O que Lacan diz da Carta Roubada de Poe

Transcrição

O que Lacan diz da Carta Roubada de Poe
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LACAN, LEITOR DE POE: A CARTA ROUBADA
Geraldo Majela Martins
(Nada além do quadrado do envelope:
Tinta e encantos!)
Para o sono de morte
Ninguém é velho demais.
Nada além do quadrado do envelope.
La lettre, Marina Tsvetáieva (1923)
Resumo: Lacan abre seus Escritos, de 1966, com um texto intitulado “O seminário sobre ‘A carta
roubada’”. Para o psicanalista francês, em “The purloined letter”, o verdadeiro sujeito do conto de
Poe é la lettre (letra/carta). Este sujeito – a carta desviada –, ou mais especificamente, seus trajetos,
descaminhos e deslocamentos é que determinam os papéis dos personagens ao longo do conto. Lacan coloca em evidência duas cenas. A partir delas mostra-se o laço entre o desejo e a letra.
Palavras-chave: Poe · Lacan · carta roubada
Abstract: Lacan opens his Écrits, 1966, with a text entitled “Seminar on ‘The Purloined Letter’”. For
the French psychoanalyst, in “The Purloined Letter,” the true subject of the tale by Poe is la lettre
(letter). This subject – the purloined letter – or more specifically, their paths, misdirection and displacement is to determine the roles of characters throughout the tale. Lacan highlights two scenes.
From them is shown the bond between desire and the letter.
Keywords: Poe · Lacan · purloined letter
Do seu título original em inglês dado por Poe ao da sua tradução para o francês – “La
lettre volée” – podemos ler: carta posta de lado, carta virada (renversée) e, também, desvi[r]ada. Este sujeito – a carta desviada –, ou mais especificamente, seus trajetos, seus rastros, suas trilhas e desvios e deslocamentos é que determinam os papéis das personagens
ao longo do conto, bem como de suas metamorfoses. Estas equivalem a retornos do recalcado. As paragens e percursos da carta servem para indicar-nos posições subjetivas.
Lacan, quando lê Poe e sua carta-letra, indica-nos como a teoria do significante e da letra modifica a teoria freudiana do recalcamento. Lacan faz uma interpretação do conto de
Poe a partir da noção freudiana de Wiederholungszwang (compulsão de repetição). Para o
psicanalista francês, em função de certo vínculo com a linguística de Saussure, a compulsão se torna a insistência da cadeia significante. Por isto ele conclui assim: “C’est ainsi que
ce que veut dire “la lettre volée”, voire “en souffrance”, c’est qu’une lettre arrive toujours à
destination.” 1
1
LACAN. Écrits, p. 41. “o que quer dizer ‘a carta roubada’ ou ‘não retirada’, é que uma carta sempre
chega a seu destino” (LACAN. Escritos, p. 45).
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Cabe ao leitor de Poe devolver à letra “sua destinação”. A destinação não se confunde
com possíveis destinatários ou supostos endereços de uma carta. 2 A destinação é o destino
que deve ser concretizado, o fim a ser efetuado. Esse destino é o sujeito, que, como efeito
do inconsciente, não pode ser extinto.
O retorno do recalcado não deve ser buscado no lado energético, mas no lado das mudanças efetuadas por um desvio da carta. 3 Desvio que passa por um reviramento. Para Lacan, o automatismo de repetição, a Wiederholungszwang, que Freud reconhece, em 1920,
presente em um mais além do princípio do prazer, toma seu princípio de insistência da
ligação entre os significantes (os trajetos da cadeia significante), correlativa da ex-sistência
do sujeito do inconsciente. Ex-sistência quer dizer que o sujeito do inconsciente é determinado pela vinculação entre os significantes e, ao mesmo tempo, é exterior à cadeia deles, já
que não pode relacionar-se a nenhum deles em particular, mas sim ao intervalo entre eles.
