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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.451
RITUAIS DE FOGO NA ÍNDIA ANTIGA: O SACRIFÍCIO E SUAS RELAÇÕES
COM A ORGANIZAÇÃO SOCIAL VÉDICA
Gisele Pereira de Oliveira
Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP)
A Índia, seja a antiga e anterior ao budismo (de 7000 a 500 a.C) ou a atual (hinduísta
majoritariamente), apresenta de forma peculiar uma sociedade intrínseca e sistematicamente
organizada e mantida pela prática ritual (sagrada); pode-se citar, por exemplo, o sistema das
castas e a condição dos dalits (“intocáveis”), mantidos por idéias permanentes (de longíssima
duração) de tabu ritual.
Para compreender a formação das camadas sociais na Antiguidade indiana e sua
continuidade e adaptações até hoje, faz-se necessário uma análise histórica dos seus
documentos fundamentais, tanto da sociedade como da ritualística: os Vedas. Além de via de
registro histórico da antiga civilização indiana, essa literatura é responsável pela ritualística
(sacralidade) e também pelas normas ideais de organização social e justiça (centrais no
surgimento, desenvolvimento e definição do hinduísmo de hoje), para sua sociedade.
Uma vez que partimos do pressuposto de que a Índia antiga (e atual, em certa medida)
seja, social e culturamente, essencialmente ritual (sagrada), nos é, assim, exigido abordá-la
por meio de um instrumento metodológico indagativo a partir de uma perspectiva históricoreligiosa.
A História das Religiões da Escola Italiana, fundamentada pela cátedra e produção
teórica de Raffaele Pettazzoni, se dá, aqui, como um mecanismo de interpretação competente,
na medida em que nos oferece a possibilidade de pesquisar os eventos religiosos da Índia
antiga, determinantes da estrutura social estrita e sua longuíssima duração, como fatos
históricos detentores de um momento de surgimento, um desenvolvimento recuperável
historicamente e propiciador de novos fatos histórico-religiosos.
Considerando que o ritual nessa sociedade se dê como um dado cultural e viabiliza a
maioria das relações entre os indivíduos e entre esses e o mundo, tanto quanto com o extramundo, a prática ritual permearia, portanto, as mais básicas atividades cotidianas, uma vez
que essas são definidas e executadas a partir de uma teoria ritual (os Vedas).
A primordial literatura indiana, expressa na língua (denominada pelo e conhecida no
ocidente como) sânscrita, é conhecida como os Vedas. O termo veda, advindo da raiz
sânscrita VID, isto é, “saber”, “conhecer” ou “compreender” (termo que origina, por exemplo,
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video, do latim, widea, do grego, wit, do alemão, wisdom e vision, do inglês, entre outros), é
geralmente traduzido como “conhecimento”, “sabedoria”, ou, em relação aos Vedas em
conjunto, como “conhecimento real/ sagrado/ ritual”.
O corpus dos Vedas, se dá primeiramente e a partir do Rig-veda, tido como o mais
antigo monumento da poesia ritual, ou “religiosa” (sabemos o quão problemáticos são os
termos da cultura judaico-cristã e ocidental para outra tão antiga e oriental, por isso, são
aplicados aqui cuidadosamente – entre aspas); sendo, ainda, o mais extenso documento
escrito preservado da Antiguidade.
Trata-se de uma “coletânea” (samhita) de 1.028 “hinos” laudatórios (sukta ou ric),
“poema ou cântico para glorificar deuses ou heróis”, recitados durante os sacrifícios, os
“rituais solenes” (Shrauta), pelo oficiante invocador, hotri. Toda a “coletânea” é constituída
de 10.589 versos, organizada em dez “livros”, “círculos”, ou “ciclos” (mandala), tendo como
título traduzido “O Saber da Estrofe Recitada”.
A partir do Rig-veda, ou seja, com a repetição de grande parte de seu conteúdo e
devidos acréscimos de acordo com o fim específico da “coletânea”, há três outras samhitas, a
saber: 1) o Sama-veda, “O Saber da Estrofe Cantada”, cujos “hinos” (suktas) se destinam ao
oficiante udgatri, o qual, como o nome da coletânea indica, canta os hinos durante os rituais;
2) o Yajur-veda, “O Saber da Estrofe Litúrgica”, cujo conteúdo orienta o oficiante adhvaryu,
aquele que prepara o terreno do sacrifício e o altar e manuseia os utensílios do ritual agindo,
assim, liturgicamente; e 3) o Atharva-veda, “O Saber da Estrofe Mágica”, o qual trata de
temas e ritos para sanar doenças, satisfazer desejos e prejudicar outrem, afastando-se do
padrão de descrever e prescrever sacrifícios solenes e públicos de louvores aos deuses,
comum nas outras samhitas e sendo, assim, considerado de cunho popular.
