veredas e primeiras estórias, de guimarães rosa

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veredas e primeiras estórias, de guimarães rosa
GRANDE SERTÃO: VEREDAS E PRIMEIRAS ESTÓRIAS, DE
GUIMARÃES ROSA: OS DILEMAS DA MODERNIZAÇÃO *
Mariana Figueiró Klafke Prof. Dr. Homero José Vizeu Araújo RESUMO: Grande sertão: veredas, escrito em 1956, e a obra subsequente de Guimarães Rosa, Primeiras
Estórias, de 1962, trazem à tona uma série de dilemas quanto à modernização do Brasil, expressa na
industrialização e urbanização crescentes, projetada desde a Era Vargas, mas planejada com força no período
nacional-desenvolvimentista, período este em que foram publicadas as obras supracitadas. Este trabalho
intenta discutir pontos de aproximação e afastamento entre essas duas obras, tendo por cerne a questão da
modernização brasileira e suas consequências. A obra de Guimarães Rosa possui vasta fortuna crítica cujos
enfoques variam muito. Porém, fica evidente que alguns aspectos da obra de Rosa foram privilegiados,
apresentando muito mais análises, como as questões metafísicas, religiosas e filosóficas. Minha intenção com
essa pesquisa é contribuir para a análise da obra rosiana sob um ponto de vista um pouco menos explorado: a
relação entre forma literária e processo social estudada no quadro da modernização conservadora brasileira.
A comparação entre os dois livros de Guimarães Rosa aponta para contrastes que indicam, até certo ponto,
uma alteração de perspectiva entre uma obra e outra, o que ainda está por ser melhor avaliado pela crítica
literária brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa, Literatura e nacional-desenvolvimentismo, modernização
brasileira. ABSTRACT: Grande sertão: veredas, written in 1956, and the subsequent work by Guimarães Rosa,
Primeiras Estórias, 1962, bring up a series of dilemmas regarding the modernization of Brazil expressed the
growing industrialization and urbanization, was designed from the Era Vargas, but planned in force in the
national-developmentalist period. In the same time, the books above were published. This research intends to
argue approach and departure points between these two works, focusing on the issue of Brazilian
modernization and this consequences. Rosa's work has a vast fortune whose critical approaches vary widely.
However, it's evident that some aspects of Rosa's work were privileged by presenting more analysis on issues
such as metaphysical, religious and philosophical. My intention with this research is to contribute to the
analysis of the Rosa's work by viewpoint a little less explored: the relationship between literary form and
social process considering the Brazilian conservative modernization. The comparison between these two
Rosa's books indicates some contrasting: a change in perspective between one work and another, which is yet
to be better analized by the Brazilian literary critic. KEY-WORDS: Guimarães Rosa, Literature and national-developmentalist, brazilian modernization. Grande sertão: veredas é uma obra de grande complexidade e hibridização, tanto
no que se refere ao gênero literário (romance em forma de monólogo “disfarçado” de
diálogo – possivelmente em uma paródia irônica e invertida da falta de diálogo entre as
∗ Graduanda em Letras – Licenciatura em Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa pela
UFRGS [email protected] classes sociais no Brasil, de linguagem altamente poética e cheio de pequenos contos e
“causos”, relata ao mesmo tempo a história pessoal de um indivíduo em travessia e a
história épica de lutas do povo jagunço) quanto em questões temáticas (a erudição de Rosa
permeia suas obras com as mais diversas referências). Roncari, em O Brasil de Rosa,
afirma que: Guimarães Rosa compunha as suas histórias e organizava a sua visão de mundo
tendo por base três tipos de fontes principais: uma empírica, dada pela vivência
direta da região e do país; outra mítica e universal, adquirida na leitura da
literatura clássica e moderna; e outra nacional, apoiada não só na nossa tradição
literária, mas também nos velhos e novos estudos de interpretação do Brasil,
efervescentes em seu tempo (RONCARI, 2004, p. 17). Considerando as referências tão diversas, a obra de Guimarães Rosa possui uma
vasta fortuna crítica cujos enfoques variam muito, como não poderia deixar de ser. Porém,
fica evidente que alguns aspectos da obra de Rosa foram privilegiados pela fortuna crítica,
contando com muito mais análises, tais como as questões metafísicas, religiosas e
filosóficas. Minha intenção com esse artigo é contribuir para a análise da obra rosiana sob
um ponto de vista um pouco menos explorado: a perspectiva histórica e sociológica de
