o tratamento do gozo no autismo - Programa de Pós

Transcrição

o tratamento do gozo no autismo - Programa de Pós
Universidade Federal do Rio de Janeiro
O TRATAMENTO DO GOZO NO AUTISMO:
clínica psicanalítica e objetos autísticos
Katia Alvares de Carvalho Monteiro
2011
O TRATAMENTO DO GOZO NO AUTISMO:
clínica psicanalítica e objetos autísticos
Katia Alvares de Carvalho Monteiro
Dissertação de Mestrado apresentada
ao Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica (Instituto de
Psicologia), da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre.
Orientador: Angélica Bastos Grimberg
Rio de Janeiro
Março de 2011
O TRATAMENTO DO GOZO NO AUTISMO:
clínica psicanalítica e objetos autísticos
Katia Alvares de Carvalho Monteiro
Orientador: Angélica Bastos Grimberg
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria
Psicanalítica.
Aprovada por:
_______________________________________
Presidente, Dra. Angélica Bastos Grimberg
Doutora em Psicologia PUC/SP
_______________________________________
Dra. Ana Beatriz Freire
Doutora em Psicologia Clínica PUC/RJ
_______________________________________
Dra. Doris Rangel Diogo
Doutora em Teoria Psicanalítica UFRJ/RJ
Rio de Janeiro
Março de 2011
ii
Monteiro, Katia Alvares de Carvalho
O tratamento do gozo no autismo: clínica psicanalítica e
objetos autísticos / Katia Alvares de Carvalho Monteiro. Rio de
Janeiro: UFRJ/IP, 2011.
ix, 118 f: il.;31 cm
Orientador: Angélica Bastos Grimberg
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Programa de Pós-graduação
em Teoria Psicanalítica, 2011.
Referências Bibliográficas: f. 101-104
1. Autismo. 2. Gozo. 3. Objeto. 4. Direção do tratamento.
5. Lugar do analista. I. Grimberg, Angélica Bastos. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Psicologia, Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítca. III. Título.
iii
A clínica “é o real enquanto impossível de suportar”
(JACQUES LACAN)
iv
Às crianças e adolescentes do NAICAP e do NIJ, com quem muito aprendi, e a seus
pais, que me confiaram seus filhos em tratamento.
v
AGRADECIMENTOS
À Angélica Bastos, pela acolhida de meu tema de pesquisa, pela leitura precisa e orientação
segura, pela generosidade e confiança depositada em meu trabalho, que fez toda a
diferença na escrita deste texto.
À Ana Beatriz Freire, pela parceria de trabalho desde a época do NAICAP até os dias de
hoje, por sua constante interlocução no grupo de pesquisa e por suas considerações
valiosas no exame de qualificação.
À Doris Diogo, pelas indicações preciosas no exame de qualificação desta dissertação.
Aos professores do Programa em Teoria Psicanalítica, pelo ensino da psicanálise, em
especial à Fernanda Costa-Moura e Simone Perelson.
Ao funcionário Zé Luiz, pela ajuda nas questões administrativas.
Aos colegas do mestrado, pela cooperação e, em especial, a Joana Maia, Tatiana, Maria
Luíza Zanotelli e Fábio Malcher, que se mostraram solidários em momentos difíceis.
A Ricardo Peret e Domingos Sávio, por terem sempre apoiado e acreditado no trabalho do
NAICAP.
À equipe do NAICAP, por trilhar, juntos, um caminho inaugural e por sustentar um desejo
sempre vivo pela clínica em um “Espaço de Possibilidades”.
À equipe do NIJ, obrigada pelas parcerias de trabalho.
Aos estagiários e residentes do NAICAP e do NIJ, que, da disponibilidade no ato inaugural
à felicidade do reencontro, deixaram marcas singulares e significativas em uma breve
passagem.
Aos parceiros de trabalho do NAICAP, por sempre mostrarem que é possível caminhar.
Aos colegas do Instituto Philippe Pinel pela cumplicidade, cooperação e companheirismo.
À Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros, pelas preciosas discussões clínicas e supervisões.
Às amigas Silvia, Malu, Teca, Ana Clara e Sheila, pela amizade, mesmo que à distância.
Às minhas amigas de colégio, que suportaram, com humor, minhas ausências nos encontros
das quintas-feiras.
À Monique Cunha, por tantos anos de trabalho, em que compartilhamos, lado a lado,
nossas dúvidas e inquietações, mas também muitos avanços, e pela amizade, sempre.
À Claudia Cadaval, por sua amizade, pelo feliz encontro de trabalho e pelo apoio e
incentivo nos momentos difíceis desta dissertação.
À Regina Fampa, parceira de trabalho e amiga querida, por acreditar em meu trabalho.
À Jeanne Marie, pela parceria inestimável no trabalho clínico, na leitura de minhas ideias,
nas discussões sempre especiais, pela ajuda nos momentos cruciais e por construir
comigo os caminhos de uma amizade.
Aos meus irmãos Vânia e Marco, pela alegria da vida.
Ao meu pai, Orlando, de quem herdei a paixão pelos livros, agradeço o apoio e o incentivo
de que é possível sempre dar um passo a mais.
A minha mãe, Hila (in memoriam), que soube me acompanhar em meus passos e me
transmitir a coragem e a determinação necessárias no meu caminhar.
À Rosita, por reconhecer a particularidade de meu trabalho.
Ao Fernando, pelo amor, carinho, generosidade e paciência ao longo desta trajetória, com
quem pude compartilhar as angústias e as alegrias.
Ao meu filho Bernardo, por suportar serenamente minhas ausências e por me deixar sentir
a alegria do encontro, e que, de forma carinhosa, me dirigia sempre uma palavra de
incentivo.
vi
RESUMO
O TRATAMENTO DO GOZO NO AUTISMO:
clínica psicanalítica e objetos autísticos
Katia Alvares de Carvalho Monteiro
Orientadora: Angélica Bastos Grimberg
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Teoria Psicanalítica.
Investigamos nesta dissertação o estatuto do objeto na clínica do autismo.
Retiramos balizas da obra de Freud e dos ensinamentos de Lacan, em uma articulação
com o campo da clínica. Partimos da premissa de que o uso dos objetos pelo autista não
é aleatório ou sem propósito. Sustentamos que há um trabalho realizado por ele quanto
ao tratamento dado aos objetos. O objeto torna-se um instrumento privilegiado nas
invenções inéditas deste trabalho. O autista inventa com seus objetos. A partir de um
caso clínico, escutado durante 16 anos, situamos a construção do objeto autístico, como
uma via de refreamento do excesso pulsional. Acompanhamos a criação de seu duplo
protetor, em sua função regulatória, que lhe permitiu a localização do gozo, e em
seguida verificamos seu trabalho para extrair de lalangue um significante que situa seu
saber-fazer com o gozo. Em nosso percurso, recorremos às descrições de Kanner (1943)
e Asperger (1944) para as síndromes do Autismo Infantil Precoce e Psicopatia
Autística, respectivamente. Dos preciosos comentários de Lacan acerca do autismo,
extraímos balizamentos que inserem o autismo no campo das psicoses. A partir do
mecanismo de foraclusão do Nome-do-Pai, realizamos uma leitura do conceito de
objeto e abordamos as noções de duplo e lalangue, situando sua importância na clínica.
Por fim, procuramos cernir o lugar que o analista ocupa na clínica do autismo,
sustentando um lugar vazio de gozo, deixando-se regular pelo trabalho do sujeito,
através de uma presença regulada seja nas sessões, seja nas oficinas.
Palavras-chave: Autismo. Gozo. Objeto. Direção do tratamento. Lugar do analista.
Rio de Janeiro
Março de 2011
vii
RÉSUMÉ
O TRATAMENTO DO GOZO NO AUTISMO:
clínica psicanalítica e objetos autísticos
Katia Alvares de Carvalho Monteiro
Orientadora: Angélica Bastos Grimberg
Résumé da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Teoria Psicanalítica.
Dans ce mémoire, balisé par l´oeuvre de Freud et l´enseignement de Lacan, nous
examinons dans le champ de la clinique de l´autisme, le statut de l´objet. Nous posons
que l´utilisation des objets par un autiste n´est ni aléatoire ni sans dessein, en soutenant
qu´un autiste réalise une véritable élaboration dans le traitement donné aux objets.
L´objet devient l´instrument privilégié des inventions singulières de cette élaboration.
L´autiste invente avec ses objets. À partir d´un cas clinique, écouté depuis 16 ans, nous
considérons la construction de l´objet autistique comme une voie pour réfréner l´excès
pulsionnel. Nous avons accompagné la création de son double protecteur, dans sa
fonction régulatrice, ce qui lui a permis de localiser la jouissance. Ensuite nous avons
vérifié son travail pour extraire de lalangue un signifiant qui situe son savoir-faire avec
la jouissance. Pour bâtir notre étude, nous nous sommes servi des descriptions,
respectivement, de Léo Kanner (1943) pour la Psychopathie Autistique et de Hans
Asperger (1944) pour L´Autisme Infantile Précoce. Et puis, avec les commentaires de
Lacan, nous avons dégagé des indices qui insèrent l´autisme dans le champ des
psychoses. À patir du mécanisme de la forclusion du Nom-du-Père, nous effectuons une
lecture du concept d´objet et nous abordons les notions de double et de lalangue, en
situant leur importance dans la clinique. Pour finir, nous avons cherché à cerner la place
que l´analyste occupe dans la clinique de l´autisme, une place vide de jouissance, régulé
par le travail du sujet. Et par le fait de sa présence aux sessions ou aux ateliers.
Mots-clés: Autisme. Jouissance. Object. Direction du traitement. Place de l’analyste.
Rio de Janeiro
Março de 2011
viii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
10
CAPÍTULO 1 – Autismo: Definições Preliminares e ponto de partida clínico 17
1.1 O Autismo de Kanner e a Síndrome de Asperger
1.2 O autismo e a foraclusão do Nome-do-Pai
1.3 Caso Clínico: O trabalho de André
1.3.1 História Clínica
1.3.2 Quatro momentos lógicos do trabalho subjetivo de André
CAPÍTULO 2 – Significante, gozo e lalangue no autismo
2.1 Repetição como retorno de gozo
2.1.1 O jogo Fort-da: primeira simbolização
2.2 O significante como causa de gozo e lalangue na clínica do autismo
CAPÍTULO 3 – Os objetos na clínica do autismo
20
26
31
33
35
37
39
40
44
52
3.1 O objeto na clínica do sujeito
3.2 O uso dos objetos na elaboração da defesa autística
3.2.1 A construção dos objetos autísticos
3.2.2 O duplo do autista
3.3 O retorno de gozo na construção da borda na defesa do autista
3.3.1 O Estádio do Espelho
3.3.2 O Esquema Óptico
53
60
66
69
73
73
79
CAPÍTULO 4 – O autista e a construção de seus objetos: O Caso André
84
4.1 Primeiro Momento: Das conexões regradas ao “chega de conversa”
4.2 Segundo Momento: A criação do duplo: Paula Madalena
4.3 Terceiro Momento: Da morte das senhoras Madalenas às gravações
de programas: O Radialista
4.4 Quarto Momento: Discurso de Conversa Coletiva
4.5 O objeto nas Oficinas: Direção de trabalho clínico em instituição
84
85
89
90
93
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
101
IMAGENS ANEXAS
106
ix
INTRODUÇÃO
Ainda como estudante de Psicologia, deparei com questões que a prática clínicoinstitucional, desenvolvida numa enfermaria de um grande hospital psiquiátrico (Centro
Psiquiátrico Pedro II1 – Rio de Janeiro), levantava. Questões que envolviam o manejo
clínico, em uma instituição, com pacientes psicóticos adultos. Mas foi no trabalho,
alguns anos depois, com crianças e adolescentes, particularmente com as crianças
autistas e psicóticas, no Instituto Municipal Philippe Pinel (RJ), que estas questões
ganharam relevo, a partir dos impasses clínicos vividos em uma experiência
institucional com esta clientela.
Desde então, a clínica do autismo é a nossa questão de estudo e pesquisa. Fazer
desta clínica um ponto de interrogação não é sem consequências para quem nela
trabalha, na medida em que cotidianamente somos confrontados com o que há de mais
radical na constituição de um sujeito.
Esta experiência clínico-institucional teve como ponto de partida o trabalho
desenvolvido no NAICAP – Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e
Psicótica2. O NAICAP, uma iniciativa pioneira do Ministério da Saúde, surgiu no final
dos anos 80, com a intenção de elaborar uma proposta institucional de trabalho trazendo
para a cena principal a complexidade clínica de crianças ditas autistas e psicóticas.
Inaugurava-se um espaço de tratamento que dava visibilidade e transparência à questão
das crianças e adolescentes com graves transtornos mentais que, na época, procuravam
atendimento em ambulatórios da rede pública de saúde.
Por meio do funcionamento institucional, diversos dispositivos de tratamento
foram construídos a fim de possibilitar que a criança fizesse sua entrada no campo da
fala. Os clínicos estavam avisados de que a fala, para o autista, ganha uma dimensão de
trauma e devastação; particularmente, a fala daqueles que dele se ocupam. Isso nos
permite considerar que a estratégia utilizada pelo autista é uma estratégia para protegerse do verbo (Lacan, 2003[1967]), o que demonstra que a função da fala não se encontra
estabelecida como mediadora.
1
Atualmente Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira.
Em 2004, o NAICAP se unificou com o COIJ, outro serviço infantil do Instituto Municipal Philippe
Pinel sob nova denominação, NIJ – Núcleo Infanto-Juvenil.
2
10
Este trabalho não se localiza no terreno pantanoso das tentativas de explicação
da etiologia do autismo; trata-se, antes, de situar o sujeito a respeito do qual falamos.
Nosso interesse está, efetivamente, no campo da causação do sujeito cujas coordenadas
estruturais estão na base da orientação de nossa clínica. Identificar somente o
mecanismo neurobiológico específico que responda à etiologia do autismo não nos diz
muita coisa, na medida em que isso não nos mostra as possíveis respostas (e são elas
infindáveis) que o sujeito irá construir frente aos problemas colocados por sua história,
seu corpo, seu organismo.
Para a psicanálise, a questão do sujeito é de ordem distinta daquela colocada
pelo organismo. Segundo Arsermet (1997), não é o caso de
opor-se àqueles que consideram o autismo como uma doença neuronal
rara, um problema genético, neurobiológico específico”. [Na clínica
psicanalítica], “não se trata [...] de uma busca sistemática de uma
psicogênese, numa visão simplista de um determinismo psíquico. [...]
Como o diz Lacan em seu Seminário III, o grande segredo da
psicanálise, é que não existe psicogênese (ARSERMET, 1997: 90).
Efetivamente estamos no campo da causação do sujeito.
Frente aos enigmas da clínica do autismo, a classificação diagnóstica tem sido
muito frequentemente a única solução possível diante da impossibilidade de uma escuta.
Em nome de uma ciência, lança-se mão de drogas sofisticadas, de operações cirúrgicas,
de intervenções cujo reforço é um instrumento de trabalho num mundo regido pelo
tecnicismo, sem que se pense nos efeitos simbólicos de tal intrusão.
Desde o ato inaugural de Leo Kanner (1943), temos assistido ao crescente
interesse pelo autismo. A formação e a construção de práticas e saberes dirigidos a estes
sujeitos têm sido impressionante. Atualmente, vemos o incremento dos relatos de pais
de filhos autistas e os testemunhos dos próprios autistas de alto desempenho (quando é
possível relatar suas experiências), os quais são transformados, pelo mundo afora, em
farta e abundante literatura. No Brasil, esta realidade é bastante semelhante. A cada
momento vemos brotar publicações as mais diversas, com abordagens as mais variadas.
O autismo tem recebido uma atenção significativa, seja através da mídia, seja pelos
trabalhos nas áreas da saúde e da educação. Este contexto não é muito diferente no que
se refere aos trabalhos na clínica psicanalítica com autistas.
A inclusão da Síndrome de Asperger em nossa pesquisa aponta para a atual
inclinação de se considerar as manifestações fenomenológicas próprias às síndromes,
11
descritas por Kanner e Asperger, como expressões de um mesmo quadro, com a
presença de dificuldades de aquisição de aptidões cognitivas, linguísticas, motoras e
sociais, caracterizando o espectro autístico. Tal tendência se verifica na inclusão dos
dois quadros entre os Transtornos Globais do Desenvolvimento no CID X
(Classificação Internacional de Doenças – décima edição) e os Transtornos Invasivos do
Desenvolvimento no DSM IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders).
Desde a tradução, para o inglês, do texto de Asperger por Utah Frith (1991),
observam-se importantes debates quanto a se as duas síndromes devem ou não ser
reunidas em um mesmo quadro e, caso sejam reunidas, se devem ou não pertencer ao
quadro das esquizofrenias.
Vale registrar e ressaltar que ambas as classificações retiraram a psicose na
criança dos quadros psicopatológicos característicos da infância, para incluí-la nos
transtornos do desenvolvimento. Este trabalho não pretende problematizar esta questão,
mas sublinhar que a psicose, na criança, foi subtraída da condição de sujeito, sendo
encerrada e condicionada a um problema de desenvolvimento.
O autismo é um diagnóstico do campo psiquiátrico. Objeto de discussões e
controvérsias, o conceito de autismo vem ao longo dos anos protagonizando, tanto no
campo teórico como no dos dispositivos assistenciais, iniciativas as mais diversas e com
diferentes direções. A cada ano constatamos que muitos profissionais, entre eles
psicanalistas, vêm se dedicando ao estudo do tema. Conduzidos a partir da clínica,
diversos psicanalistas abordam a questão do autismo sob diferentes óticas, apresentando
hipóteses muitas vezes distintas no que se refere a sua diferenciação ou aproximação do
campo das psicoses.
Neste cenário, trava-se um debate vigoroso em torno do uso do objeto autístico.
Há aqueles que acreditam que tais objetos devem ser abandonados para permitir que a
criança se interesse por outros mais adequados em suas funções sociais e saia de seu
retraimento, fomentado por esse único e singular objeto de investimento. Outros são
partidários e favoráveis ao cuidado, ao respeito e à importância que estes objetos
adquirem no tratamento dos autistas. De toda forma, constatamos que há diferenças
significativas, níveis diferentes de elaboração do tratamento dado aos objetos pelos
autistas.
Tanto no trabalho clínico com os autistas como nos relatos de suas experiências,
deparamos com o apego muito especial que eles têm a um objeto. Parecem não poder
prescindir da presença do objeto a seu lado, muitas vezes colado ao corpo, dando a
12
impressão de que este proporciona certa segurança e ganha maior importância do que as
pessoas. O objeto acompanha o sujeito por toda a parte, estando permanentemente
acoplado a ele.
Temple Grandin, através do relato de sua experiência, é incisiva e contundente
quando alerta sobre o perigo de se retirar os objetos de um autista: “meu uso da
máquina de pressão provocava polêmica entre terapeutas, amigos e parentes.
Chegaram mesmo a tentar tirá-la de mim. A longo prazo, isso me prejudicou”
(GRANDIN, 2006:110)
Segundo Temple, isto a deixou predisposta a novos ataques de nervos. Mas ela
própria oferece uma saída quando, segundo Maleval (2009), percebe a importância de
alargar o campo obsessivo e tentar orientar o interesse manifestado
pelo autista na direção de atividades construtivas. Por exemplo, se
uma criança é fanática por barcos, é preciso tirar proveito dessa
obsessão para incitá-la a ler, estudar Matemática, consultar livros
especializados e a resolver problemas de velocidade e de nós. As
fixações são uma fonte de motivações. Leo Kanner declarou, um dia,
que o caminho do sucesso para alguns autistas consistia em
transformar uma fixação em carreira profissional (GRANDIN apud
MALEVAL, 2009b:224).
Na clínica, encontramos os mais variados objetos, sejam os mais simples, como
um pequeno fio de barbante ou uma peça de brinquedo, sejam os mais sofisticados e
elaborados, como as máquinas de Joey de Bruno Bethelheim (1987) ou a máquina de
pressão de Temple.
Muitos psicanalistas procuraram estabelecer o estatuto de tais objetos para os
autistas, a importância ou não de seu uso no trabalho psicanalítico, construindo hipóteses e
apresentando propostas de trabalho para sua utilização. Frances Tustin (1984) saiu na
dianteira e conceituou o objeto autístico, conferindo-lhe um caráter patológico, mesmo
reconhecendo que a sua presença faz com que o autista se sinta protegido.
Os autistas nos ensinam a não descuidar do uso particular que fazem dos objetos.
Situamos nossa direção de trabalho no momento que entendemos que tal uso possui uma
lógica. É possível nos aproximarmos de um autista quando nos dirigimos ao objeto, e não
diretamente a ele, ou, ao nos entretermos com qualquer objeto, é muitas vezes possível
sentir sua aproximação.
13
Parece-nos que há um trabalho de regulação do gozo realizado pelos autistas.
Nesta perspectiva, pretendemos situar nossa pesquisa em torno da construção do
objeto autístico e de sua relação com as diversas modalidades no trabalho de localização
do gozo. O objeto torna-se um instrumento privilegiado nas invenções próprias e
inéditas do trabalho do autista.
Lacan (1995[1956-57]:11]) recomenda que, em psicanálise, teoria e prática
coincidam, que uma não se dissocie da outra. Abordaremos a temática, em um primeiro
momento, enfatizando a articulação entre os conceitos e, em um segundo momento,
destacaremos o campo da clínica.
Considerando a singularidade da clínica com o autista e buscando apoio nos
ensinamentos de Freud e Lacan, nossa pesquisa irá se definir em torno das modalidades
de fixação do gozo pela via do objeto. Para tal, dividiremos nosso trabalho em quatro
capítulos.
No primeiro capítulo, recorreremos às descrições de Leo Kanner (1943) e Hans
Asperger (1944), a fim de apresentar as síndromes do Autismo Infantil Precoce e da
Psicopatia Autística, respectivamente. Kanner, como diretor do primeiro serviço de
psiquiatria infantil dentro de um hospital pediátrico, marcou de forma significativa a
psiquiatria infantil da época ao propor, em nome de uma síndrome, uma classificação
própria à criança, distinta da clínica psiquiátrica do adulto. Os trabalhos de Asperger, o
qual desconhecia os estudos de Kanner, seguiram a mesma direção.
As elaborações teóricas de Freud são anteriores à descrição da síndrome do
autismo, mas tiveram certa influência nos estudos bleulerianos sobre a particularidade
do autismo, como sintoma, no quadro da esquizofrenia. Lacan, contemporâneo a esta
descrição, pouco se deteve acerca do autismo, mas sua abordagem da psicose, fundada
na clínica, brindou aqueles que com ele trabalha com indicações importantes.
Lacan (1975b) estabelece uma aproximação do autismo com o campo da
psicose. Por esta perspectiva, abordaremos neste capítulo a operação da foraclusão do
significante Nome-do-Pai, ordenador simbólico da cadeia significante, por entender que
o autismo se situa na não inscrição deste operador.
Finalizaremos este capítulo com a apresentação do caso André. O trabalho
clínico com este autista de alto desempenho permitiu situar a importância do objeto
autístico como uma modalidade de tratamento de localização de gozo que se
14
apresentava de forma excessiva. Aqui, apresentaremos os momentos lógicos deste
trabalho em suas linhas gerais.
No segundo capítulo, tomaremos como eixo a formulação de que a repetição é o
gozo (LACAN, 1969-70:44). É a partir da definição clássica lacaniana do significante
como aquilo que faz representar um sujeito junto a outro significante que se verifica o
alcance desta formulação, quando se refere à “repetição inaugural, na medida em que
ele é repetição que visa o gozo” (:45). Desta forma, discutiremos o jogo freudiano do
Ford-da, entendido como tratamento do excesso traumático, via repetição. No caso do
autista, veremos que tanto a repetição de seus movimentos como a repetição ecolálica se
estabelecem em uma repetição de gozo, no real, e, neste caso, o significante não remete
a outro significante.
Neste capítulo, mantendo como horizonte a noção de gozo e a nova concepção
de significante, aquilo que Lacan afirma ser o significante causa de gozo, abordaremos,
em uma articulação entre gozo e significante, o conceito de lalangue. Este conceito nos
permitirá estabelecer articulações com a clínica do autismo, reconhecendo aí o trabalho
que cada sujeito realiza em uma tentativa de produzir-se, extraindo de lalangue um
significante, o qual fixa o gozo. Esta articulação nos permitirá situar a contribuição
desse conceito para o trabalho analítico com os autistas.
No terceiro capítulo, a partir da importância capital que os objetos adquirem na
clínica do autismo, examinaremos o conceito de objeto. Em Freud, recorreremos à
experiência de satisfação descrita no Projeto para uma psicologia científica (1976
[1895]:421). Em Lacan, trabalharemos a partir de sua formulação de que “o homem
pensa com seu objeto” (LACAN, 1964:63), e que somente tem acesso a ele a partir do
outro enquanto objeto do desejo do outro (LACAN, 1955-56:50), situado na falta de
objeto (1956-57:67). Remeter-nos-emos à noção de objeto a lacaniano, objeto causa de
desejo.
Abordaremos a operação de subtração do objeto, operação não realizada no
autismo. O recurso aos textos freudianos e lacanianos, bem como à nossa experiência
clínica, nos permitirá a elaboração da hipótese de investigação desta pesquisa, qual seja,
a de que todo o trabalho do autista vai na direção de construir um objeto fora do corpo
para fazer frente a essa subtração (do objeto) que não se operou. Isto o deixa, por um
lado, à mercê dos efeitos decorrentes do não distanciamento entre o gozo e o corpo, e,
por outro, da ausência da montagem do circuito pulsional. Para tanto, o autista inventa,
com seus objetos, uma tentativa de operar certa modalização ou regulação de gozo.
15
Igualmente, vamos nos apoiar nas elaborações de Jean-Claude Maleval acerca da
construção dos objetos autísticos, extraídas de sua investigação realizada a partir dos
testemunhos de autistas de alto nível. Bastante comuns hoje em dia, tais testemunhos se
encontram nos livros publicados por autistas como Temple Grandin (2006), Donna
Williams (1992), Daniel Tammet (2006), B.Sellin (2004), entre outros.
Na formulação de Maleval, o uso do objeto, na defesa autística, instaura “uma
borda entre o sujeito e o Outro do desejo” (1997:137). Segundo Eric Laurent, citado
por Maleval (2009), esta defesa é definida como retorno do gozo sobre a borda. Para
investigar o alcance dessas formulações, recorreremos à teoria do estádio do espelho e
ao esquema óptico de Lacan.
No estádio do espelho, momento inaugural da constituição da totalidade
imaginária do corpo (originalmente despedaçado) a partir da mediação do Outro,
verificaremos a ocorrência de fenômenos de desordem pulsional na clínica do autismo.
Isso nos permitirá indicar que a demarcação no corpo das zonas erógenas, a partir da
montagem do circuito pulsional, constitui um problema para os autistas.
Do esquema óptico, depreendemos que, no caso do autismo, a imagem especular
pode não se constituir pela não extração do objeto a do campo do Outro, necessária a
sua constituição.
Trabalharemos com a hipótese de que, no autismo, a instauração da relação
especular configura um problema, uma vez que a assunção imaginária da totalidade
corporal não se efetua, o que impede a demarcação das zonas erógenas que não
constituem bordas corporais. Como veremos o retorno do gozo, no caso do autismo,
seria no real dos próprios buracos do corpo que não se constituíram como bordas
erógenas.
Por fim, no quarto capítulo, apresentaremos a análise do caso André, destacando
a forma inédita de sua solução no tratamento dado ao real do gozo, não fixado pelo
significante.
Na seção intitulada O Objeto nas Oficinas – Direção do Trabalho Clínico em
Instituição, circunscreveremos as questões e impasses encontrados no cotidiano do fazer
clínico nas oficinas, no que se refere à função do objeto. Para tanto, abordaremos a
direção do trabalho clínico na instituição e o lugar que o analista pode ocupar nesta
clínica.
16
CAPÍTULO I – AUTISMO: DEFINIÇÕES PRELIMINARES E PONTO DE PARTIDA CLÍNICO
Em seu texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”
(1958), Lacan nos faz uma convocação: não recuar diante da psicose. Para aqueles que
trabalham com a clínica do autismo e consideram que os fenômenos observados nesta
clínica mostram um sujeito em trabalho (RIBEIRO, 2005), uma convocação faz cernir
toda uma direção de tratamento, a saber: não ceder diante do trabalho que o autista
realiza numa tentativa de constituir-se.
Alçar em estatuto de trabalho os estranhos comportamentos dessas crianças ditas
autistas e psicóticas não foi sem consequências para o exercício clínico com elas. Não
são meras disfunções fenomenológicas como quer a Medicina, mas situam a posição
desta criança com relação ao Outro, uma resposta para fazer frente a um Outro
caprichoso, invasor e desregrado. Um Outro que se constitui para a criança psicótica
como compacto e se apresenta pleno de gozo.
É na condição de sujeito, imerso em uma ordem simbólica que o constitui, que a
psicanálise aborda o ser humano. Lacan nos adverte:
Não esqueçam jamais que nada do que diz respeito ao comportamento
do ser humano como sujeito, e ao que quer que seja no qual ele se
realize, no qual simplesmente ele é, não pode escapar de ser
submetido às leis da fala. (LACAN, 1985 [1955-56]:100).
A psicanálise aponta para o fato de que a constituição do sujeito não está
garantida a partir de sua maturidade biológica, mas que o sujeito humano se constitui
graças à mediação operada pela linguagem (LACAN, 1988 [1959-1960]:49). Segundo
esta perspectiva, esta tão estranha criança se encontra submetida ao significante. A
linguagem, para a psicanálise, não coincide com a comunicação ou mesmo com a
linguística.
Mas o autista é conhecido como aquele cuja posição singular na rede da
linguagem e sua relação ao simbólico se processa de forma diferente. Diferença essa
que certamente irá comprometer sua constituição subjetiva, sua circulação no campo
social e sua relação com o outro.
Não desconhecemos o quanto a psicose se apresentou como uma importante
questão clínica para Lacan, exigindo, em diversos momentos de seu ensino, consistentes
articulações teóricas, o que provocou uma reviravolta em sua própria teoria acerca da
17
psicose. Sobre o autismo, pouco se deteve, mas algumas de suas contribuições
trouxeram importantes indicações para aqueles que com ele trabalha. Referimo-nos,
particularmente, a dois textos. O primeiro, já mencionado, intitulado “Alocução sobre as
psicoses da criança”, foi apresentado em outubro de 1967 como conclusão das jornadas
realizadas sobre o tema das psicoses da criança. Segundo Lacan, uma alocução
improvisada para homenagear Maud Mannoni, organizadora do evento. O segundo
texto, por sua vez, intitula-se “Conferência em Genebra sobre o sintoma” (1975).