A verdade – explícita e afirmada – do “Seminário sobre ‘A carta roubada’” é o estabelecimento da insistência da cadeia significante, princípio do automatismo de repetição. A repetição guia os efeitos mais determinantes para o sujeito. É isso que identificamos na análise.
Lacan, com sua leitura de Poe, nos demonstra a repetição de duas cenas em que a carta
e sua errância regem o denominado por ele de intersubjetividade das personagens. Deternos-emos nessas duas cenas.
A primeira cena, que Lacan chama de primitiva, passa-se no boudoir real, onde a rainha
lê uma carta que recebeu. A rainha, então, é repentinamente interrompida em sua leitura
pela chegada do rei, que não podia tomar conhecimento da carta e nem de seu conteúdo.
Assim descreve Poe a reação imediata da personagem: “Depois de um apressado e vão esforço de ocultá-la numa gaveta, viu-se ela compelida a colocá-la, aberta, sobre a mesa.” E
prossegue, contando-nos: “O endereço, todavia, estava voltado para cima e, de vez que o
conteúdo estava escondido, a carta não foi percebida”. 4
Em seguida, entra no boudoir real o ministro D., que – com olhos de lince – percebe a
presença da carta sobre a mesa, reconhece a caligrafia do remetente e, dando-se conta da
atrapalhação da rainha, urde um plano para apoderar-se da carta. Ele tira do bolso outra
carta, parecida com a que pretende roubar, e, após fingir lê-la, coloca-a justaposta à recebida pela rainha. Quinze minutos depois, após encerrar uma conversa sobre assuntos políticos, o ministro D. apanha as duas cartas da mesa. A rainha a tudo vê, mas nada pode fazer
para não chamar a atenção do rei, que nada percebe. Na sequência, o ministro retira-se do
aposento deixando para trás, sobre a mesa, apenas a sua carta, documento que não tem
qualquer importância, um resto.
A segunda cena destacada por Lacan, apresentada como repetição, desenrola-se com
uma visita pretensamente despretensiosa do detetive Dupin ao escritório do ministro. Àquela altura, o comissário da polícia parisiense já mandara, em vão, revistar o palacete do
ministro à procura da carta roubada, revista feita quarto por quarto, bem como em todas as
áreas ao redor da casa, incluindo as duas casas anexas.
2
VIDAL. Uma letra que não se lê, p. 25.
PORGE. Jacques Lacan, un psychanalyste: parcours d’un enseignement, p. 24.
4
POE. A carta roubada, p. 50.
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Da mesma forma rápida que o ministro (ao perceber a importância da carta que estava
sobre uma mesa no boudoir real), Dupin percorre todo o escritório do ministro com os olhos e encontra algo que ele acredita ser a carta, colocada “sobre um ordinário porta-cartões
de filigrana e papelão que pendia, oscilando, amarrado por uma fita azul, de um pequeno
prego de bronze, justamente sob o meio da escarpa da chaminé”. 5 Assim como na cena
anterior, a carta só não passou despercebida aos olhos de quem a iria roubar.
A carta, no entanto, para não ser facilmente reconhecida, apesar de exposta aos olhos
de qualquer um, tinha recebido por parte do ministro um manejo que lhe deu uma aparência bastante diferente da carta que havia sido roubada. Dupin, então, depois de bem memorizar a aparência da carta que precisaria ser recuperada, despede-se do ministro, mas não
sem antes deixar uma tabaqueira de ouro sobre a mesa: outra repetição.
No dia seguinte, Dupin volta à casa do ministro para, oficialmente, recuperar sua tabaqueira. A conversa entre os dois torna-se animada até que vozes e gritos de uma multidão
aterrorizada, vindos da rua, chegam ao aposento. Trata-se de um incidente contratado pelo
próprio Dupin para desviar a atenção do ministro. É quando o detetive, sem que o ministro
perceba, retira a carta do porta-cartões e lá coloca a que preparara, com a mesma aparência
externa. Nesta carta falsa – um novo resto – Dupin escrevera, com sua própria letra (que o
ministro bem conhecia), os versos de Crébillon, relativos ao desejo de vingança de Atreu
contra seu irmão Tiestes por este lhe ter roubado a mulher que Atreu acabara de desposar:
“...un dessein si funeste,/ s’il n’est digne d’Atrée, est digne de Thyeste.” 6 Assim, da mesma
forma que a rainha sabia quem era o ladrão, o ministro também saberia, num tempo que
ainda não aconteceu quando termina o conto, quem é o novo ladrão.
