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Clínica e Serviço Social: Uma Contribuição ao Debate
Heliete Karam1
Resumo
Este artigo resulta de dois textos publicados pela autora no blog
praticasterapeuticass (2009), agora revisados num só documento acrescido
de uma reflexão sobre a clínica do trabalho e sua relação com a abordagem
da família. O objeto desta análise é a noção de clínica e, seu objetivo, dar
uma contribuição teórica ao debate sobre clínica e práticas terapêuticas no
serviço social. Apoiado numa determinada classificação das ciências, o artigo evoca os princípios norteadores do percurso de pioneiras do trabalho
social, abre para a sua re-significação e indica a necessidade de um profundo balanço do estado da arte da profissão com vistas, inclusive, à reabertura da discussão sobre a revisão curricular, o nome da profissão (serviço
social) e a denominação do título (assistente social) no Brasil.
Palavras-chaves: serviço social clínico; clínica e trabalho social; clínica, práticas terapêuticas e serviço social.
Clinical and Social Work: A Contribution to the Debate
Abstract
This article issues from two papers published by the author in the blog
praticasterapeuticass (2009), now revised and converted into only one
document expanded by a consideration about the work’s clinical and its rapport
to family’s approach. This analysis focuses a discussion about clinical
understanding and its aim is to bring a theoretical contribution to the debate
on clinical and therapeutic practices in social work. Basis on a given
classification of science, the article evokes the guidance principles present
along the course of the pioneers’ social workers, opens to its re-meaning,
1
Assistente social psiquiátrica, mestre e doutora em psicologia clínica pela Universidade de
Paris 7 (Sorbonne) e Conservatório Nacional de Artes e Ofícios (Cnam) de Paris.
Etnopsicanalista, membro da Associação Francesa de Psicologia Política e integrante do
Percurso Psicanalítico de Brasília, atualmente trabalha como professora e pesquisadora
autônoma clínica do trabalho em psicodinâmica e psicopatologia do trabalho e da ação.
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and points to the need of a deep evaluation of the social workers’ production
in order to allow a revision of the faculty’s curriculum, as well as, a discussion
about the name of the profession (social work) and the title of the professional
(social worker) in Brazil.
Keywords: clinical social work; clinical and social work; clinical,
therapeutics practice and social work.
Introdução
O debate sobre o tema clínica e práticas terapêuticas no serviço social
tem enfatizado estas práticas em detrimento da noção de clínica. Em vários
textos e chamadas ao debate observa-se que a referência à clínica nem é
citada. Passa-se diretamente à(s) prática(s). Ora, o serviço social não é um
curso nem um trabalho meramente técnicos: ele fundamenta-se numa
deontologia e numa epistemologia cujas raízes históricas, mesmo quando
revisitadas, são o arcabouço da(s) prática(s).
Essa(s) prática(s), sobretudo em momentos críticos como o atual,
precisa(m) estar amparada(s); e é justamente o debate sobre a noção de
clínica que poderá dar legitimidade e, portanto, lastro e sustentabilidade ao
exercício das práticas terapêuticas. São várias as razões que têm dificultado
esse debate e, uma delas, é o fato de que a clínica, quando referida, é
tomada em seu sentido amplo e, as práticas terapêuticas, confundidas com
práticas terapêuticas da psicologia ou áreas afim. É no âmbito mais amplo
da clínica que essas práticas se situam e são praticadas conforme o recorte
clínico adotado pelo serviço social, área do conhecimento que não imita nem
reproduz as práticas terapêuticas de outras profissões. Ela tem uma
especificidade que a diferencia. Graças a essa diferença, o serviço social
pode compor com outras profissões, qualificando as ações inter e
transdisciplinares no campo psicopolítico (Karam, 1997, 2010). Manter este
padrão de qualificação para acompanhar a complexidade do mundo, exige
um estado de liberdade para a criação que favoreça a permanente atualização do trabalho prescrito pelo trabalho real do assistente social.
Diante dessas considerações, são muitas as vertentes do debate. No
entanto, acreditando que a base desse debate deve ser a noção de clínica, o
eixo condutor deste texto enquanto contribuição é somente a questão clínica e não as práticas terapêuticas. No final, procuro expandir o texto ao fazer
uma reflexão sobre a visão clínica aqui proposta, a clínica do trabalho (na
perspectiva da psicodinâmica e da psicopatologia do trabalho e da ação) e
sua contribuição para se pensar a família.
Assim, este artigo resulta de uma reflexão pessoal da autora, apoiada
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numa trajetória prática articulada à busca de uma sistematização constante
dessa prática. Sua revisão bibliográfica deixa de lado critérios como publicações dos últimos cinco anos e privilegia a busca pelos clássicos de outras
áreas do conhecimento para que, pela via da intertextualidade, possa acrescentar outro ponto de vista ao trabalho social em construção. Portanto, a
despeito de suas datas, as referências utilizadas são consideradas atuais
por se manterem no cerne dos debates voltados para a teoria crítica da ação.
Reflexões deontológicas, epistemológicas e teórico-metodológicas
A propósito da classificação das ciências
Se recorrermos à classificação das ciências proposta por Jürgen
Habermas (Dejours, 1995) pode-se dizer que a noção de clínica (Dejours,
1995,1996) revisitada e hoje adotada por um significativo recorte da comunidade científica internacional, é uma noção que rompe com as ciências
empírico-analíticas, herdeiras da tradição positivista, para se filiar às ciências histórico-hermenêuticas, herdeiras da tradição compreensiva. Retomar
esta discussão parece essencial para situar a noção de clínica no âmbito do
serviço social, marcada pelo senso comum e atrelada a uma mentalidade
burocrática que reduz e imobiliza seu significado ao sentido restrito da tradição positivista que, num momento histórico, influenciou as diferentes áreas
do conhecimento, inclusive o que viria a se tornar serviço social. Considerada um avanço em seu tempo, a perspectiva positivista continua presente em
várias profissões, entre elas a medicina. No entanto, se a base positivista
ainda se encontra na maioria das abordagens médicas, nem mesmo a medicina é totalmente positivista, sobretudo a partir de Georges Canguilhem (1988,
1995), entre outros pensadores da ciência. Todavia, sendo bem mais antiga
do que o serviço social, a experiência cumulativa de sua construção permite
aos médicos se autorizarem a lidar de outro jeito com seu objeto; e assim
tem sido com outras profissões consolidadas.