construção e interpretação do ideário de Brasil. Minha hipótese aqui é a de que existe uma
profunda reflexão sobre a modernidade nas obras de Rosa que aqui intento comparar, a
saber: Grande sertão: veredas e Primeiras Estórias, e que essa reflexão se dá de forma
diversa nessas obras. Em Grande sertão: veredas, a reflexão de Rosa sobre a modernização brasileira
parece se dar no sentido da contradição entre arcaico e moderno, interiorano e citadino, em
uma história que foca aparentemente o Brasil avesso à modernização oficial, utilizando os
termos de Willi Bolle; porém, esses conflitos surgem mediados pela narração do jagunço
letrado Riobaldo. Conforme Pasta Jr., em O romance de Rosa: temas do Grande Sertão e
do Brasil, “Riobaldo estava condenado pela contradição de base que o constitui. [...] livre e
dependente; homem de lei e de mando, de contrato e de pacto; letrado e iletrado – moderno
e arcaico [...]” (PASTA JR, 1999, p. 63). É através desse narrador complexo e
contraditório que o leitor toma contato com o mundo do sertão. Ainda segundo Pasta Jr.,
esse hibridismo seria uma característica quase que estrutural da Literatura Brasileira: Com as variações importantes que seria preciso avaliar em cada caso,a literatura
brasileira não cessa de pôr e repor as figuras de um hibridismo que constitui
uma espécie de marca de nascença do próprio país, igualmente posta e reposta
ao longo de sua história. Nação colonial e pós-colonial, o Brasil já surge na
órbita do capital e como empresa dele, mas se estabelece e evolui com base na
utilização maciça, praticamente exclusiva e multissecular, do trabalho escravo.
Essa contradição de base forma uma espécie de enigma histórico e sociológico
que as ciências humanas permanecem a interrogar, entre nós. Quem acompanha
o debate brasileiro sabe os trabalhos a que se dão sociologia, história, filosofia,
economia para identificar, enfim, o modo de produção que diz respeito à nossa
formação histórica, numa querela que prossegue aberta. Ao longo de séculos, e
de um modo que nunca superaram completamente seja a Independência, sejam
as sucessivas modernizações conservadoras, o Brasil praticou a junção
contraditória de formas de relações interpessoais e sociais que supõem a
independência ou a autonomia do indivíduo e sua dependência pessoal direta
(PASTA JR, 1999, p. 67). Kathrin Rosenfield, em Desenveredando Rosa - A obra de J. G. Rosa e outros
ensaios rosianos, apesar de seu enfoque mais metafísico e simbólico da obra rosiana,
também aponta a contradição social e política que o narrador de Grande sertão: veredas
traz cifrada: “Na visão que o narrador nos dá do sertão afloram as novas condições sociais
(a República, o sufrágio, a educação democrática) que se intercalam com estruturas
políticas muito arcaicas” (ROSENFIELD, 2006, p.19). Homero Vizeu Araújo, em artigo
intitulado “A terceira margem sobre a qual se equilibra Riobaldo”, revê o argumento de
Rosenfield e aponta uma espécie de luto pela pátria arcaica perdida para a modernização
posterior à década de 30. Porém, Araújo indica que em Rosa o contraste entre arcaico e
moderno não aponta conflito em Grande sertão: veredas, justamente devido à posição
conciliatória do narrador Riobaldo, jagunço letrado no qual “encontram-se o legado da
cultura caboclo-sertaneja, experimentalismo linguístico e ousadia especulativa e filosófica,
para ficar no mínimo” (ARAÚJO, 2011, p. 56). A questão é que Riobaldo, sertanejo
relativamente letrado, nem arcaico nem moderno, se desenha, assim como sua história,
como travessia: “não pretende contestar a cultura sertaneja mediante racionalismo cabível,
nem retornar ao mundo jagunço e suas lendas [...] o protagonista busca uma conciliação de
perfil bem brasileiro” (ARAÚJO, 2011, p. 57). A chave de leitura proposta por Homero Araújo é que seja possível entrever alguma
utopia na obra rosiana, de um Brasil em que arcaico e moderno se harmonizem, em uma
espécie de progresso inocente (retomando a expressão de Roberto Schwarz) presente na
promessa de felicidade já enunciada pelos contemporâneos da Bossa Nova, por exemplo. A
utopia de um Brasil moderno em que se conciliassem a cultura rural e urbana e o projeto
nacional-desenvolvimentista e se formasse uma nação integrada aparentemente provém da
noção de conciliação brasileira advinda da falta de caráter burguês bem definido em um
país periférico. A esse propósito, Ana Paula Pacheco, em O lugar do mito: Narrativa e
processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa, afirma que “alguns estudos
mostraram que a não-formação de um estado burguês que normatizasse a vida pública dos
indivíduos impossibilitou [...] a constituição de sujeitos autônomos” (PACHECO, 2006, p.
