Pescadores, peixes ornamentais e conservação dos

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Pescadores, peixes ornamentais e conservação dos
Anais do I Seminário Internacional
de Ciências do Ambiente e
Sustentabilidade na Amazônia
PESCADORES, PEIXES ORNAMENTAIS E
CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS:
UMA ABORDAGEM ETNOICTIOLÓGICA DE
COMUNIDADES DO RIO XINGU,
PA – BRASIL
Leticia Carneiro da Conceição; Jaime Ribeiro Carvalho Júnior; André Ribeiro de Santana;
Luiza Nakayama
Realização
Apoio
Pescadores, Peixes Ornamentais e Conservação dos Recursos Naturais: uma abordagem Etnoictiológica de Comunidades do Rio
Xingu, PA – Brasil
INTRODUÇÃO
A etnobiologia estuda o modo como determinadas sociedades humanas classificam,
identificam e nomeiam o seu mundo natural. A vertente da etnobiologia, que se propõe a estudar a inserção
dos peixes em uma dada cultura, é denominada etnoictiologia (MOURÃO; NORDI, 2006). No Estado do Pará,
região amazônica brasileira, as sociedades humanas identificadas por sua antiga interação com os recursos
naturais vêm sendo denominadas de populações tradicionais, em atenção à sua acumulada prática de
saberes e convivência com recursos naturais, em modo de vida pouco urbanizado e não industrializado
(CUNHA; ALMEIDA, 2001)
Nas áreas pesqueiras paraenses, o aprendizado ocorre pela prática, pela continuidade
da atividade, pela convivência grupal. O registro mental deste conhecimento empírico é transmitido de
geração a geração. Nesse particular, as faixas etárias mais velhas exercem papel relevante na transmissão
desses conhecimentos (FURTADO, 1993).
Batista; Isaac; Viana (2004) comentaram que a captura de peixes ornamentais pode ser
considerada atividade potencialmente prejudicial à preservação da biodiversidade amazônica, pois a grande
riqueza de espécies explorada e exportada é, na maior parte das vezes, desconhecida do ponto de vista
taxonômico e ecológico. Moraes (2007), em seu livro: “Uma arqueologia dos saberes da pesca”, analisando
a relação homem e natureza fundamentada na tradição dos saberes das populações pesqueiras dos
municípios de Assú – RN e de Abaetetuba e de Igarapé Miri – PA, afirmou (p. 70): “a riqueza de
classificações e ordenações de espécies, instrumentos de captura e aplicabilidade destes demonstra a
multiplicidade de formas culturais construídas pelas populações”.
Especificamente quanto à pesca ornamental, atividade extrativista mais antiga e
importante em comunidades ribeirinhas do médio rio Xingu – PA, Carvalho et al. (2009) verificaram que foi
grande o número de pescadores que começou a trabalhar com idade abaixo do permitido pelas leis
brasileiras, dependendo exclusivamente da pesca ornamental para seu sustento e estando na profissão há
bastante tempo. Além disso, esses profissionais possuem baixo nível de escolaridade e de capitalização.
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OBJETIVOS
Dentro do contexto apresentado, o objetivo do presente trabalho foi caracterizar a pesca
ornamental de comunidades ribeirinhas do médio rio Xingu – PA, a fim de entender o cotidiano dos
pescadores e os seus conhecimentos etnoictiológicos.
METODOLOGIA
Entrevistamos aproximadamente 200 pescadores ornamentais em cinco municípios
paraenses - Altamira, Senador José Porfírio, Vitória do Xingu, Brasil Novo e Anapu, a partir de 2002 até
2009, com duração de aproximadamente um mês para cada campanha. Paralelamente, realizamos contato
com a família, a comunidade e os órgãos responsáveis (secretarias estaduais e municipais de educação,
sindicatos, associações, cooperativas, colônia, igrejas e outros) das áreas estudadas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Consideramos que a forma de viver dos pescadores ornamentais é simples em sua
essência. No entanto, a qualidade de vida necessária e desejável ao grupo depende, segundo Leff (2004), de
uma interação ambiental vinculada a um desenvolvimento equilibrado e sustentável.