No serviço social ainda há um mal-estar em relação à autorização.
Trata-se da insegurança quanto ao seu objeto, com reflexos, portanto, sobre
a questão clínica: uns associam-na à sequência anamnese, diagnóstico,
prognóstico, tratamento e consideram que, neste caso, houve apropriação
indevida da terminologia médica e do modelo médico-paciente. No entanto,
esta terminologia criada pela medicina no contexto do nascimento da filosofia ocidental, é hoje adotada por um número cada vez maior de profissões.
Assim, a fonte do nosso léxico é a mesma e deve ser conservada enquanto
referência; mas nada impede que nos autorizemos o avanço das ideias e o
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recurso às palavras, à criação de métodos próprios, conceitos e noções de
acordo com os princípios da profissão, num processo permanente de elaboração, isto é, de perlaboração do nosso fazer prescrito.
O reconhecimento e conservação dessa fonte são fundamentais porque ela é estruturante: é graças ao lugar simbólico que a origem ocupa em
nosso imaginário, que podemos lidar com o real visando reescrever o prescrito para que o instituído possa ser permanentemente atualizado pelo instituinte.
Através desta dialética, cria-se a chance de manter viva nossa condição,
situarmo-nos no mundo enquanto espécie e avançar na construção não natural do humano — construção da qual participa este recorte da cultura que
são as profissões, entre elas o serviço social.
No cerne de um mal-entendido, a clínica no serviço social continua
sendo vista como ato conservador por um grande número de assistentes
sociais, pois a abordagem funcionalista, viés através do qual a noção de
clínica ainda tem sido interpretada, é tida como conservadora. Aliás, a própria palavra conservador muitas vezes é escutada de maneira preconceituosa,
gerando desconfiança. Caracteriza a abordagem funcionalista, por exemplo,
a linearidade: estudo, diagnóstico, tratamento; ou então as secções: caso,
grupo e comunidade que, num momento histórico, expressaram um esforço
para sistematizar a profissão. Mais adiante criticada e, no discurso, abandonada por muitos profissionais, a abordagem funcionalista, em linhas gerais,
visa à adaptação do indivíduo, de um grupo ou de uma comunidade, aos
padrões, se não à ideologia vigente numa sociedade. Esta abordagem é em
geral abandonada apenas no discurso, pois é relevante o número de assistentes sociais que pregam contra as abordagens positivistas, entre as quais
o funcionalismo, mas que, dentro de suas instituições, não praticam outra
coisa se não o funcionalismo que criticam. De fato, o mundo do trabalho e do
emprego tem sido afetado em cheio pela visão mercantilista que, para atender seu grande objetivo que é o lucro, reduz o sujeito à condição de indivíduo.
Essa visão e sua influência sobre a cultura induz a tal redução e dela tenta
tirar proveito através dos profissionais que contrata, forçando-os a agirem
sobre a adaptação do indivíduo a sua ideologia. Qualquer desvio (acidente,
adoecimento, alcoolização, absenteísmo, depressão, erro técnico etc.) é
atribuído ao indivíduo a ser atendido, então, pela clínica que deverá “consertálo” e “devolvê-lo” em condições. A redução do sujeito a indivíduo faz com que
a própria noção de clínica sofra uma redução, reforçando a transmissão de
uma noção questionável.
A abordagem funcionalista em nossa cultura, diferente de outras abordagens, tais como a sistêmica, a dialética ou a estruturalista – para citar
apenas algumas – é linear, moralista e adaptativa, quando não coercitiva. No
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entanto, cabe ressaltar, a prática da abordagem sistêmica, dialética ou estruturalista, não é garantia contra a linearidade, o moralismo e a adaptação.
A maneira como cada abordagem é praticada depende da implicação subjetiva de quem a pratica. Assim, há outras óticas para analisar tais abordagens, inclusive a funcionalista. Esta discussão não será aprofundada aqui,
pois definir se uma abordagem é funcionalista, sistêmica, dialética ou estruturalista, há muito deixou de ser o foco da ação profissional no contexto de
um mundo tão complexo que, ao nos empurrar à transdisciplinaridade através da interdisciplinaridade, torna secundária tais classificações.
A abordagem funcionalista, no serviço social mais do que em outras
profissões, fixou-se como referência do pensamento conservador, entendido
como reacionário; mas, conservar, nem sempre é algo negativo. Não é o
caso de defender o conservadorismo, mas de saber conservar nossa produção sem dela fazer tábua rasa. É importante a memória daquilo que, no
passado, foi bom ou ruim. A ciência – e o trabalho social é uma ciência –
deve avançar com rigor, mas sem a rigidez que impede o livre pensar sobre
um mesmo objeto e a surpresa do inusitado. Mudou o século e mudou o
milênio. Como outras profissões, o serviço social precisa acompanhar seu
tempo. Uma das maneiras de fazê-lo seria integrar à questão social, as
noções de clínica, sujeito, palavra, sofrimento, trabalho, subjetividade,
intersubjetividade e passar da filiação na herança positivista à filiação na
tradição compreensiva.
A propósito da noção de clínica
A noção de clínica aqui apresentada não é funcionalista, embora possa
ser considerada conservadora no sentido de que retoma, na origem e filiada
à perspectiva histórico-hermenêutica da tradição compreensiva, o significado fundador da noção de clínica. Se, na origem, clínica (do grego klinç)
significa a presença do médico junto à cabeceira do leito do paciente – lugar
onde o doente era escutado, examinado e tratado – hoje, na perspectiva aqui
adotada, retoma-se a importância topográfica dessa clínica. Assim, nem toda
clínica exige o espaço físico de um consultório, um ambulatório ou um hospital; e também não exige o referencial adaptativo da abordagem funcionalista.