Nos seus poucos, porém preciosos comentários acerca do autismo, Lacan o
aproxima da esquizofrenia. Na conferência sobre o sintoma em Genebra, Lacan indica o
ponto de aproximação ao dizer que: “Se trata de saber por que há algo no autista ou no
chamado esquizofrênico, que se congela” (LACAN, 1988 [1975b]:134). Ainda nesta
conferência, assinala que os autistas “escutam a si mesmos”, “não se pode dizer que
eles não falam”. “Que [você] tenha dificuldade em escutá-los, para dar seu
entendimento ao que dizem, não impede que sejam, finalmente, personagens bastante
verbosos” e também que “nem todos os autistas escutam vozes” (LACAN, 1975b:1345). Extrair desdobramentos desses comentários, demonstra-se uma posição ética para
quem trabalha junto ao autista. São comentários que constituem balizamentos
fundamentais para sustentar este trabalho. Os autistas são tomados como sujeitos na
medida em que são afetados pelo campo da linguagem. Referimo-nos, no autismo, à
hipótese de que o autista está mergulhado, mas não articulado, na linguagem. Mesmo
que uma fala não seja endereçada, como é no caso dos autistas, podemos tomá-la como
uma produção do sujeito.
A esse propósito, Lacan avança na direção de considerar que os autistas
articulam muitas coisas e que certamente temos algo a lhes dizer. Cabe aqui verificar o
que eles articulam quando não nos ocupamos deles (LACAN, 1988[1975b]:134).
Nossa abordagem do tema pretende se orientar situando o autismo no campo das
psicoses, na medida em que, no caso do autismo, a questão que se coloca é a foraclusão
do Nome-do-Pai. Mas podemos reconhecer que, neste caso, trata-se de uma forma mais
grave de assujeitamento à linguagem, e também de reconhecer a particularidade da
relação do autista ao significante e ao gozo. Aqui, o centro da questão é a clínica no
campo da psicose e, em particular, a do autismo, que nos ensina sobre as soluções
encontradas por cada autista face à foraclusão do Nome-do-Pai. Soluções, próprias e
inéditas, esboçadas e apresentadas pelo próprio autista na tentativa de localizar e regular
o gozo desenfreado e transbordante.
18
Desta forma, podemos identificar, no trabalho empreendido pelo autista, uma
transformação daquilo que o visa, em uma possibilidade de refreamento do gozo,
anteriormente experimentado como invasivo e desregrado. Lacan sublinha o
reconhecimento deste trabalho ao identificar que
[...] seria assim concebível como contornando o furo cavado no campo
do significante pela foraclusão do Nome-do-Pai. É em torno desse
buraco em que falta ao sujeito o suporte da cadeia significante [...] que
se trava toda a luta em que o sujeito se reconstrói (LACAN,
1998[1958]:570).
No caso do autismo, identificamos aí uma luta para constituir-se sujeito. O que
gostaríamos de ressaltar, com esta passagem lacaniana e com o que a clínica da psicose
e do autismo testemunha, é que os fenômenos próprios a esses quadros clínicos ganham
o estatuto de um trabalho, esvaziando qualquer tentativa de se estabelecer uma
abordagem de cunho deficitário.
Iniciaremos este capítulo com uma breve leitura dos textos de Leo Kanner
(1943) e de Hans Asperger (1944).
Kanner descreve fenômenos que, posteriormente, foram reunidos sob o nome de
Síndrome do Autismo Infantil Precoce. Ato inaugural que trouxe à luz a experiência
radical de algumas crianças imersas na escuridão do anonimato. Ele conta suas histórias,
extrai suas particularidades e retrata a raridade de suas características. Coloca em
movimento uma clínica que até então conhecia apenas a escuridão dos porões da
debilidade (BERCHERIE, 1992). Esta clínica vai motivar e incentivar estudos e
pesquisas sobre essa tão estranha criança.
Contemporâneo a Kanner, Hans Asperger encontrará, em seu trabalho clínico,
crianças cujas características se assemelham às descritas por Kanner, mas que diferem
em aspectos importantes. Por exemplo, estas crianças não se apresentavam tão retraídas
ou alheias como as descritas por Kanner e muitas delas desenvolviam, de forma precoce
e do ponto de vista gramatical, uma linguagem correta. A ausência da “desintegração da
personalidade” entre os sintomas das crianças com psicopatia autística será decisiva
para Asperger estabelecer uma diferenciação com o quadro das esquizofrenias.
Na sequência do capítulo, abordaremos o conceito de foraclusão do significante
Nome-do-Pai, o qual implica o retorno, no real, daquilo que foi foracluído no simbólico.
Finalizaremos o capítulo introduzindo o caso de André, naquilo que nos permitiu
levantar e interrogar a construção do objeto autístico e sua relação com as diversas
19
modalidades no trabalho de localização e circunscrição de gozo, como possibilidades de
seu refreamento, que se apresentava de forma excessiva. O caso de André em seu
tratamento conceitual será apresentado no último capítulo.
1.1 – O AUTISMO DE KANNER E A SÍNDROME DE ASPERGER
O termo autismo foi utilizado pelo psiquiatra suíço Engen Bleuler (1998[1916]),
em 1911, para designar o desinvestimento em relação ao mundo exterior, ocorrendo
uma perda do contato com a realidade e a impossibilidade de comunicação com os
demais. Junto aos sintomas da ambivalência afetiva e dos distúrbios das associações e
da afetividade derivados da dissociação psíquica, o autismo era considerado um dos
principais sintomas da esquizofrenia. Associava-se a uma sintomatologia bastante
abrangente da esquizofrenia, noção definida por Bleuler ao rebatizar a demência
precoce de Kraepelin.
No fundo, a nova nomeação baseia-se sobre a aplicação, à maior parte
dos sintomas esquizofrênicos, da “psicologia dos complexos”, de
Sigmund Freud, que à maneira das primeiras análises freudianas, lhes
restitui um sentido na vida afetiva e na história do sujeito
(SANTIAGO, 2005:45-46).
O autismo era compreendido como uma expressão da “dissociação psíquica”,
referindo-se ao predomínio da emoção sobre a percepção da realidade. Inventado por
Havellock Ellis (1899), o termo teve como fonte a subtração de eros da expressão
auto(ero)tismo. Esta expressão, mais tarde, foi retomada por Freud. De acordo com
Fedida (1992), Bleuler, à semelhança de Freud, comparou o autista a um ovo protegido
em sua necessidade de se autoalimentar, gerando, como consequência, uma
autossuficiência.
Leo Kanner, médico austríaco especialista em psiquiatria pediátrica radicado nos
Estados Unidos, então Diretor do Serviço de Psiquiatria Infantil do Johns Hopkins
Hospital, em Baltimore, descreveu, em 1943, uma síndrome de contornos muito
particulares no quadro das psicoses infantis, a Síndrome do Autismo Infantil Precoce.
Marco inaugural de um campo de práticas e investigações específicas à criança.
Desde 1938, Kanner teve sua atenção dirigida a um grupo de crianças cujas
dificuldades diferiam marcadamente de tudo o que havia sido descrito anteriormente. O
interessante é que, ao iniciar seu artigo, intitulado “Os Distúrbios Autísticos de Contato
20
Afetivo” (1997[1943]) e publicado na revista Nervous Children, Kanner ressalta a
importância de se abordar cada caso em sua singularidade, levando em consideração
suas “fascinantes particularidades” (1997[1943]:111). Apesar de reconhecer diferenças
individuais nos distúrbios apresentados pelas crianças na evolução de seus quadros
psicopatológicos e na constelação familiar, Kanner identifica características comuns
essenciais que concorrem para a nomeação de uma síndrome única.
Por ele foi destacada, como característica deste quadro, a incapacidade para
estabelecer relações com as pessoas e situações desde o início da vida. Em seu artigo,
Kanner identifica duas características fundamentais no quadro do autismo, a saber: a
solidão autística, que se manifesta na busca de um isolamento extremo, e a
imutabilidade, que se evidencia na recusa de toda e qualquer modificação no ambiente
externo, o que limita sobremaneira a variedade da atividade espontânea.
Kanner nos fala de Juan, uma das crianças por ele avaliada. Quando seus pais
preparavam a mudança para uma casa nova, Juan se mostrou alterado ao ver os homens
embalando os móveis de seu quarto. Somente se acalmou quando, já na casa nova,
verificou que todos os móveis foram dispostos da mesma maneira que antes. Nesse
momento, acariciou os móveis, passando as mãos sobre cada um deles. (Outras crianças
podem ficar extremamente angustiadas quando um objeto se quebra ou ao ver algo
incompleto. Outras ainda podem exigir que o caminho de retorno de um passeio deva
ser percorrido rigorosamente igual ao da ida.)
Em seu ato inaugural, Kanner apresentou os distúrbios do contato afetivo,
relacionando o autismo ao quadro esquizofrênico e o definindo como um alheamento
extremo desde o início da vida. Kanner descreveu 11 crianças (oito meninos e três
meninas), por um período de cinco anos, cujas tendências ao retraimento foram
observadas já no primeiro ano da vida. Sugeriu para este quadro o termo Autismo
Infantil Precoce, cujo denominador comum em todas essas crianças era uma
incapacidade para relacionar-se de maneira habitual com as pessoas e as situações desde
o começo da vida.
A maioria destas crianças lhe foi encaminhada com o diagnóstico de debilidade
mental ou com um possível comprometimento auditivo3. Algumas crianças foram
3
Marie-Christine Laznik-Penot, em seu livro Rumo à Palavra: três crianças autistas em psicanálise
(1997), desenvolve a ideia de que há uma estreita relação entre a ausência de uma forma muito particular
da mãe em falar com seu bebê – o “estilo manhês” (Mehler e Dupoux, 1990:214) – e a aparente surdez
das crianças autistas. Estas crianças demonstram uma surdez específica à voz humana, ao passo que
reagem a outros ruídos produzidos por objetos mecânicos.
21
consideradas fracas de espírito ou esquizofrênicas, idiotas ou imbecis4. Mesmo que a
maioria destas crianças tenha recebido tal diagnóstico, Kanner registra que elas eram
“dotadas de boas potencialidades cognitivas. Todas têm fisionomias notavelmente
inteligentes” (KANNER, 1997[1943]:165).
Seus pais as descreviam como autossuficientes, como se numa concha, reagindo
como se as pessoas não existissem, parecendo ignorá-las. “As histórias dos casos
indicam invariavelmente a presença, desde o início, de uma solidão autística extrema, e
que, sempre que possível, se fecha a tudo o que chega à criança do exterior”
(KANNER, 1943:768/9). Kanner irá tomar este ponto como fundamental para a
distinção entre o autismo e a esquizofrenia infantil. O que se observava na esquizofrenia
infantil era o fato de que as crianças estabeleciam relações e vínculos até uma
determinada idade, quando, então, se desencadeava algo da ordem da psicose e esse
vínculo era interrompido. Já isto não ocorria com a criança autista, cujo vínculo, desde o
início, não se estabelecia. O autismo se distancia da esquizofrenia infantil no que
Kanner o define como uma perturbação inata do contato afetivo, uma incapacidade, por
parte da criança, para constituir biologicamente esse contato.
Segundo a descrição de Kanner, na criança autista podem ser observadas tanto
uma ausência de movimentos antecipatórios quanto de movimentos de ajustamento à
pessoa que a sustenta. Lembro-me de uma criança, um menino de três anos, que
permanecia rigidamente imóvel ao ser colocado no colo. Só muito tempo depois, já com
seu tratamento em andamento, foi possível para ele ser carregado no colo sem que seu
corpo se mantivesse rígido, inflexível.
Também são frequentes, nesses casos, os movimentos ritualizados, a utilização
de maneira estereotipada dos objetos, os quais são manipulados de forma repetitiva. O
interesse por movimentos circulares é grande.
Os distúrbios da linguagem também estão presentes na descrição de Kanner. A
linguagem pode não se desenvolver, como no caso do mutismo. Quando a linguagem é
adquirida, o seu conteúdo é muito pobre, não tendo valor de comunicação. Destaca-se a
ecolalia, distúrbio de linguagem característico da criança autista. Kanner com precisão
particularizou as características da linguagem desta criança, salientando que as palavras
“eu” e “sim”, na grande maioria dos casos, estão ausentes. Com frequência, ocorre a
inversão pronominal, quando as palavras “você” ou “tu” são utilizadas no lugar do “eu”,
4
Segundo Paul Bercherie (2001[1983]), estes são conceitos utilizados na classificação diagnóstica no
período que compreende os três primeiros quartos do século XIX.
22
ou seja, sem inversão da mensagem, uma vez que estes pronomes são repetidos
exatamente como são ouvidos. Este fenômeno persiste até a idade de 6 anos, quando a
criança aprende a falar de si na primeira pessoa, passando a se dirigir aos outros na
segunda. Mas, uma vez ou outra, a criança se refere a si na terceira pessoa.
Para Kanner, estas crianças repetem ecolalicamente as palavras que ouvem, mas
isso não significa que estejam atentas quando alguém lhes dirige uma palavra. É
necessário repetir diversas vezes para poder receber alguma resposta. Em função disso,
sete das 11 crianças foram consideradas surdas ou com alguma dificuldade auditiva.
Mas a clínica nos revela que a desatenção dessas crianças é apenas aparente. Elas nos
dão mostra de que estão bastante atentas ao que acontece ao seu redor, haja vista sua
reação diante de qualquer demanda. Essas crianças não são indiferentes à presença do
Outro. Um adolescente autista de alto nível se interessa por um jogo de perguntas e
respostas, mas logo avisa, “eu não sou bom de respostas” (sic). É possível ver um outro
autista atender, a sua maneira, ao que lhe foi pedido, por mais que, inicialmente, ele
demonstre não entender o que foi solicitado, e sua resposta venha com horas ou até dias
de atraso.
A inflexibilidade da linguagem também está presente, quando a criança constrói
um sentido rígido, sem possibilidade de deslizamento para a construção de outros
sentidos. Das 11 crianças observadas por Kanner, três nunca chegaram a falar. As outras
oito crianças falavam, mas não conseguiam estabelecer uma conversa com as outras
pessoas.
Em seu artigo, Kanner nos faz observar a função de comunicação da linguagem,
ao registrar que não havia nenhuma diferença importante entre as oito crianças
“falantes” e as três “mudas”. Foi possível escutar de uma criança não falante a repetição
silenciosa de algumas palavras, apenas com os lábios.
Há nelas uma necessidade poderosa de não serem perturbadas. Tudo o
que é trazido para a criança do exterior, tudo o que altera seu meio
externo ou interno, representa uma intrusão assustadora (KANNER,
1997[1943]:160).
A primeira intrusão é a alimentação. Estas crianças recusavam a comida como
uma forma de rejeição do que vinha do mundo exterior, o que acarretava graves
distúrbios alimentares. Ruídos fortes e objetos em movimento constituem uma outra
intrusão, desencadeando uma reação de pânico e horror. Kanner constata que não são os
23
movimentos e os barulhos em si que despertam pavor, mas o “fato de que o ruído e o
movimento se introduzem ou tentam introduzir-se no isolamento da criança” (:161).
Kanner observa que as crianças por ele avaliadas não apresentavam nenhuma
dificuldade em nomear os objetos que lhes eram apresentados. Os pais relatavam que,
muito precocemente, seus filhos haviam aprendido a repetir diversos tipos de listas,
como a relação dos presidentes, ou o alfabeto na ordem direta e inversa. Mas apenas
“diziam nomes”, sem nenhum intuito de transmitir uma mensagem aos outros. Esta
habilidade demonstrava uma excelente capacidade de memorização decorada associada
à incapacidade de utilização da linguagem de uma outra maneira. Também eu recebi
para tratamento crianças que possuíam uma capacidade de memorização incrível, além
de realizarem, com extrema facilidade, a proeza de indicar em que dia da semana cairia
uma determinada data de um ano bastante longínquo. O pai de uma dessas crianças o
considerava superdotado, e sua mãe, certa vez, comentou com orgulho que seu filho
havia acertado quase todas as respostas dos testes psicológicos que lhe foram aplicados.
A única resposta que havia errado se dera de forma proposital.
O contato com as pessoas é bastante particularizado para essas crianças, que se
relacionam como se as pessoas não existissem ou não passassem de objetos de um
mobiliário, ou fossem apenas um meio pelo qual a criança alcança um determinado
objetivo. Kanner nos lembra que a relação é muito melhor com as fotografias das
pessoas, na medida em que estas não podem perturbar. Aproximar-se de um animal ou
de uma outra criança era impossível, ao passo que era muito fácil demonstrar interesse e
fascínio pela imagem de um determinado animal e algum afeto pela fotografia de uma
outra criança.
O que se evidencia na descrição de Kanner é a sua insistência em destacar o
isolamento autístico e a necessidade de imutabilidade como pontos fundamentais,
reconhecidos como elementos patognomônicos, que abrem caminho para a elaboração
de um diagnóstico de autismo.
Chama a atenção em sua descrição a particular relação que os autistas mantêm
com os objetos. Os autistas demonstram um interesse muito grande por eles e, se
deixados sozinhos, ficam a manipulá-los de forma repetitiva, durante horas.
Na clínica, vemos muitas crianças autistas que não se separam de forma alguma
de um objeto, alguns encontrados ali e outros achados acolá, desde que não ameacem o
isolamento a que se encerram. Uma tampa de caneca, uma pequena folha encontrada no
jardim, um pedaço de um brinquedo avistado em um canto da sala. Lembro-me de uma
24
criança que, ao mesmo tempo que conseguia fazer girar um prato ou uma tampa
redonda de uma caixa, movimentava seu corpo para frente e para trás seguido de um
movimento frenético de seus braços, além de emitir um som gutural que não
correspondia, necessariamente, aos fonemas da língua. Outra criança, lembro, era capaz
de permanecer longos períodos girando em torno de seu próprio corpo.
É reconhecida a genialidade de Kanner quando delimita uma patologia própria
da criança e distinta da do adulto. Trata-se do marco inaugural de um campo de práticas
e investigações específicas à criança.
Desconhecendo os trabalhos americanos de Kanner, no ano de 1944 em Viena, o
médico austríaco Hans Asperger descreveu uma síndrome a partir da observação de
quatro meninos. Este grupo de meninos apresentava uma sintomatologia semelhante ao
quadro da síndrome autística, tendo como traço característico o retraimento social e
afetivo. Ele identificou comportamentos e habilidades comuns entre estas crianças, os
quais concorreram para determinar o quadro patológico definido por psicopatia
autística. Asperger, por um período de dez anos, observou centenas de crianças maiores
de 11 anos. Ao passo que as crianças observadas por Kanner não passavam de 11 anos
de idade.
A descrição desta síndrome foi feita em um artigo intitulado “Die 'Autistischen
Psychopathen' im Kindesalter5”, submetido, em 1943, à revista científica Archiv fur
Psychiatrie und Nervenkrankheiten6, que o publicou no ano seguinte. Tratava de
crianças com dificuldades para estabelecer relações sociais desde tenra idade. Apesar da
semelhança no que se referia à tendência ao isolamento, para Asperger estas crianças
distinguiam-se de crianças esquizofrênicas por não apresentarem uma desintegração da
personalidade; não eram crianças psicóticas, mas crianças que apresentavam um maior
ou menor grau de psicopatia.
Asperger identificou que estas crianças mantinham uma atenção bastante restrita
em um determinado assunto, demonstrando interesses especiais por campos variados e
de forma por vezes original. Descritas como excêntricas, as crianças com este
diagnóstico eram obcecadas por assuntos complexos, como música, astrologia,
matemática etc. Por exemplo, algumas crianças possuíam um jeito muito particular de
realizar cálculos na matemática. Eram boas na gramática e tinham bom vocabulário.
5
“A Psicopatia Autista na Infância”.
Arquivos sobre Psiquiatria e Doenças Nervosas. O artigo de Asperger foi publicado no número 117,
páginas 76-136.
6
25
Asperger as chamava de “pequenos professores”, por possuírem grande habilidade para
discorrer detalhadamente sobre seus assuntos favoritos. Apesar desta habilidade,
Asperger observou que não dirigiam a atenção ao seu interlocutor. Uma das crianças por
ele tratada tinha um olhar particularmente distante.
As dificuldades de comunicação estavam presentes neste grupo de crianças. A
fala, na maioria das vezes, era bastante repetitiva e formal. Estas crianças usavam
palavras que não eram próprias às suas idades. Para falar, usavam frequentemente uma
forma pedante e frases com construções rebuscadas. Devemos lembrar que todas as
crianças observadas por Asperger falavam.
Asperger identificou que, ao longo do desenvolvimento da criança, certas
características próprias à psicopatia autística poderiam predominar ou retroceder, de
forma que as dificuldades e os problemas enfrentados tenderiam a mudanças
consideráveis. Entretanto, os aspectos que lhe eram essenciais permaneceriam
inalterados.
No que se refere à evolução do quadro, Asperger mostrava-se mais otimista do
que Kanner. Segundo ele, se algumas crianças apresentassem a capacidade intelectual
preservada, certamente elas conseguiriam alcançar uma carreira profissional. Muitos
poderiam se dedicar às ciências abstratas.
O artigo de Asperger permaneceu desconhecido por muitos anos, justamente por
ter sido escrito em língua alemã e publicado durante a Segunda Guerra Mundial, o que
restringiu sobremaneira a sua circulação no meio científico. Foi somente em 1991, a
partir da tradução inglesa realizada por Uta Frith, que o trabalho de Asperger ganhou
notoriedade científica, o que permitiu uma ampla difusão e conhecimento dos resultados
do estudo sobre a psicopatia autística.
1.2 – O AUTISMO E A FORACLUSÃO DO NOME-DO-PAI
Deixemo-nos guiar pela afirmação de Lacan, em “Alocução sobre as psicoses
da criança” (1967), de que, no caso do autismo, trata-se de uma forma mais grave de
assujeitamento à linguagem. Acreditamos ser importante abordar a particularidade da
relação do autista ao significante e ao gozo.
Encontramo-nos no terreno da psicose e, para tanto, é necessário entender a
operação da foraclusão do significante Nome-do-Pai, ordenador da cadeia significante.
Devemos lembrar que, a partir da análise dos elementos significantes do discurso
26
delirante de Schreber7, Lacan lançou mão da construção do conceito de foraclusão, o
qual conferia à psicose uma causalidade psíquica significante distinta da envergadura
organicista proposta pela psiquiatria da época para explicar os fenômenos da psicose.
Para Lacan (1998[1958]), o Nome-do-Pai é o significante que substitui o
significante enigmático do Desejo da Mãe, promovendo a significação fálica no campo
do Outro. Na psicose, esta operação simbólica encontra-se abolida. É o fracasso da
metáfora patena que irá conferir à psicose a sua condição essencial (:582).
Foraclusão é um conceito forjado a partir da Verwerfung de Freud. Foi tomado
de empréstimo, por Lacan, da terminologia jurídica, onde é sinônimo de prescrição, de
algo que perde a validade por não ter ocorrido nos prazos prescritos em lei. O mesmo
ocorre nas psicoses, em que algo é jogado para fora da possibilidade de simbolização,
ou, melhor dizendo, é foracluído do simbólico, retornando do lado de fora, na realidade,
sob a forma de delírios e alucinações.
O ensino de Lacan na década de 50 caracterizou-se prioritariamente pela
abordagem da estrutura da linguagem, a partir das relações do sujeito com o significante
e de seu grande interesse pelo estudo das psicoses, o que o levou a realizar uma análise
meticulosa do discurso delirante do presidente Schreber. Datados desta época, o
seminário sobre “As Psicoses” (1955-56) e o texto “De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose” (1957-58) constituem duas grandes elaborações
teóricas, posteriores ao seu estudo inaugural sobre o tema em sua tese de Doutorado,
intitulada “Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade” (1932). Neste
período, conhecido como o primeiro tempo do ensino de Lacan, as formulações tinham
como referência principal o registro simbólico, e as elaborações em torno da psicose
tinham a neurose como paradigma da constituição subjetiva. A psicose era concebida a
partir da ausência da operação edipiana que estrutura a neurose.
No ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-doPai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela
carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no
lugar da significação fálica (LACAN, 1998 [1958]:564).
7
Schreber escreveu um livro intitulado Memórias de um doente de nervos. Foi a partir da leitura e da
análise dos relatos autobiográficos contidos neste livro que Freud, em 1911, construiu as principais
elaborações teóricas sobre a psicose, onde irá conferir ao delírio um estatuto de uma tentativa de cura. Foi
a partir da análise freudiana que Lacan realizou seu trabalho.
27
Na análise do caso do “Homem dos Lobos” (1918 [1914]), Freud apresenta o
termo Verwerfung ao investigar um fenômeno de exclusão específico da castração, a
partir do relato de um episódio de alucinação, no qual identifica uma cena traumática
excluída da história do sujeito, como se jamais houvesse existido. O que coloca em cena
algo da ordem do real, algo da ordem do impossível de se dizer. Segundo Maleval,
Freud “indica a existência de um material inconsciente excluído de uma forma tal que,
ao contrário do que ocorre no recalque, torna impossível sua reapropriação”
(MALEVAL, 2002:51).
É da equivalência desse termo que Lacan vai propor o termo foraclusão do
significante primordial Nome-do-Pai para definir a estrutura psicótica, enquanto distinta
da neurose.
É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na
foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da
metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua
condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose (LACAN,
1998 [1958]:582)
Lacan (1955-56), fazendo uso de uma metáfora, sublinha que o significante
Nome-do-Pai, no registro da neurose, é o que constitui a estrada principal para a qual
convergem as vias em torno de um sítio “que polariza, enquanto significante, as
significações” (:328). A inscrição no Outro do significante Nome-do-Pai que instaura a
lei, mediante a metáfora paterna, é a operação que caracteriza a neurose. Mas o que
ocorre quando esta estrada principal não existe, sendo necessário usar estradas vicinais
para ir de um ponto a outro? Ocorre que o significante fundamental não funciona, pois
se encontra foracluído, e, neste caso, estamos diante da falta de um significante.
Trata-se, aqui, da Verwerfung, ou seja, da rejeição de um significante primordial,
mecanismo fundamental que se encontra na base da psicose, a qual se caracteriza,
fundamentalmente, por ser “um processo primordial de exclusão de um dentro
primitivo, que não é o dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo de
significante” (1985 [1955-56]:174), pois “o que foi rejeitado do simbólico reaparece no
real” (:57). Freud já havia nos alertado quanto a isso, por ocasião da análise de Schreber
(1911), quando abordou a existência de uma defesa mais enérgica e eficaz nos casos de
psicose. Para ele, “aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora” (FREUD,
1975 [1911]: 95).
28
Nesta perspectiva, sem o lastro paterno e, portanto, sem a referência da
significação fálica, ao sujeito psicótico são reservados os efeitos da exclusão do Outro
enquanto lugar da lei simbólica. Efeitos de gozo que testemunhamos, na clínica, como
fenômenos próprios à psicose, na medida em que aquilo que se encontra sob a manobra
da Verwerfung terá outro destino daquilo que encontra expressão através das formações
do inconsciente, próprias à neurose (LACAN, 1985 [1955-56]:21).
Diogo (2008) lembra que,
por fixar a significação fálica, interditar o gozo e introduzir o desejo,
este operador simbólico constitui a solução típica que separa o ser
falante e o Outro real. Este último passa a ter o estatuto de Outro
simbólico, o que possibilita a extração do objeto a (DIOGO, 2008:10)
O cenário significante do Nome-do-Pai na teoria lacaniana se modifica e dá
lugar, nos anos 70, à formulação da tese da pluralização do Nome-do-Pai responsável
pelo enodamento dos registros Real, Simbólico e Imaginário. A função paterna está
destinada e circunscrita à função de nomeação e de amarração dos três registros,
condição necessária para a constituição da realidade psíquica.
Ao que chegamos, então, é que, para demonstrar que o Nome-do-Pai
nada mais é que esse nó, não há outro modo de fazê-lo senão se os
supondo desatados. [...] A partir daí, qual a maneira de atar essas três
consistências independentes? Há uma maneira, que é esta, a que
chamo de Nome-do-Pai. É o que faz Freud e, ao mesmo tempo,
reduzo o Nome-do-Pai à sua função radical, que é a de dar um nome
às coisas, com todas as conseqüências que isto comporta, até o gozar
notadamente (LACAN, lição de 11/03/75).8
Nesta direção, o Nome-do-Pai não mais será o único e exclusivo significante que
terá como função o atamento dos três registros; outros significantes poderão funcionar
como operadores desta função. Sendo assim, o pai é uma função que pode ser ocupada
8
“Alors, ce à quoi noms venons, c'est que pour démontrer que le Nom du Père, ça n'est rien d'autre que ce
noeud, il y a pas d'autre façon de faire que de les supposer dénoués. [...] Et alors, quelle façon, ce que
vous avez, qui est là, quelle façon de les nouer, de les nouer d'un rond qui, ces trois consistances,
indépendantes, les noue? Il y a une façon qui est celle-là, celle-là que j'appelle du Nom du Père. C'est ce
que fait Freud, et du même coup, je réduis le Nom du Père à sa fonction radicale qui est de donner un
nom aux choses, avec toutes les conséquences que ça comporte, parce que ça ne manque pas d'avoir des
conséquences. Et, jusqu'au jouir notamment, ce que je vous ai indiqué tout à l’heure.” Lição de 11 de
março de 1975 do “Seminário XXII - R.S.I.”, 1974-75, p. 105.
29
por outros significantes. Ele mesmo comparecerá como um significante suplementar,
enquanto um quarto nó, na condição de uma suplência indispensável no enodamento
(LACAN, 1974-75:32).
A clínica dos nós coloca em cena, a partir da noção da inconsistência do campo
do Outro e da teoria das suplências paternas, uma clínica essencialmente das
modalidades de tratamento do retorno de gozo pelo significante. Estamos diante de
“uma clínica das modalidades de gozo” (ZENONI, 2000:42), ressituando as estruturas
clínicas a partir dos impasses que se apresentam para todos os sujeitos falantes diante da
impossibilidade de tudo simbolizar. Nesta perspectiva, as soluções encontradas pelo
sujeito psicótico não serão mais tomadas como a consequência negativa de uma falta,
mas em uma vertente que positiva as respostas, as soluções singulares para a localização
do gozo.