É também na primeira coletânea védica, na Rig-veda-samhita, que encontramos o
“hino” (sukta) que narra o primeiro sacrifício, o qual dá origem à criação: o Purusha-sukta
(RG X.90). Assim, tem-se a descrição do primeiro rito, do primeiro sacrifício, cuja vítima
(oferenda) é o Homem Primordial – ao mesmo tempo, a Pessoa Suprema, ou a Verdade
Absoluta Pessoal – para dar origem ao mundo fenomenal.
A relação entre o sacrifício e a organização social se dá nesse episódio; ou seja, das
partes físicas do Purusha (Homem Primordial) surgem as camadas sociais (varnas). Daí a
evidência primeira da intrínseca e indissolúvel relação entre o indivíduo, sua localização na
sociedade (hereditariamente determinada) e o correlativo papel sacrificial que terá por toda a
vida, ou seja, seu dharma (“dever ritualístico” – tradução cf. WEBER, 1958, p. 24).
A seguir, apresentamos nossa tradução do Purusha-sukta:
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Mil cabeças tem Purusha, mil olhos e mil pés.
Abrangendo a terra completamente, Ele se expande além dela por dez dedos.
Os universos passados, presentes e futuros não mais são do que a manifestação da expansão
do Purusha.
O Senhor da imortalidade que se torna ainda maior por meio do alimentar-se.
Tão poderosa é sua grandeza!
Mas ainda maior é o Purusha.
Todas as entidades vivas do universo não são mais do que um quarto Seu
E a natureza eterna do céu eterno existe em três quartos Dele.
Os três quartos Dele transcendem a porção material.
O Purusha presente na porção de um quarto manifestou a terra novamente,
Como já fizera antes.
O Purusha de um quarto iniciou o trabalho da criação, indo para todas as direções, tomando
as formas de tudo que é animado e inanimado.
Do Purusha, a terra é engendrado
E, dela, nasce Viraj.
De Viraj novamente nasce Purusha.
Uma vez gerado expande-se em todas as direções.
Quando com o Purusha de oblação os devas [semideuses] fizeram o sacrifício,
A primavera foi o ghee [manteiga], o verão, a lenha, e o outono, a oferenda.
Nesse sacrifício, o Purusha gerado no princípio, sobre a grama kusha, pelos sadhyas [devas]
e rishis foi aspergido e, como vítima, sacrificado.
Desse sacrifício, no qual todo o universo foi sacrificado, iogurte e ghee [de fato, todos os
alimentos] foram produzidos.
Dele se criou os animais do ar, da floresta e da aldeia.
Desse sacrifício completamente executado,
Originaram-se as partes dos Vedas constituídas de rik [hinos], sama [música] e yajus
[prosa], juntamente com as sete métricas védicas.
Os cavalos foram nascidos desse sacrifício, assim como os animais com dois maxilares.
Os bovinos também nasceram desse sacrifício, juntamente com os caprinos e ovinos.
No sacrifício, em quantas partes dividiram Purusha?
O que se declara sobre Sua boca, Seus braços, coxas e pés?
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Os brahmanas surgiram de Sua boca, os kshatriyas de Seus braços, os vaishyas de Suas
coxas e os shudras de Seus pés.
Sua mente deu surgimento à lua; seus dois olhos, ao sol;
Seu alento, Vayu; e Sua boca, Indra e Agni.
De seu umbigo surgiu o espaço entre a Terra e o céu; da sua cabeça, o firmamento;
De seus pés, a terra; e de suas orelhas, as direções.
Dessa forma, os mundos foram manifestados.
No sacrifício, sete folhas de grama kusha foram dispostas ao redor do fogo [as sete métricas
poéticas dos Vedas]. Três vezes sete foram os pedaços de lenha para alimentar o fogo [doze
meses, cinco estações, três mundos e o sol].
Os devas , sacrificando, amarram Purusha para o sacrifício, como sua vítima.
Sacrificando-o, estes foram os primeiros ritos.
Ao firmamento eterno, onde moram os sadhyas [devas], esses poderes se elevam.
