o tratamento do gozo no autismo - Programa de Pós
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o tratamento do gozo no autismo - Programa de Pós
Universidade Federal do Rio de Janeiro O TRATAMENTO DO GOZO NO AUTISMO: clínica psicanalítica e objetos autísticos Katia Alvares de Carvalho Monteiro 2011 O TRATAMENTO DO GOZO NO AUTISMO: clínica psicanalítica e objetos autísticos Katia Alvares de Carvalho Monteiro Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica (Instituto de Psicologia), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre. Orientador: Angélica Bastos Grimberg Rio de Janeiro Março de 2011 O TRATAMENTO DO GOZO NO AUTISMO: clínica psicanalítica e objetos autísticos Katia Alvares de Carvalho Monteiro Orientador: Angélica Bastos Grimberg Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. Aprovada por: _______________________________________ Presidente, Dra. Angélica Bastos Grimberg Doutora em Psicologia PUC/SP _______________________________________ Dra. Ana Beatriz Freire Doutora em Psicologia Clínica PUC/RJ _______________________________________ Dra. Doris Rangel Diogo Doutora em Teoria Psicanalítica UFRJ/RJ Rio de Janeiro Março de 2011 ii Monteiro, Katia Alvares de Carvalho O tratamento do gozo no autismo: clínica psicanalítica e objetos autísticos / Katia Alvares de Carvalho Monteiro. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2011. ix, 118 f: il.;31 cm Orientador: Angélica Bastos Grimberg Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2011. Referências Bibliográficas: f. 101-104 1. Autismo. 2. Gozo. 3. Objeto. 4. Direção do tratamento. 5. Lugar do analista. I. Grimberg, Angélica Bastos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítca. III. Título. iii A clínica “é o real enquanto impossível de suportar” (JACQUES LACAN) iv Às crianças e adolescentes do NAICAP e do NIJ, com quem muito aprendi, e a seus pais, que me confiaram seus filhos em tratamento. v AGRADECIMENTOS À Angélica Bastos, pela acolhida de meu tema de pesquisa, pela leitura precisa e orientação segura, pela generosidade e confiança depositada em meu trabalho, que fez toda a diferença na escrita deste texto. À Ana Beatriz Freire, pela parceria de trabalho desde a época do NAICAP até os dias de hoje, por sua constante interlocução no grupo de pesquisa e por suas considerações valiosas no exame de qualificação. À Doris Diogo, pelas indicações preciosas no exame de qualificação desta dissertação. Aos professores do Programa em Teoria Psicanalítica, pelo ensino da psicanálise, em especial à Fernanda Costa-Moura e Simone Perelson. Ao funcionário Zé Luiz, pela ajuda nas questões administrativas. Aos colegas do mestrado, pela cooperação e, em especial, a Joana Maia, Tatiana, Maria Luíza Zanotelli e Fábio Malcher, que se mostraram solidários em momentos difíceis. A Ricardo Peret e Domingos Sávio, por terem sempre apoiado e acreditado no trabalho do NAICAP. À equipe do NAICAP, por trilhar, juntos, um caminho inaugural e por sustentar um desejo sempre vivo pela clínica em um “Espaço de Possibilidades”. À equipe do NIJ, obrigada pelas parcerias de trabalho. Aos estagiários e residentes do NAICAP e do NIJ, que, da disponibilidade no ato inaugural à felicidade do reencontro, deixaram marcas singulares e significativas em uma breve passagem. Aos parceiros de trabalho do NAICAP, por sempre mostrarem que é possível caminhar. Aos colegas do Instituto Philippe Pinel pela cumplicidade, cooperação e companheirismo. À Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros, pelas preciosas discussões clínicas e supervisões. Às amigas Silvia, Malu, Teca, Ana Clara e Sheila, pela amizade, mesmo que à distância. Às minhas amigas de colégio, que suportaram, com humor, minhas ausências nos encontros das quintas-feiras. À Monique Cunha, por tantos anos de trabalho, em que compartilhamos, lado a lado, nossas dúvidas e inquietações, mas também muitos avanços, e pela amizade, sempre. À Claudia Cadaval, por sua amizade, pelo feliz encontro de trabalho e pelo apoio e incentivo nos momentos difíceis desta dissertação. À Regina Fampa, parceira de trabalho e amiga querida, por acreditar em meu trabalho. À Jeanne Marie, pela parceria inestimável no trabalho clínico, na leitura de minhas ideias, nas discussões sempre especiais, pela ajuda nos momentos cruciais e por construir comigo os caminhos de uma amizade. Aos meus irmãos Vânia e Marco, pela alegria da vida. Ao meu pai, Orlando, de quem herdei a paixão pelos livros, agradeço o apoio e o incentivo de que é possível sempre dar um passo a mais. A minha mãe, Hila (in memoriam), que soube me acompanhar em meus passos e me transmitir a coragem e a determinação necessárias no meu caminhar. À Rosita, por reconhecer a particularidade de meu trabalho. Ao Fernando, pelo amor, carinho, generosidade e paciência ao longo desta trajetória, com quem pude compartilhar as angústias e as alegrias. Ao meu filho Bernardo, por suportar serenamente minhas ausências e por me deixar sentir a alegria do encontro, e que, de forma carinhosa, me dirigia sempre uma palavra de incentivo. vi RESUMO O TRATAMENTO DO GOZO NO AUTISMO: clínica psicanalítica e objetos autísticos Katia Alvares de Carvalho Monteiro Orientadora: Angélica Bastos Grimberg Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. Investigamos nesta dissertação o estatuto do objeto na clínica do autismo. Retiramos balizas da obra de Freud e dos ensinamentos de Lacan, em uma articulação com o campo da clínica. Partimos da premissa de que o uso dos objetos pelo autista não é aleatório ou sem propósito. Sustentamos que há um trabalho realizado por ele quanto ao tratamento dado aos objetos. O objeto torna-se um instrumento privilegiado nas invenções inéditas deste trabalho. O autista inventa com seus objetos. A partir de um caso clínico, escutado durante 16 anos, situamos a construção do objeto autístico, como uma via de refreamento do excesso pulsional. Acompanhamos a criação de seu duplo protetor, em sua função regulatória, que lhe permitiu a localização do gozo, e em seguida verificamos seu trabalho para extrair de lalangue um significante que situa seu saber-fazer com o gozo. Em nosso percurso, recorremos às descrições de Kanner (1943) e Asperger (1944) para as síndromes do Autismo Infantil Precoce e Psicopatia Autística, respectivamente. Dos preciosos comentários de Lacan acerca do autismo, extraímos balizamentos que inserem o autismo no campo das psicoses. A partir do mecanismo de foraclusão do Nome-do-Pai, realizamos uma leitura do conceito de objeto e abordamos as noções de duplo e lalangue, situando sua importância na clínica. Por fim, procuramos cernir o lugar que o analista ocupa na clínica do autismo, sustentando um lugar vazio de gozo, deixando-se regular pelo trabalho do sujeito, através de uma presença regulada seja nas sessões, seja nas oficinas. Palavras-chave: Autismo. Gozo. Objeto. Direção do tratamento. Lugar do analista. Rio de Janeiro Março de 2011 vii RÉSUMÉ O TRATAMENTO DO GOZO NO AUTISMO: clínica psicanalítica e objetos autísticos Katia Alvares de Carvalho Monteiro Orientadora: Angélica Bastos Grimberg Résumé da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. Dans ce mémoire, balisé par l´oeuvre de Freud et l´enseignement de Lacan, nous examinons dans le champ de la clinique de l´autisme, le statut de l´objet. Nous posons que l´utilisation des objets par un autiste n´est ni aléatoire ni sans dessein, en soutenant qu´un autiste réalise une véritable élaboration dans le traitement donné aux objets. L´objet devient l´instrument privilégié des inventions singulières de cette élaboration. L´autiste invente avec ses objets. À partir d´un cas clinique, écouté depuis 16 ans, nous considérons la construction de l´objet autistique comme une voie pour réfréner l´excès pulsionnel. Nous avons accompagné la création de son double protecteur, dans sa fonction régulatrice, ce qui lui a permis de localiser la jouissance. Ensuite nous avons vérifié son travail pour extraire de lalangue un signifiant qui situe son savoir-faire avec la jouissance. Pour bâtir notre étude, nous nous sommes servi des descriptions, respectivement, de Léo Kanner (1943) pour la Psychopathie Autistique et de Hans Asperger (1944) pour L´Autisme Infantile Précoce. Et puis, avec les commentaires de Lacan, nous avons dégagé des indices qui insèrent l´autisme dans le champ des psychoses. À patir du mécanisme de la forclusion du Nom-du-Père, nous effectuons une lecture du concept d´objet et nous abordons les notions de double et de lalangue, en situant leur importance dans la clinique. Pour finir, nous avons cherché à cerner la place que l´analyste occupe dans la clinique de l´autisme, une place vide de jouissance, régulé par le travail du sujet. Et par le fait de sa présence aux sessions ou aux ateliers. Mots-clés: Autisme. Jouissance. Object. Direction du traitement. Place de l’analyste. Rio de Janeiro Março de 2011 viii SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 CAPÍTULO 1 – Autismo: Definições Preliminares e ponto de partida clínico 17 1.1 O Autismo de Kanner e a Síndrome de Asperger 1.2 O autismo e a foraclusão do Nome-do-Pai 1.3 Caso Clínico: O trabalho de André 1.3.1 História Clínica 1.3.2 Quatro momentos lógicos do trabalho subjetivo de André CAPÍTULO 2 – Significante, gozo e lalangue no autismo 2.1 Repetição como retorno de gozo 2.1.1 O jogo Fort-da: primeira simbolização 2.2 O significante como causa de gozo e lalangue na clínica do autismo CAPÍTULO 3 – Os objetos na clínica do autismo 20 26 31 33 35 37 39 40 44 52 3.1 O objeto na clínica do sujeito 3.2 O uso dos objetos na elaboração da defesa autística 3.2.1 A construção dos objetos autísticos 3.2.2 O duplo do autista 3.3 O retorno de gozo na construção da borda na defesa do autista 3.3.1 O Estádio do Espelho 3.3.2 O Esquema Óptico 53 60 66 69 73 73 79 CAPÍTULO 4 – O autista e a construção de seus objetos: O Caso André 84 4.1 Primeiro Momento: Das conexões regradas ao “chega de conversa” 4.2 Segundo Momento: A criação do duplo: Paula Madalena 4.3 Terceiro Momento: Da morte das senhoras Madalenas às gravações de programas: O Radialista 4.4 Quarto Momento: Discurso de Conversa Coletiva 4.5 O objeto nas Oficinas: Direção de trabalho clínico em instituição 84 85 89 90 93 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS 97 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 101 IMAGENS ANEXAS 106 ix INTRODUÇÃO Ainda como estudante de Psicologia, deparei com questões que a prática clínicoinstitucional, desenvolvida numa enfermaria de um grande hospital psiquiátrico (Centro Psiquiátrico Pedro II1 – Rio de Janeiro), levantava. Questões que envolviam o manejo clínico, em uma instituição, com pacientes psicóticos adultos. Mas foi no trabalho, alguns anos depois, com crianças e adolescentes, particularmente com as crianças autistas e psicóticas, no Instituto Municipal Philippe Pinel (RJ), que estas questões ganharam relevo, a partir dos impasses clínicos vividos em uma experiência institucional com esta clientela. Desde então, a clínica do autismo é a nossa questão de estudo e pesquisa. Fazer desta clínica um ponto de interrogação não é sem consequências para quem nela trabalha, na medida em que cotidianamente somos confrontados com o que há de mais radical na constituição de um sujeito. Esta experiência clínico-institucional teve como ponto de partida o trabalho desenvolvido no NAICAP – Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica2. O NAICAP, uma iniciativa pioneira do Ministério da Saúde, surgiu no final dos anos 80, com a intenção de elaborar uma proposta institucional de trabalho trazendo para a cena principal a complexidade clínica de crianças ditas autistas e psicóticas. Inaugurava-se um espaço de tratamento que dava visibilidade e transparência à questão das crianças e adolescentes com graves transtornos mentais que, na época, procuravam atendimento em ambulatórios da rede pública de saúde. Por meio do funcionamento institucional, diversos dispositivos de tratamento foram construídos a fim de possibilitar que a criança fizesse sua entrada no campo da fala. Os clínicos estavam avisados de que a fala, para o autista, ganha uma dimensão de trauma e devastação; particularmente, a fala daqueles que dele se ocupam. Isso nos permite considerar que a estratégia utilizada pelo autista é uma estratégia para protegerse do verbo (Lacan, 2003[1967]), o que demonstra que a função da fala não se encontra estabelecida como mediadora. 1 Atualmente Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira. Em 2004, o NAICAP se unificou com o COIJ, outro serviço infantil do Instituto Municipal Philippe Pinel sob nova denominação, NIJ – Núcleo Infanto-Juvenil. 2 10 Este trabalho não se localiza no terreno pantanoso das tentativas de explicação da etiologia do autismo; trata-se, antes, de situar o sujeito a respeito do qual falamos. Nosso interesse está, efetivamente, no campo da causação do sujeito cujas coordenadas estruturais estão na base da orientação de nossa clínica. Identificar somente o mecanismo neurobiológico específico que responda à etiologia do autismo não nos diz muita coisa, na medida em que isso não nos mostra as possíveis respostas (e são elas infindáveis) que o sujeito irá construir frente aos problemas colocados por sua história, seu corpo, seu organismo. Para a psicanálise, a questão do sujeito é de ordem distinta daquela colocada pelo organismo. Segundo Arsermet (1997), não é o caso de opor-se àqueles que consideram o autismo como uma doença neuronal rara, um problema genético, neurobiológico específico”. [Na clínica psicanalítica], “não se trata [...] de uma busca sistemática de uma psicogênese, numa visão simplista de um determinismo psíquico. [...] Como o diz Lacan em seu Seminário III, o grande segredo da psicanálise, é que não existe psicogênese (ARSERMET, 1997: 90). Efetivamente estamos no campo da causação do sujeito. Frente aos enigmas da clínica do autismo, a classificação diagnóstica tem sido muito frequentemente a única solução possível diante da impossibilidade de uma escuta. Em nome de uma ciência, lança-se mão de drogas sofisticadas, de operações cirúrgicas, de intervenções cujo reforço é um instrumento de trabalho num mundo regido pelo tecnicismo, sem que se pense nos efeitos simbólicos de tal intrusão. Desde o ato inaugural de Leo Kanner (1943), temos assistido ao crescente interesse pelo autismo. A formação e a construção de práticas e saberes dirigidos a estes sujeitos têm sido impressionante. Atualmente, vemos o incremento dos relatos de pais de filhos autistas e os testemunhos dos próprios autistas de alto desempenho (quando é possível relatar suas experiências), os quais são transformados, pelo mundo afora, em farta e abundante literatura. No Brasil, esta realidade é bastante semelhante. A cada momento vemos brotar publicações as mais diversas, com abordagens as mais variadas. O autismo tem recebido uma atenção significativa, seja através da mídia, seja pelos trabalhos nas áreas da saúde e da educação. Este contexto não é muito diferente no que se refere aos trabalhos na clínica psicanalítica com autistas. A inclusão da Síndrome de Asperger em nossa pesquisa aponta para a atual inclinação de se considerar as manifestações fenomenológicas próprias às síndromes, 11 descritas por Kanner e Asperger, como expressões de um mesmo quadro, com a presença de dificuldades de aquisição de aptidões cognitivas, linguísticas, motoras e sociais, caracterizando o espectro autístico. Tal tendência se verifica na inclusão dos dois quadros entre os Transtornos Globais do Desenvolvimento no CID X (Classificação Internacional de Doenças – décima edição) e os Transtornos Invasivos do Desenvolvimento no DSM IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). Desde a tradução, para o inglês, do texto de Asperger por Utah Frith (1991), observam-se importantes debates quanto a se as duas síndromes devem ou não ser reunidas em um mesmo quadro e, caso sejam reunidas, se devem ou não pertencer ao quadro das esquizofrenias. Vale registrar e ressaltar que ambas as classificações retiraram a psicose na criança dos quadros psicopatológicos característicos da infância, para incluí-la nos transtornos do desenvolvimento. Este trabalho não pretende problematizar esta questão, mas sublinhar que a psicose, na criança, foi subtraída da condição de sujeito, sendo encerrada e condicionada a um problema de desenvolvimento. O autismo é um diagnóstico do campo psiquiátrico. Objeto de discussões e controvérsias, o conceito de autismo vem ao longo dos anos protagonizando, tanto no campo teórico como no dos dispositivos assistenciais, iniciativas as mais diversas e com diferentes direções. A cada ano constatamos que muitos profissionais, entre eles psicanalistas, vêm se dedicando ao estudo do tema. Conduzidos a partir da clínica, diversos psicanalistas abordam a questão do autismo sob diferentes óticas, apresentando hipóteses muitas vezes distintas no que se refere a sua diferenciação ou aproximação do campo das psicoses. Neste cenário, trava-se um debate vigoroso em torno do uso do objeto autístico. Há aqueles que acreditam que tais objetos devem ser abandonados para permitir que a criança se interesse por outros mais adequados em suas funções sociais e saia de seu retraimento, fomentado por esse único e singular objeto de investimento. Outros são partidários e favoráveis ao cuidado, ao respeito e à importância que estes objetos adquirem no tratamento dos autistas. De toda forma, constatamos que há diferenças significativas, níveis diferentes de elaboração do tratamento dado aos objetos pelos autistas. Tanto no trabalho clínico com os autistas como nos relatos de suas experiências, deparamos com o apego muito especial que eles têm a um objeto. Parecem não poder prescindir da presença do objeto a seu lado, muitas vezes colado ao corpo, dando a 12 impressão de que este proporciona certa segurança e ganha maior importância do que as pessoas. O objeto acompanha o sujeito por toda a parte, estando permanentemente acoplado a ele. Temple Grandin, através do relato de sua experiência, é incisiva e contundente quando alerta sobre o perigo de se retirar os objetos de um autista: “meu uso da máquina de pressão provocava polêmica entre terapeutas, amigos e parentes. Chegaram mesmo a tentar tirá-la de mim. A longo prazo, isso me prejudicou” (GRANDIN, 2006:110) Segundo Temple, isto a deixou predisposta a novos ataques de nervos. Mas ela própria oferece uma saída quando, segundo Maleval (2009), percebe a importância de alargar o campo obsessivo e tentar orientar o interesse manifestado pelo autista na direção de atividades construtivas. Por exemplo, se uma criança é fanática por barcos, é preciso tirar proveito dessa obsessão para incitá-la a ler, estudar Matemática, consultar livros especializados e a resolver problemas de velocidade e de nós. As fixações são uma fonte de motivações. Leo Kanner declarou, um dia, que o caminho do sucesso para alguns autistas consistia em transformar uma fixação em carreira profissional (GRANDIN apud MALEVAL, 2009b:224). Na clínica, encontramos os mais variados objetos, sejam os mais simples, como um pequeno fio de barbante ou uma peça de brinquedo, sejam os mais sofisticados e elaborados, como as máquinas de Joey de Bruno Bethelheim (1987) ou a máquina de pressão de Temple. Muitos psicanalistas procuraram estabelecer o estatuto de tais objetos para os autistas, a importância ou não de seu uso no trabalho psicanalítico, construindo hipóteses e apresentando propostas de trabalho para sua utilização. Frances Tustin (1984) saiu na dianteira e conceituou o objeto autístico, conferindo-lhe um caráter patológico, mesmo reconhecendo que a sua presença faz com que o autista se sinta protegido. Os autistas nos ensinam a não descuidar do uso particular que fazem dos objetos. Situamos nossa direção de trabalho no momento que entendemos que tal uso possui uma lógica. É possível nos aproximarmos de um autista quando nos dirigimos ao objeto, e não diretamente a ele, ou, ao nos entretermos com qualquer objeto, é muitas vezes possível sentir sua aproximação. 13 Parece-nos que há um trabalho de regulação do gozo realizado pelos autistas. Nesta perspectiva, pretendemos situar nossa pesquisa em torno da construção do objeto autístico e de sua relação com as diversas modalidades no trabalho de localização do gozo. O objeto torna-se um instrumento privilegiado nas invenções próprias e inéditas do trabalho do autista. Lacan (1995[1956-57]:11]) recomenda que, em psicanálise, teoria e prática coincidam, que uma não se dissocie da outra. Abordaremos a temática, em um primeiro momento, enfatizando a articulação entre os conceitos e, em um segundo momento, destacaremos o campo da clínica. Considerando a singularidade da clínica com o autista e buscando apoio nos ensinamentos de Freud e Lacan, nossa pesquisa irá se definir em torno das modalidades de fixação do gozo pela via do objeto. Para tal, dividiremos nosso trabalho em quatro capítulos. No primeiro capítulo, recorreremos às descrições de Leo Kanner (1943) e Hans Asperger (1944), a fim de apresentar as síndromes do Autismo Infantil Precoce e da Psicopatia Autística, respectivamente. Kanner, como diretor do primeiro serviço de psiquiatria infantil dentro de um hospital pediátrico, marcou de forma significativa a psiquiatria infantil da época ao propor, em nome de uma síndrome, uma classificação própria à criança, distinta da clínica psiquiátrica do adulto. Os trabalhos de Asperger, o qual desconhecia os estudos de Kanner, seguiram a mesma direção. As elaborações teóricas de Freud são anteriores à descrição da síndrome do autismo, mas tiveram certa influência nos estudos bleulerianos sobre a particularidade do autismo, como sintoma, no quadro da esquizofrenia. Lacan, contemporâneo a esta descrição, pouco se deteve acerca do autismo, mas sua abordagem da psicose, fundada na clínica, brindou aqueles que com ele trabalha com indicações importantes. Lacan (1975b) estabelece uma aproximação do autismo com o campo da psicose. Por esta perspectiva, abordaremos neste capítulo a operação da foraclusão do significante Nome-do-Pai, ordenador simbólico da cadeia significante, por entender que o autismo se situa na não inscrição deste operador. Finalizaremos este capítulo com a apresentação do caso André. O trabalho clínico com este autista de alto desempenho permitiu situar a importância do objeto autístico como uma modalidade de tratamento de localização de gozo que se 14 apresentava de forma excessiva. Aqui, apresentaremos os momentos lógicos deste trabalho em suas linhas gerais. No segundo capítulo, tomaremos como eixo a formulação de que a repetição é o gozo (LACAN, 1969-70:44). É a partir da definição clássica lacaniana do significante como aquilo que faz representar um sujeito junto a outro significante que se verifica o alcance desta formulação, quando se refere à “repetição inaugural, na medida em que ele é repetição que visa o gozo” (:45). Desta forma, discutiremos o jogo freudiano do Ford-da, entendido como tratamento do excesso traumático, via repetição. No caso do autista, veremos que tanto a repetição de seus movimentos como a repetição ecolálica se estabelecem em uma repetição de gozo, no real, e, neste caso, o significante não remete a outro significante. Neste capítulo, mantendo como horizonte a noção de gozo e a nova concepção de significante, aquilo que Lacan afirma ser o significante causa de gozo, abordaremos, em uma articulação entre gozo e significante, o conceito de lalangue. Este conceito nos permitirá estabelecer articulações com a clínica do autismo, reconhecendo aí o trabalho que cada sujeito realiza em uma tentativa de produzir-se, extraindo de lalangue um significante, o qual fixa o gozo. Esta articulação nos permitirá situar a contribuição desse conceito para o trabalho analítico com os autistas. No terceiro capítulo, a partir da importância capital que os objetos adquirem na clínica do autismo, examinaremos o conceito de objeto. Em Freud, recorreremos à experiência de satisfação descrita no Projeto para uma psicologia científica (1976 [1895]:421). Em Lacan, trabalharemos a partir de sua formulação de que “o homem pensa com seu objeto” (LACAN, 1964:63), e que somente tem acesso a ele a partir do outro enquanto objeto do desejo do outro (LACAN, 1955-56:50), situado na falta de objeto (1956-57:67). Remeter-nos-emos à noção de objeto a lacaniano, objeto causa de desejo. Abordaremos a operação de subtração do objeto, operação não realizada no autismo. O recurso aos textos freudianos e lacanianos, bem como à nossa experiência clínica, nos permitirá a elaboração da hipótese de investigação desta pesquisa, qual seja, a de que todo o trabalho do autista vai na direção de construir um objeto fora do corpo para fazer frente a essa subtração (do objeto) que não se operou. Isto o deixa, por um lado, à mercê dos efeitos decorrentes do não distanciamento entre o gozo e o corpo, e, por outro, da ausência da montagem do circuito pulsional. Para tanto, o autista inventa, com seus objetos, uma tentativa de operar certa modalização ou regulação de gozo. 15 Igualmente, vamos nos apoiar nas elaborações de Jean-Claude Maleval acerca da construção dos objetos autísticos, extraídas de sua investigação realizada a partir dos testemunhos de autistas de alto nível. Bastante comuns hoje em dia, tais testemunhos se encontram nos livros publicados por autistas como Temple Grandin (2006), Donna Williams (1992), Daniel Tammet (2006), B.Sellin (2004), entre outros. Na formulação de Maleval, o uso do objeto, na defesa autística, instaura “uma borda entre o sujeito e o Outro do desejo” (1997:137). Segundo Eric Laurent, citado por Maleval (2009), esta defesa é definida como retorno do gozo sobre a borda. Para investigar o alcance dessas formulações, recorreremos à teoria do estádio do espelho e ao esquema óptico de Lacan. No estádio do espelho, momento inaugural da constituição da totalidade imaginária do corpo (originalmente despedaçado) a partir da mediação do Outro, verificaremos a ocorrência de fenômenos de desordem pulsional na clínica do autismo. Isso nos permitirá indicar que a demarcação no corpo das zonas erógenas, a partir da montagem do circuito pulsional, constitui um problema para os autistas. Do esquema óptico, depreendemos que, no caso do autismo, a imagem especular pode não se constituir pela não extração do objeto a do campo do Outro, necessária a sua constituição. Trabalharemos com a hipótese de que, no autismo, a instauração da relação especular configura um problema, uma vez que a assunção imaginária da totalidade corporal não se efetua, o que impede a demarcação das zonas erógenas que não constituem bordas corporais. Como veremos o retorno do gozo, no caso do autismo, seria no real dos próprios buracos do corpo que não se constituíram como bordas erógenas. Por fim, no quarto capítulo, apresentaremos a análise do caso André, destacando a forma inédita de sua solução no tratamento dado ao real do gozo, não fixado pelo significante. Na seção intitulada O Objeto nas Oficinas – Direção do Trabalho Clínico em Instituição, circunscreveremos as questões e impasses encontrados no cotidiano do fazer clínico nas oficinas, no que se refere à função do objeto. Para tanto, abordaremos a direção do trabalho clínico na instituição e o lugar que o analista pode ocupar nesta clínica. 