Neste quadro situacional, apesar de mais de duzentas espécies de peixes ornamentais
ocorrerem no rio Xingu, a pesca concentra-se em dez delas (acari zebra, arraia, marrom, picota-ouro, boi-debota, onça, assacu-pirarara, amarelinho, cutia e jacundá), reconhecidos pelos pescadores através de
caracteres etnoictiológico, tais como: morfológicos, ecológicos, e comportamentais. A captura desses
peixes visa atender, prioritariamente, o mercado internacional.
Ressaltamos que os peixes muitas vezes morrem durante o processo de captura, já que
são acondicionados inadequadamente em recipientes impróprios, improvisados a partir de garrafas
plásticas, atadas ao corpo do pescador. Quando se desatam, durante o mergulho, os recipientes se perdem
no rio e os peixes capturados, sem ter como escapar, acabam morrendo. Além disso, devido ao alto valor
individual de espécies como acari zebra e arraia, estimamos que essa pesca seletiva poderá levar à
sobrepesca: exploração não sustentável dos recursos pesqueiros. Compartilhando dessa preocupação, a
Secretaria de Ciência e Tecnologia da Amazônia apresentou a lista vermelha da biota aquática do Pará,
havendo 13 espécies de peixes ameaçadas de extinção (SECTAM, 2010).
Dependendo das espécies de peixes ornamentais solicitadas pelos compradores,
membros de várias famílias de pescadores realizam expedições longas, de aproximadamente uma ou duas
semanas.
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A própria coleta não é de fácil execução, pois em mergulhos livres diurnos, os
pescadores permanecem horas tentando localizar os peixes em seu hábitat. Em áreas com profundidade,
nos períodos noturnos e/ou de mais chuvas na região, utilizam compressor de ar improvisado para o
mergulho autônomo.
Nos meses de dezembro a junho, período mais chuvoso para a região, os pescadores
relataram sentir dores corporais, após muitas horas de submersão; também, reclamaram da exposição a
baixas temperaturas, pressão e maior turbidez da água, forte correnteza e condições precárias na coleta. Já
no período menos chuvoso (meses de julho a novembro), salientaram que precisam despender mais tempo
para os deslocamentos.
As consequências danosas à saúde do mergulho em grandes profundidades (mais de
5m) vão desde alterações visuais, perda auditiva, náusea, vertigem, tontura, chegando até mesmo à morte.
Estes problemas estão correlacionados à doença descompressiva e à hipóxia.
A partir das entrevistas, identificamos quatro atores envolvidos na pesca ornamental: o
pescador, o atravessador (revendedor), o distribuidor (classificador das qualidades morfológicas e sanidade
dos peixes) e o exportador (responsável pela venda no mercado externo). Normalmente, o exportador
(também conhecido como patrão) ou o atravessador agem como espécies de “aviadores”, comprando as
provisões ou deixando o dinheiro para as despesas familiares e deduzindo este valor do total a ser pago
pelos peixes capturados. Esses dados sobre o ciclo produtivo de peixes ornamentais estão de acordo com
RIBEIRO et al. (2009).
Consideramos como principais entraves na atividade de pesca ornamental: a
dependência dos pescadores para com os atravessadores e patrões; a falta de apetrechos de pesca,
principalmente os mais onerosos, como o compressor de ar - fundamental para coleta em águas mais
profundas - e a falta de meios de transportes próprios, para comercializarem diretamente os produtos da
pesca. Dentre os anseios dos pescadores visando melhores condições de trabalho estão: registro em
carteira de trabalho; criação de associações de classe e liberação da captura de acari zebra e de arraia embora a pesca destas espécies ocorra mesmo com a proibição, devido ao alto valor comercial.
Neste contexto, os elementos que garantem a manutenção da sobrevivência das
famílias de pescadores do rio Xingu são a terra e a água. No período menos chuvoso, além da pesca
ornamental, fazem o cultivo principalmente da macaxeira, tirando proveito das áreas de várzeas; já no menos
chuvoso dependem totalmente da pesca, devido ao solo tornar-se alagado, inviabilizando a prática do
roçado.
