Mesa temática 10. Los márgenes y el centro. Literaturas
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Mesa temática 10. Los márgenes y el centro. Literaturas poscoloniales Título: “Zonas assustadoramente inesperadas”: O Silêncio e o Grito na criação literária de Clarice Lispector e Nélida Piñon Dra. Carla Cristina García1 - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [email protected] O objetivo central deste trabalho é analisar a partir das contribuições teóricometodológicas dos Estudos da Subalternidade, como algumas autoras Latino Americanas têm trabalhado em suas obras, a voz feminina na narrativa contemporânea. Neste sentido, não constitui um paradoxo buscar a significação que o silêncio também adquire como manifestação de um modo de vida e como a aquisição de uma postura ante a mesma. Spivak2 refletindo sobre a consciência da mulher subalterna diz que uma vez posta à margem da sociedade no contexto da produção colonial em que o homem é o dominante, a mulher subalterna não tem história e não pode falar sendo colocada às sombras. Tal reflexão não pode ser reduzida a uma mera questão idealista, uma vez que ignorar o debate acerca da mulher subalterna seria um gesto apolítico que, ao longo da história, tem perpetuado o radicalismo masculino. Dessa maneira, na busca por aprender a falar (ao invés de ouvir ou falar por) historicamente, o assunto emudecido da mulher subalterna é sistematicamente esquecido pelo intelectual pós-colonial. Ao negar a palavra às mulheres, negou-se também a liberdade, o acesso e o controle sobre seus corpos bem como suas potencialidades criativas, como o acesso ao poder e ao conhecimento: “A era do silêncio impunha-lhes regras. Reduzia a cinzas partes ativas da mente. Pois à ausência da voz o pensamento não se formulava, incapazes de manobrar o rumo da abstração.” 3 Nas autoras analisadas podemos encontrar formas criativas de resistência contra o poder discursivo do patriarcado, pois tomar a palavra, não significa que as mulheres devam falar sob as mesmas premissas que a racionalidade falogocêntrica impõe socialmente: “Juro que este livro está construído sem palavras. É 1 Nota de autorização Eu, Carla Cristina Garciaa utorizo a publicação do artigo “Zonas assustadoramente inesperadas”: O Silêncio e o Grito na criação literária de Clarice Lispector e Nélida Piñon” em qualquer formato que o Comitê Acadêmico do II Congreso de Estudios Poscoloniales/III Jornadas de Feminismo Poscolonial defina. 2 Spivak, Gayatri Chakravorty (1990), The Post-Colonial Critic, Interviews, Strategies, Dialogues, New York: Routledge,1990 3 Piñon, Nélida, Sala de armas. Rio de Janeiro: Franscico Alves, 1973: 78 uma fotografia muda. Este livro é um silencio.”4. O dizível fica indissoluvelmente ligado ao indizível, ao não verbalizável. Por meio do silêncio, do não falado, brota uma linguagem obscura, múltipla e plural. Silêncio que não pode ser quebrado com palavras, mas com um grito: “Porque há o direito ao grito. Então eu grito. Grito puro e sem pedir esmola.” 5. Uma linguagem que não define, caracteriza ou esclarece o que afirma, mas que sugere, insinua ou evoca possibilidades infinitas. Para Trinh T. Minh-Há, o silêncio das mulheres, por exemplo, pode ser uma forma de resistência: Dentro do contexto do discurso das mulheres, o silêncio possui muitas faces. Como o véu das mulheres já mencionado, o silêncio só pode ser subversivo quando ele se liberta do contexto masculinamente definido da ausência, da falta e do medo enquanto territórios femininos. Por um lado, enfrentamos o perigo de inscrever a feminilidade como ausência, como falta e como um espaço em branco ao rejeitar a importância do ato de enunciação. Por outro lado, entendemos a necessidade de colocar as mulheres no lado de negatividade e de trabalhar com voz baixa, por exemplo, em nossas tentativas de minar os sistemas patriarcais de valores. O silêncio é muito comumente definido em oposição ao discurso. O silêncio como uma vontade de não dizer ou uma vontade de desdizer e como uma linguagem em si mesma tem sido pouco explorado.6 Historicamente, na sociedade ocidental, a feminilidade esteve associada ao lado escuro da vida, a terra, e a incapacidade ou ausência do pensamento abstrato. A feminilidade é esta realidade interna que ameaça com explodir e se esparramar fazendo com que o homem possa perder a capacidade do controle racional. O feminino, o outro, o polo negativo deste mundo profundamente maniqueísta, pertence aquele que é o reprimido social e psiquicamente. O não nomeado, o desconhecido, aquele que a linguagem oficial não quer pronunciar. De acordo com Kristeva7, esta separação entre masculinidade e feminilidade está entrelaçada com a tensão entre o 4 Lispector, Clarice . A hora da Estrela. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1977: 47 Ibid., p.56 6 Trinh, T. Minh-Ha. "Não (como) você: mulheres pós-coloniais e o entrelaçamento de questões de identidade e diferença" in YAGO, D. (org) Feminismos da Diferença. Tradução de Daniel Françoli Yago. São Paulo: Limiar, 2014 (no prelo). 7 Kristeva, Julia , Revolution in Poetic Language, New York, Columbia University Press.,1974. 5 semiótico e o simbólico. O Semiótico como oposto ao simbólico está por sua vez associado ao inconsciente que se erige a partir de relações duais, especulares e imaginárias ligadas a relação da criança com a mãe e com o mundo. Relações nas quais as experiências se constroem mediante sensações não tanto visuais e auditivas, mas também táteis, gustativas e olfativas, experiências rítmicas e sensuais que surgem do contato corporal direto. É o mundo do desejo, do inconsciente no qual os limites materiais, as diferenças, as separações absolutas não existem. O tempo cronológico, o espaço físico, a matéria sólida e as relações causais se borram para deixar fluir o desejo, o principio do prazer, para usar o conceito de Freud. As pulsões de vida e morte, como expressões interdependentes e inseparáveis não são excludentes entre si como pretende o ocidente. Os desejos tendem a introduzir, devorar, tragar e fundir-se com o outro para ser um, uma unidade sem limites nem fronteiras que os separem, mas, ao mesmo tempo tendem a separar, cortar ou expulsar o outro. Os desejos lutam entre a continuidade com o outro e descontinuidade, entre reter e expulsar, entre amor e ódio. Momentos que não se excluem, mas que se complementam em sincronia ilimitada, as diferenças, os contrários aparecem e se dissolvem ao mesmo tempo. Não há absolutos, mas sim possibilidades. O diferente, a alteridade são momentos de um transcorrer permanente, de um fluir intemporal e imprevisível. Um fluir onde os limites entre o próprio, o estranho, o mesmo e o diferente não são estado permanentes e fixos, mas experiências relativas em constante movimento. Para enfrentar-se com essa feminilidade inominável e indesejável para a ordem patriarcal masculinizada, se impõe uma racionalidade falo e logocêntrica que se alça prepotente sobre tudo o que a enfrente, que a oponha ou que simplesmente se diferencia dela. Este mundo paternalmente masculino é o mundo das hierarquias e da desigualdade e da ordem linguística dominante. Tal ordem é baseada em uma lei autoritária que impõe o que deve e pode ser falado, dito ou pronunciado mediante uma linguagem racionalizada e instrumentalizada, que deve esquecer o desejo que a move, a força que lhe dá a vida. Esta ordem linguística particular que se pretende universal, “desafetivada” e “deserotizada” se aprende desde cedo no mundo privado e que cobra força no mundo público. Converte-se naquela realidade externa que se leva nas leituras sagradas das leis de mercado e do poder político, que não se comovem ante a dor, o sofrimento e a miséria humana que os rodeia diariamente. Esta realidade falocêntrica e logocêntrica instaura-se mediante a palavra consensual, a fala comum que se impõe sobre o corpo, esta conectividade de signos que pretende dizer para além do humano. A pobreza, a desesperança e a frustração generalizada não são obstáculos para esta lei, para esta racionalidade de morte que controla o mundo atual. O desejo fálico, genitalizado se erige monumento à humanidade, pertence e produz a ordem prevalecente. O poder fálico se funde com a racionalidade sagrada que legitima o poder da riqueza, a força material e a masculinidade, sobre a pobreza, a vulnerabilidade e a feminilidade. Esta relação entre linguagem e constituição da subjetividade de gênero conforma o eixo central sobre o qual se instaura a posição das mulheres como sujeitos marginais nas sociedades patriarcais. Ao negar a palavra às mulheres, negou-se também a liberdade, o acesso e o