16 CAPÍTULO I – AUTISMO: DEFINIÇÕES PRELIMINARES E PONTO DE PARTIDA CLÍNICO Em seu texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958), Lacan nos faz uma convocação: não recuar diante da psicose. Para aqueles que trabalham com a clínica do autismo e consideram que os fenômenos observados nesta clínica mostram um sujeito em trabalho (RIBEIRO, 2005), uma convocação faz cernir toda uma direção de tratamento, a saber: não ceder diante do trabalho que o autista realiza numa tentativa de constituir-se. Alçar em estatuto de trabalho os estranhos comportamentos dessas crianças ditas autistas e psicóticas não foi sem consequências para o exercício clínico com elas. Não são meras disfunções fenomenológicas como quer a Medicina, mas situam a posição desta criança com relação ao Outro, uma resposta para fazer frente a um Outro caprichoso, invasor e desregrado. Um Outro que se constitui para a criança psicótica como compacto e se apresenta pleno de gozo. É na condição de sujeito, imerso em uma ordem simbólica que o constitui, que a psicanálise aborda o ser humano. Lacan nos adverte: Não esqueçam jamais que nada do que diz respeito ao comportamento do ser humano como sujeito, e ao que quer que seja no qual ele se realize, no qual simplesmente ele é, não pode escapar de ser submetido às leis da fala. (LACAN, 1985 [1955-56]:100). A psicanálise aponta para o fato de que a constituição do sujeito não está garantida a partir de sua maturidade biológica, mas que o sujeito humano se constitui graças à mediação operada pela linguagem (LACAN, 1988 [1959-1960]:49). Segundo esta perspectiva, esta tão estranha criança se encontra submetida ao significante. A linguagem, para a psicanálise, não coincide com a comunicação ou mesmo com a linguística. Mas o autista é conhecido como aquele cuja posição singular na rede da linguagem e sua relação ao simbólico se processa de forma diferente. Diferença essa que certamente irá comprometer sua constituição subjetiva, sua circulação no campo social e sua relação com o outro. Não desconhecemos o quanto a psicose se apresentou como uma importante questão clínica para Lacan, exigindo, em diversos momentos de seu ensino, consistentes articulações teóricas, o que provocou uma reviravolta em sua própria teoria acerca da 17 psicose. Sobre o autismo, pouco se deteve, mas algumas de suas contribuições trouxeram importantes indicações para aqueles que com ele trabalha. Referimo-nos, particularmente, a dois textos. O primeiro, já mencionado, intitulado “Alocução sobre as psicoses da criança”, foi apresentado em outubro de 1967 como conclusão das jornadas realizadas sobre o tema das psicoses da criança. Segundo Lacan, uma alocução improvisada para homenagear Maud Mannoni, organizadora do evento. O segundo texto, por sua vez, intitula-se “Conferência em Genebra sobre o sintoma” (1975). Nos seus poucos, porém preciosos comentários acerca do autismo, Lacan o aproxima da esquizofrenia. Na conferência sobre o sintoma em Genebra, Lacan indica o ponto de aproximação ao dizer que: “Se trata de saber por que há algo no autista ou no chamado esquizofrênico, que se congela” (LACAN, 1988 [1975b]:134). Ainda nesta conferência, assinala que os autistas “escutam a si mesmos”, “não se pode dizer que eles não falam”. “Que [você] tenha dificuldade em escutá-los, para dar seu entendimento ao que dizem, não impede que sejam, finalmente, personagens bastante verbosos” e também que “nem todos os autistas escutam vozes” (LACAN, 1975b:1345). Extrair desdobramentos desses comentários, demonstra-se uma posição ética para quem trabalha junto ao autista. São comentários que constituem balizamentos fundamentais para sustentar este trabalho. Os autistas são tomados como sujeitos na medida em que são afetados pelo campo da linguagem. Referimo-nos, no autismo, à hipótese de que o autista está mergulhado, mas não articulado, na linguagem. Mesmo que uma fala não seja endereçada, como é no caso dos autistas, podemos tomá-la como uma produção do sujeito. A esse propósito, Lacan avança na direção de considerar que os autistas articulam muitas coisas e que certamente temos algo a lhes dizer. Cabe aqui verificar o que eles articulam quando não nos ocupamos deles (LACAN, 1988[1975b]:134). Nossa abordagem do tema pretende se orientar situando o autismo no campo das psicoses, na medida em que, no caso do autismo, a questão que se coloca é a foraclusão do Nome-do-Pai. Mas podemos reconhecer que, neste caso, trata-se de uma forma mais grave de assujeitamento à linguagem, e também de reconhecer a particularidade da relação do autista ao significante e ao gozo. Aqui, o centro da questão é a clínica no campo da psicose e, em particular, a do autismo, que nos ensina sobre as soluções encontradas por cada autista face à foraclusão do Nome-do-Pai. Soluções, próprias e inéditas, esboçadas e apresentadas pelo próprio autista na tentativa de localizar e regular o gozo desenfreado e transbordante. 18 Desta forma, podemos identificar, no trabalho empreendido pelo autista, uma transformação daquilo que o visa, em uma possibilidade de refreamento do gozo, anteriormente experimentado como invasivo e desregrado. Lacan sublinha o reconhecimento deste trabalho ao identificar que [...] seria assim concebível como contornando o furo cavado no campo do significante pela foraclusão do Nome-do-Pai. É em torno desse buraco em que falta ao sujeito o suporte da cadeia significante [...] que se trava toda a luta em que o sujeito se reconstrói (LACAN, 1998[1958]:570). No caso do autismo, identificamos aí uma luta para constituir-se sujeito. O que gostaríamos de ressaltar, com esta passagem lacaniana e com o que a clínica da psicose e do autismo testemunha, é que os fenômenos próprios a esses quadros clínicos ganham o estatuto de um trabalho, esvaziando qualquer tentativa de se estabelecer uma abordagem de cunho deficitário. Iniciaremos este capítulo com uma breve leitura dos textos de Leo Kanner (1943) e de Hans Asperger (1944). Kanner descreve fenômenos que, posteriormente, foram reunidos sob o nome de Síndrome do Autismo Infantil Precoce. Ato inaugural que trouxe à luz a experiência radical de algumas crianças imersas na escuridão do anonimato. Ele conta suas histórias, extrai suas particularidades e retrata a raridade de suas características. Coloca em movimento uma clínica que até então conhecia apenas a escuridão dos porões da debilidade (BERCHERIE, 1992). Esta clínica vai motivar e incentivar estudos e pesquisas sobre essa tão estranha criança. Contemporâneo a Kanner, Hans Asperger encontrará, em seu trabalho clínico, crianças cujas características se assemelham às descritas por Kanner, mas que diferem em aspectos importantes. Por exemplo, estas crianças não se apresentavam tão retraídas ou alheias como as descritas por Kanner e muitas delas desenvolviam, de forma precoce e do ponto de vista gramatical, uma linguagem correta. A ausência da “desintegração da personalidade” entre os sintomas das crianças com psicopatia autística será decisiva para Asperger estabelecer uma diferenciação com o quadro das esquizofrenias. Na sequência do capítulo, abordaremos o conceito de foraclusão do significante Nome-do-Pai, o qual implica o retorno, no real, daquilo que foi foracluído no simbólico. Finalizaremos o capítulo introduzindo o caso de André, naquilo que nos permitiu levantar e interrogar a construção do objeto autístico e sua relação com as diversas 19 modalidades no trabalho de localização e circunscrição de gozo, como possibilidades de seu refreamento, que se apresentava de forma excessiva. O caso de André em seu tratamento conceitual será apresentado no último capítulo. 1.1 – O AUTISMO DE KANNER E A SÍNDROME DE ASPERGER O termo autismo foi utilizado pelo psiquiatra suíço Engen Bleuler (1998[1916]), em 1911, para designar o desinvestimento em relação ao mundo exterior, ocorrendo uma perda do contato com a realidade e a impossibilidade de comunicação com os demais. Junto aos sintomas da ambivalência afetiva e dos distúrbios das associações e da afetividade derivados da dissociação psíquica, o autismo era considerado um dos principais sintomas da esquizofrenia. Associava-se a uma sintomatologia bastante abrangente da esquizofrenia, noção definida por Bleuler ao rebatizar a demência precoce de Kraepelin. No fundo, a nova nomeação baseia-se sobre a aplicação, à maior parte dos sintomas esquizofrênicos, da “psicologia dos complexos”, de Sigmund Freud, que à maneira das primeiras análises freudianas, lhes restitui um sentido na vida afetiva e na história do sujeito (SANTIAGO, 2005:45-46). O autismo era compreendido como uma expressão da “dissociação psíquica”, referindo-se ao predomínio da emoção sobre a percepção da realidade. Inventado por Havellock Ellis (1899), o termo teve como fonte a subtração de eros da expressão auto(ero)tismo. Esta expressão, mais tarde, foi retomada por Freud. De acordo com Fedida (1992), Bleuler, à semelhança de Freud, comparou o autista a um ovo protegido em sua necessidade de se autoalimentar, gerando, como consequência, uma autossuficiência. Leo Kanner, médico austríaco especialista em psiquiatria pediátrica radicado nos Estados Unidos, então Diretor do Serviço de Psiquiatria Infantil do Johns Hopkins Hospital, em Baltimore, descreveu, em 1943, uma síndrome de contornos muito particulares no quadro das psicoses infantis, a Síndrome do Autismo Infantil Precoce. Marco inaugural de um campo de práticas e investigações específicas à criança. Desde 1938, Kanner teve sua atenção dirigida a um grupo de crianças cujas dificuldades diferiam marcadamente de tudo o que havia sido descrito anteriormente. O interessante é que, ao iniciar seu artigo, intitulado “Os Distúrbios Autísticos de Contato 20 Afetivo” (1997[1943]) e publicado na revista Nervous Children, Kanner ressalta a importância de se abordar cada caso em sua singularidade, levando em consideração suas “fascinantes particularidades” (1997[1943]:111). Apesar de reconhecer diferenças individuais nos distúrbios apresentados pelas crianças na evolução de seus quadros psicopatológicos e na constelação familiar, Kanner identifica características comuns essenciais que concorrem para a nomeação de uma síndrome única. Por ele foi destacada, como característica deste quadro, a incapacidade para estabelecer relações com as pessoas e situações desde o início da vida. Em seu artigo, Kanner identifica duas características fundamentais no quadro do autismo, a saber: a solidão autística, que se manifesta na busca de um isolamento extremo, e a imutabilidade, que se evidencia na recusa de toda e qualquer modificação no ambiente externo, o que limita sobremaneira a variedade da atividade espontânea. Kanner nos fala de Juan, uma das crianças por ele avaliada. Quando seus pais preparavam a mudança para uma casa nova, Juan se mostrou alterado ao ver os homens embalando os móveis de seu quarto. Somente se acalmou quando, já na casa nova, verificou que todos os móveis foram dispostos da mesma maneira que antes. Nesse momento, acariciou os móveis, passando as mãos sobre cada um deles. (Outras crianças podem ficar extremamente angustiadas quando um objeto se quebra ou ao ver algo incompleto. Outras ainda podem exigir que o caminho de retorno de um passeio deva ser percorrido rigorosamente igual ao da ida.) Em seu ato inaugural, Kanner apresentou os distúrbios do contato afetivo, relacionando o autismo ao quadro esquizofrênico e o definindo como um alheamento extremo desde o início da vida. Kanner descreveu 11 crianças (oito meninos e três meninas), por um período de cinco anos, cujas tendências ao retraimento foram observadas já no primeiro ano da vida. Sugeriu para este quadro o termo Autismo Infantil Precoce, cujo denominador comum em todas essas crianças era uma incapacidade para relacionar-se de maneira habitual com as pessoas e as situações desde o começo da vida. A maioria destas crianças lhe foi encaminhada com o diagnóstico de debilidade mental ou com um possível comprometimento auditivo3. Algumas crianças foram 3 Marie-Christine Laznik-Penot, em seu livro Rumo à Palavra: três crianças autistas em psicanálise (1997), desenvolve a ideia de que há uma estreita relação entre a ausência de uma forma muito particular da mãe em falar com seu bebê – o “estilo manhês” (Mehler e Dupoux, 1990:214) – e a aparente surdez das crianças autistas. Estas crianças demonstram uma surdez específica à voz humana, ao passo que reagem a outros ruídos produzidos por objetos mecânicos. 21 consideradas fracas de espírito ou esquizofrênicas, idiotas ou imbecis4. Mesmo que a maioria destas crianças tenha recebido tal diagnóstico, Kanner registra que elas eram “dotadas de boas potencialidades cognitivas. Todas têm fisionomias notavelmente inteligentes” (KANNER, 1997[1943]:165). Seus pais as descreviam como autossuficientes, como se numa concha, reagindo como se as pessoas não existissem, parecendo ignorá-las. “As histórias dos casos indicam invariavelmente a presença, desde o início, de uma solidão autística extrema, e que, sempre que possível, se fecha a tudo o que chega à criança do exterior” (KANNER, 1943:768/9). Kanner irá tomar este ponto como fundamental para a distinção entre o autismo e a esquizofrenia infantil. O que se observava na esquizofrenia infantil era o fato de que as crianças estabeleciam relações e vínculos até uma determinada idade, quando, então, se desencadeava algo da ordem da psicose e esse vínculo era interrompido. Já isto não ocorria com a criança autista, cujo vínculo, desde o início, não se estabelecia. O autismo se distancia da esquizofrenia infantil no que Kanner o define como uma perturbação inata do contato afetivo, uma incapacidade, por parte da criança, para constituir biologicamente esse contato. Segundo a descrição de Kanner, na criança autista podem ser observadas tanto uma ausência de movimentos antecipatórios quanto de movimentos de ajustamento à pessoa que a sustenta. Lembro-me de uma criança, um menino de três anos, que permanecia rigidamente imóvel ao ser colocado no colo. Só muito tempo depois, já com seu tratamento em andamento, foi possível para ele ser carregado no colo sem que seu corpo se mantivesse rígido, inflexível. Também são frequentes, nesses casos, os movimentos ritualizados, a utilização de maneira estereotipada dos objetos, os quais são manipulados de forma repetitiva. O interesse por movimentos circulares é grande. Os distúrbios da linguagem também estão presentes na descrição de Kanner. A linguagem pode não se desenvolver, como no caso do mutismo. Quando a linguagem é adquirida, o seu conteúdo é muito pobre, não tendo valor de comunicação. Destaca-se a ecolalia, distúrbio de linguagem característico da criança autista. Kanner com precisão particularizou as características da linguagem desta criança, salientando que as palavras “eu” e “sim”, na grande maioria dos casos, estão ausentes. Com frequência, ocorre a inversão pronominal, quando as palavras “você” ou “tu” são utilizadas no lugar do “eu”, 4 Segundo Paul Bercherie (2001[1983]), estes são conceitos utilizados na classificação diagnóstica no período que compreende os três primeiros quartos do século XIX. 22 ou seja, sem inversão da mensagem, uma vez que estes pronomes são repetidos exatamente como são ouvidos. Este fenômeno persiste até a idade de 6 anos, quando a criança aprende a falar de si na primeira pessoa, passando a se dirigir aos outros na segunda. Mas, uma vez ou outra, a criança se refere a si na terceira pessoa. Para Kanner, estas crianças repetem ecolalicamente as palavras que ouvem, mas isso não significa que estejam atentas quando alguém lhes dirige uma palavra. É necessário repetir diversas vezes para poder receber alguma resposta. Em função disso, sete das 11 crianças foram consideradas surdas ou com alguma dificuldade auditiva. Mas a clínica nos revela que a desatenção dessas crianças é apenas aparente. Elas nos dão mostra de que estão bastante atentas ao que acontece ao seu redor, haja vista sua reação diante de qualquer demanda. Essas crianças não são indiferentes à presença do Outro. Um adolescente autista de alto nível se interessa por um jogo de perguntas e respostas, mas logo avisa, “eu não sou bom de respostas” (sic). É possível ver um outro autista atender, a sua maneira, ao que lhe foi pedido, por mais que, inicialmente, ele demonstre não entender o que foi solicitado, e sua resposta venha com horas ou até dias de atraso. A inflexibilidade da linguagem também está presente, quando a criança constrói um sentido rígido, sem possibilidade de deslizamento para a construção de outros sentidos. Das 11 crianças observadas por Kanner, três nunca chegaram a falar. As outras oito crianças falavam, mas não conseguiam estabelecer uma conversa com as outras pessoas. Em seu artigo, Kanner nos faz observar a função de comunicação da linguagem, ao registrar que não havia nenhuma diferença importante entre as oito crianças “falantes” e as três “mudas”. Foi possível escutar de uma criança não falante a repetição silenciosa de algumas palavras, apenas com os lábios. Há nelas uma necessidade poderosa de não serem perturbadas. Tudo o que é trazido para a criança do exterior, tudo o que altera seu meio externo ou interno, representa uma intrusão assustadora (KANNER, 1997[1943]:160). A primeira intrusão é a alimentação. Estas crianças recusavam a comida como uma forma de rejeição do que vinha do mundo exterior, o que acarretava graves distúrbios alimentares. Ruídos fortes e objetos em movimento constituem uma outra intrusão, desencadeando uma reação de pânico e horror. Kanner constata que não são os 23 movimentos e os barulhos em si que despertam pavor, mas o “fato de que o ruído e o movimento se introduzem ou tentam introduzir-se no isolamento da criança” (:161). Kanner observa que as crianças por ele avaliadas não apresentavam nenhuma dificuldade em nomear os objetos que lhes eram apresentados. Os pais relatavam que, muito precocemente, seus filhos haviam aprendido a repetir diversos tipos de listas, como a relação dos presidentes, ou o alfabeto na ordem direta e inversa. Mas apenas “diziam nomes”, sem nenhum intuito de transmitir uma mensagem aos outros. Esta habilidade demonstrava uma excelente capacidade de memorização decorada associada à incapacidade de utilização da linguagem de uma outra maneira. Também eu recebi para tratamento crianças que possuíam uma capacidade de memorização incrível, além de realizarem, com extrema facilidade, a proeza de indicar em que dia da semana cairia uma determinada data de um ano bastante longínquo. O pai de uma dessas crianças o considerava superdotado, e sua mãe, certa vez, comentou com orgulho que seu filho havia acertado quase todas as respostas dos testes psicológicos que lhe foram aplicados. A única resposta que havia errado se dera de forma proposital. O contato com as pessoas é bastante particularizado para essas crianças, que se relacionam como se as pessoas não existissem ou não passassem de objetos de um mobiliário, ou fossem apenas um meio pelo qual a criança alcança um determinado objetivo. Kanner nos lembra que a relação é muito melhor com as fotografias das pessoas, na medida em que estas não podem perturbar. Aproximar-se de um animal ou de uma outra criança era impossível, ao passo que era muito fácil demonstrar interesse e fascínio pela imagem de um determinado animal e algum afeto pela fotografia de uma outra criança. O que se evidencia na descrição de Kanner é a sua insistência em destacar o isolamento autístico e a necessidade de imutabilidade como pontos fundamentais, reconhecidos como elementos patognomônicos, que abrem caminho para a elaboração de um diagnóstico de autismo. Chama a atenção em sua descrição a particular relação que os autistas mantêm com os objetos. Os autistas demonstram um interesse muito grande por eles e, se deixados sozinhos, ficam a manipulá-los de forma repetitiva, durante horas. Na clínica, vemos muitas crianças autistas que não se separam de forma alguma de um objeto, alguns encontrados ali e outros achados acolá, desde que não ameacem o isolamento a que se encerram. Uma tampa de caneca, uma pequena folha encontrada no jardim, um pedaço de um brinquedo avistado em um canto da sala. Lembro-me de uma 24 criança que, ao mesmo tempo que conseguia fazer girar um prato ou uma tampa redonda de uma caixa, movimentava seu corpo para frente e para trás seguido de um movimento frenético de seus braços, além de emitir um som gutural que não correspondia, necessariamente, aos fonemas da língua. Outra criança, lembro, era capaz de permanecer longos períodos girando em torno de seu próprio corpo. É reconhecida a genialidade de Kanner quando delimita uma patologia própria da criança e distinta da do adulto. Trata-se do marco inaugural de um campo de práticas e investigações específicas à criança. Desconhecendo os trabalhos americanos de Kanner, no ano de 1944 em Viena, o médico austríaco Hans Asperger descreveu uma síndrome a partir da observação de quatro meninos. Este grupo de meninos apresentava uma sintomatologia semelhante ao quadro da síndrome autística, tendo como traço característico o retraimento social e afetivo. Ele identificou comportamentos e habilidades comuns entre estas crianças, os quais concorreram para determinar o quadro patológico definido por psicopatia autística. Asperger, por um período de dez anos, observou centenas de crianças maiores de 11 anos. Ao passo que as crianças observadas por Kanner não passavam de 11 anos de idade. A descrição desta síndrome foi feita em um artigo intitulado “Die 'Autistischen Psychopathen' im Kindesalter5”, submetido, em 1943, à revista científica Archiv fur Psychiatrie und Nervenkrankheiten6, que o publicou no ano seguinte. Tratava de crianças com dificuldades para estabelecer relações sociais desde tenra idade. Apesar da semelhança no que se referia à tendência ao isolamento, para Asperger estas crianças distinguiam-se de crianças esquizofrênicas por não apresentarem uma desintegração da personalidade; não eram crianças psicóticas, mas crianças que apresentavam um maior ou menor grau de psicopatia. Asperger identificou que estas crianças mantinham uma atenção bastante restrita em um determinado assunto, demonstrando interesses especiais por campos variados e de forma por vezes original. Descritas como excêntricas, as crianças com este diagnóstico eram obcecadas por assuntos complexos, como música, astrologia, matemática etc. Por exemplo, algumas crianças possuíam um jeito muito particular de realizar cálculos na matemática. Eram boas na gramática e tinham bom vocabulário. 5 “A Psicopatia Autista na Infância”. Arquivos sobre Psiquiatria e Doenças Nervosas. O artigo de Asperger foi publicado no número 117, páginas 76-136. 6 25 Asperger as chamava de “pequenos professores”, por possuírem grande habilidade para discorrer detalhadamente sobre seus assuntos favoritos. Apesar desta habilidade, Asperger observou que não dirigiam a atenção ao seu interlocutor. Uma das crianças por ele tratada tinha um olhar particularmente distante. As dificuldades de comunicação estavam presentes neste grupo de crianças. A fala, na maioria das vezes, era bastante repetitiva e formal. Estas crianças usavam palavras que não eram próprias às suas idades. Para falar, usavam frequentemente uma forma pedante e frases com construções rebuscadas. Devemos lembrar que todas as crianças observadas por Asperger falavam. Asperger identificou que, ao longo do desenvolvimento da criança, certas características próprias à psicopatia autística poderiam predominar ou retroceder, de forma que as dificuldades e os problemas enfrentados tenderiam a mudanças consideráveis. Entretanto, os aspectos que lhe eram essenciais permaneceriam inalterados. No que se refere à evolução do quadro, Asperger mostrava-se mais otimista do que Kanner. Segundo ele, se algumas crianças apresentassem a capacidade intelectual preservada, certamente elas conseguiriam alcançar uma carreira profissional. Muitos poderiam se dedicar às ciências abstratas. O artigo de Asperger permaneceu desconhecido por muitos anos, justamente por ter sido escrito em língua alemã e publicado durante a Segunda Guerra Mundial, o que restringiu sobremaneira a sua circulação no meio científico. Foi somente em 1991, a partir da tradução inglesa realizada por Uta Frith, que o trabalho de Asperger ganhou notoriedade científica, o que permitiu uma ampla difusão e conhecimento dos resultados do estudo sobre a psicopatia autística. 1.2 – O AUTISMO E A FORACLUSÃO DO NOME-DO-PAI Deixemo-nos guiar pela afirmação de Lacan, em “Alocução sobre as psicoses da criança” (1967), de que, no caso do autismo, trata-se de uma forma mais grave de assujeitamento à linguagem. Acreditamos ser importante abordar a particularidade da relação do autista ao significante e ao gozo. Encontramo-nos no terreno da psicose e, para tanto, é necessário entender a operação da foraclusão do significante Nome-do-Pai, ordenador da cadeia significante. Devemos lembrar que, a partir da análise dos elementos significantes do discurso 26 delirante de Schreber7, Lacan lançou mão da construção do conceito de foraclusão, o qual conferia à psicose uma causalidade psíquica significante distinta da envergadura organicista proposta pela psiquiatria da época para explicar os fenômenos da psicose. Para Lacan (1998[1958]), o Nome-do-Pai é o significante que substitui o significante enigmático do Desejo da Mãe, promovendo a significação fálica no campo do Outro. Na psicose, esta operação simbólica encontra-se abolida. É o fracasso da metáfora patena que irá conferir à psicose a sua condição essencial (:582). Foraclusão é um conceito forjado a partir da Verwerfung de Freud. Foi tomado de empréstimo, por Lacan, da terminologia jurídica, onde é sinônimo de prescrição, de algo que perde a validade por não ter ocorrido nos prazos prescritos em lei. O mesmo ocorre nas psicoses, em que algo é jogado para fora da possibilidade de simbolização, ou, melhor dizendo, é foracluído do simbólico, retornando do lado de fora, na realidade, sob a forma de delírios e alucinações. O ensino de Lacan na década de 50 caracterizou-se prioritariamente pela abordagem da estrutura da linguagem, a partir das relações do sujeito com o significante e de seu grande interesse pelo estudo das psicoses, o que o levou a realizar uma análise meticulosa do discurso delirante do presidente Schreber. Datados desta época, o seminário sobre “As Psicoses” (1955-56) e o texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1957-58) constituem duas grandes elaborações teóricas, posteriores ao seu estudo inaugural sobre o tema em sua tese de Doutorado, intitulada “Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade” (1932). Neste período, conhecido como o primeiro tempo do ensino de Lacan, as formulações tinham como referência principal o registro simbólico, e as elaborações em torno da psicose tinham a neurose como paradigma da constituição subjetiva. A psicose era concebida a partir da ausência da operação edipiana que estrutura a neurose. No ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-doPai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica (LACAN, 1998 [1958]:564). 7 Schreber escreveu um livro intitulado Memórias de um doente de nervos. Foi a partir da leitura e da análise dos relatos autobiográficos contidos neste livro que Freud, em 1911, construiu as principais elaborações teóricas sobre a psicose, onde irá conferir ao delírio um estatuto de uma tentativa de cura. Foi a partir da análise freudiana que Lacan realizou seu trabalho. 27 Na análise do caso do “Homem dos Lobos” (1918 [1914]), Freud apresenta o termo Verwerfung ao investigar um fenômeno de exclusão específico da castração, a partir do relato de um episódio de alucinação, no qual identifica uma cena traumática excluída da história do sujeito, como se jamais houvesse existido. O que coloca em cena algo da ordem do real, algo da ordem do impossível de se dizer. Segundo Maleval, Freud “indica a existência de um material inconsciente excluído de uma forma tal que, ao contrário do que ocorre no recalque, torna impossível sua reapropriação” (MALEVAL, 2002:51). É da equivalência desse termo que Lacan vai propor o termo foraclusão do significante primordial Nome-do-Pai para definir a estrutura psicótica, enquanto distinta da neurose. É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose (LACAN, 1998 [1958]:582) Lacan (1955-56), fazendo uso de uma metáfora, sublinha que o significante Nome-do-Pai, no registro da neurose, é o que constitui a estrada principal para a qual convergem as vias em torno de um sítio “que polariza, enquanto significante, as significações” (:328). A inscrição no Outro do significante Nome-do-Pai que instaura a lei, mediante a metáfora paterna, é a operação que caracteriza a neurose. Mas o que ocorre quando esta estrada principal não existe, sendo necessário usar estradas vicinais para ir de um ponto a outro? Ocorre que o significante fundamental não funciona, pois se encontra foracluído, e, neste caso, estamos diante da falta de um significante. Trata-se, aqui, da Verwerfung, ou seja, da rejeição de um significante primordial, mecanismo fundamental que se encontra na base da psicose, a qual se caracteriza, fundamentalmente, por ser “um processo primordial de exclusão de um dentro primitivo, que não é o dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo de significante” (1985 [1955-56]:174), pois “o que foi rejeitado do simbólico reaparece no real” (:57). Freud já havia nos alertado quanto a isso, por ocasião da análise de Schreber (1911), quando abordou a existência de uma defesa mais enérgica e eficaz nos casos de psicose. Para ele, “aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora” (FREUD, 1975 [1911]: 95). 