Nossa abordagem do tema se orienta pelo atrelamento do autismo ao campo das
psicoses, entendendo que o que está em jogo na defesa autística é a não inscrição do
Nome-do-Pai. Trabalhamos com a hipótese de que, por falta da mediação do Nome-doPai, garantida pela operação da metáfora paterna, a criança autista não constrói um
envelopamento simbólico do lugar de objeto do Outro; lugar em que todo ser falante se
encontra no fantasma materno.
A carta de Lacan a Jenny Aubry (LACAN, 1969) nos faz avançar, pois nos
permite examinar a posição da criança em relação ao objeto de gozo e, em particular, o
lugar de onde a criança psicótica responde. Nesse caso, a criança vem saturar, como
objeto, a falta que especifica o desejo da mãe. Sem a mediação paterna, atrelada à
significação fálica, a criança é capturada no fantasma materno. Nesse sentido, a
resposta da criança é a de realizar, encarnar, com seu próprio corpo, o objeto que satura
a falta materna. Posição distinta daquela da criança neurótica, que, com seu sintoma,
vem revelar a verdade do casal parental. Aqui a criança está referida ao falo como
significante da falta. Lacan nos fala que este é o caso mais complexo (por estar
articulado à metáfora paterna), mas também bastante acessível às intervenções.
Lacan foi o primeiro a sublinhar a importância teórica do objeto transicional9 de
Winnicott em “Alocução sobre as psicoses da criança" (1967): “não é que este objeto
preserva a autonomia da criança, mas se ela serve ou não de objeto transicional para
9
O conceito de objeto transicional, postulado por Winnicott (1975), situa um objeto cuja natureza é da
ordem de uma possessão, não é um objeto interno nem externo, mas que permite a criança suportar a
separação da mãe.
30
a mãe” (:366). Sendo assim, o corpo da criança corresponde ao objeto a e não a um
objeto transicional. Com o mito da relação da criança com sua mãe colocado em
suspenso por Lacan10, ele destaca que é o objeto a que produz uma elisão entre mãe e
criança, mas em sua dimensão de subtraído, assegurando que o lugar que a criança
ocupa na relação com a mãe revelará a sua estrutura, caso ocupe o lugar de objeto real
na fantasia materna ou de objeto causa de desejo.
1.3 - O AUTISTA E A CONSTRUÇÃO DE SEUS OBJETOS: O CASO ANDRÉ
Na clínica do autismo, não é nada incomum depararmos com a questão do
objeto. Percebemos que os autistas estão sempre às voltas com algum objeto, que, de
uma maneira ou de outra, desperta o seu interesse. Os autistas nos ensinam que o objeto
não deve ser negligenciado no trabalho clínico com eles.
De fato, muitos autistas sempre trazem perto de si objetos os mais diversos.
Alguns não se separam de um pedacinho de pano ou de um fio de linha de lã. Outros
utilizam e constroem objetos mais complexos, imprescindíveis em suas circulações no
cotidiano familiar ou no lugar de tratamento. Para estar entre os outros, é necessário
estar com seus objetos.
Entendemos que o uso destes objetos não é aleatório e tampouco desprovido de
lógica. Parece-nos que há um trabalho realizado pelos autistas no que se refere ao
tratamento dado aos objetos. Um trabalho de regulação do gozo e, em muitos casos, o
uso do objeto pode vir a contribuir para uma saída do fechamento autístico.
Sustentamos, nesta dissertação, a posição de que há uma lógica neste trabalho.
Verificamos, na singularidade de cada sujeito, a lógica quanto ao uso do objeto e de
suas funções, na medida em que entendemos que o tratamento dado ao objeto funciona
como uma modalidade de fixação do gozo e revela o modo de gozar do sujeito autista.
Maleval (2009) afirma que o autista, através e por intermédio da construção de
objetos, capta, regula e domina o excesso de gozo que se impõe a ele como devastador.
Observamos, portanto, que os autistas possuem um grande apego aos objetos.
No entanto, por que privilegiar o objeto na clínica do autismo? Nossa proposição é a de
que esse apego se configura como uma tentativa de construir um objeto destacado do
10
Lacan, em seu Seminário “A Relação de Objeto” (1956-57:35), critica Winnicott por não colocar em
evidência a noção da falta do objeto. Para ele, não há reciprocidade na relação entre o sujeito e o objeto.
Do conceito winnicottiano Lacan fez uso na construção teórica da concepção inovadora de seu objeto a.
Tal uso é atestado pelo fecundo diálogo estabelecido, no final dos anos 50, entre os dois.
31
corpo, a fim de promover a regulação do gozo. E os autistas inventam com seus objetos.
Trata-se de um trabalho incansável de localizar, refrear e regular o gozo.
Testemunhamos todo um trabalho dos autistas no que se refere ao tratamento
dado ao objeto. A construção de um objeto possibilita uma via de acesso ao Outro; por
meio desta invenção, o autista pode se sustentar no mundo.
A escolha deste caso clínico não foi de forma alguma aleatória. O tratamento de
André, que se estendeu por 16 anos, nos permitiu testemunhar a construção do objeto
autístico como uma via de refreamento do gozo, que pôde se afirmar como um trabalho
incessante de circunscrição e, consequentemente, de relativização daquilo que para ele
se apresentava como pleno.
Em particular, no caso de André, como veremos, reconhecemos que houve uma
mudança em sua posição subjetiva, o que implicou certa modalização de seu gozo, a
partir do trabalho de localização do gozo por intermédio do objeto. André nos mostrou
uma maneira inédita de articular significante e gozo por meio do objeto. Este caso
permitiu acompanhar, ao longo de muitos anos, um trabalho de construção do objeto
autístico como forma de se proteger do gozo do Outro. Trata-se de um objeto que
localiza uma parte de seu gozo, pois, nesta localização parcial, “ele teceu uma trama,
uma rede, um espaço onde se alojar e onde alojar seu corpo”11 (MARION, 2008:135),
além de operar certo tratamento da perda.
Notamos, desta forma, uma passagem: da construção do objeto autístico (as
fitas) como uma via de fixação do gozo, passando pela construção de seu duplo protetor
em uma articulação significante mais elaborada, até o tratamento do objeto voz dando
lugar à localização dada por um significante no campo do Outro, a saber: ser radialista.
Ser radialista, para André, permitiu que ele fizesse uso do significante como tratamento
do gozo que o avassalava, operando aí certa pacificação.
Orientando-nos por seu trabalho, reconhecemos e recolhemos os efeitos da
maneira muito própria de André tratar seu gozo devastador. Foi possível distinguir
quatro momentos em seu trabalho. No último capítulo, apresentaremos detalhadamente
cada um deles. Mas, antes, vamos à história de André.
11
“en localisant une part de jouissance, ont tissé une trame, un réseau, un espace où se loger”.
32
1.3.1 – HISTÓRIA CLÍNICA
André chegou ao serviço quando tinha 11 anos, trazido por sua mãe, que se
queixava de que ele era muito agressivo na escola e com ela.12 Quando estava na rua,
parava em um ponto de ônibus, começava a gritar e a andar de um lado para o outro
com as mãos para cima. Em casa, ficava mais tranquilo. Por diversas vezes, André fugiu
de casa. A primeira vez foi aos 6 anos de idade, quando foi encontrado nas Lojas
Americanas pegando alguns brinquedos. Um dia, André decidiu pegar um ônibus para o
Grajaú, pois queria conhecer o bairro. Os pais se esforçavam para esconder o motivo
das fugas, alegando que nada as motivava. Caso houvesse algum motivo, não se
lembravam. Mas então o pai disse que ele só fugia de casa, nunca da escola, e a mãe,
sobressaltada, falou que “nós não brigamos e nem batemos nele” (sic). André, por sua
vez, afirmava que o motivo de suas fugas era os aborrecimentos que tinha em casa.
Sendo que, mais tarde, ele passou a fugir da escola também. Como consequência das
fugas, André repetiu a 6ª série. O pai se lamentava, dizendo que, se pudesse, levaria o
filho a todos os lugares que ele desejasse conhecer.
Foi com um ano e pouco de idade que os comportamentos estranhos de André
foram percebidos pela mãe. À época, ela procurou diversos tratamentos, mas se
decepcionou com os resultados, não levando adiante nenhum deles. Queixava-se de que
ninguém explicava qual era o problema do filho. Queria saber o que ele tinha.
André nasceu de parto normal e, até os 4 meses, era muito “molinho” (sic).
Segundo sua mãe, isso só ocorria com a cabeça, pois “com o resto do corpo era normal”
(sic). Dos 2 aos 4 anos, foi acompanhado por um neurologista em um hospital público,
sendo medicado com Neuleptil13. Era uma criança que chorava muito, mostrava-se
muito nervoso, agitado e só andava gritando com as mãos para cima. Aos 7 anos, foi
matriculado em um centro de reabilitação, recebendo somente atendimentos de
fonoaudiologia e educação física, além da escolaridade especial.
A gravidez foi desejada pela mãe de André. Neste período, ela se sentia muito
triste, “como se não existisse” (sic), ao ver o marido com os filhos do primeiro
12
Algumas das informações aqui apresentadas foram colhidas pela psicóloga Doralice de Araújo em
entrevistas com os pais de André, quando de sua chegada no COIJ – Centro de Orientação Infantojuvenil
do Instituto Philippe Pinel, em junho de 1987.
13
Neuleptil é um neuroléptico que possui propriedades antidopaminérgicas responsáveis pelo efeito
antipsicótico. É indicado no tratamento de distúrbios do caráter e do comportamento, revelando-se
particularmente eficaz no tratamento dos distúrbios caracterizados por autismo, negativismo, desinteresse,
indiferença, suscetibilidade, impulsividade, oposição, hostilidade, irritabilidade, agressividade, reações de
frustração, instabilidade psicomotora e afetiva, desajustamentos (conforme bula).
33
relacionamento. Entrou em profunda depressão. O marido nunca a apresentou aos seus
filhos, da mesma forma que ele nunca informou a estes que havia se casado novamente
e que tivera mais dois filhos. Sempre achou que os filhos do primeiro casamento não
aceitariam a ideia de uma nova esposa. Os irmãos nunca se conheceram.
Nas entrevistas, a mãe relata um sonho ocorrido poucas semanas antes de André
nascer. Sonhou com o momento do parto e que o enfermeiro lhe comunicava que
nascera uma menina com problemas, mas que a culpa não era dela e sim do pai. A mãe
sempre acreditou que isso prejudicara muito André, mas não sabia muito bem como. E,
em função disso, sua presença junto ao filho acabava se dando de forma muito intensa.
A mãe, em uma determinada época, decidira colaborar com a escola, a mesma
frequentada por André, cuidando da higiene pessoal de outras crianças. Com isso, teria
maior controle sobre o comportamento do filho, o que evidenciava um gozo controlador
exercido pela mãe. A mãe não trabalhava e, portanto, se dedicava exclusivamente a
cuidar do filho.
Os pais se queixavam da agressividade de André, das vezes em que ele tirava a
roupa na rua, dos seus frequentes xingamentos. Quando contrariado, André chegou a
jogar um sapato na cabeça do pai. O pai era visto pela mãe como muito rígido. Apesar
de também “perder a paciência” (sic) com o filho e bater nele, ela não concordava com
muitas das atitudes que o pai tomava para resolver os problemas com André. Queixavase de que ele queria que André entendesse “as coisas na marra”, tratando o filho como
um adulto. André era agressivo também com seu irmão: dizia que ele era um “bobo” e
batia em sua cabeça. A mãe se queixava de que André era muito “egoísta”, que não
queria saber de ninguém, somente de seus interesses, que ficava trancado em seu quarto
o dia inteiro, que nunca a consolava quando ela estava triste por alguma coisa. Para a
mãe, às vezes ele “era muito adulto, parecia normal” (sic) e, em outros momentos,
comportava-se como um neném.
Até a idade de 7 anos, André encerrou-se no mutismo. Com 1 ano de idade,
havia falado somente as palavras mamãe e papai. Quando queria algo, André se fazia
entender apontando para os objetos. Mas sua mãe relatou nas entrevistas preliminares a
informação de que, aos 5 anos, André já sabia ler e escrever. Ficava escutando o rádio e
em um caderninho anotava todos os nomes dos programas, ao mesmo tempo que lia, em
voz alta, tudo o que via passar pela televisão. Sua dicção era excessivamente modulada,
como se estivesse recitando versos, declamando-os. A mãe se queixava de que, quando
34
iam visitar algum parente, André abria todas as gavetas à procura de papéis e livros para
ler.
Com folhas e caderno em punho, André ia testemunhando que, por intermédio,
dos objetos, era-lhe possível falar, ao mesmo tempo que mostrava, com precisão, que o
que falava não era destinado direta e exclusivamente ao interlocutor.
Na creche, André teve grandes dificuldades para se adaptar à rotina, passando a
frequentar uma escola especial dos 8 aos 12 anos. Aos 12 anos, saiu de casa e pegou um
ônibus por conta própria, no intuito de procurar escolas do ensino regular onde pudesse
se matricular. Não queria mais estudar em escola especial. Finalizou seus estudos do 2º
grau numa escola do ensino regular. Graduou-se em seus estudos de informática e, com
27 anos, frequentou por dois anos um curso de música na Escola de Música da UFRJ.
1.3.2 – QUATRO MOMENTOS LÓGICOS DO TRABALHO SUBJETIVO DE ANDRÉ
Na análise do caso, focalizamos a maneira inédita como André encontrou uma
solução singular, como um modo de tratamento do real do gozo, quando este não se
apresentava fixado pelo significante.
1- Das conexões regradas ao “chega de conversa”;
2 – A criação do duplo: Paula Madalena;
3 – Da morte das senhoras Madalenas às gravações de programas: O Radialista;
4 – Discurso de Conversa Coletiva.
O primeiro constitui o momento em que André coloca em jogo o trabalho onde
tudo se transformava em signo, em insígnias de gozo, aquilo que significa a si mesmo, o
que não lhe permitiu uma maior mobilidade pelo mundo. Este era excessivamente
regrado e regulado dentro de suas conexões muito bem planejadas e organizadas, na
forma de objeto autístico regulado. Neste momento, verificamos um excelente
aprendizado de André no que se refere às competências da matemática e da astrologia.
O segundo momento refere-se ao trabalho de André com sua personagem Paula
Madalena. Esta entra em cena como medida protetora contra a angústia de seu gozo.
Paula Madalena passa a encarnar o seu duplo. Neste momento, a construção do objeto
autístico ganha a dimensão de um duplo protetor que lhe permite maior mobilidade na
35
vida. É com Paula Madalena que André faz suas viagens e seus passeios, por exemplo.
Aqui, podemos identificar certa regulação do gozo, anteriormente apresentado de forma
desenfreada Só é possível para André falar por intermédio de Paula Madalena, fala
transferida para um duplo que ganha uma dinâmica muito particular. Isto não lhe causa
tanta angústia. A organização do mundo pelo autista não se dá por meio de objetos de
troca regulados pela significação fálica e que se inscrevem sobre um fundo de falta, mas
é justamente em torno da construção de seu objeto e, consequentemente, de tentativas
de sua extração, circunscrevendo o gozo, que ele constrói o seu mundo único, inédito.
Assim, chegamos ao terceiro momento, aquele que nos permitiu observar todo o
avanço dado por André ao seu trabalho, agora de forma mais elaborada e complexa, em
torno do tratamento de localização e fixação do gozo, proporcionando-lhe maior
mobilidade em seu mundo.
Foi operando uma “mobilização necessária de seu gozo” (MALEVAL, 2009), a
partir das gravações de músicas e programas, que André, aos 27 anos, em um de seus
inúmeros textos ulteriores, registrou: “a melhor gravação nesses 12 anos que eu tenho
de existência” (sic). Lembrando que, para ele, isso era necessário para “recordar, para
ter saudades” (sic).
É possível inferir aqui que uma modificação em sua posição se presentificou em
uma tentativa de constitui-se como sujeito?
Abordamos, neste caso, a análise do tratamento dado ao objeto voz, cogitando
que ser radialista, para André, circunscreveria um trabalho de localização do objeto voz,
favorecendo uma condensação do gozo fora do corpo, tendo como efeito desta
localização certo apaziguamento.
O quarto momento refere-se ao trabalho de André, o qual avança até a escrita de
seu livro intitulado “Discurso de Conversa Coletiva”, pelo qual ele nos faz testemunhar
sua tentativa para construir pontos de ancoragem, de equilíbrio instável, que sustentem
seu discurso verboso, para se fazer representar no campo do Outro e advir como sujeito.
A partir deste momento André passou a escrever uma série de livros conferindo
a sua obra o estatuto de um saber-fazer com o significante, um saber capaz de fazer
emergir um gozo, efetuando um tratamento sobre ele.
36
CAPÍTULO II – SIGNIFICANTE, GOZO E LALANGUE NO AUTISMO
Apontamos no capítulo anterior que, para Lacan, não há reciprocidade na relação
entre o sujeito e o objeto. Como situar o autista na desarmonia estrutural que marca esta
relação?
Uma primeira tentativa de aproximação desta questão é a articulação entre o
traumatismo e a repetição na clínica do autismo, circunscrevendo os movimentos
repetitivos do autista e entendendo-os como uma tentativa de absorver o trauma. Para
Freud (1920), o trauma é uma ruptura da camada protetora em decorrência do excesso
de excitação que rompe as barreiras do psiquismo.
Encontramos aqui as primeiras coordenadas da noção de trauma, a qual aponta
para o insolúvel desencontro com a linguagem, na medida em que traumática é a própria
entrada no infans na linguagem. Dessa forma, em termos de estrutura, todo ser falante é
traumatizado. Todo ser falante tem que se haver com a insuficiência do simbólico em
circunscrever o real que o acossa. Da mesma forma que não há possibilidade de
recuperação do objeto para sempre perdido, também não há como recuperar o gozo
miticamente desfrutado na experiência de satisfação. O traumatismo faz referência a um
encontro faltoso com o real. No movimento de um novo retorno, o que se encontra são
as coordenadas do objeto perdido e da compulsão à repetição desse encontro, onde o
mundo metonímico dos objetos é estruturado por tal repetição.
Lacan (1977) nos fala que “a linguagem é uma má ferramenta e é bem por isso
que não temos qualquer ideia do real”14 (:5). Como o Outro não existe a priori, o
sujeito não encontra respostas que o façam se sentir amparado, pois não há palavras que
possam ser ditas para tudo explicar, situação vivida pelo sujeito como angústia que
convoca cada um a situar os modos de tratamento do gozo.
Em um estado de desamparo, resta ao sujeito construir um saber, para que seja
possível a construção de um anteparo diante do real traumático, o qual implica um
inassimilável para o sujeito. Trata-se aqui da construção da fantasia, pois “é em relação
ao real que funciona o plano da fantasia. O real suporta a fantasia, e a fantasia protege
o real” (1964:44).
14
“Le langage est un mauvais outil, et c'est bien pour ça que nous n'avons aucune idée du réel”, lição de
10 de janeiro de 1978 do “Seminário XXV - Le moment du Conclure”, 1977-78.
37
“Não há outro trauma do nascimento senão o de nascer como desejado”
(LACAN, 1980:61), o que nos possibilita dizer que o ser falante nasce do desejo do
Outro, ele é objeto de cuidados e libidinalmente investido pelo Outro, sendo esse
encontro irremediavelmente traumático. É neste encontro que algo da opacidade deste
desejo se revela. É do ponto de falta do desejo do Outro que o sujeito é convocado a
perguntar: “O que queres de mim?”, o que abre caminho para sua condição de sujeito
desejante. É através da interpretação dessa pergunta que o sujeito responde, no campo
da neurose, com a fantasia, anteparo para o traumático: o inominável de sua condição de
objeto.
Mas o que acontece com a criança autista? Se não é com a fantasia, entendida
como a cortina que vela o traumático, que a criança autista responde ao desvelamento
de sua existência de objeto, como então situar sua resposta? Como tornar suportável o
traumatismo infligido pela linguagem no corpo dos sujeitos que se excluem do campo
do Outro?
Verificamos que o trabalho do autista se configura como uma tentativa de
circunscrever e de localizar o excesso de gozo. Partimos do pressuposto de que este
trabalho se faz através dos movimentos repetitivos, ditos estereotipados, entendendo
que, nesse momento, o autista já está em trabalho frente à inexistência a priori do
Outro. Por não cessar de não se inscrever, este trabalho é insistentemente repetido, em
um esforço infindável e sem descanso, como em um “tonel das Danaides”.
Neste capítulo, examinaremos o jogo do ford-da, momento primeiro de
simbolização, de articulação entre dois significantes (S1 e S2), que, em seu fundamento,
constitui uma resposta da criança ao excesso traumático, encontrando na repetição uma
tentativa de dominar esse excesso.
Verificamos que, no autista, não se instaura a simbolização primordial e,
portanto, não se constitui o par de oposição significante, impedindo a inauguração da
cadeia significante. Diante disso, o que se apresenta é um enxame de significantes não
articulados, o S1 desconectado do S2. Como consequência, não se opera a extração de
objeto, operação que será abordada no próximo capítulo.
Lacan (1992[1969-1970]) assinala que a repetição tem como fundamento um
retorno do gozo; portanto, é uma repetição de gozo. Interrogamos se a repetição tão
conhecida na clínica do autismo, pelos movimentos repetitivos e pela fala ecolálica, se
fundamenta em uma repetição de um gozo, no real, onde o significante não remete a
outro significante. Tal investigação nos ajudou a pensar que o autista, mesmo submetido
38
ao significante atestado pelo binarismo de seus movimentos (acender e apagar as luzes,
abrir e fechar as portas, entrar e sair de uma sala), como tentativas de inscrever um S2
(RIBEIRO, 2005), se encontra encerrado em um gozo.
Em seguida, abordaremos a noção de sujeito em uma perspectiva colocada, de
forma inédita, por Lacan, no seminário “Mais Ainda” (1972-73), a saber: para além do
efeito da cadeia significante, o sujeito é efeito do significante “que se situa no nível da
substância gozante” (LACAN 1985[1972-73]:36).
A partir da tese lacaniana de que a linguagem não se reduz apenas a ser um
aparelho que mortifica o gozo, mas o vivifica, o conceito de lalangue será abordado.
Desta forma, “a concepção de linguagem na obra de Lacan se modifica, uma vez que a
noção de gozo adquire prioridade não sobre o significante, mas sobre a estrutura da
linguagem” (BASTOS & FREIRE, 2006:112). O próprio Lacan, ao abordar o conceito
de lalangue, diz se afastar do estruturalismo, pois entende que este integraria a
linguagem à semiologia. (LACAN, 1972-73)
Finalizaremos este capítulo estabelecendo algumas articulações com a clínica do
autismo, verificando como o conceito de lalangue pode contribuir na orientação de
trabalho.
2.1 – REPETIÇÃO COMO RETORNO DE GOZO
No seminário “O avesso da psicanálise” (1992[1969-1970]), Lacan se apropria
da indicação da clínica e da experiência para afirmar que a repetição se fundamenta em
um retorno do gozo. Lembra que Freud já havia proposto que, na repetição, “produz-se
algo que é defeito, fracasso” (1992[1969-1970]: 44), fracasso do além do princípio do
prazer. Na repetição, ocorre o fracasso do gozo. Lacan aponta que, com relação ao que
se repete, há uma perda, melhor dizendo, “na própria repetição há desperdício de gozo”
(idem).
Nesse seminário, Lacan se debruçará com maior empenho no desenvolvimento
do conceito de gozo, partindo da repetição, da necessidade da repetição, uma vez que
“há busca do gozo como repetição” (:43). O que depreendemos daí é o ponto de
elaboração lacaniana do objeto como perda de gozo no próprio lugar de sua busca
repetitiva. Melhor dizendo, do desperdício do gozo se deduz o objeto do desejo.
39
2.1.1 - O JOGO FORD-DA: PRIMEIRA SIMBOLIZAÇÃO
No “Seminário XI”, Lacan assevera que “não se trata em Freud de nenhuma
repetição que se assente no natural, de nenhum retorno da necessidade. [...] A
repetição demanda o novo” (LACAN, 1979[1964]:62). Para examinarmos mais
detidamente o que Lacan nos fala nesta passagem, é necessário buscar balizamentos na
brincadeira, descrita por Freud em 1920, conhecida como o jogo do fort da. Trata-se do
primeiro brincar de um menino de um ano e meio, apresentado em seu texto “Além do
Princípio do Prazer” (1920):
A criança tinha um carretel de madeira que estava enrolado com um
barbante [...] jogou o carretel amarrado ao barbante, com grande
habilidade, sobre a beira de sua caminha coberta, de tal modo, que
este desapareceu ali dentro; disse então seu significativo o-o-o (fort) e,
depois, puxou de volta o carretel pelo barbante para fora da cama,
saudando então, seu aparecimento com um alegre “Da” (“aqui”)
(FREUD, 1975 [1920]:115).
Na leitura de Lacan (1964), este é o exemplo paradigmático de uma primeira
simbolização feita pela criança. Freud refere-se a este jogo como uma grande realização
cultural da criança, momento inaugural da entrada no simbólico. Consiste em uma
renúncia à satisfação pulsional, uma perda de gozo, e a criança deixa a mãe partir sem
qualquer protesto. Através do jogo, a criança transforma a situação sofrida em
brincadeira prazerosa, o que nos leva a considerar que há uma economia de gozo e de
prazer implicada no fort-da.
Portanto, podemos considerar que, no fundamento do jogo, há uma resposta da
criança ao excesso traumático da experiência da ausência da mãe vivida por ela, ou
seja, a repetição ocorreria na tentativa de dominar esse excesso, pois algo de
inassimilável sempre resta desta experiência.
Lacan assinala que a criança, pelo jogo do carretel, não busca viver de maneira
ativa o que sofreu passivamente em uma função de dominação, assim como também
não tenta convocar, pelo grito, o retorno da mãe. Tampouco se trata da pura e simples
oposição do fort e do da. Para ele, o jogo do fort-da “é a resposta do sujeito àquilo que
a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio – a borda de seu berço, isto
é, um fosso, em torno do qual ele nada tem a fazer senão o jogo do salto” (LACAN,
1979 [1964]:63). É no vazio deixado pela ausência materna que “a criança exercita
uma alternância significante” (LAMY, s/d, mimeo) fazendo o jogo do salto para
40
começar a encantação, o mundo da fantasia. “É com seu objeto que a criança salta as
fronteiras de seu domínio” (LACAN, 1979 [1964]:63) e é também com este objeto, ao
qual a oposição do par significante se aplica em ato (carretel), que se deve designar o
sujeito. A este objeto Lacan dará o nome de objeto a.
Nesta direção, o carretel não poderia ser considerado como a mãe reduzida a
uma bolinha, mas como “alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda
sendo bem dele, que ele ainda segura” (idem).
O que está em jogo no fort-da é que o carretel “tanto pode representar o objeto
que se perde da criança, quanto o que se destaca da mãe” (LAMY, s/d, mimeo). Este
jogo consiste na simbolização primordial da ausência da mãe, em cuja operação
significante se constitui o par de oposição presença/ausência.
Na medida em que o fort e o da são os significantes com os quais o sujeito se
faz representar no campo do Outro, o jogo do carretel se constitui em uma operação em
torno da perda de um objeto. Entendemos que se trata de situar, neste jogo, o
tratamento dado ao objeto. Lacan (1964) chamará nossa atenção para isso quando
afirma que, aqui, a criança se exercita com o objeto a, na medida em que nenhum
sujeito pode apreender a articulação significante radical do jogo do fort-da. É preciso a
ajuda de um carretelzinho. Nesse momento, introduz-se uma hiância, a qual cria um
intervalo de articulação entre dois significantes. Inscreve-se uma fenda no campo do
Outro, e o sujeito, nesse momento, aí representado, está ausente da cadeia e dividido
pelo significante.
Este objeto parece ser
[...] uma espécie de “objeto transicional”, pois opera uma transição,
não tanto entre a criança e a mãe, mas entre o objeto perdido e o
objeto fálico. Mais tarde, as crianças abrem mão deste objeto, deixamno cair como resto, não mais lhe dando importância. Ele fica assim
como a marca do perdido, possibilitando o investimento numa série de
outros objetos. Estes substitutos constituem os objetos fálicos, que se
caracterizam justamente por serem marcados pela falta daquele objeto
primeiro. (LAMY, s/d, mimeo)
Constatamos que, para os autistas, a simbolização primordial, que inaugura a
cadeia significante, não se instaura e, como consequência, na ausência da operação de
extração do objeto, corpo e significante não se encontram eliminados do excesso de
gozo.
41
A dimensão do prazer constitui um problema para os autistas. O prazer não faz
barreira ao gozo, pois somente “o princípio do prazer é o freio do gozo” (LACAN,
2003[1967]:362) e o que ele “mantém é o limite em relação ao gozo” (LACAN,
1992[1969-1970]:44). Com a ausência desta barreira, o gozo não é conduzido às bordas
corporais como efeito da modulação significante, de modo que não se produz um
ordenamento do gozo e sua regulação encontra-se suprimida.
Para Lacan, “há algo no autista, ou no chamado esquizofrênico, que se congela”
(LACAN, 1988[1975b]:134). O que se congela no autista é o primeiro significante, o
S1, que não o representa para um outro significante, o S2, não instaurando a cadeia
significante. Se ford e da são os significantes, por excelência, representacionais do
sujeito no campo do Outro, o jogo do carretel, descrito por Freud (1920), representa a
operação em torno da perda de um objeto e a inauguração da cadeia significante. É sob
o pano da ausência desta operação que encontramos os diversos e inúmeros fenômenos
próprios ao autismo.
No caso do autismo, as primeiras oposições significantes não se constituem e a
simbolização primordial (Ford-da) não se instaura. Disso resulta a não constituição do
par de oposição presença-ausência (RIBEIRO, 2003), eliminando “o primeiro elemento
de uma ordem simbólica” (LACAN, 1995[1956-1957]:68). Estamos diante de um
enxame de significantes não articulados, sem ordenamento, sem estabelecer cadeia – o
S1 encontrando-se desconectado do S2 – e onde a operação de perda de objeto não se
realiza. O S1 opera de forma isolada, sem endereçamento para outro significante e sem
que o sujeito seja aí representado, o que acarreta a ausência de efeito de sentido e,
consequentemente, a presença de gozo deslocalizado, desregulado.