Confirma-se, aqui, a asseveração de Malamoud sobre a relação entre ritual e sua
teoria, ou pensamento indiano: “no pensamento da Índia bramânica, o sacrifício é em si um
esquema explicativo (por causalidade ou por analogia) para a ordem mundial, as atividades e
projetos humanos” (MALAMOUD, 1989, p. 6). A ordem social, na qual “as atividade e
projetos humanos” se efetivam, chama-se varnashrama, ou a organização social fomentada,
por um lado, com camadas sociais hereditárias (varnas) determinantes de “deveres
ritualísticos” ou dharma, e, por outro lado, com estágios da vida (ashrama), a grosso modo,
por faixa etária. Assim, os varnas seriam: 1. os brahmanas (intelectuais, professores,
filósofos e sacerdotes – mendicantes!) que se dedicam apenas ao ócio contemplativo, à
recitação diária dos Vedas, à ritualística, ao aconselhamento ao rei e à educação; 2. os
kshatriyas (guerreiros, governantes reais e administradores) que se dedicam exclusivamente à
proteção de todas as entidades vivas do seu reino, ao exercício da guerra e da caça e à
administração do reino; 3. os vaishyas (agricultores, produtores e comerciantes) a quem cabia
toda a produção necessária para a subsistência de todas as camadas da sociedade, assim como
a maior carga tributária e o financiamento dos rituais; e 4. os shudras (trabalhadores manuais)
que se destinam aos mais diversos serviços para os varnas acima, seja na agricultura, na
manufatura, em limpeza etc. Por outro lado, os ashramas seriam: 1. brahmacari, “jovem
estudantes celibatários”; 2. grhastha, “chefe de família”, “cônjuge”; 3. vanaprastha,
“aposentado”, “peregrino” e “estudante dos Vedas”; 4. sannyasi, “renunciante”, “medincante”
(cf. OLIVEIRA, 2009).
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Este sistema óctuplo (de quatro categorias sociais e quatro ordens ou estágios
religiosos da vida) possui diferenciações, orientações e uma regulação quanto à busca de
quatro metas ou sentidos da vida, chamados purusharthas (os quatro princípios que o homem
deve observar em relação à sua posição no varnashrama): 1. moksha, “libertação”; 2.
dharma, “dever ritualístico”; 3. artha, “desenvolvimento econômico”; e 4. kama, “prazer”
(cf. ibidem, p. 114). O intuito dos purusharthas é conscientizar o homem de que toda e
qualquer atividade sua são interpretadas e designadas para um desses sentidos; sejam tomados
isoladamente ou combinados entre si. Assim, a cada momento da vida, o homem é
impulsionado por cada um ou mais sentidos em graus variados de acordo com o varna ao
qual pertence e ao ashrama que está vivenciando. Portanto, cada categoria social enfatizará
um sentido em relação ao seu dever ritual; ou seja, os brahmanas lidarão principalmente com
moksha, os kshatriyas, com dharma, os vaishyas, com artha, e os shudras, com kama. Devese manter em mente que os purusharthas são necessários a todas as categorias; o que variaria,
então, seria o grau de importância e dedicação a cada um deles durante a juventude e
maturidade e, conforme a idade avançaria, a idéia geral seria de se dedicar mais e mais aos
purusharthas superiores, principalmente moksha.
Em relação aos Vedas, estes eram, e ainda são, transmitidos fidedignamente devido à
exatidão poética, por meio da métrica estrita e o ritmo detalhadamente marcado, a cargo das
famílias de “poetas” (os rishis), da camada social sacerdotal, os brahmanas, para os quais a
memória é sagrada, pois, é seu dharma (“dever ritualístico”) estudá-los, memorizá-los e
transmiti-los para outros brahmanas, além de ser sua via de libertação (moksha) do ciclo
repetitivo de nascimentos e mortes (samsara).
Nota-se, assim, que a própria estrutura social da Índia antiga existe em função da
preservação da palavra (oral e documental) ritual e sua prática, por meio de eficazes
mecanismos de memorização e transmissão; ambas dependentes do sistema social que garante
e mantém o sistema educacional, a subsistência dos brahmanas e sua exclusividade nas
técnicas de memorização do saber.
Ora, para se manter a atividade de memorização por meio da recitação contínua dos
hinos, exige-se um contingente razoável de pessoas e um condizente ócio, ao mesmo tempo
em que se ocupam com a execução de sacrifícios (de fogo), que demandam diversos
sacrificantes, com seus respectivos assistentes e esposas. Paralelamente, a ordem e as leis na
sociedade precisam ser garantidas e deve-se haver o planejamento e gerenciamento da
produção para o provimento tanto para os sacrifícios (animais, grãos, produtos lácteos, frutas
e vegetais), como para a subsistência de todos e, finalmente, exige-se um bom contingente
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para trabalhar nas lavouras e pastos e em todas as atividades manuais ou mais simples (e não
menos essenciais) como a limpeza, a produção de produtos manufaturados etc. Tudo isso se
dava, portanto, pela estrita divisão social em camadas hereditárias, ou varnas.