Ao contrário, clinicar é estar lá onde se encontra o sujeito em situação de
sofrimento — e não necessariamente adoecido. O sofrimento antecede a
formação de sintomas individuais ou sociais, os sintomas psicopolíticos
(Karam, 1997, 2010). O sofrimento (pathos) é constitutivo da condição humana, condição da qual não se pode escapar a não ser pela morte; ou pela
anestesia, através de recursos químicos: medicamentos, álcool, drogas (nes-
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tes últimos casos trata-se de um recurso paliativo). No entanto, a clínica
psicodinâmica do trabalho e da ação, ao reconhecer o sofrimento como
constitutivo da condição humana, entende que o sofrimento patogênico
(Dejours, passim) – passível de se tornar patológico – pode ser desviado
deste destino se transformado em sofrimento criador (Dejours, passim).
Considerar que a clínica – e, dentro dela, as práticas terapêuticas –
não é especificidade da formação profissional do assistente social, é permanecer no conservadorismo, se não no obscurantismo das análises presas a
uma época imobilizada na história, ou a uma lei. Se há uma profissão que
não pode ser legalista, é o serviço social. No entanto, se por um lado ela fez
um esforço para operar a tão desejada reconceituação, por outro, ao fazê-lo,
alijou a palavra e o direito à palavra de uma fatia importante da categoria —
fatia que muito tem contribuído com a sua diferença. Embora não seja majoritária, a diferença proposta por esta fatia que também aporta uma contribuição para se pensar a ação, não pode ser negada ou simplesmente cortada
fora a exemplo do mito de Procusto: quando o viajante fatigado não cabia em
sua cama de anfitrião – cama que tinha seu tamanho exato – este assaltante
da antiga Grécia espichava-o ou cortava-lhe os pés ou a cabeça para que
ficasse ajustado ao tamanho da cama. Claro, nenhum viajante sobrevivia.
Este mito tem sido utilizado como metáfora na educação, administração,
economia, psicanálise, história, para ilustrar e criticar o absurdo das tentativas que restringem a criação profissional ao impor um padrão fixo e imutável
de entendimento da realidade e a subserviência a uma lei. Seria mais inteligente, através do debate permanente e livre, construir um entendimento visando à convivência pacífica das diferenças que contribuem para o desenvolvimento de uma profissão no intuito de verdadeiramente beneficiar a sociedade, do que a imposição da unanimidade, mesmo que decisões já tenham
sido tomadas. Numa democracia, toda decisão, mesmo no formato de lei,
pode ser rediscutida a qualquer momento.
O pensamento dito hegemônico no serviço social alega que nossa formação, devido à suposta restrição curricular dos cursos de graduação, não
nos autorizaria a clínica; e que, aqueles que a praticam, estariam se apropriando indevidamente de instrumentos e métodos de outras profissões. Ora,
hoje não existe mais um único modelo de clínica, nem mesmo numa única
profissão. A clínica não existe mais. Em função de seu objeto, cada profissão cria seus modelos clínicos e suas práticas terapêuticas. O serviço social vive num contexto histórico, situado e datado como diria Paulo Freire.
Influencia e é influenciado por outras áreas do conhecimento. Não está isolado na práxis. Guardado o objeto que caracteriza e diferencia uma profissão
da outra, cada profissão se constrói na intertextualidade e o serviço social
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não pode ser uma profissão autista. Sua linguagem, seu texto precisa interagir
com outras áreas do conhecimento, beneficiando-as no âmbito dos avanços
da cultura científica e dela se beneficiando, sob pena de subsistir no tempo,
mas como um fóssil. Ainda que amanhã ou depois este suposto fóssil possa
ser descoberto e levantar novas questões sobre o passado, diz-se que o
serviço social tem um compromisso ético-político com seu tempo e, assim,
com todos os seus contemporâneos e este compromisso, na atualidade,
também pode ser cumprido através de uma clínica histórico-hermenêutica
da questão psicopolítica (Karam, 1997, 2010).
Destaca-se a noção de clínica, pois na perspectiva aqui adotada a
clínica pode implicar ou não a dimensão terapêutica. Em alguns casos, como
na clínica do trabalho, a dimensão terapêutica não é um objetivo, embora
essa clínica possa gerar um benefício terapêutico secundário. A própria noção de terapia mereceria ser repensada em sua semântica. Na ótica aqui
abordada, a clínica pode acontecer através de diferentes práticas terapêuticas, mas abarca, também, uma dimensão que transcende à(s) terapia(s).
Neste caso, mesmo que acarrete em benefício terapêutico secundário ao
sujeito individual e social, ela busca outro ganho: contribuir para a construção do humano, isto é, a construção coletiva, através da mobilização das
contribuições singulares, de uma inteligibilidade capaz de transformar o sofrimento patogênico em sofrimento criador (interlocução entre trabalho psíquico e trabalho enquanto produção). Em linhas gerais, não se trata de uma
especialidade, mas a proposta de uma clínica psicopolítica (Karam, 1997,
2010) constitutiva do serviço social, centrada no trabalho de palavra dos sujeitos organizados em pequenos coletivos, visando à perlaboração do sofrimento próprio a esta condição. O plano político só poderá ser efetivamente
transformado se passar pelo plano intersubjetivo (o social por excelência)
que convoca a dimensão psíquica e o manejo do simbólico.
Como lembrava a saudosa professora de Política Social da Faculdade
de Serviço Social da PUCRS (1970-73), a assistente social Maria de Lourdes
Medeiros, o social não existe sem a dimensão psíquica — razão pela qual
entendo, desde então, que o trabalho social é uma clínica psicopolítica, uma
clínica da intersubjetividade, uma clínica (da) política. Dentro dela, pode-se
ou não recorrer às práticas terapêuticas, não como praticadas em outras
profissões, mas de acordo com um quadro de referência teórico-metodológico
próprio, construído na divergência do livre debate e a partir de uma deontologia
e epistemologia também próprias. Ordem singular e ordem coletiva se
entreconstróem. Essa entreconstrução é um trabalho. Um trabalho social.
