eu queria dizer sem fundo mas não disse. da noite. * * Sob este sol de carvão As pedras as estrelas vou escrever os seios os aeroplanos umas palmeiras altas. os lábios a lápis. 33 Um postal Não se entra, sabe-se, duas vezes no mesmo rio, mas tampouco duas vezes no mesmo livro, na mesma pessoa, duas vezes no mesmo elevador, na mesma livraria, no mesmo bar ou armarinho, no mesmo vestido de verão, no mesmo shopping de subúrbio era aquela tarde, brilhava tudo, brilhavam as luzes da cidade que apenas se acendiam e brilhava um resto de sol jogado sobre os telhados como um resto de cerveja que se deita fora a uma árvore nova, brilhava o mar, sabíamos que brilhava embora dali não se visse, brilhavam no mar as esponjas-do-mar, brilhavam as folhas das árvores e brilhava o meu nome na sua boca com seu bigode de espuma, brilhavam seus brincos baratos, brilhavam seus olhos de uma cor sem nome, brilhavam os nomes das cores não entramos de novo em acordo, não se entra duas vezes em acordo, ficamos, longamente ficamos, naquele dia que só depois seria o último Ana Martins Marques nasceu em Belo Horizonte, em 1977. É formada em letras e doutora em literatura comparada pela UFMG. Publicou A vida submarina (Scriptum, 2009), Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011) e O livro das semelhanças (Companhia das Letras, 2015). “Bilhete” e “Dez desenhos escritos” integram A vida submarina (Scriptum, 2009). “Um postal” é inédito. 34 Marília Garcia a garota de belfast ordena a teus pés alfabeticamente 98 voltas pelo parque antes de cair em a intimidade era teatro círculos sobre o próprio peso ... 98 vezes dizia o mesmo: a tomar chá, quase na borda você pode ou não pensar em algo a voz em off nas montanhas definitivo. parecia a garota de belfast com abre a boca, deusa sua memória dobrada como um paraquedas abria a cortina dentro do tecido eletrizado. acho que é mentira enquanto falava descia a escada lateral recortando os ruídos pode ou não pensar que era sua voz em mountain hill da orquestra. a roda da bicicleta a uma velocidade de 1 km/h ou mil. antes girando em loop esfarelando os de voltar para a irlanda já começara a perder. entende reflexos no ar e seis horas parada diante que só depois de o blindex esfarinhado contra a do ralo, pode ou não pensar em algo, sentada na beira do cabeça, só em poucos segundos até que a cabeça quarto. olha de longe quando o carro contra o blindex, mas era apenas parte passa, desce à noite pelos trilhos do trajeto, não tinha como calcular as noites ou linhas quando tudo é uma vingança em que passaria. fala de pontes atravessando os túneis da cidade e ordena a teus pés alfabeticamente “como extrair o áudio de uma imagem congelada” era a etiqueta que colava nas paredes para tentar descobrir como chegar com precisão a anoitecer sobre a cidade e ao fundo a voz pela fresta a câmera em rasante a ordenar este livro: a correspondência a curriola consolava agora nessa contramão a dor agora chega a espera agora é a sua vez 36 agora estamos em movimento agora pouco sentimental agora sou profissional água água na boca agulhadas ou vertigem das alturas. você pode acordar trinta anos depois com a imagem ainda mais viva quando o quarto está às cegas as cartas as cartas, quando chegavam as lupas desistem as mulheres e as crianças asas batendo atravessa a ponte atravessando a grande ponte atravessa vários túneis da cidade autobiografia. não, biografia aviso que vou virando um avião azul deixo as chaves soltas no balcão azul que não me espanta 37 Num dia branco segura a borda da mesa com Apêndice a Num dia branco (com Lise Sarfati) o cabelo vermelho vamos a cortina em ondas na para a polônia sala, semicírculos de luz ver a neve que cobrem andava tão dispersa assim o chão, pouco a pouco ele nunca conheceu a família com ganas uma imagem recorrente: “dehors de frio. sempre aquele maintenant...” mas não sabe, um movimento pedaço de terra cravado naquele preciso ler outras oceano e viver ali: seu nome coisas a frase cortada não vem no lugar do destinatário não no mesmo ponto fresta de luz mais de 100 quilômetros de onde fala uma gargalhada escuta e a caixa do correio assomada à janela quando o vê quebrada pode deixar a do outro lado da rua procurando o chave que o inquilino encontrará castelo. tem olheira e casaco azul cabelo curto, segura a ponta os cabelos curtos, deitada no sofá da mesa e mastiga as sílabas amarelo. todos falam alguma em sua língua. língua eslava (sabe que perdeu alguém para sempre). no fim do ano, vamos cruzar o estreito. andava tão dispersa assim pelo movimento ele nunca viu a neve. Marília Garcia é tradutora e autora dos livros 20 poemas para o seu walkman (2007) e Um teste de resistores (2014), entre outros. O poema “A garota de Belfast ordena A teus pés alfabeticamente” foi publicado originalmente em A nossos pés (2008), antologia em homenagem a Ana Cristina Cesar, e depois saiu em Um teste de resistores. “Num dia branco” e “Apêndice a Num dia Branco” fazem parte do livro 20 poemas para o seu walkman (2007). 38 Edição Bruno Palma e Silva Lubi Prates Projeto gráfico Bruno Palma e Silva palmaesilva.com.br A Parênteses tem distribuição livre e gratuita, sinta-se à vontade para compartilhar. Não encorajamos, porém, nenhum tipo de adaptação e/ou de uso comercial dos materiais. Nesses casos, os autores devem ser consultados. Todos os textos aqui reunidos são, e sempre serão, de propriedade de suas autoras, cuja gentileza agradecemos. Novas contribuições são sempre bem-vindas, fale conosco! revistaparenteses.com.br facebook.com/revistaparenteses [email protected]