controle sobre seus corpos bem como suas potencialidades criativas, como o acesso ao poder e ao conhecimento. Na literatura sobre a mulher na América Latina encontramos esta relação contraditória entre linguagem e feminilidade como manifestação de sua posição em relação ao poder. Não obstante, tomar a palavra não significa que as mulheres, ao resistirem frente às formas de exclusão as quais estão sujeitas, devam falar sob as mesmas premissas que a racionalidade falogocêntrica impõe socialmente. Como uma forma de resistência, na qual o semiótico flui e inunda a ordem simbólica, Clarice Lispector se nega a falar a partir de uma linguagem racionalizada e instrumental. Em seu romance A Hora da Estrela diz: “Não sou um intelectual, escrevo com o corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavras são sons transpassados de sombras que se entrecruzam desiguais, estalactites, encaixes, música de órgão transfigurada”8 A linguagem como música provém das aberturas do corpo, da sensualidade da carne, surge como incompletude, como experiência vital que não se deixa capturar pela palavra neutra, desapaixonada e deserotizada da linguagem compartilhada socialmente. E diz: “Juro que este livro está construído sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta.” 9 O dizível fica indissoluvelmente ligado com o indizível com o não verbalizável. Por meio do silêncio, do não falado, da dissimulação, do mistério nas próprias palavras, brota uma linguagem obscura, múltipla, plural. Uma linguagem que não define, 8 9 Clarice Lispector. A hora da Estrela. Rio do Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1977, pg.18. Ibid.p.18. caracteriza ou esclarece o que afirma, mas sugere, insinua ou evoca possibilidades diversas e infinitas. A alteridade na América Latina: etnicidade, pobreza e feminilidade. A autora pretende relatar a história de uma jovem nordestina brasileira, pobre, desconhecida, solitária e órfã em meio ao caos urbano do rio de Janeiro. Uma mulher cujo viver é ralo e incompetente, sem habilidade para ser hábil, sem consciência de si, mas que não obstante, quer ser ela mesma. Era um sopro de vida: “Tratarei de sacar ouro do carvão.” 10 Falar da pobreza, da carência e da ausência que a exclusão social de uma mulher pobre e imigrante traz consigo se converte o discurso de Lispector em urgência: “O que escrevo é mais do que uma invenção, é minha obrigação falar dessa menina entre milhares delas. É meu dever, ainda que seja uma arte menor, revelar sua vida. Porque existe o direito ao grito, então eu grito”11 O direito ao grito, a queixa e a resistência frente a um mundo excludente de forma cruel e sem piedade, um direito arrebatado a milhares de pessoas, surge como uma necessidade vital para a escritora: “Como a nordestina, há milhares de mulheres disseminadas pelas favelas, sem camas, nem quartos, trabalhando atrás de balcões, até a exaustão. Nem sequer percebem que são facilmente substituíveis e que tanto faz se existam ou não. Poucas se queixam e, que eu saiba, nenhuma reclama porque não sabe para quem. E este alguém existirá?” A paixão segundo G.H 12 , livro de Clarice Lispector publicado em 1964, ao mesmo tempo em que reafirma as questões metafísicas dos romances anteriores, traz, pela primeira vez na obra clariceana, o problema da luta de classes Nele, as questões filosóficas, os conflitos pessoais, confundem-se com as barreiras e choques entre as classes.13 Nesta obra, a autora: [...] enfatiza a necessidade de reexaminar o sistema de classes em cujo ápice a narradora vive. G.H. aprende a encontrar beleza na barata repugnante. Da 10 Ibid.p.18. Ibid.p.15. 12 Lispector, C. A Paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira,1979,13.ed. 11 13 Oliveira, Solange Ribeiro de. A barata e a crisálida. Rio de Janeiro: José Olympio/Pró-Memória INL, 1985. mesma forma, levanta a viseira ideológica que a vinha impedindo de ver sua antiga empregada como outro ser humano, em vez de um simples objeto de exploração.14 Esse choque entre conflitos pessoais e conflitos sociais reaparece, de maneira contundente em A Hora da Estrela . Neste romance, o autor-narrador Rodrigo S.M. se vê frente ao outro de classe, uma nordestina que vira nas ruas do Rio de Janeiro. Esta nordestina, Macabéa, provoca no escritor quase os mesmos questionamentos que a doméstica