Se a operação simbólica de extração de objeto está ausente no autismo,
verificamos um transbordamento de gozo no corpo e no significante, situando o gozo
aquém do Outro da linguagem. Corpo e gozo não se apresentam separados pela
linguagem. A clínica com o autista e com o psicótico é farta em exemplos deste tipo de
transbordamento. Vejamos dois deles.
Suzana é uma adolescente que sofre com os efeitos deste transbordamento. Em
uma das entrevistas, sua mãe nos informa que Suzana, além de demorar muito em seus
banhos, passa quase o dia inteiro tirando e colocando suas roupas, para, em outros
momentos, rasgá-las e jogá-las pela janela afora. Quando está sem roupas, Suzana
enrola seu corpo em uma toalha e, na cabeça, coloca uma calcinha. É desta forma que
permanece, por longos períodos, a andar pelos exíguos cômodos da casa e a se olhar no
42
espelho. Certamente, deste pequeno fragmento, podemos extrair outras consequências
próprias da posição do autista. Faremos tal exercício ao longo deste trabalho de escrita.
Outro adolescente, Marcos, nos foi encaminhado por sua psicóloga para
participar de uma proposta de trabalho que visa recortar a possibilidade de inserção
social, utilizando para esse fim recursos da comunidade15. Ao escutar o significante
“projeto”, Marcos mostrou-se bastante resistente, inviabilizando sua participação neste
trabalho. Alegava que sabia muito bem o que significava a palavra “projeto”, pois
entendia que trabalhos como esses se dirigiam às temáticas sobre violência, menores
abandonados e exploração do trabalho infantil e que ele não estava lá para ser
explorado. Percebemos que o significante “projeto”, escutado e pinçado por Marcos do
enxame de S1, se apresenta pleno de gozo, operando de forma isolada, desatrelado de
seu endereçamento para outro significante.
Veja-se, novamente, a questão da repetição na clínica do autismo. Se por um lado
a dimensão do prazer nos autistas constitui um problema, por outro verificamos que a
repetição para eles se manifesta de modo imperativo, como um excesso do qual não há
meios de fuga. Mas também percebemos que é possível para eles construir, através do
tratamento, e mesmo que de um modo precário, recursos para se subtrair a esse excesso.
E não é disto que trata o fragmento clínico de Suzana?
Retornemos a ela. Nos trabalhos semanais realizados por ela nas oficinas do
NIJ16, Suzana passa a maior parte de seu tempo ensaboando e enxaguando um pequeno
objeto de pelúcia, além de cortar e recortar partes dos corpos de figuras femininas para
colá-las em uma folha de papel.
Constatamos que o apego a algum objeto constitua uma tentativa de construir um
objeto fora do corpo como uma maneira de regular o gozo. O autista trabalha
arduamente em uma tentativa de extrair o objeto, mesmo que muitas vezes de forma
radical, como nas mutilações no real do corpo.
15
Refiro-me ao Projeto de pesquisa intitulado “Dispositivo clínico ampliado: criança e adolescente
psicóticos em direção ao laço social e à inclusão escolar”, realizado nos arredores do campus da UFRJ.
Este projeto se desenvolve através do convênio entre o Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Núcleo
Infantojuvenil (NIJ) do Instituto Municipal Philippe Pinel.
16
Núcleo Infantojuvenil do Instituto Municipal Philippe Pinel (Rio de Janeiro)
43
2.2 – O SIGNIFICANTE COMO CAUSA DE GOZO E LALANGUE NA CLÍNICA DO AUTISMO
Novas formulações na teoria lacaniana irão contribuir para colocar em outra
perspectiva a noção de sujeito, o que implica em um ajuste fino da noção de significante
da linguística estrutural, construída, na década de 50, para estabelecer modos de
regulação do gozo pelo significante. Aqui, encontramos uma disjunção entre o
significante e o gozo e a primazia do simbólico sobre o imaginário. O aforisma do
“inconsciente estruturado como linguagem” (LACAN, 1957/1998) sedimenta a noção
lacaniana de estrutura do sujeito, um sujeito representado pelo significante no interior
de um conjunto estrutural.
Foi nesta época, por ocasião de um colóquio em Royaumont sobre o tema “A
dialética” (1960), que Lacan introduziu pela primeira vez a conhecida fórmula que
define o significante que faz do sujeito um elemento em uma estrutura: “Um significante
é o que representa o sujeito para outro significante” (LACAN, 1998[1960]:833),
afirmando que “uma estrutura é constitutiva da prática a que chamamos psicanálise”
(:807).
Foram dois importantes escritos lacanianos sobre a psicose. No primeiro texto,
intitulado Seminário “As psicoses” (1955-56), ao falar sobre sua recusa em dar um
diagnóstico de psicose a uma paciente com o comportamento bastante difícil, Lacan
afirma que se deve “exigir, antes de dar o diagnóstico de psicose, a presença desses
distúrbios [da linguagem]” (:109). Mais adiante reafirma que “para que estejamos na
psicose, é preciso haver distúrbios de linguagem, e é essa, em todo o caso, a convenção
que lhes proponho adotar provisoriamente” (:110). Já no segundo texto, “De uma
questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958), ele é mais enfático:
“Ao se reconhecer o drama da loucura, põe-se a razão em pauta, sua res agitur, porque
é na relação do homem com o significante que se situa esse drama” (:581). A entrada
de um elemento simbólico, o Nome-do-Pai, organizador da estrutura da linguagem para
Lacan, é de uma importância essencial nesse momento.
Na aula intitulada “A Jacobson”17, no Seminário “Mais ainda” (1972-73), Lacan
apresentará uma noção inédita de significante, a qual passará a incluir a substância
gozante. E pergunta: “Sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo?
Como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a sua causa material?”
17
Roman Jakobson (1986-1982) linguista russo. Lacan, em seu período estruturalista, muito se apoiou
nos trabalhos deste pensador.
44
(LACAN, 1982 [1972]:36). Para então concluir: “o significante é aquilo que faz alto ao
gozo” (idem). Segundo Lacan, o sujeito jamais deixará de ser efeito do significante que
desliza em uma cadeia de significantes (1972-73:68), assim como o inconsciente é
estruturado como uma linguagem; porém, aqui, já não se trata da linguística, fundada no
campo da ciência, a qual, essencialmente, exclui o sujeito.
Segundo J.A. Miller (1998), trata-se de uma concepção de significante que
delimita e determina o modo de gozo do ser falante. O significante, para além de
representar o sujeito para outro significante, torna-se um modo de produzir e ordenar o
gozo, “o significante é causa de gozo” (LACAN, 1985[1972-73]:36). Gozo não apenas
do corpo, mas também gozo da linguagem, na medida em que o sujeito tem um corpo.
Essa perspectiva comporta colocar em questão o próprio termo sujeito,
porque o sujeito é sempre um elemento mortificado; aliás, Lacan o
definiu como falta-a-ser, e é por isso que ele faz entrar o corpo vivo na
psicanálise. Ele substitui o termo sujeito por falasser, que é o contrário
de falta-a-ser, é o sujeito mais o corpo, é o sujeito mais a substância
gozante (MILLER, 1998:101).
Os escritos de Lacan, dos anos 70 em diante, privilegiam o termo falasser18
(parlêtre), o sujeito como ser falante, na medida em que todo sujeito implica um ser que
fala. Uma inversão de perspectiva começa a ter início já no seminário XVII, “O Avesso
da Psicanálise”, quando o simbólico é desalojado de seu lugar privilegiado, na medida
em que a fala se torna veículo de gozo, não se inscrevendo mais sob a chancela da
comunicação. A linguagem aparelha o gozo (LACAN, 1982[1972-73]:75) do corpo
onde o ser falante é tomado como um corpo vivo atravessado pela linguagem, ele goza
do corpo, lugar por excelência de gozo. No ser falante, o gozo é aparelhado, e o
aparelho de que se trata é a linguagem.
Aqui, Lacan introduz o real no significante, fazendo um alerta quando assinala
que o significante não pode ser reduzido a ser, de maneira alguma, um suporte
fonemático, ou seja, um suporte onde o significante é encarnado no fonema. Para ele, o
significante deve ser estruturado em termos topológicos. Formulação já apresentada, por
Lacan, em seu texto “A instância da letra no inconsciente” (1957:505).
Esta virada em sua teorização permite a Lacan forjar o conceito de lalangue, que
visa o gozo, em uma articulação entre gozo e significante.
18
A noção falasser aparecerá no “Seminário RSI”, nos anos de 1974 e 1975.
45
Com a introdução deste conceito, a partir dos anos 70, um novo referencial
contribuirá para orientar a clínica psicanalítica com o autismo e a psicose. Não se trata
de abandonar o campo da linguagem, da representação significante do sujeito. Podemos
inferir que lalangue constitui “uma via possível para o tratamento do autismo e da
psicose, incitando o analista a refletir sobre a política, a redefinir sua estratégia e a
alargar sua tática” (BASTOS& FREIRE, 2006:121).
Optamos pelo uso do termo lalangue em francês, tal como criado por Lacan, por
considerar que em qualquer tradução se perderia o aspecto onomatopaico, sua
característica original, sua qualidade homofônica que traz em si o efeito fonético que a
palavra em francês permite. Lacan associa tal termo ao lalalá, à lalação do bebê
humano.
Eu escrevo lalangue porque isso quer dizer lalalá, a lalação, a saber, é
fato que muito cedo o ser humano faz lalações; assim, ele só tem que
ver um bebê [...].19 (LACAN, 1978 [1974b])
Foi em um lapso que Lacan, na lição de 04 de novembro de 1971, forjou o termo
lalangue. Querendo se referir ao “Vocabulário de psicanálise” de Laplanche e Pontalis,
Lacan acaba dizendo “Vocabulário de filosofia” de Lalande, filósofo que escreveu um
vocabulário de Filosofia bastante conhecido e utilizado na França. No seminário “O
Saber do Psicanalista” (1971-1972), este termo aparece a partir do acoplamento do
artigo definido la com o vocábulo langue. Este conceito valoriza as homofonias, sem
qualquer preocupação com a gramática. As brincadeiras infantis nos dão um bom
exemplo disso. É bastante comum e de conhecimento de todos que as crianças repetem,
com muito frequência, sílabas, fonemas e sons que em si mesmos não carregam nenhum
sentido.
Lacan afirma que lalangue “não tem nada a ver com o dicionário, qualquer que
seja ele. O dicionário tem a ver com a dicção, quer dizer, com a poesia e com a
retórica, por exemplo”20 (LACAN, 1971-72, aula de 04/11/1971). “É a fala antes de seu
ordenamento gramatical e lexicográfico” (:101) como define Jacques-Alain Miller
19
“Je fais lalangue parce que ça veut dire lalala, la lallation, à savoir que c’est un fait que très tôt l’être
humain fait des lallations, comme ça, il n’y a qu’à voir un bébé [...]”. In Italie Lacan, Milan, La
Salamandra, 1978, p. 104-147.
20
“[...] lalangue n'a rien à faire avec le dictionnaire, quel qu'il soit. Le dictionnaire a affaire avec la
diction, c'est-à-dire avec la poésie et avec la rhétorique par exemple”. Aula de 04 de novembro de 1971 –
O Seminário – livro 19bis O Saber do psicanalista, 1971-72.
46
(2000). Este autor sublinha que o surgimento de tal conceito chega a questionar o
conceito de fala, concebida, a partir de então, não como comunicação, mas como gozo.
A comunicação implica o diálogo e a referência. Lalangue nada comunica.
Lacan, em seu seminário “Mais, Ainda” (1972-73), destacou que “a linguagem não é
somente comunicação” (:190), pois ela “é feita de lalangue” (idem), e, portanto,
lalangue é primária em relação à linguagem. A linguagem enquanto articulação
significante é destituída de seu sítio originário e passa a ser secundária à lalangue, que
se apresenta através das homofonias, dos significantes desarticulados essencialmente
ligados ao gozo. Ela, em primeiro plano, não existe, “é apenas aquilo que o discurso
científico elabora para dar conta do que chamo lalangue” (:188). “A psicanálise é um
certo modo de abordar lalangue” (IRMA, 1999:150).
A experiência do inconsciente já mostrou que lalangue serve para coisas
completamente distintas da comunicação, na medida em que o “inconsciente (...) é feito
de lalangue” (LACAN, 1972-73:188), ele “é um saber, um saber-fazer com lalangue”
(:190). Lacan nos alerta que “o que se sabe fazer com lalangue ultrapassa de muito o de
que podemos dar conta a título de linguagem” (idem). A experiência do inconsciente
mostra que lalangue designa o que é a ocupação de cada um de nós, o lugar que cada
sujeito poderá se representar no campo do Outro, extraindo de lalangue um significante,
que fixa o gozo, em uma tentativa de produzir-se sujeito.
Lalangue nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como efeitos
que são afetos. Se se pode dizer que o inconsciente é estruturado como
uma linguagem, é no que os efeitos de lalangue, que já estão lá como
saber, vão bem mais além de tudo que o ser que fala é suscetível de
enunciar (LACAN, 1982[1972-73]:190).
Trata-se do saber que faz enigma, presentificado pelo inconsciente através do
discurso analítico. Para o ser falante, “o saber é o que se articula” (LACAN,
1982[1972-73]:188).
A linguagem é “uma elocubração de saber sobre lalangue (:190); lalangue é
“essencialmente aluvisionária, feita dos aluviões que se acumulam a partir dos malentendidos e das criações linguageiras de cada um” (MILLER, 1999:151). Portanto, se
lalangue somente se sustenta através do mal-entendido, ela não está implicada com o
significado das palavras. O que impulsiona lalangue é o gozo das homofonias.
47
Segundo Miller (1996) em lalangue “os sentidos se cruzam e se multiplicam
sobre os sons” (:70), homofoneticamente, e de forma repetitiva, como em um estribilho,
um refrão. Desta forma, “lalangue é um enxame significante, um enxame que zumbe”
(LACAN, (1982[1972-73]:196), um zumbido de significantes não articulados e que
portam um gozo. Significante e gozo encontram-se vinculados.
Por sua vez, lalangue dita materna (LACAN, 1985[1972-73]:188) “consiste nos
detritos da fala de um Outro dito primordial” (BASTOS & FREIRE, 2006:114)
depositados no corpo da criança. Lacan nos explica que lalangue dita materna significa
que “desde a origem há uma relação com lalangue, que merece ser chamada, com toda
razão, de materna, porque é pela mãe que a criança – se assim posso dizer – a recebe.
Ela não aprende lalangue” (LACAN, 1988[1975c]:43).
O autismo testemunha que esse depósito não é subjetivado ou, muito menos,
“transformado em enunciação, uma vez que o sujeito não se apropria dele, mas é
aprisionado por ele, fazendo de seu corpo um objeto de gozo” (BASTOS & FREIRE,
2006:116). E da ausência de subjetivação daquilo que o afeta que um menino autista de
7 anos nos dá testemunho, quando destaca da “bateria significante de lalangue”
(LACAN, 2003[1974c]:515) o significante “man-man-man”. Muito cedo ele nos faz
entender que este fonema não corresponde a um apelo dirigido à mãe, na medida em
que esta já toma o mutismo de seu filho como irreversível e o som de “man” “man”
“man” como não lhe concernindo. Ela diz: “Não é a mim que ele chama. Ele fala isso
para tudo, fala isso de uma forma indiscriminada” (sic).
Lembremos que lalangue é uma multiplicidade de significantes que nada
representam, já que se mostram desarticulados e indissociáveis do gozo, mas não
podemos deixar de considerar que eles possuem um valor enquanto elementos marcados
por diferenças.
O significante, em si mesmo, não é nada de definível senão como uma
diferença para com um outro significante. É a introdução da diferença
enquanto tal, no campo, que permite extrair de lalangue o que é do
significante (LACAN, 1982[1972-73]:194).
Voltemos ao menino autista que, em determinado encontro com a analista, emite
os sons “pa-pa-pa” logo após os sons “man-man-man”. Entendemos que é através de
lalangue que este menino, introduzindo uma diferença, tenta encontrar um lugar
significante no Outro em uma tentativa de produzir-se, como efeito, sujeito.
48
Este fragmento nos ensina que cabe ao analista, na direção do tratamento,
conferir à lalangue do paciente o estatuto de trabalho, dando aos significantes aí
extraídos e que se apresentam desarticulados e desbaratados do sentido compartilhado, o
estatuto de mensagem.
Apostando nos efeitos de lalangue, alguns casos foram apresentados e discutidos
na Seção Clínica de Angers (IRMA, 1999:160), com destaque para a criação da
“lalangue de transferência” nas psicoses, com a invenção da “língua Donald”. Esta
apresentação teve como proposta estabelecer uma direção de tratamento, situar a
transferência e o lugar que o analista ocupa nessa clínica.
Freud se viu envolvido com a questão do tratamento das psicoses. Ele afirma:
“não considero de modo algum impossível que mediante modificações adequadas do
método possamos ser bem-sucedidos em superar essas contraindicações – e assim
podermos iniciar uma psicoterapia das psicoses” (FREUD, 1905:27). Por sua vez,
Lacan convocou os analistas a não recuarem diante da psicose, advertindo-os a não
utilizarem a técnica instituída por Freud “fora da experiência a que ela se aplica”
(LACAN, 1998[1958]:590), pois, do contrário, seria como “esfalfar-se nos remos
quando o barco está encalhado na areia” (idem).
Para Freud, as manifestações próprias da psicose são consideradas tentativas de
cura do sujeito. Esta é uma posição ética do analista diante do psicótico, na medida em
que trata de acolher toda e qualquer expressão sintomática como manifestação do
sujeito, não a considerando um déficit a ser restituído a qualquer preço.
Para ilustrar tal posição, podemos recorrer a dois fragmentos clínicos
encontrados no texto intitulado “Lalangue de Transferência nas Psicoses” da Seção
Clínica de Angers (IRMA, 1999).
O primeiro (:148) diz respeito a uma criança psicótica que se dirige ao analista e
pergunta: “Você sabe falar em Donald?”. O analista responde que não. A menina, por
sua vez, começa a “quanquonar”: “quain! quain-quian! Quain-quian-quian!”. “O que é
preciso ouvir aí?”, pergunta o analista, desapontado. A criança aponta para o relógio
“quainquonando” e o analista, para sua surpresa, responde “quainquonando”: “São
quainze horas e dez!”. A criança acaba por rir.
Neste exato momento, a “língua Donald” é inventada, constituindo-se como
“lalangue de transferência”. A partir daí, ela passa a ser usada nas sessões, na
instituição e junto à família da criança. Além de ser uma criação “linguageira” da
menina, a “língua Donald” passa a ser praticada tanto por ela quanto pelo analista de
49
maneira a forjar o laço social, a partir de uma solução singular que orienta a direção do
tratamento, ou seja, um saber-fazer com lalangue.
No segundo caso, a analista intervem, aproximando a lalangue de transferência de
uma língua estrangeira, sem sentido. O paciente dizia: “Saint Gobain 601 + 0,2; Saint
Louis 601 + 2” e a analista respondeu: “And what do you say now? – Well, I say that
white is not black”. Neste caso, lalangue não provocou riso do paciente, mas certo
apaziguamento.
O manejo clínico operado caso a caso a partir de lalangue “amplia a clínica
psicanalítica para além da representação significante do sujeito, para além da
estrutura do discurso como laço social” (BASTOS & FREIRE, 2006:121) e revela a
importância, na clínica da psicose, de se identificar em cada sujeito o manejo inédito
com o gozo que lhe é próprio.
Nesses dois fragmentos clínicos, verificamos que não foi o sujeito suposto saber
que produziu a transferência, mas lalangue que permitiu que um significante daí
extraído fizesse signo de qualquer coisa que fosse fora do sentido (IRMA, 1999).
Na clínica, encontramos um trabalho que exige um saber-fazer com lalangue, o
qual nos orienta no tratamento de dois adolescentes, um rapaz autista e uma menina
psicótica21, ambos com 15 anos. Os dois mostram grande interesse por línguas
estrangeiras, particularmente o japonês. Nos trabalhos das oficinas de um serviço
infantojuvenil22, esses adolescentes jogam videogames baseados nos personagens
chamados Pokemons23. Como estes jogos não são traduzidos, encontrando-se em sua
língua original, o japonês, tanto um quanto o outro acabam por dominar e conhecer
muitas palavras e expressões japonesas. É a partir do recurso a esta língua estrangeira
que ambos encontram uma maneira de barrar e regular gozo que se mostra, para eles,
excessivo, constituindo uma forma de nomeá-lo.
Assim, faço minha as palavras de Angélica Bastos e Ana Beatriz Freire (1996) de
que o “saber fazer com lalangue não é uma exigência apenas para o autista.
Corresponde a um trabalho de escrever o inconsciente, isto é, de aparelhar o gozo”
21
Esta adolescente iniciou um curso de japonês.
Trata-se, aqui, do Núcleo Infantojuvenil do Instituto Philippe Pinel do Rio de Janeiro.
23
Uma forma abreviada e mais conhecida de pocket monsters (monstros de bolso), criada por Satoshi
Tajiri em 1996. Existem inúmeras espécies fictícias diferentes de pokémons. Cada uma das espécies tem
poderes especiais. Dentre estas espécies, encontram-se espécies com evoluções, espécies lendárias, únicas
e/ou sozinhas. Uma espécie é totalmente diferente da outra em seu físico e emocional, assim como
existem diferenças entre costumes e hábitos de cada uma delas. As espécies têm diferentes propósitos:
algumas são usadas para batalhas pelos treinadores, outras vivem livres e protegem o mundo com seus
poderes, como as espécies lendárias, e outras são usadas para fazer companhia às pessoas.
22
50
(BASTOS & FREIRE, 2006:120). Ainda segundo elas, “O personagem ‘esquizo’ de
Louis Wolfson (1970), Schreber, Joyce e outros mostram que, não só na psicose, essa
tarefa se impõe ao falasser” (idem).
51
CAPÍTULO III – OS OBJETOS NA CLÍNICA DO AUTISMO
Para a psicanálise, a noção de sujeito não está dada previamente. É o que se
verifica nos textos freudianos, no sentido de que a noção de sujeito não está formulada
de maneira explícita, mas suposta enquanto concepção inédita a partir da correlação que
podemos estabelecer com a noção de objeto. Lacan (1964), por sua vez, ao abordar o
objeto da pulsão, afirma que o sujeito é um aparelho lacunar, na medida em que “é na
lacuna que o sujeito instaura a função de um certo objeto, enquanto objeto perdido. É o
estatuto do objeto a enquanto presente na pulsão” (LACAN, 1985[1964]:175).
Iniciamos esta seção com uma breve introdução sobre o estatuto do objeto em
Freud e Lacan.
Em Freud, encontramos a elaboração da experiência de satisfação como forma
de explicitar a estruturação da relação do sujeito com o objeto. Abordamos a noção de
das Ding. Inicialmente tomamos como referência os textos “Projeto para uma psicologia
científica” (1976 [1895]:421) e “Interpretação de Sonhos” (1975 [1900]:602) para nos
aproximarmos da elaboração do conceito freudiano de objeto do desejo, tendo como
paradigma o objeto da pulsão oral.
Em Lacan, encontramos o objeto a, a sua grande invenção teórica. Objeto a,
como objeto do real (LACAN, 2005 [1962-1963]), encarnado em um vazio, estatuto que
lhe confere sua ex-sistência (fora do simbólico).
Abordar a operação da queda do objeto nos parece importante, entendendo que
na psicose – e, portanto, no autismo – não houve a operação de extração do objeto. Os
autistas nos mostram a particular relação que eles mantêm com a linguagem, com o
corpo e com os objetos (a voz, o olhar, os alimentos e os excrementos).
Se entendermos que, no autismo, não ocorreu a operação de subtração do objeto,
nossa hipótese é a de que o autista tenta construir um objeto fora do corpo como
tentativa de circunscrever o gozo. Aqui, não se estabeleceu a distância entre o gozo e o
corpo operada pelo significante.
Seguindo as considerações de Jean-Claude Maleval (1998) ao abordar os
testemunhos dos autistas de alto desempenho, guiar-nos-emos através de suas
indicações a respeito do uso do objeto no princípio da defesa autística, seu papel e a
função que ele assume pela via da regulação de gozo. A dimensão do duplo no autismo
aqui será abordada.
52
É na clínica do autismo que encontramos uma série incontestável de fenômenos
de desordem pulsional, decorrentes da ausência da montagem do circuito da pulsão e da
não operação da extração do objeto a. Para isso, recorreremos à teoria do estádio do
espelho de Lacan e também ao esquema óptico, por entender que, no caso do autismo, a
instauração da relação especular constitui um problema.
.
3.1 – O OBJETO NA CLÍNICA DO SUJEITO
Com o intuito de examinar e discutir o jogo significante na operação primeira de
simbolização feita pela criança e, em particular, os casos de autismo onde esta operação
não se operou, por não ter se constituído o par significante e a não extração do objeto,
partimos da fala de Lacan (1964) de que “o homem pensa com seu objeto” (:63). Lacan
(1955-56) assinala que “o objeto de interesse humano é o objeto do desejo do outro”
(:50) O que isso pode significar? Significa que o sujeito desejante se constitui em torno
e a partir do outro que confere a sua unidade. Diante disso, observamos que o primeiro
acesso ao objeto que o sujeito tem é “o objeto enquanto objeto do desejo do outro”
(idem). Não se trata, aqui, de pensar a relação do sujeito com seu gozo e seu objeto?
Para prosseguirmos neste percurso, tomamos como balizas a obra de Freud e os
ensinamentos de Lacan.
Nos textos “Projeto para uma psicologia científica” (1976[1895]:421) e
“Interpretação de Sonhos” (1975[1900]:602]), Freud aborda o tema do desamparo
fundamental com o qual todo ser humano se encontra no momento em que nasce, na
medida em que depende de um outro para sobreviver. Parte da suposição do infans, que,
diante do estado de desamparo que se encontra e atordoado por um estado de urgência
(Not des Lebens), é levado a reagir ao excesso de tensão por meio de uma descarga
motora, debatendo-se, chorando ou gritando. Mas esta descarga não produz um
resultado de alívio para o infans, pois não faz cessar a excitação, sendo necessária uma
“ação específica”, realizada através de uma “ajuda alheia” (Fremde hilfe) por uma
“pessoa experiente”. Ao ser acolhido e pela intervenção do Outro, que interpreta e
responde ao grito, tomando-o como apelo, o infans experimenta uma sensação de
satisfação que ficará inscrita na estrutura como marcas mnêmicas tanto do objeto que
proporcionou a satisfação como da imagem do movimento que permitiu a descarga.
Como esta ajuda alheia é encarnada por uma presença humana, e quase sempre
pela mãe, Lacan (1999 [1957-58]:194) se refere ao lugar deste primeiro Outro como o
53
Outro Primordial, lugar simbólico para o infans, na inscrição de traços, como primeira
alteridade.
Num segundo momento, quando surge novamente a excitação, um novo
impulso, chamado de desejo por Freud, recatexizará a imagem mnemônica da percepção
do objeto (alucinação), restabelecendo a situação da satisfação original. O que se produz
é a alucinação do objeto seguida da descarga e não a percepção do objeto. Desta forma,
a experiência de satisfação, nos termos freudianos, gera uma facilitação entre o grupo de
neurônios que receberam investimento e as duas imagens-lembrança, a saber: a do
objeto de satisfação e a da descarga produzida pela ação específica. Isso significa que o
que é reativado, a partir de uma orientação regressiva, é o traço mnemônico da imagem
do objeto, a marca primeira, inscrevendo este objeto na estrutura como perdido, aquele
que causa o desejo. Para Freud, “o objetivo dessa primeira atividade psíquica era
produzir uma ‘identidade perceptiva’ – uma repetição da percepção que se achava
ligada com a satisfação” (FREUD, 1975 [1900]:603).
Podemos entender que o grito do infans presentifica a ausência do objeto,
experiência por demais dolorosa, mas intrinsecamente necessária ao sujeito no momento
de sua entrada na linguagem. O desapontamento que ocorre no movimento alucinatório,
quando da ausência do objeto, inaugura o funcionamento como tal do aparelho psíquico,
a saber, a impossibilidade do gozo pleno.
É, portanto, a falta do objeto que impulsiona o infans, agora inscrito na
linguagem, em uma busca da repetição da satisfação obtida nessa primeira experiência.
É o que Lacan nos indica em seu seminário “A Relação de Objeto” (1995 [1956-1957]),
ao afirmar que “a relação central de objeto é a de falta de objeto” (:67). Aqui, de uma
tacada só, se constitui o desejo e o gozo em uma articulação que aponta para o
surgimento da compulsão à repetição. Ao se analisar a formulação freudiana da primeira
experiência de satisfação, o que se evidencia é o desejo como movimento, guiado pelo
princípio do prazer em direção a uma satisfação perdida que se busca encontrar, e a
tentativa de resgatar o gozo perdido, a qual marcará para sempre o sujeito em uma busca
compulsiva para reencontrar esta experiência.
Se o objeto é desde sempre perdido, podemos nos perguntar: o que o sujeito
procura? Lacan (1988[1959-60]) nos dá uma orientação ao afirmar que o sujeito busca o
objeto enquanto o Outro absoluto, mas não o reencontra e sim as suas coordenadas de
prazer (:69).
54
Lacan (1959-60) nos faz ver como funciona a primeira apreensão da realidade
pelo sujeito. Esta realidade intervém da maneira mais íntima – o Nebenmensch. Na
experiência de satisfação, é o próximo que será buscado como objeto capaz de realizar a
“ajuda alheia” de que tanto se ressente o infans. Este objeto é “o primeiro objeto
satisfatório [do sujeito], seu primeiro objeto hostil e também sua única força auxiliar”
(FREUD, 1975[1895]:438). Desta forma, é sobre o próximo que “o ser humano aprende
a (re) conhecer [Das Erkennen]” (idem), pois se trata aqui do reconhecimento do objeto
da ação específica. Esse objeto é, para o sujeito, o primeiro exterior, a um só tempo
íntimo, estranho e mesmo hostil, em torno do qual se orienta todo o encaminhamento
desejante do sujeito.
Citemos Freud com relação ao complexo do próximo (Nebenmensch):
“Desse modo, o complexo do ser humano semelhante se divide em
duas partes, das quais uma dá impressão de ser uma estrutura que
persiste coerente como uma coisa (Ding), enquanto que a outra pode
ser compreendida por meio da atividade da memória” (FREUD, 1975
[1895]:438).
