Giant Steps e os Coltrane Changes

Transcrição

Giant Steps e os Coltrane Changes
Giant Steps e os Coltrane Changes
Conheça a progressão harmônica utilizada
por John Coltrane para a composição, a
improvisação e a re-harmonização.
A música que dá nome ao disco
Em poucas décadas, algumas figuras lendárias mudaram a trajetória do jazz, escrevendo sua história
e modelando sua evolução estética. Uma delas foi o saxofonista John Coltrane, que em 1960 lançou o
álbum intitulado Giant Steps (em português, “Passos de Gigante”).
Uma pergunta
Ao que se referia Coltrane ao chamar sua música de “Passos de Gigante”? Estaria se referindo a uma
grande inovação na música contemporânea e, em específico, no jazz? Acredito que ele estivesse aludindo aos movimentos harmônicos propostos que contrariam a praxe, consolidada no sistema tonal, de progressões por quintas descendentes. A música “Giant Steps” incorpora três centros tonais equidistantes.
Veja a partitura, como apresentada no consagrado livro Real Book, para analisarmos a harmonia:
É possível observar três centros tonais: B, G e, Eb, indicados aqui, respectivamente, em vermelho, verde e azul. As setas arredondadas indicam o movimento dominante-tônica, ao passo
que os colchetes indicam o movimento cadencial II-V. A proposta estética (e harmônica) de
Coltrane foi a de fugir da centralidade de uma tônica, para criar um “efeito prisma”: não mais um centro
tonal, mas três centros equidistantes. A próxima figura nos ajuda a entender: o conceito: o intervalo de
oitava, representado pelas doze notas que o compõem, pode ser dividido em 3 partes iguais (Dó-Mi =
dois tons; Mi-Lab = dois tons; Láb-Dó= dois tons).
Da mesma forma, pode-se observar a equidistância entre as tonalidades de Si, Sol e Mib utilizada
na música “Giant Steps”.
Na música Giant Steps, cada centro tonal é precedido pela própria dominante (V7) ou pelo próprio movimento cadencial II-V.
Os Coltrane Changes
O procedimento harmônico proposto em “Giant Steps” foi o ponto de chegada de algo que Coltrane vinha
experimentando há algum tempo: uma progressão harmônica, conhecida como “Coltrane Changes” ou
“Coltrane Matrix” - em português mais conhecida como Ciclo de Coltrane - capaz de substituir sequências
de acordes mais simples do sistema tonal. Em particular, a nova sequência harmônica substitui a cadência
II-V-I:
No exemplo acima, a interpolação dos acordes da sequência de Coltrane passa pelas três tonalidades
equidistantes: Ab, E, C. Além de “Giant Steps”, sua música mais conhecida é “Countdown”, uma composição que tem, como modelo inicial, a música “Tune-up” de Miles Davis. O próximo exemplo mostra a
re-harmonização dos primeiros oito compassos da música original.
Mas não foi somente em “Tune-up/Countdown” que o saxofonista utilizou esse tipo de recurso para
criar/re-criar sobre músicas pré-existentes. Sua composição “Satellite”, por exemplo, tem como base
“How High the Moon” (Morgan Lewis); a composição “Fifth House” tem grande relação com a harmonia
de “What is This Thing Called Love” (Cole Porter); “Exotica” está baseada na estrutura de “I Can’t Get
Started” (Vernon Duke); e ainda, a composição “26-2” é uma releitura da música “Confirmation” (Charlie
Parker) por meio da aplicação dos Coltrane Changes. Esses exemplos falam da capacidade de Coltrane
de conseguir utilizar os standards clássicos de jazz para, a partir de suas harmonias, criar novas composições. Outras vezes, Coltrane imprimiu sua forte marca pessoal re-harmonizando músicas como “Body
and Soul” ou “The Night Has a Thousand Eyes”.
O contexto do Ciclo de Coltrane
Coltrane estudou harmonia na Escola de Granoff School of Music em Filadélfia, explorando
técnicas e teorias contemporâneas. Ele também teve acesso ao livro Thesaurus of Scales and
Melodic Patterns de Nicolas Slonimsky (1947), tido como material de prática instrumental e de
inspirações teóricas por muitos músicos de jazz. Nesse livro é possível encontrar um exercício
harmônico que levaria ao desenvolvimento do “ciclo de Coltrane”. Outra antecipação dessa progressão harmônica se encontra na parte B da música “Have you met miss Jones” (Richard Rodgers). Depois da morte de Coltrane, foi proposta, pelos teóricos e pesquisadores, a ideia que seu
interesse pelas relações de terça foi inspirado na religião ou na espiritualidade, com as três áreas tonais equidistantes representando um ‘’triângulo mágico’’, ou, Trindade. No entanto, David
Demsey, saxofonista e Coordenador de Estudos de Jazz na William Paterson University, mostra
que, embora o aspecto religioso fosse de alguma importância, os apontamentos para a criação
do ciclo eram muito mais “terrenos”, isto é, fundamentados e contextualizados nos estudos harmônicos e musicais por si só. É importante, nesse sentido, mencionar o interesse de Coltrane
para sistemas musicais não-tonais. Nesse sentido, seus interesses em ragas indianas durante o
início da década de 1960, o Trimurti de Vishnu, Brahma e Shiva podem muito bem ter sido uma
referência importante em sua busca para as relações cromáticas e de terças e para as simetrias
e geometrias musicais.
Esse artigo foi publicado na Revista Digital Teclas e Afins nº4
Acesse: www.teclaseafins.com.br
www.turicollura.com
Sobre o autor
Turi Collura é pianista, compositor, atua como educador musical e palestrante em instituições e festivais
de música pelo Brasil. Autor dos métodos “Rítmica e Levadas Brasileiras Para o Piano” e “Piano Bossa
Nova”, tem se dedicado ao estudo do piano brasileiro. É autor, também, do método “Improvisação: práticas criativas para a composição melódica”, publicado pela Irmãos Vitale. Em 2012, seu CD autoral “Interferências” foi publicado no Japão. Seu segundo CD faz uma releitura moderna de algumas composições
do sambista Noel Rosa. Entre outras atividades, em 2014 Turi está ministrando cursos online em grupo,
entre os quais os de “Piano Blues & Boogie”, o de “Improvisação e Composição Melódica” e o de “Bossa
Nova”. Lecionou de 2003 a 2012 na Faculdade de Música do Espírito Santo (FAMES), onde coordenou
o Departamento de Música Popular, por ele fundado. Ministrou as disciplinas Harmonia, Improvisação,
Piano Popular, Prática de Conjunto e História e Estética do Jazz. É Mestre pela UFES, Universidade Federal
do Espírito Santo (2011) e pós-graduado pela mesma instituição (2007). Ministra oficinas e workshops
em várias instituições brasileiras e internacionais.

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