Scintilla vol. 2, n.1

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Scintilla vol. 2, n.1
SCINTILLA
SCINTILLA
REVISTA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVAL
ISSN 1806-6526
Scintilla, Curitiba, vol. 2, n. 1, p. 1 a tanto, jan./jun. 2005
Faculdade de Filosofia São Boaventura - FFSB
Curitiba PR
2005
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Catalogação na fonte
_____________________________________________________________
Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Faculdade de Filosofia
São Boaventura, v.1, n.1, 2004Semestral
ISSN 1806-6526
1. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.
3. Mística – Periódicos.
CDD (20. ed.) 105
189
189.5
____________________________________________________________
SUMÁRIO
EDITORIAL
7
ARTIGOS
9
A crítica de Scotus à teoria tomasiana da subordinação das ciências
Roberto Hofmeister Pich
11
A teologia e seu método no prólogo da Ordinatio de Duns Scotus
Sinivaldo S. Tavares
67
O conceito de pessoa
Constantino Koser, OFM
107
COMENTÁRIOS
131
Da pessoa
Hermógenes Harada
TRADUÇÕES
133
171
Da ecceidade ou do princípio de individuação
Duns Scotus
173
Como se deve seguir a Deus e do modo bom
Mestre Eckhart
177
Olivi, o mais velho representante escolástico do conceito hodierno de
movimento
B. Jansen, SJ
181
EDITORIAL
Enio Paulo Giachini (Editor)
Este vol. 2, n. 1 de Scintilla tem seu eixo central apoiado nalguns temas do
pensamento Scotiano.
Escolhidas três clareiras de reflexão dentro das infindas sendas percorridas por
Scotus, estas vão servir de luzeiro no direcionamento que o próprio Scotus
procurou vislumbrar, seguir e indicar para o destino do humano: a) O estatuto de
ciência e sua relação no plural, b) a teologia e seu método e c) o conceito de
pessoa no âmbito da trindade.
Inicialmente um artigo de Roberto H. Pich traz esclarecimentos e abre espaço
para se compreender a concepção scotiana de subordinação das ciências em
geral, e especificamente se há subordinação entre a “nossa teologia” e a teologia
de Deus ou dos bem-aventurados. A partir daí, trava-se um diálogo crítico com o
conceito tomasiano da subordinação das ciências, o que vai evidenciar os critérios
scotianos de conhecimento científico, em franco confronto com os aristotélicos. É
aqui que Scotus rediscute o estatuto de ciência, fato que vai servir de base para
novas posturas frente à tradição.
A partir do Prólogo da Ordinatio, Sinivaldo S. Tavares, brinda-nos com um artigo
que versa sobre e a partir da peculiaridade do método científico da teologia, o
que vale dizer, a especificidade de seu modo de pensar. Essa reflexão dimensiona
naturalmente a relação entre os diversos saberes – redução, subordinação... – e
o alcance da razão frente ao destino do homem e frente à revelação. De modo
muito oportuno, convida a pensar o destino histórico da proposta scotiana de
pensamento, sobretudo em tempos de esgotamento dos grandes projetos da
modernidade.
É com bastante contentamento que a revista presenteia o leitor com um artigo
inédito, póstumo, de Fr. Constantino Koser, sobre o conceito de pessoa no
pensamento de Scotus. Segundo o autor, o conceito de pessoa insere-se no tema
da Trindade, onde recebe sua caracterização peculiar. Aliás, segundo o autor, a
concepção trinitária de Scotus tem uma relação direta com seu conceito de
pessoa. É a peculiaridade de sua definição de pessoa que vai servir de pano de
fundo para diferenciar seu pensamento do pensamento do Aquinate. Em diálogo
aberto com sua cunhagem tradicional – Boécio, Agostinho, Ricardo de S. Vítor,
Tomás de Aquino, A. de Halles, Boaventura –, Scotus pensa o conceito de
pessoa como incomunicabilidade: pessoa é incomunicabilidade, que possui
existência em uma natureza racional individual.
Partindo do conceito de modo, Weise, da 17a conversação espiritual, de Mestre
Eckhart, Hermógenes Harada desenvolve um comentário sobre o conceito de
pessoa. Ali, “Eckhart exorta com repetida e acentuada insistência que cada um
dos seguidores de Cristo deve segui-lo a seu modo, no modo próprio de cada um.
Aqui o modo próprio se refere ao próprio de cada um de nós, a saber, ao que há
de mais ‘substancial’ em mim, à ‘pessoa’ de mim ou talvez digamos nós, hoje, ao
meu Self ou Selbst”.
ARTIGOS
(Sheila, Colocar no rodapé de cada artigo, dos comentários e das traduções a legenda
bibliog.: Scintilla, Curitiba, vol. 2, n. 1, p. tanto a tanto, jan./jun. 2005
A CRÍTICA DE SCOTUS À TEORIA TOMASIANA DA SUBORDINAÇÃO DAS
CIÊNCIAS
Roberto Hofmeister Pich∗
INTRODUÇÃO
Scotus trata da subordinação das ciências na segunda “quaestio” da quarta parte
do Prólogo à Ordinatio, a saber, “se [a teologia] tem uma relação de subordinante
ou de subordinada para com alguma outra ciência”.1 O tratamento do tema é parte
da sua análise do caráter científico da teologia, ou, mais exatamente, parte da sua
teoria do conhecimento científico (“scientia”).2 Mesmo incluindo as demais fontes
paralelas, a abordagem total é bastante breve.3
Na fonte principal, a abordagem formal scotista é conduzida por duas perguntas
relativas à teologia. A obra do scotista João de Reading4 mostra que ambas as
questões, ao menos nos círculos scotistas, apontam para duas tendências
independentes da investigação do conceito de subordinação no início do século
XIV. Na primeira, questiona-se se a teologia se relaciona com as ciências naturais
– teóricas e práticas – como uma ciência subordinada ou subordinante.5 Esta
pergunta tange a doutrina de Henrique de Gand sobre a função do conhecimento
do objeto da teologia para o conhecimento de todo outro objeto natural
conhecível.6 A segunda pergunta, se entre a “nossa teologia” e a teologia de Deus
ou a dos bem-aventurados há uma relação de subordinação,7 diz respeito à teoria
controversa de Tomás de Aquino sobre a subordinação das ciências, desenvolvida
∗
Doutor em Filosofia, professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS.
1
Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 141, n. 208.
2
Cf. Roberto Hofmeister PICH, Der Begriff der wissenschaftlichen Erkenntnis nach Johannes Duns Scotus, Capítulo VII.
3
Ord. prol. n. 214-216; Lect. prol. n. 119-121; Rep. par. prol. quaestiuncula 4, n. 16-17; Rep. I A prol. q. 2.
4
Cf. Steven J. LIVESEY, Introduction, in: Steven J. LIVESEY (ed.), Theology and science in the fourteenth century,
Three Questions on the Unity and Subalternation of the Sciences from John of Reading’s Commentary on the Sentences,
p. 37-8. 41s.
5
Ord. prol. n. 215-216.
6
Sobre o item do programa de Henrique de Gand para o entendimento da ciência da teologia em comparação com as
demais, na Summa a. 7 q. 1-13, abordado por Scotus, cf. Christian TROTTMANN, Théologie et noétique au XIIIe siècle
(VI - Henri de Gand, professionnalisation de la théologie), p. 167-8.
7
Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a; Rep. par. prol. q. 2, n. 3-5; Ord. III d. 24, n. 2-3; Rep. par. III d. 24, n. 3-5.
em função da teoria ainda mais controversa do caráter científico da “theologia
viae”. Além desses caminhos de análise, foi tese de estudo recente do autor,
sobre a teoria da subordinação scotista, a identificação de um tipo particular de
ciência subordinada. Trata-se da ciência subordinada “quia” e “per experientiam”,
que, baseada em elementos da epistemologia de Alhazen e de Rogério Bacon,
invoca o conhecimento experimental certo e evidente dos princípios de uma
demonstração na ciência da óptica (ou, então, numa ciência – intermediária –
como a óptica), com independência da redução ao conhecimento matemático
subordinante. Ali, ao final, sugere-se uma concepção não de todo aristotélica da
subordinação, daí uma concepção não de todo aristotélica da cientificidade de um
hábito do conhecimento.8
O presente estudo tem como objetivo descrever e analisar o conteúdo da
resolução da segunda pergunta apontada acima. O título do ensaio deve, portanto,
ser corrigido: não se trata de criticar a teoria tomasiana da subordinação como tal,
mas sim a fundamentação de um único aspecto da mesma teoria: da suposição de
que, entre a teologia de Deus e a dos bem-aventurados e a “teologia do caminho”
pode haver uma relação de subordinação entre duas ciências. Pressuposto disso
é que seja apresentada a concepção scotista básica acerca da subordinação das
ciências e que seja circunstanciada a teoria específica de Tomás de Aquino (1.
Depois, passo a expor os cinco argumentos scotistas contra toda possibilidade de
se aceitar a subordinação pensada por Tomás de Aquino (2.1 até 2.5). O propósito
disso, além de dar relevo a um tópico esquecido da teoria da ciência scotista, é
fazer ver que a crítica categórica de Scotus é ilustrativa dos seus critérios de
conhecimento científico. Ademais, voltando-se às premissas de Tomás de Aquino,
parece possível afirmar que a avaliação scotista é, ao final, mesmo que em nada
positiva, passível de ser entendida como de franca surpresa face às contradições
que aquela subordinação acarreta (Conclusão).
1 SE A TEOLOGIA DO CAMINHO É SUBORDINADA A OUTRAS FORMAS DE
TEOLOGIA9
Para a solução das questões específicas sobre a subordinação das ciências,
Scotus tomou como suficiente expor uma concepção geral da mesma.
Formalmente, ele avalia, assim, de modo sóbrio e rigoroso as características da
teoria aristotélica da subordinação. O comentador Lychetus viu com razão, sobre
Ord. prol. n. 214, que Scotus soluciona questões específicas por meio de duas
condições essenciais da ciência subordinada.10 Nesta, o sujeito/objeto11 é tratado
8
Cf. Roberto Hofmeister PICH, Subordinação das ciências e conhecimento experimental: um estudo sobre a recepção do
método científico de Alhazen em Duns Scotus, in: Luis Alberto DE BONI e Roberto Hofmeister PICH (eds.), A recepção
do pensamento greco-árabe e judaico pelo Ocidente Medieval, p. 573-616.
9
Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a; Rep. par. prol. q. 2, n. 3-5; Ord. III d. 24, n. 2-3; Rep. par. III d. 24, n. 3-5.
10
Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, in: Johannes DUNS SCOTUS, Opera omnia V.1: Ordinatio prologus. Ordinatio I d. 7, p. 108, n. 1: „Hic Doctor intendit probare duo. Primum, quod Theologia in se non sit scientia
subalternata, nec subalternans: & hoc patet per conditiones scientiae subalternatae“. Cf. também Quaestiones super libros
metaphysicorum Aristotelis I q. 9, p. 175, n. 40: „(...): condicio una subalternatae scientiae est quod subiectum suum sit
sub subiecto subalternantis, alia est quod scit ‘quia’, ubi superior scit ‘propter quid’, et a superiori accipit sua principia ad
probandum conclusiones“.
na medida em que está sob o sujeito/objeto da ciência subordinante. Disso seguese, segundo Lychetus, que a ciência subordinada é menos geral e que, ao seu
sujeito/objeto, deve ser acrescentada uma diferença acidental.12 Em segundo
lugar, é condição necessária da subordinação que a ciência subordinada tome os
seus princípios, ou ao menos uma das suas premissas, da ciência subordinante.13
Via de regra, ambas as condições são entendidas como necessárias para a
subordinação. Porém, há um caso de vínculo entre ciências que faz notar que
apenas a segunda condição é, de certo modo, necessária e suficiente. Em se
dando a segunda condição, sabe-se que a primeira também se dá. Contudo, a
primeira condição não é uma condição necessária e suficiente, pois ela não
implica necessariamente a segunda. Assim é porque o sujeito/objeto de toda
ciência específica, como a teologia, pode estar sob o sujeito/objeto da metafísica,
a primeira ciência.14 Mesmo assim, isso não implica que cada ciência específica
tome os seus princípios da ciência do ente enquanto ente.15
Assim, pois, para que ocorra um vínculo de subordinação entre duas ciências, é
preciso haver o que Finkenzeller chamou de “relação causal na progressão do
conhecimento”.16 Isso é garantido pela observação das duas condições scotistas
explícitas. E, ao que tudo indica, segundo o entendimento aristotélico da
subordinação é exatamente esta relação causal que é decisiva – como passagem
causal, da parte do intelecto, da ciência subordinada para a subordinante.17 A
interpretação de Finkenzeller está em concordância com a de O’Connor, a saber,
que Scotus aceita o conceito de subordinação entre duas ciências, exatamente
quando aquele que conhece a ciência subordinada (p. ex., a óptica) conhece
também a ciência subordinante (p. ex., a geometria).18 Neste caso, um hábito
11
O uso das expressões “objeto” (“obiectum”) e “sujeito” (“subiectum”), nas partes terceira e quarta do Prólogo da
Ordinatio, bem como em textos paralelos relativos ao caráter científico da teologia, constitui um tema à parte. Em muitos
casos, como no ora discutido, elas são equivalentes, isto é, significam “objeto” (da “scientia” ou do “conhecimento
científico”). Isso, porém, e num sentido relevante, nem sempre ocorre; cf. Edward D. O’CONNOR, The scientific
character of theology according to Scotus, in: De doctrina Ioannis Duns Scoti, Vol. III, p. 11s e Roberto Hofmeister
PICH, Der Begriff der wissenschaftlichen Erkenntnis nach Johannes Duns Scotus, especialmente o Capítulo IV.
12
Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 108, n. 1: „Nam scientia subalternata capit subiectum sub
subiecto scientiae subalternantis: ita quod oportet, quod sit minus commune, & quod addat tali subiecto differentiam
accidentalem; (...)“.
13
Ibidem: „(...); & quod accipiat principia sua a scientia subalternante, vel saltem aliquam praemissarum: (...)“. Estas duas
condições essenciais são expostas detalhadamente em Roberto Hofmeister PICH, Subordinação das ciências e
conhecimento experimental: um estudo sobre a recepção do método científico de Alhazen em Duns Scotus, in: Luis
Alberto DE BONI e Roberto Hofmeister PICH (eds.), op. cit., p. 573s.
14
Ord. prol. n. 214; Lect. prol. n. 119; Rep. par. prol. quaestiuncula 4, n. 16. Cf. Ludger HONNEFELDER, Ens
inquantum ens, p. 99-104.
15
Cf., por exemplo, Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 146, n. 214: „(...), nulla tamen principia accipit a metaphysica, quia
nulla passio theologica demonstrabilis est in ea per principia entis vel per rationem sumptam ex ratione entis“.
16
Cf. Josef FINKENZELLER, Offenbarung und Theologie nach der Lehre des Johannes Duns Skotus, p. 211.
17
Ibidem.
18
Cf. Edward D. O’CONNOR, The scientific character of theology according to Scotus, op. cit., p. 41-2. Cf. Ordinatio III
d. 24, q. un., p. 485, n. 18: „(...): quia sicut principia sua essent in se principia, si possent reduci ad principia simpliciter
prima, & nota ex euidentia terminorum; ita sunt modo, siue reducantur ab aliquo, siue non: sed sicut subalternata non esset
scientia, nisi sua principia possent reduci in principia prima, nota ex euidentia terminorum, sic non est huic scientia, nisi
cognitivo subordinado é uma ciência subordinada: aqui, o hábito cognitivo
subordinado precisa – assim se confirma o evidencialismo19 da teoria scotista da
ciência – necessariamente do conhecimento evidente das premissas “per se
notae” no hábito subordinante.20 Com isso, Finkenzeller e O’Connor acentuam
com razão, de acordo com o conteúdo de Ord. prol. n. 214-216, a condição
necessária e suficiente da relação de subordinação entre duas ciências de acordo
com Scotus, a qual encerra as duas condições apresentadas: subordinação
significa que um determinado hábito cognitivo – a ciência subordinada – necessita
do conhecimento evidente dos princípios de um outro hábito cognitivo – da ciência
subordinante – como causa do conhecimento dos seus princípios.21
Num texto interpolado a Ord. prol. n. 216, Scotus afirma que as soluções
apresentadas para as diferentes perguntas, em Ord. prol. n. 214-216, acerca da
relação de subordinação entre a teologia e a metafísica e entre o hábito de uma
qüididade vista intuitivamente na Palavra divina e uma ciência natural determinada
– remissivas à primeira questão geral sobre a subordinação –, levam em
consideração apenas a teologia em si.22 O foco da investigação, agora, se
modifica. Pergunta-se se a “teologia do caminho” (“theologia viae”)23 não é
subordinada à teologia dos bem-aventurados e à de Deus. Como já anunciado,
investiga-se, no texto que segue, um aspecto da epistemologia do “nosso” saber
teológico, isto é, a relação de subordinação entre a teologia do caminho e a dos
bem-aventurados ou a de Deus,24 não a subordinação entre duas ciências
naturais. Isso também significa, porém, que os argumentos correspondentes
devem ilustrar as convicções filosóficas gerais de Scotus sobre a subordinação e o
conhecimento científico.
Scotus se opõe à interpretação de que a teologia do caminho ou “nossa teologia”
– como ciência, na concepção tomasiana – está sob a teologia de Deus ou a dos
bem-aventurados.25 Tomás de Aquino, em seu comentário ao De Trinitate de
iste possit eius principia reducere in principia prima, ex quibus demonstrantur, quod nunquam potest, nisi sciat
subalternantem“. Cf. ibidem: „Ad secundum, concedo quod Perspectiua est scientia, & Perspectiuus est sciens. Sed cum
dicis, quod aliquis potest esse Perspectiuus nesciens Geometriam; nego, quia nunquam est Perspectiuus, nisi sit
Geometer“.
19
Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 141, n. 208; cf. também Roberto Hofmeister PICH, Der Begriff der
wissenschaftlichen Erkenntnis nach Johannes Duns Scotus, Capítulo VI e Conclusão.
20
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 485, n. 18: „Et cum dicis, quod sunt distincti habitus, verum est: sed sicut non potest
esse habitus ille, nisi causetur ex principiis Geometriae, non immediate, sed mediantibus conclusionibus ibi demonstratis
ex principiis euidentibus; ita non potest esse habitus huic homini, nisi causetur in ipso ex principiis illis, quae habent
certitudinem istam ex principiis primis, notis in scientia superiori. Sicut igitur in se non est illa scientia, nisi causetur a
principiis superioribus, mediate tamen; ita nec isti est scientia, nisi causetur in ipso ex principiis, quae habent respectu sui
intellectus euidentiam ex principiis superioris scientiae“.
21
Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 148, n. 216: „Subalternatio autem requireret quod notitia principiorum scientiae
superioris esset causa notitiae principiorum scientiae inferioris etc.“j
22
Sobre este conceito, cf. Ordinatio prol. p. 3, q. 1-3, p. 95, n. 141.
23
Neste contexto, ela significa o mesmo que „theologia nostra“.
24
Cf. Josef FINKENZELLER, op. cit., p. 211s.
25
Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „Hic Doctor recitat opinionem S. Thomae, qui dicit,
quod Theologia nostra est scientia proprie dicta, & subalternatur Theologiae Dei, & beatorum. (...). Et modus ponendi S.
Thomae potest reduci ad tria puncta, (...) videlicet quod scientiae etiam proprie dictae sunt in duplici ordine. Quaedam
Boécio, relacionou, pela primeira vez, a teoria aristotélica da ciência subordinada à
pergunta pelo caráter científico da teologia.26 Também com respeito à teologia,
Tomás de Aquino aceita a determinação geral de que é válido para uma ciência
que, de algumas verdades conhecidas, outras verdades ainda não conhecidas
vêm a ser conhecidas.27 As ciências – também a teologia, na medida em que ela,
de acordo com a constituição da potência cognitiva, inclui diferentes hábitos –
estão numa dupla ordem de conhecimento dos princípios da demonstração.
Algumas ciências, como, por exemplo, a aritmética e a geometria, alcançam em si
mesmas o conhecimento dos princípios, por meio da união evidente e imediata
dos termos simples. Outras ciências, como, por exemplo, a música e a óptica,
partem de princípios conhecidos de modo evidente, que não são, porém,
conhecidos “per se” nelas mesmas, mas sim numa ciência superior.28 Assim são
as ciências subordinadas: elas pressupõem princípios que são conhecidos por si
somente na ciência superior.29
Na “nossa ciência” da teologia (na teologia “ex parte nostra”), os artigos da fé
revelados, os princípios da “nossa ciência” da teologia,30 são tomados da ciência
de Deus ou dos bem-aventurados, na medida em que eles, na ciência da teologia
no intelecto divino ou no intelecto dos bem-aventurados, são conhecidos por si.31
procedunt ex principiis in eisdem euidenter notis, sine recursu ad aliquam scientiam superiorem, (...)“.
26
Cf. Helmut HOPING, Weisheit als Wissen des Ursprungs. Philosophie und Theologie in der “Summa contra gentiles”
des Thomas von Aquin, p. 89. Cf. também Christian TROTTMANN, op. cit. (V - Thomas d’Aquin, la théologie comme
science subalternée à celle de Dieu), p. 125s; Aegidius MAGRINI, Ioannis Duns Scoti doctrina de scientifica theologiae
natura, in: Antonianum, p. 58s. Tomás de Aquino foi o único autor do século XIII que comentou o De Trinitate de Boécio;
cf. Carlos Arthur R. do NASCIMENTO, Introdução à leitura do Comentário de Tomás de Aquino ao Tratado da Trindade
de Boécio, questões 5 e 6: divisão e modo de proceder das ciências teóricas, in: TOMÁS DE AQUINO, Comentário do
Tratado da Trindade de Boécio – Questões 5 e 6, p. 11s; José Ignasi SARANYANA, Sobre el In Boethii De Trinitate de
Tomas de Aquino, in: Albert ZIMMERMANN (Hrsg.), Miscellanea Mediaevalia 19 – Thomas von Aquin, p. 71s.
27
Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, In librum Boethii De Trinitate expositio prooem. q. 2, p. 331, a. 2 in corp.:
„Dicendum, quod cum scientiae ratio consistat in hoc quod ex aliquibus notis alia ignotiora cognoscantur, hoc autem in
divinis contingat; constat quod de divinis potest esse scientia“. Cf. Martin GRABMANN, Die theol. Erkenntnis- und
Einleitungslehre des hl. Thomas von Aquin auf Grund seiner Schrift „In Boethium de Trinitate“, p. 123s.
28
Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, Summa theologiae I q. 1, p. 3, a. 2 in corp.: „Sed sciendum est quod duplex est
scientiarum genus. Quaedam enim sunt, quae procedunt ex principiis notis lumine naturali intellectus, sicut arithmetica,
geometria, et huiusmodi. Quaedam vero sunt, quae procedunt ex principiis notis lumine superioris scientiae: sicut
perspectiva procedit ex principiis notificatis per geometriam, et musica ex principiis per arithmeticam notis“. Cf. ibidem,
ad 1: „Ad primum ergo dicendum quod principia cuiuslibet scientiae vel sunt nota per se, vel reducuntur ad notitiam
superioris scientiae“.
29
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 477, n. 2: „Scientia subalternans habet principia immediata, & prima, quae non habent
resolui nisi in terminos simplices notos ex euidentia rei in se: & ideo principia sunt nota propter quid ex terminis per se
notis ex euidentia rei. Scientia autem subalternata non habet principia immediata, & prima resolubilia immediate in
terminos simplices, notos ex euidentia rei: & ideo non sunt nota propter quid in scientia illa; sed in subalternante, in qua
sunt conclusiones demonstratae: & ideo scientia subalternata accipit principia sua a scientia subalternante, & supponit ea
esse vera, & sunt nota sibi, non propter quid“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 516, n. 3: „Dicitur enim isti
quod duplex est genus scientiarum. Quaedam enim sunt, quae procedunt ex principiis notis lumine naturali intellectus,
sicut Arithmetica, & Geometria, & huiusmodi. Quaedam vero sunt, quae procedunt ex principiis notis lumine superioris
scientiae, sicut Perspectiua procedit ex principiis notificatis per Geometriam, & Musica ex principiis notificatis per
Arithmeticam. Et hoc modo sacra doctrina est scientia, vt dicunt, quia procedit ex principiis notis lumine superioris
scientiae, quae scilicet est Dei, & Beatorum. Vnde dicunt quod sicut Musica credit principia tradita sibi ab Arithmetica, ita
sacra doctrina credit principia reuelata a Deo. Ex isto dicunt Theologiam esse scientiam subalternatam scientiae
Beatorum, & ita nunquam est nisi in viatore, in quo est & fides“. Cf. Steven J. LIVESEY, Introduction, in: Steven J.
LIVESEY (ed.), op. cit., p. 34s.
30
Cf. Jean-Pierre TORRELL, Le savoir théologique chez saint Thomas, in: Revue Thomiste, p. 377-81.
31
Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, Summa theologiae I q. 1, p. 3, a. 2 in corp.: „Respondeo dicendum sacram
Apenas através da acepção deste conhecimento evidente, e exatamente esta é a
intenção dos defensores da doutrina da subordinação da “nossa ciência” da
teologia,32 a não-evidência dos princípios da teologia do caminho pode ser
superada, assim como, desta forma – por crença! – seria superada a nãoevidência dos princípios do músico em comparação com os do aritmético. A modo
de pressuposição, pois, também a teologia do caminho pode corresponder às
condições da teoria aristotélica da ciência. Na nossa teologia, os princípios
teológicos em si evidentes são pressupostos e cridos, ou seja, são tomados por
meio da fé numa autoridade verdadeira.33
Não se está dizendo, é claro, que o caráter científico da nossa teologia afirmado
por Tomás de Aquino está de fato em concordância com as condições aristotélicas
para o conhecimento científico. Os artigos da fé não possuem, na nossa teologia,
a evidência do conhecimento dos princípios exigida, por exemplo, em Segundo
analíticos I cap. 2 71b9-12. Os princípios da nossa teologia podem ser, contudo,
segundo Tomás de Aquino, pontos de partida de uma suposta “ciência de
conclusão que procede demonstrativamente”.34 Finkenzeller e Pannenberg
apontam para o fato de que, mesmo na Ordem dos Dominicanos, já haviam se
erguido, “no início do séc. XIV, dúvidas acerca da solução do grande mestre da
Ordem”.35 Independente de referência a uma Ordem, insatisfação exemplar é a
crítica de Pedro Auréolo à “teologia [científica] dedutiva” de Tomás de Aquino,
concentrada nos artigos fundamentais da fé e no que, como novo conhecimento,
pode ser derivado a partir deles como princípios. A teologia dedutiva aparece em
divergência à “teologia explicativa”, um “habitus declarativus” dos artigos da fé e
“apologético” ou “defensivus” da fé – poder-se-ia dizer: um hábito que é, ao
mesmo tempo, “teologia fundamental” e “apologética”.36 Este último, sendo
diferente do hábito da fé, busca trazer entendimento sobre o que já se crê, mas
não no sentido de tomar os artigos da fé como premissas que levam a conclusões
a serem mantidas na fé. Antes, o seu foco está nos próprios artigos, expondo a
sua inteligibilidade, precisando os seus termos, neutralizando objeções,
doctrinam esse scientiam. (...). Et hoc modo sacra doctrina est scientia: quia procedit ex principiis notis lumine superioris
scientiae, quae scilicet est scientia Dei et beatorum. Unde sicut musica credit principia tradita sibi ab arithmetico, ita
doctrina sacra credit principia revelata sibi a Deo“.
32
Cf. Aegidius MAGRINI, Ioannis Duns Scoti doctrina de scientifica theologiae natura, op. cit., p. 59s.
33
Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, In librum Boethii De Trinitate expositio prooem. q. 2, p. 331, a. 2 in corp.: „Et sic
de divinis duplex scientia habetur. Una secundum modum nostrum, quae sensibilium principia accipit ad notificandum
divina. Et sic de divinis philosophi scientiam tradiderunt, philosophiam primam divinam scientiam dicentes. Alia
secundum modum ipsorum divinorum, ut ipsa divina secundum seipsa capiantur; quae quidem perfecte nobis in statu viae
est impossibilis, sed fit nobis in statu viae quaedam illius cognitionis participatio, et assimilatio ad cognitionem divinam,
inquantum per fidem nobis infusam inhaeremus ipsi primae veritati propter seipsam“. Cf. ibidem, p. 332, ad 5: „Ad
quintum dicendum, quod etiam in scientiis humanitus traditis sunt quedam principia in quibusdam earum quae non sunt
omnibus nota, sed oportet ea supponere a superioribus scientiis, sicut in scientiis subalternatis supponuntur et creduntur
aliqua a superioribus scientiis subalternantibus; et huiusmodi non sunt per se nota nisi superioribus scientiis. Et hoc modo
se habent articuli fidei qui sunt principia huius scientiae, ad cognitionem divinam, quia ea quae sunt per se nota in scientia
quam Deus habet de seipso, supponuntur in scientia nostra; (...)“. Cf. Per Erik PERSSON, Sacra doctrina - Reason and
revelation in Aquinas, (3 - Sacra doctrina and sacra Scriptura) p. 76-8.
34
Cf. Wofhart PANNENBERG, Wissenschaftstheorie und Theologie, p. 228.
35
Cf. Josef FINKENZELLER, op. cit., p. 201s e Wolfhart PANNENBERG, op. cit., p. 228.
36
Cf. também José Ignasi SARANYANA, Sobre el In Boethii De Trinitate de Tomas de Aquino, in: Albert
ZIMMERMANN (Hrsg.), op. cit., p. 76.
confirmando e adicionando argumentos.37 Nisso, Pedro Auréolo, como Godofredo
de Fontaines, rejeita o parecer de que a nossa teologia, cujas premissas são
verdades cridas, deva ser entendida como ciência. Godofredo de Fontaines havia
diferenciado entre a “certeza de evidência”, que não pode ser encontrada na
nossa teologia, e a “certeza de adesão” (“adhaesionis”), que pode ser encontrada
na nossa teologia. A nossa teologia é semelhante a uma ciência apenas com
respeito à certeza, não com respeito à evidência.38 Não havendo certeza de
evidência, a teologia dedutiva não provê nenhum hábito distinto da fé. Aceita-se
uma conclusão não-evidente e certa39 não por causa da dedução, mas sim porque
se aceita a premissa cuja fonte cognitiva é a fé.40
A posição de Tomás de Aquino sobre a subordinação das ciências,
particularmente sobre a nossa teologia como ciência subordinada, parece, assim,
repousar em duas teses – a meu juízo, identificadas de modo idêntico por Scotus
(cf. abaixo): (a) é possível reduzir a importância – ou: retirar a necessidade – do
conhecimento evidente dos princípios, numa ciência subordinada, em relação à
qual se julga haver uma subordinante; (b) o caráter científico de um saber se
concentra no procedimento de obtenção de novos conhecimentos, isto é, na
dedução de proposições conclusivas. De todo modo, vale indicar que outros
aspectos importantes do debate histórico sobre o conceito de subordinação em
Tomás de Aquino e da relação de subordinação entre a nossa teologia e a
teologia dos bem-aventurados podem ser revisados em escritos de Antônio de
Carlenis.41 A posição de Antônio de Carlenis, que, em grande medida, depende
das interpretações de Herveu de Nedellec e Egídio Romano e, num sentido amplo,
é uma tentativa de defender a concepção tomasiana, já pressupõe uma discussão
37
Cf. Stephen F. BROWN, Declarative and deductive theology in the early fourteenth century, in: Jan A. AERSTEN
(Hrsg.), Miscellanea mediaevalia 26 - Was ist Philosophie im Mittelalter?, p. 652-3.
38
Ibidem, p. 650. 653. Cf. GODEFRIDUS DE FONTIBUS, Quodlibeta I-IV, in: M. DE WULF et A. PELZER (éds.), Les
Quatre Premiers Quodlibets de Godefroid de Fontaines, IV, q. 10, p. 261: „Respondeo dicendum quod cum scientia sit
habitus certus certitudine evidentiae et adhaesionis, fides autem sit habitus certus certitudine adhaesionis non evidentiae,
(...). Sed fides habet certitudinem adhaesionis et caret certitudine evidentiae. Et ideo sicut irrationale est dicere quod ex
principiis solum opinatis acquiritur certa scientia conclusionum ex ipsis elicitarum, ita etiam in proposito ex principiis
creditis“. Cf. ibidem, p. 262: „Simile autem quod introducitur in argumento non valet, quia nullus sanae mentis intelligit
quod scientia subalternata sit vere scientia et solum de suis principiis habeat opinionem recipiendo ea a scientia superiore
et eis fidem opinatam adhibendo, eo quod a sapiente scientiae superioris sunt nota et tradita, quoniam quicquid ex
principiis sic opinatis vel traditis eliceretur, cum non haberet certitudinem nisi in quantum in illa principia reduceretur,
solum esset creditum vel opinatum etiam debilius quam ipsa principia. Ita ergo et in theologia“.
39
A certeza, no caso da teologia do caminho, é no máximo, na visão madura de Tomás de Aquino, o conhecimento certo
dos artigos da fé à luz da graça divina que infunde a fé. No assentimento da fé infusa, opera-se como que um
conhecimento preparatório imediato e a priori de Deus, que possibilita que os artigos da fé, conhecidos a posteriori pela
pregação do evangelho, sejam vistos sob a verdade da sua origem objetiva e aceitos, pelo entendimento e pela vontade, em
certeza objetiva suficiente. „Evidência“ – ou melhor: „certeza“ – em tal conhecimento é somente aquela da percepção da
sua absoluta credibilidade na fé por Deus infundida, não aquela da percepção do conteúdo de um estado de coisas. A luz
da fé infusa pode ser entendida como certa participação do ser humano no próprio autoconhecimento divino; cf. Ludger
OEING-HANHOFF, Gotteserkenntnis im Licht der Vernunft und des Glaubens nach Thomas von Aquin, in: Ludger
OEING-HANHOFF (Hrsg.), Thomas von Aquin 1274/1974, p. 117-20. Cf. também Johannes STÖHR, Die Theozentrik
der theologischen Wissenschaftslehre des Hl. Thomas von Aquin und ihre Diskussion bei neuzeitlichen Kommentatoren,
in: Albert ZIMMERMANN (Hrsg.), Miscellanea Mediaevalia 19 – Thomas von Aquin, p. 488-9.
40
Cf. Stephen F. BROWN, Declarative and deductive theology in the early fourteenth century, in: Jan A. AERSTEN
(Hrsg.), op. cit., p. 653.
41
Cf. Steven J. LIVESEY, Introduction to Antonius de Carlenis O.P. Four questions on the subalternation of the sciences,
in: Transactions of the American Philosophical Society, p. vii-xxxv.
temática bastante evoluída entre a escola de Tomás de Aquino e a de Scotus,
bem como um debate interno à Ordem dos Pregadores.42
No modo como Scotus apresenta a posição tomasiana, ela é provada como
correta primeiramente porque não é contraditório à definição de ciência que, por
exemplo, a “nossa ciência” da teologia como ciência subordinada possua
princípios cridos43 e, por conseguinte, tenha parte na fé.44 Para a confirmação da
posição tomasiana, são introduzidos por Scotus, em Rep. par. prol. q. 2 n. 3-4,
Ord. III d. 24 n. 3 e Rep. par. III d. 24 n. 4-5, ainda outros argumentos. É dito, em
segundo lugar, que a óptica enquanto óptica (“in quantum talis”) é uma ciência, a
saber, uma ciência que o óptico enquanto óptico possui.45 Nisso, porém, o óptico
não é ele mesmo um geômetra e somente pressupõe os princípios da geometria,
os quais são conhecidos pelo geômetra: o óptico não conhece, assim, com
evidência, daí “propter quid”, os princípios da sua própria ciência, mas apenas crê
neles, e não sabe de que modo, dos princípios evidentes, podem ser deduzidas
conclusões com evidência. Apesar disso, o óptico, que não é nenhum geômetra,
possui, segundo Tomás de Aquino, o hábito da ciência da óptica.46 É de modo
42
Ainda sobre a defesa do caráter científico da nossa teologia como ciência subordinada junto a alguns dos primeiros
tomistas, cf. ainda Jean-Pierre TORRELL, Le savoir théologique chey les premiers thomistes, in: Revue Thomiste, p. 26-8.
43
Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 14, n. 3: „Dicunt quidem, quod de Deo sub ratione Deitatis scientia a viatore
potest haberi, subalternata tamen scientiae Beatorum: & ideo non oportet quod principia eius hic sciantur, sed tantum
quod credantur. Supponuntur enim manifesta in scientia subalternante. Et pro haec opinione arguitur sic: scientia
subalternata est scientia; sed in quantum est subalternata supponit sua principia tanquam sibi credita, & in superiori
scientia determinata: igitur non est contra rationem scientiae, quod principia eius sint tantum credita“. Cf. Reportatio
parisiensis I A prol. q. 2. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 516, n. 3: „Ex quibus sequitur quod scientia
subalternata potest stare cum fide respectu eiusdem, (...). Et secundum hoc possumus habere scientiam de credibilibus,
quae praessuponit sua principia esse nota in alia scientia subalternante, quam habent Sancti in visione beata; sed primam
habens Theologi viatores“. No resumo das três características da interpretação scotista do caráter científico da teologia do
peregrino tomasiana feito por Lychetus, mostra-se, na exposição acima, a segunda característica: (2) O possível hábito
teológico revelado ao peregrino não parte, „de lege communi“, de princípios que são conhecidos por si „primo modo“, na
medida em que os artigos da fé, os quais são os princípios do hábito da nossa teologia, não são, no presente estado do ser
humano, evidentes, mas sim apenas cridos. Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „Secundus
punctus est, quod habitus Theologicus reuelatus possibilis viatori de lege communi non procedit ex principiis primo modo
notis, quia articuli fidei, qui ponuntur principia dicti habitus, non sunt nobis in via euidenter noti, sed tantum crediti“.
44
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 477, n. 2: „(...), quod etsi cum fide possit scientia esse de credibilibus, non tamen
subalternans; sed subalternata tantum: (...). Scientia primo modo non stat cum fide, qualem habent Beati de credibilibus,
quae nos credimus, & ideo non habent fidem, sed visionem, & cognoscunt propter quid: sed scientia subalternata scientiae
Beatorum bene potest esse cum fide“. Cf. ibidem, n. 3: „Ad hoc arguitir sic, & rationes sunt aliquantulum taediosae in
forma. Scientia subalternata, secundum quod subalternata, & sub propria ratione, qua subalternata, est scientia; sed
inquantum subalternata supponit principia sua, & accipit ea a scientia subalternante; & ideo non habet principia nota sibi
ex euidentia rei, & propter quid: igitur potest stare vera ratio scientiae subalternatae, quamuis supponat sua principia:
igitur Theologia potest esse, & est vera scientia, quamuis ipsa credibilia, quae sunt principia eius, sint supposita, & non
nota ex euidentia rei, & propter quid: in ipsa igitur stat Theologia, vt scientia subalternata sub propria ratione talis
scientiae cum fide de eisdem“. Cf. também Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 4.
45
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 477, n. 3: „Praeterea, Perspectiua, inquantum Perspectiua, & sub propria ratione sua est
scientia: igitur Perspectiuus, inquantum Perspectiuus, reduplicando illud, quo formaliter denominatur, est sciens
denominatiue a scientia Perspectiua: (...)“.
46
Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 3: „Item. Perspectiuus in quantum talis, est scientia, sed Perspectiuus
inquantum Perspectiuus, non est Geometra; igitur potest quis esse Perspectiuus, licet non sciat sua principia, sed tantum
credat ea, scilicet illa supponendo“. Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2. Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 517, n. 4:
„(...); sed Perspectiuus inquantum huiusmodi, non habet principia euidentia ex terminis, nec inquantum talis, scit deducere
ad euidentiam ex terminis; ergo aliquis potest esse simpliciter sciens, licet principia non sint sibi nota: aliquis enim potest
esse Perspectiuus, licet non sit Geometer, (...)“. No resumo das três características da interpretação scotista do caráter
científico da teologia do peregrino tomasiana feito por Lychetus, mostra-se, na exposição acima, a terceira característica:
(3) o hábito da teologia revelada parte de princípios que são conhecidos por si „secundo modo“. A razão para tanto reside
semelhante que se pode obter, no intelecto humano, a ciência da teologia. O
hábito da teologia no intelecto humano crê nos seus princípios, pressupõe e toma
os mesmos da ciência dos bem-aventurados, na qual eles são conhecidos a partir
da evidência dos termos, por conseguinte “propter quid”. Apesar disso, na nossa
teologia são tiradas conclusões, de acordo com Tomás de Aquino, a partir de
princípios apreendidos sem evidência, dos quais é obtida uma ciência
subordinada.47
A concepção tomasiana é ratificada, em terceiro lugar, com base numa passagem
da Ética a Nicômaco VI cap. 3,48 segundo a qual é suficiente para a posse da
ciência das conclusões que os princípios do hábito do conhecimento sejam
conhecidos “de algum modo” (“aliqualiter”), isto é, mesmo como princípios cridos.49
De acordo com isso, é citado o comentário de Averróis (ou talvez de Eustrácio)50
sobre a obtenção suficiente de conhecimento dos princípios por meio de indução –
a partir dos objetos sensíveis singulares para as essências e os princípios
universais. Segundo tal comentário, o conhecimento assim obtido, com
necessidade, é ciência e, sem dúvida, ciência de um outro tipo que a ciência
(“alterius modi a scientia”) que é alcançada “por silogismo e demonstração”.51
Precisamente de acordo com este comentário (equivocado),52 conclui-se em Ord.
em que as proposições da fé, nas quais o ser humano, no presente estado, crê, são evidentes na ciência de Deus e na
ciência dos bem-aventurados. Por isso mesmo, o hábito da teologia revelada no intelecto humano – embora seja uma
ciência subordinada – é uma ciência em sentido próprio. Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1:
„Tertius punctus est, quod habitus Theologiae reuelatae, procedit ex principiis notis, secundo modo euidenter, quia articuli
fidei, qui nobis in via sunt crediti tantum, in scientia vero Dei, & beatorum sunt euidenter noti. Ex istis elicitur, quod
habitus Theologiae reuelatae in nobis sit scientia proprie dicta, subalternata scientiae Dei, & beatorum“.
47
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 3: „(...): igitur eodem modo potest aliquis habere Theologiam, quamuis
supponat principia sua, & accipiat ea a scientia Beatorum, & non sint nota in ea ex euidentia terminorum propter quid, sed
credita, & supposita tantum, & nota, quia non propter quia: possunt tamen ex eis deduci conclusiones, ex quibus habetur
scientia subalternata, quae nunquam est nisi in viatore: igitur simul stant fides, & scientia de eisdem“.
48
No fundo deste argumento está, na verdade, ARISTOTELES, Nikomachische Ethik, in: Günther BIEN (Hrsg.), op. cit.,
VI cap. 3, 1139b32-35, p. 133-4: „Die Wissenschaft ist also ein Habitus des Demonstrierens; zu dieser
Begriffsbestimmung möge man weiterhin noch alles andere hinzunehmen, was wir in der Analytik angegeben haben. Wo
nämlich eine bestimmte Überzeugung [cursivo do autor] ist, und man die Prinzipien kennt, da ist Wissenschaft“.
49
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 3: „Praeterea, Philosophus 6. Ethic. cap. 4. dicit sic: Cum enim aliqualiter
cognita, & credita sunt ipsa principia, &c. sufficit igitur secundum Philosophum, habere aliqualiter cognitionem de
principiis, ad hoc quod aliquis sciat, & scientiam acquirat, deducendo conclusiones ex ipsis“. Cf. Reportata parisiensia III
d. 24, q. un., p. 517, n. 5: „Confirmatur per Philosophum, & Commentatorem 6. Ethic. cap. 4 qui dicunt sic: Cum enim
aliqualiter cognita, & credita ipsa sunt principia; sufficit ergo habere aliqualem cognitionem principiorum, vt habeatur
scientia de conclusione“. Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 3: „Item, haec confirmatur auctoritate Philosophi 6.
Ethic. c. 3. vbi vult quod ad scientiam habendam sufficit, quod principia sint aliqualiter nota: (...)“.
50
A pergunta pela identidade deste comentador é posta por Steven J. LIVESEY, Introduction, in: Steven J. LIVESEY
(ed.), op. cit., p. 38, nota 64 (também p. 30, nota 31), com respeito à menção do mesmo argumento nos textos de João de
Reading acerca da subordinação.
51
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 3: „Et Commentator vult, quod ad scientiam habendam sufficit inductio, quae
est a singularibus ad vniuersale: & cognitis sic principiis vniuersalibus ex inductione, ex necessitate sequitur scientia: &
dicit quod haec scientia sic habita, est alterius modi a scientia, quae habetur per Syllogismum, & demonstrationem: (...)“.
52
Sem dúvida, o conhecimento por indução, segundo Aristóteles, é diferente do conhecimento a partir de princípios
universais, a saber, o conhecimento demonstrativo científico. Mas, a indução, pela qual os pontos de partida do silogismo
são obtidos, não é entendida por Aristóteles como um tipo de „episteme“. Cf. ARISTOTELES, Nikomachische Ethik, in:
Günther BIEN (Hrsg.), op. cit., VI cap. 3, 1139b25-31, p. 133: „Auch scheint jede Wissenschaft lehrbar und jeder
Wissensgegenstand lernbar zu sein. Jede Lehre aber geht von vorher Erkanntem aus, wie wir in der Analytik dartun, sei es,
daß sie sich der Induktion oder des Syllogismus bedient. Die Induktion ist auch Prinzip des Allgemeinen, der Syllogismus
dagegen geht von dem Allgemeinen aus. Mithin gibt es Prinzipien als Prämissen des Syllogismus, die nicht wieder durch
einen Syllogismus gewonnen werden. Mithin tritt hier die Induktion ein“. Cf. abaixo na Conclusão.
III d. 24 n. 3 e Rep. par. III d. 24 n. 5, que, para Tomás de Aquino, é suficiente
para uma ciência que os seus princípios sejam conhecidos “de algum modo”, isto
é, que sejam cridos, pressupostos e, com isso, tomados a partir de uma ciência
subordinante (“credita, & supposita, & accepta a superiori scientia”), na qual
somente os mesmos princípios são conhecidos “propter quid”.53 Isso significa
também, em Rep. par. prol. q. 2 n. 3, que não é necessário para a ciência que os
princípios sejam mais perfeitamente conhecidos que as proposições conclusivas,
motivo pelo qual um hábito como a nossa teologia, no qual os princípios não são
mais perfeitamente conhecidos que as proposições conclusivas, é – ainda que
para Aristóteles “somente em sentido acidental”54 – um conhecimento científico.55
2 CINCO OBJEÇÕES À TESE DA NOSSA TEOLOGIA COMO CIÊNCIA
SUBORDINADA
Scotus apresenta, em Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a, cinco objeções, que
tanto contradizem a concepção segundo a qual a nossa teologia pode ser
subordinada à teologia de Deus e à dos bem-aventurados e, por conseqüência,
pode ser uma ciência,56 quanto a concepção segundo a qual fé e ciência sobre o
mesmo podem coexistir.57 Para a seguinte exposição, eu me apóio também em
passagens correspondentes em Rep. par. prol. q. 2 n. 4-5, Rep. I A prol. q. 2 e
Ord. III d. 24 n. 4, nas quais cada um dos cinco argumentos é tratado mais
detalhadamente do que no texto do Prólogo à Ordinatio. Após a exposição das
objeções, será analisada a correção específica de Scotus às três estratégias
argumentativas de Tomás de Aquino sobre a nossa teologia como ciência
subordinada.
2.1 Primeiro contra-argumento: fé e ciência não concorrem58
(1) É possível ler, nos textos de Tomás de Aquino, a afirmação de que a ciência e
a fé, como disposições de conhecimento sobre o mesmo objeto, não coexistem.
Assim, o objeto de toda ciência é conhecido por meio da sua resolução nos
princípios primeiros e evidentes, que se fazem presentes à potência do
conhecimento. Correspondentemente, toda ciência é aperfeiçoada, como hábito
53
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 3: „(...): sufficit enim ad scientiam habendam, quod principia sint aliqualiter
nota, vt scilicet sint credita, & supposita, & accepta a superiori scientia, in qua sunt nota propter quid: igitur Theologia est
scientia, & in viatore est simul cum fide de credibilibus reuelatis“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 5.