Lacan fez notar que o “Ding é o elemento que é, originalmente, isolado pelo
sujeito em sua experiência do Nebenmensch como sendo, por sua natureza, estranho,
Fremde”. (LACAN, 1959-60:68).
Em sua primeira referência a das Ding no Projeto (1895), Freud a designa como
a (neurônio a). Notemos certa semelhança com aquilo que Lacan, mais tarde, chamará
de objeto a. No entanto, não se trata de noções idênticas.
O que significa designar das Ding como a? Freud (:434), ao abordar a distinção
entre a representação-lembrança (catexia de desejo) e a representação-percepção
(catexia de percepção) no processo de subjetivação, afirma que a primeira refere-se ao
neurônio a + o neurônio b e a segunda representação relaciona-se ao neurônio a + o
neurônio c. O complexo perceptivo é decomposto em duas partes: a primeira é o
neurônio a que se mantém constante, e a segunda é o neurônio b que é variável. O
neurônio a é qualificado como a coisa (das Ding) e o neurônio b é formulado como
atributo, seu predicado. Uma abordagem do julgamento estabelecerá a diferença e a
semelhança entre os conjuntos, sendo que o elemento responsável pela semelhança é o a
e o responsável pela diferença é o c.
Freud também abordará das Ding como o inassimilável, o irrepresentável, o
resíduo que escapa à abordagem do julgamento. Como dito anteriormente, o Ding é o
55
que na experiência do Nebenmensch é isolado pelo sujeito como sendo estranho,
exterior, não regulado pelo princípio do prazer. Ele não nos informa sobre os atributos
ou a qualidade do objeto. Lacan, abordando o mundo significante, situa no texto
freudiano que “a maneira pela qual o estranho, o hostil aparece na primeira
experiência da realidade para o sujeito humano” (LACAN, 1988[1959-60]:72) é
através do grito. Insiste em dizer que “a Coisa só se apresenta a nós na medida em que
ela acerta na palavra, como se diz acertar na mosca” (idem).
No seminário sobre “A Ética da Psicanálise” (1959-60), Lacan dedicou várias
aulas ao conceito de das Ding. Aborda a Coisa como o irrepresentável, o que do real
padece do significante (:149).
Inicialmente ressalta que Freud estabeleceu uma aproximação entre a
Wortvorstellung (representação-palavra) e a Sachvorstellung (representação-coisa).
Segundo Lacan (1959-60), ele não fala em Dingvorstellung e, portanto, os termos das
Ding e die Sache são opostos e distintos, mas se referem à coisa. Ressalta que há uma
relação entre a coisa (Sache) e a palavra (Wort), que ligadas formam um par. Enquanto
a Sache é a coisa orientada e governada pela linguagem, produto da indústria, da ação
humana, das Ding situa-se em outro lugar, tratando-se de algo significativamente
diverso, na medida em que há outra coisa em das Ding e o que há “é o verdadeiro
segredo” (:61). Este termo não está na relação que permite “o homem colocar em
questão suas palavras como referindo-se às coisas, que, no entanto, elas criaram”
(idem). Lacan ressalta que, “no nível da Vorstellung a Coisa não é nada, (...) ela se
distingue como ausente” (:82).
Das Ding é o centro do funcionamento do aparelho psíquico, “é o que no ponto
inicial, logicamente, da mesma feita, cronologicamente, da organização do mundo no
psiquismo” (:76), em torno do qual gira todo o movimento desejante do sujeito,
governado e regulado pelo princípio do prazer.
Lacan nos fala que das Ding deve ser identificado como a tendência a
reencontrar (Wiederzufinden), que, para Freud, funda a orientação do sujeito humano
em direção ao objeto. Portanto, o objeto nunca foi perdido porque nunca foi tido, mas
trata-se essencialmente de reencontrá-lo. É das Ding que representa, para o sujeito, o
Outro absoluto que se trata de reencontrar. O Outro não só na dimensão de semelhante,
mas também como alteridade absoluta (RIBEIRO, 2005).
Podemos dar certo peso ao que se verifica aqui: que o desprazer se desprende do
princípio do prazer, princípio que governa a busca do objeto e que impõe rodeios que
56
conservam certa distância em relação ao seu fim. Mas “o que é buscado é o objeto em
relação ao qual o princípio do prazer funciona” (LACAN, 1988[1959-1960]:69).
No seminário sobre “A Ética da Psicanálise” (1959-60), Lacan salienta que a
procura é operada nas vias do significante, tendo o princípio do prazer a função de
conduzir o sujeito de significante em significante, colocando à sua disposição “quantos
significantes forem necessários para manter o mais baixo possível o nível de tensão que
regula todo o funcionamento do aparelho psíquico” (:150).
Esta busca é marcada pelo desencontro, na medida em que o que se espera
encontrar, o objeto, jamais é encontrado, e o que se procura, a satisfação, é impossível
de se atingir. No seminário “As Formações do Inconsciente” (1999[1957-1958]),
tratando de sublinhar que o objeto
“[...] é um objeto metonímico” (:207), [Lacan falará que] “o
objeto do desejo sendo o objeto do desejo do Outro e o desejo
sendo sempre desejo de outra coisa, mas precisamente, daquilo
que faltava ao objeto perdido primordialmente, na medida em que
Freud nô-lo mostra como estando sempre por ser reencontrado”
(LACAN, 1999[1957-1958]:194)
Lacan assinala com bastante clareza que não se trata de situar o objeto, como fez
Melaine Klein. Ele pede para que se reconsidere a luz de sua nova articulação, as
elaborações kleinianas que colocam o corpo materno no lugar central de das Ding, na
medida em que a mãe constitui o objeto que vem ocupar, de maneira muito
particularizada na vida do sujeito, o lugar do objeto faltoso. Neste caso, por meio de
inúmeros e sucessivos reencontros, o objeto surge como perdido, como Outra coisa: “A
Outra coisa é, essencialmente, a Coisa” (LACAN,1959-60:149). O objeto é por
natureza um objeto reencontrado. “E, portanto, ele é reencontrado, sendo que a única
maneira de saber que foi perdido é por meio desses reencontros, desses reachados”
(idem). Desta forma, o estatuto real, faltoso da Coisa, comparece a cada vez que o
sujeito reencontra o objeto.
Trata-se, no entanto, de algo da ordem da discordância radical entre o que era
esperado e o encontrado, atualizada na repetição pulsional. Portanto, a relação do sujeito
ao objeto é marcada por uma desarmonia estrutural, o que nos permite afirmar que na
satisfação humana não existe uma relação de complementaridade entre o sujeito e o
objeto. Freud nos mostra claramente a distinção entre a realização do desejo e a
57
satisfação da necessidade no capítulo VII de “Interpretação de Sonhos” (1975 [1900]),
mais exatamente no apêndice C, intitulado “A realização do desejo”.
Freud, ao desenvolver o conceito de pulsão (FREUD, 1974 [1915]), define o
objeto como um de seus quatro elementos componentes e o mais variável entre eles.
Esta definição nos permite entender que todo e qualquer objeto pode se constituir como
objeto da pulsão. No texto “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (1964),
Lacan se refere à elaboração freudiana sobre o objeto da seguinte forma: “Para o que é
do objeto da pulsão, que bem se saiba que ele não tem, falando propriamente, nenhuma
importância. Ele é totalmente indiferente (LACAN, 1985 [1964]: 159). Desta forma,
entendemos que, aqui, algo figura uma falta de objeto; é disto que se trata o conceito
lacaniano de objeto.
A partir do percurso anteriormente trilhado, constatamos toda a magnitude do
esforço lacaniano em sua leitura dos conceitos freudianos, sustentando um rigor
conceitual um tanto perdido na abordagem dos pós-freudianos. Para Lacan, o conceito
de objeto não passa pela definição kleiniana de objeto, este pleno que será alvo do
desejo de destruição ou de reparação da criança, nem pelo objeto transicional de
Winnicott e tampouco pelo objeto desde sempre perdido que o sujeito busca reencontrar
de Freud. Lacan nos apresenta sua única invenção teórica, a saber: o objeto a. Trata-se
aqui do objeto causa de desejo, objeto escavado como produto do esvaziamento através
da incidência do significante Ao longo de sua obra, percebemos a construção deste
conceito. Construção sistematizada abaixo e que pode nos servir para uma breve
abordagem da teorização do objeto a.
No Seminário “A Relação de Objeto” (1956-57), Lacan faz alusão à relação
central do objeto do desejo, que para ele é definida pela falta de objeto, esta simbolizada
pelo falo. Na sequência, no Seminário “As Formações do Inconsciente” (1957-58),
Lacan examina o conceito de objeto, definido, nesse momento, como metonímico, ou
seja, o objeto do desejo como sendo o objeto do desejo do Outro, assinalando que o
desejo é sempre o desejo de outra coisa, daquilo que falta ao objeto desde sempre
perdido que se busca reencontrar. Para Rabinovich, o objeto metonímico de Lacan
inclui duas faces, a saber:
[...] por um lado, é o objeto estruturalmente perdido do desejo
freudiano; por outro, no vazio criado por sua perda se instala a
remissão incessante de significação a significação, que faz surgir o
objeto do desejo como sendo sempre outro objeto, na media em que
perdeu a fixidez da significação instintiva. Contraponto, portanto,
58
entre o objeto perdido e o desejo de Outra Coisa, que na realidade não
são mais do que duas faces de uma única instância. (RABINOVICH,
2009:153).
No Seminário “O Desejo e sua Interpretação” (1958-59), Lacan nos faz verificar
o caráter real do objeto a. Indica, no matema da fantasia $ <> a, o lugar do objeto a
partir da estrutura do desejo do sujeito como desejo do Outro. $ e objeto a são tomados
como elementos heterogêneos na estrutura, $ desejo de a. A relação ($ <> a) está no
nível da fantasia e é o que permite o sujeito situar-se e se arranjar com seu desejo. O
sujeito aqui barrado se sustenta pela extração do objeto a. No texto “Alocução sobre as
psicoses da criança” (1967) assim Lacan se refere ao objeto a: “[...] é como causa que
ele aparece na fantasia [...] causa em relação ao desejo do qual a fantasia é a
montagem” (:366).
Por sua vez, no Seminário “A Ética da Psicanálise” (1959-60), a noção de das
Ding é extensamente abordada, antecedente lógico e teórico do objeto a. É definido
como vazio de representação, fora de qualquer articulação significante e constituidor do
objeto.
Mas é no Seminário “A Angústia” (1962-63) que Lacan chega à elaboração do
objeto a como objeto do real, que excede à ação de simbolização do Outro. Articula o
objeto a com a função de corte, dimensão de separação como objeto causa de desejo que
presentifica a falta.
Conforme Freud, em “Inibição, Sintoma e Angústia” (1925), a angústia
desempenha, em relação a algo, a função de sinal. Já Lacan diz que “(...) é um sinal
relacionado com o que se passa em termos da relação do sujeito com o objeto a” (2005,
[1962-63]:98) e que o único meio de se falar do objeto a é através da angústia, sendo
esta sua única tradução subjetiva. Com a angústia se introduz a função da falta em nível
duplicado, ou seja, a angústia não é somente sinal de uma falta, mas quando a falta faz
falta, “por ser a falta de apoio dada pela falta” (:64). Lacan lembra que “não se trata de
perda do objeto, mas da presença disto: de que os objetos não faltam” (idem). A
angústia é uma resposta no real evocada pela incidência do desejo, desejo do Outro. É a
partir do Outro que o a acaba por assumir seu isolamento, “e é na relação do sujeito
com o Outro que ele se constitui como resto” (:128). Aqui, desejo, falta e angústia se
articulam no esquema óptico com a inclusão do objeto a.
59
3.2 – O USO DOS OBJETOS NA ELABORAÇÃO DA DEFESA AUTÍSTICA
Tomamos como ponto de partida a preciosa observação de Kanner (1997[1943]),
na descrição da Síndrome do Autismo Infantil Precoce, sobre a particular relação que os
autistas mantêm com os objetos.
Na clínica, não é difícil encontrarmos pais angustiados diante daquilo que
acreditam que não faz bem aos seus filhos. Queixam-se de que a criança não se interessa
por nenhum outro brinquedo que não seja aquele objeto específico, um cordão de
sapato, uma pequena boneca de pano, um jogo eletrônico ou uma roda de um carrinho.
E a todo custo se empenham em tentar extrair, extirpar essa “mania”, essa “fixação”,
essa “obsessão” dos filhos. São frequentes os pedidos desta ordem dirigidos àqueles que
trabalham com essas crianças.
De fato, na clínica, vemos muitas crianças autistas que não se separam de forma
alguma de um objeto encontrado aqui ou ali.
Frances Tustin foi a primeira psicanalista a conceituar o objeto autístico,
dedicando capítulos em seus livros sobre o estudo do autismo. Em um deles, logo no
primeiro parágrafo, afirma que os “objetos autísticos são objetos peculiares a cada
criança individualmente. Eles são usados obsessivamente de modos idiossincrásicos
que impedem o desenvolvimento mental” (TUSTIN, 1984:126) A dimensão patológica
de tais objetos é intensamente marcada, mas verificamos que Tustin afirma que estes
objetos patológicos são vitais para a criança autista, pois a mantêm protegida. Apesar de
advertir que, se usados indevidamente, estes objetos impedem o desenvolvimento
psicológico, acrescenta que a sua importância deve ser respeitada até o momento “que o
poder deles em manter essa criança como escrava possa ser diminuído” (:93)
Segundo Maleval (2009), Tustin24 construiu uma teoria bastante elaborada sobre
o objeto autístico a partir de sua prática psicanalítica com crianças psicóticas. Para
explicar as características e especificidades deste objeto, recorre, inicialmente, ao
conceito de objeto transicional de Winnicott (1951), caracterizado por sua natureza de
possessão. Este objeto surge no primeiro ano de vida de uma criança e muito
24
Tustin publica, em 1975, seu primeiro livro, intitulado Autismo e Psicose Infantil. É a partir do
tratamento do menino John (1951) que Tustin irá construir, tempos depois, seu arcabouço conceitual.
Utiliza-se de seu contato com Margareth Mahler, através do conceito de amor objetal simbiótico (1961) e
do conceito de depressão psicótica (1958) elaborado por Winnicott. Fará surpervisões com Meltzer e
sentirá como insipiente a sua formação kleiniana para explicar os fenômenos que presenciava na clínica.
60
frequentemente é encarnado em bichinhos de pelúcia, paninhos, chupetas, cobertores e
mantas. Para ela, o objeto autístico seria um precursor do objeto winnicottiano,
entendido e percebido, pela criança, como “totalmente eu”. Em um desenvolvimento
normal de uma criança, o objeto autístico se funde ao objeto transicional.
O objeto transicional revela que a perda do objeto primeiro da criança dá lugar a
outros objetos, objetos substitutos, com os quais a criança retira certa satisfação. Para
Tustin, os objetos autísticos funcionam como uma proteção contra a perda e, portanto,
não são substitutos (TUSTIN, 1984). Eles têm a função de “impedir o desenvolvimento
do grau de consciência da separação corporal” (TUSTIN, 1990:89). São objetos
usados pelo autista como se fizessem parte de seu próprio corpo, proporcionando
“sensações de segurança e divertimento [...], para afastar o perigo que ameaça [de um]
ataque corporal e aniquilação inapelável” (TUSTIN, 1984:132). É o resultado de uma
excessiva autossensualidade que tomou um caminho desviante e perverso (TUSTIN,
1984), caracterizando-se como prejudiciais e nocivos para a criança. Não são
considerados temporariamente substitutos da mãe, mas a substituem permanentemente,
de tal modo que os cuidados maternos se tornam sem efeito (TUSTIN, 1990).
As crianças autistas estabelecem uma relação muito particular com objetos
duros, o que permite entrarem em equação com eles. Para Tustin, não se trata do
fenômeno da identificação, pois tais objetos não se diferenciam do corpo da criança,
além de não serem usados na funcionalidade característica, mas, muito pelo contrário,
são usados por proporcionar uma sensação de dureza. As crianças autistas querem se
apropriar da característica de dureza dos objetos.
Tustin fala que o autista se situa em uma relação transitivista com seu objeto,
pois não estabelece uma distinção entre as pessoas e os objetos inanimados. Ele pode
trazer o objeto colado ao seu corpo ou pode se colar a uma parte dura do corpo do outro,
como se este fosse um objeto inanimado, em uma espécie de fusão. Um fragmento
clínico do tratamento do menino John, iniciado quando este tinha 3 anos e 7 meses
(novembro de 1951), poderá ilustrar a relação transitivista que o sujeito mantém com
seus objetos. Na primeira sessão, John, ao entrar na sala do consultório, faz rodar um
pião, enquanto se masturba com uma das mãos e, com a outra, faz movimentos
circulares ao redor de sua boca. Isso permite ver que John não estabelecia nenhuma
diferença entre os movimentos do pião e os de seu próprio corpo.
Para Tustin, estas crianças se concentram excessivamente em sensações
engendradas por seus próprios corpos, o que explica o fato de que muitas delas não
61
sentem dor quando se machucam, parecendo, igualmente, não ouvir e nem enxergar. Tal
concentração explica por que muitas delas não se dão conta de que se machucaram –
devido a uma queda, por exemplo – e são considerados surdas e cegas.
Sabemos que, para o autista, o objeto não é determinado pelo seu lugar em uma
lógica de troca, mas tomado na dimensão de objetos reais, pois não se sustentam na
relação significante com o Outro, não se inscrevem sobre um fundo de falta. O autista
“falha em posicionar o objeto na falta do Outro” (MALEVAL, 2009:427).
Aos objetos freudianos, oral e anal, foram acrescentados, por Lacan, os objetos
olhar e voz, os quais possuem um caráter de exterioridade em relação ao sujeito. Na
elaboração lacaniana em que estabelece uma ligação entre o corpo e o objeto a, quatro
são as modalidades do objeto (seio, fezes, olhar e voz), constituindo “peças separáveis
enquanto que profundamente religadas ao corpo”25 (LACAN, 1966-1967:7).
No Seminário “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise” (1964),
Lacan dedica quatro lições à análise da pulsão escópica, motivado pela publicação da
obra póstuma de Merleau-Ponty, intitulada “O visível e o invisível”. Extrai desta obra
seu ponto essencial quando se refere à “dependência do visível em relação àquilo que
nos põe sob o olho do que vê” (: 73) Assinala que o olho é apenas a metáfora do empuxo
daquele que vê, na medida em que existe algo anterior ao olho. Trata-se da
“preexistência de um olhar – eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou
olhado de toda parte” (idem). Desta forma, existe uma anterioridade, marcando “a
preexistência, ao visto, de um dado-a-ver” (:75), distinguindo a função do olho da
função do olhar. Algo é dado a ver àquele que vê. Lacan nos lembra que, entre o olho e
o olhar, se produz “a esquize na qual se manifesta a pulsão ao nível do campo
escópico” (:74). Melhor dizendo: existe uma cisão entre o que se vê e o olhar
Segundo Lacan, o olhar contém o objeto a e especifica o campo escópico. O
olhar situa-se no campo do Outro, pois, como assinala, “somos seres olhados no
espetáculo do mundo” (:76). Trata-se, na pulsão escópica, de se fazer olhar, de ser visto
naquilo que não se pode ver, na medida em que o objeto olhar indica ao olho que não é
possível tudo ver. O olhar é mascarado pela imagem do outro e o objeto a aí fica oculto,
na medida em que o objeto é a causa de desejo, desejo esse despertado pelo outro
(semelhante).
25
“[...] ces pièces détachables pourtant foncièrement reliées au corps”. Seminaire XIV La Logique du
Fantasme (1966-67) – 16 de novembro de 1966.
62
É desta forma que Lacan esquematiza seu ensino sobre a relação escópica, cujo
objeto é o olhar:
Uma vez que o sujeito tenta acomodar-se a esse olhar, ele se torna,
esse olhar, esse objeto punctiforme, esse ponto de ser evanescente,
com o qual o sujeito confunde seu próprio desfalecimento. [...] de
todos os objetos, o olhar se especifica como inapreensível. É por isso
que ele é desconhecido (...) e por essa razão que o sujeito consegue
simbolizar (...) seu traço evanescente na ilusão da consciência de verse vendo-se, em que o olhar se elide (LACAN, 1985[1964]:83).
Quais são as consequências desta elaboração para o campo das psicoses, e
particularmente para o autismo? Vemos que, na psicose, o objeto olhar não se encontra
mascarado, ele retorna no real como um olhar que observa o sujeito, deixando-o à mercê
do retorno daquilo que não foi simbolizado. São frequentes as desorganizações do
campo visual, onde o objeto olhar como a no campo escópico surge para o sujeito de
uma forma bastante ampliada e intensificada através da multiplicidade de olhares. Por
exemplo, um paciente internado em um hospital psiquiátrico sente-se perseguido,
acreditando que todos os olhares recairão sobre ele – por saberem que ele é
homossexual – caso saia de seu quarto. Outro exemplo é o menino autista que, para se
proteger deste olhar que presentifica a presença do Outro, circula pelas ruas usando um
par de óculos escuros.
Quanto ao objeto voz, Lacan, no Seminário “A Angustia” (1962-63), assinala
que ele não pertence ao registro sonoro, não é da ordem da audição:
Tudo o que o sujeito recebe do Outro pela linguagem, diz a
experiência comum que ele o recebe sob forma vocal. A experiência
de casos [...] mostra que existem outras vias que não as vocais para
receber a linguagem. A linguagem não é vocalização. Vejam os surdos
[...] [No entanto, há] uma relação que liga a linguagem a uma
sonoridade (LACAN, 2005[1962-63]: 299)
Em seu trabalho de definição da relação do sujeito com o Outro, fundamentada
em sua prática, a qual confirma o funcionamento autônomo da fala, Lacan (1962-63)
traz como exemplo o fato de que uma criança bem pequena, antes mesmo da fase do
espelho estar concluída, monologa antes de adormecer, desde que disponha de algumas
poucas palavras. Monólogo, análogo à função do sonho, não reproduzido se houver uma
outra pessoa presente. Diante disso, Lacan afirma tratar-se da constituição do a como
resto. Respeitadas tais condições, esse fenômeno só nos aparece em estado de resto, ou
63
seja, a fita do gravador26. Caso contrário, só teremos no máximo um murmúrio
longínguo, prestes a desaparecer diante de nossa presença. Lacan pergunta se não é
“exatamente do lado de uma voz desligada de seu suporte que devemos procurar o
resto?” (:298)
Em termos lacanianos, a voz não ressoa em um vazio espacial qualquer, mas
“num vazio que é o vazio do Outro como tal, o ex nihilo propriamente dito. A voz
responde ao que é dito, mas não pode responder por isso. Em outras palavras, para que
ela responda, devemos incorporar a voz como a alteridade do que é dito” (: 300). É por
essa razão que nossa voz, separada de nós, nos soa de modo estranho. A voz é
incorporada, ela não é assimilada. Lacan lhe confere uma função que pode servir de
modelo para o vazio.
É da estrutura do Outro constituir certo vazio, “o vazio de sua falta de garantia
[...], é nesse vazio que a voz ressoa como distinta das sonoridades, não modulada, mas
articulada” (idem). Na condição de objeto a, a voz pertence ao Outro, na medida em
que se trata da incorporação da voz do Outro.
Diante dos outros objetos, o objeto voz apresenta uma particularidade retratada
por Lacan. Ele mostra que a pulsão invocante tem “esse privilégio de não poder fechar”
(LACAN, 1985[1964]:188), porque diferentemente do se fazer ver, que situa a flecha
em seu retorno para o sujeito, o se fazer ouvir indica um caminho em direção ao outro,
na medida em que “os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único orifício que não
se pode fechar” (:184).
Collete Soler (2007) defende a proposição de que não existe um autismo puro.
Segundo ela, existe uma mistura e, desta forma, define o autismo como um pólo. Neste
caso, “trata-se de crianças que são como perseguidas pelos signos da presença do
Outro, muito particularmente por dois objetos: o olhar e a voz” (SOLER, 2007:69).
Tudo o que se apresenta como demanda, que se mostra imprevisível e inesperado, tem
um impacto direto sobre essas crianças. Para Soler, a própria estabilidade da criança
autista está diretamente na dependência de que o Outro não se mexa, buscando “manter
uma espécie de homeostasia” (:72).
Disso resulta o fato de que muitos psicanalistas que trabalham nesta clínica
abordam estas crianças através de uma presença regulada e orientada. Orientada no
sentido de que para elas o que vem do exterior, conforme assinalado por Kanner, o que
26
Referência à sugestão de Roman Jakobson para que seus alunos colocassem um gravador no berçário.
64
presentifica a demanda do Outro, é avassalador para elas. Verificamos na clínica que o
mais indicado é permanecer de costas ou não se dirigir diretamente a elas, agir “como se
fossem um barulho, em vez de uma voz” (idem). Tal estratégia corresponde ao fato de
que a criança autista, ao se deparar com o olhar e a voz, apresenta reações intensas e as
mais diversas, quando não imprevisíveis. Elas podem berrar, gritar, se automutilar ou
mesmo agredir quem quer que esteja por perto.
Dois fragmentos clínicos nos permitem observar esta defesa autística, na medida
em que uma criança autista que “fecha seus ouvidos a alguma coisa que está sendo
falada [...] não está no pré-verbal, pois é do verbo que ela se protege” (LACAN, 2003
[1967]:365).
Um adolescente autista, nos passeios semanais que faz pela cidade acompanhado
por um integrante da equipe de um projeto27, deixa bem claro que prefere circular pelos
bairros da cidade usando o metrô ao invés do ônibus. Ora, sabemos que a circulação dos
metrôs está submetida a horários planejados e pré-estabelecidos e, de certa forma, a uma
movimentação regulada. Não há imprevistos. Ou seja, é preciso que nada se modifique,
é necessária uma rotina ritualizada, pois a presença do Outro é indicativa de ser sentida
como uma invasão.
Um menino autista se recusa a sair do consultório quando é indicado o momento
de ir embora. Ele grita, tenta morder a analista, esconde-se atrás de um móvel. Diante da
confusão que isto causa, a analista passa a se dirigir aos pés desse menino, dizendo que
eles, os pés, precisavam vestir as meias e calçar os tênis, a fim de irem e voltarem na
próxima sessão. A esta intervenção do analista, o menino passa a sair tranquilamente da
sala, desta vez sem o menor protesto.
Assistimos na clínica do autismo a diversas e consideráveis manifestações, nas
quais o corpo fica à mercê de perturbações que expressam o excesso de gozo, sem que
aí se exerça a função do objeto, que consistiria em extrair do corpo esse excesso
(BASTOS & FREIRE, 2006). Sem a extração do objeto, podemos estabelecer como
hipótese desta pesquisa, que o autista se empenha em construir um objeto fora do corpo
como uma maneira de regular o gozo. Esse objeto instaura uma borda entre o sujeito e o
Outro. Pelo uso de objetos, tão próprio e caro aos autistas, e conferindo-lhes o estatuto
de tratamento do gozo, inferimos que se trata de um modo de regulação do gozo, de
uma tentativa de se subtrair desse excesso.
27
Trata-se do projeto de pesquisa já referido na nota 14.
65
Os objetos do desejo (olhar, voz) e da demanda do Outro (alimentos e
excrementos) provocam algo da ordem do horror e da devastação para o autista. Kanner,
em seu artigo “Os Distúrbios Autísticos de Contato Afetivo” (1997 [1943]), nos lembra
que a “primeira intrusão vinda do exterior para a criança [autista]” (1997:160) é a
alimentação. Da mesma forma, Kanner assinala que as pessoas, para os autistas, são
uma “calamidade” (:169)
Cláudio é uma criança de apenas 3 anos quando inicia seu tratamento na
instituição. Seus pais chegam à entrevista preocupados com o fato de seu filho, tão
pequeno, não come nada. Cláudio não aceita absolutamente nada que vem do outro. Sua
alimentação se restringe a comer um determinado tipo de biscoito e a beber leite.
Eduardo, outra criança bem pequena, só comia biscoitos e bebia refrigerantes.
Sua mãe mostrava-se muito preocupada com os últimos resultados dos exames feitos no
laboratório. Mesmo estando bem acima do peso para uma criança de 3 anos, Eduardo se
recusava a se alimentar com outros tipos de alimento. Seus dentes estavam em péssimas
condições e os resultados de seus exames laboratoriais não eram nada animadores.
Contudo, verificamos também uma tentativa de regular e barrar a intrusão do
Outro, o que permite certo apaziguamento. Matheus, uma outra criança, só começa a
comer quando consegue verificar, de forma detalhada e rígida, a distância entre os
talheres e o prato, o que transforma suas refeições em uma verdadeira odisseia.
Uma outra observação que se faz necessário aqui é aquela que se refere ao fato
de que muitas dessas crianças parecem surdas, embora não o sejam. Elas não
manifestam nenhum desconforto diante de um intenso barulho ou, ao contrário, não
conseguem suportar ambientes barulhentos. Por outro lado, apresentam importantes
distúrbios da visão. Elas não “olham”, e/ou apresentam um estrabismo considerável.
Soler nos faz lembrar que o primeiro momento em que uma criança dirige um olhar ao
outro é um momento importante na direção do tratamento.
3.2.1 – A CONSTRUÇÃO DOS OBJETOS AUTÍSTICOS
À semelhança de Freud e Lacan, que se utilizaram, para abordar os mecanismos
da psicose, das formas mais elaboradas da defesa, Maleval apreende o autismo a partir
da noção de defesa.
Maleval (2008) sustenta a tese de que, no autismo, podemos identificar dois
traços fundamentais, a saber: a defesa autística apoiada em um objeto e a carência da
66
identificação primordial – S1. Para ele, o autista recusa em ceder o gozo vocal e isso
não será sem conseqüências quanto à inscrição do sujeito no campo do Outro. O autista
se protege de toda e qualquer emergência angustiante do objeto voz. A verborragia, tão
característica nos autistas, “parece ter por função abafar e conter uma voz da qual ele
receia a manifestação” (2007b:75).
Para Maleval, o autista “rejeita qualquer dependência ao olhar do Outro: recusa
ceder o objeto de seu gozo vocal, de modo que ele resiste radicalmente à alienação de
seu ser na linguagem” (2007:74).