Vemos que Dupin também é forçado a repetir. A primeira cena é repetida pelas personagens, independentemente de quem seja, per si, mas da posição que ocupam em relação
ao puro significante que é a carta. O ministro repete a ação da rainha em esconder a carta e
Dupin também repete, deixando um resto, julgando-se a salvo da lei simbólica que dita
todas as subjetividades ou intersubjetividades que estão em jogo.
Achando-se a salvo por ter seguido as articulações da lei, Dupin tem um momento de
loucura imaginária que mostra ter triunfado sobre o ministro. Foi aí que ele se perdeu, porque não se pode triunfar da lei. O que se pode é fazê-la trabalhar em prol do sujeito.
Assim, Dupin paga sua dívida ao simbólico. Algo nele o impulsiona para deixar um resto que repete. Como a criança da cena do FORT–DA, ele torna-se presa fácil daquilo que
achou que havia dominado. O ministro, Dupin, e a criança freudiana deixam um resto, o
objeto, resto de toda operação significante.
A primeira carta, como quer Lacan, cujo furto ameaçava a “fé jurada”, o “pacto”, pode
assim voltar à sua destinação: a rainha. Depois de um descaminho, ela pode reencontrar o
seu lugar de origem. O caminho de seu desvio regeu os movimentos e os atos dos protagonistas da estória. Os protagonistas estão subordinados ao trajeto do significante que falta a
seu lugar. 7
5
POE. A carta roubada, p. 65.
POE. A carta roubada, p. 68. “Um destino tão funesto, se não é digno de Atreu, é digno de Tieste.”
(N.E.).
7
MAJOR. Lacan com Derrida, p. 95.
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Portanto, se Dupin acha a carta em seu lugar, entre os arcos da lareira, é porque o percurso próprio da carta é voltar à mulher, a seu lugar próprio, ali onde ela está tanto disponível quanto protegida:
...o lugar ocultado e desvendado da falta do pênis, símbolo também do pacto que liga a rainha ao rei, àquilo que é do rei ao falo que ela deve proteger. O lugar da verdade, aquela que
Dupin conhece, é o lugar da castração, da castração-verdade, ali onde o ‘significante dos significantes’ falta a seu lugar. 8
Lacan salienta que essas duas trocas de cartas são ações semelhantes, uma vez que têm uma
estrutura de repetição. 9 Seu automatismo é regulado pelo lugar que vem ocupar em seu trio
(rei/rainha/ministro) esse significante puro que é a carta roubada. Sabemos, também, que, em
1956, Lacan nem sempre estabelecia uma distinção clara entre letra e significante.
A presença da carta no corpo do ministro – já que ele dela se apossa – o efemina. Ele se
põe a exalar um odor di femina. Se, antes da posse da carta, ele ocupava uma posição terceira, ao ficar de posse da carta ele passa à segunda posição da tríade. Para Lacan isso o
coloca numa posição imaginária. Podemos dizer o mesmo para Dupin, a partir do momento
em que substitui a carta roubada por um bilhete, “ou ce qu’il écrit fait preuve d’une rage
manifestement féminine qui le constitue bien comme partie prenante dans la triade intersubjective et à ce titre dans la position médiane occupée avant par la reine et le ministre.” 10
Lacan pretende expor, a partir do olhar, a estrutura triangular das cenas analisadas. Ele,
assim, mostrará:
Le premier est d’un regard que ne voit rien: c’est de Roi, et c’est la police.
Le second d’un regard qui voit que le premier ne voit rien et se leurre d’en voir couvert ce
qu’il cache: c’est la Reine, puis c’est le ministre.