Não um serviço. O que o moveria nesta direção não deixa de ser um tipo de
assistência, mas assistência no sentido de dia-conia proposto por Emmanuel
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Lévinas (1982) — filósofo para quem não há conquista no marxismo, mas o
reconhecimento do outro. No marxismo (referência na qual se apóia o pensamento dito hegemônico do serviço social), insiste este grande pensador da
segunda metade do século XX, o Outro é levado a sério (1991). Esta é a
essência que Marx ensina à humanidade, diz ele: a inter-humanidade.
Ora, é que ao tratar sobre economia, Marx também aborda uma economia de outra ordem: a economia psíquica. De fato, há quem diga que Marx
descobriu o inconsciente, três décadas antes de Freud, ao estudar os efeitos do capitalismo sobre a subjetividade. Não é possível aprofundar, aqui,
esta discussão, mas a ideia, em si, não é absurda. Maria-Antonieta
Macciocchi (1974), amiga e estudiosa de Antonio Gramsci, afirma que o
primado da subjetividade, para este pensador, equivale ao do inconsciente
em Freud. Aliás, grandes pensadores como Paul Ladrière, da sociologia da
ética, e Georges Politzer, filósofo da primeira metade do século XX, têm
pontos de vista interessantes: o primeiro entende que a psicologia é uma
subárea da sociologia (opinião manifestada durante seus seminários sobre
sociologia da ética, na École des Hautes Études en Sciences Sociales:
Paris 6 / Sorbonne, 1993-94); e, o segundo, que a psicologia só encontra
seu sentido no seio da economia (Dorna, 1998). Sabemos que o objeto da
psicologia é o comportamento, enquanto o inconsciente é o objeto da psicanálise. No entanto, o que esses pensadores destacam, é que o social, a
economia e a política se constituem graças a uma dimensão humana que
inclui o inconsciente invisível, mas que se mostra codificado através do comportamento individual e coletivo. O inconsciente, substrato da política.
Portanto, trabalhar o social, hoje, passa pela questão do sujeito e do
humano — daí a necessidade urgente de se dar visibilidade à dimensão
psicopolítica do serviço social e ter reconhecida a sua centralidade. A
centralidade da dimensão psicopolítica do serviço social sempre existiu, mas
não é verbalizada. Não passa pela palavra, ou seja, não é simbolizada — o
que impede, dificulta ou compromete o debate. A essência do social é a
transferência, o trânsito entre o um e o outro representado pelo comércio
com o outro (Vernant, 1996) que funda a democracia pré-socrática.
Para não nos tornarmos zumbis no meio das outras profissões, precisaríamos permitir ao serviço social romper com o encarceramento na sua
circularidade para retomar um aspecto que continua silenciado em sua história: a denominação da profissão e a denominação do profissional. O debate alcançaria outro patamar. Nem serviço nem assistência traduzem, atualmente, o estado da arte profissional e seu potencial. Há um quê de engenho
nesta profissão que precisaria vir à tona e ganhar expressão. O potencial
contido desta profissão, impossível de ser previsto, não pode ser delimitado
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por decreto no afogadilho legalista dos que visam descartar os temas incômodos. Na verdade, permanece a necessidade sempre urgente de se delimitar melhor o objeto do serviço social e a consequente revisão curricular dos
cursos de graduação visando abrir espaço para integrar os novos construtos
resultantes do empenho de assistentes sociais não alinhados, construtos
marginalizados, mas que muito têm a contribuir para consolidar dialética
importante visando manter viva a profissão.
Clínica e surgimento do trabalho social
Uma profissão, quando surge, ela surge num determinado momento do
processo de humanização de nossa espécie e em função de uma demanda.
Esta demanda, nem sempre é verbalizada como gostaríamos. Muitas vezes
ela se impõe a nós. Por exemplo, Irena Sendlerowa, considerada a versão
feminina de Oskar Schindler, entendeu que salvar o maior número possível
de crianças do holocausto era o trabalho que lhe cabia naquele momento da
história. Nenhuma criança formulou verbalmente a demanda, mas a demanda – na forma de apelo sem palavras porque o horror é indizível – estava na
cena política (comumente denominada de cena social), sinalizada através
do medo e do silenciamento da palavra, do pranto, da separação prematura
dos pais, da morte na forma de extermínio, enfim, da violência agravada pela
impossibilidade de verbalizar o sofrimento experienciado. Uma demanda situada e datada, para retomarmos Paulo Freire, estava ali, escancarada,
endereçada a quem pudesse acolhê-la. Entre outras praticantes da escuta
de risco (Dejours, passim) – noção que foi elaborada e incluída no vocabulário científico nos anos 1980 – encontram-se Zofia Kossak e Wanda KrahelskaFilopowicz. Vale lembrar que a profissão que hoje se denomina serviço social nasceu com a enfermagem. Depois, serviço social e enfermagem tomaram rumos diferentes, mas não antagônicos, pois ambos cuidam do outro, o
semelhante, em suas dessemelhanças, as dessemelhanças presentes em
cada outro e, também, em cada profissão.
Naquele momento, Irena autorizou-se uma intervenção na realidade,
movida, provavelmente, pelo que hoje a sociologia da ética de Paul Ladrière
(1992), embasada na filosofia de Paul Ricœur, denomina liberdade na primeira pessoa. Trata-se da primeira instância ética, aquela em que o sujeito
singular, ao experienciar um profundo desconforto consigo mesmo em relação à realidade que dele faz uma testemunha, toma consciência de seu malestar e decide nela intervir, ou seja: decide romper com o curso das coisas
— e o faz. No caso de Irena, sua intervenção contribuiu para fazer história.
Deixou um registro na história da humanidade e, em particular, no que viria a
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se denominar serviço social.