Este autor eleva o autismo a um “tipo clínico original” (2007b:89), situando-o no
campo das psicoses por diversas razões. A que nos importa destacar, para efeitos nesta
pesquisa, refere-se à existência de defesas específicas como modalidades de localização
de gozo, a saber: uma fundada sobre os objetos, outra apoiada no duplo e outra ainda,
ligada à assimilação de signos, através dos pontos de competência, definidos por
Maleval como conhecimento magistral acerca de um determinado campo de saber, fonte
do Outro de síntese. Para ele, são defesas que permitem o autista ter acesso a uma fala,
possibilitando uma troca, na tentativa de remediar a desorganização do mundo devida a
sua recusa de apelo ao Outro.
Recolhendo os testemunhos das experiências de autistas de alto desempenho,
como Donna Williams e Temple Grandin, Maleval (1997) afirma “a função
asseguradora e essencial” (:136), por parte de certos objetos, para a manutenção de
uma ordem no mundo destes autistas. É sobre eles que se apóia a defesa autística: “Ela
se desenvolve por meio da justaposição de significantes com esses objetos” (idem), diz
Maleval, que destaca a função contentora do gozo que é própria dos objetos autísticos.
Segundo Maleval (2009), para Eric Laurent a defesa do autista é definida como
o retorno do gozo sobre a borda. Diferente da esquizofrenia, em que o gozo retorna no
corpo, e da paranóia, em que o gozo retorna no Outro, na figura do perseguidor.
Poderíamos assinalar que o retorno do gozo, no caso do autismo, seria um retorno no
real dos próprios buracos corporais que não se constituíram como bordas erógenas,
como ponto de satisfação para a obtenção do prazer. Melhor dizendo, um retorno lá
onde não há borda, em uma tentativa de fazer borda, na medida em que esse retorno
incide no corpo fragmentado. Vale assinalar, aqui, um ponto de semelhança entre o
autismo e a esquizofrenia, os quais apresentariam um retorno de gozo em partes
fragmentadas, não pressupondo a unidade imaginária e simbólica do corpo.
67
Apoiando-se nas formulações de Eric Laurent sobre borda autística, Maleval
inclui novos elementos a este conceito, os quais participam no trabalho de localização
do gozo, a saber: o ponto de competência, fonte do Outro de síntese, o duplo e o objeto
que participam no trabalho de localização do gozo.
Por sua vez, referindo-se à elaboração da defesa autística, Maleval (1997:136)
distingue quatro formas na construção do objeto autístico.28
A primeira refere-se ao objeto autístico regulador, onde o sujeito pode aí se
deslocar, mas mantendo ainda a referência fixada pelo significante. Segundo Maleval, a
principal função do objeto autístico complexo consiste em tratar o gozo que retorna
sobre a borda (2009:238). A mobilidade neste caso é um pouco maior na medida em que
o sujeito, em razão da distância aí instalada, poderá “desenvolver capacidades de
adaptação a situações imprevistas” (1997:137). Um exemplo disso é verificado em
Temple Grandin. Para ela, é possível se distanciar de sua máquina do abraço a fim de
realizar suas palestras mundo afora. Muito recentemente, assistimos, em um canal de
televisão fechada, a uma reportagem em que Temple declarava que passou a prescindir
do uso da máquina do abraço.29
A segunda refere-se ao objeto autístico regulado, conhecido como os objetos
utilizados pelos autistas eruditos, onde os significantes são tomados em massa. Temos
como exemplo os catálogos de telefone, as placas de rua, os horários dos trens e do
metrô, os números dos ônibus, os calendários.
A terceira é referida ao objeto autístico não regulado, onde este é portador de
significantes que contribuem para um ordenamento do mundo de maneira mais
elaborada. “O sujeito se encontra seja colado a ele [...], seja em um estado de inércia
devido a um deixar cair” (MALEVAL, 1997:136). Vejamos um exemplo de objeto
autístico não regulado:
Não era possível para José circular por entre os clínicos sem um pequeno urso de
pelúcia amarrado, com fita crepe, ao dorso de sua mão. Primeiro foi o ursinho, depois
uma panela. José não permitia que ninguém mexesse nos objetos de seu interesse. Com
eles colados ao seu corpo, era possível para ele participar do cotidiano da instituição.
28
Não adotaremos esta divisão apresentada por Maleval como uma categorização, uma classificação dos
objetos autísticos, por entender que, no trabalho do autista, ocorre uma transição, uma transformação de
um objeto em outro.
29
A máquina elétrica de Joey de Bettelheim (1987) e a máquina do abraço de Temple Grandin (2006)
constituem os dois objetos autísticos complexos mais conhecidos, pesquisados e estudados por aqueles
que trabalham na clínica do autismo.
68
Por fim, no quarto objeto, o objeto autístico bruto, não são encontrados
significantes organizados, mas ele é utilizado pelo sujeito para colocar certa ordem no
mundo através de seu trabalho de manter a imutabilidade e para proteger-se do desejo
do Outro. São exemplos deste objeto as bolinhas, as tirinhas, os fios, os brinquedos etc.
Maleval (2009) lembra que Tustin dá grande ênfase ao fato de que o objeto
autístico funciona como um duplo do sujeito. Mas isso não significa que ela acolha esta
dimensão de duplo na direção do tratamento. Para ela, o objeto autístico está
relacionado à carência das identificações e às sensações inapropriadas que a criança
retira de seu próprio corpo. Tustin reconhece o caráter protetor do objeto autístico
contra a angústia. Este objeto é usado como uma barreira autossensual, mas a autora não
retira disto uma consequência clínica, mantendo como direção do tratamento a queda
deste objeto, que deve ser substituído por um objeto transicional, seu sucessor.
Como para as crianças autistas tornar-se vivo e humano é algo bastante
apavorante (TUSTIN, 1990), é com seus objetos que elas realizam as suas primeiras
experiências para adquirir vida, ligando-se a um duplo que irá proporcionar uma
proteção contra a angústia de tornar-se humano. Maleval sublinha um aspecto esquecido
por Tustin no que se refere aos objetos autísticos. Para ele “as crianças autistas, que se
experimentam como “inanimadas”, encontram em seu duplo objetal uma dinâmica vital
essencial, tão manifesta, que desaparece a partir do momento em que elas se desligam
do objeto” (2009:229).
3.2.2 – O DUPLO DO AUTISTA
O casal Lefort trouxe contribuições importantes para o trabalho com o autismo,
tecendo comentários clínicos muitas vezes surpreendentes, orientando-se pelos
ensinamentos de Lacan, mas de uma maneira muito própria. A partir de seu trabalho
analítico com Marie-Françoise e com o menino Robert, que lhes rendeu a escrita de dois
importantes livros (“Nascimento do Outro”, de 1980, e “A distinção do autismo”, de
2003), os Lefort redirecionaram o trabalho psicanalítico com aqueles sujeitos cujo
problema está centrado, segundo eles, na ausência do Outro, e também esvaziaram a
orientação cuja captação imaginária era um norte.
O último trabalho de Rosine e Robert Lefort (2003) desenvolveu-se em torno da
distinção entre o autismo e a esquizofrenia. Afirmam que o autismo difere da
esquizofrenia não somente pelo momento de seu aparecimento, mas por sua evolução.
69
Na esquizofrenia, as evoluções se alternam com períodos normais ou, ao contrário, com
uma evolução incapacitante nos casos muito graves. Ressaltam que a grande diferença
entre ambos é que o autista não delira.
Para eles, a criança autista está fora da alienação, sem acesso à função
representativa do significante, onde o S2 não se encontra articulado ao S1 e, portanto,
não representa o sujeito para outro significante. O que lhe resta é a ecolalia, a
possibilidade de se situar em posição de duplo, na linguagem, mas fora do discurso.
No que se refere ao autismo, ressaltam
[...] a ausência de divisão do sujeito, que não entra no significante
sequencial da linguagem nem se representa por um S1, leva à ausência
correlativa de um resto (a). É o que o sujeito tampa pela via de seu
duplo, isto é, do mesmo, sem separação, posto que, desde o início,
falta a alienação30 (LEFORT, 2003:61).
Esta afirmação é elaborada a partir do tratamento de uma menina de 30 meses
chamada Marie-Françoise, que trabalha com um boneco “marinheiro” na dimensão de
seu duplo real, que tem uma função de tapa buraco (LEFORT, 1980:234).
Ao falar sobre Temple Grandin, o casal Lefort constata a importância capital do
duplo encarnado na vaca para esta autista. O duplo
[...] pode ter função de suplência, muito mais eficaz que a que pode
encontrar o psicótico, que uma dependência cola a seu Outro e ao
objeto que, no real, deve a esse Outro. O duplo está também no real,
mas pode fazer a separação com o Outro31 (LEFORT, 2003:62).
Os Lefort não atribuem um papel e uma função importantes ao objeto autístico.
No autismo, não se operou a extração de objeto no Outro, que permanece na dimensão
real e da ordem do horror, pois dele o autista não consegue se separar. O Outro é situado
no autismo como absoluto, sem objeto destacável. Se o Outro é tomado em sua
totalidade, a relação que o autista mantém com ele será uma relação de destruição.
Conforme Maleval, os Lefort entendem o objeto autístico por intermédio do duplo,
como no caso de Marie-Françoise.
30
“[...] l’absence de division du sujet qui n’entre pás dans lê signifiant séquentiel du langage ni ne se
represente par um S1 entrîne l’absence corrélative d’um reste, lê (a). C’est ce qu’il colmate par la voie de
son doublé, c’est-à-dire du même, sans séparation, puisqu’il manque au départ l’aliénation”.
31
“[...] lê double peut faire fonction de suppléance, suppléance beaucoup plus efficace que celle que peut
trouver lê psychotique qu’une dépendance rive à son Autre et à l’objet qu’il lui doit dans lê réel. Lê
doublé est bien dans lê réel, mais peut faire séparation de l’Autre”.
70
Diz Maleval que os autistas se ligam a um duplo protetor e, se esse duplo
consegue se articular ao Outro de síntese participando de uma ilha de competência, ele
se tornará um objeto autístico complexo (objeto autístico regulador), podendo estenderse até o campo social. Enquanto o objeto autístico simples comparece colado ao sujeito
a serviço de seu isolamento, o objeto autístico complexo “afasta o gozo do corpo do
sujeito para localizá-lo em uma borda, que não é mais somente barreira ao Outro, mas
também conexão à realidade social” (MALEVAL, 2009:235). Ele se pergunta: qual é o
tratamento de seu duplo operado pelo objeto autístico complexo? Neste ponto, lembra a
construção da máquina do abraço de Temple Grandin (GRANDIN, 2006:89), a qual se
deu a partir de sua visita à fazenda de sua tia no Arizona, quando pela primeira vez teve
contato com um aparelho que era feito para imobilizar o animal. O manejo com o gado
no brete exigia o uso deste aparelho, pois era preciso marcar, vacinar e castrar o animal.
O uso da máquina, o ligar e o desligar do aparelho de Temple, bem como as máquinas
de Joey consistem, segundo Maleval, em introduzir um corte no gozo desregulado do
autista e, consequentemente, um enquadramento do objeto do gozo, o que lhe permite
sustentar sua explicação do apoio no duplo dos objetos autísticos complexos, apoio que
tem como resultado um efeito de dinâmica subjetiva. Em suas palavras,
o duplo do autista é uma imagem dinâmica que encerra e mascara o
objeto a não negativizado pela função fálica, o que o torna atrativo,
mas o deixa às voltas com a pulsão de morte, daí a relação por vezes
ambivalente do sujeito com ele [...] duplo “vivo”, portador de um
retorno de gozo sobre a borda (MALEVAL, 2009: 250-51).
Para o autor, uma das formas mais sofisticadas do objeto autístico complexo é,
sem qualquer dúvida, aquela à qual chega Donna Williams (1992) após abandonar os
seus companheiros imaginários. O duplo se apaga e, ao fazê-lo, se prende à imagem no
espelho. Ela descreve o fenômeno:
eu apreciava ter tanto tempo para mim e me possuir integralmente sem
personagens. Corri para o banheiro. ‘Bom-dia’, dizia-me eu diante do
espelho. Pintei um espelho pendurado na parede do salão, com capim
alto em primeiro plano e uma moldura de roseiras trepadeiras
selvagens de todas as cores. Deitava-me na frente dele, de modo a
parecer deitada no capim alto do mundo invertido; o Sol do quadro
brincava loucamente com o capim e lhe dava todas as nuances de
verde, dourado e marrom. Levava, por vezes, minha refeição para
almoçar comigo no espelho. Nós ficávamos sentadas, as duas, no belo
capim selvagem, alto e em movimento. Juntas, cercadas de rosas, não
havia mais do que eu e eu no espelho. Sem lugar. Sem mundo. Sem
71
solidão. Os outros não eram mais também tão importunos desde que
eu passava tanto tempo comigo (WILLIAMS, 1992:275).
O duplo escópico de Donna Williams parece constituir um obstáculo ao acesso à
falta do Outro, “que seu duplo não dá lugar a seu ser, por não poder alojá-lo no campo
do Outro” (MALEVAL, 2009:252). Tampouco propicia um canal de contato com o
mundo, pois, segundo Maleval, ela se isola em reflexos narcísicos, em uma solidão que
é povoada por ele mesma. Mas é interessante notar que isso permite a ela construir um
“laço precioso” com um companheiro, com a condição de que ele esteja no lugar do
duplo. Durante muitos anos, ela somente conseguirá manter uma relação com autistas de
alto nível, regra que só será quebrada a partir de seu encontro com Ian, cuja relação se
estabelece no registro de um “pertencimento”, “assexual” e “platônico” (WILLIAMS,
1996:295). Eles se casam, mas se separam dois anos depois.
Concordamos com Maleval quando afirma que o duplo pode constituir uma via
privilegiada para o estabelecimento de uma transferência com o autista. Ele ilustra esse
aspecto ao comentar o tratamento de Donna Williams com Mary, sua analista. Na
mesma direção do casal Lefort, que admite que a relação do autismo com o Outro é da
ordem da destruição, Maleval ressalta que um risco se corre aí, na medida em que esta
relação pode se reduzir em uma ambivalência destrutiva, salvo se o analista souber
apagar sua presença. Se este encarnar demais a posição do duplo, acaba por nutrir
ilusões de fusão telepática que, muitas vezes, podem suscitar uma vivência de intrusão.
Abordamos aqui a fusão telepática como fenômeno na clínica e não como conceito
Este aspecto é observado, na clínica, não entre um analista e um autista, mas
entre um adolescente diagnosticado com Asperger e uma adolescente psicótica32.
Ambos possuem o interesse pelos videogames com jogos baseados nos Pokemons. Estes
aparelhos possuem uma propriedade bastante particular para os dois, na medida em que
quem os tem, pode jogar de forma interativa. Como somente os dois possuem os
aparelhos, são eles que podem se conectar. Este adolescente, em determinados
momentos exclamava: “A conexão só pode ser feita quando se está perto” (sic).
Conectado à adolescente através do jogo, ele ria e dizia: “Estou pondo armadilhas para
pegar Juliana” (sic) e “Nunca havia me conectado antes” (sic). Juliana serve como um
duplo para este adolescente, em sua função regulatória, na localização de gozo.
32
Este fragmento foi apresentado em supervisão nas reuniões das oficinas dos adolescentes do NIJ, pelos
clínicos Marcos Jordão e Aline Souza que coordenam uma oficina. Escuto este adolescente uma vez por
semana desde novembro de 2007.
72
Da mesma forma que Donna Williams, através de seus amigos imaginários
Willie e Caroll, e que Temple Grandin, com seus personagens Bishan e Alfred Costello,
um outro autista de alto desempenho, Daniel Tammet (2007), relata que estabelecia
diálogos com uma velha senhora, chamada Anne, de mais de cem anos, que o
tranquilizava em seus momentos de maior angústia. O recurso ao duplo é encontrado
com bastante frequência no trabalho clínico com autistas de alto nível. Lembremos
também do menino Joey, que frequentou, por 9 anos, a Escola Ortogênica de Bruno
Bettelhein (1987), que inventa Valvus, o qual lhe serve de duplo e, com ele, consegue
operar uma certa regulação do gozo pulsional. Maleval nos faz notar, no caso de Joey,
“o enredamento dos componentes da borda: o objeto autístico é um duplo e seu
tratamento da energia elétrica orienta Joey para estudos em eletricidade, nos quais
encontra um espaço de competência, na base do desenvolvimento de seu Outro de
síntese” (MALEVAL, 2009:244).
Os testemunhos dos autistas de alto desempenho trazem uma contribuição
significativa no que se refere ao uso dos objetos autísticos complexos para a saída do
fechamento autístico e a invenção de possíveis e inéditos laços com o social.
Certamente, eles contribuem para dar consistência à imagem do corpo, assim como
protegem da angústia. Por intermédio deles, o gozo desregulado é captado, localizado e
circunscrito, colocado à distância, o que permite uma animação pulsional.
3.3 – O RETORNO DE GOZO NA CONSTRUÇÃO DA BORDA NA DEFESA DO AUTISTA
Devemos aqui fazer algumas considerações acerca da questão do corpo, pelo
viés da importância da imagem na constituição do corpo.
Para a psicanálise, o corpo não é o biológico, corpo da anatomia e dos estudos
intervencionistas e invasivos da medicina, mas uma construção que implica, para Lacan,
uma imagem totalizante na composição do qual o Outro como olhar tem um lugar
fundamental.
3.3.1 – O ESTÁDIO DO ESPELHO
Vejamos como ele enuncia a função fundamental do estádio do espelho como
dialética entre o corpo fragmentado, despedaçado, e a imagem antecipatória de uma
73
totalidade corporal. Para Lacan, o estádio do espelho tem como revelar certas relações
do sujeito à sua imagem. Em suas palavras,
é a aventura original através da qual, pela primeira vez, o homem
passa pela experiência de que se vê, se reflete e se concebe como
outro que não ele mesmo – dimensão essencial do humano, que
estrutura toda a sua vida de fantasia (LACAN, 1979[1953-54]:96).
Foi, em 1936, no Congresso de Marienbad, que Lacan formulou, pela primeira
vez, a teoria do estádio do espelho, consagrada alguns anos depois, com “O estágio do
espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência
psicanalítica” (1949), comunicação feita no XVI Congresso Internacional de Psicanálise
em Zurique. Trata-se de situar a imago como o conceito-chave para a investigação do
psiquismo, através de uma atividade que ocorre com a criança no período entre 6 e 18
meses. Para Lacan, basta compreender o estádio do espelho como uma identificação,
situando aí a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem.
Esta teoria parte da ideia do desconhecimento original do sujeito a respeito de
sua totalidade, o que lhe faz vivenciar a experiência do corpo despedaçado, mergulhado
na impotência motora e na dependência do outro.
A experiência do espelho conduz a criança a reconhecer sua imagem no espelho,
na medida em que ela antecipa, ilusoriamente, uma totalidade corporal. No entanto, “a
maturação de sua potência só lhe é dada como Gestalt” (LACAN, 1998[1949]:98).
Trata-se, inicialmente, da primeira identificação com a imagem especular, alicerçada na
“referência transicional que se estabelece em sua relação com o outro imaginário, seu
semelhante” (LACAN, 2005[1962-63]:103). A alegria da criança diante do espelho “é
devida a seu triunfo imaginário em antecipar um grau de coordenação muscular que
ela na verdade ainda não alcançou”33 (LACAN, 1951:14). Para Lacan:
a assunção jubilatória de sua imagem especular [...] manifesta, numa
situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa
forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação
com o outro e antes que a linguagem lhe ressitua, no universal, sua
função de sujeito (LACAN, 1949:97).
Essa forma, designada por Lacan por eu ideal, situa a instância do eu.
33
“[...] est due à son triomphe imaginaire, d’anticiper um degré de sa coordination musculaire qu’il n’a
pas encore véritablement atteint”.
74
O corpo, para a psicanálise, não se constitui sem imagem. A imagem alvo da
identificação não é o reflexo da criança no espelho, mas a do seu semelhante. Sua
identidade jamais deixará de ser algo que lhe vem do exterior, daí Lacan afirmar é
sempre difícil distinguir a identidade do sujeito da identidade do outro (LACAN,
2005[1962-63]). A relação do sujeito com sua imagem é, certamente, alinhavada pelos
significantes, na medida em que esta imagem lhe vem originalmente de fora, a partir da
intervenção do Outro como matriz simbólica. No que se refere à captura na imagem do
semelhante, é possível reconhecer dois aspectos destacados por Lacan, a saber: a
permanência mental do eu e sua destinação alienante (LACAN, 1998[1949]:98).
Da prematuração corporal para a antecipação, o estádio do espelho é um drama
que fabrica para o sujeito, diante de uma identificação ilusória, fantasias que vão desde
a imagem do corpo despedaçado até sua totalização. Desta forma, a imagem funcionará
para o sujeito como um véu, diante da vivência de despedaçamento característica da
dimensão real do corpo pulsional.
Para Maleval, no autismo essa imagem não se constrói, o que faz com que o
especular compareça na forma de duplo.
Mas há uma discordância entre a imagem refletida no espelho e a vivência de
despedaçamento do corpo promovida pela falta de coordenação motora, o que nos faz
perguntar se a percepção da imagem do outro não é o suficiente para constituir a
imagem unificada do corpo.
Lacan, em seu seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”
(1964), ao falar sobre o Outro como lugar da cadeia significante, campo a partir do qual
o sujeito se constitui, nos chama a atenção para o fato de que “é do lado desse vivo,
chamado à subjetividade, que se manifesta essencialmente a pulsão” (LACAN,
1985[1964]:194).
Pulsão, termo empregado por Freud de uma forma bastante específica, distinta
da psicologia e da física, recebendo um estatuto de conceito fundamental. Para Freud,
constitui-se num mito. Lacan, por seu turno, irá tomá-lo como uma ficção fundamental
(1964). É através da articulação que promove entre significante e corpo que Lacan
aborda o termo pulsão. A pulsão, diz ele, é “precisamente essa montagem pela qual a
sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que se deve conformar com a
estrutura de hiância que é a do inconsciente” (1994:167). A integração da sexualidade à
dialética do desejo, segundo ele, passa pelo aparelhamento do corpo.
75
Lacan sublinha que a pulsão “não é o impulso” (:154), “o que caracteriza o
Drang34, o impulso da pulsão, é a constância mantida” (:162), na medida em que a
constância do impulso impede uma apropriação da pulsão a uma função biológica.
Explicitando uma relação antinômica entre pulsão e satisfação, Lacan nos faz lembrar
que a função da pulsão coloca em questão o que é da ordem da satisfação, no que
estabelece uma distinção entre satisfação de uma necessidade e satisfação pulsional:
[...] nenhum objeto de nenhum Not, necessidade, pode satisfazer a
pulsão [...] a pulsão apreendendo seu objeto, aprende de algum modo
que não é justamente por aí que ela se satisfaz, [...] [pois] essa boca
que se abre no registro da pulsão – não é pelo alimento que ela se
satisfaz, é como se diz, pelo prazer da boca (LACAN,
1985[1964]:159).
É sobre o fundo de um vazio que a pulsão irá traçar seu circuito em um
movimento de vaivém, contornando os buracos do corpo, constituindo e demarcando as
zonas erógenas, que, para Lacan, têm uma “estrutura de borda” (:160). Em suas
palavras, “a superfície constituída pelo que lhes defini como a borda, que é considerada
[...] a zona dita erógena na pulsão” (:169). Na estrutura de borda, situa que a “tensão é
sempre um fecho, e não pode ser dissolidarizada de seu retorno sobre a zona erógena”
(idem). Trata-se, aqui, da circularidade pulsional, “de sua reversão fundamental” (:168).
De forma ativa, a pulsão irá encontrar, nas partes do corpo erógeno (seio, fezes, olhar e
voz), uma satisfação sempre parcial. Mas da pulsão só podemos ter notícias através de
seus ecos no corpo (LACAN, 2007[1975-76]:18), por meio do vaivém pulsional em
torno das zonas erógenas.
Na clínica do autismo, verificamos que os fenômenos de desorganização
pulsional indicam que a demarcação no corpo das zonas erógenas constitui um
problema. É problemática a montagem do circuito pulsional em torno dos orifícios
corporais, os quais constituem zonas erógenas. É em torno dos buracos corporais que a
pulsão se inscreve em seu curso circular, em sua forma de retorno. O corpo se apoia na
construção de bordas em torno dos buracos corporais instauradas via significante. No
autismo, as zonas erógenas não fazem borda por não constituírem zonas de investimento
erógeno. Os autistas babam e o defecar é um problema. O corpo se apresenta em
dificuldades, radicalmente alterado. Conforme Oliveira (2010), “a funcionalidade dos
34
Os outros três elementos da pulsão são: Quelle, a fonte, o Objekt, o objeto e o Ziel, o alvo (LACAN,
1964:154).
76
órgãos se deve à montagem do circuito pulsional em torno dos orifícios corporais e da
sua constituição como zonas erógenas” (OLIVEIRA, 2010:119). É a linguagem que
circunscreve os órgãos, proporcionando um ordenamento e uma operatividade, dandolhes uma função. O que nos permite evidenciar que, no autismo, a montagem do circuito
pulsional se apresenta ausente, na medida em que os buracos do corpo não se
constituem como bordas erógenas.
Éric Laurent, em seu texto “Uma psicanálise orientada para o real” (2007), nos
fala de Daniel Tammet, um autista de alto nível. Tendo sofrido horrivelmente na
infância com seu autismo, Daniel passou a fazer um uso bastante singular dos números,
que, para ele, tinham a capacidade de acalmá-lo. Tudo começou depois de uma crise
epiléptica, aos 4 anos.
“O número 11 é amigável e o 5 é ruidoso, enquanto 4 é tímido e
quieto [...] o número 117 – alto e magricela [...]. O número 1 é de um
branco brilhante, como se alguém apontasse uma lanterna nos meus
olhos. Cinco é uma trovoada ou o som de ondas batendo nas rochas. Já
o 37 é grumoso feito mingau, enquanto o 89 lembra neve caindo”
(TAMMET, 2006:2).
Daniel possui um talento extraordinário que lhe permite realizar cálculos
fantásticos. Para ele, é possível dizer, a partir de uma data de nascimento, o dia da
semana que corresponde a essa data. O dia também tem uma cor, o que pode explicar o
título de seu livro: “Born on a blue day”35.
Laurent lembra que Daniel teve seus “quinze minutos de fama”, em 2004, ao
escolher o dia de nascimento de Einstein, 14 de março, para trazer a público seu talento.
Neste dia, enumerou os máximos decimais possíveis do número л, série cuja sucessão
não se pode prever. Ele obteve 22.514 cifras sem cometer um erro sequer. Para Laurent,
a linguagem dos números engendra a mesma estrutura que uma sequência sem lei.
É aí o ponto em que a linguagem e real vêm conjugar-se em uma
espécie de estranha topologia na qual a linguagem se dobra ao real,
acerca-se dele, amarra-o, à condição de ter ele mesmo a estrutura de
um número real, de uma seqüência sem lei, sem modo de resumi-la
(LAURENT, 2007: 11)
Todo o sujeito tem, para com os órgãos do corpo, um modo singular de operar,
de lhes inventar uma função, com o auxílio de um discurso estabelecido. Mas não é o
35
“Nascido em um dia azul”
77
que ocorre com o esquizofrênico, que “fica reduzido a descobrir que seu corpo não é
sem outros órgãos, e que a função de cada um deles lhe cria problemas [pois é]
apanhado sem a ajuda de nenhum discurso estabelecido” (LACAN, 2001[1972]:475).
Com esta passagem, Lacan nos permite entrever a particular relação do psicótico com a
linguagem, “na medida em que ele está habitado por ela, confrontado com um ‘fora do
discurso’, com o fato de nem sempre habitá-la” (FREIRE&MONTEIRO, 2009:80).
Mas, no que se refere ao autismo, Laurent ressalta que, no caso deste autista de
alto nível, a conexão da linguagem, estabelecida desta forma, engendra-se a um corpo,
“uma cápsula fechada sem bordas que seria o verdadeiro corpo sem órgãos”
(LAURENT, 2007:11).
Laznik-Penot (1994) indica sua posição ao afirmar que as zonas erógenas “não
são tomadas num circuito pulsional” (:42). Podemos inferir que, não havendo circuito
pulsional, o corpo não é circundado pela pulsão; esta se mantém em desordem, seus
orifícios não funcionam como zonas erógenas, limitando-se a serem buracos no corpo
totalmente preenchidos ou esvaziados, sem qualquer tipo de regulação. Tudo pode ser
levado à boca, objetos podem ser colocados no ânus ou no ouvido, sejam eles quais
forem. Não há construção do corpo erógeno e a imagem corporal não se constitui como
unificada.
Daniel é um rapaz autista36. A gravidade de seu quadro testemunha a desordem
pulsional a que está submetido. Daniel tenta machucar-se, usa a mão de um outro para
ferir-se, em uma tentativa de produzir algum furo no real do próprio corpo.
Um outro rapaz autista está mergulhado em seu trabalho, em uma tentativa de
construir um corpo, mas um problema se apresenta. Este menino imediatamente arranca
os membros e cabeça de sua boneca, que fica, portanto, despedaçada. Logo depois de
fazê-lo, o menino, usando o chão como base, tenta reconstruir a boneca, embora
mantenha a cabeça e os membros separados do tronco. Tudo é medido: o espaço entre
os membros superiores e inferiores e o tronco, entre a cabeça e o tronco. Ali passa bom
tempo, não permitindo que ninguém reconstrua o corpo da boneca. Ele se agita, berra,
pula e empurra quem estiver por perto.
36
Este caso foi apresentado e discutido no artigo intitulado “A ‘prática entre vários’ e a invenção do
sujeito” in “Autismo e Psicose na Criança: Trajetórias Clínicas”, de Jeanne Marie L.C. Ribeiro e Katia
Alvares de Carvalho Monteiro, 2004.
78
3.3.2 – O ESQUEMA ÓPTICO
Trabalhamos com a hipótese de que, no autismo, a instauração da relação
especular é um problema, e, neste sentido, faz-se necessária uma referência ao esquema
óptico.
O experimento do buquê invertido
FIGURA 1
Lacan recorre a um experimento clássico da Física, conhecido como a
experiência da ilusão do buquê invertido, cuja referência encontra-se em “L’Optique et
photométrie dites géometriques”, de Bouasse, que explica a reação de raios luminosos
diante de um espelho côncavo37. Esse esquema permite que Lacan ilustre as relações do
mundo imaginário com o mundo real na constituição da realidade psíquica. Ele constrói
um aparelho que tem um valor metafórico.