54
Cf. ARISTOTELES, Nikomachische Ethik, in: Günther BIEN (Hrsg.), op. cit., VI cap. 3, 1139b34-35, p. 134.
55
Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 3: „(...): vbi etiam dicit Commentator quod principia fiunt nobis nota per
inductionem: igitur non oportet ad scientiam habendam quod principia perfectius cognoscantur, quam conclusiones; igitur,
&c.“. Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2. No resumo das três características da interpretação scotista do caráter
científico da teologia do peregrino tomasiana feito por Lychetus, mostra-se, na exposição acima, a primeira característica:
(1) não pertence à definição de ciência que ela possui princípios conhecidos de um modo evidente. Cf. Franciscus
LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „(...), & ex hoc elicitur Primus punctus, quod de ratione scientiae
proprie dictae non est habere principia in eadem euidenter nota. (...).
56
Cf. abaixo, sob 2.2, 2.3 e 2.4, os contra-argumentos segundo, terceiro e quarto.
57
Cf. abaixo, sob 2.1 e 2.5, os contra-argumentos primeiro e quinto.
58
Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a; Rep. par. prol. q. 2, n. 4-5; Rep. I A prol. q. 2; Ord. III d. 24, n. 4.
da alma, na visão do seu objeto formal presente. Ao contrário disso, o objeto da fé
não está presente à potência do conhecimento, razão pela qual tem de ser crido
como presente. Quando o objeto não é visto como presente, ele não é apreendido
por meio de um ato do conhecimento, mas sim por meio de um ato da fé.59
Contudo, quando Tomás de Aquino afirma que a teologia do caminho é
subordinada à teologia dos bem-aventurados e à de Deus, ele se contradiz, uma
vez que afirma que a teologia do caminho, isto é, uma ciência subordinada, na
qual conclusões são tiradas com necessidade,60 concorre com a fé.61 A “sacra
doctrina” corresponde manifestamente a um segundo tipo de ciência, apoiado em
princípios que são visíveis apenas por meio da luz de uma ciência mais elevada,
subordinante. A doutrina sagrada, uma ciência de conclusões, toma, pela fé, os
seus princípios da ciência superior de Deus ou dos bem-aventurados,62 nas quais
somente os princípios são conhecidos como tais, e não são cridos.
A premissa forte do primeiro argumento de Scotus é que uma ciência não pode
ser um hábito de conclusões sem ser um hábito de princípios: não pode expressar
cientificidade no procedimento demonstrativo e crença na verdade dos princípios.
Isso tem de ser apontado na subordinação tomasiana. A obtenção estrita dos
princípios, no sujeito, decide sobre a evidência do conhecimento todo. No que
tange à forma argumentativa, as teses tomasianas sobre o caráter epistemológico
da “sacra doctrina” estão em mútua contradição. Deste modo, a primeira objeção é
um “argumentum ad hominem”. Isso fica evidente em Ord. III d. 24 n. 4, onde
Scotus argumenta “primo contra opinantem”.63
2.2 Segundo contra-argumento: a unidade da ciência de Deus64
59
Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, Quaestiones disputatae I - De veritate q. 14, a. 9, p. 297-8 in corp.: „Unde fidei
obiectum est id quod est absens ab intellectu. Creduntur enim absentia, sed videntur praesentia (...), vel etiam res non
apparens, id est res non visa: quia ut dicitur Hebr., XI, 1, fides est substantia sperandarum rerum, argumentum non
apparentium“. Cf. ibidem, p. 298 in corp.: „Quandocumque autem deficiat ratio proprii obiecti, oportet quod actus
deficiat; unde, quam cito aliquid incipit esse praesens vel apparens, non potest ut obiectum subesse actui fidei.
Quaecumque autem sciuntur, proprie accepta scientia, cognoscuntur per resolutionem in prima principia, quae per se in
visione rei praesentis perficitur. Unde impossibile est quod de eodem sit fides et scientia“.
60
Cf. ibidem, ad 3: „Nihilominus tamen inferior sciens non dicitur de his quae supponit, habere scientiam, sed de
conclusionibus, quae ex principiis suppositis de necessitate concluduntur. Et sic fidelis potest dici habere scientiam de his
quae concluduntur ex articulis fidei“.
61
Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 148, n. 216 textus interpolatus a: „Haec de theologia in se. Sed quid de theologia
viae? Essetne subalterna si talis notitia daretur alicui vel si est data? - Ad hoc dicunt quidam quod est subalterna;
subalternatur enim scientiae Dei et beatorum. - Contra hoc arguitur, primo sic: isti alibi dicunt quod scientia non potest
stare cum fide; sed, ut dicunt, quia est subalterna, stat cum fide; igitur stat, secundum eos, et non stat, igitur contradicunt
sibi“. Cf. também Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 4: „Contra istam opinionem, & primo contra opinantem: nam in
2.2. quaest. I. art. 5. vbi quaerit hoc ex intentione, dicit quod fides, & scientia non stant simul: sed Theologia, si
inquantum subalternata scientiae Beatorum, sit vera scientia, & vt subalternata non sit nisi in viatore, tunc scientia sub
propria ratione scientiae subalternatae stat cum fide in viatore, & de eisdem, scilicet creditis. Nec potest soluere
contradictionem istam nisi in secunda secundae velit dicere, quod loquitur de scientia subalternante, non subalternata“.
62
Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, Summa theologiae I q. 2, p. 3, a. 2 in corp.
63
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 4. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 5: „Contra hanc
opinionem arguitur, & primo contra dicentem. (...). Istud est contra eum, (...). Sed hoc non videtur esse verum secundum
eum, quia ratio sua, per quam ostendit quod idem non potest esse scitum, & creditum ab eodem, concludit vniuersaliter de
omni scientia, & vniuersaliter loquitur de omni scientia“.
64
Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a; Rep. par. prol. q. 2, n. 4.
(2) Além disso, a ciência do objeto “Deus”, sob a razão de deidade,65 só pode ser,
logicamente, uma única. Por isso mesmo, segundo Scotus, não é o caso que
também possa haver uma ciência subordinada da teologia – a “nossa teologia”
como uma outra ciência do objeto “Deus”.66 O fundo desta objeção não é claro.
LYCHETUS traz a informação de que “todos” afirmam que a ciência subordinada e
a subordinante são duas ciências diferentes. (a) Elas se relacionam, a cada vez, a
um diferente objeto (formal) e são, por isso mesmo, ao menos “objetivamente”
(“obiectiue”; termo de Lychetus) diferentes.67 Por conseguinte, elas são diferentes
tanto porque (b) partem de diferentes princípios (alcançando, então, diferentes
conclusões) quanto porque (c) a ciência subordinante, em oposição à
subordinada, demonstra pura e simplesmente “propter quid” a conclusão.68
O comentador Lychetus diz, com razão, que a teologia só pode ser, em cada
intelecto, uma única ciência. Isso é coerente com o que foi exposto acima. Afinal,
ela é – ou ao menos se apresenta logicamente como – o conhecimento de um
único objeto “sob a mesma razão formal”.69 Exatamente o conhecimento de um
objeto sob uma razão, através da qual todas as verdades do hábito do
conhecimento estão contidas virtualmente no objeto a ser conhecido, constitui a
unidade científica deste hábito.70 Scotus repete em Rep. par. prol. q. 2 n. 4 a
definição segundo a qual todas as verdades teológicas por si conhecíveis estão
contidas virtualmente no objeto “Deus”, sob a sua essência singular. Por isso, de
“Deus” como tal, logicamente, só pode haver uma única ciência: cientificamente, o
objeto primeiro “Deus” não pode ser conhecido sob outra razão que “haec essentia
ut haec”.71
65
Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 4: „Contra. De Deo sub ratione deitatis non potest esse scientia nisi vnica:
igitur non habet aliquam sibi subalternatam“.
66
Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 148-9, n. 216 textus interpolatus a: „- Praeterea, scientia Dei non potest esse nisi una;
igitur nulla potest esse subalternata“.
67
Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „Certum est apud omnes, quod scientia subalternans,
& scientia subalternata sunt duae scientiae, quia alterius, & alterius subiecti, saltem obiectiue distincti“. Esta condição é
acentuada por Roberto Grosseteste, no seu comentário aos Segundos analíticos, e é repetida pelo scotista João de Reading;
cf., por exemplo, JOHANNES DE READING, Scriptum in I librum sententiarum - Prologus. qq. 6, 7, & 10, in: Steven J.
LIVESEY (ed.), Theology and science in the fourteenth century, prol. q. 6, p. 106: „Item, de eodem obiecto, non potest
esse scientia nisi unica; sed de Deo, quod est unum obiectum, est scientia beatorum, que non est subalternata. Ergo, cum
subalternans et subalternata sint distincte scientie, non potest aliqua scientia esse subalternata de Deo ut de subiecto
primo“. Cf. ibidem, p. 107: „(...) est Lincolniensis ut dictum est prius, capitulo 12, quia secundum eum, scientia
subalternata addit condicionem in suo subiecto respectu subiecti subalternans. Ergo de eodem subiecto non possunt esse
plures scientie quarum una est subalternans, et alia subalternata“. Cf. também acima, sob 1.
68
Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „Tum, quia ex aliis, & aliis principiis procedunt.
Tum, quia subalternans demonstrat simpliciter propter quid, subalternata vero non“.
69
Ibidem: „Sed Theologia in quocumque intellectu est tantum vna scientia. Tum, quia vnius subiecti sub eadem ratione
formali, &c. ergo non potest esse subalternata Theologiae beatorum, quia tunc essent duae scientiae distinctae, & sic
essent distinctorum subiectorum“.
70
Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 4: „Probatio antecedentis; quaecunque virtualiter continentur in aliquo,
primo pertinent ad illam scientiam, quae considerat subiectum illud sub illa ratione, qua virtualiter illa continet, (...)“.
71
Ibidem: „(...), sed omnia per se cognoscibilia de Deo continentur in ipso virtualiter sub ratione Deitatis: ergo de Deo vt
sic non potest esse nisi vnica scientia, cum scientia sit de ipso sub aliqua ratione prima, qua virtualiter continet omnia per
se scibilia de ipso: (...)“.
Uma obscuridade que pode ser apontada, aqui, consiste em que, na objeção
exposta, Scotus não diferencia qual é a razão de objeto a ser considerada em
cada caso – na ciência da teologia subordinante e na “ciência” da teologia
subordinada. A dificuldade se acentua, caso se pense nas concepções de objeto
formal na discussão sobre o primeiro objeto e a sua razão na “nossa teologia” das
verdades necessárias.72 Uma comparação entre aquela distinção e a presente
objeção força concluir que, segundo Scotus, visto logicamente, a ambos os
hábitos, diferentes somente em termos psicológico-cognitivos,73 tem de ser dada a
mesma razão formal, seja se ela, a cada vez, é apreendida do mesmo modo ou
não.74 Estar-se-ia, porém, no contexto desta objeção, incorrendo na confusão
séria de tomar diferentes hábitos segundo diferentes capacidades psicológicocognitivas como fundamento objetivo-formal da divisão entre ciência subordinante
e ciência subordinada.
A relação de subordinação tomasiana entre a teologia de Deus e a dos bemaventurados e a teologia do peregrino se mostra, ademais, equivocada já pelo fato
de que, segundo o próprio Tomás de Aquino – e assim Scotus argumenta, pela
segunda vez, “ad hominem” –, a unidade do hábito se fundamenta no primeiro
objeto, a saber, no único aspecto formal que determina o caráter de objeto do
objeto. Tudo o que é considerado na Escritura Sagrada (“sacra Scriptura”) e, a
partir dali, na doutrina sagrada (“sacra doctrina”) como verdades teológicas é
considerado na medida em que é revelado por Deus (“secundum quod sunt
divinitus revelata”): esta é, segundo Tomás de Aquino, a razão formal comum da
teologia do caminho, a qual determina o objeto deste hábito de conhecimento no
seu caráter de objeto – isto é, Deus tomado em sua natureza mesma.75 A teologia
no “nosso intelecto” não pode ser subordinada à teologia de Deus e à dos bemaventurados – não há nenhum sentido lógico em se dizer isso, de acordo com a
exposição mesma do “nosso” saber teológico. Só haveria sentido e possibilidade
em tal hipótese, se se admitisse que ela significaria, então, a existência de duas
ciências diferentes que se relacionariam, a cada vez, a um diferente objeto sob
uma diferente razão formal. Essa condição, porém, não é cumprida nem pela
“nossa teologia” nem pela “teologia em si”.
2.3 Terceiro contra-argumento: a subordinação segundo a razão de causa76
72
Ord. prol. n. 168; Lect. prol. n. 87-88. Cf. também Roberto Hofmeister PICH, Der Begriff der wissenschaftlichen
Erkenntnis nach Johannes Duns Scotus, Capítulo IV, sob 4.1.3.
73
Isto é, o hábito da teologia no „nosso“ intelecto e o hábito da teologia no intelecto de Deus.
74
Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 4: „(...): & ideo nihil est dicere, quod de Deo sub ratione deitatis potest
esse scientia aliqua: & tamen quod Theologia, quam nos habemus non sit de Deo: nam vnum sequitur ad aliud, cum de
Deo non possit esse nisi vnica scientia, vt iam probatum est“. Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2.
75
Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, Summa theologica I q. 1, p. 4, a. 3 in corp.: „Respondeo dicendum sacram
doctrinam unam scientiam esse. Est enim unitas potentiae et habitus consideranda secundum obiectum, non quidem
materialiter, sed secundum rationem formalem obiecti: puta homo, asinus et lapis conveniunt in una formali ratione
colorati, quod est obiectum visus. Quia igitur sacra Scriptura considerat aliqua secundum quod sunt divinitus revelata,
secundum quod dictum est, omnia quaecumque sunt divinitus revelabilia communicant in una ratione formali obiecti
huius scientiae. Et ideo comprehenduntur sub sacra doctrina sicut scientia una“. Cf. Jean-Pierre TORRELL, Le savoir
théologique chez saint Thomas, op. cit., p. 368-9. 372.
76
Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a; Ord. III d. 24, n. 4; Rep. par. III d. 24, n. 6.
(3) Na terceira objeção, afirma-se que, segundo a razão de causa, a ciência
depende somente (a) do objeto, (b) do sujeito cognoscente (do intelecto)77 ou (c)
da “luz” (isto é, da forma silogística e das premissas, “de acordo com alguns
scotistas”).78 Em Ord. d. 24 q. un. n. 4, Scotus define que uma ciência depende
essencialmente (“essentialiter”), como o causado da causa, apenas daquilo que é
a sua causa de modo essencial: ela depende essencialmente apenas da potência
(“ex potentia”) e do objeto, seja em si (“obiecto in se”) ou na espécie inteligível (“in
specie sua”).79 Sob a exata pressuposição destas premissas, deve-se afirmar,
repetindo o resumo de FINKENZELLER, que só há uma relação de subordinação
“se, entre ambas as ciências, se dá uma relação causal essencial”.80 Considere-se
a dependência causal de uma ciência quanto (a) ao objeto, (b) ao intelecto ou (c) à
luz, resulta então que, com relação a (a), (b) e (c), o conhecimento dos bemaventurados não possui nenhuma razão de causa para com o conhecimento do
peregrino. Como em Ord. III d. 24 n. 4, é possível oferecer também quanto a Ord.
prol. n. 216 textus interpolatus a o exemplo de que o conhecimento intuitivo do
Deus trino, por parte dos bem-aventurados, isto é, da proposição “Deus é trino”,
conhecida pelo conhecimento evidente dos termos, não é essencialmente a causa
do conhecimento na “nossa potência cognitiva”, isto é, do “nosso hábito” da
proposição “Deus é trino”.81 Com isso, a teologia dos bem-aventurados, segundo o
critério da causa, não subordina a teologia do peregrino.
Scotus
tem em vista, aqui, o argumento de Tomás de Aquino de que a
ciência subordinada depende da subordinante porque o conhecimento dos
princípios, na ciência subordinada, depende do conhecimento dos princípios na
subordinante e os pressupõe. Scotus toma, em oposição a isso, que o
conhecimento teológico revelado, no entendimento humano, não é causado pelo
conhecimento teológico dos bem-aventurados – o conhecimento das verdades
teológicas na intuição da essência divina, pelo intelecto dos bem-aventurados.
Scotus afirma, com claro acento psicológico-cognitivo, que (a) o conhecimento
científico dos bem-aventurados (“scientia illa Beati”), isto é, a verdade conhecida
“Deus é trino”, não é – tampouco pode ser – o objeto “do meu conhecimento
científico” (“scientia meae”).82 Aquilo que é, a cada vez, conhecido por um intelecto
– por exemplo, os princípios da teologia como tais e com evidência, na teologia
77
Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „(...): Nulla scientia dependet ab aliquo vt a proximo,
nisi ab obiecto suo de quo est, & intellectu, scilicet a quo, & in quo est, (...)“.
78
Ibidem: „(...), & lumine, id est, a forma syllogistica, & praemissis, vt quidam Scotistae exponunt de illo lumine“. Cf.
Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 149, n. 216 textus interpolatus a: „- Praeterea, scientia secundum rationem causae dependet
nisi ab obiecto vel subiecto vel lumine; sed respectu intellectus viatoris visio beatorum nullam habet rationem causae;
igitur etc.“
79
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 4: „Praeterea, contra opinionem in se, scientia non dependet essentialiter ab
aliquo sicut causatum a causa, (non enim loquor de dependentia accidentis ad subiectum) nisi ab eo, quod est causa illius
essentialiter: (...): quia scientia non dependet essentialiter nisi ex potentia, & obiecto in se, vel in specie sua: (...)“.
80
Cf. Josef FINKENZELLER, op. cit., p. 212.
81
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 4: „(...): sed notitia Beati, quam habet de Deo trino, & vno euidenter visio ex
euidentia terminorum, non est essentialiter causa nostrae Theologiae: (...)“.
82
Ibidem: „(...): sed scientia illa Beati non est obiectum scientiae meae, ita vt cognita notitia eius cognoscam Deum
trinum, & vnum: (...)“.
dos bem-aventurados – não pode ser repassado a um intelecto como objeto de
um outro intelecto.
Neste momento, pode-se perceber que, do ponto-de-vista psicológico-cognitivo, as
três causas essenciais mencionadas acima estão intrinsecamente ligadas. Devese concluir, pois, que (b) a potência cognitiva que causa essencialmente a
“scientia Beati” não pode ser a potência cognitiva da minha alma, por meio da qual
a “scientia meae” é causada essencialmente. Tampouco é (c) a “luz” ou qualquer
espécie inteligível do objeto pertencente ao conhecimento científico dos bemaventurados a minha “luz” ou a minha espécie inteligível (o conhecimento habitual
como “species”),83 por meio da qual tenho certo conhecimento de Deus,
abstrativamente, “pro statu isto”. Scotus exclui toda possibilidade de que o
conhecimento científico dos bem-aventurados seja “alguma coisa de mim” (“aliquid
mei”), que possa ser a causa “do meu conhecimento científico” – do hábito da
teologia “em mim” (“habitus in me”) –, segundo qualquer um dos tipos de causa
essencial.84 Pode muito bem ser que a teologia do peregrino, na medida em que
depende do “nosso intelecto” como causa essencial, dependa da vontade de Deus
como de uma causa distante (“causa remota”). Porém, do conhecimento intuitivo –
em princípio não-silogístico – dos bem-aventurados ela não depende em nenhum
dos três casos acima.85
2.4 Quarto contra-argumento: a teologia do peregrino e a dos bemaventurados se relacionam ao mesmo86
(4) Na quarta objeção, expõe-se o seguinte argumento:
- Premissa maior: A ciência subordinante não se relaciona, em sentido primeiro, às
mesmas verdades ou aos mesmos predicados conhecidos aos quais a ciência
subordinada se relaciona.87
Na premissa maior, Scotus não trata da relação entre a teologia de Deus ou a dos
bem-aventurados e a nossa teologia, mas sim, em geral, da relação de
subordinação entre duas ciências. Aqui, pressupõe-se que o objeto da ciência
subordinante e o da subordinada pertencem ao mesmo gênero-sujeito, ainda que
um seja o objeto em si e o outro seja o objeto “per accidens”.88 Por esta razão,
83
Ibidem: „(...): nec est potentia animae, nec species obiecti, (...)“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 6:
„(...): sed notitia Beati, quam habet de Trino & vno, non est causa essentialiter Theologiae nostrae, quia nec est potentia
intellectiua nostra, nec obiectum cognitum a nobis“.
84
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 4: „(...), nec aliquid mei, quod possit esse causa scientiae meae in aliquo genere
causae, efficientis maxime, sicut modo loquimur: igitur habitus in me in nullo dependet, sicut a causa essentialiter a
visione Beatorum: (...)“.
85
Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „Et debet addi de proximo, quia talis scientia
dependet a voluntate diuina, vt a causa remota. Sed certum est, quod notitia Theologica nostra non dependet a visione
beatorum, vt causa effectiua, nec vt ab obiecto, nec vt a lumine: quia talis visio non est forma syllogistica, vel
praemissae“.
86
Ordinatio prol. n. 216 textus interpolatus a; Rep. par. prol. p. 2, n. 4; Rep. I A prol. q. 2.
87
Cf. Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a: „- Praeterea, scientia subalternans non est primo de eisdem veritatibus vel
praedicatis scitis (...)“.
88
Cf. acima na Introdução e sob 1.
ambas as ciências são também diferentes, com base em princípios diferentes.89
Um motivo posterior, que aparece em Rep. par. prol. q. 2 n. 4 como argumento
específico, mas em Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a e Rep. I A prol. q. 2
pertence a este mesmo argumento, consiste em que as conclusões da ciência
subordinante e as da subordinada são, a cada vez, diferentes.90 Que ambos os
motivos para a diferenciação entre ciência subordinante e subordinada são vistos,
em Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a, no mesmo argumento, isso fica
manifesto, quando Scotus afirma que a ciência subordinada começa ali onde a
ciência subordinante termina. Deste modo, afirma-se que, entre os princípios da
ciência subordinada se encontra uma conclusão da ciência subordinante, a qual,
ela mesma, não pode ser conclusão alguma da ciência subordinada.91
- Premissa menor: A teologia do peregrino pode se relacionar às mesmas coisas
(às mesmas verdades ou aos mesmos predicados conhecidos) às quais a teologia
dos bem-aventurados se relaciona.92
Em Rep. I A prol. q. 2, Scotus afirma que a nossa teologia trata das mesmas
verdades que a teologia dos bem-aventurados, mesmo que, talvez, não de
todas.93 Quando, de fato, não de todas – o que tem de significar que os bemaventurados, segundo o conteúdo específico, não segundo o primeiro objeto sob a
sua razão própria, conhecem outras verdades sobre Deus –, isso ainda não
significa que existe entre a nossa teologia e a dos bem-aventurados uma relação
de subordinação. Neste caso, exige-se um outro argumento para a recusa da
pretendida relação. Quando, portanto, um sujeito cognoscente conhece dez livros
sobre assuntos da geometria – poder-se-ia formular o argumento dizendo “quando
ele conhece dez livros de Tomás de Aquino” –,94 e um outro sujeito cognoscente
conhece apenas cinco livros sobre tais matérias, não é de modo algum o caso que
a ciência da geometria do segundo é subordinada à ciência da geometria do
primeiro.95 Houvesse entre os dois hábitos, como partes demonstráveis da
89
Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 4: „Item secundo sic: scientia subalternata & subalternans non se
extendunt ad aequalia scibilia, quia principia subalternatae sunt conclusiones in subalternante. Dicit etiam Philosophus I.
Poster. text. 69. & in 1. Phys. & Commentator ibid. comment. 18. quod subiectum subalternatae se habet per additionem
ratione scientiae subalternantis“.
90
Ibidem: „Similiter tertio sic, vt prius scientia subalternans & subalternata non sunt primo de eisdem conclusionibus;
quia conclusiones in scientia subalternante sunt principia in scientia subalternata: sed Theologia nostra est de eisdem
primo, de quibus est scientia Beatorum: (...)“.
91
Cf. Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a: „(...), quia ibi incipit subalterna ubi desinit subalternans; (...)“. Cf. Reportatio
parisiensis I A prol. q. 2: „Item scientia subalternans et subalternata non sunt primo de eisdem veritatibus praecise, nec
conclusionibus scitis; quia conclusiones scientiae subalternantis sunt principia subalternatae“. Cf. Josef
FINKENZELLER, op. cit., p. 214.
92
Cf. Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a: „(...); sed haec potest esse de eisdem de quibus est scientia beatorum; igitur
etc.“
93
Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2: „Sed theologia nostra est primo de eisdem de quibus est scientia beatorum,
licet forte non de omnibus illis“.
94
Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 4: „(...): licet forte non de omnibus illis, sed hoc non facit quod ei
subalternetur, si enim vnus sciat decem libros Thomae, & alius quinque, non propter hoc scientia sua subalternatur
scientiae alterius: ergo, &c.“
95
Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2: „Sed hoc non facit quod eis non subalternetur. Si enim unus sciat 10 libros
geometriae et alius 5, non propter hoc scientia scientis 5 subalternatur scientiae scientis 10. Similiter est in proposito, ut
geometria toda, uma relação de subordinação, então, de qualquer maneira, isso
teria de significar que a geometria subordinada seria conhecida por um idêntico
sujeito cognoscente que, ao mesmo tempo, conheceria a ciência subordinante. Do
contrário, o suposto hábito subordinado não seria, para este sujeito – e nele –,
ciência subordinada alguma.
Que, porém, a premissa menor do argumento deve ser aceita, isso se prova até
mesmo pela determinação formal do primeiro objeto da teologia e da sua razão, a
cada vez com respeito a uma diferente constituição do intelecto, daí a um diferente
hábito em termos psicológico-cognitivos.96 Num diferente modo cognitivo, daí
como num diferente tipo de conhecimento, a teologia de Deus (não por
demonstrações), a teologia dos bem-aventurados (por demonstrações, talvez
numa forma não usual de discurso silogístico)97 e a nossa teologia (por
demonstrações e por movimento do entendimento ou discurso silogístico comum,
com base nas verdades reveladas) se relacionam com os mesmos predicados
sobre o objeto “Deus” e as suas “partes subjetivas”.98 O mesmo é afirmado, de
acordo com Scotus em Rep. par. prol. q. 2 n. 4, pelo próprio Tomás de Aquino –
Scotus, assim, argumenta, pela terceira vez, “ad hominem” –, a saber, que o
primeiro sujeito da nossa teologia é Deus sob a razão de deidade, não sob uma
razão especial,99 motivo pelo qual também a nossa teologia, como a teologia de
Deus e a dos bem-aventurados, considera todas as verdades contidas
virtualmente sob o primeiro sujeito assim apreendido.100
- Finalmente, resulta a conclusão evidente: A teologia do peregrino não é
subordinada à teologia dos bem-aventurados.
Os contra-argumentos dois e quatro provam essencialmente o mesmo:
logicamente, a unidade de uma ciência depende do seu objeto formal primeiro. Ele
não é distinto nas teologias envolvidas, portanto tampouco o são as proposições
científicas conclusivas. Caso se fale de uma não-unidade de hábitos, esta será
psicológico-cognitiva. E sugerir esta tem como conseqüência necessária a nãointeligibilidade da subordinação pretendida. Ponto específico do quarto contraargumento é a idéia de que, mesmo havendo entre o hábito teológico dos bemaventurados e o do peregrino uma diferença formal nas verdades conhecidas, isso
não implica subordinação nem logicamente (não é preciso haver relação causal
quod Deus est trinus et unus et de aliis convenientibus deitati in quantum deitas. Ergo haec scientia nostra non est
subalternata scientiae Dei et beatorum; ergo etc.“
96
Cf. Ordinatio prol. p. 3 e Lectura prol. p. 2.
97
Cf. Ordinatio prol. n. 209; Lectura prol. n. 108-110. Cf. Roberto Hofmeister PICH, Der Begriff der wissenschaftlichen
Erkenntnis nach Johannes Duns Scotus, Capítulo VI, sob 6.3.
98
Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 4: „(...), sed Theologia Dei, beatorum, & nostra, est
praecise de eisdem praedicatis (licet nostra sit de eisdem per reuelationem, illa vero beatorum per demonstrationem, &
forte etiam per discursum, sed illa quae est Dei, licet sit de eisdem simpliciter praedicatis, non tamen per
demonstrationem, vt supra patuit) modo si nostra esset subalternata, non posset esse primo de eisdem praedicatis, siue
proprietatibus“.
99
Cf. Ord. prol. n. 158-167; Lect. prol. n. 77-86; Rep. par. prol. q. 1, a. 4, n. 38-51; Rep. I A prol. q. 1, a. 4.
100
Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 4: „Sed secundum Thomam, subiectum in Theologia nostra est Deus, non
sub speciali ratione, sed sub ratione deitatis, sic autem est subiectum Theologiae Beatorum; igitur Theologia nostra
considerat omnia, quae virtualiter continentur in Deo, sicut scientia beatorum, igitur ad aequalia extenduntur, ergo, &c.“
entre as proposições obtidas) nem, é claro, pela impossível relação de
dependência epistêmica externa para com o conhecimento de um intelecto como
de um outro.
2.5 Quinto contra-argumento: intuição evidente do objeto e fé no mesmo
objeto não concorrem101
(5) Na quinta e última objeção, Scotus parte da seguinte premissa:
- Premissa maior: O que tem a ciência subordinada102 pode ter também a
subordinante,103 como o que tem a ciência subordinante pode também ter a
subordinada.104
Em princípio, não é afirmado que o sujeito cognoscente pode possuir – ou vir a
possuir – cada um dos hábitos em diferentes momentos, embora isso seja
verdadeiro. Antes, afirma-se que, de acordo com a concepção comum de ciência
subordinada e subordinante, é evidente que ambos os hábitos são conhecíveis ao
mesmo sujeito cognoscente. O que pode conhecer os princípios da ciência
subordinante, este pode também conhecer a conclusão no mesmo hábito e, por
conseguinte, um dos princípios da ciência subordinada: ele pode, com isso,
conhecer as conclusões da ciência subordinada “propter quid”.105 Além disso,
como já sugerido, nada se opõe à idéia de que aquele que (primeiramente)
conhece a ciência subordinada pode conhecer (somente depois) a ciência
subordinante. A razão para tanto é específica: em comparação com os princípios
da ciência subordinada, os princípios da ciência subordinante são anteriores e
“confusos” (mais universais), e princípios anteriores e “confusos” são conhecidos,
na ordem de natureza do conhecimento intelectual, tanto pura e simplesmente
(“simpliciter”) quanto ao ser humano (“nobis”), primeiramente. Na ordem de
surgimento do conhecimento, eles são conhecidos, porém, somente depois.106
101
Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a; Rep. I A prol. q. 2; Ord. III d. 24, n. 4; Rep. par. III d. 24, n. 6.
102
Isto é, toda e qualquer ciência subordinada natural.
103
Isto é, toda e qualquer ciência subordinante natural. Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 149, n. 216 textus interpolatus a:
„- Praeterea, habens scientiam subalternatam potest habere subalternantem; (...)“.
104
Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2: „Item, omnis habens scientiam subalternantem potest habere scientiam
subalternatam; et e converso habens subalternatam potest habere, stante illa, scientiam subalternantem“. Cf. Reportata
parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 6. Cf. Josef FINKENZELLER, op. cit., p. 213.
105
Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2: „Prima pars maioris probatur: quia si habet subalternantem habet principia et
propter quid subalternatae tamquem conclusionum; ergo potest scire ista propter quid“.
106
Ibidem: „Secunda pars maioris probatur: quia sciens subalternatam scientiam potest naturaliter scire subalternantem,
scilicet quia principia subalternantis sunt priora; et in intelligibilibus, priora et confusa sunt nobis notiora et prius nota,
secundum Avicenna, I Metaphysicae: „Ens est nobis prius natum in sensibilibus modo, quia ibi posteriora nobis sunt
magis nota“. Ergo habens hanc scientiam subalternatam de intelligibilibus potest naturaliter habere scientiam
subalternantem, tamquam priorem naturaliter; sed hoc falsum est, quia tunc idem esset viator et comprehensor“. Cf.
Ordinatio III d. 24, q. un., p. 479, n. 4: „Praeterea, omnis sciens scientiam subalternatam, quae est de intelligibilibus;
potest scire, & subalternantem, quia principia subalternantis sunt priora: & in intelligibilibus, illa quae sunt priora
simpliciter, sunt priora nobis, licet in sensibilibus non sint eadem priora simpliciter, & priora nobis, quia sensibilia
posteriora sunt nobis magis nota: (...)“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 6: „Alia pars probatur, vt hic
sciens subalternatam naturaliter potest scire subalternantem, quia principia subalternantis naturaliter sunt priora, & notiora
nobis: in sensibilibus est e conuerso, quia sensibilia posteriora sunt nobis notiora“. Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 149,
n. 216 textus interpolatus a: „Maior patet quoad utrumque: primo, quia habens principia de conclusione potest scire
conclusionem; similiter patet secundum, quia principia subalternantis sunt universaliora, et sic ordine cognitionis
A segunda premissa do quinto e último argumento é a seguinte:
- Premissa menor: O que tem a suposta ciência subordinada da teologia do
peregrino não pode ter a suposta ciência subordinante da teologia de Deus ou a
dos bem-aventurados, como o que tem esta última também não pode ter aquela
primeira.107
Assumindo-se que a teologia dos bem-aventurados é a teologia subordinante e a
teologia do peregrino é a subordinada, esta acepção tem então de ser testada por
meio da premissa necessária de que é epistemicamente impossível que o bemaventurado e o peregrino tenham, ao mesmo tempo habitualmente, a cada vez, o
outro conhecimento, mais exatamente a intuição evidente das verdades teológicas
e a fé nas mesmas: tanto o bem-aventurado quanto o peregrino seriam, assim,
“um que compreende [que tem saber proposicional evidente do seu objeto108] com
fé” (“comprehensor cum fide”).109 A acepção acima é, por isso mesmo, falsa. E ela
é ademais falsa porque o hábito dos bem-aventurados e o do peregrino
pressupõem processos cognitivos diferentes, segundo os quais é impossível que
sejam, segundo a natureza e/ou o tempo, tanto transferíveis um ao outro como de
um e de outro quanto co-presentes numa relação de subordinação. O bemaventurado não pode, primeiramente, possuir a ciência subordinante pela intuição
evidente e, então, também, pela fé, a “ciência” subordinada, num conhecimento
não-distinto e não-evidente do objeto teológico, conhecimento que, segundo o
surgimento, é causado pela espécie sensível e pelo intelecto ativo.110 Por sua vez,
o peregrino não pode possuir a “ciência” subordinada pela fé e, então, também a
ciência subordinante pela intuição evidente, assim como os bem-aventurados a
possuem.111 O que possui um dos dois hábitos envolvidos não pode, pura e
simplesmente, possuir também o outro. Tampouco pode dizer, com sentido, que
um é subordinado ao outro, como aquele que possui o hábito da geometria e o da
óptica pode sim dizer que o hábito da óptica é subordinado ao da geometria.
intellectualis prius nota, quia ibi secundum huiusmodi non proceditur a magis notis sed a sensu“.
107
Ibidem: „(...); in proposito utrumque est impossibile; ergo etc.“ Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2: „Sed habens
scientiam beatorum, ut visionem de Deo, non potest habere fidem de eo nec theologiam nostram; ergo haec non
subalternatur illi“.
108
Sobre este sentido de „compreender“, cf. Roberto Hofmeister PICH, William E. Mann sobre a doutrina scotista da
necessidade do conhecimento revelado: primeira consideração, in: Dissertatio, p. 185-220.
109
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 479, n. 4: „si ergo haec scientia potest simul stare cum fide, sequitur quod aliquis
potest scire scientiam subalternatam cum fide, & ita potest esse comprehensor ratione fidei simul stantis“. Cf. Reportatio
parisiensis I A prol. q. 2: „(...); sed hoc falsum est, quia tunc idem esset viator et comprehensor“. Cf. Reportata
parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 6. A descrição da premissa menor deste argumento em Edward D. O’CONNOR,
The scientific character of theology according to Scotus, op. cit., Vol. III, p. 46, nota 159, é incorreta. A exatidão da
interpretação de Edward D. O’Connor da crítica scotista à teoria da subordinação de Tomás de Aquino e ao caráter
científico da „nossa teologia“ é prejudicada pelo fato de que o autor confunde os argumentos scotistas contra as teses de
Tomás de Aquino com aqueles apresentados contra a doutrina de Henrique de Gand sobre a „luz intermediária“ do
conhecimento teológico; cf. ibidem, p. 42-5.
110
Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 5: „(...), sed Deus, & beatus non potest habere nostram
Theologiam, quia nos solum obscure, & fide credimus, & Deus & beati clare vident, modo fides repugnant visioni (...)“.
111
Ibidem: „(...), neque e conuerso viator potest habere visionem de communi lege, ergo Theologia Dei, & beatorum non
subalternat sibi Theologiam nostram“. Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 149, n. 216 textus interpolatus a: „Minor etiam
patet quoad utrumque membrum: sicut viator non potest clare videre, sic beatus non potest habere sensum“.
- Novamente, resulta a conclusão evidente: A teologia do peregrino não é
subordinada à teologia dos bem-aventurados.
CONCLUSÃO
Apesar das considerações de Scotus sobre o conhecimento científico “pelos
sentidos e pela experiência”, em certas ciências subordinadas,112 vale como
princípio geral da teoria scotista da subordinação que, sempre que numa ciência
subordinada existirem princípios que não são conhecidos com evidência “per
sensum et per experientiam”, é necessário que o sujeito cognoscente os
reconduza a princípios evidentes anteriores: do contrário, o conhecimento obtido a
partir de tais princípios não é ciência.113 Ademais, o conhecimento obtido na forma
científica é evidente porque depende de princípios evidentes conhecidos pelo
sujeito: mesmo que a evidência possa ser formalmente descrita – por critérios
lógicos da união necessária de termos conhecidos como tais –, ela é propriedade
objetiva do fundamento do conhecimento do sujeito. A requisição da evidência na
ciência subordinada é, assim, conseqüência das requisições imprescindíveis de
certeza e de evidência no conhecimento científico: sob todas as variações
scotistas ao modelo de ciência aristotélico – sobretudo face ao lugar do
contingente na ciência –, a certeza e a evidência permanecem como condições
necessárias e suficientes do conhecimento científico proposto por Aristóteles.114
Certeza e evidência, na ciência, devem ser entendidas do seguinte modo:115
- (a) Ciência é um conhecimento certo (“cognitio certa”), sem engano e dúvida.116
Ele pertence, a partir de Rep. par. prol. q. 1 a. 1 n. 4, a toda “virtus intellectualis”,
dado que uma virtude intelectual é uma perfeição do intelecto que o leva à
atividade perfeita. A atividade perfeita do intelecto é o conhecimento certo do
verdadeiro. Com isso, toda “virtus intellectualis” é um hábito por meio do qual a
verdade é conhecida “determinate”. Face a esta definição, “opinião” (“opinio”), a
atividade discursiva da potência cognitiva que produz certeza apenas por meio
de probabilidade,117 e “conjetura” (“suspicio”), a atividade discursiva da potência
cognitiva que produz certeza apenas por meio de inclinação a um de dois
112
Cf. acima a nota 8.
113
Cf. também Reportata parisiensia prol., q. 2, p. 15, n. 5: „(...); Vnde multa principia sunt simpliciter nota Perspectiuo,
de quibus tamen nescit propter quid Si sint autem alia principia in subalternata, quae non sunt nota per sensum &
experientiam, oportet quod sciat ea reducere in alia principia priora: illa ergo notitia, quae tantum per experientiam
cognoscit ista, illa non est scientia“.
114
Cf. Roberto Hofmeister PICH, Der Begriff der wissenschaftlichen Erkenntnis nach Johannes Duns Scotus, Capítulo
VI, sob 6.1 e 6.2, e Conclusão, sob 4.
115
Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 141, n. 208: „Ad primam quaestionem dico quod scientia stricte sumpta quattuor
includit, videlicet: quod sit cognitio certa, absque deceptione et dubitatione; secundo, quod sit de cognitio necessario;
tertio, quod sit causata a causa evidente intellectui; quarto, quod sit applicata ad cognitum per syllogismum vel discursum
syllogisticum“. Cf. também Reportata parisiensia prol. q. 1, a. 1, p. 2, n. 4: „(...), scientia est cognitio certa veri
demonstrati necessarij mediati ex necessariis prioribus demonstrati, quod natum est habere evidentiam ex necessario
prius evidente, applicato as ipsum per discursum syllogisticum“.
116
Cf. ARISTOTELES, Zweite Analytik, in: Hans Günter ZEKL (Hrsg.), op. cit., I cap. 2, 71b9-10, p. 314-5.
117
A saber, um tema dos Tópicos de Aristóteles.
contrários,118 não são “virtutes intellectuales”.119 Tomo que a verdade ou uma
proposição verdadeira do hábito da ciência é conhecida “determinate”, ou,
segundo o princípio de bivalência, sob apenas um de dois valores de verdade
possíveis,120 quando a união do sujeito e do predicado na proposição conclusiva
de uma demonstração é conhecida com evidência e certeza por meio de um
“princípio especial” (“principium speciale”) ou da definição essencial do sujeito a
ser conhecido.121 Nesse sentido, o fundamento para a evidência e a certeza
sobre uma proposição conclusiva reside nas premissas conhecidas com
evidência e certeza,122 e, por esta razão, o hábito correspondente é uma
“scientia”, e não um “syllogismus probabilis”.123
- (b) A ciência é causada por uma causa evidente à potência cognitiva. (No texto
aristotélico, lê-se, é verdade, apenas “causa”, e não “causa evidente”).124 No
Prólogo da Lectura, tem-se “por uma causa e pela evidência do objeto”, isto é, a
causa do conhecimento científico, evidente à potência cognitiva, é o
conhecimento evidente do objeto na forma de uma proposição imediata (“per se
nota”) primeira.125 Por esta condição, assim Scotus em Rep. par. prol. q. 1 a. 1 n.
4, ciência (“scientia”) e entendimento (“intellectus”) das premissas imediatas são
diferenciados. Enquanto o entendimento obtém evidência pelo conhecimento do
118
A saber, um tema da Retórica de Aristóteles; cf. Richard McKEON, Philosophy and the development of scientific
methods, in: Journal of the History of Ideas, p. 10-11; Constantino MARMO, Suspicio: a key word to the significance of
Aristotle’s Rhetoric in thirteenth century scholasticism, in: Cahiers de l’Institut du Moyen Âge Grec et Latin, p. 165-9.
187-91.
119
Cf. Reportata parisiensia prol. q. 1, a. 1, p. 2, n. 4: „Prima condicio scilicet, quod est cognitio certa, excludens omnem
deceptionem, opinionem, & dubitationem, convenit omni intellectuali virtuti, quia virtus intellectualis est perfectio
intellectus, disponens ipsum ad perfectam operatio intellectualis est cognitio veri certa, ideo omnis virtus intellectualis est
habitus, quo determinate verum dicimus, propter quod, opinio & suspicio, quibus potest subesse falsum, non sunt virtutes
intellectuales“.
120
Cf., por exemplo, Lectura I d. 39, q. 1-5, p. 481, n. 1: „Circa distinctionem trigesimam nonam quaeritur utrum Deus
habeat determinatam cognitionem de rebus secundum omnem condicionem exsistentiae, ut secundum futuritionem“. Cf.
A. VOS JACZN et alii, Lectura I d. 39 Commentary, in: A. VOS JACZN et alii, John Duns Scotus contingency and
freedom - Lectura I 39, p. 45: „In this context ‘determinate’ means: bearing the truth-value ‘true’ or ‘false’“.
121
Cf. Ordinatio prol. p. 1, q. un., p. 53-4, n. 89: „Et in proposito exemplo adhuc patet propositum. Quia de homine
scibile est quod est risibilis, numquam per hoc principium ‘de quolibet’ etc. potest plus inferri nisi ‘igitur de homine
risibile vel non-risibile’. Altera igitur pars praedicati disiuncti numquam scietur de subiecto per hoc principium, sed
requiritur aliud principium speciale, ut definitio subiecti vel passionis, quod quidem est medium et ratio ad sciendum
‘risibile’ determinate de homine“.
122
Cf. L.-M. DE RIJK, Einiges zu den Hintergründen der scotischen Beweistheorie: Die Schlüsselrolle des Sein-Könnens
(esse possibile), in: Albert ZIMMERMANN (Hrsg.), Miscellanea Mediaevalia 20 - Die Kölner Universität im Mittelalter.
Geistige Wurzeln und soziale Wirklichkeit, p. 181.
123
Cf. Allan B. WOLTER, The „theologism“ of Duns Scotus, in: Marilyn McCord ADAMS (ed.), The philosophical
theology of John Duns Scotus, p. 216.
124
Cf. ARISTOTELES, Zweite Analytik, in: Hans Günter ZEKL (Hrsg.), op. cit., I cap. 2, 71b10-12, p. 314-5: „(...) -,
wenn wir, erstens, die Ursache zu kennen meinen, deretwegen dieser Sachverhalt besteht - daß es eben dessen Ursache ist
-, (...)“. Cf. Gérard SONDAG, Commentaire continu, in: Jean DUNS SCOT, La théologie comme science pratique
(Prologue de la Lectura), p. 73.
125
Cf. Lectura prol. p. 3, q. 1, p. 39, n. 107: „Ad quam dicendum est quod est scientia quantum ad id quod perfectionis est
in scientia. Nam, sicut patet ex definitione scientiae, scientia est cognitio certa, de necessariis, habita per causam et
evidentiam obiecti et per applicationem causae ad effectum“.
significado dos termos, a ciência obtém evidência pelos princípios conhecidos.126
A causa evidente à potência cognitiva consiste, aqui, numa premissa
necessária,127 que pode ser entendida como um ponto de partida nãodemonstrado de uma demonstração.128 Porém, deve ser dito que nem em Lect.
prol. n. 107 nem em Ord. prol. n. 208 lê-se acerca de uma causa evidente e
necessária, (ainda que este seja o caso em Segundos analíticos I cap. 2). Não se
verifica, nesta descrição, uma ligação natural entre evidência e necessidade.129
Sob essas pressuposições, a interpretação dada por DE RIJK é correta, segundo
a qual Scotus quer dizer com “causa” não “causa ontológica”, pela qual “aquilo
que é significado pelo predicado da proposição conclusiva é atribuído ao sujeito
e, por conseguinte, está contido nele”.130 Antes, com “causa” Scotus tem em
vista “a conclusividade lógica”: a causa evidente conhecida pelo intelecto é “o
fundamento lógico para o fato de que aquele que apreende a verdade das
premissas (...) sabe que o predicado pertence ao sujeito”.131
Não é difícil ver, pois, de que modo as últimas premissas podem ser visualizadas
na resposta definitiva de Scotus às estratégias argumentativas de Tomás de
Aquino (cf. Rep. par. prol. q. 2 n. 3). Primeiro, Scotus confirma o parecer de que
uma ciência subordinada é, como tal, uma ciência, mas não na medida em que
nela os princípios do saber são (meramente) cridos.132 Somente quando os
princípios do hábito do conhecimento são conhecidos com evidência ou “per
experientiam” ou pela redução aos princípios do hábito superior é o caso que o
hábito do conhecimento subordinado é uma “scientia”.133 É também simples
perceber que o segundo argumento é inválido: as verdades da óptica enquanto
óptica são tratadas numa ciência, mas não na medida em que os seus princípios
são cridos, mas somente enquanto são conhecidos por experiência ou pelo
conhecimento evidente dos princípios da ciência da geometria no intelecto do
óptico-geômetra.134
126
Cf. Reportata parisiensia prol. q. 1, a. 1, p. 2, n. 4: „(...) distinguens scientiam ab intellectu principiorum, quia iste est
veri habentis evidentiam ex terminis; (...): scientia est veri habentis evidentiam ex principiis“. Cf. também Reportatio I A
prol. a. 1. Cf. Edward D. O’CONNOR, The scientific character of theology according to Scotus, op. cit., p. 4-5, nota 3; H.
A. KROP, The self-knowledge of God - Duns Scotus and Ockham on the formal object of scientific knowledge, in: E. P.
BOS and H. A. KROP (eds.), op. cit., p. 84.
127
Cf. Reportatio I A prol. a. 1: „(...), quod natum est habere evidentiam ab aliquo necessario prius evidente (...)“.