Embora existam associações e sindicatos em algumas localidades, a maioria dos
pescadores entrevistados declarou não participar das mesmas. No entanto, consideraram fundamental a
filiação em colônias de pescadores, uma vez que, através dela, podem conseguir mais segurança no
exercício profissional, incluindo o recebimento de seguro-desemprego, na época da piracema.
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Outro problema iminente detectado pelos pescadores - que pode afetar e interferir nas
condições de trabalho - é o possível represamento do rio Xingu com a construção do Complexo da Usina
Hidrelétrico de Belo Monte, projeto do Governo Federal, o qual prevê a construção de barragens ao longo
dessa Bacia Hidrográfica.
Os efeitos da construção da barragem da UHE de Belo Monte incluem a supressão de
alguns ecossistemas, comprometendo a existência de espécies endêmicas da região do rio Xingu, como o
acari zebra. Aforas as perdas na biodiversidade, outros prejuízos incluem destruição de patrimônios
históricos, além de desestruturações nos setores sociais e econômicos. As várzeas, ecossistemas utilizados
para o cultivo no período menos chuvoso, serão, provavelmente, os primeiros ambientes a se perderem nas
inundações causadas pelas barragens.
Entendemos, portanto, que essas populações ribeirinhas se encontram em “estado de
vulnerabilidade socioambiental”, como definiram Loureiro et al. (2005). Acreditamos que uma das saídas
mais urgentes, para minimizar a atual situação de pobreza dos pescadores ornamentais e para evitar o êxodo
para outras localidades, é intensificar a educação (formal e não formal) destes pescadores.
Na educação formal, sugerimos elaboração de material didático com temáticas voltadas
à realidade e interesses dos ribeirinhos. No âmbito não formal, a sugestão seria promover junto às
comunidades palestras sobre: mergulho autônomo e prevenção de acidentes; pesca predatória e
sobrepesca; funcionamento e os possíveis impactos causados pela construção da UHE Belo Monte;
Educação Ambiental e confecção de ecojóias utilizando sementes, folhas, raízes de plantas regionais, dentre
outras.
Sugerimos, ainda, oferecer aos pescadores e seus dependentes qualificação na
atividade pesqueira; incentivar o cooperativismo; favorecer a participação de alunos e comunidades em
projetos que gerem fontes alternativas de renda, em uma perspectiva de justiça ambiental.
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CONCLUSÕES
As comunidades do médio rio Xingu demonstraram um universo de conhecimentos,
práticas de manejos e valores éticos que podem contribuir muito para a implementação do manejo de
recursos naturais da terra e da água.
A pesca ornamental é a atividade mais importante para a economia dessas
comunidades, sendo de caráter artesanal e desenvolvida a partir de conhecimentos tradicionais. As
condições de sua realização revelam-se danosas a saúde dos pescadores.
Essa atividade pesqueira, cuja produção destina-se principalmente ao mercado
internacional, emprega força de trabalho familiar. No entanto, por questões socioculturais e pelo contexto de
trabalho, grande parte dos pescadores de peixes ornamentais fica à mercê dos atravessadores ou patrões.
Assim, consideramos fundamental que os pescadores ornamentais tenham acesso à
educação formal, não formal e profissional, a fim de conhecer regras básicas de gerenciamento de negócios
e de conservação ambiental, melhorando a sua condição de vida, evitando, assim, o êxodo para outras
regiões.
AGRADECIMENTOS
A todos que participaram, espontaneamente, desta pesquisa: pescadores artesanais e
seus familiares, membros da comunidade e funcionários das instituições relacionadas.
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CUNHA, M. C.; ALMEIDA, M.W.B. 2001. Populações tradicionais e conservação ambiental. In: CAPBIANCO,
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LOUREIRO, C.F.B.; AZAZIEL, M.; FRANCA, N.; BRASILEIRO, R.F.; MUSSI, S.M.; LAFAILLE, T.M.S.; LEAL,
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em: 03/05/2010.
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