A atitude de Irena, Zofia ou Wanda está impregnada do que hoje são os
fundamentos do serviço social e, desde aquela época, nela encontramos
algo que remete ao pensamento de Emmanuel Lévinas referente à ética enquanto filosofia primeira. Somos, cada um de nós, responsáveis pelo outro,
pelo seu sofrimento; e é no face a face com o outro, na dessimetria do olhar,
na escuta de seu sofrimento, na reciprocidade, que cada um pode se
humanizar, contribuindo, com sua singularidade, para a humanização da
espécie. Este apelo ao humano, esta pulsão de vida no sentido psicanalítico, caracteriza o humano. Desafia a pulsão (natural) de morte (também no
sentido psicanalítico) porque não aceita o curso natural das coisas — daí
dizer-se que o humano não é um atributo natural. O humano exige um trabalho porque depende de um trabalho: o ato de se trabalhar permanentemente.
O caso Bertha Pappenheim
Embora haja diferenças marcantes entre Emmanuel Lévinas e Paul
Ricœur, assim como entre tantos outros pensadores em relação à questão
humana, o núcleo que interessa nesta contribuição para a discussão da
clínica é o mesmo e encontra-se nas bases do serviço social. Um exemplo
que expressa a ideia da ética como filosofia primeira, conteúdo nuclear do
serviço social, encontra-se em Bertha Pappenheim — a Anna O. de Sigmund
Freud. Bertha começa sua carreira de assistente social em 1895, quando
assume a direção do orfanato judeu de Frankfurt. Entre o final do século XIX
e a primeira metade do século XX inclusive, desempenha papel fundamental
no exercício do trabalho social (cuidadora) e na psicanálise emergente (cuidada). Se Freud é conhecido como o pai da psicanálise, Bertha deveria ser
reconhecida como a mãe da psicanálise. Em todo o caso, é Joseph Breuer
(1907), seu analista antes de Freud, que a ela se refere como a “célula
germinal de toda a psicanálise” (Tisseron-Papetti, 1985, In Pappenheim, 1924,
1986: 8). Claro que há autores, como Mikkel Borch-Jacobsen (1995), que
desmontam toda esta base da psicanálise construída a partir de Bertha
Pappenheim por considerar sua análise um grande mal-entendido.
Mas o que há de particular em Bertha, relacionado ao tema da clínica?
Ora, assim como Irena, Zofia ou Wanda, Bertha deixa marca indelével na
história, mais especificamente na história da psicanálise e na história do
serviço social ao mesmo tempo. Na psicanálise busca ajuda para o seu
drama pessoal; e, através do trabalho social, busca ajudar quem se encontra
no desamparo. Bertha deu-se como objetivo de vida “mudar as mentalidades
no domínio da ética social” (Pappenheim, 1924, 1986: 21). Na base deste
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objetivo, um desconforto e uma indignação. Para esta pioneira do trabalho
social “ninguém pode permanecer calado se sabe que, em algum lugar, a
injustiça se alastra” (Pappenheim, 1924, 1986: 22). Nada, segundo ela, “nem
o sexo, nem a idade, nem a confissão, nem o partido político podem justificar o silêncio” (Pappenheim, 1924, 1986: 22). Enfim, para Bertha, “estar a
par da injustiça e calar-se é dela ser cúmplice” (Pappenheim, 1924, 1986:
22). Nestes princípios que nortearam sua vida, mas escritos somente em
1924, em Isenburg (Alemanha), encontramos as bases éticas da profissão
de assistente social. Associados a eles, dois vetores complementares: a
questão da palavra e a questão do coletivo.
Enquanto paciente de Breuer e, a seguir, de Freud, Bertha logo intui e
compreende a importância da palavra para o trabalho que pretendiam estes
psicanalistas – eles também pioneiros – e denomina este processo de talking
cure. Bertha os surpreende e dá uma contribuição que vai mudar o rumo da
psicanálise. A partir de então, e até hoje, a psicanálise é o tratamento pela
palavra. Note-se que, se por um lado, Bertha procurava para ela própria ajuda
intrapsíquica, por outro lado, e ao mesmo tempo, ela investia-se na realização de uma ação social capaz de ajudar os outros em condição de miséria,
sobretudo judeus, mulheres e crianças. Bertha sofria com o seu drama pessoal, mas sofria, também, com o drama social. Na interpretação de alguns,
ela buscava reparar na realidade social, o seu próprio drama. Todavia, a ética
desta pioneira vai além dos limites deste entendimento que, na sua visão de
mundo, seria reducionista. Ela reconhece a importância da dimensão
intrapsíquica, pois está em análise (embora cada vez mais cética a este
respeito), assim como reconhece as limitações e necessidades pessoais
que a levaram à análise; mas a vida, para ela, não se esgota neste nível. No
entanto, embora experienciando esta condição, Bertha não se isola em sua
dramaturgia egóica; ao contrário, preocupa-se com a esfera pública e logo
percebe, além da importância da palavra, a importância da palavra no coletivo. A crer em seus escritos, esta é a sua dimensão do social. Quando Bertha
faz um de seus balanços sobre os atos que empreendia em prol dos
injustiçados, ela afirma num determinado momento de sua história e da história de seu trabalho (pois, na verdade, é uma só história), que todos os
esforços, até então, serviram somente para que tomasse consciência de
que “uma só voz, a voz de uma desconhecida, era ineficaz” (Pappenheim,
1924, 1986: 21). O social, isto é, o nós internalizado resultante de eu e tu
(um e outro), a intersubjetividade no sentido husserliano, em Bertha precisava ganhar expressão na realidade exterior. Pode ser, de fato, que ela procurasse reparar algo interno através da ação no mundo externo, como todos
nós fazemos; mas a atitude que pautou a vida de Bertha também pode ser
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considerada uma atitude de maturidade, generosidade e comprometimento
ético-político com a realidade de seu tempo. Na verdade, sua atitude é atitude própria do humano e se realizava através do trabalho. Cada um trabalha
para si e para o outro, pois nós somos o um e o outro. Por esta via inventamos o trabalho e, através dele, o trabalho de nos humanizar. Bertha intuiu
que o grande mediador do social, desta entreconstrução, é a palavra — sempre endereçada ao outro.