128
Cf. W. D. ROSS, Introduction, in: W. D. ROSS (text, introduction and commentary), Aristotle’s Prior and Posterior
Analytics, p. 55s.
129
O significado desta observação para a teoria scotista da ciência só pode ser mostrado por meio de uma análise
comparativa do conhecimento do contingente na teologia “in se”; cf. Roberto Hofmeister PICH, op. cit., Capítulos V e
VI.
130
Cf. L.-M. DE RIJK, Einiges zu den Hintergründen der scotischen Beweistheorie: Die Schlüsselrolle des Sein-Könnens
(esse possibile), in: Albert ZIMMERMANN (Hrsg.), op. cit., p. 180.
131
Ibidem, p. 180-1.
132
Cf. acima sob 1.
133
Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 5: „Per hoc patet ad rationes. Ad primam, quod subalternata in quantum
talis est scientia; non quia tantum credit sua principia, sed quia nouit illa per experientiam, vel quia nouit ea reducere ad
priora in scientia superiori“.
134
Ibidem: „Ad aliud, quod quamuis perspectiua in quantum perspectiua sunt, considerentur in scientia, haec tamen sola
O terceiro argumento tomasiano, exposto em Rep. par. prol. q. 2 n. 3, Ord. III d. 24
n. 3 e Rep. par. III d. 24 n. 5, segundo o qual é suficiente para um hábito da
ciência que os seus princípios sejam conhecidos “aliqualiter”, é igualmente
inválido. Para tanto, analisa-se e, então, abandona-se, em Ord. III d. 24 n. 19 e
Rep. par. III d. 24 n. 23, o comentário confirmativo sobre certa obtenção suficiente
de conhecimento dos princípios científicos a partir do conceito de indução, por
conseguinte a legitimidade da obtenção de um “tipo especial” de ciência.135 Scotus
toma que a indução pode ser entendida de um duplo modo:
- (a) Por um lado, a indução, em concordância com Boécio, é um tipo de
argumentação (“species argumentationis”). Segundo este primeiro modo, a
indução não basta para o conhecimento científico. Numa tal “argumentação
indutiva”, um objeto universal é conhecido pelo fato de que é deduzido a partir das
coisas singulares.136 Porém, exatamente o procedimento contrário caracteriza uma
dedução científica. Cientificamente (“scientifice”), segue-se antes a argumentação
“todo todo é maior que as suas partes; portanto, este todo (é maior que as suas
partes)” do que o contrário, isto é, “este e este todo todo (são maiores que as suas
partes); logo, todo todo (é maior que as suas partes)”.137 Isso significa que a
evidência dos princípios numa ciência – isto é, dos princípios evidentes já obtidos
– não depende de modo algum dos objetos singulares. Ainda que não existisse
nenhum objeto singular correspondente, haveria, não obstante isso, verdadeira
ciência, uma vez que “scientia” é o conhecimento de objetos universais
necessários. Os princípios de uma ciência são conhecidos exclusivamente pelos
termos apreendidos, na medida em que os termos se fazem presentes ao
intelecto: assim o intelecto dá assentimento a eles, e não por meio de
argumentação indutiva. A definitiva resolução da certeza do conhecimento
permanece neste conhecimento “per se”, ou seja, sustenta-se em que aquele é
um tal entendimento e aqueles são tais termos (“ille est talis intellectus, & hi tales
termini”).138
ratio non sufficit; nisi cognoscat Perspectiuus sua principia praedicto modo“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p.
521, n. 22: „(...), & ideo cum dependeat a Geometria secundum principia sua, non erit Perspectiua scientia, nisi causetur a
Geometria, & ideo nullus est Perspectiuus, vt sciens eam, sed vt credens eam tantum, nisi causetur notitia principiorum in
illo, in superiori scientia“. Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 485, n. 18: „Et cum dicis, quod sunt distincti habitus, verum
est: sed sicut non potest esse habitus ille, nisi causetur ex principiis euidentibus; ita non potest esse habitus huic homini,
nisi causetur in ipso ex principiis illis, quae habent certitudinem istam ex principiis primis, notis in scientia superiori“. Cf.
acima sob 1. Cf. JOHANNES DE READING, Scriptum in I librum sententiarum - Prologus. qq. 6, 7, & 10, in: Steven J.
LIVESEY (ed.), op. cit., prol., q. 6, p. 108-9: „Ad aliud argumentum, cum dicitur perspectiva in quantum talis est scientia,
concedo; et perspectivus in quantum talis est sciens. Et quando dicitur quod non est necessario geometer, dico quod vel
novit reducere principium perspective in principium ex quo deducitur - in geometria -, vel novit illud per experientiam, vel
saltem habita cognitione de subiecto eius quod est, probat ex illa ratione talis subiecti compositi conclusiones suas“.
135
Cf. acima sob 1.
136
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 485-6, n. 19: „Ad Commentatorem dico, quod inductio potest accipi dupliciter. Vno
modo prout est species argumentationis, secundum quod loquitur Boëtius de inductione. (...). Si primo modo loquitur
Commentator. Dico quod inductio non sufficit ad scientiam: nec ideo scitur vniuersale, quia ex particularibus deducitur“.
137
Ibidem, p. 486: „Vnde magis sequitur scientifice, omne totum est maius sua parte, igitur hoc totum: quam e conuerso,
scilicet hoc & illud totum, igitur omne“.
138
„Vnde euidentia principiorum in scientia non dependet ex singularibus: sed si nullum singulare esset, cum scientia sit
necessariorum, adhuc staret vera scientia; sed principia sunt nota ex terminis apprehensis, secundum quod termini vltro se
offerunt intellectui: & resolutio certitudinis stat in hoc, quod ille est talis intellectus, & hi tales termini“. Cf. também
Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 521, n. 23: „Vne haec vniuersalis: Omne totum est maius sua parte, est primo, &
per se nota; nec assentio illi, quia assentio huic, hoc totum est maius sua parte. Ideo quando assentitur alicui primo
principio, non assentitur illi per inductionem, isto modo sumendo inductionem“.
- (b) Por outro lado, e isso deve valer como interpretação correta de Ética a
Nicômaco VI cap. 3, a indução é entendida como a acepção dos objetos
singulares por meio dos sentidos, a saber, como todo conhecimento que é
produzido a partir dos sentidos, como o conhecimento dos princípios pelo intelecto
humano, porque este apreende os termos (universais) dos princípios por meio dos
sentidos.139 Aqui, assim continua o argumento em Rep. par. III d. 24 n. 23, a
indução é originalmente necessária para o conhecimento dos princípios de uma
determinada ciência, na medida em que ela é necessária para a apreensão dos
termos – e isso também quando os sentidos se equivocam com respeito às coisas
reais, singulares.140 Somente na medida em que as coisas singulares são
apreendidas por meio dos sentidos o intelecto abstrai o universal e conhece, com
isso, os termos, a partir dos quais, por meio do mesmo intelecto – não mais num
processo indutivo pelos sentidos –, o conhecimento dos princípios é obtido.141
Esta segunda acepção de indução inclui, portanto, a função da “experiência” para
o conhecimento dos princípios: a “empeiria” tem o seu lugar a partir da relação
entre percepção e memória, como conhecimento do particular, em predicações
elementares, e, depois, do universal contido no particular.142 Aqui, a experiência
acaba sendo meio para a obtenção de intuições gerais: da reunião de uma
quantidade relevante de lembranças (repetidas), obtidas pelas percepções
sensíveis, a experiência originada leva aos primeiros termos gerais, iniciando o
conhecimento universal e abstrato.143 A partir da experiência, fixa-se na alma a
unidade formal indiferenciada de objetos múltiplos que se encontram de modo
idêntico na experiência.144 Daí que dizer que os princípios da “arte” ou da “ciência”
são conhecidos por indução, no contexto de Segundos analíticos II cap. 19, em
concordância com Ética a Nicômaco VI cap. 3, não significa que o processo de
139
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 486, n. 19: „Alio modo prout inductio dicitur omnis cognitio, quae oritur ex sensu,
sicut principia cognoscimus, quia terminos apprehendimus per sensum“.
140
Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 521, n. 23: „Sed secundo modo inductio est necessaria ad cognitionem
principiorum, quatenus est necessaria ad apprehensionem terminorum, & licet tunc fuerit falsus, intellectus tamen
cognoscit principium, & est de eo.“ Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 486, n. 19: „Si secundo modo loquitur, verum est,
quod notitia principiorum dependet ex sensu (...)“. Cf. Quaestiones super libros metaphysicorum Aristotelis I q. 4, p. 108,
n. 43-44: „(...) est considerandum quod a sensu, sive errante sive non, potest intellectus apprehendere simplicia et statim
universalissima. Quia ad quamcumque apprehensionem sensitivam imprimuntur intellectui ens et res. Simplicibus
apprehensis a sensu vero vel falso, propositiones fiunt virtute propria intellectus: primo de universalioribus, postea de
aliis“. Cf. ibidem, p. 115, n. 66: „(...) quod sensus est necessarius propter notitiam terminorum. Unde universalia non
cognoscuntur sine inductione, id est, sine cognitione alicuius singularis quod non cognoscitur sine sensu in sensibilibus.
Ergo in illis, si deest sensus, deest scientia. Non oportet autem ‘inductionem’ accipere ibi pro specie argumenti“. Cf.
também ARISTOTELES, Zweite Analytik, in: Hans Günter ZEKL (Hrsg.), op. cit., II cap. 19, 100b3-4, p. 520-3: „Klar
denn also: Es ist uns notwendig, die allerersten (Ausgangsbegriffe) mittels Heranführung [„epagoge“] zu erkennen; (...)“;
idem, Nikomachische Ethik, in: Günther BIEN (Hrsg.), op. cit., VI cap. 3, 1139b25-31, p. 133.
141
Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 521, n. 23: „Vnde per inductionem, isto modo accipiendo eam,
cognoscitur principium: quia accipiendo per sensum singularia, attrahit intellectus vniuersale, & cognoscit terminos, ex
qua notitia principium cognoscitur: non tamen assentiendo per intellectum: quia aliquid sentitur per sensum“.
142
Gilles Gaston GRANGER, La théorie aristotélicienne de la science, p. 159, diferenciou um tratamento psicológico
(„vue psychologique“) da indução, como a atividade que permite passar da sensação à experiência, de um tratamento
fenomenológico („vue phénoménologique“), em que a indução é a visão originária do universal no objeto da sensação.
143
Cf. ARISTOTELES, Metaphysik - Erster Halbband (Bücher I(Α) - VI (Ε)), in: Horst SEIDL (Hrsg.), Aristoteles’
Metaphysik, I cap. 1, 980b28ss, p. 4-5. Cf. F. P. HAGER, Empeiria, in: Joachim RITTER und Karlfried GRÜNDER
(Hrsg.), Historisches Wörterbuch der Philosophie, Band 2, p. 453-4.
144
Cf. Oswaldo PORCHAT PEREIRA, Ciência e dialética em Aristóteles, p. 344-6, com referência a Segundos analíticos
II cap. 19, 99b32ss.
aquisição de princípios seja idêntico ao de formação de noções universais a partir
da sensação (e da experiência que tem esta como base), mas trata-se de mostrar
que “o conhecimento das proposições assumidas pela ciência como seus
princípios é obtido, a partir de um conhecimento anterior fundamentado, em última
análise, na sensação, através de um raciocínio epagógico ou indutivo que se pode
assemelhar a (...) um processo indutivo mais simples que, partindo diretamente da
sensação, leva [na experiência] os universais contidos nas formas sensíveis a
fixar-se na alma”.145 Trata-se de um processo indutivo, em ambos os momentos,
sendo impossível uma passagem do particular ao universal sem a indução e uma
indução que não repouse na percepção sensível: por isso, cabe à “empeiria”
fornecer os princípios de cada gênero de objetos.146 E ela oferece conhecimento
do fato (“hoti”), mas nunca, como a arte e a ciência, que se relacionam somente
com o universal, do porquê (“dioti”) de enunciados elementares.147 O
conhecimento por indução, pois, não legitima a obtenção de um “tipo especial” de
ciência.
Ainda contra a afirmação de que os princípios das ciências especiais podem ser
conhecidos “aliqualiter”, Scotus reafirma em Ord. III d. 24 n. 19 e Rep. par. III d. 24
n. 23 que é num sentido restrito que o conhecimento dos termos basta para
conhecer que certos princípios são primeiros e evidentes, isto é, princípios que
fundamentam as proposições conclusivas necessárias da ciência. É necessário o
conhecimento evidente dos termos sob as suas razões próprias. Sem dúvida, não
é sempre necessário que os princípios da ciência sejam conhecidos de modo
“distinto” e “imediato”. Em algumas ciências, como nas subordinadas, é apenas
exigido que os termos dos princípios sejam conhecidos de um modo “confuso”.
Exige-se, porém, que o conhecimento confuso (=conhecimento de princípios,
cujos termos, ligados, são conhecidos de modo confuso) seja conduzido ao
conhecimento distinto (=conhecimento de princípios, cujos termos, ligados, são
conhecidos de modo distinto).148 Mais adiante, em Rep. par. prol. q.2 n. 3 e Ord. III
d. 24 n. 19, Scotus chega a admitir que os princípios das ciências especiais
podem ser conhecidos “aliqualiter”, se isso significa que são conhecidos de dois
modos possíveis: (a) podem ser conhecidos com base num conhecimento confuso
dos termos, em que “confuso” significa “específico”, e (b) podem ser conhecidos
pela ciência da metafísica, num conhecimento “geral” absolutamente distinto dos
145
Ibidem, p. 347-8.
146
Ibidem, p. 348-9.
147
Cf. ARISTOTELES, Metaphysik - Erster Halbband (Bücher I(Α) - VI (Ε)), in: Horst SEIDL (Hrsg.), op. cit., I cap. 1,
981a24ss, p. 6-7. Cf. F. KAMBARTEL, Erfahrung, in: Joachim RITTER und Karlfried GRÜNDER (Hrsg.). Historisches
Wörterbuch der Philosophie, Band 2, p. 609-10.
148
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 521, n. 19: „Si secundo modo loquitur, verum est, quod notitia principiorum dependet
ex sensu, tamen non sufficit quaecumque notitia terminorum ad hoc, quod cognoscantur principia esse prima, seu talia; ex
quibus possit conclusio necessaria concludi, quae habet generare scientiam, sed requiritur cognitio terminorum sub
propriis rationibus ex euidentia illorum: sed non semper immediate, & distincte, sed in aliquibus scientiis sufficit notitia
terminorum confusa, sicut in subalternatis; sed requiritur quod eorum cognitio confusa possit reduci in distincta“. Cf.
Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 521, n. 23: „Et cum dicunt quod sufficit principia esse aliqualiter nota: dico quod
oportet esse omnino ex terminis non confuse cognitis; quamuis in aliqua scientia, puta subalternata, non nisi ex terminis
confuse notis principia sunt per se nota, vel saltem cognoscuntur ex terminis confuse notis: ita quod non sit necesse scire
definitionem termini“.
termos, mais perfeito porque da natureza categorial dos mesmos.149 Dos dois
modos, os princípios das ciências especiais são conhecidos por si e com
evidência.150
Finalmente, caso esta concepção comentada da subordinação segundo Scotus,
com base na sua crítica à interpretação de Tomás de Aquino, for avaliada em
comparação às fontes aristotélicas, creio que é manifesto que a interpretação
scotista, como interpretação de Aristóteles, é mais sóbria e precisa. Na concepção
exposta, Scotus se expressa, concordantemente, somente acerca da teoriapadrão de Aristóteles: ele não ultrapassa a extensão dos modelos aristotélicos de
subordinação. Como interpretação da teoria-padrão aristotélica – da qual os
demais argumentos contra a posição tomasiana não se desviam151 –, tomo a
crítica scotista como justificada: a teoria tomasiana da subordinação, no contexto
da relação entre a nossa teologia e a de Deus e a dos bem-aventurados, é
inconsistente.152 Naturalmente, Scotus entende a teoria tomasiana da
subordinação como reivindicando um entendimento fundamentalmente correto, daí
uma aplicação fundamentalmente correta da teoria aristotélica. Esta é, ao menos,
a interpretação mais óbvia da teoria tomasiana.153 Ainda assim, o juízo scotista
sobre a versão de Tomás de Aquino tem algo de desconcertante. Afinal, Scotus,
em três momentos, argumenta “ad hominem”154 e dá a entender que Tomás de
Aquino, deixando-se de lado as divergências explicitadas, ensinou o mesmo que
149
Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 486, n. 19: „Similiter scientia naturalis, prout praecedit Metaphysicam, habet suos
terminos confuse notos: sed Metaphysicus mediante definitione exprimit distincte notitiam illorum, & tunc est perfectior,
quando est cum Metaphysica“. Esta é, a propósito, segundo Scotus, a intenção de Avicena na sua Metafísica I cap. 3, a
saber, que a ordem da metafísica seja de tal modo entendida que ela é ensinada apenas após o conhecimento das ciências
naturais: após a obtenção do conhecimento da metafísica, os princípios das ciências específicas precisam, porém, ser
novamente demonstrados. Cf. Reporata parisiensia III d. 24, q. un., p. 521, n. 23: „Vnde omnis scientia partialis
praecedens Metaphysicam ordine doctrinae, sic habet cognoscere sua principia ex cognitione confusa terminorum, sed
post scientiam Metaphysicae cognoscuntur definitiones terminorum in scientiis particularibus, & principia eorum
probantur per principia Metaphysicae. Et hoc est quod vult Auicenna in primo Metaphys. sua, cap. 3. quod ordo huius
scientiae est, vt discatur post scientias naturales & disciplinationes; cum tamen principia iterum habeant probari per eam“.
150
Cf. Reportata parisiensia prol., q. 2, p. 15, n. 5: „Ad auctoritatem Philosophi dicendum quod dupliciter principia
possunt esse nota. Vno modo notitia confusa, vt cum termini confuse apprehenduntur, & hoc sufficit ad notitiam
principiorum in scientiis specialibus. Alio modo possunt principia cognosci notitia distincta, cum definitiones terminorum
distincte cognoscuntur, & hoc conuenit per notitiam Metaphysicae, diuidendo & componendo: & ideo habita notitia
Metaphysicae perfectius cognoscuntur principia cuiuslibet scientiae, quam nata sint cognosci sine illa, & per consequens
habita Metaphysica perfectius habetur ista notitia, quam in quaelibet alia scientia“. JOHANNES DE READING, Scriptum
in I librum sententiarum - Prologus. qq. 6, 7, & 10, in: Steven J. LIVESEY (ed.), op. cit., prol., q. 6, p. 109, inclui, entre
os „princípios conhecidos „aliqualiter““, também os princípios que são conhecidos „per sensum et experientiam“: „Ad
tertium, cum dicit quod principia sunt aliqualiter cognita, dico quod principia dupliciter possunt esse nota: vel per sensum
et experientiam, vel ex confuso conceptu terminorum esse evidenter nota, vel possunt tertio esse nota per principia
superioris scientie. Et unus istorum modorum requiritur ad scientiam habendam“.
151
Cf. acima em especial sob 2.1, 2.3 e 2.4.
152
Cf. acima sob 1.
153
Cf., por exemplo, Sanctus THOMAS AQUINATIS, Summa theologiae I q. 1, p. 3, a. 2 in corp.; idem, In librum
Boethii De Trinitate expositio prooem. q. 2, p. 332, a. 2 ad 5. Se Tomás de Aquino entendeu o seu ensino, no contexto da
teologia, como uma teoria da subordinação especial, não-aristotélica, tal como tomistas desde Herveu de Nedellec e Tiago
de Metz acreditaram, permanece discutível. Porém, mesmo interpretações alternativas – também as de hoje – trazem,
„exegeticamente“, resultados deveras tímidos. Cf. André HAYEN, La théologie aux XIIe, XIIIe et XXe siècles (suite), in:
Nouvelle Révue Théologique, p. 120-9; C. DUMONT, La réflexion sur la méthode théologique II, in: Nouvelle Révue
Théologique, p. 24. 27-8. 29-35; Jean-Pierre TORRELL, Le savoir théologique chez les premiers thomistes, op. cit., p. 268.
154
Cf. acima sob 2.1, 2.2 e 2.4.
ele acerca da diferença entre fé e ciência e acerca do objeto formal único da
teologia.155 Tomás de Aquino teria podido concluir pela impossibilidade da relação
de subordinação entre a nossa teologia e a teologia de Deus e a dos bemaventurados e teria podido abandonar o caráter científico da nossa teologia. Não
significa isso que a teoria da subordinação tomasiana, desenvolvida para a
teologia, é surpreendente porque internamente contraditória?
Neste estudo, não será mais possível ver a teoria tomasiana de outro modo. A
visão que Scotus oferece é a de que ela não é inteligível segundo a “episteme”
aristotélica estrita. Em sentido estrito, uma visão positiva à consistência da teoria
tomasiana teria de implicar a inteira diluição do seu suporte aristotélico. Tome-se,
assim, nos termos de Trottmann, que na teoria tomasiana a “ciência” da nossa
teologia é um reflexo da ciência que Deus tem de si mesmo, como o imperfeito se
assemelha ao perfeito, como a “nossa” participação imperfeita em Deus está para
a participação beatífica: para a nossa teologia, a imperfeição dependente é um
modo de ciência subordinada.156 Uma visão positiva à consistência da teoria
tomasiana só não implica a diluição do seu suporte aristotélico se, é claro, o
sentido estrito deste último não é aquele apresentado por Scotus. Saranyana,
entre outros, sugere que Tomás de Aquino, consciente da “condição analógica” do
conceito de “ciência”, buscou na propriedade definitória da ciência de ter acesso a
verdades conhecidas a partir de outras verdades conhecidas – de ser um
processo de obtenção de conclusões – o aspecto que pode ser predicado
univocamente de todos os analogados.157 É possível também, como o mesmo
Saranyana parece propor, que se deixe de lado a visão positiva à consistência da
tese tomasiana na dependência de identidade a um sentido aristotélico estrito de
ciência. Por que não crer que a subordinação tomasiana é, com plena
consciência, um sentido novo de ciência, apenas aproximativo ao modelo de
Aristóteles? A gramática do “conhecimento científico” teria de ser modificada para
além (ou aquém) daquela de Scotus, em que uma ciência subordinada envolveria
o aspecto epistemológico (e ontológico) da participação do ser humano em Deus,
suposta a elevação humana à ordem sobrenatural, pela fé infusa, e o aspecto
lógico da analogia de “ciência” como saber que procede para conclusões. Haveria,
aqui, duas perspectivas complementares, em que a teologia é ciência
analogicamente (um “argumentum fidei”) e participativamente (um “intellectus
fidei”), não podendo, pois, existir sem a realidade da fé.158
Se neste último molde também a interpretação crítica de M.-D. Chenu se
enquadraria, a de que a doutrina sagrada é, para Tomás de Aquino, não uma
ciência aristotélica no sentido pleno dos Segundos analíticos (por razões
profundamente conformes ao evidencialismo scotista, a saber, por causa do
“postulado inviolável” de que “scientia procedit ex principiis per se notis”),159 uma
155
Cf. acima sob 2.1 e 2.4.
156
Cf. Christian TROTTMANN, op. cit., p. 155.
157
Cf. José Ignasi SARANYANA, Sobre el In Boethii De Trinitate de Tomas de Aquino, in: Albert ZIMMERMANN
(Hrsg.), op. cit., p. 80.
158
Ibidem, p. 74-80.
159
Cf. M.-D. CHENU, La théologie comme science au XIIIe. siècle, p. 73. 90s.
última leitura alternativa proporia algo mais ousado: a tese tomasiana preserva o
sentido aristotélico estrito de ciência, a ser entendido de outro modo que o
apresentado, e desenvolve a ciência para além do sentido estrito, em coerência
com ele. Tem-se, de novo, a negação da tese da identidade da concepção
tomasiana e aristotélica. Se Tomás de Aquino entendeu ciência como virtude
epistêmica de perfeição, e aquela é assim um termo analógico, John I. Jenkins
pode asseverar que isso permitiu desdobrar um mesmo conceito fundamental e
aplicar “scientia” para hábitos epistêmicos como a ciência de Deus não discursiva
e dos bem-aventurados intuitiva etc.160 Pensar o conhecimento científico como
virtude epistêmica implicaria reconhecer o procedimento científico pela via do
inquérito e da formação intelectual progressiva, tal como na atenção à estrutura
argumentativa (da teologia), para a qual conta a função da autoridade na
pressuposição e aquisição da ciência, logo também a submissão à instrução
(divina e pelos bem-aventurados). Por isso mesmo, a subordinação da “nossa
ciência” da teologia não é (a) pelo gênero-sujeito, mas sim (b) a modo de
cognição, de instrução e pré-saber, a partir da ciência subordinante de Deus
mesmo, transmitida pela revelação, para a aquisição discursiva do saber
manifestado como necessário.161 Haveria vez, ainda, para que o projeto inteiro dos
Segundos analíticos fosse pensado, então, nos termos de um fundacionalismo
externalista de justificação de verdades da fé a partir da fé.162
A tese ousada de John I. Jenkins demandaria apreciação muito mais minuciosa.
De momento, a sua proposição da continuidade profunda da ciência da nossa
teologia, em Tomás de Aquino, com o conteúdo dos Segundos analíticos não me
parece mais promissora que a premissa forte da concepção scotista: que o saber
científico que se possui deve ser ele mesmo estritamente evidente e certo, do
contrário não se o possui. A ciência estrita não está no fim do processo de
obtenção do saber. Está ali desde o início, com o peso de uma tautologia: de que
o saber científico estrito é sempre só o saber científico estrito.
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160
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161
Ibidem, p. 66-77. 219s.
162
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209-53.
A TEOLOGIA E SEU MÉTODO NO PRÓLOGO DA ORDINATIO DE DUNS
SCOTUS
Sinivaldo S. Tavares*
O presente ensaio foi se construindo em meio a duas grandes dificuldades. A
primeira provém do próprio tema em pauta. Talvez não exista, em teologia,
discurso tão árido quanto o que concerne à sua epistemologia. Discorrer acerca
de seu método significa assumir o pesado ônus de sondar os pressupostos a partir
dos quais a teologia se constrói. Implica ainda em indagar acerca do processo
mesmo de constituição de seu discurso, desentranhando suas intrínsecas
virtualidades e reconhecendo seus limites internos. Significa verificar se, de fato, o
método adotado possibilita uma maior aproximação à realidade que se pretende
indagar. Trata-se, na verdade, de uma incumbência árdua, porque endereçada à
constituição íntima do discurso teológico, em sua estrutura e articulações
fundamentais.
A segunda dificuldade fica por conta do autor escolhido. “Duns Scotus é um autor
difícil para qualquer um, talvez – acrescenta É. Gilson com uma pitada de humor –
o era até para si mesmo. Severo sem jamais perder o humor, áspero mais que
rude, preciso mais que altivo, conduz seus leitores pelos labirintos da dialética aos
termos que, ao invés de revesti-los, os despe”1. De fato, o estudo dos textos de
Scotus exige, mais que paixão, muita paciência e, sobretudo, persistência... No
entanto, ele nunca deixou de suscitar interesse em distintos âmbitos e, sobretudo
em nossos dias, parece despertar uma atenção cada vez maior. São poucos, na
verdade, os que ainda ousam duvidar da inusitada relevância de suas posições e
da perene atualidade de seu pensamento.
Nossa exposição obedecerá quanto segue: após algumas considerações
introdutórias acerca da metodologia de Scotus (I), abordaremos a questão da
necessidade da revelação e das razões a favor de sua credibilidade (II); em
seguida, analisaremos: as discussões acerca do objeto da teologia (III), a pergunta
pela cientificidade da mesma (IV), a índole prática do saber teológico (V); ao final,
recolheremos os principais resultados alcançados ao longo do ensaio (VI).
*
Professor de Teologia Sistemática do ITF, Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, RJ.
1
É. Gilson, Jean Duns Scot. Introduction à ses positions fondamentales, Vrin, Paris 1952. Cf. ainda
o que escreve L. Sileo na Apresentação da obra publicada sob seus cuidados: Via scoti. Methologica ad
mentem Joannis Duns Scoti. Atti del Congresso Scotistico Intenazionale, Roma 9-11 marzo 1993, Vol. I,
Roma 1995, p. IX: “Ler e estudar Scotus hoje não é muito menos fácil do que ontem. É, porém, sem dúvida
uma ‘chance’ atraente. O ritmo veloz de sua página, o ir ao encalço de seus raciocínios que evoluem mediante
silogismos, a inapreensibilidade da tese última de seus pensamentos [...] não dão trégua. Chegam a
desencorajar. Sente-se como que preso pelo forte desejo de pausas, de narrações planas, recompensantes,
como acontece lendo um Boaventura ou um Tomás de Aquino. Nada de tudo isso”.
I
O Prólogo da Ordinatio revela um pressuposto escotiano de base, que
praticamente o coloca, a pleno título, na aurora da Modernidade: seria mera
presunção querer abordar de uma só vez os conteúdos próprios de uma disciplina
e as questões relativas a seu método de pesquisa. Daí a razão de, no Prólogo
precisamente, Scotus tratar as questões especificamente relacionadas com o
método teológico. E o faz, adotando um percurso rigoroso e fecundo: partindo de
uma análise minuciosa e rigorosa dos termos, ele busca atingir seu real significado
e, mediante distinções sutis, indaga acerca da peculiaridade da teologia cristã.
Quanto à análise lingüística dos termos, Scotus se interessa de modo particular
pela valência semântica dos mesmos. Com rigor e minúcia, analisa termos como:
ratio, natura, opinio, scientia, argumentum, demonstratio... Todavia, cumpre
salientar uma outra particularidade do método escotiano: esta semantização se
efetiva no âmbito de uma fundamental bipolaridade, expressa numa série de pares
de termos recíprocos: ratio-fides; naturale-supernaturale; opinio-argumentum;
sapientia-scientia; persuasio-demonstratio; via-patria; viator-beatus; philosophitheologi; pro statu isto-ex natura potentiae; ordinate-absolute; potentiaomnipotentia; finitas-infinitas2.
No que se refere à discussão acerca dos aspectos mais especificamente
epistemológicos, o Doutor sutil põe questões de extrema relevância para o pensar
teológico de seu tempo e que ainda hoje gozam de uma singular atualidade. Ele
se pergunta, por exemplo, pelo estatuto epistemológico da teologia na sua
intrínseca relação com as demais disciplinas. Em traços firmes e claros, salienta a
importância de se partir da Revelação, lugar por excelência da teologia. Indaga
acerca do objeto próprio da teologia e do âmbito de aplicabilidade de seus
conhecimentos específicos. Não se furta ao debate em torno à questão, que há
mais de um século ocupava o centro das atenções dos tratados escolásticos, ut
theologia sit scientia. E o faz em meio a um confronto serrado com a concepção
aristotélica de ciência bastante em voga nos círculos universitários de então.
O confronto acirrado com o pensamento de Aristóteles, nota característica da
epistemologia escotiana, se revela particularmente condicionado pela condenação
do bispo de Paris, É. Tempier, de 7 de março de 1277. Trata-se de um marco
histórico referencial no que diz respeito às discussões acerca da epistemologia
teológica naqueles idos. Com este Sillabus, o prelado parisiense submeteu nada
menos que 219 proposições extraídas dos textos da Metafísica e da Física de
Aristóteles e de seus intérpretes e comentadores árabes e latinos ao crivo da
ortodoxia cristã3. O objetivo deste documento, cujo influxo se fez sentir muito além
2
A. Ghisalberti, “Metodologia del sapere teologico nel Prologo alla ‘Ordinatio’ di Giovanni Duns
Scoto”, in Sileo (a cura di), Via scoti, pp. 276-277.
3
Para uma visão de conjunto das 219 proposições e para a análise de cada uma delas: cf. R. Hissette,
Enquête sur les 219 articles condamnés à Paris le 7 mars 1277, Vander-Oyez, Louvain-Paris, Publ.
do âmbito específico da Universidade de Paris, era rejeitar toda e qualquer
afirmação que pudesse comprometer a onipotência de Deus. Deste modo, estas
condenações oficiais salientaram a urgência de que alguns conceitos comumente
usados em teologia fossem mais bem definidos.
Uma das maiores conseqüências desta condenação diz respeito justamente à
maneira de se compreender a onipotência divina. De simples atributo divino que
se refletiria na maravilhosa harmonia das criaturas, a onipotência divina passava a
ser compreendida agora como aquela faculdade divina que produz, sem a
presença ou a anuência de qualquer mediador, todo o produzível. Precisamente
esta concepção de onipotência divina, em seu específico e intrínseco caráter de
não demonstrabilidade racional, será defendida reiteradas vezes por Scotus. Ela
se encontra intimamente ligada a duas teses escotianas: a natureza
exclusivamente divina da theologia in se; e a infinitas como atributo peculiar da
essência divina. Ambas de uma decisiva incidência tanto para a teologia quanto
para a ética4.
O prólogo da Ordinatio possui algumas particularidades reveladoras da
singularidade da impostação teológica de Scotus. Por ocasião do Congreso
Escotístico Internacional de Oxford-Edimburg realizado em 1966, F. van
Steenberghen se perguntava: “Em que medida Scotus é um espírito criativo, um
pensador original irredutível às suas fontes? Em que medida depende, ao
contrário, de suas fontes e qual é exatamente o débito dele para com as mesmas?
[...] Um terço de século separa a morte de Tomás de Aquino e de Boaventura
(1274) da de João Duns Scotus (1308). Este breve período é talvez o mais
atraente da Idade Média para a história do pensamento, entre outros motivos
porque este encerra a solução de um enigma à primeira vista desconcertante:
mediante qual evolução doutrinal se passou das grandes sínteses elaboradas pelo
Doutor Seráfico e pelo Doutor Angélico, à síntese, tão profundamente diversa de
um e de outro, construída em alguns anos apenas pelo Doutor Sutil?”5. O autor
não esconde sua perplexidade diante do fato de que um herdeiro do pensamento
franciscano, permeado de influxos agostinianos, pudesse dar tanta importância a
Universitaires 1977; Idem, “Etienne Tempier et les menaces contre l’étique chrétienne”, Bullettin de
Philosophie Médiévale 21 (1979) 68-72; Idem, “Etienne Tempier et ses condamnations”, Recherches de
Théologie Ancienne et Médiévale 47 (1980) 231-270; Idem, “Note sur la réaction ‘antimoderniste’ d’Etienne
Tempier”, Bullettin de Philosophie Médiévale 22 (1980) 88-97. No tocante à influência e ao significado
histórico do Silabo de Tempier: cf. L. Bianchi, Il vescovo e i filosofi. La condanna parigina del 1277 e
l’evoluzione dell’aristotelismo scolastico, Lubrina, Bergamo 1990; L.J. Bataillon, “La crisi dell’università di
Parigi alla luce dei sermoni universitari”, L. Bianchi – E. Randi, Filosofi e teologi. La ricerca e
l’insegnamento nell’universitá Medievale, Lubrina, Bergamo 1989, pp. 193-208. No que concerne a Scotus e
ao escotismo: cf. C. Balic, “Il decreto del 7 marzo 1277 del vescovo di Parigi e l’origine dello scotismo”,
Tommaso d’Aquino nel settimo centenario. Atti del Congresso Internazionale (Roma-Napoli, 17/24 aprile
1974), Vol. II, Ed. Domenicane, Napoli 1976, pp. 279-285.
4
Cf. A. Ghisalberti, “Creatore e creatura in Giovanni Duns Scoto e Guglielmo di Ockham”, AA.
VV., La creazione e l’uomo. Aprocci filosofici per la teologia, Ed. Messaggero, Padova 1992, pp. 95-110.
5
F. van Steenberghen, “La philosophie à la veille de l’entrée en scène de Jean Duns Scot”, in De
doctrina J. Duns Scoti, I, Atti del Congresso Scotistico Intenazionale, Roma 1968, p. 65.
Aristóteles e, sobretudo, na versão oferecida por Avicena, quando era a versão de
Averróis a dominar o aristotelismo do século XIII. E é ainda o mesmo autor a
salientar a peculiaridade da configuração cultural que foi se constituindo na
segunda metade do século XIII: importância crescente do aristotelismo, influxos
neoplatônicos e agostinianos e as condenações de Paris e de Oxford, em março
de 1277. Ao final, conclui van Steenberghen: “É nesta atmosfera que o jovem
franciscano João Duns Scotus deu seus primeiros passos em Filosofia e em
Teologia. É nesta atmosfera que seu pensamento se formou e que ele fez suas
opções fundamentais”6.
Naquele mesmo Congresso, E. Bettoni observava que
Duns Scotus escolheu a estrada mais difícil e mais generosa: aquela de tentar
uma mediação entre as duas correntes antagonistas através de uma substanciosa
e severa revisão crítica das argumentações elaboradas por uns e por outros como
sustentação das respectivas teses. [...] Pensador robusto e de visão ampla, Scotus
se propôs conscientemente relançar o pensamento cristão, desencalhando-o “das
dificuldades” nas quais “tinha se encalhado” por aquela contraposição
excessivamente rígida entre agostinismo e aristotelismo moderado de São Tomás
na qual se dispersaram tantas energias nos últimos decênios do século XIII7.
Existiam, na verdade, três distintos modelos de razão que estabeleciam entre si
um acirrado conflito hermenêutico: o modelo aristotélico-averroísta dos Mestres
das Artes, o modelo aristotélico-tomista e o modelo boaventuriano da “razão
cristã”, ambos defendidos pelos Mestres de Teologia. Em alternativa a estes três
“modelos de razão”, Scotus teria proposto um quarto: o modelo “pro statu isto”8.
II
Na primeira questão do Prólogo, Scotus indaga acerca da necessidade, para o
intelecto humano, na atual condição, de ser sustentado por uma doutrina revelada
sobrenaturalmente. Trata-se da quaestio de methodo propriamente dita e, por isso
mesmo, se encontra intimamente relacionada com as cinco partes que compõem
o inteiro Prólogo: “Se é necessário ao homem, no presente estado, que alguma
doutrina especial seja inspirada de modo sobrenatural, a qual, a saber, não fosse
possível atingir pela luz natural do intelecto” (pars 1, q. unica, n. 1)9.
6
van Steenberghen, “La philosophie à la veille de l’entrée en scène de Jean Duns Scot”, p. 74.
7
E. Bettoni, “Duns Scoto nella Scolastica del secolo XIII”, in De doctrina J. Duns Scoti, I, Atti del
Congresso Scotistico Intenazionale, Roma 1968, pp. 102.106.
8
Cf. O. Todisco, “Duns Scoto e o pluralismo epistemológico”, in L. Sileo (a cura di), Via Scoti, pp.
121-138.
9
“Utrum homini pro statu isto sit necessarium aliquam doctrinam supernaturaliter inspirari, ad quam
videlicet non posset attingere lumine naturali intellectus”. [Os textos de Scotus, em Português, incorporados
no corpo do estudo, são extraídos de J. Duns Scotus, Prólogo da Ordinatio (tradução, introdução e notas de
Roberto Hofmeister Pich), Coleção Pensamento Franciscano V, EDIPUCRS/Editora Universitária São
Francisco, Porto Alegre/Bragança Paulista 2003. Os textos originais, em Latim, citados nas notas de rodapé,
A própria formulação da questão, com base nos termos específicos empregados,
é índice da exigência de uma maior clareza com respeito, de um lado, às formas
de conhecimento aplicadas pela teologia e, de outro, aos níveis do discurso
teológico. As formas de conhecimento dizem respeito ao âmbito das verdades
doutrinais que são passíveis de serem conhecidas e explicadas. Este âmbito pode
ser alcançado com a luz da razão ou mediante a revelação sobrenatural.
Com respeito aos níveis do discurso teológico, Scotus propõe uma primeira
distinção, apta a captar o problema na sua distinta evolução, entre a condição
atual do ser humano (pro statu isto) o estado do ser humano liberto ou em vias de
se libertar dos vínculos que atualmente condicionam sua inteligência e sua
vontade. O pro statu isto, neste caso, resulta decisivo com respeito ao nível do
saber e, por esta razão, constitui-se numa instância de método. À diferença de
Boaventura e de Tomás, Scotus não atribui ao pecado original a explicação única
do fato de que o ser humano não consiga realizar todas as virtualidades naturais
de seu intelecto nem satisfazer seu próprio desejo. Além da paena peccati
originalis também a naturalis concordia potentiarum animae in operando10
concorre para a existência deste status. A natureza humana não se submete, na
sua opinião, a uma leitura unívoca e niveladora como aquela que insiste em
interpretar tudo à luz do pecado original.
O pro statu isto se torna importante chave de leitura da presente questão, por
salientar, de forma contundente, a historicidade da condição humana. Ele é índice
de que a razão humana não é como era, nem será jamais como é. A condição
presente é precária tanto em relação à condição originária quanto em referimento
à final. A razão é autônoma sim, mas não auto-suficiente. A razão pro statu isto
não exprime, a rigor, todo o seu potencial cognoscitivo. Não faz parte da razão “ex
natura potentiae”. Para Scotus, o ser humano não deve ser posto no centro de
uma hierarquia natural: abaixo das potências angélicas e acima dos animais por
ser capaz de transcender o sensível. O ser humano, ao contrário, encontra seu
verdadeiro lugar ao situar-se no centro da história da salvação, no seio da qual ele
se descobre titular e co-responsável. Ao invés, portanto, de ser considerado
segundo os termos de natureza e segundo a lógica da necessidade, o ser humano
deve ser concebido à luz do binômio bíblico da queda e da promessa de resgate.
Também por esta razão, o ser humano se sente incapaz de realizar plenamente a
vocação à qual é destinado.
Scotus pondera que a descrição da atividade da razão feita por Aristóteles
ressente de um limite: precisamente o de ter confundido o fato com o direito, o ser
com o dever ser e, conseqüentemente, o ter reivindicado a autonomia da razão e
a índole abstracionista do processo de conhecimento. Por nada conhecer acerca
do pecado original (“nihil scivit de peccato illo”), o Estagirita interpreta uma
situação histórica em termos naturalistas e, portanto, segundo a lógica da
foram extraídos de I. Duns Scoti, Opera Omnia. I. Ordinatio. Prologus (studio et cura Commissionis
scotisticae ad fidem codicum edita, praeside P. Carolo Balic), Civitas Vaticana 1950.]
10
Cf. Ordinatio I, d. 3, q. 3, n. 187.
necessidade. Ao admitir que o ser humano não dispõe de outra via que aquela
abstrativa, Scotus salienta que esta é expressão da nossa historicidade. O
processo abstrativo resulta infinitamente distante das efetivas exigências do
espírito humano (ex natura potentiae).
Scotus conclui, portanto, afirmando que a razão filosófica é parcial e provisória
com respeito às efetivas aspirações do ser humano nas atuais condições
históricas. É esta a principal razão pela qual, consciente das implicações
gnoseológicas, Scotus abre o Prólogo da Ordinatio sustentando a necessidade,
nas atuais condições, “aliquam doctrinam supernaturaliter inspirari”. A esse
respeito, escreve O. Todisco:
Com este modelo de razão pro statu isto, Scotus provoca uma autêntica crise
epistemológica, analisando com rigor a racionalidade filosófica em relação ao
efetivo poder da razão e elaborando uma diversa racionalidade teológica. A lógica
da “ratio pro statu isto” não é a “logica fidei”, a qual é situada historicamente e
colocada em um cenário temático inédito e original. A razão é autônoma, com
estratégias argumentativas próprias, em grau de transcender o horizonte da
experiência sensível, mas ao mesmo tempo estruturalmente incapaz tanto de
contradizer quanto de fundar as superiores verdades de fé11.
Scotus afirma a radical alteridade entre os espaços do saber racional e do saber
teológico. Esta alteridade é fundada na mesma descontinuidade que existe entre
abstrato e concreto, natural e sobrenatural, graça e natureza. “Concedo que Deus
é o fim natural do homem, mas não [um fim] que deve ser naturalmente
alcançado, mas sim sobrenaturalmente. E isto prova a razão seguinte, sobre o
desejo natural, a qual concedo” (pars 1, q. unica, n. 32)12.
O limite da descrição aristotélica da natureza humana, assumida pelos mestres
das Artes, não pode ser diluído ou ignorado. O ônus do pensamento pesa com
gravidade sobre o destino do ser humano, sem exprimir, porém, suas originárias e
mais genuínas potencialidades. À luz do “status iste”, o ideal aristotélico do “bíos
theoretikós” não pode mais ser proposto como ideal da perfeita maturidade
humana. O saber racional resulta precário como precária também é a condição na
qual os seres humanos se encontram historicamente.
Scotus defende, no fundo, a pluralidade dos saberes cuja autonomia se efetiva na
crescente fidelidade de cada saber a seus próprios princípios (“iuxta propria
principia”). Em nome da afirmação da autonomia relativa dos saberes, ele
condena toda espécie de intromissão de um saber no âmbito do outro. De um
lado, ele rejeita a interpretação de Aristóteles feita pelos Mestres das Artes por
representar uma mistura de filosofia grega e cosmovisão religiosa muçulmana.
Pois, devido à interpretação religiosa de Aristóteles feita por seus intérpretes
árabes (Averróis e Avicena), o pensamento autêntico do Estagirita se encontra
11
12
Todisco, “Duns Scoto e il pluralismo epistemologico”, 126.
“Concedo Deum esse finem naturalem hominis, sed non naturaliter adipiscendum sed
supernaturaliter. Et hoc probat ratio sequens de desiderio naturali, quam concedo”.
numa situação de verdadeiro comprometimento. De outro lado, Scotus também
não aceita a utilização que alguns teólogos faziam de doutrinas filosóficas para
fundamentar suas posições teológicas. É o caso, por exemplo, do procedimento
de Henrique de Gand, teólogo de tendência agostiniana, no tocante à questão
acerca da necessidade da Revelação. Pois, em tal caso, ao utilizarem doutrinas
filosóficas que dão margem à rejeição das argumentações teológicas, os teólogos
acabam dando razão aos filósofos. Esta questão de tamanha importância com
respeito à relativa autonomia das instâncias metodológicas, não escapa à análise
do Doutor sutil13.
Em nome da auto-suficiência da razão, os Mestres das Artes rejeitavam a teologia
enquanto ciência. Esta pretensão avançada por eles se fundamenta na afirmação
de que o objeto do intelecto humano é o ente enquanto ente. “O primeiro objeto
natural do nosso intelecto é o ente enquanto ente; logo, o nosso intelecto pode
naturalmente ter um ato acerca de todo e qualquer ente” (pars 1, q. unica, n. 1)14.
Trata-se da questão da univocidade do ente ou ainda da espessura da metafísica.
Scotus não concede à metafísica o status de saber entre os demais saberes nem
de um super-saber que antecipe ou contenha, ainda que virtualmente, todos os
outros saberes. Enquanto lugar de inteligibilidade do real, a metafísica é um saber
pressuposto a todas as ciências, uma vez que, na opinião de Scotus, os termos
específicos das ciências não são plenamente disponíveis ao conhecimento
humano, nem seus princípios completamente entendidos sem a metafísica. A
rigor, a metafísica não se ocupa nem do ente criado, nem do ente in-criado. E isto
justamente por ser lugar das condições transcendentais dos entes.
Scotus oferece alguns reparos com relação à interpretação que Averróis tinha
oferecido às obras de Aristóteles e que tinha inspirado as opções filosóficas
fundamentais dos Mestres das Artes. Critica de modo contundente o filósofo árabe
por ter considerado Deus como objeto da metafísica. Assim fazendo, ele acabou,
de um lado, reduzindo a teologia à condição de uma simples fábula e, de outro,
tratando a metafísica como um apêndice agregado à física. Nesse contexto, Deus
é apresentado como causa primeira, garante e sustentáculo do inteiro edifício do
mundo físico. Atribui-se a Deus o fato de ser o princípio e o fim da ordem
harmoniosa do universo. Insiste Scotus em afirmar que os mestres das Artes
acabaram concebendo Deus como “natura”, cuja ação, por ser “natural”, obedece
ao ritmo da própria necessidade, justamente por não terem concebido como objeto
próprio da teologia o ser enquanto infinito. Por esta razão, o teólogo deverá
sempre recordar ao filósofo que ele se confunde seja quando alarga seu objeto às
13
Cf. L. Iammarrone, Giovanni Duns Scoto metafisico e teólogo. Le tematiche fondamentali della
sua Filosofia e Teologia, Miscellanea Francescana, Roma 1999, pp. 5-20; J. Andonegui Gurruchaga, Teologia
como ciência práctica em Escoto (Pars Dissertationis), Ed. Antonianum, Roma 1985, pp. 21ss.