28 Nesta perspectiva, sem o lastro paterno e, portanto, sem a referência da significação fálica, ao sujeito psicótico são reservados os efeitos da exclusão do Outro enquanto lugar da lei simbólica. Efeitos de gozo que testemunhamos, na clínica, como fenômenos próprios à psicose, na medida em que aquilo que se encontra sob a manobra da Verwerfung terá outro destino daquilo que encontra expressão através das formações do inconsciente, próprias à neurose (LACAN, 1985 [1955-56]:21). Diogo (2008) lembra que, por fixar a significação fálica, interditar o gozo e introduzir o desejo, este operador simbólico constitui a solução típica que separa o ser falante e o Outro real. Este último passa a ter o estatuto de Outro simbólico, o que possibilita a extração do objeto a (DIOGO, 2008:10) O cenário significante do Nome-do-Pai na teoria lacaniana se modifica e dá lugar, nos anos 70, à formulação da tese da pluralização do Nome-do-Pai responsável pelo enodamento dos registros Real, Simbólico e Imaginário. A função paterna está destinada e circunscrita à função de nomeação e de amarração dos três registros, condição necessária para a constituição da realidade psíquica. Ao que chegamos, então, é que, para demonstrar que o Nome-do-Pai nada mais é que esse nó, não há outro modo de fazê-lo senão se os supondo desatados. [...] A partir daí, qual a maneira de atar essas três consistências independentes? Há uma maneira, que é esta, a que chamo de Nome-do-Pai. É o que faz Freud e, ao mesmo tempo, reduzo o Nome-do-Pai à sua função radical, que é a de dar um nome às coisas, com todas as conseqüências que isto comporta, até o gozar notadamente (LACAN, lição de 11/03/75).8 Nesta direção, o Nome-do-Pai não mais será o único e exclusivo significante que terá como função o atamento dos três registros; outros significantes poderão funcionar como operadores desta função. Sendo assim, o pai é uma função que pode ser ocupada 8 “Alors, ce à quoi noms venons, c'est que pour démontrer que le Nom du Père, ça n'est rien d'autre que ce noeud, il y a pas d'autre façon de faire que de les supposer dénoués. [...] Et alors, quelle façon, ce que vous avez, qui est là, quelle façon de les nouer, de les nouer d'un rond qui, ces trois consistances, indépendantes, les noue? Il y a une façon qui est celle-là, celle-là que j'appelle du Nom du Père. C'est ce que fait Freud, et du même coup, je réduis le Nom du Père à sa fonction radicale qui est de donner un nom aux choses, avec toutes les conséquences que ça comporte, parce que ça ne manque pas d'avoir des conséquences. Et, jusqu'au jouir notamment, ce que je vous ai indiqué tout à l’heure.” Lição de 11 de março de 1975 do “Seminário XXII - R.S.I.”, 1974-75, p. 105. 29 por outros significantes. Ele mesmo comparecerá como um significante suplementar, enquanto um quarto nó, na condição de uma suplência indispensável no enodamento (LACAN, 1974-75:32). A clínica dos nós coloca em cena, a partir da noção da inconsistência do campo do Outro e da teoria das suplências paternas, uma clínica essencialmente das modalidades de tratamento do retorno de gozo pelo significante. Estamos diante de “uma clínica das modalidades de gozo” (ZENONI, 2000:42), ressituando as estruturas clínicas a partir dos impasses que se apresentam para todos os sujeitos falantes diante da impossibilidade de tudo simbolizar. Nesta perspectiva, as soluções encontradas pelo sujeito psicótico não serão mais tomadas como a consequência negativa de uma falta, mas em uma vertente que positiva as respostas, as soluções singulares para a localização do gozo. Nossa abordagem do tema se orienta pelo atrelamento do autismo ao campo das psicoses, entendendo que o que está em jogo na defesa autística é a não inscrição do Nome-do-Pai. Trabalhamos com a hipótese de que, por falta da mediação do Nome-doPai, garantida pela operação da metáfora paterna, a criança autista não constrói um envelopamento simbólico do lugar de objeto do Outro; lugar em que todo ser falante se encontra no fantasma materno. A carta de Lacan a Jenny Aubry (LACAN, 1969) nos faz avançar, pois nos permite examinar a posição da criança em relação ao objeto de gozo e, em particular, o lugar de onde a criança psicótica responde. Nesse caso, a criança vem saturar, como objeto, a falta que especifica o desejo da mãe. Sem a mediação paterna, atrelada à significação fálica, a criança é capturada no fantasma materno. Nesse sentido, a resposta da criança é a de realizar, encarnar, com seu próprio corpo, o objeto que satura a falta materna. Posição distinta daquela da criança neurótica, que, com seu sintoma, vem revelar a verdade do casal parental. Aqui a criança está referida ao falo como significante da falta. Lacan nos fala que este é o caso mais complexo (por estar articulado à metáfora paterna), mas também bastante acessível às intervenções. Lacan foi o primeiro a sublinhar a importância teórica do objeto transicional9 de Winnicott em “Alocução sobre as psicoses da criança" (1967): “não é que este objeto preserva a autonomia da criança, mas se ela serve ou não de objeto transicional para 9 O conceito de objeto transicional, postulado por Winnicott (1975), situa um objeto cuja natureza é da ordem de uma possessão, não é um objeto interno nem externo, mas que permite a criança suportar a separação da mãe. 30 a mãe” (:366). Sendo assim, o corpo da criança corresponde ao objeto a e não a um objeto transicional. Com o mito da relação da criança com sua mãe colocado em suspenso por Lacan10, ele destaca que é o objeto a que produz uma elisão entre mãe e criança, mas em sua dimensão de subtraído, assegurando que o lugar que a criança ocupa na relação com a mãe revelará a sua estrutura, caso ocupe o lugar de objeto real na fantasia materna ou de objeto causa de desejo. 1.3 - O AUTISTA E A CONSTRUÇÃO DE SEUS OBJETOS: O CASO ANDRÉ Na clínica do autismo, não é nada incomum depararmos com a questão do objeto. Percebemos que os autistas estão sempre às voltas com algum objeto, que, de uma maneira ou de outra, desperta o seu interesse. Os autistas nos ensinam que o objeto não deve ser negligenciado no trabalho clínico com eles. De fato, muitos autistas sempre trazem perto de si objetos os mais diversos. Alguns não se separam de um pedacinho de pano ou de um fio de linha de lã. Outros utilizam e constroem objetos mais complexos, imprescindíveis em suas circulações no cotidiano familiar ou no lugar de tratamento. Para estar entre os outros, é necessário estar com seus objetos. Entendemos que o uso destes objetos não é aleatório e tampouco desprovido de lógica. Parece-nos que há um trabalho realizado pelos autistas no que se refere ao tratamento dado aos objetos. Um trabalho de regulação do gozo e, em muitos casos, o uso do objeto pode vir a contribuir para uma saída do fechamento autístico. Sustentamos, nesta dissertação, a posição de que há uma lógica neste trabalho. Verificamos, na singularidade de cada sujeito, a lógica quanto ao uso do objeto e de suas funções, na medida em que entendemos que o tratamento dado ao objeto funciona como uma modalidade de fixação do gozo e revela o modo de gozar do sujeito autista. Maleval (2009) afirma que o autista, através e por intermédio da construção de objetos, capta, regula e domina o excesso de gozo que se impõe a ele como devastador. Observamos, portanto, que os autistas possuem um grande apego aos objetos. No entanto, por que privilegiar o objeto na clínica do autismo? Nossa proposição é a de que esse apego se configura como uma tentativa de construir um objeto destacado do 10 Lacan, em seu Seminário “A Relação de Objeto” (1956-57:35), critica Winnicott por não colocar em evidência a noção da falta do objeto. Para ele, não há reciprocidade na relação entre o sujeito e o objeto. Do conceito winnicottiano Lacan fez uso na construção teórica da concepção inovadora de seu objeto a. Tal uso é atestado pelo fecundo diálogo estabelecido, no final dos anos 50, entre os dois. 31 corpo, a fim de promover a regulação do gozo. E os autistas inventam com seus objetos. Trata-se de um trabalho incansável de localizar, refrear e regular o gozo. Testemunhamos todo um trabalho dos autistas no que se refere ao tratamento dado ao objeto. A construção de um objeto possibilita uma via de acesso ao Outro; por meio desta invenção, o autista pode se sustentar no mundo. A escolha deste caso clínico não foi de forma alguma aleatória. O tratamento de André, que se estendeu por 16 anos, nos permitiu testemunhar a construção do objeto autístico como uma via de refreamento do gozo, que pôde se afirmar como um trabalho incessante de circunscrição e, consequentemente, de relativização daquilo que para ele se apresentava como pleno. Em particular, no caso de André, como veremos, reconhecemos que houve uma mudança em sua posição subjetiva, o que implicou certa modalização de seu gozo, a partir do trabalho de localização do gozo por intermédio do objeto. André nos mostrou uma maneira inédita de articular significante e gozo por meio do objeto. Este caso permitiu acompanhar, ao longo de muitos anos, um trabalho de construção do objeto autístico como forma de se proteger do gozo do Outro. Trata-se de um objeto que localiza uma parte de seu gozo, pois, nesta localização parcial, “ele teceu uma trama, uma rede, um espaço onde se alojar e onde alojar seu corpo”11 (MARION, 2008:135), além de operar certo tratamento da perda. Notamos, desta forma, uma passagem: da construção do objeto autístico (as fitas) como uma via de fixação do gozo, passando pela construção de seu duplo protetor em uma articulação significante mais elaborada, até o tratamento do objeto voz dando lugar à localização dada por um significante no campo do Outro, a saber: ser radialista. Ser radialista, para André, permitiu que ele fizesse uso do significante como tratamento do gozo que o avassalava, operando aí certa pacificação. Orientando-nos por seu trabalho, reconhecemos e recolhemos os efeitos da maneira muito própria de André tratar seu gozo devastador. Foi possível distinguir quatro momentos em seu trabalho. No último capítulo, apresentaremos detalhadamente cada um deles. Mas, antes, vamos à história de André. 11 “en localisant une part de jouissance, ont tissé une trame, un réseau, un espace où se loger”. 32 1.3.1 – HISTÓRIA CLÍNICA André chegou ao serviço quando tinha 11 anos, trazido por sua mãe, que se queixava de que ele era muito agressivo na escola e com ela.12 Quando estava na rua, parava em um ponto de ônibus, começava a gritar e a andar de um lado para o outro com as mãos para cima. Em casa, ficava mais tranquilo. Por diversas vezes, André fugiu de casa. A primeira vez foi aos 6 anos de idade, quando foi encontrado nas Lojas Americanas pegando alguns brinquedos. Um dia, André decidiu pegar um ônibus para o Grajaú, pois queria conhecer o bairro. Os pais se esforçavam para esconder o motivo das fugas, alegando que nada as motivava. Caso houvesse algum motivo, não se lembravam. Mas então o pai disse que ele só fugia de casa, nunca da escola, e a mãe, sobressaltada, falou que “nós não brigamos e nem batemos nele” (sic). André, por sua vez, afirmava que o motivo de suas fugas era os aborrecimentos que tinha em casa. Sendo que, mais tarde, ele passou a fugir da escola também. Como consequência das fugas, André repetiu a 6ª série. O pai se lamentava, dizendo que, se pudesse, levaria o filho a todos os lugares que ele desejasse conhecer. Foi com um ano e pouco de idade que os comportamentos estranhos de André foram percebidos pela mãe. À época, ela procurou diversos tratamentos, mas se decepcionou com os resultados, não levando adiante nenhum deles. Queixava-se de que ninguém explicava qual era o problema do filho. Queria saber o que ele tinha. André nasceu de parto normal e, até os 4 meses, era muito “molinho” (sic). Segundo sua mãe, isso só ocorria com a cabeça, pois “com o resto do corpo era normal” (sic). Dos 2 aos 4 anos, foi acompanhado por um neurologista em um hospital público, sendo medicado com Neuleptil13. Era uma criança que chorava muito, mostrava-se muito nervoso, agitado e só andava gritando com as mãos para cima. Aos 7 anos, foi matriculado em um centro de reabilitação, recebendo somente atendimentos de fonoaudiologia e educação física, além da escolaridade especial. A gravidez foi desejada pela mãe de André. Neste período, ela se sentia muito triste, “como se não existisse” (sic), ao ver o marido com os filhos do primeiro 12 Algumas das informações aqui apresentadas foram colhidas pela psicóloga Doralice de Araújo em entrevistas com os pais de André, quando de sua chegada no COIJ – Centro de Orientação Infantojuvenil do Instituto Philippe Pinel, em junho de 1987. 13 Neuleptil é um neuroléptico que possui propriedades antidopaminérgicas responsáveis pelo efeito antipsicótico. É indicado no tratamento de distúrbios do caráter e do comportamento, revelando-se particularmente eficaz no tratamento dos distúrbios caracterizados por autismo, negativismo, desinteresse, indiferença, suscetibilidade, impulsividade, oposição, hostilidade, irritabilidade, agressividade, reações de frustração, instabilidade psicomotora e afetiva, desajustamentos (conforme bula). 33 relacionamento. Entrou em profunda depressão. O marido nunca a apresentou aos seus filhos, da mesma forma que ele nunca informou a estes que havia se casado novamente e que tivera mais dois filhos. Sempre achou que os filhos do primeiro casamento não aceitariam a ideia de uma nova esposa. Os irmãos nunca se conheceram. Nas entrevistas, a mãe relata um sonho ocorrido poucas semanas antes de André nascer. Sonhou com o momento do parto e que o enfermeiro lhe comunicava que nascera uma menina com problemas, mas que a culpa não era dela e sim do pai. A mãe sempre acreditou que isso prejudicara muito André, mas não sabia muito bem como. E, em função disso, sua presença junto ao filho acabava se dando de forma muito intensa. A mãe, em uma determinada época, decidira colaborar com a escola, a mesma frequentada por André, cuidando da higiene pessoal de outras crianças. Com isso, teria maior controle sobre o comportamento do filho, o que evidenciava um gozo controlador exercido pela mãe. A mãe não trabalhava e, portanto, se dedicava exclusivamente a cuidar do filho. Os pais se queixavam da agressividade de André, das vezes em que ele tirava a roupa na rua, dos seus frequentes xingamentos. Quando contrariado, André chegou a jogar um sapato na cabeça do pai. O pai era visto pela mãe como muito rígido. Apesar de também “perder a paciência” (sic) com o filho e bater nele, ela não concordava com muitas das atitudes que o pai tomava para resolver os problemas com André. Queixavase de que ele queria que André entendesse “as coisas na marra”, tratando o filho como um adulto. André era agressivo também com seu irmão: dizia que ele era um “bobo” e batia em sua cabeça. A mãe se queixava de que André era muito “egoísta”, que não queria saber de ninguém, somente de seus interesses, que ficava trancado em seu quarto o dia inteiro, que nunca a consolava quando ela estava triste por alguma coisa. Para a mãe, às vezes ele “era muito adulto, parecia normal” (sic) e, em outros momentos, comportava-se como um neném. Até a idade de 7 anos, André encerrou-se no mutismo. Com 1 ano de idade, havia falado somente as palavras mamãe e papai. Quando queria algo, André se fazia entender apontando para os objetos. Mas sua mãe relatou nas entrevistas preliminares a informação de que, aos 5 anos, André já sabia ler e escrever. Ficava escutando o rádio e em um caderninho anotava todos os nomes dos programas, ao mesmo tempo que lia, em voz alta, tudo o que via passar pela televisão. Sua dicção era excessivamente modulada, como se estivesse recitando versos, declamando-os. A mãe se queixava de que, quando 34 iam visitar algum parente, André abria todas as gavetas à procura de papéis e livros para ler. Com folhas e caderno em punho, André ia testemunhando que, por intermédio, dos objetos, era-lhe possível falar, ao mesmo tempo que mostrava, com precisão, que o que falava não era destinado direta e exclusivamente ao interlocutor. Na creche, André teve grandes dificuldades para se adaptar à rotina, passando a frequentar uma escola especial dos 8 aos 12 anos. Aos 12 anos, saiu de casa e pegou um ônibus por conta própria, no intuito de procurar escolas do ensino regular onde pudesse se matricular. Não queria mais estudar em escola especial. Finalizou seus estudos do 2º grau numa escola do ensino regular. Graduou-se em seus estudos de informática e, com 27 anos, frequentou por dois anos um curso de música na Escola de Música da UFRJ. 1.3.2 – QUATRO MOMENTOS LÓGICOS DO TRABALHO SUBJETIVO DE ANDRÉ Na análise do caso, focalizamos a maneira inédita como André encontrou uma solução singular, como um modo de tratamento do real do gozo, quando este não se apresentava fixado pelo significante. 1- Das conexões regradas ao “chega de conversa”; 2 – A criação do duplo: Paula Madalena; 3 – Da morte das senhoras Madalenas às gravações de programas: O Radialista; 4 – Discurso de Conversa Coletiva. O primeiro constitui o momento em que André coloca em jogo o trabalho onde tudo se transformava em signo, em insígnias de gozo, aquilo que significa a si mesmo, o que não lhe permitiu uma maior mobilidade pelo mundo. Este era excessivamente regrado e regulado dentro de suas conexões muito bem planejadas e organizadas, na forma de objeto autístico regulado. Neste momento, verificamos um excelente aprendizado de André no que se refere às competências da matemática e da astrologia. O segundo momento refere-se ao trabalho de André com sua personagem Paula Madalena. Esta entra em cena como medida protetora contra a angústia de seu gozo. Paula Madalena passa a encarnar o seu duplo. Neste momento, a construção do objeto autístico ganha a dimensão de um duplo protetor que lhe permite maior mobilidade na 35 vida. É com Paula Madalena que André faz suas viagens e seus passeios, por exemplo. Aqui, podemos identificar certa regulação do gozo, anteriormente apresentado de forma desenfreada Só é possível para André falar por intermédio de Paula Madalena, fala transferida para um duplo que ganha uma dinâmica muito particular. Isto não lhe causa tanta angústia. A organização do mundo pelo autista não se dá por meio de objetos de troca regulados pela significação fálica e que se inscrevem sobre um fundo de falta, mas é justamente em torno da construção de seu objeto e, consequentemente, de tentativas de sua extração, circunscrevendo o gozo, que ele constrói o seu mundo único, inédito. Assim, chegamos ao terceiro momento, aquele que nos permitiu observar todo o avanço dado por André ao seu trabalho, agora de forma mais elaborada e complexa, em torno do tratamento de localização e fixação do gozo, proporcionando-lhe maior mobilidade em seu mundo. Foi operando uma “mobilização necessária de seu gozo” (MALEVAL, 2009), a partir das gravações de músicas e programas, que André, aos 27 anos, em um de seus inúmeros textos ulteriores, registrou: “a melhor gravação nesses 12 anos que eu tenho de existência” (sic). Lembrando que, para ele, isso era necessário para “recordar, para ter saudades” (sic). É possível inferir aqui que uma modificação em sua posição se presentificou em uma tentativa de constitui-se como sujeito? Abordamos, neste caso, a análise do tratamento dado ao objeto voz, cogitando que ser radialista, para André, circunscreveria um trabalho de localização do objeto voz, favorecendo uma condensação do gozo fora do corpo, tendo como efeito desta localização certo apaziguamento. O quarto momento refere-se ao trabalho de André, o qual avança até a escrita de seu livro intitulado “Discurso de Conversa Coletiva”, pelo qual ele nos faz testemunhar sua tentativa para construir pontos de ancoragem, de equilíbrio instável, que sustentem seu discurso verboso, para se fazer representar no campo do Outro e advir como sujeito. A partir deste momento André passou a escrever uma série de livros conferindo a sua obra o estatuto de um saber-fazer com o significante, um saber capaz de fazer emergir um gozo, efetuando um tratamento sobre ele. 36 CAPÍTULO II – SIGNIFICANTE, GOZO E LALANGUE NO AUTISMO Apontamos no capítulo anterior que, para Lacan, não há reciprocidade na relação entre o sujeito e o objeto. Como situar o autista na desarmonia estrutural que marca esta relação? Uma primeira tentativa de aproximação desta questão é a articulação entre o traumatismo e a repetição na clínica do autismo, circunscrevendo os movimentos repetitivos do autista e entendendo-os como uma tentativa de absorver o trauma. Para Freud (1920), o trauma é uma ruptura da camada protetora em decorrência do excesso de excitação que rompe as barreiras do psiquismo. Encontramos aqui as primeiras coordenadas da noção de trauma, a qual aponta para o insolúvel desencontro com a linguagem, na medida em que traumática é a própria entrada no infans na linguagem. Dessa forma, em termos de estrutura, todo ser falante é traumatizado. Todo ser falante tem que se haver com a insuficiência do simbólico em circunscrever o real que o acossa. Da mesma forma que não há possibilidade de recuperação do objeto para sempre perdido, também não há como recuperar o gozo miticamente desfrutado na experiência de satisfação. O traumatismo faz referência a um encontro faltoso com o real. No movimento de um novo retorno, o que se encontra são as coordenadas do objeto perdido e da compulsão à repetição desse encontro, onde o mundo metonímico dos objetos é estruturado por tal repetição. Lacan (1977) nos fala que “a linguagem é uma má ferramenta e é bem por isso que não temos qualquer ideia do real”14 (:5). Como o Outro não existe a priori, o sujeito não encontra respostas que o façam se sentir amparado, pois não há palavras que possam ser ditas para tudo explicar, situação vivida pelo sujeito como angústia que convoca cada um a situar os modos de tratamento do gozo. Em um estado de desamparo, resta ao sujeito construir um saber, para que seja possível a construção de um anteparo diante do real traumático, o qual implica um inassimilável para o sujeito. Trata-se aqui da construção da fantasia, pois “é em relação ao real que funciona o plano da fantasia. O real suporta a fantasia, e a fantasia protege o real” (1964:44). 14 “Le langage est un mauvais outil, et c'est bien pour ça que nous n'avons aucune idée du réel”, lição de 10 de janeiro de 1978 do “Seminário XXV - Le moment du Conclure”, 1977-78. 37 “Não há outro trauma do nascimento senão o de nascer como desejado” (LACAN, 1980:61), o que nos possibilita dizer que o ser falante nasce do desejo do Outro, ele é objeto de cuidados e libidinalmente investido pelo Outro, sendo esse encontro irremediavelmente traumático. É neste encontro que algo da opacidade deste desejo se revela. É do ponto de falta do desejo do Outro que o sujeito é convocado a perguntar: “O que queres de mim?”, o que abre caminho para sua condição de sujeito desejante. É através da interpretação dessa pergunta que o sujeito responde, no campo da neurose, com a fantasia, anteparo para o traumático: o inominável de sua condição de objeto. Mas o que acontece com a criança autista? Se não é com a fantasia, entendida como a cortina que vela o traumático, que a criança autista responde ao desvelamento de sua existência de objeto, como então situar sua resposta? Como tornar suportável o traumatismo infligido pela linguagem no corpo dos sujeitos que se excluem do campo do Outro? Verificamos que o trabalho do autista se configura como uma tentativa de circunscrever e de localizar o excesso de gozo. Partimos do pressuposto de que este trabalho se faz através dos movimentos repetitivos, ditos estereotipados, entendendo que, nesse momento, o autista já está em trabalho frente à inexistência a priori do Outro. Por não cessar de não se inscrever, este trabalho é insistentemente repetido, em um esforço infindável e sem descanso, como em um “tonel das Danaides”. Neste capítulo, examinaremos o jogo do ford-da, momento primeiro de simbolização, de articulação entre dois significantes (S1 e S2), que, em seu fundamento, constitui uma resposta da criança ao excesso traumático, encontrando na repetição uma tentativa de dominar esse excesso. Verificamos que, no autista, não se instaura a simbolização primordial e, portanto, não se constitui o par de oposição significante, impedindo a inauguração da cadeia significante. Diante disso, o que se apresenta é um enxame de significantes não articulados, o S1 desconectado do S2. Como consequência, não se opera a extração de objeto, operação que será abordada no próximo capítulo. Lacan (1992[1969-1970]) assinala que a repetição tem como fundamento um retorno do gozo; portanto, é uma repetição de gozo. Interrogamos se a repetição tão conhecida na clínica do autismo, pelos movimentos repetitivos e pela fala ecolálica, se fundamenta em uma repetição de um gozo, no real, onde o significante não remete a outro significante. Tal investigação nos ajudou a pensar que o autista, mesmo submetido 38 ao significante atestado pelo binarismo de seus movimentos (acender e apagar as luzes, abrir e fechar as portas, entrar e sair de uma sala), como tentativas de inscrever um S2 (RIBEIRO, 2005), se encontra encerrado em um gozo. Em seguida, abordaremos a noção de sujeito em uma perspectiva colocada, de forma inédita, por Lacan, no seminário “Mais Ainda” (1972-73), a saber: para além do efeito da cadeia significante, o sujeito é efeito do significante “que se situa no nível da substância gozante” (LACAN 1985[1972-73]:36). A partir da tese lacaniana de que a linguagem não se reduz apenas a ser um aparelho que mortifica o gozo, mas o vivifica, o conceito de lalangue será abordado. Desta forma, “a concepção de linguagem na obra de Lacan se modifica, uma vez que a noção de gozo adquire prioridade não sobre o significante, mas sobre a estrutura da linguagem” (BASTOS & FREIRE, 2006:112). O próprio Lacan, ao abordar o conceito de lalangue, diz se afastar do estruturalismo, pois entende que este integraria a linguagem à semiologia. (LACAN, 1972-73) Finalizaremos este capítulo estabelecendo algumas articulações com a clínica do autismo, verificando como o conceito de lalangue pode contribuir na orientação de trabalho. 2.1 – REPETIÇÃO COMO RETORNO DE GOZO No seminário “O avesso da psicanálise” (1992[1969-1970]), Lacan se apropria da indicação da clínica e da experiência para afirmar que a repetição se fundamenta em um retorno do gozo. Lembra que Freud já havia proposto que, na repetição, “produz-se algo que é defeito, fracasso” (1992[1969-1970]: 44), fracasso do além do princípio do prazer. Na repetição, ocorre o fracasso do gozo. Lacan aponta que, com relação ao que se repete, há uma perda, melhor dizendo, “na própria repetição há desperdício de gozo” (idem). Nesse seminário, Lacan se debruçará com maior empenho no desenvolvimento do conceito de gozo, partindo da repetição, da necessidade da repetição, uma vez que “há busca do gozo como repetição” (:43). O que depreendemos daí é o ponto de elaboração lacaniana do objeto como perda de gozo no próprio lugar de sua busca repetitiva. Melhor dizendo, do desperdício do gozo se deduz o objeto do desejo. 