Janair e a barata provocam em G.H., narradora do outro romance. Percorrer a paixão de G.H. é trilhar o mesmo caminho de Rodrigo S.M. Mas há uma diferença: enquanto G.H. tenta apreender a coisa em si, sem sistemas interpretativos, Rodrigo S.M. almeja consegui-lo pela linguagem. Além disso, o sofrimento pela identificação com o outro – a paixão – adquire valores diferentes: para G.H. a aceitação do outro – culminando com a colocação da matéria branca da barata na boca – leva a narradora a um radical questionamento existencial, metafísico. Em A Paixão Segundo G.H., “a questão social, apresentada, sobretudo por meio de uma rede de imagens densamente entrelaçadas, torna-se, por sua vez, o símbolo de outro problema: o do confronto do homem com a realidade e com a angústia existencial.”15 O “ato proibido” de tocar a barata leva G.H. da reflexão sobre o outro de classe à reflexão metafísica da busca da realidade última, pois “para G.H., a tentativa de atingir a realidade última, sem a interferência de qualquer sistema criado para moldá-la na medida da compreensão humana, é o alvo máximo.”16 A partir de sua identificação com a barata, G.H. praticamente deixa de lado o questionamento do social. A Hora da Estrela parece questionar essa ordem na relação dos problemas: Rodrigo S.M. esforça-se por tentar tornar maior o questionamento social; o sofrimento aqui se mantém o conflito entre o social e o existencial, que estrutura toda a narrativa. Os dois romances são narrados em primeira pessoa. G.H. é escultora; Rodrigo S.M. é escritor. Ambos procuram dar forma às coisas, seja pela escultura, seja pelas palavras. Representam tipos de seu estrato social. Daí as iniciais bastarem a G.H. e a abreviação do sobrenome do escritor. 14 Lispector, C. A Paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira,1979, p.94 Ibid.p.56 16 Ibid.p.71 15 O contato com o outro de classe rompe o conforto material e pessoal, levando a uma angustiada reflexão sobre o “eu” e o “outro”, sobre a “realidade” e a alienação. O autor narrador de A Hora da Estrela anuncia numa dedicatória o conflito que sustentará sua narração. Ele dedica o livro: A todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em: eu. Esse eu que é vós, pois não aguento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter em pé [...]17 G.H. também precisa dos outros: a narradora tenta – através de uma perspectiva múltipla, de uma visão caleidoscópica – abarcar, além da perspectiva da primeira pessoa, todos os pontos de vista sobre a realidade concreta. Dessa forma, há um movimento de identificação e desidentificação, ora do leitor para com a narradora, ora da narradora para com Janair ou a barata, ora a tentativa de G.H. ver-se pelos olhos dos outros. Mas, a visão do/pelo outro a amedontra, pois no seu mundo alienado, G.H. protegera-se sempre contra todas as formas contundentes da realidade. Macabéa é uma dessas formas contundentes da realidade, com a qual se depara Rodrigo S.M.: “numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina.”18 O enfrentamento de Rodrigo S.M. frente ao outro de classe – Macabéa – é o mesmo de G.H. ela “tem que aprender, como parte de sua ‘paixão’, a confrontar-se, na pessoa da empregada Janair, e de seu duplo, a barata, com as classes chamadas inferiores. Seu calvário, rumo ao encontro com a realidade última, “começa pela batalha com a linguagem”19. O de Rodrigo S.M. também, mas de outro modo. G.H. quer eliminar a “barreira” da linguagem e apreender diretamente o mundo. Rodrigo S.M. quer apreender a realidade, o mundo das pessoas “reais”, como a nordestina, pela linguagem, através da sua literatura. Durante o percurso, ambos hesitam. Em certo momento G.H. ainda tenta agarrar-se à sua antiga condição privilegiada, de mulher que “vivia bem, vivia na supercamada das 17 Clarice Lispector. A hora da estrela. Rio de Janeiro/São Paulo: Record: 1984,p.33 Ibid,p.32 19 Oliveira, Solange Ribeiro de. A barata e a crisálida. Rio de Janeiro: José Olympio/Pró-Memória INL, 1985,p.82 18 areias do mundo, e as areias nunca haviam derrocado de debaixo de seus pés”20 (p.77). Rodrigo S.M. desabafa: O definível está me cansando um pouco. Prefiro a verdade que há no prenúncio. Quando eu me livrar dessa história, voltarei ao domínio mais irresponsável de apenas ter leves prenúncios. Eu não inventei essa moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência.21 Essa hesitação dilacera Rodrigo S.M. do começo ao fim de sua narrativa. Rodrigo S.M. queria atingir-se a si mesmo. Fazia isso rezando “mudamente e escondido de todos”, pois “quando rezava conseguia um oco de alma – e esse oco é o tudo que posso eu jamais ter.” (p.34) Mas não podia prescindir dos outros, dos fatos da realidade, que o sustentam. A história que o narrador contará “tem fatos. Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura – fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos não há como fugir.”22 (p.36) Esse embate é dilacerante, custa a Rodrigo S.M. abandonar-se e falar da realidade. Sardônico, o narrador acusa o leitor, assim como a nordestina o acusou, redimindo-se de sua culpa: Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta. [...]23 O Mundo Seco e Sujo do Outro O confronto entre classes nos romances está representado também pelo contraste entre o “úmido” e o “seco”. Em A paixão segundo G.H. esse contraste está subjacente a toda a textura semântica e metafísica do romance, resumindo a oposição entre mundo aberto, mas desolado e cru dos pobres e os abrigos frescos e elegantes, embora fechados, onde os privilegiados se protegem contra o espetáculo do sofrimento dos humildes.24 O mundo de Janair e de Macabéa é seco. O quarto da doméstica é “um deserto”; Macabéa 20 Lispector, Clarice . A hora da estrela. Rio de Janeiro/São Paulo: Record: 1984,p.77 Ibid.p,51 22 Ibid.p.36 23 Ibid.p.18 24 Oliveira, Solange Ribeiro de. A barata e a crisálida. Rio de Janeiro: José Olympio/Pró-Memória INL, 1985,p.52 21 vem do sertão árido. G.H. e Rodrigo S.M. vivem em ambientes frescos, refrigerados, que não conhecem a “poeira” do mundo. Assim como G.H., Rodrigo S.M. está confinado num quarto, num “cubículo”, espaço onde tenta apreender a realidade. Mas são quartos com valores distintos. G.H. está aprisionada na cela do outro – o quarto “era nu, como preparado para a entrada de uma só pessoa. E quem entrasse ali se transformaria num ‘ela’ ou num ‘ele’”.25 Além disso, o quarto da empregada faz lembrar o sofrimento dos pobres, ofendendo-a como uma censura. A imagem da sujeira impregna as imagens do pobre. G.H. espera encontrar o quarto da empregada “imundo, na sua dupla função de dormida e depósito de trapos, malas velhas, jornais antigos, papéis de embrulho e barbantes inúteis”.26 Sua primeira reação ao outro de classe dá-se justamente porque se depara com um quarto impecavelmente arrumado; a empregada, numa “ousadia”, rebela-se contra o estereótipo concebido por G.H.: “aquela empregada, sem me dizer nada, tinha arrumado o quarto a sua maneira, e numa ousadia de proprietária o tinha espoliado de sua função de depósito”27 (p.40) Macabéa, ao contrário de Janair, representa o pobre sujo imaginado pelos da classe de Rodrigo S.M. e G.H: “Ela era um pouco encardida, pois raramente se lavava. [...] Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro era murrinhento.” (...) A nordestina se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra. [...] Pois a datilógrafa não quer sair dos meus ombros. Logo eu que constato que a pobreza é feia e promíscua.” (...) Chegar até Macabéa é “tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama.”28 O confronto entre G.H. e a empregada e a barata é o encontro com o ‘outro’, o ser que, chocando-se conosco, nos define. No romance, a escultora tem de atravessar o caminho entre os dois mundos [o seu e o do outro de classe]. Isso é parte do processo de sua “paixão”. À medida que o romance se desenrola, ela gradativamente muda do ódio para a aceitação da empregada. Num processo paralelo, chega a enfrentar e aceitar todos os seres 25 Lispector, Clarice . A hora da estrela. Rio de Janeiro/São Paulo: Record: 1984,p.67 Lispector, C. A Paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira,1979, p.35 27 Ibid.p. 40 28 Lispector, Clarice . A hora da estrela. Rio de Janeiro/São Paulo: Record: 1984,p.69 26 humanos, até que finalmente tateia à procura do próprio eu e da realidade última. Nesse ponto a questão social já se tornou uma metáfora para o problema mais vasto da angústia existencial. 