14
“Primum obiectum intellectus nostri est ens in quantum ens; ergo intellectus noster potest
naturaliter habere actum circa quodcumque ens”.
dimensões do ser infinito seja quando o reduz às dimensões do primeiro motor15.
É sobre esta base que o doutor sutil procede, então, à des-fisicização da
metafísica mediante a des-teologização da metafísica. E concebe esta dúplice
operação como pressuposto imprescindível à des-metafisização da teologia.
É verdade que a razão é ordenada à totalidade do real, mas é também verdade
que, na atual condição (pro statu isto), “naturaliter et ex causis naturalibus” não
pode colhê-lo na sua densidade ontológica. Ela revela, ao contrário, uma
congênita aspiração a ser transformada e, portanto, inserida numa condição que
transcende aquela atual sem, no entanto, se contrapor nem se sobrepor a ela. “O
homem naturalmente deseja aquele fim que tu chamas de sobrenatural; portanto,
ele está naturalmente ordenado àquele fim” (pars 1, q. unica, n. 23)16. A natureza
mesma do ser humano revela uma interpelação de fundo na direção de um ulterior
cumprimento não alcançável naturalmente. A resposta a este interrogativo último
torna-se objeto de discussão criando as condições para a singular relevância da
controvérsia entre filósofos e teólogos (controversia inter philosophos et
theologos), formulada nos seguintes termos:
É vista nesta questão, a controvérsia entre filósofos e teólogos. Os filósofos
defendem a perfeição da natureza e negam a perfeição sobrenatural; os teólogos,
entretanto, reconhecem a deficiência da natureza, a necessidade da graça e a
perfeição sobrenatural (pars 1, q. unica, n. 5)17.
A controversia inter philosophos et theologos, nota característica do Prólogo da
Ordinatio, constitui o diferencial da abordagem escotiana. Ela é índice da
fidelidade de Scotus a seu tempo e, conseqüentemente, responsável em grande
parte pela originalidade do pensamento do ilustre franciscano escocês. A
abordagem desta controvérsia, como nota É. Gilson, é de extrema importância e,
por isso mesmo, deve ser corretamente interpretada18. Fala-se explicitamente de
controvérsia entre filósofos e teólogos e não numa oposição entre filosofia e
teologia. O que está em jogo, portanto, não é nem a contraposição entre dois
princípios incompatíveis nem o desacordo entre duas posições irredutíveis. Tratase de um debate entre dois grupos de professores: os Mestres das Artes e os
Mestres de Teologia.
O que Scotus faz é refletir sobre as incidências no âmbito da epistemologia
teológica de um conflito histórico que se estava efetuando naqueles idos. Os
15
É. Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”,
Antonianum 28 (1953) 15-16.
16
“Homo naturaliter appetite finem illum quem dicis supernaturalem, igitur ad illum finem
naturaliter ordinatur”.
17
“In ista quaestione, videtur controversia inter philosophos et theologos. Et tenent philosophi
perfectionem naturae, et negant perfectionem supernaturalem; theologi vero cognoscunt defectum naturae et
necessitatem gratiae et perfectionem supernaturalem”.
18
Cf. Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 7-10.
Mestres das Artes eram os professores daquelas ciências consideradas
propedêuticas à teologia. Eles se dedicavam à tarefa de preparar bem os
estudantes que eram os eventuais candidatos ao estudo da teologia. Eram
mestres na arte da Gramática (ler e interpretar bem), da Retórica (falar bem) e da
Dialética (convencer bem). Ler e interpretar bem, falar bem e saber persuadir
eram requisitos fundamentais para o estudo da teologia, enquanto saber que,
sobretudo, preparava profissionais da pregação cristã.
Com o passar do tempo, estes profissionais e mestres das Artes foram se
organizando e começaram a reivindicar a própria autonomia. Não queriam mais se
sujeitar à condição de mestres de um saber meramente instrumental à teologia,
considerada regina scientiarum. Para tanto, muito contribuiu o pensamento de
Aristóteles, que foi se tornando cada vez mais acessível através, sobretudo, dos
comentários de Averróis e de Avicena. Os textos do Estagirita ofereciam a estes
mestres um excelente instrumental apto a compreender todo o scibile na sua
complexidade. Deste modo, em nome da autonomia do saber puramente racional,
a tradição cristã vai sendo paulatinamente abandonada19.
Na condução do debate entre os dois grupos de professores, Scotus testemunha
uma admirável honestidade intelectual. Em primeiro lugar, ele se preocupa em não
atribuir aos filósofos, seus interlocutores, nada além do que eles tivessem
formalmente ensinado. Em segundo lugar, o Doutor sutil se posiciona no interior
do debate como teólogo e, desde o início, argumenta como teólogo, vale dizer, a
partir das premissas de fé: “Donde estas razões aqui formuladas contra ele
[Aristóteles] têm uma outra premissa, crida ou provada a partir do que é crido; por
isso mesmo, não são senão persuasões teológicas, a partir do que é crido para o
que é crido” (pars 1, q. unica, n. 12)20. Não que ele se oponha ao conhecimento
racional. Ao contrário, ele até utiliza a técnica dos filósofos, colocando as
demonstrações da razão a serviço das persuasões da fé. E isto porque
firmemente convencido de que o teólogo, além das fontes do filósofo, dispõe ainda
da certeza proveniente da fé.
Que a controvérsia não seja um conflito necessário entre filosofia e teologia,
reforça ainda mais a urgência de se indagar acerca do porquê da mesma. Como
autêntico teólogo, mais do que pinçar possíveis erros de seus interlocutores, o
interesse de Scotus é, ao contrário, desentranhar e explicitar o princípio sujacente
à posição defendida por eles. Na sua opinião, eles confundiram a natureza
humana pro statu isto, tomando-a pura e simplesmente por seu estado natural. A
crítica que Scotus move aos filósofos, seus interlocutores, é a de terem sido
19
No tocante à evolução do pensamento ocidental entre fins do século XII e princípio do século XIII,
seja-nos permitido remeter ao que escrevemos em “Um novo método em teologia: a ‘Escola Franciscana’ ”, in
S. Costa – A.C.L.F. Silva – L.R. Silva, A Tradição Monástica e o Franciscanismo. Atas do Ciclo realizado no
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, entre os dias 7 e 11 de outubro de 2002, Rio de Janeiro
2003, pp. 39-48; aqui 40-42.
20
“Unde istae rationes hic factae contra impsum alteram praemissam habent creditam vel probatam
ex credito; ideo non sunt nisi persuasiones theologicae, ex creditis ad creditum”.
vítimas de um dúplice equívoco: não terem tomado consciência que o intelecto
humano não estava mais na sua condição originária e que a graça pode elevar o
ser humano a uma perfeição ainda maior. Ambas as teses estão intimamente
ligadas por serem, na verdade, reciprocamente complementares.
Ao sustentar a tese do pro statu isto, Scotus não pretende diminuir a natureza
humana, mas, ao contrário, entende restituí-la na sua grandeza maior, que é a de
ser o que ela é em si, não o que o pecado e demais limites fizeram dela. Para que
o ser humano seja capaz da perfeição sobrenatural prometida por Deus, faz-se
necessário, na opinião de Scotus, que sua natureza seja outra, em todo caso,
mais nobre que aquela que lhe é atribuída pelos filósofos. Adverte-se uma
confirmação mútua entre a doutrina acerca da finalidade última do ser humano e a
doutrina do pecado original. Neste contexto, o doutor sutil insere no seu discurso o
conceito de sobrenatural. Destinando o ser humano a um fim sobrenatural, Deus
deve tê-lo criado naturalmente capaz deste mesmo fim.
Diminuir a natureza é, paradoxalmente falando, considerá-la à maneira dos
filósofos: tomar sua condição presente por sua natureza mais própria, porque
originária, atribuindo ao intelecto a apreensão única e exclusiva dos seres
sensíveis mediante o processo de abstração. São os teólogos, na verdade, a
exaltar ao máximo a natureza humana na medida em que descobrem a perfeição
da natureza intelectual que, em meio às imperfeições próprias do seu estado
atual, é capaz de uma finalidade sobrenatural, concebida como oferta gratuita de
Deus.
A posição de Scotus de que a aspiração do ser humano a um fim sobrenatural é
estabelecida naturalmente necessita de uma maior elucidação para que se evite
todo e qualquer equívoco na sua interpretação. Este “naturaliter appetere” um fim
sobrenatural, de um lado, está ligado à harmonização entre os dois níveis. Pois
sobrenatural e natural não se contrapõem nem se anulam. Também não se
comportam entre si como instâncias paralelas nem sobrepostas. Na verdade,
enquanto intimamente inter-relacionados, sobrenatural e natural se potenciam
reciprocamente. De outro lado, o “appetitus naturalis” não compromete, nem
prejudica, a gratuidade da livre manifestação do supernaturalis.
Aqui, Scotus opera uma rigorosa análise semântica dos termos, com o objetivo de
precisar bem o caráter sobrenatural da Revelação, mediante uma sutil distinção.
Em primeiro lugar, a Revelação é sobrenatural porque se refere a um agente
sobrenatural que transmite uma série de conteúdos, cujo conhecimento resulta
indispensável ao ser humano, e que não lhe seriam acessíveis mediante outras
vias que não a da Revelação sobrenatural. Não se trata, neste caso, de uma
violência infligida à natureza humana pelo sobrenatural. Pois este não lhe
comunica algo de exterior ou de acrescentado, como uma espécie de apêndice.
Não se está diante de um desnível de inclinação formal, porque “o intelecto
possível é naturalmente aperfeiçoado por todo e qualquer conhecimento e está
naturalmente inclinado a todo e qualquer conhecimento” (pars 1, q. unica, n. 60)21.
O desnível existente se refere, outrossim, à natureza do intelecto que produz o
conhecimento revelado no sujeito que recebe. Este conhecimento revelado é
sobrenatural enquanto “é gerado por algum agente que não é apto a mover
naturalmente o intelecto possível a tal conhecimento” (pars 1, q. unica, n. 60)22.
O caráter sobrenatural da Revelação se dá, ainda, com respeito aos conteúdos
relativos ao objeto conhecido. Scotus traz como exemplo a proposição “Deus est
trinus”. Proveniente da Revelação, esta proposição se refere à essência divina
tomada na sua máxima extensão e na sua irredutível peculiaridade. E, enquanto
tal, não pode ser conhecida pelo intelecto humano. Por isso, o Revelador substitui
a essência divina pela enunciação (complexum) que resulta, portanto, num
conhecimento imperfeito dessa mesma essência, objeto da Revelação. Por esta
razão, a enunciação é um conhecimento obscuro e parcial.
Emerge, deste modo, o caráter intrinsecamente processual do conhecimento
humano acerca das verdades sobrenaturais. A constatação de que tais verdades
são inesgotáveis se deve, além da vontade do Revelador, ao modo próprio de
conhecer do ser humano caracterizado pela incapacidade sua de possuir um
conhecimento evidente das verdades reveladas. Em tal caso, lhe é consentido de
poder dar seu assentimento ao agente sobrenatural.
Além do mais, esta sutil distinção entre natural e sobrenatural assume uma
particular eficácia operativa no âmbito da epistemologia teológica. O caráter
sobrenatural da Revelação não é concebido pelo Doutor sutil como um evento que
faça violência à natureza. Ao contrário, ele a eleva à sua perfeição máxima, na
medida em que possibilita que a natureza se autotranscenda. Violência à natureza
seria confinar a potência intelectiva humana dentro dos angustos limites de um
conhecimento direcionado unicamente às essências abstratas e aos entes
materiais. Ao defender a capacidade do intelecto de ser movido a conhecer a
totalidade dos entes, do “ens inquantum ens”, Scotus potencia ao máximo as
virtualidades intrínsecas ao intelecto humano.
O intelecto humano não se sente constrangido a renunciar às suas prerrogativas
naturais, uma vez que a cooperação do agente sobrenatural não se dá mediante
uma intervenção violenta do Revelador. Scotus responde à objeção de uma
eventual intervenção exterior por parte do Revelador, resgatando a doutrina da
“potentia oboedientialis”. Ele a concebe como aquela intrínseca disposição a
tornar-se o que Deus eventualmente poderá querer que esta se torne. Trata-se, na
verdade, de uma disposição passiva que abre espaço e, neste sentido, torna
possível uma espécie de ampliação das faculdades cognoscitivas humanas até à
21
“intellectus possibilis quacumque cognitione naturaliter perficitur et ad quamcumque cognitionem
naturaliter inclinatur”.
22
“generator ab aliquo agente quod non est natum movere intellectum possibilem ad talem
congnitionem naturaliter”.
visão beatífica. E tudo isso é experimentado como expressão da incomensurável
gratuidade do dom de Deus.
Não é, portanto, inconveniente que a potência seja naturalmente ordenada a um
objeto que não pode naturalmente atingir a partir de causas naturais, assim como
[não é inconveniente que] toda e qualquer [potência] a partir de si somente está
ordenada [a um ato] e, contudo, sozinha não pode atingi-lo (pars 1, q. unica, n.
92)23.
Acrescentemos, ainda, uma ulterior precisação tipicamente escotiana. O
conhecimento especulativo do metafísico verte sobre a totalidade da realidade
enquanto esta é passível de ser conhecida (scibile). Pois, trata-se, no fundo, de
um conhecimento abstrativo que atinge o ser apenas numa acepção
generalíssima. A razão pode, no máximo, alcançar um “conceito confuso” de Deus
como ser supremo. Nunca chegará, porém, a conhecer sua essência. O ser divino,
na sua peculiaridade pessoal, permanece objeto específico da teologia24. Pois, na
verdade, a essência mesma de Deus só poderá ser alcançada e expressa na fé,
na qual Deus mesmo se anuncia em liberdade.
Na segunda parte do Prólogo, Scotus indaga acerca da suficiência da Sagrada
Escritura no tocante ao labor teológico: “Pergunta-se se o conhecimento
sobrenatural necessário ao peregrino é suficientemente transmitido na Escritura
sagrada” (pars 2, q. unica, n. 95)25. Em seguida, ele propõe dez argumentos em
prol da credibilidade da Revelação. Estas motivações por ele aduzidas assumem
um visível caráter apologético e, por esta razão, devem ser concebidos numa
dúplice vertente: confutação dos erros e convencimento à fé. Os dez argumentos
aduzidos vertem acerca de: prenunciação profética, concordância das Escrituras,
autoridade dos escritores, diligência dos recebedores, racionalidade dos
conteúdos, irracionalidade dos erros, estabilidade da Igreja, limpidez dos milagres,
testemunhos dos não-fiéis e eficácia das promessas.
O que salta aos olhos ao longo desta argumentação escotiana acerca da
credibilidade da proposta de salvação contida nas Escrituras sagradas é sua
grande sensibilidade no tocante à questão hermenêutica26. Isto naturalmente,
segundo a consciência possível e os critérios que a exegese bíblica da época lhe
consentiam. Todavia, em Scotus transparece já a consciência da
23
“Non est igitur inconveniens potentiam, esse naturaliter ordinatam ad obiectum ad quod on potest
naturaliter ex causis naturalibus attingere, sicut quaelibet ex se sola ordinatur et tamen non potest sola
attingere”.
24
Cf. Ordinatio, Prologus, pars 1, q. unica, nn. 79-82.
"Quaeritur utrum cognitio supernaturalis necessaria viatori sit sufficienter tradita in sacra
Scriptura".
25
26
Cf. A. Ghisalberti, “Giovanni Duns Scoto e la scuola scotista”, in G. D’Onofrio (direzione di),
Storia della Teologia nel Medioevo. III. La teologia delle scuole, Piemme, Casale Monferrato 1996, p. 340344.
imprescindibilidade da interpretação dos textos sacros no que concerne à
elaboração do discurso teológico.
III
Do ponto de vista metodológico, existe uma relação estreita entre a discussão
acerca do objeto da teologia e a questão da cientificidade de seu saber. O que
torna um saber rigorosamente cientifico é a proporcionalidade entre o objeto a ser
indagado e o sujeito que conhece. A ciência se dá, portanto, quando são
satisfeitas as exigências de clareza e de exaustividade provenientes do intelecto
humano. A partir deste pressuposto, o Doutor sutil opera uma ulterior distinção
entre theologia in se e theologia nostra. O objeto próprio da teologia seria,
rigorosamente falando, a essência divina propriamente dita, vale dizer, a “deitas
sub ratione deitatis” e, somente neste caso, constituir-se-ia em objeto
proporcionado ao intelecto divino. A perfeita mediação entre sujeito que conhece e
objeto a ser conhecido só será, portanto, alcançada através do conhecimento do
intelecto divino, único lugar onde se dá a theologia in se. Conseqüentemente, é
deste conhecimento que está em Deus (theologia in se) que procede a nossa
teologia (theologia nostra).
Scotus é claro ao afirmar que objeto da teologia divina é Deus. Quanto a nós, não
podemos possuir um conhecimento teológico igual ao de Deus. Por isso mesmo,
devemos nos satisfazer com a nossa teologia: o conhecimento que nossa
inteligência pode alcançar acerca de Deus (“secundum capacitatem intellectus
nostri”)27. Ele propõe um exemplo que ajuda a compreender esta distinção. Para
alguém que conheça seus princípios, a geometria é uma ciência. Para um outro
que não os conheça, este saber não será ciência, mas uma fides, um fiar-se do
saber, da ciência de um outro acerca da geometria. Deste modo, um fiar-se deste
outro que lhe revela, permite-lhe conhecer a geometria. Processo idêntico se
verifica no ser humano viator, que conhece o saber teológico acerca de Deus,
fiando-se daquilo que o próprio Deus revela de si. Está instituído assim o primado
da Revelação em âmbito teológico.
A nossa teologia também tem por objeto primeiro Deus. No entanto, como para
nós Ele não é uma realidade evidente e imediada (“sed quia illud non est nobis
evidens”), também não pode ser imediatamente conhecido por nós (“immo non est
nobis notum”). Recorda Scotus que somente Deus é conhecido por si mesmo de
maneira totalmente natural e necessária. Objeto primeiro da teologia nossa é,
segundo Scotus, o Ens infinitum. Este é o conceito mais perfeito que, mediante
nossa capacidade intelectiva, podemos alcançar em relação ao objeto primeiro da
teologia. “Este primeiro [objeto] é o ente infinito, porque este é o conceito mais
perfeito que podemos ter daquele que é em si o primeiro sujeito” (pars 3, q. 3, n.
168)28.
27
Cf. Ordinatio, Prologus, pars 3, q. 3, n. 168.
28
“Illud primum est Ens infinitum, quia iste est conceptus quem possumus habere de illo quod est in
Também com relação à inclusão de verdades contingentes na nossa teologia,
Scotus assevera que o objeto primeiro da theologia de contingentibus é a essência
divina. Para Deus e para os bem-aventurados a essência divina, enquanto objeto
primeiro da teologia divina, é uma visão imediata. Neste sentido, ele discorda de
Boaventura e também de Roberto Grossateste para os quais Cristo é o “primum
subiectum theologiae contingentis”. Scotus é da opinião que, por pressuporem a
doutrina trinitária, a pessoa e a obra de Jesus não podem ser objeto primeiro da
teologia. O mistério da Trindade santíssima constitui um objeto mais amplo e
pressupõe a realidade de Cristo. A nossa teologia não consistirá, em primeiro
lugar, num discurso “de Christo”, mas, sobretudo, “de Deo ut communis est tribus
personis”29.
Esta distinção entre o sujeito da teologia e seu objeto constitui uma das notas
características da epistemologia escotiana. Na teologia divina e na teologia dos
bem-aventurados, sujeito e objeto coincidem, mas na nossa teologia, não. E isto
porque, na condição “pro statu isto” direcionada à inteligibilidade em geral, faltanos a intuição da essência divina; conseqüentemente, o objeto da teologia será
forçosamente um conceito abstrato que substitua a intuição divina. Trata-se de
uma exigência intrínseca ao caráter unívoco da teologia escotiana. Enquanto
unívoca, nossa teologia deve se dar o objeto próprio que seja o substituto
conceitual, o mais perfeito possível, da intuição da essência divina que nos falta.
Duas são as questões derivadas que, segundo Gilson, merecem nossa particular
atenção: o lugar da teologia e seu objeto específico30.
Scotus situa a nossa teologia acima da metafísica e abaixo das Escrituras
sagradas, da teologia dos bem-aventurados e da teologia divina. Este específico
lugar implica em limites, embora estes mesmos limites lhe garantam um objeto
próprio e, conseqüentemente, a possibilidade de obter dele um conhecimento
positivo. Neste sentido, a teologia de Scotus constitui uma reação à teologia
tomista da analogia31.
Scotus põe l’ens infinitum como objeto da nossa teologia, no sentido que tudo nela
se refere a ele. Não que a nossa teologia possa se deduzir desta noção. Gilson
considera o n. 168 do Prólogo da Ordinatio uma autêntica chave de volta do inteiro
edifício teológico construído pelo doutor sutil, atestando quanto segue:
Nada de original, para um teólogo da Idade Média, ensinar que Deus é infinito,
mas enquanto atribui à nossa teologia o ens infinitum por objeto, Duns Scotus
parece ser um caso único. [...] o mais importante é que o mesmo teólogo que
centralizou sua doutrina na noção de ser infinito tenha ao mesmo tempo querido
assegurar-nos um conhecimento positivo. De qualquer modo, podemos estar
se primum subiectum”.
29
Cf. Ordinatio, Prologus, pars 3, q. 3, n. 176.
30
Cf. Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 11-13.
31
Cf. Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 11.
certos de tirar do eixo a teologia de Duns Scotus, cada vez que, por uma razão
qualquer, a organizarmos em torno de outra coisa que não seja o ser que tenha a
infinitude por singularidade. Este ser é Deus, mas o é somente na medida em que
o modo da infinitude o singulariza32.
Neste sentido, resulta decisivo o seguinte texto de Scotus:
porque, segundo a sua razão própria, parece ser mais atual em si aquilo ao qual
mais repugna a comunicabilidade a muitos, para fora; mas, à essência de si
mesma repugna a comunicabilidade a muitos, para fora, e a nenhuma propriedade
atributiva, a não ser na medida em que é desta essência, ou idêntica a esta
essência enquanto infinita (pars 3, q. 3, n. 163)33.
O Deus da revelação é singularizado mediante o modo de infinitude. Só falamos
de Deus enquanto infinito. Ele é caracterizado pela infinitude. Buscando
determinar exatamente a relação entre a “essentia” e a ”infinitas” divinas, Scotus
concebe esta última não propriamente como um atributo do ser infinito, mas como
um modo do ser divino. Em Scotus, percebe-se que a essência divina tende a ser
absorvida na infinitas, quase como se tivéssemos que dizer não que o ser de Deus
é infinito, mas, ao contrário, que Deus é a própria infinitude. “Toda a teologia do
mestre – escreve Gilson – sugere que o Deus do qual ele fala é menos um ser
infinito do que o infinito do ser. O Prólogo da Ordinatio, que introduz
sucessivamente as noções fundamentais, é, portanto, outra coisa que o pórtico
deste vasto edifício. Ele não o precede, ele o funda, e é um erro fatal, sob o
pretexto de apresentar Duns Scotus sob uma ordem sistemática, de redistribuir as
matérias do Prólogo em capítulos ulteriores onde elas estariam mais bem
localizadas. Duns Scotus introduziu estas noções no momento e no lugar que
convinha a seu desígnio: é verdadeiramente pelo Prólogo da Ordinatio, na ordem
mesma em que ele foi composto, que o estudo da teologia do mestre deve
começar”34.
Todas estas pontualizações e distinções de Scotus são, na verdade, índice do seu
rigor ao abordar estas questões relativas à epistemologia teológica. Scotus
conclui, afirmando o singular valor das Escrituras sagradas no processo de
constituição da nossa teologia e também da teologia dos bem-aventurados. O fim
e o limite delas reside na própria vontade de Deus que se revela e tal revelação se
dá mediante as Sagradas Escrituras. “A nossa teologia, portanto, não trata de fato
senão destes [conhecíveis] que estão contidos na Escritura e destes que podem
ser evocados a partir deles” (pars 3, q. 3, n. 204)35.
32
Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 12.
33
“Illud secundum suam rationem propriam videtur esse actualius in se cui magis repugnat
communicabilitas ad plura ad extra; sed essentiae de se repugnat communicabilitas ad plura ad extra, et nulli
proprietati attributali nisi quatenus est istius essentiae, vel idem isti essentiae in quantum infinitae”.
34
35
Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 13.
“Igitur theologia nostra de facto non est nisi de his quae continentur in Scriptura, et de his quae
possunt elicit ex eis”.
IV
Em seguida, Scotus põe a questão da cientificidade da teologia, submetendo-a ao
crivo das quatro condições requeridas por Aristóteles nos seus Analíticos
Posteriores: que seja um conhecimento certo, sem engano nem dúvida; que se
refira a um objeto necessário, não fortuito ou contingente; que seja produzido por
uma causa evidente ao nosso intelecto; que seja aplicado ao conhecido mediante
silogismo ou mediante discurso silogístico36. No que se refere às três primeiras
condições também a teologia poderia ser arrolada entre as demais ciências. Não
podemos dizer o mesmo no tocante ao último requisito. Devido ao fato de não se
admitir em Deus qualquer variação ou incremento de perfeição no conhecimento é
que seria excluída do discurso teológico toda espécie de argumentação silogística
que pudesse dar a idéia ou de um progresso no saber ou de uma passagem da
potência ao ato no entendimento divino.
Surge, ademais, uma nova dificuldade. Não é dito que todas as verdades contidas
na teologia sejam necessárias. Também existem verdades contingentes que
estariam incluídas, sobretudo, na theologia nostra uma vez que todos os artigos
de fé acerca da encarnação, por exemplo, se referem a dados históricos e,
portanto, são contingentes. Mas, as verdades contingentes estão também
presentes na teologia dos bem-aventurados, mais especificamente naqueles
conhecimentos que se referem às relações divinas ad extra. E como já tivemos
ocasião de assinalar, as verdades contingentes contrastam, segundo Aristóteles,
com o caráter de necessidade do objeto científico. Estariam assim solapadas as
bases que justificam a cientificidade da teologia?
Demonstrando uma vez mais ser possuidor de um raciocínio deveras sutil, Scotus
tenta solucionar este impasse mediante uma nova distinção, desta vez no âmbito
da theologia nostra, entre theologia necessaria e theologia de contingentibus. Um
ser cuja singularidade consiste na própria infinitude não é necessário senão para
consigo mesmo; “ad extra” ele é livre. Esta contingência não pertence ao ser
enquanto ser, mas ao ser enquanto infinito.
Digo que a teologia não contém somente [verdades] necessárias, mas também
contingentes. E isto fica evidente, porque todas as verdades sobre Deus, seja
como trino, seja sobre alguma pessoa divina, nas quais ele é comparado para fora,
são contingentes, como [os enunciados] que Deus cria, que o Filho se encarnou, e
outros semelhantes. Todas as verdades sobre Deus, porém, como trino ou como
uma pessoa determinada são [verdades] teológicas, porque são concernentes a
nenhuma ciência natural; portanto, as primeiras partes integrais da teologia são
duas, a saber, as verdades necessárias e as contingentes (pars 3, q. 3, n. 150).
Scotus recorda que pode se dar um conhecimento sobre um objeto necessário
que seja, por sua vez, intrinsecamente contingente e, por isso, será relegado ao
36
“quod sit cognitio certa, absque deceptione et dubitatione: secundo, quod sit de cognito necessario;
tertio, quod sit causata a causa evidente intellectui; quarto, quod sit applicata ad cognitum per syllogismum
vel discursum syllogisticum”.
esquecimento. Em contraposição, pode haver um conhecimento certo e evidente
e, portanto, perene acerca de algo contingente. Neste último caso, o
conhecimento resulta, do ponto de vista formal, mais perfeito que no primeiro
caso, onde o conhecimento produzido era sobre um objeto necessário. A
peculiaridade do conhecimento teológico se encontra mais nesta segunda via.
Embora discorra acerca de verdades contingentes, a teologia obedece às
condições de um conhecimento certo, evidente e perene.
Mas o contingente, enquanto diz respeito à teologia, é apto a ter um conhecimento
certo e evidente e, no que concerne à parte da evidência, perpétuo. Isto fica
evidente, porque todas as [verdades] teológicas contingentes são aptas a serem
vistas no primeiro objeto teológico e, no mesmo, é apta a ser vista a conjunção
daquelas verdades contingentes (pars 4, qq. 1 e 2, n. 211)37.
Embora Scotus tenha se prodigado em desentranhar a peculiaridade do método
empregado pela teologia, suas conclusões a respeito não parecem tão resolutivas.
É por esta razão que ele prefere justificar a cientificidade da teologia recorrendo a
uma outra concepção de ciência, oferecida pelo mesmo Aristóteles na sua Ética a
Nicômaco. Ali ciência é contraposta a opinião (dóxa). A teologia se constituiria,
então, mediante um procedimento que, mesmo incluindo verdades contingentes, é
capaz de alcançar o verdadeiro de modo determinado através de conhecimento
certo, evidente e perene. Porque, na verdade, somente a teologia conhece o
contingente mediante sua inteligibilidade própria de contingente, na medida em
que o conhece na sua intrínseca relação a seu objeto que é o ser infinito e,
portanto, livre38.
A distinção entre teologia divina e nossa teologia foi determinante para que Scotus
pudesse justificar o caráter científico da teologia. Por se distinguir do saber das
demais ciências por excesso e não por defeito, a teologia seria mais bem
caracterizada por sabedoria (“magis proprie potest dici quod theologia est
sapientia”)39. Percebe-se nesse procedimento de Scotus a superação daquela
atitude comum a praticamente todos os mestres de teologia do século XIII com
respeito à epistemologia teológica.
Na segunda questão da quarta parte do Prólogo, Scotus se pergunta pela
especificidade da relação da teologia para com as demais ciências, numa explícita
referência à doutrina da subalternação proposta por Tomás de Aquino e Henrique
de Gand40. O sistema tomista da subalternação dos saberes se fundamenta sobre
37
“Sed contingentia ut pertinent ad theologiam nata sunt habere cognitionem certam et evidentem et,
quantum est ex parte evidentiae, perpetuam. Hoc patet, quia omnia contingentia theologica nata sunt videri in
primo obiecto theologico, et in eodem nata est videri coniunctio illarum veritatum contingentium”.
38
Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 14.
39
Ordinatio, Prologus, pars 4, q. 1, n. 213.
40
Tomás de Aquino, Summa theologiae, I, 1, 3; Henrique de Gand, Summa quaestionum
ordinariarum, a. 7, q. 5.
a convicção de que a razão natural é capaz não só de alcançar as verdades
naturais contidas na Revelação. Mas, se sustentada e potenciada pela fé, ela
pode chegar a penetrar no âmbito mesmo das verdades reveladas, e produzir um
saber segundo os cânones da ciência aristotélica. Sob este pressuposto, a
teologia não só representa o aperfeiçoamento das demais ciências, mas ela se
constitui propriamente em autêntico saber, na medida em que se caracteriza como
verdadeira “scientia conclusionum”: suas conclusões provêm dos artigos de fé,
considerados como seus primeiros princípios.
Não existe, portanto, uma fratura entre conhecimento racional e ciência das coisas
divinas41. Embora, “in rebus divinis deficiens est”42, a razão está à altura de
reconduzir a totalidade do saber a uma unidade fundamental. A unidade da
verdade e a unidade do saber constituem uma única realidade, pois se a verdade
é uma, também os saberes o são ou, ao menos, deveriam ser. Desse modo, “cum
gratia non tollat naturam, sed perficiat, oportet quod naturalis ratio subserviat
fidei”43. Estão postas assim as bases para a justificação da teologia enquanto
saber que, subalternando a si os demais saberes, não se deixa, ao contrário,
subalternar por nenhum deles.
Com razão, referindo-se à posição de Scotus com relação a esta específica
questão, Gilson afirma ter ele interrompido a lua de mel entre filosofia e teologia44.
Ele, de fato, problematiza a subordinação tomista dos saberes. Se a proposta de
Tomás com relação as distintos saberes é subordiná-los segundo uma rígida
hierarquia que vai do menos ao mais, e que culmina na teologia, a tese de Scotus
resulta diametralmente oposta vindo a constituir-se numa posição autenticamente
pluralista e, neste sentido, radicalmente alternativa.
Não existe, para Scotus, uma continuidade entre a “logica rerum” e a “logica fidei”.
E é justamente esta descontinuidade que funda a irredutível alteridade entre
filosofia e teologia. As relações entre razão e fé não se dão segundo o modelo de
uma complementaridade linear: de um lado, a razão é o pressuposto necessário
da fé e, por isso, a prepara, e, de outro, a fé pressupõe a razão e, portanto, a
completa. O Deus da Revelação, professado pelos teólogos, descortina um
41
Escreve Tomás, no seu De veritate, q. 14, a. 9, ad 3: “Ille qui habet scientiam subalternatam non
perfecte attingit ad rationem sciendi, nisi in quantum eius cognitio continuatur quodammodo cum cognitione
eius qui habet scientiam subalternantem” . Colocamos em itálico o verbo continuatur pois, na nossa opinião,
na medida em que ele alude ao potenciamento das faculdades humanas por parte da fé e da teologia, ele
exprime o diferencial desta proposta tomista.
42
Tomás de Aquino, Contra Gentiles I, c. 2.
43
Tomás de Aquino, Summa theologiae, I, q. 1, a. 8, ad 2.
44
Escreve É. Gilson, no seu La philosophie au Moyen Âge, deuxième édition, Paris 1962, pp. 601602: “Após 1277, o andamento do pensamento medieval na sua complexidade se encontra mudado. Após
uma breve lua de mel, teologia e filosofia se dão conta que o seu matrimônio tinha sido um erro. Aguardando
a separação física que não demorará muito, procede-se à separação dos bens. Cada uma se reapropria de seus
problemas e impede a outra de dar importância a isso”.
cenário novo que coloca em crise o horizonte mesmo da razão. Neste sentido, tem
razão Gilson ao afirmar que, segundo o doutor sutil, “na sua essência mesma, vale
dizer, como intelletctus fidei, ela [a teologia] é de uma outra ordem que não a
ciência, porque seu objeto não é geral e que, a título de causa livre, Deus é
princípio, não conclusão”45.
Andando à raiz da questão, Scotus denuncia o caráter de necessidade presente
na posição defendida por Tomás com respeito à relação entre a potência criadora
de Deus e o mundo das criaturas. Aqui, precisamente, encontramo-nos no
coração desta oposição entre a perspectiva hierárquica de Tomás e a pluralista de
Scotus. Ambos são concordes na afirmação da absoluta transcendência de Deus
com respeito às criaturas. O dissenso entre eles reside propriamente na
demarcação do espaço no interior do qual esta mesma transcendência é colocada
e salvaguardada. A afirmação tomista da centralidade da essência divina não
possibilita, na opinião de Scotus, a emergência da novidade do mundo ideal e,
portanto, não afirma a originalidade das criaturas singulares. De fato, Tomás
afirma a unidade fundamental entre o projeto ideal que a potência criadora de
Deus traduz em ato e o conhecimento que Deus tem de sua própria essência
enquanto conhecida.
Para Tomás, portanto, a contingência diz respeito unicamente à tradução em ato
das idéias divinas e não, por exemplo, ao próprio mundo ideal que compartilha a
imutabilidade e a eternidade, próprias da essência divina46. A este respeito,
escreve O. Todisco: “Ora, que as idéias sejam ‘racionais’ não quer dizer que não
sejam ou não possam ser fundamentalmente contingentes. O problema não se
refere à racionalidade da trama ideal, mas sim sua índole. Enquanto não se
subtrai a essência divina da sombra da multiplicidade das idéias e não se
salvaguarda a originalidade das criaturas, Scotus não se considera satisfeito. O
transcender-se ao necessitarismo pagão, realizado por Tomás, não lhe parece
suficientemente radical”47.
Nesta perspectiva aberta pelo Deus onipotente da Revelação, a razão é por assim
dizer desmascarada, na medida em que ela se revela como que presa à cadeia
causal no interior de uma lógica da razão natural, de matriz aristotélica, totalmente
vinculada ao necessitarismo pagão. Neste sentido, a razão humana se traduz num
verdadeiro obstáculo epistemológico, na medida em que impede de pensar acerca
do Deus onipotente da Revelação. Em nome de uma radical defesa do pluralismo
irredutível dos saberes, a crítica de Scotus constitui não tanto uma reação ao
45
Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 15.
46
Escreve Tomás na Summa theologiae I, q. 14, n. 8: “Non igitur propterea effectus, voliti a Deo,
eveniunt contingenter, quia causae proximae sunt contingentes; sed propterea quia Deus voluit eos
contingenter evenire, contingentes causas ad eas praeparavit”.
47
Todisco, “Duns Scoto e il pluralismo epistemologico”, 133.
aristotelismo quanto uma proposta alternativa ao ideal tomista da subordinação da
filosofia à teologia.
Scotus é taxativo ao afirmar que a teologia não depende de nenhuma outra
ciência (“haec scientia nulli subalternatur”). Nem sequer depende da metafísica
que, por ter como objeto o ente em geral, poderia de algum modo incluí-la.
Nenhum princípio metafísico, nem o próprio ser ou qualquer seu derivado, pode
ser útil a demonstrar as verdades teológicas (“nulla tamen principia accipit a
metaphysica”). O teólogo não dispõe de outra coisa a não ser da palavra divina,
que nos é oferecida mediante os textos sacros, e do conceito abstrato do ser
infinito. Admitir estas subalternações seria fatal para a teologia uma vez que
implicaria na renúncia a seu próprio objeto.
De outro lado, a teologia também não subalterna a si alguma outra ciência (“non
subalternat”), pois, na verdade, as ciências não recebem da teologia os princípios
sobre os quais se orientam (“quia nulla alia accipit principia ab ipsa”)48. Escreve A.
Ghisalberti:
À teologia competem notas intrinsecamente positivas do conhecimento do homem,
enquanto que não lhe dizem respeito características como: a necessidade do
objeto conhecido, a discursividade, a subalternação, que vertem sobre as
modalidades do conhecer humano pro statu isto e não decidem acerca do
conhecimento enquanto tal49.
Se, por um lado, Scotus tece severas críticas à subalternação das ciências, por
outro lado, também não defende a proposta boaventuriana de uma razão
“naturaliter christiana”, no interior da qual a “ratio humana” é potenciada pela “ratio
fidei”, mediante a iluminação divina. Enquanto “medium omnium scientiarum”, o
Verbo encarnado é também o centro do real e, enquanto tal, funda a relação entre
as demais ciências e a teologia segundo o conhecido axioma da “reductio artium
ad theologiam”. Não se trata apenas “de um uso cristão da razão, mas de um uso
da razão cristã, de uma razão que se reconhece verdadeira somente porque nela
reside o único verdadeiro mestre, o Verbo, a verdade mesma, princípio e
fundamento tanto da revelação quanto da razão”50. Em nome da irredutível
diversidade de âmbitos e de métodos entre filosofia e teologia, Scotus
problematiza também a “reductio” boaventuriana direcionando sua crítica a duas
teses, que se encontram na base do modelo de uma razão intrinsecamente cristã:
a centralidade do Verbo divino encarnado e a doutrina da iluminação.
No primeiro caso, Scotus salvaguarda a transcendência de Deus e a absoluta
originalidade das criaturas. Defende a independência e originalidade de cada
48
Cf. Ordinatio, Prologus, pars 4, q. 2, n. 214.
49
Ghisalberti, “Metodologia del sapere teologico nel Prologo alla ‘Ordinatio’di Giovanni Duns
Scoto”, 288.
50
T. Gregory, Mundana sapientia. Forme de conoscenza nella cultura medievale, Ed. di Storia e
Letteratura, Roma 1992, p. 64.
criatura com respeito à essência divina, afirmando a inteligibilidade intrínseca do
singular como tal e não a intrínseca inteligibilidade do mundo ideal e das criaturas.
No segundo caso, com traços firmes e claros, afirma que o intelecto humano é
capaz de verdade e que, portanto, não carece da iluminação divina para alcançála51.
Scotus é pela pluralidade e, conseqüentemente, pela autonomia relativa dos
distintos saberes. Não significa que entre eles deve haver oposição ou
estranhamento. Assim fazendo, ele liberta o horizonte epistemológico de qualquer
preocupação reducionista na direção da multiplicação dos saberes, construídos
“iuxta propria principia”. Saber e verdade constituem-se num binômio no seio do
qual se consuma o empenho de toda autêntica busca.
V
Ao final do Prólogo, Scotus se pergunta acerca da peculiaridade da teologia
enquanto ciência: se a teologia é uma ciência especulativa ou prática52. O que
decide a respeito do caráter prático ou especulativo da teologia não é
propriamente o seu conteúdo mais ou menos abstrato, ou, ao contrário, mais ou
menos concreto. O critério epistemológico adequado a discernir o peculiar caráter
da teologia é, na verdade, sua finalidade específica.
E a finalidade específica da teologia, segundo o Doutor sutil, é o agir concreto do
ser humano, direcionado à própria salvação mediante o mandamento do amor a
Deus e ao próximo. Ele recorda que a finalidade do saber especulativo é a
verdade, enquanto que a finalidade do saber prático é o agir humano. Por esta
razão, a teologia se constitui em scientia practica e em sapientia, pois de fato sua
intenção é conduzir o ser humano ao amor de Deus e dos seres humanos e,
portanto, à salvação eterna. Para sustentar sua tese, Scotus cita dois passos
escriturísticos: um extraído da Epístola aos Romanos: “Finis legis est dilectio” (Rm
13, 10); e outro do evangelho de Mateus: “In his duobus mandatis universa lex
pendet et prophetae” (Mt 22, 40).
Que a teologia seja considerada uma ciência prática não significa que ela seja
priva de especulação e que, por esta razão, seja unicamente voltada à ética e ao
comportamento humano. Scotus enfatiza que, aperfeiçoado pelo conhecimento
teológico-revelado, o intelecto humano conhece Deus como alguém que deve ser
amado (“apprehendit Deus ut amandus”). Com base nas pressuposições
seguintes: que o fim último do ser humano é o objeto primeiro da teologia e que os
princípios oriundos deste fim último, num intelecto criado, são princípios práticos
porque regulam seu agir, só nos resta concluir que os princípios da teologia dizem
51
Para uma análise mais detalhada da crítica de Scotus a ambas as teses de Boaventura, consulte-se
com proveito o que escreve O. Todisco em “Scoto e il pluralismo epistemológico”, pp. 134-137.
52
Cf. Ordinatio, Prologus, pars 5, q. 1, n. 217.
respeito à práxis, ao agir humano e, portanto, também suas conclusões são, para
todos os efeitos, práticas.
Visto que o primeiro objeto da teologia é o fim último [Deus], e os princípios no
intelecto criado assumidos pelo fim último são princípios práticos, os princípios da
teologia, logo, são práticos; logo, também as conclusões são práticas (pars 5, q. 2,
n. 314) 53.
A finalidade precípua da teologia não é tanto aumentar o saber puramente
especulativo quanto retificar o agir e potenciar ao máximo o amor. Deste modo,
identificando a felicidade com a “dilectio, quae vere est praxis”54, Scotus rompe
com uma tradição milenária. E assim fazendo, opera em teologia a passagem da
razão pura para a razão prática, de modo tal que a teologia encontre na ética sua
realização mais plena. Para exemplificar sua tese da teologia como saber prático,
Scotus retoma a proposição “Deus deve ser amado” (“Deus est amandus”) para
dizer que a mesma não se constitui em uma verdade prática (“um verum
practicum”) plena se não é completada pela pergunta acerca daquele pelo qual
Deus deve ser amado: a vontade humana, uma vez que Deus não deve ser
amado por um ser privo de razão (“Deus a bruto non est amandus”)55.
Na tentativa de salientar a originalidade de Scotus na defesa da teologia como
ciência prática, assim se exprime O. Todisco:
Imersa no panorama descortinado pelo Deus amor e onipotência (duas
dimensões que Scotus une, mas que na história sucessiva serão não só
separadas, mas contrapostas), a razão é solicitada a dar-se conta de que,
se na origem do real, além do intelecto pensante, existe a vontade que
doa, o real, mais que um effectum, é um volitum, e o ser, mais que ato, é
dom. A esta lógica não se tem acesso mediante a razão especulativa, mas
através da razão prática, no sentido que se constata, não se deduz nem se
induz o fato que exista algo e que seja isto e não aquilo, assim e não de
outra forma. Tudo aparece vinculado a uma decisão, cuja índole, à luz da
Encarnação e da inteira história da salvação, resulta substanciada pela
absoluta gratuidade. Ora, se o mundo é um volitum e o ser, antes de ser
ato, é dom, faz-se necessário aproximar-se do ser partindo da lógica do
dom, sem encaixá-la na lógica necessitarista do ser. A lógica do dom
possibilita um vigor anterior e ulterior com respeito àquela do ser, porque
estimula a pensar para agradecer e não para dominar; para mergulhar na
vontade insondável de Deus, e não para encontrar o fundamentum
inconcussum, graças ao qual considerar-se patrões do real56.
53
“cum primum obiectum theologiae sit finis ultimus, et principia in intellectu creato sumpta a fine
ultimo sunt principia practica, ergo principia theologiae sunt practicae”.
54
Cf. Ordinatio, Prologus, pars 5, q. 2, n. 303.
55
Cf. Ordinatio, Prologus, pars 5, q. 2, n. 336.
56
Todisco, “Duns Scoto e il pluralismo epistemologico”, 144.
Todas estas distinções sutis acompanhadas por minuciosas precisações podem
parecer-nos demasiadamente excessivas. No entanto, elas são o índice da
preocupação escotiana por salientar a íntima relação entre discurso teológico e
destinação última do ser humano, núcleo da revelação escriturística e da pregação
cristã57. “Sic homo esset unum bonum brutum!” Esta conhecida exclamação de
Scotus revela, na verdade, a impaciência do doutor sutil frente à tendência
intelectualista que predominava, em seu tempo. Em meio àqueles intermináveis
debates acerca da imagem do ser humano e de suas potencialidades, manifestava
sua firme convicção de que o ser humano não é seu intelecto, nem muito menos
que a verdade intelectual é sua mais nobre realização.
VI
Gostaríamos de recolher, agora, os principais resultados de nosso estudo,
reunindo-os em torno a três eixos fundamentais: a peculiaridade do raciocínio
escotiano, a originalidade de sua posição enquanto defensor da pluralidade e
autonomia dos saberes e o destino histórico da posição defendida pelo Doutor
sutil.
Em primeiro lugar, gostaríamos de salientar a peculiaridade de seu raciocínio no
ato mesmo de refletir teologicamente. Fizemos menção, na introdução, ao que diz
Gilson a propósito do modo típico de Scotus desenvolver suas reflexões
teológicas. O conhecido medievalista salientava seu peculiar modo de desvestir as
palavras e de conduzir seus leitores pelos labirintos da dialética. Como tivemos
ocasião já de salientar, as reflexões do Prólogo da Ordinatio revelam
sobremaneira as invectivas escotianas direcionadas a uma rigorosa e minuciosa
análise semântica dos termos tomados não singularmente, como era de se
esperar, mas numa intrínseca reciprocidade com seus termos correlatos. A
peculiaridade da análise de Scotus reside propriamente na preocupação em
compreender cada termo numa íntima e recíproca relação com seu correlato,
desentranhando, deste modo, uma série de binômios, no interior dos quais um
termo só se torna verdadeiramente compreensível à luz do outro e vice-e-versa.