Tudo na sociedade indiana da Antiguidade revolve em termos do ritual, do sacrifício:
yajña. Yajña é diretamente e completamente relacionado com “devolver”, “retornar”, “dar de
volta”: sacrifício, de acordo com a Bhagavad-gita (tradução do sânscrito, aqui, por
SCHWEIG, 2007) é descrito como “a roda que foi posta a girar” (tradução para o português
nossa), pravartitam cakram (BG 3.16).
A idéia é de que, ao nascer no mundo fenomenal, uma pessoa recebe diversos dons
(presentes), por exemplo, o corpo, a vida, a água, oriunda das chuvas (a partir da qual se
produzem os grãos), o conhecimento, etc. Assim, ao nascer, a pessoa adquire débitos; isto é,
ela deve por todas essas facilidades, em última análise, à Verdade Absoluta, à Pessoa
Suprema.
Portanto, na “roda que foi posta a girar”, tudo se origina da Pessoa Suprema e passa
pelos semideuses, seus assistentes ou ministros, e, então, para os humanos e o que se recebe,
as utilidades básicas para a vida (assim como as contas de água, luz, esgoto etc. que
pagamos), deve ser oferecido de volta: isso desenvolve caráter moral, ensina gratidão,
cuidado. Além disso, se adquire benefícios, pois, uma vez que se reciproque com os
administradores autorizados (os semideuses) ou diretamente com a Pessoa Suprema, se obtêm
alguns benefícios; estabelecendo, assim, a oposição entre papa, ou “atividades pecaminosas”,
que, para essa cultura significa tomar algo sem reconhecer sua origem e devolvê-lo em
sacrifício, e punya, ou “atividades auspiciosas”, que se referem às atividades de sacrifício e
caridade que propiciariam um bom nascimento na próxima vida com as facilidades (sociais,
físicas e econômicas) para alcançar a meta última pelo cumprimento do dever ritual: a
liberação (moksha) do ciclo de nascimentos e mortes (samsara).
Há, portanto, um esforço social, uma sinergia (todas as partes convergem para uma
meta comum), para que os sacrifícios fossem executados, protegidos, mantidos e transmitidos
para o bem de todos – mesmo que só os brahmanas tivessem acesso ao conhecimento, à
técnica, à memorização etc. e, por outro lado, os shudras fossem proibidos de ouvir ou assistir
aos rituais, pois, o que vale, de fato, é cumprir seu dever pessoal e esse sempre é “dever
ritualístico” (dharma), por que independente da posição, da atividade direta ou indireta com o
ritual, todos agem em prol dele.
Se há um fio condutor de idéias e práticas rituais desde a Antiguidade até a Índia atual
e hinduísta, este é passível de análise histórica para a compreensão da sociedade indiana: o
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surgimento das castas se dá pelo não cumprimento do dever ritual, ocasionando a expulsão da
categoria pertencente (varna) e a passagem de toda a família e descendentes para outra
categoria (que não poderia ser uma das outras três originais, mas uma nova referente à
categoria primordial e à falta cometida. Dessa forma, no decorrer de séculos, muito variadas
foram as falhas e, assim, vê-se uma miríade de novas categorias sociais que seriam
conhecidas como castas na modernidade. Por outro lado, aqueles não considerados
pertencentes às categorias primordiais e suas subdivisões consecutivas, ou seja, os dalits
(“intocáveis”), são aqueles que não se originam dos povos aryas (“conhecedores e praticantes
dos Vedas”): povos estrangeiros ou nativos de áreas afastadas das primeiras cidades que, ao se
aproximarem da sociedade védica já estabelecida, tinham como único meio de convívio a
submissão às quatro divisões pré-existentes; sendo considerados impuros para as práticas
ritualísticas e não essenciais para seu cumprimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGNOLIN, Adone. O Apetite da Antropologia. O sabor antropofágico do saber
antropológico: alteridade e identidade no caso tupinambá. São Paulo: Humanitas, 2005.
Bhagavad Gita: The beloved Lord’s song. Translation Graham M. Schweig. New York:
HarperCollins Publishers, 2007.
MALAMOUD, Charles. Cuire Le Monde. Rite et Pensée dans l'Inde Ancienne. Paris: La
Découverte, 1989.
OLIVEIRA, Arilson. Max Weber e a Índia. O vaishnavismo e seu yoga social em formação.
São Paulo: Editora Blucher, 2009.
WEBER, Max. The Religion of India. The sociology of Hinduism and Buddhism. Translation
Hans H. Gerth and Don Martindale. Glencoe: The Free Press, 1958.