39 2.1.1 - O JOGO FORD-DA: PRIMEIRA SIMBOLIZAÇÃO No “Seminário XI”, Lacan assevera que “não se trata em Freud de nenhuma repetição que se assente no natural, de nenhum retorno da necessidade. [...] A repetição demanda o novo” (LACAN, 1979[1964]:62). Para examinarmos mais detidamente o que Lacan nos fala nesta passagem, é necessário buscar balizamentos na brincadeira, descrita por Freud em 1920, conhecida como o jogo do fort da. Trata-se do primeiro brincar de um menino de um ano e meio, apresentado em seu texto “Além do Princípio do Prazer” (1920): A criança tinha um carretel de madeira que estava enrolado com um barbante [...] jogou o carretel amarrado ao barbante, com grande habilidade, sobre a beira de sua caminha coberta, de tal modo, que este desapareceu ali dentro; disse então seu significativo o-o-o (fort) e, depois, puxou de volta o carretel pelo barbante para fora da cama, saudando então, seu aparecimento com um alegre “Da” (“aqui”) (FREUD, 1975 [1920]:115). Na leitura de Lacan (1964), este é o exemplo paradigmático de uma primeira simbolização feita pela criança. Freud refere-se a este jogo como uma grande realização cultural da criança, momento inaugural da entrada no simbólico. Consiste em uma renúncia à satisfação pulsional, uma perda de gozo, e a criança deixa a mãe partir sem qualquer protesto. Através do jogo, a criança transforma a situação sofrida em brincadeira prazerosa, o que nos leva a considerar que há uma economia de gozo e de prazer implicada no fort-da. Portanto, podemos considerar que, no fundamento do jogo, há uma resposta da criança ao excesso traumático da experiência da ausência da mãe vivida por ela, ou seja, a repetição ocorreria na tentativa de dominar esse excesso, pois algo de inassimilável sempre resta desta experiência. Lacan assinala que a criança, pelo jogo do carretel, não busca viver de maneira ativa o que sofreu passivamente em uma função de dominação, assim como também não tenta convocar, pelo grito, o retorno da mãe. Tampouco se trata da pura e simples oposição do fort e do da. Para ele, o jogo do fort-da “é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio – a borda de seu berço, isto é, um fosso, em torno do qual ele nada tem a fazer senão o jogo do salto” (LACAN, 1979 [1964]:63). É no vazio deixado pela ausência materna que “a criança exercita uma alternância significante” (LAMY, s/d, mimeo) fazendo o jogo do salto para 40 começar a encantação, o mundo da fantasia. “É com seu objeto que a criança salta as fronteiras de seu domínio” (LACAN, 1979 [1964]:63) e é também com este objeto, ao qual a oposição do par significante se aplica em ato (carretel), que se deve designar o sujeito. A este objeto Lacan dará o nome de objeto a. Nesta direção, o carretel não poderia ser considerado como a mãe reduzida a uma bolinha, mas como “alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele, que ele ainda segura” (idem). O que está em jogo no fort-da é que o carretel “tanto pode representar o objeto que se perde da criança, quanto o que se destaca da mãe” (LAMY, s/d, mimeo). Este jogo consiste na simbolização primordial da ausência da mãe, em cuja operação significante se constitui o par de oposição presença/ausência. Na medida em que o fort e o da são os significantes com os quais o sujeito se faz representar no campo do Outro, o jogo do carretel se constitui em uma operação em torno da perda de um objeto. Entendemos que se trata de situar, neste jogo, o tratamento dado ao objeto. Lacan (1964) chamará nossa atenção para isso quando afirma que, aqui, a criança se exercita com o objeto a, na medida em que nenhum sujeito pode apreender a articulação significante radical do jogo do fort-da. É preciso a ajuda de um carretelzinho. Nesse momento, introduz-se uma hiância, a qual cria um intervalo de articulação entre dois significantes. Inscreve-se uma fenda no campo do Outro, e o sujeito, nesse momento, aí representado, está ausente da cadeia e dividido pelo significante. Este objeto parece ser [...] uma espécie de “objeto transicional”, pois opera uma transição, não tanto entre a criança e a mãe, mas entre o objeto perdido e o objeto fálico. Mais tarde, as crianças abrem mão deste objeto, deixamno cair como resto, não mais lhe dando importância. Ele fica assim como a marca do perdido, possibilitando o investimento numa série de outros objetos. Estes substitutos constituem os objetos fálicos, que se caracterizam justamente por serem marcados pela falta daquele objeto primeiro. (LAMY, s/d, mimeo) Constatamos que, para os autistas, a simbolização primordial, que inaugura a cadeia significante, não se instaura e, como consequência, na ausência da operação de extração do objeto, corpo e significante não se encontram eliminados do excesso de gozo. 41 A dimensão do prazer constitui um problema para os autistas. O prazer não faz barreira ao gozo, pois somente “o princípio do prazer é o freio do gozo” (LACAN, 2003[1967]:362) e o que ele “mantém é o limite em relação ao gozo” (LACAN, 1992[1969-1970]:44). Com a ausência desta barreira, o gozo não é conduzido às bordas corporais como efeito da modulação significante, de modo que não se produz um ordenamento do gozo e sua regulação encontra-se suprimida. Para Lacan, “há algo no autista, ou no chamado esquizofrênico, que se congela” (LACAN, 1988[1975b]:134). O que se congela no autista é o primeiro significante, o S1, que não o representa para um outro significante, o S2, não instaurando a cadeia significante. Se ford e da são os significantes, por excelência, representacionais do sujeito no campo do Outro, o jogo do carretel, descrito por Freud (1920), representa a operação em torno da perda de um objeto e a inauguração da cadeia significante. É sob o pano da ausência desta operação que encontramos os diversos e inúmeros fenômenos próprios ao autismo. No caso do autismo, as primeiras oposições significantes não se constituem e a simbolização primordial (Ford-da) não se instaura. Disso resulta a não constituição do par de oposição presença-ausência (RIBEIRO, 2003), eliminando “o primeiro elemento de uma ordem simbólica” (LACAN, 1995[1956-1957]:68). Estamos diante de um enxame de significantes não articulados, sem ordenamento, sem estabelecer cadeia – o S1 encontrando-se desconectado do S2 – e onde a operação de perda de objeto não se realiza. O S1 opera de forma isolada, sem endereçamento para outro significante e sem que o sujeito seja aí representado, o que acarreta a ausência de efeito de sentido e, consequentemente, a presença de gozo deslocalizado, desregulado. Se a operação simbólica de extração de objeto está ausente no autismo, verificamos um transbordamento de gozo no corpo e no significante, situando o gozo aquém do Outro da linguagem. Corpo e gozo não se apresentam separados pela linguagem. A clínica com o autista e com o psicótico é farta em exemplos deste tipo de transbordamento. Vejamos dois deles. Suzana é uma adolescente que sofre com os efeitos deste transbordamento. Em uma das entrevistas, sua mãe nos informa que Suzana, além de demorar muito em seus banhos, passa quase o dia inteiro tirando e colocando suas roupas, para, em outros momentos, rasgá-las e jogá-las pela janela afora. Quando está sem roupas, Suzana enrola seu corpo em uma toalha e, na cabeça, coloca uma calcinha. É desta forma que permanece, por longos períodos, a andar pelos exíguos cômodos da casa e a se olhar no 42 espelho. Certamente, deste pequeno fragmento, podemos extrair outras consequências próprias da posição do autista. Faremos tal exercício ao longo deste trabalho de escrita. Outro adolescente, Marcos, nos foi encaminhado por sua psicóloga para participar de uma proposta de trabalho que visa recortar a possibilidade de inserção social, utilizando para esse fim recursos da comunidade15. Ao escutar o significante “projeto”, Marcos mostrou-se bastante resistente, inviabilizando sua participação neste trabalho. Alegava que sabia muito bem o que significava a palavra “projeto”, pois entendia que trabalhos como esses se dirigiam às temáticas sobre violência, menores abandonados e exploração do trabalho infantil e que ele não estava lá para ser explorado. Percebemos que o significante “projeto”, escutado e pinçado por Marcos do enxame de S1, se apresenta pleno de gozo, operando de forma isolada, desatrelado de seu endereçamento para outro significante. Veja-se, novamente, a questão da repetição na clínica do autismo. Se por um lado a dimensão do prazer nos autistas constitui um problema, por outro verificamos que a repetição para eles se manifesta de modo imperativo, como um excesso do qual não há meios de fuga. Mas também percebemos que é possível para eles construir, através do tratamento, e mesmo que de um modo precário, recursos para se subtrair a esse excesso. E não é disto que trata o fragmento clínico de Suzana? Retornemos a ela. Nos trabalhos semanais realizados por ela nas oficinas do NIJ16, Suzana passa a maior parte de seu tempo ensaboando e enxaguando um pequeno objeto de pelúcia, além de cortar e recortar partes dos corpos de figuras femininas para colá-las em uma folha de papel. Constatamos que o apego a algum objeto constitua uma tentativa de construir um objeto fora do corpo como uma maneira de regular o gozo. O autista trabalha arduamente em uma tentativa de extrair o objeto, mesmo que muitas vezes de forma radical, como nas mutilações no real do corpo. 15 Refiro-me ao Projeto de pesquisa intitulado “Dispositivo clínico ampliado: criança e adolescente psicóticos em direção ao laço social e à inclusão escolar”, realizado nos arredores do campus da UFRJ. Este projeto se desenvolve através do convênio entre o Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Núcleo Infantojuvenil (NIJ) do Instituto Municipal Philippe Pinel. 16 Núcleo Infantojuvenil do Instituto Municipal Philippe Pinel (Rio de Janeiro) 43 2.2 – O SIGNIFICANTE COMO CAUSA DE GOZO E LALANGUE NA CLÍNICA DO AUTISMO Novas formulações na teoria lacaniana irão contribuir para colocar em outra perspectiva a noção de sujeito, o que implica em um ajuste fino da noção de significante da linguística estrutural, construída, na década de 50, para estabelecer modos de regulação do gozo pelo significante. Aqui, encontramos uma disjunção entre o significante e o gozo e a primazia do simbólico sobre o imaginário. O aforisma do “inconsciente estruturado como linguagem” (LACAN, 1957/1998) sedimenta a noção lacaniana de estrutura do sujeito, um sujeito representado pelo significante no interior de um conjunto estrutural. Foi nesta época, por ocasião de um colóquio em Royaumont sobre o tema “A dialética” (1960), que Lacan introduziu pela primeira vez a conhecida fórmula que define o significante que faz do sujeito um elemento em uma estrutura: “Um significante é o que representa o sujeito para outro significante” (LACAN, 1998[1960]:833), afirmando que “uma estrutura é constitutiva da prática a que chamamos psicanálise” (:807). Foram dois importantes escritos lacanianos sobre a psicose. No primeiro texto, intitulado Seminário “As psicoses” (1955-56), ao falar sobre sua recusa em dar um diagnóstico de psicose a uma paciente com o comportamento bastante difícil, Lacan afirma que se deve “exigir, antes de dar o diagnóstico de psicose, a presença desses distúrbios [da linguagem]” (:109). Mais adiante reafirma que “para que estejamos na psicose, é preciso haver distúrbios de linguagem, e é essa, em todo o caso, a convenção que lhes proponho adotar provisoriamente” (:110). Já no segundo texto, “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958), ele é mais enfático: “Ao se reconhecer o drama da loucura, põe-se a razão em pauta, sua res agitur, porque é na relação do homem com o significante que se situa esse drama” (:581). A entrada de um elemento simbólico, o Nome-do-Pai, organizador da estrutura da linguagem para Lacan, é de uma importância essencial nesse momento. Na aula intitulada “A Jacobson”17, no Seminário “Mais ainda” (1972-73), Lacan apresentará uma noção inédita de significante, a qual passará a incluir a substância gozante. E pergunta: “Sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo? Como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a sua causa material?” 17 Roman Jakobson (1986-1982) linguista russo. Lacan, em seu período estruturalista, muito se apoiou nos trabalhos deste pensador. 44 (LACAN, 1982 [1972]:36). Para então concluir: “o significante é aquilo que faz alto ao gozo” (idem). Segundo Lacan, o sujeito jamais deixará de ser efeito do significante que desliza em uma cadeia de significantes (1972-73:68), assim como o inconsciente é estruturado como uma linguagem; porém, aqui, já não se trata da linguística, fundada no campo da ciência, a qual, essencialmente, exclui o sujeito. Segundo J.A. Miller (1998), trata-se de uma concepção de significante que delimita e determina o modo de gozo do ser falante. O significante, para além de representar o sujeito para outro significante, torna-se um modo de produzir e ordenar o gozo, “o significante é causa de gozo” (LACAN, 1985[1972-73]:36). Gozo não apenas do corpo, mas também gozo da linguagem, na medida em que o sujeito tem um corpo. Essa perspectiva comporta colocar em questão o próprio termo sujeito, porque o sujeito é sempre um elemento mortificado; aliás, Lacan o definiu como falta-a-ser, e é por isso que ele faz entrar o corpo vivo na psicanálise. Ele substitui o termo sujeito por falasser, que é o contrário de falta-a-ser, é o sujeito mais o corpo, é o sujeito mais a substância gozante (MILLER, 1998:101). Os escritos de Lacan, dos anos 70 em diante, privilegiam o termo falasser18 (parlêtre), o sujeito como ser falante, na medida em que todo sujeito implica um ser que fala. Uma inversão de perspectiva começa a ter início já no seminário XVII, “O Avesso da Psicanálise”, quando o simbólico é desalojado de seu lugar privilegiado, na medida em que a fala se torna veículo de gozo, não se inscrevendo mais sob a chancela da comunicação. A linguagem aparelha o gozo (LACAN, 1982[1972-73]:75) do corpo onde o ser falante é tomado como um corpo vivo atravessado pela linguagem, ele goza do corpo, lugar por excelência de gozo. No ser falante, o gozo é aparelhado, e o aparelho de que se trata é a linguagem. Aqui, Lacan introduz o real no significante, fazendo um alerta quando assinala que o significante não pode ser reduzido a ser, de maneira alguma, um suporte fonemático, ou seja, um suporte onde o significante é encarnado no fonema. Para ele, o significante deve ser estruturado em termos topológicos. Formulação já apresentada, por Lacan, em seu texto “A instância da letra no inconsciente” (1957:505). Esta virada em sua teorização permite a Lacan forjar o conceito de lalangue, que visa o gozo, em uma articulação entre gozo e significante. 18 A noção falasser aparecerá no “Seminário RSI”, nos anos de 1974 e 1975. 45 Com a introdução deste conceito, a partir dos anos 70, um novo referencial contribuirá para orientar a clínica psicanalítica com o autismo e a psicose. Não se trata de abandonar o campo da linguagem, da representação significante do sujeito. Podemos inferir que lalangue constitui “uma via possível para o tratamento do autismo e da psicose, incitando o analista a refletir sobre a política, a redefinir sua estratégia e a alargar sua tática” (BASTOS& FREIRE, 2006:121). Optamos pelo uso do termo lalangue em francês, tal como criado por Lacan, por considerar que em qualquer tradução se perderia o aspecto onomatopaico, sua característica original, sua qualidade homofônica que traz em si o efeito fonético que a palavra em francês permite. Lacan associa tal termo ao lalalá, à lalação do bebê humano. Eu escrevo lalangue porque isso quer dizer lalalá, a lalação, a saber, é fato que muito cedo o ser humano faz lalações; assim, ele só tem que ver um bebê [...].19 (LACAN, 1978 [1974b]) Foi em um lapso que Lacan, na lição de 04 de novembro de 1971, forjou o termo lalangue. Querendo se referir ao “Vocabulário de psicanálise” de Laplanche e Pontalis, Lacan acaba dizendo “Vocabulário de filosofia” de Lalande, filósofo que escreveu um vocabulário de Filosofia bastante conhecido e utilizado na França. No seminário “O Saber do Psicanalista” (1971-1972), este termo aparece a partir do acoplamento do artigo definido la com o vocábulo langue. Este conceito valoriza as homofonias, sem qualquer preocupação com a gramática. As brincadeiras infantis nos dão um bom exemplo disso. É bastante comum e de conhecimento de todos que as crianças repetem, com muito frequência, sílabas, fonemas e sons que em si mesmos não carregam nenhum sentido. Lacan afirma que lalangue “não tem nada a ver com o dicionário, qualquer que seja ele. O dicionário tem a ver com a dicção, quer dizer, com a poesia e com a retórica, por exemplo”20 (LACAN, 1971-72, aula de 04/11/1971). “É a fala antes de seu ordenamento gramatical e lexicográfico” (:101) como define Jacques-Alain Miller 19 “Je fais lalangue parce que ça veut dire lalala, la lallation, à savoir que c’est un fait que très tôt l’être humain fait des lallations, comme ça, il n’y a qu’à voir un bébé [...]”. In Italie Lacan, Milan, La Salamandra, 1978, p. 104-147. 20 “[...] lalangue n'a rien à faire avec le dictionnaire, quel qu'il soit. Le dictionnaire a affaire avec la diction, c'est-à-dire avec la poésie et avec la rhétorique par exemple”. Aula de 04 de novembro de 1971 – O Seminário – livro 19bis O Saber do psicanalista, 1971-72. 46 (2000). Este autor sublinha que o surgimento de tal conceito chega a questionar o conceito de fala, concebida, a partir de então, não como comunicação, mas como gozo. A comunicação implica o diálogo e a referência. Lalangue nada comunica. Lacan, em seu seminário “Mais, Ainda” (1972-73), destacou que “a linguagem não é somente comunicação” (:190), pois ela “é feita de lalangue” (idem), e, portanto, lalangue é primária em relação à linguagem. A linguagem enquanto articulação significante é destituída de seu sítio originário e passa a ser secundária à lalangue, que se apresenta através das homofonias, dos significantes desarticulados essencialmente ligados ao gozo. Ela, em primeiro plano, não existe, “é apenas aquilo que o discurso científico elabora para dar conta do que chamo lalangue” (:188). “A psicanálise é um certo modo de abordar lalangue” (IRMA, 1999:150). A experiência do inconsciente já mostrou que lalangue serve para coisas completamente distintas da comunicação, na medida em que o “inconsciente (...) é feito de lalangue” (LACAN, 1972-73:188), ele “é um saber, um saber-fazer com lalangue” (:190). Lacan nos alerta que “o que se sabe fazer com lalangue ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de linguagem” (idem). A experiência do inconsciente mostra que lalangue designa o que é a ocupação de cada um de nós, o lugar que cada sujeito poderá se representar no campo do Outro, extraindo de lalangue um significante, que fixa o gozo, em uma tentativa de produzir-se sujeito. Lalangue nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos. Se se pode dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de lalangue, que já estão lá como saber, vão bem mais além de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar (LACAN, 1982[1972-73]:190). Trata-se do saber que faz enigma, presentificado pelo inconsciente através do discurso analítico. Para o ser falante, “o saber é o que se articula” (LACAN, 1982[1972-73]:188). A linguagem é “uma elocubração de saber sobre lalangue (:190); lalangue é “essencialmente aluvisionária, feita dos aluviões que se acumulam a partir dos malentendidos e das criações linguageiras de cada um” (MILLER, 1999:151). Portanto, se lalangue somente se sustenta através do mal-entendido, ela não está implicada com o significado das palavras. O que impulsiona lalangue é o gozo das homofonias. 47 Segundo Miller (1996) em lalangue “os sentidos se cruzam e se multiplicam sobre os sons” (:70), homofoneticamente, e de forma repetitiva, como em um estribilho, um refrão. Desta forma, “lalangue é um enxame significante, um enxame que zumbe” (LACAN, (1982[1972-73]:196), um zumbido de significantes não articulados e que portam um gozo. Significante e gozo encontram-se vinculados. Por sua vez, lalangue dita materna (LACAN, 1985[1972-73]:188) “consiste nos detritos da fala de um Outro dito primordial” (BASTOS & FREIRE, 2006:114) depositados no corpo da criança. Lacan nos explica que lalangue dita materna significa que “desde a origem há uma relação com lalangue, que merece ser chamada, com toda razão, de materna, porque é pela mãe que a criança – se assim posso dizer – a recebe. Ela não aprende lalangue” (LACAN, 1988[1975c]:43). O autismo testemunha que esse depósito não é subjetivado ou, muito menos, “transformado em enunciação, uma vez que o sujeito não se apropria dele, mas é aprisionado por ele, fazendo de seu corpo um objeto de gozo” (BASTOS & FREIRE, 2006:116). E da ausência de subjetivação daquilo que o afeta que um menino autista de 7 anos nos dá testemunho, quando destaca da “bateria significante de lalangue” (LACAN, 2003[1974c]:515) o significante “man-man-man”. Muito cedo ele nos faz entender que este fonema não corresponde a um apelo dirigido à mãe, na medida em que esta já toma o mutismo de seu filho como irreversível e o som de “man” “man” “man” como não lhe concernindo. Ela diz: “Não é a mim que ele chama. Ele fala isso para tudo, fala isso de uma forma indiscriminada” (sic). Lembremos que lalangue é uma multiplicidade de significantes que nada representam, já que se mostram desarticulados e indissociáveis do gozo, mas não podemos deixar de considerar que eles possuem um valor enquanto elementos marcados por diferenças. O significante, em si mesmo, não é nada de definível senão como uma diferença para com um outro significante. É a introdução da diferença enquanto tal, no campo, que permite extrair de lalangue o que é do significante (LACAN, 1982[1972-73]:194). Voltemos ao menino autista que, em determinado encontro com a analista, emite os sons “pa-pa-pa” logo após os sons “man-man-man”. Entendemos que é através de lalangue que este menino, introduzindo uma diferença, tenta encontrar um lugar significante no Outro em uma tentativa de produzir-se, como efeito, sujeito. 48 Este fragmento nos ensina que cabe ao analista, na direção do tratamento, conferir à lalangue do paciente o estatuto de trabalho, dando aos significantes aí extraídos e que se apresentam desarticulados e desbaratados do sentido compartilhado, o estatuto de mensagem. Apostando nos efeitos de lalangue, alguns casos foram apresentados e discutidos na Seção Clínica de Angers (IRMA, 1999:160), com destaque para a criação da “lalangue de transferência” nas psicoses, com a invenção da “língua Donald”. Esta apresentação teve como proposta estabelecer uma direção de tratamento, situar a transferência e o lugar que o analista ocupa nessa clínica. Freud se viu envolvido com a questão do tratamento das psicoses. Ele afirma: “não considero de modo algum impossível que mediante modificações adequadas do método possamos ser bem-sucedidos em superar essas contraindicações – e assim podermos iniciar uma psicoterapia das psicoses” (FREUD, 1905:27). Por sua vez, Lacan convocou os analistas a não recuarem diante da psicose, advertindo-os a não utilizarem a técnica instituída por Freud “fora da experiência a que ela se aplica” (LACAN, 1998[1958]:590), pois, do contrário, seria como “esfalfar-se nos remos quando o barco está encalhado na areia” (idem). Para Freud, as manifestações próprias da psicose são consideradas tentativas de cura do sujeito. Esta é uma posição ética do analista diante do psicótico, na medida em que trata de acolher toda e qualquer expressão sintomática como manifestação do sujeito, não a considerando um déficit a ser restituído a qualquer preço. Para ilustrar tal posição, podemos recorrer a dois fragmentos clínicos encontrados no texto intitulado “Lalangue de Transferência nas Psicoses” da Seção Clínica de Angers (IRMA, 1999). O primeiro (:148) diz respeito a uma criança psicótica que se dirige ao analista e pergunta: “Você sabe falar em Donald?”. O analista responde que não. A menina, por sua vez, começa a “quanquonar”: “quain! quain-quian! Quain-quian-quian!”. “O que é preciso ouvir aí?”, pergunta o analista, desapontado. A criança aponta para o relógio “quainquonando” e o analista, para sua surpresa, responde “quainquonando”: “São quainze horas e dez!”. A criança acaba por rir. Neste exato momento, a “língua Donald” é inventada, constituindo-se como “lalangue de transferência”. A partir daí, ela passa a ser usada nas sessões, na instituição e junto à família da criança. Além de ser uma criação “linguageira” da menina, a “língua Donald” passa a ser praticada tanto por ela quanto pelo analista de 49 maneira a forjar o laço social, a partir de uma solução singular que orienta a direção do tratamento, ou seja, um saber-fazer com lalangue. No segundo caso, a analista intervem, aproximando a lalangue de transferência de uma língua estrangeira, sem sentido. O paciente dizia: “Saint Gobain 601 + 0,2; Saint Louis 601 + 2” e a analista respondeu: “And what do you say now? – Well, I say that white is not black”. Neste caso, lalangue não provocou riso do paciente, mas certo apaziguamento. O manejo clínico operado caso a caso a partir de lalangue “amplia a clínica psicanalítica para além da representação significante do sujeito, para além da estrutura do discurso como laço social” (BASTOS & FREIRE, 2006:121) e revela a importância, na clínica da psicose, de se identificar em cada sujeito o manejo inédito com o gozo que lhe é próprio. Nesses dois fragmentos clínicos, verificamos que não foi o sujeito suposto saber que produziu a transferência, mas lalangue que permitiu que um significante daí extraído fizesse signo de qualquer coisa que fosse fora do sentido (IRMA, 1999). Na clínica, encontramos um trabalho que exige um saber-fazer com lalangue, o qual nos orienta no tratamento de dois adolescentes, um rapaz autista e uma menina psicótica21, ambos com 15 anos. Os dois mostram grande interesse por línguas estrangeiras, particularmente o japonês. Nos trabalhos das oficinas de um serviço infantojuvenil22, esses adolescentes jogam videogames baseados nos personagens chamados Pokemons23. Como estes jogos não são traduzidos, encontrando-se em sua língua original, o japonês, tanto um quanto o outro acabam por dominar e conhecer muitas palavras e expressões japonesas. É a partir do recurso a esta língua estrangeira que ambos encontram uma maneira de barrar e regular gozo que se mostra, para eles, excessivo, constituindo uma forma de nomeá-lo. Assim, faço minha as palavras de Angélica Bastos e Ana Beatriz Freire (1996) de que o “saber fazer com lalangue não é uma exigência apenas para o autista. Corresponde a um trabalho de escrever o inconsciente, isto é, de aparelhar o gozo” 21 Esta adolescente iniciou um curso de japonês. Trata-se, aqui, do Núcleo Infantojuvenil do Instituto Philippe Pinel do Rio de Janeiro. 23 Uma forma abreviada e mais conhecida de pocket monsters (monstros de bolso), criada por Satoshi Tajiri em 1996. Existem inúmeras espécies fictícias diferentes de pokémons. Cada uma das espécies tem poderes especiais. Dentre estas espécies, encontram-se espécies com evoluções, espécies lendárias, únicas e/ou sozinhas. Uma espécie é totalmente diferente da outra em seu físico e emocional, assim como existem diferenças entre costumes e hábitos de cada uma delas. As espécies têm diferentes propósitos: algumas são usadas para batalhas pelos treinadores, outras vivem livres e protegem o mundo com seus poderes, como as espécies lendárias, e outras são usadas para fazer companhia às pessoas. 22 50 (BASTOS & FREIRE, 2006:120). Ainda segundo elas, “O personagem ‘esquizo’ de Louis Wolfson (1970), Schreber, Joyce e outros mostram que, não só na psicose, essa tarefa se impõe ao falasser” (idem). 51 CAPÍTULO III – OS OBJETOS NA CLÍNICA DO AUTISMO Para a psicanálise, a noção de sujeito não está dada previamente. É o que se verifica nos textos freudianos, no sentido de que a noção de sujeito não está formulada de maneira explícita, mas suposta enquanto concepção inédita a partir da correlação que podemos estabelecer com a noção de objeto. Lacan (1964), por sua vez, ao abordar o objeto da pulsão, afirma que o sujeito é um aparelho lacunar, na medida em que “é na lacuna que o sujeito instaura a função de um certo objeto, enquanto objeto perdido. É o estatuto do objeto a enquanto presente na pulsão” (LACAN, 1985[1964]:175). Iniciamos esta seção com uma breve introdução sobre o estatuto do objeto em Freud e Lacan. Em Freud, encontramos a elaboração da experiência de satisfação como forma de explicitar a estruturação da relação do sujeito com o objeto. Abordamos a noção de das Ding. Inicialmente tomamos como referência os textos “Projeto para uma psicologia científica” (1976 [1895]:421) e “Interpretação de Sonhos” (1975 [1900]:602) para nos aproximarmos da elaboração do conceito freudiano de objeto do desejo, tendo como paradigma o objeto da pulsão oral. Em Lacan, encontramos o objeto a, a sua grande invenção teórica. Objeto a, como objeto do real (LACAN, 2005 [1962-1963]), encarnado em um vazio, estatuto que lhe confere sua ex-sistência (fora do simbólico). Abordar a operação da queda do objeto nos parece importante, entendendo que na psicose – e, portanto, no autismo – não houve a operação de extração do objeto. Os autistas nos mostram a particular relação que eles mantêm com a linguagem, com o corpo e com os objetos (a voz, o olhar, os alimentos e os excrementos). Se entendermos que, no autismo, não ocorreu a operação de subtração do objeto, nossa hipótese é a de que o autista tenta construir um objeto fora do corpo como tentativa de circunscrever o gozo. Aqui, não se estabeleceu a distância entre o gozo e o corpo operada pelo significante. Seguindo as considerações de Jean-Claude Maleval (1998) ao abordar os testemunhos dos autistas de alto desempenho, guiar-nos-emos através de suas indicações a respeito do uso do objeto no princípio da defesa autística, seu papel e a função que ele assume pela via da regulação de gozo. A dimensão do duplo no autismo aqui será abordada. 52 É na clínica do autismo que encontramos uma série incontestável de fenômenos de desordem pulsional, decorrentes da ausência da montagem do circuito da pulsão e da não operação da extração do objeto a. Para isso, recorreremos à teoria do estádio do espelho de Lacan e também ao esquema óptico, por entender que, no caso do autismo, a instauração da relação especular constitui um problema. . 