Este rigoroso processo de semantização é acompanhado por uma série de
distinções meticulosas, conduzidas a termo por Scotus com tamanha sutileza, a
ponto dele, a pleno direito, ser cognominado de “Doutor sutil”. A introdução de
distinções é de fundamental importância para a crítica que Scotus move contra
todos aqueles virtuosismos da inteligência, típicos do contexto cultural em que
operava. Ninguém como ele, talvez, tenha se esmerado tanto na arte de bem
distinguir. Sabemos todos, quão importante é saber distinguir, sobretudo, quando
a intenção é desvencilhar-se dos inúmeros equívocos provocados por situações
em que predomina a confusão. O Doutor sutil não sucumbe, todavia, à tentação
de se refugiar nas ilusórias regiões dos mais diversos partidarismos. Não permite
que suas minuciosas distinções degenerem em separação. Revela uma particular
57
Cf. A. Marchesi, “Filosofia e Teologia in Giovanni Duns Scoto”, in A. Ghisalberti (a cura di),
Giovanni Duns Scoto: filosofia e teologia, Edizioni Biblioteca Francescana, Milano 1995, 37.
vigilância com relação a toda absolutização de partes, em detrimento da
complexidade do todo. Tais distinções estão a serviço, em primeiro lugar, da
explicitação das diversas dimensões que são responsáveis pela complexidade do
real. Uma vez explicitadas, e respeitadas cada uma na sua mais genuína
peculiaridade, tais dimensões são compostas segundo uma tal convergência de
modo a exprimir no melhor dos modos o real na sua irredutível complexidade.
Todo o persistente empenho de Scotus por distinguir as várias dimensões só faz
explicitar a íntima e intrínseca inter-relação que vigora entre as diversas facetas
que compõem o real. Em suma, Scotus não se perde no emaranhado das
distinções como se estas constituíssem uma espécie de labirinto, mas, ao
contrário, quanto mais ele busca desvelar as sutis dimensões do real, emergem
mais nitidamente ainda suas intestinas articulações. Pois, de fato, a comunhão só
é possível em meio às imprescindíveis distinções e por seu intermédio.
Portanto, através de uma meticulosa análise semântica dos termos e de uma
rigorosa e sutil arte de bem distinguir, Scotus inaugura um processo que se revela
altamente crítico com relação a tudo o que encontra diante de si como tese
explicitamente afirmada ou ainda como pressuposto implícito a tais afirmações.
Assim fazendo, ele exercita ao máximo a razão justamente no que ela possui de
mais próprio. Pois, afinal, a inteligência não é um fim em si mesmo, mas o meio
para se atingir o verdadeiro fim ao qual o ser humano se descobre destinado. E
este processo de autêntica desconstrução constitui o caminho privilegiado para
que o ser humano se abandone à escuta, na espera de que algo lhe possa ser
dado. Este árduo processo mediante o qual a razão dá o melhor de si, desfrutando
ao máximo suas intrínsecas virtualidades, culmina na espera despretensiosa pelo
dom inaudito da Revelação. Este paradoxal movimento que toca as mais
recônditas profundezas da razão, para poder assim deter-se às portas do Inefável,
poderia ser descrito em termos de uma autotranscendência do pensamento. Este
se encontra, na verdade, perpassado de cima em baixo por algo que o atrai e o
seduz, mas que, em contrapartida, ele não pode objetivar nem mesmo abraçar.
Resta-lhe apenas a possibilidade de potenciar ao máximo sua disposição a
acolhê-lo generosamente. É o espaço da acolhida da Revelação como oferta
gratuita e inusitada. E se a razão humana não é capaz de alcançar, por si só, as
verdades, todavia, ela pode recebê-las quando estas lhe são reveladas. Estão
assim, por um verso, interditadas todas aquelas ilusórias tentativas de acesso
direto e imediato entre o intelecto humano e a essência divina. Mas, por outro,
instaura-se definitivamente a imprescindibilidade da mediação das Escrituras
sagradas no processo de conhecimento do verdadeiro Deus. E isto porque Deus
nos criou como seus interlocutores, como pessoas capazes de acolher suas
palavras, de poder corresponder a seus desígnios.
No cume deste inteiro processo deparamo-nos com a posição alternativa de
Scotus: ele se revela um autêntico defensor do pluralismo epistemológico. Num
contexto fortemente caracterizado por afirmações que beiravam, às vezes, à
absolutização de partes em detrimento do conjunto, cuja relação da teologia com
as demais ciências era, na melhor das hipóteses, concebida a modo de “reductio”
ou ainda de “subalternatio”, quando não em termos de “exclusão recíproca”,
Scotus propõe com traços firmes e claros a autonomia dos distintos saberes num
horizonte cultural marcado por uma sadia pluralidade. Este contexto caracterizado
por um sadio respeito pela diversidade não impede Scotus de salientar os limites
históricos da metafísica grega e árabe, como também não o impossibilita a
assumir sem maiores delongas o caráter nitidamente positivo do saber teológico.
A nossa teologia só pode conhecer a essência divina porque Deus, na sua infinita
condescendência, agraciou-nos com as Escrituras divinamente inspiradas. Estão
postas, desta forma, as bases para a afirmação da Revelação como lugar
primordial da teologia. A afirmação da relativa autonomia entre os distintos
saberes, ademais, torna inadmissível qualquer tentativa de intromissão recíproca.
É imprescindível que cada saber permaneça circunscrito ao âmbito que lhe
corresponde sem ceder à tentação sempre presente de extrapolar o próprio
horizonte epistemológico.
Concebida desta forma, talvez se compreenda porque a posição de Scotus tenha
sido sufocada, alguns anos mais tarde. E isso não se deu sem graves
conseqüências para o ulterior desfecho não apenas do endereço inaugurado por
ele, mas para os destinos históricos da inteira cultura ocidental. Trata-se da
complexa questão que indaga acerca do destino de Scotus e de seu vigoroso
pensamento. A “epistemologia débil” de Scotus será deixada de lado – para não
dizer, implicitamente condenada – pelo papa João XXII ao excogitar três decisões,
todas elas direcionadas à extrema tentativa de operar a reunificação cultural e
política da Cristandade: a proposta da “epistemologia forte” de Tomás, a
beatificação do Doutor angélico em 1323 e a abertura do processo contra
Ockham. De fato, um pensamento que defende com tamanha clareza a
pluralidade epistemológica e a autonomia dos saberes não podia, de forma
alguma, servir de justificação ideológica àquela específica unidade cultural
intencionada por João XXII. Seu sucessor, Clemente VI prosseguirá sem maiores
delongas o mesmo caminho, endereçando à Universidade de Paris, em 1346, uma
famosa carta na qual exortava os professores de teologia a ater-se, em seus
cursos acadêmicos, a Aristóteles e a seus intérpretes mais autorizados.
Encontramo-nos na aurora do processo crescente de “tomistização” da teologia.
Na introdução chamávamos a atenção para o crescente interesse que, em nossos
dias, tem despertado o pensamento de Scotus. Nosso tempo parece marcado pela
experiência da dissolução dos grandes sistemas, pela delegitimação das grandes
narrativas, pelo desencanto frente aos grandes projetos construídos sobre a
razão, que parecia constituir um sólido alicerce. Chega-se a falar em pósModernidade como termo apto a exprimir o total desencanto frente a todas as
grandes pretensões totalizantes e excessivamente pretensiosas da Modernidade.
Denominador comum a todos os projetos da Modernidade seria propriamente a
“epistemologia forte”: racionalista e naturalista. Por esta razão, poder-se-ia dizer
que a Modernidade nasce e se desenvolve num viés oposto àquele inaugurado
por Scotus, em fins do século XIII e inícios do século XIV.
Na tentativa de legitimar uma epistemologia forte, Descartes redimensionará
aquela onipotência divina, tornando-a funcional aos desígnios humanos. E assim,
escapando ao abismo da dúvida universal, à qual aquela imagem conduzia,
Descartes transformará aquele Deus onipotente de fonte de contingência radical
em garante da estabilidade legal do mundo e do poder veritativo das faculdades
humanas. Estamos na Modernidade. De fato, esta nasce com o Deus matemático
e geômetra de Galilei; com o Deus garante e veraz de Descartes; com o Deus
moralmente necessitado a criar o melhor dos mundos possíveis, de Leibniz; ou,
com uma metáfora compreensiva de uma época, com o Deus relojoeiro de
Newton. Estamos na Modernidade, não porém com Scotus mas contra Scotus,
porque aquele Deus não é o interlocutor de um diálogo mas o garante de um
poder, não desestabiliza os saberes a fim de que o homem, apesar da fadiga da
pesquisa, se entregue à sua vontade, mas lhes oferece segurança e, fundando-os,
os sacraliza58.
Estaríamos, de fato, presenciando uma configuração cultural mudada na qual
estariam sendo recriadas aquelas condições propícias à aceitação da proposta do
Doutor sutil? Estaríamos, finalmente, mais predispostos a acolher o modelo
defendido pelo ilustre pensador escocês: de uma sadia pluralidade dos diversos
saberes mediante um processo de profundo respeito pela autonomia de cada um
deles? Ou será que estas incipientes, embora ousadas, indagações acerca da
atualidade da proposta do Doutor sutil não passariam de mais uma entre tantas
expressões de anacronismo, que a história tem registrado com grande
desconfiança e não menor desdenho?
58
Todisco. “Duns Scoto e il pluralismo epistemológico”, p. 147. Ainda com relação a esta mesma
questão, leia-se com proveito o que escreve Todisco em “Scoto tra medioevo e modernità”, in O. Todisco,
Giovanni Duns Scoto. Filosofo della liberta, Edizioni Messaggero de S. Antonio, Padova 1996, pp. 85-93.
O CONCEITO DE PESSOA*
Constantino Koser, OFM*
Os antigos concílios definiram que em Deus há três pessoas na unidade de
natureza. Não deram, porém, uma definição dogmática sobre o conceito de
Pessoa ele mesmo, não o fixaram, quanto aos seus elementos, com a
infalibilidade com que o tinham fixado como próprio para significar o que em Deus
é trino. As circunstâncias de então, as controvérsias doutrinárias e as dificuldades
da Igreja reclamavam que se fixasse: o que faz com que Deus seja Deus é a
essência, natureza, substância (ousia, physis) – e tudo isto em Deus é
rigorosamente, matematicamente, numericamente um. A trindade está nas
pessoas (hypóstasis, prósopon – persona, suppositum).
A falta de uma definição de pessoa, que à primeira vista é bastante estranha e
contrária ao uso dos teólogos, os quais supõem cada qual o seu conceito de
pessoa nas antigas definições, aparece claramente atestado por S. Agostinho, que
certamente sabia o que significavam as definições, uma vez que era
contemporâneo das grandes controvérsias trinitárias, que precederam os concílios
de Constantinopla (381) e Éfeso (431); não teve em mãos as definições deste
concílio, pois faleceu em 430; os “15 libri de Trinitate” foram terminados em 416,
mais ou menos; nas retratações, escritas no fim da vida, nada mudou a respeito
do conceito de pessoa. Examinando a terminologia, diz: o que os gregos
chamaram de “hipóstase – substância” os latinos chamaram de “pessoa” (De trin.
Lib. VII, cap. 7). Indagando em seguida qual o sentido do termo, não dá nenhuma
explicação que vá além de fixação de termos (cf. De Trin. Lib. VII, cap. 7-12): não
se encontra nem mesmo o resquício de uma definição metafísica do conceito de
pessoa. A “Summa Summarum” de quanto pôde dizer está nesta frase:
Dizendo que os três em Deus são uma essência, e um Deus, porque não dizemos também
que são uma pessoa, mas dizemos que são três pessoas? O único motivo parece ser que
nos decidimos a reservar ao menos um termo para exprimir o sentido em que dizemos
existir Trindade, pois sem isto não teríamos resposta quando nos perguntam: três o quê?
(De trin. Lib. VII, cap. 11).
Lembra que não faz tanto tempo assim que se começou a reservar este termo
para esta significação, quando antes se supunham outros sentidos.
Depois de S. Agostinho multiplicaram-se as reflexões sobre o conceito de pessoa
e hoje em dia é dos mais tratados na filosofia. No entanto, se aplicássemos à
*
Escrito inédito de Fr. Constantino Koser, como parte de um livro ou estudo sobre o conceito da Trindade em
Duns Scotus.
*
Franciscano da Ordem dos Menores, foi professor de teologia sistemática em Petrópolis de 1943 a 1950,
fez especialização em teologia em Freiburg nos anos de 1950 a 1953 e retomou o ensino em Petrópolis de
1954 a 1963. Eleito ministro geral da Ordem, dirigiu a mesma no período de 1967 a 1979, emprendendo
projetos e reformas que mereceram comparações aos feitos de Boaventura, quando ministro geral.
Santíssima Trindade os sentidos em que o termo é tomado nas filosofias
modernas, chegaríamos às heresias antigas do triteísmo, do monarquianismo, do
sabelianismo, do subordinacionismo, do arianismo e a muitas novas. Fala-se de
“pessoa” e pensa-se numa realidade de ordem psicológica, que existe em certos
indivívuos humanos, faltando em outros; outras vezes pensa-se numa realidade
de ordem moral, identificando-se “pessoa” com livre arbítrio ou com o seu uso
forte e decidido, dizendo que certos indivíduos desenvolveram sua
“personalidade”, outros não; outras vezes pensa-se numa realidade de ordem
física, identificando-se os conceitos de “pessoa” e de “indivíduo”, ao menos
quando se trata de naturezas racionais. Para aplicação na Ssma. Trindade,
porém, só pode servir um conceito de origem metafísica. Segundo Boécio, nesse
nível se deve dizer que a substância individual de uma natureza racional é pessoa:
“persona est rationalis naturae individua substantia” (De duabus naturis, cap. 3).
Santo Tomás soube introduzir as necessárias distinções na análise desta
definição, a fim de evitar a heresia, de que em Deus a natureza, enquanto
natureza – substância, natureza, essência formalmente –, é pessoa (cf. Sent. I,
d.25, q. 1, art. 2; S. Theol. I, 29,3; de Pot. q. 9, a.3 – para omitirmos as
conceitualizações das questões disputadas De verbo incarnato, e que não
concordam com esta definição). Supondo-se, como supunha S. Tomás, que
nossos conceitos, para serem aplicados a Deus, devem ser considerados
análogos por analogia de proporcionalidade e que por isso o que lhes corresponde
em Deus é essencialmente diferente, havendo apenas uma semelhança
indeterminável e impossível de ser abstraída do conceito, nada impede de admitir
estas distinções e diferenças, sem abandonarmos o conceito.
Ricardo de S. Vítor, antes de S. Tomás, havia tentado modificar os termos da
definição de Boécio, a fim de adaptá-la melhor ao mistério trinitário. Não dizia que
a pessoa é a substância, mas transferia o constitutivo da pessoa para o campo
existencial: ser pessoa é um modo de existência. Esse modo se caracteriza pela
propriedade de ser de tal modo “in se” e fechado sobre si mesmo, que uma
comunicação deste modo a outros indivíduos é impossível. Assim introduziu a
idéia da incomunicabilidade no conceito de pessoa. Pessoa, para ele, é um modo
incomunicável de uma natureza existir – e por sinal cabe só a naturezas racionais.
Porque definiu o conceito diretamente para o mistério trinitário, formulou do
seguinte modo: “Pessoa é a existência incomunicável da natureza divina” (persona
est divinae naturae incommunicabilis existentia, cf. De Trin., lib. IV, cap. 22). Será
então que em Deus existem três existências? Não é este o sentido da definição
ricardiana; antes: não existem em Deus três existências, mas três modos de
existir. Nem por isso cai na heresia do modalismo, pois afirma que esses três
modos são simultâneos e eternos, intradivinos e não manifestações para fora.
Nem por sombra pensou em modos sucessivos e passageiros. Esta definição de
Ricardo de S. Vítor foi adotada por Alexandre de Hales e por São Boaventura.
Duns Scotus a tomou como ponto de partida e é tudo que tem em comum com
Ricardo. Preocupou-se demoradamente com a comunicabilidade, tentando
determinar melhor o sentido deste elemento da definição. Como se vê, situou-se
numa linha de evolução diferente da de S. Tomás – mas pelas análises a que
procedeu acabou também bastante distanciado de Ricardo de S. Vítor, Alexandre
de Hales e S. Boaventura. Sua doutrina trinitária em todos os pormenores supõe o
conceito de pessoa que elaborou. É de uma coerência impressionante com a sua
definição. Daí nascem quase todas as diferenças de doutrina entre tomismo e
escotismo. Aliás, os teólogos costumam proceder deste modo, uns com maior
coerência, outros com coerência precária: isto é, de partirem de um conceito de
pessoa e de interpretarem os dogmas trinitários em função deste conceito. Não se
pode, pois, incriminar Duns Scotus de ter feito a mesma coisa. Mas, para entender
corretamente o seu pensamento trinitário, ninguém pode passar-se de
acompanhá-lo nas análises por vezes muito subtis do conceito de pessoa. Isto
justifica a relativa largueza que concedemos nestas páginas a estas análises.
As reflexões de Duns Scotus sobre o conceito de pessoa partem da definição de
Ricardo de S. Vítor, e aí começam no ponto em que este, na definição boeciana,
substitui a palavra “substância” por “existência”. Duns Scotus admite como certo
que, quando alguém diz “pessoa”, pensa numa natureza racional individualizada.
Acontece, no entanto, que dizendo “pessoa” não se visa esta natureza racional
individualizada “in recto” e formalmente. Pelo contrário, pensa-se que esta
natureza racional é “possuída” e isto “por alguém”. Este “alguém” é a pessoa e
cabe-lhe “incomunicabilidade”. A esta altura diz Duns Scotus:
Tenho minhas dúvidas sobre se o termo “pessoa” significa a existência como formalmente
idêntica com a incomunicabilidade, ou se é assim que “pessoa” propriamente só significa a
“incomunicabilidade”, e a existência só entra no conceito como designativo do modo de
possuir a existência. Se assim for, a definição deverá ser: pessoa é incomunicabilidade,
que possui existência em uma natureza racional individual.
Persona non tantum dicit incommunicabilitatem, sed dat intelligere naturam intellectualem
in qua est, sicut individuum in natura communi. Dubito tamen, si dicat existentiam formaliter
cum duplici incommunicabilitate, aut dicat tantum formaliter incommunicabilitatem, et
existentiam in concreto tanquam modum habendi naturam, ut sit sensus: persona est
incommunicabilis habens existentiam in natura intellectuali” (Oxon., lib. I, d.23, q.un., n.5,
ed. Vivès, vol. X, 261b).
Nas obras de Duns Scotus não se encontra mais nada a respeito deste ponto,
que, levado avante, parece que teria sido muito fértil. Em todo caso, sobrepôs-se
ele mesmo à dúvida aqui acusada, supondo sem mais uma diferença entre pessoa
e existência. Isto já se vê pelo modo de distinguir pessoa e individualidade.
Individualidade e personalidade não se identificam, pois que em Deus são três as
pessoas, não há, porém, três indivíduos. É do domínio comum que Duns Scotus
elaborou uma doutrina própria sobre a individualidade e sobre o princípio de
individuação. Seria de esperar que tivesse aplicado os conceitos respectivos à
doutrina trinitária. Não se encontra, porém, uma aplicação explícita e “ex professo”
em suas obras, apenas considerações ocasionais. A diferença entre
individualidade e personalidade para ele está nisto: cabe incomunicabilidade
diferente e maior à pessoa. Para ele, a individualidade está constituída pela
“haecceitas”. Isto significa que uma substância, seja material, seja espiritual, se
individualiza pelo fato de ser “haec”, não por “materia signata”. Se o fato de ser
“haec”, a “haecceitas” é “quaedam entitas positiva actualis” para além da
substância completa, é um problema discutido entre os escotistas, havendo os
que interpretam o mestre num sentido, outros noutro. Para a doutrina trinitária,
esta controvérsia entre escotistas não é de importância. O que importa é que pela
“haecceitas” a substância se individualiza e adquire uma certa incomunicabilidade,
que, porém, formalmente não pertence à essência, mas precisamente ao indivíduo
como tal. A esta espécie de incommunicabilidade Duns Scotus dá o nome de
“incommunicabilitas ut quod”. Lychetto explica o sentido desta locução: “Significa
que (na linha descendente dos conceitos, em direção ao particular) nada existe de
inferior, do qual se poderia predicar “in recto” (aquilo que está individualizado),
assim como se diz: “isto é aquilo” (Vivès, vol. VIII, 589). Neste sentido os
indivíduos não admitem uma predicabilidade, pois que não se pode aplicar a sua
noção a algo que na linha dos conceitos tenha uma extensão menor, exatamente
porque cabe rigorosamente só a um único “quod” – e assim possui a
incomunicabilidade.
Acontece, porém, que a hipóstase ou em natureza racional a pessoa não é o ser
individual da natureza respectiva, mas se distingue da “haecceitas” respectiva:
“Neque se habet natura ad suppositum sicut ‘quo’ ad ‘quod’” (Scotus, Ordin. Lib. I,
dist. 2, pars 2, q.1, n. 378, ed. Vaticana, vol. II p. 345 lin.1). A prova inconcussa
dessa asserção é um dogma: na Encarnação uma natureza humana perfeitamente
individualizada é realidade sem ser pessoa humana (Scotus, Quodl., 19, art. 2,
n.17, Ed. Vivès, vol. XXVI p. 286b). Por aí se vê que a diferença entre
individualidade e personalidade não é só de ordem lógica, mas também de ordem
ontológica, e que conseqüentemente, também a incomunicabilidade “ut quo” é da
ordem ontológica.
Mas na individualidade trata-se só de incomunicabilidade “ut quod”, pois a
revelação do mistério da encarnação e da Ssma. Trindade mostra que a natureza
individualizada, sem quebra desta incomunicabilidade “ut quod”, é comunicada:
uma vez duas naturezas individualizadas a uma pessoa, outra vez uma natureza
singular, a três pessoas. Vê-se que existe uma comunicabilidade dentro da
incomunicabilidade “ut quod”. A incomunicabilidade da pessoa se avantaja à da
individualidade pelo fato de lhe caber ainda esta outra incomunicabilidade que
falta à individualidade: a pessoa é incomunicável “ut quo” et “ut quod” (Scotus,
Ordin., lib. I, dist. 2, parte 2, q.1, n. 378, ed. Vaticana, vol. II p. 345, linhas 1-9;
Quodl. 19, n. 13, ed. Vivès, vol. XXVI, p. 279a). E é assim que a pessoa se
distingue da individualidade.
Distingue-se também da natureza, muito embora coincidam pessoa e natureza
“realiter” no “suppositum per se” (Quodl. 19, n.11, Ed. Vivès, vol. XXVI, p. 277-8).
“Suppositum per se” é a personalidade que corresponde à natureza em questão
(loc. cit. e também ibid. n.21). Muito embora coincidam assim “realiter” natureza e
pessoa no “suppositum per se”, não se identificam inteiramente. É que a pessoa
não se constitui como pessoa pela natureza – exemplo: “este homem não é
pessoa por ser homem” – mas pelo “quo” próprio da pessoa: “Este homem é
pessoa por ser pessoa, pela ‘suppositalitas’” (Ordin., lib I, dist. 2, parte 2, q.1, ed.
Vaticana, vol. II, p. 345, lin. 1-9). Esta incomunicabilidade “ut quo”, pois, distingue
a pessoa tanto da natureza, quanto da individuação da natureza.
A dupla incomunicabilidade, “ut quo” e “ut quod”, é para Scotus o elemento
distintivo da pessoa. Volta a estas duas incomunicabilidades todas as vezes que
deseja determinar exatamente o que vem a ser pessoa. O que significam? Não é
fácil apanhar bem o seu sentido, exatamente porque a formulação é negativa. O
que interessa é surpreender o elemento positivo que está escondido na negação.
Duns Scotus aplica o constitutivo da pessoa tentando formular positivamente o
que há na incomunicabilidade e enumera dois modos de comunicabilidade.
1. Algo pode ser comunicado predicando o conceito superior do inferior – ou,
dizendo as coisas na ordem do ser: pode ser comunicado totalmente. Assim se
predica a “animalidade” da “humanidade” e deste modo está o “animal” no
“homem”: inteiramente. Este modo de comunicação tem seu limite extremo
exatamente no indivíduo, e por isso o indivíduo é incomunicável nesta linha de
comunicação: aí está a incomunicabilidade “ut quod”. Dir-se-á mais exatamente:
esta é uma das espécies da incomunicabilidade “ut quod”, pois que neste sentido
se predica e é própria formalmente do indivíduo como tal, não da pessoa – e a
pessoa também possui uma incomunicabilidade “ut quod”, mas de sentido diverso.
2. Algo pode ser comunicado como forma e acontece então que o que recebe é
aperfeiçoado por aquilo que recebe, tornando-se, porém, essencialmente outra
coisa em união com o que recebe: um “ens tertium”, diferente tanto daquilo que se
comunica quanto daquilo a que é comunicado. É esta a comunicabilidade “ut quo”.
Nesse sentido a individualidade, ou melhor, o indivíduo pode ser comunicado à
pessoa, a natureza por sua vez pode ser comunicada assim tanto ao indivíduo,
quanto à pessoa. A pessoa ela mesma porém não pode ser comunicada assim, e
por isso lhe cabe a incomunicabilidade “ut quo”, unida à incomunicabilidade “ut
quod” (Scotus, Oxon., lib. I, dist. 23, q.un., n.4 e 6; Quodl. 19, n. 13). Assim se
entrevê o que há de positivo na formulação negativa da incomunicabilidade.
Com isso, porém, o conceito de pessoa ainda não está perfeitamente delimitado.
Duns Scotus lembra que a alma de alguém que morreu e ainda não ressuscitou de
fato não está comunicada nem “ut quod”, nem “ut quo” – sem que por isso seja
pessoa. Para ser pessoa, pois, não basta a simples incomunicabilidade “ut quod” e
“ut quo” de fato, é preciso que acresça ainda a “aptitudo non dependendi”, ou a
incomunicabilidade apptitudinal. Esta incomunicabilidade, diz Duns Scotus, pode
ser designada de “inclinatio ad oppositum” ou “aptitudo ad contrarium”, isto é, onde
existe só a aptitudinal, existe simultaneamente a inclinação para ser comunicado
(cf. Quodl. 19, n.19, ed. Vivès, vol. XXVI, p. 287-8). O conceito da “aptitudinalitas”
não está sendo muito usado na neoescolástica, conquanto tenha sido de grande
importância no período áureo. Para interpretar corretamente este termo, antes de
mais nada é preciso não confundi-lo com mera possibilidade. O que é “aptum”
para alguma coisa possui uma disposição interna para aquilo para que é “aptum” –
o que não se dá necessariamente com o mero possível. O “non-aptum” por sua
vez não só carece desta disposição interna, mas até possui uma disposição
contrária àquilo de que se diz “non-aptum”. O ato correspondente neste caso só
pode ser conseguido com violência. Em terminologia teológica moderna diríamos
que aquilo para o que alguma coisa é “non-aptum” só pode ser conseguido por
meio de intervenção preternatural ou mesmo sobrenatural. A incomunicabilidade
aptitudinal significa não só a possibilidade de ser incomunicável, mas uma
disposição interna para a incomunicabilidade. Esta incomunicabilidade aptitudinal
por si só, sem a atual, por sua vez não basta para que haja pessoa, como se vê
no exemplo da natureza humana individual em Cristo: possui a incomunicabilidade
aptitudinal, não porém, a atual; Antes está atualmente comunicada ao Verbo
Divino. Só onde convergem simultaneamente ambas estas incomunicabilidades
existe pessoa (Quodl. 19, n.19, ed. Vivès, vol. XXVI, p. 287-8).
Resumindo, vemos que para que haja pessoa é necessário que se verifique a
incomunicabilidade “ut quo” e “ut quod”, e ambas tanto aptitudinais como atuais.
Para que haja pessoa, pois, é necessário que estejam realizadas quatro
incomunicabilidades, e nenhuma pode faltar sob pena de não estar realizada a
pessoa: a incomunicabilidade “ut quo” aptitudinal e atual, e a incomunicabilidade
“ut quod” aptitudinal e atual.
Duns Scotus menciona ainda uma quinta incomunicabilidade que designa como
“negatio possibilitatis dependentiae” ou “communicationis” (Quodl. 19, n. 19, loc.
cit.). Diz que esta consiste na “repugnantia ad actum opositum” (loc.cit.). Dos
textos que seguem nesta questão quodlibetal 19, vê-se que se trata no caso da
negação de potência obediencial para a comunicação (cf. loc. cit. n. 20). Também
esta incomunicabilidade pode ser “ut quo” e “ut quod”. Não é da pessoa em geral,
mas só da pessoa em Deus: é o característico da pessoa divina enquanto divina.
Em pessoas criadas não pode existir esta incomunicabilidade suprema, pois que
estas estão sempre sujeitas ao poder soberano de Deus (loc.cit. n. 19-20).
É preciso prestar atenção para não perder de vista o sujeito da
incomunicabilidade. Por vezes se tem a impressão de que os autores a atribuem à
natureza como sujeito, entendendo que a natureza se torna pessoa pela
incomunicabilidade. Isto, porém, não é o que Duns Scotus ensina. Segundo ele, a
natureza que é pessoa está tão longe de ser incomunicável que de fato está
comunicada tanto “ut quo” quanto “ut quod” – e isto à pessoa. No caso pois existe
também a comunicabilidade aptitudinal e atual sob ambos os aspectos – as quatro
comunicabilidades opostas diametralmente às quatro incomunicabilidades que
caracterizam a pessoa. A incomunicabilidade cabe exclusivamente ao “quo
persona est persona”, não à natureza. Só se pode predicar da natureza enquanto
esta é possuída pela pessoa e enquanto nela está a pessoa, não “in recto”, e
muito menos formalmente. Quando se fala de incomunicabilidade, pois, pensa-se
no “quo persona est persona”, a natureza está apenas conotada (cf. l Oxon. Lib.I,
dist. 23, q.un., n. 7, ed. Vivès, vol. X, p. 265; Cf. tb. o comentário de Lychetto para
esta passagem, loc. cit.).
Firmada esta doutrina, indaga-se: a quinta incomunicabilidade, a da “negatio
possibilitatis dependendi”, que Duns Scotus diz caber só à pessoa divina, também
se entende “persona quo persona”, ou neste caso a incomunicabilidade se refere à
natureza? A pergunta nasce da dificuldade de pensar numa comunicação, mesmo
sobrenatural, de uma pessoa a outra, na ordem metafísica em que aqui se fala de
comunicação. No caso da união hipostática da natureza humana de Cristo ao
Verbo não se trata duma comunicação de uma pessoa a outra, exatamente
porque o dogma ensina que em Cristo não existe pessoa humana. Este exemplo,
pois, não pode explicar nem provar a possibilidade de comunicação de uma
pessoa a outra de modo preternatural ou sobrenatural. O fato de a pessoa estar
constituída de quádrupla incomunicabilidade parece excluir necessariamente a
comunicabilidade, mesmo pela potência obediencial. Não resta dúvida de que
existe potência obediencial de ser supressa uma pessoa e a natureza
despersonalizada “per se” ser personalizada “in altera”. Não se trata então de uma
comunicação da pessoa, mas da natureza. Assim parece que a “negatio
possibilitatis dependendi” existe também para a pessoa criada. Duns Scotus de
fato só atribui esta última incomunicabilidade à pessoa divina, não à criada. Na
frase em questão, passa insensivelmente da pessoa divina para a natureza criada
(sola persona divina habet incomunicabilitatem primo modo (negatio possibilitatis
dependendi)... natura autem creata, licet in se subsistat, non tamen aliquid habet
intrinsecum, per quod impossibilile sit eandem dependere; et ideo sola persona
divina habet propiam personalitatem completam, natura vero creata personata in
re, non habet” (loc. cit. n. 20)). Assim parece que há uma incoerência nesta
determinação do sujeito da incomunicabilidade no sentido de “negatio possibilitatis
dependendi”.
Como quer que seja, Duns Scotus é explícito em ensinar que as quatro outras
incomunicabilidades se referem de fato à pessoa enquanto pessoa, e não à
natureza. E é explícito também em exigir para o caso de Deus ainda a quinta
incomunicabilidade, a “negatio possibilitatis dependendi”.
A pessoa em seu constitutivo formal é apenas incomunicabilidade? Duns Scotus
faz explicitamente esta pergunta e responde: “A pessoa não é só
incomunicabilidade, mas dá a entender ((connotat) também a natureza intelectual
em que está...” e segue o texto, em que manifesta a sua dúvida, sobre se o
constitutivo da pessoa se identifica formalmente com a existência, ou se de per si
só significa a incomunicabilidade, conotando a existência concretamente como o
modo de possuir a natureza. Se assim for, resulta como definição da pessoa:
“Persona est incommunicabilis habens existentiam in natura intellectuali” (Oxon.
Lib. I, dist. 23, 1.un, n. 5, ed. Vivès, vol. X, p. 261b).
Se abandona aqui a questão da identificação ou distinção entre pessoa e
existência, não abandona tão depressa a questão do elemento positivo,
constitutivo da pessoa. Afirma explicitamente que a pessoa se constitui por um
elemento positivo, que porém não pode ser reduzido a conceito comum universal,
por se tratar de um singular absoluto, tanto que por exemplo o positivo constituinte
da pessoa do pai difere do positivo consituinte da pessoa do filho. O “quo persona
est persona” portanto é um elemento positivo (Oxon. Lib. I, dist. 23, q.un.; dist. 25,
q.un. n. 1-2). Nessa questão da Ordinatio o ser pessoa para Duns Scotus não é
apenas a negação da comunicabilidade, mas um elemento “ante omnem actum
intellectus”, “aliquod quod est in re”. Destas considerações pode-se tirar a
conclusão de que a incomunicabilidade quádrupla não é propriamente o
constitutivo da “persona ut persona”, mas uma propriedade decorrente do
constitutivo – o constitutivo ele mesmo seria outro, algo “ante omnem actum
intellectus” e que possui existência real, “aliquod quod est in re”, sem que possa
ser formulado em conceito unívoco. Uma doutrina aparentemente diversa se
encontra no Quodlibet 19. Declara explicitamente que a incomunicabilidade
aptitudinal e atual pode estar concretizada sem suporte positivo, e que isto de fato
se dá na pessoa criada. Deduz isso do que se observa na união hipostática (cf. n.
19). Na pessoa divina, porém, onde à quádrupla incomunicabilidade acresce ainda
a “negatio possibilitatis dependendi”, conforme doutrina também explícita de Duns
Scotus, a incomunicabilidade não pode estar concretizada sem um elemento
positivo de suporte: “Nulli simpliciter repugnat esse communicabile, nec tamquam
communicabile dependere, nisi sibi sit simpliter proprium aliquod positivum, quod
sit ratio repugnantiae communicabilitatis et dependentiae” (loc. cit. n. 20). Como
porém só as pessoas divinas possuem esta quinta incomunicabilidade, só elas
possuem um elemento positivo e só elas não são apenas a negação da
comunicabilidade e comunicação:
Sola persona divina habet incommunicabilitatem primo modo, quia entitatem aliquam
intrinsecam simpliciter propriam, per quam sibi repugnat posse communicari... et ideo sola
persona divina habet propriam personalitatem completam... (loc. cit. n. 20).
As duas exposições parecem contraditórias. Mas observando melhor percebe-se
que o Quodlibet é uma explicitação da Ordinatio e que não há oposição de
doutrina. É que na Ordin. Liv. I, d.e 3 Duns Scotus se refere exclusivamente à
pessoa divina e não trata da pessoa criada.
Conforme o Quodlibet 19, a pessoa criada não possui elemento positivo, mas está
na simples e chã incomunicabilidade quádrupla – a pessoa divina, porém, se
constitui por um elemento positivo, suporte da quádrupla incomunicabilidade, mais
a “nagatio possibilitatis dependendi”.
Resumo da doutrina de Duns Scotus sobre o conceito de pessoa. A definição que
encontramos em Duns Scotus é: “Persona est incommunicabilis habens
existentiam in natura intellectuali” (Oxon. Lib. I, dist. 23, q.un. n. 5 ed. Vivès, vol. X,
p. 261b). Comparando as várias definições de pessoa que exerceram profunda
influência, notamos a seguinte marcha evolutiva: “Persona est substancia...”
(Boécio), “Persona est existentia...” (Ricardo), “Persona est incommunicabilis
habens existentiam... (Duns Scotus). Os elementos comuns às três definições são:
“natura rationalis individua”. Tanto em Boécio, quanto em Ricardo nota-se a luta
pela definição, mas os autores conseguem resolver-se e apresentar a sua
definição sem hesitações. Em Duns Scotus esta luta aparece mais claramente, e
do conjunto dos textos pode-se tirar a conclusão de que a luta para ele não
terminou: refletiu muito, pesquisou, analisou, objetou, respondeu objeções – e por
fim não conseguiu um resultado suficientemente uniforme e completo. Não
conseguiu uma noção de pessoa comum a Deus e à criatura – não atingiu o
conceito “simpliciter simplex” de pessoa. Sua mira era conseguir um conceito que
em nada colidisse com os dogmas trinitários e cristológicos e que também
estivesse em conformidade com o que se observa na criatura. Não podia
satisfazer-se com menos, sem renegar a sua doutrina da univocação de quarto
grau para todos os conceitos capazes de serem aplicados a Deus e às criaturas.
Considerando todo o conjunto de seus enunciados respectivos, não se pode dizer
que encontrou o que procurava. Os elementos de valor estável, em sua doutrina
sobre o conceito de pessoa parecem ser os seguintes:
1. os aprofundamentos das relações de identidade e distinção dos
conceitos de natureza, indivíduo e pessoa;
2. a enumeração, definição e distinção das várias incomunicabilidades que
devem competir à pessoa;
3. os pensamentos sobre a “negatio possibilitatis dependendi”, que só pode
competir à pessoa divina;
4. a asserção de que a pessoa em Deus é constituída por um elemento
positivo, sujeito das cinco incomunicabilidades – sem que exista a
possibilidade de abstrair para este elemento positivo um conceito universal;
5. a distinção entre os conceitos de pessoa e existência.
A “NON-IDENTITAS FORMALIS”
A doutrina da “non-identitas formalis” – assim dizia Duns Scotus, e não “distinctio
formalis”, como depois disse a escola – é de importância capital para a doutrina
trinitária, e ao lado do conceito de pessoa e da univocação de quarto grau está por
assim dizer onipresente nas considerações do Subtil. Trata-se duma doutrina
metafísica extraordinariamente complexa e não é possível fazer dela aqui uma
exposição exaustiva. Limitamo-nos por isso à análise duma passagem, em que o
próprio Duns Scotus explicitamente e “ex professo” aplica esta distinção ao
mistério trinitário. Aí colheremos informações suficientes para compreender o seu
pensamento trinitário.
A ponderação de que parte nessa passagem da Ordin. Lib. I, dist. 4, é a seguinte:
Não parece inteligível que a essência não esteja multiplicada e as hipóstases sejam várias
se não se admitir uma distinção qualquer entre a razão constitutiva da essência e a das
pessoas. Sendo necessário afirmar a possibilidade (simultânea dos dados indicados), é
necessário refletir sobre essa distinção.
Non enim videtur intelligibile quod essentia non plurificetur et supposita sint plura, nisi
aliqua distinctio ponatur inter rationem essentiae et rationem suppositi. Et ideo ad
salvandam istam compossibilitatem praedectam, oportet videre de ista distincione (Ordin.
Lib. I, dist. 2, parte 2, q.1 ed. Vaticana, vol. II, n. 388, p. 349).
Logo a seguir formula a sua sentença, mas com extremos de reserva:
E dito sem afirmar e sem prejuízo de sentença melhor, que a razão pela qual o suposto é
formalmente incomunicável, e a razão da essência enquanto essência devem admitir uma
distinção que preceda qualquer ato de intelecção criada ou incriada”
Et dico sine assertione et prauidicio melioris sententae, quod ratio qua formaliter
suppositum est incommunicabile, et ratio essentiae ut essentiae habent aliquam
distinctionem praecedentem omnem actum intellectus creati et increati (Ordin. Lib. II, dist.
2, parte 2, q.1, n.389, p. 349).
É preciso dar o devido realce à fórmula: “ante omnem actum intellectus creati et
increati”. Duns Scotus com estas palavras diz com clareza insofismável que a
distinção em que pensa deve estar “in re” e que não nasce da ação intelectual do
sujeito pensante, não é uma distinção de razão. Com isso se distancia clara e
decididamente da “distinctio rationis cum fundamento in re”. A fórmula do “ante
omnem actum intellectus” é a chave para toda a doutrina que é conhecida sob o
nome de distinção formal. Cumpre notar ainda a reserva com que se exprime:
“sine assertione et praeiudicio melioris sententiae”. Na “Lectura”, anterior à
Ordinatio, não se exprimira assim com reserva, mas dissera afoitamente: “... quia
sic esse intellectus meus no dubitat...” (Ordin. Loc. cit. ed. Vaticana, loc. cit., nota).
Que argumentos tinha Duns Scotus para asseverar uma distinção “ante omnem
actum intellectus” entre a essência e as pessoas divinas? Vejamos primeiro as
suas formulações, depois expliquemos.
A primeira hipóstase possui formal ou realmente algo de comunicável, do contrário não
poderia comunicar; possui também uma realidade incomunicável, do contrário não poderia
ser pessoa positivamente numa entidade real. Entendo o “realmente” no sentido de que
não se origina de nenhum modo de inteligência atuada, mas que esta entidade existiria aí,
mesmo se nenhum intelecto estivesse atuado. É isso o que chamo de “esse ante omnem
actum intellectus”. – Ora, não pode acontecer que uma entidade seja comunicável antes de
qualquer ato da inteligência... e outra entidade seja incomunicável antes de qualquer ato da
inteligência... se não houver, também antes de qualquer ato de inteligência, uma distinção
entre esta e aquela realidade. Logo...
Primum suppositum formaliter vel realiter habet entitatem communicabilem, alioquin non
posset eam communicare; habet etiam realitatem incommunicabilem, aliquin non posset
esse positive in entitate reali suppositum. Et intelligo sic “realiter” quod nullo modo per
actum intellectus considerantes, immo quod talis entitas esset ibi, si nullus intellectus
consideraret, dico esse ante omnem intellectum. – Non est autem aliqua entitas ante
omnem actum intellectus ita quod non per actum intellectus, communicabilis, ita scilicet
quod sibi contradicat communicari, nisi ante omnem actum intellectus, hoc est, non
praecise per intelligere, sit alique distinctio inter hanc entitatem et illam; ergo... (Ordin. Lib.
I, dist. 2, parte. 2, q.1, ed. Vaticana, vol. II, n.390, p. 349-350).
Cumpre observar que Duns Scotus não deixa nenhuma dúvida sobre a sua
doutrina, quanto a isto: não se trata duma distinção de razão, nem mesmo com
fundamento “in re”, mas trata-se duma distinção objetiva, existente mesmo que
não haja nenhuma atividade intelectual. Analisemos o argumento. Deus Pai possui
algo que pode ser comunicado, a saber, a essência divina. "Possuir algo" aqui
significa um dado objetivo “transcendental”, no sentido de existência propriamente
dita e não só pensada. No mesmo sentido há também o que não pode ser
comunicado, isto: a personalidade, o "ser Pai", o "não ter origem em nenhum
sentido”. Isto são dogmas. Ora, não pode o mesmo dado simultaneamente ser
comunicável e incomunicável - e como a essência divina é simples, o “simil”
necessariamente deve ser tomado em sentido rigoroso. Logo deve haver uma
distinção entre estes elementos. Como, porém, a comunicabilidade e
incomunicabilidade existem antes de, e independente de qualquer ato de
pensamento ("ante omnem actum intellectus”), segue que também a distinção
entre os elementos deve ser anterior a qualquer ato de pensamento.
Uma segunda prova apresenta Duns Scotus: afirmando-se que no Pai entre
paternidade e essência divina antes de qualquer ato de pensamento não há
distinção, então segue que no Pai não existe nada que não seja comunicável, uma
vez que a essência é comunicável. Disto segue então que ou o Pai comunica ao
Filho a Paternidade ou que a Paternidade não é um dado de ordem objetiva ("Si
dicas, quod ante omnem actum intellectus Patris non est ibi aliqua distinctio, sed
est entitas omnino unius rationis, et ita nullam entitatem positivam in se habet
Pater quam non communicat Filio: ergo communicat ei paternitatem sicut
essentiam" [Ordin. lib. I, dist. 2, parte 2, q. 1, ed. Vaticana vol. II, p. 391, p. 350). O
argumento é tão claro em seus elementos, que não necessita de explicação.
Mais complexo é o terceiro argumento. Duns Scotus parte da seguinte
consideração: na origem do Filho o Pai, "origine prius”, conhece tanto a natureza
divina quanto o "quo suppositum est suppositum". Conhece a natureza divina
como comunicável, conhece o elemento constitutivo da pessoa como
incomunicável. Ora, admitido isto, existem duas possibilidades: 1. o pai conhece
estes dois dados como objetos de formalidade distintas, ou 2. como o mesmo
objeto formal sob modos diferentes de intelecção. Uma terceira possibilidade não
existe. Suponhamos o caso de o Pai conhecer a essência divina e o constitutivo
da hipótese como formalmente idênticos e as distinções como resultantes dos
modos diferentes de intelecção, que seguiria? Neste caso entre os dois dados não
poderia existir maior distinção que por exemplo entre Deus e divindade, isto é,
entre o concreto e o abstrato em Deus. Neste caso, porém, também não seria
possível que o Pai conhecesse o constitutivo formal da hipóstase como
incomunicável e a natureza como comunica, pois que estes dois atributos são
objetivos, não resultam apenas de modos de conhecer. Ora, o conhecimento que
o Pai tem em qualquer hipótese é a simples verdade. E seguiria, então, que ou a
hipóstase seria comunicável ou a essência incomunicável - não poderia a
essência ser comunicável e a hipóstase incomunicável. A conclusão, pois, seria
que a trindade de pessoas na unidade de essência seria impossível, com o que se
evidencia o erro da hipótese feita. Pelo que só resta a outra suposição, o Pai
conhece a essência divina e o constitutivo formal da hipóstase como objetos
formais distintos. Uma vez que isto deve ser assim e de fato assim é, pode-se
continuar a refletir do seguinte modo: Deus Pai ou Deus simplesmente também só
possui conhecimento intuitivo, pois que o conhecimento abstrativo, qualquer seja,
é imperfeição. Ora, um conhecimento intuitivo, desde que seja verdadeiro como
deve ser o de Deus, corresponde perfeitamente àquilo que o objeto é em si e
como existe de fato. Um objeto, porém, pode ser conhecido intuitivamente de
modo imediato em si mesmo, ou então em outro objeto que o contém de modo
eminente (eminenter) . Por isso os objetos conhecidos intuitivamente como
formalmente diferentes ou são tais que um contém o outro de modo eminente
(eminenter continet), ou cada qual dos objetos é termo do ato de intelecção em si
mesmo imediatamente. Vistos e admitidos estes dados, cumpre considerar que
nas hipóstases divinas nada do que as constitui formalmente pode estar de modo
eminente em outro objeto (non continentur in aliquo eminenter), pois neste caso
nada mais seriam que ser comunicado, quando são exatamente o contrário. Por
isto não podem ser conhecidas em conhecimento intuitivo de outro objeto que as
contenha eminentemente - tal objeto não existe. Logo, tudo o que constitui as hipóstases divinas em sua realidade formal e que perfaz objeto formal de
conhecimento intuitivo é termo da intuição como objeto em si mesmo
imediatamente. Isto, porém, é exatamente a proposição de que antes de qualquer
ato intelectual são distintas (habent aliquam distinctionem ante omnem actum
intellectus) (cf. Ordin. lib. 11 dist. 2, parte 2, q. 1, n. 390-394, ed. Vaticana vol. II p.
349-352).
Estas considerações e os argumentos feitos, pois, levam à conclusão de que entre
a essência e as hipóstases divinas deve existir uma diferença “ante omnem actum
intellectus”, isto quer dizer: uma diferença que não se funda no sujeito pensante,
mas nos dados existenciais transcendentes.
Que distinção será esta? É evidente que não pode ser distinção real, pois que esta
supõe coisas distintas, o que a simplicidade divina exclui. Não se pode dizer que
as hipóstases são cada qual uma “coisa” e a essência divina “coisa” também.
Disto resultaria que em Deus existem quatro “coisas” e em última análise
chegar-se-ia a afirmar a existência de quatro deuses. Nem se pode pensar numa
distinção de coisas potenciais de “coisas” que não sejam reais, uma vez que em
Deus não existe nenhuma potencialidade (loc. cit. n. 400, ed. Vaticana, vol. II, p.
355).