Le troisième qui de ces deux regards voit qu’ils laissent ce qui est à cacher à découvert pour
qui voudra s’en emparer: c’est le ministre, et c’est Dupin enfin. 11
Portanto, o ministro acha-se agora em um lugar de cegueira ocupado antes pelo rei, e depois pela polícia. Assim, na leitura de Lacan, uma volta do circuito da carta/letra fecha-se
revelando sua significação: a de não haver outra a não ser a de determinar a significação
segundo o lugar que ela ocupa. É sua própria mensagem invertida que o emissor final, Dupin, recebe do receptor final, o ministro.
O arranjo literário de Poe foi de fazer da letra uma circulação e que o sentido foge tanto
para o leitor como para as personagens da trama. Os avanços feitos por Lacan, na sua leitura, são de demonstrar e divergir das leituras anteriores a sua. Nessas leituras, dentre elas a
8
MAJOR. Lacan com Derrida, p. 95.
LACAN. Écrits.
10
PORGE, Jacques Lacan, um psychanalyste: parcours d’un enseignement, p. 25 (tradução livre nossa: “no qual aquilo que ele escreve dá provas de uma raiva manifestamente feminina, que o bem
constitui como parte interessada na tríade intersubjetiva e a esse título encontra-se na posição mediana, ocupada antes pela rainha e pelo ministro”).
11
LACAN. Écrits, p. 15. “O primeiro é o de um olhar que nada vê: é o Rei, é a polícia. O segundo, o
de um olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ver encoberto o que ele oculta: é a Rainha, e depois o ministro. O terceiro é o que vê, desses dois olhares, que eles deixam a descoberto o
que é para esconder, para que disso se apodere quem quiser: é o ministro e, por fim, Dupin” (LACAN. Escritos, p. 17).
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de Marie Bonaparte, se pretendia ler a partir de uma vertente imaginária, buscando referências à psicobiografia do autor.
Lacan dá outro estatuto ao escrito. O escrito passa à função de causa da produção. O sujeito – agora, o leitor – se divide frente ao escrito. Ele agora é convidado, na sua repetição, a
pôr algo de si no que lê. O leitor compromete-se com seu desejo. A produção literária opera
com um resto que não mostra o sentido, mas aponta o modo como é arquitetado com os
significantes. Na sua repetição simbólica, os significantes indicam as várias posições do
sujeito na ficção. 12
Portanto, as marcas que Poe com seu conto nos imprime, e que nos diverte, instaurando-nos na instância do humor, são as de nós nos entregarmos num percurso de uma carta/letra, não reclamada, desviada, furtada, em errância, de cuja mensagem ninguém tem
sequer notícia. O conto de Poe e a psicanálise, ao tomarem a letra como letra, põem o sentido de lado. A carta-letra cala um saber do qual ninguém sabe: “nada além do quadrado do
envelope”. 13 Nada dentro da carta, a carta é uma morte, por isso julgamos lê-la.
REFERÊNCIAS
LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 1966.
LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
LACAN, Jacques. Le séminaire, livre XVIII: d’un discours qui ne serait pas du semblant.
Paris: Seuil, 2006.
MAJOR, René. Lacan com Derrida: análise desistencial. Trad. Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
POE, Edgar Allan. A carta roubada. In: _______. Histórias extraordinárias. Tradução, seleção e apresentação de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 48-68.
PORGE, Erik. Jacques Lacan, um psychanalyste: parcours d’um enseignement. Toulouse:
Érès, 2000.
TSVETÁIEVA, Marina. La lettre. In: SCHNEIDER, Michel. Mortes imaginárias. Trad. Fernando Santos. São Paulo: A Girafa, 2005. p. 225-226.
VIDAL, Eduardo. Uma letra que não se lê. A prática da letra, Rio de Janeiro, n. 26, p. 25-30,
2000.
12
13
VIDAL. Uma letra que não se lê, p. 25.
TSVETÁIEVA. La lettre, p. 225.
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 127-130.

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