Neste experimento, uma caixa vazia é colocada no centro do espelho esférico,
com a abertura voltada para esse espelho e sobre ela é colocado um vaso. Embaixo da
caixa, é colocado um buquê de flores, ou seja, as flores são colocadas de cabeça para
baixo. Um espelho esférico tem como característica produzir uma imagem real, ou seja,
a cada ponto de raio luminoso que emana de um objeto colocado a certa distância,
corresponde simetricamente um outro ponto luminoso, conferindo ao objeto uma
imagem real. Lacan nos adverte de que não se trata de uma imagem virtual mostrada
através de um espelho. Isto significa que o buquê reflete-se sobre a superfície do
espelho. Pela convergência dos raios no gargalo do vaso sobre a caixa, é produzida a
imagem real do buquê de flores. Mas, para que isso ocorra, é preciso que o olho esteja
37
Trata-se, aqui, de um espelho esférico que tem a propriedade de se constituir uma superfície refletora.
Existem dois tipos de espelhos esféricos: côncavo (face interna é refletora) e o convexo (face externa é
refletora).
79
em certa posição, suficientemente afastado e situado no interior do espelho esférico.
Caso isso não ocorra, ou seja, se o olho estiver no exterior do espelho, as coisas serão
vistas em seu estado real, ver-se-á o interior do mecanismo: um vaso vazio ou as flores
sozinhas. Aqui não se trata da imagem real.
Lacan assinala que, dependendo da posição do olho que olha, pode-se distinguir
um certo número de casos que permitiria compreender as diferentes posições do sujeito
em relação à realidade.
Lacan afirma que:
Para que a ilusão se produza, para que se constitua, diante do olho que
olha, um mundo em que o imaginário pode incluir o real e, ao mesmo
tempo, formá-lo, em que o real também pode incluir e, ao mesmo
tempo, situar o imaginário, é preciso que uma condição seja realizada
[...] o olho deve estar numa certa posição, deve estar no interior do
cone (LACAN, 1979[1953-54]:97)
Na relação do imaginário e do real e na constituição do mundo, Lacan afirma
que tudo depende da situação do sujeito caracterizada por seu lugar no mundo
simbólico. A localização do olho identifica a posição do sujeito no mundo da palavra,
“segundo um caso ou outro, ele está no campo do cone ou não está” (LACAN,
1970[1953-54]:97). Esta localização assegura que “o motor dessa observação é a
virtude da palavra [...] o ato da palavra é um funcionamento coordenado a um sistema
simbólico já restabelecido, típico e significativo” (:106).
Ao situar a imagem do corpo “como o vaso imaginário que contém o buquê de
flores real” (:96), Lacan localiza na imagem a via que dá a unidade do sujeito,
conferindo-lhe a consistência imaginária de ter um corpo como continente para os
objetos pulsionais. É a imagem do corpo que “dá ao sujeito a primeira forma que lhe
permite situar o que é e o que não é do eu. [...] Aí está como nós podemos representar o
sujeito anterior ao nascimento do eu, e o surgimento deste” (idem), mas não sem as
marcas do Outro, lugar onde o sujeito pode se alojar.
Lacan propõe algumas modificações (figura 2) para este esquema no texto
“Observação sobre o relatório de Daniel Lagache” (1960).
FIGURA 2
80
A primeira modificação foi colocar um vaso sob uma caixa colocada no centro
da curvatura de um espelho esférico e o buquê de flores em cima desta caixa. Isto
produz a imagem real do vaso circundando com seu gargalo o buquê de flores.
Esta modificação é seguida pela introdução de um espelho plano, como função
de Ideal do eu, de forma que um observador situado dentro do aparelho veja a imagem
virtual do vaso com o buquê de flores gerada do reflexo da imagem real, ou seja, uma
imagem virtual da imagem real. Lacan chama de A o espelho plano, de i(a) a imagem
real do vaso e de a as flores. O sujeito, vendo a imagem virtual, i’(a), produzida pelo
espelho plano A, verá sua própria imagem no espaço real, i(a), no interior do cone.
Melhor dizendo: em um “ponto simétrico ao ponto em que está a imagem real, o sujeito
verá aparecer essa imagem real como imagem virtual” (LACAN, 1979[1953-54]:147).
No espaço virtual, o qual se encontra além do espelho plano, veremos se constituir a
imagem especular, i’(a), onde o sujeito se reconhecerá como eu.
A introdução do espelho plano neste experimento é feita por Lacan em seu texto
“Os Escritos Técnicos de Freud” (1953-54) para garantir que “o olho tenha exatamente
a ilusão do vaso invertido, para que ele veja nas condições ótimas” (:147). Refere-se,
aqui, à posição do sujeito, determinada pelo lugar que ele ocupa no simbólico, o qual,
por sua vez, tem a função de sustentação, de suporte da consistência da imagem
corporal narcísica, desempenhada pelo espelho plano, distinta de uma imagem borrada
que, anteriormente, um espelho côncavo oferecia.
Tal como Freud, Lacan situa no interior da dialética do narcisismo a função do
investimento da imagem especular, tempo fundamental da relação imaginária. Localiza
aí dois narcisismos. O primeiro, situado ao nível da imagem real do esquema do buquê
invertido, ou seja, a primeira imagem reproduzida pelo espelho esférico; e o segundo,
localizado a partir da introdução do espelho plano, onde “a reflexão no espelho
manifesta uma possibilidade noética original [...] o seu pattern fundamental é
imediatamente a relação ao outro” (:148). Trata-se da identificação narcísica, que é a
identificação ao outro, a qual “permite ao homem situar com precisão a sua relação
imaginária e libidinal ao mundo em geral” (idem). O espelho intervém, no que
concerne ao domínio do imaginário, onde “o sujeito se identifica, em seu sentimento de
si, com a imagem do outro, e de que a imagem do outro vem cativar nele esse
sentimento” (LACAN, 1998[1946]:182). Mais uma vez, o elemento simbólico
representado pelo espelho plano é assinalado. Ao falar da identificação ao semelhante
na forma de uma imagem refletida, Lacan, nesse momento de sua elaboração teórica, se
81
aproxima do Freud de “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921), que percebe, na
identificação, “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa”
(:133).
Com a introdução do espelho plano no esquema, Lacan esclarece que as relações
entre i’(a) e i(a) não devem receber uma explicação ao nível da óptica, mas “como
sustentando uma subordinação imaginária análoga” (LACAN,1998[1960]:682),
identificando duas imagens, a saber: a imagem real e a imagem virtual. Com as
modificações introduzidas no esquema, a imagem virtual, i’(a), é produzida a partir da
ilusão da imagem i(a), que “decorre de uma subjetivação [...] pelas vias da
autocondução” (idem), o que evidencia, na constituição do corpo, a captura imaginária.
Para Lacan, o esquema óptico
[...] indica, pelo vaso oculto na caixa, é o pouco acesso que o sujeito
tem à realidade desse corpo, perdida por ele em seu interior, no limite
em que redobra de camadas coalescentes a seu invólucro, e vindo
costurar-se neste em torno dos anéis orificiais, ele o imagina como
uma luva que pode ser virada pelo avesso (LACAN, 1998[1960]:
682).
Assim, o sujeito tem com seu corpo uma “obscura intimidade” (idem).
Com a inclusão no experimento do espelho plano, Lacan ilustra o estádio do
espelho naquele momento em que o infans se reconhece de forma jubilatória, na
imagem que lhe é oferecida. O espelho plano no esquema óptico, Lacan o designa no
lugar do Outro. Mesmo na relação especular, em seu momento mais puro, Lacan o
consagra na triangulação, no tempo do reconhecimento pelo Outro da imagem
especular. Refere-se ao gesto feito pela criança, que, quando diante do espelho, volta-se
para aquele que a sustenta e apela com o olhar para confirmar o reconhecimento, com
júbilo, de sua imagem. Depois retorna à imagem, apelando ao Outro que ratifique o
valor dessa imagem. Lacan, nesse momento, indica a ligação inaugural entre a relação
com o Outro e o advento da função da imagem especular (i(a)).
No Seminário “A Angústia” (1962-63), Lacan localiza o a “acima do perfil do
vaso que simboliza o continente narcísico da libido [i(a)] [...] que pode ser relacionado
com a imagem do corpo próprio, i’(a), por intermédio do espelho [plano] do Outro, A.”
(:98), aquela primeira imagem narcísica, posterior à vivência do corpo despedaçado. E
salienta que entre i(a) e i’(a) ocorre a “oscilação comunicante que Freud designa como
a reversibilidade da libido do corpo próprio para a do objeto” (idem). Mas, nessa
82
oscilação, algo intervém; algo cuja manifestação ocorre em função da incidência do
objeto a. O que vemos aqui é a manifestação da angústia, sendo a “única tradução
subjetiva” (:113) do objeto a.
Pelas flores, o objeto a é representado no esquema óptico. Lacan salienta que,
em um tempo anterior ao estádio do espelho, “aquilo que será i(a) encontra-se na
desordem dos pequenos a que ainda não se cogita ter ou não ter. Esse é o verdadeiro
sentido, o sentido mais profundo a ser dado ao terno ‘autoerotismo’ (:132). O esquema
óptico de Lacan retrata exatamente o fundamento da consistência narcísica reguladora
da dispersão autoerótica dos objetos pequeno a. “É com a imagem real, constituída ao
emergir como i(a), que nos apoderamos ou não [...] da multiplicidade dos objetos a [...]
constitutivos desse corpo, com pedaços do corpo [...], captados ou não no momento em
que i(a) tem a oportunidade de se constituir” (:132).
Sobre a incidência do objeto a na construção da imagem do corpo, Lacan nos
permite entrever que podem ocorrer situações onde o sujeito pode não se apoderar da
multiplicidade dos objetos a, da mesma forma que a imagem especular pode não se
constituir devido a não extração do objeto a do campo do Outro. Interrogamos que
situações poderiam ser essas. Parece-nos que o autismo estaria aí situado.
83
CAPÍTULO IV – O AUTISTA E A CONSTRUÇÃO DE SEUS OBJETOS: O CASOANDRÉ
Nesta seção, pretendemos, a partir da análise de um caso, pensar questões que se
referem à construção de objetos autísticos e sua relação com o trabalho de
localização/circunscrição do gozo desenfreado para o sujeito autista.
4.1 – PRIMEIRO MOMENTO: DAS CONEXÕES REGRADAS AO “CHEGA DE CONVERSA”
Nos primeiros atendimentos de André, encontrei um rapaz de 11 anos que falava
muito rápido, sem intervalos, as palavras tropeçando umas nas outras, sem escansão
entre elas. Muitas vezes era difícil entendê-lo. Enquanto falava, dava entonações
diferentes aos enunciados e a cada vez sua voz ia ficando mais alta, não importando se
seu interlocutor compreendia ou não o que falava. É o que nos indica Lacan: “o autista
pode falar sob a condição de permanecer verboso” (1988[1975b]:134), revelando uma
relação particularizada do autista com a linguagem. André falava sem nada dizer, não se
endereçava ao interlocutor. Era claro que suas palavras provinham de um “repertório
mental memorizado”38, de um “exercício de memória”.
Suas primeiras brincadeiras consistiam em colocar um bloco de madeira em
cima do outro, até fazer a pilha se desmoronar e esboçar um sorriso e dizer: “caiu”. Nas
primeiras vezes, parecia fazer isso com grande satisfação; mas logo depois, no que a
pilha novamente caía, André ficava muito irritado, jogando todos os cubos para o alto.
Logo se desinteressou desta atividade e me fez conhecer o enxame de
significantes desarticulados, onde o sentido se perdia na proliferação das palavras. Com
lápis e papel, André se punha a desenhar e a fazer inúmeras listas e relações, como em
um trabalho de progressão, relacionando o ano e a idade que teria até chegar aos seus 20
anos. Também realizava este trabalho com relação às séries da escola, ou seja, quantos
anos ele teria em uma determinada série.
Através de “conexões regradas e controláveis” (MALEVAL, 2009), André
testemunhava uma forma muito particular de organizar seu mundo, de maneira a
proteger-se de toda e qualquer tentativa de intrusão do Outro, em um trabalho contra a
angústia que qualquer demanda pudesse presentificar. Todas as minhas tentativas
38
Williams, D. Quelqu’um quelque part. Editions J’ai Lu, 1996, pp. 73. Citado por J-C Maleval, em
“Plutot Verbeux” (2007).
84
iniciais de compreender o que ele falava, fazendo-lhe perguntas, eram logo rechaçadas e
totalmente ignoradas. Logo de início, constatei a extensão do que afirmara Lacan a
propósito dos sujeitos autistas, a saber: “se eles não chegam a escutar o que vocês têm a
lhes dizer, é por conta de vocês estarem preocupados com isso” (LACAN, 1988
[1975b]:21). André confirmou tal afirmação quando um dia me disse: “Chega de
conversa”.
Mas André também me fez ver que eu estava diante de um rapaz com graves
perturbações no que se referia à linguagem, à relação com os objetos e com o outro,
além de me permitir testemunhar as soluções encontradas por ele para operar seu
tratamento do gozo. Vale dizer que, reorientada a direção de tratamento, André me
permitiu, a partir do estabelecimento do laço transferencial, compartilhar e testemunhar a
sua sucessão de signos.
4.2 – SEGUNDO MOMENTO: A CRIAÇÃO DO DUPLO: PAULA MADALENA
Cerca de 10 meses após o inicio dos atendimentos com André, por questões
político-institucionais, sou deslocada para outro setor do hospital, não sendo possível
me despedir dele. Isso se mostra avassalador para André, que se desorganiza e pede para
retornar aos atendimentos comigo. Naquele momento, nada lhe proporcionava conforto
para temperar sua angústia, apenas as lembranças, nos seus mínimos detalhes, dos
atendimentos comigo e com a primeira psicóloga que teve aos 5 anos de idade.
Em função de mudanças na instituição, André é encaminhado para outra
psicóloga39 que passa a atendê-lo.
Neste momento, entra em cena uma personagem: Paula Madalena (figura 1). É
quando observamos uma outra forma de elaboração de sua construção, provocando uma
articulação significante mais complexa e elaborada. Daquele momento anterior, onde
suas habilidades e aptidões com números, contas e letras estavam em evidência, onde a
exclusividade de algumas letras ganhava peso para ele, encontramos agora um modo
muito particular de dar tratamento ao gozo avassalador. Foi nesse momento que,
valendo-se de papel, lápis e canetas hidrocor, André criou Paula Madalena de Jesus
Martins, uma mulher de 88 anos nascida na Inglaterra, em 08/12/1900. Vale registrar a
39
André foi atendido, de dezembro de 1988 a agosto de 1989, pela psicóloga Lucia Dantas. Estas
informações foram colhidas no prontuário de André a partir dos relatos desta psicóloga no período em
que ela o atendeu.
85
observação feita pela nova psicóloga no prontuário, de que a data de nascimento de
Paula Madalena era exatamente o dia e o mês em que André a conheceu. Este dirigiu-se
à psicóloga, falando que ela conhecia a mulher que ele havia desenhado.
É importante assinalar que o conteúdo dos desenhos e dos relatos escritos e
falados sobre a vida de Paula Madalena apresenta íntima ligação com o cotidiano e os
interesses de André. Paula Madalena encarna então um “duplo protetor” para André.
Seguindo as indicações de Maleval (2009), podemos ver aqui que o objeto autístico de
André participou na criação do duplo e este pôde tornar-se um objeto autístico como
forma de dar tratamento ao gozo. Segundo Maleval, “o Outro do autista não está
totalmente ausente [...] o autista não ignora que, para além dos duplos protetores, um
Outro, que goza se sustenta. Um Outro que, como o próprio sujeito, não cede o gozo”
(2009:7). Não será a encarnação da plenitude de seu Outro real, quando escreve no alto
da folha o título o fantasma da Paula Madalena (figura 2) ao desenhar uma “outra
pessoa” nomeada também de Paula Madalena? Esta “outra pessoa” (figura 3) é
desenhada, tomando como modelo a psicóloga, mas agora com um rosto assustado e
olhos arregalados. O desenho é pintado integralmente de vermelho. Ao lado e ligada por
um traço, é desenhada uma forma que ele chama de cérebro de Paula Madalena.
Em seu primeiro desenho, esta personagem estava sem as pernas (figura 4) e os
pés, o que fez André, nos encontros seguintes, desenhá-los um em cada folha. Na folha
seguinte, ele desenhou o “peru” e o “bumbum” (figura 5) da Paula Madalena, quando,
ao final, a partir da intervenção da psicóloga, André juntou as partes do corpo antes
separadas. Nos desenhos seguintes, Paula Madalena ganhou irmãos: Ana Maria, de 8
anos, e Nilson dos Santos, de 10 anos, (figura 6) e também uma mãe (figura 7) que
morava em uma fazenda, criava gado, cavalos, tinha muitos empregados, tomava leite
puro, comia pão com manteiga e biscoito doce. Ela tinha 44 anos. Foi observado pela
psicóloga que a idade escrita correspondia à metade da idade de Paula Madalena e
também à idade, na época, da mãe de André, ou seja, a filha era mais velha que a mãe.
André anotou uma observação: de que sua comida favorita era arroz, peixe e feijão. A
desorganização do encadeamento das gerações nos sugere uma falha na ordem da
transmissão das gerações atribuída à ausência do lastro paterno devido à foraclusão do
significante Nome-do-Pai.
Verificamos, no caso de André, que, por falta do significante paterno que
confere à cadeia significante uma amarração, e que, portanto, permite que o Nome-doPai transmita uma filiação simbólica, proporcionando uma ordem na linhagem, a função
86
paterna está reduzida àquela que não lhe dá o que precisa. André apenas se dirige ao pai
para exigir o que não lhe foi dado (carro, apartamento na zona sul da cidade, morar em
São Paulo, computador), sem colocar em jogo a transmissão da falta, a castração.
O tema da origem está sempre presente nos escritos de André. Este nos parece
um ponto central. Em todos os seus textos, podemos constatar que ele sempre define
uma origem para seus personagens. Registra as datas de nascimento, suas idades, suas
preferências e os locais de nascimento. Diante do que não lhe foi transmitido, André
constrói, de forma inédita e exclusiva, uma linhagem. De quem ele é filho se não há
uma mulher para um homem? Lembremos que o pai não tomara a mãe de André como
sua mulher diante de seus filhos do primeiro casamento.
No momento em que André começou a frequentar uma nova escola, sua
personagem ganhou novo nome. Acrescentou o nome Ana (que é também a irmã de
Paula Madalena) e retirou o Martins, ficando, agora, Ana Paula Madalena de Jesus
(figura 8), mas sempre se referia a ela como Paula Madalena. Falou um pouco sobre ela.
Cansada de trabalhar em uma padaria em Ipanema, Paula Madalena tornou-se uma
assaltante de bancos. Fazia todo o trabalho sozinha, não precisava de auxiliares e o fruto
deste trabalho era uma “arrecadação” (sic). André entendia que arrecadação era “juntar
quando se tem pouco dinheiro” (sic). Paula Madalena gostava de biscoito doce e pão
doce, o lanche preferido de André. Ao final dessa história, escreveu na folha desenhada:
texto de João Carlos dos Santos.
É interessante notar que André não assinou o texto que acabara de escrever. O
mesmo fará com alguns outros textos. Ainda não assina sua própria invenção.
Amparado e apoiado em seu duplo, André engata a escrita quando constrói seu
primeiro “texto” (sic) subdividido em 16 partes. Cada parte correspondia a
determinados anos dentro do período de 1900 a 1988. Em cada ano, relacionava e
descrevia alguns acontecimentos da vida de Paula Madalena: a viagem para a Inglaterra
e para Ipanema, o roubo de dinheiro, indo parar na delegacia, e depois, quando ela tirou
a roupa. Paula Madalena foi para o elevador de serviço, para a praia de Copacabana,
para o carnaval de 74 e para arquibancada completamente nua, e nua dança e torce.
Sobre o texto, André constrói perguntas e respostas (questões de múltipla escolha para
serem respondidas) a respeito da vida de Paula Madalena.
Nos últimos atendimentos com a psicóloga, André preparou seu primeiro “livro”
(sic), datilografado à máquina, e em cuja capa escreveu: “Ana Paula Madalena de
Jesus”. Neste livro, André dizia que estavam “todas elas”: Paula Madalena, Ana Paula
87
Madalena, Maria Madalena. Neste dia, André se lembrou de um desenho que havia feito
para mim com o seguinte título: “O Amor no Coração”. Ele havia me visto circulando
pelos corredores, por ocasião de meu retorno ao serviço, quase um ano depois. Nas
sessões seguintes, trouxe um livro intitulado “Efemérides”. Entre uma sessão e outra,
André veio conversar comigo sobre o passeio que fizera, com a turma do colégio, ao
Jardim Botânico. Neste passeio estavam as Madalenas.
Um pouco antes do retorno dos atendimentos comigo, André havia feito um
desenho no qual Paula Madalena tinha seu coração dividido em três partes. A este
desenho acrescentou o relato de um passeio, com a turma da escola, ao Planetário, onde
se queixava de que estava “muito solto no espaço” (sic), “perdido no espaço” (sic). Em
seguida, escreveu dois textos intitulados “Efêmero” e “2º Efêmero”. Estes textos foram
subdivididos por André em parágrafos que correlacionavam datas e dados referentes a
Paula Madalena, como sua escolaridade, sua nacionalidade, seu cotidiano, referindo-se
ao tempo como efêmero. André não assina nenhum deles. O primeiro é assinado por
Renato Batista; o segundo, por Euclides da Rocha. Foi neste momento que os
atendimentos com a antiga psicóloga foram finalizados. André lhe diz que “o terceiro 3º
Efêmero é copiado na folha de fichário” (sic).
Quando do retorno aos atendimentos comigo, na época com 14 anos, André
continuou a escrita do livro sobre Paula Madalena. Iniciou mais três outros livros:
“Como está mais alegre”, “As Setes Maravilhas” (figura 9) (subdivididas em: “A época
das Madalenas”, “O tempo”, “A história do rei das Madalenas”, “O sonho ainda não se
acabou” (figura 10), “O mensageiro e a morte de Olavo Bilac”, “Afonso o sonho das
Madalenas”, “O tempo que viveu no século”) e “A História das Madalenas”. No último
livro, as Madalenas retornam para casa vindas da Inglaterra. São quatro as Madalenas:
Paula Madalena, Ana Paula Madalena, Maria Madalena e Rosa Maria Madalena. Um
pequeno texto, escrito logo depois e intitulado “O Fundo do Mar” (figura 11), trata da
morte de todas as Madalenas no fundo do mar. Algum tempo depois, escreve: “Faz 1
ano 4 meses que eu trabalhei com as senhoras (as Madalenas)”, explicando que “tinham
4 pessoas que formavam uma Paula Madalena”.
Desta forma, podemos identificar, no trabalho empreendido por André na criação
das Paulas Madalenas, o tratamento dado às mulheres que o visavam, transformando em
uma possibilidade de refreamento do gozo que se apresentava em excesso.
88
4.3 – TERCEIRO MOMENTO: DA MORTE DAS SENHORAS MADALENAS ÀS GRAVAÇÕES
DE PROGRAMAS: O RADIALISTA
Após a morte das Madalenas, André intensificou as gravações, ao vivo, de
programas de rádio em fitas cassetes, documentando em seus cadernos. O gravador
(com microfone) passa a ser um objeto extremamente privilegiado para ele. Gravava
novelas, notícias, músicas de diferentes estilos, a participação do Brasil nos jogos
olímpicos de Barcelona, a vitória brasileira na Copa do Mundo, o carnaval carioca, as
eleições estaduais e federais e os shows de Roberto Carlos. Referia-se a estas gravações
como uma maneira de “recordar, para ter saudades”. Isso que André tenta produzir não
seria já uma resposta aos significantes que lhe concernem, como efeito do gozo
produzido sobre ele pelo peso do “como se não existisse” da lalangue dita materna?
Pois não foi este o peso que fez com que André ficasse 7 anos sem falar?
Mesmo antes de seus 15 anos, André já se locomovia pela cidade sem a
companhia dos pais, inclusive vindo sozinho para os atendimentos comigo no hospital.
Neste momento, foi muito importante que André pudesse se locomover pela cidade
portando uma carteira de identidade. Inicialmente, frequentava inúmeras casas de jogos
eletrônicos espalhadas por diversos bairros da cidade, criando circuitos. Possuía uma
contabilidade muito própria. O que nos indica que André estava estabelecendo um
trabalho de contabilização de gozo que lhe é muito próprio. Seus passeios eram muito
bem organizados e os horários das visitas a estas lojas eram anotados em seu caderno.
Passava o dia inteiro fora de casa, para grande preocupação de sua mãe, que temia
deixar o filho sozinho nestes lugares. André chegou a vender balas, biscoitos e pequenos
objetos nos trens da Central do Brasil e na praia, por seis meses, para arrecadar dinheiro,
pois queria comprar um videocassete.
Em suas andanças, André passou a acompanhar os eventos da cidade, como o
“McDia Feliz”, Carnavais, Festas do Dia da Criança, Festas Juninas, Campanhas
Políticas etc. Ele gravava ao vivo estes eventos, além de participar das programações, ao
ar livre, que as rádios organizavam, como shows, por exemplo.
Todo final de ano André preparava uma lista das melhores músicas. Organizava
um concurso e elaborava as regras para a seleção das 10 melhores músicas do ano, e
também selecionava a melhor fita gravada por ele. Tinha em mãos a relação da
quantidade de fitas por ele gravadas dentro de um determinado período e outra relação
anual com as músicas vencedoras dos concursos. A certa altura, sua coleção de fitas (em
89
torno de 2.800) estava muito grande e André passou a procurar um lugar que pudesse
recebê-la através de uma doação.
Verificamos aqui que é possível para André abrir mão de suas fitas, alterando
então sua economia de gozo, mesmo que a perda de gozo não se encontre simbolizada
pela função fálica.
André, por muitos anos, acompanhou o trabalho dos locutores das principais
rádios brasileiras e, com seu desejo de tornar-se um locutor de rádio, passou a
reivindicar, junto à família, a mudança para São Paulo. Alegava que era nesta cidade
que se encontravam as principais emissoras de rádio e os melhores cursos para
locutores. Passou a conhecer diversas rádios cariocas e paulistas, mantendo um contato
quase que diário com seus locutores. Era bastante conhecido por eles.
André, depois de terminar os estudos do 2º grau, passou por momentos muito
difíceis, dizendo-se insatisfeito com a vida que vinha levando, alegando que seu pai não
lhe dava o que acreditava ser preciso. Queria uma vida melhor, um bom apartamento e
morar em São Paulo. Não gostava do bairro para onde a família se mudara, e reclamava
da falta de ônibus suficientes para que ele pudesse se locomover pela cidade. Queixavase da pobreza do bairro e de uns garotos que zombavam dele por saberem que ele tinha
medo do latido dos cachorros. Seu pai foi porteiro, por 31 anos, de um prédio em
Copacabana e, com uma indenização trabalhista, comprou um apartamento de dois
quartos no Caju. André exigia, muitas vezes de forma imperativa e caprichosa, que o pai
também comprasse um carro para ele, pois alegava falta de segurança quando retornava,
de madrugada, de seus passeios.
4.4 – QUARTO MOMENTO: DISCURSO DE CONVERSA COLETIVA
No Natal de 1996, André me presenteia com o livro que escrevera, intitulado
“Discurso de Conversa Coletiva”, uma coletânea de histórias com assuntos variados.
Segundo ele, para escrever este livro foi necessário obedecer a uma metódica jornada
muito bem programada. Ele escrevia todas as segundas-feiras, no período de fevereiro a
novembro de 1996, os seus 40 capítulos com 5 páginas cada um, preenchidas em toda a
sua extensão. Cada capítulo versava sobre um determinado assunto: o capítulo 1 era
sobre o escritor, o capítulo 2 era sobre o jogador de basquete, e assim por diante, até
chegar ao capítulo 40 sobre o jornalista.
90
O trabalho de André obedece a uma ordem semântica de extensão bastante
limitada, já que a fragilidade da sustentação simbólica de seu enunciado fica evidente.
Mas nos permite constatar os efeitos de uma apropriação subjetiva, na medida em que é
o primeiro trabalho que assina com seu nome. Aqui está para André uma tentativa de se
localizar no campo do Outro. André encontra uma solução única para dar tratamento ao
gozo, passando pela escritura, cifrando o gozo pelo significante, tomando a palavra sem
despertar muita angústia, em uma tentativa de se situar em uma posição de enunciador.
Solução que parece ganhar o estatuto de uma tentativa para constituir-se como sujeito
que, na singularidade do caso, visa à elaboração de uma modalidade de tratamento do
gozo. Aqui, percebemos André não mais mergulhado em um gozo deslocalizado, mas
realizando o trabalho de neutralizar o gozo vivido anteriormente como excessivo,
tornando-o suportável. Um trabalho de escrita, forma de cifrar o gozo, traçando linhas
que possibilitam ao sujeito localizar e circunscrever o gozo.
Fica evidente, também, algo de André nestas escolhas. Elas não são aleatórias,
como se poderia inicialmente imaginar. Estas escolhas fazem parte da tentativa de
reconstrução de sua história, uma tentativa de advir como sujeito. Em cada capítulo ele
fala um pouco de si. Eis alguns: Capítulo 1 – o escritor; Capítulo 6 – “o cidadão”;
Capítulo 7 – o repórter; Capítulo 17 – o deus do poder; Capítulo 21 – o grande
humorista; Capítulo 24 – o criador dos hospitais públicos; Capítulo 26 – o criador de
rádio; Capítulo 34 – o inimitável; Capítulo 35 – o contador das histórias do passado;
Capítulo 36 – o criador; Capítulo 38 – o radialista.
Uma obra-prima, como ele mesmo diz. André a finaliza da seguinte forma:
Meus amigos e minhas amigas. (...) eu consegui realizar todos esses sonhos.