3.1 – O OBJETO NA CLÍNICA DO SUJEITO Com o intuito de examinar e discutir o jogo significante na operação primeira de simbolização feita pela criança e, em particular, os casos de autismo onde esta operação não se operou, por não ter se constituído o par significante e a não extração do objeto, partimos da fala de Lacan (1964) de que “o homem pensa com seu objeto” (:63). Lacan (1955-56) assinala que “o objeto de interesse humano é o objeto do desejo do outro” (:50) O que isso pode significar? Significa que o sujeito desejante se constitui em torno e a partir do outro que confere a sua unidade. Diante disso, observamos que o primeiro acesso ao objeto que o sujeito tem é “o objeto enquanto objeto do desejo do outro” (idem). Não se trata, aqui, de pensar a relação do sujeito com seu gozo e seu objeto? Para prosseguirmos neste percurso, tomamos como balizas a obra de Freud e os ensinamentos de Lacan. Nos textos “Projeto para uma psicologia científica” (1976[1895]:421) e “Interpretação de Sonhos” (1975[1900]:602]), Freud aborda o tema do desamparo fundamental com o qual todo ser humano se encontra no momento em que nasce, na medida em que depende de um outro para sobreviver. Parte da suposição do infans, que, diante do estado de desamparo que se encontra e atordoado por um estado de urgência (Not des Lebens), é levado a reagir ao excesso de tensão por meio de uma descarga motora, debatendo-se, chorando ou gritando. Mas esta descarga não produz um resultado de alívio para o infans, pois não faz cessar a excitação, sendo necessária uma “ação específica”, realizada através de uma “ajuda alheia” (Fremde hilfe) por uma “pessoa experiente”. Ao ser acolhido e pela intervenção do Outro, que interpreta e responde ao grito, tomando-o como apelo, o infans experimenta uma sensação de satisfação que ficará inscrita na estrutura como marcas mnêmicas tanto do objeto que proporcionou a satisfação como da imagem do movimento que permitiu a descarga. Como esta ajuda alheia é encarnada por uma presença humana, e quase sempre pela mãe, Lacan (1999 [1957-58]:194) se refere ao lugar deste primeiro Outro como o 53 Outro Primordial, lugar simbólico para o infans, na inscrição de traços, como primeira alteridade. Num segundo momento, quando surge novamente a excitação, um novo impulso, chamado de desejo por Freud, recatexizará a imagem mnemônica da percepção do objeto (alucinação), restabelecendo a situação da satisfação original. O que se produz é a alucinação do objeto seguida da descarga e não a percepção do objeto. Desta forma, a experiência de satisfação, nos termos freudianos, gera uma facilitação entre o grupo de neurônios que receberam investimento e as duas imagens-lembrança, a saber: a do objeto de satisfação e a da descarga produzida pela ação específica. Isso significa que o que é reativado, a partir de uma orientação regressiva, é o traço mnemônico da imagem do objeto, a marca primeira, inscrevendo este objeto na estrutura como perdido, aquele que causa o desejo. Para Freud, “o objetivo dessa primeira atividade psíquica era produzir uma ‘identidade perceptiva’ – uma repetição da percepção que se achava ligada com a satisfação” (FREUD, 1975 [1900]:603). Podemos entender que o grito do infans presentifica a ausência do objeto, experiência por demais dolorosa, mas intrinsecamente necessária ao sujeito no momento de sua entrada na linguagem. O desapontamento que ocorre no movimento alucinatório, quando da ausência do objeto, inaugura o funcionamento como tal do aparelho psíquico, a saber, a impossibilidade do gozo pleno. É, portanto, a falta do objeto que impulsiona o infans, agora inscrito na linguagem, em uma busca da repetição da satisfação obtida nessa primeira experiência. É o que Lacan nos indica em seu seminário “A Relação de Objeto” (1995 [1956-1957]), ao afirmar que “a relação central de objeto é a de falta de objeto” (:67). Aqui, de uma tacada só, se constitui o desejo e o gozo em uma articulação que aponta para o surgimento da compulsão à repetição. Ao se analisar a formulação freudiana da primeira experiência de satisfação, o que se evidencia é o desejo como movimento, guiado pelo princípio do prazer em direção a uma satisfação perdida que se busca encontrar, e a tentativa de resgatar o gozo perdido, a qual marcará para sempre o sujeito em uma busca compulsiva para reencontrar esta experiência. Se o objeto é desde sempre perdido, podemos nos perguntar: o que o sujeito procura? Lacan (1988[1959-60]) nos dá uma orientação ao afirmar que o sujeito busca o objeto enquanto o Outro absoluto, mas não o reencontra e sim as suas coordenadas de prazer (:69). 54 Lacan (1959-60) nos faz ver como funciona a primeira apreensão da realidade pelo sujeito. Esta realidade intervém da maneira mais íntima – o Nebenmensch. Na experiência de satisfação, é o próximo que será buscado como objeto capaz de realizar a “ajuda alheia” de que tanto se ressente o infans. Este objeto é “o primeiro objeto satisfatório [do sujeito], seu primeiro objeto hostil e também sua única força auxiliar” (FREUD, 1975[1895]:438). Desta forma, é sobre o próximo que “o ser humano aprende a (re) conhecer [Das Erkennen]” (idem), pois se trata aqui do reconhecimento do objeto da ação específica. Esse objeto é, para o sujeito, o primeiro exterior, a um só tempo íntimo, estranho e mesmo hostil, em torno do qual se orienta todo o encaminhamento desejante do sujeito. Citemos Freud com relação ao complexo do próximo (Nebenmensch): “Desse modo, o complexo do ser humano semelhante se divide em duas partes, das quais uma dá impressão de ser uma estrutura que persiste coerente como uma coisa (Ding), enquanto que a outra pode ser compreendida por meio da atividade da memória” (FREUD, 1975 [1895]:438). Lacan fez notar que o “Ding é o elemento que é, originalmente, isolado pelo sujeito em sua experiência do Nebenmensch como sendo, por sua natureza, estranho, Fremde”. (LACAN, 1959-60:68). Em sua primeira referência a das Ding no Projeto (1895), Freud a designa como a (neurônio a). Notemos certa semelhança com aquilo que Lacan, mais tarde, chamará de objeto a. No entanto, não se trata de noções idênticas. O que significa designar das Ding como a? Freud (:434), ao abordar a distinção entre a representação-lembrança (catexia de desejo) e a representação-percepção (catexia de percepção) no processo de subjetivação, afirma que a primeira refere-se ao neurônio a + o neurônio b e a segunda representação relaciona-se ao neurônio a + o neurônio c. O complexo perceptivo é decomposto em duas partes: a primeira é o neurônio a que se mantém constante, e a segunda é o neurônio b que é variável. O neurônio a é qualificado como a coisa (das Ding) e o neurônio b é formulado como atributo, seu predicado. Uma abordagem do julgamento estabelecerá a diferença e a semelhança entre os conjuntos, sendo que o elemento responsável pela semelhança é o a e o responsável pela diferença é o c. Freud também abordará das Ding como o inassimilável, o irrepresentável, o resíduo que escapa à abordagem do julgamento. Como dito anteriormente, o Ding é o 55 que na experiência do Nebenmensch é isolado pelo sujeito como sendo estranho, exterior, não regulado pelo princípio do prazer. Ele não nos informa sobre os atributos ou a qualidade do objeto. Lacan, abordando o mundo significante, situa no texto freudiano que “a maneira pela qual o estranho, o hostil aparece na primeira experiência da realidade para o sujeito humano” (LACAN, 1988[1959-60]:72) é através do grito. Insiste em dizer que “a Coisa só se apresenta a nós na medida em que ela acerta na palavra, como se diz acertar na mosca” (idem). No seminário sobre “A Ética da Psicanálise” (1959-60), Lacan dedicou várias aulas ao conceito de das Ding. Aborda a Coisa como o irrepresentável, o que do real padece do significante (:149). Inicialmente ressalta que Freud estabeleceu uma aproximação entre a Wortvorstellung (representação-palavra) e a Sachvorstellung (representação-coisa). Segundo Lacan (1959-60), ele não fala em Dingvorstellung e, portanto, os termos das Ding e die Sache são opostos e distintos, mas se referem à coisa. Ressalta que há uma relação entre a coisa (Sache) e a palavra (Wort), que ligadas formam um par. Enquanto a Sache é a coisa orientada e governada pela linguagem, produto da indústria, da ação humana, das Ding situa-se em outro lugar, tratando-se de algo significativamente diverso, na medida em que há outra coisa em das Ding e o que há “é o verdadeiro segredo” (:61). Este termo não está na relação que permite “o homem colocar em questão suas palavras como referindo-se às coisas, que, no entanto, elas criaram” (idem). Lacan ressalta que, “no nível da Vorstellung a Coisa não é nada, (...) ela se distingue como ausente” (:82). Das Ding é o centro do funcionamento do aparelho psíquico, “é o que no ponto inicial, logicamente, da mesma feita, cronologicamente, da organização do mundo no psiquismo” (:76), em torno do qual gira todo o movimento desejante do sujeito, governado e regulado pelo princípio do prazer. Lacan nos fala que das Ding deve ser identificado como a tendência a reencontrar (Wiederzufinden), que, para Freud, funda a orientação do sujeito humano em direção ao objeto. Portanto, o objeto nunca foi perdido porque nunca foi tido, mas trata-se essencialmente de reencontrá-lo. É das Ding que representa, para o sujeito, o Outro absoluto que se trata de reencontrar. O Outro não só na dimensão de semelhante, mas também como alteridade absoluta (RIBEIRO, 2005). Podemos dar certo peso ao que se verifica aqui: que o desprazer se desprende do princípio do prazer, princípio que governa a busca do objeto e que impõe rodeios que 56 conservam certa distância em relação ao seu fim. Mas “o que é buscado é o objeto em relação ao qual o princípio do prazer funciona” (LACAN, 1988[1959-1960]:69). No seminário sobre “A Ética da Psicanálise” (1959-60), Lacan salienta que a procura é operada nas vias do significante, tendo o princípio do prazer a função de conduzir o sujeito de significante em significante, colocando à sua disposição “quantos significantes forem necessários para manter o mais baixo possível o nível de tensão que regula todo o funcionamento do aparelho psíquico” (:150). Esta busca é marcada pelo desencontro, na medida em que o que se espera encontrar, o objeto, jamais é encontrado, e o que se procura, a satisfação, é impossível de se atingir. No seminário “As Formações do Inconsciente” (1999[1957-1958]), tratando de sublinhar que o objeto “[...] é um objeto metonímico” (:207), [Lacan falará que] “o objeto do desejo sendo o objeto do desejo do Outro e o desejo sendo sempre desejo de outra coisa, mas precisamente, daquilo que faltava ao objeto perdido primordialmente, na medida em que Freud nô-lo mostra como estando sempre por ser reencontrado” (LACAN, 1999[1957-1958]:194) Lacan assinala com bastante clareza que não se trata de situar o objeto, como fez Melaine Klein. Ele pede para que se reconsidere a luz de sua nova articulação, as elaborações kleinianas que colocam o corpo materno no lugar central de das Ding, na medida em que a mãe constitui o objeto que vem ocupar, de maneira muito particularizada na vida do sujeito, o lugar do objeto faltoso. Neste caso, por meio de inúmeros e sucessivos reencontros, o objeto surge como perdido, como Outra coisa: “A Outra coisa é, essencialmente, a Coisa” (LACAN,1959-60:149). O objeto é por natureza um objeto reencontrado. “E, portanto, ele é reencontrado, sendo que a única maneira de saber que foi perdido é por meio desses reencontros, desses reachados” (idem). Desta forma, o estatuto real, faltoso da Coisa, comparece a cada vez que o sujeito reencontra o objeto. Trata-se, no entanto, de algo da ordem da discordância radical entre o que era esperado e o encontrado, atualizada na repetição pulsional. Portanto, a relação do sujeito ao objeto é marcada por uma desarmonia estrutural, o que nos permite afirmar que na satisfação humana não existe uma relação de complementaridade entre o sujeito e o objeto. Freud nos mostra claramente a distinção entre a realização do desejo e a 57 satisfação da necessidade no capítulo VII de “Interpretação de Sonhos” (1975 [1900]), mais exatamente no apêndice C, intitulado “A realização do desejo”. Freud, ao desenvolver o conceito de pulsão (FREUD, 1974 [1915]), define o objeto como um de seus quatro elementos componentes e o mais variável entre eles. Esta definição nos permite entender que todo e qualquer objeto pode se constituir como objeto da pulsão. No texto “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (1964), Lacan se refere à elaboração freudiana sobre o objeto da seguinte forma: “Para o que é do objeto da pulsão, que bem se saiba que ele não tem, falando propriamente, nenhuma importância. Ele é totalmente indiferente (LACAN, 1985 [1964]: 159). Desta forma, entendemos que, aqui, algo figura uma falta de objeto; é disto que se trata o conceito lacaniano de objeto. A partir do percurso anteriormente trilhado, constatamos toda a magnitude do esforço lacaniano em sua leitura dos conceitos freudianos, sustentando um rigor conceitual um tanto perdido na abordagem dos pós-freudianos. Para Lacan, o conceito de objeto não passa pela definição kleiniana de objeto, este pleno que será alvo do desejo de destruição ou de reparação da criança, nem pelo objeto transicional de Winnicott e tampouco pelo objeto desde sempre perdido que o sujeito busca reencontrar de Freud. Lacan nos apresenta sua única invenção teórica, a saber: o objeto a. Trata-se aqui do objeto causa de desejo, objeto escavado como produto do esvaziamento através da incidência do significante Ao longo de sua obra, percebemos a construção deste conceito. Construção sistematizada abaixo e que pode nos servir para uma breve abordagem da teorização do objeto a. No Seminário “A Relação de Objeto” (1956-57), Lacan faz alusão à relação central do objeto do desejo, que para ele é definida pela falta de objeto, esta simbolizada pelo falo. Na sequência, no Seminário “As Formações do Inconsciente” (1957-58), Lacan examina o conceito de objeto, definido, nesse momento, como metonímico, ou seja, o objeto do desejo como sendo o objeto do desejo do Outro, assinalando que o desejo é sempre o desejo de outra coisa, daquilo que falta ao objeto desde sempre perdido que se busca reencontrar. Para Rabinovich, o objeto metonímico de Lacan inclui duas faces, a saber: [...] por um lado, é o objeto estruturalmente perdido do desejo freudiano; por outro, no vazio criado por sua perda se instala a remissão incessante de significação a significação, que faz surgir o objeto do desejo como sendo sempre outro objeto, na media em que perdeu a fixidez da significação instintiva. Contraponto, portanto, 58 entre o objeto perdido e o desejo de Outra Coisa, que na realidade não são mais do que duas faces de uma única instância. (RABINOVICH, 2009:153). No Seminário “O Desejo e sua Interpretação” (1958-59), Lacan nos faz verificar o caráter real do objeto a. Indica, no matema da fantasia $ <> a, o lugar do objeto a partir da estrutura do desejo do sujeito como desejo do Outro. $ e objeto a são tomados como elementos heterogêneos na estrutura, $ desejo de a. A relação ($ <> a) está no nível da fantasia e é o que permite o sujeito situar-se e se arranjar com seu desejo. O sujeito aqui barrado se sustenta pela extração do objeto a. No texto “Alocução sobre as psicoses da criança” (1967) assim Lacan se refere ao objeto a: “[...] é como causa que ele aparece na fantasia [...] causa em relação ao desejo do qual a fantasia é a montagem” (:366). Por sua vez, no Seminário “A Ética da Psicanálise” (1959-60), a noção de das Ding é extensamente abordada, antecedente lógico e teórico do objeto a. É definido como vazio de representação, fora de qualquer articulação significante e constituidor do objeto. Mas é no Seminário “A Angústia” (1962-63) que Lacan chega à elaboração do objeto a como objeto do real, que excede à ação de simbolização do Outro. Articula o objeto a com a função de corte, dimensão de separação como objeto causa de desejo que presentifica a falta. Conforme Freud, em “Inibição, Sintoma e Angústia” (1925), a angústia desempenha, em relação a algo, a função de sinal. Já Lacan diz que “(...) é um sinal relacionado com o que se passa em termos da relação do sujeito com o objeto a” (2005, [1962-63]:98) e que o único meio de se falar do objeto a é através da angústia, sendo esta sua única tradução subjetiva. Com a angústia se introduz a função da falta em nível duplicado, ou seja, a angústia não é somente sinal de uma falta, mas quando a falta faz falta, “por ser a falta de apoio dada pela falta” (:64). Lacan lembra que “não se trata de perda do objeto, mas da presença disto: de que os objetos não faltam” (idem). A angústia é uma resposta no real evocada pela incidência do desejo, desejo do Outro. É a partir do Outro que o a acaba por assumir seu isolamento, “e é na relação do sujeito com o Outro que ele se constitui como resto” (:128). Aqui, desejo, falta e angústia se articulam no esquema óptico com a inclusão do objeto a. 59 3.2 – O USO DOS OBJETOS NA ELABORAÇÃO DA DEFESA AUTÍSTICA Tomamos como ponto de partida a preciosa observação de Kanner (1997[1943]), na descrição da Síndrome do Autismo Infantil Precoce, sobre a particular relação que os autistas mantêm com os objetos. Na clínica, não é difícil encontrarmos pais angustiados diante daquilo que acreditam que não faz bem aos seus filhos. Queixam-se de que a criança não se interessa por nenhum outro brinquedo que não seja aquele objeto específico, um cordão de sapato, uma pequena boneca de pano, um jogo eletrônico ou uma roda de um carrinho. E a todo custo se empenham em tentar extrair, extirpar essa “mania”, essa “fixação”, essa “obsessão” dos filhos. São frequentes os pedidos desta ordem dirigidos àqueles que trabalham com essas crianças. De fato, na clínica, vemos muitas crianças autistas que não se separam de forma alguma de um objeto encontrado aqui ou ali. Frances Tustin foi a primeira psicanalista a conceituar o objeto autístico, dedicando capítulos em seus livros sobre o estudo do autismo. Em um deles, logo no primeiro parágrafo, afirma que os “objetos autísticos são objetos peculiares a cada criança individualmente. Eles são usados obsessivamente de modos idiossincrásicos que impedem o desenvolvimento mental” (TUSTIN, 1984:126) A dimensão patológica de tais objetos é intensamente marcada, mas verificamos que Tustin afirma que estes objetos patológicos são vitais para a criança autista, pois a mantêm protegida. Apesar de advertir que, se usados indevidamente, estes objetos impedem o desenvolvimento psicológico, acrescenta que a sua importância deve ser respeitada até o momento “que o poder deles em manter essa criança como escrava possa ser diminuído” (:93) Segundo Maleval (2009), Tustin24 construiu uma teoria bastante elaborada sobre o objeto autístico a partir de sua prática psicanalítica com crianças psicóticas. Para explicar as características e especificidades deste objeto, recorre, inicialmente, ao conceito de objeto transicional de Winnicott (1951), caracterizado por sua natureza de possessão. Este objeto surge no primeiro ano de vida de uma criança e muito 24 Tustin publica, em 1975, seu primeiro livro, intitulado Autismo e Psicose Infantil. É a partir do tratamento do menino John (1951) que Tustin irá construir, tempos depois, seu arcabouço conceitual. Utiliza-se de seu contato com Margareth Mahler, através do conceito de amor objetal simbiótico (1961) e do conceito de depressão psicótica (1958) elaborado por Winnicott. Fará surpervisões com Meltzer e sentirá como insipiente a sua formação kleiniana para explicar os fenômenos que presenciava na clínica. 60 frequentemente é encarnado em bichinhos de pelúcia, paninhos, chupetas, cobertores e mantas. Para ela, o objeto autístico seria um precursor do objeto winnicottiano, entendido e percebido, pela criança, como “totalmente eu”. Em um desenvolvimento normal de uma criança, o objeto autístico se funde ao objeto transicional. O objeto transicional revela que a perda do objeto primeiro da criança dá lugar a outros objetos, objetos substitutos, com os quais a criança retira certa satisfação. Para Tustin, os objetos autísticos funcionam como uma proteção contra a perda e, portanto, não são substitutos (TUSTIN, 1984). Eles têm a função de “impedir o desenvolvimento do grau de consciência da separação corporal” (TUSTIN, 1990:89). São objetos usados pelo autista como se fizessem parte de seu próprio corpo, proporcionando “sensações de segurança e divertimento [...], para afastar o perigo que ameaça [de um] ataque corporal e aniquilação inapelável” (TUSTIN, 1984:132). É o resultado de uma excessiva autossensualidade que tomou um caminho desviante e perverso (TUSTIN, 1984), caracterizando-se como prejudiciais e nocivos para a criança. Não são considerados temporariamente substitutos da mãe, mas a substituem permanentemente, de tal modo que os cuidados maternos se tornam sem efeito (TUSTIN, 1990). As crianças autistas estabelecem uma relação muito particular com objetos duros, o que permite entrarem em equação com eles. Para Tustin, não se trata do fenômeno da identificação, pois tais objetos não se diferenciam do corpo da criança, além de não serem usados na funcionalidade característica, mas, muito pelo contrário, são usados por proporcionar uma sensação de dureza. As crianças autistas querem se apropriar da característica de dureza dos objetos. Tustin fala que o autista se situa em uma relação transitivista com seu objeto, pois não estabelece uma distinção entre as pessoas e os objetos inanimados. Ele pode trazer o objeto colado ao seu corpo ou pode se colar a uma parte dura do corpo do outro, como se este fosse um objeto inanimado, em uma espécie de fusão. Um fragmento clínico do tratamento do menino John, iniciado quando este tinha 3 anos e 7 meses (novembro de 1951), poderá ilustrar a relação transitivista que o sujeito mantém com seus objetos. Na primeira sessão, John, ao entrar na sala do consultório, faz rodar um pião, enquanto se masturba com uma das mãos e, com a outra, faz movimentos circulares ao redor de sua boca. Isso permite ver que John não estabelecia nenhuma diferença entre os movimentos do pião e os de seu próprio corpo. Para Tustin, estas crianças se concentram excessivamente em sensações engendradas por seus próprios corpos, o que explica o fato de que muitas delas não 61 sentem dor quando se machucam, parecendo, igualmente, não ouvir e nem enxergar. Tal concentração explica por que muitas delas não se dão conta de que se machucaram – devido a uma queda, por exemplo – e são considerados surdas e cegas. Sabemos que, para o autista, o objeto não é determinado pelo seu lugar em uma lógica de troca, mas tomado na dimensão de objetos reais, pois não se sustentam na relação significante com o Outro, não se inscrevem sobre um fundo de falta. O autista “falha em posicionar o objeto na falta do Outro” (MALEVAL, 2009:427). Aos objetos freudianos, oral e anal, foram acrescentados, por Lacan, os objetos olhar e voz, os quais possuem um caráter de exterioridade em relação ao sujeito. Na elaboração lacaniana em que estabelece uma ligação entre o corpo e o objeto a, quatro são as modalidades do objeto (seio, fezes, olhar e voz), constituindo “peças separáveis enquanto que profundamente religadas ao corpo”25 (LACAN, 1966-1967:7). No Seminário “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise” (1964), Lacan dedica quatro lições à análise da pulsão escópica, motivado pela publicação da obra póstuma de Merleau-Ponty, intitulada “O visível e o invisível”. Extrai desta obra seu ponto essencial quando se refere à “dependência do visível em relação àquilo que nos põe sob o olho do que vê” (: 73) Assinala que o olho é apenas a metáfora do empuxo daquele que vê, na medida em que existe algo anterior ao olho. Trata-se da “preexistência de um olhar – eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte” (idem). Desta forma, existe uma anterioridade, marcando “a preexistência, ao visto, de um dado-a-ver” (:75), distinguindo a função do olho da função do olhar. Algo é dado a ver àquele que vê. Lacan nos lembra que, entre o olho e o olhar, se produz “a esquize na qual se manifesta a pulsão ao nível do campo escópico” (:74). Melhor dizendo: existe uma cisão entre o que se vê e o olhar Segundo Lacan, o olhar contém o objeto a e especifica o campo escópico. O olhar situa-se no campo do Outro, pois, como assinala, “somos seres olhados no espetáculo do mundo” (:76). Trata-se, na pulsão escópica, de se fazer olhar, de ser visto naquilo que não se pode ver, na medida em que o objeto olhar indica ao olho que não é possível tudo ver. O olhar é mascarado pela imagem do outro e o objeto a aí fica oculto, na medida em que o objeto é a causa de desejo, desejo esse despertado pelo outro (semelhante). 25 “[...] ces pièces détachables pourtant foncièrement reliées au corps”. Seminaire XIV La Logique du Fantasme (1966-67) – 16 de novembro de 1966. 62 É desta forma que Lacan esquematiza seu ensino sobre a relação escópica, cujo objeto é o olhar: Uma vez que o sujeito tenta acomodar-se a esse olhar, ele se torna, esse olhar, esse objeto punctiforme, esse ponto de ser evanescente, com o qual o sujeito confunde seu próprio desfalecimento. [...] de todos os objetos, o olhar se especifica como inapreensível. É por isso que ele é desconhecido (...) e por essa razão que o sujeito consegue simbolizar (...) seu traço evanescente na ilusão da consciência de verse vendo-se, em que o olhar se elide (LACAN, 1985[1964]:83). Quais são as consequências desta elaboração para o campo das psicoses, e particularmente para o autismo? Vemos que, na psicose, o objeto olhar não se encontra mascarado, ele retorna no real como um olhar que observa o sujeito, deixando-o à mercê do retorno daquilo que não foi simbolizado. São frequentes as desorganizações do campo visual, onde o objeto olhar como a no campo escópico surge para o sujeito de uma forma bastante ampliada e intensificada através da multiplicidade de olhares. Por exemplo, um paciente internado em um hospital psiquiátrico sente-se perseguido, acreditando que todos os olhares recairão sobre ele – por saberem que ele é homossexual – caso saia de seu quarto. Outro exemplo é o menino autista que, para se proteger deste olhar que presentifica a presença do Outro, circula pelas ruas usando um par de óculos escuros. Quanto ao objeto voz, Lacan, no Seminário “A Angustia” (1962-63), assinala que ele não pertence ao registro sonoro, não é da ordem da audição: Tudo o que o sujeito recebe do Outro pela linguagem, diz a experiência comum que ele o recebe sob forma vocal. A experiência de casos [...] mostra que existem outras vias que não as vocais para receber a linguagem. A linguagem não é vocalização. Vejam os surdos [...] [No entanto, há] uma relação que liga a linguagem a uma sonoridade (LACAN, 2005[1962-63]: 299) Em seu trabalho de definição da relação do sujeito com o Outro, fundamentada em sua prática, a qual confirma o funcionamento autônomo da fala, Lacan (1962-63) traz como exemplo o fato de que uma criança bem pequena, antes mesmo da fase do espelho estar concluída, monologa antes de adormecer, desde que disponha de algumas poucas palavras. Monólogo, análogo à função do sonho, não reproduzido se houver uma outra pessoa presente. Diante disso, Lacan afirma tratar-se da constituição do a como resto. Respeitadas tais condições, esse fenômeno só nos aparece em estado de resto, ou 63 seja, a fita do gravador26. Caso contrário, só teremos no máximo um murmúrio longínguo, prestes a desaparecer diante de nossa presença. Lacan pergunta se não é “exatamente do lado de uma voz desligada de seu suporte que devemos procurar o resto?” (:298) Em termos lacanianos, a voz não ressoa em um vazio espacial qualquer, mas “num vazio que é o vazio do Outro como tal, o ex nihilo propriamente dito. A voz responde ao que é dito, mas não pode responder por isso. Em outras palavras, para que ela responda, devemos incorporar a voz como a alteridade do que é dito” (: 300). É por essa razão que nossa voz, separada de nós, nos soa de modo estranho. A voz é incorporada, ela não é assimilada. Lacan lhe confere uma função que pode servir de modelo para o vazio. É da estrutura do Outro constituir certo vazio, “o vazio de sua falta de garantia [...], é nesse vazio que a voz ressoa como distinta das sonoridades, não modulada, mas articulada” (idem). Na condição de objeto a, a voz pertence ao Outro, na medida em que se trata da incorporação da voz do Outro. Diante dos outros objetos, o objeto voz apresenta uma particularidade retratada por Lacan. Ele mostra que a pulsão invocante tem “esse privilégio de não poder fechar” (LACAN, 1985[1964]:188), porque diferentemente do se fazer ver, que situa a flecha em seu retorno para o sujeito, o se fazer ouvir indica um caminho em direção ao outro, na medida em que “os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único orifício que não se pode fechar” (:184). Collete Soler (2007) defende a proposição de que não existe um autismo puro. Segundo ela, existe uma mistura e, desta forma, define o autismo como um pólo. Neste caso, “trata-se de crianças que são como perseguidas pelos signos da presença do Outro, muito particularmente por dois objetos: o olhar e a voz” (SOLER, 2007:69). Tudo o que se apresenta como demanda, que se mostra imprevisível e inesperado, tem um impacto direto sobre essas crianças. Para Soler, a própria estabilidade da criança autista está diretamente na dependência de que o Outro não se mexa, buscando “manter uma espécie de homeostasia” (:72). Disso resulta o fato de que muitos psicanalistas que trabalham nesta clínica abordam estas crianças através de uma presença regulada e orientada. Orientada no sentido de que para elas o que vem do exterior, conforme assinalado por Kanner, o que 26 Referência à sugestão de Roman Jakobson para que seus alunos colocassem um gravador no berçário. 