255). Ainda citando Ana Paula Pacheco, mas agora no artigo “Jagunços e homens livres e
pobres: O lugar do mito no Grande sertão”: os anseios de Riobaldo parecem ter relação com a historicidade do sujeito no
Brasil — com sua não-formação, ligada à não constituição de uma racionalidade
burguesa de fato, à auto-imagem de uma subjetividade “que não é ainda”, nem
sequer como projeção ideológica — e atualizam-se numa consciência
moderna,dividida (PACHECO, 2008. p. 183). Segundo Willi Bolle em grandesertão.br: O romance de formação do Brasil, a
questão do possível pacto com o diabo que Riobaldo teria realizado com fins arrivistas
seria o cerne do romance. Riobaldo, atormentado pela culpa, narra sua história a um
interlocutor culto e urbano, propõe “armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um
conselho” (ROSA, 1958, p. 206), desejando que o interlocutor lhe conforte afirmando que
o diabo não existe e, portanto, não houve pacto. Seguindo o argumento de Willi Bolle, o
pacto seria uma espécie de alegoria de contrato social, no caso do Brasil falho ou
inexistente e, portanto, substituível por atos mágicos que permitem a ascensão social. O
pacto é realizado por Riobaldo após ocorrências que o fazem perceber quão ilusória é sua
condição de jagunço: no fim das contas, ele é somente um braço de arma, pouco ou nada
diferente de um trabalhador alugado no campo, de destino incerto. A constituição de
Riobaldo, híbrida, o coloca ao lado das complicações de formação do sujeito no Brasil,
complicações estas que não pareciam estar se resolvendo com a modernização, que pouco
modifica as estruturas arcaicas profundas do país. De toda forma, o pacto mesmo parece uma espécie de saída conciliatória em
relação aos conflitos brasileiros, e há muitas referências mais de conciliação de conflitos ao
longo do romance. Lembremo-nos de que um dos episódios centrais do romance, o
julgamento de Zé Bebelo, apresenta a mais evidente das conciliações entre moderno e
arcaico: Zé Bebelo, personagem que traz a marca do moderno e do desenvolvimentismo, é
absolvido pelos jagunços em julgamento, e mais adiante se integra em batalha tipicamente
jagunça, por honra e vingança de morte, e não mais para acabar com a jagunçagem,
conforme intenção anterior. A própria imagem do momento em que a história é contada
por Riobaldo é sintomática: a chegada de um doutor da cidade, de jipe, em uma fazenda na
beira do rio São Francisco, que irá ouvir o depoimento de um jagunço letrado sobre suas
andanças e descaminhos pelo sertão, traz uma espécie de conciliação entre moderno e
arcaico, rural e citadino, que se encontram sem choque aparente. Há também uma citação
bastante ambígua de Riobaldo, “[...] cidade acaba com o sertão” (ROSA, 1958, p. 159),
que deixa uma questão em aberto: o sertão acaba com a chegada da cidade ou a cidade
acaba onde começa o sertão, em uma espécie de limite? São estes alguns apontamentos das
ambigüidades e formas conciliatórias que ficam da leitura de Grande sertão: veredas ao
pensar os conflitos da modernização. Em Primeiras Estórias, seis anos mais tarde, o
resultado dessa reflexão é relativamente diferente. Primeiras Estórias constitui-se como um corpo coerente de contos que formam um
sistema, tanto temática quanto estruturalmente. Sob o ponto de vista temático, Primeiras
Estórias parece indicar uma espécie de luto pela modernização brasileira, que promete
integração, mas marginaliza ou sufoca determinados setores sociais ou mesmo regiões
geográficas e seus costumes, impondo uma unidade nacional artificial. Os contos inicial e
final, por exemplo, “As margens da alegria” e “Os cimos”, mostram um menino no cenário
da construção da grande cidade (Brasília), que sente uma espécie de culpa que ainda não
sabe bem nomear – seria essa a culpa pelos males da modernização, indicados somente por
um inocente, que é capaz de intuir o significado mais profundo do processo? De modo
geral, o livro traz como personagens mulheres, loucos, crianças, desvalidos, todo tipo de
marginalizados que não podem ser integrados em uma concepção de Brasil moderno,
industrial, capitalista. Estruturalmente, por outro lado, Primeiras Estórias parece constituir
um sistema coerente quando toma-se como chave de leitura o conto central, “O espelho”.
