Angústia: acting-out e passagem ao ato
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Angústia: acting-out e passagem ao ato
Latusa digital – ano 2 – N° 19 – outubro de 2005 Angústia: acting-out e passagem ao ato* Manoel Barros da Motta** Jacques-Alain Miller, ao estabelecer o Seminário X de Lacan, A angústia1, dividiu-o em quatro partes: a primeira é uma introdução ao que ele chamou ‘a estrutura da angústia’; a segunda, de revisão, é consagrada ao estatuto do objeto; na terceira, a angústia é definida entre gozo e desejo e, finalmente, uma última parte reúne as aulas em que Lacan modaliza as cinco formas do objeto pequeno a. No capítulo IX2, situado na parte consagrada à revisão, Lacan trabalha a discriminação entre passagem ao ato e acting-out. Miller nomeia duplamente esse capítulo, o que não é comum no seu ordenamento dos seminários de Lacan: o título, Passagem ao ato e acting-out, é seguido de um subtítulo: “deixar-se cair e subir à cena”. É no terceiro dos cinco tópicos, com os quais Miller nos fornece uma bússola para leitura desse capítulo, por ele nomeado o gozo do sintoma3, que Lacan tematiza a diferença entre acting-out e passagem ao ato. * Apresentado em 26/09/2005, na III Noite Preparatória para o XV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano que será realizado em Salvador, nos dias 12 a 14 de novembro de 2005. ** Analista praticante – AP. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). 1 LACAN, J. Le Séminaire, Livre X: L´angoisse. Paris: Seuil, 2004. 2 Idem, pp. 135-153. 3 Idem, ibidem. 1 Nas aulas de seu Curso da orientação lacaniana dedicadas à introdução da leitura ao Seminário da angústia4 Miller diz que vai utilizar um fio de Ariadne para se orientar nesse seminário, cuja finalidade seria “ludibriar o prestígio e os engodos multiplicados por Lacan que não diz tudo que sabe”5. Trata-se de dizer que a função do objeto pequeno a prevalece sobre o que é apresentado de sua substância, de sua natureza, de sua identidade. Este instrumento foi inspirado a ele pelo esquematismo utilizado por Lacan em “A instância da letra”, e que tinha como objetivo opor metáfora e metonímia. Miller afirma que Lacan desvia, modifica, os símbolos de adição e subtração, (+) (-), acentuando que é um método lacaniano tomar as operações matemáticas e nelas introduzir mudanças para fazê-las funcionar no discurso analítico. Miller utiliza o mais como orientação no Seminário da angústia dando-lhe o valor “de ultrapassagem de um limite, limite que faz barreira uma vez que oferece uma resistência”. A matriz que ele utiliza é a seguinte. i(a) i(-) a a i(+) a Esta é, segundo Miller, a primeira aplicação no imaginário da matriz que anunciara. Ela nos permite compreender porque Lacan trouxe de modo simétrico o masoquismo e o sadismo. A cena, diz Miller, está sobre a barra. O que é figurado à direita é o que aparece. O mundo que figura a realidade do organismo está escondido. Há assim uma dialética entre o mostrado e o escondido, utilizada por Lacan tanto em relação ao masoquismo quanto ao sadismo. Ao tratar do luto e da melancolia, Miller esclarece que Lacan, ao introduzir no Seminário X o sadismo e o masoquismo, o faz num jogo chamado por Lacan de MILLER, J.- A. Curso de Orientação Lacaniana 2003-04, Un éffort de poésie, inédito. Vou me basear na “Introdução à leitura do Seminário X, A angústia, de Jacques Lacan”. Em: Opção Lacaniana, n° 43, maio de 2005. 