64 presentifica a demanda do Outro, é avassalador para elas. Verificamos na clínica que o mais indicado é permanecer de costas ou não se dirigir diretamente a elas, agir “como se fossem um barulho, em vez de uma voz” (idem). Tal estratégia corresponde ao fato de que a criança autista, ao se deparar com o olhar e a voz, apresenta reações intensas e as mais diversas, quando não imprevisíveis. Elas podem berrar, gritar, se automutilar ou mesmo agredir quem quer que esteja por perto. Dois fragmentos clínicos nos permitem observar esta defesa autística, na medida em que uma criança autista que “fecha seus ouvidos a alguma coisa que está sendo falada [...] não está no pré-verbal, pois é do verbo que ela se protege” (LACAN, 2003 [1967]:365). Um adolescente autista, nos passeios semanais que faz pela cidade acompanhado por um integrante da equipe de um projeto27, deixa bem claro que prefere circular pelos bairros da cidade usando o metrô ao invés do ônibus. Ora, sabemos que a circulação dos metrôs está submetida a horários planejados e pré-estabelecidos e, de certa forma, a uma movimentação regulada. Não há imprevistos. Ou seja, é preciso que nada se modifique, é necessária uma rotina ritualizada, pois a presença do Outro é indicativa de ser sentida como uma invasão. Um menino autista se recusa a sair do consultório quando é indicado o momento de ir embora. Ele grita, tenta morder a analista, esconde-se atrás de um móvel. Diante da confusão que isto causa, a analista passa a se dirigir aos pés desse menino, dizendo que eles, os pés, precisavam vestir as meias e calçar os tênis, a fim de irem e voltarem na próxima sessão. A esta intervenção do analista, o menino passa a sair tranquilamente da sala, desta vez sem o menor protesto. Assistimos na clínica do autismo a diversas e consideráveis manifestações, nas quais o corpo fica à mercê de perturbações que expressam o excesso de gozo, sem que aí se exerça a função do objeto, que consistiria em extrair do corpo esse excesso (BASTOS & FREIRE, 2006). Sem a extração do objeto, podemos estabelecer como hipótese desta pesquisa, que o autista se empenha em construir um objeto fora do corpo como uma maneira de regular o gozo. Esse objeto instaura uma borda entre o sujeito e o Outro. Pelo uso de objetos, tão próprio e caro aos autistas, e conferindo-lhes o estatuto de tratamento do gozo, inferimos que se trata de um modo de regulação do gozo, de uma tentativa de se subtrair desse excesso. 27 Trata-se do projeto de pesquisa já referido na nota 14. 65 Os objetos do desejo (olhar, voz) e da demanda do Outro (alimentos e excrementos) provocam algo da ordem do horror e da devastação para o autista. Kanner, em seu artigo “Os Distúrbios Autísticos de Contato Afetivo” (1997 [1943]), nos lembra que a “primeira intrusão vinda do exterior para a criança [autista]” (1997:160) é a alimentação. Da mesma forma, Kanner assinala que as pessoas, para os autistas, são uma “calamidade” (:169) Cláudio é uma criança de apenas 3 anos quando inicia seu tratamento na instituição. Seus pais chegam à entrevista preocupados com o fato de seu filho, tão pequeno, não come nada. Cláudio não aceita absolutamente nada que vem do outro. Sua alimentação se restringe a comer um determinado tipo de biscoito e a beber leite. Eduardo, outra criança bem pequena, só comia biscoitos e bebia refrigerantes. Sua mãe mostrava-se muito preocupada com os últimos resultados dos exames feitos no laboratório. Mesmo estando bem acima do peso para uma criança de 3 anos, Eduardo se recusava a se alimentar com outros tipos de alimento. Seus dentes estavam em péssimas condições e os resultados de seus exames laboratoriais não eram nada animadores. Contudo, verificamos também uma tentativa de regular e barrar a intrusão do Outro, o que permite certo apaziguamento. Matheus, uma outra criança, só começa a comer quando consegue verificar, de forma detalhada e rígida, a distância entre os talheres e o prato, o que transforma suas refeições em uma verdadeira odisseia. Uma outra observação que se faz necessário aqui é aquela que se refere ao fato de que muitas dessas crianças parecem surdas, embora não o sejam. Elas não manifestam nenhum desconforto diante de um intenso barulho ou, ao contrário, não conseguem suportar ambientes barulhentos. Por outro lado, apresentam importantes distúrbios da visão. Elas não “olham”, e/ou apresentam um estrabismo considerável. Soler nos faz lembrar que o primeiro momento em que uma criança dirige um olhar ao outro é um momento importante na direção do tratamento. 3.2.1 – A CONSTRUÇÃO DOS OBJETOS AUTÍSTICOS À semelhança de Freud e Lacan, que se utilizaram, para abordar os mecanismos da psicose, das formas mais elaboradas da defesa, Maleval apreende o autismo a partir da noção de defesa. Maleval (2008) sustenta a tese de que, no autismo, podemos identificar dois traços fundamentais, a saber: a defesa autística apoiada em um objeto e a carência da 66 identificação primordial – S1. Para ele, o autista recusa em ceder o gozo vocal e isso não será sem conseqüências quanto à inscrição do sujeito no campo do Outro. O autista se protege de toda e qualquer emergência angustiante do objeto voz. A verborragia, tão característica nos autistas, “parece ter por função abafar e conter uma voz da qual ele receia a manifestação” (2007b:75). Para Maleval, o autista “rejeita qualquer dependência ao olhar do Outro: recusa ceder o objeto de seu gozo vocal, de modo que ele resiste radicalmente à alienação de seu ser na linguagem” (2007:74). Este autor eleva o autismo a um “tipo clínico original” (2007b:89), situando-o no campo das psicoses por diversas razões. A que nos importa destacar, para efeitos nesta pesquisa, refere-se à existência de defesas específicas como modalidades de localização de gozo, a saber: uma fundada sobre os objetos, outra apoiada no duplo e outra ainda, ligada à assimilação de signos, através dos pontos de competência, definidos por Maleval como conhecimento magistral acerca de um determinado campo de saber, fonte do Outro de síntese. Para ele, são defesas que permitem o autista ter acesso a uma fala, possibilitando uma troca, na tentativa de remediar a desorganização do mundo devida a sua recusa de apelo ao Outro. Recolhendo os testemunhos das experiências de autistas de alto desempenho, como Donna Williams e Temple Grandin, Maleval (1997) afirma “a função asseguradora e essencial” (:136), por parte de certos objetos, para a manutenção de uma ordem no mundo destes autistas. É sobre eles que se apóia a defesa autística: “Ela se desenvolve por meio da justaposição de significantes com esses objetos” (idem), diz Maleval, que destaca a função contentora do gozo que é própria dos objetos autísticos. Segundo Maleval (2009), para Eric Laurent a defesa do autista é definida como o retorno do gozo sobre a borda. Diferente da esquizofrenia, em que o gozo retorna no corpo, e da paranóia, em que o gozo retorna no Outro, na figura do perseguidor. Poderíamos assinalar que o retorno do gozo, no caso do autismo, seria um retorno no real dos próprios buracos corporais que não se constituíram como bordas erógenas, como ponto de satisfação para a obtenção do prazer. Melhor dizendo, um retorno lá onde não há borda, em uma tentativa de fazer borda, na medida em que esse retorno incide no corpo fragmentado. Vale assinalar, aqui, um ponto de semelhança entre o autismo e a esquizofrenia, os quais apresentariam um retorno de gozo em partes fragmentadas, não pressupondo a unidade imaginária e simbólica do corpo. 67 Apoiando-se nas formulações de Eric Laurent sobre borda autística, Maleval inclui novos elementos a este conceito, os quais participam no trabalho de localização do gozo, a saber: o ponto de competência, fonte do Outro de síntese, o duplo e o objeto que participam no trabalho de localização do gozo. Por sua vez, referindo-se à elaboração da defesa autística, Maleval (1997:136) distingue quatro formas na construção do objeto autístico.28 A primeira refere-se ao objeto autístico regulador, onde o sujeito pode aí se deslocar, mas mantendo ainda a referência fixada pelo significante. Segundo Maleval, a principal função do objeto autístico complexo consiste em tratar o gozo que retorna sobre a borda (2009:238). A mobilidade neste caso é um pouco maior na medida em que o sujeito, em razão da distância aí instalada, poderá “desenvolver capacidades de adaptação a situações imprevistas” (1997:137). Um exemplo disso é verificado em Temple Grandin. Para ela, é possível se distanciar de sua máquina do abraço a fim de realizar suas palestras mundo afora. Muito recentemente, assistimos, em um canal de televisão fechada, a uma reportagem em que Temple declarava que passou a prescindir do uso da máquina do abraço.29 A segunda refere-se ao objeto autístico regulado, conhecido como os objetos utilizados pelos autistas eruditos, onde os significantes são tomados em massa. Temos como exemplo os catálogos de telefone, as placas de rua, os horários dos trens e do metrô, os números dos ônibus, os calendários. A terceira é referida ao objeto autístico não regulado, onde este é portador de significantes que contribuem para um ordenamento do mundo de maneira mais elaborada. “O sujeito se encontra seja colado a ele [...], seja em um estado de inércia devido a um deixar cair” (MALEVAL, 1997:136). Vejamos um exemplo de objeto autístico não regulado: Não era possível para José circular por entre os clínicos sem um pequeno urso de pelúcia amarrado, com fita crepe, ao dorso de sua mão. Primeiro foi o ursinho, depois uma panela. José não permitia que ninguém mexesse nos objetos de seu interesse. Com eles colados ao seu corpo, era possível para ele participar do cotidiano da instituição. 28 Não adotaremos esta divisão apresentada por Maleval como uma categorização, uma classificação dos objetos autísticos, por entender que, no trabalho do autista, ocorre uma transição, uma transformação de um objeto em outro. 29 A máquina elétrica de Joey de Bettelheim (1987) e a máquina do abraço de Temple Grandin (2006) constituem os dois objetos autísticos complexos mais conhecidos, pesquisados e estudados por aqueles que trabalham na clínica do autismo. 68 Por fim, no quarto objeto, o objeto autístico bruto, não são encontrados significantes organizados, mas ele é utilizado pelo sujeito para colocar certa ordem no mundo através de seu trabalho de manter a imutabilidade e para proteger-se do desejo do Outro. São exemplos deste objeto as bolinhas, as tirinhas, os fios, os brinquedos etc. Maleval (2009) lembra que Tustin dá grande ênfase ao fato de que o objeto autístico funciona como um duplo do sujeito. Mas isso não significa que ela acolha esta dimensão de duplo na direção do tratamento. Para ela, o objeto autístico está relacionado à carência das identificações e às sensações inapropriadas que a criança retira de seu próprio corpo. Tustin reconhece o caráter protetor do objeto autístico contra a angústia. Este objeto é usado como uma barreira autossensual, mas a autora não retira disto uma consequência clínica, mantendo como direção do tratamento a queda deste objeto, que deve ser substituído por um objeto transicional, seu sucessor. Como para as crianças autistas tornar-se vivo e humano é algo bastante apavorante (TUSTIN, 1990), é com seus objetos que elas realizam as suas primeiras experiências para adquirir vida, ligando-se a um duplo que irá proporcionar uma proteção contra a angústia de tornar-se humano. Maleval sublinha um aspecto esquecido por Tustin no que se refere aos objetos autísticos. Para ele “as crianças autistas, que se experimentam como “inanimadas”, encontram em seu duplo objetal uma dinâmica vital essencial, tão manifesta, que desaparece a partir do momento em que elas se desligam do objeto” (2009:229). 3.2.2 – O DUPLO DO AUTISTA O casal Lefort trouxe contribuições importantes para o trabalho com o autismo, tecendo comentários clínicos muitas vezes surpreendentes, orientando-se pelos ensinamentos de Lacan, mas de uma maneira muito própria. A partir de seu trabalho analítico com Marie-Françoise e com o menino Robert, que lhes rendeu a escrita de dois importantes livros (“Nascimento do Outro”, de 1980, e “A distinção do autismo”, de 2003), os Lefort redirecionaram o trabalho psicanalítico com aqueles sujeitos cujo problema está centrado, segundo eles, na ausência do Outro, e também esvaziaram a orientação cuja captação imaginária era um norte. O último trabalho de Rosine e Robert Lefort (2003) desenvolveu-se em torno da distinção entre o autismo e a esquizofrenia. Afirmam que o autismo difere da esquizofrenia não somente pelo momento de seu aparecimento, mas por sua evolução. 69 Na esquizofrenia, as evoluções se alternam com períodos normais ou, ao contrário, com uma evolução incapacitante nos casos muito graves. Ressaltam que a grande diferença entre ambos é que o autista não delira. Para eles, a criança autista está fora da alienação, sem acesso à função representativa do significante, onde o S2 não se encontra articulado ao S1 e, portanto, não representa o sujeito para outro significante. O que lhe resta é a ecolalia, a possibilidade de se situar em posição de duplo, na linguagem, mas fora do discurso. No que se refere ao autismo, ressaltam [...] a ausência de divisão do sujeito, que não entra no significante sequencial da linguagem nem se representa por um S1, leva à ausência correlativa de um resto (a). É o que o sujeito tampa pela via de seu duplo, isto é, do mesmo, sem separação, posto que, desde o início, falta a alienação30 (LEFORT, 2003:61). Esta afirmação é elaborada a partir do tratamento de uma menina de 30 meses chamada Marie-Françoise, que trabalha com um boneco “marinheiro” na dimensão de seu duplo real, que tem uma função de tapa buraco (LEFORT, 1980:234). Ao falar sobre Temple Grandin, o casal Lefort constata a importância capital do duplo encarnado na vaca para esta autista. O duplo [...] pode ter função de suplência, muito mais eficaz que a que pode encontrar o psicótico, que uma dependência cola a seu Outro e ao objeto que, no real, deve a esse Outro. O duplo está também no real, mas pode fazer a separação com o Outro31 (LEFORT, 2003:62). Os Lefort não atribuem um papel e uma função importantes ao objeto autístico. No autismo, não se operou a extração de objeto no Outro, que permanece na dimensão real e da ordem do horror, pois dele o autista não consegue se separar. O Outro é situado no autismo como absoluto, sem objeto destacável. Se o Outro é tomado em sua totalidade, a relação que o autista mantém com ele será uma relação de destruição. Conforme Maleval, os Lefort entendem o objeto autístico por intermédio do duplo, como no caso de Marie-Françoise. 30 “[...] l’absence de division du sujet qui n’entre pás dans lê signifiant séquentiel du langage ni ne se represente par um S1 entrîne l’absence corrélative d’um reste, lê (a). C’est ce qu’il colmate par la voie de son doublé, c’est-à-dire du même, sans séparation, puisqu’il manque au départ l’aliénation”. 31 “[...] lê double peut faire fonction de suppléance, suppléance beaucoup plus efficace que celle que peut trouver lê psychotique qu’une dépendance rive à son Autre et à l’objet qu’il lui doit dans lê réel. Lê doublé est bien dans lê réel, mais peut faire séparation de l’Autre”. 70 Diz Maleval que os autistas se ligam a um duplo protetor e, se esse duplo consegue se articular ao Outro de síntese participando de uma ilha de competência, ele se tornará um objeto autístico complexo (objeto autístico regulador), podendo estenderse até o campo social. Enquanto o objeto autístico simples comparece colado ao sujeito a serviço de seu isolamento, o objeto autístico complexo “afasta o gozo do corpo do sujeito para localizá-lo em uma borda, que não é mais somente barreira ao Outro, mas também conexão à realidade social” (MALEVAL, 2009:235). Ele se pergunta: qual é o tratamento de seu duplo operado pelo objeto autístico complexo? Neste ponto, lembra a construção da máquina do abraço de Temple Grandin (GRANDIN, 2006:89), a qual se deu a partir de sua visita à fazenda de sua tia no Arizona, quando pela primeira vez teve contato com um aparelho que era feito para imobilizar o animal. O manejo com o gado no brete exigia o uso deste aparelho, pois era preciso marcar, vacinar e castrar o animal. O uso da máquina, o ligar e o desligar do aparelho de Temple, bem como as máquinas de Joey consistem, segundo Maleval, em introduzir um corte no gozo desregulado do autista e, consequentemente, um enquadramento do objeto do gozo, o que lhe permite sustentar sua explicação do apoio no duplo dos objetos autísticos complexos, apoio que tem como resultado um efeito de dinâmica subjetiva. Em suas palavras, o duplo do autista é uma imagem dinâmica que encerra e mascara o objeto a não negativizado pela função fálica, o que o torna atrativo, mas o deixa às voltas com a pulsão de morte, daí a relação por vezes ambivalente do sujeito com ele [...] duplo “vivo”, portador de um retorno de gozo sobre a borda (MALEVAL, 2009: 250-51). Para o autor, uma das formas mais sofisticadas do objeto autístico complexo é, sem qualquer dúvida, aquela à qual chega Donna Williams (1992) após abandonar os seus companheiros imaginários. O duplo se apaga e, ao fazê-lo, se prende à imagem no espelho. Ela descreve o fenômeno: eu apreciava ter tanto tempo para mim e me possuir integralmente sem personagens. Corri para o banheiro. ‘Bom-dia’, dizia-me eu diante do espelho. Pintei um espelho pendurado na parede do salão, com capim alto em primeiro plano e uma moldura de roseiras trepadeiras selvagens de todas as cores. Deitava-me na frente dele, de modo a parecer deitada no capim alto do mundo invertido; o Sol do quadro brincava loucamente com o capim e lhe dava todas as nuances de verde, dourado e marrom. Levava, por vezes, minha refeição para almoçar comigo no espelho. Nós ficávamos sentadas, as duas, no belo capim selvagem, alto e em movimento. Juntas, cercadas de rosas, não havia mais do que eu e eu no espelho. Sem lugar. Sem mundo. Sem 71 solidão. Os outros não eram mais também tão importunos desde que eu passava tanto tempo comigo (WILLIAMS, 1992:275). O duplo escópico de Donna Williams parece constituir um obstáculo ao acesso à falta do Outro, “que seu duplo não dá lugar a seu ser, por não poder alojá-lo no campo do Outro” (MALEVAL, 2009:252). Tampouco propicia um canal de contato com o mundo, pois, segundo Maleval, ela se isola em reflexos narcísicos, em uma solidão que é povoada por ele mesma. Mas é interessante notar que isso permite a ela construir um “laço precioso” com um companheiro, com a condição de que ele esteja no lugar do duplo. Durante muitos anos, ela somente conseguirá manter uma relação com autistas de alto nível, regra que só será quebrada a partir de seu encontro com Ian, cuja relação se estabelece no registro de um “pertencimento”, “assexual” e “platônico” (WILLIAMS, 1996:295). Eles se casam, mas se separam dois anos depois. Concordamos com Maleval quando afirma que o duplo pode constituir uma via privilegiada para o estabelecimento de uma transferência com o autista. Ele ilustra esse aspecto ao comentar o tratamento de Donna Williams com Mary, sua analista. Na mesma direção do casal Lefort, que admite que a relação do autismo com o Outro é da ordem da destruição, Maleval ressalta que um risco se corre aí, na medida em que esta relação pode se reduzir em uma ambivalência destrutiva, salvo se o analista souber apagar sua presença. Se este encarnar demais a posição do duplo, acaba por nutrir ilusões de fusão telepática que, muitas vezes, podem suscitar uma vivência de intrusão. Abordamos aqui a fusão telepática como fenômeno na clínica e não como conceito Este aspecto é observado, na clínica, não entre um analista e um autista, mas entre um adolescente diagnosticado com Asperger e uma adolescente psicótica32. Ambos possuem o interesse pelos videogames com jogos baseados nos Pokemons. Estes aparelhos possuem uma propriedade bastante particular para os dois, na medida em que quem os tem, pode jogar de forma interativa. Como somente os dois possuem os aparelhos, são eles que podem se conectar. Este adolescente, em determinados momentos exclamava: “A conexão só pode ser feita quando se está perto” (sic). Conectado à adolescente através do jogo, ele ria e dizia: “Estou pondo armadilhas para pegar Juliana” (sic) e “Nunca havia me conectado antes” (sic). Juliana serve como um duplo para este adolescente, em sua função regulatória, na localização de gozo. 32 Este fragmento foi apresentado em supervisão nas reuniões das oficinas dos adolescentes do NIJ, pelos clínicos Marcos Jordão e Aline Souza que coordenam uma oficina. Escuto este adolescente uma vez por semana desde novembro de 2007. 72 Da mesma forma que Donna Williams, através de seus amigos imaginários Willie e Caroll, e que Temple Grandin, com seus personagens Bishan e Alfred Costello, um outro autista de alto desempenho, Daniel Tammet (2007), relata que estabelecia diálogos com uma velha senhora, chamada Anne, de mais de cem anos, que o tranquilizava em seus momentos de maior angústia. O recurso ao duplo é encontrado com bastante frequência no trabalho clínico com autistas de alto nível. Lembremos também do menino Joey, que frequentou, por 9 anos, a Escola Ortogênica de Bruno Bettelhein (1987), que inventa Valvus, o qual lhe serve de duplo e, com ele, consegue operar uma certa regulação do gozo pulsional. Maleval nos faz notar, no caso de Joey, “o enredamento dos componentes da borda: o objeto autístico é um duplo e seu tratamento da energia elétrica orienta Joey para estudos em eletricidade, nos quais encontra um espaço de competência, na base do desenvolvimento de seu Outro de síntese” (MALEVAL, 2009:244). Os testemunhos dos autistas de alto desempenho trazem uma contribuição significativa no que se refere ao uso dos objetos autísticos complexos para a saída do fechamento autístico e a invenção de possíveis e inéditos laços com o social. Certamente, eles contribuem para dar consistência à imagem do corpo, assim como protegem da angústia. Por intermédio deles, o gozo desregulado é captado, localizado e circunscrito, colocado à distância, o que permite uma animação pulsional. 3.3 – O RETORNO DE GOZO NA CONSTRUÇÃO DA BORDA NA DEFESA DO AUTISTA Devemos aqui fazer algumas considerações acerca da questão do corpo, pelo viés da importância da imagem na constituição do corpo. Para a psicanálise, o corpo não é o biológico, corpo da anatomia e dos estudos intervencionistas e invasivos da medicina, mas uma construção que implica, para Lacan, uma imagem totalizante na composição do qual o Outro como olhar tem um lugar fundamental. 3.3.1 – O ESTÁDIO DO ESPELHO Vejamos como ele enuncia a função fundamental do estádio do espelho como dialética entre o corpo fragmentado, despedaçado, e a imagem antecipatória de uma 73 totalidade corporal. Para Lacan, o estádio do espelho tem como revelar certas relações do sujeito à sua imagem. Em suas palavras, é a aventura original através da qual, pela primeira vez, o homem passa pela experiência de que se vê, se reflete e se concebe como outro que não ele mesmo – dimensão essencial do humano, que estrutura toda a sua vida de fantasia (LACAN, 1979[1953-54]:96). Foi, em 1936, no Congresso de Marienbad, que Lacan formulou, pela primeira vez, a teoria do estádio do espelho, consagrada alguns anos depois, com “O estágio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica” (1949), comunicação feita no XVI Congresso Internacional de Psicanálise em Zurique. Trata-se de situar a imago como o conceito-chave para a investigação do psiquismo, através de uma atividade que ocorre com a criança no período entre 6 e 18 meses. Para Lacan, basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, situando aí a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem. Esta teoria parte da ideia do desconhecimento original do sujeito a respeito de sua totalidade, o que lhe faz vivenciar a experiência do corpo despedaçado, mergulhado na impotência motora e na dependência do outro. A experiência do espelho conduz a criança a reconhecer sua imagem no espelho, na medida em que ela antecipa, ilusoriamente, uma totalidade corporal. No entanto, “a maturação de sua potência só lhe é dada como Gestalt” (LACAN, 1998[1949]:98). Trata-se, inicialmente, da primeira identificação com a imagem especular, alicerçada na “referência transicional que se estabelece em sua relação com o outro imaginário, seu semelhante” (LACAN, 2005[1962-63]:103). A alegria da criança diante do espelho “é devida a seu triunfo imaginário em antecipar um grau de coordenação muscular que ela na verdade ainda não alcançou”33 (LACAN, 1951:14). Para Lacan: a assunção jubilatória de sua imagem especular [...] manifesta, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe ressitua, no universal, sua função de sujeito (LACAN, 1949:97). Essa forma, designada por Lacan por eu ideal, situa a instância do eu. 33 “[...] est due à son triomphe imaginaire, d’anticiper um degré de sa coordination musculaire qu’il n’a pas encore véritablement atteint”. 74 O corpo, para a psicanálise, não se constitui sem imagem. A imagem alvo da identificação não é o reflexo da criança no espelho, mas a do seu semelhante. Sua identidade jamais deixará de ser algo que lhe vem do exterior, daí Lacan afirmar é sempre difícil distinguir a identidade do sujeito da identidade do outro (LACAN, 2005[1962-63]). A relação do sujeito com sua imagem é, certamente, alinhavada pelos significantes, na medida em que esta imagem lhe vem originalmente de fora, a partir da intervenção do Outro como matriz simbólica. No que se refere à captura na imagem do semelhante, é possível reconhecer dois aspectos destacados por Lacan, a saber: a permanência mental do eu e sua destinação alienante (LACAN, 1998[1949]:98). Da prematuração corporal para a antecipação, o estádio do espelho é um drama que fabrica para o sujeito, diante de uma identificação ilusória, fantasias que vão desde a imagem do corpo despedaçado até sua totalização. Desta forma, a imagem funcionará para o sujeito como um véu, diante da vivência de despedaçamento característica da dimensão real do corpo pulsional. Para Maleval, no autismo essa imagem não se constrói, o que faz com que o especular compareça na forma de duplo. Mas há uma discordância entre a imagem refletida no espelho e a vivência de despedaçamento do corpo promovida pela falta de coordenação motora, o que nos faz perguntar se a percepção da imagem do outro não é o suficiente para constituir a imagem unificada do corpo. Lacan, em seu seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (1964), ao falar sobre o Outro como lugar da cadeia significante, campo a partir do qual o sujeito se constitui, nos chama a atenção para o fato de que “é do lado desse vivo, chamado à subjetividade, que se manifesta essencialmente a pulsão” (LACAN, 1985[1964]:194). Pulsão, termo empregado por Freud de uma forma bastante específica, distinta da psicologia e da física, recebendo um estatuto de conceito fundamental. Para Freud, constitui-se num mito. Lacan, por seu turno, irá tomá-lo como uma ficção fundamental (1964). É através da articulação que promove entre significante e corpo que Lacan aborda o termo pulsão. A pulsão, diz ele, é “precisamente essa montagem pela qual a sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que se deve conformar com a estrutura de hiância que é a do inconsciente” (1994:167). A integração da sexualidade à dialética do desejo, segundo ele, passa pelo aparelhamento do corpo. 