São Boaventura, refletindo sobre esta distinção, deu-lhe o nome de distinção de
razão (cf. sent. Lib. I . dist.5, art.1,q.1, ed. Quarachi, vol. I, col. 113a; dist. 26, art.
un., q.1, ad. 2, ed. Quaracchi vol. I, col 453a; dist. 45, art. 2, q.1, i.c, ed. Quaracchi,
vol. I, col. 804ab). Duns Scotus comenta esta terminologia dum modo bastante
estranho. Diz: “ratio” nestas passagens não significa a atividade mental mas a
“quidditas rei”, enquanto é objeto da inteligência. “Distinctio rationis, pois, neste
caso significaria “distinctio quiditatis rei secundum quod quidditas est obiectum
intellectus" (Scotus, loc. cit. n. 401, ed. Vaticana vol. II, p. 355).
Segundo Duns Scotus, poder-se-ia dar à distinção entre a essência e as pessoas
divinas também o nome de “distincio virtualis” (loc. cit. n. 402). Esta locução em
Duns Scotus tem um sentido diferente daquilo que significa no tomismo. Para o
Subtil, significa uma diferença “ante omnem actum intellectus”, enquanto que para
os tomistas significa uma diferença “post actum intellectus". Vê-se que o termo é
praticamente equívoco, e mais: significa não apenas coisas inteiramente distintas,
mas até opostas. Por que Duns Scotus deu tal sentido à locução? Diz que onde se
verifica a distinção questionada, os objetos diferentes não são “res et res”, mas
"una res habens virtualiter sive praeeminenter quasi duas realitates, quia utrique
realitati ut est in illa una re competit illud quod est proprium principium tali realitati
ac si ipsa esset res distincta..." (loc. cit. n. 402).
Conquanto não considere erradas as expressões “distinctio rationis” e “distinctio
virtualis", no sentido em que as interpretou, acha contudo que não são muito
apropriadas para designar a distinção existente entre a essência e as pessoas
divinas. Por isto as rejeita e procura uma expressão mais adequada. Chama a
atenção para os vários graus de unidade, ou mesmo espécies de unidade: ”unitas
aggregationis ... ordinis ... per accidens ... per se ... simplicitatis” (loc. cit. n. 403).
Graus ou espécies semelhantes também existem para a identidade, e quando se
fala em identidade não se pensa necessariamente e sempre na formal. Para que
haja identidade formal, estabelece as seguintes condições: “Voco autem
identitatem formalem [illam] ubi illud, quod dicitur sic idem, includit illud cui dicitur
sic idem in ratione sua formali quidditativa per se primo modo” (Loc.. cit. n. 403). O
“per se primo modo" se refere ao "estar incluído". Para exemplificar: deste modo o
universal está incluído no particular, o predicado assim está incluído no sujeito e o
sujeito no predicado quando se trata de definições propriamente ditas. Incluído
“per se", numa formalidade, portanto, está aquilo que faz parte de sua definição
essencial. Incluído “per se primo modo" está alguma coisa em outra, quando o
predicado não encerra em sua significação nada que não exista no sujeito.
Incluído “per se secundo modo", quando a significação do predicado ultrapassa a
do sujeito. Explicados assim os termos, vê-se que para a identidade formal Duns
Scotus reclama o seguinte: 1. os dois elementos, dos quais se afirma, devem
pertencer um à essência do outro; 2. na proposição em que é afirmada, o
predicado, com seus elementos materiais e formais, deve estar inteiramente
contido no sujeito; 3. os dois pontos mencionados devem ser assim por
necessidade essencial e por essência.
Fixados estes conceitos, pode-se fazer a aplicação a Deus. É um fato que todos
concedem que a definição essencial de Deus não pode conter a definição formal
das propriedades da hipóstase e que a definição da hipóstase não inclui os
elementos formais da definição essencial da essência. Só assim se pode
compreender que “ante omnem actum intellectus” a realidade que é essência é
comunicável, enquanto a hipóstase enquanto hipóstase é incomunicável. Só assim
se compreende que “esse essenciae” exato e formal não é o “esse hypostaseos”
exato e formal. Com outras palavras: entre essência divina e hipóstase não existe
uma identidade que corresponda aos elementos necessários para a definição da
essência divina e hypostase.
De tudo isto segue que se deve admitir entre essência e hipóstase em Deus uma
distinção, e que a distinção que provém do pensamento não basta para satisfazer
as condições vistas. Como a distinção real também não pode ser admitida, é
necessário recorrer a uma terceira espécie de distinção. Na Escola Escotista esta
recebeu o nome de “distinctio formalis”. Duns Scotus pessoalmente não usou esta
terminologia e se exprimiu com extremos de cuidado. "É melhor dar preferência à
formulação negativa, isto é: “isto não é formalmente idêntico”, em vez de dizer:
“isto se distingue assim e assim” (loc. cit. n. 404). Suas preocupações, porém,
foram ainda mais subtis. Indagou: "Não será coerente dizer: essência divina e
hipóstase divina não são formalmente idênticas, logo são formalmente distintas?”
(loc. cit. n. 405). E respondeu: "Não, isto não é coerente, porque a formalidade é
afirmada numa e negada na outra" (loc. cit. n. 405), e entre o “nada” e o “algo”
propriamente não se pode dizer que há diferença, pois que a distinção é uma
relação que reclama dois extremos e não pode existir se um dos extremos não
existe – e o “nada” não existe.
Concluindo, diz Duns Scotus:
Breviter dico, quod in essentia divina ante omnem actum intellectus est entitas “a” (ratio
qua formaliter suppositum est suppositum) et entitas “b” (ratio essentiae ut essentiae), et
haec formaliter non est illa, ita quod intellectus Patris considerans “a” et considerans “b”,
non habet ex natura rei unde ista compositio sit vera: “a” non est formaliter “b”, non autem
praecise ex aliquo actu intellectus circa “a” et “b” (loc. cit. n. 406).
Que se há de pensar de tudo isto? Em todo caso não se poderá deixar de "tomar
em consideração o modo extremamente diferenciado e reservado com que Duns
Scotus se exprimiu. As tentativas de refutação, feitas no decorrer dos séculos, não
atenderam às formulações subtis e às distinções extremamente delicadas,
supondo uma doutrina bem rudimentar e pouco diferenciada. Para discordar, é
preciso antes de mais nada alcançar o ponto em que Duns Scotus se situa. E
situa-se, como se viu, mais que tudo na análise do “fundamentum in re", tão pouco
analisado entre os que afirmam a “distinctio virtualis" no sentido tomista. Não será
que, analisando o "fundamentum in re" com mais cuidado, se chega a afirmações
ao menos bem mais próximas das de Duns Scotus, do que as que costumam ser
feitas?
Uma questão grave que se justifica é: e a simplicidade infinita de Deus? Duns
Scotus não perdeu de vista esta verdade em suas investigações sobre a distinção
entre essência e hipóstase em Deus. Procedeu da seguinte maneira: é um fato
indiscutível que também para o conhecimento intuitivo de Deus existe em Deus
algo que é comunicável e o que não é comunicável. Como a ciência intuitiva de
Deus corresponde à objetividade e não nasce de abstração, segue que estas
diferenças devem existir “in re", no próprio objeto, e não podem derivar do sujeito
pensante. Estas diferenças, porém, levam necessariamente à afirmação de que
em Deus o que é comunicável e o que é incomunicável não é formalmente
idêntico, pois que do contrário ou a ciência divina estaria labutando em erro ou
não seria ciência intuitiva. Disto segue, como conclusão indeclinável, que a
essência divina não é formalmente idêntica às pessoas divinas. Constando isto, e
constando simultaneamente a simplicidade infinita de Deus, segue que estes dois
dados não podem colidir. “Ista autem non identitas formalis stat cum simplicitate
Dei, quia hanc differentiam necesse est ponere inter essentiam et proprietatem,
sicut supra d. 2, q. un. ostensum est" (Ordin., lib. I. dist. 8, q. 4, n. 21, ed. Vivès,
vol. IX, p. 667a); nesta distinção oitava, aliás, Duns Scotus prova que esta “non
identitas formalis” existe também entre os atributos essenciais de Deus e que por
conseguinte é um erro atender a simplicidade divina de tal modo que se oponha a
esta distinção.
CONCLUSÃO
Para completar o quadro da doutrina trinitária de Duns Scotus, muitos outros
pontos deveriam ser mencionados. Mais que tudo – como foi frisado logo de início
– teria sido necessário mencionar, ponto por ponto, os argumentos do Subtil, pois
que neles mais do que tudo está a sua originalidade, está a sua doutrina trinitária.
Para a finalidade deste resumo, porém, basta o que ficou dito. Percebe-se quanto
o conceito de pessoa e a doutrina da “non-identitas formalis” estão onipresentes
em todos os pormenores desta doutrina e quanto são aplicados com coerência.
Dever-se-ia escrever um tratado sistemático da doutrina trinitária com os muitos
elementos que Duns Scotos legou à posteridade. Ele mesmo não elaborou um
tratado sistemático, mas ajuntou questão a questão, assim como apareciam a
propósito dos temas tratados pelo mestre das sentenças ou como lhe eram
propostos nas questões quodlibetais. Talvez também se abstivesse
propositalmente de escrever um tratado sistemático, por estar convencido demais
do caráter fragmentário da revelação neste assunto. Legou não só questões
resolvidas, deixou muitas sem solução e outras vezes rasgou horizontes ainda não
explorados. Os escotistas terão levado avante as pesquisas do mestre de sua
escola? Quanto conhecemos os tratados trinitários escotistas, temos a impressão
de que se viram acuados à defensiva, sem conquistarem a oportunidade de
elaborações positivas, não apologéticas. Em suas apolologias do mestre nem
sempre foram felizes. Não atenderam suficientemente à coerência do
pensamento, puseram-se a defender pormenor após pormenor, enganando-se
não raras vezes e tomando como afirmação de Duns Scotus o que ele de fato não
afirmou. Outras vezes transformaram em tese o que ele tinha aventado apenas
como hipótese de trabalho. Para escrever um tratado sistemático de doutrina
trinitária, segundo Duns Scotus, antes de mais nada será necessário voltar ao
próprio texto do mestre e aferir com ele tudo quanto a escola escotista afirma. Em
seguida, retomar o fio da pesquisa, onde Duns Scotus o largou e tentar seguir
pelos caminhos por ele indicados. Ver-se-á depois até que ponto o caráter
fragmentário da revelação permite um conjunto sistemático. Nisto, porém, será
necessário cultivar também o espírito crítico do Subil, para não acontecer que
demos passe livre a doutrinas modalistas ou triteístas – como tantas vezes
aconteceu durante o decorrer da história
COMENTÁRIOS
DA PESSOA
Hermógenes Harada*
INTRODUÇÃO
É bem conhecida a definição de pessoa, de Boécio: persona est naturae rationalis
individua substantia.1 Pessoa aqui se refere ao indivíduo humano, portanto ao ser
do homem.
A respeito dessa definição, Tomás de Aquino diz ser ela aplicável também às três
pessoas da Santíssima Trindade, contanto que se entenda rationalis como
intellectualis e individua como incommunicabilis.2 Nessa perspectiva a definição
soaria: persona est naturae intellectualis incommunicabilis substantia.3 Pessoa
aqui se refere às pessoas da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo.
Portanto ao ser de Deus num sentido todo próprio, a ser explicitado mais tarde, no
fim do comentário.
A seguir, tentemos comentar a 17ª conversação espiritual4 de Mestre Eckhart,
intitulada: Como deve o homem manter-se em Paz, quando não se encontra em
penoso labor externo, que Cristo e muitos santos tiveram; como o
homem,<então>5 deve seguir a Deus.6 Só que o que segue como comentário tem
pouco a ver com comentário, pois o seu modo de proceder é em várias reflexões
que são excursos, a modo de hipóteses, como um divagar para dentro de
pressuposições, presumivelmente pré-jacentes sob os termos usados pela
*
Pesquisador da Faculdade de Filosofia S. Boaventura.
1
Pessoa é substância individua da natureza racional.
2
Tomás de Aquino, S. theol. Ia, q. 29,a.3, ad 4.
3
Pessoa é substância incomunicável da natureza intelectual.
4
Reden der Unterweisung (conversações instrutivas), traduzido em Mestre Eckhart, O livro da Divina
Consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1991, como Conversações espirituais. Cf. também
Scintilla, n. 1, jan.-jun.04, p. 155s.
5
Os textos alemães de Eckhart são em alemão medieval (Mittelhochdeutsch), que na edição moderna de suas
obras foram vertidos em alemão atual. Os sinais de inclusão <...> indicam que as palavras ali cercadas foram
acrescentada, ou para suprir lacunas ou para melhorar a fluência atual da linguagem, por ocasião dessa versão.
6
Wie sich der Mensch in Frieden halte, wenn er sich nicht in äusserer Mühsal findet, wie Christus und viele
Heilige sie gehabt haben; wie er Gott <dann> nachfolgen soll.
definição acima mencionada da pessoa, e então a partir dali tentar ler a 17ª
conversação espiritual de Eckhart, ouvindo a ressonância de fundo, ontológica,
das suas exortações espirituais-morais, digamos ônticas.
Mas, diante desse texto de Eckhart, pergunta-se de imediato: o que tem a ver
esse texto com a definição de pessoa de Boécio e de Sto. Tomás? A implicação
desse texto com a definição de pessoa, embora Eckhart não use a palavra pessoa
no texto em questão, está presumivelmente justificada pelo fato de Eckhart exortar
com repetida e acentuada insistência que cada um dos seguidores de Cristo deve
segui-lo a seu modo, no modo próprio de cada um. Aqui o modo próprio se refere
ao próprio de cada um de nós, a saber, ao que há de mais “substancial” em mim,
à “pessoa” de mim ou talvez digamos nós, hoje, ao meu Self ou Selbst.
Nessa 17ª Conversação, Eckhart descreve frustração e desânimo usuais das
pessoas, seguidoras de Cristo, quando se descobrem medíocres, ao se
compararem com Ele e com os santos, seus discípulos extraordinários. E segue o
texto:
1 TEXTO
Por isso, essas pessoas, quando no Seguimento se acham deles tão desviados, se
consideram longe de Deus, a quem elas não poderiam seguir.
Ninguém, jamais, deve fazer tal auto-avaliação! O homem de modo algum deve se
considerar longe de Deus, nem por causa de quebraduras, nem por causa de fraquezas,
nem por nada, seja o que for. E por mais que tuas grandes transgressões tenham te
arrastado a vaguear longe de Deus, tu deves acolher a Deus como próximo a ti. E há um
grande mal nisso de o Homem deslocar a Deus para longe de si; pois, seja que o homem
ande longe ou perto de Deus: Deus jamais vai para longe, ele permanece com constância
bem perto e se não puder ficar dentro, ele se cola à porta e dela não se afasta.
Assim também é com o rigor do Seguimento. Observa em que pode consistir nesse caso o
teu Seguimento. Tu deves conhecer, deves ter percebido em que és exortado por Deus da
maneira mais forte; pois de nenhum modo os homens são chamados a Deus em um
caminho, como diz São Paulo <1Cor 7, 24). E tu, se achas que o teu caminho, o mais
próximo não corre sobre muitas obras exteriores e sobre grande e penosa labuta ou
privações – nas quais, nesse caminho, também como tal não se coloca tanto acento, a não
ser que para isso o homem seja propriamente impelido por Deus, e que tenha a força, para
realizar tal coisa retamente sem o distúrbio errante da tua interioridade –, se tu, portanto,
de tudo isso, nada encontras em ti, então estejas totalmente em paz e nisso não te deixes
importar muito.
Poderias sem dúvida dizer: Se não há nisso importância, por que então assim o fizeram
nossos antepassados, muitos santos?
Assim, pondera, pois: Nosso Senhor lhes deu esse modo, e também a força para assim
agir, a ponto de eles manterem esse modo até o fim, e justamente ali, nisso, ele encontrou
sua complacência junto deles; é ali, nisso que eles deviam alcançar o que é o melhor de si.
Pois Deus não atou a salvação dos homens a certo modo especial. O que um modo tem,
isto não o tem o outro modo; o poder de realização, porém, Deus proporcionou a todos os
modos bons, e não é negado a nenhum modo bom, pois um bem não é contra o outro. E
por isso a gente devia perceber por si que não se age retamente se, ao ver ocasionalmente
um homem bom ou dele ouvir falar, o avaliar como inteiramente perdido, por não seguir o
modo da gente. Se não agrada à gente o seu modo, então não se leva em conta o seu
bom modo nem sua boa disposição. Isto não é justo! No modo das pessoas deve-se
atentar mais a isso que elas possuem uma boa intenção, e que não desprezam o modo de
ninguém. Não pode cada um particular ter somente um modo, e não podem todos os
homens ter somente um modo, nem pode um homem ter todos os modos nem cada modo
de um homem.
Cada qual guarde o seu bom modo e todos <outros> modos ali dentro e empuxe no seu
modo todo o bem e todos os modos. Troca do modo faz o modo e o humor instáveis. O
que um modo te pode dar, isto podes também alcançar no outro modo, enquanto ele é bom
e louvável e tem somente a Deus em vista. Além disso, não todos os homens podem
seguir um caminho. Assim o é também com o Seguimento do rigoroso teor de vida
daqueles santos. Deves certamente amar tal modo, e ele te pode agradar, sem que tu
precises segui-lo.
Mas poderias dizer: Nosso Senhor Jesus Cristo tinha sempre o supremo modo; ao qual
devemos seguir constantemente por causa da retidão.
Isto é certamente bem verdade. A Nosso Senhor devemos seguir como convém e, no
entanto, não em cada modo. Ele, Nosso Senhor jejuou 40 dias; jamais, porém, deve-se
empreender em segui-lo nisso. Cristo fez muitas obras na intenção de que devamos seguilo espiritual e não corporalmente.
Por isso, devemos ser aplicados para que o possamos seguir no modo espiritual, pois ele
tinha mais em vista o nosso amor do que as nossas obras. Nós devemos cada vez segui-lo
no próprio modo. Como, pois?
Ouve: em todas as coisas! - Como e em que modo? – Assim como eu já o disse muitas
vezes: eu considero uma obra espiritual como muito melhor do que uma corporal.
Como?
Cristo jejuou 40 dias. Nisso o sigas, assim a ponto de observares a que estás bem mais
inclinado ou pronto: sobre isso concentra-te e com acuidade fica de olho em ti mesmo.
Muitas vezes convém te afastares disso mais e sem pré-ocupação, do que te privares
totalmente de todas as comidas. Assim, também te é muitas vezes mais difícil silenciar
uma palavra do que abster-te simplesmente de toda a fala. E deste modo pesa muitas
vezes muito mais aceitar uma pequena palavra de ofensa de pouca importância do que
talvez admitir um pesado golpe, para o qual a gente se tinha prevenido, e nos é às vezes
mais difícil deixar algo pequeno do que algo grande, e erigir uma pequena obra do que
uma que se tem por grande. Assim, pode o homem na sua fraqueza seguir muito bem a
Nosso Senhor e não pode nem precisa se considerar afastado longe dele.
2 COMENTÁRIO
2.1 Indivisibilidade e incomunicabilidade
Com uma proibição incisiva, Eckhart não nos permite avaliar o ser do
relacionamento entre Deus e criatura, introduzindo na compreensão dessa
partícula conjuntiva “e” distância de separação. Antes, o seu modo de falar é o de
nos incentivar a compreender relação Deus-criatura como radicalização cada vez
mais intensa de união, união essa que, a partir de Deus é tão séria que é
imediatez e totalidade ab-soluta:
Ninguém, jamais, deve fazer tal auto-avaliação! O homem de modo algum deve se
considerar longe de Deus, nem por causa de quebraduras, nem por causa de fraquezas,
nem por nada, seja o que for. E por mais que tuas grandes transgressões tenham te
arrastado a vaguear longe de Deus, deves, acolher a Deus como próximo a ti. E há um
grande mal nisso de o Homem deslocar a Deus para longe de si; pois, seja que o homem
ande longe ou perto de Deus: Deus jamais vai para longe, ele permanece com constância
bem perto e se não puder ficar dentro, ele se cola à porta e dela não se afasta.
Proximidade-imediatez: communicatio e praticipatio
Essa ab-soluta proximidade de Deus da sua criatura, considerada a partir de
Deus, se chama communicatio (comunicação). Trata-se da comunicação, a saber,
da incondicional doação de si de Deus, do ser de Deus à criatura. Como Deus é o
ser, ipsum esse (o próprio ser), a plenitude do ser, de tal sorte que fora, ao lado,
para além ou para aquém Dele em se dando a si todo, nada há que seja ser,
sugere a pergunta: como é possível, pois que haja criaturas como entes? As
criaturas, que realidade possuem, se fora de Deus não pode ser senão nada?
Como, porém, os entes criados são, constituindo a imensidão do universo criado,
é necessário permitir que elas sejam de algum modo. Assim, atribuímos às
criaturas uma entidade, mas entidade de participação no ser de Deus.
Participação significa ter parte, tomar parte.
Usualmente se diz que esse binômio communicação-participação é para não se
cair no panteísmo, ao falar do relacionamento Deus e criatura. Certamente, o
medieval cuidava com muito rigor que a explicação do relacionamento Deus e
criatura fosse livre de panteísmo. Mas esse cuidado não significava de modo
algum o receio de aproximar Deus demasiadamente da criatura, mas pelo
contrário o medo de afastá-lo, a Ele e a criatura, do ser próprio da proximidade, da
imediata intimidade sui generis desse relacionamento inominável. O medo do
pensamento medieval expresso no combate ao panteísmo é o receio de reduzir o
sentido do ser próprio da realidade chamada Deus-criatura a um outro sentido do
ser, inadequado e impróprio ao seu nível de intensidade, inconveniente ao da
região das substâncias simples. Nesse sentido, para o medieval, o problema do
panteísmo parece surgir somente se não se tiver suficiente sensibilidade
ontológica, i.é, senso de diferenciação pelo sentido do ser operante na fala do
relacionamento Deus e criatura. Se o sentido do ser ali operante for o do ser na
acepção do ser físico-coisal quantitativo, então o relacionamento entre Deus como
o ser absoluto e a criatura como o ser em parte resulta na relação de coisa e
coisa, cuja diferença é apenas de quantificação, o todo de um lado e o em parte,
de outro. Aliás, numa tal colocação, de modo algum se dá relação, muito menos,
relacionamento, pois tanto Deus como criatura são reduzidos à coisa, de tal sorte
que aqui nem sequer dá-se o toque “entre” coisa e coisa. Esse modo de o homem
se entender, e a tudo quanto de alguma forma está referido a ele é resultado da
dominação de um determinado sentido do ser, denominado coisal, a partir e
dentro do qual o homem se posiciona como esta coisa-sujeito e agente da relação
que ele lança sobre aquela coisa-objeto chamado Deus, do cujo ser ele, o homem,
participa. Como ser aqui é entendido como ser-coisa, coisa aqui e coisa lá, por
mais que se diga serem diferentes, a coisa divina e a coisa criatural, esta coisa,
finita e aquela infinita etc., são feitas do mesmo elemento. Surge a perspectiva do
panteísmo que na realidade deveria ser chamado de panrealismo.
Repetindo com outras palavras: os termos communicatio e participatio são termos
usados pelo pensamento medieval para viabilizar a proximidade do
relacionamento Deus-criatura, salvaguardando a absoluta alteridade de Deus, a
sua aseidade; o reconhecimento do a priori de que o seu ser é a plenitude do ser,
de tal modo que “fora” de Deus não há ser, nem sequer nada, enquanto este ainda
de alguma forma pode ser predicado pelo verbo ser.7 Mas ao mesmo tempo, com
essa afirmação, sob o termo participatio, tenta-se salvaguardar a in-seidade da
criatura, e evitar que criatura seja apenas um prolongamento de Deus. A criatura é
um ente in se, não in alio, embora seja totalmente ab alio e não a se como Deus.
Nesse sentido, criatura não é o ser de Deus, nem Deus o ser da criatura, não
porque ela é finita e Deus infinito, mas porque o sentido do ser aqui operante não
faz jus nem a Deus nem à criatura. Nessa estranha situação expressa nos termos
Communicatio e participatio não se trata, como há pouco foi dito, do medo do
panteísmo. Antes é medo de ser entendido como panteísmo, não porque não
guarda a distancia entre Deus e criaturas, mas porque uma tal igualação
coisificante de dois entes, a partir e dentro de um sentido do ser de densidade
bem rarefeita, é inadequada para uma igualdade absoluta entre Deus e criatura,
cuja proximidade e imediatez de Deus na criatura e da criatura em Deus somente
pode ser realidade num sentido do ser, cuja palavra originária diz pessoa.8
Segundo a observação de Sto. Tomás, mencionada no início desse comentário a
definição de Boécio – persona est naturae rationalis individua substantia –
7
A partir de Deus, ele é todo o ser, de tal modo que se “fora de Deus ainda houver algo que seja ser, ou esse
ente não é senão apenas uma quimera ou Deus não é Deus. As criaturas seriam nessa perspectiva como
palavras que saem da boca de Deus, é de Deus: comunicação de Deus.
8
Aqui pessoa não deve ser entendida como sujeito, mas sim como o ontologicum, o sentido do ser que
inaugura uma dimensão do ser, cuja intensidade e pregnância do ser deixa ser de modo mais claro e evidente
o próprio dos entes pertencentes à região do ser das assim chamadas substâncias simples ou dos espíritos. Se,
porém, não tematizamos o sentido próprio do ser denominado pessoa, e permanecemos sempre de novo
debaixo da conotação do ser da entificação coisal, podemos raciocinar: se aqui Deus é tudo e nós nem sequer
“parte” como um ente em si fora de Deus, talvez houvesse uma única possibilidade de criatura ser, em sendo
como Ele, doação absoluta de si inteira e totalmente no receber. Isto significaria que participar do ser de Deus
não é outra coisa do que ser pura e simplesmente nada a não ser apenas pura recepção, a tal ponto de aqui não
há um sujeito que recebe, mas apenas o receber. Mas um tal receber seria então não algo fora de Deus mas
sim um momento da própria doação absoluta de si que é Deus. A situação aqui é um tanto estranha. Pois no
pensamento medieval, somente Deus é, no sentido de ser ele ipsum esse, i. é, Deus e ser coincidem. Se é
assim, o que são criaturas? Se são só em parte, como é possível que de alguma forma sejam como
participantes, existentes fora de Deus, diferentes Dele. E, se são, há somente um modo de ser, a saber, uma
parte, um momento, um algo Dele, Nele...
aplicada às pessoas divinas, pode ser modificada pela sugestão de Sto. Tomás
em: persona est naturae intellectualis incommunicabilis substantia. Em Boécio:
substância individua se refere às criaturas. Em Santo Tomas: substância
incomunicável se refere a Deus, não enquanto natureza, mas enquanto pessoa.
Examinemos brevemente em que consiste a individualidade do indivíduo e da sua
individuação, e em que consiste a incomunicabilidade da pessoa divina e da sua
processão. Pois aqui no termo “pessoa” aparece a conotação da indivisibilidade9 e
incomunicabilidade,10 como nitidez da perfilação da substância enquanto ens in
se, de tal modo que nessa definição da pessoa se acentua mais a distância do
que a proximidade no relacionamento Deus e criatura.11
Indivisibilidade ou incomunicabilidade se referem ao uno
Para que aqui possamos ver a diferença entre substantia individua e substântia
incommunicabilis é necessário evitar três equívocos. O primeiro é de identificar o
indivíduo do pensamento medieval como um momento pontualizado de funções de
um conjunto, dentro do sistema das ciências naturais físico-matemáticas, onde o
sentido do ser ali operante reduz toda e qualquer realidade à realização da
classificação generalizante funcional, quantitativa físico-matemática. O segundo é,
a partir do primeiro equívoco, pensar que a ordenação medieval do universo em
intensificações do ser nas “graduações”, ou melhor, nas ordens de esferas de
entificações, portanto a ordenação do universo em gênero, espécie e indivíduo a
modo da definição essencial da árvore porfiriana, não é outra coisa do que uma
modalidade antiquada da classificação generalizante, funcional, quantitativa físicomatemática, sem perceber que se trata de dois modos de “classificação” bem
diversos. Assim, na ordenação das esferas das diferentes intensidades de ser, a
saber, da esfera da substância material (o ente sem vida como pedra, metal), da
esfera da substância vivente (os vegetais), da esfera da substância sensível (os
animais), da esfera da substância racional (homem) não se percebe a diferença
ôntico-ontológica da intensidade de ser na escalação da qualificação de ser das
esferas.12 E o terceiro é, já dentro da ordenação medieval a modo da árvore
9
Pessoa como substância indivisível, da natureza racional, i.é, do homem (criatura).
10
Pessoa como substância incomunicável, da natureza intelectual, i.é, do Filho Unigênito do Pai. Os
medievais caracterizavam a imagem e semelhança de Deus na alma, referindo a memória ao Pai, intelecto ao
Filho e vontade (coração, afeto) ao Espírito Santo.
11
Talvez uma vez a partir e dentro do ontologicum, i. é, do sentido do ser próprio dessa dimensão em questão
no nosso comentário, portanto do sentido do ser pessoa, indivisibilidade e incomunicabilidade da inseidade
substancial, longe de ser distanciamento, é propriamente a condição da possibilidade de proximidade, de uma
proximidade tal que Eckhart chama sem mais de igualdade.
12
Assim, colocam-se pedra, planta, animal e homem como entes (substâncias), um ao lado do outro, em
diferentes conjuntos, como gênero, espécie, cada qual contendo os indivíduos correspondentes do conjunto,
lançando sobre os diferentes conjuntos uma lógica de divisão, em cuja razão classificatória, o conteúdo como
tal apenas funciona como elemento de delimitação quantitativa da ordenação em maior ou menor extensão
lógica, a modo de conjunto de funcionalidade a modo quantitativo físico-matemático. Com isso se misturam
dois modos bem diferentes de classificação, de sorte que não se está nem na “classificação” funcional
porfiriana, entender a palavra substantia da expressão substantia individua e a
palavra substantia da expressão substantia incommunicabilis como se fossem
unívocas. Com outras palavras, esquecer que a ordenação a modo de Porfírio,
somente diz respeito às substancias compostas, e que nas assim chamadas
substâncias simples a intensidade do ser que qualifica o ente em questão entende
o indivíduo, não como um caso da realização da espécie, e esta do gênero, mas
como universal, cuja densidade faz coincidir espécie “indivíduo” com espécie, de
tal modo que essa universalidade singular caracteriza a ordem dos entes não
“materiais”.
Examinemos brevemente na ordenação dos entes denominados substancias
compostas13 em que consiste e o que significa a individuação. Repetindo, a
ordenação das esferas dos entes, substâncias compostas, se escala, iniciando de
baixo em:
1) a substância dos entes simplesmente ocorrentes ou não vivos (coisas físicomateriais físicas, p. ex. pedra, metal etc.: = espécie ínfima substância que é
também gênero para a espécie superior próxima vivente) e o seu modo de ser:
ocorrer; 2) a substância dos entes vivos (coisas vegetais, p. ex. plantas: = espécie
vivente e ao mesmo tempo gênero para espécie superior próxima animal) e o seu
modo: viver (vivere). Aqui se inclui de algum modo a substância dos entes
sensíveis (coisas animais, p. ex. gatos, pássaros = espécie animal e ao mesmo
tempo gênero para espécie superior próximo homem) e o seu modo: = vivenciar
ou sentir; 3) a substância dos entes racionais (coisas humanas, p. ex. homens,
mulheres, crianças etc. = espécie supremo homem) e o seu modo: = conhecer.
Nas três modalidades de “ser” substância – substância coisal (1), substância
vivente (2), substância racional (3) – o termo substância parece ser unívoco, mas
se bem examinado é em cada nível na escalação da ordenação, diferente
quantitativa moderna, nem na ordenação essencial da intensidade do ser, medieval.
13
Como é usualmente conhecido, o universo medieval apresentava-se em ordenações da intensidade de ser
que partindo de Deus (ens a se, absoluto e infinito), a fonte da possibilidade de ser e a plenitude absoluta de
ser (Deus ipsum esse) formava algo como cascata de ser, em diferentes esferas ou níveis da intensidade de ser,
até alcançar a esfera, a mais longínqua e diluída do ser, a saber, o mundo dos entes materiais sem vida, que
por sua vez por assim dizer se esvai na pura possibilidade de ser denominada prima matéria ou nada. Essa
“realidade” última da Criação ou do universo criado era descrita como “feita” “ex nihilo sui et subiecti” a
saber, do nada de si e do substrato anterior prévio. Essa pura possibilidade de ser era também denominada de
“potentia oboedientialis”. A totalidade dessas ordenações se constituía em duas grandes regiões do ser, que
vistas na ordem ascendente, eram 1. a região das substâncias compostas, a saber: esfera a) da substância
material sem vida (pedras, metais etc.); b) da substância viva (vegetais); c) da substância dotada de
sensibilidade (animais); d) da substância dotada de racionalidade (homens, animal rationale). 2. a região das
substâncias simples ou dos espíritos: esfera a) dos nove coros dos anjos na sua hierarquia ascendente b) Deus.
Nessa ordem dos entes do universo medieval o Homem pertencia tanto à região das substâncias compostas
como à das substâncias simples. E enquanto pertencente à região das substâncias simples, o que o caracteriza
especificamente, a saber racionalidade (ratio, rationale) se escalonava na intensidade da perfeição do ser e
recebia então na dinâmica ascendente como animus (alma), intellectus, mens (spiritus). Essa posição do
homem por assim dizer no meio da graduação das ordenações do ser como que mediando a região de cima
(das substâncias simples) com a região de baixo (das substâncias compostas) e vice-versa era devida à
doutrina da encarnação. Homem aqui era entendido a partir e dentro do ser do Mistério da Criação,
interpretado como Mistério da Filiação divina: a saber, Jesus Cristo, Deus feito Homem e Homem feito Deus.
essencialmente. Na passagem de um nível para outro, não se dá apenas um
acréscimo de uma qualidade diferencial específico, a uma substância-bloco, fixa,
mas se dá uma transmutação substancial qualificativa no ser, a modo de
“subsunção” da ordem inferior pela superior. Há ali na escalação das ordenações
em diferentes níveis ascendentes e descendentes, um movimento da dinâmica de
qualificação do ser.14 Assim, a substância-coisa da espécie-ínfima ocorre como
gênero na espécie superior-vivente, para ser qualificada por diferença específicavivente, embora na descrição da sua “composição” soe como ajuntamento de uma
especificação a um genérico, está ali não como uma classe mais geral em vista de
uma especificação mais delimitada do campo de extensão geral, mas sim de um
movimento de gênesis (daí o termo gênero) donde brota, cresce e se consuma
uma totalidade própria na sua perfilação. Nesse sentido o termo espécie pode e
deve ser lido aqui como intensidade da presença como perfil do seu esplendor
(esplendor da face, beleza). Portanto a “lógica” da escalação não é classificação
do mais geral para o mais específico e então terminar no indivíduo como o
extremo de delimitação ou vice-versa, do indivíduo para o mais geral, e do geral
específico para o geral o mais extenso na abrangência, com o mínimo de
conteúdo. Portanto, na escalação da ordenação das esferas das substâncias
compostas a modo porfiriano, no pensamento medieval, trata-se de um movimento
de essencialização que continua na ordenação das esferas das substâncias
simples até culminar no Ente, que é em si e a partir de si simplesmente a plenitude
do ser, denominado Deus. Trata-se, pois, do movimento da concreção dinâmica
da imensidão, profundidade e da vitalidade, denominado pelos medievais de Obra
máxima da Criação.
Dentro dessa perspectiva o que significa substantia individua, o indivíduo?
Indivíduo significa propriamente indivisível. A essa impossibilidade de dividir,
opomos a divisibilidade, a possibilidade de dividir. E entendemos por dividir, partir,
separar uma parte da outra, fazer em pedaços. Essa ação de dividir parte do que
é aparentemente uno, em seus componentes, e se não forem componentes, em
pedaços, até que não se possa mais dividir, pois se chegou ao último elemento
nuclear, ao derradeiro “átomo”.15 Aqui podemos logo perceber que esse modo de
divisibilidade e indivisibilidade pertence ao modo de ser acima descrito como o
primeiro equívoco. O segundo equívoco era de pensar que esse modo de ser
físico-matemático fosse uma versão modernizada, cientificamente mais limpa do
modo de ser físico-corporal, ainda subjetivo e antiquado da ordenação do ser no
14
Por isso a expressão substância composta não é muito adequada para indicar essa implicação na escalação
da qualificação no ser.
15
Se entendermos a realidade a partir e dentro da realização sob o sentido do ser do físico-matemático das
ciências naturais modernas, a coisa entendida como quantidade e quantificações sempre é divisível
infinitesimalmente. De tal sorte que na direção do máximo e do mínimo se abre total indeterminação em
indefinido. Aqui não pode aparecer uma realidade e realização do tipo “totalidade”. Se nessa dimensão físicomatemático podemos de alguma forma pontualizar estaticamente o ente como algo, é porque delimitamos a
extensão quantitativa, de aqui até aqui, e criamos a possibilidade de dentro desse trecho delimitado
estabelecer medida válida em si, conforme a delimitação.
pensamento medieval, a esfera a mais elementar, a ínfima da substância
composta coisal. Para os medievais, nessa esfera, no entanto, os entes
subsistentes sem-vida, p. ex., pedra, possuem peso, tamanho, densidade etc., que
podem ser medidos em números, “matematicamente”, mas aqui peso, tamanho,
densidade não são no seu ser reduzidos à pura “quantidade” matemática a modo
das ciências naturais físico-matemáticas, mas são tomados concretamente dentro
da experiência de uso, a partir e dentro e a modo de uma existência artesanal.16
Como é aqui, nessa perspectiva concreta da experiência do mundo circundante no
uso e na vida, o que chamamos de gênero, espécie e indivíduo, p. ex. no mundo
das pedras? A espécie pedra aparece sob a denominação de a pedra. E o
indivíduo é denominado esta, aquela pedra.17 Aqui a pedra, a espécie é
denominada universal. E esta pedra ou aquela pedra, o indivíduo é denominado
singular. O relacionamento do universal para com o singular e vice-versa é bem
diferente do do geral ou comum para com o individual ou particular. Trata-se de
outro teor do ser. Aqui é preciso ser vista a diferença no teor do ser, portanto a
diferença do sentido do ser operante em cada nível da intensificação do ser na
escalada da ordenação dos entes no seu ser. Aqui, quanto mais elevado for o
nível do teor do ser na dimensão a que pertence um ente, tanto maior é o teor da
imensidão, profundidade e liberdade do seu ser, que aparece na densidade,
envergadura e na qualificação do modo de ser de uma “totalidade”, denominada
uno em se tratando do universo criado; e no “modo de ser” dentro da vida interna
de Deus uno-e-trino de Um, por Eckhart, cuja vigência unitiva é oculta, retraída,
mas se desvela como dinâmica do intercâmbio das três pessoas divinas, acima
designadas de incomunicáveis. Esse “modo de ser” da intensificação no ser se
chama universalidade. Uni-versal significa vertido, virado, convergido ao uno ou ao
Um e designa a intensidade do ser, e não generalidade em oposição a
particularidade.
Excurso ilustrativo:
Tentemos “ver” o universal à mão de um texto que descreve como um artesão
“viu” a obra perfeita, antes de ela estar diante dele como realização da realidade.
16
Aqui a medição “métrica”, mesmo usando-se matemática, não significa que o sentido do ser dominante
nesse uso dos números e da sua medição seja o do físico-matemático no sentido hodierno das ciências
naturais. A medição concreta em números, operante no rigor de exatidão artesanal nas construções dos
medievais, pode ser por assim dizer a experiência concreta pré-científica, no uso e na vida, a partir da qual
incoativamente as ciências naturais físico-matemáticas podem grosso modo ter tirado provisoriamente os
conceitos fundamentais da sua construção do saber como do seu “positum”. Mas na medida em que a
construção se afasta desse início, pode ter sofrido uma modificação na intencionalidade, de tal sorte que o que
vem à fala como medida destacada de exatidão objetiva físico-matemática se torna a medida básica de toda e
qualquer objetividade e exatidão, da realidade como tal.
17
Aqui deve-se evitar a compreensão classificatória usual a modo “semi”-lógico-matemático de “a pedra” na
acepção de “pedra em geral”, e de “esta ou aquela pedra” na acepção de “uma das pedras, em particular,
individual”. Deve-se evitar também a compreensão de a pedra como a representação abstraída a modo
indutivo das pedras individuais.
O texto é do pensador chinês Chuang-tzu, e se intitula O entalhador de madeira,
na tradução de Tomas Merton18:
Khing, o mestre entalhador, fez uma armação para sinos,/De madeira preciosa. Quando
terminou,/Todos que aquilo viram ficaram surpresos. Disseram/Que devia ser obra dos
espíritos./ O
Príncipe de Lu disse ao mestre entalhador:/ “Qual é o seu segredo?”
Khing respondeu: “Sou apenas operário:/ Não tenho segredos. Há só isso:/ Quando
comecei a pensar no trabalho que me ordenaste/Protegi meu espírito, não o desperdicei/
Em ninharias, que não vinham ao caso./ Jejuei, a fim de pôr/Meu coração em repouso./
Depois de jejuar três dias,/ Esqueci-me do lucro e do sucesso./ Depois de cinco
dias/Esqueci-me do louvor e das críticas./ Depois de sete dias/Esqueci-me do meu
corpo/Com todos os seus membros./ “Nesta época, todo pensamento de Vossa Alteza/E
da Côrte (?) se esvanecera./ Tudo aquilo que me distraía do trabalho/Desaparecera./ Eu
me recolhera ao único pensamento/Da armação do sino. “Depois, fui à floresta/Ver as
árvores em sua própria condição natural./ Quando a árvore certa apareceu a meus olhos,/
A armação do sino também apareceu, nitidamente,/ Sem qualquer dúvida./ Tudo o que
tinha a fazer era esticar a mão/E começar. Se eu não houvesse encontrado essa
determinada árvore/Não haveria/Qualquer armação para o sino.“O que aconteceu?/ Meu
próprio pensamento unificado/Encontrou o potencial escondido na madeira;/ Deste
encontro ao vivo surgiu a obra/Que você atribuiu aos espíritos” (XIX, 10).
Todo fazer do artesão era desprender-se de tudo quanto não era apenas a pura
disposição de deixar ser. Assim, tornou-se límpida e pura transparência do
receber. Esse vazio, essa suspensão, plena de acolhida, é o pensamento.19 Nessa
aberta do receber se dá o que os medievais chamavam de materia ou potentia20 (a
árvore certa) e simultaneamente forma ou actus (o aparecer da armação do sino
nitidamente)21. Materia e forma e potentia e actus na sua simultaneidade é modo
de expressar a dinâmica “una” do vislumbre da totalidade (eîdos) que se manifesta
como arquétipo, como exemplar, uni-versal de toda e qualquer individuação desse
18
MERTON, Tomas, A via de Chuang Tzu. 4ª edição, Petrópolis: Vozes, 1984, p. 158-160. Chuang-Tzu
significa Mestre Chuang. Seu nome é Chuang Chou. Pouco se sabe da sua vida. É um dos maiores pensadores
chineses do Taoísmo, do século III/IV antes de Cristo. Natural de Sung, viveu pouco depois de Mêng-Tzu.
Seus escritos estão reunidos no livro intitulado Chuang-Tzu, nei, wai p’ien (Escritas internas e externas de
Chuang-Tzu). A Tradição atribui a autoria de nei p’ien a Chuang-Tzu e de wai-p’ien a seus discípulos. Cf.
FEIFFEL, Eugen. Geschichte der chinesischen Literatur. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1959.
p. 47.
19
Cf. razão, intelecto, Vernünfticheit, Vernunft na reflexão a seguir.
20
Hýle, matéria-prima – potentia oboedientialis, a concreção do receber.
21
Não é assim que primeiro ou simultaneamente aparece a árvore e depois ou simultaneamente a armação do
sino. A nítida autopresença da armação do sino na sua perfilação concreta é o a priori que determina o
material certo para a configuração certa e a maneira de como conduzir a confecção para o seu vir à fala
individualizada dessa perfilação concreta. Os gregos chamavam essa perfilação concreta a priori de eidos, que
não é idéia, muito menos representação, mas a dinâmica energética do ser consumado (dýnamis, enérgeia,
entelécheia): a obra.
protótipo. Aqui, portanto, a espécie (eidos) é vislumbre da totalidade, cuja medida
é a plenitude da unidade da possibilidade consumada no e do todo.22 Nesse
sentido, repetindo o que já dissemos acima, universal significa literalmente virado,
concentrado na acolhida do uno: universo. A espécie, o eidos, o universal como
perfilação compacta, concreta e coerente do ser todo no seu assentamento, na
sua insistência na auto-presença do ser, é o que o medieval chamava de
substância. Essa subsistência na plenitude do ser é que era captada como coisa
indivisível, individua.
Assim, individual, indivisível não tem própria e primariamente a conotação de
atômico, fechado em si, portanto também incomunicável, mas sim da consumação
da plenitude do todo no seu ser. Assim entendido o “indivíduo”, para o medieval, o
universal e o “individual” coincidem, dizem o mesmo. Para não confundir esse
modo de ser uno, virado, concentrado no uno do todo, portanto do “indivíduo” com
o particular oposto ao geral da nossa classificação hodierna usual, usemos para
esse tipo próprio do “individual” o termo singular. Desse modo, o universal e o
singular coincidem.
O Universal singular: a qualificação no ser
Acima na nota 15 dissemos que no universo medieval distinguimos a região das
substâncias compostas e a região das substâncias simples. Se caracterizarmos a
dinâmica da escalação ascendente dessas ordenações como crescimento na
intensificação do ser, percebemos que aqui, os termos intensificação, intensidade
não podem ser com rigor entendidos como sinônimos de aumento quantitativo,
graduação, potencialiazação energética ou escalada de força. Mas como entender
o aumento, a intensificação de outro modo? Costumamos responder: tratas-se não
de quantidade, mas sim de qualidade do ser. Como, porém, entender o aumento,
a graduação, a escalada de qualidade? É possível colocar as qualidades a modo
de uma escalação de aumento ou de diminuição a modo quantitativo? Qualidades
não constituem cada qual uma totalidade de tal modo que não é possível falar de
aumento gradual de uma qualidade para uma outra? Aumento ou diminuição só é
possível, não entre as qualidades, passando-se de uma para a outra
gradualmente, mas apenas há aumento ou diminuição dentro de uma mesma
qualidade, não no sentido de quantificação, mas no sentido de limpidez, claridade
e pureza do quilate de qualidade em tornar-se ela mesma, sem mistura com uma
outra dimensão que não seja a dela. Quando na ordenação das esferas do ser do
universo medieval falamos de intensificação ou aumento do ser, devemos
entender “intensidade”, “crescimento”, “escalação” do ser no sentido acima
insinuado da qualificação. E no entanto, embora não entre aqui a quantificação, há
22
Não se deve representar aqui o todo ou a totalidade como soma das partes ou conjunto de múltiplas
entidades, mas sim como intensidade da consumação, da “compactidade”, “concretude” e “coerência” da
identidade como autopresença de si a partir e dentro de si mesmo, como assentamento, insistência no ser.
Nesse sentido pertencem essencialmente à totalidade, a imensidão, profundidade e originariedade.
constantemente onipresente em todas as escalas, qualitativamente diferentes do
ser, algo como vigência ou presença que caracteriza um modo todo próprio de
identidade e diferença, tratado na escolástica medieval sob a denominação da
questão da univocitas et analogia entis.
Deixando para mais tarde a questão da identidade da onipresença do ser em
todas as esferas dos entes na sua diferença qualitativa, cada vez como ser de
cada esfera, observamos como é o relacionamento do universal e do singular nas
esferas do ser da região das substâncias compostas. Na esfera das substâncias
materiais-físicas, p. ex. temos o universal a pedra. O indivíduo é esta pedra. Aqui,
nesse nível da intensidade do ser, a pedra só se torna presente, somente é como
esta pedra. Portanto a pedra e esta pedra não são duas coisas, uma ao lado,
dentro, acima ou a baixo da outra. A pedra-e- esta-pedra é o mesmo. No entanto,
a coincidência aqui se dá como repetição23 da tentativa sempre renovada de
esgotar a intensidade uni-versal como esta, aquela individualidade. Nesse nível do
ser, no indivíduo a pregnância da uni-versalidade se apresenta mais rarefeita.