4 2 ocultação. Ou seja, neste jogo o que é mostrado está aí para dissimular outra dimensão. Assim, o masoquista que se exibe como um dejeto, apresenta-se “como submetido a tudo que pode vir do outro enquanto maltratado”, pode levar a dizer: eis o objeto a. A consideração feita por Lacan é que modo algum é isto. Longe de fazer aparecer a outra dimensão, trata-se de “uma mostração, uma figuração de i(a) que está na cena”. Portanto o masoquista, ao se exibir como dejeto, simula o objeto a, e torna público o seu esmero em garantir o gozo do Outro. Sob a barra, bem ao contrário, ele procura produzir a angústia do outro. Quanto ao sádico, de forma inversa, ele se mostra matando-se para produzir a angústia do outro. Mas na verdade visa obter o gozo do Outro e mesmo encontrar no Outro o pequeno a, o mais íntimo de seu gozo que, seguindo os passos do marquês de Sade, Miller resume nesta formula: “Tirei o couro do otário”. Miller sublinha que esse esquema é uma aplicação da matriz que ele nos forneceu. Para ele, tudo que Lacan desenvolve sobre a oposição entre o actingout e a passagem ao ato, assim como sobre a oposição entre luto e melancolia, corresponde a essa lógica. Neste ponto, um conceito é essencial: o de cena. De um lado cena imaginária, mas também cena do Outro, porque em relação ao real, o simbólico e o imaginário estão do mesmo lado. O que é o acting-out? É o surgimento do objeto a na cena, com seus efeitos de perturbação e de desordem. É preciso, diz Miller, implicar uma dinâmica subjetiva que faça com que o sujeito traga à cena o objeto a. Diversa é a passagem ao ato, na qual é o sujeito que se encontra fora da cena com o objeto a. A passagem ao ato não engana. É uma saída de cena, que não deixa mais lugar à interpretação, não deixa mais lugar ao jogo do significante. Do lado do acting-out então, “mais a”, e do lado da passagem ao ato, “menos a”. 3 Ocorre assim a Miller opor ou desunir a função do ato e a do inconsciente, havendo na passagem ao ato um não querer saber mais nada. Miller resume essa formulação deste modo: sai-se da cena por uma certeza encontrada numa identificação em curto circuito com o objeto a, lembrando que Lacan chama essa identificação de identificação absoluta com o objeto a fora de cena. Do que se trata então na passagem ao ato? De uma rejeição da cena e de rejeição de qualquer apelo ao Outro. Já no acting-out, trata-se de uma subida a cena que é um apelo ao Outro. Quem sobe à cena é o objeto a, e o sujeito o mostra. Mas como objeto a não é especularizável, essa mostração do actingout é feita de viés. Neste ponto o sujeito necessita mentir. Assim, no actingout, a vinda à cena do objeto a é sempre uma falácia. Lacan se refere então ao exemplo de Shyllock, que ele trata no Seminário 6, O desejo e sua interpretação, e também ao caso de Kris. O que o analisando de Kris mostra? Em seu acting-out, mostra a libra de carne, os miolos frescos, mas não se trata, diz Miller, senão de uma careta em que o real escapole. Ao subir a cena, o sujeito é captado pelos logros da mostração. Ou ainda, pelos logros do significante e da verdade; o real fica em outro lugar. Miller situa então, de forma bem cortante, a oposição que ele formula entre o real e a verdade. Qual é a única interpretação do acting-out? “Você diz a verdade, mas não toca na questão”. Quando se quer passar o real para o significante, o que encontramos? Apenas a mentira. Isso só pode ser feito através de uma mentira, de uma mise-en-scène. Há então toda uma disjunção realizada por Lacan no seu ensino entre o verdadeiro e o real, que repercute na disjunção entre o desejo e o gozo. Ele mostra assim que o Seminário de Lacan, A angústia, explora o que repugnava a Freud: o real só pode mentir ao parceiro. Do real não se pode dizer o verdadeiro. O passe, diz ele, é uma tentativa de cingir o real da forma mais próxima possível. 