75 Lacan sublinha que a pulsão “não é o impulso” (:154), “o que caracteriza o Drang34, o impulso da pulsão, é a constância mantida” (:162), na medida em que a constância do impulso impede uma apropriação da pulsão a uma função biológica. Explicitando uma relação antinômica entre pulsão e satisfação, Lacan nos faz lembrar que a função da pulsão coloca em questão o que é da ordem da satisfação, no que estabelece uma distinção entre satisfação de uma necessidade e satisfação pulsional: [...] nenhum objeto de nenhum Not, necessidade, pode satisfazer a pulsão [...] a pulsão apreendendo seu objeto, aprende de algum modo que não é justamente por aí que ela se satisfaz, [...] [pois] essa boca que se abre no registro da pulsão – não é pelo alimento que ela se satisfaz, é como se diz, pelo prazer da boca (LACAN, 1985[1964]:159). É sobre o fundo de um vazio que a pulsão irá traçar seu circuito em um movimento de vaivém, contornando os buracos do corpo, constituindo e demarcando as zonas erógenas, que, para Lacan, têm uma “estrutura de borda” (:160). Em suas palavras, “a superfície constituída pelo que lhes defini como a borda, que é considerada [...] a zona dita erógena na pulsão” (:169). Na estrutura de borda, situa que a “tensão é sempre um fecho, e não pode ser dissolidarizada de seu retorno sobre a zona erógena” (idem). Trata-se, aqui, da circularidade pulsional, “de sua reversão fundamental” (:168). De forma ativa, a pulsão irá encontrar, nas partes do corpo erógeno (seio, fezes, olhar e voz), uma satisfação sempre parcial. Mas da pulsão só podemos ter notícias através de seus ecos no corpo (LACAN, 2007[1975-76]:18), por meio do vaivém pulsional em torno das zonas erógenas. Na clínica do autismo, verificamos que os fenômenos de desorganização pulsional indicam que a demarcação no corpo das zonas erógenas constitui um problema. É problemática a montagem do circuito pulsional em torno dos orifícios corporais, os quais constituem zonas erógenas. É em torno dos buracos corporais que a pulsão se inscreve em seu curso circular, em sua forma de retorno. O corpo se apoia na construção de bordas em torno dos buracos corporais instauradas via significante. No autismo, as zonas erógenas não fazem borda por não constituírem zonas de investimento erógeno. Os autistas babam e o defecar é um problema. O corpo se apresenta em dificuldades, radicalmente alterado. Conforme Oliveira (2010), “a funcionalidade dos 34 Os outros três elementos da pulsão são: Quelle, a fonte, o Objekt, o objeto e o Ziel, o alvo (LACAN, 1964:154). 76 órgãos se deve à montagem do circuito pulsional em torno dos orifícios corporais e da sua constituição como zonas erógenas” (OLIVEIRA, 2010:119). É a linguagem que circunscreve os órgãos, proporcionando um ordenamento e uma operatividade, dandolhes uma função. O que nos permite evidenciar que, no autismo, a montagem do circuito pulsional se apresenta ausente, na medida em que os buracos do corpo não se constituem como bordas erógenas. Éric Laurent, em seu texto “Uma psicanálise orientada para o real” (2007), nos fala de Daniel Tammet, um autista de alto nível. Tendo sofrido horrivelmente na infância com seu autismo, Daniel passou a fazer um uso bastante singular dos números, que, para ele, tinham a capacidade de acalmá-lo. Tudo começou depois de uma crise epiléptica, aos 4 anos. “O número 11 é amigável e o 5 é ruidoso, enquanto 4 é tímido e quieto [...] o número 117 – alto e magricela [...]. O número 1 é de um branco brilhante, como se alguém apontasse uma lanterna nos meus olhos. Cinco é uma trovoada ou o som de ondas batendo nas rochas. Já o 37 é grumoso feito mingau, enquanto o 89 lembra neve caindo” (TAMMET, 2006:2). Daniel possui um talento extraordinário que lhe permite realizar cálculos fantásticos. Para ele, é possível dizer, a partir de uma data de nascimento, o dia da semana que corresponde a essa data. O dia também tem uma cor, o que pode explicar o título de seu livro: “Born on a blue day”35. Laurent lembra que Daniel teve seus “quinze minutos de fama”, em 2004, ao escolher o dia de nascimento de Einstein, 14 de março, para trazer a público seu talento. Neste dia, enumerou os máximos decimais possíveis do número л, série cuja sucessão não se pode prever. Ele obteve 22.514 cifras sem cometer um erro sequer. Para Laurent, a linguagem dos números engendra a mesma estrutura que uma sequência sem lei. É aí o ponto em que a linguagem e real vêm conjugar-se em uma espécie de estranha topologia na qual a linguagem se dobra ao real, acerca-se dele, amarra-o, à condição de ter ele mesmo a estrutura de um número real, de uma seqüência sem lei, sem modo de resumi-la (LAURENT, 2007: 11) Todo o sujeito tem, para com os órgãos do corpo, um modo singular de operar, de lhes inventar uma função, com o auxílio de um discurso estabelecido. Mas não é o 35 “Nascido em um dia azul” 77 que ocorre com o esquizofrênico, que “fica reduzido a descobrir que seu corpo não é sem outros órgãos, e que a função de cada um deles lhe cria problemas [pois é] apanhado sem a ajuda de nenhum discurso estabelecido” (LACAN, 2001[1972]:475). Com esta passagem, Lacan nos permite entrever a particular relação do psicótico com a linguagem, “na medida em que ele está habitado por ela, confrontado com um ‘fora do discurso’, com o fato de nem sempre habitá-la” (FREIRE&MONTEIRO, 2009:80). Mas, no que se refere ao autismo, Laurent ressalta que, no caso deste autista de alto nível, a conexão da linguagem, estabelecida desta forma, engendra-se a um corpo, “uma cápsula fechada sem bordas que seria o verdadeiro corpo sem órgãos” (LAURENT, 2007:11). Laznik-Penot (1994) indica sua posição ao afirmar que as zonas erógenas “não são tomadas num circuito pulsional” (:42). Podemos inferir que, não havendo circuito pulsional, o corpo não é circundado pela pulsão; esta se mantém em desordem, seus orifícios não funcionam como zonas erógenas, limitando-se a serem buracos no corpo totalmente preenchidos ou esvaziados, sem qualquer tipo de regulação. Tudo pode ser levado à boca, objetos podem ser colocados no ânus ou no ouvido, sejam eles quais forem. Não há construção do corpo erógeno e a imagem corporal não se constitui como unificada. Daniel é um rapaz autista36. A gravidade de seu quadro testemunha a desordem pulsional a que está submetido. Daniel tenta machucar-se, usa a mão de um outro para ferir-se, em uma tentativa de produzir algum furo no real do próprio corpo. Um outro rapaz autista está mergulhado em seu trabalho, em uma tentativa de construir um corpo, mas um problema se apresenta. Este menino imediatamente arranca os membros e cabeça de sua boneca, que fica, portanto, despedaçada. Logo depois de fazê-lo, o menino, usando o chão como base, tenta reconstruir a boneca, embora mantenha a cabeça e os membros separados do tronco. Tudo é medido: o espaço entre os membros superiores e inferiores e o tronco, entre a cabeça e o tronco. Ali passa bom tempo, não permitindo que ninguém reconstrua o corpo da boneca. Ele se agita, berra, pula e empurra quem estiver por perto. 36 Este caso foi apresentado e discutido no artigo intitulado “A ‘prática entre vários’ e a invenção do sujeito” in “Autismo e Psicose na Criança: Trajetórias Clínicas”, de Jeanne Marie L.C. Ribeiro e Katia Alvares de Carvalho Monteiro, 2004. 78 3.3.2 – O ESQUEMA ÓPTICO Trabalhamos com a hipótese de que, no autismo, a instauração da relação especular é um problema, e, neste sentido, faz-se necessária uma referência ao esquema óptico. O experimento do buquê invertido FIGURA 1 Lacan recorre a um experimento clássico da Física, conhecido como a experiência da ilusão do buquê invertido, cuja referência encontra-se em “L’Optique et photométrie dites géometriques”, de Bouasse, que explica a reação de raios luminosos diante de um espelho côncavo37. Esse esquema permite que Lacan ilustre as relações do mundo imaginário com o mundo real na constituição da realidade psíquica. Ele constrói um aparelho que tem um valor metafórico. Neste experimento, uma caixa vazia é colocada no centro do espelho esférico, com a abertura voltada para esse espelho e sobre ela é colocado um vaso. Embaixo da caixa, é colocado um buquê de flores, ou seja, as flores são colocadas de cabeça para baixo. Um espelho esférico tem como característica produzir uma imagem real, ou seja, a cada ponto de raio luminoso que emana de um objeto colocado a certa distância, corresponde simetricamente um outro ponto luminoso, conferindo ao objeto uma imagem real. Lacan nos adverte de que não se trata de uma imagem virtual mostrada através de um espelho. Isto significa que o buquê reflete-se sobre a superfície do espelho. Pela convergência dos raios no gargalo do vaso sobre a caixa, é produzida a imagem real do buquê de flores. Mas, para que isso ocorra, é preciso que o olho esteja 37 Trata-se, aqui, de um espelho esférico que tem a propriedade de se constituir uma superfície refletora. Existem dois tipos de espelhos esféricos: côncavo (face interna é refletora) e o convexo (face externa é refletora). 79 em certa posição, suficientemente afastado e situado no interior do espelho esférico. Caso isso não ocorra, ou seja, se o olho estiver no exterior do espelho, as coisas serão vistas em seu estado real, ver-se-á o interior do mecanismo: um vaso vazio ou as flores sozinhas. Aqui não se trata da imagem real. Lacan assinala que, dependendo da posição do olho que olha, pode-se distinguir um certo número de casos que permitiria compreender as diferentes posições do sujeito em relação à realidade. Lacan afirma que: Para que a ilusão se produza, para que se constitua, diante do olho que olha, um mundo em que o imaginário pode incluir o real e, ao mesmo tempo, formá-lo, em que o real também pode incluir e, ao mesmo tempo, situar o imaginário, é preciso que uma condição seja realizada [...] o olho deve estar numa certa posição, deve estar no interior do cone (LACAN, 1979[1953-54]:97) Na relação do imaginário e do real e na constituição do mundo, Lacan afirma que tudo depende da situação do sujeito caracterizada por seu lugar no mundo simbólico. A localização do olho identifica a posição do sujeito no mundo da palavra, “segundo um caso ou outro, ele está no campo do cone ou não está” (LACAN, 1970[1953-54]:97). Esta localização assegura que “o motor dessa observação é a virtude da palavra [...] o ato da palavra é um funcionamento coordenado a um sistema simbólico já restabelecido, típico e significativo” (:106). Ao situar a imagem do corpo “como o vaso imaginário que contém o buquê de flores real” (:96), Lacan localiza na imagem a via que dá a unidade do sujeito, conferindo-lhe a consistência imaginária de ter um corpo como continente para os objetos pulsionais. É a imagem do corpo que “dá ao sujeito a primeira forma que lhe permite situar o que é e o que não é do eu. [...] Aí está como nós podemos representar o sujeito anterior ao nascimento do eu, e o surgimento deste” (idem), mas não sem as marcas do Outro, lugar onde o sujeito pode se alojar. Lacan propõe algumas modificações (figura 2) para este esquema no texto “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache” (1960). FIGURA 2 80 A primeira modificação foi colocar um vaso sob uma caixa colocada no centro da curvatura de um espelho esférico e o buquê de flores em cima desta caixa. Isto produz a imagem real do vaso circundando com seu gargalo o buquê de flores. Esta modificação é seguida pela introdução de um espelho plano, como função de Ideal do eu, de forma que um observador situado dentro do aparelho veja a imagem virtual do vaso com o buquê de flores gerada do reflexo da imagem real, ou seja, uma imagem virtual da imagem real. Lacan chama de A o espelho plano, de i(a) a imagem real do vaso e de a as flores. O sujeito, vendo a imagem virtual, i’(a), produzida pelo espelho plano A, verá sua própria imagem no espaço real, i(a), no interior do cone. Melhor dizendo: em um “ponto simétrico ao ponto em que está a imagem real, o sujeito verá aparecer essa imagem real como imagem virtual” (LACAN, 1979[1953-54]:147). No espaço virtual, o qual se encontra além do espelho plano, veremos se constituir a imagem especular, i’(a), onde o sujeito se reconhecerá como eu. A introdução do espelho plano neste experimento é feita por Lacan em seu texto “Os Escritos Técnicos de Freud” (1953-54) para garantir que “o olho tenha exatamente a ilusão do vaso invertido, para que ele veja nas condições ótimas” (:147). Refere-se, aqui, à posição do sujeito, determinada pelo lugar que ele ocupa no simbólico, o qual, por sua vez, tem a função de sustentação, de suporte da consistência da imagem corporal narcísica, desempenhada pelo espelho plano, distinta de uma imagem borrada que, anteriormente, um espelho côncavo oferecia. Tal como Freud, Lacan situa no interior da dialética do narcisismo a função do investimento da imagem especular, tempo fundamental da relação imaginária. Localiza aí dois narcisismos. O primeiro, situado ao nível da imagem real do esquema do buquê invertido, ou seja, a primeira imagem reproduzida pelo espelho esférico; e o segundo, localizado a partir da introdução do espelho plano, onde “a reflexão no espelho manifesta uma possibilidade noética original [...] o seu pattern fundamental é imediatamente a relação ao outro” (:148). Trata-se da identificação narcísica, que é a identificação ao outro, a qual “permite ao homem situar com precisão a sua relação imaginária e libidinal ao mundo em geral” (idem). O espelho intervém, no que concerne ao domínio do imaginário, onde “o sujeito se identifica, em seu sentimento de si, com a imagem do outro, e de que a imagem do outro vem cativar nele esse sentimento” (LACAN, 1998[1946]:182). Mais uma vez, o elemento simbólico representado pelo espelho plano é assinalado. Ao falar da identificação ao semelhante na forma de uma imagem refletida, Lacan, nesse momento de sua elaboração teórica, se 81 aproxima do Freud de “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921), que percebe, na identificação, “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (:133). Com a introdução do espelho plano no esquema, Lacan esclarece que as relações entre i’(a) e i(a) não devem receber uma explicação ao nível da óptica, mas “como sustentando uma subordinação imaginária análoga” (LACAN,1998[1960]:682), identificando duas imagens, a saber: a imagem real e a imagem virtual. Com as modificações introduzidas no esquema, a imagem virtual, i’(a), é produzida a partir da ilusão da imagem i(a), que “decorre de uma subjetivação [...] pelas vias da autocondução” (idem), o que evidencia, na constituição do corpo, a captura imaginária. Para Lacan, o esquema óptico [...] indica, pelo vaso oculto na caixa, é o pouco acesso que o sujeito tem à realidade desse corpo, perdida por ele em seu interior, no limite em que redobra de camadas coalescentes a seu invólucro, e vindo costurar-se neste em torno dos anéis orificiais, ele o imagina como uma luva que pode ser virada pelo avesso (LACAN, 1998[1960]: 682). Assim, o sujeito tem com seu corpo uma “obscura intimidade” (idem). Com a inclusão no experimento do espelho plano, Lacan ilustra o estádio do espelho naquele momento em que o infans se reconhece de forma jubilatória, na imagem que lhe é oferecida. O espelho plano no esquema óptico, Lacan o designa no lugar do Outro. Mesmo na relação especular, em seu momento mais puro, Lacan o consagra na triangulação, no tempo do reconhecimento pelo Outro da imagem especular. Refere-se ao gesto feito pela criança, que, quando diante do espelho, volta-se para aquele que a sustenta e apela com o olhar para confirmar o reconhecimento, com júbilo, de sua imagem. Depois retorna à imagem, apelando ao Outro que ratifique o valor dessa imagem. Lacan, nesse momento, indica a ligação inaugural entre a relação com o Outro e o advento da função da imagem especular (i(a)). No Seminário “A Angústia” (1962-63), Lacan localiza o a “acima do perfil do vaso que simboliza o continente narcísico da libido [i(a)] [...] que pode ser relacionado com a imagem do corpo próprio, i’(a), por intermédio do espelho [plano] do Outro, A.” (:98), aquela primeira imagem narcísica, posterior à vivência do corpo despedaçado. E salienta que entre i(a) e i’(a) ocorre a “oscilação comunicante que Freud designa como a reversibilidade da libido do corpo próprio para a do objeto” (idem). Mas, nessa 82 oscilação, algo intervém; algo cuja manifestação ocorre em função da incidência do objeto a. O que vemos aqui é a manifestação da angústia, sendo a “única tradução subjetiva” (:113) do objeto a. Pelas flores, o objeto a é representado no esquema óptico. Lacan salienta que, em um tempo anterior ao estádio do espelho, “aquilo que será i(a) encontra-se na desordem dos pequenos a que ainda não se cogita ter ou não ter. Esse é o verdadeiro sentido, o sentido mais profundo a ser dado ao terno ‘autoerotismo’ (:132). O esquema óptico de Lacan retrata exatamente o fundamento da consistência narcísica reguladora da dispersão autoerótica dos objetos pequeno a. “É com a imagem real, constituída ao emergir como i(a), que nos apoderamos ou não [...] da multiplicidade dos objetos a [...] constitutivos desse corpo, com pedaços do corpo [...], captados ou não no momento em que i(a) tem a oportunidade de se constituir” (:132). Sobre a incidência do objeto a na construção da imagem do corpo, Lacan nos permite entrever que podem ocorrer situações onde o sujeito pode não se apoderar da multiplicidade dos objetos a, da mesma forma que a imagem especular pode não se constituir devido a não extração do objeto a do campo do Outro. Interrogamos que situações poderiam ser essas. Parece-nos que o autismo estaria aí situado. 83 CAPÍTULO IV – O AUTISTA E A CONSTRUÇÃO DE SEUS OBJETOS: O CASOANDRÉ Nesta seção, pretendemos, a partir da análise de um caso, pensar questões que se referem à construção de objetos autísticos e sua relação com o trabalho de localização/circunscrição do gozo desenfreado para o sujeito autista. 4.1 – PRIMEIRO MOMENTO: DAS CONEXÕES REGRADAS AO “CHEGA DE CONVERSA” Nos primeiros atendimentos de André, encontrei um rapaz de 11 anos que falava muito rápido, sem intervalos, as palavras tropeçando umas nas outras, sem escansão entre elas. Muitas vezes era difícil entendê-lo. Enquanto falava, dava entonações diferentes aos enunciados e a cada vez sua voz ia ficando mais alta, não importando se seu interlocutor compreendia ou não o que falava. É o que nos indica Lacan: “o autista pode falar sob a condição de permanecer verboso” (1988[1975b]:134), revelando uma relação particularizada do autista com a linguagem. André falava sem nada dizer, não se endereçava ao interlocutor. Era claro que suas palavras provinham de um “repertório mental memorizado”38, de um “exercício de memória”. Suas primeiras brincadeiras consistiam em colocar um bloco de madeira em cima do outro, até fazer a pilha se desmoronar e esboçar um sorriso e dizer: “caiu”. Nas primeiras vezes, parecia fazer isso com grande satisfação; mas logo depois, no que a pilha novamente caía, André ficava muito irritado, jogando todos os cubos para o alto. Logo se desinteressou desta atividade e me fez conhecer o enxame de significantes desarticulados, onde o sentido se perdia na proliferação das palavras. Com lápis e papel, André se punha a desenhar e a fazer inúmeras listas e relações, como em um trabalho de progressão, relacionando o ano e a idade que teria até chegar aos seus 20 anos. Também realizava este trabalho com relação às séries da escola, ou seja, quantos anos ele teria em uma determinada série. Através de “conexões regradas e controláveis” (MALEVAL, 2009), André testemunhava uma forma muito particular de organizar seu mundo, de maneira a proteger-se de toda e qualquer tentativa de intrusão do Outro, em um trabalho contra a angústia que qualquer demanda pudesse presentificar. Todas as minhas tentativas 38 Williams, D. Quelqu’um quelque part. Editions J’ai Lu, 1996, pp. 73. Citado por J-C Maleval, em “Plutot Verbeux” (2007). 84 iniciais de compreender o que ele falava, fazendo-lhe perguntas, eram logo rechaçadas e totalmente ignoradas. Logo de início, constatei a extensão do que afirmara Lacan a propósito dos sujeitos autistas, a saber: “se eles não chegam a escutar o que vocês têm a lhes dizer, é por conta de vocês estarem preocupados com isso” (LACAN, 1988 [1975b]:21). André confirmou tal afirmação quando um dia me disse: “Chega de conversa”. Mas André também me fez ver que eu estava diante de um rapaz com graves perturbações no que se referia à linguagem, à relação com os objetos e com o outro, além de me permitir testemunhar as soluções encontradas por ele para operar seu tratamento do gozo. Vale dizer que, reorientada a direção de tratamento, André me permitiu, a partir do estabelecimento do laço transferencial, compartilhar e testemunhar a sua sucessão de signos. 4.2 – SEGUNDO MOMENTO: A CRIAÇÃO DO DUPLO: PAULA MADALENA Cerca de 10 meses após o inicio dos atendimentos com André, por questões político-institucionais, sou deslocada para outro setor do hospital, não sendo possível me despedir dele. Isso se mostra avassalador para André, que se desorganiza e pede para retornar aos atendimentos comigo. Naquele momento, nada lhe proporcionava conforto para temperar sua angústia, apenas as lembranças, nos seus mínimos detalhes, dos atendimentos comigo e com a primeira psicóloga que teve aos 5 anos de idade. Em função de mudanças na instituição, André é encaminhado para outra psicóloga39 que passa a atendê-lo. Neste momento, entra em cena uma personagem: Paula Madalena (figura 1). É quando observamos uma outra forma de elaboração de sua construção, provocando uma articulação significante mais complexa e elaborada. Daquele momento anterior, onde suas habilidades e aptidões com números, contas e letras estavam em evidência, onde a exclusividade de algumas letras ganhava peso para ele, encontramos agora um modo muito particular de dar tratamento ao gozo avassalador. Foi nesse momento que, valendo-se de papel, lápis e canetas hidrocor, André criou Paula Madalena de Jesus Martins, uma mulher de 88 anos nascida na Inglaterra, em 08/12/1900. Vale registrar a 39 André foi atendido, de dezembro de 1988 a agosto de 1989, pela psicóloga Lucia Dantas. Estas informações foram colhidas no prontuário de André a partir dos relatos desta psicóloga no período em que ela o atendeu. 85 observação feita pela nova psicóloga no prontuário, de que a data de nascimento de Paula Madalena era exatamente o dia e o mês em que André a conheceu. Este dirigiu-se à psicóloga, falando que ela conhecia a mulher que ele havia desenhado. É importante assinalar que o conteúdo dos desenhos e dos relatos escritos e falados sobre a vida de Paula Madalena apresenta íntima ligação com o cotidiano e os interesses de André. Paula Madalena encarna então um “duplo protetor” para André. Seguindo as indicações de Maleval (2009), podemos ver aqui que o objeto autístico de André participou na criação do duplo e este pôde tornar-se um objeto autístico como forma de dar tratamento ao gozo. Segundo Maleval, “o Outro do autista não está totalmente ausente [...] o autista não ignora que, para além dos duplos protetores, um Outro, que goza se sustenta. Um Outro que, como o próprio sujeito, não cede o gozo” (2009:7). Não será a encarnação da plenitude de seu Outro real, quando escreve no alto da folha o título o fantasma da Paula Madalena (figura 2) ao desenhar uma “outra pessoa” nomeada também de Paula Madalena? Esta “outra pessoa” (figura 3) é desenhada, tomando como modelo a psicóloga, mas agora com um rosto assustado e olhos arregalados. O desenho é pintado integralmente de vermelho. Ao lado e ligada por um traço, é desenhada uma forma que ele chama de cérebro de Paula Madalena. Em seu primeiro desenho, esta personagem estava sem as pernas (figura 4) e os pés, o que fez André, nos encontros seguintes, desenhá-los um em cada folha. Na folha seguinte, ele desenhou o “peru” e o “bumbum” (figura 5) da Paula Madalena, quando, ao final, a partir da intervenção da psicóloga, André juntou as partes do corpo antes separadas. Nos desenhos seguintes, Paula Madalena ganhou irmãos: Ana Maria, de 8 anos, e Nilson dos Santos, de 10 anos, (figura 6) e também uma mãe (figura 7) que morava em uma fazenda, criava gado, cavalos, tinha muitos empregados, tomava leite puro, comia pão com manteiga e biscoito doce. Ela tinha 44 anos. Foi observado pela psicóloga que a idade escrita correspondia à metade da idade de Paula Madalena e também à idade, na época, da mãe de André, ou seja, a filha era mais velha que a mãe. André anotou uma observação: de que sua comida favorita era arroz, peixe e feijão. A desorganização do encadeamento das gerações nos sugere uma falha na ordem da transmissão das gerações atribuída à ausência do lastro paterno devido à foraclusão do significante Nome-do-Pai. Verificamos, no caso de André, que, por falta do significante paterno que confere à cadeia significante uma amarração, e que, portanto, permite que o Nome-doPai transmita uma filiação simbólica, proporcionando uma ordem na linhagem, a função 86 paterna está reduzida àquela que não lhe dá o que precisa. André apenas se dirige ao pai para exigir o que não lhe foi dado (carro, apartamento na zona sul da cidade, morar em São Paulo, computador), sem colocar em jogo a transmissão da falta, a castração. O tema da origem está sempre presente nos escritos de André. Este nos parece um ponto central. Em todos os seus textos, podemos constatar que ele sempre define uma origem para seus personagens. Registra as datas de nascimento, suas idades, suas preferências e os locais de nascimento. Diante do que não lhe foi transmitido, André constrói, de forma inédita e exclusiva, uma linhagem. De quem ele é filho se não há uma mulher para um homem? Lembremos que o pai não tomara a mãe de André como sua mulher diante de seus filhos do primeiro casamento. No momento em que André começou a frequentar uma nova escola, sua personagem ganhou novo nome. Acrescentou o nome Ana (que é também a irmã de Paula Madalena) e retirou o Martins, ficando, agora, Ana Paula Madalena de Jesus (figura 8), mas sempre se referia a ela como Paula Madalena. Falou um pouco sobre ela. Cansada de trabalhar em uma padaria em Ipanema, Paula Madalena tornou-se uma assaltante de bancos. Fazia todo o trabalho sozinha, não precisava de auxiliares e o fruto deste trabalho era uma “arrecadação” (sic). André entendia que arrecadação era “juntar quando se tem pouco dinheiro” (sic). Paula Madalena gostava de biscoito doce e pão doce, o lanche preferido de André. Ao final dessa história, escreveu na folha desenhada: texto de João Carlos dos Santos. É interessante notar que André não assinou o texto que acabara de escrever. O mesmo fará com alguns outros textos. Ainda não assina sua própria invenção. Amparado e apoiado em seu duplo, André engata a escrita quando constrói seu primeiro “texto” (sic) subdividido em 16 partes. Cada parte correspondia a determinados anos dentro do período de 1900 a 1988. Em cada ano, relacionava e descrevia alguns acontecimentos da vida de Paula Madalena: a viagem para a Inglaterra e para Ipanema, o roubo de dinheiro, indo parar na delegacia, e depois, quando ela tirou a roupa. Paula Madalena foi para o elevador de serviço, para a praia de Copacabana, para o carnaval de 74 e para arquibancada completamente nua, e nua dança e torce. Sobre o texto, André constrói perguntas e respostas (questões de múltipla escolha para serem respondidas) a respeito da vida de Paula Madalena. Nos últimos atendimentos com a psicóloga, André preparou seu primeiro “livro” (sic), datilografado à máquina, e em cuja capa escreveu: “Ana Paula Madalena de Jesus”. Neste livro, André dizia que estavam “todas elas”: Paula Madalena, Ana Paula 87 Madalena, Maria Madalena. Neste dia, André se lembrou de um desenho que havia feito para mim com o seguinte título: “O Amor no Coração”. Ele havia me visto circulando pelos corredores, por ocasião de meu retorno ao serviço, quase um ano depois. Nas sessões seguintes, trouxe um livro intitulado “Efemérides”. Entre uma sessão e outra, André veio conversar comigo sobre o passeio que fizera, com a turma do colégio, ao Jardim Botânico. Neste passeio estavam as Madalenas. Um pouco antes do retorno dos atendimentos comigo, André havia feito um desenho no qual Paula Madalena tinha seu coração dividido em três partes. A este desenho acrescentou o relato de um passeio, com a turma da escola, ao Planetário, onde se queixava de que estava “muito solto no espaço” (sic), “perdido no espaço” (sic). Em seguida, escreveu dois textos intitulados “Efêmero” e “2º Efêmero”. Estes textos foram subdivididos por André em parágrafos que correlacionavam datas e dados referentes a Paula Madalena, como sua escolaridade, sua nacionalidade, seu cotidiano, referindo-se ao tempo como efêmero. André não assina nenhum deles. O primeiro é assinado por Renato Batista; o segundo, por Euclides da Rocha. Foi neste momento que os atendimentos com a antiga psicóloga foram finalizados. André lhe diz que “o terceiro 3º Efêmero é copiado na folha de fichário” (sic). Quando do retorno aos atendimentos comigo, na época com 14 anos, André continuou a escrita do livro sobre Paula Madalena. Iniciou mais três outros livros: “Como está mais alegre”, “As Setes Maravilhas” (figura 9) (subdivididas em: “A época das Madalenas”, “O tempo”, “A história do rei das Madalenas”, “O sonho ainda não se acabou” (figura 10), “O mensageiro e a morte de Olavo Bilac”, “Afonso o sonho das Madalenas”, “O tempo que viveu no século”) e “A História das Madalenas”. No último livro, as Madalenas retornam para casa vindas da Inglaterra. São quatro as Madalenas: Paula Madalena, Ana Paula Madalena, Maria Madalena e Rosa Maria Madalena. Um pequeno texto, escrito logo depois e intitulado “O Fundo do Mar” (figura 11), trata da morte de todas as Madalenas no fundo do mar. Algum tempo depois, escreve: “Faz 1 ano 4 meses que eu trabalhei com as senhoras (as Madalenas)”, explicando que “tinham 4 pessoas que formavam uma Paula Madalena”. Desta forma, podemos identificar, no trabalho empreendido por André na criação das Paulas Madalenas, o tratamento dado às mulheres que o visavam, transformando em uma possibilidade de refreamento do gozo que se apresentava em excesso. 