Tomando-se “O espelho” como referência de leitura do restante da obra, pode-se
considerar que os contos se refletem simetricamente. Além disso, o enredo do conto talvez
indique um tema central ou norteador para a leitura do livro: lembremo-nos de que se trata
de um narrador em primeira pessoa, vindo do interior para a cidade, que narra uma
experiência singular de perda de identidade típica do novo contexto no qual se encontra,
que pode ser vista de forma metafórica. Segundo Paulo Rónai, sem deixar de considerar a diferenciação que há entre os
contos, fica da leitura de Primeiras Estórias a impressão de unidade perfeita: “O seu
parentesco não se reduz a traços estilísticos: provém de uma concepção pessoal tanto da
vida quanto da arte” (RÓNAI, 2005, p. 22). O desfile de personagens, diversos mas ainda
assim ligados, nos mostra a intuição e o devaneio, fontes permanentes de poesia, vitoriosos
sobre o raciocínio, de forma que tudo se transubstancia em símbolo. A vitória da
irracionalidade traz consigo uma série de implicações da ordem da valorização de outra
espécie de vivência que não a ocidental moderna. Tomemos como exemplo o conto “A
terceira margem do rio”, no qual há uma espécie de provocação em relação a essa lógica.
Narrado em primeira pessoa, pelo filho, o conto relata a experiência de um homem que a
certa altura da vida mandou construir uma canoa, foi-se ao rio e nunca mais voltou: não
apeou na outra margem, não voltou à margem de onde saiu – ficou suspenso, eterno,
indecifrável. A família, os vizinhos, os conhecidos, enfim, o povo do vilarejo, cogitou sempre estranhando que aquele homem “cumpridor, ordeiro, positivo” (ROSA, 1985, p.
32) tomasse essa atitude - os motivos de sua partida (pagamento de promessa? escrúpulo
de feia doença? doideira?) e concluiu que, mais dia menos dia, ele voltaria para casa ou, na
pior das hipóteses, iria embora para sempre pela outra margem. Nem uma nem outra
possibilidade se cumpriu: a lógica foi quebrada e a vida fica como que suspensa. Creio que
o ponto central para o entendimento do conto é a negação do Princípio do Terceiro
Excluído, um dos pilares da lógica aristotélica: “Ou A é X ou é Y, e não há terceira
possibilidade”. Guimarães Rosa renega o pensamento binário ocidental (verdade x mentira,
todo x partes, bem x mal, etc.) neste conto, no qual o foco é a terceira possibilidade, que
foge ao nosso entendimento racionalista, mas ali existe – no sertão, tudo é possível. Assim
como “A terceira margem do rio”, os demais contos de Primeiras Estórias em geral
também lidam com questionamentos da racionalidade e da lógica. Se tomado como ponto central e chave de leitura da obra, “O espelho”, conto que se
encontra exatamente no meio (o décimo primeiro de vinte e um contos) de Primeiras
Estórias, oferece a possibilidade de leitura do livro como um sistema consistente, e não
como mera coletânea de pequenas histórias. Iniciado por um travessão que introduz a fala
ininterrupta do narrador em primeira pessoa dirigida a um interlocutor oculto, “O espelho”
narra a experiência fantástica que trouxe ao narrador-personagem conhecimentos
singulares sobre a natureza humana. A partir do momento em que se defronta com sua
imagem deformada pelo jogo entre dois espelhos, o narrador passa a procurar
incessantemente descobrir sua “verdadeira face”, buscando, através da eliminação de