4 Miller vê, assim, surgir nesse seminário a crítica do desejo de Freud como desejo de verdade: “Freud recusa ver na verdade, que é a sua paixão, a estrutura de ficção como sendo sua origem”. Miller, numa nota, cita Lacan, que se referia a seus ouvintes: “Pois aqueles que nos vem ouvir, não são os que estão fazendo primeira comunhão”. Trata-se então para Miller de diferenciar a paixão freudiana pela verdade e a posição de Lacan. Freud chegou a acreditar na mitologia apesar de si mesmo. O Freud que Lacan nos apresenta não pensa que a verdade possa ser separada da mentira e por isso atormenta sua noiva por não lhe ter dito tudo. Lacan considera que é também por isso que a feminilidade ficou opaca para Freud, na medida em que esta se embaraça menos com a verdade e mantém uma relação mais direta com o gozo. Lacan acentua ainda que o acting-out é mostração, mas não velada em si. Está velada para nós. O que é mostrado é o resto, o que cai. Entre o sujeito barrado na sua estrutura de ficção e o outro, o que surge é o resto, a libra de carne. Retomando a discussão sobre o caso de Ernst Kris na “Direção do tratamento”, Lacan nos mostra que Kris queria conduzir seu paciente pelas vias da verdade, mostrando-lhe de forma irrefutável que não era plagiário. Kris lhe diz que lera seu texto: ele era original e os outros é que o copiavam. O sujeito não pode contestá-lo, mas, diz Lacan, ele se lixa para interpretação de Kris. Ao sair da sessão, vai comer miolos frescos. Assim, acentua Lacan, ele ensina a reconhecer um acting-out, ou o que ele designa como pequeno a ou a libra de carne. O original nesta mostração dos miolos frescos é a demonstração de um desejo desconhecido, que é igual ao sintoma. O acting-out é um sintoma. Fazendo a discriminação entre sintoma e acting-out, Lacan diz que o sintoma não pode ser interpretado diretamente, que há necessidade da transferência, a introdução do Outro. Em suma, que a interpretação é possível desde que haja transferência. Quanto ao acting-out, a questão é saber se ele é interpretável na prática e na teoria analítica. Diferentemente do sintoma, diz Lacan, o acting-out é um esboço da transferência, é uma transferência selvagem. Ora, 5 acentua Lacan, não há necessidade de análise para que haja transferência. Assim, a transferência sem análise é o acting-out. Quanto ao manejo da transferência, a questão é como se pode domesticar a transferência selvagem, ou como se vai colocar o cavalo no circuito. Lacan cita o texto de Greenacre, “General problems of acting-out”, para quem há três modos de agir com o acting-out: interpretá-lo, interditá-lo e reforçar o ego. Interpretar para Phyllis não faz muito efeito. O acting-out é feito para se oferecer à interpretação. Interditá-lo, leva o sujeito sorrir. Por fim, Lacan diz que ele não se detém ao que leva a bascular no sentido de reforçar o ego, coisa à qual ele sempre se opôs, há mais de dez anos, como forma de identificação ao ego do analista. Referindo-se ao caso da Jovem homossexual, Lacan diz a respeito da mentira: “É o ponto em que Freud recusa ver na verdade, que é a sua paixão, a estrutura de ficção como estando na sua origem”. Lacan diz não ter meditado o bastante sobre esse ponto, e que, recentemente, havia tratado disso referindose a Epimênides. O “eu minto” é perfeitamente aceitável, na medida em que o que mente é o desejo, no momento em que se afirmando ele entrega o sujeito a esta anulação lógica, sobre a qual se detém o filósofo quando vê a contradição do “eu minto”. Lacan diz que o que Freud não alcança é o que falta no seu discurso, e que para ele sempre permaneceu como questão: a feminilidade. Lacan cita um passeio noturno da noiva de Freud com um primo, quando eles trocaram os últimos votos. Freud quer que ela lhe diga tudo. Para Lacan é o ponto cego. Lacan refere-se à Coisa freudiana. Trata-se de Diana, que mostra a fuga desta Coisa; mas de qualquer forma a Coisa freudiana é a que leva toda a caça, sob a forma de nós todos. 6