O outro internalizado de Bertha Pappenheim transcendia seus limites
intrapsíquicos. Bertha era a clínica em pessoa: ela estava lá onde estava o
sujeito em situação de sofrimento, e lá estava com a sua ética do testemunho, a ética da não indiferença e da responsabilidade pelo outro, marxista
sem pretender sê-lo se, de fato, entendermos com Emmanuel Lévinas (1991)
que o grande ensinamento de Marx foi que o outro deve ser levado a sério —
exatamente como o outro é levado a sério pela psicanálise. A dimensão
intersubjetiva que constitui o trabalho social (psicopolítico) estava presente
em Bertha, ainda que ela, talvez, nunca tenha pronunciado palavras como:
sujeito e subjetividade. Nela também estava presente a necessidade de vincular subjetividade e esfera política (intersubjetividade), ainda que nunca,
talvez, tenha pronunciado as expressões: espaço público e bem-comum.
Bertha do humor refinado, inteligente e sarcástico que a muitos desagradava; Bertha, extremamente culta, mas pessoa controversa em suas atitudes e na aquisição dos resultados que buscava; Bertha que trocava ideias
com Martin Buber; Bertha, amiga de Martha Bernays (esposa de Freud) e
que tanto interessava a Sándor Ferenczi; Bertha que denominou de talking
cure a técnica experimentada por Breuer e Freud, fazendo-os se darem conta da centralidade da palavra para a psicanálise incipiente; Bertha que circulava entre as pessoas de renome de sua época e que revolucionou a idéia de
que toda histeria era de origem sexual – e é Breuer (1907) quem atesta: seu
caso “prova que uma histeria grave pode nascer, desenvolver-se e se resolver
sem base sexual” (cf. Tisseron-Papetti, 1985, In Pappenheim, 1924/1986: 8)
– é influenciada, mas, também, influencia o mundo a sua volta. No torvelinho
de uma efervescência cultural, suas ideias devem ter contribuído para se
pensar a condição humana – tema mais adiante tão estudado por Hannah
Arendt – num universo que vai gerar o advento da teoria crítica da sociedade
comumente associada à Escola de Frankfurt.
Então, voltando ao serviço social hoje, há algo que insiste na construção dessa profissão, algo que retorna sempre por mais que se queira prescrever a profissão de assistente social de uma vez por todas. Esta profissão,
por trabalhar com o real, talvez não possa ser prescrita em definitivo, sob
pena de se tornar proscrita. A insistência que retorna e escapa à prescrição
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definitiva está presente na ação e nos relatos de Bertha Pappenheim, publicados em Leipzig (1924) e encontra-se de imediato explícita no título de seu
livro: Sisyphus-Arbeit. O trabalho de Sísifo atesta esse caráter de insistência criticado por muitos, pois a teimosia não seria um atributo muito inteligente. No entanto, se contextualizarmos o caráter ético dessa teimosia,
pode-se considerar que o mito de Sísifo, na essência, deve ser compreendido como uma metáfora para significar, justamente, a não resignação ao curso das coisas. Embora este mito tenha adquirido conotação pejorativa devido ao desvirtuamento das intenções de Sísifo e dos meios que acabou utilizando para atingir seus objetivos; embora possa ser o exemplo da falta de
visão e, por vezes até, da esperteza e da desonestidade; ou o símbolo do
absurdo enquanto exemplo do esforço inútil, repetitivo e da tarefa esvaziada
de sentido; ainda assim, neste momento, fiquemos com a essência: Sísifo
representa a obstinação em reparar uma injustiça.
Todavia, ao contrário do que o trabalho de Sísifo se tornou, o trabalho
de Bertha não é egoísta, mas voltado para o outro. Voltado para o outro e de
outro jeito: Bertha não tem como desejo primeiro reparar no plano social o
irreparável do seu sofrimento intrapsíquico causado, talvez, pela cena primitiva, no sentido ontogênico mais do que filogênico, mas a vontade política –
que só o desejo é capaz de sustentar – de transformar a realidade social.
Aqui temos outro desdobramento da noção de clínica nos fundamentos do
serviço social. O meio, segundo Bertha, para operar esta transformação (assim como para a psicanálise), era a palavra: Bertha intuiu a potência
transformadora da palavra, mas de maneira diferente da psicanálise. Para
ela, tratava-se da palavra necessariamente nos coletivos que compõem o
espaço público, visando a uma ação transformadora da realidade que faz
sofrer. Bertha não aceitava a miséria por considerá-la injusta; e a causa da
injustiça provinha do não entendimento, da não escuta entre as pessoas. O
trabalho social de Bertha está impregnado de uma proposta, ainda que rudimentar, mas muito fina, de um trabalho hermenêutico. Na prática, ela viaja,
observa, busca parcerias, escuta, explica, escreve. Assim era Hermes, deus
mensageiro dos gregos, a quem é atribuída a invenção da linguagem e da
escrita (Gatta, 1994). Bertha se arrisca, traça linhas na paisagem, não se
resigna, busca o entendimento entre as pessoas voltado ao bem-comum.
Enfim, Bertha leva o Outro a sério e toda a sua vida é um trabalho ético pelas
políticas públicas.
Sísifo, insistente, trabalha; mas principalmente Hermes, intermediando
a comunicação entre os diferentes interesses. Bertha age como intérprete
da questão psicopolítica e, ao fazê-lo, através da circulação da palavra, cria
um fato social: à sua maneira de trabalhar, ela busca inserir numa sociedade
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e numa cultura a palavra dos excluídos. Eis, então, o trabalho – die Arbeit –
de Bertha Pappenheim. É desta perspectiva que se construiu o trabalho
social que, em nosso país, é denominado serviço social.