traços residuais como elementos hereditários, marcas de expressão e até mesmo “lastro
evolutivo residual” (marcas advindas das bestas que o homem ainda carrega), a essência do
homem na imagem: seu psiquismo ou alma. A imagem monstruosa vista no jogo de
espelhos faz com que ele se defronte com um duplo que dá início à busca pela sua
constituição como sujeito único. O narrador entende de forma singular o que é
“individual”: seria o “eu” sem qualquer fronteira com o outro, fora da História e da cultura,
antes da própria natureza; parece haver aí uma espécie de recusa do mundo pelo “eu”, em
uma tentativa de reencontrar-se perante a impossibilidade de enfrentar esse mundo que
descartou a subjetividade. Através de todo tipo de experimento (científico, empírico,
supersticioso puramente), o narrador busca encontrar suas puras feições de homem, no que
a princípio falha: após meses sem observar-se por ter desistido de sua busca, ele depara-se
com um espelho e não vê imagem alguma, concluindo, horrorizado, que não possuía uma
existência “central, pessoal, autônoma” (ROSA, 1985, p. 71). Somente anos depois,
passada uma época de grandes sofrimentos, voltou a enxergar uma luz tênue no espelho, e
muito mais tarde, tendo encontrado o amor e estando feliz, pôde ver-se como jamais vira
antes: um rosto anterior ao rosto, “ainda-nem-rosto [...] rostinho de menino, de menos-quemenino” (ROSA, 1985, p. 72). O fechamento do conto sugere uma espécie de redenção do
dilema existencial, através da descoberta, na visão do rosto mítico, de que a vida terrena é
estágio em que “se completam de fazer as almas” (ROSA, 1985, p. 72). Ana Paula Pacheco, em O lugar do mito, afirma que, como o título indica: “O espelho” tem papel importante na leitura do conjunto do livro. [...] o conto
gira sobre uma questão central à poética rosiana, tematizada na procura de um
rosto verdadeiro e suas decorrências, embate de uma subjetividade que busca
reaver o “humano” [...] De modo amplo, a pergunta pela identidade, que coloca,
está em todos os contos do livro, - busca de um rosto mítico na cultura, que
responda, paradoxalmente, aos dilemas dos novos tempos (PACHECO, 2006, p.
222). Ao mesmo tempo, o próprio narrador parece concentrar, em uma caricatura
intencional, diversos matizes da poética rosiana, como a mistura entre alta cultura e cultura
de almanaque, o contato entre interior e cidade e entre cultura citadina e cultura oral, a
estetização do histórico-literário, etc. Por fim, pode ser possível entrever no discurso do
narrador a impossibilidade de se definir como sujeito no contexto brasileiro de
modernização, no qual inclusive a busca por definir uma identidade freqüentemente é
permeada por elementos mágicos e irracionais. Além deste dado temático, há a
possibilidade de vermos o conto central como eixo estrutural da obra, como se “O espelho”
de fato espelhasse o restante dos contos de Primeiras Estórias, estabelecendo ligações
simétricas entre eles: o primeiro conto teria ligação com o vigésimo primeiro, o segundo
com o vigésimo, o terceiro com o décimo nono, e assim por diante. Kathrin Rosenfield, em Desenveredando Rosa, defende que Primeiras Estórias
seria uma espécie de modulação de dois grandes temas de Grande sertão: veredas: Neste romance, Riobaldo faz, de um lado, a experiência da maldade originária e
do dilaceramento profundo de toda certeza de uma ordem realizável do mundo.