Essa rarefação é o que aparece como a diferença específica dessa esfera na
“qualificação” da substância como morto, sem vida. O mesmo modo de ser da
coincidência se dá nas outras esferas das substâncias compostas, portanto, na
esfera da substância vivente; na da substância dotada de sensibilidade, e até
certo ponto na da substância dotada da racionalidade. Só que na medida em que
cresce a intensidade do ser, portanto, como vida, sensibilidade e racionalidade, o
indivíduo de cada uma dessas esferas cresce na pregnância do uni-versal, de tal
modo que a coincidência universal-individual se torna cada vez mais imediata,
direta como “indivisibilidade compacta”. E nesse sentido a possibilidade da
reprodução dos indivíduos no nível do ser da pedra é maior do que p. ex. no nível
do ser da planta; desta, maior do que no animal, deste maior do que no homem.24
Isto significa que quanto menos pregnância da presença do universal no indivíduo,
tanto mais universal e indivíduo aparecem por assim dizer “separados”, e o
universal como geral e o indivíduo como particular. E quanto menos pregnante, ou
mais rarefeita a presença do universal no indivíduo, tanto mais a indivisibilidade ou
incomunicabilidade, ou melhor, a unicidade, a singularidade do indivíduo é relativa
e rarefeita, possui menos “assentamento” em si mesma, é menos “substancial”. O
que equivale a dizer que quanto mais pregnante, mais coerente a presença do
universal no indivíduo, tanto mais a incomunicabilidade ou a unicidade singular do
indivíduo é absoluta, está mais assentada em si mesma, é mais substancial. Se
continuarmos esse modo de ver a coincidência do universal e indivíduo, da mais
relativa para cada vez menos relativa até à absoluta, agora para dentro da região
das substâncias simples, portanto no reino dos espíritos, podemos dizer que
23
Podemos exemplificar esse estado-de-coisa numa experiência da criatividade. Quando a inspiração é
rarefeita e pouca, o que vem à fala é também apoucado, de sorte que sua reprodução se torna como que
repetição em série, sem a pregnância do próprio, do único e necessário.
24
A superioridade numérica da repetição aqui indica a rarefação da intensidade da presença do ser. Ou
melhor, dito de outro modo, a rarefação da pregnância do ser que aparece na maior ou menor possibilidade
numérica de repetição constitui as diferenças das esferas na ordenação da região das substâncias compostas.
quanto mais se ascende na ordenação da intensidade do ser e se aproxima do ser
por excelência que se chama Deus, tanto mais intensa a identidade do universal
com indivíduo (singular), de tal sorte que na região das substâncias simples não
há mais nem universal que de alguma forma saiba à generalidade, nem indivíduo
que saiba à particularidade ou individualidade, mas ali o ente é cada vez
totalidade, plenitude do seu ser, portanto é simplesmente uni-verso ou uni-versal,
o que equivale a dizer é simplesmente singular, único, cada vez. Aqui, o ente é o
em-sendo-cada vez totalidade,25 todo um mundo ab-soluto na unicidade, no uno
da sua propriedade, única, plena, consumada.
Recordemos aqui a definição de Boécio da pessoa: naturae rationalis individua
substantia. E a sua aplicação às pessoas da Santíssima Trindade na formulação
sugerida por Santo Tomas é: persona naturae intellectualis incommunicabilis
substantia. E dentro da perspectiva do que viemos falando nos Ex-cursos,
perguntemos como devemos entender a indivisibilidade e a incomunicabilidade.
Usualmente entendemos o caráter próprio do indivíduo como indivisível. E
entendemos o pré-fixo in como não, como negação. Assim não-divisível ou nãodividido insinua uma representação de algo compacto a modo de um bloco duro,
difícil ou impossível de ser partido. Essa compactidade sugere a dificuldade ou
impossibilidade de partilhar, de dar ao outro algo de si, portanto de nãocomunicável, de incomunicabilidade. Essa imagem de compactidade quantitativa
coisal é projetada p. ex. numa obra de arte, quando dizemos: essa obra é
indivisível, não é reproduzível, não se pode repetir, é singular. E cometemos aqui
o equívoco de pensar que o característico da intensidade e pregnância da
totalidade é a compactidade-bloco, esquecendo-nos de que um bloco quantitativo
material jamais é indivisível, pois por mais que se atomize um bloco sempre é
possível ser dividido infinitesimalmente.
As colocações acima feitas nos Ex-cursos, porém, nos mostram que quanto mais
se cresce na intensidade do ser, digamos, “qualitativamente”, cresce a
compreensão da totalidade em todas as direções, no sentido de imensidão,
profundidade, originariedade, vitalidade, sensibilidade, interioridade e liberdade.
Assim, em vez de fixação e dureza compacta sem vida de coisa, aumenta o
volume e a qualificação na mobilidade, finura, complexidade, diferenciação de
estruturação, na coerência interna, possibilidade da generosa e cordial partilha,
livre, sem constrangimento. Com outras palavras quanto mais se ascende na
escala da ordenação dos entes em direção à região das substâncias simples o
significado do indivíduo se afasta da acepção de duro, imóvel, compactidade de
amontoação, de não-partilhável, para indicar cada vez mais a intensidade, a
grandeza, a subtileza e vigência criativa e livre de ser, portanto o aumento da
unidade da dinâmica de difusão generosa e livre, portanto o aumento da
comunicabilidade. Dito de outro modo, isto significa que quanto mais se intensifica
na qualificação do ser, tanto mais a indivisibilidade significa intensidade,
25
Insistindo, cf. a nota acima 19.
coerência, unidade da fidelidade e autocomprometimento na doação de si, na
comunicação, portanto da comunicabilidade. Tentemos entender nessa
perspectiva a definição: Persona est naturae rationalis individua substantia.
2.2 O racional e o intelectual
Os adjetivos racional e intelectual na sua acepção usual se referem à faculdade
chamada razão dentro da classificação tradicional das faculdades da alma em
razão, vontade e sentimento. Sem negar que em Eckhart o racional e o intelectual
possam se referir também à razão como uma das faculdades da alma e de suas
ações, primariamente o racional e o intelectual dizem respeito ao ser ou ao modo
da intensidade e qualificação do ser no nível da esfera Homem (animal ou ânimo
racional).
Racionalidade e intelectualidade como qualificação da intensidade do ser
Nessa perspectiva, racional e intelectual devem ser entendidos ontologicamente e
não tanto onticamente. Assim, racional e intelectual primeira e primariamente
significam o específico, o próprio ser do homem, aquilo que perfaz a diferença
essencial, i. é, substancial da sua natureza, i. é, da sua nascividade originária.
Como tal, nesse sentido ontológico sob o termo razão ou intelecto estão
subsumidas as três faculdades do homem de conhecer (razão ou inteligência), de
querer (vontade), de sentir (sentimento).26
26
No pensamento medieval a definição do homem é “animale rationale”, animal racional. Ratio, Racional,
aqui, primariamente, não tem tanto a ver com a nossa razão na acepção do “racionalismo”, mas muito mais
com Verbum, que é tradução do Lógos e Nõus gregos. E animale não se refere ao bruto, ao bicho, mas sim a
animus, a dinâmica vital do vivente sensível. Animale rationale é na realidade a tradução latina da
determinação do ser do homem, em grego, tò zõon lógon échon: o vivente atinente a lógos. Isto significa: a
vigência, a animação, cuja vitalidade é ser pertença, atinência fiel e obediente a Lógos é o que perfaz a
essência, o ente, ou melhor o em-sendo chamado Homem. Esse ser do homem se formula onticamente como:
o vivente que tem a linguagem. Linguagem aqui não tanto meio de comunicação, mas mais originariamente a
potência da dinâmica criadora em trazer à fala, à concreção, o eclodir do mundo. E Lógos aqui entendido mais
na acepção arcaica de ajuntamento, acolhida, colheita. Essa significação de colheita, acolhida aparece na
conotação existente no termo alemão Vernunft, no alemão medieval de Eckhart vernünftiheit, cujo significado
vem do verbo vernhemen que mais do que tomar, agarrar “ativo”, acena para o “passivo” receber, colher,
dispor-se a acolher. Ratio, rationale portanto diz respeito à vida do homem, à sua essência, ao seu ser, a saber:
disposição de acolhida, prontidão obediente e fiel de recepção. Dentro dessa perspectiva podemos interpretar
o intellectus do pensamento medieval como potência ou disposição, o ânimo cordial de intelligere. Intelligere
se lê inter-legere e de imediato significa ler entre linhas. Na palavra portuguesa ler (em alemão lesen) está a
mesma raiz do verbo grego légein (=leg-: ajuntar, colher). E “entre linhas” conota o médium, o inter-meio, a
saber, o “espaço” livre, a aberta, a partir e dentro da qual se estruturam as “coisas” que nos vêm ao encontro.
Nesse sentido, intelligere, intellectus, intellectualis significam acolher, acolhida, receber, recepção da abertura
a partir e dentro da qual nasce, cresce e se consuma a totalidade de um mundo. Por isso o destaque que se dá
aqui na definição da pessoa, da natureza racional e intelectual não tem muito a ver com racionalismo ou
intelectualismo, muito menos com “cartesianismo!”, mas com um determinado nível da intensidade do ser.
Em vez de questionar se aqui se trata da prioridade do intelecto ou da vontade ou do coração, fosse talvez
mais útil perguntar: nesse nível da intensidade do ser denominado natureza humana (aqui ânimo racional ou
intelectual = lógos, nõus) como seria onticamente o que denominamos na psicologia popular de razão,
Olhemos, agora numa visão panorâmica o todo da ordenação do universo no
pensamento medieval, estruturado em duas grandes regiões dos entes na
escalada da intensificação qualitativa do seu ser, a saber em região das esferas
das substâncias simples e compostas. E tentemos localizar o Homem nessa
escalação. De imediato percebemos que ele ocupa o lugar de destaque, no meio,
entre as duas regiões. O Homem, na direção ascendente da escalação na
intensificação do ser, iniciando-se da substância-morta, pertence à região das
substâncias compostas, e ocupa a esfera suprema dessa região “inferior”, onde a
vigência do ser dessa região é a mais intensa. E ao mesmo tempo, na sua
identidade que o diferencia de outros entes da região das substâncias compostas,
pertence ao e se torna, digamos, partícipe do modo de ser da substância simples,
não propriamente à sua esfera ínfima, mas digamos a um feixe vertical
ascendente de implicação entificante que partindo da “substância”-nada27, coisa,
vira vida, depois ânimo-sensibilidade e alma, e por fim ânimo-racional, e na
racionalidade, se adentra para dentro da região “superior” das substâncias
simples, perfazendo-se na escalação ascendente de intensificação no ser da sua
racionalidade como alma, espírito, intelecto e mente (mens), através da qual
penetra para dentro do abismo da possibilidade de ser denominado Deus28. Isto
significa que o Homem se estende no seu ser desde a matéria-prima até Deus,
não apenas somente até, mas muito mais, a saber para dentro do abismo do ser
de Deus, para dentro do abismo da vida íntima, para dentro da interioridade de
Deus que nos vem ao encontro, i. é, se desvela como a dinâmica da estruturação
do enigma das três pessoas e uma natureza de Deus, portanto do Mistério da
santa unidade-trina. Isto significa por sua vez que é no Homem, pelo Homem e
através do Homem que vem à luz a vigência da plenitude do ser que se torna
presença em Deus-Homem-Universo, denominada pelos medievais de Opus
maximum: Creatio, obra máxima da Criação. Se porém o Homem per-faz o espaço
livre, a aberta que perpassa desde a realidade e realização ínfima até para dentro
da suprema e para além da suprema realização da realidade, nele podemos
encontrar um fio condutor que perpassa toda a Criação e adentra o abismo da
interioridade do ser de Deus. Esse fio condutor se chama natura rationalis e
quando se é subsumido para dentro da interioridade do ser de Deus se transforma
em natura intellectualis, termos usados pela definição da pessoa em Boécio e da
sua aplicação às pessoas da unidade trina de Deus. No extremo ínfimo desse fio
condutor encontramos a matéria-prima que se denomina potentia oboedientialis. E
no “extremo” supremo dentro do abismo da interioridade divina encontramos o
Verbo, a pessoa Filho, cuja natureza é divina-humana como Deus feito Homem e
Homem feito Deus no mistério da encarnação. E lá onde o ser humano (todos os
homens), portanto o homem na sua humanidade, i. é, a natureza humana é tocada
vontade e sentimento como faculdades da alma?
27
28
A saber, matéria-prima como nada “criada” como pura possibilidade da potentia oboedientialis.
Cf. uma expressão como a da obra de São Boaventura: Itinerarium mentis in Deum. E observemos também
o seguinte: o que denominamos a região das substâncias compostas não é outra coisa do que o homem e seu
mundo vital circundante, que nele, através dele e para ele ali está como elementos constituintes do homem, e
nessa pertença, como seu prolongamento, participando da sua sorte e da sua realização.
pela natureza divina, nesse toque e na sua recepção, nessa unidade na
“plenitude” singular, a natureza divina e natureza humana coincidem, e o quilate, a
cristalização dessa comunicação absoluta é dita pelo nome Filho, pessoa. Essa
parte do ser humano, em participando da mesma sorte do Filho de Deus
encarnado, na linguagem de Eckhart a parte suprema da alma que também pode
ser chamada de espírito, é assinalada como puro ou supremo intelecto. Se, agora,
entendermos o termo intelecto como acima tentamos interpretar, a saber como
Vernünfticheit, como pura e absoluta disponibilidade de receber, e também
interpretamos a matéria-prima como potentia oboedientialis, e esta também como
pura disponibilidade de receber, então finalmente encontramos um denominador
comum para caracterizar o quê ou melhor o como desse fio condutor que
perpassa de baixo a cima o todo do universo-Criação, o qual poderemos definir
como a disposição pura, límpida, grata e cordial de receber: a alegria e liberdade
de receber.
O racional e o intelectual significam essencialmente recepção
Receber é um termo correlativo ao dar, como o são os binômios esquerda-direita,
em cima-embaixo, desvelado-velado. E na Tradição cristã, na qual Eckhart se
acha como medieval, o binômio receber-dar, uma vez referido a Deus e ao seu
opus maximum, a Criação, está intimamente ligado a Filiação divina e esta ao
Nascimento do Filho Unigênito do Pai, portanto, à processão das pessoas divinas.
E o que procede do Pai e Filho se chama Espírito Santo, que é caracterizado
como Amor. Nessa Tradição medieval Criação significa no fundo Filiação, e
Filiação significa comunhão no Amor. Assim, seguindo a usual Tradição cristã,
também Eckhart define a essência, o âmago visceral de Deus, a deidade, como
amor. O termo usado no alemão medieval de Eckhart para Liebe (amor) é Minne.
A palavra Minne possui parentesco com o grego ménos (= sentido), mimnéskein
(recordar-se), com latim memini (lembrar-se), mens (mente), monere (admoestar).
A raiz indogermânica men que está em todas essas palavras significa pensar.
Pensar, aqui, é estar suspenso, solto-disposto na espera, de vivo coração. Nessa
acepção do termo pensar como a liberdade de disposição da cordial jovialidade,
Minne conota o ter presente viva e amorosamente na mente29, sem cessar,
recordar, i. é, avivar de novo no e do âmago do ser a cordialidade amorosa. Ceia
íntima, recordando e comemorando um encontro amoroso se diz em alemão
Minne trinken (beber a Minne).30 Originariamente, Minne designava amor
misericordioso, de diligente cuidado, i. é, o amor de predileção e benevolência
interpessoal de tu para tu. Assim Minne era uma palavra boa para indicar a
intimidade do nobre enamoramento em total doação ardente de corpo e alma no
29
mens, -tis; nõus, mente é o nível de liberdade, o mais alto no ser humano, o seu ápice, no e através do qual
o ser humano é tocado por Deus e penetra para dentro de Deus. Cf. Itinerarium mentis in Deum, São
Boaventura.
30
Em grego é agapé, a ceia do encontro de amor, termo assumido pelo cristianismo para indicar o amor de
doação livre e cheio de bem-querença de si de Deus; em latim charitas e dilectio e lembra a última ceia de
Jesus no NT, na qual lavou os pés dos apóstolos. encontro entre Homem e Mulher: o amor esponsal. E dali Minne começou a ser
usada na “mística” dos cavaleiros medievais do século XII/XIII, para indicar o
protótipo da paixão nobre de dedicação no amor de um cavaleiro para com a
mulher amada, a sua dama. Era o mais intenso móvel de busca para um cavaleiro
medieval a incentivá-lo a realizar atos heróicos a serviço e para a honra da sua
senhora, a quem doava a vida e o ser como à sua Rainha e Senhora.31 A partir
dessa acepção cavaleiresca do amor, a palavra Minne entra no uso da Mística
medieval cristã, numa acepção ainda mais radicalizada de doação, nobreza e
intimidade, paixão e finura como Gottesminne32 e se tornou a tonância de fundo da
assim chamada Brautmystik (a mística esponsal).33
Portanto, o caráter comum e unitário do fio condutor que perpassa todo o universo
medieval assinalado há pouco como receber deve ser compreendido totalmente
na sonoridade do toque, da percussão da” realidade” disso que Eckhart denomina
de Minne. Assim a Minne, o amor misericordioso, de diligente cuidado, i. é, o amor
de predileção e benevolência inter-pessoal de encontro, tu a tu, a Misericórdia é
médium, onde se deve entender o quê e o como da “definição” da pessoa. Aqui
todas essas palavras referentes ao Amor, principalmente à Misericórdia, jogadas
assim, nada dizem, se não as examinamos com cuidado, rigor e discrição, de que
se trata no pensamento de Eckhart, principalmente quando ele fala do interrelacionamento intra-trinitário, no nascimento do Filho, do Pai. Deixemo-las assim,
pois fazê-las ressoar, não tanto psicologicamente, mas “ontologicamente”, seria
uma tarefa impossível para esse comentário. E, no entanto, apesar de toda essa
limitação, mesmo apenas assim referidas à Minne, que assim nada diz,
suponhamos a esta como o tom fundamental a toar no fundo do sentido do termo
receber, a dinâmica inter-pessoal da Minne, e examinar brevemente como ligar
esse receber com a compreensão da pessoa nas suas definições.
Segundo o que foi dito acima, o modo de ser receber atravessa de baixo a cima,
desde a matéria-prima, o nada criado enquanto potentia oboedientialis, até o
modo de ser do Filho Unigênito no nascimento, ao proceder do Pai. A cada
momento dessa escalada, se olharmos por assim dizer horizontalmente, se
espraia a imensidão da dinâmica criativa do receber, fazendo surgir, crescer e se
consumar cada vez todo um mundo de entificações que formam os entes de uma
determinada intensidade do ser. E todos esses entes são como que faíscas,
constelação das constelações de eclosões, como rebentos da gratuidade e
generosidade de ser. Acima dissemos que receber é correlativo ao dar. Na
escalação dessa ordenação do universo medieval, no entanto, parece existir
somente o receber em potencialização e qualificação cada vez mais imensa,
profunda e criativa, de tal sorte que sempre de novo nos vem à mente a pergunta:
31
As gestas e as canções da gesta.
32
Gottesminne, o Amor de Deus, primeiramente no sentido do genitivo subjetivo e depois no do genitivo
objetivo, i. é, amor que Deus tem para conosco e do amor que nós temos, tendo como “objeto” a Deus.
33
Cf. São Francisco de Assis e o seu esponsal com a Senhora Pobreza; cf. São Bernardo de Claraval.
receber, pois não; mas receber o que e de quem? A tentação é estabelecer uma
lógica de ordenação no receber e no dar dizendo: a esfera de baixo recebe da
esfera próxima superior até subir para dentro da dimensão Deus; e a partir de
Deus, descendo, a dimensão de cima, dá à dimensão próxima inferior. Mas dá e
recebe o quê? Porque acima dissemos que a tonância, a sonoridade na qual se dá
o receber é o Amor-Misericórdia, a Minne, a tendência lógica da resposta seria: dá
e recebe no Amor, vida, ser, graça, filiação, existência etc. Como todas essas
palavras a essa altura da reflexão estão como que suspensas no toque da
percussão do sentido do ser do Amor, da Minne, deixemos aqui tudo suspenso, a
modo de um lusco-fusco, e nos concentremos numa hipótese que nos faz
suspeitar que aqui, nesse universo medieval-cristão tanto dar como receber,
portanto o binômio dar-receber, estão em suspensão no médium do receber todo
único e singular, acenado no modo de ser do Filho Unigênito do Pai, encarnado
em e como Jesus Cristo, e nele, por ele e através dele, “re-encarnado” em todos,
i.é, em cada um dos entes humanos, e neles, por eles e através deles “re-reencarnado” em todos os entes sensíveis, viventes, e coisais, estatuindo o Reino
uni-versal da disponibilidade grata, generosa do receber, como da pré-ferência do
receber como liberdade de ser. Essa liberdade de ser se diz, no pensamento de
Eckhart, o Desprendimento, em alemão Abgeschiedenheit. Mesmo que aqui quase
tudo esteja um tanto vago, ou melhor, não propriamente vago, mas suspenso,
percebemos que há predominância do receber, há prioridade, preferência do
receber em retraimento do dar. E surge a suspeita: não poderia ser assim que em
Ekhart o que ele chama de Minne, saber, misericórdia não é um modo de amar
todo próprio, absolutamente singular, portanto, uma difusão generosa da
comunicação de doação de si, que é incomunicável, por ser tão próprio, tão ele
mesmo que é desprendido de tudo, mesmo também de dar-se, a ponto de em se
dando tudo, toda inteira e incondicionalmente se retrai como que recebendo o ser
recebido como doação feita a ele como esmola?
A receptibilidade como pregnância essencial do ser e sua estruturação
Tentemos agora embora de modo formal, examinar melhor o movimento do dar e
receber como se dá na estruturação do universo em duas regiões, em região das
substâncias compostas e em região das substâncias simples. 1) Na região das
substâncias compostas começa-se na esfera da substância sem vida com
“receptividade” como passividade, onde não há no “padecer” nenhum movimento
de dar-se do e no receber. Mas na medida em que se sobe na escalação da
intensidade do ser, a passividade passa na substância vivente, e depois dela na
substância animal, do apenas “padecer” para disposição de receber, onde começa
o movimento de dar-se do e no receber, de tal modo que o dar-se passa a ter
predominância no homem como animação racional, i. é, o dar-se um sentido do
ser a si mesmo (saber) e se produzir como realização desse sentido do ser
(querer). Essa predominância pode crescer de tal modo que no homem o dar-se
pode ir eliminando cada vez mais o receber, para se transformar na autodoação
de si a si mesmo, a partir e dentro de si, na autonomia absoluta de autocausação
como causa sui, a ponto de não haver mais composição binômica do receber e
dar, mas apenas o dar, pura e simplesmente, de modo que o próprio dar-se é
dado, num movimento assintótico de querer o querer do seu querer. Esse modo
de ser puro ato é atribuído à substância simples. Aqui a pessoa coincide com o eu
super-acionado como sujeito e agente do seu próprio ser. No entanto, esse tipo de
escalação da intensificação do ser, na potencialização predominante do dar, em
diminuição do receber, para culminar na autonomia da causa sui, seria para o
medieval uma errância, a saber de qualificar o ser do homem e a fortiori das
substâncias simples (espíritos) com o modo de ser das substâncias compostas
emprestado da esfera ínfima no nível de ser: com o modo de ser da coisa, na sua
quantificação. Aqui o pensamento medieval parece ser muito mais diferenciado e
subtil, mesmo na região das substâncias compostas, quando processa a
escalação qualificativa do ser na sua intensidade constitutiva das esferas das
substâncias compostas: esfera da coisa, esfera da vida, esfera da sensibilidade,
esfera da racionalidade. Mas em que sentido mais diferenciado e subtil? No
sentido de o relacionamento do receber e dar, não se processar simplesmente
nem no movimento unilateral, nem no bilateral, portanto da dominância do receber
ou do dar, nem na simultânea dominância do receber e dar, deixando intacto e fixo
o sentido do receber e dar, mas sim num movimento digamos espiral de contínua
transformação qualitativa tanto do sentido do receber como do dar, de tal sorte
que esse movimento espiral pode ser circum-scrito da seguinte maneira: 1)
Receber como pura passividade onde o sentido do receber não contém a
dinâmica da insistência nem da a-seidade, possibilidade de ser atuado,
dependência total de uma outra dimensão que possui mais in-seidade e aseidade. 2) No vivente o receber contém em si maior intensidade do dar-se,
iniciativa e inventibilidade de buscar; 3) no animal esse auto-receber recebe e dá o
dar e o dar recebe e dá o receber e nessa mútua implicação do receber e dar,
como que do fundo desse movimento espiral se intensifica um receber todo
próprio, que impregna e ao mesmo tempo libera o dar e receber como receber
cada vez mais gratuito, cordial e uno, numa doação total e solta à disponibilidade
obediente da liberdade de acolher. Se observarmos essa circunscrição um tanto
desengonçada do movimento de dar e receber, não mais unilateral nem bilateral,
mas espiral, percebemos de imediato que estão em jogo três “momentos”, e isto
quanto mais se ascende nas esferas das substâncias simples. Até em Deus esses
três momentos aparecem na dinâmica da vida una e trina de Deus como três
pessoas da SS.Trindade. Temos assim no movimento 1) o receber, 2) o dar, 3) o
receber o receber e o dar. Esse último receber que é receber o receber e receber
o dar num modo de receber que se afunda cada vez mais para dentro do ponto de
fuga do movimento centripetal e cetrifugal da espiral vem à fala como do princípio,
do abismo de onde e dentro do qual se articulam os três momentos acima
mencionados, em cuja dinâmica faz saltar de cada instante e cada estância do
movimento espiral eclosão de um modo de ser, cada vez plena, intacta, na medida
plena da intensidade do ser a que pertence. O ponto de fuga desse movimento
espiral na direção ascendente de e para dentro do abismo da recepção se dá na
dinâmica do movimento como o fator unitivo de todos os pontos desse movimento
como Unitivo, como Um.
2.3 Pessoa e retraimento
Mas o que tem tudo isso a ver com pessoa? Com naturae rationalis individua
substantia? Com naturae intellectualis incommunicabilis substantia? Se
traduzirmos agora os termos natura, substantia, rationalis, intellectualis, individua,
incommunicabilis e substantia, conforme o que até agora nessas reflexões viemos
desviada e indevidamente amontoando sobre eles, podemos talvez quem sabe
circum-screver de um modo um tanto esdrúxulo e enrolado a definição de Boécio
e de Sto. Tomás mais ou menos da seguinte maneira: no ser humano falamos de
pessoa quando a sua natureza, i. é, o seu ser dinâmico na sua nascividade, se
torna pura e limpidamente ela mesma, vindo a si como o que ela sempre foi, é e
será, a saber, a pura disponibilidade de ser o receber, e assim surge, cresce e se
consuma numa plenitude de acolhida, bem assentada nela mesma, não avoada,
não espúria, mas reta, de pé na consistência da sua identidade como pura
recepção, portanto como subsistente em si, sem fragmentação, sem parcialização,
mas na unidade em si sem divisão: natura (nascividade) rationalis (pura
receptividade e acolhida no ser) substantia (assentamento na própria identidade)
indivisa ou incommunicabilis (destacada como perfilação e nitidez da autoidentidade). Falamos de Pessoas no ser divino, quando nos referimos na vida da
intimidade abissal da sua deidade à nitidez e perfilação da sua subsistência
constante, toda própria na nascividade única e na singular novidade da Filiação
Divina, da processão do Filho do e no Pai e processão do Espírito Santo do e no
dar-se e receber-se de ambos na concreção do movimento do dar e receber que
se manifesta na mútua implicação das pessoas divinas. Mas nessa concreção
cada vez mais intensa, cordial e gratuita de receber que na mútua implicação das
três pessoas divinas se perde num retraimento cada vez mais profundo para a
interioridade de si mesma, se desvelando como a dinâmica unitiva cada vez mais
una a se ocultar como Um, na linguagem de Eckhart se acena para um receber
cuja atividade, cuja doação se perfaz em nada poder, nada querer, nada saber,
nada ser, nada se exigir a não ser límpida e unicamente se doar sempre mais
incondicional e gratuitamente, a tal ponto de, em se doando total e inteiramente,
nada reter para si, e como si, nada ter de próprio, a não ser apenas estar na
disponibilidade de receber e acolher o dom de ser recebido a quem se doa: esse
retraimento e aniquilação de si, essa Abgeschiedenheit, permite que como essa
humilde e pobre presença oculta na sua receptividade inominável possa ser cada
vez, sempre de novo e sempre novo o instante da vitalidade e vigência da
criatividade, em toda e cada entificação, desde o ente supremo deus, até o ínfimo
pó da materialidade de um excremento, tornando-se livremente o como de cada
ente, constituindo a jovialidade do modo de ser de cada ente. Essa grandeza de
ser no ocultamento, essa Agbeschiedenheit é o pudor e a modéstia da finura e
delicadezas de um Deus, cuja divindade se chama deidade, e que em Eckhart
recebeu o nome de Minne, a Misericórdia, realizada como obra máxima da sua
criatividade como Uni-verso, Criação, denominado Mistério da encarnação.
Depois de todo esse falatório desajustado e desajeitado acerca do que
supostamente está ali como a paisagem de fundo da fala de Eckhart na sua
orientação espiritual n. 17, possamos talvez compreender por que Eckhart acentua
com tanta insistência que se há de conservar sempre de novo o modo de cada um
de nós como a medida apropriada do seguimento de Cristo. A seguir, apenas
repitamos aqui algumas partes do restante do texto que não foi diretamente
comentado, para apenas pinçar alguns termos, agora já dentro e na perspectiva
do que foi refletido e exposto como o fundo da paisagem do texto de Mestre
Eckhart.
O uno inominável, a Abgeschiedenheit e o como de cada ente como pessoa
Eckhart fala a mim que leio seu texto, na 2ª pessoa do singular: tu. Isto significa
que o que aqui é dito possui uma grande proximidade comigo, de tal sorte que se
me torna um dever, uma tarefa o que ali me é dito, a saber conhecer e perceber
em que consiste no meu caso o meu Seguimento e descobrir o como, o meu
modo em que sou chamado por Deus de modo mais próximo e mais forte. Pois
Deus não chama a ninguém de um modo geral, não há um caminho geral, mas
sim para cada um e cada vez o seu um, único ou singular caminho. Esse caminho
é cada vez o modo próprio que é dado a cada um como o seu caminho o mais
próximo. Portanto, o que me importa, i.é, o que me conduz para a realidade de
mim mesmo é o como, é o modo meu próprio, lá onde Deus me toca, na imediatez
e proximidade, a ponto de, se ele não puder entrar porque eu não o deixo, fica
colado à porta, à espera da primeira chance de estar mais junto de mim. A paz eu
só a tenho nesse modo meu próprio, pois só lá é que eu tenho o toque de Deus e
eu sou eu mesmo na verdade, de tal modo que se eu almejo coisas maiores para
mim, ou sinto-me obrigado a buscar determinadas medidas superiores, devo
somente examinar se sou propriamente impelido por Deus, e que tenha a força,
para realizar tal coisa retamente sem o distúrbio errante da minha interioridade.34
A seguir, respondendo a uma objeção – “Tu poderias sem dúvida dizer: Se não há
nisso importância, por que então assim o fizeram nossos antepassados, muitos
santos?” – insiste na importância decisiva de o homem permanecer junto da
interioridade de si mesmo, usando a palavra modo para designar a subsistência
enucleada, lá onde o ser do homem se consuma numa perfilação na nitidez e
transparência da sua igualdade com Deus, portanto como pessoa. Diz pois
Eckhart:
Assim, pondera, pois: Nosso Senhor lhes deu esse modo, e também a força para assim
agir, a ponto de eles manterem esse modo até o fim e justamente ali, nisso ele encontrou
sua complacência junto deles; é ali, nisso que eles deviam alcançar o que é o melhor de si.
Pois Deus não atou a salvação dos homens a certo modo especial. O que um modo tem,
isto, não o tem o outro modo; o poder de realização, porém, Deus proporcionou a todos os
modos bons, e não é negado a nenhum modo bom, pois um bem não é contra o outro. E
por isso a gente devia perceber por si, que não se age retamente, se, ao ver
ocasionalmente um homem bom ou dele ouvir falar, o avaliar como inteiramente perdido,
por não seguir o modo da gente. Se não agrada à gente o seu modo, então não se leva em
conta o seu bom modo nem sua boa disposição. Isto não é justo! No modo das pessoas
deve-se atentar mais a isso que eles possuem uma boa intenção, e que não desprezam o
34
Paz significa então estar assentado no modo próprio seu, recebido de Deus, e esse assentamento no que é o
seu próprio é a interioridade.
modo de ninguém. Não pode cada um particular ter somente um modo, e não podem todos
os homens ter somente um modo, nem pode um homem ter todos os modos nem cada
modo de um homem.
Cada qual guarde o seu bom modo e todos <outros> modos ali dentro e empuxe no seu
modo todo o bem e todos os modos. Troca do modo faz o modo e o humor instáveis. O
que um modo te pode dar, isto podes também alcançar no outro modo, enquanto ele é bom
e louvável e tem somente a Deus em vista. Além disso, não todos os homens podem
seguir um caminho. Assim o é também com o Seguimento do rigoroso teor de vida
daqueles santos. Deves certamente amar tal modo, e ele te pode agradar, sem que tu
precises segui-lo.
Mas poderias dizer: Nosso Senhor Jesus Cristo tinha sempre o supremo modo; ao qual
devemos seguir constantemente por causa da retidão.
Isto é certamente bem verdade. A Nosso Senhor devemos seguir como convém e, no
entanto, não em cada modo. Ele, Nosso Senhor, jejuou 40 dias; jamais, porém, deve-se
empreender em segui-lo nisso. Cristo fez muitas obras na intenção de que devamos seguilo, espiritual e não corporalmente.
Por isso, devemos ser aplicados para que o possamos seguir no modo espiritual, pois, ele
tinha mais em vista o nosso amor do que as nossas obras. Nós devemos cada vez segui-lo
no próprio modo. Como, pois?
Ouças: em todas as coisas! - Como e em que modo? – Assim como eu já o disse muitas
vezes: eu considero uma obra espiritual como muito melhor do que uma corporal.
Como?
Cristo jejuou 40 dias. Nisso o sigas, assim a ponto de observares a que tu estás bem mais
inclinado ou pronto: sobre isso concentra-te e com acuidade fica de olho em ti mesmo.
Muitas vezes convém te afastares disso mais e sem pré-ocupação, do que te privares
totalmente de todas as comidas. Assim, também te é muitas vezes mais difícil silenciar
uma palavra do que abster-te simplesmente de toda a fala. E deste modo pesa muitas
vezes muito mais aceitar uma pequena palavra de ofensa de pouca importância do que
talvez admitir um pesado golpe, para o qual a gente se tinha prevenido, e nos é às vezes
mais difícil deixar algo pequeno do que algo grande, e erigir uma pequena obra do que
uma que se tem por grande. Assim, pode o homem na sua fraqueza seguir muito bem a
Nosso Senhor e não pode nem precisa se considerar afastado longe dele.
Observemos nesse texto que o modo, o como não é mais entendido como
acidente, como acréscimo à substância, mas indica propriedade, não no sentido
de “acidente essencial” mas do ser próprio, ser ele mesmo, em pessoa, no que é a
entranha-âmago da sua identidade: o próprio seu. Aqui a substância não é mais
um bloco em si fixo, fechado, indivisível, mas nascividade (natureza) sempre de
novo surgente, a se consumar na eclosão da dinâmica de ser, como possibilidade
de ser “novo mundo”, bem assentado, bem percutido a partir e para dentro da
recepção do toque da inominável discrição continente da Abgeschiedenheit,
colada em toda parte, à imediatez, à proximidade cada vez mais.
Finalizando essa longa e esdrúxula reflexão-comentário podemos definir a pessoa
como: o ser do Homem enquanto a nascividade receptiva da disposição pura,
grata e cordial, levada à límpida e bem assentada consumação de ser a própria
disponibilidade receptiva do Filho unigênito do Pai, no seu nascimento do Pai e no
Pai; e nesse nascimento divino, o homem no seu ser pessoa nasce como filho no
Filho e deixa nascer crescer e consumar-se todo o universo, cada ente na sua
entificação, em milhões e milhões de possibilidades variegadas, de sorte que tudo
seja um na repercussão do toque no modo-retraimento da Deidade de Deus, da
Abgeschiedenheit. Por isso:
Ninguém, jamais, deve fazer tal auto-avaliação! O homem de modo algum deve se
considerar longe de Deus, nem por causa de quebraduras, nem por causa de
fraquezas, nem por nada, seja o que for. E por mais que tuas grandes
transgressões tenham te arrastado a vaguear longe de Deus, deves acolher a
Deus como próximo a ti. E há um grande mal nisso de o Homem deslocar a Deus
para longe de si; pois, seja que o homem ande longe ou perto de Deus: Deus
jamais vai para longe, ele permanece com constância bem perto e se não puder
ficar dentro, ele se cola à porta e dela não se afasta.
CONCLUSÃO
Talvez esgotados que estamos pela algazarra desse falatório sobre pessoa e sua
intimidade como abismo de Abgeschiedenheit de um Deus, que na sua absoluta
“transcendência” se torna Homem, i. é um “non aliud”35, possamos ouvir tudo isso,
com alívio, na sobriedade simples do pudor de uma fala “pagã” acerca do seu
princípio vital, a mais originária e excelente:
Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: “Mostre-me onde pode o Tao ser encontrado”.
Respondeu Chuang Tzu: “Não há lugar onde ele não possa ser encontrado”. O primeiro
insistiu: “Mostre-me, pelo menos, algum lugar precioso onde o Tao possa ser encontrado”.
“Está na formiga”, disse Chuang. “Está ele em algum dos seres inferiores?” “Está na
vegetação do pântano”. “Pode você prosseguir na escala das coisas?” “Está no pedaço de
taco”. “E onde mais?” “Está no excremento”. Com isto, Tung Kwo nada mais podia dizer.
Mas Chuang continuou: “Nenhuma de suas perguntas é pertinente. São como perguntas
de fiscais no mercado, controlando o peso dos porcos, espetando-os nas suas partes mais
tenras. Por que procurar o Tao examinando ‘toda escala do ser‘, como se o que
chamássemos ‚mínimo‘ possuísse quantidade inferior do Tao? O Tao é grande em tudo,
completo em tudo, universal em tudo, integral em tudo. Estes três aspectos são distintos,
mas a Realidade é o Uno. Portanto, vem comigo ao palácio do Nenhures onde todas as
muitas coisas são uma só: Lá, finalmente, poderíamos falar do que não tem limites nem
fim. Vem comigo à terra do Não-Agir: O que diremos lá – que o Tao é a simplicidade, a
paz, a indiferença, a pureza, a harmonia e a tranqüilidade? Todos esses nomes deixam-me
indiferente. Pois suas distinções desapareceram. Lá minha vontade não tem alvo. Se não
está em parte nenhuma, como me aperceberei dela? Se ela vai e volta, não sei onde
repousa. Se vagueia, ora aqui, ora ali, não sei onde terminará. A mente permanece instável
no grande vácuo. Aqui, o saber mais elevado é ilimitado. O que concede às coisas sua
razão de ser, não pode limitar-se pelas coisas. Assim, quando falamos em ‘limites‘, ficamos
presos às coisas delimitadas. O limite do ilimitado chama-se ‘plenitude‘. O ilimitado do
35
Non aliud é nome dado por Nicolau de Cusa à Deidade, i. é, ao Deus da Abgeschiedenheit, a acenar para
uma radicalidade de retraimento que em sendo outro (aliud) é tão outro que nem sequer se pode dizer dele que
é outro, e isso de tal modo que ele é na discrição da sua presença oculta o como de todas as coisas.
limitado chama-se ‘vazio‘. O Tao é a fonte de ambos. Mas não é, em si, nem a plenitude,
nem o vazio. O Tao produz tanto a renovação quanto o desgaste, mas não é nem um, nem
outro. O Tao congrega e destrói. Mas não é nem a Totalidade, nem o Vácuo.”
Mas, talvez, essa mesma toada “oriental” da imensidão silenciosa e silenciada que
não é nem imenso, nem vácuo, nem totalidade, nem sequer nada, é entoada pelo
som medieval “ocidental” do absoluto, no retraimento da sua Abgeschiedenheit
como sonância e dissonância agraciadas de um cântico finito, cuja melodia sai
arranhada, esfregando-se dois galhos secos, nas mãos também secas de um
pobre-medievo que nada quer, nada sabe, nada tem, nada pode e nada faz a não
ser a louvação da misericórdia, “personalizada” como a Senhora Pobreza, hino
pátrio da Terra, onde todas as coisas são pessoas e “brincam” como irmãs e
irmãos do mesmo Pai36, a baila jovial da Terra dos Homens:
Altíssimo, onipotente, meu Senhor etc. (Cântico do irmão sol).
36
Enquanto lermos esse n. 17 das Reden der Unterweisung como conversas de uma orientação espiritual, não
surgem problemas especulativo-ontológicos. Pois, hoje, entendemos o espiritual como índice da área da
região do ente subjetivo-interior, portanto não há questão da ordem do ser no aspecto denominado ora ético,
ora espiritualista, ora psicológico-moral. Nesse sentido de conversas espirituais, as instruções de Eckhart
seriam conselhos piedoso-práticos para orientar o comportamento de seus discípulos. Mas o pensamento
medieval se rege por um princípio ontológico que diz: natura sequitur esse. A natureza, i. é, a vigência, a
dinâmica de um ente segue o esse, i. é, o ser. Primeiro ser, e a partir do ser, se dá a atuação, a dinâmica do ser,
i. é, a natureza. Com outras palavras, esse e natura dizem o mesmo, mas uma vez, focalizado no seu ser e
outra vez, na sua atuação essencial. Isto significa que, em última instância, o que vale examinar é a ordem do
ser, em todas as atuações, atividades, relacionamentos etc. do homem, sejam eles essenciais ou acidentais; o
que deve ser visto é o ser como a priori, i. é, em primeiro lugar, não simplesmente como o primeiro instante
de uma compreensão, mas sim como o horizonte da captação do todo da paisagem da realidade, a partir e
dentro da qual se dão as manifestações do homem, seja a respeito de si, seja a respeito dos entes que não são
ele. Com outras palavras, a compreensão real dessa conversação espiritual n. 17 de Eckhart depende de, e já
pressupõe a pré-compreensão do ser que pré-jaz como o fundo da acima mencionada proibição incisiva, na
qual Eckhart não nos permite avaliar o ser do relacionamento entre Deus e criatura, introduzindo na
compreensão dessa partícula conjuntiva “e” distância de separação. A questão é portanto especulativoontológico, diz respeito ao ser do relacionamento Deus-e-criatura, a saber, ao ser Deus, ao ser criatura e ser
relação Deus-e-criatura. É nessa perspectiva que se move o nosso comentário.
TRADUÇÕES
(SHEILA, esse primeiro texto, latim e tradução, favor colocar em duas
colunas paralelas – latim de um lado, português do outro)
DE HAECCEITATE, SEU DE PRINCIPIO INDIVIDUATIONIS*
Duns Scotus
Et si quaeras a me quae est ista “entitas individualis” a qua sumitur differentia
individualis, estne materia, vel forma, vel compositum, respondeo:
Omnis entitas quidditativa – sive partialis, sive totalis – alicuius generis, est de se
indifferens “ut entitas quidditativa” ad hanc entitatem et illam, ita quod “ut entitas
quiditativa” est naturaliter prior ista entitate ut haec est, – Et ut prior est naturaliter,
sicut non convenit sibi esse hanc, ita non reputgnat sibi ex ratione sua suum
oppositum; et sicut compositum non includit suam entitatem (qua formaliter est
“hoc”) in quantum natura, ita nec materia “in quantum natura” includit suam
entitatem (qua est “haec materia”), nec forma “in quantum natura” includit suam.
Non est igitur “ista entitas” materia vel forma vel compositum, in quantumquodlibet
istorum est “natura”, – sed est ultima realitas entis quod est materia vel quod est
forma vel quod est compositum; ita quod quodcumque commune, et tamen
determinabile, adhuc potest distingui (quantumcumque sit una res) in plures
realitates formaliter distinctas, quarum haec formaliter non est illa; et haec est
formaliter entitas singularitatis, et illa est entitas res, sicut possunt esse realitas
unde accipitur genus et realitas unde accipitur differentia (ex quibus realitas
specifica accipitur), – sed sempre in eodem (sive in parte sive in toto) sunt
realitates eiusdem rei, formaliter distinctae.
(Haecceitas) illa forma est, qua totum compositum est hoc ens; ista autem est
ultima adveniens omnibus praecedentibus. – Non potest intelligi haecceitas ut
universale; igitur nec natura speciei includens, cum ipsa haecceitas de se sit haec;
igitur impossibile est intelligere naturam specificam ut universale.
DA ECCEIDADE OU DO PRINCÍPIO DE INDIVIDUAÇÃO
*
Ioannis Duns Scoti. Opera omnia VII. Vaticano: Typis Polyglottis Vaticanis, 1973. Ordinatio II, dist. 3, pars
1, q. 5-6, p. 483s.
Se me perguntares o que é esta entidade individual da qual se origina a diferença
individual, se é matéria, forma ou um composto, respondo:
Toda entidade quiditatita, quer parcial quer total, de qualquer gênero, como
entidade quiditativa, é por si indiferente a esta ou àquela entidade, de forma que
como entidade quiditativa é naturalmente anterior a esta entidade, enquanto esta é
esta aqui; e enquanto é naturalmente anterior, assim como não lhe convém ser
esta, da mesma forma não lhe repugna por sua razão seu oposto. E como o
composto, enquanto natureza, não inclui sua entidade (pela qual formalmente é
isto) da mesma forma a mesma matéria, enquanto natureza, não inclui sua
entidade (pela qual é esta matéria), nem a forma enquanto natureza inclui a sua.
Portanto, esta entidade não é matéria, forma ou composto enquanto cada um
deles é natureza – mas é a última realidade do ser que é matéria ou que é forma
ou que é composto; assim, qualquer coisa que é comum e todavia determinável
também pode ser distinguida (contanto que seja uma coisa) em muitas realidades
formalmente distintas, das quais esta formalmente não é aquela: e esta
formalmente é uma entidade da singularidade e aquela é uma entidade
formalmente da natureza. Essas duas realidades não podem ser coisa e coisa (res
et res), como pode ser realidade donde se recebe o gênero e a realidade, donde
se recebe a diferença (das quais se recebe a realidade específica) – mas sempre
no mesmo (quer na parte quer no todo) são realidades da mesma coisa,
formalmente distintas.
A haecceitas é aquela forma pela qual todo composto é este ser; esta porém é a
última que vem depois de todos os outros precedentes. A haecceitas não pode ser
compreendida como universal; por isso, não inclui a natureza da espécie, já que a
própria haecceitas por si é esta; por isso, é impossível compreender a natureza
específica como universal.
COMO SE DEVE SEGUIR A DEUS E DO MODO BOM*
Mestre Eckhart
O homem que quer começar uma nova vida deve ir ao seu Deus e dele desejar,
com grande força e com toda devoção, que lhe disponha o melhor de tudo e que
seja o mais amável e o mais digno, e nisso ele não queira nem tenha em mente
nada de seu a não ser a bem amada vontade de Deus e nada mais. E então o que
Deus lhe dispor, que o receba imediatamente de Deus, considerando-o como o
seu melhor, estando nisso plena e totalmente satisfeito e em paz.
E embora depois disso outro modo possa agradar-lhe mais, ele deve pensar
assim: Deus te concedeu esse modo, e para ele é o melhor. Disso ele deve confiar
em Deus e deve recolher todos os modos bons nesse modo e nele e conforme ele
tomar todas as coisas, sejam como forem. Pois o que Deus fez e deu de bom em
um modo, isso pode ser encontrado também em todos os bons modos. Pois em
um modo devem-se tomar todos os bons modos e não a característica do modo.