29 A transformação do “eu” no “outro” começa a ser realizada, de certa maneira, quando G.H. se vê no desenho deixado por Janair na parede do quarto. G.H., ao se deparar com os desenhos feitos na parede, sente-se julgada pela empregada. E sente que Janair a odiava, mas “não um ódio que me individualizasse, mas apenas a falta de misericórdia”(p.44). O ódio da empregada era o ódio da classe oprimida contra os opressores e que também é recíproco: “Perguntei-se se na verdade Janair teria me odiado – ou fora eu que, sem nem sequer a ter olhado, a odiara” (p.47). Além de um certo ódio, G.H. sente medo dos oprimidos: “[...] eu estava com medo. E precipitou-me então um medo maior [...] seria o modo que ‘eles’ [...] tinham de não me deixar mais sair?” (...) Medo que cresce e toma conta: “O medo grande me aprofundava toda.” (p.59) Janair era “a representante de um silêncio” (...), assim como Macabéa “jamais disse frases (...) por ser parca de palavras.”. Era esse medo que abafava o grito de G.H. Ao ver a matéria branca saindo da barata G.H. quer ter “o direito ao grito”, mas tem medo: “Grite”, ordenei-me quieta. “Grite”, repeti-me inutilmente com um suspiro de profunda quietude. [...] Mas seu eu gritasse uma só vez que fosse talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão, pois 29 OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. A barata e a crisálida. Rio de Janeiro: José Olympio/Pró-Memória INL, 1985. P.63 arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante.” Rodrigo S.M. vence esse medo e reconhece:“Porque há o direito ao grito. Então eu grito.” (p.33) E dá esse grito através do grito dos oprimidos que atemoriza G.H.: “através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida. À vida que tanto amo.” (p.55). O outro desperta sentimentos ambivalentes, ora atrai ora repele. A barata causa nojo em G.H.. A visão do outro é repelente, é preciso afastá-la de si, por isso G.H. tenta matar a barata, esmagando-a na porta do armário. Mas depois a barata é descrita como um “objeto de luxo”, uma “gema preciosa ferruginosa”, uma “noiva de pretas joias”.(p.81) A identificação é um processo ambivalente: “Tenho nojo e maravilhamento por mim. [...] É que eu olhara a barata viva e nela descobrira a identidade de minha vida mais profunda” (pp.64-5). Mas, enfim, o outro é aceito: “Olhei-a, à barata: eu a odiava tanto que passava para o seu lado, solidária com ela, pois não suportaria ficar sozinha com minha agressão” (p.65). G.H., então, perde o medo e toca no outro: “Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo” (p.81). Esse ato de libertação de si mesmo é radical: para que G.H. atinja o “outro”, a “realidade última” é necessária mais que a empatia, é necessária a total identificação e, então, G.H. se obriga a colocar na boca a matéria branca que sai das costas da barata esmagada na porta do armário. Também Rodrigo S.M. enfrenta a ambivalência de sentimentos frente ao outro. Para tentar chegar até Macabéa o autor-narrador ingenuamente prepara um “ambiente propício”: Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr no nível da nordestina. Mas ele mesmo admite que uma tal encenação não basta, sabe que talvez “tivesse que me apresentar de modo mais convincente às sociedades que muito reclamam de quem está neste instante mesmo batendo à máquina”. Contar a história da nordestina, que tem fatos, é sua expiação: “Estou passando por um pequeno inferno com esta história. Queiram os deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu me cobriria de lepra.” (p.61) Mas ele deve percorrer essa via crucis para chegar ao objeto: “a ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto.” (p.41). Assim como G.H. se reconhece nos desenhos de Janair, depois na barata, Rodrigo S.M. se transfigura na outra: “vejo a nordestina se olhando ao espelho e [...] no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos.” (p.43) A identificação total é aceita, mas é preciso que o outro de classe morra: “Ela [Macabéa] estava livre enfim de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei por que acabo de morrer com a moça. Desculpai-me esta morte. É que não pude evitá-la.” A morte de Macabéa é a morte de Rodrigo S.M. transmutado no outro: “Macabéa me matou.” (p.111) É necessária a morte do outro – da barata e de Macabéa – para que a identificação seja possível. Assim como na tragédia, a morte traz o terror e a piedade. Mas não basta a empatia com o herói trágico para que a falha seja purgada. Para G.H. e