Clínica do trabalho e família
A ideia de trabalho (die Arbeit) remete ao ato de trabalhar (das Arbeiten)
– este, conforme Dejours (2001/2004), a dialética: trabalho psíquico e trabalho enquanto produção (poíçsis). No plano da intersubjetividade, esta ideia
inclui, mas vai além da assistência e, sobretudo, do serviço. Ela convoca um
fazer junto (diagnose, ao invés de diagnóstico) com o sujeito em sofrimento
e em estreita articulação com os diferentes segmentos do contexto político
mais amplo. Trata-se da construção de um espaço de discussão — clínica
pautada por uma ética da discussão, ambas as noções entendidas no sentido formulado por Jürgen Habermas (1991, 1992), mas cujo embrião já se
encontrava em Bertha Pappenheim, nos fundamentos do serviço social. Esta
clínica encerra uma polifonia e uma potencialidade semântica riquíssima e
mereceria ser mais bem analisada quanto ao seu emprego no serviço social
— se ela não for o próprio trabalho social.
Voltar a esta discussão, a partir de novos referenciais epistemológicos
e teórico-metodológicos, muito acrescentaria ao serviço social. Se, nas origens, o trabalho está associado ao padecimento e à humilhação, com Lutero
ele adquire um valor mais positivo, pois a ética protestante relança a ideia de
trabalho em outras bases. Por outro lado, a psicanálise indica o trabalho
como elaborar e perlaborar. A partir desses referenciais da clínica
psicodinâmica do trabalho e da ação, o (ato de) trabalhar que se daria através da palavra nos pequenos coletivos, vários coletivos e, depois,
intercoletivamente no espaço psicopolítico buscando afinar um entendimento sobre as coisas do bem comum e a deliberação sobre os temas discutidos, assim como o acompanhamento das medidas adotadas como conseqüência das discussões livres, seria, ao mesmo tempo, instrumento e método desta clínica que entende que o trabalhar é tão relevante para a construção do sujeito quanto a sexualidade.
Se, nos primórdios da profissão de assistente social, com as pioneiras
citadas e, em especial, com Bertha Papenheim, a clínica que se esboçava
centrava sua preocupação nas mulheres e crianças abandonadas ou exploradas (a família precarizada), hoje existem diferentes formas clínicas de abordagem das famílias em crise. Uma destas formas é indireta, pois se trata da
clínica do trabalho, na perspectiva psicodinâmica do trabalho que, se não
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exerce ação direta sobre as famílias, ela a exerce sobre o tecido social
constituído pela pluralidade das famílias; e ela também permite aos que atendem diretamente as famílias, nelas reconhecer os efeitos favoráveis ou nocivos da organização do trabalho.
É importante reconhecer que a centralidade estruturante do trabalho
está em crise. O trabalho enquanto produção (poíçsis) vem sendo cada vez
mais aviltado pelas novas formas de gestão que, quando não excluem o
trabalhador, operam sobre ele uma clivagem: o desejo, parte integrante de
sua subjetividade, é sacrificado em função, por exemplo, de metas empresariais cada vez mais exigentes. Tais metas só poderão ser atingidas – e atingidas no ritmo cada vez mais acelerado proposto pelos novos modelos de
gestão – se o sujeito paralisar, retardar ou descartar sua atividade fantasmática.
Assim, não há trabalho, porque não há atividade subjetivante (Böhle & Milkau,
1991 In Dejours, 1993, 1995) – este ato do sujeito estar mentalmente lá onde
se encontra a matéria em transformação – devido à clivagem entre o gesto e
o pensamento do trabalhador. Esta clivagem e o sofrimento moral cumulativo
dela decorrente levam o sujeito a se manter num estado de aparente normalidade (alienação) ou, então, a dirigir contra si mesmo a energia reprimida
(acidentes, erros técnicos, quadros depressivos, alcoolizações e consumo
de substâncias psicoativas, adoecimentos, suicídios) ou, ainda, a dirigi-la
contra o outro, como, por exemplo, a violência familiar. Neste sentido, Dejours
(1980, 1993) refere-se à cadeia da violência: o trabalhador descarrega sobre
a mulher e os filhos, em geral sob sigilo familiar, a violência a qual é cotidianamente submetido. Desta forma, a criança torna-se terapeuta de seus pais,
pois através de si, dos sintomas que atua por não conseguir colocar em
palavras ou simbolizar seu sofrimento e o sofrimento parental pelo qual se
sente responsável, pede ajuda externa para a sua família, antes de pedir
ajuda para si. Se ainda há famílias que conseguem dar um suporte para o
trabalhador, hoje em dia o trabalho é que é estruturante ou desestruturante
para as famílias, afetando diretamente a matriz psíquica das crianças e,
portanto, das novas e futuras gerações.
As famílias, quando não abandonadas a sua sorte em decorrência do
desemprego crônico, espalhadas pelas ruas, desfazendo-se sob as pontes
e viadutos das cidades, as famílias, quando um ou mais de seus integrantes
tem alguma forma de vínculo de trabalho, tornam-se reféns da organização
do trabalho. Esta realidade raramente é perceptível, pois se trata de um
processo silencioso. Os terapeutas de família, mas que não são clínicos do
trabalho, raramente estão aptos a identificar sintomas familiares desencadeados pelo aviltamento do trabalho. Em geral desconhecem o alcance
estruturante do trabalhar, tanto para o sujeito quanto para a família. Não têm
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contato com a dramaturgia do trabalho, assim como os profissionais das
empresas não tem noção da dramaturgia familiar.
Por exemplo: uma operária que trabalha desde os seus 17 anos, aos
38 passa a apresentar dores nas costas, nos ombros, nos braços, nos punhos. O que durante algum tempo era apenas um desconforto, controlável
com medicação, agrava-se até incapacitá-la para a tarefa na empresa. Por
diversas vezes é afastada e encaminhada para avaliação e licença médica.
Todavia, nenhum dos vários tratamentos aos quais foi submetida surte efeito
sobre essas dores que se tornaram crônicas e cada vez mais fortes. Na
interpretação de alguns, a operária passava por oportunista; na de outros,
era um caso de conversão histérica. Na visão tradicional, positivista
funcionalista, buscava-se, então, um diagnóstico e não uma diagnose. Ora,
sabe-se que a clínica do trabalho ouve os pequenos coletivos dentro das
organizações. No entanto, como tais organizações encontram-se fechadas
para o espaço de discussão, a operária foi atendida na rede hospitalar pública de Paris, por uma psicóloga clínica do trabalho que recorre à escuta de
risco (Dejours, passim) voltada à elaboração de uma diagnose: construir
com a operária, a partir de uma interpretação a dois, um entendimento sobre
o seu sofrimento.