Pois o homem deve fazer cada vez uma, não pode fazer todas as coisas. Ele deve
ser cada vez um, e nesse um devem-se tomar todas as coisas. Pois que o homem
queira fazer tudo, isso e aquilo, e largar de seu modo e tomar o modo de um outro,
que por agora lhe agrada muito mais, na verdade isso cria grande instabilidade
(unstaeticheit). Pois antes tornar-se-ia perfeito o homem que deixasse o mundo de
uma vez em uma ordem, do que aquele que sempre estivesse passando de uma
ordem para outra, por mais santa que fosse esta; isso por causa da mudança do
modo. Que o homem tome um bom modo, permanecendo sempre nele,
recolhendo nele todos os bons modos, e considere que foi aceito por Deus. Não
comece hoje uma coisa, amanhã outra, e que fique tranqüilo de que com isso
nada estará perdendo. Pois com Deus nada se pode perder; assim como Deus
não pode perder algo, tampouco nós, com Deus, poderemos perder algo. Por isso
toma um de Deus, recolhendo nisso todo o bem.
Mas se acontecer de não concordarem (vertragen) muito, a ponto de um não
admitir o outro, que isso seja para ti um sinal seguro de que não é de Deus. Um
bem não é contrário a outro; pois, como disse Nosso Senhor: “Todo e qualquer
reino dividido nele mesmo deve perecer” (Lc 11,17); e também disse: “Quem não
está comigo está contra mim, e quem não recolhe comigo, este dispersa” (Lc
11,23). Que isso seja para ti, portanto, um sinal seguro de que se um bem não
admite outro bem ou até um bem menor ou o destrói, isso não é de Deus. Deveria
trazer algum benefício (bringen) e não destruir.
Assim se pode resumir com uma simples palavra: não há qualquer dúvida de que
o bom Deus aceita a cada homem em seu melhor.
*
ECKHART. Meister Eckharts Traktate. Herausgegeben und übersetzt von Joseph Quint. Stuttgart: W.
Kohlhammer Verlag, 1963. n. 22, p. 284-290. Tradução de Enio Paulo Giachini.
Isso é certamente verdadeiro, e ele jamais acolhe um homem que se encontra no
chão, o qual ele gostaria de ter encontrado em pé, pois a bondade de Deus tem
em mente todas as coisas no seu melhor.
Foi perguntado por que então Deus não recolhe as pessoas que ele sabe que
deverão afastar-se (vallen) da graça do batismo, para que morram na infância
antes de chegarem ao discernimento (bescheidenheit), visto que sabe que eles
deverão cair e não mais se levantar – isso seria seu melhor?
Então eu disse: Deus não é o destruidor de nenhum bem, antes é um
aperfeiçoador (vollbringer)! Deus não é um destruidor da natureza, mas um
aperfeiçoador. Tampouco a graça destrói a natureza, antes aperfeiçoa-a. Se Deus
destruísse a natureza assim em seu começo, então ela sofreria violência e
injustiça; isso ele não faz. O homem possui uma vontade livre, com a qual pode
escolher bem e mal, e para seu mau agir Deus dispõe-lhe a morte, para seu bem
agir, a vida. O homem deve ser livre e um senhor de todas as sua obras, intacto e
invicto. Graça não destrói a natureza, ela aperfeiçoa-a. A glória não destrói a
graça, aperfeiçoa-a, pois a glória é a graça perfeita. Em Deus portanto nada há
que destrua qualquer coisa que possua algum ser (wesen), antes ele é um
aperfeiçoador de todas as coisas. Portanto não devemos destruir nenhum bem,
mesmo que pequeno, nem destruir um modo pequeno por um grande, mas antes
devemos aperfeiçoá-lo ao mais elevado grau.
Assim relatou-se de um homem que deveria começar do começo uma vida nova, e
eu disse então desse modo: que em todas as coisas o homem deveria tornar-se
um buscador de Deus e um homem que encontra Deus todo o tempo e em todos
os lugares e junto a todas as pessoas em todos os modos. Nisso pode-se
progredir (zuonemen) todo o tempo sem interrupção e crescer e jamais cessar de
progredir.
OLIVI, O MAIS VELHO REPRESENTANTE ESCOLÁSTICO DO CONCEITO
HODIERNO DE MOVIMENTO
B. Jansen S.J., em Valkenburg (Holanda)*
1. A explosão fulminante das ciências naturais nos séculos XVI e XVII possui
poucos paralelos na história. Séculos de predomínio de especulações, sobretudo
na física e astronomia, no espaço de pouco tempo, deram lugar a teorias
totalmente opostas, baseadas na observação e no cálculo exato. Basta pensar em
nomes como Copérnico, Kepler, Galilei, Huyghens, Descartes, Boyle, Pascal,
Newton. Mesmo deixando de lado as intuições geniais e criativas, esse progresso
representou acima de tudo o emprego da matemática no esclarecimento de
processos da natureza e a introdução do experimento empregado de modo
sistemático e ciente de seus objetivos em lugar da especulação apriórica anterior,
em resumo, devido ao novo método exato de trabalho.
Até há poucos anos estávamos comumente acostumados (cf. POGGENDORFF,
1879) a ver essa transformação como algo que surgiu quase que de repente.
Parecia ser excluída a hipótese de que esses grandes inventores e descobridores
devessem muitos de seus argumentos também ao seu universo anterior. Isso se
aplica propriamente a Galilei, o qual sabia apresentar o resultado de seus
empenhos tomando o cuidado que aparecessem dentro de uma luz agradável. Em
relação a esses homens, pensava-se do mesmo modo como se pensava em
relação aos fundadores da filosofia moderna: Descartes, Espinoza, Leibniz, Locke.
Como Atenas, da cabeça de Zeus, esses sistemas pareciam ter nascido de seu
espírito, prontos e acabados. Essas concepções só puderam se manter por tanto
tempo porque a consideração historial das ciências encontrava-se ainda
encravada em seus inícios, porque o tempo da passagem ou Renascença ficara
para trás, inexplorado, ainda como um período cultural obscuro, isso porque
sobretudo a escolástica cristã ainda era desprezada como uma parte da
medievalidade obscura e reacionária por amplos círculos setoriais da ciência.
Esses tempos passaram. Os séc. XIX e XX tornaram-se, de modo destacado, a
época da consideração histórica. A investigação erudita ocupou-se detidamente
com o ideal da ciência e as produções e desempenhos da renascença. Por fim,
aos olhos de uma mente imparcial, que pensa historicamente a escolástica, não é
preciso nenhuma outra recomendação: suas produções filosóficas e teológicas
estão, na sua maioria, diante de nós como um livro aberto.
E justo essa mesma consideração histórica provou, de acordo com as fontes,
como era de se esperar segundo leis psicológicas válidas em geral, que a guinada
*
Philosophisches Jahrbuch, Band 3, Fulda: Fuldaer Actierndruckerei, 1920. p. 137-152. Tradução da equipe
de editoria da Revista.
nas ciências naturais, especialmente na astronomia, matemática e mecânica, não
foi um processo de desenvolvimento repentino, mas um processo orgânico
preparado há séculos. Nesse processo, gênios como Galilei precisaram
empenhar-se com decisão para descobrir, reunir e levar ousadamente a impor-se
de modo vitorioso tudo que já estava latente, em devir e disperso. Deve-se
grande mérito ao Professor de física em Bordeaux, Pierre Duhem, recentemente
falecido, haver investigado, penetrando a época medieval adentro, os primórdios
das modernas concepções físico-matemáticas, tudo fundamentado com rico
material impresso e material não impresso, e trazendo à luz com isso resultados
surpreendentemente novos e valiosos (DUHEM, 1906-13)1.
2. O ponto donde parte o desenvolvimento moderno e onde se encontram de
imediato os representantes da antiga e da moderna corrente refere-se à natureza
do movimento. A teoria aristotélico-medieval2 distingue sobretudo movimentos
naturais e violentos (motus naturalis et volentus). A causa do primeiro encontra-se
inteiramente no corpo movido, no appetitus innatus ou na vis innata, portanto,
numa tendência inata para determinado lugar. Tomada concretamente, a força
natural é a gravidade ou a leveza; um corpo pesado possui seu lugar natural
embaixo; um leve, em cima. Por isso, a queda de um corpo pesado para baixo e a
ascensão de um leve para cima é um movimento natural; para ambos, o princípio
adequado desse movimento encontra-se neles mesmos.
Todos os movimentos pelos quais os corpos são deslocados deste seu lugar
natural são movimentos violentos. Esses só se estabelecem e duram apenas
enquanto uma força exterior atuar sobre eles. Então uma pedra lançada para cima
ainda voa para mais longe quando já abandonou a mão que a lançou, assim
afirma Aristóteles que é o ar movimentado que toma a pedra e a leva consigo para
frente3.
Ao lado dessas duas concepções essenciais da teoria aristotélico-medieval do
movimento, cite-se ainda um ponto subordinado, a saber, que essa teoria conhece
uma composição de movimento natural e violento; tal é por exemplo o movimento
impulsionado pela pressão ou propulsão provocada pela queda de uma pedra.
Então discute-se se o ar, que em si não é nem pesado nem leve e que por isso
pode apoiar tanto o movimento dos corpos pesados quanto dos leves, é
necessário para o movimento natural. Aristóteles não lança a pergunta, mas
1
Paralelamente a ele, encontram-se muitos outros trabalhos, que o Überweg-Baumgartner cita na 10. edição
(Berlim, 1915) do Grundrisses der Geschichte der Philosophie (p. 99 das indicações de referências) . Cf. H.
Wieleitner, Das Gesetz vom freien Fal in der Scholastik, bei Descartes und Galilei, in: Ztschr. f. math. u.
naturwiss. Unterricht, 45 (1914), p. 209-228; O mesmo, em: Bibliotheca mathem. 13 (1912-13), p. 115-145 e
14 (1913-14, p. 193-243. Baumgartner reelaborou exemplarmente os resultados de Duhem no esquema
citado.
2
Nossa apresentação precisaria mostrar que Poggendorf em sua reprodução da concepção aristotélicoescolástica (219) não tem clareza.
3
De coelo, III, 2, 301b 16 sqq.
segundo seus princípios precisa negá-la. De ambos os comentadores aristotélicos
mais importantes da parte dos árabes e dos escolásticos cristãos, Tomás nega-a,
enquanto Averróis confirma-a. Nesse caso, o Aquinate é o mais cuidadoso e
conseqüente, e ao explicar Aristóteles nesse sentido, ele encontrou o fato básico
histórico4.
Aristóteles manifesta-se por diversas vezes sobre esse ponto na Física, assim no
livro 2 e no livro 4. A melhor explanação está no De coelo III 2 301b 16 sqq., onde
ele trata ex professo do movimento natural e violento. Transponho a passagem
assim como a seguinte, de Tomás, pois é só pela comparação com ela que se
pode apreender plena e perfeitamente o moderno no conceito de movimento de
Olivi.
É, portanto, manifesto que todo corpo tem necessariamente um peso ou uma leveza
definidos. Porém, posto que natureza é um princípio de movimento, presente nele mesmo,
e força é um princípio de movimento, presente em outro, enquanto outro, e movimento é
sempre ora conforme a natureza (kata physin) ora por coação (biaios), um (movimento)
que é conforme a natureza, como para baixo o é para uma pedra, será meramente
acelerado devido a uma força, enquanto um (movimento) que é contra a natureza o será
completamente pela força.
Em ambos os casos é necessário o ar como instrumento, pois acontece de este ser ora
leve, ora pesado. Assim, enquanto leve, faz mover-se para cima, sendo impelido e tomado
pelo princípio, a partir da força, e enquanto pesado, para baixo. De tal maneira, pois, que
se transmitem impregnando-se em cada um dos dois. Por isso, aquele que (é movido) pela
força, se move mesmo quando não acompanhado do que o colocou em movimento. Se,
pois, este não estivesse presente no corpo, a força não seria um movimento. E o
movimento que é conforme à natureza de cada um dos dois pode se dar do mesmo modo.
Tomás reproduz a visão aristotélica com sua clareza característica. Mas o fato de
que no comentário (GRABMANN, 1914, p. 36s) sobre esse tema ele não se refere
apenas historicamente mas também reproduz sua própria opinião pode ser
deduzido de passagens exemplares de outras obras, independentemente do estilo
literário de seus comentários5.
Por primeiro mostra que os corpos naturais possuem movimentos naturais, depois mostra
que possuem gravidade e leveza (levitas), às quais se inclinam para seus movimentos
naturais (lect. 5). Os princípios do movimento natural aplicam-se de acordo com a
gravidade e a leveza... Contudo, se diferenciam do movimento natural e violento segundo
seus princípios. Por isso em primeiro lugar define os princípios de cada um dos
movimentos e afirma que a natureza é o princípio do movimento que existe naquele que é
movido. A força porém, isto é, a potência que move pela violência é o princípio do
movimento que existe em outro, enquanto é outro. É movimento conforme a natureza, cujo
princípio encontra-se nele mesmo que se move, mas não só o princípio ativo, como
4
O próprio Duhem não compreendeu bem e de forma clara o ponto de vista aristotélico. Assim ele afirma (II
189): “Segundo a dinâmica de Aristóteles, tanto a produção como a conservação de todo movimento supõe a
ação continuada de um motor distinto da coisa movida”; de modo semelhante, outras passagens (II 192, III
263). Nesse ponto Duhem desconhece a diferença entre movimento natural e violento. O que ele afirma acima
vale somente para o último.
5
De coelo lib. III.
também o passivo. O que, na verdade, é a potência, pela qual algo é naturalmente
suscetível da moção de outro. Por isso quando os corpos inferiores são movidos pelos
corpos superiores não é movimento violento, mas natural, porque nos corpos inferiores há
uma aptidão natural de seguir os movimentos dos corpos superiores. Porém, o movimento
violento existe quando o princípio do movimento provém de fora, como quando o homem
arremessa um corpo pesado para cima, no qual não existe nenhuma aptidão natural para
tal movimento. Mostra, portanto, conseqüentemente como a violência se mescla com o
movimento natural. Com efeito, quando o movimento que é natural a algum corpo, como
na pedra há movimento natural para baixo, a potência que move violentamente torna, por
vezes, mais veloz...
Mostra como o ar serve a cada um dos movimentos. Primeiramente como serve ao
movimento violento, em segundo lugar como serve ao movimento natural. Afirma, portanto,
em primeiro lugar que a força do motor violento usa ar como um instrumento para ambos,
isto é, para o movimento para cima e para o movimento para baixo. O ar, porém, nasceu
para ser leve e pesado... Na verdade o ar é pesado para o fogo, para a água, porém, e
para a terra é leve; mas a água é certamente leve para a terra, para o fogo, contudo, e
para o ar é pesada. Desse modo pois o ar, enquanto é leve, determina o movimento
violento, que é para cima, assim, porém, enquanto se move e enquanto a potência do
motor violento for o principio. O movimento, contudo, que é para baixo determina o que é
pesado. Com efeito, a força do motor violento a modo de algum impulso, transmite o
movimento a cada um, isto é, ao ar movido para cima e ao corpo pesado como a pedra,
por exemplo... Não se deve, porém, compreender que a força do motor violento imprime à
pedra, que se move pela violência, alguma força pela qual se mova, como a força que gera
imprime a forma ao gerado que origina o movimento natural... Portanto o motor violento
imprime à pedra apenas o movimento; o que na verdade acontece enquanto a toca...
cessando o motor violento, o ar movido por ele impulsiona a pedra mais longe... Se não
existisse um tal corpo, como é o ar, não existiria movimento violento. Disso segue-se que o
ar é instrumento necessário do movimento violento e não apenas por ser eficiente.
Mostra como o ar serve ao movimento natural e afirma que o ar promove do mesmo modo
o movimento natural de cada um dos corpos como também o movimento violento, quer
dizer, enquanto por sua leveza ajuda para o movimento que é para cima, por seu peso,
para o movimento que é para baixo. Contudo, pode haver uma dúvida se o ar serve ao
movimento natural dos corpos pesados e leves por necessidade (ex necessitate) ou
apenas por ser eficiente. Averróis, porém, determina que também atende ao movimento
natural por necessidade... E assim segue-se que o ar não é necessário para o movimento
natural por necessidade como no movimento violento (lect. 7).
3. A mecânica moderna compreende a natureza do movimento de modo bem
diverso. Ela não reconhece nenhuma diferença entre movimento natural e
violento. Ela jamais vê a causa da mudança no estado de um corpo, seja
movimento ou repouso, no próprio corpo movido, mas exclusivamente numa
influência de fora, na força que provém do movente. Por essa força o corpo
movido recebe um determinado estado de movimento, um montante de
movimento (mv). Esta é a base imediata do movimento. Nesse estado de
movimento – o mesmo vale para o do repouso – sem uma influência de fora, o
corpo movido se mantém estável por si, até que uma nova força atue sobre ele a
partir de fora e modifique esse estado de movimento (lei da inércia). Assim
distingue-se imediatamente o conceito moderno de movimento, do conceito
aristotélico-medieval pela causa do movimento ou a força, que se encontra
sempre fora do corpo movido, e em segundo lugar pelo estado de movimento ou
pela base imediata do movimento, que se encontra plenamente no corpo movido e
por isso se mantém estável independentemente de toda outra influência exterior. A
respeito dos outros princípios da mecânica, como por exemplo, o movimento
propulsionado, podemos deixar de lado aqui, visto que estamos às voltas apenas
com o conceito de movimento.
Foram precisos naturalmente séculos até que se formulassem as leis modernas
com a agudeza e a exatidão de hoje. Mesmo em Galilei, muita coisa está ainda
obscura, como por exemplo, ele ainda não conhece a lei da inércia em toda sua
generalidade, mas restringe-se a falar da permanência do movimento que segue
em linha horizontal.
Para nossa consideração histórica, que busca locupletar os resultados da
investigação que se deu até o presente e perseguir a linha de desenvolvimento
que vai até e ultrapassa o século XIII ainda precisamos explanar rapidamente até
que ponto chegou o desenvolvimento das concepções modernas no século XIV.
Com isso então teríamos alcançado os pontos de conteúdo necessários para
poder constatar qual o valor da teoria do movimento de Olivi, de que logo se
tratará, e seu distanciamento do século XIV. Quem abriu caminho para a dinâmica
moderna dessa época foi Duridan6, falecido em 1360; recebe plena acolhida e
posterior desenvolvimento em Alberto de Sachsen e Nicolaus de Oresme, dos
quais representa escolarmente sobretudo a Alberto. Seu conteúdo principal é: o
conceito moderno de movimento, como foi apresentado anteriormente, a lei de
inércia e o movimento propulsionado (1 = ½ t2)7. Apesar disso, essa época ainda
não conhece a queda livre, que representa pois um caso especial do movimento
uniforme propulsionado. Mas permanece sobretudo a diferença entre movimento
natural e violento, porque os nominalistas ainda não conheciam a força da
gravidade e por isso faziam remontar o movimento natural à gravidade e leveza
inatos, exatamente como Aristóteles8.
Passando pelo século XIV, Duhem persegue a assim chamada teoria do impetus,
o que coincide com o ímpeto ou momento de Galilei e com a quantité de
mouvement de Descartes9, portanto com o conceito moderno de movimento
apresentado acima, até alcançar o neoplatônico monofisita e comentador de
Aristóteles Johannes Philoponos de Alexandria, lá pelo ano de 550. Esse contradiz
a teoria aristotélica e desloca o fundamento do movimento para uma energeia nos
6
Duhem III 34, 54.
7
Ainda Cajetan von Thiëne (morto em 1465), que se coloca decididamente a favor da teoria do impetus
(Duhem III 105) e sustenta a lei do movimento do tempo (Zeitweggesetz) de Oresme (Duhem III 503, 581),
propõe, apesar disso e exatamente como Olivi (morto 1298), a velha teoria da gravidade e leveza (Duhem III
105-106). Marsilius von Inghen (morto em 1396), discípulo de Alberto de Sachsen, quem mais divulgou a
dinâmica de Buridan, fala apesar disso como Olivi de impetus naturalis et violentus (Duhem II 195).
8
Duhem I 111s.
9
Duhem I 145s.
próprios corpos10. Por meio de uma tradução, de Michal Scottus em 1217, da
teoria dos planetas do Astrônomo Abü Ishäk-al Bitrüschi (lat. Alpetragius, por volta
de 1200), a teoria do impetus ali defendida chegou pela primeira vez ao
conhecimento do Ocidente cristão, entre outros, por Rogério Bacon, Alberto
Magno e Tomás de Aquino11, os quais a rejeitaram12.
Nas últimas décadas do século foi amplamente discutida13. Duhem assinala em
conclusão e meio indiretamente o ano de 1277 como o ano em que o Bispo
Tempier de Paris condenou oficialmente 219 teses aristotélico-averroístas, como
sendo o ano de nascimento da moderna ciência da natureza. Mas se ela já
encontrou iniciadores nessa época, o próprio Duhem não confirma; com certeza,
ele não pôde indicar nenhum nome concreto. Só através de conclusões
retrospectivas se poderia indicar de modo provável que pela virada do século se
encontraram representantes dessa teoria. Assim, o escotista Walther Burleigh14,
morto após 1343, descreve que o movimento propulsionado foi esclarecido
através da nova teoria do impetus. Em todo caso, de modo algum pode-se indicar
o franciscano Richard Middletown – em quem se pensava em primeiro lugar pelo
fato de no restante se apresentar como um espírito progressista e se ocupar15
com questões físicas, plenamente de acordo com o espírito dos irmãos de ordem,
voltadas mais para o lado do empirismo – como representante da teoria do
impetus. A passagem citada por Duhem16 fala simplesmente de motus naturalis no
sentido de Aristóteles; ela apenas destaca que a causa do movimento não possui
seu acento no lugar natural, como outros ensinaram, mas no próprio movimento
dos corpos.
II. Aqui inicia-se de modo surpreendentemente fecundo a teoria do movimento de
Petrus Johannis Olivi (1248 ou 1249-1298). Apresento por primeiro suas
10
Sobre Philoponus, cf. o excelente artigo “Um predecessor de Galilei no séc. VI”, do conhecido pesquisador
de Galilei Emil Wohlwill, em: Physicalische Zeitschrift, 7, Leipzig, 1906, p. 23-32. Wohlwill apresenta
extensivamente o moderno na teoria do movimento de Philoponus. Mostra que em Hipparch (140 a.C.)
podem ser demonstrativamente encontrados pela primeira vez elementos do conceito moderno de movimento.
Duhem III p. VI, 34, 62, 256; II 189-191.
11
12
Coment. in libros De coelo et mundo, lib III, lect. 7. A citação foi apresentada acima.
Duhem II 191s; III 34.
13
Duhem II 421s, 412; também a refutação feita por Tomás faz provavelmente isso, Alberto de Sachsen
refuta com o próprio Buridam as objeções de S. Tomás (Duhem II 194).
14
Duhem I 130.
15
Duhem II 442s.
16
Eis aqui, pois, segundo me parece, o que é preciso ser dito – diz Richard (segundo Duhem II 422), depois
de ter refutado outras teorias –: embora os diversos elementos tenham sido determinados por aquilo que os
engendrou nos movimentos que lhes são naturais, é por sua própria força e (não mais) pela participação de
alguma influência insistente em seus lugares naturais que eles executam os movimentos determinados pela
causa geradora (em: II libr. Sent. Dist. XIV, art. 3 q.4).
explanações sobre o impetus ou o conceito moderno de movimento, procurando
apresentar em seguida o significado histórico das mesmas.
1. No decorrer dos longos anos de trabalho do Codex Vat. Lat. 1116 me chamou a
atenção simplesmente a comparação recorrente do movimento próprio do corpo
arremessado, para o esclarecimento de verdades abstratas, das quais o universo
do pensamento de Olivi é tão rico, sem que de algum modo eu tivesse tirado
conclusões de uma teoria científica que estivesse na base dessa comparação. Foi
só através do interesse vivo pelas contribuições de Duhem que adquiri uma
postura intelectual correta. Deste modo, foi há pouco tempo que tive acesso à
redação definitiva do texto manuscrito para a impressão que se inicia por agora.
Na Quaestio 31: “Se tudo o que se deduz da potência da matéria é mais segundo
suas essências ou segundo as razões seminais”, na solução da objeção 22,
discute-se o problema do surgimento da alma animal, que não é criada de
imediato mas é gerada pela vis formativa (força formativa). Surge a dificuldade de
se saber como pode a vis formativa, concretamente, o ovo feminino e a semente
masculina, que são liberados do organismo, gerar um ser vivo. Olivi responde: “a
força formativa só age como força instrumental de algum agente principal”. Esse
pensamento deve ser melhor compreendido através de uma comparação. Por isso
Olivi prossegue logo de imediato: “como, a seu modo, o impulso ou as inclinações
dadas aos arremessados pelos arremessadores movem os próprios arremessados
também na ausência dos que arremessam”.
Nessas palavras encontra-se claramente expresso o conceito moderno de
movimento. O assim chamado movimento violento, de que se trata aqui, não é
mais referido à influência de meios exteriores, o ar, mas a um estado de
movimento interior: “impulsos ou inclinações dadas aos arremessados movem os
próprios arremessados”. Esse estado se mantém mesmo sem outra influência do
movente: “movem os próprios na ausência dos arremessadores”. Nessa
expressão está contida a concepção hodierna de permanência do estado de
movimento (lei de inércia), embora ainda não seja expressa claramente.
A modernidade da idéia de impetus contida aqui ganha ainda mais destaque
quando se compara essa passagem com a doutrina de Tomás referente a esse
assunto. Ele trata exatamente do ponto: “como o ar serve ao movimento violento”.
Ele afirma: “Não se deve, porém, compreender que a força do motor violento
imprima à pedra, que se move pela violência, alguma força pela qual se mova,
pois desse modo o movimento violento viria do princípio intrínseco, o que é contra
a razão do movimento”. Olivi diz exatamente o contrário: o movente dá ao objeto
movido um impulso ou uma inclinatio, que o move e quiçá “na ausência dos que
arremessam”.
Esse “mover na ausência dos que arremessam” ganha de novo sua significação
plena só através de sua contraposição com a velha teoria que exige sempre um
contacto com o motor (tactus motoris): “portanto o movimento violento imprime à
pedra apenas movimento, que certamente acontece, enquanto a toca”, mas visto
que pela experiência a pedra segue adiante pelo ar, o mesmo deve tocá-la: “o ar
movido por ele [arremessador] projeta mais longe a pedra... e isso, enquanto durar
a força do primeiro motor... e disso se segue que o movimento violento move a
pedra pela força do ar”.
A contraposição se acentua ainda mais pela comparação que Tomás faz surgir
com o esclarecimento supra: “como a força daquele que gera imprime a forma ao
gerado, que segue o movimento natural”. Justo a mesma comparação que a de
Olivi! Só que enquanto Olivi estabelece uma igualdade plena entre ambos os
casos, a saber, o processo generativo e o movimento violento, Tomás acentua sua
desigualdade. Uma nova demonstração, portanto de que Olivi afirma o que Tomás
combate. Quase que somos impelidos a admitir que na composição dos dois
casos Olivi tinha Tomás diante dos olhos ou que talvez os representantes da
teoria do impetus tinham em mente a mesma de modo genérico pela comparação
com o processo de geração. Com isso ter-se-ia esclarecido literariamente do
melhor modo a obviedade e o ocasional (Gelegentlich) em que Olivi se reporta a
um novo conceito de movimento numa questão totalmente alheia.
Agora pois importa encontrar novas passagens representativas e sobretudo
constatar se Olivi não defendia quem sabe ex professo a mesma teoria na
apresentação de sua teoria do movimento. Propus-me portanto a investigar com
precisão as questões 23-30 nessa perspectiva. De fato, a questão 29, “se o
movimento provém imediatamente do motor”, contrapõe agudamente os dois
pontos de vista. O fato de que eu ainda não percebera isso antes, provém da
formulação do pensamento que usa de muitas perífrases para descrever o
conteúdo objetivo do problema e com isso só o deixa compreender claramente a
quem, de algum modo, já está familiarizado com a constituição lingüística da nova
teoria. Foi o que me tinha proporcionado a q. 31.
Olivi continua:
Sétimo, ao terceiro quesito alguns quiseram dizer que o movimento provém imediatamente
do motor. Outros, porém, querem que, primeiro, haja alguma conformidade ou impressão
pelo motor em movimento, por essa impressão se produz no mesmo sucessivamente
inclinação para o limite do movimento, a isso porém, segundo eles, segue-se
imediatamente o movimento. Os terceiros são os que concordam com os do meio em tudo,
porque pertence ao movimento durar na ausência do motor; quando porém o movimento
só pode existir estando presente o motor, então afirmam que o movimento segue
imediatamente a primeira impressão dada pelo motor, de tal modo que não é necessário
interpor alguma outra inclinação.
Em outros tratados que escrevi sobre Olivi chamei a atenção expressamente para
o fato de que, para a discussão do problema, ele fornece antecipadamente
panoramas históricos detalhados sobre o estado do mesmo, o que para o
pesquisador de história da filosofia medieval pode representar um reservatório rico
de achados. Isso se confirma aqui. Caracterizam-se claramente os diversos
partidos, os primeiros são os aristotélicos, os dois seguintes são os modernos.
Ainda mais interessante é que na caracterização dos últimos chama-se a atenção
para os aspectos tateantes, inconclusos e cambiantes, sempre pertencentes aos
novos em seu nascimento e em sua juventude, enquanto que os aristotélicos
encontram-se na clareza plena, como vimos em Tomás.
Quando nessa questão Olivi apresenta os dois pontos de vista aparentemente
apenas como referência, fica evidente a partir da Quaestio 31 que ele sustenta a
teoria do impetus. Mas independente disso, uma comparação com a situação de
outras questões mostra que via de regra primeiro ele apresenta a opinião dos
adversários e depois a sua, para no fim dissolver os fundamentos das primeiras
como objeções. É exatamente assim que ele procede aqui. Primeiro ele apresenta
a opinião de Aristóteles, depois as outras, para depois refutar os fundamentos da
primeira.
Somos impelidos a perguntar por que o segundo e terceiro pontos de vista são
distintos: enquanto o último parece falar apenas do motus violentus, o segundo
tem em vista também o motus naturalis. Em todo caso, em sua concepção
unitária, pela qual ele trata de todo movimento, esse aproxima-se mais da
concepção hodierna do que o último. E se não houvesse a contraposição da teoria
medieval da gravidade e da distinção ali referida do motus naturalis e violentus,
mantida também pelo Olivi, estaríamos tentados a empregar a teoria do impetus
também ao motus naturalis. Todavia, o novo conceito de movimento é expresso
de modo claro em ambos os pontos de vista.
Olivi apresenta aí os fundamentos dos três pontos de vista, onde se pode
perceber de imediato que, agora, ele reconhece ainda apenas dois partidos, de
certo porque ele considera que a diferença entre os outros e os terceiros, o que
toca o núcleo da questão, e sobretudo frente aos primeiros, está desaparecendo:
“Os seguintes, porém, foram levados a pôr a impressão antes do movimento”,
afirma ele lapidarmente. Assim é de grande importância histórica o fato de que a
argumentação demonstrativa dos aristotélicos não é feita de maneira
limpidamente tética e positiva mas um tanto polêmica. É o que mostra a
vivacidade da discussão ali referida, o que demonstra indiretamente que a nova
visão já possuía adeptos.
Primeiro – começa a primeira demonstração dos aristotélicos – “os primeiros são
movidos por parte do motor. Como, pois, sua força motiva está presente ao móvel
e é suficiente para mover tão bem como também para influir em sua espécie,
parece que tão bem poderia por si imediatamente causar o movimento como
também por meio de influência. Por isso é supérfluo colocar dois ou mais onde é
suficiente um”.
Segundo – esse argumento tem em vista de modo ainda mais polêmico o
conceito moderno de movimento, quando distingue nitidamente entre os
moventes exteriores (da força) e o estado do movimento como o fundamento
imediato do movimento – “são movidos da parte da influência: pois causar
movimento e mover o móvel é a mesma coisa. É justamente este o ponto negado
pela teoria do impetus, enquanto requer uma causa ou força exterior para toda e
qualquer mudança de movimento, mas deixa o estado do movimento, instalado
pela força, permanecer constante depois da influência, enquanto distingue
claramente entre ambos – “se portanto essa influência causa o movimento – de
outro modo pois não se segue necessariamente para ela –: portanto ela mesma
moverá o móvel. Mas tudo isso é verdadeiro movimento; portanto ela mesma será
um verdadeiro movimento do móvel; o que parece absurdo”. Esse “absurdum” é
de fato o verdadeiro.
Segue-se a solução adequada: “Para o primeiro afirmam: porque a força do motor
não está de tal modo intrínseca ao móvel nem é atual e formal aplicação do móvel
para o termo do movimento, como é a impressão injetada pela força do motor no
móvel” – recorda o conceito hodierno de força – por isso a força do motor no
móvel não é suficiente para causar o movimento sem o influxo de sua impressão.
Contudo a primeira proposição pela qual se afirma que a força do motor está tão
bem presente e é suficiente para mover bem como para influenciar, é falsa, como
aparece das razões apresentadas em favor da outra posição.
“Quanto ao segundo afirmam que a primeira é falsa. Pois o causar movimento não
é sempre o mesmo que o mover tomado propriamente; pois da leveza do fogo não
se diz que move propriamente o fogo para cima, embora cause seu movimento,
nem a inclinação dada à pedra pelo projetor afirma projetar ou mover a pedra – de
certo inclinatio data (inclinação dada) é tomado ativamente, isto é, a força que
coloca a pedra em movimento; cf. a solução da oitava objeção –, embora cause
seu movimento. Com efeito, propriamente não se chama movimento a não ser
àquele que transmite impressão no móvel pela qual o mesmo se move”. A
concepção apresentada aqui destaca-se agudamente da aristotélica e aproximase muito do ponto essencial da mecânica hodierna, segundo a qual cada
movimento é causado por uma força que atua a partir de fora, mas que depois é
absorvido pelo próprio corpo como um estado duradouro.
“Terceiro: são movidos da parte do próprio movimento, porque o movimento por
sua natureza não é determinado para que necessariamente se siga a predita
influência. De outro modo deveria assemelhar-se a si mesmo como suas causas
imediatas antes que do motor principal, cujo contrário é claro. Portanto parece que
possa ser causado pelo motor como também pela predita influência”. ... De fato, a
mecânica afirma o que aqui é combatido, que justo a causa imediata do
movimento não é o movente exterior ou a influência de sua força, mas o estado do
movimento no corpo movido.
Por isso – na oitava objeção – essa inclinação, como não é imediatamente transmitida pelo
motor, será necessário tirá-la da potência da matéria e deste modo, em conseqüência, pelo
movimento. Disso, porém, se seguem duas conclusões contra o proposto. Segue-se,
portanto, que antes do movimento será o movimento e assim ao infinito. Segue-se também
que depois da influência seguirá imediatamente o movimento e que isso não pode seguir
imediatamente, porque o movimento não poderá seguir a não ser que antes o móvel seja
inclinado para o próprio movimento e assim apenas mediatamente. Como a própria
inclinação se faz pelo movimento, imediatamente se seguirá a influência do movimento.
Quanto ao oitavo afirmam que dupla ou tripla é a inclinação do móvel para o limite do
movimento. A primeira é a mesma coisa que o primeiro ímpeto dado ao móvel quase
agindo ou agitando o próprio móvel. E essa é uma simples ação e pode ser chamada de
inclinação atual ou operacional. A segunda é quase habitual e lançada por primeira; essa é
aquela que na ausência ou distancia do projetor causa o movimento da projeção da pedra
ou da flecha. – A terceira inclinação não tem importância.
Assim, toda a argumentação dos aristotélicos denuncia o caráter polêmico, a
aguda contraposição com adversários e quiçá com os defensores do conceito
hodierno de movimento. Equipara-se nisso à apresentação do motus violentus em
Tomás, que também deixa transparecer claramente uma visão polêmica: “o motor
violento imprime à pedra apenas movimento”, afirma-se enfaticamente, depois de
ter dito logo antes: “não se deve, portanto, compreender que a força do motor
violento imprima à pedra alguma força pela qual se move”.
Na solução da oitava objeção, com a mesma exatidão e clareza como na primeira
citação que foi retirada da questão 31, diz-se que a causa do assim chamado
movimento violento, que inicia o processo, encontra-se fora do corpo movido: “o
ímpeto dado ao móvel quase agindo ou agitando o próprio móvel... a segunda
lançada pela primeira”. Nesse ponto os aristotélicos concordam com seus
adversários. Ao contrário disso, negam ainda mais expressamente o segundo
elemento – basta conferir a citação tirada de S. Tomás. O fundamento imediato do
movimento é um estado interior, um princípio interior: “habitual... que causa o
movimento da projeção. Tomás afirma: não se deve, portanto, entender que a
força do motor violento imprima à pedra, que se move pela violência, alguma
força pela qual se mova; pois dessa forma o movimento violento existiria por
princípio intrínseco, o que é contra a razão do movimento”. Esse estado do
movimento se mantém por si, sem posteriores influências de fora: “na ausência ou
distância do projetor causa o movimento”. Por fim, através da indicação do corpo
determinado (lapidis vel sagittae) diz-se de modo ainda mais claro que o que se
afirmou vale para o movimento violento. A pedra já se encontrava antes em
Tomás, pedra e seta parecem ser os exemplos sempre recorrentes na escola.
Na explanação da outra perspectiva, da teoria do impetus, a qual reproduz a
convicção de Olivi, chama logo a atenção que a argumentação começa com
verdades fatuais. Entre os oito fundamentos, os três primeiros, de natureza um
tanto duvidosa, são extraídos da experiência. A tendência de tomar a experiência
como conselheira chama a atenção frente ao apriorismo conceitual aristotélico na
teoria do movimento.
A primeira fundamentação soa assim:
Em primeiro lugar, pela experiência que vimos nos arremessos e em todos aqueles que por
nós ou por outros são movidos por impulso. Vemos, pois, nesses que em primeiro lugar
são impelidos e inclinados para certa meta do lugar, antes de serem movidos localmente.
Donde acontece que algumas vezes são impelidos e contudo o movimento local não se
segue, como aparece num mui valoroso impulsionador de uma grande nave ou de um
grande monte.
O segundo argumento soa assim:
Da experiência das formas da luz ou da cor e semelhantes, que ora deixam de existir pela
ausência da irradiação, ora por sua presença aparecem e se mantêm. A geração pois
dessas formas não é propriamente movimento, até são causas dos movimentos, ou seja da
rarefação e calefação ou de alguma outra alteração. Disso, por assemelhação, se conclui
que outros movimentos são causados por algumas primeiras impulsões ou semelhantes do
próprio motor.
Para a compreensão da quarta demonstração há que se notar que, como foi
explanado na q. 24 e q. 27, o motus é idêntico com a forma acidental atuada no
corpo movido por influência de um agente exterior17. Soa assim: “Quarto: porque o
movimento não provém radicalmente do motor, mas antes provém do próprio
móvel. Contudo se se deduzisse do motor, então seria mais algum influxo
derivado ou impresso pelo motor no móvel. Isto, porém, porque não sai
radicalmente do motor, não parece poder ser feito ou causado por ele senão por
aquilo que radical e diretamente sai ou flui dele”. Esse pensamento expressa
claramente que o fundamento imediato do movimento está no próprio corpo
movido e que ele não coincide com a causa do movimento ou com o movente
exterior.
Na linha das concepções ali referidas, ambas as argumentações seguintes
pressupõem que “as primeiras impressões dos agentes se originam num
momento”.
Sétimo: porque o radical aparecimento do movimento da matéria móvel prova que o
movimento não é causado senão pela união natural da matéria do próprio móvel com a
imediata e intrínseca causa do seu movimento e por alguma conseqüência natural do
movimento para sua causa intrínseca e imediata; de acordo com isso provamos que o
habitual propósito ou a habitual mudança provém de nossa potência volitiva através de ato
volitivo intrínseco à própria potência, por aquilo que o próprio ato é o mesmo que a atual
aplicação da própria potência para aquele objeto em que pelo habitual propósito
permanece habitualmente aplicada; Por isso é necessário que alguma habitual aplicação
se dê ao móvel para que alguma forma provenha dele mesmo. Ou o movimento é o
mesmo que a forma sucessivamente tirada do móvel e que permanece após o movimento,
ou não. Consta que o movimento é algo formal tirado da potência móvel. Contudo, se
realmente é a mesma coisa que a forma provinda do movimento ou no movimento, então
mais forte e claramente se convence que o movimento não é a primeira impressão feita
pelo móvel no motor.
Também a questão 27 – “se o movimento é a mesma coisa que a forma, que
provém pelo movimento” – contém passagens pertinentes aqui, como... “ao
impulso dado à matéria segue-se o movimento... a matéria com o movimento se
dá através da força do agente... no movimento local o próprio ser-em-que (esse
ubi) ou a própria existência local não é tal coisa que possa ser dada ao móvel
pela simples influência; é necessário, porém, que sua produção sempre se inicie
pela própria coisa localizada; ele mesmo porém em-que (ubi) se origina pelo fato
de a coisa localizada ou local ser aplicada a tal lugar”, e depois, “o motor move o
17
Walther Burleigh caracterizou-a como gravitas accidentalis (Expositio in octo libros Physicorum. Veneza:
1491, p. 227, col. E). Cf. Duhem I 110, 114s, 130; III 89.
móvel por seu impulso” e por fim, “o movimento não se origina pela simples
influência do agente, mas antes pelo impulso do móvel”.
Na q. 24 “se a forma ou a primeira impressão e semelhança do agente provém da
potência do seu sujeito” significa: “as impressões dos agentes são aquilo que por
primeiro é feito pelo agente no paciente e através disso é movido para a forma; ...o
paciente não é movido pelo agente para a forma que deve ser tirada a não ser
através da inclinação ou do impulso, através do qual o paciente é inclinado e
impelido para a meta ou forma que deve ser introduzida pelo movimento, como
vimos nos arremessados”.
Em todas essas citações chama muito a atenção e aparece sempre em primeiro
plano o impulsus como verdadeiro suporte da grandeza do movimento,
exatamente como nos nominalistas do século XIV e em Leonardo da Vinci.
Ao contrário, tanto Olivi quanto os séc. XIV e XV não conheceram a força da
gravidade moderna, como ele afirma noutro lugar também na distinção de
movimento natural e violento e explica o primeiro através da gravidade e leveza
conata aos corpos. Foi só no séc. XVI e XVII respectivamente que surgiu a idéia
da unidade de todos os movimentos. Assim aparece na composição da segunda
passagem, citada a partir da q. 24: “como vimos nos arremessados e no
movimento dos elementos, em que os movimentos se seguem quase por
repercussão natural para as inclinações naturais ou impulsos dados a eles pelo
gerador, que são a gravidade e a leveza e desse modo o movimento dos
arremessados segue necessariamente para o impulso ou inclinações violentas
dadas pelo que arremessa”. E na questão 27 se diz que “os elementos pela
gravidade e leveza permanecem em seus lugares, como se diz que por elas se
movem para seus lugares”.
Como vemos, a lei da inércia e o conceito moderno de força encontram-se na
base do conceito oliviano de movimento, são também mencionados seguidamente
sem ser claramente formulados. Por fim, em Olivi não encontramos qualquer traço
de uma teoria do movimento propulsionado, que surgiu através dos aristotélicos,
por exemplo S. Tomás, pela ação conjunta de movimento natural e violento,
enquanto que Buridan explica-a em sentido totalmente moderno e que pelo que já
atestou acima o testemunho de Burleigh já fora explicada por outros por meio do
impetus. O decisivo e moderno em sua teoria do movimento é então ele ter
esclarecido o assim chamado movimento violento no sentido do conceito hodierno
de força e da lei da inércia, fazendo-os remontar a um estado de movimento
interior, provocado por uma influência do movente, e que o mantém constante no
corpo movido independentemente da continuidade de sua atuação.
2. Depois de termos estabelecido a situação factual segundo as fontes,
abordemos agora a significação histórica da mesma.
Primeiro há um nexo profundo e íntimo entre a recepção da teoria moderna do
impetus e a tomada de posição frente à autoridade de Aristóteles. Aquela se
impõe naquelas cabeças que se posicionam frente a ela de maneira livre ou que a
combatem, como é o caso de Ockham, Buridan e outros nominalistas, enquanto
que justo os aristotélicos mais fiéis, os árabes Avicena e Averróis, os escolásticos
Alberto magno, Tomás e Egídio Romano eram contra ela.
Em toda alta estima que dedica oportunamente à superioridade do Estagirita, Olivi
se mantém numa autonomia e independência verdadeiramente franciscanodemocrática frente a ele. Nisso seu modo de expressar-se assume naturalmente o
tom de um temperamento forte: “embora sua autoridade me desagrade muito –
com horror de sua autoridade – se assim pensa.... diabolicamente pensa” (q. 33) –
“aquela argumentação de Aristóteles não é boa, embora intelectos lisonjeiros
tenham a ele como seu deus e julguem aquela ou qualquer outra razão sua ótima,
mesmo sofística, isto é, como se escrita ou composta pelo deus deles” (q. 26) –
“posto que ele mesmo entendesse assim, ele mesmo não é o deus de nosso
intelecto a quem devamos crer como regra infalível, como fazem eles, que são da
estirpe do Anticristo” (q. 22). Esses protestos são muito recorrentes. Noutro lugar
expressa o princípio absolutamente verdadeiro num tom exemplar: afirmar que
Aristóteles disse isso não representa nenhuma argumentação filosófica; que se
exponha seus fundamentos, depois queremos examiná-los e se forem plausíveis
os aceitamos, se não, deixemo-los de lado.
Enquanto que seguindo os resultados das investigações de Duhem não se
encontrou nenhuma testemunha que constatasse com certeza se a nova teoria do
movimento já tinha adeptos antes de 1300, Olivi atesta expressamente que
existiam, e mais, que havia duas correntes dos mesmos. Desse modo, fixa-se
agora com certeza um nome, a saber, o de Olivi, como um representante
historicamente demonstrável da teoria do impetus. É claro que ele não foi o
primeiro a produzir essa concepção. Isso resulta, independente das reportações
de Duhem, de suas próprias exposições. Sua argumentação, por exemplo, não
oferece nenhum novo ponto de vista autônomo, mas é no fundo apenas uma
descrição precisa, detalhada da própria teoria. E visto que, além do mais, Olivi
pertence à escola franciscana da corrente conservadora e quiçá à segunda
geração dos discípulos de S. Boaventura, isso acaba talvez lançando uma luz
também sobre Richard Middletown, que em 1283 foi um dos sensores da teoria da
alma de Olivi, e sobre outros franciscanos pré-escotistas, e talvez também sobre
Scotus, cujos discípulos Bassoli e Walther Burleigh falam a respeito dessas
teorias, e sobretudo Ockham já as conserva18.
Assim pois o desenvolvimento histórico da nova mecânica aparece cada vez com
mais clareza, mostrando ser assim natural e orgânico. Por certo também segundo
as explanações e relatos de Olivi, o século XIV ultrapassou em muito o século XIII,
tanto em seus resultados positivos como no método, que frente ao método na
18
Duhem II 192s.
maioria conceitualmente abstrato é empreendido por Olivi de modo muito mais
concreto19.
Apesar disso, tomado de modo puramente principial, o passo da teoria aristotélica
do movimento para a teoria do impetus é muito mais ousada, difícil e fecunda do
que aquela da teoria do impetus para o movimento propulsionado. Esse passo já
fora dado pelo século XIII. Por volta do final do século XV o famoso dominicano
Dominicus Soto observa a queda livre dos corpos. Com isso já ingressamos na
época do pleno desdobramento das leis modernas do movimento, que encontrou
seu desfecho brilhante depois de Kepler e Galilei pela constatação newtoniana da
gravidade unitária que domina a totalidade do mundo. Junto com isso também a
mecânica moderna – cujos princípios condicionam essencialmente o grande
avanço na física especial, na astronomia e em outros ramos das ciências naturais
– segue as leis comuns de um desenvolvimento humano paulatino e sem grandes
saltos, partindo de pequenos começos até alcançar desempenhos dignos de
admiração.
Referências
DUHEM. Ètudes sur Lèonard de Vinci. Ceux qu’il a lus et ceu qui l’ont lu. 3.vol.
Paris, 1906-13.
GRABMANN, M. Les commentaires de S. Thomas sur les ouvrages d’Aristote.
Louvain: 1914.
POGGENDORFF, J.C. Geschichte der Physik. Leipzig, 1879.
19
Veja-se por exemplo os questionamentos em Buridan (Duhem III 35s).
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