Rodrigo S.M. é preciso a identificação total. Assim, G.H. prova da matéria branca que a barata expele, Rodrigo S.M. morre com Macabéa. É necessário que ambos passem pela metamorfose de se transformar no outro, para redimir a sua culpa e a culpa dos outros, esperando a ressurreição de uma nova pessoa. A exploração econômica se funde com a dominação social e a sujeição dos desejos que ficam ocultos nos lugares mais recônditos da subjetividade humana. As diversas formas de exclusão social se exercem por meio de espaços que coexistem e se contrapõem gerando uma infinidade de possibilidades de resistências e subversões. A sujeição que se exerce contra as mulheres, contra os pobres e contra grupos culturais específicos e, ao mesmo tempo uma trilha de possibilidades de luta frente às relações de poder que buscam condenar a alteridade ao silêncio, a ausência e a negação de suas experiências vitais. A ausência da palavra, o enigmático e o inexplicável da realidade das mulheres pobres, indígenas, camponesas são a presença de sua força, de suas potencialidades e de seu poder. Sua especificidade como gênero, classe ou etnia é mistificada a partir de uma polarização que encerra, em definições unilaterais e indivisíveis que negam sua pluralidade ou diversidade cultural. ( Spivak, 1990). Falar do feminino implica referir-se as especificidades de mulheres que pertencem a culturas, etnias, classes sociais e países diferentes. Não existem mulheres em abstrato, fora da história e de contextos sociais particulares. A dominação e a negação que se exerce sobre o feminino, não afeta por igual a todas as mulheres. Depende do lugar que ocupem nas relações de poder, de sua posição na sociedade e no mundo. Na America Latina, a heterogeneidade é um traço encarnado em nossas raízes mais profundas, falar da identidade latino-americana como uma experiência unitária, como uma realidade homogênea, clara e transparente, implicaria negar a enorme diversidade de geografias, culturas, etnias e manifestações dos povos do continente. A pluralidade se converte na própria condição de nossa origem colonial. A mestiçagem constitui a experiência - mesmo que com frequência seja negada e repudiada – que marca nossas relações, nossos corpos e nossa realidade compartilhada. A conquista e a colônia determinaram esta multiplicidade de manifestações socioculturais, políticas e econômicas, mediante formas de opressão e destruição incalculáveis. Legaram-nos uma realidade profundamente rica e diversa em que prevalecem a pobreza, o sofrimento e a violência avassaladora. Este descobrimento faz com que voltemos o olhar para as origens comuns durante a conquista e a colônia, para aquela mestiçagem persistente e iniludível que atravessa todo o continente. Nesta história, às mulheres pertencentes aos setores populares lhes tocou viver tanto a dor pela exploração econômica e a dominação étnica como indígenas negras ou mestiças, como a opressão por serem mulheres, seres bárbaros, inferiores e irracionais. A mestiçagem que se produziu a partir da violação e do abuso sexual, com frequência brutal, sistemático e legitimado pelas relações de poder, produto da conquista e da colônia. A relação entre os processos de constituição do sujeito sexuado ou sujeito de gênero, de estrutura de classe e da divisão internacional do trabalho, permite encontrar nos processos de reprodução simbólica, condições que se entrelaçam de forma complexa. As relações de poder que se consolidam graças à imposição generalizada nas relações sociais, do medo, do ódio e da rejeição ao estranho, ao estrangeiro, ou a alteridade como ameaça a ordem dominante. Na America Latina, a mestiçagem, a pobreza e a feminilidade constituem condições de marginalidade que, por suas múltiplas qualidades perigosas devem ser controladas mediante barreiras que possam bloquear sua capacidade subversiva. A pluralidade cultural e a multiplicidade étnica, como elementos próprios, são negados, discriminados e oprimidos em função de uma suposta homogeneidade cultural dominante. No imaginário social colonial e agora neocolonial se impõe uma identidade uniforme mediante as relações de poder prevalecentes em todos os níveis da vida social. O medo e como consequência a hostilidade exercida sobre o diferente a esta racionalidade do progresso, submetida atualmente a eficiência