Por outro lado, entretanto, nessa terrível aventura pelos descaminhos do Demo,
Riobaldo parece estar animado por uma confiança angelical na bondade e no
bem [...] (ROSENFIELD, 2006, p.151). O mesmo deslumbramento pela natureza e pela beleza que Riobaldo experimenta
no primeiro encontro com o Menino-Reinaldo-Diadorim-Maria Deodorina, e que se
mantém mesmo ao lado de sua lucidez ao lidar com a jagunçagem, por exemplo, é vivido
pelo Menino que protagoniza os contos inicial e final de Primeiras Estórias. Outro ponto de conexão entre Primeiras Estórias e Grande sertão: veredas
apontado em Desenveredando Rosa é a aparente e superficial heterogeneidade que na
verdade esconde e desvia a atenção da coerência interna de ambas as obras: nos dois casos,
os deslizes e as contingências da vida cotidiana são, mesmo que a princípio pareça o
contrário, parte importante da construção lógica, temática e formal da obra. Rosenfield
defende que, assim como Primeiras Estórias contém uma divisão mediana, “O espelho”,
que de certa forma norteia o livro de contos formal e até mesmo tematicamente, também
Grande sertão: veredas possui uma divisão mediana que sustenta sua progressão rítmica,
cuja função seria reunir figuras centrais da narração bem como dirigir a atenção para certos
núcleos temáticos, de forma a constituir uma espécie de chave de leitura do romance, em
estreita analogia com o conto central de Primeiras Estórias. Em Grande sertão: veredas – Roteiro de leitura, Rosenfield propõem a divisão do
romance rosiano em sete sequências, entre as quais esse ponto de suspensão supracitado, a
quarta sequência, cerca de quatro páginas mais ou menos ao meio do livro, seria uma
espécie de “parêntese meta-narrativo” (ROSENFIELD, 1992, p. 11) no qual o interlocutor
é convidado a ouvir e refletir sobre a narração e são revistos os temas da primeira metade
do romance, bem como anunciados os elementos ainda incompreensíveis que a segunda
parte do romance elucidará. Voltando a Desenveredando Rosa, Rosenfield defende que o
conto mediano de Primeiras Estórias, “O espelho”, possui a mesma estrutura interna deste
intermezzo e a mesma relação com o restante da obra: há um convite ao leitor para “seguir,
reconstruindo e fazendo compreensíveis, os passos de uma experiência narrada nessa
estória” (ROSENFIELD, 2006, p. 155), uma espécie de exortação de um interlocutor
virtual, sem direito à voz para sabermos quem é, mas dito culto pelo narrador, e uma
temática que se relaciona intimamente e remete às demais partes da obra. Em ambos os
casos, temos uma falsa situação dialógica em que um sujeito às voltas com questões
metafísicas e de identidade tece um longo monólogo em busca de se construir frente a um
interlocutor culto a quem atribui a capacidade de julgar os eventos relatados. Porém, não obstante as semelhanças estruturais e temáticas, os resultados obtidos
em “O espelho” e na reflexão mediana de Grande sertão: veredas são absolutamente
diversos. Enquanto em Grande sertão: veredas o resultado estético dessa pausa reflexiva é
consistente e bem resolvido, em “O espelho” fica uma impressão de descompasso em
relação ao restante da obra: além de ser o único conto de Primeiras Estórias com uma
situação narrativa dialógica (falsa, como em Grande sertão: veredas), “O espelho” tem
tema dissonante em relação ao todo do livro, narrando uma história sem experiência
empírica através de um narrador pedante de saber enciclopédico, conforme reflexão de
Ana Paula Pacheco em O lugar do mito. Com esses seis anos de diferença entre uma publicação e outra, aparentemente a
estrutura social e política expressa na modernização clarifica-se o suficiente para que
Guimarães Rosa demonstre outra visão da modernização: nas narrações de Primeiras
Estórias, já não há lugar para a conciliação entre arcaico e moderno como havia em
Grande sertão: veredas. Ali, fica evidente que o moderno não admite conciliação e gera
descompasso quando misturado ao arcaico, sendo a tendência mais natural que a
modernidade acabe com as outras formas de vivência social e cultural que não se
enquadrem explicitamente em sua lógica. O resultado obtido em “O espelho”, com um
narrador interiorano em crise de identidade na cidade, demonstra o quão inviável é a
conciliação no cenário brasileiro. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Homero José Vizeu. A terceira margem sobre a qual se equilibra Riobaldo.
Conexão Letras - História, linguística & literatura, Porto Alegre: Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, v. 6, n. 6, 2011, p. 55-62. BOLLE, Willi. grandesertão.br: O romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas
Cidades, 2004. PACHECO, Ana Paula. O lugar do mito: Narrativa e processo social nas Primeiras estórias
de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006. PACHECO, Ana Paula. Jagunços e homens livres e pobres. O lugar do mito no Grande
sertão. Novos Estudos, São Paulo: CEBRAP, n. 81, jul. 2008. PASTA JR., José Antônio. O romance de Rosa: temas do Grande Sertão e do Brasil.
Novos Estudos, CEBRAP, São Paulo, n. 55, nov. 1999, p. 61-70. RÓNAI, Paulo. Os vastos espaços. In: ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 19-47. RONCARI, Luiz. O Brasil de Rosa. São Paulo: Editora UNESP, 2004. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1958. ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. 14. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Grande sertão: veredas – Roteiro de leitura. São
Paulo: Editora Ática, 1992. ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Desenveredando Rosa: A obra de J. G. Rosa e outros
ensaios rosianos. Rio de Janeiro: Top Books, 2006.