88 4.3 – TERCEIRO MOMENTO: DA MORTE DAS SENHORAS MADALENAS ÀS GRAVAÇÕES DE PROGRAMAS: O RADIALISTA Após a morte das Madalenas, André intensificou as gravações, ao vivo, de programas de rádio em fitas cassetes, documentando em seus cadernos. O gravador (com microfone) passa a ser um objeto extremamente privilegiado para ele. Gravava novelas, notícias, músicas de diferentes estilos, a participação do Brasil nos jogos olímpicos de Barcelona, a vitória brasileira na Copa do Mundo, o carnaval carioca, as eleições estaduais e federais e os shows de Roberto Carlos. Referia-se a estas gravações como uma maneira de “recordar, para ter saudades”. Isso que André tenta produzir não seria já uma resposta aos significantes que lhe concernem, como efeito do gozo produzido sobre ele pelo peso do “como se não existisse” da lalangue dita materna? Pois não foi este o peso que fez com que André ficasse 7 anos sem falar? Mesmo antes de seus 15 anos, André já se locomovia pela cidade sem a companhia dos pais, inclusive vindo sozinho para os atendimentos comigo no hospital. Neste momento, foi muito importante que André pudesse se locomover pela cidade portando uma carteira de identidade. Inicialmente, frequentava inúmeras casas de jogos eletrônicos espalhadas por diversos bairros da cidade, criando circuitos. Possuía uma contabilidade muito própria. O que nos indica que André estava estabelecendo um trabalho de contabilização de gozo que lhe é muito próprio. Seus passeios eram muito bem organizados e os horários das visitas a estas lojas eram anotados em seu caderno. Passava o dia inteiro fora de casa, para grande preocupação de sua mãe, que temia deixar o filho sozinho nestes lugares. André chegou a vender balas, biscoitos e pequenos objetos nos trens da Central do Brasil e na praia, por seis meses, para arrecadar dinheiro, pois queria comprar um videocassete. Em suas andanças, André passou a acompanhar os eventos da cidade, como o “McDia Feliz”, Carnavais, Festas do Dia da Criança, Festas Juninas, Campanhas Políticas etc. Ele gravava ao vivo estes eventos, além de participar das programações, ao ar livre, que as rádios organizavam, como shows, por exemplo. Todo final de ano André preparava uma lista das melhores músicas. Organizava um concurso e elaborava as regras para a seleção das 10 melhores músicas do ano, e também selecionava a melhor fita gravada por ele. Tinha em mãos a relação da quantidade de fitas por ele gravadas dentro de um determinado período e outra relação anual com as músicas vencedoras dos concursos. A certa altura, sua coleção de fitas (em 89 torno de 2.800) estava muito grande e André passou a procurar um lugar que pudesse recebê-la através de uma doação. Verificamos aqui que é possível para André abrir mão de suas fitas, alterando então sua economia de gozo, mesmo que a perda de gozo não se encontre simbolizada pela função fálica. André, por muitos anos, acompanhou o trabalho dos locutores das principais rádios brasileiras e, com seu desejo de tornar-se um locutor de rádio, passou a reivindicar, junto à família, a mudança para São Paulo. Alegava que era nesta cidade que se encontravam as principais emissoras de rádio e os melhores cursos para locutores. Passou a conhecer diversas rádios cariocas e paulistas, mantendo um contato quase que diário com seus locutores. Era bastante conhecido por eles. André, depois de terminar os estudos do 2º grau, passou por momentos muito difíceis, dizendo-se insatisfeito com a vida que vinha levando, alegando que seu pai não lhe dava o que acreditava ser preciso. Queria uma vida melhor, um bom apartamento e morar em São Paulo. Não gostava do bairro para onde a família se mudara, e reclamava da falta de ônibus suficientes para que ele pudesse se locomover pela cidade. Queixavase da pobreza do bairro e de uns garotos que zombavam dele por saberem que ele tinha medo do latido dos cachorros. Seu pai foi porteiro, por 31 anos, de um prédio em Copacabana e, com uma indenização trabalhista, comprou um apartamento de dois quartos no Caju. André exigia, muitas vezes de forma imperativa e caprichosa, que o pai também comprasse um carro para ele, pois alegava falta de segurança quando retornava, de madrugada, de seus passeios. 4.4 – QUARTO MOMENTO: DISCURSO DE CONVERSA COLETIVA No Natal de 1996, André me presenteia com o livro que escrevera, intitulado “Discurso de Conversa Coletiva”, uma coletânea de histórias com assuntos variados. Segundo ele, para escrever este livro foi necessário obedecer a uma metódica jornada muito bem programada. Ele escrevia todas as segundas-feiras, no período de fevereiro a novembro de 1996, os seus 40 capítulos com 5 páginas cada um, preenchidas em toda a sua extensão. Cada capítulo versava sobre um determinado assunto: o capítulo 1 era sobre o escritor, o capítulo 2 era sobre o jogador de basquete, e assim por diante, até chegar ao capítulo 40 sobre o jornalista. 90 O trabalho de André obedece a uma ordem semântica de extensão bastante limitada, já que a fragilidade da sustentação simbólica de seu enunciado fica evidente. Mas nos permite constatar os efeitos de uma apropriação subjetiva, na medida em que é o primeiro trabalho que assina com seu nome. Aqui está para André uma tentativa de se localizar no campo do Outro. André encontra uma solução única para dar tratamento ao gozo, passando pela escritura, cifrando o gozo pelo significante, tomando a palavra sem despertar muita angústia, em uma tentativa de se situar em uma posição de enunciador. Solução que parece ganhar o estatuto de uma tentativa para constituir-se como sujeito que, na singularidade do caso, visa à elaboração de uma modalidade de tratamento do gozo. Aqui, percebemos André não mais mergulhado em um gozo deslocalizado, mas realizando o trabalho de neutralizar o gozo vivido anteriormente como excessivo, tornando-o suportável. Um trabalho de escrita, forma de cifrar o gozo, traçando linhas que possibilitam ao sujeito localizar e circunscrever o gozo. Fica evidente, também, algo de André nestas escolhas. Elas não são aleatórias, como se poderia inicialmente imaginar. Estas escolhas fazem parte da tentativa de reconstrução de sua história, uma tentativa de advir como sujeito. Em cada capítulo ele fala um pouco de si. Eis alguns: Capítulo 1 – o escritor; Capítulo 6 – “o cidadão”; Capítulo 7 – o repórter; Capítulo 17 – o deus do poder; Capítulo 21 – o grande humorista; Capítulo 24 – o criador dos hospitais públicos; Capítulo 26 – o criador de rádio; Capítulo 34 – o inimitável; Capítulo 35 – o contador das histórias do passado; Capítulo 36 – o criador; Capítulo 38 – o radialista. Uma obra-prima, como ele mesmo diz. André a finaliza da seguinte forma: Meus amigos e minhas amigas. (...) eu consegui realizar todos esses sonhos. Depois de cumprir a leitura dos 40 assuntos programados para essa inscrição, o Discurso de Conversa Coletiva começou a ser oficialmente lido pelas palavras destacadas pelo excelentíssimo senhor _________________ (escreve seu nome completo). Foram 40 capítulos de muita discurssão (sic) e sem dúvida alguma foi o verdadeiro sucesso através de milhares e milhares de ouvintes se espalhando por toda parte do Brasil. Nós da equipe técnica do Discurso de Conversa Coletiva agradecemos aos trabalhos que aguentaram a escrição (sic) do princípio ao fim que sinceriamente (sic) foi uma obra prima para todos aqueles em que participaram de toda jornada desses nove meses escrevendo os depoimentos em que precisam de cada capítulo. Assim foram 10 horas de programação só de leituras destacadas de cada assunto (...). Eu quero guardar para sempre todos esses tipos de entreterimento (sic) e também dar para alguém a memória reunida com 40 assuntos que já foram exibidos todas as segundas feiras no nosso Discurso de Conversa Coletiva. (...) Muito obrigado a todos em que trabalharam durante toda a jornada dos 40 assuntos 91 programados para essa inscrição no nosso Discurso de Conversa Coletiva e até sempre, minha gente. Este pequeno recorte do “Discurso de Conversa Coletiva” expõe uma tentativa de André de construir pontos de ancoragem que sustentem seu discurso verboso. Pontos de ancoragem mais ou menos estáveis, de equilíbrio precário, construídos na tentativa de fazer-se representar no campo do Outro e de advir como sujeito. Discurso de Conversa Coletiva, essa “cascata de remanejamentos do significante” na fórmula de Lacan (1998 [1957-58]:584), uma tentativa de localização do gozo do sujeito, na fórmula de André. Certamente, trata-se aqui de uma produção que leva seu nome, nome que representa o sujeito, singularizando-o. Para André, isto só foi possível na medida em que estes pontos de ancoragem encontraram balizamento na instalação da relação transferencial com o analista, que em um primeiro momento consiste em não recuar diante da psicose e, num segundo momento, em não recuar diante do trabalho do sujeito de dar tratamento ao gozo com o uso de seu objeto. Verificamos que o trabalho de André, através do título de sua obra e do enquadramento que ele lhe confere, se consolida como uma modalidade de regulação do gozo, no momento em que aponta para um trabalho de promoção e produção de um esvaziamento daquilo que se apresentava pleno de gozo, suscetível de transbordamento. Constatamos que a partir deste momento André passou a escrever uma série de livros conferindo a sua obra o estatuto de um saber-fazer com o significante, um saber capaz de fazer emergir um gozo efetuando um tratamento sobre ele. O gozo se fixava no trabalho da escrita que constituía um suporte para o objeto voz. O primeiro desta série é “A minha vida ontem, hoje e sempre”, acompanhado de uma fita cassete com a gravação de seu discurso, onde registrou toda a trajetória de sua vida. O segundo “Dos tempos de criança aos tempos atuais” (na época no prelo), onde falava de sua trajetória escolar, seu tratamento, as gravações em fitas, as regras para a seleção das melhores gravações e de seus sonhos e o terceiro com o título provisório de “Todos os sonhos realizados”. Neste momento reconciliou-se com seu pai dizendo que queria seguir seu caminho: o trabalho e encontra certo apaziguamento. Preocupava-se com sua mãe e, particularmente com quem ficará quando seus pais morrerem. Morar com o irmão foi a solução encontrada por ele. Mostrou interesse em ter uma companheira para constituir uma família e falava que queria receber cartas de candidatas, de preferência, daquelas 92 que fossem trabalhadoras, sensíveis, educadas, louras, com idade superior a 20 anos, inteligentes como ele e que tivessem dinheiro. Falava de seu sonho, mas agora como algo um pouco mais distante. Não desistiu de fazer um curso de radialismo. Falava de seu estilo como radialista, algo entre Silvio Santos e Chacrinha. Neste momento escreveu seu “Discurso dos Sonhos” onde registrou seus projetos para ir para São Paulo. Qual o estatuto deste significante “radialista”? Como nos foi permitido ver, para André, este significante situa um certo modo de fazer algo com o gozo vocal. Acreditamos que ser radialista sugere um trabalho de modalização do objeto voz, uma invenção de André que o enlaça, de maneira própria e inédita, na direção de um possível laço social. Aos poucos as sessões foram ficando espaçadas. Anteriormente as sessões ocorriam uma vez por semana, depois elas passaram a ser quinzenais e ao final elas ocorreram quando ele telefonava pedindo para conversar comigo. Vale lembrar que mesmo que a frequência das sessões tivesse sido modificada, para André, o horário deveria ser respeitado, ou seja, o dia da semana e a hora foram mantidos ao longo de todo o tratamento. André já podia se ausentar, não estar mais ali. Era possível para ele realizar um trabalho de escansões do tempo, trabalhar a presença na ausência indicando caminhos para dar tratamento ao gozo louco e enigmático. Despedimo-nos no final do ano de 2003. Na época, André se queixava da falta de emprego para ele, pois precisava sustentar a família devido à idade avançada dos pais. Reivindicava um computador para montar um programa de seleção da melhor gravação de fita do ano. André se despediu muito emocionado agradecendo pelos 16 anos de trabalho e falava que iria “abrir seu coração” (sic) fazendo uma retrospectiva de tudo o que aconteceu ao longo desses anos. Nosso trabalho se encerra com um grande abraço. André estava com 28 anos. 4.5 – O OBJETO NAS OFICINAS – DIREÇÃO DO TRABALHO CLÍNICO EM INSTITUIÇÃO Reservamos este espaço para falar sobre um trabalho institucional que temos desenvolvido ultimamente, por acreditar que aí se impõe a questão do estatuto do objeto. Independente de qual organização estrutural se engendra neste trabalho, este sempre tem como referência uma produção. Trata-se do trabalho realizado em oficinas com crianças e adolescentes autistas e psicóticos no serviço infantojuvenil do Instituto Philippe Pinel no Rio de Janeiro. 93 Por ser um termo bastante utilizado para descrever diversas práticas terapêuticas, encontramos inúmeras atividades sob a denominação de oficinas no trabalho realizado em espaços institucionais com crianças e adolescentes. Encontramos também sob essa denominação atividades que dirigem sua preocupação para o produto final em detrimento da dimensão psíquica do sujeito. No que se refere ao trabalho em oficinas é necessário que se introduza uma clínica orientada pela psicanálise aplicada à prática em instituição, inventando um enquadre balizado pela relação singular que cada sujeito mantém com a linguagem. Este trabalho se diferencia das atividades coletivas, bem como da clínica stricto senso. Ele [...] se inspira nos princípios da psicanálise e promove condições para o tratamento do gozo. Esta prática, apesar das alterações e deformações que representa em relação ao dispositivo freudiano tradicional, permite um trabalho sobre o gozo, mantendo a heterogeneidade e a dissimetria entre os participantes (BASTOS & FREIRE, 2005:96). Partimos do princípio de que “o desejo da criança, sua vontade de aprender, não nascem do vazio, mas que resultam, ao contrário, de uma oferta feita pelo adulto. Essa oferta não se faz ao acaso: para que ela seja operante, é imperativo que ela seja adaptada40” (ANTENNE 110, 2006:17) à singularidade de cada caso. Um trabalho preliminar se faz necessário para salvaguardar a construção de um espaço, reinventando com cada sujeito uma relação outra com os objetos de sua escolha. Neste sentido, o trabalho realizado nas oficinas, constitui um espaço privilegiado para recolher e orientar o tratamento de maneira que as soluções encontradas pelo autista, refratário ao laço social, se sustentem na transferência com um clínico eleito por ele. Trata-se de soluções que, na singularidade de cada caso, parecem ganhar a dimensão de uma tentativa de circunscrição de gozo, do que antes se apresentava como pura dispersão. Para avançarmos aqui, uma reflexão nos parece ser necessária quanto à direção dada ao trabalho clínico nestas oficinas, no que concerne aos impasses diante do que não é possível simbolizar, levando em consideração um tratamento orientado pela psicanálise fora do setting analítico clássico, sem que com isso se perca de vista os 40 “[...] le désir de l’enfant, son envie d’apprendre, ne naissent pas du vide mais qu’ils résultent au contraire de l’offre faite par l’adulte. Cette offre ne se fait pas au hasard: pour qu’elle soit opérante, il est imperatif que’elle soit adaptée” 94 princípios que a norteiam. Como vimos, Lacan (1975) nos alerta que a criança autista não escuta aquele que dela se ocupa sob o risco de se sentir totalmente invadida. Parecenos que existem condições para que um trabalho possa ocorrer. Que condições seriam essas? A primeira condição refere-se à importância de apostarmos que há um sujeito em trabalho (RIBEIRO, 2005) nas atividades repetitivas e nos comportamentos ditos bizarros e estereotipados dos autistas, importância já abordada no primeiro capítulo. Melhor dizendo: que a repetição do autista e suas estereotipias são concebidas como diferentes manobras que respondem a uma lógica. Vejamos o que Laurent sinaliza: “é preciso não ceder do desejo de apostar na existência do sujeito que já está ali, quando tudo leva, facilmente, a esquecê-lo.” (LAURENT, 1998:III). A segunda condição refere-se ao ponto que devemos colocar em perspectiva: o uso dos diversos e diferentes objetos pelos autistas tem uma função lógica e se inscreve no cerne de sua defesa para produzir um esvaziamento do gozo a que está submetido. Outra condição diz respeito ao lugar e a posição que o analista pode ocupar na clínica do autismo. A experiência indica que os autistas trabalham arduamente para “lidar com a dispersão do gozo, com as dificuldades pulsionais” (ZENONI, 2000:48). Os objetos oral e anal se fazem presentes nesta clínica de forma que confirma a condição de não extraídos. O autista não fala e se falante nada diz. O autista não olha, rechaça o olhar, o evita. O analista, desta forma, precisa sustentar um lugar vazio de gozo, deixando-se regular pelo trabalho do sujeito, esvaziando-se de todo e qualquer saber prévio, para que sua presença não “incremente o transbordamento pulsional de que sofre” (FREIRE & BASTOS, 2006:116). Isso significa que seu olhar, suas palavras, sua presença devem ser regidos por uma regulação necessária a todo trabalho possível com o autista. Podemos entender que com esta direção, as oficinas operariam como lugares de mediação ao gozo que invade o autista, cujos efeitos se constituem como um recurso para o trabalho de localização/circunscrição de gozo para ele, favorecendo uma estabilização. Elas, [...] enquanto oferta de atividade, de espaço físico, de referência e de endereçamento, permitem um tratamento dos desvios da pulsão – tomada no sentido de uma outra satisfação, de um gozo além do princípio do prazer que, na sua relação com a linguagem ressoaria no corpo, o marcaria e o esvaziaria de seu gozo (GUERRA, 2008:53). 95 É deste tratamento dado ao objeto que Suzana, uma adolescente autista, traz para a oficina algumas revistas para cortar pedaços de fotos de pessoas, colando-os em uma folha de papel. Com isso feito, Suzana completava desenhando as partes que faltavam ou juntava as partes dos corpos recortados pelos clínicos para construir novos personagens. Realiza um trabalho de completar e descompletar, recortar e colar. Uma oficina opera com a materialidade de um objeto. Ela se inscreve como uma atividade de circunscrição de gozo e, portanto, “na produção em uma oficina o objeto é construído envolvendo o trabalho sobre a pulsão e sobre a linguagem, tomando a dimensão da cadeia significante, mas também daquilo que lhe é exterior e que a causa, a dimensão do objeto” (GUERRA, 2008:52). 96 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS Eleger o estatuto do objeto na clínica do autismo como nosso tema de pesquisa não foi sem consequências. Do exercício clínico com os autistas, extraímos o real da clínica. Da leitura das noções e conceitos formulados nos textos freudianos e lacanianos, extraímos os balizamentos necessários e concernentes à especificidade da clínica psicanalítica do autismo. Nesta direção, fomos buscar, no texto de Kanner, a definição primeira desta especificidade. Das histórias de cada criança, Kanner expôs todo um trabalho que o autista realiza de localização de gozo diante do excesso que o avassala. E, deste trabalho, ele destaca a incidência dos objetos, aqueles que não ameaçam o isolamento da criança. Estes são aceitos de bom grado pelo autista, que tem uma boa relação com os objetos. Demonstra um interesse por eles e, se deixado sozinho, passa horas com eles. O autista pode ser extremamente ligado aos objetos, mas também pode desprezá-lo, quando irritado. Deixado sozinho com seus objetos, segundo Kanner, o autista experimenta uma sensação de onipotência e controle. Foi da riqueza da descrição da forma como os autistas se colocam no mundo que extraímos toda uma gama de investigação. Levando em consideração o estatuto singular do sujeito da psicanálise e a recomendação lacaniana de que teoria e prática caminhem lado a lado, circunscrevemos como tema de investigação as modalidades de localização e circunscrição do gozo pela via do objeto. Diante deste tema, bastante espinhoso, construímos um percurso cujo ponto de partida só depois foi possível ressignificar, determinado pelo que da clínica extraímos. Uma investigação em torno da noção de objeto na psicanálise, destacando o trabalho do autista, pela via do objeto, para localizar e regular o gozo que se apresenta enigmático e que o invade. Não recuar diante da psicose foi a convocação feita por Lacan (1958) para aqueles que trabalham nesta clínica. O autista nos convoca a não ceder diante do trabalho que ele já realiza numa tentativa de constituir-se. Neste sentido, consideramos que o apego a algum objeto, seja ele um pequeno pedaço de pano, seja algo mais elaborado, como uma máquina, se presta a tentativas – de instável equilíbrio, na maioria das vezes – de localização do sujeito em um trabalho incansável para produzir-se. 97 A afirmação de Lacan de que “toda formação humana tem, por essência, e não por acaso, de refrear o gozo” já referida anteriormente situou o lugar de nossa abordagem. O autismo foi, aqui, situado como uma formação humana, que tem por princípio refrear o gozo, diferenciando-se de um mero comportamento inadaptável e deficitário que o encerraria a um lugar onde só seria possível concebê-lo nas armaduras congelantes de um código internacional de doenças. Foi nesta perspectiva que André e tantos outros autistas se fizeram presentes neste trabalho de escrita, nos indicando que, mesmo que tenhamos dificuldade para escutá-los, como nos alerta Lacan, trata-se de “personagens bastante verbosos” (LACAN, 1988[1975b]:134). Mas é do verbo mesmo que se protegem? E como se protegem? Encontramos balizamento nas elaborações lacanianas de que o autista, mesmo que não fale, está imerso na linguagem, mas com a particularidade de que esta imersão se apresenta problemática. Uma tentativa de resposta à primeira pergunta refere-se ao estatuto do Outro para o autismo. Apesar de considerá-la, pois os autistas nos mostram que o Outro para eles é pleno de gozo, nossa pesquisa não trilhou este caminho. A resposta à segunda pergunta situa muito bem nosso terreno de estudo. Nossa investigação centrou-se no trabalho do autista em torno da construção do objeto e das diversas modalidades que este trabalho imprime na localização de gozo. Ou seja, o uso do objeto pelo autista, além de não ser aleatório, não é sem propósito. Não se reduz a uma mania ou a uma obsessão que deve ser extirpada. De fato, esse uso ganha uma dimensão outra, um caráter de tratamento no processo de contenção do gozo. Nesse sentido, o objeto tornase um instrumento privilegiado nas invenções próprias e inéditas no trabalho do autista. Partimos da aproximação que Lacan estabeleceu entre o autismo e a esquizofrenia, o que o incluiu no campo das psicoses, situando a operação da foraclusão do significante Nome-do-Pai como o ponto desta aproximação. Desta forma, o autismo é localizado no que se refere à não inscrição desse ordenador. Recorremos ao jogo freudiano do ford-da, momento primordial da simbolização, que constitui uma resposta da criança ao excesso traumático decorrente da ausência da mãe. A criança encontra, na repetição, uma tentativa de dominar esse excesso. Como vimos, para o autista, o jogo constituinte do ford-da não se inscreve, o que traz impasses em sua constituição subjetiva. E, em função disso, não se constitui o par de oposição significante, a cadeia de significantes não se inaugura, tendo como consequência a não instauração da simbolização primordial. 98 O autista está submetido a um enxame de significantes desarticulados, pois não há encadeamento entre os significantes, na medida em que o S1 se mostra congelado e desconectado do S2, não representando o sujeito para outro significante. A não extração do objeto é sua consequência, com o transbordamento de gozo no corpo e no significante. Lacan precisa muito bem a função do objeto neste jogo. O jogo do carretel constitui uma operação em torno da perda de um objeto A ausência desta operação nos permitiu verificar que, no caso do autismo, a repetição dos movimentos, a fala ecolálica e os batimentos repetitivos dos objetos se inscrevem sob o pano de fundo de uma repetição de gozo, no real. Mas podemos identificar que tais fenômenos de retorno de gozo no real são o resultado de um trabalho do autista, produções que devem ser acolhidas, pois se inscrevem como tentativas de simbolização, o ponto de partida para uma possível elaboração, transformando aquilo que visava o sujeito em uma possibilidade de se subtrair do excesso em um trabalho de localização do gozo. Sustentamos que, no trabalho do autista, o uso do objeto ganha destaque nas tentativas de se construir um objeto fora do corpo para regular o gozo. Ele realiza um tratamento do gozo. Frente a não extração do objeto, o autista lança mão de uma forma própria e inédita de invenção. Este trabalho, muitas vezes, se dá de forma radical, como nas automutilações no real de corpo. Os autistas inventam com seus objetos. Isso foi o que da clínica extraímos. Foi a partir do trabalho empreendido por André e por tantos outros autistas que deduzimos a importância do uso desses objetos para eles, os quais não devem ser descartados no trabalho clínico. Trabalhamos com alguns balizamentos para prosseguirmos no que se refere à construção do objeto autístico e ao seu uso na elaboração da defesa autística, ressaltando as modalidades de localização de gozo. Concluímos que essas modalidades, no caso do autismo, se constituem em torno dos objetos, do duplo protetor e dos pontos de competência, fonte do Outro de síntese. Da análise do caso de André, enfatizamos o ineditismo da solução, por ele encontrada, para dar tratamento ao real do gozo não fixado pelo significante, promovendo um esvaziamento do gozo. Reconhecemos que, através da construção de objetos, André pôde dar tratamento ao excesso de gozo, o que promoveu uma mudança em sua posição subjetiva, a partir das tentativas de sua localização, em que o objeto constituiu uma via privilegiada. 99 Sustentamos que as oficinas operam como lugares de mediação ao gozo invasor. A localização deste gozo, por sua vez, produz certo apaziguamento. O lugar do analista se situa na sustentação de um lugar vazio de gozo, e sua presença é regulada junto ao trabalho do autista. Chegamos ao momento de concluir as questões levantadas ao longo deste trabalho. Porém, algo sempre resta a se verificar. Algumas elaborações se mostram promissoras, relançando nosso desejo em direção a pesquisas futuras. 100 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASPERGER, Hans Die “Autistischen Psychopathen” im Kindesalter. In: Archiv fur Psychiatrie und Nervenkrankheiten, nº. 117, 1944, pp. 76-136. ____. Zur Differentialdiagnose des kindlichen Autismus. In. 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