Podendo falar à vontade, a operária desencadeia um relato cada vez
mais acelerado a respeito de suas dores, fracassos de tratamento e o trabalho. Quanto mais fala, mais acelera o ritmo de sua fala, seguidamente engolindo sílabas na sequência do discurso ou repetindo-as como um disco que
trava, mas sempre mantendo a crescente aceleração discursiva. A psicóloga, então, pergunta se ela costuma falar sempre tão rápido. A operária responde que esse jeito de falar faz parte de sua identidade e continua acelerada; mas a psicóloga pergunta se ela já se dera conta da velocidade dessa
aceleração. A operária, então, silencia, olha surpresa para a psicóloga e cai
em prantos. Este é um momento de corte importante, pois a partir daí, embora continue falando de maneira sempre acelerada e chorando, é que a
operária entra em contato com o seu sofrimento e a diagnose começa a ser
construída.
Para resumir, pois o caso, na forma de artigo é citado nas referências
bibliográficas (Karam, 2007), a operária trabalhava junto à esteira de produção de uma empresa. Quando ingressou, era uma empresa francesa familiar
na qual os operários podiam falar com os supervisores, gerentes e com a
própria administração visando contribuir para melhorar a qualidade da produção e, ao mesmo tempo, beneficiar a saúde dos trabalhadores. A palavra
circulava. No entanto, a empresa foi vendida para uma organização norteamericana que implantou um novo modelo de gestão. Se antes trabalhavam
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na esteira até quatro operários dividindo as tarefas, agora tinha que, sozinha,
dar conta de todo o processo de envasamento: encher os frascos e tampálos, verificar se não havia vazamento, colocar os rótulos, alisar os rótulos,
encaixotar os frascos. É que a supervisão observara que trabalhava bem e,
aos poucos, foi retirando os demais funcionários. A operária se esforçava
para dar conta de todo o processo, apesar de reclamar das condições a que
a estavam submetendo. Não só havia ficado sozinha na esteira, mas, ao
observarem seu esforço para fazer bem feito o trabalho (inclusive pelo medo
de perder o emprego do qual ela e a família dependiam), passaram a acelerar
cada vez mais a esteira. Ela começou, então, a fraquejar, a perder seu ritmo.
Nestes momentos, era instigada pela supervisão que a elogiava de maneira
duvidosa: sabemos que você é capaz, o que está acontecendo? A operária
era acusada de fazer corpo mole e de pretender sabotar o processo. Muitas
foram as ameaças de demissão, caso não se esforçasse por manter o ritmo
e a acelerá-lo (hiperatividade). O caso se estende e tem desdobramentos
interessantes para serem discutidos, mas o que mais importa assinalar aqui
é que, em contato com o seu sofrimento, a operária reconhece que o sofrimento moral causava mais efeitos nocivos do que o sofrimento físico e que o
sofrimento físico era decorrente do sofrimento moral (incluindo, sobretudo, o
fato dos trabalhadores não terem direito à palavra). Do agir expressivo (Dejours,
2001, 2003, 2007) os trabalhadores foram reduzidos ao agir compulsivo
(Dejours, 2001, 2003, 2007). O trabalho deixara de ser fonte de prazer para
se tornar fonte de adoecimento, atingindo, inclusive, a família. No caso da
operária citada, ela elabora e faz um comentário interessante: refere que,
invadida pela velocidade da esteira, acabou levando esta velocidade para
dentro de casa, impondo-a ao marido e aos filhos. Sem ter consciência do
fato, a família passara a funcionar no ritmo da esteira.
Em relação à realidade brasileira, minha experiência clínica do trabalho
e do atendimento às famílias durante 40 anos tem demonstrado que são
inúmeros os casos de famílias com problemas (alcoolismo, alcoolizações,
depressões, conflitos, filhos com problemas de aprendizagem na escola,
crianças hiperativas, separações, violência familiar em suas diversas formas
etc.) que, quando examinados à luz da perspectiva aqui abordada têm, na
origem, uma relação importante com a crise do trabalhar e cuja clínica pode
e tem colaborado para entendermos o surgimento dos novos sintomas e das
novas patologias que, pela via da organização do trabalho, afetam em cheio
as famílias.
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Consideração final
Passado o período das primeiras discussões sobre a necessidade de
reconceituação da profissão de assistente social (anos 1960-70), passado,
inclusive, a reconceituação efetivada (anos 1980) — embora distante dos
conteúdos que embasavam as primeiras discussões; e, ainda, ocorrida a
entrada num novo milênio que se apresenta marcado pela crise do trabalho e
do trabalhar, está na hora dos assistentes sociais fazerem um balanço do
seu estado da arte. Com certeza surpreenderia e indicaria caminhos para
uma séria revisão curricular, apta a incluir os novos construtos sistematizados pelos profissionais de todas as linhas ao longo dos últimos 50 anos; e
para retomar uma discussão silenciada: o nome da profissão e do profissional, pois serviço e assistência são apenas subáreas da Política. Numa profissão que trabalha de maneira tão intensa com o peso, a fugacidade e a
complexidade do real, esse moto-contínuo, essa dialética do trabalho real
atualizando o trabalho prescrito através do livre debate público, permitiria a
flexibilidade necessária para manter viva a profissão. A necessidade para o
novo milênio não é a adoção de nenhum modelo, mas, em primeiro lugar, a
de um balanço do estado da arte dessa profissão que se denomina serviço
social, pois os limites do que é social, assim como os limites da nossa
clínica e de suas práticas terapêuticas ainda precisam ser mais esclarecidos entre nós e à sociedade.
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Observação: as traduções do francês para o português são traduções livres
da autora.
Endereço para correspondência
[email protected]
Enviado em 06/04/2010
1ª revisão em 24/05/2010
Aceito em 01/07/2010
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