tecnológica e ao êxito econômico, são aspectos comuns que legitimam a perseguição e a violência sistemática que caracteriza a realidade atual dos setores populares, dos grupos étnicos ou das mulheres. O que, afinal gera tanto terror e tanta raiva para legitimar, na consciência individual e coletiva, tanta violência, destruição e morte em nas sociedades latinoamericanas e no mundo globalizado?A resistência da vida, contra uma racionalidade de morte que se impõe de forma cada vez mais irracional. As lutas inseparáveis pela sobrevivência, pela justiça, pelo direito ao prazer e ao riso, a dignidade, a autoestima e ao respeito pela diferença são condições vividas como obscuras e sinistras, associadas ao caos. Tudo o que se oponha a esta forma de conceber o progresso e o êxito, constitui algo caótico, realidades obscuras, profundas e irracionais, experiências fluidas que transbordam como fluxos incontroláveis que devem ser contidos a qualquer custo e por qualquer meio. Fluxos destrutivos que representam o bestial, o demoníaco, o infernal, cuja liberação aterroriza. Não obstante, frente a esta visão pervertida do diferente, podemos afirmar que o que não flui, o que não se move, é aquilo que está morto. A vida é movimento, é corrente que flui sem rumo ou destino fixo. O corpo humano esta composto de objetos parciais dotados de fluxos diversos: sangue,lagrimas, menstruação, esperma, suor, fezes, urina. Fluxos que não limitam sua fluidez e movimentos por ele mesmo, mas que são contidos ou obstaculizados por forças internas e externas. A pulsão sexual, sob o princípio do prazer, se expressa como o desejo de uma vida livre de ausências ou carências, como uma corrente de prazer que percorre nosso corpo. Os seres humanos vivem enquanto estes fluxos corporais estejam em movimento. Se seus líquidos secam, os corpos morrem. A sexualidade é esta força interior que tende a busca do gozo, da satisfação e da liberdade. Mas que por esta mesma potencialidade de explosão, liberação e fluidez, em condições de repressão excedente, é profundamente ameaçadora e sistematicamente proibida. Se, como vimos, a feminilidade foi associada na história da cultura ocidental com a sexualidade e, portanto, com o perverso e o demoníaco, não parece casual que, atualmente, sua realidade se encontre entretecida com a realidade da pobreza e da diversidade cultural. Condições que também foram convertidas, dentro do discurso dominante que surge desde a época colonial, em metáforas de monstruosidade, bestialidade e barbárie. Imaginário social sobre o qual, se legitimou a violência sobre estes setores sociais, incluindo algumas vezes a cumplicidade destes mesmos setores em sua própria opressão. Em momentos em que o racismo e a xenofobia se impõem, nossa diversidade pode se converter em uma antecipação utópica frente à intolerância e o terror que se experimenta naquilo que é vivido como estranho ou estrangeiro. Do mesmo modo, a heterogeneidade que caracteriza o feminino em nossas sociedades patriarcais, as experiências inomináveis, profundas e intemporais, a realidade aquática do gozo do corpo, da imaginação e da criatividade, do riso satírico, podem constituir-se em possibilidades subversivas para uma realidade que nos asfixia. Desvelar o silenciado e reprimido, o novo e incompreensível, rejeitando todos os papeis e separações abismais nas quais nos encarceram, pode ser uma alternativa, uma utopia esperançosa. BIBLIOGRAFIA COELHO, E.P. A Mecânica dos fluidos. Literatura, Cinema, Teoria. da Moeda, Lisboa, 1984. Imprensa Nacional-Casa KRISTEVA, J. , Revolution in Poetic Language, New York, Columbia University Press.,1974 LISPECTOR, C. A Paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1979,13. ed. _____________________ A hora da Estrela. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1977 (1984). MINH-HÁ, T.. "Não (como) você: mulheres pós-coloniais e o entrelaçamento de questões de identidade e diferença" in YAGO, D. (org) Feminismos da Diferença. Tradução de Daniel Françoli Yago. São Paulo: Limiar, 2014 (no prelo). OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. A barata e a crisálida. Rio de Janeiro: José Olympio/PróMemória INL, 1985. PINÕN, N. O Novo Reino,in: Sala de Armas. Coleção Aché dos Imortais da literatura brasileira. 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