Depois de cumprir a leitura dos 40 assuntos programados para essa inscrição,
o Discurso de Conversa Coletiva começou a ser oficialmente lido pelas
palavras destacadas pelo excelentíssimo senhor _________________ (escreve
seu nome completo). Foram 40 capítulos de muita discurssão (sic) e sem
dúvida alguma foi o verdadeiro sucesso através de milhares e milhares de
ouvintes se espalhando por toda parte do Brasil. Nós da equipe técnica do
Discurso de Conversa Coletiva agradecemos aos trabalhos que aguentaram a
escrição (sic) do princípio ao fim que sinceriamente (sic) foi uma obra prima
para todos aqueles em que participaram de toda jornada desses nove meses
escrevendo os depoimentos em que precisam de cada capítulo. Assim foram 10
horas de programação só de leituras destacadas de cada assunto (...). Eu
quero guardar para sempre todos esses tipos de entreterimento (sic) e também
dar para alguém a memória reunida com 40 assuntos que já foram exibidos
todas as segundas feiras no nosso Discurso de Conversa Coletiva. (...) Muito
obrigado a todos em que trabalharam durante toda a jornada dos 40 assuntos
91
programados para essa inscrição no nosso Discurso de Conversa Coletiva e
até sempre, minha gente.
Este pequeno recorte do “Discurso de Conversa Coletiva” expõe uma tentativa
de André de construir pontos de ancoragem que sustentem seu discurso verboso. Pontos
de ancoragem mais ou menos estáveis, de equilíbrio precário, construídos na tentativa
de fazer-se representar no campo do Outro e de advir como sujeito. Discurso de
Conversa Coletiva, essa “cascata de remanejamentos do significante” na fórmula de
Lacan (1998 [1957-58]:584), uma tentativa de localização do gozo do sujeito, na
fórmula de André. Certamente, trata-se aqui de uma produção que leva seu nome, nome
que representa o sujeito, singularizando-o.
Para André, isto só foi possível na medida em que estes pontos de ancoragem
encontraram balizamento na instalação da relação transferencial com o analista, que em
um primeiro momento consiste em não recuar diante da psicose e, num segundo
momento, em não recuar diante do trabalho do sujeito de dar tratamento ao gozo com o
uso de seu objeto.
Verificamos que o trabalho de André, através do título de sua obra e do
enquadramento que ele lhe confere, se consolida como uma modalidade de regulação do
gozo, no momento em que aponta para um trabalho de promoção e produção de um
esvaziamento daquilo que se apresentava pleno de gozo, suscetível de transbordamento.
Constatamos que a partir deste momento André passou a escrever uma série de
livros conferindo a sua obra o estatuto de um saber-fazer com o significante, um saber
capaz de fazer emergir um gozo efetuando um tratamento sobre ele. O gozo se fixava no
trabalho da escrita que constituía um suporte para o objeto voz. O primeiro desta série é
“A minha vida ontem, hoje e sempre”, acompanhado de uma fita cassete com a
gravação de seu discurso, onde registrou toda a trajetória de sua vida. O segundo “Dos
tempos de criança aos tempos atuais” (na época no prelo), onde falava de sua trajetória
escolar, seu tratamento, as gravações em fitas, as regras para a seleção das melhores
gravações e de seus sonhos e o terceiro com o título provisório de “Todos os sonhos
realizados”.
Neste momento reconciliou-se com seu pai dizendo que queria seguir seu
caminho: o trabalho e encontra certo apaziguamento. Preocupava-se com sua mãe e,
particularmente com quem ficará quando seus pais morrerem. Morar com o irmão foi a
solução encontrada por ele. Mostrou interesse em ter uma companheira para constituir
uma família e falava que queria receber cartas de candidatas, de preferência, daquelas
92
que fossem trabalhadoras, sensíveis, educadas, louras, com idade superior a 20 anos,
inteligentes como ele e que tivessem dinheiro. Falava de seu sonho, mas agora como
algo um pouco mais distante. Não desistiu de fazer um curso de radialismo. Falava de
seu estilo como radialista, algo entre Silvio Santos e Chacrinha. Neste momento
escreveu seu “Discurso dos Sonhos” onde registrou seus projetos para ir para São Paulo.
Qual o estatuto deste significante “radialista”? Como nos foi permitido ver, para André,
este significante situa um certo modo de fazer algo com o gozo vocal. Acreditamos que
ser radialista sugere um trabalho de modalização do objeto voz, uma invenção de André
que o enlaça, de maneira própria e inédita, na direção de um possível laço social.
Aos poucos as sessões foram ficando espaçadas. Anteriormente as sessões
ocorriam uma vez por semana, depois elas passaram a ser quinzenais e ao final elas
ocorreram quando ele telefonava pedindo para conversar comigo. Vale lembrar que
mesmo que a frequência das sessões tivesse sido modificada, para André, o horário
deveria ser respeitado, ou seja, o dia da semana e a hora foram mantidos ao longo de
todo o tratamento. André já podia se ausentar, não estar mais ali. Era possível para ele
realizar um trabalho de escansões do tempo, trabalhar a presença na ausência indicando
caminhos para dar tratamento ao gozo louco e enigmático.
Despedimo-nos no final do ano de 2003. Na época, André se queixava da falta
de emprego para ele, pois precisava sustentar a família devido à idade avançada dos
pais. Reivindicava um computador para montar um programa de seleção da melhor
gravação de fita do ano. André se despediu muito emocionado agradecendo pelos 16
anos de trabalho e falava que iria “abrir seu coração” (sic) fazendo uma retrospectiva de
tudo o que aconteceu ao longo desses anos. Nosso trabalho se encerra com um grande
abraço. André estava com 28 anos.
4.5 – O OBJETO NAS OFICINAS – DIREÇÃO DO TRABALHO CLÍNICO EM INSTITUIÇÃO
Reservamos este espaço para falar sobre um trabalho institucional que temos
desenvolvido ultimamente, por acreditar que aí se impõe a questão do estatuto do
objeto. Independente de qual organização estrutural se engendra neste trabalho, este
sempre tem como referência uma produção. Trata-se do trabalho realizado em oficinas
com crianças e adolescentes autistas e psicóticos no serviço infantojuvenil do Instituto
Philippe Pinel no Rio de Janeiro.
93
Por ser um termo bastante utilizado para descrever diversas práticas terapêuticas,
encontramos inúmeras atividades sob a denominação de oficinas no trabalho realizado
em espaços institucionais com crianças e adolescentes. Encontramos também sob essa
denominação atividades que dirigem sua preocupação para o produto final em
detrimento da dimensão psíquica do sujeito.
No que se refere ao trabalho em oficinas é necessário que se introduza uma
clínica orientada pela psicanálise aplicada à prática em instituição, inventando um
enquadre balizado pela relação singular que cada sujeito mantém com a linguagem.
Este trabalho se diferencia das atividades coletivas, bem como da clínica stricto
senso. Ele
[...] se inspira nos princípios da psicanálise e promove
condições para o tratamento do gozo. Esta prática, apesar das
alterações e deformações que representa em relação ao
dispositivo freudiano tradicional, permite um trabalho sobre o
gozo, mantendo a heterogeneidade e a dissimetria entre os
participantes (BASTOS & FREIRE, 2005:96).
Partimos do princípio de que “o desejo da criança, sua vontade de aprender,
não nascem do vazio, mas que resultam, ao contrário, de uma oferta feita pelo adulto.
Essa oferta não se faz ao acaso: para que ela seja operante, é imperativo que ela seja
adaptada40” (ANTENNE 110, 2006:17) à singularidade de cada caso. Um trabalho
preliminar se faz necessário para salvaguardar a construção de um espaço, reinventando
com cada sujeito uma relação outra com os objetos de sua escolha. Neste sentido, o
trabalho realizado nas oficinas, constitui um espaço privilegiado para recolher e orientar
o tratamento de maneira que as soluções encontradas pelo autista, refratário ao laço
social, se sustentem na transferência com um clínico eleito por ele. Trata-se de soluções
que, na singularidade de cada caso, parecem ganhar a dimensão de uma tentativa de
circunscrição de gozo, do que antes se apresentava como pura dispersão.
Para avançarmos aqui, uma reflexão nos parece ser necessária quanto à direção
dada ao trabalho clínico nestas oficinas, no que concerne aos impasses diante do que
não é possível simbolizar, levando em consideração um tratamento orientado pela
psicanálise fora do setting analítico clássico, sem que com isso se perca de vista os
40
“[...] le désir de l’enfant, son envie d’apprendre, ne naissent pas du vide mais qu’ils résultent au
contraire de l’offre faite par l’adulte. Cette offre ne se fait pas au hasard: pour qu’elle soit opérante, il est
imperatif que’elle soit adaptée”
94
princípios que a norteiam. Como vimos, Lacan (1975) nos alerta que a criança autista
não escuta aquele que dela se ocupa sob o risco de se sentir totalmente invadida. Parecenos que existem condições para que um trabalho possa ocorrer. Que condições seriam
essas?
A primeira condição refere-se à importância de apostarmos que há um sujeito
em trabalho (RIBEIRO, 2005) nas atividades repetitivas e nos comportamentos ditos
bizarros e estereotipados dos autistas, importância já abordada no primeiro capítulo.
Melhor dizendo: que a repetição do autista e suas estereotipias são concebidas como
diferentes manobras que respondem a uma lógica. Vejamos o que Laurent sinaliza: “é
preciso não ceder do desejo de apostar na existência do sujeito que já está ali, quando
tudo leva, facilmente, a esquecê-lo.” (LAURENT, 1998:III).
A segunda condição refere-se ao ponto que devemos colocar em perspectiva: o
uso dos diversos e diferentes objetos pelos autistas tem uma função lógica e se inscreve
no cerne de sua defesa para produzir um esvaziamento do gozo a que está submetido.
Outra condição diz respeito ao lugar e a posição que o analista pode ocupar na
clínica do autismo. A experiência indica que os autistas trabalham arduamente para
“lidar com a dispersão do gozo, com as dificuldades pulsionais” (ZENONI, 2000:48).
Os objetos oral e anal se fazem presentes nesta clínica de forma que confirma a
condição de não extraídos. O autista não fala e se falante nada diz. O autista não olha,
rechaça o olhar, o evita. O analista, desta forma, precisa sustentar um lugar vazio de
gozo, deixando-se regular pelo trabalho do sujeito, esvaziando-se de todo e qualquer
saber prévio, para que sua presença não “incremente o transbordamento pulsional de
que sofre” (FREIRE & BASTOS, 2006:116). Isso significa que seu olhar, suas palavras,
sua presença devem ser regidos por uma regulação necessária a todo trabalho possível
com o autista.
Podemos entender que com esta direção, as oficinas operariam como lugares de
mediação ao gozo que invade o autista, cujos efeitos se constituem como um recurso
para o trabalho de localização/circunscrição de gozo para ele, favorecendo uma
estabilização. Elas,
[...] enquanto oferta de atividade, de espaço físico, de referência e de
endereçamento, permitem um tratamento dos desvios da pulsão –
tomada no sentido de uma outra satisfação, de um gozo além do
princípio do prazer que, na sua relação com a linguagem ressoaria no
corpo, o marcaria e o esvaziaria de seu gozo (GUERRA, 2008:53).
95
É deste tratamento dado ao objeto que Suzana, uma adolescente autista, traz para
a oficina algumas revistas para cortar pedaços de fotos de pessoas, colando-os em uma
folha de papel. Com isso feito, Suzana completava desenhando as partes que faltavam
ou juntava as partes dos corpos recortados pelos clínicos para construir novos
personagens. Realiza um trabalho de completar e descompletar, recortar e colar.
Uma oficina opera com a materialidade de um objeto. Ela se inscreve como uma
atividade de circunscrição de gozo e, portanto, “na produção em uma oficina o objeto é
construído envolvendo o trabalho sobre a pulsão e sobre a linguagem, tomando a
dimensão da cadeia significante, mas também daquilo que lhe é exterior e que a causa,
a dimensão do objeto” (GUERRA, 2008:52).
96
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eleger o estatuto do objeto na clínica do autismo como nosso tema de pesquisa
não foi sem consequências. Do exercício clínico com os autistas, extraímos o real da
clínica. Da leitura das noções e conceitos formulados nos textos freudianos e lacanianos,
extraímos os balizamentos necessários e concernentes à especificidade da clínica
psicanalítica do autismo.
Nesta direção, fomos buscar, no texto de Kanner, a definição primeira desta
especificidade. Das histórias de cada criança, Kanner expôs todo um trabalho que o
autista realiza de localização de gozo diante do excesso que o avassala. E, deste
trabalho, ele destaca a incidência dos objetos, aqueles que não ameaçam o isolamento da
criança. Estes são aceitos de bom grado pelo autista, que tem uma boa relação com os
objetos. Demonstra um interesse por eles e, se deixado sozinho, passa horas com eles. O
autista pode ser extremamente ligado aos objetos, mas também pode desprezá-lo,
quando irritado. Deixado sozinho com seus objetos, segundo Kanner, o autista
experimenta uma sensação de onipotência e controle.
Foi da riqueza da descrição da forma como os autistas se colocam no mundo que
extraímos toda uma gama de investigação. Levando em consideração o estatuto singular
do sujeito da psicanálise e a recomendação lacaniana de que teoria e prática caminhem
lado a lado, circunscrevemos como tema de investigação as modalidades de localização
e circunscrição do gozo pela via do objeto.
Diante deste tema, bastante espinhoso, construímos um percurso cujo ponto de
partida só depois foi possível ressignificar, determinado pelo que da clínica extraímos.
Uma investigação em torno da noção de objeto na psicanálise, destacando o trabalho do
autista, pela via do objeto, para localizar e regular o gozo que se apresenta enigmático e
que o invade.
Não recuar diante da psicose foi a convocação feita por Lacan (1958) para
aqueles que trabalham nesta clínica. O autista nos convoca a não ceder diante do
trabalho que ele já realiza numa tentativa de constituir-se.
Neste sentido, consideramos que o apego a algum objeto, seja ele um pequeno
pedaço de pano, seja algo mais elaborado, como uma máquina, se presta a tentativas –
de instável equilíbrio, na maioria das vezes – de localização do sujeito em um trabalho
incansável para produzir-se.
97
A afirmação de Lacan de que “toda formação humana tem, por essência, e não
por acaso, de refrear o gozo” já referida anteriormente situou o lugar de nossa
abordagem. O autismo foi, aqui, situado como uma formação humana, que tem por
princípio refrear o gozo, diferenciando-se de um mero comportamento inadaptável e
deficitário que o encerraria a um lugar onde só seria possível concebê-lo nas armaduras
congelantes de um código internacional de doenças.
Foi nesta perspectiva que André e tantos outros autistas se fizeram presentes
neste trabalho de escrita, nos indicando que, mesmo que tenhamos dificuldade para
escutá-los, como nos alerta Lacan, trata-se de “personagens bastante verbosos”
(LACAN, 1988[1975b]:134). Mas é do verbo mesmo que se protegem? E como se
protegem? Encontramos balizamento nas elaborações lacanianas de que o autista,
mesmo que não fale, está imerso na linguagem, mas com a particularidade de que esta
imersão se apresenta problemática.
Uma tentativa de resposta à primeira pergunta refere-se ao estatuto do Outro
para o autismo. Apesar de considerá-la, pois os autistas nos mostram que o Outro para
eles é pleno de gozo, nossa pesquisa não trilhou este caminho. A resposta à segunda
pergunta situa muito bem nosso terreno de estudo. Nossa investigação centrou-se no
trabalho do autista em torno da construção do objeto e das diversas modalidades que
este trabalho imprime na localização de gozo. Ou seja, o uso do objeto pelo autista,
além de não ser aleatório, não é sem propósito. Não se reduz a uma mania ou a uma
obsessão que deve ser extirpada. De fato, esse uso ganha uma dimensão outra, um
caráter de tratamento no processo de contenção do gozo. Nesse sentido, o objeto tornase um instrumento privilegiado nas invenções próprias e inéditas no trabalho do autista.
Partimos da aproximação que Lacan estabeleceu entre o autismo e a
esquizofrenia, o que o incluiu no campo das psicoses, situando a operação da foraclusão
do significante Nome-do-Pai como o ponto desta aproximação. Desta forma, o autismo
é localizado no que se refere à não inscrição desse ordenador.
Recorremos ao jogo freudiano do ford-da, momento primordial da simbolização,
que constitui uma resposta da criança ao excesso traumático decorrente da ausência da
mãe. A criança encontra, na repetição, uma tentativa de dominar esse excesso. Como
vimos, para o autista, o jogo constituinte do ford-da não se inscreve, o que traz impasses
em sua constituição subjetiva. E, em função disso, não se constitui o par de oposição
significante, a cadeia de significantes não se inaugura, tendo como consequência a não
instauração da simbolização primordial.
98
O autista está submetido a um enxame de significantes desarticulados, pois não há
encadeamento entre os significantes, na medida em que o S1 se mostra congelado e
desconectado do S2, não representando o sujeito para outro significante. A não extração do
objeto é sua consequência, com o transbordamento de gozo no corpo e no significante.
Lacan precisa muito bem a função do objeto neste jogo. O jogo do carretel
constitui uma operação em torno da perda de um objeto
A ausência desta operação nos permitiu verificar que, no caso do autismo, a
repetição dos movimentos, a fala ecolálica e os batimentos repetitivos dos objetos se
inscrevem sob o pano de fundo de uma repetição de gozo, no real. Mas podemos
identificar que tais fenômenos de retorno de gozo no real são o resultado de um trabalho
do autista, produções que devem ser acolhidas, pois se inscrevem como tentativas de
simbolização, o ponto de partida para uma possível elaboração, transformando aquilo
que visava o sujeito em uma possibilidade de se subtrair do excesso em um trabalho de
localização do gozo.
Sustentamos que, no trabalho do autista, o uso do objeto ganha destaque nas
tentativas de se construir um objeto fora do corpo para regular o gozo. Ele realiza um
tratamento do gozo. Frente a não extração do objeto, o autista lança mão de uma forma
própria e inédita de invenção. Este trabalho, muitas vezes, se dá de forma radical, como
nas automutilações no real de corpo.
Os autistas inventam com seus objetos. Isso foi o que da clínica extraímos. Foi a
partir do trabalho empreendido por André e por tantos outros autistas que deduzimos a
importância do uso desses objetos para eles, os quais não devem ser descartados no
trabalho clínico.
Trabalhamos com alguns balizamentos para prosseguirmos no que se refere à
construção do objeto autístico e ao seu uso na elaboração da defesa autística, ressaltando
as modalidades de localização de gozo. Concluímos que essas modalidades, no caso do
autismo, se constituem em torno dos objetos, do duplo protetor e dos pontos de
competência, fonte do Outro de síntese.
Da análise do caso de André, enfatizamos o ineditismo da solução, por ele
encontrada, para dar tratamento ao real do gozo não fixado pelo significante,
promovendo um esvaziamento do gozo.
Reconhecemos que, através da construção de objetos, André pôde dar tratamento
ao excesso de gozo, o que promoveu uma mudança em sua posição subjetiva, a partir
das tentativas de sua localização, em que o objeto constituiu uma via privilegiada.
99
Sustentamos que as oficinas operam como lugares de mediação ao gozo invasor.
A localização deste gozo, por sua vez, produz certo apaziguamento. O lugar do analista
se situa na sustentação de um lugar vazio de gozo, e sua presença é regulada junto ao
trabalho do autista.
Chegamos ao momento de concluir as questões levantadas ao longo deste
trabalho. Porém, algo sempre resta a se verificar. Algumas elaborações se mostram
promissoras, relançando nosso desejo em direção a pesquisas futuras.
100
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASPERGER, Hans Die “Autistischen Psychopathen” im Kindesalter. In: Archiv fur
Psychiatrie und Nervenkrankheiten, nº. 117, 1944, pp. 76-136.
____. Zur Differentialdiagnose des kindlichen Autismus. In. Acta Paedopsychiatrica,
nº. 35, 1968, pp. 136-145.
BASTOS, Angélica; FREIRE, Ana Beatriz Sobre o conceito de alíngua: elementos para
a psicanálise aplicada ao autismo e às psicoses. In: Psicanalisar hoje. Angélica
Bastos (org). Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006, pp. 107-122
BERCHERIE. P. A Clínica Psiquiátrica da Criança – Estudo Histórico. Fascículos
Fhemig. Belo Horizonte, nº. 7, 1992.
BETTELHEIM, B. A Fortaleza Vazia, São Paulo, Martins Fontes, 1987.
BLEULER, E. (1916) Lês schizophrénies (dementia praecox) L’ invention de l’autisme.
Analytica, nº. 52. Paris: Navarin, 1988, pp. 11-89.
FÉDIDA, Pierre Auto-erotismo e autismo: condições de eficácia de um paradigma em
psicopatologia. In: Nome, Figura e Memória. A linguagem na situação
psicanalítica, São Paulo: Escuta, 1992, pp. 149-170.
FREIRE, Ana Beatriz; MONTEIRO, Katia Alvares C. Inventando possíveis laços com
adolescentes autistas e psicóticos: um caso clínico. In: Psicanálise e Laço Social.
Fernanda Costa-Moura (org). Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, pp. 79-92.
FREUD, S. Obras completas ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1975.
____. (1895) Projeto para uma psicologia científica, volume I.
____. (1900) Interpretação de Sonhos, volume V.
____. (1905) Sobre a psicoterapia, volume VII.
____. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de
paranóia (Dementia Paranoides), volume XII.
____. (1918[1914]) História de uma neurose infantil, volume XVII.
____. (1920) Além do princípio do prazer, volume XVIII.
____. (1925) Inibição, Sintoma e Augústia, volume XX.
GRANDIN, Temple Uma Menina Estranha, São Paulo: Cia. das Letras, 2006
GUERRA, Andréa M.C. Oficinas em saúde mental: percurso de uma história,
fundamentos de uma prática. In: Oficinas Terapêuticas em Saúde Mental –
sujeito, produção e cidadania. Clarice M. Costa & Ana Cristina Figueiredo
(org.) Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008, pp. 23-58.
IRMA (org.) La psychose ordinaire. La Convention d’Antibes. Paris: Agalma – Le
Seuil, 1999.
101
KANNER, L. (1943). Os distúrbios autistas do contato afetivo. In: Autismos, ROCHA,
P.S. (org.), São Paulo: Escuta, 1997.
____. The conception of wholes and parts in early infantile autism. In: American
Journal of Psychiatry, jul, 108 (1), 1951, pp. 23-26.
____. Infantile Autism and the Schizophrenias. In: Behav. Sci, oct, 10 (4), 1965,
pp.412-420.
____. Follow-up Study of Eleven Autistic Children Originally Reported in 1943. In:
Journal of Autism and Childhood Schizophrenia, apr-jun, 1 (2), 1971, pp. 119145.
LACAN, J. (1946) Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 152-196.
____. (1949) O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 96-103.
____. (1951) Some reflections on the ego Disponível em:
<http://www.ecole-lacanienne.net/bibliotheque>.
____. (1953-54) O Seminário - Livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1979.
____. (1955-56) O Seminário - Livro 3: As Psicoses, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 1985.
____. (1956) Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956. In:
Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 1998, pp. 461-495.
____. (1956-57) O Seminário – Livro 4: A Relação de Objeto, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1995.
____. (1957) A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos,
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 496-533.
____. (1957-58) O Seminário – Livro 5: As Formações do Inconsciente, Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1999.
____. (1958) De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In:
Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 537-590.
____. (1958-59) Le Seminaire – Livre 6: Le désir et son interprétation. Disponivel em
<http://gaogoa.free.fr/>.
____. (1959-60) O Seminário - Livro 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1988.
____. (1960) Observação sobre o relatório de Daniel Lagache. In: Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 653-691.
____. (1960b) Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano.
In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 807-842.
____. (1962-63) O Seminário – Livro 10: A Angústia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 2005.
____. (1964) O Seminário - Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
____. (1966-67) Le Seminaire – Livre 14: La Logique du Fantasme. Disponível em:
<http://gaogoa.free.fr/>.
____. (1967) Alocução sobre as psicoses da criança. In: Outros Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 359-368.
____. (1969) Deux notes sur l’enfant. In: Ornicar?, Paris: Navarin, nº 37, 1987.
____. (1969-70) O Seminário - Livro 17: O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1992.
102
____. (1971-72) Le Seminaire – Livre 19bis :Le Savoir du psychanalyste. Disponível
em: <http://gaogoa.free.fr/>.
____. (1972) O Aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001,
pp. 448-497.
____. (1972-73) O Seminário – Livro 20 Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1982.
____. (1974-75) Le Seminaire – Livre 22: R.S.I. Disponivel em:
<http://gaogoa.free.fr/>.
____. (1974b) Conférence donnée au Centre culturel français le 30 mars 1974. In: Italie
Lacan, Milan, La Salamandra, 1978, pp. 104-147.
____. (1974c) Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp.
508-543.
____. (1975) Pequeno discurso de Jacques Lacan aos psiquiatras. In: Dizer 10. Rio de
Janeiro, 1994.
____. (1975b) Conferencia en Ginebra sobre el sintoma. In: Intervenciones y textos 2.
Buenos Aires: Manantial, 1988.
____. (1975c) Conference et entretiens dans des universités nord-americaines. In:
Scilicet nº. 6/7, Paris: ECP, 1975, pp. 7-31.
____. (1975-76) O Seminário – Livro 23 O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007.
LAMY, M.I. Seminário XI. Comentário sobre alguns parágrafos do capítulo V. Texto
apresentado no Grupo Curumim, Rio de Janeiro: EBP, s/d.
LAURENT, E. Plusieurs. Preliminaire nº 9/10, Bruxelas, 1998.
____. Réflexions sur l’autisme. In. L’autisme Bulletin 10 Groupe Petite Enfance, Paris:
Nouveau Reseau Cereda Diagonale Francophone, 1997.
____. Un psicoanálisis orientado a lo real. In. Carretel - Psicoanálisis con niños, Robert
y Rosine Lefort: La invención de una práctica con niños orientada a lo real,
Buenos Aires: Editorial Grama, nº. 8, 2007, pp. 39-48.
LEFORT, Rosine Nascimento do Outro Salvador: Ed. Fator Livraria, 1984.
____. La Distinction de l’autisme Paris: Seuil, 2003.
MALEVAL, J.-C Ébauche d’une approche de la spécificité de la psychose
autistique. In. L’autisme Bulletin 10 Groupe Petite Enfance, Paris: Nouveau
Reseau Cereda Diagonale Francophone, 1997.
____. La forclusión del nombre del padre Buenos Aires: Paidós, 2002.
____. Qual o tratamento para o sujeito autista? In: Inter-Ação - Revista da Faculdade de
Educação da UFG. Goiás: UFG, volume 34, nº. 2, 2009, pp. 405-452.
____. Sobretudo Verbosos os autistas. In: Latusa: Objetos Soletrados no Corpo - Escola
Brasileira de Psicanálise. Rio de Janeiro: Ed. Contra-Capa, nº. 12, 2007, pp. 6991.
____. Os objetos autísticos complexos são nocivos? In: Psicologia em Revista. Belo
Horizonte, vol. 15, nº. 2, ago 2009b, pp. 223-254.
____. De la psychose précocissime au spectre de l’autisme: Histoire d’une
mutation dans l'appréhencion d’autisme. In: Autisme et psychose: machine
autistique et délire machinique: clinique différentielle des psychoses / par JeanLouis BONNAT (Dir.). Rennes: Presses universitaires de Rennes (Clinique
psychanalytique et psychopathologie) Belle-Idée SPEA, 2008.
103
MARION, Florence Dire quelque chose à l’enfant autiste. In: Les Feuillets du Courtil –
Aux limites du lien social: les autismes Belgique:Le Courtil , núméro 29, janvier
2008.
MILLER, J-A. M. Matemas I, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
____. O osso de uma análise. In: Agente – Revista de Psicanálise. Bahia: Escola
Brasileira de Psicanálise, 1998.
____. La Psycose ordinaire: la convention d’Antibes. Paris: Agalma, 1999.
____. Os seis paradigmas do gozo. In: Opção Lacaniana, São Paulo: Eolia, vol. 26/27,
2000, pp.87-105.
MONTEIRO, Katia Alvares C O Autismo de Kanner e a Clínica Psicanalítica. In:
Caderno do Fórum Permanente de Educação e Saúde. Rio de Janeiro: Instituto
Philippe Pinel/Ministério da Saúde, 2000, pp. 43-47.
RIBEIRO, Jeanne Marie C. A Criança Autista em Trabalho. Rio de Janeiro: 7Letras,
2005.
____.; MONTEIRO, Katia Alvares C. A Criança Autista e Psicótica – trajetórias
clínicas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.
RONDINESCO, Elisabeth Jacques Lacan – Esboço de uma vida, história de um
sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
SACKS, Oliver Um Antropólogo em Marte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
____. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
SANTIAGO, Ana Lydia A Inibição Intelectual na Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2005.
SCHREBER, D. P. Memórias de um doente de nervos, Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995.
SELLIN, B. Une âme prisionnière. Paris: Robert Laffont, 1994.
SOLER, Colete O inconsciente a céu aberto na psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007
OLIVEIRA, Rosa Alba S. A Invenção do corpo nas psicoses: impasses e soluções para
o aparelhamento da libido e a construção da imagem corporal, Rio de Janeiro:
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica/IP/UFRJ, 2008. Tese
(doutorado).
PENOT, L.M.C. O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas. Salvador:
Ágalma, 1994.
____. Rumo à palavra: três crianças autistas em psicanálise. São Paulo: Escuta, 1997.
WILLIAMS, Donna Si on me touche, je n’existe plus. Paris: Robert Laffont, 1992.
____. Quelqu’un, quelque part. Paris: J’ai Lu, 1996.
104
WINNICOTT, D.W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
TAMMET, Daniel. Born on a blue day. New York: Free Press, 2006.
TUSTIN, Frances. Autismo e psicose infantil, Rio de Janeiro: Imago, 1975.
____. Estados Autísticos em Crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1984.
____. Autisme et protection. Paris: Seuil, 1992.
ZENONI, Alfredo Psicanálise e Instituição – A segunda clínica de Lacan. Abrecampos
– Revista de Saúde Mental do Instituto Raul Soares, Belo Horizonte: Instituto
Raul Soares/Rede FHEMIG, ano I, nº. 0, 2000.
105
IMAGENS ANEXAS
Figura 1 - Paula Madalena de Jesus Martins
Figura 2 - Fantasma da Paula Madalena
Figura 3 - Outra pessoa
Figura 4 - Pernas da Paula Madalena
Figura 5 - “Peru” e “bumbum” da Paula Madalena
Figura 6 - Irmão e Irmã da Paula Madalena
Figura 7 - Mãe da Paula Madalena
Figura 8 - Ana Paula Madalena de Jesus
Figura 9 - 1ª maravilha
do livro “As Setes Maravilhas”
Figura 10 - 4ª maravilha
do livro “As Setes Maravilhas”
Figura 11 - Texto intitulado “O Fundo do Mar”
“O Fundo do Mar” (continuação)

Documentos relacionados